Você está na página 1de 18

LESTE VERMELHO

revista de estudos críticos asiáticos


issn 2446-7278
volume 4 - número 2 – dezembro de 2017

ARTIGO INÉDITO

MODERNIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO NA
CHINA CONTEMPORÂNEA
Mariana Delgado Barbieri | Doutoranda em Ambiente e Sociedade (NEPAM/UNICAMP)

Marina Martinelli | Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade (UFSCAR)

Resumo

Este artigo pretende elaborar de forma exploratória reflexões sobre as transformações

ocorridas na China, na década de 1980 e 1990, que promoveram a modernização da

sociedade e suas relações, permitindo um processo de individuação. Tais mudanças

alteram as relações da China com o mundo, e no caso da relação China-Brasil temos,

como exemplo disso, o desdobramento da ideia de “intercâmbio cultural”, a partir

dos Institutos Confúcio e dos intercâmbios universitários. Novas relações sociais,

novos padrões de vida e consumo, ocasionam o surgimento de um novo indivíduo,

globalizado, que mistura elementos da tradição e da modernidade, numa aparente

contradição, a partir da incorporação dos novos referenciais que a modernização

trouxe à China.

Abstract

This article intends to elaborate exploratory reflections on the transformations that

occurred in China in the 1980s and 1990s, which promoted the modernization of

society and its relations, allowing a process of individuation. Such changes alter

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 5


China's relations with the world, and in the case of the China-Brazil relationship we

have, as an example, the unfolding of the idea of "cultural exchange" from the

Confucius Institutes and university exchanges. New social relations, new patterns of

life and consumption, lead to the emergence of a new, globalized individual who

mixes elements of tradition and modernity, in an apparent contradiction, from the

incorporation of the new elements that modernization has brought to China.

Introdução

Esse artigo busca refletir acerca da modernização vivenciada na China a partir

dos anos de 1980, responsável por profundas transformações sociais. Qual a origem

dessas mudanças? Como elas influenciam o indivíduo? Como o novo indivíduo passa

a se inserir no contexto de globalização? Como o Brasil é impactado pelas mudanças

vivenciadas na China? Neste sentido, interligamos nossa reflexão pela análise de

fatores tais como: a Modernização, o surgimento de um indivíduo mundializado

dentro da área que chamamos de Individuação e, por fim, para onde estão sendo

levadas as políticas públicas das agendas chinesas para o Brasil no que se refere ao

intercâmbio entre universidades.

Dentro desse universo, precisamos entender, primeiramente, os dados referentes

ao quadro econômico, histórico, sociológico e individual deste país para podermos

caminhar pelo grande assunto denominado “China”. Trata-se de uma análise

interdisciplinar, com um pouco da história, da sociologia, da geografia, da filosofia e

das políticas entorno das ideias a respeito do grande assunto.

Esta reflexão se justifica pelo fato de haver não apenas relações diplomáticas entre

o Brasil e a China, mas pelo processo de cooperação entre os dois países, numa busca

multilateral de se compreender “o diferente”, tanto pelo lado da China quanto pela

forma como o Brasil e a América veem o Oriente, em busca de uma identificação e de

processos de Inovação.

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 6


1. Os dados da pesquisa: a pesquisa dos dados

A China, uma das civilizações mais antigas do mundo, experienciou a

modernização aos moldes ocidental apenas a partir da década de 1980, quando

decisões políticas colocam o país em um novo patamar econômico e social, com

intensas relações com outros países.

Tradicionalmente fechada para o mundo externo, a China se abre por questões

econômicas, mas inevitavelmente o país passa a ser parte do fluxo global não apenas

econômico, mas também cultural, de valores, tecnologias, informação, inovação e

intercambio com outros países dentro de universidades.

