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Universidade de Aveiro Departamento de Comunicação e Arte

2016

Maria Cristina Dignart ESPAÇO, GESTO E TEXTURA NA MÚSICA


de Carvalho Rocha ELETROACÚSTICA: UMA ABORDAGEM ANALÍTICA
E COMPOSICIONAL
Universidade de Aveiro Departamento de Comunicação e Arte
2016

Maria Cristina Dignart ESPAÇO, GESTO E TEXTURA NA MÚSICA


de Carvalho Rocha ELETROACÚSTICA: UMA ABORDAGEM ANALÍTICA
E COMPOSICIONAL

Tese apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos


necessários à obtenção do grau de Doutor em Música, realizada sob a
orientação científica do Dr. João Pedro Oliveira, Professor Titular da
Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil.

Apoio financeiro da Coordenação de


Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior – CAPES
!
Dedico este trabalho ao Ticiano, meu companheiro de todas as horas.

!
o júri

presidente Doutor Fernando Joaquim Fernandes Tavares Rocha


Professor Catedrático da Universidade de Aveiro

Doutor João Pedro Oliveira (Orientador)


Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais

Doutor António Manuel Chagas Rosa (Co-orientador)


Professor Auxiliar na Universidade de Aveiro

Doutor Mario Marcelo Mary


Professor da Académie Rainier III de Mónaco

Doutora Helena Santana


Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro

Doutor António de Sousa Dias de Macedo


Professor Associado da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Doutor Rui Luís Nogueira Penha


Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
agradecimentos Agradeço ao Doutor João Pedro Oliveira, pelas preciosas orientações e
conversas que foram importantes não só para este trabalho, mas também para
o meu crescimento enquanto compositora. Agradeço-o também por me
oferecer referências de sua obra que me serviram de modelo para o
desenvolvimento do meu pensamento criador.
Agradeço também ao Doutor António Chagas Rosa, por tornar possível o
desenvolvimento desta tese.
Agradeço igualmente ao professor Virgílio Melo, por me proporcionar novas
visões composicionais.
Agradeço ainda aos compositores Adrian Moore, Annette Vande Gorne, Hans
Tutschku, Mario Mary e Trevor Wishart, por me disponibilizarem os áudios de
suas obras, estes foram de extrema importância para o desenvolvimento deste
trabalho; agradeço-lhes também pela prontidão nos contatos e
esclarecimentos.
Agradeço ao meu marido Ticiano Rocha por estar sempre presente, por me
ajudar e apoiar durante o processo de construção desta tese.
Também sou grata por todo auxílio que minha mãe, Susan Dignart, me
proporcionou. Não tenho palavras para descrever minha gratidão.

!
palavras-chave Espaço, gesto, textura, composição musical, música eletroacústica.

resumo Este trabalho teve como proposta empregar abordagens estéticas e processos
composicionais que tomam como referência o espaço um parâmetro
estruturador, no contexto da criação eletroacústica. Como processo
investigativo foram feitas escutas analíticas de obras eletroacústicas de
compositores atuais que concebiam o espaço e a espacialização como
elementos importantes na estruturação de suas composições. As escutas
analíticas serviram como objetos de observação de diferentes estratégias de
uso do espaço como um meio expressivo. O levantamento bibliográfico serviu
como referência para a geração de ferramentas descritivas de processos e
qualidades espaciais encontradas nas obras. Por fim, como experiência
prática, foram compostas três obras com enfoques pessoais, e explorações
poéticas que consideraram o espaço como um parâmetro estruturador em
obras eletroacústicas. Neste âmbito, o gesto e a textura foram elementos
composicionais que atuaram como articuladores do espaço, sendo ainda
articulados diferentes parâmetros espaciais que serviram de base para
delimitação da forma, bem como para o tratamento do material sonoro.
keywords Space, gesture, texture, musical composition, electroacoustic music.

abstract The proposal of this thesis aims to employ compositional procedures and
esthetical thinking in which spatial references plays a structural role. Helping in
this regard some investigations were made around musical works of
contemporary electroacoustic composers who conceived the space and the
spatialization as focal points. Analytical hearings served to summarize the
various strategies in the use of space as expressive meaning. Similarly, a
bibliographical research was conducted to give the concepts and descriptions
that would relate properly with the approaches applied in these same musical
works. To complete this investigation, three electroacoustic works were
composed by this author, seeking to apply artistic vision and personal
strategies built with the spatial aspect in mind. In this framework, gesture and
texture acted as means to articulate the space in these musical efforts. In
addition, spatial parameters also served as base to outline the form and plus
the treatment gave to the sonic material.
Índice:

Índice de Figuras ............................................................................................................... 3


Introdução .......................................................................................................................... 5
Capítulo 1 - O espaço enquanto elemento expressivo na música eletroacústica ............. 13
1.1 – Conceitos Espaciais na Composição Eletroacústica........................................... 17
1.1.1 – Espaço externo e espaço interno.................................................................. 18
1.1.2 - Espaço extrínseco, textura espacial, espaço intrínseco e espaço espectral .. 20
1.1.3 - Espaço composto, espaço de escuta e espaço sobreposto ou percebido ...... 21
1.2 – Uma Escritura do Espaço ................................................................................... 71
1.2.1 – Coerência, Tensão e Relaxamento, Conflito e Consonância Espacial ........ 78
1.2.2 – A Estruturação do Espaço ........................................................................... 89
1.2.3 – A Experiência Temporal como Resultado de Abordagens Espaciais........ 111
1.2.4 – Forma-Espaço, Espaço Geometria, Espaço Ilusão, Espaço-Fonte e Espaço
Ambiofônico .......................................................................................................... 117
1.2.5 – Espaço/paisagem, espaço /metáfora e espaço/artifício .............................. 126
Capítulo 2 – A Descrição dos Aspectos Espaciais dos Eventos Sonoros na Composição
Eletroacústica ................................................................................................................ 137
2.1 – Critérios do Espaço........................................................................................... 139

2.2 – Qualificadores Espaciais Na Música Eletroacústica ........................................ 143


2.2.1 – O Fixo, o Móvel, o Estático e o Dinâmico ................................................ 143
2.2.1.1 – Qualificadores Espaciais Estáticos ..................................................... 145
2.2.1.2 – Qualificadores Espaciais Dinâmicos .................................................. 168
Capítulo 3 - O Entendimento do Espaço ...................................................................... 175
3.1 – A Experiência de Escuta Espacial: Espacialidade ............................................ 175
3.2 – A Percepção Do Espaço: Aspectos Físicos e Auditivos ................................... 187
3.2.1 – Pistas De Localização De Eventos Sonoros ............................................. 187
3.2.2 – Pistas Auditivas de Distância .................................................................... 194
3.2.3 – Reverberação como Pista de Percepção Espacial ..................................... 197
Capítulo 4 – O Gesto e a Textura como Articuladores do Espaço ................................ 201
4.1 – Gesto ................................................................................................................. 203
4.1.1 – Abordagens Conceituais de Gesto Aplicadas à Música Eletroacústica ..... 221
4.1.2 – O Gesto Musical como Fornecedor de Espacialidade em Música
Eletroacústica ........................................................................................................ 240
4.2 – Textura .............................................................................................................. 245
4.2.1 – Movimentos Texturais ........................................................................... 252
4.2.2 – O Papel Da Textura nos Processos de Estruturação .................................. 257
4.2.3 – A Espacialidade Fornecida pela Textura na Música Eletroacústica .......... 259
4.3 – Exemplos do Uso de Gestos e Texturas como Geradores de Espacialidades nas
Obras.......................................................................................................................... 262
Conclusão ...................................................................................................................... 279
Bibliografia .................................................................................................................... 285
Anexos ........................................................................................................................... 298

2!
Índice de Figuras
Figura 1 - Projeção que representa a "supervoz" de Shiva (A) e a criação de todas as
coisas a partir da “supervoz” (B) em Vox V de Trevor Wishart. ............................. 23!
Figura 2 - Projeção da "tela" estereofônica em Vox V de Trevor Whishart. .................. 25!
Figura 3 - Forma de Vox V de Trevor Wishart. ............................................................... 26!
Figura 4 - Forma de 2261 de Mario Mary. ...................................................................... 30!
Figura 5 - Forma de Dreaming in Drakness de Åke Parmerud. ...................................... 32!
Figura 6 - Abordagens de projeção dos dois tipos principais de materiais em Human-
Space Factory de Hans Tutschku. A primeira imagem (A) representa sons
humanos/texturais (sem trajetos definidos). A primeira imagem (B) representa sons
de fábrica/gestuais (com trajetos identificáveis) ..................................................... 33!
Figura 7 - Representação da disposição dos materiais principais da obra Human-Space
Factory em interpolação, simultaneidade e fusão. .................................................. 34!
Figura 8 - Forma de Human-Space Factory de Hans Tutschku (primeira parte) ............ 36!
Figura 9 - Forma do movimento Giocoso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne ... 41!
Figura 10 - Forma do movimento Amoroso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne
................................................................................................................................. 43!
Figura 11 - Representação das duas abordagens principais de projeção do movimento
Innocentemente da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne. .................................. 45!
Figura 12 - Forma do movimento Innocentemente da obra Vox Alia de Annette Vande
Gorne ....................................................................................................................... 47!
Figura 13 - Forma do movimento Furioso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne. 48!
Figura 14 - Representação gráfica do espaço composto em Locus ................................. 50!
Figura 15 - Planejamento gráfico de Cerberus................................................................ 56!
Figura 16 - Exemplo de automação do parâmetro azimute no plug-in spatium .............. 58!
Figura 17 - Representação da forma global de Cerberus ................................................ 61!
Figura 18 - Representação da forma global de Indução .................................................. 63!
Figura 19 - Disposição dos projetores de som da obra Surface de Adrian Moore
(Imagem informativa fornecida pelo autor via correio eletrônico). ........................ 70!
Figura 20 - Imagem de um trecho do manuscrito original da obra Gesang der Jünglinge
de Stockhausen. (Fonte: Smalley, 2000) ................................................................. 77!
Figura 21 - Exemplo de polifonia do espaço pouco eficaz, materiais pouco diferenciados
(gráfico de Mario Mary, fornecido pelo compositor). ............................................. 82!

3!
Figura 22 - Exemplo de polifonia eficaz (gráfico de Mario Mary, fornecido pelo
compositor). ............................................................................................................. 83!
Figura 23 - Representação gráfica que ilustra o conceito de timbres parciais de Mario
Mary (Fonte: Viel, 2014) ......................................................................................... 84!
Figura 24 - Representação do processo de fusão espectral de timbres parciais na obra
2261. ........................................................................................................................ 85!
Figura 25 - Nível espacial ornamental explorado no início da obra Cerberus. Trajeto
esperado pelo comportamento espectromorfológico do evento (A) e trajeto usado
com função ornamental (B). .................................................................................. 107!
Figura 26 - Representação gráfica dos elementos da cena auditiva (adaptação de:
Rumsey, 2002, p. 658). .......................................................................................... 139!
Figura 27 - Qualificadores estáticos e dinâmicos do espaço, baseado nos parâmetros que
caracterizam o espaço de Merlier (Adapatado de: Merlier, 2006, p. 132) ............ 145!
Figura 28 - Ilustração da densidade espectral (adaptado de: Smalley, 1997, p.121)..... 152!
Figura 29 - Exemplo gráfico de massa-canais idênticas e áreas diferentes (fonte:
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/). ............................................................. 158!
Figura 30 - Representação de duas possibilidades de localização da fonte sonora em
situação ideal (fonte: Begault 2000, p. 32) ............................................................ 189!
Figura 31 - Representação do cone de confusão (fonte: Begault, 2000, p. 41) ............. 191!
Figura 32 - Classificação das Unidades Semióticas Temporais (adaptado de: Hautbois,
2010, tradução nossa) ............................................................................................ 227!
Figura 33 - Funções das fases temporais de uma espectromorfologia (adaptação de
Smalley, 1997, p. 115) ........................................................................................... 234!
Figura 34 - Processos de movimento e crescimento de Smalley (adaptação de Smalley,
1997, p.116) ........................................................................................................... 236!
Figura 35 - Movimentos Texturais (adaptado de Smalley, 1997, p. 118). .................... 256!

4!
Introdução

O espaço tem sido um aspecto presente na música ocidental, porém o enfoque


composicional de seu uso varia conforme a proposta estética1. Desde as antífonas nos
cantos gregorianos até o uso do deslocamento dos músicos durante a execução da obra
como estratégia composicional no século XX, o espaço muitas vezes tem sido um
elemento importante na criação de obras musicais. Com o uso das tecnologias de
projeção sonora, as qualidades espaciais do som se tornaram elementos constitutivos no
pensamento composicional da contemporaneidade e uma das abordagens mais
significativas do uso das tecnologias na composição se deu com o surgimento da música
eletroacústica.
Dentre as características desta vertente composicional está a exploração de
morfologias sonoras que em sua maioria rompe com os conceitos tradicionais como a
altura e a duração. A exploração destas morfologias sonoras proporciona uma nova
condição de escuta, que busca a percepção de um novo contexto sonoro, constituído de
um material musical que é gerado por meio de sínteses e processamentos de fontes
sonoras variadas.
Sua forma mais tradicional é a música acusmática2, executada apenas através da
projeção em alto-falantes, sem a presença de intérpretes, buscando proporcionar ao
ouvinte um modo de escuta atento, sem referências visuais, dirigindo a atenção
unicamente para as estruturas sonoras.
No contexto da música eletroacústica, o uso do espaço como um parâmetro
expressivo tem sido um tópico de ampla experimentação, sendo que o processo de
composição demanda constantes decisões espaciais, na confecção de sons individuais e
na criação de espaços virtuais, com base nas inter-relações e posicionamentos entre os
materiais sonoros.
Portanto, o status do espaço como um parâmetro de mesma importância
estrutural que os outros na música, se torna uma consequência natural. Muitos
compositores de obras eletroacústica buscam no espaço um meio de realçar suas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Esta tese foi escrita no idioma português brasileiro.
2
De acordo com Wishart “os Acusmáticos eram os novatos na fraternidade Pitagórica, que deviam
escutar, no silêncio, as leituras realizadas atrás de uma cortina na qual o leitor não poderia visto. O
adjetivo acusmático refere-se então a apreensão do som sem relação com a sua fonte”. No original “the
Acousmatics were initiates in the Pythagorean brotherhood, who were required to listen, in silence, to
lectures delivered from behind a curtain such that the lecturer could not be seen, the adjective acousmatic
thus refers to the apprehension of a sound without relation to its source” (Wishart, 1996, p. 129) .

5!
estruturas, ou até mesmo o encaram como um parâmetro plástico que pode ser moldado
na construção de uma obra. Sobre a questão do espaço em obras eletroacústicas, Merlier
(2006) comenta que:

A ocupação do espaço tridimensional pelo som oferece aos


compositores novas potencialidades musicais que as tecnologias atuais
permitem explorar extensivamente e exaustivamente mais do que no
passado. A “encenação espacial” (espacialização) do som faz hoje o
objeto de numerosas pesquisas (...).3

A exploração de aspectos espaciais em composições eletroacústicas, conforme


descrito acima, servirá de referência para o desenvolvimento desta tese de
doutoramento. Este trabalho é, então, o resultado de um estudo investigativo de
diferentes abordagens estéticas que priorizam aspectos espaciais como um meio
expressivo.
As possibilidades de dramaticidade e materialização dos materiais sonoros que
podem ser obtidas pela espacialização na música eletroacústica foram de grande
interesse da autora levando à proposta de elaboração deste estudo. Além do processo de
espacialização, a exploração de aspectos espaciais inerentes aos eventos sonoros
proporciona uma escuta imaginativa que abre possibilidades para a formulação de
diferentes interpretações na fruição de tais obras.
O foco dos estudos neste trabalho esteve mais voltado para as conceituações e
abordagens estéticas desenvolvidas a partir das possibilidades de manipulação do
parâmetro espaço em composições eletroacústicas, não apenas em processos ou em
modelos projeção espaciais em concerto.
É importante destacar que o enfoque principal deste trabalho está mais voltado
para o estudos de aspectos relacionados ao espaço interno – que é definido pelo
compositor durante a composição da obra e em seguida fixado em um suporte – do que
ao espaço externo – que se refere mais ao sistema e às estratégias de projeção. Contudo,
o espaço externo será observado como um elemento importante para a projeção do
espaço interno desejado.
Através da observação das obras de alguns compositores e de um levantamento

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
“L’occupation de l’espace tridimensionnel par le son offre aux compositeurs de nouvelles potentialités
musicales que les technologies actuelles permettent d’explorer beaucoup plus exhaustivement que par le
passé. La “mise en scène spatiale” (spatialisation) du son fait aujourd’hui l’objet de nombreuses
recherches” (Merlier, 2006, p. 76).

6!
bibliográfico, buscou-se a criação de abordagens pessoais que priorizassem o espaço
como referência estruturante. Como resultado, este trabalho pode ser descrito como um
estudo contendo uma abordagem analítica e composicional. A abordagem analítica foi
uma observação do estado da arte atual, com exame de algumas aplicações dos conceitos
encontrados na literatura. A abordagem composicional buscou meios pessoais de
aplicação dos mesmos conceitos estudados na escrita das obras.
O uso do espaço em obras eletroacústicas é tema de uma discussão relevante no
campo dos estudos composicionais, uma vez que existe um grande potencial artístico na
distribuição sonora em torno do ouvinte (num espaço físico), bem como nas diferentes
explorações de aspectos sensoriais do espaço (noções de preenchimentos, espessuras,
camadas sonoras etc.), fornecido pelo material e pela relação entre os elementos
constitutivos de uma composição.
Especificamente nas obras eletrônicas puras, ou acusmáticas, este tema se torna
ainda mais evidente, pois as tecnologias de projeção sonora proporcionam possibilidades
criativas de manipulação do espaço. Decisões espaciais são constantemente feitas no
processo de composição da música eletroacústica, desde a escolha de sons individuais
até a criação de espaços virtuais baseado na disposição dos materiais sonoros no
ambiente de projeção.
Além do enfoque do espaço nas composições musicais, o uso do gesto musical
também será abordado nesta proposta, uma vez que a noção de gesto musical se
relaciona com a ideia de movimento e energia de Smalley (1997) que são aspectos
essenciais para a exploração do uso de abordagens espaciais do material sonoro. O gesto
musical é entendido aqui como a união de parâmetros composicionais que são
percebidos como um todo.
São parâmetros que darão a noção de um movimento que traz alguma informação
sobre sua causa, além de gerar alguma direcionalidade. No processo de significação
musical, este movimento tem a capacidade de dar forma às unidades sintáticas do
discurso (Hatten, 2001). Como possuem direção, estes movimentos têm potencial para
projetar uma localização e uma trajetória no espaço. O enfoque no gesto enquanto
elemento composicional terá a função, entre outras, de explorar aspectos espaciais da
composição em peças acusmáticas.
Complementando a investigação do gesto como potencializador de
espacialidades, a textura foi outro elemento estruturante empregado como meio de
articular aspectos espaciais. Para muitos autores, a noção de textura em música

7!
eletroacústica se refere a um tratamento do material sonoro que se opõe ao gesto,
considerando que o gesto é concernente aos movimentos e ações que são percebidos
globalmente, por outro lado, a textura:
(...) se refere à padronização comportamento interno, energia dirigida
para o interior ou reinjetada, auto-propagação; uma vez instigada é
aparentemente deixado aos seus dispositivos próprios; em vez de ser
provocado para agir ela apenas continua se comportando4 (Smalley,
1986).

Além da valorização do comportamento interno, o conceito de textura também é


empregado para a descrição da consistência dos sons5. Portanto, ao se falar de textura,
outros termos descritivos para o evento sonoro serão ligados a ela tais como: densidade,
estratificação, espessura, dispersão e distribuição de elementos constitutivos.
Como contém características descritivas que se relacionam com percepções
sensoriais não auditivas como a visão ou tato, a textura também se apresenta como uma
ferramenta potente para a geração de espacialidades. O comportamento interno de um
evento sonoro fornece uma noção de movimento de forma diversa do gesto,
essencialmente baseado em ações externas. Cabe ressaltar ainda que, além de gerar
espacialidades específicas, a exploração da textura em composições eletroacústicas serve
também como um elemento estruturante de contraste ou realce do gesto.
O enfoque desta pesquisa foi apoiado em diferentes meios de uso do espaço
enquanto elemento estruturante e formal da composição, onde o gesto e a textura
musical serão abordados como estratégia de manipulação dos aspectos espaciais. Desse
modo, são relatados neste trabalho os resultados de investigações, na composição
eletroacústica, das possibilidades de movimento, localização, densidade, preenchimento,
dentre outras abordagens de analogias espaciais para o som que podem ser manipulados
por tais elementos estruturantes.
Por se tratar de um gênero musical relativamente novo, a música eletroacústica
ainda está em período de formação de conceitos, técnicas e possibilidades e diversas
estratégias composicionais estão sendo construídas a fim de estabelecer meios de
desenvolvimento composicional neste contexto. O uso do espaço é um aspecto essencial
na construção musical deste gênero e necessita de mais estudos e sistematizações. A

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
“(...)is concerned with internal behaviour patterning, energy directed inwards or reinjected, self-
propagating; once instigated it is seemingly left to its own devices; instead of being provoked to act it
merely continues behaving” (Samlley, 1986, p.82).
5
Cf. definição de textura disponível em http://ears2.dmu.ac.uk/learning-object/texture/

8!
problemática levantada nesta proposta de investigação é a sugestão de estratégias
composicionais que contribuem para o desenvolvimento de um pensamento
composicional que valoriza o uso do espaço e suas relações com o gesto e a textura
como elementos estruturantes em música eletroacústica.
As abordagens analítica e composicional foram os meios de investigar as
diferentes manipulações espaciais e os usos de gestos e texturas como tratamento do
material composicional eletroacústico. Ressalta-se que os objetos de estudo foram os
processos escriturais e não interpretativos da geração de espacialidades na obra musical.
A escolha se deveu ao fato da prática composicional usual da autora, consistir em
planejamento e estruturação prévias à projeção da obra, não se tratando de um juízo de
valor e sim de um enfoque mais detalhado no aspecto específico da composição que se
refere ao uso de abordagens espaciais.
Como parte estratégica de trabalho foram feitas audições analíticas de obras
musicais de compositores do século XX e XXI, observando os modos de utilização das
qualidades e tratamentos espaciais enquanto elementos estruturantes da composição.
O termo “audição analítica” foi considerado mais apropriado para o processo de
observação ao invés de “análises”, pois foram pesquisados apenas os meios de
concepção dos aspectos espaciais nas obras observadas, bem como suas influências no
processo estruturador. Uma análise mais completa consiste em um trabalho
musicológico mais intenso que não foi o foco desta investigação. Sendo assim, o
objetivo perseguido neste estudo foi apontar abordagens de utilização poética do espaço
em meios eletroacústicos.
As obras escolhidas para a escuta analítica foram selecionadas do repertório
composicional mais recente, devido ao aparato atual disponibilizar imensas
possibilidades de manipulação espacial. Os compositores elegidos para a seleção de
obras são aqueles possuem pesquisas referentes ao espaço e a espacialização em suas
abordagens pessoais.
Portanto, foram priorizadas obras eletroacústicas de escuta acusmática em
formatos de projeção em multi-canal e para a sua escuta foi utilizado o espaço do CIME
- Centro de Investigação de Música Eletrónica da Universidade de Aveiro, que dispõe
de um sistema de projeção de oito canais. Tendo em vista as condições disponíveis para
a escuta foram priorizadas obras compostas originalmente para oito canais de projeção
no máximo, sendo este um ambiente favorável para a escuta de espacializações mais
complexas, além de ser um padrão recorrente de projeção em concertos.

9!
A octofonia não foi a única escolha, contudo foram priorizadas obras que
pudessem ser difundidas pelo menos em quatro canais, considerando que apresentam
maior potencial de escuta de um espaço tridimensional.
Outra característica buscada nas obras foi sua composição para um ambiente de
projeção que utilizasse alto-falantes idênticos, e não projetores com timbres e cores
diferentes6, devido às possibilidades técnicas acessíveis para a realização das escutas
analíticas.
Foram obtidas diversas obras registradas em CDs no formato estéreo, sendo
feitas várias escutas prévias como um ponto de partida para a seleção das obras para
compor este trabalho. Dentre as obras disponíveis, foram escolhidas aquelas que
indicavam a exploração de diferentes aspectos espaciais em suas estruturas, sendo
selecionadas apenas seis obras. Os critérios observados foram a variedade de tratamento
do material e o enfoque gestual e textural como um meio de articular aspectos espaciais.
Também foram levadas em consideração as diferentes maneiras que o compositor usou o
espaço como um parâmetro composicional.
As obras selecionadas foram: Vox V (1986) de Trevor Wishart (uma das
composições do ciclo Vox composta entre 1980 e 1988); Surface (2008) de Adrian
Moore; 2261 (2009) de Mario Mary; Dreaming in Darkness (2005) de Åke Parmerud;
Human-Space Factory (1999) de Hans Tutschku e Vox Alia (2000) de Annette Vande
Gorne. Nem todas estas obras foram compostas em octofonia, sendo as obras com
configuração de projeção diferente do padrão octofônico: Vox V, composta para 4 canais
de projeção; Surface, composta para o sistema de projeção 7.1; e Dreaming in Darkness
composta para 6 canais de projeção.
A audição analítica das obras selecionadas teve como referência o levantamento
bibliográfico que sistematizou e categorizou as diferentes abordagens espaciais.
Também foram observados na escuta os aspectos gestuais e texturais empregados como
meio de gerar espacialidades, sendo examinadas as maneiras como os compositores
exploraram tais aspectos.
Este trabalho contempla o relato dos resultados deste processo de escuta
analítica, bem como das experiências composicionais pessoais da autora. As
composições elaboradas ilustram formas particulares de desenvolvimento das estratégias
composicionais que exploram os objetos de pesquisa desta tese.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Como no caso de obras compostas para orquestras de alto-falantes.

10!
A investigação mais analítica utiliza apenas a audição da autora como estratégia
avaliativa de dados buscados. Traçar uma escritura de uma obra eletroacústica somente
pelo ato da escuta não constitui tarefa fácil uma vez que uma análise baseada
unicamente na escuta vem acompanhada de subjetividades individuais do ouvinte.
Portanto, os relatos apontados aqui revelarão aspectos perceptivos mais gerais que
poderiam ser interpretados distintamente por mais de um indivíduo.
Tais aspectos serão interpretados pela autora com base nas fundamentações
teóricas apontadas no levantamento bibliográfico. Ou seja, o objetivo aqui não é o de
descrever a estrutura total das obras ou ainda todas as intenções do compositor, mas sim
apontar os usos de concepções espaciais considerados importantes como exemplos dos
conceitos abordados neste trabalho.
Nas obras escolhidas o espaço aparenta ser um elemento importante de
estruturação. E a partir da referida escuta analítica foram apontados alguns usos
espaciais que são importantes na percepção dos aspectos estéticos escolhidos pelo
compositor. Será visto que a exploração da coerência espacial na estruturação das obras
é um fator reconhecível, pois tais obras usam as diferentes noções espaciais como
elementos constitutivos da ideia geral da obra. O espaço externo se relacionará com o
modo de projeção destas obras que influenciarão a identificação do espaço interno da
obra.
Além destes exemplos composicionais aqui apresentados, serão demonstradas
algumas exemplos de aplicação de tais conceitos nas composições originais da autora da
tese. As obras criadas neste processo investigativo foram: Locus (2010-2015), Cerberus
(2013) e Indução (2014), sendo que a primeira consistia em uma versão inicial composta
em 2010. Com o desenvolvimento dos estudos e do entendimento conceitos
composicionais abordados neste trabalho, sentiu-se a necessidade de uma adaptação
espacial que concordasse com os objetivos de manipulação espacial desejados pela
compositora.
O levantamento bibliográfico desenvolvido neste trabalho enfoca as diferentes
conceituações dadas pelos principais autores que discutem a temática do espaço como
um elemento expressivo na música eletroacústica. Inicialmente, são abordados conceitos
fundamentais relacionados ao espaço e que são comuns às composições eletroacústicas.
A seguir são descritas algumas possibilidades de tratamentos espaciais do material, bem
como abordagens composicionais concebidas a partir de qualidades espaciais de
diferentes autores.

11!
Foram também apresentadas e discutidas algumas terminologias de descrição de
qualificadores espaciais, fornecidos pelo material sonoro na música eletroacústica, bem
como aspectos físicos relativos à percepção do espaço num contexto de audição. Foram
incluídas definições de gestos e texturas dadas por diferentes autores, bem como meios
de descrição de tais elementos estruturantes no contexto eletroacústico. O levantamento
bibliográfico realizado foi utilizado como ferramenta descritiva no relato dos processos
analíticos e composicionais.
A descrição dos aspectos espaciais encontrados nas escutas analíticas, ou mesmo
explorados nas composições da autora serão relatados ao longo do texto, em conjunto
com os apontamentos conceituais desenvolvidos no levantamento bibliográfico. Estas
descrições servirão como exemplos e sugestões de aplicações dos conceitos estudados7.
Desta maneira, um dos objetivos perseguidos nesta investigação foi o de contribuir para
a construção dos vocabulários composicionais que estão em constante construção na
música eletroacústica, bem como apontar abordagens artísticas que possuem um grande
potencial expressivo por meio da manipulação de aspectos espaciais numa obra musical.
Também buscou-se destacar que a articulação do espaço, por meio do uso de gestos e
texturas como princípios estruturais, pode servir de estratégia composicional que
contribui para um enriquecimento estético no que se refere às novas possibilidades
sonoras exploradas no meio eletroacústico.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
A íntegra das descrições das obras (obtidas a partir da escuta analítica) e o relato a respeito das
composições da autora encontra-se nos anexos deste trabalho.

12!
Capítulo 1 - O espaço enquanto elemento expressivo na
música eletroacústica

A música eletroacústica assume um papel importante na valorização do espaço


enquanto elemento composicional. Em séculos anteriores8 o espaço foi concebido como
uma forma de realçar características estruturais de obras, sendo que no passado recente e
na contemporaneidade existem muitos casos em que obras musicais tem o espaço como
um importante elemento expressivo na sua constituição.
Compositores como Xenakis e Stockhausen, entre outros, consideraram o espaço
como um parâmetro importante na expressão de suas obras e Henriksen (2002) comenta
que a manipulação de dados espaciais na composição musical, fornecidos pelo arranjo
do material musical em ambientes reais e virtuais, resulta numa manifestação do espaço
como elemento essencial da expressão na música.
Na composição musical, especialmente na contemporaneidade, existem
diferentes meios para a expressividade sonora, explorada por alguns compositores com o
emprego de meios “naturais” de manipulação do material musical, ao usar gravações ou
execuções instrumentais que geram sons in natura.
Outros criadores buscam meios mais artificiais de alcançar a expressividade,
utilizando sistemas abstratos de organização de parâmetros musicais, ou ainda com o
uso de sons sintetizados que parecem inusitados ao ouvinte. Outra maneira de reforçar a
expressividade é pensar o som enquanto energia, sendo que no contexto musical os
caminhos ou trajetórias poderiam reforçar a energia interna deste som, conforme sugere
Vande Gorne (2008).
Sobre o uso do espaço como parâmetro composicional, Penha (2014, p.36)
coloca que:

É possível identificar, nas experiências seminais sobre espacialização


musical, a aplicação à espacialização de idéias que advêm do
pensamento e prática sobre outros parâmetros musicais: a articulação, o
contraponto e a segregação de vozes da escrita polifônica traduzidos na
articulação, no contraponto e na segregação de posições no espaço; a
morfologia no espaço espectral traduzida em morfologia no espaço

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Um exemplo é o da a configuração espacial dos Responsórios na Idade Média que era geralmente
constituído de dois coros posicionados um de frente para o outro com a finalidade de realçar o canto
antifonal. Ou ainda, o caso dos cori spezzati, dispostos em lados opostos na Basílica de São Marcos, em
Veneza (Zvonar, 2005).

13!
físico; a serialização da posição e do movimento no espaço em paralelo
com a serialização dos restantes parâmetros musicais; a aproximação à
acústica dos espaços pela via da sua exploração tímbrica.

No caso da música eletroacústica onde a grande maioria da escuta possui poucas


ou nenhuma referência visual, o espaço e a espacialização passaram a ser pensados
como uma especificidade necessária na construção musical.
A ausência de intérpretes (no caso da música acusmática) e o uso de vários alto-
falantes gerou a possibilitou dos compositores trabalharem a espacialização do som
como uma função estética em si, sendo possível valorizá-lo enquanto elemento
estrutural. Sobre este tema, o compositor Dennis Smalley (2007) acredita que a música
acusmática pode ser considerada como uma das únicas abordagens composicionais que
considera o espaço e a experiência espacial como elementos esteticamente centrais.
Esta afirmação pode ser tomada em consideração, pois com a possibilidade de
manipular conscientemente as posições espaciais das fontes sonoras e ainda gerar
profundidade e relevos, pode-se considerar que a música acusmática prima pela
manipulação espacial como elemento poético na composição.
Se o som pode fornecer um parâmetro espacial, como uma posição por exemplo,
o ouvinte pode percebê-lo como um elemento individual independente de sua fonte,
tornando-o assim um elemento autônomo na composição musical (Hofmann, 2002). Ao
tornar o som independente, suas relações com os outros materiais sonoros podem se
tornar mais evidentes num contexto musical e, ao salientar o espaço em um evento
sonoro, materializamos tal objeto, ou seja, ele se torna significante num contexto
musical.
Para Vaggione (1998), o contexto da composição eletroacústica se diferencia das
músicas instrumentais pois, é possível articular o material sonoro em planos situados
além daqueles que servem de base para a notação instrumental, devido aos seus modos
singulares de produção além da natureza de seu suporte de fixação. Tais planos tornam
possível a exploração de morfologias sonoras que contêm articulações de ordem
espacial.
Na composição eletroacústica, a consciência de um compositor acerca do espaço
como um fator articulável em música é revelada na maneira como manipula os
elementos espaciais estruturalmente (Henriksen, 2002). Podem ser consideradas como
ferramentas poderosas para uma expressão musical as disposições dos espaços virtuais,

14!
o uso da distância e dos movimentos, a integração de ambientes e a natureza de inter-
relações espaciais entre os materiais sonoros9. Seguindo esta linha de pensamento, Zelli
(2009b), ao comentar o caso da música acusmática, contribui para essa discussão quando
explana que:

a configuração espacial dos componentes sonoros de uma composição


acusmática representa um papel decisivo no desenho da textura
acusmática. [...] Estratégias de projeção sonora não apenas formam a
ponte entre idéias composicionais e de performance desta música, mas
apesar da forte dependência de sua textura no espaço sonoro, elas
também se conectam esta música ao espaço sonoro real de uma maneira
que faz do espaço um dos componentes mais importantes em sua
construção.10

Como complemento a esses posicionamentos sobre o espaço, François Bayle


(2008) sugere que, em música eletroacústica, o tratamento espacial concebido
exclusivamente do ponto de vista técnico, fornece apenas um nível perceptivo primário,
revelando apenas um objeto tridimensional, que se move em uma certa velocidade. Para
ele o espaço em música eletroacústica vai além da apreensão proprioceptiva do evento
sonoro.No caso de composições eletroacústicas, especialmente na música acusmática, o
espaço é compreendido como “uma prática, um fenômeno, uma representação”11.
Assim, o espaço pode possuir um papel importante na concepção poética de uma
obra, assumindo um valor estético que vai além da valorização tridimensional de um
evento sonoro e o tratamento espacial torna-se um elemento expressivo fundamental na
construção musical.
Numa composição acusmática, que dispensa as referências visuais, o compositor
deve levar em consideração todos os aspectos relativos à percepção do som em si
mesmo e as características espaciais assumem grande importância no contexto
composicional eletroacústico. Sobre tal característica da música acusmática Barrett
(2002) afirma que:

Em música acusmática, nossa percepção visual em tempo real não faz


parte de nossa experiência de escuta. Sem a visão da fonte sonora para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9
Ibid.
10
(....) “the spatial configuration of the sound components of an acousmatic composition plays a decisive
role in the design of an acousmatic texture. (...) Sound projection strategies not only forma bridge between
the compositional and performance ideasof this music, but, apart from the strong dependence oh their
texture on the sound space, they also connect this music to the real space in a way that makes space onde
of the most important components in its makeup.” (Zelli, 2009b, p.37)
11
“une pratique, un phénomène, une représentation” (Bayle, 2008, p. 133)

15!
servir de ponto de referência, o compositor está livre para manipular a
disposição dos objetos-sonoros dentro do espaço, os espaços em que o
objeto está a soar, as relações entre objetos, entre espaços e entre pares
objetos/espaços.12

Portanto, é possível afirmar que o uso da articulação do espaço na música


influencia na construção de significação da obra. Sobre este fato, Smalley (1991)
considera que o tratamento espacial dado a um evento é geralmente realizado de maneira
objetiva pelo compositor, como um meio de realçar as propriedades intrínsecas da
espectromorfologia13 do som. Neste sentido, a trajetória ou o posicionamento em um
ambiente podem determinar a percepção que o ouvinte tem das características e das
funções estruturais de evento.
Em relação às possibilidades expressivas, Vaggione (1998) apresenta o espaço
enquanto um elemento articulável14 em composição. Em sua concepção, o ato da
composição é responsável por gerar acontecimentos singulares que são articulados em
conjunto com outros acontecimentos sem perder o sentido destas singularidades15.
Na concepção do autor, o espaço pode ser visto como parte de tais
acontecimentos em uma abordagem morfológica, sendo possível pensar o espaço como
morfologia no sentido próprio, que será transformada por outras morfologias e
fornecendo um cruzamento com outros atributos sonoros que serão também articuláveis.
Ainda na perspectiva de Vaggione “Se o espaço for concebido como um material
composicional, ele será essencialmente de um espaço de relações, sendo que as relações
entre eventos podem ser encaradas como um trabalho de composição, sendo articuláveis
em termos de espaço: tamanho, localização, extensão, velocidade”16. Para o autor, os
espaços como os de altura, por exemplo, podem ser classificados como “metafóricos”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
“In acousmatic music, our real-time visual perception is not part of the listening experience. Without the
sound’s visual source to serve as a spatial reference point, the composer is free to manipulate the
disposition of a sound-object1 within a space, the space within which the object is sounding, and the
relationships between objects, between spaces, and between object/space pairs.” (Barrett, 2002, p. 313)
13
Conceito criado por Denis Smalley, onde a terminologia das duas partes pode trazer as seguintes
relações: “espectro” lida com a interação entre espectro sonoro e a “morfologia” relaciona-se com as
maneiras que tal espectro altera-se e forma-se no tempo (Smalley, 1997).
14
Sobre o articulável, o autor usa um termo muito específico que denomina como composable - que em
alguns momentos do texto será referido como componível. Esta expressão é explicada pelo autor com as
seguintes palavras: “O componível, parece-me (...) ser o articulável. Este inclui uma dose de determinismo
(ou melhor, de determinação, no sentido de uma intencionalidade autônoma, independente de qualquer
formalização que não está em sintonia direta, por assim dizer, com a imanência musical) (...)” (Vaggione,
p.154, 1998, Tradução nossa).
15
Ibid.
16
“Si l'espace est conçu en tant que matériau compositionnel, cela veut dire qu'il est essentiellement un
espace de relations. Ou plutôt que les relations, qui sont le fait d'un travail de cornposition, sont
articulables en termes d'espace: taille, situation, extension, vitesse. (Ibid., p. 154)

16!
Tais espaços podem ser entendidos como atributos de uma categoria espacial específica,
manifestada como um substrato e uma resultante do trabalho de composição17.
Para Vaggione18, a composição musical poderia ser pensada como um conjunto
de “cenas auditivas” que possuem uma profundidade espacial revelada por meio um
percurso desvendado no tempo. E a manifestação de tais cenas no tempo indica que a
ideia de que o espaço articulável é determinada como um tecido de relações dinâmicas
entre seus eventos.
Além de fornecer aspectos expressivos importantes, o uso do espaço na música
pode ser entendido como uma ferramenta importante para a escuta. A experiência da
escuta de música eletroacústica frequentemente é associada às experiências do cotidiano
e a escuta do espaço em ambientes virtuais poderá ser relacionada com experiências
espaciais da realidade, o que permite experiências de escutas fundamentadas em
sensações já conhecidas pelo ouvinte.
Em suma, a espacialização na música eletroacústica faz parte de várias
abordagens na composição musical: seja ela concebida pelo compositor como um meio
expressivo em si, seja ela inerente às particularidades do evento sonoro, ou seja, ela
recebida enquanto uma experiência que desperta para o ouvinte relações com eventos
externos.

1.1 – Conceitos Espaciais na Composição Eletroacústica

Nos meios eletroacústicos, as morfologias dos eventos sonoros muitas vezes se


afastam de referências causais diretas, permitindo a emergência de diferentes
espacialidades que anteriormente não haviam sido tomadas em consideração. As
dimensões vão do microscópico ao macroscópico na confecção de uma obra e quando se
trata do uso do espaço em composições eletroacústicas, é importante considerar alguns
aspectos que definem tal parâmetro na composição do evento sonoro e da construção da
obra como um todo.
Para organizar o pensamento composicional, uma conceituação de aspectos
específicos relacionados ao espaço pode ser útil, sendo oportuno relacionar as
terminologias adotadas por diferentes autores (muitas vezes coincidentes entre elas) que
indicam diferentes estratégias e visões composicionais relacionadas ao espaço. Tais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Ibid.
18
Ibid.

17!
conceitos podem ser aplicados na estruturação da uma obra e, em alguns casos, no
resultado de escuta na fruição do resultado final de uma obra eletroacústica.

1.1.1 – Espaço externo e espaço interno

A música eletroacústica possui uma espacialidade inerente, portanto ao conceber


sua obra o compositor leva em conta aspectos gerais da estruturação, bem como aspectos
específicos dos eventos sonoros, sendo que cada um de tais aspectos possui um caráter
espacial. Também é possível identificar as características espaciais do material e da
estrutura no momento da escuta. Em relação a um nível mais alto da estrutura, é possível
mencionar um espaço externo, como aquele em que é possível escutar a obra a partir da
organização espacial dos eventos sonoros e as relações entre eles.
Chion, (1998) define o espaço externo como aquele que pode ser difundido em
um concerto, completando-se integrando na acústica do lugar em que é projetado. O
espaço descrito relaciona-se também com condições de escuta particulares, o que pode
ser exemplificado com o ambiente em que é escutado (como estúdio), a quantidade, o
tipo e a disposição dos alto-falantes, etc.
Este espaço vai além da concepção estrutural da obra e dos sons que a compõe,
ele se integra também com o ambiente e o meio em que corpos sonoros se deslocam.
Assim, o posicionamento das fontes sonoras e a sensação de lugar onde os sons se
relacionam caracterizam o espaço externo.19
Na composição, o conceito de espaço é apreendido num nível perceptual
primário, consistindo em um espaço mais “visual”, que preenche um lugar onde é
escutado. As relações entre os eventos sonoros e os aspectos espaciais dos sons
individuais revelam sensações da escuta que estão relacionadas a aspectos
tridimensionais e comparadas a percepções dadas na visão. Isto implica em que no
espaço externo são manifestados aspectos como profundidade, relevo, perspectiva,
dentre outras características sonoras que são relacionadas a descrições de características
visuais.
Tratar do espaço implica em abordar uma dimensão aparentemente não
mensurável, infinita, portanto para o seu entendendimento é necessário emoldurá-lo com
limitações, o que resulta em um interior que é simultaneamente exterior. A moldura

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Ibid.

18!
revela um espaço delimitado de relações que serve de exterior para elementos sonoros
individuais.
Esta moldura é o que Bayle (1997) denomina de “caixa conceitual”, sendo
possível descrever o espaço externo como tal caixa, que será inserida dentro de outras
caixas ao infinito20. Assim, o espaço externo pode revelar uma “caixa” contendo outras
caixas, com uma riqueza de relações espaciais em seus interiores. Por essa razão, os
interiores de tais caixas se tornam exteriores para outras espacialidades.
Segundo Merlier (2006), uma espacialização em tempo real realizada por um
intérprete pode ser considerada uma espacialização do material carregada pelo espaço
externo. Nesta concepção, esta atividade pode ser relacionada a criação artística de
campos sonoros, sendo que a delimitação de tais campos estaria relacionada com a ideia
das caixas, onde a extensão espacial de tais campos serve de exterior para relações
espaciais de elementos sonoros internos.
Em oposição ao espaço externo está o espaço interno do som que pode ser
assimilado com a criação de efeitos perceptivos, sendo inerente à obra em si. Trata-se do
espaço confinado no suporte de gravação da obra, tendo como constitutivos os sons que
possuem características espaciais individuais como alturas, ou grãos (Chion, 1998). A
manifestação do espaço interno se dá no interior da obra, a partir de contornos sônicos,
do movimento de eventos sonoros, sendo revelado na escuta como uma sensação de
volume composto (Bayle, 2007). Este espaço é virtual, porém fundamentado numa
realidade física, aquela dos sons dentro da obra (Vaggione, 1996).
Segundo Vaggione21, na composição eletroacústica o espaço interno tornou-se
um aspecto componível importante, a partir do momento em que houve acesso a meios
de registro e manipulação do som. Com o uso dos suportes eletrônicos é possível
articular o espaço interno de uma obra, pois os suportes tornam possível realizar
operações sobre a sua matéria sonora,
Cabe ressaltar que o espaço externo, ligado à configuração do espaço em que é
ouvido, com as suas peculiaridades específicas, pode ter a função de realçar as
características do espaço interno. A passagem do estúdio para a sala de concertos, que
seria uma “transposição do espaço”, consiste na adequação do espaço interno ao espaço
externo (Bayle, 2007).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Ibid.
21
Id. (1998)

19!
1.1.2 - Espaço extrínseco, textura espacial, espaço intrínseco e espaço espectral

Os sons individuais de uma composição possuem aspectos espaciais particulares,


sendo possível apontar alguns conceitos referentes aos eventos sonoros e suas relações
entre eles. Um destes conceitos foi proposto por Henriksen (2002) como espaço
extrínseco, que se refere ao resultado do comportamento espacial do som e sua interação
com o ambiente onde ele acontece. Este espaço revela atributos como movimento,
direção e distancia dos sons e a percepção de localização, segundo Henriksen (2002),
também está baseada no espaço extrínseco. Para o autor, a percepção do espaço
extrínseco é baseada nas informações espectromorfológicas, bem como nas informações
resultantes das interações do som com o ambiente em que ele existe.
Um conceito que aparenta ter similaridade com a noção de espaço extrínseco é o
conceito de textura espacial de Smalley (2008). Para ele, este conceito está relacionado
com a articulação da topologia dos materiais. O autor afirma ainda que, para haver uma
aproximação com a definição das propriedades da textura espacial, é necessário levar
em consideração aspectos como: as dimensões espaciais dos sons individuais (como se
os sons fossem objetos); a existência de hierarquias dimensionais entre os constituintes
da textura; as propriedades de contiguidade e continuidade espaciais, o comportamento
dos sons e suas tipologias, a densidade e o comportamento de uma distribuição espacial
e o estilo de localização na definição espacial22.
Outro conceito importante em relação a aspectos espaciais na composição é o de
espaço intrínseco, como aquele baseado na percepção dos componentes espaciais
internos de sons individuais e eventos sonoros (Henriksen, 2002). Os atributos do
espaço intrínseco, conforme Henriksen, são: magnitude, formato e densidade.
Também é importante na constituição espacial dos eventos sonoros o conceito de
espaço espectral (Smalley, 2007), como sendo aquele relacionado à disposição de
alturas e do conteúdo tímbrico de uma obra musical. Numa obra instrumental seria o
tipo de espaço mais explorado pelos compositores e no caso de composições
eletroacústicas, seria mais um aspecto de elaboração espacial do material musical.
Tal espaço pode incluir noções de alturas verticais e impressões de
preenchimento e de esvaziamento e, segundo Smalley23, o espaço espectral tem como
referências de delimitação de extremidades, o que ele chama de “coberturas” e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Ibid.
23
Id. (1997)

20!
“raízes”24. Nas coberturas encontram-se as freqüências mais agudas que dão a noção de
uma localização mais alta, enquanto que freqüências mais baixas dão a noção de um
enraizamento, sendo que tais extremos podem gerar molduras espaciais que poderão ser
preenchidas em seu interior ou não.
Os espaços espectrais implicam em forças como quedas, pesos ou ainda
gravitações. Smalley25 exemplifica com a ideia de uma atração para a estabilidade
proporcionada por frequências em regiões mais graves, aspecto muito explorado na
música tonal. O autor lembra ainda que o espaço espectral em si produz uma noção de
espaço, sem haver a necessidade de movimento espacial real do som.
Os conceitos apresentados até este ponto são basais e estão presentes em
qualquer composição. A escolhas de que delimitam a configuração espacial total da obra
envolvem a seleção de aspectos que tratam tanto abordagens espaciais referentes a obra
como um todo (espaços externo e interno), quanto as espacialidades referentes aos sons
individuais (espaços extrínseco, intrínseco e espectral), sendo que cada compositor
busca uma estratégia composicional particular para a elaboração de tais espaços em suas
obras. A seguir serão apresentadas e discutidas noções espaciais que compõe os aspectos
mais globais do uso do espaço em composições eletroacústicas e que consistem em
aspectos individuais que compõe cada um dos espaços nas obras relatadas neste
trabalho.