A morte de Mao Zedong em 1976 marca o fim de uma longa era repleta de

conturbações, derrotas e sucessos nos mais diversos campos de atuação política. Em

1978 Deng Xiaoping assumiu o poder político e oficializou a adoção de reformas

econômicas, com o intuito de promover um grande crescimento econômico, mas sem

alterar as bases da política. Chamado de Plano das Quatro Modernizações objetivava

atingir a agricultura, a indústria, a defesa, a ciência e tecnologia, estimulando a

reinserção internacional (GAMER, 1999; LEITE, 2013), de forma a tornar a China uma

grande potência mundial até 2050. Deng Xiaoping afirmou que o objetivo era

quadruplicar o PIB, além de absorver os investimentos estrangeiros, a tecnologia e a

ciência, abrindo a China para o mundo, com a chamada política de portas abertas (HSÜ,

2000). Houve uma completa virada política em relação aos anos Maoístas, que isolou

a China. Deng defendia abertamente a impossibilidade de se desenvolver sem se

relacionar com os demais países, a modernização demandava as relações entre

Estados, a partir de trocas comerciais, científicas e tecnológicas.

O setor industrial, no Plano das Quatro Modernizações, ficou responsável por

desenvolver mais de 120 grandes projetos, nas áreas de ferro, óleo, gás, estações de

energia elétrica, minas de carvão, metais não ferrosos, incumbidos de fornecer a

matéria prima necessária para o enorme crescimento chinês planejado já em 1976,

durante o 5º Congresso Nacional. A estimativa era de aumentar a produção de ferro

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 7


de 60 milhões de toneladas em 1985 para 180 milhões em 1999; a extração de carvão

deveria saltar para 900 milhões de toneladas, praticamente o dobro da média anual

da década de 1970; mas entre tantos números grandiosos a expansão da produção de

energia elétrica era a menor entre todos os crescimentos previstos pelo plano de

modernização. A instalação de novas plantas produtivas deveria aumentar em cerca

de 6 a 8 milhões de quilowatts por ano, muito distante do necessário para sustentar

um crescimento econômico de 10% ao ano, já ficando claro a necessidade e o

estímulo ao consumo do carvão (HSÜ, 2000).

Já a modernização científica, outro pilar do plano de Deng Xiaoping, visava

estimular a troca de conhecimentos e produções científicas da China com diversos

países, além de incentivar a formação acadêmica, aumentando o número de

intelectuais, pesquisadores, cientistas, capacitados para fundarem novos centros de

pesquisa, integrados por um sistema nacional de pesquisa científica e tecnológica.

O setor militar, que contava com um grandioso número de membros das forças

armadas, necessitava de urgente modernização, pois apesar de ser o maior poderio

mundial em termos numéricos, contava com uma estrutura e tecnologia antiga, ainda

calcada nas indústrias bélicas inspiradas pela União Soviética na década de 1950. Tal

atualização tecnológica das forças armadas custou em torno de 33 bilhões de dólares,

estimativa feita por países ocidentais, já que o governo chinês não divulgou o valor

na época. Entretanto, ao menos 330 bilhões de dólares seriam necessários para uma

completa atualização e modernização, custo excessivamente alto para um momento

em que tantos outros investimentos estatais eram mais necessários.

Ao lado dessas áreas, a reforma ocorrida do campo foi o principal fator para

uma série de mudanças econômicas e sociais experimentas pela China durante a

década de 1980. A transformação se inicia a partir da população rural, que

percebendo o esgotamento do modelo de agricultura baseado no sistema de comunas

passa a adotar o sistema de responsabilidade familiar, numa transformação

endógena que recebeu apoio de Deng Xiaoping após as primeiras experiências bem

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 8


sucedidas. Com esse sistema a terra era distribuída entre as famílias, que

conquistavam autonomia para escolher seus métodos de gestão, plantação e colheita.

Uma parte da produção era entregue ao Estado, que pagava, na época, baixos valores

em troca. O excedente da produção podia ser vendido ou trocado. Tão simples

transformação impactou profundamente a organização econômica e social do país: a

possibilidade de venda do excedente criou um mercado consumidor, um mercado de

troca e comercialização.

Esse pequeno mercado passa a estimular o surgimento de pequenas indústrias

e também a contratação de mão de obra, afinal, aumentando a produtividade das

terras aumentava-se o excedente produzido, colocando mais produtos no recém-

criado mercado. A população rural tornou-se uma população consumidora,

comprando produtos e serviços no comércio local, permitindo a circulação

econômica e a consolidação de um ciclo consumidor (LEITE, 2013). Iniciou-se a

produção de bens de consumo de baixo valor, acessível a muitas famílias e também

vendido para o mercado internacional, internacionalizando a produção, ao mesmo

tempo em que permitiu a expansão da mão de obra assalariada e do consumo local.

A possibilidade de comercialização do excedente incentivou o aumento da

produtividade, competitividade entre os produtores e a regulação dos preços dos

produtos. Provocou uma completa transformação na dinâmica do campo, não

prendendo todos os membros da família ao trabalho no campo, liberando

trabalhadores para o emprego nas pequenas empresas que começavam a surgir.

Dados indicam (FAIRBANK & GOLDMAN, 2008) que entre os anos de 1980 e 1986,

apesar da redução da população rural, que se deslocava para as cidades, a produção

bruta mais que duplicou – efeito direto da política econômica voltada para a

agricultura, que conferiu dinamismo e incentivo à produção.

A vida no campo passava, então, a ter melhores condições, com incremento na

renda per capita - ainda que a renda per capita anual fosse de 250 dólares, enquanto

a renda de um americano chegava a mais de 12 mil dólares. A pobreza era a regra

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 9


entre a população rural, mas o dinamismo provocado por essa mudança na estrutura

agrária é uma pequena faísca capaz de provocar grandes mudanças no futuro do

país.

Com a modernização do campo e das reformas do mercado, ao longo da

década de 1980, temos um intenso processo migratório do campo para a cidade. O

ano de 1984 marcou oficialmente a expansão do mercado para as áreas urbanas;

assim como nas áreas rurais, as forças do mercado conduziram transformações

também nas cidades, impulsionando um novo desenvolvimento econômico

responsável por permitir um maior acréscimo na economia urbana na segunda

metade da década de 1980, em comparação com a economia rural, que voltava a se

estagnar em virtude da ausência de novas reformas e incentivos governamentais.

Ao mesmo tempo em que ocorre um estímulo à economia urbana e rural e à

criação de empresas privadas, por outro lado há um enfraquecimento das empresas

estatais que ocasionou uma redução na arrecadação pelo governo central. Em

contraposição, as esferas locais se fortaleceram a partir da aliança com as empresas

privadas, aumentando a arrecadação de impostos municipais, beneficiando os

funcionários locais (a partir da corrupção), mas também trazendo melhorias para as

populações locais. Disso decorre um fortalecimento do poder político e econômico

local, que provoca um enfraquecimento no poder central. Ao manter o imposto

arrecadado em sua própria região há um maior estímulo ao crescimento, pois é

possível visualizar as melhorias que a vinda de empresas causava à região

(FAIRBANK & GOLDMAN, 2008).

O governo cria, desta forma, Zonas Econômicas Especiais como meio de atrair

investimento estrangeiros, oferecendo incentivos fiscais em troca de produção de

novas tecnologias e aumento nas exportações. Tais Zonas provocaram intensa

urbanização nas áreas ao longo da costa sudeste da China, no delta de Guangdong e

no rio Yangzi, atraindo mão-de-obra barata que produzia bens não-duráveis, como

vestuários.

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 10


Uma economia de mercado efetivamente se consolida, com empresas

estrangeiras expandindo suas atividades, empresas privadas aumentando

exponencialmente, e consequentemente, o Estado começando a ter menor controle

sobre a vida pessoal dos chineses; as escolhas individuais passam a ser possíveis,

conferindo flexibilidade à vida pessoal, que se vê cada vez mais autônoma em

relação ao Partido.

O programa de transformações da China unia direcionamentos para uma

economia de mercado e para uma inserção internacional, a partir da manutenção e

centralidade do Partido Comunista. Conforme afirmam Fairbank e Goldman (2008)

no século XIX a China experimentou algo semelhante, quando se buscou adotar

tecnologias e economia nos moldes ocidentais, porém mantendo o Estado e os

valores confucionistas tradicionais. Tal situação mostra certo dilema e ânsia entre

manter a China fechada às tradições e valores, ou abri-la ao Ocidente, incorporando

seus modos de vida, ciência, métodos.

A década de 1980 vivenciou, graças à abertura comercial ao exterior e ao envio

de chineses para outros países, a introdução de ideias políticas e valores ocidentais.

Centenas de livros, filmes, músicas e influências por meio da televisão, rádio, fax,

entraram nos lares chineses e nas rodas de conversas, principalmente nos grandes

centros urbanos. Tal fenômeno se intensifica na década de 1990, quando novas

tecnologias de comunicação expandem as áreas de influência para a área rural,

levando novas perspectivas aos chineses que habitavam locais longes dos centros

urbanos.