1.1.3 - Espaço composto, espaço de escuta e espaço sobreposto ou percebido

Em uma composição eletroacústica, aspectos espaciais macroscópicos podem ser


relacionados a um espaço composto onde a organização dos elementos sonoros
configuram os aspectos espaciais gerais. Henriksen (2002), utiliza tal termo e define o
espaço composto como aquele que possui características espaciais da composição
musical em si, ou seja, o arranjo espacial dos sons individuais e dos eventos sonoros
num contexto musical. Trata-se do conjunto de informações de caráter espacial
trabalhado na música eletroacústica, sendo tipicamente o trabalho sobre massas e
impressões26 espaciais por um dispositivo e condições de projeção de dados.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
canopies e roots no original (Smalley, 1986, p. 79)
25
Id. (2007)
26
Impressão espacial se refere à percepção do espaço enquanto imagens ou representações espacias, que
muitas vezes se relaciona aos sons difundidos em estereofonia. A noção de massa espacial se refere à

21!
Os critérios de massa e impressão espacial, além de proporcionar parâmetros
para o estudo do objeto sonoro, podem também ser aplicados à organização destes
objetos sob a forma de suas combinações no tempo e no espaço (Merlier, 2006). Então,
o espaço composto é aquele que organiza globalmente os aspectos individuais dos
objetos no interior da estrutura que vai ser revelada pelo dispositivo de projeção. Ou
ainda pode ser considerado o tecido espacial da obra, ou o produto das espacialidades de
sons individuais somadas às relações espaciais entre múltiplos eventos sonoros. Trata-se
de uma mistura de espaços que é simultaneamente uma composição no espaço
(Vaggione, 1998). Ou seja, é possível falar de um espaço (ou espaços) imerso em outro
espaço.
O espaço composto pode ser usado ainda para qualificar o espaço intrínseco,
onde está reunido tudo aquilo que o compositor define em suas ações sobre os sons e
suas escolhas composicionais (Merlier, 2006). Desta forma, este espaço é constituído
dos espaços intrínsecos, extrínsecos e espectrais dos sons escolhidos e suas inter-
relações espaciais, sendo que a aparência externa caracteriza esta abordagem
(Henriksen, 2002). Este espaço reúne os dados dos números de canais de suporte, de
dispositivo de projeção e suas qualidades, e ainda trata dos relacionamentos entre
massas e impressões espaciais dos eventos sonoros (Duchenne, 2015), além de suas
relações com outros eventos.
Nas obras analisadas e compostas para este trabalho, o espaço composto é
definido a partir de uma escolha pessoal para a configuração global dos aspectos
espaciais. Tal configuração espacial é determinada pela escolha dos materiais
(possuidores de espacialidades inerentes), bem como pelo modo de espacialização nos
canais de projeção.
Em muitas obras o material é o elemento espacial mais evidente, sendo a
espacialização uma estratégia de realce dos aspectos fornecidos pelo material e em
outras obras a espacialização terá um papel mais estruturante. Como um meio de
demonstrar os aspectos particulares dos espaços compostos das obras é importante
descrever os aspectos estruturais destas peças, de modo a demonstrar quais foram as
maneiras como os compositores definiram os aspectos espaciais gerais.
Torna-se difícil precisar se os compositores buscaram como princípio conceptivo
a manipulação de aspectos espaciais, contudo, por meio das audições das obras e da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
escuta de espaços geradas a partir da divisão do sinal sonoro em diversos canais. Tais noções foram
apontados por Duchenne no site http://multiphonie.free.fr/ - acesso em 12/09/2013.

22!
leitura de notas de programa, foi possível observar que o espaço assumiu um papel
importante na delimitação estrutural das composições. Nos casos das obras que foram
compostas pela autora durante esta investigação, é possível afirmar que noções espaciais
foram o principal foco de concepção e construção destas.
Uma primeira descrição de espaço composto é feita na obra Vox V (1986) de
Trevor Wishart, onde o espaço composto é organizado de modo a gerar imagens
metafóricas. A obra é construída a partir da imagem da deusa hindu Shiva, ligada à ideia
de destruição e renovação de todas as coisas existentes. A metáfora aqui é a de criação
do mundo por meio da “supervoz” de Shiva (Williams, 1993).
A imagem da criação do mundo parece ser provida pela projeção de sons
provenientes de vozes que são primeiramente projetadas apenas nos canais frontais e que
se transformam espectromorfologicamente no decorrer de seu movimento em um espaço
de projeção quadrifônico. A imagem de um grito, inicialmente apenas em canais
frontais, pode ser interpretada como a metáfora de uma energia impulsionada de um
único ponto que se espalhará por todos os espaços, destruindo e seguidamente criando
tudo o que há na natureza. A imagem (Figura 1) abaixo ilustra a representação destas
abordagens de espacialização.

!
! ! !!!!A! ! ! ! ! !!!!!!!!!B!
Figura 1 - Projeção que representa a "supervoz" de Shiva (A) e a criação de todas as coisas a partir da
“supervoz” (B) em Vox V de Trevor Wishart.

Além da projeção que varia entre a estereofonia frontal e a quadrifonia, o


material musical também fornece espacialidades que reforçam o perfil metafórico da
obra. Para a criação das imagens metafóricas, esta obra se caracteriza pelo uso de fontes

23!
sonoras naturais (como voz humana, pássaros, sinos ou ainda ambientes naturais), bem
como a transformação de tais gravações e o emprego de sons desconhecidos.
A utilização de sons gravados fornece informações referenciais importantes para
uma escuta espacial, pautada no conhecimento vivido do ouvinte. Porém, a obra também
é marcada pela transformação gradual de tais referencialidades para uma escuta mais
interna e/ou abstrata do material por meio das transformações eletrônicas.
No espaço composto da obra Vox V, os aspectos espaciais dos eventos sonoros se
comportam como alguns dos parâmetros de delimitação de seções. A obra pode ser
ouvida como um tradicional ABA’27, onde o comportamento e a orientação do material é
bem característica, sendo que as seções das extremidades (A e A’) são marcadas por
uma concepção mais referencial do material musical, conferindo a noção de uma de
paisagem identificável.
O uso de sons reconhecíveis e imagens de paisagens geram representações
espaciais baseadas na experiência cotidiana do ouvinte. Tanto na seção inicial quanto na
final foram empregados materiais que remetem a uma tempestade e a ventanias. A seção
encontrada no meio da obra (seção B) é marcada por uma manipulação espacial mais
irreal e contrapontística, dando uma orientação auditiva para as relações entre os
materiais. Portanto, é possível perceber que o espaço composto desta obra está baseado
na construção de diferentes contextos que podem ser realísticos ou mais abstratos. Para
tanto, a espacialização dos materiais nos canais de projeção obedece a padrões não
necessariamente fundamentados no real. A alteração de contextos pode ser
exemplificada logo no início da obra (de 0’00” até aproximadamente 1’07”), quando o
compositor apresenta materiais ainda bem reconhecíveis, porém com usos espaciais
diferenciados, fundamentados na natureza do material.
Na primeira aparição sonora (em 0’00”), os sons naturais de vento são
característicos de uma forte referencialidade do material, que por sua própria natureza já
possui uma espacialidade inerente. Uma escuta predominantemente focada na
referencialidade ocorre até aproximadamente 0’33”, sendo possível perceber um
ambiente externo onde o vento (e ocasionalmente trovões) indicam a ação natural de
existência dos sons. Todo movimento interno dado por essa textura relembra a memória
de um momento de chuva ou tempestade.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
A primeira seção encontrada na escuta vai de 0’ 00” até aproximadamente 1’16”, a segunda vai de
1’17” até 4’17” e a seção final vai de 4’18” até o final em 6’00”.

24!
Uma nova camada textural é apresentada gradualmente, num plano de foco
menos importante, em aproximadamente 0’13”, sendo constituída de sons de corvos.
Neste momento, a noção de uma paisagem exterior é reforçada pela soma dos sons de
vento com os dos corvos. Observa-se que a textura dos sons de corvo é iniciada numa
intensidade muito baixa e gradualmente cresce em intensidade, caracterizando uma
aproximação do ouvinte com o objeto escutado (os corvos).
O crescimento de intensidade da textura dos corvos gera uma impressão de
mudança de foco na medida em é intercalada com o plano constituído da textura da
chuva (única aparente no início da obra). A textura dos sons de corvos assume o
primeiro plano em 1’00” da peça, dado o seu crescimento em intensidade, valorizando a
mudança de foco.
O material reconhecível é inicialmente projetado apenas nos canais frontais,
como se o ouvinte “observasse” a imagem de uma paisagem reconhecível em tela, sendo
a mudança de contexto espacial neste momento realizada apenas com a mudança de
material sonoro. A imagem da projeção de uma “tela” em estereofonia foi representada
na imagem abaixo (Figura 2).

!
Figura 2 - Projeção da "tela" estereofônica em Vox V de Trevor Whishart.

Em 0’43”, o material reconhecível gradualmente se transforma em um material


mais textural e mais abstrato, quando é adicionada ao fundo uma textura de caráter
“borbulhante” sob a imagem de uma paisagem externa (sons de corvos e ventos). Neste
momento ocorre uma mudança gradual na percepção: de um espaço realista para um
espaço mais irreal.
A mudança do contexto espacial é reforçada pela espacialização, pois antes de
1’15” os sons eram projetados apenas nos canais frontais e a partir deste ponto novos

25!
materiais sonoros são adicionados nos canais traseiros. Esta adição gera um aumento na
densidade da textura mais abstrata, fornecendo o reforço de um novo contexto
composicional, marcado pelo material textural não reconhecível.
O gráfico abaixo (Figura 3) ilustra um resumo da forma global encontrada na
escuta do comportamento dos materiais desta obra. As marcações de tempo não são
indicadas, pois a imagem busca ilustrar uma aproximação das proporções de uso dos
materiais no tempo.

!
Figura 3 - Forma de Vox V de Trevor Wishart.

Os eventos observados na obra são exemplo de diferentes variações de contextos


espaciais, tanto pela mudança de material como pelas estratégias de espacialização. As
escolhas feitas pelo compositor acerca da configuração dos aspectos espaciais
delimitaram as seções que constituem o exemplo de espaço composto na obra Vox V.
Outra obra que foi objeto da escuta, com o objetivo de investigação do uso do
espaço como um meio expressivo é Surface (2008) de Adrien Moore. A composição
conta com estratégias diversas de elaboração do espaço composto. Surface é concebida
como uma visão do compositor acerca da concepção de “ambiente” em composição
eletroacústica28. Em sua proposta o ambiente não será definido a partir de concepções
realísticas do material sonoro, sendo o ambiente constituído pelo comportamento vivo
dos eventos sonoros e pela interação entre estes e a cena.
O compositor buscou a interação entre os eventos sonoros e a cena através da
relação entre gestos e texturas. A relação entre os eventos (dada por relações
energéticas, de movimento e variação de planos focais) fornece ao ouvinte a percepção
de que os sons “residem” num certo lugar. O ouvinte estará posicionado no meio desses
acontecimentos, onde os eventos o rodeiam e o fazem muitas vezes se sentir imerso
neste mesmo lugar de atuação do material musical.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
cf. nota de programa da obra disponível em http://adrian-moore.staff.shef.ac.uk/music/surface.pdf

26!
Na obra Surface não foram utilizados materiais reconhecíveis, mas sim materiais
que aparentam ser resultantes de diferentes processos de síntese e tratamentos sonoros.
Ainda assim podem ser percebidas fortes ligações referenciais auditivas com causas
possíveis, devido ao comportamento orgânico dos sons.
Por meio dos movimentos e dos tratamentos sonoros, o compositor fornece ao
ouvinte uma percepção admiravelmente tátil de fontes sonoras desconhecidas, sendo
possível perceber claramente a materialidade das forças que geram os sons, além de
causas prováveis. As trajetórias muito bem definidas, as metamorfoses da
espectromorfologias, as variações de velocidade, e ainda, o uso cuidadoso de planos
focais contribuem para essa percepção de materialidade sonora, sendo que as causas
imagindas podem ser exemplificadas pelas associações com ações como fricção ou
ainda pancadas.
A estruturação geral da obra é baseada numa polifonia complexa carregada de
gestos, tendo como característica mais marcante a sobreposição de diferentes trajetos
bem definidos, ainda que seja possível observar o uso de sons texturais. A alta
complexidade de eventos heterogêneos sobrepostos, ainda que muito energéticos e
baseados em trajetos, torna o tempo não-direcional, uma vez que a alta densidade de
eventos torna impossível uma percepção temporal de modo linear ou narrativo. Nesta
escuta, o ouvinte está imerso num ambiente onde todos os acontecimentos são velozes e
se movem em todas as direções.
Nesta obra os aspectos espaciais não parecem delimitar seções, pois toda obra
possui uma relação de polifonias complexas entre gestos e trajetórias, como se os
acontecimentos sonoros fossem parte de um único ambiente no qual os “personagens”
mudam, mas o “lugar” permanece. Isto implica em que a mudança de comportamento ou
mesmo de material é um aspecto constante na obra, podendo fornecer a noção de
passagem do tempo, com diversos acontecimentos num único lugar.
Os acontecimentos são marcados na obra pelo uso de sons gestuais em sua
maioria, com trajetórias diversas e distintas velocidades. A espacialização dos materiais
sonoros é utilizada de modo a realçar as trajetórias e posicionamentos dos diferentes
gestos que compõem tal “lugar”, ou “ambiente” virtual.
É importante ressaltar que os eventos sonoros de Surface possuem um alto teor
de materialidade, diferente da noção de realismo. A materialidade é realçada pela
percepção de aspectos de superfície, comportamento e de movimento dos eventos
sonoros que são baseados numa experiência (que não é necessariamente sonora).

27!
O realismo é dado pelo reconhecimento mais direto do material, definido em
termos de natureza, de ligação direta com a fonte real, bem como da imagem imediata
do objeto ou ato provocada na escuta. Uma abordagem realista é baseada no natural
fazendo uso da materialidade do evento sonoro enquanto uma abordagem mais
materializada do evento não necessariamente fornece pistas acerca de objetos reais e
conhecidos, podendo ser baseada apenas na imaginação.
A escuta analítica de Surface possibilitou a percepção de um uso intenso das
concepções do espaço como um elemento musical que assume grande importância
estrutural. O espaço e as relações entre gestos móveis fornecem uma imagem de
passagem do tempo num ambiente “fixo”, resultando numa escuta materializada dos do
eventos, além de proporcionar uma experiência temporal que está subordinada às
explorações espaciais do material.
A composição 2261 (2009) de Mario Mary foi o próximo exemplo de emprego
do espaço, onde o espaço composto parece ter sido idealizado de uma maneira mais
estrutural. A concepção espacial elaborada em termos de volumes, trajetos e planos
constitui a percepção de uma abordagem mais abstrata e programada do trabalho
espacial dos materiais sonoros.
O material explorado é basicamente não reconhecível, podendo ser o resultado de
sínteses sonoras ou de processamentos eletrônicos aplicados à sons gravados a
espacialidade de tais sons é reforçada pelo modo como os eventos se desenvolvem no
tempo, bem como pela espacialização aplicada a estes.
Na escuta de 2261 foram encontradas dificuldades em precisar se a
espacialização foi empregada como um elemento delimitador de seções da obra. Porém,
as diferentes formas utilização dos comportamentos dos eventos sonoros definidores de
novas seções proporciona uma escuta diferenciada dos aspectos espaciais em cada
trecho.
O trecho que vai do início da obra até 1’17” poderia ser considerado como uma
introdução da peça, sendo marcado pelo uso de duas realidades espaciais decorrentes do
material: um material não direcional e textural empregado logo no início (até
aproximadamente 0’59”) e um material mais direcional, marcado por gestos com
trajetórias a partir de 1’00”.
Após esta seção são identificados seis trechos que possuem tratamentos
morfológicos e tímbricos diversos dos materiais, gerando contextos composicionais
específicos, o que pode ser exemplificado pelos diferentes contrapontos gestuais ou

28!
trechos mais texturais. Os trechos característicos indicados neste trabalho foram os
seguintes:
• De 1’18” até 2’23”: Polifonia pouco densa. A predominância é do
desenvolvimento dos eventos texturais e de ataques espaçados no tempo, mesmo
que existam gestos contrapondo esta ambiência.
• De 2’24” até 3’03”: Possui conteúdo morfológico e espectral bem diferente do
trecho anterior. O trecho é caracterizado pela predominância de texturas mais
graves e “sacudidas”, semelhante a um trêmolo não-periódico, que tem
movimento mais lento. São acrescentadas algumas trajetórias espaciais (como
por exemplo em 2’30”), frequentemente mais estendidas temporalmente,
diferente do que ocorre nos ataques do trecho anterior.
• De 3’04 até 4’06. A mesma textura “sacudida” deste trecho é sobreposta a outros
gestos com trajetórias mais perceptíveis (como um caminho circular que ocorre
3’38) e ataques (semelhantes a pancadas em objetos). Estas sobreposições
tornam a polifonia um pouco mais densa.
• De 4’07” até 5’46”: polifonia mais densa e carregada de trajetórias e morfologias
gestuais heterogêneas.
• De 5’47” até 7’16”: trecho caracterizado por um ambiente de textura mais lisa,
marcada por altura aguda contínua e desenvolvimento lento, com pouca
direcionalidade.
• De 7’17” até 10’25”: uso de textura lisa com variação frequencial, fazendo
contraponto com diferentes trajetórias.
• De 10’26” até 10’51”: trecho final da obra. Este fragmento contém uma textura
em fluxo sem trajetória definida. O uso mais textural desta parte, por não possuir
uma trajetória, fornece à percepção uma noção de espaço vazio e profundo ou
ainda de “pulverização” de toda energia (fornecida por um tratamento polifônico
do material) explorada ao longo da obra.
Cada contexto desenvolvido nestes trechos possui uma espacialidade específica,
fornecida pelo tipo do material. Quando o material é mais textural, é proporcionada uma
noção de imersão em um ambiente que fica além de uma estaticidade temporal. Nos
momentos mais polifônicos, observa-se a sobreposição de trajetórias que são aspectos
espaciais que podem influenciar na percepção de um tempo mais impulsionado. A
espacialização de 2261 é usada sistematicamente de modo a valorizar os contrapontos

29!
gestuais ou ainda as fusões tímbricas que são aspectos estruturantes importantes nesta
obra. A imagem abaixo (Figura 4) representa a forma encontrada na escuta analítica com
a suas devidas proporções de uso de abordagens do material. Para facilitar a leitura a
figura foi dividia em duas partes.

!
Figura 4 - Forma de 2261 de Mario Mary.

O próximo caso descrito é o de Dreaming in Darkness (2005), composta por de


Åke Parmerud e onde o espaço composto parece ser definido principalmente a partir da
escolha dos tipos de materiais. Conforme nota de programa29, o compositor revela que
esta obra é uma tentativa de representar “fragmentos surrealistas de sonhos de pessoas
cegas”. O surrealismo parece ser fornecido pela transformação gradual do material
referencial e identificável em um material musical abstrato e a abordagem espacial se
altera no decorrer da obra, a partir de diferentes representações do espaço obtidas pela
seleção dos eventos sonoros.
A primeira parte desta obra é constituída por cenas mais realistas que, por meio
da transformação do material, altera o espaço percebido a partir do uso de um material
mais artificial. Os sons reconhecíveis são os de passos, portas e algumas sonoridades
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
29
Disponível no site pessoal do compositor em http://www.parmerud.com/MediaArtist/Dreaming.html

30!
características de um “ambiente externo”, como conversas, risadas e música numa
intensidade fraca como se estivessem ao longe.
No momento mais realístico da obra, o compositor simula diferentes ambientes
naturais que se alternam com o abrir e fechar de portas. Por exemplo, no trecho inicial
que vai de 0’00” até 0’45”, é realizada uma alternância entre ambientes externos e
internos, com as imagens de exterior e interior obtidas pelo uso de reverberações
provenientes de construções das cenas em diferentes planos. Os sons de passos neste
trecho também servem de elemento de ligação entre os ambientes, pois quando os sons
de passos são mais secos, ou com pouca reverberação, indicam um ambiente interno
delimitado por materiais não reflexivos. Se estes sons possuírem maior reverberação
indicam um ambiente mais amplo, porém delimitado. Quando o som de passos se torna
mais granular, como se pisando em pedras ou poças d’água, pode indicar referências
sobre um ambiente ao ar livre.
No decorrer da obra o compositor manuseia e espacializa os sons identificáveis
de modo que imagens de cenas reconhecíveis se tornam cenas oníricas, por não serem
possíveis de ocorrer numa realidade. A espacialização não realista pode ser
exemplificada aos 0’33”, quando ocorre a projeção de gestos sonoros de abertura e
fechamento de uma porta. Neste caso, a emissão do som de abertura da maçaneta é
disposta no canal 3, enquanto que o som da batida que a fecha é projetado no canal 5,
não condizendo com uma situação natural.
Aos poucos, conforme a obra se desenvolve, o material sonoro deixa de ser
reconhecível e passa a ser mais abstrato adquirindo, em um certo momento da obra um
caráter mais rítmico (aproximadamente o trecho que vai de 6’42” até 10’00”). Ao final
da obra o compositor gradualmente retorna à exploração do uso de sons identificáveis.
É possível delimitar pelo menos três abordagens espaciais decorrentes do
material em Dreaming in Darkness: uma mais realística, com o uso de sons de objetos
ou ações da realidade; uma intermediária, entre o real e o imaginário, com o uso dos
mesmos sons realistas transformados eletronicamente ou dispostos temporal e
espacialmente de modo irreal. A terceira abordagem se dá com o uso de sons alterados
de modo adquirirem comportamentos musicais mais abstratos, como por exemplo, em
uma situação de rítmica regular e marcada.
A espacialização nestas três abordagens serve de reforço para a criação de
imagens mais realistas (como por exemplo em 0’11”, onde sons de passos se aproximam
através de uma trajetória que vem dos canais traseiros para os frontais), ou para gerar

31!
imagens irreais ou oníricas (como o exemplo citado recentemente dos sons de portas em
0’33”).
A partir da escuta do espaço composto desta obra foi possível identificar três
momentos onde foi priorizado um uso de material específico: de 0’00” até
aproximadamente 5’52”, com o material caracterizado pela transformação gradual de
imagens realísticas (fornecidas com o uso de sons reconhecíveis) para imagens mais
oníricas (fornecidas pela transformação dos materiais reconhecíveis e pelo arranjo dos
eventos sonoros de modo irreal). Aos 5’52” até aproximadamente 9’34”, em que o
material tem um tratamento mais imaginativo e abstrato, sendo que em alguns
momentos possui padrões mais morfológicos dos eventos sonoros e em outros adquire
padrões rítmicos. Ao final da obra (de 9’35” até 11’28”), observa-se o retorno gradual
para as cenas oníricas e uso de sons mais reconhecíveis. A imagem abaixo (Figura 5)
ilustra a um resumo da descrição da forma desta obra encontrada na escuta analítica.

!
Figura 5 - Forma de Dreaming in Drakness de Åke Parmerud.

No espaço composto da obra Human-Space Factory (1999), de Hans Tutschku,


os eventos sonoros selecionados assumem a natureza de marcadores estruturais
importantes, fornecendo espacialidades particulares. A espacialização, que consiste na
exploração do posicionamento dos eventos sonoros bem como as trajetórias, servirá
também como meio de materializar tais espacialidades.
O material sonoro é composto de sons reconhecíveis (predominantemente sons
de fábrica e vozes humanas) e de sons não reconhecíveis, aparentemente oriundos de
processamento dos sons gravados. Os materiais derivados de sons reconhecíveis podem
representar dois contextos diferentes: um artificial, representado por sons de máquinas e
outro humano, representado por vozes e gravações de ambientes habitados por humanos
(como uma feira-livre por exemplo).
O modo como o compositor espacializa estes dois tipos de materiais também
resulta em uma função mais objetiva e escritural. A maioria dos sons humanos estão

32!
dispostos de forma mais espalhada pelos canais de projeção, enquanto os sons de
máquinas aparecem em trajetórias definidas. Em alguns momentos estas espacializações
sofrem algumas variações, mas estas características são estratégias espaciais importantes
na obra. A imagem (Figura 6) abaixo representa as duas estratégias de espacialização
que indicam o tipo de material.

!
A B

Figura 6 - Abordagens de projeção dos dois tipos principais de materiais em Human-Space Factory de
Hans Tutschku. A primeira imagem (A) representa sons humanos/texturais (sem trajetos definidos). A
primeira imagem (B) representa sons de fábrica/gestuais (com trajetos identificáveis)

O compositor trabalha também com duas abordagens temporais que resultam em


percepções espaciais, sendo uma delas a de alternância de materiais e a outra a
simultaneidade dos mesmos. Como são materiais de dois contextos diferentes, a
experiência de escuta espacial se dá com a alternância ou sobreposição de contextos
referenciais, além da referida especificidade de espacialização.
A imagem abaixo (Figura 7) representa esta abordagem de disposição dos
materiais que é explorada ao longo de Human-Space Factory. A imagem mais difusa,
sem um contorno preciso e de coloração acinzentada, simboliza o material textural (de
origem humana). A imagem que contém contornos mais definidos, na coloração preta,
representa o material mais gestual (com origem nos sons de fábrica). É importante
salientar que inicialmente os materiais são dispostos de maneira intercalada, seguido de
sobreposição dos mesmos. Estes materiais culminam em uma “fusão” que por vezes terá
uma identificação mais próxima a um ou outro dos dois tipos de material sonoro.

33!
!
Figura 7 - Representação da disposição dos materiais principais da obra Human-Space Factory em
interpolação, simultaneidade e fusão.

A estrutura geral da obra está dividida basicamente em três seções, sendo que a
primeira parece ser demarcada de 0’00” até 4’38”, a segunda vai de 4’39” até 8’29” e a
terceira de 8’30” até 12’48” e cada seção é caracterizada pelo uso diferenciado do
material. A primeira seção é predominantemente (não exclusivamente) marcada pela
evolução gradual de um material mais textural que possui intervenções mais ou menos
periódicas de outro material contrastante com a textura principal. As subseções que
compõe esta primeira seção (de 0’00 até 2’57” e de 2’58” até 4’38”) possuem um
mesmo uso estrutural, porém com material sonoro um pouco diferente. Contudo os
contextos sonoros estão entrecortados por outros eventos contrastantes que
gradualmente se tornam simultâneos até o ponto de se fundirem num único evento.
Um exemplo deste tratamento estrutural é o da segunda subseção, pois o trecho
começa com uma textura mais contínua que é interpolado por outra textura mais densa e
com mais movimentos internos. Ao ouvir repetidamente a obra, constatou-se que se trata
de recortes em fragmentos de uma textura maior. Na medida em que são apresentados os
fragmentos, suas durações são ligeiramente aumentadas resultando na percepção
gradativa de que na verdade se trata da representação de uma paisagem espacial mais
complexa. Tal paisagem é constituída de eventos sonoros reconhecíveis que trazem à
percepção uma imagem de uma feira-livre, possivelmente no Brasil, devido à língua e
expressões ouvidas. Tal imagem já pode ser percebida por volta de 3’28”.
A textura contínua, é outro dado espacial intercalado com os fragmentos da
paisagem. É uma textura englobante que começa mais fraca, dando a impressão de vazio
espacial, mas com o desenvolvimento sofrendo mutações graduais, além de receber
elementos humanos reconhecíveis, como os sons de passos em 3’21”, por exemplo.
Por volta de 3’18”, as diferentes configurações espaciais novamente abandonam
sua característica intercalada e passam a ser simultâneas, observando-se uma textura de
vozes (do tipo “multidão”) que começa a aparecer ao fundo da textura mais contínua.
Seguindo o trecho, os dois ambientes (máquinas e humanos) vão se sobrepondo em

34!
espaços simultâneos e gradualmente se fundem até que as vozes da feira se tornam mais
perceptíveis. A sobreposição de diferentes vozes (palavras e vocalizações diversas) vão
se adensando até se fundirem em 4’39”, no foco de uma fala humana apenas: “... e
cinquenta, o peixe”.
A segunda seção é caracterizada por uma polifonia definida por contrapontos
gestuais com trajetórias definidas, o que fornece um ambiente espacial contrastante com
o anterior. Os gestos sonoros mais predominantes são constituídos de timbres metálicos,
como se fossem engrenagens de uma máquina ou ainda roldanas. São gestos com
trajetos definidos, unidirecionais, circulares ou transversais. Gradualmente se percebe ao
fundo uma textura mais caótica, com difícil definição de trajeto. Esta textura começa a
ser percebida por volta de 5’11”, mas está num plano focal muito distante, porém aos
5’38” a textura já é bem perceptível e uma nova simultaneidade de espaços fica
aparente.
Ocorre uma compactação em tal textura resultando na em uma compressão da
textura que fornece a escuta que um gesto metálico equivalente a uma raspagem de
objetos metálicos em 6’03”. Este novo gesto possui um deslocamento definido, o que
atua como uma força disparadora de uma nova espectromorfologia. A segunda seção
segue com as ideias de transições e simultaneidade de espaços em contraponto e os
focos variam de espaços marcados pela polifonia de trajetória de sons de máquinas
(como por exemplo o trecho que vai aproximadamente de 7’13” até 7’53”) ou da soma
de espaços (como a textura de vozes somada a trajetos no trecho 7’54” até 8’19”.
É possível notar que a segunda seção parece ter um comportamento estrutural
semelhante ao da primeira seção, porém com durações maiores. Este comportamento
poderia ser resumido como: inicialmente os materiais diferentes (textura X trajetórias)
são dispostos inicialmente em interpolação, seguido de simultaneidade (que resulta em
um contraponto entre texturas e gestos com trajetos definidos) resultando em um evento
sonoro único aparente (que foi considerado como uma “fusão” em um evento único).
Aos 8’30” inicia-se a terceira seção que, de forma similar à primeira, não conta
com trajetórias tão marcadas como a segunda seção. Esta terceira parte da obra é mais
marcada pela evolução lenta de uma textura contínua que sofre intervenções de alguns
gestos enquanto se transforma morfologicamente. Aos poucos esta textura se torna mais
forte e também sofre mudanças de timbre. Além das transformações algumas pausas são
acrescentadas gerando momentos de interesse e expectativas. Ao final a textura é
encerrada em fade-out nos últimos segundos da obra. Deste modo, nesta seção é possível

35!
perceber também a exploração de simultaneidade dos espaços (humano e de fábrica)
porém com um material mais estendido e não identificável.
Um resumo da estruturação geral de Human-Space Factory é representado na
imagem abaixo (Figura 8). Para facilitar a leitura a estruturação foi dividida em duas
partes. Cada subseção é marcada por uma letra (“a”, “b”, etc.), sendo que cada uma
destas possui um trabalho diferente de interpolação ou sobreposição de espaços
fornecidos pelos materiais principais desta obra (humano-texturais e fábrica-gestuais).

!
Figura 8 - Forma de Human-Space Factory de Hans Tutschku (primeira parte)

Na figura acima, as setas indicam articulações estruturais que servem de pontos


de mudanças das subseções. As articulações são os eventos sonoros que foram
nomeados anteriormente como “fusões” ( que são resultantes dos adensamentos da das
texturas provenientes da simultaneidade de espaço). As “fusões” podem ser um evento
de origem humana (como por exemplo a fala perceptível em 4’39”, ou um som com
origem em sonoridades de fábrica (como o que ocorre em 6’03”). Os tópicos abaixo
resumem os trabalhos de simultaneidade ou interpolação dos materiais que delimitam as
seções e subseções.
• Seção A (de 0’00” até 4’38”):
o subseções a (de 0’00 até 2’39”) e a’ (de 2’40 até 4’38”): os materiais são
dispostos em interpolação de fragmentos dos dois tipos de eventos (de

36!
origem de sons humanos e de fábrica), seguidos de uma simultaneidade
dessas fontes que caminham em direção a uma conclusão na articulação.
• Seção B (de 4’39” até 8’29”):
o Subseções b (de 4’39” até 5’05), b’ (de 5’06” até 6’05”), b” (de 6’06
até 70’04) e b’” (de 7’04” até 8’29”): inicialmente, em cada subseção, é
apresentado apenas um tipo de material (textural ou gestual).
Gradualmente, em um plano focal inferior, é inserido o outro tipo de
material em simultaneidade. Com o passar do tempo, os materiais se
encontram em um mesmo plano focal, reforçando assim a sua
simultaneidade. Por fim as subseções são concluídas com um evento de
articulação (um som de origem humana ou de fábrica).
• Seção C (de 8’30” até 12’46”):
o Subseções c (de 8’30” até 11’06”) e c’ (de 11’07” até 11’44”): Assim
como na seção B, os materiais destas subseções começam apenas com um
tipo de evento, em seguida interagem em simultaneidade com o outro tipo
de evento para em seguida terminarem em uma articulação. As diferenças
principais em relação à seção B são as transformações aplicadas a estes
materiais e a nova proporção temporal dos processos composicionais
explorados.
o Subseção c” (de 11’45” até 12’46”) : Nesta subseção a simultaneidade
de espaços é a principal abordagem que por fim encerra a obra em um
fade-out da textura global.
Esta síntese da descrição formal pode se apontar que os aspectos espaciais foram
usados estruturalmente, tanto na maneira como o compositor organiza formalmente os
contextos espaciais, como no modo de espacialização dos materiais. Trata-se de um
espaço composto mais formalista, no qual a espacialidade inerente dos eventos sonoros
individuais e a delimitação dos modos de projeção de material tiveram funções
estruturais importantes.
O último exemplo de espaço composto apreendido nas obras escutadas para este
trabalho é a obra Vox Alia (2000) de Annette Vande Gorne. Observa-se claramente o uso
escritural do espaço, pois cada movimento foi definido com uma configuração espacial
específica de forma a constituir uma estrutura formal global. Diferentes noções de

37!
espaço foram exploradas, tanto na disposição e constituição interna dos materiais
sonoros, quanto nas escolhas de modos de projeção nos alto-falantes.
O material sonoro de base para a estruturação da obra é unicamente a voz
humana e tal material foi processado, organizado e espacializado com a finalidade de
representar diferentes sentimentos representados nos movimentos da obra. A disposição
da obra em movimentos reforça um pensamento escritural que é confirmado quando a
obra é ouvida repetidamente.
Esta composição consiste em uma suíte dividida em cinco movimentos, sendo
que quatro destes levam nomes de sentimentos ou afetos, enquanto o último é uma
homenagem a Pierre Schaeffer. O nome dos movimentos são os seguintes: Giocoso;
Amoroso; Innocentemente; Furioso e Parola Volante30. Cada movimento contém uma
energia e uma visão da espacialização diferenciada.
O primeiro movimento, Giocoso, tem a duração de cinco minutos e, conforme
nota de programa31, possui o material musical baseado no uso de cantos vocais de
diversos continentes não-europeus, misturados com um “passado ocidental”. O material
não é imediatamente identificado, pois sofre processamentos eletroacústicos que
fornecem uma escuta não diretamente referencial. É importante ressaltar que os
processamentos dos áudios de cantos das diversas culturas mantêm os perfis melódicos
que fornecem movimento frequencial interno aos eventos sonoros resultantes destes
tratamentos eletrônicos.
A imagem do Giocoso (“brincalhão”, “lúdico”) é obtida a partir dos jogos
espaciais dados pelo material musical, sendo que o tratamento espacial pode ser usado
como uma metáfora do afeto deste movimento. No primeiro momento da obra, os
diferentes materiais delimitam um recinto através de uma ocupação gradual do espaço
octofônico e a seguir os materiais são projetados em diferentes grupos de canais, como
em um jogo de perguntas e respostas, ou aparecimento e desaparecimento.
Este movimento é dividido em duas seções com tratamentos espaciais
específicos: a primeira seção vai de 0’00” até 2’34” (com subseções: uma de 0’00” até
1’10” e a outra de 1’11” até 2’34”). A primeira subseção é composta pela sobreposição
das diferentes camadas de materiais, sendo que cada camada é composta por eventos
sonoros contínuos como se fossem linhas melódicas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Havia mais um movimento chamado Lamento que não faz parte da versão enviada pela compositora.
31
Uma nota de programa da obra foi enviada por Annette Vande Gorne para a autora desta tese por
correio em 2013.

38!
Nesta parte inicial as camadas de linhas são sobrepostas temporalmente,
constituindo uma textura global complexa e de grande movimento interno. A seção já
começa com várias camadas sobrepostas, mas algumas entram em defasagem temporal.
Também observa-se que cada alto-falante projeta uma ou mais linhas diferentes em
defasagem, resultando numa percepção espacial imersiva, onde o ouvinte está inserido
dentro de um ambiente sonoro composto por um fluxo complexo de acontecimentos
heterogêneos que o envolve.
A configuração do material musical a partir da sobreposição de linhas
heterogêneas fornece uma escuta que remete a um madrigal polifônico, porém além do
processamento sonoro do material vocal, a espacialização de tais linhas expande as
possibilidades imaginativas na escuta, que vão muito além desta referência. As
diferentes linhas desta textura global não são projetadas de um modo estático, elas se
deslocam nos canais como se percorressem um espaço, com a finalidade de delimitar e
ocupar tal espaço. De forma distinta a um madrigal tradicional, as fontes movem-se ao
redor do ouvinte envolvendo-o num espaço fechado e com movimento interno.
Ainda nesta subseção, no trecho que vai de 0’35” até 1’10” acontece um recuo
energético com a pausa de algumas camadas de eventos sonoros restando apenas uma
camada de sons mais agudos de textura mais lisa e com pequenas variações de
frequência. O efeito deste recuo energético poderia ser interpretado de duas maneiras
diferentes: a primeira como um “eco” da energia inicial apresentada no trecho
introdutório e a segunda como um afastamento espacial dos “personagens” que compõe
esta cena sonora, em analogia a uma “brincadeira”.
A nova subseção se inicia em 1’11” com uma abordagem espacial e de
desenvolvimento do material diversa da subseção anterior. Inicialmente as camadas são
sobrepostas temporalmente e numa dinâmica mais forte, de modo semelhante ao início
da obra, porém o material é mais ritmado e existem menos camadas sobrepostas.
Esta entrada causa contraste com o trecho anterior, pois o que antes fornecia a
imagem de um espaço mais vazio (ao final de primeira seção), com acontecimentos mais
distantes, agora é marcado pelo preenchimento do espaço resultante da aproximação dos
materiais em torno do ouvinte. Esta textura global é composta de duas camadas
tímbricas e rítmicas principais: uma em uma região mais aguda e com ritmos mais
acelerados e outra numa região mais grave com a rítmica um pouco mais lenta. A
camada mais aguda, no primeiro momento da subseção é difundida com maior

39!
concentração nos canais frontais e traseiros (canais: 1, 2, 7 e 8) e a segunda camada é
projetada nos canais do meio que são os canais 3, 4, 5 e 6.
Em alguns momentos deste trecho, estas camadas são apresentadas em
alternâncias espaciais como se fossem uma forma de “pergunta e resposta”, sendo estas
abordagens de espacialização exploradas ao longo desta subseção.
A segunda seção, iniciada em 2’35”, é contrastante em relação à primeira no que
concerne ao uso do material e à espacialização. É marcada por um comportamento
menos contínuo do material e com menos sobreposições, o que caracteriza um ambiente
sonoro um pouco mais vazio. Aqui movimentos sonoros mais deslizantes são, em alguns
momentos, entrecortados por eventos sonoros diferentes projetados em regiões espaciais
específicas. Um exemplo desta manipulação do material pode ser observado no trecho
que vai de 2’34” até 3’12”, quando um evento sonoro textural de superfície mais lisa,
sobreposta a uma camada compostas de algumas variações internas de dinâmica e
frequências, é projetada em todos os canais. Cada canal individual difunde esta textura
com versões um pouco diferente das outras, dando uma noção de movimento interno do
ambiente sonoro total.
Aos 2’52” um novo evento sonoro contrastante e mais gestual aparece
bruscamente nos canais 5 e 6, enquanto a textura contínua segue nos canais 3 e 4. No
mesmo momento os canais 1, 2, 7 e 8 deixam de projetar qualquer som, o que atrai o
novo evento sonoro para o primeiro plano. Este novo evento sonoro é repetido mais três
vezes neste trecho, nestes mesmos canais, e a cada repetição sofre alguma variação em
seu conteúdo espectral. Em 3’04”, o mesmo material tímbrico é projetado nos canais 1 e
2, seguido pela repetição nos canais 5 e 6 (em 3’ 06”), dando a impressão de um cânon
espacial.
Gradualmente outros materiais mais fluídos vão surgindo ao longo da seção,
sendo entrecortados por eventos sonoros mais gestuais, localizados em pontos espaciais
diferentes como se estivessem em diálogos. O surgimento de mais camadas amplia um
pouco a sensação de polifonia, como no trecho entre 3’36” e 4’00”, caracterizado pelo
uso contrapontístico de mais de dois tipos de eventos sonoros heterogêneos, projetados
em canais diferentes e em momentos distintos.
Os tratamentos espaciais fornecidos pelos modos de projeção descritos acima (na
segunda seção), podem ser interpretados como a metáfora de uma brincadeira entre os
personagens que compõem um ambiente qualquer. As diferentes camadas morfológicas

40!
projetadas em canais distintos ao longo do tempo podem fornecer a imagem de
diferentes jogos lúdicos executados entre amigos.
A imagem abaixo (Figura 9) ilustra um resumo da forma global da obra. As
seções são nomeadas com base na interpretação metafórica que o uso do material e o
modo de projeção proporcionam, conforme mencionado anteriormente.

Figura 9 - Forma do movimento Giocoso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

No segundo movimento, Amoroso (de 5’10” até 10’03”) observa-se o uso de um


material totalmente diferente em relação ao movimento anterior, considerando a busca
da imagem de um afeto distinto. Os materiais são mais líricos sendo compostos por
eventos provenientes de sons vocais processados de vozes femininas, cantos
provenientes de coros religiosos e ainda um material granular agudo de origem
desconhecida.
O movimento melódico do coro pode gerar associações com ambientes de uma
catedral ou um monastério, porém uma paisagem realística não é ouvida e sim um
ambiente sobrenatural, onde as vozes “irreais” do coro processado interagem com outros
personagens que são marcados por variações de vocalizes femininos ou por faixas de
sons onduladas e granulares.
A sobreposição destes diferentes materiais dá à obra um caráter mais
contrapontístico e polifônico neste movimento, sendo que cada camada desta polifonia
contribui para a delimitação de um espaço vertical, marcado pelo conteúdo espectral. As
vozes dão a impressão de uma profundidade conferida pelos tratamentos eletrônicos
aplicados nelas.
Uma possível interpretação para o título Amoroso poderia referida ao uso do
material mais lírico e melódico, sendo reforçada pelo uso de vozes masculinas e

41!
femininas como a representação do amor de um casal. O alto teor ornamental do
material melódico reforça esta ideia. Contudo é importante ressaltar que não é objetivo
deste trabalho apontar precisamente a intenção da composição, mas sim relatar possíveis
associações geradas na escuta da obra.
A espacialização também é um parâmetro da escritura que pode contribuir para a
metáfora do afeto deste movimento, como pode ser observado no trecho que vai de
5’23” até 6’34”, quando o material é claramente distribuído em dois planos espaciais.
Tais planos são delimitados da seguinte maneira: o primeiro é projetado nos quatro alto-
falantes frontais (1, 2, 3 e 4) e o segundo nos quatro alto-falantes traseiros (5, 6, 7 e 8).
Nesta disposição, o primeiro grupo de alto-falantes difunde o material dado pelas vozes
masculinas em coros religiosos e o segundo grupo é marcado pelos vocalizes femininos.
Reforça-se que estes materiais são processados eletronicamente, o que numa primeira
escuta geral da obra só fornece associações reconhecíveis em alguns momentos e não
em todo o trecho. Porém, com a escuta repetida é possível perceber que, nos momentos
em que os materiais não possuem uma referencialidade direta, ainda contém contornos
reconhecíveis dos materiais de origem, que no caso são as vozes.
Os dois planos espaciais acima descritos são ligados pela terceira camada da
polifonia, constituída de sons granulares e agudos. Estes sons possuem movimentos
erráticos e breves, com trajetórias que atravessam os oitos canais, unindo os dois planos
como se fosse uma relação entre os personagens. O comportamento interno deste
material (gestual, curto e veloz) é contrastante com o comportamento do material dos
outros planos que possuem uma evolução temporal mais lenta, dando um caráter mais
textural para os personagens.
Outro tratamento espacial que poderia ser interpretado como a metáfora de um
sentimento amoroso ocorre logo no início do movimento (em 5’10”), quando um evento
sonoro proveniente de vocalização feminina é projetado num crescendo e ao mesmo
tempo vai traçando gradualmente um trajeto circular em torno do ouvinte. Este trajeto
circular gradativamente se transforma numa escuta envolvente, como se o ouvinte fosse
“abraçado” pelo evento sonoro.
Além da trajetória, o tipo da vocalização melódica do evento é muito dramática e
lírica, sendo o único plano focal neste momento da obra, o que poderia reforçar a
associação metafórica.
A forma deste movimento foi descrita no anexo que contém as análises integrais
das obras ao final desta tese. Contudo, convém mencionar que a forma transparece uma

42!
delimitação formal em quatro seções: A (de 5’10” até 6’31”), A’ (de 6’32” até 8’03”), B
(de 8’04” até 8’59”) e B’ (de 9’00” até 10’03”). As duas primeiras seções são marcadas
pelo uso de um material mais reconhecível, enquanto que as duas últimas seções são
caracterizadas pelo tratamento mais abstraído das fontes sonoras.
As seções A e A’ possuem um tratamento do material semelhante, mas com
variações espectromorfológicas e de espacialização. Cada uma destas duas seções
começa com um evento sonoro ressaltado que é espacializado de forma mais envolvente.
Dois planos são gerados a partir desta introdução. Estes são especializados em regiões
distintas (4 canais frontais x 4 canais traseiros) que permanecem inalteradas ao longo
das seções. Um terceiro plano, contrastante (movente e com deslocamentos espaciais),
ocorre em simultaneidade aos dois planos fixos.
As duas últimas seções – B e B’ – possuem um tratamento diferente do material
espacial e espectromorfológico. Este trecho da obra é caracterizado por um uso
predominantemente abstraído do material sonoro. Nestas seções não parece haver mais a
separação do material em dois planos espaciais separados. Agora os diferentes planos
são organizados de uma maneira mais polifônica, proporcionando assim um
desenvolvimento do material que tem sua projeção distribuída em todos os canais.
O esboço abaixo (Figura 10) ilustra um resumo da delimitação formal deste
movimento.

!
Figura 10 - Forma do movimento Amoroso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

O terceiro movimento, denominado Innocentemente, é iniciado em 10’15”, sendo


marcado pelo uso predominante de materiais sonoros oriundos de sons vocais
executados por bebês. Em momentos esporádicos é possível perceber o som, também
vocal, de algum indivíduo adulto realizando alguma brincadeira com alguma criança.

43!
A metáfora com a ideia da inocência poderia ser relacionada de forma imediata
pelo uso dos sons infantis, contudo a espacialização também foi empregada para realçar
esta noção. Os materiais musicais são predominantemente reconhecíveis mais gestual,
sendo projetados no espaço de maneira multi-direcional, como se fosse o
comportamento de descoberta de uma criança.
Aos 10’15” diversos sons de bebês são sobrepostos temporalmente e espalhados
nos canais de modo defasado, sem uma trajetória precisa. Diferentes grupos de sons
como gritos e risadas são separados em duplas de estéreo que são projetados ao mesmo
tempo, resultando num ambiente caótico e de acontecimentos não lineares, funcionando
como um fluxo sonoro intenso “impulsionado” para fora dos alto-falantes.
Contrariamente à ideia de multidirecionalidade de projeção do material, a forma
global do movimento se estabelece de maneira estrita num palíndromo que ocorre tanto
na disposição temporal dos eventos sonoros quanto na espacialização. Pode-se
apresentar como exemplo o material musical que era inicialmente projetado nos canais 1
e 2, passando a ser projetado nos canais 3 e 4, ou 7 e 8.
A primeira seção do palíndromo é demarcada no trecho que vai de 10’15” até
12’16” e a segunda vai de 12’17” até 14’30”. As duas seções são dividas em duas
partes, uma assinalada pela sobreposição de materiais reconhecíveis e de intensidade
forte com orientação extrínseca. A outra parte contrasta com a anterior por ter um
desenvolvimento mais lento e textural, numa intensidade fraca. Na primeira seção, a
parte mais forte, energética e caótica, ocorre no início do trecho que vai de 10’15” até
11’00”, enquanto que na segunda seção o uso do material é incide no trecho de 13’15”
até 14’30”. A segunda parte de cada seção encontra-se entre estes dois extremos
temporais.
A representação da diferença de espacialização entre as subseções são ilustradas
na imagem abaixo (Figura 11). O primeiro caso (A) representa a projeção dos “jorros”
de materiais nas subseções que iniciam e terminam a obra. O segundo caso (B)
representa a projeção de um material mais textural e homogêneo das subseções do meio
da obra.

44!
!
A B

Figura 11 - Representação das duas abordagens principais de projeção do movimento Innocentemente da


obra Vox Alia de Annette Vande Gorne.

Estas duas partes geram imagens espaciais diferentes na percepção, pois a


sobreposição de diferentes sons reconhecíveis, na parte mais forte da seção, produz uma
imagem onírica de um fluxo (como uma “cascata”) de sons energéticos. Os sons são
compostos por diferentes vozes infantis, fornecendo um espaço desordenado onde não
há direções definidas, como no espaço de brincadeira de uma criança. No trecho inicial
deste movimento, os sons são projetados como “jorros” texturais nos pares estéreos,
gerando a sensação de imersão num mar agitado, onde ondas “batem” no ouvinte por
todas as direções.
A segunda parte é iniciada aos 10’57”, após um clímax estrutural que ocorre
devido a substituição repentina da textura de camadas heterogêneas pela projeção de um
único som reconhecível: um grito animado do bebê. Segue-se um ambiente mais
contrastante com o anterior, mais vazio e povoado por texturas mais suaves, com
evolução temporal mais lenta.
Nesta nova parte a atenção é atraída para uma outra realidade, também onírica,
caracterizada por maior estabilidade e continuidade do material, onde as imagens
reconhecíveis do bebê aparecem mais esporadicamente e de modo mais impreciso. O
contraste de imagens espaciais também serve de metáfora para a percepção de mundo
inconstante, típica de uma criança.

45!
As diferentes camadas mais contínuas são projetadas em pares estéreos que
ocasionalmente tem um comportamento espacial defasado ondulante, com alternância
espacial entre os pares de canais. Esta abordagem pode ser exemplificada com o
comportamento de projeção em estéreo dos canais 5 e 6 que ocorre por volta de 11’27”.
O comportamento espacial descrito acima fornece maior riqueza para a noção de
um espaço textural interno vivo. As camadas são compostas ainda por falas do bebê e
outros gestos vocais, mas estes são mais processados e fracos. As falas mais
reconhecíveis são mais espaçadas temporalmente e não sobrepostas, o que dá a noção de
uma escuta mais íntima e de observação mais individual do bebê.
No momento em que ocorrem os espelhamentos característicos, os materiais
apresentados na primeira seção são dispostos ordenadamente em retrogrado na segunda
seção, sendo que estes materiais podem sofrer pequenas variações em suas repetições.
Além desta disposição de inversão temporal do material, um espelhamento espacial
também é realizado, como dito anteriormente.
Um exemplo do espalhamento de canais em palíndrome pode ser reconhecido
quando o som de uma risada de um bebê (em 11’39”) é projetado nos canais 3 e 4, num
plano focal menos importante sendo repedido num plano focal mais destacado (12’52”)
nos canais 1 e 2. Este espelhamento espacial reforça a ideia metafórica de inconstância
do comportamento do bebê, já que os eventos aparecem cada vez num posicionamento
espacial diferente.
Em 13’15”, o som de grito que era marcador de mudança de contexto estrutural
na primeira seção, agora é repetido com a mesma função, sendo projetado novamente
nos canais 6 e 7, marcando o início de uma densa, análoga a uma “multidão”, de forma
similar ao começo da obra. Os eventos heterogêneos, moventes e energéticos novamente
se sobrepõem, repetindo a ideia da textura caótica do começo da obra.
O esboço abaixo (Figura 12) ilustra a demarcação formal deste movimento da
obra. É possível perceber que cada parte da palíndrome possui duas estratégias
diferentes de uso do material.

46!
!

Figura 12 - Forma do movimento Innocentemente da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

O quinto movimento da obra, denominado Furioso, também é um exemplo de


uso da espacialização com a finalidade de representar um sentimento. Um material com
timbre áspero, ritmado e energético é projetado nos canais frontais, com muita
intensidade, como se fosse um grito resultante de um momento de ira. A percepção do
ouvinte é de que está recebendo diretamente na face a força energética do sujeito em
fúria.
O recurso de projeção frontal, como representação de um “arremesso” energético
provocado por uma fala, assemelha-se ao usado por Trevor Wishart em Vox V, citado
anteriormente nesta seção do trabalho. No exemplo de Wishart, o evento sonoro
proveniente de uma voz, projetado nos canais frontais, representa também um grito,
neste caso, o da deusa Hindu Shiva. O grito não se trata necessariamente da imagem de
um afeto, mas sim de uma energia que é destruidora ou criadora de todas as coisas.
Diferentemente de Whishart, Vande Gorne não usa diretamente o som
reconhecível da voz, mas a energia de um grito é representada por um material textural
de forte intensidade. Foi possível notar que este efeito espacial usado por ambos os
compositores possui um alto teor comunicativo, dramático e metafórico.
O desenvolvimento deste movimento é marcado por uma evolução temporal
contínua com a transformação gradual do material principal, sendo difícil precisar uma
forma delimitada. Contudo pode-se descrever dois “momentos” mais característicos no
contexto global, sendo que o segundo momento parece ser resultante do primeiro. O
primeiro momento encontra-se no trecho que vai de 14’44” até 16’36” e o segundo de
16’36” até 19’37”. A primeira parte é assinalada por um aumento gradual na energia

47!
emitida pelos canais frontais, que gradualmente recua e se transforma numa sonoridade
mais lisa e macia, semelhante a vocalizações de meditação na segunda parte.
Um resumo da disposição formal deste movimento pode ser verificado na
imagem abaixo (Figura 13). Cada seção identificada é nomeada pelo comportamento da
energia da textura principal. A espacialização reforça as inflexões da energia, sendo que
esta evolui de uma situação de fúria até a calmaria. Tais abordagens de projeção são
descritas em mais detalhes nos anexos deste trabalho.

!
Figura 13 - Forma do movimento Furioso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne.

A textura projetada apenas nos canais frontais na maior parte da primeira seção,
gradualmente se espalha nos quatro canais, como se aos poucos a energia fosse se
espalhando até o momento em que se dissipa ao final do movimento. Desta forma, o
movimento Furioso é caracterizado por um desenvolvimento gradual do material,
simbolizando a transformação de um estado de espírito baseado na ira para uma fleuma
ou calmaria subsequente.
O último movimento foi denominado Parola Volante, sendo o mais curto da obra
(de 19’51” até 21’48”). Suas particularidades parecem configurar a noção de uma coda,
não representando nenhum afeto ou sentimento como mote composicional. Trata-se de
uma homenagem a Pierre Schaeffer e seu material sonoro básico é constituído de
gravações de falas identificáveis como a voz do próprio compositor. Esta abordagem
confere a este movimento da obra um alto potencial de geração de imagens e além das
vozes reconhecíveis a compositora também faz uso de sons resultantes de
transformações eletrônicas.
O material está organizado de maneira polifônica o que, conforme a
compositora32, é uma lembrança de Bach (um dos compositores favorito de Schaeffer).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Esta informação foi fornecida por nota de programa enviada por correio pela compositora para a autora
deste trabalho.

48!
A ideia de polifonia se manifesta mais pela relação entre os materiais sonoros do que
pela espacialização, uma vez que este movimento obra é construído em estéreo.
O espaço, neste movimento, é explorado principalmente pelas impressões
decorrentes dos materiais. As noções de planos focais, de distâncias, aproximações e
afastamentos são claramente identificáveis a partir da manipulação espectromorfológica
dos eventos sonoros. Contribuem também para uma ilusão de espaço tridimensional os
trajetos em estéreo ouvidos nos oito canais.
Não se observam indicações de que a espacialização em multicanal, com o uso
trajetórias definidas, seja um elemento estrutural importante neste movimento,
resultando que seja obtida uma espacialidade a partir da escuta da constituição dos
eventos sonoros individuais.
Algumas especificidades relacionadas ao espaço composto também podem ser
encontradas nas obras compostas pela autora durante a elaboração deste trabalho. A peça
Locus (2010-2015) foi concebida com a intenção de proporcionar ao ouvinte uma escuta
que permitisse a construção contextos sonoros capazes com referência a conceitos
relacionados ao espaço. O tratamento sonoro foi concebido com o intuito de gerar
imagens sonoras baseadas em diferentes sensações espaciais não musicais.
Como princípio de construção, diferentes noções espaciais dos universos
perceptivos (que vão além do universo auditivo) foram o fio condutor para a uma
delimitação de forma. A partir de tais referências, cada seção foi relacionada a uma
caracterização espacial específica, ou seja, estruturalmente a obra está dividida em
quatro secções, as quais foram concebidas a partir de atributos espaciais como: espaço
vazio, espaço percorrido, espaço ocupado e espaço preenchido.
Cada uma destas caracterizações não é encerrada em si mesma, pois para cada
um destes atributos envolve algum aspecto de outros atributos. Por exemplo, um espaço
percorrido caracteriza um espaço ocupado, bem como um espaço preenchido. Porém,
cada situação foi representada metaforicamente de maneiras diferentes, em uma
perspectiva pessoal de tratamento do material musical. Cada uma das seções compõe um
tipo de espaço extrínseco que é concebida graficamente, como está aprestado na Figura
1:

49!
Figura 14 - Representação gráfica do espaço composto em Locus

O material sonoro utilizado foi predominantemente sons sintetizados e alguns sons


gravados e processados. Os materiais foram escolhidos após as decisões espaciais, com
prioridade para o processo de estruturação e descoberta ou desenvolvimento de
morfologias que melhor representavam metaforicamente os aspectos espaciais escolhidos,
ao invés de gerar desenvolvimentos tímbricos.
A primeira seção (de 0’00” até 2’06”), foi construída como analogia à noção de
“espaços vazios”, buscando-se a imagem metafórica de pouca ou nenhuma habitação por
seres ou objetos num ambiente virtual. As morfologias usadas para representar tais
aspectos foram texturas sonoras de longa duração, nas quais os registros de altura variam
entre extremos graves e agudos. O uso de extremos frequenciais teve a finalidade de
aludir a um ambiente amplo, com limites verticais delimitado por alturas. As texturas
empregadas são alongadas temporalmente e se transformam gradualmente a partir de um
desenvolvimento lento, caracterizando apenas a noção da existência de um espaço.
As texturas selecionadas são projetadas em todos os canais, de modo a
proporcionar ao ouvinte uma escuta imersiva, como se estivesse posicionado no meio de
um ambiente “vazio”. O material sonoro desta primeira seção não consiste apenas em
uma única textura, pois diferentes camadas de superfícies mais lisas ou granulares

50!
surgem de modo gradual, como metáfora de diferentes ambientes possíveis ou da
transformação de espaços.
Cabe ressaltar que o emprego de texturas foi uma opção apenas simbólica, de
representação de espaços, considerando que o movimento textural não remete a ações de
agentes, apenas fica caracterizada a percepção de “habitação” de algum lugar. Espaços
vazios contém elementos naturais como o vento, a luz, a poeira ou outros elementos não
relacionados com ações humanas, portanto um material sonoro baseado em textura
pareceu representar melhor a falta de ação que característica da ausência de algum ser
ocupando o ambiente.
Não se buscou retratar um ambiente real e sim um espaço imaginário que contém
diferentes “compartimentos”, representados pelas transformações das texturas e pelo
aparecimento gradual de novas sonoridades contínuas e não pelo contraste entre
texturas.
Gradualmente o ambiente vazio é transformado por meio da variação da textura
global e, no decorrer do tempo, alguns elementos com contornos mais marcados
aparecem num plano de fundo (como em 37” onde um som agudo e tremulante é
ouvido).
Os novos elementos incluídos atuam como um indicador de mudança de contexto
composicional, que neste caso é um contexto espacial. Também como indicativo do
processo transição de seção, gradativamente a sonoridade global se torna mais forte em
intensidade e com um maior movimento interno. Observa-se ainda o aumento da
densidade, com a adição de novas camadas o que resulta numa condensação de parte
textura (em 2’06”). A textura se torna localizada, transformando-se em um evento
sonoro mais curto, com um contorno mais marcado, delimitando um formato mais
perceptível e gestual. A transformação da textura para gesto caracteriza a transição para
a seção 2, que tem início em 2’07”.
A seção que foi relacionada à noção de “espaço percorrido” é caracterizada pelo
uso constante de movimentos espaciais de eventos sonoros com contornos mais
demarcados, durações mais curtas e com mais velocidade, em relação às texturas
anteriores. Aqui são exploradas morfologias gestuais, marcadas por trajetórias definidas
e causalidades inferidas de fontes imaginadas ou supostas. Cabe reforçar que parte
significativa do material é fruto de sínteses e processamentos sonoros, tendo como
resultado que as noções de causa e movimentos sejam mais relacionadas às
transformações espectromorfológicas do que à identificação de fontes reais. Os sons

51!
gravados se encontram descontextualizados de uma paisagem realística, assumindo uma
função estrutural de mesma importância de morfologias não conhecidas.
A estratégia composicional para representar os “espaços percorridos” foi o uso
de contrapontos de gestos e texturas, onde os gestos são os elementos principais, porém
o uso de texturas serve como um meio de simbolizar o espaço percorrido pelos gestos e
que anteriormente estava vazio. Estes eventos tem o objetivo proporcionar a observação
de “objetos” ou “seres” que começam a ocupar o espaço e transitar neste ambiente.
Além dos movimentos gestuais, nesta seção foi empregada a ideia de plano de
fundo e plano de frente como um dos meios de articular tal contraponto, considerando
que estes planos auxiliam na percepção de uma perspectiva de profundidade espacial.
Aos 2’13” pode se encontrar um exemplo, onde movimentos direcionais estão
hierarquicamente posicionados na frente de uma textura contínua e homogênea. Tal
textura que serve ambiência para o desenvolvimento das trajetórias, sendo representada
como uma mancha de cor cinza no ícone que ilustra a segunda seção na Figura 1.
A terceira seção tem seu início em 4’30”, com destaque para a noção de
“posicionamento espacial”, ainda que alguns eventos sonoros tenham uma trajetória. A
estratégia composicional para destacar este aspecto espacial foi a de fragmentação do
material sonoro, sendo que os eventos sonoros se encontram mais espaçados
temporalmente e projetados em diferentes alto-falantes, proporcionando a cada som uma
localização no espaço.
Outra estratégia para destacar o posicionamento dos eventos sonoros foi a
supressão de um plano de fundo textural, pois a ausência de uma camada sonora mais
contínua, ou em fluxo, proporciona ao ouvinte a noção pontos sonoros distribuídos em
um espaço aberto. Os pontos percebidos podem ser estáticos ou se moverem para
direções variadas e a noção de polifonia é enfraquecida, de forma que sejam
evidenciadas colocações mais precisas de eventos, como se fosse a imagem de uma
“pintura” sonora onde se localizam apenas formas mais ou menos pontuais.
Por volta de 5’33” a mobilidade dos eventos sonoros aumenta e estes começam a
se sobrepor como preparação para a entrada da próxima secção. A seguir surgem
pequenos sons percussivos na região aguda que gradualmente se adensam e se
transformam timbricamente. Além deste adensamento, são acrescentadas mais camadas
de sons percussivos que se comportam em coletividade formando um evento textural em
aproximadamente 5’46”.

52!
A transformação de pequenos eventos individuais em uma textura indica o
estabelecimento da seção 4, destacada pela noção de adensamento textural para gerar
uma imagem metafórica de “espaço preenchido”. Aqui os eventos sonoros são
sobrepostos e projetados simultaneamente em todos os canais e o espaço se apresenta
preenchido por sonoridades que, ao serem sobrepostas, formam uma textura
fundamentalmente granulada, de grande movimento interno e que cerca o espaço de
escuta a ponto de não ser possível destacar hierarquicamente nenhum evento sonoro. A
escolha da formação de uma superfície mais granular se deve ao fato de que a
sobreposição de “átomos” ou “grãos” sonoros podem proporcionar uma escuta
associativa com um movimento reunido de aglomeração do material, o que fornece uma
percepção do preenchimento espacial.
A descrição de aspectos composicionais nesta obra indicou uma busca pela
exploração de experiências auditivas imaginativas, que usam o espaço como um meio de
articular o tempo, bem como a geração de metáforas de experiências não sonoras em um
ambiente musical.
As possibilidades na manipulação de trajetórias, bem como a criação de
realidades sonoras desconhecidas por meio de sons gerados eletronicamente, enriquecem
o potencial investigativo de exploração espacial no contexto da música eletroacústica. A
obra aqui descrita resultado de apenas algumas experimentações espaciais possíveis, que
vão além do uso da espacialização unicamente como um ornamento sonoro, sendo que
os aspectos espaciais possuem importância estrutural em igualdade com outros
parâmetros composicionais.
Na obra Cerberus (2013), o espaço composto é definido a partir de estratégias
estruturais ligeiramente diferentes, pois sua concepção global é baseada em um estudo
dos parâmetros de trajetória e localização, que são qualificadores do espaço. A
“trajetória” é um comportamento arquetípico do gesto sonoro e que proporciona uma
escuta espacial imediata na fruição da obra, o que justifica a sua abordagem como fio
condutor da estruturação formal. A “localização” como um parâmetro de manipulação
do material sonoro, na realidade é uma consequência da exploração de trajetórias que
necessitam sair de uma posição marcada e chegar a um “alvo” ou objetivo.
Para a elaboração desta obra o material selecionado consistiu em sons gravados e
reconhecíveis, bem como e alguns sons sintetizados não identificáveis. A escolha pelo
uso concomitante de materiais identificáveis e sintetizados se deu a partir do
comportamento especromorfológico desejado para a exploração das trajetórias e pelo

53!
objetivo de delimitação de “famílias” morfológicas específicas, sendo que cada uma
destas famílias proporciona espacialidades diferentes. Desta maneira, as “famílias
morfológicas” escolhidas, por falta de terminologias melhores, foram classificadas como
pela autora como:
• tremolos: família caracterizada por diferentes timbres em movimentos em
tremolos “agitados”: repetições iterativas ou sons de morfologias agitadas como
se fossem sacudidas energicamente;
• spinnings: família morfológica baseada em sons de objetos em movimento
circular que, quando possuem uma velocidade alta, se assemelham a uma
variação dos trêmolos;
• nuvens frequenciais: morfologia contrastante com as duas famílias anteriores.
São eventos sonoros com superfície textural granular ou em fluxo de frequências.
Tais morfologias podem ter uma apresentação textural em alguns momentos,
mas em outros, podem conter trajetórias definidas, caracterizando uma escuta
gestual.
É necessário ressaltar que as terminologias escolhidas são baseadas em
associações individuais da autora, sendo relativas ao comportamento tímbrico e
morfológico dado pelos referidos eventos sonoros. Estas não foram as únicas
morfologias usadas nas obras, contudo tiveram um papel de destaque no processo de
estruturação.
As demais morfologias foram usadas como complemento de realce e
transformação dos eventos estruturais mais importantes. Dentre estas morfologias
“secundárias”, são explorados eventos sonoros com comportamentos idênticos ou
semelhantes a golpes, objetos em que queda ou em movimento de “ricochete” e também
ataques percussivos curtos. Tais morfologias foram obtidas por meio de gravações de
sons reais ou a partir de sons sintetizados.
As bifurcações de trajetos espaciais aplicados às principais morfologias
escolhidas foram a principal de referência para o desenvolvimento formal da obra, o que
justifica o título Cerberus, imagem representativa do cão mitológico que possui
múltiplas cabeças ligada ao mesmo corpo, que faz referência às bifurcações. A metáfora
consiste em que existe um tronco comum, representado por morfologias de mesma
família, que se divide em caminhos independentes.

54!
A obra está dividida em três seções principais, sendo a primeira marcada pela
apresentação das diferentes morfologias sobrepostas, seguida pela segunda que é
caracterizada pelo uso de materiais mais gestuais com trajetórias similares, que se
bifurcam gradualmente e na seção final, se fundem em trajetórias únicas. Cada uma das
seções é marcada por subdivisões não definidas nitidamente, pois os processos de
transformação do material são graduais, sendo apresentados principalmente pela
variação de trajetórias e pelo acréscimo ou mutação de morfologias.
Um planejamento gráfico foi elaborado antes da construção da obra em si,
contudo algumas modificações foram feitas devido a necessidade de adaptações do
material para alcançar as sonoridades desejadas.
O planejamento prévio pode ser observado na Figura 2 e a “leitura” temporal é
feita da esquerda para a direita, a partir do título da obra ao canto superior, seguindo
através das quatro linhas. No canto direito inferior da figura há uma legenda indicando
qual morfologia cada imagem representa. Ou seja, as setas indicam as trajetórias
enquanto que as texturas internas de tais setas indicam as diferentes famílias
morfológicas
Como foi referido anteriormente, a obra não foi construída de maneira idêntica
ao que foi planejado graficamente. Originalmente foi concebida com sete seções que,
no processo de construção não mostraram forças estruturais suficientes para se
manterem como tal.
Outra alteração em relação ao planejamento inicial se refere ao tempo de divisão
de cada seção, onde as durações previstas para cada seção na composição não
permaneceram idênticas às realizadas, pois os materiais em muitos momentos
necessitaram ter durações maiores ou menores para fossem realçadas as especificidades
estruturais desejadas.

55!
!

Figura 15 - Planejamento gráfico de Cerberus

56!
As imagens apresentadas no planejamento são apenas resumos das ideias
acerca da direção em cada seção, durante a elaboração da obra, em cada momento
existe mais de um evento sonoro sobreposto no tempo, o que tornaria impossível a
existência de uma única trajetória, como está indicado na segunda seção. Ocorre ainda
que as trajetórias dos eventos sonoros individuais não consistem unicamente em
movimentos circulares. Efetivamente são explorados os mais diferentes “desenhos”
de trajetos, como por exemplo: linhas retas, zig-zags, movimentos em espiral,
movimentos erráticos, entre outros.
A divisão final das seções ficou definida como se segue: a primeira vai de
0’00” até 2’44”; a segunda de 2’45” até 6’10” e a terceira de 6’11” até o final aos
9’32”. É interessante ressaltar que a delimitação de cada seção é um ponto de difícil
reconhecimento de forma apenas auditiva, uma vez que o parâmetro trajetória
espacial não consiste em um tratamento de material usual na delimitação de seções.
Tal parâmetro provavelmente já foi utilizado para esta finalidade no contexto da
música eletroacústica, mas o ouvinte é mais habituado a aspectos estruturais
relacionados à alturas, durações ou comportamentos espectromorfológicos durante o
processo de audição de uma obra.
Ocorre ainda que a bifurcação espacial das trajetórias é encontrada em
algumas morfologias, enquanto as outras continuam com suas trajetórias individuais,
resultando em que a transição entre tais seções seja um processo gradual.
Pessoalmente, a autora acredita que o resultado perceptual foi satisfatório, ainda que
não seja preciso, pois uma relação rica de combinações espaciais e relações
contrapontísticas interessantes foi alcançada a partir deste tratamento do material.
A primeira seção é definida pela apresentação das famílias morfológicas, em
relações de interações entre gestos. É marcada ainda pela direcionalidade temporal
aparente fornecida por gestos. Desta forma são apresentadas, simultaneamente ou em
sequência, os três tipos de famílias morfológicas descritas anteriormente. Estas
famílias aparecem em diferentes timbres, durações e trajetos espaciais e o trecho da
seção fica marcado pela relação contrapontística e polifônica do material musical.
A segunda seção é caracterizada pela bifurcação progressiva dos trajetos
espaciais dos diferentes eventos sonoros, sendo formada por subseções que contém
algumas especificidades. Cada subseção é marcada pela exploração de qualidades
contrapontísticas relacionadas às trajetórias, ou seja, relações verticais de “vozes”
constituídas por eventos sonoros individuais que possuem caminhos definidos. Os

! 57!
tratamentos espaciais, que definem trajetos dos eventos individuais, servem de
referência para a delimitação das subseções que ficaram assim divididas e nomeadas:
“movimento único” (de 2’45” até 4’34”) e “bifurcações” (de 4’35” até
aproximadamente 6’10”).
O uso do termo “movimento único” não significa que todos os eventos
sonoros individuais contêm exatamente o mesmo movimento, mas sim todos seguem
a mesma direção espacial. Os diferentes eventos sonoros possuem durações, timbres e
alturas diferentes, caracterizando a percepção de eventos individuais e, ainda que
sejam independentes entre si, seguem um trajeto comum nesta primeira subseção. Um
exemplo disto é o trecho que começa em 3’03”, demonstrado graficamente na Figura
3, que é uma imagem da automação da espacialização de Cerberus feita a partir do
uso do plug-in Spatium no software Ableton Live 9, onde a linha vermelha indica a
automação do parâmetro azimute da espacialização.

Figura 16 - Exemplo de automação do parâmetro azimute no plug-in spatium

É possível assinalar que os eventos sonoros nos diferentes canais possuem o


mesmo traçado, porém cada um inicia-se em tempos diferentes e em posições
espaciais também diferentes, possuindo ainda um perfil espectral e morfológico
individual. Desta maneira, a trajetória resultante de cada evento sonoro individual

! 58!
contém o mesmo caminho, mas será escutada de maneiras diferentes, dadas as
diferenças específicas entre os materiais.
Outra especificidade do trecho é o modo como que são apresentadas as
famílias morfológicas, sendo que de 2’45” até 2’59” são explorados
predominantemente morfologias da família “tremolo”. As morfologias deste trecho
possuem um comportamento de movimento interno agitado, como se fossem
“sacudidas energicamente” e gradualmente, o efeito de superfície “sacudida
energicamente” se transforma em uma superfície constituída de elementos internos
iterativos (por volta de 3’00” até 4’34”). Eventualmente, alguns gestos de outra
família morfológica tem um breve aparecimento, como por exemplo em 3’39”,
quando um evento da família “nuvem frequencial” faz um movimento gestual de
serve como impulso para um outro evento sonoro da família tremolo.
Estas características em tremolo são utilizadas com a intenção de proporcionar
uma escuta de superfície dos eventos sonoros individuais, tornando possível perceber
a existências de elementos texturais nestes eventos. Contudo, cada evento possui
delimitações temporais curtas, trajetórias definidas e causalidades inferidas com o
intuito de proporcionar uma escuta de “objetos” ou “personagens” individuais, e não
de uma textura contínua.
Os aspectos de superfície obtidos definem a noção de materialidade dada ao
material por meio de associações táteis percebidas durante a escuta de tais
morfologias. O evento é percebido, por seu aspecto exterior, como um movimento
delimitado por seu trajeto, ou ainda uma origem energética possível, imaginada ou
associada à uma situação real.
Gradualmente os eventos deixam de seguir o mesmo caminho e começam a se
tornar independentes e a interação das três variações da família morfológica
“tremolo” (iniciadas por volta de 5’10”) reforça a relação de autonomia dos eventos
sonoros individuais
Cabe ressaltar que a “bifurcação” das trajetórias ocorre de maneira gradual e
que, enquanto algumas trajetórias seguem numa mesma direção, outras começam a
seguir seus próprios caminhos. Ao seguir trajetos independentes, o material se
estabelece como uma relação vertical contrapontística de gestos sonoros autônomos,
caracterizando o final da segunda seção.
Em 6’11” um som gestual de ataque bem definido introduz um evento sonoro
da família morfológica “nuvem frequencial”. Tal introdução deste novo evento dá

! 59!
início ao tratamento espacial da terceira seção que foi denominado “fusões”. E, tal
seção terminará somente ao final da obra. O início de tal seção constitui uma fase de
polifonia dos materiais dada pela relação de independência entre os eventos
construída na seção anterior. A adição da nova morfologia – “nuvem frequencial” –
reforça a delimitação de uma nova seção, pois um elemento novo é apresentado na
escuta.
Este seção foi denominada “fusões”, pois gradualmente os gestos que
inicialmente possuem comportamento de independência entre eles começam
novamente seguir um trajeto comum. O processo de “fusão” de trajetos também é
progressivo e, se desenvolve até ao final da obra, onde é escutada uma única trajetória
em eventos sonoros de mesma morfologia e timbre. Vale lembrar que tal “fusão” é
apenas metafórica e se refere especificamente ao sentido das trajetórias dos eventos
individuais, e não necessariamente à fusão de timbres, como ocorre em outras
abordagens composicionais que serão apontadas neste trabalho33.
Desta maneira, nesta seção, enquanto alguns eventos sonoros seguem trajetos
independentes, outros gradualmente “adotam” caminhos e sentidos de eventos
sonoros que ocorreram antes destes. Ou seja, um eventos que antes possuía uma
trajetória diferente de outros, agora assume o mesmo sentido dos sons que são
sobrepostos a este.
Ao longo desta seção serão explorados diversos recursos que representam a
“fusão” das trajetórias que progressivamente irão resultar no desaparecimento de
morfologias independentes, fornecendo um único tipo de morfologia que é
apresentada inicialmente em 9’04” e se estende até o final da obra. Isto quer dizer
que, de modo gradual, nesta seção, ocorre um “esvaziamento” de materiais
representando uma fusão de ideias num único contexto tímbrico e morfológico ao
final da peça.
Em resumo, abaixo é apresentada uma representação gráfica da divisão formal
das seções da obra, na qual é representado o modo em que as morfologias foram
dispostas no decorrer da duração, bem como os pontos estruturais em que os
comportamentos espaciais definidos pelos trajetos delimitam a forma global da obra
(Figura 4). As marcações de tempo não são indicadas na imagem, pois esta representa
apenas a concepção formal global. Tal exemplo demonstra então, escolhas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
Outra abordagem para a noção “fusão” foi apontada na obra 2261 de Mario Mary, na qual o autor
trabalha o conceito de “orquestração eletroacústica” que será melhor discutido mais adiante.

! 60!
composicionais abstratas que delimitam uma estruturação baseada na construção de
espacialidades.

Figura 17 - Representação da forma global de Cerberus

Deste modo, a obra Cerberus, de maneiras diferentes, explora a espacialidade


como um meio de concepção formal. O uso do material predominantemente gestual é
um exemplo de espacialidade, pois esta peça explora o movimento em trajetórias
como um meio de gerar uma percepção temporal direcional que é influenciada pelo
comportamento espacial dos eventos sonoros. O espaço composto nesta obra é o
resultado da interação da espacialização com os aspectos morfológicos dos materiais,
sendo que as duas características possuem funções estruturais num mesmo nível de
importância.
Como um último exemplo de uma abordagem particular de elaboração de um
espaço composto será citada a obra Indução (2014). A ideia primeira para a
construção desta composição foi elaborada a partir da reflexão por parte da autora da
noção de movimento. Dentre as diferentes conceituações a concepção da noção de
movimento como “deslocamento de um corpo, mudança de posição no espaço”34, ou
ainda como “ação, animação, variedade35” serviram de referência para o
desenvolvimento composicional. A partir de tais conceituações foram pensados meios
de representar o conceito de “movimento” como um parâmetro componível. A
maneira escolhida de simbolizar tais noções foi através da concepção da escuta de
interioridade e exterioridade dos movimentos, sendo que no primeiro caso são
valorizadas as noções de deslocamento e no segundo de transformações internas do
material que são responsáveis por gerar “animação” ou “variedade”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34
No original: “Déplacement d'un corps, changement de position dans l'espace”. Versão francesa on-
line do dicionário Larousse disponível em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais
35
Definição dada na versão on-line do dicionário Michaelis disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=movimento

! 61!
Deste modo, a estruturação formal da obra se baseou no conceito de orientação
espacial dada pelo movimento. Neste contexto, o tratamento do material que fornece
espacialidades que remetem a associações com elementos externos à obra, como
causas e trajetórias fornecem a uma escuta baseada em movimentos gerados por
forças exteriores, enquanto que a valorização da escuta dos aspectos espaciais dado
pela constituição interna dos eventos fornece para a escuta uma orientação intrínseca.
A estratégia usada para desenvolver os aspectos exteriores dos eventos
sonoros na obra foi a exploração das noções de “causa” e “consequência” dos eventos
sonoros. Como meio de valorizar a noção de “causas”, são usados materiais gravados
ou sintetizados que apresentam à escuta noções de ações reconhecíveis ou supostas de
causas possíveis de geração de eventos sonoros. As “consequências” são dadas por
sons que seriam resultantes das ações exteriores. Assim, as “causas” são
proporcionadas inicialmente por sons que caracterizam quedas, golpes e choques por
exemplo, e as “consequências” são representadas por movimentos sonoros resultantes
do Efeito Doppler ou “whooshes”36.
A noções iniciais de causa e consequência representam a exterioridade dos
movimentos sonoros, já que são relacionadas à situações não necessariamente
sonoras, como golpes ou movimento de um objeto “passando” (no caso do Efeito
Doppler). No decorrer da obra, o material sonoro fica mais alongado temporalmente e
menos reconhecível configurando uma escuta mais voltada para interior dos
movimentos, focada nas variações internas dos eventos sonoros.
Deste modo, a escolha de tratamento do material mais evidente que
representasse tais orientações espaciais é novamente o uso de gestos e texturas
sonoras de materiais gravados e sintetizados. Do mesmo modo que Cerberus, em
Indução o uso de sons gravados não tem a finalidade de gerar paisagens realísticas,
mas sim proporcionar enriquecer a escuta espacial. Tais sons são descontextualizados
de seus ambientes reais e são sobrepostos ou misturados a sons sintéticos gerando
uma escuta musical baseada em espaços abstratos e metafóricos dados a partir da
combinação dos diferentes eventos e de seus movimentos particulares.
A estruturação de Indução possui uma abordagem muito simples, pois
basicamente a obra é divida em duas partes principais, sendo que a primeira está

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
o termo “whoosh” é uma onomatopéia que representa o tipo de morfologia velos que se desloca de
um ponto a outro. Tal efeito é semelhante ao Efeito Doppler, porém a noção de deslocamento é dada
pela variação de intensidade e não envolve variação espectral.

! 62!
relacionada com causas externas e movimentos resultantes e na segunda as causas dos
movimentos são as transformações internas de texturas. Esta obra prioriza também a
noção de movimento como elemento estruturante, sendo este representado por
agentes, causas e consequências externas ou ainda por transformações graduais
internas. Assim, na primeira parte predominam aspectos gestuais e na segunda
aspectos texturais (apesar de existirem os dois aspectos em ambas as partes). Uma
representação da forma global é dada na imagem está apresentada na Figura 5.

Figura 18 - Representação da forma global de Indução

Os traçados são apenas imagens generalistas que servem para ilustrar as


concepções de uso do material, e não apontar relações visuais que ilustram eventos
sonoros. Os traços curtos simbolizam causas, as setas pequenas simbolizam trajetórias
e o grande traço borrado na segunda seção representa o desenvolvimento textural que
será descrito mais adiante. A minutagem não é indicada na figura, pois esta representa
apenas a proporção de uso dos materiais.
A obra é dividida temporalmente da seguinte maneira: a primeira seção é
delimitada do trecho que vai de 0’00” até 3’02” e, a segunda seção é demarcada pelo
trecho que vai de 3’03” até o final em 9’06”.
Na primeira seção existem subdivisões baseadas no enfoque do material nas
causas ou nos movimentos (consequências). Como foi apontado anteriormente, a
primeira seção valoriza a percepção de uma orientação espacial extrínseca dada pela
noção de causalidades aparentes e movimentos definidos em trajetórias espaciais. Este
trecho foi dividido da seguinte forma:
• Introdução: “Impulso gerador”. Trecho que vai de 0’00” até 0’19”
• 1ª subseção: “Causas apenas”. Trecho que vai de 0’19” até 0’57”.
• 2ª subseção: “Consequência apenas”. Trecho que vai de 0’58” até 1’05”.
• 3ª subseção: “Causa apenas”. Trecho que vai de 1’06” até 1’54”.

! 63!
• 4ª subseção: “Consequência apenas”. Trecho que vai de 1’55” até 2’22”.
• Transição para segunda seção: “Causa mais consequência”. Trecho que vai de
2’23” até 3’04”.
Cada uma destas terminologias foi definida pela compositora, como um guia
para a estruturação aplicável apenas para esta obra. A primeira seção consiste numa
intercalação do enfoque estrutural dos elementos composicionais escolhidos e na
parte introdutória são ouvidos sons de causas muito aparentes, como quedas e golpes
sobrepostos temporalmente, que estão em relação de interação entre eles. Tal
disposição tem a função estrutural de fornecer um impulso energético que dá origem à
obra, sendo nomeado como “causas geradoras de movimento”.
A subseções que seguem dão enfoque a aspectos extrínsecos específicos,
sendo que na primeira são apresentas causas geradoras de som, mais uma vez variadas
entre ataques, golpes e quedas, porém estas são agora temporalmente mais espaçadas
e, em relação interações entre morfologias, mais gestuais.
Um exemplo de interação ocorre aos 1’31” onde um “ricochete” de um som,
com ataque definido, serve de “gatilho” para um som percussivo de timbre metálico
numa região aguda. Este trecho visa a valorização da noção de ações que “causam”
outros sons, que podem servir como agentes que produzirão outros eventos sonoros.
A segunda subseção é um “isolamento” da sonoridade da trajetória apenas,
como se as trajetórias fossem escutadas como fenômenos em si. Na realidade, buscou-
se explorar eventos sonoros que podem gerar uma “imagem” de trajetos e o tipo de
morfologia escolhida para simbolizar essa “trajetória pura” foi a resultante de Efeitos
Doppler, ou ainda movimentos que se assemelhassem ao trajeto de um pêndulo.
A opção por tais sonoridades não foi baseada em alguma abordagem espacial
documentada por bibliografia, consiste apenas em uma escolha estética pessoal,
visando um resultado expressivo na obra. Buscou-se explorar um momento estrutural
contrastante, a partir da “separação” (metafórica) de duas fases de produção de
movimento sonoro: a sua causa e a sua continuação.
Os trajetos são projetados no espaço em caminhos que atravessam a octofonia
transversalmente, frontalmente, lateralmente, ou ainda em direções semi-circulares,
seguindo a disposição dos alto-falantes
As subseções que se seguem abordam as variações tímbrica e morfológica dos
materiais apresentados nas subseções 1 e 2, sendo variações bem evidentes quando

! 64!
comparadas às subseções 2 e 4. No primeiro caso são sobrepostas “trajetórias puras”
de um timbre único, porém com durações e alturas diferentes, enquanto que no
segundo caso são sobrepostos materiais que representam tais trajetórias sendo
constituídos de timbres e durações diferenciadas.
A última subseção consiste no momento de transição que conduzirá à segunda
seção da obra. É um trecho marcado pela exploração da “soma” entre as duas “fases”
de constituição de um movimento sonoro, ou seja, as causas e as trajetórias estão
interagindo. Morfologias que representam ataques, ricochetes, golpes ou pancadas
servem como causas para diferentes trajetos obtidos por morfologias resultantes de
Efeito Doppler e wooshes. Ocorre ainda que os trajetos servem de impulso para
golpes ou ataques.
São efetuadas diversas “colagens” de ataques em trajetórias de timbres
diferentes, gerando sonoridades artificiais, mas com movimentos “plausíveis”. A
plausibilidade de tais movimento é conferida justamente pela percepção gestaltica da
união de uma “causa” (ataques) com uma “consequência” (trajetos), que não
necessariamente são partes de uma mesma fonte.
O início da segunda seção se dá em 3’04” e se estende até o final da obra aos
9’08”. Esta parte da obra tem uma duração muito maior que a primeira, o que decorre
do alongamento do material principal que a constitui no tempo, de forma a
proporcionar uma escuta mais textural e imersiva. Contrastando com a primeira seção,
esta segunda parte possui uma evolução temporal mais lenta, não sendo explorados
eventos individuais com caminhos definidos e objetivos aparentes de chegada. São
perceptíveis movimentos neste trecho, mas estes não são direcionais durante todo
tempo e são constituidos pela animação interna dos elementos que compõem tais
texturas.
Na segunda parte da obra, a projeção dos materiais nos canais não delimita
claramente desenhos de trajetos definidos e localizações precisas dos eventos
individuais. Em alguns momentos os sons são projetados simultaneamente em todos
os canais e em outros são movimentados em direções aleatórias para que não sejam
percebidas trajetórias que se sobressaem na escuta.
Este tipo de projeção visa proporcionar uma escuta que envolve o ouvinte
como se este tivesse inserido no interior de um evento sonoro, ao contrario da
“observação” exterior de eventos independentes explorados na primeira seção. Deste
modo, esta segunda parte é baseada nas transformações intrínsecas das texturas e não

! 65!
em causas externas ou trajetos definidos, portanto, concepção de movimento é gerada
a partir das transformações dos elementos constituintes.
Cabe ressaltar que o trecho inicial da segunda seção contém ainda a aparição
de golpes ou trajetos gestuais, porém estes servem apenas como elementos impulsivos
que conduzem, de forma momentânea, a textura para uma situação futura. Porém, o
foco estrutural continua sendo na escuta voltada para a interioridade de uma textura
englobante. Um exemplo de um movimento gestual é dado em 3’41”, onde um ataque
muito reverberante é o resultado de um crescimento de densidade e de velocidade
textural que ocorreu na textura.
As texturas que compõem esta segunda seção têm sua constituição
morfológica predominante de superfície compostas de grãos, onde a variação interior
é dada pela relação entre partículas sonoras, “estalos”, ou ainda a superfície marcada
por pequenos ataques iterativos.
Este trecho tem seu desenvolvimento baseado em diferentes metamorfoses da
textura, que podem ser tímbricas ou morfológicas, bem como no esvaziamento da
textura em alguns momentos (entre 6’40” e 6’48”) ou a adoção de um comportamento
caótico e movimentado (entre 6’14” e 6’27” aproximadamente). Ocorrem ainda
alguns materiais gestuais, mas estes são fornecem focos principais de atenção e
servem estruturalmente como elementos constituintes da textura.
Aos 8’16” ocorre um grande aumento de densidade da textura, devido à
sobreposição de grãos, anunciando um novo momento estrutural referente ao final da
obra. Este será caracterizado, por um rápido “esvaziamento” do espaço, o que
proporcionado pela rarefação dos grãos (com início em em 8’47”) e termina apenas
com “resíduos” destes em pianíssimo no final da obra em 9’04”.
Dentre os exemplos citados foram destacados os espaços compostos,
relacionados principalmente às obras concebidas para a projeção em multi-canal.
Contudo, outro conceito importante para a composição pode ser citado: o de espaço
arquitetônico, sendo que tal espaço revela, para a percepção, as diferentes camadas da
mixagem, estando relacionado com as diferentes classes de materiais sonoros que
formam um todo composto37. Na música eletroacústica este conceito tem um papel
relevante, principalmente na música eletroacústica estereofônica.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Ibid.

! 66!
Ao elaborar uma composição que será difundida em estéreo, o compositor faz
um balanço para definir onde será necessário realçar ou dissimular as diferenças entre
materiais sonoros distintos. Os balanços são obtidos por meio de processos
eletrônicos e possibilitam a obtenção de diferentes planos de profundidade, trajetórias
e movimentos espaciais e o espaço arquitetônico seria então o espaço percebido a
partir de tais tratamentos dos materiais sonoros. Ainda que este conceito seja aplicado
na maioria das composições estereofônicas, os processos que definem este espaço
podem eventualmente ser expandidos para uma composição em multicanal38.
O último movimento de Vox Alia (2000) de Annette Vande Gorne (Parola
Volante) pode ser mencionado como exemplo da exploração de um espaço
arquitetônico. Neste movimento a compositora faz uso apenas do espaço de projeção
estereofônico e Parola Volante possui um aspecto polifônico realçado apenas por
impressões de espaços fornecidas pelo comportamento espectral e dinâmico dos
eventos individuais. Os eventos sonoros se comportam como uma estrutura de
camadas que são definidas pelo contraponto de espectromorfologias.
A espacialidade é fornecida pela impressão de espaço que decorre antes do
comportamento das sonoridades do que pela projeção de trajetórias. Os planos de
profundidade, bem como a disposição espacial dos eventos sonoros são percebidos
ilusoriamente, o poderia ser comparado analogicamente à observação de uma cena
captada em uma fotografia, onde são vistos diferentes planos em uma imagem
bidimensional.
Os espaços compostos são ainda influentes no espaço de escuta que pode ser
definido como o arranjo espacial onde a obra é ouvida. Aqui estão inclusos os tipos e
a organização do sistema sonoro, a posição de escuta relativa aos alto-falantes e os
limites da escuta do ambiente39.
Ressalta-se que o conceito de espaço composto difere daquele de espaço
externo, pelo fato do espaço externo ser aquele relacionado com as interações
existentes na sala de concerto. Ou seja, o espaço externo engloba o espaço composto
e o espaço em que a obra será ouvida, estando também aparentemente relacionado
com a escuta enquanto que o espaço composto diz respeito mais à obra e seus
materiais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Ibid.
39
Ibid.