Nos últimos anos da década de 1980 fica nítida a influência de valores e

culturas ocidentais, perceptível nas manifestações de estudantes, no questionamento

ideológico, na crise da legitimidade do Partido e dos ideais socialistas, com

diminuição na capacidade de lideranças (HSÜ, 2000). Ao mesmo tempo em que a

insegurança pelo presente dominava as diversas camadas da população, ideias

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 11


positivas e políticas governamentais incentivavam uma visão idílica de futuro, com a

modernidade resolvendo os conflitos existentes.

O crescimento econômico e o dinamismo que a sociedade conquistava tornou

possível maior expressão intelectual, cultural e individual, e Deng Xiaoping não

reprimiu tal acontecimento. Diferentemente do período de Mao Zedong houve uma

diminuição no controle do Partido sobre a vida pessoal, social, cultural e sobre as

atividades econômicas, porém, mantendo o controle na área política e fortalecendo a

política do filho único (FAIRBANK & GOLDMAN, 2008). As ideologias oficiais

deixam de ser as únicas possíveis, e há um crescente número de chineses em busca

de uma religião, seja o catolicismo, o protestantismo, o daoísmo ou o budismo.

Novas práticas filosóficas e religiosas são permitidas, possibilitando pela primeira

vez após 1949, a manifestação das crenças e valores individuais, sem a interferência e

orientação do Partido comunista.

A China seguiu certa tradição do Leste Asiático que defendia “primeiro o

crescimento econômico e depois mudanças políticas” (GAMER, 1999). Os sucessos

das reformas econômicas legitimam a liderança política. Isso em parte explica a

manutenção do Partido Comunista no poder até os dias atuais, afinal a China tem

obtido constantes avanços econômicos e sociais, e isso dificulta uma contestação

maior ao Partido.

As transformações econômicas são relativas: não há propriedade privada das

terras, as empresas familiares têm um número restrito de trabalhadores, há altos

impostos; a corrupção é estimulada; aumento da desigualdade social; intensificação

das disparidades regionais.

2. Modernização

O medo de que as políticas econômicas adotadas destruíssem o socialismo fez

com que Deng propusesse a ideia de socialismo de mercado, na qual se mantém os

princípios distributivos e o Estado continua sendo o detentor dos meios de produção

e de toda estrutura econômica de base.

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 12


As transformações iniciais, entre os anos 1979 e 1984, não pretendiam criar um

sistema de mercado livre e aberto. O que havia era a tentativa de utilizar o antigo

sistema produtivo, modernizando-o e criando mecanismos de mercado que

trouxessem dinamismo à economia. Hsü (2000) afirma que “By 1984, only 30 to 40

percent of industrial production could be attributed to central planning measures, 20 percent

to the Market economy, and 40 to 50 percent to locally planned or guidance-planned output”

(HSÜ, 2000, p. 853).

Com o sucesso dos primeiros anos de abertura e reforma ocasionados pelo Plano

das Quatro Modernizações, em 1984 o governo determinou que a etapa inicial havia

sido cumprida com sucesso, e se referia às mudanças e avanços no campo. Desta

forma, a segunda etapa deveria ser voltada para as áreas urbanas, com planejamento

e orientações visando um grande crescimento interno e expansão do mercado

nacional. Essa segunda etapa também marcou o início das privatizações, com a

venda de empresas estatais por baixos valores, permitindo a mercantilização e a

intensificação da presença chinesa no mercado global (ZHANG and ONG, 2008), mas

sobremodo dando abertura comercial e cultural para com os países do Ocidente,

incluindo o Brasil.

O que as lideranças do governo defendiam era a conjunção de mecanismos de

mercado e planificação central, sem que isso significasse a transformação em

capitalismo, afinal, acreditavam que o uso de técnicas neutras não alteraria o sistema

vigente. Dessas reflexões surge a noção de Socialismo de Mercado ou Capitalismo

com características chinesas.