! 67!
O conceito de espaço de escuta é compartilhado também pelo compositor
Denis Smalley (2008), para quem o espaço composto versa acerca das imagens
espaciais tomadas em conta pelo compositor na obra musical.
O autor considera que, na escuta musical, o espaço composto é transferido e
experienciado para um espaço de escuta que pode ser tanto individual e pessoal,
como compartilhado com outros ouvintes do público num concerto. É necessário
ressaltar que um espaço de escuta pode variar a cada nova abordagem de escuta e,
para Smalley, tais espaços “podem tanto confinar quanto expandir o espaço
composto”40. Na concepção do autor ocorre um espaço sobreposto, que é o espaço
final onde o ouvinte percebe, tratando-se de uma consequência da uma acomodação
dos espaços compostos dentro do espaço de escuta.
A noção de espaço sobreposto de Smalley é comparável com o espaço
percebido de Henriksen, que: “é baseado na interação entre o espaço de escuta e o
espaço de composição como vivenciado pelo ouvinte”41. Tal espaço gera uma
experiência estética no ouvinte, ou ainda, arrisca-se a dizer um ato de imaginação,
sendo a experiência e o ato de imaginação baseados numa vivência real do
quotidiano.
Bachelard (2005) considera que o imaginado e o real caminham juntos na
percepção de um espaço, e aponta:

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço


indiferente, entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um
espaço vivido42.

Portanto, o ato de imaginação ligado ao ambiente real de escuta é influente


numa experiência estética de uma obra eletroacústica. Desta forma, os conceitos aqui
mencionados são aspectos importantes no ato da composição, pois dependendo do
ambiente onde a obra é projetada, a proposta imaginativa do compositor pode não ser
percebida no ato da escuta.
O modo de projeção é também essencial para a experiência estética na obra
eletroacústica e a organização consciente do espaço nas músicas eletroacústicas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
40
“listening space encloses and may either confine or expand the composed space” (Smalley, 2008, p.
123).
41
“Perceived space is based on the interaction between listening space and composed space as
experienced by the listener.” (Henriksen, 2002, p. 19).
42
Ibid., p. 19.

! 68!
acarreta o problema da necessidade de uma melhor configuração dos ambientes
escolhidos para a execução das obras (Merlier, 2006). A projeção em um concerto
demanda a adaptação dos espaços a organização de um material, o que pode ser um
processo complexo com várias especificidades. Contudo, a obtenção de ambientes e
meios são fundamentais para o alcance de um feito acústico ideal. Os diferentes
meios, como a estereofonia ou a projeção em multicanal, podem resultar vantajosos
ou desvantajosos na experiência estética final43.
Merlier44 aponta também que, independente da técnica utilizada para criar e
reproduzir os espaços sonoros, o espaço ouvido e percebido resulta sempre da
combinação de diferentes fatores que são: um sinal fixo no suporte; o mesmo sinal
projetado por alto-falantes (de acordo com suas características e localização); as
características acústicas próprias do meio de transmissão entre os alto-falantes; o
ouvinte e o lugar; e, por fim, as habilidades perceptivas do ouvinte e suas capacidades
analíticas de projeção mental de um espaço.
Os exemplos de possibilidades de projeção espacial que estabelecem espaços
de escutas são imensos e, dentre as obras escolhidas e analisadas, foram priorizadas
aquelas onde houve uso de caixas idênticas, devido as possibilidades de uma
configuração de espaço que resultasse em escuta envolvente. Tais escolhas também
foram feitas com a possibilidade de maior acessibilidade técnica disponível para a
escuta das obras.
As composições elaboradas para esta investigação (Locus, Cerberus e
Indução), bem como as obras analisadas Human-Space Factory, 2261 e Vox alia se
caracterizam pela priorização da octofonia como o meio de projeção do espaço de
escuta. A octofonia, como um ambiente de projeção usual, permite uma escuta
envolvente e maior acuidade na percepção das trajetórias e posicionamentos enquanto
a noção de altura é dada mais pela manipulação do espaço espectral.
As demais obras analisadas (Vox V, Dreaming in Darkness e Surface)
estabelecem outras configurações de projeção como meio de definir o espaço de
escuta. A composição Vox V, foi concebida para ser difundida em quatro canais,
sendo que cada um dos altos falantes devem estar dispostos em cada canto da sala (no
espaço frontal e traseiro). Esta disposição pode proporcionar um princípio de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
A discussão de tais vantagens e desvantagens não cabe aqui nesta discussão, pois demanda um
aprofundamento que não é o foco neste momento.
44
Ibid.

! 69!
profundidade bem como uma maior acuidade de trajetórias, em relação a uma
projeção estereofônica. Também é possível explorar uma escuta imersiva, pois ocorre
uma projeção mais envolvente que proporciona uma riqueza de exploração textural e
reforço da noção de ocupação.
Em Dreaming in Darkness, o espaço de escuta foi concebido para ser
difundido em seis alto-falantes idênticos dispostos em pares ao torno do público,
sendo uma configuração que fornece uma boa possibilidade de imersão e de
exploração de trajetórias mais definidas.
A obra de Adrien Moore (Surface), diferencia-se das demais observadas neste
trabalho, pois foi idealizada para ser difundida em uma configuração espacial 7.145. O
uso de tal configuração torna possível a escuta da obra em ambientes particulares
(como na casa do ouvinte) e não apenas na sala de concerto, o que amplia as
possibilidades de percepções das espacialidades da obra.
A disposição dos alto-falantes é realizada com seis caixas em paralelo e uma
no centro e à frente do ouvinte, conforme demonstrado na Figura 6:

LFE (surface_LFE.wav)
Centre (surface_C.wav)

Front L (surface_FL.wav) Front R (surface_FR.wav)

Side L (surface+SiL.wav) Side R (surface_SiR.wav)

Surround L (surface_SurL.wav) Surround R (surface_SurR.wav)

Surface (2008) 7.1 soundfile and speaker layout

Figura 19 - Disposição dos projetores de som da obra Surface de Adrian Moore (Imagem informativa
fornecida pelo autor via correio eletrônico).

Por ser disposta em multi-canais, esta configuração de projeção favorece a


imersão e, consequentemente, os tratamentos espaciais tridimensionais do material

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Trata de um sistema comercial que busca o “foco na criação de um espaço próprio para consumo
audiovisual que levou a uma abertura no mercado para a adaptação de um protocolo que era há já
algum tempo utilizado nas salas de cinema: o Dolby Surround” (Rua, 2012). O Sistema de
espacialização sonora surround 7.1 é uma expansão do sistema 5.1 surgido a partir do Dolby Surround.
Tal sistema é caracterizado pelo uso de 7 canais de áudio independentes e um canal de projeção de
graves. Os canais que o compõe são: canais frontais esquedo central e direito; canais laterais esquerdo
e direito; canais traseiros esquerdo e direito e um subwoofer. A disposição das caixas de som para a
projeção da obra em questão é descrita na Figura 6.

! 70!
composicional. O fato de haver um alto-falante posicionado ao centro, na posição
frontal, pode fornecer uma informação espacial diferenciada e parece complementar a
noção de imersão do ouvinte no ambiente, uma vez que este canal contribui para um
aumento de definição das trajetórias que ocorrem na frente do ouvinte. Na obra
Surface isto ocorre em 1’56”, quando um som metálico tem a trajetória da direita para
esquerda, passando pelo centro.
A noção de aproximação e afastamento também é realçada pelo uso do canal
central, o que pode ser observado aos 2’59” quando um gesto curto parece ser lançado
velozmente da direita para a esquerda, concentrando a sua energia no canal central,
como se (em referência à percepção visual) o som passasse num campo de visão
muito próximo ao rosto do ouvinte.
Mesmo com estas propriedades, é importante ressaltar que tal canal é usado
esporadicamente na obra, sendo o uso aparentemente justificado pela possibilidade de
gerar uma imagem de proximidade com o ouvinte, além de gerar destaque a um gesto
em particular.
Foram aqui apresentados apenas alguns exemplos das possibilidades de
utilização do espaço de escuta, sendo que a escolha pela análise e composição de
configurações de projeção em multicanal forneceu um ambiente pertinente de
investigação uma vez que a música eletroacústica baseia-se, juntamente com outras
possibilidades, na exploração desta abordagem de apresentação do material artístico.

1.2 – Uma Escritura do Espaço

Uma problemática importante emerge quando se pensa o espaço como função


expressiva na composição e parâmetro composicional na música eletroacústica. Se o
espaço for concebido enquanto parâmetro composicional é possível estruturá-lo num
pensamento baseado em escritura, a discussão a respeito das possibilidades de
organizações espaciais, ou ainda, se existe uma escritura do espaço.
Antes de iniciar uma discussão a respeito da escritura do espaço é válido citar
a definição referente a composição sugerida por Menezes (1999, p. 61):

Dá-se preferência ao vocábulo escritura, mais conotativo de um


processo compositivo e portanto mais próximo do conceito relativo à
elaboração (...), em vez de meramente escrita, mais condizente com

! 71!
o aspecto superficial e caracterológico (gráfico) da apresentação de
um texto.

A respeito da escritura musical, Manoury (1990) aponta que na concepção


tradicional (no âmbito instrumental), ela significa algo além de um meio para fixar as
ideias composicionais em papel de forma que possam ser transmitidas aos
instrumentistas. Efetivamente a escritura tem outras funções além da citada e o autor
destaca algumas como o poder da abstração, considerado um aspecto importante.
O poder de abstração poderia ser considerado como a possibilidade do
compositor em trabalhar sobre objetos abstratos, ou seja, aqueles desvinculados do
seu contexto. Tal isolamento torna possível a geração de vários níveis de estruturação
para esses objetos, sendo um exemplo dado por Manoury um intervalo que,
independente de sua duração, registro, transposição ou timbre permanece
reconhecível como tal em uma escuta, propriedade que o torna um objeto abstrato,
podendo ser manipulado independentemente de um contexto.
Esta faculdade de abstração, segundo o autor, torna possível estabelecer vários
níveis de linguagem, o que caracteriza a riqueza da escritura na composição. A
existência deste poder de abstração está ligada ao fato da notação musical ser
fundamentalmente simbólica, ou seja, os modos complexos de execução instrumental
foram reduzidos a símbolos decodificáveis que podem ser lidos por qualquer
instrumentista. Ainda na perspectiva do referido autor, “esta redução da complexidade
física e um simbolismo simples e abstrato foi o fiador da edificação de construções
musicais extremamente complexas”46.
A partir de tais constatações, o autor aponta que a “escritura” pode ser
compreendida como todos os processos envolvidos na transformação de um material
composicional. Pode ser compreendida também como uma “catalisadora de ideias e
de conceitos”47.
No contexto da música eletroacústica o objeto de composição na maioria dos
casos não é redutível a uma notação e na perspectiva de Manoury (1990), a noção
objeto é “um conjunto sobre o qual aponta vários parâmetros de variações que são
responsáveis pelos diferentes níveis morfológicos que o constitui”48. A partir desta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
46
“cette réduction de la complexité physique en un symbolisme simple et abstrait a été le garant de
l’édification de constructions musicales extrêmement complexes” (Manoury, 1990).
47
“catalysatrice d’idées et de concepts” (Ibid.)
48
“un ensemble sur lequel pointe plusieurs paramètres de variations qui sont responsables des
differents niveaux morphologiques qui le constitue” (Ibid.)

! 72!
conceituação é possível supor que a transformação do material, e consequentemente
do objeto, é um fator dominante na música eletroacústica.
Ainda conforme Manoury, nestas transformações do material, muitas vezes a
fronteira entre a complexidade do objeto e de seu contexto pode ser ambígua, pois
quando um objeto é muito complexo, pode vir a tornar-se um contexto (ao invés de
ser participante deste), considerando a dificuldade em integrá-lo a um contexto
específico.
É necessário salientar que a noção de escritura no âmbito da música
eletroacústica não é aplicável da mesma maneira que na música instrumental, pois o
compositor de música eletroacústica, ao elaborar o seu material em estúdio,
imediatamente escuta o resultado das combinações de parâmetros, enquanto que no
contexto da música instrumental tal escuta imediata não existe. Na composição da
música instrumental o material é traduzido enquanto consequência da elaboração
escritural disposta na notação, enquanto no caso da música eletroacústica o material
será o ponto de partida para a composição (Menezes, 1999).
A concepção, elaboração e transformação dos objetos e seus contextos
envolvem diferentes técnicas e procedimentos podendo proporcionar a decomposição
do objeto sonoro, sendo possível isolar e manipular de maneira independente
diferentes parâmetros a serem trabalhados isoladamente. Tais operações constituem
isolamentos abstratos, contidos no conceito de escritura apresentado acima.
Portanto, é possível referir-se também a uma escritura na composição
eletroacústica a partir das considerações tecidas anteriormente. Neste caso, uma
escritura é responsável por estabelecer o comportamento dos objetos no discurso
musical eletroacústico, sendo que as idiossincrasias de tais objetos e a interação com
outros são elementos que constituem a totalidade do discurso (Manoury, 1990).
O espaço e a espacialização algumas vezes poderiam ser abordados como
objetos de elaboração abstrata, consistindo em fontes de fundamentos estruturais
importantes numa composição eletroacústica. A partir deste ponto de vista é possível
introduzir diferentes abordagens da influência do espaço na construção de uma obra
eletroacústica.
O espaço nesta abordagem composicional significa um elemento construído,
desde o nível mais baixo, na concepção do processamento dos eventos sonoros, até as
relações entre estes eventos e a composição de toda estrutura da obra. O ato da
construção dos aspectos espaciais da obra tem abordagens que variam conforme a

! 73!
intenção composicional que podem incluir desde a necessidade de valorizar certos
aspectos musicais por meio da articulação de movimentos, trajetórias ou distribuição
dos eventos sonoros, até o uso do espaço como foco principal para a estruturação
musical.
Sobre esta questão, Merlier (2006) considera que os meios tecnológicos de
projeção sonora (como o acousmonium49) tornam possível o manejo individualizado
das características espaciais do som como a posição, a velocidade, a trajetória, entre
outras. Para ele, estes meios de articulação do espaço configuram o que ele denomina
uma “situação instrumental” (o espaço manipulado numa performance) e ainda
“situações composicionais”, que indicam a possibilidade do espaço adquirir uma
função importante na estruturação formal da música. O espaço como um elemento da
dimensão formal passaria por uma representação e uma delimitação de estruturas,
definindo uma condição de escritura para o espaço. O autor, ao citar Duchenne, ainda
complementa:

Quando se fala em escritura do espaço ou de composição espacial,


isto significa que este parâmetro ou este “critério” é tratado com tanta
importância quanto os outros aspectos da composição que pode ser
registrado, fixo em um suporte. São aplicados sentidos
composicionais e sua privação faz que a obra seja incompleta50.

No caso da música acusmática, construída majoritariamente em estúdio, a


escritura é uma necessidade, pois se trata de uma música que difere daquelas baseadas
na performance, o que implica numa elaboração, numa retórica. Portanto, tal
abordagem se baseia no corte, na montagem, e na elaboração de objetos e, sendo tal
música baseada na escritura, a acusmática permitirá ao espaço ser “editável”,
passando a ter também uma retórica, a ser componível (Bayle, 2008).
No contexto eletroacústico, uma escritura do espaço pode ser feita tanto num
ambiente com mais de duas fontes de projeção sonora, quanto num ambiente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
49
O primeiro Acousmonium foi concebido por François Bayle e executado por Jean-Claude Lallemand
em 1974 (Merlier, 2006, p.18). Hoje em dia o termo é generalizado para qualquer “conjunto vasto de
alto-falantes de qualidades e cores sonoras mais variados, controladas a partir de um console através de
filtros espaciais e amplificadores” (Prager, 2012, p. 05).
50
“Lorsque l’on parle d’écriture de l’espace (terme introduit et définit par Patrick Ascione dans la
Revue L’Espace du Son I, voir bibliographie) ou de composition spatiale, cela signifie que ce
paramètre ou ce «!critère!» est traité avec autant d’importance que les autres aspects de la composition
et qu’il peut être inscrit, fixé sur un support. Il est investi de sens compositionnel et sa privation fait
que l’œuvre est incomplète.” (Merlier, 2006, p. 69)

! 74!
estereofônico. No primeiro caso poderão ser exploradas as possibilidades espaciais
mais variadas como trajetórias, paisagens, contrapontos, polifonias, profundidades,
etc., enquanto no caso da estereofonia a escritura está mais ligada à uma ilusão
espacial (decorrente da impressão de espaço em um contexto de projeção
bidimensional) que aborda diferentes aspectos do espaço em uma “tela sonora”
formada pelas fontes de projeção dispostas nas posições esquerda e direita.
Em uma obra originalmente estereofônica, que é espacializada em uma
situação de projeção em multifonia, em tempo real (espaço externo), este ato perde o
status de escritura e toma uma condição de interpretação espacial. Ou seja, uma
escritura espacial se caracteriza também por ser elaborada antecipadamente no estúdio
em tempo diferido (espaço interno), o que pode proporcionar ao compositor uma
maior possibilidade de virtuosismo e complexificação do discurso do espaço na
composição eletroacústica.
Para abordar a questão da construção e elaboração do espaço torna-se
necessário retomar o conceito de espaço composto, relacionado à organização feita
pelo compositor do material sonoro, pois trata-se do contexto onde é realizada a
confecção dos espaços virtuais51 (baseados nos espaços sonoros intrínsecos e
extrínsecos) e definidas as relações espaciais entre os elementos individuais que
constituem o material sonoro (Henriksen, 2002).
O espaço composto pode ainda ser relacionado à ideia de cenografia do
espaço, que, segundo Merlier, consiste na “concepção e realização global do espaço,
tanto do ponto de vista estético, como do ponto de vista técnico”52. A cenografia do

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
51
Por se tratar de uma construção, o espaço na música eletroacústica pode ser considerado um espaço
virtual, uma vez que este sempre será apenas o resultado de projeções, e não de emissões reais. Ou seja,
os eventos soados por meio de alto-falantes não se tratam de eventos emitidos por fontes reais, estes,
são na verdade eventos que serão projeções fora de sua realidade original (tanto no caso de fontes
naturais, quanto no caso de fontes imaginárias). Segundo Justel (2011), o aspecto virtual está ligado
mais aos mecanismos imaginários gerados na escuta. Porém, segundo a autora, este fato não implica
que este imaginário seja exclusivo do ouvinte. O compositor através usa de seu imaginário desenvolve
idéias musicais com aspectos virtuais
Os espaços virtuais possuem limites que serão definidos por extremos na localização física horizontal,
vertical e direções (apontados no espaço intrínseco e extrínseco), pelas freqüências altas e baixas
perceptíveis na obra (revelado pelo espaço espectral do evento sonoro, e pela informação derivada por
qualquer reverberação e reflexão ouvida na obra. Além disso, tais espaços sonoros virtuais são
dinâmicos por natureza, isto que dizer que podem ser transformados durante o curso da composição de
maneira que podem lembrar ou não alguma experiência espacial do mundo real (Henriksen, 2002).
p.52).
52
“Conception et réalisation globale de l’espace, tant du point de vue esthétique que du point de vue
technique” (2006, p.166).

! 75!
espaço lida com problemas de localização, perspectiva e movimento dos sons
individuais, além da clarificação da ideia musical concebida pelo compositor.
Um espaço composto ou uma cenografia do espaço é um aspecto que está
sempre presente em uma composição, porém a construção consciente e intencional
pode variar nas escolhas composicionais. Um compositor de música eletroacústica
que trabalha conscientemente aspectos espaciais, enquanto parâmetro composicional
para além da função ornamental, leva em consideração questões específicas
relacionadas ao espaço que influenciará a estrutura de sua obra.
A obra Gesang der Jünglinge, composta em 1954 (projetada em 4 alto-
falantes) por Stockhausen pode ser citada como exemplo histórico importante do
espaço tratado de uma maneira escritural. Para o compositor, ao posicionar as fontes
sonoras no espaço de maneira controlada é possível fazer uma aplicação mais
universal da sua abordagem da técnica serial integral (Stockhausen, 1957).
O manuscrito de um trecho desta obra (apresentado na Figura 20) fornece um
exemplo do uso escritural da espacialização, pois a projeção de cada alto falante é
planejada juntamente com os outros parâmetros composicionais.

! 76!
!
Figura 20 - Imagem de um trecho do manuscrito original da obra Gesang der Jünglinge de
Stockhausen. (Fonte: Smalley, 2000)

Neste trecho de Gesang der Jünglinge, ilustrado na figura a cima, as linhas 1 a


5 indicam as camadas que serão atribuídas a cada um dos alto falantes. Os números
em cor preta e os em cor vermelha indicam respectivamente as durações dos sons e os
grupos de som (Smalley, 2000). É possível notar que cada duração e cada tipo de
material foi cuidadosamente direcionado a uma canal específico, o que demonstra ser
uma abordagem escritural das projeções espaciais. Deste modo, nesta obra, o espaço
se encontra no mesmo grau de importância estrutural que os outros elementos
explorados na composição, exemplificando um caso de escritura do espaço.
Os aspectos discutidos anteriormente, referentes às abordagens espaciais na
composição musical, podem ser levados considerados na concepção da escritura de
sua obra, pois auxiliam numa busca por uma estética baseada na manipulação do
espaço. As concepções típicas da composição musical como articulação, coerência,
tensão e relaxamento, dissonância e consonância podem ser concebidas no âmbito do

! 77!
espaço, tanto no espaço do material quanto do espaço global da obra. Alguns destes
conceitos, relacionados a escritura do espaço, serão discutidos mais detalhadamente a
seguir.

1.2.1 – Coerência, Tensão e Relaxamento, Conflito e Consonância Espacial

A temática do uso do espaço na composição eletroacústica está incluída na


produção de textos, com reflexões acerca de seu potencial expressivo. Entre os
autores que discutem tal questão, Doornbusch e Mcilwain (2003) manifestam que
alguns compositores consideram o uso de parâmetros espaciais para fins semânticos
de grande importância na construção de uma composição bem-sucedida. Ou seja, o
espaço pode ter a mesma relevância que outros parâmetros musicais (como
frequência, amplitude, densidade, etc.) na confecção do material musical, bem como
nas decisões composicionais finais, o que torna o espaço um elemento estrutural
importante, especialmente na música eletroacústica.
Ao dar para o espaço um papel de parâmetro componível é possível assinalar
características próprias à organização do material musical como um todo. A ideia de
coerência espacial, dada por Doornbusch e Mcilwain (2003), pode ser aplicável a este
contexto, pois os autores consideram que, quando o espaço é pensado além do papel
de mero efeito para os eventos sonoros, qualquer coerência que ele apresentar deve
estar em conformidade com a coerência da peça como um todo.
Desta forma, os aspectos espaciais coerentes são aqueles que melhoram
interação estrutural dos elementos sonoros da composição global. Conforme os
autores, a coerência espacial é definida a partir de relações espaciais entre as fontes
sonoras num contexto composicional, sendo as relações o resultado das organizações
particulares de parâmetros espaciais que são conferidos pela disposição das fontes
sonoras e seus comportamentos.
Dentre as obras descritas neste trabalho, a coerência espacial pode
demonstrada em Human-Space Factory com as espacializações dos eventos sonoros
mais representativos na estrutura, pois os sons de máquinas e os sons humanos são
elementos importantes na estrutura. Nas escutas de tal obra é possível inferir que
todas as sonoridades (mesmo quando não reconhecíveis) parecem ser variações destes
dois tipos de morfologias.

! 78!
O uso de uma projeção mais difusa nas sonoridades de origem humana pode
servir de contraste a outro tipo de material musical: os sons das máquinas
espacializados em trajetórias definidas. Os dois tratamentos de espacialização
utilizados nesta composição são dispostos em alguns momentos em simultaneidade ou
em sequência, sendo que ambos são desenvolvidos e variados no decorrer da obra. Na
estruturação observa-se que em alguns momentos são confrontados como materiais de
contraste, e em outros momentos, agem em contraponto, quando dispostos em
sobreposição.
A coerência espacial é revelada quando as espacializações reforçam o
aparecimento das morfologias, bem como a relação de contraste e contraponto entre
elas, o que consiste em práticas estruturais importantes na composição. Em vários
momentos da obra é possível notar esta forma de uso da espacialização, como na
segunda seção da obra (de 4’39” até 8’29”). Neste trecho as trajetórias dos sons de
máquinas são muito perceptíveis e atuam em simultaneidade com uma textura mais
contínua que gradativamente se transforma em sonoridades de origem humana,
reforçando a presença dos dois tipos de materiais explorados e suas diferenças
espaciais53.
No caso da obra Vox V, a coerência espacial é demonstrada por meio da
espacialização que, reforça os aspectos metafóricos da obra. Em muitos momentos as
vocalizações servem como um “impulso” para a criação de contextos, como se fossem
a voz de Shiva criando todas as coisas (Williams, 1993). Um exemplo pode ser
apreciado nos primeiros minutos da obra (em 1’16”), quando na projeção, após um
gesto curto quase percussivo (que parece ter origem de som vocálico) aparece em
todos os 4 canais, segue-se uma textura mais alongada (de procedência também vocal)
que continua a ser difundida nos 4 canais ao mesmo tempo. A textura segue em
desenvolvimento sendo projetada da mesma maneira, até que em 1’33” os canais
traseiros deixam de projetar sons e os frontais aceleram velocidade das vibrações da
textura até o ponto de uma emissão vocal mais definida e mais gestual em 1’34”. A
vocalização que ocorre nesta marcação de tempo é difundida somente nos canais
frontais, servindo de impulso para um novo contexto sonoro que se inicia em 1’36”.
O novo contexto, mais uma vez é projetado em quatro canais sendo composto
por uma sonoridade contínua, que parece ser a emissão vocal da consoante “s”. O
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
Uma representação gráfica dos dois tipos de espacialidades explorados nesta obra pode ser observada
na Figura 6 que encontra-se no capítulo 1 deste trabalho.

! 79!
evento sonoro mais contínuo, ao invés de ser projetado em todos os canais ao mesmo
tempo, possui trajetórias que percorrem a quadrifonia, parecendo perder o padrão de
trajetórias em 1’42”. O evento segue difundido ao mesmo tempo nos quatro canais
aumentando sua densidade (e velocidade de vibrações internas) até que em 1’46,
outro evento sonoro de origem de sons vocálicos é emitido apenas nos canais frontais.
Novamente o evento serve de impulso para uma nova textura, projetada em
quadrifonia em 1’48”. Em outros momentos da obra ocorre esta prática de “impulso”
para um novo material a partir de sons vocálicos nos canais frontais, como por
exemplo em 1’58” e em 3’52”.
Uma interpretação possível do tratamento espacial descrito acima, seria
aspecto metafórico que o espaço composto desta obra reforça, como proposto
anteriormente. Cada uma das emissões vocais projetas frontalmente desfazem o
contexto sonoro anterior e impulsionam um novo adiante. Sendo assim, a
espacialização forma uma imagem que reforça aspectos estruturais de
desenvolvimento da obra, estabelecendo mais um exemplo de coerência espacial.
Em Locus, Cerberus e Indução todas as seções são definidas por aspectos
espaciais e a coerência espacial, se dá pelo modo como as projeções realçam as
escolhas composicionais de estruturação.
Na composição Locus cada uma das seções toma como referência atributos do
espaço, sendo que a conformação das espectromorfologias, bem como a
espacialização, representam tais atributos. A projeção sem localização precisa e sem
sentidos claros, definem a noção de “espaço vazio” da primeira seção, onde os
materiais sonoros são mais lentos e não variam muito entre os canais, propondo uma
noção de “existência” do espaço, ao invés de “personagens” que habitam um espaço.
Na segunda seção os sons de “existência” ainda se fazem presentes, mas já é
possível perceber trajetórias trilhando o espaço, representando um espaço percorrido.
Na quarta seção, as posições são bem marcadas nos canais, com sons de ataques mais
definidos, demonstrando a noção de posicionamento espacial. Por último, a projeção
de sonoridades em fluxo, que gradualmente aumentam em densidade de eventos,
representam um preenchimento espacial.
No caso de Cerberus a trajetória é a propriedade espacial que define as seções
da obra, sendo que as morfologias foram escolhidas em função de tal atributo
espacial, selecionado como delimitador da forma global. A espacialização é definida
por destinos e velocidades de trajetos, definidos anteriormente à escolha dos

! 80!
materiais. O parâmetro trajetória foi concebido como um objeto abstrato que sofre
transformação a partir de escolhas pessoais da compositora, sendo desenvolvido e
transformado como um elemento hierárquico principal na estrutura global da obra. As
morfologias dos eventos sonoros foram escolhidas em conformidade com as
trajetórias, com a intenção de proporcionar uma coerência com a ideia composicional
baseada na experiência espacial.
Em Indução as noções a escuta de interioridade e exterioridade do material
são os aspectos espaciais que delimitam a estrutura geral e o tratamento do material
reflete o “foco” de escuta que se deseja em relação aos eventos sonoros. Se o “foco” é
pautado na exterioridade dos eventos, serão priorizados aspectos perceptíveis mais
referenciais e que definem os eventos como objetos delimitados. Para isso são
selecionados sons com formatos delimitados, trajetos definidos, posicionamentos
claros.
Por outro lado, para representar a interioridade, os eventos escolhidos
possuem uma evolução temporal mais lenta, pouca ou nenhuma direcionalidade e um
formado difuso. Para esta situação pode ser usada a metáfora da observação de um
objeto por uma lupa, pois quando o objeto é observado a olho nu, são vistos sua forma
e o lugar que este ocupa no espaço. Quando o mesmo objeto é observado com uma
lente de aumento, é possível visualizar os elementos constituintes e como tais
elementos se relacionam.
Desta maneira, cada uma das seções representa duas perspectivas de escuta de
eventos sonoros: uma voltada para um conjunto de relações entre objetos sonoros
num espaço delimitado pela ocupação destes; e outra voltada para as relações internas
que compões objetos possíveis.
Na primeira seção a espacialização foi voltada para trajetos e posições
definidas e na segunda a projeção era mais difusa e sem direcionalidades claras. Tais
estilos de tratamento espacial de Indução tiveram a intenção de reforçar o princípio
estruturante desta obra, buscando estabelecer coerência espacial com os intuitos
composicionais.
O conceito de polifonia do espaço de Mary (2013) parece ser uma extensão da
noção de coerência espacial, referindo-se à evolução espacial simultânea e
independente de vários elementos. Para que possam ser percebidos enquanto

! 81!
polifonia, os elementos devem ser identificados individualmente, além de ter
trajetórias com rotas claramente distintas umas das outras.54
Contudo, o autor destaca que os movimentos espaciais dos eventos sonoros
devem ser coerentes com as particularidades morfológicas dos mesmos, para que os
espaços dos sons individuais sejam nitidamente identificáveis e distinguíveis dos
demais eventos. Ou seja, cada evento sonoro deve possuir espacialidades que se
destaquem claramente dos outros para que surjam relações de “contrapontos” de
espaços individuais55.
Numa composição que explora uma polifonia do espaço, a disposição
hierárquica dos eventos sonoros vai além da ideia de “figura-fundo”56, explorada em
muitas obras eletroacústicas. Neste caso são sobrepostas ações múltiplas, com vários
elementos que se destacam ao mesmo tempo57.
As figuras abaixo (Figuras 21 e 22) demonstram a representação de eventos
sonoros que são dispostos numa situação de polifonia de espaço. No primeiro caso
(Figura 21) é possível interpretar que os eventos não parecem possuir diferenças
morfológicas suficientes para que a polifonia espacial seja percebida com definição.
No segundo caso (Figura 22) os eventos sonoros possuem características tímbricas e
morfológicas distintas, de modo que a polifonia seja percebida mais apuradamente,
sendo possível evidenciar na escuta processos polifônicos mais complexos.

!
Figura 21 - Exemplo de polifonia do espaço pouco eficaz, materiais pouco diferenciados (gráfico de
Mario Mary, fornecido pelo compositor).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
Ibid.
55
Ibid.
56
Um evento, ou sequência de eventos é posto numa posição hierárquica principal em relação a sons
postos “ao fundo” numa menor importância auditiva.
57
Ibid.

! 82!
!
Figura 22 - Exemplo de polifonia eficaz (gráfico de Mario Mary, fornecido pelo compositor).

!
Além de uma percepção mais definida dos tratamentos sonoros complexos, é
possível afirmar que uma escolha e manipulação espacial do material, que satisfaçam
os requisitos da polifonia do espaço, também podem contribuir para uma percepção
mais “tridimensional” dos eventos sonoros. Isto significa dizer que em uma
abordagem polifônica do espaço, os eventos são percebidos em um contexto sonoro
que aparenta possuir também profundidade e altura.
O mesmo autor propõe ainda a noção de orquestração eletroacústica, que se
relaciona estreitamente com a noção de polifonia do espaço58. O conceito de
orquestração eletroacústica se refere à combinação espectral que tem como
finalidade formar um todo auditivo. Tal combinação lida com as concepções de fusão
e fissão espectral, onde fusão se refere à percepção de dados espectrais que são
ouvidos como um todo e a fissão, ocorre quando os componentes de um espectro são
percebidos individualmente se tocados em simultâneo, ou seja, não se integram na
percepção59.
Além da noção de fusão e fissão espectral, o conceito de orquestração
eletroacústica incorpora a ideia de timbre complexo, para tratar da superposição de
timbres com identidades distintas que são mais simples, denominados pelo autor
como timbres parciais. Além de identidades diferentes, estes timbres também contém

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
58
Ibid.
59
Id., 2011

! 83!
evoluções temporais espaciais próprias60. A imagem abaixo (Figura 23) ilustra uma
sobreposição de timbres parciais (com morfologias, contornos e frequências
diferentes).

!
Figura 23 - Representação gráfica que ilustra o conceito de timbres parciais de Mario Mary (Fonte:
Viel, 2014)

Esta visão quase instrumental da organização do material musical fornece uma


abordagem fundamentada na escritura, onde o espaço é um aspecto essencial, que
deve ser tratado com atenção para que os resultados de fusão, fissão ou polifonia
sejam bem definidos na escuta. Para tanto, a posição dos sons individuais que
compõem os timbres complexos pode gerar uma escuta tridimensional dos eventos
sonoros resultantes, enquanto as trajetórias, com direções e velocidades muito bem
definidas, proporcionam uma riqueza para a polifonia.
Aparentemente, para que a complexidade de uma polifonia seja percebida
como tal, os eventos sonoros em contraponto não devem se fundir na escuta, ou seja,
trata-se um processo de fissão que poderá ser tanto espectral quanto morfológica e,
consequentemente espacial, para que cada espectromorfologia do contexto polifônico
interaja de modo independente e contrapontístico.
Ao propor os conceitos de orquestração eletroacústica e de polifonia de
espaço o compositor apresenta a possibilidade de enriquecimento e de
complexificação do discurso musical eletroacústico. Sobre sua visão acerca do
desenvolvimento destas propostas conceituais, Mary (2013) comenta que:

O principal interesse que me levou a analisar, compreender e


formalizar os princípio da orquestração com meios eletroacústicos e a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Ibid.

! 84!
polifonia no espaço é o de poder estabelecer níveis altos de
complexidade polifônica de maneira controlada.61

Na obra 2261 de Mario Mary (Mary, 2013), o próprio compositor informa que
empregou recursos composicionais da orquestração eletroacústica e polifonia do
espaço, resultando que muitos exemplos de orquestração eletroacústica podem ser
dados ao logo desta composição.
A noção de fusão é muito aparente nos momentos onde se observa que a soma
de diferentes timbres de sons percussivos é percebida na escuta como um único
evento sonoro. Esta forma de ataque percussivo aparece em diversas situações na obra
(por exemplo em 1’00”, 2’14”, 3’02”, 3’09”, 3’34”, 4’07”, 4’20”). Os ataques soam
como se percutidos por algum material como uma baqueta de madeira ou metal,
sendo em sua maioria difundidos simultaneamente em todo os canais. Se ouvidos
separadamente, cada canal projeta um timbre diferente, porém, todos os sons
projetados possuem o comportamento morfológico muito semelhante, produzindo
uma escuta similar a um único som que ocupa todos os lugares. A imagem abaixo
(Figura 24) consiste em uma ilustração desta abordagem de projeção, ocorrida em
2261, de diferentes timbres que são percebidos como um único evento sonoro em um
processo de fusão espectral.

!
Figura 24 - Representação do processo de fusão espectral de timbres parciais na obra 2261.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
No original: “El principal interés que me llevó a analizar, comprender y formalizar los principios de
la orquestación con medios electroacústicos y la polifonía en el espacio es el de poder establecer altos
niveles de complejidad polifónica de manera controlada” (Mary, 2013).

! 85!
Estes ataques percussivos resultantes do processo de orquestração servirão de
pontos estruturais que separam trechos que possuem tratamentos específicos dos
materiais, em momentos futuros da obra.
Além da ideia de fusão, a projeção destes exemplos de material em vários
canais fornece uma percepção de um objeto sonoro com magnitude e área maiores em
relação ao mesmo objeto projetado em um número menor de canais. Como exemplo,
os ataques que ocorrem aos 6’36” possuem uma extensão menor, pois estes, além de
não serem os únicos materiais do trecho, são difundidos apenas em alguns canais, o
que diminui a área de projeção que compõe o evento sonoro.62
Logo na parte inicial da composição 2261 também é possível reconhecer um
trabalho de orquestração, quando aos 0’06” ocorre a repetição da primeira morfologia
apresentada na obra. Esta repetição é projetada apenas nos canais traseiros (canais: 5,
6, 7, e 8). Logo a seguir uma nova textura surge rapidamente nos canais 2 e 3, com
um timbre diferente daquela projetada nos canais traseiros, segue se fundindo de tal
maneira que se torna perceptível como uma reverberação da morfologia apresentada
anteriormente.
A polifonia do espaço também é muito evidente ao longo de 2261, pois muitos
momentos estruturais são constituídos pela sobreposição de eventos sonoros
heterogêneos, tanto em sua constituição tímbrica, quanto em seu aspecto espacial. Um
trecho característico que explora este recurso é o que vai de 1’18” até 2’24”, em que
ocorre uma sobreposição de gestos e ataques heterogêneos de 1’18” até 1’22”, o que
resulta em um gesto global que impulsiona o tempo para o momento seguinte,
iniciando o desenvolvimento da polifonia.
Estes elementos são separados temporalmente e projetados em diferentes
posições espaciais, sendo que ao fundo tem-se texturas contínuas, em camadas, que
servem de plano de fundo para esses ataques. Em alguns momentos aparecem gestos
com trajetórias circulares (exemplo em 2’00”) que se destacam na cena. Neste trecho
a predominância é do desenvolvimento dos eventos texturais e dos ataques espaçados
no tempo, mesmo que existam gestos contrapondo esta ambiência. Ou seja, a
polifonia aqui é pouco densa e marcada por uma ideia de tempo menos impulsionado,
realçado por pontos espaciais esparsos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
62
Alguns termos de qualificação de eventos sonoros individuais – como densidade, distância, posição –
aparecem na descrição das obras. Apesar de alguns termos serem auto-explicativos, tais conceitos serão
melhor desenvolvidos na seção seguinte deste trabalho.

! 86!
Outro exemplo pode ser encontrado no intervalo que vai de 3’06” até 4’07”,
sendo um trecho marcado por muitos movimentos internos, além do uso de diferentes
volumes e planos. Golpes percussivos de timbres metálicos interagem com gestos
circulares ou cíclicos (exemplo em 3’31”), além de atuarem sobre um evento sonoro
mais textural e movente com oscilações rápidas de altura.
A complexidade e estabilidade das interações entre os objetos sonoros que se
encontram em coerência espacial ou em polifonia do espaço, trazem a tona o
conceito de tensão e relaxamento espacial para a composição eletroacústica. A tensão
espacial é compreendida onde a apresentação das fontes sonoras é ambígua ao
fornecer uma sugestão de espaço, ou ainda de espaços múltiplos. Já o relaxamento é
ocorre num ponto estabilidade, onde as texturas possuem a articulação espacial
coerente, desobstruída e estável63.
A ideia de estado de conflito e de consonância espaciais, apontado por Barrett
(2002), também está ligada a uma escritura do espaço na música eletroacústica e
aparenta se relacionar com a proposta de tensão e relaxamento. Para a autora, num
ajuste dos objetos sonoros no espaço surge um conflito quando há divergências nas
informações espaciais dos objetos sonoros, ou seja, existe um afastamento da
realidade, o que a autora descreve como

um estado de conflito acontece quando a informação espacial


inerente a cada objeto sonoro está em conflito com a sua disposição
espacial (...)64.

Em contrapartida, a consonância espacial, ocorrerá quando não houver


conflito de informações espaciais65. Pode-se exemplificar com a situação onde um
som gravado é posicionado em uma paisagem que busca imitar o contexto real no
qual a paisagem foi gravada. Também quando um som desconhecido pelo ouvinte faz
sua trajetória ou está posicionado de uma maneira esperada a partir de seu
comportamento morfológico.
Smalley (2008) dá um exemplo que ilustra o conflito (que ele denomina
dissonância espacial) e a consonância. Apresenta o caso da uma busca de uma
apresentação intimista de uma fonte sonora e, se tal apresentação é difundida num
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
Ibid.
64
A state of conflict will arise where the spatial information inherent to each sound-object is
conflicting with their (...) spatial dispositions. (Barrett, 2002, p.319)
65
Ibid.

! 87!
espaço amplo, tem-se uma dissonância espacial, se a mesma fonte é apresentada num
espaço de escuta pequeno tem-se uma relação de consonância. Na concepção do autor
consonância e dissonância espacial não consistem em vantagens ou desvantagens na
elaboração da composição, sendo apenas ser consideradas diferentes, pois os seus
usos podem proporcionar diferentes efeitos na composição que podem ou não ser
necessários à coerência da estrutura global da obra.
Exemplos de consonâncias e conflitos espaciais estão presentes em todas as
obras analisadas, como um exemplo particularmente interessante de conflito espacial
na obra Dreaming in Darkness (de 0’44” até 1’07”). Este é um dos momentos da obra
em que os materiais referenciais gradualmente se transformando em mais abstratos. O
estiramento temporal (até 1’07”) de um som de ranger retira aos poucos o foco da
escuta da referencialidade de um gesto identificável, sendo possível voltar a atenção
para aspectos interiores desta sonoridade.
O contraponto espacial que decorre da projeção de cada som em diferentes
canais em ritmos diferentes e realizados a partir da sobreposição de sons de abertura
de porta em 1’06”, reforça a perda de uma imagem realista de paisagem. Sons de
abertura da maçaneta, de ranger e de fechamento de uma porta são dispostos muito
próximos no tempo, criando uma situação de ação não pautada na realidade. Ademais,
os ataques ou inícios de cada uma destas fases da ação (abertura e fechamento de
porta) são projetados em canais diferentes, revelando um exemplo de conflito
espacial.
Ressalta-se que neste exemplo o conflito espacial está numa relação de
coerência com a obra, uma vez que reforça a abstração gradual do material, o que é
um aspecto relevante no desenvolvimento estrutural da mesma.
Na mesma obra também é possível observar uma amostra de consonância
espacial, quando aos 0’26” sons de passos com um pouco de reverberação parecem
indicar que o caminhante está um pouco afastado do ouvinte, em uma área delimitada,
sendo que os passos seguem uma trajetória da esquerda para a direita até 0’32”.
Neste caso é possível fazer uma imagem referencial muito clara de uma pessoa
que caminha na frente de um observador, num trajeto identificável, configurando um
exemplo de consonância espacial, pois a sonoridade dos passos rumo a um objetivo
definido é um comportamento espacial esperado para esse tipo de morfologia.
As noções escriturais de conflito e consonância, bem como os de tensão e
relaxamento espacial também são frequentemente exploradas na obra Vox V. A ideia

! 88!
de conflito e de tensão pode ser percebida a partir do uso de trajetórias e de
transformações não usuais para uma vocalização humana, como a textura formada por
sons vocais processados em 1’16” até 1’31”. Tal textura sofre variações espaciais
panorâmicas que desconfiguram qualquer fala humana tradicional, ocorrendo também
que o caráter textural deste trecho gera uma expectativa de resolução, apresentada no
evento vocal-gestual em 1’33”.

1.2.2 – A Estruturação do Espaço

Ao produzir uma escritura espacial para a música eletroacústica, o compositor


pode pensar em hierarquias possíveis para seu material, que estejam relacionadas ao
espaço. Porém, Smalley66 alerta que em música eletroacústica não são explorados os
mesmos tipos de hierarquias estruturais que ocorrem na música tonal, considerando
que as estruturas sonoras que constituem a composição não são redutíveis à nota e ao
pulso. E o autor continua:

a música não é necessariamente composta de elementos discretos e


nem podemos encontrar essa medida (consistente) de densidade
mínima de movimento [e, tal material] (...) não pode ser
convenientemente segmentado, e de fato muitas vezes resiste a
segmentação67.

Ainda na concepção do autor, uma organização baseada em hierarquias na


música eletroacústica não é uma questão permanente, pois existem apenas níveis
estruturais que não necessariamente são executados de forma constante na obra. Neste
caso, as hierarquias não são tão claras na escuta e

encontrar os níveis ‘certos’ ou dimensões temporais para aplicar os


atributos desses conceitos deve permanecer a decisão do
observador68.

Assim, a função estrutural do material sonoro no contexto da música


eletroacústica, apresenta características específicas de escolhas composicionais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
66
Id., 1997.
67
“the music is not necessarily composed of discrete elements; nor can we find that (consistent) meas-
ure of minimum movement density (...) it cannot be conveniently segmented, and indeed often resists
segmentation” (Smalley, 1997, p. 114).
68
“Finding the ‘right’ levels or temporal dimensions to apply the attributes of these concepts must
remain the perceiver’s decision” (Ibid.).

! 89!
reconhecíveis numa escuta atenta. Quando se menciona material sonoro, é possível
estender o conceito de função estrutural para as propriedades espaciais da composição
musical.
Na composição eletroacústica, uma estruturação do espaço aborda a
organização de aspectos relacionados a movimento, crescimento, trajetórias,
posicionamentos, e outras possibilidades espaciais do material sonoro, ao longo do
tempo. A forma como tais aspectos contribuem para o desenvolvimento e para as
expectativas apontadas na escuta, definem suas funções estruturais.
Segundo Henriksen (2002), a expressão, a direcionalidade musical e as
expectativas geradas na escuta são aspectos estruturais que podem ser influenciados
pelos processos de movimento e crescimento dos materiais sonoros. No que se refere
ao espaço, o autor considera que uma das possibilidades de função estrutural é o
crescimento e diminuição da intensidade, o que confere um sentido de progressão ou
retração da obra, cabendo ressaltar que são processos de crescimento e diminuição do
material musical. Também ligadas ao movimento encontram-se as funções de
estagnação e latência da atividade da intensidade, sendo que o primeiro caso está
relacionado a um repouso, em oposição ao segundo relacionado com tensão e
expectativa de mudança.
O referido autor comenta ainda que o material musical pode formar camadas
de intensidade que se complementam ou se neutralizam, podendo ter significados
estruturais diferentes no contexto composicional. Essas camadas, podem atuar tanto
no nível mais detalhado, quanto em um nível mais global da obra, sendo que o espaço
está ligado a uma destas camadas de intensidade, juntamente com camadas de
intensidade de outros elementos musicais tais como o conteúdo espectral69.
As tensões estruturais e expectativas de mudança são aspectos revelados na
escuta e que estão presentes em qualquer composição musical. Nas obras compostas e
analisadas neste trabalho foram identificados tratamentos ou usos de aspectos
espaciais que reforçam momentos estruturais geradores expectativas de mudanças ou
tensões. Em Vox V ocorrem sons projetados apenas nos canais frontais, oriundos de
uma textura constituída de sons de gaivotas sobrepostos a um fluxo sonoro mais
granular como um drone não reconhecível. A partir de 1’15” outros materiais sonoros
são adicionados nos canais traseiros, gerando um aumento na densidade da textura o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Ibid.