Inevitavelmente, um Plano com enormes dimensões tal qual o Plano das Quatro

Modernizações traz consequências diversas à nação. A inflação é um resultado

sentido já na década de 1980, quando inicialmente a demanda pelo consumo e uma

produção aquém da necessidade supervalorizava os preços. Oficialmente estimada

em torno de 12% ao ano, ela chegou a valores em torno de 30% ao ano, segundo

informações não oficiais (HSÜ, 2000, p. 898), afetando diretamente a vida da

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 13


população assalariada, que sentia reduzir brutalmente seu poder de compra.

Posteriormente, a especulação do mercado e o intenso crescimento econômico

mantiveram a inflação em alta. Tal inflação, próxima ao descontrole, fez com o

governo cancelasse alguns projetos grandiosos, que impunham um alto custo a toda

sociedade. Vinculado ao cancelamento, há o surgimento de desemprego imediato,

com posterior incorporação ao mercado de trabalho da mão de obra braçal que seria

utilizada nas construções. Na esfera social temos duas consequências nítidas: o

surgimento de novas classes em uma dita sociedade sem classe, e a intensificação da

oposição rural e urbano.

A nova estratificação social e a nova classe média (xin zhongchan jieceng) passam a

ser uma consequência direta das reformas econômicas e da privatização, que

permitem, conforme afirma Zhang e Ong (2008), o surgimento de modos de vida

diferenciados, status, orientações culturais distintas das existentes anteriormente. A

autora argumenta como ponto central o fato de que a possibilidade da propriedade

privada (até então inexistente), além de constituir novos bairros distintos daqueles

em que se instalavam as moradias subsidiadas pelo governo, faz surgir novos

espaços diferenciados de elementos responsáveis por uma constituição especifica de

classe e cultura.

3. Individuação

Diferente do que acontecia anteriormente, desde a Revolução de 1949, com o

avanço da globalização capitalista, o indivíduo passa a ter o controle, de forma

paulatina, de seu destino, a partir das possibilidades de escolhas que ele conquista no

plano da consciência. Há o surgimento de um novo tipo de cidadão: o cidadão-mundo,

um resultado bruto da globalização capitalista e cultural, isto é, pessoas voltadas

para o mundo de uma forma geral (para além do seu microcosmo), “cidadãos-do-

mundo”, conscientes de seus deveres e de seus direitos, capazes de lidar com as

diferenças, cidadãos que possuem a liberdade de forma interiorizada no seu próprio

indivíduo sem a necessidade de leis, que falam vários idiomas e possuem formação

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 14


interdisciplinar, abrangendo o conhecimento nos seus mais variados aspectos e

geografias e com visível noção de sustentabilidade. Até aqui, acredita-se na

possibilidade de se entrar numa nova esfera geopolítica, cabendo profundas

transformações inclusive na Sociologia (DWYER, 2016; autor, 2016).

Deste modo, como consequência desse quadro teórico político e social, pode-se

dizer que ao fim da década de 1980 surge a necessidade de uma nova ordem social,

capaz de gerir o altíssimo crescimento econômico (17% ao ano), a altíssima inflação

(em torno de 26% ao ano), as transformações ideológicas e de valores, e como

consequência dessas necessidades temos em 1989 o episódio de TianAnmen, que

deixa claro que a juventude reivindicava a liberalização política e a efetiva

transformação social (HSÜ, 2000).

A criação de um mercado, tais como a comercialização, industrialização,

urbanização, descentralização, burocratização, secularização, diversificação e

globalização não alteram somente o equilíbrio e a dinâmica das forças sociais, mas

também criam terreno fértil para o surgimento de novas classes, associações e

culturas com maior autonomia, liberdade, direitos e acesso ao poder e ao lucro, o que

contribui para o estabelecimento e solidificação de uma enérgica sociedade civil (YU,

2007).

Na década de 1990 ficou claro que não haveria como controlar as consequências

sociais decorrentes das transformações econômicas, das transações do mercado e do

desenvolvimento das empresas privadas (DAVIS, 2000). O regime político se

manteve intacto, mas as relações entre os agentes do governo e os cidadãos comuns

se transformaram. Os ganhos para os moradores das áreas rurais foram enormes,

com grandes ganhos financeiros conquistados pelas reformas econômicas pós-Mao,

que trouxeram rapidamente números expressivos.