! 90!
que parece proporcionar uma tensão estrutural, devido ao aumento de área ocupada
pelos sons projetados.
Além da adição de canais, a mudança de material parece também ter a função
estrutural de gerar expectativa. Observa-se que inicialmente a textura era marcada por
duas camadas perceptíveis (sons de gaivotas e fluxo sonoro) e gradualmente o
material começa a se fundir timbricamente. Uma sensação de tensão aumenta na
medida em que o material se transforma, tornando-se mais denso e compacto, além de
sofrer um aumento de intensidade.
A transformação ocorre até aproximadamente 1’16”, quando a textura que
proporciona um foco de escuta com atenção nas relações internas dos componentes,
se funde de tal modo que será percebida como uma emissão vocal reconhecida. Esta
emissão vocal é reconhecível e desvia bruscamente o foco da escuta do que é
intrínseco ao material para uma referência extrínseca, gestual, pautada no
reconhecimento. A gestualidade é marcada pelo movimento veloz do espectro e pelo
estabelecimento do formato de uma vocalização com contornos marcados. Esta
mudança brusca de orientação espacial gera uma espécie de cadência que delimita o
fim da primeira seção.
A nova seção (em 1’17”) possui uma abordagem espacial contrastante com a
anterior, que contava com material composto por uma paisagem reconhecível e
textural. Nesta seção, o material é tratado de um modo mais contrapontístico, onde
vários eventos sonoros heterogêneos, com diferentes trajetos ou crescimentos
interiores, interagem no espaço interno da composição. Mesmo quando os sons são
reconhecíveis, estão dispostos na configuração global relacionados a outros sons que
não constituem a representação de um ambiente reconhecível.
Em Surface a criação de expectativas que decorrem de espacialidades pode ser
encontrada aos 4’46”, pois no interior de uma polifonia de gestos sonoros um evento
em glissando ascendente surge e em 4’50” se torna o principal ponto focal. O
glissando continua em ascendência até 5’00”, gerando uma sensação de tensão, com a
expectativa de resolução. O glissando prossegue até um gesto explosivo (em 5’01”),
resultando em certa noção de cadência. Em 5’07”, depois da explosão, o ambiente
passa a ter um comportamento um pouco diferente dos anteriores, com gestos mais
alongados no tempo, e separados por distâncias temporais maiores, produzindo a
impressão de um esvaziamento do contexto sonoro.

! 91!
Nesta abordagem a sensação de espacialidade é obtida pelo espaço espectral,
que, por meio de subida frequencial, proporciona uma expectativa de “chegada” de tal
evento sonoro. A “resolução” da expectativa no gesto explosivo parece ter uma
função estrutural de transição para um contexto sonoro global mais “vazio”, devido ao
uso de uma densidade de eventos menor. A densidade, poderia ser pensada também
enquanto qualificador estrutural que gera uma percepção espacial, pois quanto mais
denso for o trecho, mais preenchida parece ser a cena espacial.
Algumas noções de expectativas de mudança apresentadas na escuta pelo
tratamento espacial em Human-Space Factory são fornecidas pelo aumento de
movimento interno, responsável por gerar expectativas e assumindo, deste modo, uma
função estrutural. O trecho introdutório inicia-se com uma textura em fluxo, em
crescendo, composta de duas camadas tímbricas: uma numa região frequencial muito
aguda e outra numa região mediana.
Em 0’05” é acrescentado, num plano focal mais fraco, uma camada mais grave
e mais gestual que tem o comportamento espectral mais ruidoso e em fluxo,
semelhante às outras camadas. Porém, tal evento possui aspectos gestuais marcados
por variações de intensidade em rápidos crescendos e decrescendo, assemelhados ao
comportamento de ondas. É possível perceber trajetórias neste evento, porém não
muito definidas, devido à sua composição espectral grave e ruidosa. É um material
aparece e desaparece com uma certa periodicidade na obra, sendo que estes trajetos e
o comportamento de tal evento fornecem uma ideia de movimento interno da textura
global.
Gradualmente a textura global cresce em intensidade e em velocidade dos
movimentos, marcados pelas variações de intensidade, tendo como resultado um
maior movimento interior de todo ambiente envolvente. O aumento de intensidade
fornece uma tensão estrutural que gera a expectativa de alguma resolução e a tensão
aumenta com a inclusão de outra camada de sons vocais estáticos numa região um
pouco mais grave do que a região de frequências médias (em 0’24”).
Esses sons vocais são ainda mais associativos do que os da região média,
devido à sua constituição frequencial. A seguir o crescimento da textura é “resolvido”
estruturalmente num decrescendo (em 0’30”) que resulta em novo som com trajetória
circular definida e morfologia que gera a associação com o movimento causado pela
manipulação de algum objeto metálico.

! 92!
Nesta mesma obra (em 2’00”) o contexto sonoro é formado pela sobreposição
de uma textura mais lenta e contínua e gestos de timbre metálico, semelhantes a
“pancadas” com algum objeto em estruturas de aço. As pancadas não parecem possuir
um padrão temporal, ocorrendo aleatoriamente, sendo que este comportamento dos
eventos se desenrola por alguns segundos. Em 2’11” o tempo gradualmente se torna
mais movente pela transformação e aceleração dos materiais, além da noção de
adensamento da textura decorrente do acréscimo de algumas camadas, o que fornece
uma escuta de preenchimento espacial.
As diferentes camadas da textura possuem movimentos espaciais e espectrais
diferentes entre si, fato que aumenta a tensão estrutural do trecho. Ainda que ocorra
um aumento de movimento, o trecho ainda se desenvolve com pouca velocidade, com
as camadas se movimentando nos canais, o que reforça um caráter imersivo. Alguns
eventos sonoros podem ser percebidos como originados de sons vocais, mas são
apenas sugestões, pois o formato dos eventos é diferente dos que são próprios de
vocalizações características humanas. Os gestos semelhantes a “pancadas” continuam
a ocorrer simultaneamente, mas com espaços temporais menores e aperiódicos,
reforçando a sensação de tensão.
Com um aumento rápido da densidade (em 2’37”), a textura global funde-se
num único gesto denso e mais opaco, “resolvendo” novamente a tensão estrutural
deste trecho. Tal gesto cresce rapidamente em intensidade gerando uma velocidade
que “empurra” o tempo para o próximo trecho.
Em sequencia, os dois ambientes (sons de máquinas e de humanos) vão se
sobrepondo em espaços simultâneos que crescem em intensidade e movimento, mais
uma vez causando tensão estrutural. Convém destacar que a distribuição da textura,
geradora da imagem da feira livre nos oito alto-falantes, valoriza a noção de espaço
tridimensional, resultando em uma maior verossimilhança com a realidade. Porém,
essa imagem não é totalmente realista, pois está estar sobreposta a outra espacialidade
marcada por uma textura contínua mais lisa, uma espécie de ruído de fundo. A
simultaneidade de espaços é bem perceptível no trecho que vai de aproximadamente
3’40” até 4’39”.
A tensão estrutural aumenta com o adensamento da textura e com o aumento
da intensidade dos componentes da textura, com as vozes gradativamente se fazendo
mais presentes, fazendo referência a uma paisagem real de uma feira. Tais vozes não
estão espacializadas de modo totalmente realista, contudo a referencialidade do

! 93!
material realça a imagem da referida feira, sendo que a referencialidade mais uma vez
aponta uma orientação extrínseca.
A sobreposição de diferentes vozes (palavras e vocalizações diversas) vão se
adensando até se fundirem em 4’39”, no foco de uma fala de apenas um homem.
Observa-se novamente uma mudança brusca no ambiente espacial neste trecho, pois a
fala é difundida mais fortemente que a textura global. O trecho poderia ser comparado
a um close-up repentino da imagem de um homem que se destaca na multidão em um
filme. O espaço deixa de ser de uma cena e passa a ser um espaço pessoal, fornecendo
uma noção de clímax estrutural que é reforçado por essa noção alteração de “foco” de
cena.
No movimento Innocentemente de Vox Alia é possível observar mais alguns
exemplos de funções estruturais fornecidas por aspectos espaciais, onde aos 13’15” o
som de grito de um bebê parece ser marcador de mudança de contexto estrutural. O
grito é projetado nos canais 6 e 7, assinalando o início de uma textura densa, análoga
a uma “multidão”, semelhante ao começo da obra. Os eventos heterogêneos,
moventes e energéticos se sobrepõem, repetindo a ideia da textura caótica encontrada
no início da obra. Tal textura contrasta com seção anterior, mais etérea e caracterizada
pela sobreposição de sons que parecem se fundir de maneira mais pronunciada do que
neste novo contexto. Cada camada que compõe esta “multidão” é projetada em um
par de canais, reforçando a heterogeneidade entre elas.
Em 13’58” ocorre um clímax estrutural, dado pelo aumento da densidade de
eventos e pela sobreposição de eventos gestuais e texturais heterogêneos, porém esta
tensão se desfaz gradualmente num decrescendo. Tal relaxamento é interrompido com
um elemento surpresa em 14’20” que consiste em um evento sonoro reconhecível,
proveniente de uma única fala de bebê. O som é projetado em defasagem rápida nos
canais 1 a 6, resultando em alternâncias espaciais ondulantes, o que reforça uma
espacialidade multidirecional.
Este evento sonoro gradualmente se desfaz num decrescendo de uma textura
contínua, servindo como reverberação da fala do bebê. Assim, a natureza do material
marca um novo contexto estrutural para obra, sendo que a forma de projeção dos sons
nos canais reforça a função estrutural de mudança de seção de tais eventos.
No movimento Furioso, ainda em Vox Alia, é possível também perceber o
tratamento espacial como um reforço de um momento de tensão estrutural, pois
aproximadamente aos 15’12”, um crescimento energético é realçado pela ascensão

! 94!
gradual de uma faixa de frequências configurando uma impressão de subida vertical,
promovida pelo espaço espectral. Essa subida gradual, além de fornecer uma
consciência de uma noção de altura física, também é responsável por gerar uma
imagem referencial de um veículo com trajetória ascendente tal como um avião ou um
foguete.
A altura ascendente segue perceptível até 16’12” onde há um adensamento e
aumento de energia na entrada de projeção dos canais 3, 4, gerando um momento de
tensão estrutural realçado pela espacialização. O acréscimo de canais de projeção
muda a percepção do ouvinte que vai de observador a um sujeito que sofre a
influência de forças energéticas, como se fora uma ação exercida neste ouvinte. A
textura dos canais 3 e 4 deixa de soar momentaneamente em 16’27” caracterizando
um recuo temporário da energia e em 16’37” um novo impulso energético é dado com
o acréscimo da projeção de novas camadas texturais, agora projetadas em todos os
canais de forma simultânea.
Neste momento, o timbre da textura global foi transformado em relação ao que
vinha sendo projetado nos canais frontais anteriormente. A projeção em todos os
canais fornece uma percepção associativa como a de uma “inundação” ou
“enxurrada”, provocada pela projeção em todas as direções ao redor do ouvinte. O
conteúdo tímbrico ruidoso desta textura também contribui para esta noção de
“enxurrada”. Observa-se que trajetórias bem definidas não são percebidas neste
momento, mas sim um movimento interno global, dado pela manipulação das
variações de intensidades nos diferentes canais e das variações espectrais internas do
evento sonoro. O impulso que gera essa “inundação” serve de elemento que conecta
as duas partes deste movimento da obra.
Tendo em vista o interesse da autora no tema, os usos espaciais dos eventos
sonoros como fornecedores funções estruturais foram perseguidos nas obras
compostas para trabalho. Em Locus cada seção (como elemento estrutural) é definida
a partir de um tratamento do material representando um aspecto de percepção
espacial. Na primeira seção, o uso variado de dois tipos de superfícies texturais serve
como elemento de “lembrança” da existência do espaço e as texturas são projetadas
em todos os canais, de modo a proporcionar ao ouvinte uma escuta imersiva como se
este estivesse posicionado no meio deste espaço “vazio”.
O uso de gestos sonoros foi um meio de representar um “espaço percorrido”
na segunda seção, onde função estrutural dos eventos sonoros é de fornecer a

! 95!
expectativa de um objetivo de chegada para os gestos, proporcionando ao ouvinte a
espera de um futuro ainda desconhecido. A escuta de um espaço neste contexto é dada
pela trajetória, enquanto característica essencial que delimita um gesto.
Na terceira seção, o posicionamento reconhecível nos canais é o aspecto
espacial que delimita um aspecto formal e a noção de “preenchimento espacial”
fornecido pelo adensamento do material, além da projeção imersiva de eventos
sonoros pequenos, é a característica espacial que tem a função estrutural de delimitar
a quarta seção.
Em Cerberus os casos de funções estruturais fornecidas por tratamentos do
espaço dos eventos são mais pontuais do que em Locus, como em 0’19” onde se inicia
a primeira seção que é um pouco menos energética que a introdução da obra. Tal
seção é caracterizada por uma direcionalidade temporal fornecida por gestos e a
marcação de um novo momento estrutural (em 0’19”) é dado pelo uso de um gesto
mais alongado onde uma superfície mais textural é ouvida. O evento sonoro parece
ser resultado das ações energéticas geradas a partir dos impulsos energéticos que
ocorrem na introdução. Como possuem direcionalidade perceptível, os gestos
utilizados proporcionam uma expectativa de movimento impulsionado para este
trecho e a noção de impulso fornece a consciência de movimento, tornando o espaço
perceptível.
Outro exemplo pode ser percebido por volta de 1’52” a 2’44”, com um
abrandamento de atividade gestual marcando o início de um trecho de transição para a
segunda seção. O período de transição é marcado pelo aparecimento de eventos
sonoros pontuais de ataques marcados e com reverberação aparente que se afastam
temporalmente no início. Cada ataque se encontra em alturas diferentes contribuindo
para uma delimitação de espaço espectral.
Em 2’40” é acrescentada à esta textura (de elementos percussivos) uma
camada de um som textural, derivada da família morfológica “nuvem frequencial”. A
nova camada percorre o mesmo caminho espacial da textura anterior, realçando o
caráter gestual da mesma. Esta soma de camadas proporciona um aumento de
densidade, gerando uma sensação de tensão estrutural e expectativa de resolução. A
trajetória da soma de camadas aumenta e “resultará” em novo evento sonoro da
família morfológica denominada tremolo (em 2’45”). Assim, mais uma relação de
disparo é identificada neste ponto, pois o trajeto da textura servirá de impulso para o
início do gesto em tremolo.

! 96!
Inicialmente os ataques que são espaçados no tempo e estão em localizações
diferentes nos canais, proporcionado uma sensação de os eventos “pairam” no ar, com
eventos sonoros pontuais espaçados temporalmente, gerando um estado
temporariamente estável e sem tensão. Gradualmente os ataques vão ficando mais
próximos temporalmente se sobrepõem, gerando um aumento de densidade, com
consequente aumento de tensão. Tal densidade é reforçada até o ponto em que a
escuta deixa de ser a de gestos pontuais e se funde em uma textura marcada por
superfície granular em 2’30”.
Os aspectos espaciais com funções estruturais, dados pelos comportamentos
dos eventos e/ou pela espacialização também são encontrados na obra Indução. Um
exemplo (já citado em outra situação deste trabalho) pode ser observado em 8’16”,
quando ocorre um grande aumento de densidade da textura decorrente da
sobreposição de grãos sonoros. Este aumento de densidade é mais intenso que os
anteriores na obra, configurando um momento de tensão estrutural. Os grãos
sobrepostos possuem grande reverberação, o que caracteriza um espaço com
delimitações, pois a reverberação indica uma imagem da existência de materiais
refletores para estes sons.
Uma noção de espaço delimitado, o aumento de intensidade e de quantidade
de grãos são tratamentos do material que parecem provocar a sensação de
preenchimento espacial, reforçada pela inserção de camadas de texturas em fluxo.
Este “preenchimento” espacial é um ponto estrutural de tensão que anuncia o final da
obra, sendo este assinalado por um desaparecimento gradual das partículas sonoras
que inicia-se em 8’47” e termina apenas com restos dos pequenos grãos em
pianíssimo no final da obra em 9’04”.
Além das funções estruturais do espaço, são selecionados perfis de
tratamentos que conformarão o aspecto espacial mais geral de uma obra
eletroacústica. Estas escolhas mais gerais podem ser denominadas como orientações
espaciais, sendo que duas delas se apresentam preponderantes nas composições
eletroacústicas: a orientação intrínseca e a orientação extrínseca. A orientação
intrínseca do material está mais relacionada à morfologia e a organização estrutural
do material, principalmente ao espectro e sua evolução, não apresentando referências
externas.
Esta orientação está centrada no espaço intrínseco dos sons (gerado por seus
comportamentos morfológicos e suas localizações) e suas relações com os outros. A

! 97!
orientação extrínseca se refere à situação onde os eventos sonoros e suas relações
implicam ou são associados a algo externo à sua constituição interna (Barrett, 2002).
Para Smalley (1997), orientações extrínsecas do material podem vir do não-
sonoro, pois os processos de movimento e crescimento não são exclusivamente
sonoros. São orientações baseadas em ligações com alguma ação física humana ou
uma experiência de movimentos da natureza, não sendo necessariamente ligadas ao
universo sonoro.
Na realidade, as orientações extrínsecas e intrínsecas não são totalmente
separadas, pois as características intrínsecas do material podem contribuir para uma
ligação extrínseca e uma obra pode priorizar mais uma das abordagem ou buscar um
equilíbrio ente ambas orientações.
Por se referir ao foco interno dos eventos sonoros, as relações espaciais que
têm a propensão a se alterar mais lentamente numa abordagem de orientação
intrínseca. O uso de sons não direcionais ou de ataques não muito claros são comuns
neste tipo de orientação, pois o ataque é um aspecto marcante na localização dos sons.
As localizações precisas podem gerar ligações espaciais extrínsecas ao material
sonoro, o que afastaria o foco nos aspectos intrínsecos (Henriksen, 2002).
Em obras com orientação extrínseca é mais recorrente o uso de
posicionamentos mais marcados, além de trajetórias bem definidas e sugestões de
causas (reais ou não). A disposição espacial dos eventos sonoros influencia ligações
extrínsecas, pois tais eventos são percebidos como objetos individuais, apresentados
com um “formato” sonoro posicionados em um contexto (Barrett, 2002). A
disposição de objetos em localizações fornece a imagem de uma cena, associada a
contextos conhecidos no mundo particular do ouvinte. Portanto, numa orientação
extrínseca, o foco da escuta se concentra prioritariamente em relações espaciais entre
os eventos sonoros e não variações intrínsecas espaciais e de espectro de tais eventos
(Henriksen, 2002).
Os dois tipos de orientação espacial foram encontrados nas obras estudadas
para este trabalho, contudo observou-se o predomínio de uma ou outra, definido o
perfil global das obras. Nas obras compostas pela autora as escolhas acerca das
orientações espaciais foram definidas no período pré composicional, pois objetivo das
composições foi de explorar o espaço como um princípio estruturante.
Em Indução a noção de orientação espacial foi uma escolha consciente, sendo
uma das primeiras na obra, considerando a intenção de explorar duas perspectivas

! 98!
aurais relativas ao movimento: a exterioridade e a interioridade. Conforme como
descrito anteriormente, a obra foi dividida em duas partes principais sendo que a
primeira explora aspectos do movimento associados a causas e consequências,
fornecendo uma orientação extrínseca. Tanto a escolha dos materiais quanto os
tratamentos espaciais aplicados buscaram proporcionar uma escuta baseada em
referências de causas exteriores. Foram explorados sons mais curtos, com ataques
bem definidos e comportamentos gestuais que indicam uma causa suposta que origina
os eventos, presumindo uma “ação” ou uma “força” geradora que é exterior à obra.
Na segunda parte da obra são explorados materiais que buscam representar a
escuta de um movimento interno de eventos sonoros, sendo utilizados de forma
predominante os eventos sonoros mais alongados no tempo e sem ataque ataques
definidos. Tais materiais tem o intento de fornecer uma sensação de que não existe
uma causa de origem para os sons e que eles se propagam por movimentos internos e
não por ações externas.
Nesta obra, a espacialização também reforça as orientações espaciais que
compõem cada parte da obra, como na seção que representa a exterioridade, onde
foram priorizadas as localizações mais definidas e trajetos espaciais delimitados.
Buscou-se uma percepção dos sons como se fossem “objetos” individuais,
“observados” pelo ouvinte. Na segunda seção, intentou-se uma projeção mais
equilibrada entre os canais que tem o visando de proporcionar uma escuta mais
envolvente, na qual o ouvinte está “imerso” no interior do acontecimento sonoro.
Uma orientação espacial extrínseca foi a opção geral na composição de
Cerberus, considerando que a manipulação de trajetórias foi a referencia estrutural,
configurando um contexto composicional que faz o uso predominante de gestos
sonoros. Portanto, a característica temporal é fortemente conduzida para a “frente”,
conferida por movimentos direcionais, sendo que os detalhes texturais são menos
importantes nos focos de atenção da obra.
Os eventos sonoros gestuais possuem formatos sonoros delimitados, bem
como posicionamentos e trajetos espaciais que inferem uma escuta voltada para uma
“observação exterior” de eventos, como se fossem “personagens” que constituem uma
cena de acontecimentos sonoros.
Já em Locus a orientação varia conforme a seção, sendo que na primeira o
material possui um desenvolvimento mais lento, trajetória difusa, poucos ataques,
além de uma projeção mais dispersa nos canais. É possível afirmar que nesta seção a

! 99!
orientação espacial é fundamentalmente intrínseca, decorrente de movimentos
texturais, pois o foco de atenção auditiva pretende ser a atividade interna dos
elementos que compõem a textura.
A segunda e a terceira seções (“espaço percorrido” e “posicionamento
espacial,” respectivamente) possuem predominância de uma orientação extrínseca,
sendo constituídas de movimentos gestuais marcados por trajetórias definidas e
causalidades inferidas de fontes imaginadas ou supostas, além de localizações claras
de eventos mais fragmentados.
Na última seção a noção de “preenchimento espacial” é representada por uma
textura granular, com elementos internos projetados simultaneamente em todos os
canais. Os grãos constituintes da textura tem o objetivo de proporcionar uma grande
agitação interior, porém não fornecendo uma noção de causa geradora. De forma
similar à primeira seção, os ventos sonoros parecem se auto-propagar por meio de
seus movimentos internos fornecendo a predomínio de uma escuta orientada ao
intrínseco do evento sonoro.
Na obra Vox Alia, analisada para este trabalho, as orientações espaciais
variam no decorrer dos movimentos, sendo definidas principalmente pela natureza
dos materiais. Em Innocentemente e em Parola Volante há uma predominância maior
da orientação extrínseca, marcada pela referencialidade direta dos materiais, além do
uso de comportamentos gestuais dos eventos sonoros.
Em Innocentemente, na seção inicial, os materiais não possuem hierarquias,
contudo são suficientemente heterogêneos para que os eventos não se fundam na
escuta como se fora uma textura homogênea. A sobreposição de sonoridades
independentes torna possível a identificação de eventos gestuais provenientes de
vocalizações de bebês. Na seção mediana do movimento também são apresentados
eventos reconhecíveis, porém espaçados temporalmente e em Parola Volante, a
exterioridade é definida por materiais predominantemente constituídos de falas
reconhecíveis e de eventos gestuais provenientes de transformações eletrônicas.
Em ambos movimentos os trajetos não são aspectos muito marcantes, mas as
camadas dos materiais, bem como suas relações contrapontísticas proporcionam
noções de profundidade e movimentos dos eventos, gerando experiências espaciais na
escuta.

! 100!
No movimento Furioso a orientação intrínseca é um aspecto marcante do
material, marcado por uma textura contínua e forte, que varia gradativamente no
tempo e não possui trajetórias e posicionamentos claros.
Em Giocoso é possível reconhecer uma orientação intrínseca nos momentos
em que são sobrepostas diferentes camadas de material mais contínuo, como por
exemplo a primeira subeção da obra (de 0’00” até 1’10”). Aqui as camadas se
comportam como “linhas melódicas” individuais, não distribuídas em trajetórias,
resultando numa escuta de um tecido sonoro complexo, de movimento interno e sem
fragmentação.
Ainda em Giocoso podem ser identificados casos de orientação extrínseca, em
trechos onde as camadas são projetadas em alternância espacial, como se fossem
“perguntas e respostas”, sendo possível reconhecer um exemplo em 1’11.
No movimento Amoroso de Vox Alia, encontra-se predominância no uso da
orientação extrínseca, destacada pela espacialização. A obra apresenta materiais
associativos de vozes femininas e masculinas, que são dispostos em planos separados
em alguns momentos entrecortados por um terceiro plano composto por sons
granulares e gestuais que atravessam e transitam nos oito canais, em percursos
aleatórios e rápidos (como o que ocorre no segmento que vai de 5’23” até 6’34”).
A identificação de dois planos separados e os movimentos definidos do
terceiro plano não proporcionam uma escuta homogênea, pois fazem referência a
contextos sonoros independentes, a alguns trajetos marcados, proporcionando a escuta
de uma orientação extrínseca. O terceiro plano mantém o mesmo comportamento
espacial praticamente em todo o movimento, resultando em uma orientação geral da
obra voltada para o extrínseco.
Além da opção por orientações intrínsecas e extrínsecas, existem obras que
primam por materiais sonoros identificáveis, como gravações ou simulações de sons
de ambientes reais. Uma abordagem composicional que prioriza o uso deste tipo
material é encontrada na composição de paisagem sonora (Truax, 2002, 2008 e
2012), suscitando na escuta sugestões de imagens reais diretas, que configuram um
reconhecimento de um espaço conhecido. Os espaços manipulados, em composições
com aspectos mais reais, são os que Henriksen (2002) denomina espaço referencial e
as obras que priorizam o uso do espaço referencial, segundo a reflexão do autor,
possuem uma orientação dita ambiental.

! 101!
Em obras com orientação ambiental, sugestões espaciais conhecidas revelam
diferentes dimensões do espaço representado na obra. É possível proporcionar ao
ouvinte diferentes “posições” virtuais de escuta dentro do espaço na composição, a
partir do modo de gravação do material efetivado pelo compositor. Além de diferentes
dimensões, o compositor que dá preferência a uma orientação ambiental, pode ainda
dar um novo contexto aos sons reconhecíveis, proporcionando uma escuta mais
surreal, ou até mesmo irreal, como aponta Wishart (1986).
Ressalta-se ainda que os sons reconhecíveis possuem um comportamento
específico, podendo ressaltar seus aspectos intrínseco ou extrínseco, conforme sua
relação com os outros sons. Porém, tais orientações podem ser mascaradas pela
semântica do material sonoro gerada por seu reconhecimento (Henriksen, 2002).
Pode-se considerar que a orientação ambiental seja uma situação particular de uma
orientação extrínseca, pois o material referencial proporciona na escuta uma
comparação dos eventos sonoros com elementos que estão fora do mundo sonoro.
Dentre as obras analisadas Vox V, Dreaming in Darkness e Human-Space
Factory proporcionam alguns exemplos de orientações ambientais, com o uso de
materiais reconhecíveis, que podem gerar a imagem ambientes “reais” ou plausíveis.
Na composição de Vox V não parece ser predominante o uso de materiais
artificiais, sendo ressaltado o emprego de sons naturais, processados ou não. A
escolha deste material parece fornecer uma orientação espacial extrínseca, pois os
movimentos ou configurações espaciais estão baseados em variações internas mais
orgânicas, dadas pela constituição interna mais “natural” dos sons gravados.
Porém em alguns momentos é possível reconhecer uma orientação ambiental,
quando o compositor apresenta eventos sonoros que propiciam, na escuta, imagens de
ambientes reais. Na primeira aparição sonora (em 0’00”) os sons naturais de vento já
indicam a forte referencialidade do material, que por natureza já possui uma
espacialidade inerente.
Uma escuta predominantemente focada na referencialidade ocorre até
aproximadamente 0’33”, sendo possível perceber um ambiente externo onde o vento
(e ocasionalmente trovões) indicam a ação natural para existência dos sons. Todo
movimento interno dado por essa textura traz à memória um momento de chuva ou
tempestade, indicando uma imagem ambiental de tal momento. Outra imagem de
ambiente parece surgir com o uso de sons de trovoadas, além da chuva que é

! 102!
percebida tridimensionalmente através da quadrifonia (aproximadamente em 5’19”),
novamente fornecendo uma orientação ambiental.
Em Dreaming in Darkness os casos de orientação ambiental também são
fornecidos com o uso de sons reconhecíveis, porém não parecem configurar
ambientes reais, mas sim paisagens irreais, como em um sonho. A semelhança com
sonhos ocorre por não haver uma sequência de acontecimentos, como se dá num
ambiente natural.
No começo da obra é possível reconhecer uma situação de “sonho” quando as
imagens de ambientes mudam a cada abertura e fechamento de porta. No trecho que
inicia em 0’45”, é realizada uma alternância entre ambientes externos e internos, onde
as imagens de exterior e interior são obtidas pelo uso de reverberações provenientes
de construções das cenas em diferentes ambientes. Quando há pouca ou nenhuma
reverberação nos sons é possível identificar um ambiente interno com materiais não
reflexivos. Se estes sons possuírem maior reverberação indicam um ambiente mais
amplo. Em outros momentos é possível identificar ainda sons de passos que
aparentemente parecem pisar em pedras ou poças d’água, podendo indicar referências
de um contexto externo.
Ressalta-se que em Dreaming in Darkness a orientação ambiental não é
predominante, pois gradualmente os eventos sonoros vão se abstraindo e se tornam
não referenciais, adquirindo, em alguns momentos, um perfil mais rítmico e menos
morfológico. Portanto a orientação extrínseca predomina na obra, mesmo nos
momentos onde o material musical abstrato é utilizado, pois o tratamento rítmico
induz uma orientação extrínseca que repete na fragmentação dos materiais em tempos
marcados.
Uma variação de orientação espacial ao longo da obra é observada em
Human-Space Factory. Como descrito anteriormente, em alguns momentos são
apresentados materiais não reconhecíveis contínuos, sem posições ou causas
aparentes e em outros pontos são percebidos trajetos e posições definidas. Em alguns
breves momentos também são percebidas orientações ambientais.
Um exemplo pode ser observado no trecho que se inicia em 2’58”, onde uma
textura fraca e contínua dá a noção de um espaço pouco ocupado. Nesta parte da obra,
como em outros momentos, a evolução se dá através da interpolação de espaços
diferentes, pois um espaço caracterizado por uma textura contínua e em fluxo será
intercalado por um evento que representa um espaço movente e denso. Ao ouvir

! 103!
repetidamente a obra, constatou-se que se tratam de recortes em fragmentos de uma
textura maior.
Os fragmentos são apresentados periodicamente e a cada apresentação as
durações são ligeiramente aumentadas, permitindo a percepção de que se trata da
imagem de uma paisagem espacial mais complexa. Os eventos sonoros componentes
da paisagem trazem à percepção uma imagem de uma feira-livre, como descrito
anteriormente. Deste modo, esta paisagem, pode ser um exemplo de orientação
ambiental nesta composição.
Existem ainda obras eletroacústicas orientadas por um material baseado no
espaço espectral (Smalley, 1997 e 2007), onde a escritura espacial está baseada
principalmente na posição espectral do som. Para tanto, alturas, densidades e
perspectivas são alcançadas pela exploração do conteúdo espectral dos sons,
resultando em uma orientação espacial espectral.
Neste contexto, os intervalos, os usos de alturas definidas e o conteúdo
tímbrico são os principais princípios de estruturação, sendo que as noções de
localização e o posicionamento físico do material sonoro não assumem maior
importância na organização da obra (Henriksen, 2002). O fato de não haver
valorização do espaço físico não significa que não houve exploração espacial, pois a
noção de alto e baixo no espaço espectral é dada analogicamente conforme apontado
anteriormente.
Numa situação de orientação espectral, o compositor pode valorizar também
aspectos intrínsecos ou extrínsecos do material sonoro. Quando as composições estão
mais baseadas em alturas definidas, os aspectos extrínsecos podem ser mais aparentes,
enquanto no caso das explorações tímbricas baseadas nos espectros, orientações
intrínsecas podem ser alcançadas.
As obras 2261 e Surface são as que parecem se aproximar do conceito de
orientação espectral, dentre as que foram estudadas neste trabalho. Foi possível
observar o uso predominante de materiais irreconhecíveis, que não fornecem
referencialidades diretas. Em ambas composições a espacialização é um aspecto
importante, que define trajetórias, posicionamentos e delimitação de planos de
diferentes profundidades, resultando em um perfil mais extrínseco.
Em 2261 a abordagem polifônica prioriza o contraponto de diferentes trajetos,
bem como o uso de eventos sonoros com formatos e comportamentos heterogêneos.
Esta abordagem configura uma atenção ao movimento proporcionado pela relação

! 104!
entre externa “objetos” e não por um movimento interno de um único evento. O
mesmo ocorre em Surface, pois a obra é constituída predominantemente por
morfologias gestuais que interagem como “personagens” em um ambiente artificial.
Uma obra eletroacústica pode ter uma orientação espacial específica, mas não
necessariamente deve permanecer limitada a ela, pois o compositor de música
eletroacústica pode gerar espaços imaginativos ao integrar diferentes orientações em
seu trabalho. Tanto o processo de desenvolvimento de uma orientação específica,
quanto a transformação de uma orientação para outra pode gerar diferentes
experiências expressivas e significantes para o ouvinte. Portanto, uma escritura do
espaço pode proporcionar uma elaboração do material que valorizará aspectos
estruturais e artísticos, gerando uma escuta aberta a diferentes significações.
Além das orientações espaciais do material, podem se empregadas outras
estratégias de organização do espaço na escritura do espaço. Vande Gorne (2011)
denomina tais usos como níveis espaciais, apontando cinco possibilidades na
estruturação da obra eletroacústica: nível abstrato, nível estrutural, nível ornamental,
nível figurativo, nível arquetípico e nível madrigalesco. Os níveis propostos podem
ser usados tanto em situações de escritura como em situações de interpretação
espacial em concerto.
O nível abstrato, seria aquele onde a estruturação do material musical é
pensada a partir de figuras geométricas, movimentos, volumes, ou ainda planos. A
autora comenta que neste nível o espaço assume a mesma relevância das colorações
tímbricas numa orquestração instrumental.
Na obra 2261 encontra-se os conceitos de fusão ou fissão espectral são
explorados, numa implementação do conceito de orquestração eletroacústica. Esta
abordagem poderia ser citada como um exemplo de um nível espacial abstrato. O
exemplo mais direto de fusão consiste nos golpes metálicos citados anteriormente que
ocorrem em 1’00”, 2’14”, 3’02”, 3’09”, 3’34”, 4’07”. Nesta abordagem os canais
projetam timbres diferentes simultaneamente, ouvidos como um único eventos
sonoro, pois se fundem na escuta gerando uma imagem com uma área perceptível,
como numa figura geométrica. O tratamento de polifonia espacial empregado na obra
também revela o uso do nível abstrato, pois os trajetos e os comportamentos espaciais
são aspectos relevantes para a delimitação de planos e volumes.
O nível estrutural é definido pela utilização dos movimentos dos materiais
com a finalidade de destacar ou clarificar um momento específico da estrutura. Ou

! 105!
seja, é um nível onde o espaço é usado como elemento de valorização de aspectos
referentes à estruturação da obra, como as seções, as transições, etc.
Um caso do uso de nível estrutural para o espaço pode ser observado na obra
Locus, onde todos os aspectos espaciais foram pensados de modo a delimitar as
seções. Os aspectos espaciais foram explorados por meio da escolha dos materiais,
juntamente com a espacialização, gerando quatro contextos sonoros diferentes para
representar aspectos do espaço: “espaço vazio”, “espaço percorrido”,
“posicionamento espacial”, “preenchimento espacial”.
Quando um qualificador espacial (como a posição) é empregado como reforço
do material ou como um interesse específico, é definido o nível ornamental do
espaço, tendo a mesma função dos ornamentos da música instrumental. Vande Gorne
comenta que: “da mesma maneira que o mordente ou o trillo do século XVIII, o
movimento orienta a atenção perceptiva sobre um elemento (...)70”.
O uso de algum nível ornamental para o espaço é uma estratégia recorrente em
uma grande número de composições eletroacústicas, pois a espacialização é um
processo básico que proporciona aos eventos sonoros a noção de vivacidade. Um
exemplo de uso ornamental para espacialização pode ser observado logo ao início da
obra Cerberus. A primeira aparição sonora da obra é um evento sonoro resultante da
gravação de um objeto que é atirado e rapidamente é rebatido várias vezes, como um
movimento de “ricochete” de uma bola pequena. A espacialização de tal movimento é
feita num trajeto semicircular da esquerda para direita, saindo do canal 5 em direção
ao 6.
Esta espacialização poderia ser feita conforme o comportamento
espectromorfológico de tal evento, ou seja, a projeção seria executada em alternância
rápida entre os canais, simulando o ricochete do objeto. Porém, o trajeto semicircular
teve a função de gerar um impulso energético para as morfologias que seguem esta
primeira. Deste modo, esta trajetória tem a função de um ornamento ligando eventos
sonoros de modo a encaminhar o gesto inicial da obra.
A imagem abaixo (Figura 25) tem a função de representar o trajeto que
poderia ser esperado pela morfologia constituinte do evento sonoro descrito acima
(A), e o modo como foi espacializado (B). O modo de espacialização aplicado a este
evento fornece-lhe uma função de ornamento.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
70
“Tout comme le mordant ou le trille au XVIIIème siècle, le mouvement oriente l’attention perceptive
sur un élément (...)” (Vande Gorne, 2011, p.166-167)

! 106!
!
A B

Figura 25 - Nível espacial ornamental explorado no início da obra Cerberus. Trajeto esperado pelo
comportamento espectromorfológico do evento (A) e trajeto usado com função ornamental (B).

O nível espacial figurativo é definido como aquele que se baseia no


imaginário, no metafórico, sendo um elemento identificável que gera a percepção de
um espaço. Conforme Vande Gorne (2011), o imaginário recria um espaço com base
no reconhecimento e “muitas vezes um traço característico é suficiente para provocar
a imagem espacial”71. É possível afirmar que tal nível pode ser alcançado a partir de
uma orientação mais extrínseca ou ambiental do espaço.
Vox Alia é a obra estudada neste trabalho que mais explora este nível espacial,
pois o tratamento espacial nos níveis mais baixos e no nível mais global, cria uma
referência ao metafórico e ao imaginário.
Esta forma de exploração espacial pode gerar uma escuta associativa,
construída a partir do uso de materiais referenciais e abstraídos, sendo que Vande
Gorne também comenta que a obra Vox Alia é construída a partir da ideia de
“figurativismo”, revelado por meio do jogo de figuras espaciais, reforçando a ideia
que o espaço pode ser pensado como um elemento que intensifica a expressividade da
obra musical72.
Ainda conforme a autora, a obra foi concebida com a intenção de expressar o
espírito barroco dos afetos, por meio das configurações espaciais. O espírito barroco
referido pela autora está associado a questões relacionadas à expressividade, ao afeto,
à imagem e ao figurativismo 73. E na música eletroacústica

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
71
“souvent un trait caractéristique suffit à provoquer l'image spatiale (...)”(Ibid., p.167)
72
Id., 2002.
73
Ibid.

! 107!
o espaço considerado como parâmetro musical, permite também um
novo figurativismo que reforça o poder dos sons e a capacidade de
comunicação das obras que escapam à qualquer outro código ou
74
processos .

O uso de algumas figuras de espaço, tais como trajetórias circulares e


explosões revela o nível espacial arquetípico, que representa os arquétipos
amplamente explorados na música eletroacústica, principalmente aquela realizada em
multicanal. Os movimentos são equivalentes a modelos que, quando utilizados, dão
uma maior clareza numa comunicação ou num contexto (Vande Gorne, 2011).
A obra Surface fornece um exemplo de nível espacial arquetípico quando o
evento sonoro em glissando (em 4’46”) resulta em um gesto explosivo (em 5’01”),
reconhecido como um movimento muito utilizado em música eletroacústica, sendo
um efeito espacial de explosão após um crescimento de tensão estrutural, obtido a
partir da variação espectromorfológica.
Por último, Vande Gorne aponta um nível madrigalesco, que faz referência às
músicas polifônicas dos madrigais do século XVI. Tal nível espacial está baseado na
busca de um reforço expressivo com elementos externos à música (como um texto)
por meio do espaço. Trata-se da busca por uma expressividade abstrata ou ainda uma
comunicação direta. O uso da projeção de um diálogo em forma “perguntas e
respostas” num contexto em estéreo, poderia ser um exemplo muito simples de tal
nível75.
O uso do nível espacial madrigalesco pode ser encontrado na última seção da
obra Vox Alia (Parola Volante), onde a compositora utiliza apenas a projeção e
esterofonia para explorar um perfil polifônico para o material. Aqui a espacialidade é
reforçada pela sensação de camadas fornecidas pelo uso contrapontístico de eventos
gestuais, originados de fragmentos de falas de Pierre Schaeffer.
O uso da fala pode proporcionar um teor comunicativo justaposto à disposição
abstrata de uma polifonia, o que caracteriza um tratamento semelhante a uma
construção de um madrigal antigo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
“L’espace, considéré comme paramètre musical, permet aussi un nouveau figuralisme qui renforce le
pouvoir des sons et la capacité de communication des œuvres qui échappent à tout autre code ou
processus” (ibid.).
75
Ibid.

! 108!
Nos madrigais polifônicos do século XVI frequentemente eram dispostos
coros posicionados um diante do outro. A projeção em estereofonia de Parola Volante
poderia ser interpretada como uma representação de tal abordagem composicional.
O estilo espacial global, definido por Smalley (1997), também pode ser
considerado um parâmetro de estruturação do espaço na composição eletroacústica.
Quando durante toda a duração da obra existir apenas um tipo de espaço (como por
exemplo, um espaço madrigalesco), pode ocorrer uma definição espacial única.
Contudo, ao longo do tempo podem ser revelados aspectos de um espaço diferente,
introduzidos de modo gradual. Pode-se exemplificar com os extremos de proximidade
e distância que serão conhecidos conforme a evolução da obra.
Há ainda o estilo espacial dado por configurações espaciais múltiplas, no qual
os diferentes tipos de espaço não podem ser resolvidos num único ambiente, em uma
mesma obra. As diferentes configurações em uma obra podem se apresentar
simultaneamente ou alternadamente, sendo que a simultaneidade espacial ocorre
quando dois espaços diferentes podem ser percebidos ao mesmo tempo. Quando as
configurações se apresentam alternadas trata-se de a uma passagem espacial, onde as
passagens entre espaços podem ser repentinas, intercaladas (passagem interpoladas),
ou mais gradualmente fundidas76.
O conceito de perspectiva aural de Truax (2000) poderia ser considerado uma
extensão da ideia de estilo espacial global, pois para o autor existem modelos
normativos aplicáveis em abordagens estruturais de composição de paisagens sonoras.
Ainda que o autor faça referência especificamente à composição de paisagem sonora,
tais aspectos se mostram válidos numa escritura do espaço para qualquer composição
eletroacústica. Os citados modelos normativos referem-se às perspectivas aurais
abordadas em uma obra.
O primeiro caso da abordagem proposta por Truax é a perspectiva espacial
fixa, onde a estrutura da obra é determinada por uma série discreta de perspectivas
fixas. Neste caso o ouvinte experimenta o tempo através das relações entre os sons e
não por seu próprio movimento. Este parece ser o caso de um estilo espacial
composto de definição única, proposto por Smalley.
A seguir Truax menciona uma perspectiva espacial movente, em que o
movimento é a base fundamental do som, estendendo-se para os gestos e para as

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
76
Ibid.

! 109!
mudanças no nível macro da obra. O autor denomina ainda esta perspectiva como
jornada, a qual enfatiza a conexão suave de fluxos de espaço e de tempo. Trata-se de
uma ilusão de um ambiente movente, onde o ouvinte está inserido. Esta perspectiva
aparenta se relacionar com a ideia de um estilo espacial, composto por configurações
espaciais múltiplas, dispostas em sequência, mas com uma mudança mais gradual de
configurações espaciais.
O terceiro caso apontado por Truax77 é o de uma perspectiva espacial variável
que tem a ênfase num fluxo descontínuo de espaço e tempo. As composições que
valorizam esta perspectiva contam com formas de organização e apresentação do seu
material diversas de uma narrativa ou de mudanças graduais nas cenas auditivas.
Neste ponto de vista emergem as obras que usam como recursos uma mudança
brusca na perspectiva, resultando que não seja percebido um movimento real ou
plausível na escuta ou a apresentação simultânea de diferentes “cenários”. Esta
perspectiva também pode ser relacionada com o conceito de estilo espacial composto
por configurações espaciais múltiplas, sendo que tais configurações podem ser
dispostas em sequência – sem uma transição suave – ou em simultaneidade.
Na composição eletroacústica, uma proporção expressiva das obras explora o
estilo espacial, constituído por configurações espaciais múltiplas. A obra Vox V traz
um exemplo, quando o compositor muda de estilo espacial, tanto na maneira como
apresenta o material, quanto no uso metafórico da espacialização.
Podem ser observados momentos de projeção em estéreo de vocalizações,
interpretados como a representação de um contexto de espaço pessoal do grito da
deusa Shiva (em 1’34”). Os contextos mais contrapontísticos, que são projetados na
quadrifonia, geram outro contexto espacial que pode ser interpretado como a
representação metafórica da criação de todas as coisas (em 1’36”). Ressalta-se que
neste exemplo as diferentes configurações espaciais estão dispostas em sequência.
Em Human-Space Factory também é notada a exploração de um estilo
constituído de configurações espaciais múltiplas, com as escolhas de espaços em
alguns momentos simultâneos e em outros intercalados, indicando uma escolha
estrutural que delimita a forma global.
A obra Surface parece ser a única em que o estilo espacial global mantém uma
definição espacial única, pois ainda que existam momentos em que a orientação é

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
77
Ibid.

! 110!
mais intrínseca do que extrínseca78, a noção de ambiente permanece durante toda a
obra. As referidas mudanças de orientação fazem parte do desenrolar dos eventos que
caracterizam o ambiente, como se alguns personagens deste cenário saíssem
temporariamente e o ouvinte experimentasse apenas a presença e a natureza habitada
por tais personagens.