4. A Internacionalização como consequências da Modernização e da Individuação

Com as intensas transformações, os indivíduos ganharam novas formas de

comunicação, mas também novos vocabulários de discurso social, promovidos pela

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 15


revolução no consumo, visto como uma consequência da globalização do mercado. Não

é apenas um incremento no consumo, mas uma completa alteração na maneira como

se consome os bens, seus significados, e também uma profunda alteração com

relação aos bens fornecidos pelo Estado, que era a prática existente desde 1949.

Quando se reduz o controle estatal sobre os produtos, é permitida uma maior

autonomia na sociabilidade diária. A separação entre o local de produção e o local de

vivência também traz novas oportunidades de interação e socialização fora dos

ambientes domésticos ou do trabalho (DAVIS, 2000).

Todas essas transformações também trazem um novo elemento: a valoração do

indivíduo altera a tradição chinesa que via como elementos sociais básicos o Estado e

a família. Ao longo da história da civilização chinesa a família desempenhou o papel

central de socialização, e o indivíduo era submisso à família, não gozando de

prestígio e autonomia se desvinculado dela. Durante a existência da China Maoísta o

indivíduo era visto como um componente do proletariado, e a estrutura mínima

social eram as comunas, que substituíram as famílias como elemento mínimo (LEITE,

2013).

Interessante destacarmos que na China tradicional os interesses do Estado e dos

indivíduos eram vistos de forma harmônica, não havendo motivos para criar

proteções e garantias aos direitos individuais, conforme é possível reconhecer no

desenvolvimento do Direito Chinês, que não incorpora as noções de direitos

humanos e direitos individuais, tal como no Ocidente 1. Nos anos de 1990 e 2000

diversas alterações são sofridas no campo jurídico chinês, incentivado pela

participação da China em organizações internacionais, como na Organização

Mundial de Comércio, que estimula a adequação das legislações para a inserção da

China no contexto globalizado, garantindo a segurança jurídica de seus parceiros de

negócios (LEURQUIN, 2015). Temos então a consolidação do indivíduo jurídico,

1 Para mais, ver: RAWLS, J., 2002, Uma teoria da Justiça, ed. Martins Fontes.
Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 16
certamente um conceito hibrido construído através do diálogo entre Ocidente e

Oriente.

Todos esses elementos e transformações apresentados corroboram com a noção

de individualização desenvolvida por Ulrich Beck, sociólogo alemão, que

desenvolveu o conceito de Sociedade de Risco (BECK, 2010). Para Beck, a

individualização reflexiva surge a partir das intensas transformações sociais e

políticas decorrentes da modernização reflexiva, na qual com o desenvolvimento das

instituições modernas assistimos a uma desincorporação das identidades sociais,

promovendo uma diversificação das condições de vida tradicionais, que liga o

indivíduo à classe, à família, entre outros. Surge a possibilidade de biografias

individualizadas, nas quais os sujeitos detêm possibilidades de escolhas flexíveis.

Essa transformação é vista nitidamente na experiência chinesa da década de 1990,

quando há um recuo do setor estatal na indústria, no comercial, mas também na

constituição do indivíduo. O recuo da proteção social estatal sobre os indivíduos

permite o advento do sujeito responsável por seu próprio destino, capaz de fazer

escolhas básicas como: qual roupa usar (em contraposição ao uniforme do Partido

Comunista Chinês); qual carreira profissional seguir (não mais é o Partido que indica

a qual área cada um deve se dedicar); casar ou não; onde estudar; ficar na cidade de

origem ou ir em direção aos grandes centros urbanos. São diversas questões que

pouco a pouco darão origem ao self-managemet, que se contrapõe ao socialismo from

afar, noção desenvolvida por Aihwa Ong e Li Zhang, que compreende a ideia de

forte presença do estado socialista sobre todas as ações individuais (ZHANG and

ONG, 2008). Com o fim da era Mao, Deng Xiaoping promoveu a descentralização e

autonomização das empresas e com isso os indivíduos passaram a ser responsáveis

pelos processos de decisão e pelo sucesso pessoal, sendo possível a escolha pessoal e

tornando cada indivíduo responsável pela sua vida e seu futuro. A modernização

política e econômica adentra a esfera social, numa passagem de coletivização para

privatização, que estimula a emergência de novas subjetividades, com alto grau de

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 17


individualização. A possibilidade de mobilidade social gerada pelos novos padrões

econômicos estimula o esforço pessoal e a pro-atividade, a partir do ganho de

autonomia do self (PINHEIRO-MACHADO, 2018).