1.2.3 – A Experiência Temporal como Resultado de Abordagens Espaciais

Ao se discutir uma estruturação musical, é importante mencionar que esta é


constituída pela configuração do material sonoro no tempo e, numa composição onde
há uma escritura do espaço, o tempo toma um papel específico, pois a configuração
espacial pode definir o modo como tal parâmetro será percebido. Ainda que o tempo e
do espaço sejam dependentes em suas constituições, numa obra musical o tempo pode
ser moldado a partir do modo como o espaço é moldado na composição.
Smalley (2007) considera que diversas formas espaciais são temporais, pois
são processos dinâmicos em seus comportamentos, progresso e sucessão, sendo que
suas formas espaciais dão origem, no ato da escuta, a expectativas sobre a
continuidade, mudança ou rupturas, indicando um espaço e tempo.
Ao optar por uma estruturação baseada em espaço79, o compositor não é
forçado a segmentar temporalmente uma obra, podendo ter uma visão mais holística
das relações espaciais que definem sua estruturação. Ou seja, o espaço pode definir a
evolução temporal da obra, contudo o foco baseado no espaço não constitui uma
fórmula composicional, e sim mais uma possibilidade de potencial expressivo,
proporcionado pelas músicas difundidas em alto-falantes.
No contexto das composições eletroacústicas, Vaggione (1998) comenta sobre
uma escritura do espaço-tempo fracionada em diferentes escalas que vão desde um
nível microscópico (envolvendo espectros, por exemplo) até o nível macroscópico
que lida com figuras, texturas, etc. Para o autor, nenhuma destas dimensões é mais
importante que outra, e frequentemente elas se confundem numa composição. Assim,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
Um exemplo breve de uso de orientação intrínseca nesta obra pode ser observado nos primeiros 11
segundos da obra. Neste trecho o material é constituído de sons texturais contínuos e com poucos
eventos sonoros de formatos e contornos delineados.
79
Smalley (2007) neste texto aponta mais especificamente uma investigação baseada na escuta do
espaço, mas nesta parte do trabalho o foco está num estruturação espacial. Porém, no contexto desta
tese, do mesmo modo que um ouvinte pode focar sua atenção nos aspectos espaciais, acredita-se um
compositor de música eletroacústica também pode focar a estruturação de sua a partir de tais aspectos.

! 111!
numa composição onde se busca uma escritura do espaço, existem diferentes
dimensões espaciais a serem tomadas em consideração e a distinção entre elas
possibilita, segundo o autor, quebrar o paradigma da existência de um espaço único
numa composição.
Ainda para Vaggione,80 um espaço composto é desvendado numa condição de
descontinuidade, fornecida por uma coleção de diversos tipos de grandezas espaço-
temporais. Segundo o autor, outra condição do espaço composto é dinâmica, baseada
na articulação e na relação entre elementos que fazem parte do domínio macroscópico
da energia espectral. A partir de tal visão do espaço composto, nota-se que:

(...) o espaço não poderia ser considerado como uma dimensão


estática, reduzida à localizações unívocas, mas como um atributo do
som que se estende em planos móveis, planos sobrepostos onde
manifestam-se velocidades diferentes e variáveis (...)81.

Seguindo a perspectiva de Vaggione,82 um espaço composto, que na


concepção deste trabalho equivale a uma escritura do espaço, pode ser definido como
o fruto de relações entre o múltiplo e o singular, ou ainda, um composto de espaços
simultaneamente inserido num só espaço.
Estes compostos de diferentes escalas, ou dimensões espaciais, apontam para
diferentes abordagens dos aspectos temporais numa obra eletroacústica. Sobre a
questão temporal relacionada ao espaço, Nyström (2013), com base na obra de Lakoff
e Johnson, propõe que a orientação do tempo emerge na escuta da textura espacial83.
A orientação temporal mencionada pelo autor é conferida pelos processos de
movimento e de organização do espaço, sendo que o autor vai mais além, ao propor
que o ouvinte experiência o que é denominado como um “presente elástico”. Isto
implica em que o tempo vivido na escuta possui uma maleabilidade influenciada por
forças percebidas através de ações de atributos espaciais.
Na concepção de Nyström84, uma situação em que o tempo é expandido para o
futuro e para o passado em medidas iguais, devido ao uso de eventos ou de ambiente
espacial com uma característica mais estática, tem-se a noção de tempo transparente.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
Ibid.
81
“l'espace ne saurait être considéré comme une dimension statique, réduite à deslocalisations
univoques, mais comme un attribut des sons qui se déploient dans des plans mobiles, des plans
superposés où se manifestent des vitesses différentes et changeantes (...)” (Ibid., p. 163-164)
82
Ibid
83
Como apontado anteriormente neste trabalho, a textura espacial trata da articulação da topologia dos
materiais numa composição.
84
Ibid.

! 112!
Neste contexto, o tempo não conduz a obra para um futuro e o espaço é revelado por
uma situação de movimento muito lento, ocorrendo que e as formas sonoras e os
percursos de movimentos não são perceptíveis neste tipo de abordagem temporal.
Na composição Locus é possível indicar um momento estrutural em que é
explorada tal abordagem temporal. As morfologias compostas de texturas contínuas e
não direcionais na primeira seção (representando o “espaço vazio”) intencionam
proporcionar uma percepção da metáfora do tempo transparente.
A evolução lenta do material não fornece de forma clara uma expectativa de
futuro nem de passado dos acontecimentos sonoros, apenas de “existência” do espaço,
sendo que tal abordagem temporal parece ser uma estratégia de tratamento do
material favorável para este tipo de escuta.
Em alguns casos, o emprego deste tipo de abordagem é temporário, servindo
como transição ou meio de realçar algum momento específico da estrutura. Podes-se
exemplificar com o trecho iniciado em 3’18, de Dreaming in Darkness, onde o
ambiente é caracterizado por um desenvolvimento lento do material, que atrai o foco
da atenção para uma orientação espacial intrínseca.
A textura global contém inicialmente sons naturais (como rãs), que são
somadas a um ruído de fundo contínuo e sem variação frequencial significativa. A
dinâmica total deste ruído varia muito pouco tornando o tempo transparente neste
trecho, ou seja, sem uma evolução para o presente ou para o futuro. Este trecho que
conta com a esta metáfora temporal contrasta com o anterior que era mais movido e
mais gestual gerando uma suspensão de atividade que pode gerar expectativas de
mudança.
Em Human-Space Factory é possível notar um uso de tempo transparente
pautado em um tipo de material que gera uma espacialidade específica. A textura em
fluxo apresentada logo ao início da obra é composta de duas camadas tímbricas
diferentes, de evolução muito lenta, sendo a primeira mais aguda do que a segunda. É
possível fazer uma associação de um timbre vocal na camada mais grave, como se
fosse a vogal “a”. Porém, este som está “congelado” não caracterizando nenhuma
pronúncia vocal. A região mais aguda preenche um espaço espectral mais alto, que dá
a noção da existência de uma região espacial superior, como um “teto”.
A textura mais aguda é projetada com a mesma proporção em todos os canais
e a textura mediana varia em intensidade nos canais em diferentes tempos, reforçando
um aspecto de animação e de tridimensionalidade do espaço. Como este material não

! 113!
possui variações espectrais significantes, têm-se a impressão de um tempo estático,
possibilitando a referência com a metáfora do tempo transparente. A textura estática
também adquire a função de tornar perceptível uma “realidade” espacial, sendo que
tal espaço engloba o ouvinte, mas não fornece nenhuma “força” sobre ele, apenas
informa que este ouvinte habita o lugar.
Quando ocorre um movimento maior dos materiais e da textura como um
todo, o espaço sofre dilatação ou contração, podendo receber forças de deformação e
os aspectos espaciais dos eventos sonoros tornam difícil a percepção de um presente
imutável (Nyström, 2013). Neste tipo de abordagem, os materiais exercem uma força
sobre o ouvinte e o conduzem a um contexto, como se fora “empurrado” a um novo
lugar ou ambiente. Esta condição o tempo é sentido como uma pressão sobre o
ouvinte é denominada pelo autor como a metáfora do tempo como força movente85.
Na segunda parte de Indução ocorre uma exploração de materiais texturais e
granulares em constante transformação e, em alguns momentos, existe um movimento
interno auto impulsivo que indica uma certa direcionalidade para o tempo. Entretanto,
as atividades mais energéticas desta parte da obra têm o intuito de representar forças
coletivas que proporcionam um movimento interno de um evento único maior, não a
observação de objetos individuais. Observa-se que, de uma maneira mais geral, esta
parte da obra não pretende gerar a noção de ações em eventos, mas sim a observação
interna da transformação gradual de um evento maior. Estas transformações
deformam a textura global e tem o objetivo de representar forças ou impulsos internos
que conduzem o tempo para frente.
A observação interna pretendida não tem a intenção de demonstrar uma
experiência temporal pautada na expectativa de futuro, mas sim de um presente mais
estático que, ocasionalmente, “anuncia” um futuro (por meio de impulsos
energéticos). Contudo a atenção sempre é atraída para situação do “agora”, pautado
no interior de uma textura. Este comportamento (de impulsos no interior da textura)
pode ser empregado como exemplo da busca de uma escuta predominantemente
pautada na metáfora do tempo como força movente.
Nesta abordagem, o uso predominante de eventos texturais e de evolução mais
lenta, não permite prever um objetivo de chegada próximo. Os movimentos são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
85
Ibid.

! 114!
perceptíveis neste trecho, sendo compostos pela animação interna dos elementos que
compõem tais texturas.
Quando os objetos possuem um contorno claro, ou ações gestuais
reconhecíveis, o tempo de passagem de acontecimentos é percebido, sendo que o
tempo se desenrola diante do ouvinte por meio dos objetos. O ouvinte não está
inserido no terreno onde a obra acontece, caso que o autor define como uma metáfora
de tempo como objetos em movimento (Nyström, 2013).
Todas as obras analisadas contêm momentos mais gestuais, nos quais são
identificados eventos sonoros com formatos mais delimitados e trajetos bem
demarcados, caracterizando o conceito descrito acima. Um exemplo pode ser notado
em Human-Space Factory, mais especificamente no trecho que se inicia em 5’07”.
Neste momento trajetórias definidas movimentam-se no espaço vazio, desocupado, ou
seja, sobre o silêncio.
São gestos constituídos de timbres metálicos, como se fossem engrenagens ou
roldanas de uma máquina, tendo cursos determinados que são unidirecionais
circulares ou transversais na octofonia. Os gestos são sobrepostos em contraponto,
mas as famílias tímbricas se assemelham, sendo reconhecidas por possuírem uma
superfície aparentemente dura e áspera, como objetos de metal.
Neste momento o ouvinte encontra-se circundado por movimentos em
sentidos mais variados, tornando-se um observador de ações, sem fazer parte delas. A
temporalidade deste trecho pode ser comparada então à metáfora do tempo como
objetos em movimento.
O movimento Parola Volante da composição Vox Alia, pode ser citado como
um exemplo da exploração predominante de temporalidades pautadas em objetos em
movimento. Os eventos sonoros usados neste movimento são em sua maioria
constituídos de gestos provenientes da gravação de falas humanas que foram
transformadas. Neste contexto o ouvinte também parece não ser um participante dos
acontecimentos, e sim um observador das interações dos eventos sonoros.
Estes materiais provenientes de falas possuem contornos espectrais definidos e
formatos passíveis de serem identificados, caracterizando-os como objetos individuais
e a relação entre tais objetos produz a “informação” sobre a passagem do tempo na
escuta. Assim é possível considerar que a noção da metáfora do tempo como objetos
moventes foi amplamente explorada neste movimento.

! 115!
Na obra Surface observou-se um uso recorrente da experiência temporal
baseada em movimentos de objetos individuais. A busca de uma noção de ambiente,
proposta pelo compositor, parece ser demonstrada pelos “personagens” que compõe
tal ambiente. Os “personagens” que “povoam” o ambiente na realidade são os eventos
sonoros gestuais, explorados ao longo de toda obra. Como foi descrito anteriormente,
o material sonoro é constituído de sons não reconhecíveis que interagem entre eles
com trajetos reconhecíveis, posicionamentos demarcados e planos focais
identificáveis no decorrer de toda obra.
A interação entre estes “personagens” delimita a passem do tempo em um
ambiente que não parece se alterar, alterando-se apenas os eventos sonoros presentes
neste contexto. Estas características indicam a exploração da metáfora do tempo como
objetos moventes, pois o ouvinte mais uma vez é apenas um observador, em uma
posição passiva de escuta.
Por fazer uso de trajetórias como um princípio estrutural, a obra Cerberus
também pode ser citada como um exemplo da exploração predominante de tratamento
do material que proporciona uma temporalidade baseada em movimentos de objetos.
A predominância gestual faz referência à noção do tempo como objetos em
movimento, no qual a temporalidade é percebida a partir da consciência da passagem
de acontecimentos decorrente dos eventos. Neste caso, a passagem de acontecimentos
é realçada por caminhos espaciais, que reforçam a consciência de movimentos
direcionais que pretendem caracterizar um tempo induzido para um futuro.
O mesmo ocorre na segunda e na terceira seção de Locus, bem como na
primeira parte de Indução, onde também são explorados materiais gestuais com a
espacialização pautada em trajetos e localizações. Cabe ressaltar que, apesar da
utilização do mesmo tipo de tratamento para os eventos sonoros, a aplicação dos
gestos (e o contraponto entre eles) teve o objetivo de representar aspectos diferentes
na textura. Em Locus a implementação de gestos é metafórica, representando o
percorrer e o posicionamento de um espaço, enquanto no caso de Indução buscou-se
demonstrar aspectos extrínsecos de movimentos que tornam o espaço perceptível.
Ainda na concepção de Nyström (2013), existe a situação em que o
comportamento dos sons provoca ao ouvinte uma sensação de deslocamento para o
futuro, o que o autor denomina como uma metáfora do tempo como observador
movente. Na proposta do autor, os presentes elásticos dos ouvintes são projetados para

! 116!
o futuro, fornecendo ao ouvinte a sugestão de que está viajando em direção a algo ou
algum lugar.
O trecho inicial de Dreaming in Darkness oferece uma experiência temporal
similar àquela baseada na metáfora do observador movente. São apresentadas na obra
imagens de diferentes espaços identificáveis, alternados e separados por sons de abrir
e fechar de portas, fornecendo a imagem de ambientes externos e internos. A cada vez
que ocorre o evento de fechamento de portas, o ouvinte parece se deslocar para uma
cena diferente da anterior.
Este deslocamento não é um ato plausível em uma situação natural, pois a
mudança de lugar em que o ouvinte parece se encontrar decorre em um intervalo de
tempo muito curto, o que seria impossível numa ocasião real. Portanto a sensação,
parece representar uma situação de sonho, na qual o tempo e o espaço são
experimentados em proporções diferentes, em relação ao que ocorre na vida real.
Deste modo, mesmo que numa que em uma situação onírica, neste trecho o ouvinte
experimenta o tempo por meio de seu próprio deslocamento entre espaços diferentes,
estabelecendo assim uma temporalidade pautada na metáfora do observador movente.

1.2.4 – Forma-Espaço, Espaço Geometria, Espaço Ilusão, Espaço-Fonte e Espaço


Ambiofônico

Após apontar os elementos básicos da escritura de um espaço na composição


eletroacústica, torna-se conveniente trazer algumas terminologias referentes às
diferentes abordagens espaciais na delimitação de uma composição.
A primeira conceituação é proposta por Smalley (2007), acerca da situação em
que o espaço é o foco da atenção na composição, expressa como forma-espaço86. Esta
noção concerne fundamentalmente a uma postura de escuta, podendo também ser
aplicada como um princípio de composição87. Este conceito implica na possibilidade
de focar o espaço como o elemento chave para a escuta e construção de um discurso
musical, o que torna necessário reorientar as prioridades de escuta e atenção. Essa

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
Do original Space-form (Smalley, 2007, p. 37).
87
Em textos anteriores, Smalley (1986 e 1997) adotava o termo espaçomorofologia para se referir à
“concentração especial na exploração de propriedades espaciais e as alterações territoriais (...) [e neste
contexto] (...) a espectromorfologia torna-se o meio através do qual o espaço pode ser explorado e
experimentado” (Smalley, 1997, p. 122, tradução nossa). Tal termo foi substituído e expandido para
“forma espaço” (Id., 2007).

! 117!
reorientação vai se basear na subordinação da evolução temporal aos aspectos
espaciais.
Para viabilizar a reorientação, Smalley propõe uma visão holística que será
melhor “observada” em zonas espaciais, com a experiência reduzida a um momento
presente que a memória pode apreender. Ou seja, a visão holística se refere a um
“exame” mais analítico, focado em “pedaços” de tempos que constituem formas
sonoras ou cenas que são capturadas pela percepção como um todo. Este “todo” é
constituído de relações entre partes, portanto a disposição temporal e as interações
entre os eventos terão a função de articular e moldar espaço dos sons e das relações
entre eles. Deste modo o espaço passa a ter um papel de formação, enquanto que o
tempo será subordinado a ele88.
A espacialização é um processo básico na concepção de uma obra que seja
baseada no conceito forma-espaço. Tal processo pode também ser pensado como um
guia para a estruturação, pois quando pensado como um objeto componível, a
espacialização pode adquirir diferentes abordagens.
Sobre esta questão, Vande Gorne (2002) sugere categorias que fazem parte da
prática da espacialização na música eletroacústica. Segundo a autora, se as projeções
em estereofonia ou multifonia89 forem pensadas como fontes manipuláveis, é
plausível pensar em combinações possíveis entre estas fontes, em diferentes planos de
profundidade, simultaneamente ou em sequência, consistindo em elementos
importantes na estrutura da obra.
As referidas categorias, que descrevem práticas de espacialização, passam a
ser elementos integrados na obra e, segundo a autora (2002 e 2008), fazem parte do
conhecimento do repertório eletroacústico, sendo definidas como: espaço geometria,
espaço fonte, espaço ambiofônico90 e espaço ilusão. As categorias são apresentadas
pela autora na discussão acerca da realização da interpretação espacial em concerto.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
88
Ibid.
89
O termo “multifonia” é adotado aqui neste trabalho para referir a objetos e eventos sonoros que já em
sua concepção são projetados em mais de um canal. Tal termo tem como referência expressão francesa
“multiphonie” adotada por Jean-Marc Duchenne (1998). Na concepção do autor a “multipista é o
suporte. A multifonia é o que significa. É possível usar muito bem a multipista sem compor/ouvir
multifonia (Ibid.)”, ou ainda, um objeto em multifonia “representa uma forma diferente de se
considerar o trabalho de concepção mais do que de realização” (Ibid., tradução nossa). Optou-se neste
trabalho por adotar o termo “objetos em multifonia” ao invés de “objetos multifônicos”, pois o termo
“multifônico” é na maioria das vezes associado à técnica de executar mais de uma nota em um
instrumento melódico.
90
Tradução nossa da expressão francesa ambiophonique (Vande Gorne, 2002, p.2). A palavra vem do
latim onde “ambio” significa círculo, envolver, dar a volta e do grego “φωνή” (phone) quer dizer voz.
(Lotis, 2014, p. 445)

! 118!
Contudo, neste trabalho optou-se por estender tais noções para as músicas
eletroacústicas que foram previamente espacializadas em estúdio.
O espaço geometria consiste naquele onde o compositor espacializa a obra
com o foco na exploração de planos e volumes. O material sonoro irá ocupar um
espaço de escuta por meio de cruzamentos entre linhas e planos diferentes, ou através
do percorrer de linhas horizontais, oblíquas, verticais e transversais, em superfícies e
volumes projetados nos canais de projeção (Vande Gorne, 2008).
Neste contexto, o espaço é entendido como um elemento musical que guia a
escuta e conduz a percepção na evolução no tempo da obra. Portanto, se torna
necessário prever a forma de utilização do dispositivo de projeção para uma melhor
organização e controle do espaço. Tal dispositivo deve obedecer as escolhas de
configuração espacial decididas durante a composição. Um arranjo ou escritura do
espaço que parte de fontes em multifonia gera um pensamento musical que liga o
espaço à forma e ao tempo91.
Se um compositor deseja conscientemente trabalhar com um espaço geometria
como foco composicional, sua atenção forçosamente se voltará para as relações
espaciais, subordinando a evolução temporal a essas relações. Esta postura consiste na
visão holística da forma-espaço, como proposto por Smalley.
Nas três obras compostas neste trabalho (Locus, Cerberus e Indução) as
escolhas espaciais forma priorizadas em relação a outros parâmetros composicionais,
ou seja, os materiais e os processamentos sonoros foram selecionados em
conformidade com os aspectos espaciais pensados previamente. Por estas razões é
possível afirmar que a postura adotada para a tomada das decisões composicionais
aproxima-se da ideia de forma-espaço.
A preferência em estruturar uma obra a partir do espaço surgiu como uma
estratégia de construção da obra particularmente expressiva, uma vez que focalizar
primeiramente parâmetros espaciais permite um olhar diferenciado sobre o modo
como serão escolhidos e processados os eventos sonoros.
Se elementos espaciais são considerados objetos componíveis, os demais
parâmetros (timbre, variação frequencial, intensidades ou durações) passam ser
tratados como subordinados a um aspecto anteriormente considerado elemento de
realce para outros tratamentos do material. O espaço passa a ser manipulado como um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
Id., 2002.

! 119!
objeto moldável e variável que poderá ser um parâmetro tratado isoladamente numa
composição.
Cada obra teve um perfil pessoal, com busca de elementos composicionais que
representassem ou simbolizassem os aspectos espaciais desejados e que delimitavam
a estrutura. A abordagem estrutural das obras pode ser resumida da seguinte maneira:
em Locus a delimitação formal é baseada em parâmetros espaciais que definem um
ambiente ou uma cena (o vazio, a ocupação, o preenchimento e o percorrer um
espaço); em Cerberus a delimitação estrutural definida a partir do estudo de um
aspecto espacial específico do material: a trajetória. Por fim, em Indução, a
construção foi baseada na exploração da natureza do movimento a partir de diferentes
focos de escuta: o intrínseco e extrínseco.
A exploração da polifonia do espaço na obra 2261 se assemelha a uma
abordagem de espaço geometria, pois a organização sistemática de trajetos e
espectromorfologias heterogêneas em relações contrapontísticas fornece a escuta de
volumes, formatos sonoros e planos perspectivos. Além disso, a disposição orquestral
dos timbres eletroacústicos também pode induzir a uma noção arquitetural, na qual
diferentes superfícies são constituídas pela soma de diferentes classes de materiais
sonoros.
A noção de espaço móvel também é um conceito ligado às escolhas espaciais
que interferem na concepção global de uma obra, sendo apontado por Vande Gorne
(1998) em outro escrito. Ao comparar conceitos espaciais das artes visuais com a
música eletroacústica, a autora demonstra que o espaço móvel é aquele que lida com
aspectos gestuais e de transformação do material sonoro.
Tal espaço pode ser posto em comparação a gestos da pintura, especificamente
aqueles que não tem relação com o real, como as pinceladas do artista Jackson
Pollock. São gestos ligados diretamente ao inconsciente, à imaginação, ou ainda, aos
sentimentos que não possuem uma expressão. Ao citar Dhomont, a autora mostra que
tal espaço na música eletroacústica seria como um “estudo cinético”92, no qual o
material é configurado por modificações de massas e densidades, dispersões ou
irrupções da energia, trajetórias, diferentes deslocamentos e velocidades.
A obra Surface é um bom exemplo da exploração do referido “estudo
cinético”, pois esta obra é construída predominantemente por materiais gestuais não

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Ibid.

! 120!
reconhecíveis, que remetem ao imaginário durante a escuta. Neste contexto, a
espacialização possui o papel fundamental de animar tais estruturas sonoras através da
definição de trajetórias e dos posicionamentos espaciais. Estes tratamentos reforçam a
noção de movimento, bem como a constituição de uma cena espacial composta de
formas e profundidades.
Na criação de Cerberus também foi intentado o fornecimento de escuta do
espaço móvel. Mesmo nos momentos em que os gestos são resultantes de eventos
sonoros identificáveis (como os sons de moedas girando) o foco estrutural é dado
mais pelos movimentos e interações destas sonoridades, do que para o
reconhecimento direto da fonte dos eventos. A finalidade das opções foi de que os
eventos escolhidos tivessem a função estrutural de realçar o movimento de
trajetórias, e não que as trajetórias servissem para que realçar eventos específicos.
A outra categoria espacial é o espaço fonte, que trata da determinação espacial
dos eventos individuais, sendo importantes os movimentos e causas do som, sendo
que as diferenças de cor e de potência dos alto-falantes também influenciam a
caracterização do espaço fonte. Este critério de espaço lida ainda com a trajetória
audível no espaço externo93, que é gerado por alguma causa inferida.
O espaço-fonte relaciona-se com a ideia de espaço vinculado à fonte94 de
Smalley (2007), para quem os eventos sonoros carregam um espaço com eles,
especialmente aqueles que possuem, durante a escuta, ligação com alguma fonte
causadora de som. A informação espacial neste caso é transmitida pelo
comportamento da fonte em si. Ainda conforme Smalley, as espectromorfologias
produzem espaço através de sua ação, de seu comportamento95.
O autor considera que os espaços vinculados à fonte assumem importância
estrutural em obras musicais eletroacústicas, não apenas nas obras onde ocorre uma
ligação clara com a fonte, mas também em contextos onde a fonte é imaginada ou até
mesmo desconhecida, pois a interpretação será dada a partir do comportamento do
evento sonoro escutado96.
A projeção em multi-canais gera bons resultados na concepção do espaço
fonte, pois a espacialização proporciona a possibilidade de pontuar os sons com
ataques bem marcados para localizá-los (Vande Gorne, 2002). A localização precisa
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Id., 2002.
94
Do original “Source-bonded space” (Smalley, 2007, p. 38).
95
Ibid.
96
Ibid.

! 121!
contribui para a melhor percepção de causa possível dos eventos sonoros, sendo as
causalidades aspectos importantes que contribuem para realçar o pensamento
estrutural da obra.
As trajetórias resultantes das causas geradoras dos eventos sonoros também
são aspectos estéticos importantes do espaço fonte97. A exploração de tal espaço na
composição gera uma escuta onde os objetos são bem delimitados e, quando houver
uma textura, esta será mais carregada de relações gestuais.
Na primeira parte de Indução buscou-se explorar esta noção de causalidade
que define o espaço fonte. Foi mencionado antes que nesta obra foram escolhidos
materiais sonoros que representassem as causas e as suas consequências, sendo
utilizados gestos com comportamentos de ataques ou quedas para gerar a imagem de
causas e sons mais contínuos em efeito Doppler (ou variações deste tipo de
morfologia) para representar as conseqüências. Em alguns momentos, os dois tipos de
morfologias eram dispostos de modo que um servia de “disparo” para o outro.
Os momentos de vocalizações em Vox V também podem ser citados como
exemplos de exploração do espaço fonte. Em 1’16” uma vocalização projetada apenas
nos canais frontais servem de gatilho energético para um novo contexto
composicional mais polifônico que se espalha na quadrifonia. Conforme apontado
anteriormente, cada aparição de um gesto vocal nos canais frontais, parece ser a
metáfora do grito da deusa que gera todas as coisas, ou seja, cada vocalização é uma
causa identificada de um novo contexto. Além disso, o material reconhecível da voz,
também parece possuir uma causalidade suposta de alguma pessoa.
O espaço ambiofônico é um conceito que se opõe ao espaço-fonte, por se
tratar de um espaço no qual não se pode determinar de onde vêm os sons. Em tal
espaço o ouvinte estará imerso num ambiente difuso, pois o material provoca uma
“inundação” no ambiente de escuta98, ou seja, uma escuta “englobante” de um evento
sonoro. Lotis (2014) faz a seguinte comparação entre o espaço ambiofônico e o
espaço fonte:

se ambiofonia é a pronunciação inconsciente do ambiente em que


vivemos, o espaço fonte define o monólogo intencional e consciente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
97
Ibid.
98
Ibid.

! 122!
dos elementos ambientais, indicando sua localização e enfatizando
suas características99.

A projeção do espaço ambiofônico é configurada por alto-falantes que cercam


o público que devem ser dispostos com uma distância equilibrada entre eles, de modo
que não ocorra nenhum buraco acústico (Vande Gorne, 2002). É um espaço que
assume uma característica mais textural, onde pontos individuais não serão tão
reconhecidos em relação ao todo.
Smalley (2007) usa o termo circumspace100 para descrever características
semelhantes às do espaço ambiofônico, definido como um espaço que circunda e
envolve o ouvinte. O circumspace é a extensão de um espaço panorâmico que
abrange o ouvinte e pode proporcionar uma escuta da aproximação ou cruzamento
dos eventos sonoros em todas as direções, no qual podem ocorrem processos de recuo
e aproximação, fechamento e abertura, surgimento e desaparecimento de eventos
sonoros. Tais conceitos podem ainda ser expandidos para espaços compartimentados,
que por sua vez podem ser sobrepostos de maneira polifônica, promovendo uma
textura espacial mais complexa101.
Por serem planejadas para a projeção em multicanal, a maioria das obras
analisadas, em algum momento, fez o uso da ambiofonia. Um exemplo que parece ser
bem característico é início do movimento Giocoso em Vox Alia (de 0’00” até 1’10”)
que é composto pela projeção de diferentes camadas tímbircas e morfológicas que são
projetadas simultaneamente em todos os canais. Cada camada é constituída
predominantemente de eventos mais contínuos, sem fragmentação e com movimento
interno. A sobreposição gera um tecido complexo que envolve o ouvinte e as camadas
não possuem trajetórias ou ataques que remetem a uma causa. A continuidade e o
desenvolvimento gradual do material proporcionam, então, uma escuta imersiva de
um espaço ambiofônico.
Em alguns momentos do movimento Furioso (da mesma obra) pode ser
observada a exploração do espaço ambiofônico. Por volta de 17’48” ocorre um
adensamento textural decorrente da adição de mais camadas à textura anteriormente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
“If ambiophony is the unconscious utterance of the environment we live in, space-source defines the
intentional and conscious monologue of the environmental elements by specifying their location and
emphasizing their characteristics.” (Lotis, 2014, p. 445)
100
Neste texto optou-se por traduzir este termo, pois presumivelmente não existe uma boa
representação de circumspace na língua portuguesa.
101
Ibid.

! 123!
projetada apenas nos dois canais da frente sendo a adição feita também em mais
canais de projeção. A escuta resultante é mais envolvente e imersiva, com variações
espectrais internas que “passeiam” nos canais, dando a sensação de movimento
interior do evento sonoro.
Outros exemplos podem ser identificados em Locus e Indução. No caso de
Locus a amibiofonia é explorada na primeira seção (espaço vazio), onde se fez uso de
materiais texturais sem direção, sem ataques e sem trajetórias. No caso de Indução foi
explorada a noção de espaço ambiofônico na segunda parte da peça, que representa o
movimento interno de um evento.
O conceito de espaço ilusão aparece inicialmente em obras estereofônicas,
onde não há a possibilidade de distribuição das fontes sonoras em um ambiente
tridimensional. A estereofonia fornece uma noção de “perspectiva” sonora a partir de
uma analogia feita da estereofonia com uma tela de projeção “bidimensional”. Nesta
conjutura, as profundidades são reconhecidas através da manipulação das
características espaciais do material (Vande Gorne, 2002).
Trata-se de uma ilusão de profundidade de campo pela estereofonia, pois o
som não será entendido como um objeto real, mas como uma imagem. É possível
criar uma sobreposição de planos através das variações panorâmicas nos pares de
alto-falantes, bem como manipular os diferentes registros e calibre. Também é
possível, com a mesma manipulação de parâmetros, operar um movimento de
dilatação ou contração (Merlier, 2006).
Mas o conceito de espaço ilusão pode ser expandido, uma vez que
características ilusórias são exploradas também na composição em multifonia. Na
realidade, a ilusão explorada na composição trata-se mais de um aspecto da
percepção, ou ainda, “(...) é uma construção mental, uma projeção conceitual em que
a mente situa as fontes virtuais em termos das quais interpreta a experiência
auditiva102.
A ideia de espaço ilusão assemelha-se também à noção de espaço de
representação, também proposto por Vande Gorne (1998). Ao fazer o paralelo com a
pintura, a autora menciona também uma perspectiva “artificial” que dá uma ilusão de
profundidade, correspondendo a uma representação de um espaço real. Portanto, trata-
se mais de uma imagem sonora do que uma experiência real de um som e, ao citar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
102
“est une construction mentale, une projection conceptuelle au sein de laquelle l’espirit situe lês
sources virtuelles en termes desquelles Il interpète l’experiénce auditive.” (Risset,1998, p. 21)

! 124!
Bayle, a autora menciona que o efeito de profundidade representacional pode ser
alcançado por meio do uso de anamorfoses sonoras, de exageros de perspectivas, de
retardos ou acelerações103.
Um dos aspectos do espaço ilusão é o espaço perspectivo, concebido por
Smalley (2007). O autor também resgata o termo “perspectiva” das artes visuais para
se referir à representação de formas tridimensionais em um contexto bidimensional,
como no caso do espaço estereofônico. Assim, o autor define o espaço perspectivo
como aquele que revela as relações de posição, movimento e camadas entre eventos
sonoros, em um contexto de projeção em estéreo104.
O autor aponta ainda que, por meio da natureza das dos eventos sonoros e suas
relações (entre eles e o ambiente em que habitam), é possível identificar suas posições
e distâncias de uma maneira quase visual. E esta percepção é possível a partir de uma
colaboração transmodal105 entre o sentido visual e auditivo na experiência
cotidiana106.
Para Smalley, na estereofonia o espaço perspectivo pode ser dividido em duas
categorias: o espaço prospectivo e o espaço panorâmico. O primeiro se refere a uma
imagem frontal, que se estende lateralmente criando um espaço panorâmico dentro de
um intervalo de “visão”. Portanto, o espaço panorâmico lida com as extensões mais
laterais enquanto o espaço prospectivo está relacionado também com imagens de
distância e de profundidade. Estes espaços dizem respeito também às características
específicas dos eventos sonoros, à noção de compartimentação e ampliação de
ambientes dentro da estereofonia107.
O movimento Parola Volante da obra Vox Alia pode ser citado como um
exemplo da exploração do espaço ilusão, pois os movimentos, as profundidades, as
posições e os trajetos são percebidos apenas por impressões fornecidas pelos
materiais. Estas impressões fornecem a ilusão de experiências por meio das
transformações e comportamentos dos eventos sonoros. A constituição interna das
morfologias gera a ilusão de um espaço tridimensional, o que se poderia ser
comparado à observação de uma cena em tela bidimensional. O observador tem a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
Ibid.
104
Ibid.
105
Envolve o cruzamento diferentes modalidades de sensibilidade durante o processo perceptivo.
106
Ibid.
107
Ibid.

! 125!
consciência da existência de diferentes planos, mas não pode experimentá-los na
realidade.
De uma forma geral pode-se perceber que as categorias do espaço estão
relacionadas ao modo de uso do espaço na composição, sendo que o espaço
geometria parece pertinente à disposição dos eventos sonoros, portanto à ideia de
escritura espacial, enquanto o espaço fonte liga-se diretamente com o posicionamento
e movimento individual das fontes sonoras, fato que dará um caráter mais gestual à
obra. O espaço ambiofônico seria aquele em que todo o conjunto da obra resulta numa
escuta envolvente da obra, como se o ouvinte estivesse imerso no espaço da
composição e o espaço ilusão é aquele que é conectado com a ideia de uma imagem
do evento sonoro, onde um espaço aparenta ser tridimensional em um contexto de
estereofonia.
A consciência de tais abordagens no ato da composição gera uma reflexão
estética acerca da utilização do espaço como elemento importante na estruturação da
obra, gerando para o ouvinte uma experiência estética diferenciada de uma escuta
musical tradicional.

1.2.5 – Espaço/paisagem, espaço /metáfora e espaço/artifício

Em se tratando do espaço interno (aquele inerente à obra, anteriormente


concebido pelo compositor), Dhomont (1998b) aponta diferentes preocupações
espaciais que geram experiências poéticas particulares. O autor menciona um
espaço/paisagem, como aquele que se relaciona com um aspecto realista,
representando um lugar ou uma acústica com os quais o ouvinte se identifica.
O uso de sons captados pelo microfone fornece a matéria ideal para a
constituição de um espaço/paisagem, pois estes sons possuem uma espacialidade e
musicalidade particulares, que os ouvintes assumem como modelos de paisagens
sonoras108 que trazem suas conotações espaciais e descritivas já reconhecidas. Esta
abordagem traz um sentimento poético que está entre um reconhecimento da imagem
real dos sons gravados e a formação de imagens virtuais da escuta.
Esta noção de espaço/paisagem equivale a um espaço mimético, proposto por
Fischman (2008), como resultante das relações de percepção do som que se referem a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
108
Ibid.

! 126!
um ideal de ligação com fonte emitida e às substituições dadas no ato da escuta de tais
sons. A construção de significados por parte do ouvinte tem como base as
experiências cotidianas de escuta dos eventos sonoros reais.
Em relação ao material musical, Emmerson (1986) fala de dois tipos de
mimese do material musical: a “mimese tímbrica” e a “mimese sintática”, sendo que o
primeiro caso refere-se uma imitação direta do timbre de um som natural, enquanto a
mimese sintática é aquela que imita relações entre eventos naturais. Ou seja, a
gravação ou a síntese modelada de sons reais gera uma mimese tímbrica, enquanto
que as disposições e relações que constroem um espaço reconhecível gera a mimese
sintática. Estes discursos fornecidos essencialmente pelos materiais são influentes
numa confecção de um espaço mimético.
No primeiro caso de mimese sugerida por Emmerson, uma percepção de
espaço mimético é mais voltada para a espacialidade fornecida por eventos sonoros
individuais, sem necessariamente ser voltado para uma imitação de um ambiente real.
Quando uma imagem é gerada na consciência, tem-se uma referência a uma
forma, a uma profundidade, ou a uma disposição espacial de elementos que são
atributos perceptíveis típicos do espaço. Portanto, se torna possível a alusão a uma
noção de espaço mimético, considerando que numa abordagem mais abstraída ou
abstrata, o ouvinte, no ato da escuta, poderá fazer associações a formatos de objetos,
trajetos de seres sonoros, ou a contextos ambientais que também possuem uma
espacialidade inerente.
A “mimese sintática” fornece uma percepção de espaço mimético quando a
escuta de eventos sonoros não identificáveis (juntamente com seus aspectos espaciais
inerentes) é associada com a imagem de um ambiente real devido às relações de
posicionamento e movimentos destes eventos. Estas relações espaciais podem
fornecer à percepção uma imagem de cena, na qual os comportamentos dos eventos
são comparados com uma situação natural.
O espaço/paisagem também pode ser comparado com a noção da composição
de paisagem sonora109 apontada por Truax (2002, 2008 e 2012). É importante
relacionar aqui o conceito de paisagem sonora como aquilo que caracteriza um certo
tipo de objeto e de modo de escuta. Murray Schafer publica, em 1977, o seu livro
Tuning of The World, no qual defendeu a influência de uma consciência de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
Nos escritos originais o termo é referido como soundscape composition (Truax 2002, 2008 e 2012).

! 127!
ambientação por meio do sonoro, tratando de um domínio interdisciplinar que tem por
objeto de estudo a percepção sonora de ambientes naturais e urbanos e as relações que
indivíduos têm com este ambiente (Merlier, 2006).
No que se refere a aspectos de criação, a composição de paisagem sonora lida
com o uso de materiais gravados em ambientes reais, tenho como diferencial em
relação outras formas de compor que usam sons gravados como matéria-prima, a
busca por manter um certo reconhecimento em seus sons (Truax, 2002). Ou seja, o
compositor leva em consideração a experiência ambiental do ouvinte como motes
composicionais110.
Conforme Truax (2012), a composição de paisagem sonora se encontra no
meio de um continuum que representa as relações musicais com as complexidades
exteriores. Em um extremo deste continuum estão as obras com a predominância de
um domínio interno das relações entre os sons em si, em detrimento de relações
externas à obra. No segundo extremo, a obra é essencialmente impulsionada por uma
abordagem mais contextual, isto é, o mundo real é o foco composicional.
Esta abordagem composicional extrapola o ato de catalogação dos sons de um
ambiente, pois um indivíduo ao gravar um certo contexto ambiental, primeiramente
deverá tomar decisões acerca dos aspectos que serão postos em evidência na
gravação, como os ângulos de captação dos elementos que compõem este ambiente.
Ou seja, o ato de gravação nunca será totalmente objetivo ou neutro, devido às
características próprias dos microfones, além da necessidade de escolhas estratégicas
em relação à perspectiva e à localização da gravação111.
Alguns compositores almejam criar um contexto musical imaginário a partir
do uso de sons processados de várias origens, sendo que este tipo de abordagem
também pode ser considerado composição de paisagem sonora, quando o resultado é
ouvido como uma paisagem coerente, mesmo que esta não seja real em seus
pormenores (Truax, 2002).
A partir desta discussão é possível fazer a comparação com o espaço/paisagem
apontado por Dhomont que consiste em uma postura composicional onde é
perseguida uma criação baseada na percepção de um ambiente que é reconhecido (ou
pelo menos, suposto) pelo ouvinte, devido à configuração espacial e à escolha do
material musical por parte do compositor.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
Ibid.
111
Ibid.

! 128!
Wishart (1996) apresenta uma noção de paisagem que é mais abrangente, pois
no contexto da música eletroacústica, segundo o autor, a noção de paisagem será
definida a partir da idéia de uma fonte que o ouvinte imagina como origem dos sons,
em um espaço virtual que pode ser projetado em uma projeção de música
eletroacústica. Um espaço virtual nem sempre é escutado como algo desconhecido,
uma vez que o ouvinte pode projetar a imagem de algum espaço acústico real112.
Este espaço acústico virtual realizado na música eletroacústica (especialmente
na modalidade acusmática) apresenta novas possibilidades criativas para o
compositor. O espaço acústico representado nessas obras musicais não necessita ser
real, o que torna possível ao compositor manipular de diferentes maneiras a percepção
de paisagem do ouvinte.
Por outro lado, a criação de espaços acústicos mais semelhantes a ambientes
reais pode ser obtida a partir do uso de efeitos sonoros que imitam sons reais, que
servirão, conforme Wishart como “pistas de contextualização” que tornam possível a
identificação, por parte do ouvinte, de uma paisagem particular113.
Uma pista contextual pode ser posta numa categoria de realidade, como a
situação de uma gravação real de um evento que será representado na obra. Existe
ainda a categoria das pistas contextuais encenadas, que envolvem a reprodução
artificial de um evento que não pode ser gravado por razões práticas. Existe ainda o
caso da pista contextual, gerada em estúdio, com simulações de sons reais,
conseguidos por tratamentos realizados pelo criador.
Todas estas situações geram para o ouvinte paisagens e ambientes que são
imediatamente reconhecíveis, ou que podem ser imaginadas a partir da comparação
de experiências de interação cotidiana do ouvinte com os meios em que habita.
Wishart114 também propõe que a percepção de paisagem é dividida em três
componentes que não são totalmente independentes uns dos outros: a natureza do
espaço acústico percebido, a disposição do objeto sonoro no espaço e o
reconhecimento dos sons individuais.
A natureza do espaço acústico é reconhecida na percepção dos objetos sonoros
por eles mesmos, ou seja, os objetos sonoros fornecem a informação sobre as

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
Ibid.
113
Ibid.
114
Ibid.

! 129!
qualidades de reverberação do espaço em que ele está inserido além da evolução
temporal destes dentro do referido espaço115.
A disposição dos objetos no espaço fornece pistas importantes para a
percepção da paisagem, o que pode fornecer informações espaciais realistas (quando
imitam ou reproduzem uma paisagem real), bem como informações surreais e talvez
até irreais. Estas duas últimas situações são ocorrem em contextos onde o compositor
explora possibilidades de criação de ambientes reais com objetos irreais, ou ainda
objetos reais em ambientes irreais, ou ainda ambientes irreais e objetos irreais116.
Em nossa vida diária conhecemos auditivamente um ambiente a partir do
timbre e do comportamento dos eventos sonoros, portanto o reconhecimento das
fontes sonoras117 individuais será um aspecto importante na percepção de paisagem. É
possível, por exemplo, desviar de um carro que se aproxima a partir da escuta de sua
variação de intensidade.
No contexto da música eletroacústica, é possível gerar um espaço acústico
virtual mais realista com o uso de sons reconhecíveis, que se relacionam de um modo
também realista. Se os mesmos sons são dispostos em posicionamentos e planos
diferenciados, o espaço virtual será completamente diferente do real, cabendo
ressaltar que “o reconhecimento da fonte não pode ser inteiramente separado da
disposição no espaço”118.
Deste modo, na concepção de Wishart, o estabelecimento, por parte do
compositor, de uma paisagem auditiva realista não se resume a montar objetos
sonoros reconhecíveis, considerando-se que a disposição espacial e temporal
influencia a capacidade do ouvinte no ato do reconhecimento de objetos individuais.
Tal fato pode ser tomado como um critério composicional nas músicas que são
projetadas em alto-falantes119.
Dentre as obras analisadas, as que fazem uso de materiais reconhecíveis
existem as que, em algum momento, parecem se aproximar da noção de
espaço/paisagem. Um exemplo particularmente interessante é o de Dreaming in
Drakness, onde não são recriadas imagens de paisagens reais, mas sim de paisagens
imaginadas, como se fossem sonhos. Os sons utilizados, bem como a espacialização

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
Ibid.
116
Ibid.
117
Ibid.
118
“recognition cannot be enLirely separated from disposition in space.” (Ibid., p.151)
119
Ibid.