5. China e Brasil – Novas Relações

Essas transformações atingem diversas esferas sociais fundamentais: família,

amor, sexualidade, padrões de beleza, que cada vez mais são influenciados pelos

padrões ocidentais, através dos novos meios de comunicação e da globalização.

Afinal, há o surgimento na contemporaneidade de um tipo específico de cidadão que

tem seu sentido voltado para o mundo e não somente para o microcosmo familiar

por exemplo. São cidadãos com noções de outras línguas, viajados, cultos,

conscientes e sustentáveis, cívicos e que possuem noções de liberdades e de direitos e

deveres internalizados, não meramente assegurados pelas leis. É o surgimento de um

novo fenômeno, impulsionado pelo modelo geral de globalização da economia e pelo

intercâmbio entre estudantes chineses e brasileiros. É aquele cidadão que tem

participação ativa nas transformações sociais, presentes nas manifestações e não

meramente observador dos processos decisórios (GIDDENS, 2000; GIDDENS, 1993).

Diante dessa questão da ocidentalização do oriente, através do incentivo ao

consumo, está também inserida uma agenda com metas de trocas e intercâmbio de

culturas, mercado e influências em geral. No caso da relação entre Brasil e China,

pode ser vista por exemplo a atuação dos Institutos Confúcio, vastamente disseminada

pelo Brasil. São agendas de participações da China no Brasil dentro das

universidades que começaram com uma reunião em 2004 na Embaixada Brasileira

em Pequim, e em um longo encontro com chineses e intelectuais brasileiros da SBS

(Sociedade Brasileira de Sociologia). Surge aí uma necessidade de se pensar o

momento atual numa nova esfera geopolítica, cabendo profundas transformações

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 18


inclusive na Sociologia, mas principalmente na dinâmica mundial dos indivíduos e

seus espíritos. É o surgimento do espírito global, isto é, o global espirit2.

A partir de estratégias nacionais, diante da necessidade de se investir em ciência e

tecnologia, o intercâmbio entre Brasil e China reforçou uma perspectiva de atitudes

diplomáticas fomentadoras de um multilateralismo necessário e diante de um

panorama multifatorial e global (autor, 2017).

Dito de outra forma, essas relações se veem diante da globalização neoliberal,

mas também se valendo dela para que sejam levadas a cabo. Daí surgem políticas

educacionais com agendas globais para estruturar a educação, que passa a ser então

orientada pela Organização Mundial do Comércio.

Neste sentido, o mercado, visto enquanto espaço social onde os resultados

alcançados por meio de ações descentralizadas de atores individuais trabalhando por

interesse próprio é o foco das universidades que recebem intercambistas e suas

estruturas organizacionais mercadológicas (não há separação entre Política,

Economia e Educação), com a produção de novas tecnologias e infraestrutura, são o

campo onde esses jovens intercambistas se veem imersos.

Com a globalização do capitalismo, a educação passa a se ver de frente com um

projeto neoliberal que, no Brasil, se inicia com a era FHC e se consolida no governo

Lula. Fernando Henrique aproxima a economia neoliberal do país ao sistema de

ensino superior, afinal, as universidades estariam diante de “interesses nacionais”

(BITTENCOUR, L. K., et al, 2016).

Assim, os estudantes estrangeiros trariam uma diversidade cultural, social e

econômica muito interessante para o Brasil. Aliás, os alunos, tanto brasileiros como

chineses, passam a agregar um “valor” enquanto indivíduos muito pertinente para

as sociedades chinesa e brasileira. Mais do que um “gasto”, eles representam a

formação de uma elite futura do país dentro do aspecto da mundialização não só da

economia, mas também dos indivíduos (ORTIZ, 2000).

2Em referência à turnê mundial da banda pop Depeche Mode iniciada neste ano de 2017: “The Global
Spirit”.
Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 19
O fato se consolida com os governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), que

investiram muito em educação pública através das universidades federais. A

educação passa a ter “valor” exatamente enquanto ela pode ser internacional, o que

se configura como estratégia econômica nacional. É o esforço para se ter destaque em

um mundo pós-americano (DWYER et al, 2016).

Deste modo, o intercâmbio com os chineses diante do espectro da universalização

das universidades brasileiras entra como um background para a experiência que

cada jovem terá nas esferas das relações entre os BRICS. Estes passam a ser os

fomentadores do diálogo entre Brasil e China diante do fato de que não há mais

Oriente ou Ocidente, mas sim uma mistura de ambas as coisas – uma simbiose -, isto

é, um diálogo promissor entre a América e o Oriente.

Considerações Finais

As intensas transformações vivenciadas na China ao longo dos anos de 1980 e

1990 inseriram o país num cenário de ampla modernização e relações globalizadas.

Novas formas de expressão social, novos anseios, novas relações marcam a entrada

da China na chamada “modernização reflexiva”, conforme Beck (2010).

No caso particular da China temos um fenômeno compreendido como

modernização comprimida, no qual transformações e desafios típicos da primeira e

segunda modernização coexistem, consolidando grandes desafios para a sociedade

como um todo, que necessita se adequar às mudanças intensas que ocorrem em curto

período de tempo.

Ainda mais desafiadora é a sobrevivência marcante da tradição, que permeia as

diversas relações sociais e continua orientando condutas pessoais e governamentais,

num aparente paradoxo entre modernidade e tradição.

As particularidades da história chinesa permite-nos compreender como

constantemente a sociedade se recria, mas sem abandonar seus princípios

consagrados de conduta, de moral, de ética. Num movimento integrador temos a

junção da cultura milenar com os elementos modernos, frutos da industrialização e

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 20


progresso tecnológico. É essa China que hoje se mostra ao mundo, a partir da

disseminação de seus valores, produtos, modo de vida, língua, que sofrem intenso

processo de difusão, como visto, por exemplo, a partir do Instituto Confúcio, mas

também por outros meios, como mídia, cinema, literatura, artes plásticas, músicas.

Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Ed. 34, 2010.

BITTENCOURT KRAINSKI, L. et al. “Internacionalização da Educação Superior:


Estratégias e Ações Institucionais Referente à Mobilidade Estudantil”. In: XVI
Colóquio Internacional de Gestión Universitaria – CIGU, Arequipa – Perú, 2016.

DAVIS, Deborah. The consumer revolution in urban China. Berkeley: University of


California Press, 2000.

DWYER, T. et al. Jovens Universitários em um mundo de Transformação: uma pesquisa


sino-brasileira. Brasília: IPEA, 2016.

FAIRBANK, John King & GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre:
L&PM, 2008

FERREIRA, Leila, e BARBI, F. “Environmental concerns in Brazil and China


(Environmental issues intransitional societies)”. In: Culture dela sostenibilità –Napolis,
ANNO VII - N. 13, 2014.

GAMER, Robert E. Understanding contemporary China. Colorado: Lynne Rienner


Publishers, 1999.

GIDDENS, A. A Transformação da Intimidade. São Paulo: ed. Unesp, 1993.

GIDDENS, A. O Mundo em Descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de


Janeiro: ed. Record, 2000.

HSÜ, Immanuel Chung-yueh. The rise of modern China. New York: Oxford University
Press, 2000.

LEITE, A. C. C. “A industrialização de áreas agrícolas na China: uma consequência


do recente desenvolvimento chinês”. In: Revista Soc. Bras. Economia Política, São
Paulo, n. 36, p. 91-116, outubro 2013.

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 21


LEURQUIN, Pablo. “China Contemporânea e Democracia”. In: POLIDO, Fabrício B.
P.; RAMOS, Marcelo M. (org.) Direito Chinês Contemporâneo, São Paulo: Editora
Almedina, 2015.

ORTIZ, R. P. O Próximo e o Distante: Japão e Modernidade-Mundo. São Paulo: ed.


Brasiliense, 2000.

PESSOA, Osvaldo. “Ciência e Filosofia Chinesas”, cap. XII. In: Material Didático:
Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I, USP, 2010.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Counterfeit Itineraries in the Global South. Oxon:


Routledge, 2018.

YU, Ying. “The role and future of civil society in a transitional China”. In: Political
Perspectives, vol 1, 2007.

ZHANG, Li & ONG, Aihwa (eds). Privatizing China: socialism from afar. New York:
Cornell University Press, 2008.

Revista Leste Vermelho, V.4, N.2, Dezembro/2017 22

Você também pode gostar