! 130!
geram imagens diretas de uma cena que dificilmente ocorreria numa situação real e a
interpolação de ambientes externos e internos separados pelos sons de um abrir e
fechar de portas (a partir 0’45”) é o exemplo mais direto. O contraponto espacial (em
1’00”) (dado pela projeção de sons de portas em diferentes canais em ritmos
diferentes) também reforça a imagem de uma paisagem irreal de um sonho.
Em Human-Space Facotry tem-se mais um exemplo de espaço/paisagem (aos
3’28”), onde é apresentada a gravação de um ambiente te uma feira-livre brasileira, na
qual é possível gerar uma imagem na escuta de tal situação devido à composição dos
materiais sonoros, que consistem de várias falas diferentes e ruídos de fundo.
No trecho inicial de Vox V (de 0’00” até 0’33”) é possível também reconhecer
uma paisagem na imagem de um ambiente afetado por uma ventania, onde o
movimento interno dado por uma textura constituída de sons reconhecíveis que
remete à memória de um momento de chuva ou tempestade. Mesmo que projetados
inicialmente apenas nos canais frontais, uma noção de paisagem é fornecida pelo uso
de eventos sonoros reconhecíveis, bem como as variações espectromorfológicas.
Ao final da obra, na última seção que se inicia em 4’17”, Também é possível
perceber a projeção de um espaço/paisagem que segue até o final. Mais uma vez a
noção de paisagem é dada com o uso de sons de trovoadas, além da chuva que é
percebida tridimensionalmente através da quadrifonia (em 5’19” aproximadamente).
Diferente da seção inicial da obra, esta secção começa com um material de teor
associativo, mas com um caráter mais abstraído120.
Neste momento é possível perceber a referência de um som de trovão que está
esticado no tempo e o estiramento temporal de uma fonte sonora traz o foco de escuta
para aspectos mais internos desse evento sonoro, dando uma orientação intrínseca a
este pequeno trecho. Gradualmente, no decorrer da seção, o material vai se
transformando e se tornando mais referencial até que, no momento final da obra, uma
paisagem de um ambiente externo chuvoso é novamente reconhecido.
Diferente da abordagem do espaço como paisagem, Dhomont (1998b) aponta
também que existem espaços que são baseados na intuição e na percepção simbólica
do mundo. Trata-se aqui do espaço/metáfora, que lida com uma concepção mais
simbólica do espaço, sendo utilizado juntamente com metamorfoses sonoras para
construir um contexto composto por ideias virtuais que está além da realidade e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
Em referência a ideia de sintaxe abstraída de Emmerson (1986) apontada anteriormente neste
trabalho

! 131!
estabelecem seus próprios critérios. Este tipo de espaço, é distinto de um espaço
realista por mutações proporcionadas pelo mundo virtual do som.
Este espaço mais metafórico apontado por Dhomont se encontra entre dois
extremos de abordagem discursiva exploradas nas composições eletroacústicas, que
são o discurso mimético e o discurso aural (Emmerson, 1986). O discurso mimético é
aquele que busca evocar fenômenos extrínsecos às características internas do som em
si, utilizando materiais que imitem ou representem aspectos culturais e naturais do
mundo cotidiano (Smalley, 1996). O discurso aural refere-se ao que privilegia
aspectos internos dos materiais sonoros como elementos constitutivos de sua
estruturação (como, por exemplo, as organizações seriais do material sonoro).
Um discurso musical conterá uma sintaxe que lida com princípios
fundamentais da organização de uma estrutura musical e, na concepção de
Emmerson121, os materiais proporcionarão sintaxes que são abstraídas ou abstratas.
Uma sintaxe abstraída, terá como princípio organizacional as propriedades do evento
e padrões sonoros, impondo um confronto mais aural para o material musical, ainda
que seja totalmente possível sua utilização dentro de um discurso mais mimético. Em
sua obra, o compositor manter relações entre eventos sonoros gravados em um
ambiente, mas também pode abstrair o material por meio de transformações deste122.
Este tipo de sintaxe muitas vezes é explorado em composições que tratam o espaço
como paisagem, e que foi discutido atrás.
A sintaxe abstrata é proporcionada a partir de planejamentos ou decisões
referentes a estrutura, que serão projetados a partir de formas abstratas criadas
independentemente das qualidades perceptíveis dos materiais utilizados.
Portanto, o espaço/metáfora pode ser obtido a partir de uma abstração do
material gravado, ou ainda a partir de relações baseadas em um ambiente real, mas
com o uso de materiais abstratos.
A forma de exploração dos materiais, bem como a disposição dos materiais
em alguns momentos indica a conformação de um espaço/metáfora na obra Vox V. As
vocalizações que são projetadas nos canais frontais (como em 1’17”) servem de
gatilho para a criação de um novo contexto estrutural. Os novos contextos
frequentemente possuem sons reconhecíveis, dispostos em configurações irreais e que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
121
Ibid.
122
Ibid.

! 132!
poderiam ser interpretados como uma metáfora de destruição, ou transformação de
todas as coisas a partir do “impulso” fornecido pela vocalização.
Um exemplo interessante do uso metafórico do espaço e o material fornecido a
partir de 2’13”, onde o som de uma única voz é transformada gradualmente na
sonoridade de um enxame de abelhas. Inicialmente não há espacialização neste
trecho, sendo que os eventos são projetados unicamente nos canais frontais. A partir
do momento em que se identifica apenas os sons de abelhas a projeção se dá também
nos canais traseiros (em aproximadamente 2’24”). Em seguida, também de modo
gradual os sons de abelhas se transformam novamente num som vocal humano,
novamente projetado apenas nos canais frontais (por volta de 2’36”). Mais uma vez a
interpretação possível é que a voz que cria um novo contexto (o das abelhas),
voltando a seu estado anterior para a criação de um novo contexto que vem a seguir.
Em 3’53” é possível observar o mesmo tipo de metáfora, mas com uso de
outro material. Neste trecho, percebe-se a projeção (nos canais 1 e 2) de uma
vocalização breve que “ejeta” um novo contexto contrapontístico de diversas
sonoridades. Aqui são utilizados sons reconhecíveis, como os de um relinchar de
cavalo, ou sons de voz de bebês que são descontextualizados ou fundidos com outros
eventos sonoros. Tais sons são dispostos em contraponto gestual projetado nos quatro
canais. Este um momento de clímax devido à disposição polifônica do material,
também podendo ser interpretado como uma metáfora da transformação de todas as
coisas impulsionadas pela voz geradora da deusa.
O conceito de espaço/metáfora também pode ser identificado na busca de uma
imagem de “ambiente” pelo compositor de Surface. Neste caso, materiais mais
abstratos buscam gerar a representação de uma situação ambiental, mesmo que esta
não seja real. A interação dos eventos sonoros individuais e a constituição de planos,
bem como a disposição de tais eventos no espaço, podem fornecer a escuta de uma
passagem de tempo em uma cena virtual.
A composição Locus também parece fornecer um uso predominante do
espaço/ metáfora, através da escolha do material, bem como da espacialização. Aqui a
intenção foi de proporcionar experiências espaciais relacionadas a ambientes. Em
cada seção foram buscados meios diferentes de proporcionar a consciência de espaços
com atributos diferentes: o vazio, o movimento, a posição e o preenchimento.
A terceira abordagem apontada por Dhomont (1998b) é a de espaço/artifício,
como aquele proporcionado pela tecnologia de manipulação e transformação do som.

! 133!
Trata-se de uma abordagem mais artificial, que é desconhecida na escuta o que
proporciona uma experimentação de novas explorações de movimentos e relevos
sonoros. Ao usar espaços artificiais na música eletroacústica, o compositor lida com
aspectos da psicoacústica e da sinestesia que pode ocorrer quando, ao ouvir espaços
irreais marcados por trajetos ou formatos sonoros desconhecidos, o ouvinte pode fazer
associações a sensações que vão além do sentido auditivo (como a visão, ou
sensações proprioceptivas).
Este tipo de espaço pode ser conseguido num discurso mais aural, uma vez
que proporciona a escuta de espaços artificiais. Sua construção pode se dar ainda a
partir de uma sintaxe mais abstrata, quando suas relações espaciais não se referem a
aspectos auditivos reais.
A noção de espaço/artifício parece ter sido explorada nas obras que buscaram
uma concepção mais abstrata para os aspectos espaciais, são elas: 2261, Human-
Space Factory, Cerberus e Indução.
Em 2261, a aplicação dos conceitos de orquestração eletroacústica e de
polifonia do espaço propiciam a criação de contextos sonoros artificiais. A polifonia
em si já poderia ser considerada um aspecto escritural abstrato, onde são pré-
estabelecidos regras ou procedimentos essenciais para que se reconheça tal
abordagem.
Uma polifonia aplicada ao espaço, não seria diferente, pois é necessário
considerar, por exemplo, trajetos que sejam bem definidos de modo que não se
fundam com outros na escuta, pois, caso haja uma fusão, a percepção polifônica pode
ser perdida. Além da abordagem polifônica, o uso de material predominantemente não
reconhecível conduz à uma percepção espacial mais abstrata, artificial, reforçando o
reconhecimento de uma exploração de espaço artifício.
No caso de Human-Space Factory, existe a exploração de materiais
reconhecíveis, porém a disposição temporal sistemática dos materiais em alternância,
seguida de simultaneidade espacial, também fornece para a escuta um contexto
espacial irreal e artificial. Quando os materiais (sons humanos e de máquinas) são
alternados, estão dispostos em fragmentos de um evento maior, retirando qualquer
reconhecibilidade de tais eventos. E quando tais sons são dispostos em
simultaneidade, por ser tratarem de contextos sonoros muito diferentes, é gerada a
imagem de uma paisagem desconhecida.

! 134!
A cada aparição de um tipo de sonoridade parece existir um tipo de
espacialização específica: os sons de máquina, são predominantemente espacializados
em trajetos definidos na octofonia, enquanto que os sons humanos, em sua maioria,
são projetos de modo mais difuso e textural em todos os canais. Uma escolha de
modo de espacialização poderá produzir situações de experiências espaciais não
naturais que caracterizam um espaço/artifício.
Em Cerberus, a adaptação dos eventos sonoros a trajetos já previamente
definidos é um procedimento abstrato, podendo fornecer comportamentos irreais e
artificiais para os eventos, o que caracteriza uma exploração de um espaço/artifício.
Esta obra como um todo tem a intenção de proporcionar uma escuta espacial não
pautada na imagem de cenas ou ambientes, mas sim em uma disposição espacial
aparentemente não existente na vida cotidiana.
Em Indução a exploração do espaço/artifício é efetivada primeiramente pelo
uso de materiais majoritariamente irreconhecíveis. O isolamento da representação
“processos” que compõem um evento (o isolamento de “causas” e de
“conseqüências”) também pode ser um exemplo de tratamento artificial para os
materiais.
O foco no interior e no exterior de movimentos são atributos espaciais dos
eventos sonoros, sendo tratados também de modo isolado nas duas partes da obra, não
pretendendo gerar a imagem de cenas reais, ou plausíveis. Tais tratamentos buscam
fornecer duas perspectivas diferentes de um mesmo elemento: o movimento, e estas
perspectivas geram situações composicionais que não remetem a contextos extraídos
da vida cotidiana.
Até este momento do trabalho, foram explorados e exemplificados conceitos
espaciais relativos à estruturação de uma obra, bem como as escolhas composicionais
relacionadas ao espaço. A seguir, serão apontadas terminologias que se referem a
aspectos espaciais mais microscópicos da obra, tais como os atributos do espaço que
compõe os materiais processados em uma obra eletroacústica.

! 135!
! 136!
Capítulo 2 – A Descrição dos Aspectos Espaciais dos Eventos
Sonoros na Composição Eletroacústica

Neste ponto é importante relatar as diferentes separações terminológicas que


definem aspectos espaciais específicos na composição eletroacústica. Assim como
numa escritura instrumental, na qual existem separações entre diferentes parâmetros
(como o timbre, as durações, as alturas, etc), na música eletroacústica tal
parametrização também é buscada.
Porém, diferente de uma abordagem mais reducionista da escritura
instrumental (baseada na notação), os meios eletroacústicos lidam com uma realidade
sonora mais direta. Isto é dito porque o material usado nesta abordagem
composicional é, na maioria dos casos, um meio e um fim, sendo concebido enquanto
matéria e enquanto material. Deste modo, o nível de complexidade paramétrica pode
ser aumentada neste contexto, sendo que o compositor se depara com um leque de
possibilidades de manipulação da matéria prima que, ao mesmo tempo, implicará sua
articulação num discurso musical final.
Terminologias têm sido elaboradas por diferentes compositores e estudiosos
da música eletroacústica para a descrição das mais diversas morfologias sonoras,
tanto de aspectos perceptivos, quanto psicoacústicos. Autores como Schaeffer e
Smalley tiveram uma contribuição expressiva para a construção de ferramentas de
descrição do universo perceptual dos eventos sonoros, porém é um universo muito
vasto e as possibilidades de parametrização ainda estão sendo descobertas e
elaboradas.
Neste trabalho tem sido reforçado, em diversos contextos, que a percepção
espacial dos eventos sonoros é um parâmetro tão importante quanto os outros na
elaboração de música eletroacústica. A partir de tal constatação, pesquisadores e
compositores buscam ferramentas que descrevem os aspectos perceptivos espaciais do
evento sonoro, como uma ferramenta que auxilia na organização do trabalho criativo
da música eletroacústica.
Como contribuição na busca por terminologias, serão indicadas nesta tese
aquelas apontadas por diferentes autores que descrevem aspectos espaciais do evento
sonoro particular, bem como da relação entre eles. O termo parâmetro será substituído

! 137!
por “qualificador”, uma vez que a descrição é baseada nas qualidades espaciais do
evento sonoro percebido na escuta.
Definir qualificadores do espaço envolve a observação de diversos aspectos
que muitas vezes se confundem, portanto, alguns autores propõem categorizações ou
paradigmas para a análise, como estratégia de organização do pensamento descritivo
de aspectos do sonoro no contexto da música reproduzida em alto-falantes.
Especificamente sobre a descrição de qualificadores do espaço, Rumsey
(2002) propõe uma abordagem para avaliação da qualidade espacial baseada num
“paradigma baseado na cena”123. Em tal abordagem serão considerados atributos
espaciais descritivos, usando como referência aspectos tridimensionais do som. Nesta
abordagem o autor diferencia ainda “atributos espaciais” dos atributos “do espaço”,
onde o primeiro se refere à fonte enquanto o segundo se refere às propriedades das
salas ou ambientes de projeção.
O foco de descrição neste paradigma se encontra nos aspectos perceptuais dos
eventos sonoros e não dos aspectos físicos do sinal da fonte, sendo que Rumsey
propõe quatro elementos de foco, comuns na experiência da escuta: a fonte, o
conjunto, o ambiente e a cena124. Cada elemento está descrito em termos espaciais
que vão do microscópico ao macroscópico, apresentados em um contexto musical. O
microscópico concerne a atributos de elementos individuais dentro de uma cena, e o
macroscópico lida com os atributos descritivos da cena como um todo, ou
agrupamentos de elementos dentro dele125. A Figura 7 é uma representação gráfica
dos elementos de uma cena auditiva.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
Adaptação do original em Inglês: “a scene-based approach to spatial quality evaluation” (Rumsey,
2002, p. 647)
124
Ibid.
125
Ibid.

! 138!
Figura 26 - Representação gráfica dos elementos da cena auditiva (adaptação de: Rumsey, 2002, p.
658).

A divisão entre eventos microscópico e macroscópico na composição musical


auxilia na organização da descrição de tais qualificadores, sendo que um mesmo
qualificador poderá ter a sua abordagem tanto num evento particular, quanto num
evento macroscópico, como o conjunto ou a cena.
Além dos qualificadores específicos dos eventos sonoros e de suas relações,
existem critérios espaciais nos quais tais qualidades são descritas. A seguir estes
critérios serão descritos com maior detalhamento.

2.1 – Critérios do Espaço

Na música eletroacústica, a percepção do espaço é a soma de aspectos


metafóricos, proporcionados pela escuta das alturas e suas variações
espectromorfológicos, bem como pelos aspectos físicos, proporcionados na projeção
dos sons num espaço real. A vivência de percepção do espaço não sonoro também é
influente no entendimento e experimentação estética dos aspectos espaciais na escuta.
Nesta percepção, os espaços interno e externo serão identificados pelo ouvinte
no ato da escuta, sendo que dois critérios atuam na constituição dos mesmos
(determinados pela constituição espectral interna dos sons ou ainda pela relação entre
os canais projeção). Tais critérios são propostos por Jean-Marc Duchenne (Duchenne,
2005 e 1998) como impressão espacial e massa espacial126, fazendo referência aos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
126
Do original em francês: masse spatial e empreinte spatial. Termos do mesmo autor referidos no site
http://multiphonie.free.fr/ - acesso em 12/09/2013.

! 139!
critérios relacionados ao objeto sonoro, apontados por Schaeffer127 em seu Traité des
Objets Musicaux, publicado em 1966. Os critérios do espaço não se referem apenas
aos aspectos perceptivos, mas também aos de produção e fatura.
O primeiro critério, o de impressão espacial,alude às imagens de espaços
percebidas a partir das informações espectrais dadas na escuta, sendo que tais
informações podem ser produzidas apenas a partir de um alto-falante. Este critério
delimita atributos espaciais relacionados às variações espectromorfológicas do evento
sonoro tais como distância, variação de altura, imagens de lugares, distância, dentre
outros atributos, que não necessitam de mais de um dispositivo de projeção para a sua
existência.
A impressão espacial é um critério que tem sido usado frequentemente, de
modo coloquial, como um termo que “cobre tudo”, descrevendo uma ou mais
sensações espaciais” (Rumsey, 2002). Contudo, o conceito vai além da noção de
sensações, consistindo em um aspecto da “massa espectral”128, que fornece
informações auditivas, dadas por referências psicoacústicas que o ouvinte pode
interpretar como aspectos espaciais do som (Duchenne, 2005). Este critério é baseado
mais na experiência ou no metafórico, pois a impressão espacial lida com imagens129,
não revelando espaços geométricos, mas sim espaços metafóricos, lembranças de
vivências pessoais.
Na menção a espaços metafóricos ou de imagens espaciais, torna-se necessário
retomar a noção de espaço ilusão, comentado anteriormente no capítulo 1, pois a
questão da ilusão espacial é um aspecto chave na impressão do espaço. Mudanças na
natureza e na espectromorfologia do evento sonoro produzem “vida” interna para tais
eventos, que pode ser interpretada como ilusões de movimento ou ainda noções de
formas e tamanhos dos eventos sonoros, sendo que tais características são
relacionadas a aspectos espaciais.
O som enquanto fenômeno físico tem um movimento próprio, definido pelas
ondas sonoras, mas a interpretação auditiva relacionada com a percepção espacial do
mundo não-sonoro gera as ilusões espaciais de movimentos que não são idênticas
àquelas praticados na realidade por tais ondas. Desta forma, as impressões espaciais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
127
Os critérios do objeto sonoro definidos por Schaeffer são: massa, timbre harmônico, dinâmica, grão,
allure, perfil melódico e perfil de massa (Chion, 2009).
128
Para Schaeffer a massa seria o “modo de ocupar os campos das alturas” pelo som (Chion, 1983,
p.145, tradução nossa).
129
O conceito de imagem foi desenvolvido no capítulo 3 intitulado “O Entendimento do Espaço”.

! 140!
extraídas de pistas acústicas e do comportamento interno do evento sonoro são o
resultado de imagens de movimentos gerados no ato da escuta.
Numa composição eletroacústica, a impressão espacial que o evento sonoro
carrega pode ser produzida em tempo real ou fixa em um suporte, sendo que a
produção de impressões espaciais em tempo real ocorre quando a produção e
realizada no local de reprodução da obra. As impressões espaciais podem ser
originadas por fenômenos de reflexão, refração, absorção ou outros resultantes das
influências mútuas entre o ambiente e a onda sonora projetada durante a escuta (Pires,
2007).
O compositor pode criar obras para espaços de propagação específicos,
buscando um resultado espacial desejado, a partir das interações com o meio, porém
pode obter resultados espaciais indesejados, devido às impressões espaciais
proporcionadas pelo ambiente de projeção. Assim, se o espaço de projeção for
conhecido anteriormente pelo compositor, as impressões espaciais fornecidas pelo
meio de projeção podem ser uma ferramenta criativa para a composição. A geração de
eventos sonoros para salas específicas pode proporcionar ao ouvinte percepções
novas, inusitadas e imaginativas130.
As impressões espaciais que estão fixas em um suporte podem possuir
características naturais ou sintéticas131, pois se os sons que foram capturados por
microfones, em um ambiente real, possuem naturalmente aspectos espaciais
incrustados e reconhecíveis. As impressões são naturais pois contam com
características espaciais naturais, resultantes da interação do som com um espaço de
propagação real na qual o evento sonoro foi captado132.
Neste contexto, é possível conferir à forma uma imagem espacial a partir da
escolha dos microfones e o seu posicionamento ou deslocamento, tornando a
construção de uma imagem naturalista, que pode variar conforme a decisão do
capturador de som e do compositor. As impressões proporcionadas pelos sons
naturais trazem para a escuta um reconhecimento direto, que insere o ouvinte num
contexto ambiental conhecido, como uma floresta ou avenida. Já a impressão espacial
sintética pode ser construída artificialmente ou imposta à sons gravados ou criados em
estúdio, consistindo em um espaço irreal, produzido por manipulação. As impressões

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
Ibid.
131
Referência a Duchenne em http://multiphonie.free.fr/12/09/2013
132
Ibid.

! 141!
artificiais podem simular imagens de espaços naturais, ou ainda gerar sensações de
espaço que são desconhecidas133.
O segundo critério apontado por Duchenne é o de massa espacial, que é
baseado nas relações dos sinais que são projetados, no mínimo, em dois alto-falantes e
podendo se estender para o uso de mais alto-falantes. Ou seja, além de aspectos
metafóricos envolve o aspecto físico que seria a projeção a partir de um alto-falante
real.
O dispositivo de projeção e o método de espacialização são fatores essenciais
para a delimitação do critério de massa espacial numa obra eletroacústica. A partir de
tal fato, Duchenne134 propõe o conceito de massa-canal, como um elemento
importante na delimitação da noção de massa espacial. Conforme o autor, a massa-
canal de um evento sonoro é definida pelo número de canais dado no suporte e no
dispositivo de projeção necessário para a existência de tal evento. A massa-canal não
fornece informação espacial do som, porém concerne substrato material para a massa
espacial. Portanto, a única informação fornecida por este parâmetro é acerca do
número de canais necessários produção de um evento sonoro, sendo a massa-canal
descrita a partir do número de canais que a constitui, como por exemplo: um objeto
sonoro com massa-canal igual a cinco equivale a um objeto pentafônico.
A massa espacial auxilia na descrição de atributos como área, posição,
densidade e formato, ressaltando-se que tais atributos necessitam de massa-canal igual
ou superior a 2, com exceção do atributo posição. Para que uma qualidade espacial
(como a posição, por exemplo) seja percebida, são necessários limites de delimitação
de área. Se um evento possui a massa-canal apenas igual a 1, não haverá a imagem de
um “quadro” ou “tela”, para que sejam delimitadas localizações e configurações de
cenas. No caso das posições, quanto maior for a massa-canal, maiores são as
possibilidades, uma vez que tal parâmetro depende muito mais de pontos de projeção
físicos do que de variações espectrmorfológicas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
133
Ibid.
134
Referência a Duchenne em http://multiphonie.free.fr/12/09/2013

! 142!
2.2 – Qualificadores Espaciais Na Música Eletroacústica

Todo evento sonoro projetado num espaço eletroacústico possui um potencial


espacial que poderá ser explorado, dado por qualidades específicas que são descritas
por diversos estudiosos da música difundida por alto-falantes.
Tais qualidades poderão ter importâncias estruturais de destaque nas obras, ou
simplesmente servirão como um elemento de realce ou ornamento para outro aspecto
composicional.
Os qualificadores espaciais do evento sonoro estão inseridos nos critérios de
impressão ou massa espacial, porém observa-se que alguns destes aspectos podem
estar inseridos entre os dois critérios, tomando emprestadas propriedades de ambos.

2.2.1 – O Fixo, o Móvel, o Estático e o Dinâmico

Como visto anteriormente, aspectos espaciais numa obra eletroacústicas estão


presentes nos níveis microscópico e macroscópico da composição e uma obra musical
sempre será o resultado da interação entre tais níveis, sendo que a importância
estrutural varia entre cada um deles conforme as escolhas estético-composicionais do
criador.
Na definição de qualificadores espaciais na música eletroacústica é importante
ressaltar a interação entre estes níveis e alguns autores usam a metáfora do
comportamento para se referir à interação entre os menores elementos da estrutura e
seu contexto composicional.
Este contexto se refere à cena e ao ambiente, implicando em que, na música, o
comportamento pode ser aplicado a diferentes níveis estruturais, desde o nível mais
baixo (eventos sonoros individuais), passando pelo movimento de texturas até o nível
mais elevado das relações entre grupos de texturas ou processos de crescimento
(Smalley, 2007).
No Dicionário Larousse135 a definição de comportamento é “a maneira como
algo funciona, trabalha, evolui em certa circunstância” que, se trazida para o contexto
dos sons, é possível afirmar o funcionamento de um evento sonoro individual envolve
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
135
Versão francesa on-line disponível em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais (acesso em
12/04/2013, tradução nossa)

! 143!
a constituição interna dos sons e sua variação no tempo (Doornbusch e Mcilwain,
2003). A maneira como um evento irá interagir com outros também definirá o seu
comportamento.
Já foi referido anteriormente que uma fonte-causa por si é portadora de espaço,
quando informa sobre a ação intrínseca geradora de seu movimento ou variação
espectromorfológica, sendo que a ação pode ser real ou imaginada. Assim, no nível
microscópico, é o comportamento interno dos sons que irá definir a sua característica
espacial individual.
A noção de comportamento inerente aos eventos sonoros individuais tem a ver
também com a ideia de manutenção do objeto sonoro, proposta por Schaeffer para se
referir ao “processo energético que mantém (ou não) [o objeto sonoro] em
duração”136. Ou seja, a manutenção tem a ver com as variações estruturais internas
dadas a partir da vibração dos elementos constituintes do som.
O comportamento dos eventos sonoros individuais definirá qualificadores
espaciais como a matéria e o formato e o comportamento de interação entre os
eventos definirá as qualidades de posição e movimento. Portanto, para compreender o
comportamento de um evento sonoro individual, é necessário distinguir o conjunto de
ações individuais e reações resultantes das interações entre tal evento com outros
eventos, com a sua cena ou ambiente (Pires, 2007).
O comportamento terá categorias que são comuns tanto aos níveis
microscópicos quanto aos níveis macroscópicos, como no caso do comportamento
fixo ou móvel. Um comportamento é fixo se a evolução do conjunto das qualidades
percebidas no espaço-temporal for nula ou regular, resultando que o evento sonoro
(ou cena, ou ambiente) terá um comportamento estático ou imóvel. Um
comportamento móvel implicará na evolução temporal das características próprias às
qualidades do evento sonoro e de suas relações de modo regular ou irregular137.
Além do comportamento, é possível referir aos tipos de qualificadores
espaciais que possuirão características fixas ou móveis. O tipo fixo, ou estável, está
relacionado com os qualificadores que não dependem das variações temporais de
parâmetros, tais como a posição, a densidade, o formato, a área de um ambiente, entre
outros qualificadores que serão abordados neste trabalho.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
136
“energetic process which maintains it (or not) in duration.” (Chion 2009, p. 128)
137
Ibid.

! 144!
Os qualificadores móveis ou dinâmicos, são caracterizados por variações ou
mudanças no perfil ou natureza, como o afastamento e a aproximação, a figura
espacial ou trajetória, o deslocamento e o movimento propriamente dito.
Merlier (2006) propõe uma tabela (Figura 8) onde classifica os parâmetros que
caracterizam a percepção do espaço e neste trabalho é proposta uma releitura desta
tabela, abordando os termos tratados nesta tese.

Qualificadores estáticos Qualificadores dinâmicos


Matéria: Movimento
Textura Mobilidade
Densidade Trajetória
Formato Direcionalidade
Largura Crescimento
Tamanho /magnitude Variação de forma
Área Variação de direção
Posição/localização Aproximação/afastamento
Distância Variação de lugar
Interior/exterior Variação de densidade
Envolvimento
Ambiente/lugar

Figura 27 - Qualificadores estáticos e dinâmicos do espaço, baseado nos parâmetros que caracterizam o
espaço de Merlier (Adapatado de: Merlier, 2006, p. 132)

2.2.1.1 – Qualificadores Espaciais Estáticos

Um evento sonoro, concebido enquanto morfologia, possuirá diversos


aspectos espaciais constituintes, contudo, a percepção de aspectos espaciais também é
revelada pela interação entre eventos diferentes. É possível observar que alguns
aspectos espaciais são inerentes aos eventos individuais, porém outros qualificadores
serão revelados na relação entre eventos diferentes.
A matéria é o elemento essencial que constitui um evento sonoro sendo uma
“(...) substância bruta que é esculpida ou recortada, e que dá nascimento à forma”
(Tissot, 2013). Este elemento torna perceptível o caráter externo e a aparência de uma
superfície dos eventos sonoros, sendo que estas percepções poderiam ser relacionadas
à um princípio de espacialidade, vinculada a este evento.

! 145!
A constituição interna dos sons (composta de frequências, intensidades e
durações) caracteriza a natureza de um evento sonoro que é definido pela matéria,
mas, este aspecto em si ainda não é formador de um evento sonoro.
A conceituação de matéria vem a complementar uma ideia de formato138 do
um som, sendo a matéria conceituada como um conteúdo informe, percebido na
escuta como algo que não sofre variações durante a existência de um evento sonoro,
sendo independente dos formatos que o delimitam (Pires, 2007). Nesta perspectiva, os
parâmetros que se transformam e evoluem no tempo seriam os atributos que definem
o formato, ao passo que os atributos fixos na constituição do som se referem com a
matéria do mesmo.
Na concepção de Schaeffer (Chion, 2009), o formato e a matéria de um som
têm uma evolução conjunta, mas para efeito de estudo e análise, são considerados
qualidades independentes. A variação de parâmetros (no caso do formato) e a
constância da matéria foram demonstradas por Schaeffer a partir da experiência na
qual o compositor fez um corte num som de sino, resultando no isolamento da matéria
e da forma na percepção do timbre. Ao suprimir a forma primitiva do som do sino,
Schaeffer revelou que existia uma semelhança da matéria resultante a um som de
instrumento de sopro139.
À primeira vista, este qualificador se apresenta como um aspecto que concerne
unicamente à impressão espacial, uma vez que se trata da constituição interna do
evento sonoro, que existe independentemente da quantidade de massa-canal o
compõe.
A matéria pode ser conceituada como um qualificador espacial dos eventos
sonoros, considerando que se trata de um dos atributos responsáveis pela percepção
de concretude das morfologias. Chion menciona que, na concepção de Schaeffer, os
critérios morfológicos ligados ao estudo da matéria são a massa, o timbre harmônico
e o grão. A massa diz respeito à ocupação das alturas pelo som, sendo vinculada ao
espaço espectral e o timbre harmônico é um complemento do critério de massa que
ajudará o espaço espectral140. Por último têm-se o grão que é “(...) uma microestrutura

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
138
O termo formato é usado aqui no sentido de uma forma sonora, para diferenciar o termo “forma”
como uma estrutura organizada – que poderia ser uma forma musical, por exemplo
139
Ibid.
140
Ibid.

! 146!
da matéria do som, que é mais ou menos fina ou espessa e que evoca, por analogia, a
textura tátil (...)”141.
Portanto, é possível inferir que a matéria remete a uma sensação tátil que pode
ser considerada espacial, pois quando um objeto qualquer é tocado são revelados
relevos e texturas que são componentes espaciais do mundo vivenciado.
Além dos critérios apontados por Schaeffer, a textura e a densidade também
podem ser qualidades que descrevem a matéria (Pires, 2007). A textura de um evento
sonoro refere-se a aspectos exteriores do som, reconhecidos na escuta a partir de sua
constituição interna e que fornecem a sensação de superfície para o som. Brindle
(1996) descreve a textura como um:

(...) tipo de som (...). Ela define a ‘sensação’ de parte externa da


música, em vez de estrutura interior. Os adjetivos normalmente
usados com ‘textura’ (...) confirmam esta definição – ‘áspero, liso,
espesso, fino, quente, frio, pesado, rico, magro, delicado, sedoso,
aveludado, chanfrado’ - todos estes descrevem sensações
exteriores142.

Apesar do autor se referir à textura musical numa concepção mais global, é


possível trazer essa definição para o contexto da matéria, pois as características
exteriores também são perceptíveis na constituição do evento sonoro individual.
O caráter interno de uma textura é responsável por gerar as sensações de
superfície do evento sonoro, sendo possível defini-la como lisa, áspera, granulosa, ou
estriada, sendo que estas qualidades perceptuais sonoras poderão ser designadas de
acordo com a regularidade dos movimentos interiores (Pires, 2007).
A percepção da superfície, ou textura da matéria é um aspecto presente em
qualquer escuta de eventos sonoros, sendo que este aspecto pode ser observado nos
eventos sonoros explorados na composição Surface. Os processamentos sonoros
destes materiais, bem como a delimitação dos comportamentos dos eventos sonoros,
resultam na escuta de eventos aparentemente “vivos”, como se fosses sonoridades
passíveis de existirem em um contexto real.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
141
“(...) more or less fine or coarse and which evokes by analogy the tactile texture (...)” (Ibid., p. 171)
142
“(...) kind of sound (...). It defines the outside 'feel' of the music, rather than the inner structure. The
adjectives usually used with (...) 'texture' confirm this definition – ‘rough, smooth, thick, thin, warm,
cold, heavy, rich, meagre, gossamer, silky, velvet, jagged’- all these describe exterior sensations.”
(1966, p. 136,)

! 147!
Os movimentos gestuais de alguns eventos nesta composição parecem realçar
uma materialidade e ações supostas que poderiam originar as espectromorfologias
podem ser reconhecidas, tais como sons de objetos quebrando (em 7’33, canal
central) ou caindo (7’41”).
Para que uma ação, como um quebrar de objeto, seja apreendida, muitas vezes
a percepção da matéria tem influência significativa neste processo. Para saber que
algo se quebra, é necessário ter a consciência de um certo grau de dureza do objeto
quebrado, sendo que numa escuta a noção de textura da matéria fornece tal
informação.
Em Surface é possível perceber um tratamento curioso do material que revela
texturas capazes de realçar identificação de ações, contribuindo para a constatação de
que a percepção da clareza do movimento de um evento sonoro, em várias situações,
pode ser influenciada pela percepção de uma superfície de tal evento, mesmo que o
evento não seja reconhecível.
A densidade é outro aspecto da matéria relativo à quantidade de elementos
numa área dada que, no caso de uma morfologia, os elementos podem se referir ao
conteúdo espectral e sua evolução do tempo. Um evento sonoro pode ser dotado de
mais ou menos elementos espectrais diferentes durante a sua existência, sendo que
este qualificativo irá se referir às sensações resultantes das relações espectrais dos
componentes internos dos sons143.
Previamente a discussão sobre a densidade, convém observar de forma mais
acurada a noção de espectro. Para Smalley (1986), a concepção de espectro se refere
ao componente da espectromorfologia que compreende o total de frequências
perceptíveis, dependendo do tempo para sua apreensão. O espectro pode ser dividido
em tipos definidos como nota, nodo e ruído. A nota está relacionada com a percepção
das frequências, considerada enquanto alturas, sendo categorizada como: notas
próprias, espectro harmônico e espectro inarmônico.
As notas próprias se referem à percepção de alturas absolutas e combinações
intervalares e harmônicas tradicionais, enquanto o espectro harmônico está
relacionado aos intervalos de um espectro harmônico que são predominantes na
escuta, sendo as frequências fundidas de modo a serem percebidas enquanto um
timbre com altura definida. O timbre instrumental do piano pode ser considerado

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
143
Ibid.

! 148!
como um exemplo de espectro harmônico. No espectro inarmônico, os componentes
são dispersos de tal maneira que resistem à fusão, sendo que o autor usa o exemplo de
sons metálicos, cujos componentes espectrais geralmente não possuem relação com a
série harmônica.
Na conceituação de Smalley144, o nodo, ou espectro nodal, é uma faixa
espectral que não fornece a identificação de notas definidas. Este tipo de espectro
possui uma densidade de som cuja compactação dificulta o reconhecimento de sua
estrutura de alturas, sendo que um cluster consiste num exemplo dado pelo autor.
Com o aumento da densidade de componentes espectrais é possível se
aproximar da noção de um espectro tipo ruído, onde a densidade do espectro se
apresenta comprimida, o que dificulta a percepção de alguma altura dominante.
Um exemplo de espectro do tipo nota é o fornecido pelo som que parece ser
uma nota de piano, na região grave, na obra Human-Space Factory (em 11’36”). Já
um exemplo de um espectro nodal que poderia ser citado são os ataques de sons
metálicos que ocorrem na obra 2261 (por exemplo, em 4’06”). Neste caso, a soma de
vários sons percutidos dificulta a percepção de uma altura, mas é possível reconhecer
uma maior concentração de frequências na região mais aguda.
Um caso de espectro do tipo ruído pode ser observado na obra Cerberus,
quando são exploradas as famílias morfológicas do tipo “nuvem frequencial”. Aos
6’27” é possível identificar, em um plano focal menos importante, um som com tipo
de morfologia, sendo que o evento sonoro é textural com o comportamento em fluxo,
não sendo possível reconhecer uma altura em destaque, pois os constituintes internos
são ouvidos como se fossem uma “névoa dispersa” de frequências.
Ainda na concepção de Smalley145, a zona que vai da nota para o ruído é
marcada pelo aumento de densidade e compressão espectral, onde a compressão pode
ser resultado da natureza própria do evento sonoro ou de sobreposições espectrais. O
autor nomeia esta zona como continuum altura-eflúvio. O eflúvio descreve o estado
em que o espectro não é percebido enquanto componentes de alturas ocorrendo que a
atenção pode ser atraída mais para a configuração externa do que para o
comportamento dos componentes internos de altura.
A densidade da matéria de um evento sonoro, além de definir o tipo do
espectro, tratará da solidez e compactação do som. Um som composto de uma matéria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
144
Ibid.
145
Ibid.

! 149!
com alta densidade parecerá rígido e impenetrável na escuta (Henriksen, 2002),
portanto, ao se mencionar compactação ou de estado de eflúvio é possível aludir aos
aspectos de opacidade, transparência e de permeabilidade da densidade da matéria do
evento sonoro.
Segundo Pires (2007), o nível de transparência ou permeabilidade da matéria
do evento sonoro tem relação com o tipo de interação do evento sonoro com seu
ambiente contextual e a permeabilidade ou a transparência serão revelados a partir do
poder que o evento sonoro tem de gerar fenômenos de máscara ou de fusão. Para a
autora, um evento sonoro opaco será aquele que absorve ou eclipsa outros eventos
que estão locados mesmo espaço e num mesmo tempo. Em oposição ao conceito
anterior, um evento sonoro transparente será aquele em que um evento sonoro
deixará que se entenda outros eventos que acontecem ao mesmo tempo no mesmo
lugar146.
Assim, um evento sonoro dito permeável será aquele atravessado por que
outros eventos, por meio de fusão ou cruzamento. Ao contrário, um evento
impermeável será aquele que gera uma barreira impedindo a passagem de outro. Essas
características podem se apresentar ser misturadas, como por exemplo, um evento
transparente pode ser impermeável.
É possível citar um exemplo de adensamento que resulta em um evento
impermeável na obra Human-Space Factory, sendo que este processo resulta na
transformação de uma cena em um único evento. Consiste numa textura proveniente
da gravação de um ambiente externo de uma feira-livre no plano focal principal,
sobreposta a sons mecânicos de engrenagens com trajetos espaciais identificáveis (em
5’52”). A textura global textura se adensa até o momento em que é “compactada”,
resultando na percepção de um gesto com timbre metálico que possui deslocamento
definido. A intensidade e a composição espectral deste último evento sonoro fazem
com que ele seja percebido como o foco principal, com uma boa definição na escuta.
Desta forma outros eventos não seriam percebidos em simultaneidade com este,
caracterizando uma impermeabilidade a partir de um adensamento que resulta em
uma compactação.
Com base no grau de transparência, compactação e permeabilidade, Smalley
(1997) sugere a densidade espectral, que tem como metáfora uma névoa, cortina ou

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
Ibid.

! 150!
parede de propagação mais extensa ou mais estreita, permitindo ou não a penetração
de outros eventos sonoros. O autor sugere um continuum que vai da densidade cheia
até a vazia, sendo que o grau de preenchimento do espaço definirá também a
opacidade ou transparência.
O conceito de densidade é também vinculado com a noção de ocupação e
preenchimento de um espaço habitado por uma matéria de um evento sonoro. Sobre
estas características, Smalley indica quatro qualidades que ajudam a definir a
ocupação do espaço espectral. A primeira define o grau de cobertura e preenchimento
espacial, através da dupla vazio-plenitude. Esta qualidade determina também a área
ocupada por espectromorfologias e se existem lacunas que geram isolamentos
espectrais147.
A segunda qualidade é determinada pela dupla dispersividade-concentração,
que lida com a dispersão ou agrupamento espectral, causando fusões ou fissões. Já a
dupla fluxos-interstícios é responsável pela percepção de estratificação do espaço
espectral em fluxos contínuos ou separados por espaços intermediários, além de
definir se tais fluxos podem são estreitos ou largos148.
Smalley149 cita como última qualidade aquela definida pela dupla
sobreposição-cruzamento, abordando o modo como os fluxos de eventos penetram o
espaço espectral de outras morfologias, ou se movem em torno o sobre outros
eventos150.
Conforme o mesmo autor, a densidade espectral também se relacionará com a
perspectiva de distância, o que foi exemplificado com um evento sonoro de alta
densidade que será percebido em primeiro plano, impedindo que outras
espectromorfologias sejam realçadas e gerando um bloqueio resultante de uma
sensação de proximidade que este evento tem com o ouvinte.
Uma adaptação da imagem fornecida por Smalley ilustra a relação entre
preenchimento, opacidade e distância, apresentada na Figura 9. Os extremos entre
distância e a proximidade passam por diferentes graus de preenchimento e de
bloqueio fornecido pela densidade dos eventos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
147
Ibid.
148
Ibid
149
Ibid.
150
Ibid.

! 151!
Figura 28 - Ilustração da densidade espectral (adaptado de: Smalley, 1997, p.121)

Além de ser pertinente à impressão espacial, a noção de densidade pode ser


expandida para a ideia de massa espacial, pois se a energia que compõe um evento
sonoro é distribuída em diferentes canais, o evento sonoro individual terá a massa-
canal superior ou igual à 2151 .
A densidade é uma característica que define, além de um evento sonoro
individual, a relação entre vários eventos num contexto musical. No segundo caso, o
conceito é explicado como a quantidade de eventos que ocorrem num determinado
espaço-tempo, sendo que os eventos podem ser percebido como individuais, numa
textura complexa, ou se fundindo para formar um novo evento.
Em Cerberus é percebido um adensamento deste tipo, quando os pequenos
ataques espaçados no tempo (iniciados em 1’52) aos poucos são unidos a mais
ataques que serão dispostos mais próximos temporalmente, causando um aumento de
densidade na cena e fornecendo uma aglomeração de partículas sonoras. O aumento
de densidade se compacta de tal modo que a cena passa a ser ouvida como uma única
textura de superfície granular em 2’30”.
O agrupamento dos eventos percussivos aos poucos adquire um trajeto
espacial único (em 2’40”) resultante do adensamento, sendo que este será fundido a
uma camada de um som textural derivada da família morfológica “nuvem
frequencial”. Como consequência, a cena que inicialmente era pontual se transforma
em único evento sonoro mais compacto e impermeável.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
151
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/

! 152!
A densidade pode também auxiliar na definição da imagem que será revelada
pela opacidade ou transparência, ou ainda pela definição de um foco espacial. O foco
pode se estender para a ideia de imagens difusas ou claras. Ressalta-se que o conceito
de espaço global concentrado ou disperso também se relaciona com a densidade, uma
vez que lida com preenchimento espacial, que se refere ao modo como o espaço é
ocupado (de maneira mais ou menos densa)152.
Em algumas obras compostas neste trabalho foram explorados os conceitos de
compactação e de dispersão, como na segunda parte Indução quando ocorrem
transformações dos materiais que pretendem fornecer movimentos no interior de uma
textura. Em aproximadamente 4’28”, os movimentos no interior da textura fornecem
um impulso energético que resulta em uma dispersão dos grãos por todo o espaço
ambifônico.
Outro exemplo na mesma obra ocorre por volta de 5’39’, quando a textura se
concentra ao ponto de contrair-se até sua transformação em um gesto que tem
trajetória definida. A seguir a trajetória assumirá a função de “causa” para um evento
sonoro textural que se dispersa no espaço em 5’49”.
Estes dois exemplos, ilustram o comportamento da variação de densidade no
contexto mais global uma obra. Cabe ressaltar que são contextos compostos de um
único evento sonoro (com a textura constituída de grãos), sendo que os grãos, de uma
forma geral, não são percebidos como elementos individuais e sim como um todo,
resultante da ação coletiva de várias partículas de som.
Depois de conhecidos os aspectos da matéria do evento sonoro, é possível o
aprofundamento nas noções do qualificador formato. Trata-se de um qualificador
muito explorado conscientemente pelos compositores de música eletroacústica, uma
vez que é uma característica marcante na percepção de um evento sonoro, isolado ou
em contexto. O formato pode ser conceituado a partir do que Bayle (1997) se refere
como “a forma mesma do som”153, sendo que o autor entende por forma mesma do
som o desdobramento deste “no seu espaço próprio de restrições, no seu próprio
mundo de vibrações”154.
O entendimento do formato de um evento sonoro é vinculado à percepção
visual, pois uma descrição só é possível devido ao conhecimento de formas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
152
Ibid.
153
“(...) la forme même du son (...)” (Bayle, 1997, p. 366)
154
“dans son propre espace de contraintes, dans son propre monde de vibrations” (Bayle, 1997, p. 366).

! 153!
geométricas visíveis, sendo que este conceito corresponde à percepção de
exterioridade, ou uma estrutura que molda uma matéria.
No sentido schaefferiano, o formato de um evento sonoro é o trajeto que
molda a matéria (Chion, 2009) e este conceito será simultaneamente uma
configuração perceptiva e uma representação mental de algumas características dos
fenômenos sonoros (Pires, 2007).
O formato se refere também ao espaço intrínseco dos eventos sonoros, sendo
resultante de diferentes aspectos de compõe o som. Umas das características que
determinam a percepção do formato de um evento sonoro é a variação de flutuações
de amplitude nos componentes espectrais que compõem o som.
Este qualificador será percebido sob a influência de uma magnitude, definida a
partir de mudanças na distribuição de energia do espectro sonoro ao longo do tempo.
O envelope da amplitude do som também é um parâmetro que influencia a
identificação de um formato do evento sonoro, pois pode indicar a variação de
tamanho de um evento sonoro (Henriksen, 2002).
A partir das considerações acima é possível perceber que a evolução temporal
é um fator preponderante na constituição do formato de um evento sonoro. As
variações podem gerar imagens mentais baseadas nas associações com contornos que
são preenchidos por matérias.
Os contornos de um evento sonoro correspondem aos limites externos que
demarcam o seu formato estabelecendo a imagem (que muitas vezes não é precisa) de
uma figura geométrica imaginada. São limites definidos por aspectos físicos (como a
evolução dinâmica e frequencial), bem como por associações mentais (que ocorrem
durante a escuta) com imagens já armazenadas na memória. Um contorno de um
evento sonoro também fornece a percepção da dissociação do evento em relação a um
fundo (Pires, 2007).
O conceito de formato também pode ser estendido para um atributo do critério
de massa espacial155, pois quando pensado como um critério da massa espacial, o
formato do evento sonoro é definido pelo modo como os canais de projeção são
distribuídos e organizados geometricamente. Como os canais de projeção são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
155
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/

! 154!
dispostos em formas geométricas, é comum a exploração de formatos arquetípicos
como o círculo e suas ramificações nas obras eletroacústicas156.
As obras analisadas e compostas neste trabalho aparentemente não se
concentraram em um mesmo tipo de material, sendo explorados de forma equilibrada
sons com contornos marcados, bem como eventos sem as delimitações claras de um
formato, tal como é o caso das texturas. Os momentos gestuais das obras poderiam ser
os exemplos que marcam a exploração de formatos sonoros mais delimitados.
De um modo geral Cerberus, Surface e 2261 exploram os formatos sonoros
definidos ao longo de toda composição, pois em tais obras materiais musicais
predominantes são gestos, com trajetos e contornos espectrais predominantemente
definidos.
As composições Locus, Indução, Vox V, Dreaming in Darkness, Human-
Space Factory e Vox Alia, pareceram explorar de maneira mais equilibrada o uso de
gestos e texturas, ou seja, sons com formatos mais definidos, e sons mais difusos sem
um contorno claro.
São inúmeros os exemplos de formatos identificáveis nas obras estudadas. Um
exemplo mais marcante de sons com formatos aparentes são os ataques percussivos,
(como os que ocorrem em Cerberus em 1’52”), os sons percussivos (que ocorrem em
2261 em 1’00”). Nestes casos parecem se apresenta um formato tridimensional de
dimensões pequenas (em analogia aos sentidos visuais).
Outro exemplo de evento sonoro que parece ter um formato perceptível ocorre
em 2261 (em 1’45”). Neste ponto ocorre um ataque (de timbre metálico) seguido de
um som que contém uma faixa de frequência mais estreita, numa região mais aguda
que, “desliza” para um novo ataque mais grave em 1’48”. O segundo ataque se situa
em uma região mais grave e sua sustentação se mantém até aproximadamente 1’50”,
sendo que os ataques servem um ponto de delimitação de início e de fim tal evento, o
que aponta limites claros que ajudam a remeter a imagens de formas na mente. A
concentração de frequências mais agudas, na parte mais contínua de tal eventos, pode
gerar a imagem de algo com uma espessura mais fina, ainda que se encontre
dificuldades na identificação de uma analogia adequada.
Seguindo a busca pela definição de qualificadores espaciais, dentre os
atributos das propriedades do espaço, Rumsey aponta que a largura pode ser definida

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Ibid.

! 155!
como um atributo que é tanto microscópico quanto macroscópico, podendo se
mencionar largura de fonte, de conjunto, de ambiente e de cena (Rumsey, 2002).
Segundo o autor, uma percepção largura de fonte pode ser conceituada como a
extensão lateral percebida de fontes individuais, sendo que é mais fácil localizar tal
fonte quando a largura for menor e mais pontual157. Para o autor, uma largura mais
ampla não é necessariamente responsável por uma pobreza na definição da fonte, pois
em alguns casos é possível perceber uma um evento mais largo com uma localização
bem clara.
É possível constatar que a largura de um evento individual será constituinte
do formato, uma vez que o contorno de um objeto contém dimensões espaciais,
geométricas, como uma altura, uma profundidade e uma largura. Diferentemente de
objetos do espaço físico tátil ou visual, as três dimensões espaciais serão percebidas
por analogia ao conhecido no mundo não sonoro.
Para se perceber um aspecto espacial no contexto dos eventos sonoros, um
conjunto de parâmetros sonoros complexos irão definir a percepção de características.
Frequentemente não é simples delimitar, na escuta, um limite de evidência deste ou
daquele parâmetro que define um qualificador espacial. No caso da percepção da
largura de fonte, existe a dependência de parâmetros sonoros específicos como o
nível sonoro, a direcionalidade, ou ainda, conteúdo frequencial158.
A fatura espectral também pode ser determinante da largura dos eventos
sonoros e Borges (2014, p. 83) comenta que:

[a] característica frequencial [do objeto sonoro] determina, grosso


modo, sua espessura. Portanto, sons mais graves são percebidos
como mais espessos enquanto que ao se deslocarem para regiões
mais agudas os objetos têm sua percepção de espessura menor.

A espessura é um aspecto tridimensional de um objeto identificado em um


som, podendo considerado um qualificador espacial que se relaciona com a
largura159.
A intensidade sonora e o conteúdo espectral também têm grande influência na
concepção de ambos os conceitos, dado são que são parâmetros definidores da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
157
Ibid.
158
Ibid.
159
Ibid.

! 156!
magnitude. Se um som é forte e predominantemente grave, este parecerá ter uma
maior magnitude e consequentemente uma e largura maior.
É possível notar que o critério de impressão espacial é preponderante na
descrição da largura e magnitude do evento sonoro, uma vez que a percepção deste
qualificador também é revelada por transformações espectromorfológicas do evento
sonoro.
Contudo, o critério de massa espacial também é influente na definição de
largura caso ocorra uma variação, como o aumento do tamanho de fonte e,
consequentemente, da magnitude. Como exemplificação de tais constatações é
possível citar o caso de um objeto que é projetado em mais de um canal, ocupando
uma região mais vasta e menos definida (Merlier, 2006). Este é um caso onde não há
fronteiras entre os critérios de impressão em massa espacial.
O conceito de magnitude de Henriksen (2002) pode ser entendido como uma
expansão do conceito de largura de fonte, uma vez que a magnitude se relaciona com
a noção de tamanho do evento sonoro. A magnitude é um qualificador perceptual do
espaço intrínseco dos eventos sonoro individuais, afetado por variáveis como a
constituição espectral e a influência das salas acústicas.
A largura também é percebida nos elementos macroscópicos como o
conjunto, o ambiente e a cena. A largura de conjunto se relacionará especificamente
com a largura percebida de um grupo de fontes individuais, que juntas são
cognitivamente marcadas como um conjunto (Rumsey, 2002), definindo também uma
magnitude desse conjunto.
Um outro atributo macroscópico é a largura de ambiente ou de sala, marcado
pelas pistas fornecidas pela reverberação, sendo que esta poderá fornecer informações
sobre a sensação auditiva de um espaço amplo ou espaço estreito160.
A largura de cena é conceituada como um qualificador espacial de nível mais
alto, sendo frequentemente coincidente com a largura do ambiente. Contudo, existem
situações em que o compositor pode simular a existência de eventos sonoros que se
encontram fora do ambiente de projeção, aumentando a extensão do espaço
escutado161.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
Ibid.
161
Ibid.

! 157!
Os conceitos de largura e magnitude podem ser complementados com a noção
de área, concernente à extensão espacial de um objeto no dispositivo de projeção e
em relação ao ouvinte162.
No caso da música reproduzida por alto-falantes a área é demarcada pelas
zonas delimitadas pelos pontos mais distantes do dispositivo de projeção, que
constituem a massa-canal do objeto sonoro. Consequentemente é possível constatar
que o modo como tal massa-canal é organizada também influencia a percepção de
área163. Sobre esta questão, Duchenne exemplifica graficamente dois casos onde a
massa-canal é idêntica, mas a área é diferente (Figura 10).

Figura 29 - Exemplo gráfico de massa-canais idênticas e áreas diferentes (fonte: Duchenne em


http://multiphonie.free.fr/).

Os círculos menores na figura acima representam os dispositivos de projeção


sonora no ambiente de escuta, enquanto o círculo maior, na cor cinza, representa a
zona onde os ouvintes estão localizados. Os círculos destacados nas duas figuras
representam objetos sonoros que possuem a mesma massa-canal, mas com a
distribuição espacial em forma geométrica e, consequentemente, com área
diferenciada. Desta maneira, o modo como o evento sonoro é distribuído entre os
canais de projeção influenciará a definição da área deste evento.
O conceito de área certamente pode ser estendido às ideias de conjunto e de
cena apontadas anteriormente. A área de uma cena espacial pode ser relacionada à
ideia de espaço distal de Smalley (2007), que se refere à área do espaço perspectivo
mais distante do ponto de vista do ouvinte, em um contexto de escuta particular. No
caso da cena espacial, a área será a extensão ocupada pela relação entre as posições
dos eventos sonoros individuais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
162
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/
163
Ibid.

! 158!
Um bom exemplo de diferenças de tamanhos entre eventos sonoros
individuais seria o que ocorre nos ataques metálicos que ocorrem na da obra 2261.
Como referido anteriormente, ao longo de toda obra são recorrentes as aparições de
sons percussivos com ataques marcados e timbres metálicos, sendo que as aparições
podem ocorrer com variações tímbricas e espaciais. Pode-se exemplificar com uma
das aparições (em 1’42”) projetada apenas no canal 3, a seguir (em 1’45”) ocorre
outra aparição, agora com variação tímbrica e morfológica resultante do trabalho de
orquestração eletroacústica, sendo projetada nos canais 1, 2 e 4. Outra repetição
deste tipo de morfologia ocorrerá também em outros momentos (em 3’06”) e neste
caso ataque é projeto nos oito canais, mais uma vez variado tímbrica e
morfologicamente.
O evento que ocorre em 1’42” pode ser interpretado como um evento de
tamanho, magnitude e área menores em relação às repetições seguintes. Tais
repetições ocorrem com uma projeção de área maior (por ocorrer em mais canais) e
com o acréscimo de mais timbres sobrepostos (características da orquestração). Além
do aumento de área, estas repetições também aumentaram em conteúdo espectral, o
que contribui para a percepção de um aumento de densidade de tal evento.
Um qualificador espacial importante no contexto da música eletroacústica é a
posição de um evento sonoro. Numa cena ou configuração espacial os eventos
sonoros (fixos ou móveis) possuirão sempre uma localização que pode ser clara e
nítida, podendo também ser mascarada ou difusa. Esta localização (definida por uma
posição no espaço) auxilia na constatação da função estrutural do evento sonoro, pois
este pode estar num plano focal de destaque no contexto de configuração espacial,
bem como pode servir de plano de fundo para outros eventos.
Deste modo, a partir da exploração de posições num contexto composicional
eletroacústico, um ambiente inteiro pode ser gerado, como se o compositor fosse um
arquiteto idealizando a construção de uma obra (Hofmann, 2002).
Um evento sonoro individual pode ter uma posição fixa ou variável e ser
determinado a partir de suas características de localização no espaço: tais como a
distância em relação ao ouvinte e aos outros eventos sonoros (Pires, 2007). A
definição da posição também envolve coordenadas que indicam uma localização
topológica de eventos no espaço de uma cena. Deste modo, este qualificador definirá
se um evento sonoro que pode ser localizado no alto ou embaixo, na frente, atrás ou
dos lados de uma cena.

! 159!
No que se refere ao critério de massa espacial, o qualificador posição é
também o equivalente a ideia de local de Duchenne164. Para o autor o local:

é a zona espacial onde o objeto está centrado, ou ainda, seu


baricentro (...); de acordo com os valores da área e a resolução, pode
ser que não seja sempre possível definir o local e convém sempre
precisar se a descrição do local for relativa ao dispositivo (local
absoluto) ou ao ouvinte (local relativo)165 (...)

É importante salientar que além da localização de projeção do evento sonoro,


o modo como o ouvinte recebe o sinal acústico (que pode ser em alto-falantes, móveis
ou fixos, ou fones de ouvido) e/ou a posição onde o ouvinte está situado, são
elementos que interferem na percepção do local.
Numa situação de escuta individual ou numa escuta em concerto, dependendo
da localização em que o ouvinte está posicionado, podem ser geradas percepções
diferenciadas da configuração espacial proposta pelo compositor. Percepções
distinguidas daquelas que foram propostas pelo compositor (dentro de sua concepção
estética) podem ser prejudiciais ou não para a experiência estética de uma por parte
do ouvinte.
Algumas tecnologias de espacialização (como ambisonics) buscam formas de
amenizar as diferenças causadas pela localização do ouvinte. Contudo, as
possibilidades de escuta das músicas difundidas em alto-falantes são parte de uma
questão que está sempre em desenvolvimento, conforme a tecnologia evolui nos
tempos atuais. Cabe ao ouvinte desfrutar e experimentar as possibilidades de projeção
que lhe estiverem disponíveis.
A precisão da percepção de posição depende de vários fatores como a variação
de intensidades, o conteúdo espectral, a densidade espectral ou ainda se o som é
categorizado como fixo ou móvel. Sons curtos, pontuais, de pequena magnitude, de
grande densidade e com concentração espectral em regiões agudas e medias, possuem
uma posição clara e definida. Os sons mais graves, sem um ataque definido e com
pouca densidade se tornam difíceis de localizar. O posicionamento de eventos sonoros
que possuem frequências médias a altas são definidas com mais facilidade do que os

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
164
em http://multiphonie.free.fr/
165
“(...) c'est la zone spatiale où l'objet est centré, ou plutôt son barycentre (...) ; selon les valeurs de
l'aire et de la résolution, il se peut qu'il ne soit pas toujours possible de définir le site et il convient de
toujours préciser si la description du site est relative au dispositif (site absolu) ou à l'auditeur (site
relatif) (...) . (Ibid. http://multiphonie.free.fr/masses.htm)

! 160!
graves (Henriksen, 2002), pois as regiões espectrais mais baixas tem uma maior
tendência para a dispersão.
Além de consistir na proporção de frequências graves ou agudas, a densidade
espectral influi ainda na definição de posição, pois sons mais compactos e opacos
tendem a ser mais precisos numa localização topológica.
O terceiro movimento de Locus (denominado “posicionamento espacial”)
poderia ser citado como exemplo da exploração deste qualificador. No trecho que se
inicia em 4’30’, é utilizado um material sonoro mais fragmentados e sem texturas
ambiofônicas. Os eventos sonoros são mais espaçados temporalmente e projetados em
diferentes altos falantes, proporcionando a cada som uma posição no espaço. Nesta
seção os eventos em alguns momentos são estáticos enquanto em outros são moventes
para diferentes direções.
Ainda nesta obra, uma melhor definição de posições ocorre no trecho de 0’19”
até 0’57”, onde são evidenciados eventos sonoros que representam “causas geradoras
de movimento”. Neste caso são exploradas morfologias que fazem alusão a ações
como, golpes, quedas e colisões, que ocorrem em um espaço de tempo muito curto,
favorecendo a percepção de uma posição mais identificável.
Também em Vox Alia, mais especificamente no movimento Giocoso. as
alternâncias espaciais que ocorrem 1’11” fornecem a localização de eventos, como se
fossem grupos vocais ou instrumentais fazendo um trabalho de “pergunta e resposta”
em pontos espaciais diferentes.
O mais curioso deste exemplo é que não se trata de um evento sonoro pontual,
(ataque definido ou com trajeto identificável), mas sim de camadas mais texturais que
não possuem caminhos espaciais que atravessem a octofonia. Deste modo, é possível
constatar que a concentração da projeção em alto-falantes específicos, pode gerar uma
noção de posicionamento, mesmo que este evento tenha um caráter mais textural.
A projeção nos alto-falantes também é um fator primordial na definição da
posição. Um som de massa-canal 1 apresentará uma definição clara de sua posição no
espaço, porém caso a massa canal aumente, a localização se torna mais difusa. Quanto
maior for a extensão, ou a área do objeto em multifonia, mais difícil será precisar um
posicionamento de um evento sonoro individual.
Os eventos compostos de ataques percussivos de timbre metálico em 2261
novamente contribuem para a exemplificação dos conceitos. Trata-se de um caso bem
perceptível da perda de definição acerca da localização de um evento, decorrente do

! 161!
aumento da massa-canal. Quando tal evento ocorre em 1’42”, é possível identificar
precisamente sua posição no canal 3. Ao serem acrescentados mais canais nas novas
aparições (como em 3’06) já se torna muito difícil precisar uma localização exata para
tal evento, escutado em todo o espaço de projeção, como se o ouvinte estivesse
posicionado no interior deste.
Um outro qualificador espacial importante na descrição das posições é a
distância, tratando do grau de afastamento ou de vizinhança entre dois eventos
sonoros, definidos em coordenadas topológicas no espaço de uma cena ou ambiente
numa composição (Pires, 2007). Tal qualificador (que não é um aspecto preciso) é um
atributo da impressão espacial, determinada por elementos constitutivos internos do
som e pela comparação com outros eventos sonoros.
A intensidade é um elemento constitutivo que contribui na percepção de
distância, porém para que tal elemento seja mais preciso na percepção, deverá existir
a comparação com outros sons, pois um som de maior intensidade parece mais
próximo a um som de menor intensidade. A reverberação também auxilia na
descrição da distância, pois quanto mais numerosas as reflexões sobre um objeto
sonoro em diferentes superfícies, há mais chance que o evento sonoro esteja longe do
ouvinte 166 ou dos outros eventos mais secos.
Além da reverberação, o reconhecimento da fonte geradora dos eventos
sonoros é uma pista significativa acerca da distância, pois se um evento sonoro for
identificável, é possível presumir a que distância está localizado (Doornbusch e
Mcilwain, 2003). Nesta situação, o espectro é a sugestão primária, em detrimento da
intensidade, pois quando o evento sonoro é conhecido, o ouvinte está familiarizado
com as diferenças tímbricas do som, podendo julgar, a partir do espectro, se o som é
executado perto ou longe de quem o escuta (Henriksen, 2002).
A distância é um qualificador que permite organizar planos focais na
composição e se eventos sonoros forem executados num mesmo espaço-tempo, um
evento sonoro posicionado mais próximo ao ouvinte gera um ponto de interesse, em
relação ao que está posicionado mais distante.
No movimento Parola Volante de Vox Alia são identificados casos diferença
de distância e, consequentemente, de planos focais. Em 21’10” é possível perceber
espaço de proximidade decorrente do uso em primeiro plano de sons provenientes de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/

! 162!
gravações das falas de Schaeffer, sobrepostos a outros materiais tímbricos e gestuais
diferentes. A fala proferida pelo compositor é projetada sem reverberação,
configurando uma imagem mais próxima ao ouvinte. Esta fala não possui
espacialização, sendo projetada de modo equilibrado em todos os canais, reforçando a
sensação de primeiro plano.
Uma noção de distância também pode ser percebida na peça Locus (em 3’09”),
onde os gestos possuem diferenças de intensidade, sendo percebidos em distancias
diferentes e em planos distintos. Neste exemplo é possível notar que hierarquias são
fornecidas por diferenças de intensidades e reforçam as diferentes posições distais
entre os eventos.
A percepção do qualificador posicionamento depende de vários parâmetros de
constituição e comportamento do som, além de outros qualificadores espaciais,
podendo ser descrita nas três dimensões espaciais habituais do espaço: a altura, a
largura e a profundidade (Pires, 2007). Tais dimensões se unem ao tempo para definir
os sistemas topológicos que marcam pontos de posição.
A altura será dada pela posição no eixo vertical do espaço da cena, sendo
definida principalmente pela composição do espectro (conforme a proporção de
frequências agudas ou graves) e pela posição elevada de alguns alto-falantes. Em
contrapartida, a largura é determinada pela densidade do espectro e pela magnitude do
som.
A delimitação de um espaço vertical pode ser observada em Vox Alia, no
movimento Amoroso, pois a parte inicial da obra é composta pela sobreposição de
diferentes camadas, sendo que cada camada está situada numa região frequencial
diversa. Desta forma, as frequências mais agudas delimitam a existência de uma
região mais alta verticalmente.
Também na segunda seção (em 1’52) da obra Cerberus os eventos percussivos
e pontuais estão dispostos em diferentes regiões frequenciais, contribuindo para uma
delimitação de espaço de alturas, podendo inclusive gerar a ilusão de se localizar em
posições físicas mais baixas ou mais altas em relação ao ouvinte.
A profundidade será definida pela impressão espacial revelada na escuta de
diversos eventos sonoros simultâneos ou posicionados alternativamente em diferentes
distâncias apresentadas ao ouvinte na projeção (Merlier, 2006). Aqui o tempo
também atua na percepção das posições, influenciando a evolução dos eventos

! 163!
sonoros, sendo que a distância temporal entre os eventos auxilia na definição das
posições.
Em Surface é possível identificar um caso de exploração deste qualificador,
quando (por volta de 0’07”) num plano focal mais distante é possível perceber a
existência de pequenos gestos numa região mais grave. Estes gestos realçam a ideia
de profundidade do ambiente, pois proporcionam a ilusão de um posicionamento mais
afastado em relação aos eventos do plano focal principal, reforçando um aumento na
noção de distância de cena.
Após a discussão dos qualificadores espaciais que constituem os eventos
sonoros, bem como os atributos relacionados a eles, é possível tratar de qualificadores
espaciais que lidam com a relação direta entre o ouvinte e os eventos sonoros.
Em uma composição de música eletroacústica, o ouvinte pode ser apenas um
observador externo dos eventos sonoros ou pode também estar imerso numa cena
auditiva. A percepção deste grau de envolvimento, que o ambiente composicional
pode proporcionar, é dado pelos qualificadores espaciais de imersão. Sobre possíveis
qualificadores que definem uma escuta imersiva, Rumsey (2002) considera são de
mais difícil concepção do que os qualificadores dimensionais, tais como a largura,
pois a uma imersão é percebida como uma impressão mais abstrata e
multidimensional.
No capítulo 1 deste trabalho, foi apontada a noção de espaço ambiofônico,
como aquele no qual a obra é composta de modo que o ouvinte se sinta envolvido
pela mesma. Este abarcamento proporcionado pelo espaço ambiôfonico pode ser
descrito a partir do qualificador espacial envolvimento e, segundo Rumsey, os
ouvintes identificam um envolvimento na projeção sonora ao perceberem que são
cercados por uma série de fontes, numa reprodução em surround. Esta sensação de
abarcamento também é identificada quando apenas um evento sonoro individual é
espalhado de uma maneira tão ampla que o ouvinte se sente como se estivesse
“embrulhado” por tal fonte.
A percepção deste qualificador pode ser descrita como envolvimento
relacionado com a fonte ou como um envolvimento de ambiente, sendo que no
primeiro caso o ouvinte experimenta a sensação de envolvimento a partir de um único
evento sonoro individual.
No segundo caso o envolvimento pode ser proporcionado por um conjunto de
fontes, onde as fontes individuais se organizam ao torno do ouvinte. O envolvimento

! 164!
ambiental é semelhante ao de conjunto, mas neste contexto acrescentam-se
reverberações e informações da sala onde os eventos sonoros são projetados167, sendo
exemplos deste último tipo de envolvimento as simulações de ambientes naturais.
É importante salientar este qualificador só ocorre em músicas que fazem uso
da projeção sonora em multifonia, sendo que a projeção estereofônica pode dar
apenas uma ilusão de um espaço tridimensional. Porém, o ouvinte, neste contexto,
sempre observará a obra pelo “lado de fora”, como se os alto-falantes fossem uma
moldura com imagens em perspectiva ou uma janela na qual o ouvinte observa um
ambiente exterior a ele.
Exemplos de envolvimento ocorrem em vários momentos de algumas obras
estudadas, sendo observado em momentos onde um espaço mais englobante ou
imersivo é explorado. Tais casos são encontrados na primeira seção de Locus e na
segunda de Indução, ressaltando-se um exemplo particularmente interessante do
recurso de espacialização utilizado no movimento Amoroso, em Vox Alia. Em 5’10” o
evento sonoro proveniente de uma vocalização gradualmente delineia um caminho
circular no espaço octofônico, cercando o ouvinte gradualmente, configurando um
envolvimento proporcionado pelo evento sonoro.
Uma noção de interior e exterior é importante na definição do envolvimento,
sendo que um ouvinte cercado por um evento ou ambiente sonoro estará localizado no
interior da obra, onde as informações vêm de todas as direções e passam “através”
deste ouvinte.
O ouvinte está localizado no exterior quando é apenas um observador externo
dos acontecimentos sonoros. Contudo é necessário reforçar que, mesmo numa
projeção em multifonia surround, o ouvinte pode se localizar no exterior de uma obra,
pois a configuração espacial pode estar é baseada em geometrias ou planos espaciais
separados, não numa situação de imersão. Ainda que esteja localizado no centro da
disposição dos alto-falantes, o ouvinte pode, na escuta, estar entre dois ou mais planos
focais que são projetados em diferentes regiões, tais como: um plano na frente e outro
na esquerda.
Uma ocorrência de uma situação de experiência de escuta de exterior durante
uma projeção surround ocorre em Vox Alia, no movimento Amororso (de 5’23” até
6’34”) em que o material sonoro é dividido em dois planos espaciais principais. O

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
167
Ibid.

! 165!
primeiro plano é constituído de sons oriundos de canto dos coros religiosos de vozes
masculinas, enquanto que o segundo é formado de sons originados de vozes femininas
realizando vocalizes. O primeiro plano é projetado pelos quatro alto-falantes frontais
e o segundo pelos quatro alto-falantes traseiros, fornecendo a situação em que o
ouvinte se encontra entre dois planos espaciais diferentes, e não imerso em um único
evento.
Outro qualificador relacionado à imersão é a presença, descrita como uma
sensação do ouvinte de estar no interior de um espaço qualquer. Nesta situação o
ouvinte pode reconhecer os limites do espaço em que está inserido, sendo os limites
identificados a partir dos estímulos ambientais, contextuais e de fundo. Assim, a
noção de plano de fundo é um elemento essencial para a delimitação da presença
numa cena espacial de uma obra eletroacústica (Rumsey, 2002). Smalley considera
que a noção de presença é uma característica do espaço espectral, segundo o autor:

morfologias agudas sustentadas e contínuas podem indicar (...) não


serem morfologias atuantes no espaço, mas sim uma presença
aeroformal, um meio de sugerir o próprio espaço, em vez de qualquer
coisa que se move no mesmo, possivelmente algo atemporal, como
se o tempo estivesse acalmado168 .

Essas morfologias contínuas, a que o autor se refere, podem ser consideradas


como sendo parte das relações contextuais e de plano de fundo, constituintes da
presença enquanto um qualificador espacial.
De um modo geral as morfologias mais contínuas podem auxiliar na ideia de
uma presença espacial, criando linhas ou manchas que delimitam um horizonte e
produzindo uma noção da “existência” de um espaço. Na concepção do autor, é
possível separar as espectromorfologias entre aquelas que parecem habitar o espaço
daquelas que aparentam “ser” o próprio espaço.
Os materiais sonoros que exploram a metáfora do tempo transparente parecem
fornecer esta sensação de presença espacial e um exemplo que parece ser evidente é o
ocorre na primeira seção de Locus, na qual são usados predominantemente materiais
texturais mais estáticos, com pouca direcionalidade, ausência de posição e evolução

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
168
“High sustained, continuant morphologies can indicate to me not a morphology acting in space, but
rather an aeriform presence, a means of suggesting space itself rather than anything which moves in it,
something possibly atemporal, as if time is becalmed” (Smalley, 2007, p. 47) .

! 166!
temporal lenta. Neste contexto, a projeção sonora fornece uma escuta imersiva que
proporciona um envolvimento do espaço.
Outro exemplo de presença espacial a ser citado é o que ocorre na segunda
seção de Cerberus, pois, ainda que esta seção seja predominantemente constituída de
trajetos de eventos sonoros individuais, uma textura ocorre no plano de fundo, com a
intenção de indicar a “existência” de um espaço no qual tais morfologias transitam.
Um espaço que envolve o ouvinte ou ainda aquele em que o ouvinte observa
“do lado de fora”, pode conter pistas que delimitam a natureza deste espaço. Uma
destas pistas consiste nas reflexões de um sinal acústico que fornece informações
sobre o tamanho do espaço em que o ouvinte está inserido, ou observando, bem como
sobre as superfícies (reais ou imaginadas) que envolvem este espaço.
Estas pistas fornecem mais um qualificador: a imagem de lugar, como um
critério da impressão espacial, definida por características de morfologia (como o
espectro e as reflexões de sinais), sendo também responsável pela percepção da
natureza do espaço em que envolve ou não o ouvinte169.
A imagem de lugar serve de auxílio na identificação de um ambiente como
amplo ou mais estreito, vazio ou habitado. Por ser um critério de impressão espacial,
tal qualificador não necessita que a massa-canal seja superior a um, porém este
qualificador quando unido com a presença de uma projeção em multifonia pode criar
ambientes espaciais mais ricos e complexos
Nas obras analisadas a imagem de lugar frequentemente é indicada pelo uso
de materiais referenciais que geram imagens de paisagens. Este tipo de tratamento
ocorre logo ao início da obra Vox V quando o compositor projeta nos canais frontais
eventos sonoros que fornecem uma referência a um contexto de ambiente onde ocorre
uma ventania. Também em Human-Space Factory, quando por alguns breves
momentos é possível identificar a cena de uma feira-livre (como ocorre por volta de
3’28”).
Em Dreaming in Darkness também ocorrem casos de imagem de lugar
fornecidos por materiais sonoros reconhecíveis, mas neste caso os tratamentos nos
eventos sonoros geram sensações de contextos diferentes. Em 0’26 os sons passos são
apresentados com uma certa reverberação, como se estivessem mais longe do ouvinte,
em uma área delimitada seguindo até a abertura e fechamento de porta (em 0’33”). De

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
169
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/

! 167!
0’33” a 0’38” os passos estão mais longe que os anteriores, estando também mais
velozes, como se estivessem correndo (sendo apresentados ainda com mais
reverberação).
Nesta mesma obra, na sequência de abertura de portas os sons de passos
parecem ter um processo de filtragem espectral que os fazem parecer mais abafados,
como se fossem ouvidos em um ambiente separado daquele em que eles acontecem.
O ambiente muda novamente em 0’42”, indicado pela variação do timbre dos sons de
passos que agora são mais granulares como se pisassem em cascalho ou água. Tais
passos “correm” até o som de fechamento de porta em 0’44”.
Na obra Cerberus, o caso dos ataques percussivos que ocorrem por volta de
1’52” poderia ser um exemplo de imagem de lugar, em uma situação de exploração
de sonoridades não referenciais. Cada evento sonoro pontual possui uma reverberação
que poderia ser interpretada como se os eventos se situassem dentro de um recinto
composto por materiais reflexivos, como paredes, por exemplo.

2.2.1.2 – Qualificadores Espaciais Dinâmicos

Nas seção antecedente foram apontados qualificadores estáticos, ou seja, que


existem em sua essência nos eventos sonoros e nas cenas espaciais, cabendo agora
indicar as possibilidades variáveis ou móveis de qualificação espacial.
O conceito de movimento é um fator importante na compreensão da música
pois tal aspecto possui grande importância para o desenvolvimento da noção de
expressão e diretividade em uma composição. O movimento serve também como guia
para a expectativa e antecipação na escuta. Sobre este aspecto, Vaggione (1996)
sugere que uma “legibilidade” das morfologias, no caso da música eletroacústica,
pode ser alcançada a partir da disposição destas morfologias em movimento na
projeção sonora.
O movimento na música instrumental é metafórico, uma vez que é desvendado
a partir da combinação das alturas e divisões temporais, resultando numa
direcionalidade da estrutura. No caso das músicas eletroacústicas, os compositores
podem materializar essa experiência de movimento através do uso de dispositivos
tecnológicos. Além do desenvolvimento do material musical, é possível projetar nos

! 168!
alto-falantes o deslocamento de objetos sonoros, além de seus posicionamentos em
lugares específicos no ambiente de escuta.
Portanto, no meio eletroacústico, o movimento pode ser entendido como um
qualificador espacial na escritura e na interpretação espacial, pois o movimento de um
som é a maneira mais distinta de se experimentar o espaço.
A maioria das músicas eletroacústicas (especialmente as acusmáticas) é
constituída em sua essência por sons dinâmicos, sendo que os movimentos destes
ocorrem no interior do espectro, na variação de alturas e de dinâmicas, ou ainda por
meio do deslocamento espacial (Couprie, 2011). Por esta razão, a mobilidade é um
dos principais aspectos que é considerado no momento da concepção de uma
composição eletroacústica.
O movimento é concebido tanto individualmente quanto globalmente na
manipulação do material musical, pois o compositor buscará um objetivo-alvo que a
obra deve alcançar através deste. Este movimento poderá ter um objetivo linear ou
direcional, podendo também ser adirecional, com uma tendência mais estática. As
características evolutivas dos eventos sonoros, bem como de uma obra musical como
um todo, são desvendados pelo movimento.
A percepção deste qualificador espacial é o resultado de um complexo de
informações fornecidas pelo evento sonoro, sendo que o movimento pode estar
relacionado com aspectos do espaço intrínseco dos eventos sonoros individuais, com
aspectos do espaço extrínseco, ou ainda relacionados ao espaço composto.
No que se refere ao espaço intrínseco, o movimento é caracterizado por
variações espectrais e frequenciais internas, que geram uma direcionalidade (como no
caso da sensação de subida e descida proporcionada por um glissando).
O movimento no espaço extrínseco é descrito pelo deslocamento de um
evento sonoro de uma posição para a outra. No caso do espaço composto, o
movimento é determinado a partir da relação entre os eventos musicais (Henriksen,
2002).
Sobre os parâmetros musicais que constituem a percepção dos movimentos,
Eitan e Granot (2004) fizeram um experimento com diferentes ouvintes, sendo alguns
destes possuidores de algum conhecimento musical enquanto outros não. Os autores
investigaram como diferentes parâmetros musicais afetam ouvintes na formação de
imagens mentais de movimento, examinando o efeito de intensificações e abatimentos
em altura e intensidade.

! 169!
Os pesquisadores tocavam um trecho melódico breve e os ouvintes deveriam
especificar o tipo de movimento imaginado e a investigação permitiu aos autores
concluir que todos os parâmetros musicais apresentados afetaram a imaginação de
movimento em várias dimensões. Por exemplo, o contorno de alturas afeta a ilusão de
movimento nos três eixos espaciais, assim como a velocidade e energia170. Desta
maneira, as variações espectrais têm um papel importante na descrição do movimento,
não apenas no quesito variação de altura, mas também em outros aspectos que
compõem o movimento.
Além dos aspectos espectrais, os temporais também definem a noção de
movimento. As variações de parâmetros do som compõem a essência do movimento
musical, sendo que o comportamento temporal dessas mudanças, em relação a outros
eventos, também pode ser interpretado como movimento. Portanto, o movimento do
som musical é percebido a partir da disposição temporal de uma sequência de
estruturas sonoras duráveis (Zelli, 2009b).
O movimento enquanto qualificador espacial é responsável pela determinação
da característica de mobilidade dos eventos sonoros individuais. Este atributo dos
eventos sonoros proporciona a mudanças de posição que podem em implicar
variações de distância (Pires, 2007). Esta mudança, como tem sido comentado, é
temporal, envolvendo um passado e um futuro.
As obras analisadas são ricas em exemplos de mobilidade, mas vale citar o que
ocorre em 2261. O trecho que vai de 2’24” até 3’03” tem o conteúdo morfológico
muito movente, pois é caracterizado pela predominância de texturas mais graves com
uma certa agitação interna (semelhante a um trêmolo não-periódico) e que tem
movimento mais lento. Algumas trajetórias espaciais são acrescentadas (como por
exemplo em 2’30”) e neste caso o movimento é dando tanto pela agitação interna de
uma textura quanto pelo deslocamento de uma trajetória.
Em Surface, é possível indicar um exemplo de mobilidade em 1’40”, quando
aparece um evento sonoro que possui micro variações frequenciais internas, com
trajetória muito bem definida e está numa região mais aguda. A mobilidade neste caso
é constituída tanto pela animação interna como pelo deslocamento do mesmo evento.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
170
Ibid.

! 170!
É possível definir se um som está em uma direção ou se encontra-se em
deslocamento para alguma direção, se é estável e unidirecional, se é instável e/ou
multidirecional, ou ainda se é a mistura de mais de um destes processos.
A partir disso, um eixo que vai da imobilidade ao movimento é considerado
como um elemento passível de articulação na composição musical, sendo que o
compositor pode definir tantos níveis de mobilidade conforme considere necessário
(Pires, 2007).
A variação de mobilidade pode ser observada na composição 2261, logo ao
início, quando, nos canais traseiros, sons repetitivos e espaçados no tempo são
acrescidos de texturas mais longas, além de gradualmente haver uma projeção de
eventos nos canais mais centrais. Este trecho fornece a noção de não direcionalidade,
de imobilidade, através do uso de texturas contínuas, marcadas por crescimento
gradual. Em 0’59” a textura espectral fica mais densa e cresce velozmente, assumindo
uma trajetória que irá resultar em um ataque que ocorre por volta de 1’00”. Este
aumento de intensidade e velocidade conferem direção para este evento indicando a
mobilidade.
A precisão ou imprecisão do movimento pode ser percebida quando se
compara o evento ao contexto em que está inserido. Os eventos sonoros que possuem
contornos precisos e se destacam em relação a um fundo, proporcionam uma
percepção mais acurada de movimentos (Pires, 2007).
O deslocamento e a trajetória são qualificadores espaciais oriundos do
movimento. O deslocamento é a capacidade do som de ir de um ponto no espaço a
outro e numa composição eletroacústica, um deslocamento pode ser efetuado a partir
da alteração de intensidade ou fase do som sobre os alto-falantes no momento da
projeção (Merlier, 2006). Este qualificador pode ocorrer tanto no eixo horizontal
como no vertical, mas também pode ser descrito enquanto aproximação e
afastamento.
Exemplos de variações de aproximação e afastamento podem ser observados
em vários momentos das obras estudadas. No primeiro movimento de Vox Alia é
possível notar este processo com as camadas texturais que compõem o material da
primeira seção. Em 1’26” a camada mais grave fica mais forte nos canais 3, 5 e 6
dando uma noção de aproximação que vem do lado esquerdo, como se um grupo de
fontes semelhantes se aproximassem coletivamente do ouvinte.

! 171!
Em Surface a aproximação é realçada pelo uso do canal central, quando aos
2’59” um gesto curto parece ser lançado velozmente da direita para a esquerda,
concentrando a sua energia no canal central, como se o som passasse num campo de
visão muito próximo ao rosto do ouvinte, tomando em referência a percepção visual.
Em Dreaming in Darkness, nos vinte segundos iniciais da obra, ocorre uma
noção de aproximação na apresentação de eventos sonoros provenientes de três
toques de campainha soados em sequência. Cada repetição é mais forte do que a
anterior, como se o ouvinte se aproximasse daquela fonte. Esta aproximação também
delimita uma perspectiva de profundidade para o espaço da obra.
No início de Vox V é possível reconhecer o uso de um tratamento do material
que parece indiciar uma percepção de variação de distância. Durante a apresentação
do material que faz referência a uma situação de ventania, em um plano focal menos
importante, a nova camada que inicia 0’13” cresce em intensidade gradualmente e
este crescimento parece caracterizar uma aproximação do ouvinte com a paisagem
escutada. Neste caso, a aproximação é referente a um contexto ao invés de um
“objeto” ou “personagem” de uma cena, pois toda a textura pouco a pouco se torna o
foco principal na escuta. É interessante notar neste exemplo que o jogo de
afastamento e aproximação de dois planos fornece uma mudança gradual de contexto
sonoro.
Os meios de projeção em multifonia proporcionam uma maior riqueza de
possibilidades de deslocamentos espaciais dos eventos sonoros, sendo que Guerin,
(2008) considera que:

é possível realizar movimentos sonoros nas três dimensões do espaço


real, esquerda-direito, alto-baixo, frente-atrás (...). Além disso,
“diferentes sentimentos cinestésicos são comunicados ao ouvinte, da
estagnação mais completa ao turbilhão mais atordoante171 .

Estes sentimentos cinestésicos parecem se aproximar de ilusões ópticas no


plano visual172.
A trajetória é o modo como um deslocamento percorrido por um evento
sonoro é descrito, referindo-se ao percurso linear que tem um começo e um fim, tal
como uma reta, uma curva, ou um arco de círculo (Merlier 2006). Uma trajetória
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
“Différents sentiments kinesthésiques sont alors communiqués à l'auditeur, de la stagnation la plus
complète au tourbillon le plus étourdissant.” (Guerin, 2008, p. 131)
172
Ibid.

! 172!
conterá uma direcionalidade que indica o seu “objetivo de chegada” no espaço em
que o evento sonoro percorre. Ou seja, corresponderá à relação entre o ponto de
partida e o de chegada de um percurso de um som qualquer (Pires, 2007). Uma
trajetória pode ser dirigida, cíclica, errática, constante em sua velocidade ou
inconstante.
O movimento na maioria dos casos é uma impressão espacial resultante de
variações espectrais no tempo. Sobre esta questão Smalley (1986) afirma que:

o design espectro-morfológico em si (...), ao controlar a formatos


dinâmicos e espectrais, cria movimentos reais e imaginários, sem a
necessidade de movimento real no espaço173.

Esta configuração decorrente das espectromorfologias a que se refere Smalley,


pode ser entendida como a imagem de movimento apontado por Duchenne174. Para o
segundo autor, tal imagem é exposta a partir de variações de outras impressões
espaciais. Como foi apontado anteriormente, qualquer variação do conteúdo espectral
ou de intensidade pode conduzir a representações mentais de movimento.
Contudo, como tem sido abordado neste texto, a projeção em mais de dois
alto-falantes proporciona possibilidades de deslocamentos espaciais dos sons,
destacando uma ambiguidade na categoria das imagens de movimento, o que se trata
de uma “imagem de variação de massa espacial”175, na qual variações nas abordagens
em multifonia materializam uma percepção de movimento no espaço. As variações
dos qualificadores resultantes da massa espacial geram movimentos dos eventos
sonoros, sendo que estas variações são descritas como a maneira pela qual o som
comporta-se em sua duração176.
A variação do qualificador local terá como resultante o deslocamento do
evento sonoro, sendo que este processo é o meio mais usual de gerar movimento
cinético em uma composição difundida em multicanal. As demais variações de outros
qualificadores como a área, o formato e a densidade, podem enriquecer uma noção de
movimento177.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
173
“Spectro-morphological design on its own, however, in controlling the spectral and dynamic
shaping, creates real and imagined motions without the need for actual movement in space.” (Smalley,
1986, p.73).
174
Em http://multiphonie.free.fr/
175
Ibid.
176
Ibid.
177
Ibid.

! 173!
Além de deslocamentos e trajetórias, os movimentos podem ser descritos
enquanto processos de crescimento (Smalley, 1997) que não possuirão uma trajetória
linear, sendo em sua essência multidirecionais. Estes processos podem ser resultantes
das variações de qualificadores espaciais já mencionados. Como exemplo é possível
citar uma dilatação ou encolhimento de um evento sonoro que pode ser determinado
pela variação de área e uma dispersão de um ponto para um conjunto sonoro pode
citado como exemplo da variação de densidade de um conjunto de eventos
individuais, num nível mais alto da estrutura178.
Esta discussão resultou em uma possível a conclusão de que os qualificadores
espaciais não são facilmente delimitados em atributos independentes. O movimento
envolve a influência de vários parâmetros musicais, bem como a variação de
qualificadores espaciais estáticos, já inerentes a um evento sonoro. Buscou-se aqui
apontar alguns aspectos relativos à espacialidade inerente ao movimento dos eventos
sonoros e mais adiante neste trabalho, serão abordados mais especificamente o gesto e
a textura como geradores de movimento, e consequentemente, como articuladores do
espaço na composição eletroacústica.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
Os exemplos práticos de movimentos revelados por deslocamento, trajetória e processos de
crescimento serão melhor descritos no capítulo 4 onde será discutido o uso de gestos e texturas como
um meio de gerar espacialidades em música eletroacústica.

! 174!
Capítulo 3 - O Entendimento do Espaço

Até este ponto do trabalho foram apontados os conceitos que se referem à


concepção e organização dos aspectos espaciais numa obra musical, bem como as
características espaciais que descrevem os eventos sonoros que a constituem.
Contudo, também se faz necessário apontar os processos referentes à escuta das
noções espaciais abordadas anteriormente.
No desenvolvimento deste trabalho, buscou-se principalmente observar as
noções estéticas e poéticas em relação ao uso do espaço em composições
eletroacústicas, sendo que uma abordagem técnica mais elaborada acerca das noções
psicoacústicas de escuta dos aspectos espaciais está além do escopo das discussões
desta tese. Os apontamentos sobre os processos relacionados com a escuta aqui
apresentados servirão como conhecimentos básicos necessários à manipulação dos
diferentes aspectos espaciais numa obra eletroacústica.

3.1 – A Experiência de Escuta Espacial: Espacialidade

A música eletroacústica tem-nos apresentado uma pluralidade de abordagens


para a reprodução multicanal, sendo que o compositor ou intérprete de difusão, ao
conceber as questões estéticas ou as abordagens e metodologias de composição, deve
estar ciente das realidades da percepção espacial. Deve também reconhecer que os
ouvintes buscam sentido e significações nos eventos espaciais.
A percepção pode ser conceituada como o modo que o ouvinte aplica para
resolver problemas, por meio da segregação e organização das informações sensoriais
em eventos coerentes separados. A seguir o ouvinte busca descobrir qual é a fonte dos
eventos e tal descoberta depende da natureza das informações específicas que estão
focalizadas na atenção bem como o contexto em que as informações são ouvidas
(Henriksen, 2002).
As características espaciais de eventos sonoros e suas relações (entre eles e no
ambiente) constituem um aspecto importante para a formação da percepção numa
escuta eletroacústica, constituindo uma faceta importante da natureza das informações
escutadas.

! 175!
Numa escuta acusmática ou mista, quer seja num contexto estereofônico, quer
num contexto de projeção multicanal, é possível ter uma escuta apoiada numa
experiência espacial.
Numa obra musical, onde ocorre uma experiência espacial, o ouvinte lida com
múltiplas sensações que operam, em conjunto, na formação das impressões
qualitativas ligadas ao espaço. O termo espacialidade tem sido usado por alguns
autores para referir às impressões qualitativas que resumem a experiência espacial do
ouvinte.
Ouvintes, em suas experiências de audição do som no espaço, o associam com
sensações e pensamentos, sendo que tais experiências sofrem influência do
conhecimento enraizado de espaço e de movimento, conhecidos previamente à escuta
relacionados ao não-sonoro.
A partir de vivências cotidianas, os ouvintes percebem e compreendem noções
de espaço e sua experiência corporal contribui para esta formação, o que é aparente
nas analogias e metáforas espaciais empregadas em nossa linguagem e raciocínio.
Merlier (2011) resume este conceito:

A espacialidade nos parece ser semelhante à percepção dos


resultados do espacial (ação de espacializar) ou a percepção de uma
escolha estética (o que seria uma espécie de “ação intelectual)179.

Muitos são os textos que reforçam a ideia de que a experiência espacial numa
escuta musical só é obtida por meio da relação entre vários atributos perceptuais
consultados durante a escuta.
Barry Blesser e Linda-Ruth Salter em seu livro Spaces Speak, are You
Listening? (2007), entre outras abordagens, fazem uma extensa discussão a respeito
da consciência espacial auditiva do sujeito que se situa numa arquitetura aural180. Os
autores discorrem sobre os diferentes modos em que o espaço é percebido por meio
da audição, afirmando que:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
“La spatialité nous semble être assimilable à la perception du résultat de la spatialisation (action de
spatialiser) ou à la perception d'un choix esthétique (qui serait une sorte d' ‘action intellectuelle”
(Merlier, 2011, p. 14).
180
Em um modo sintetizado é possível definir a arquitetura aural aquilo que se refere a propriedades
de um espaço que pode ser experienciado pelo ouvinte (Blesser e Salter, 2007,). Tal arquitetura é
composta de superfícies numerosas, objetos e geometrias em um ambiente complexo (Ibid.) . E ainda,
“a arquitetura aural também tem um significado social”, pois “(...)valores culturais e funções sociais
determinam as consequências experienciais dos atributos espaciais” (Ibid., p.3,).

! 176!
a audição com seu complemento ativo, a escuta, é um meio pelo qual
sentimos os eventos da vida, visualizamos auralmente a geometria
espacial, propagamos símbolos sociais, estimulamos emoções,
comunicamos informações aurais, experienciamos o movimento do
tempo, construímos relações sociais e retemos uma memória de
experiências181 .

Nesta concepção, a audição nos fornece várias informações que relacionamos


com outras modalidades sensoriais que nos ajudam a estabelecer a percepção do
espaço externo. Para os autores citados182, a consciência espacial auditiva é mais do
que apenas a capacidade de detectar o espaço de alterações do som. Também
compreende, além da detecção do som pelos ouvidos, a experiência emocional e
comportamental do espaço que o ouvinte vivencia. Neste contexto, a consciência
espacial auditiva seria um amálgama complexo que compreende atributos espaciais,
percepção auditiva, história pessoal e valores culturais.
Seguindo a discussão, os autores descrevem que a consciência aural progride
através de uma série de estágios: transformação ondas sonoras em sinais neurais,
detecção das sensações produzidas e percepção das fontes sonoras e do ambiente
acústico. Por fim, este conjunto influencia na criação de um afeto, emoção ou estado
de espírito no ouvinte183. Isto significa que o ouvinte necessita de um arcabouço de
processos intelectuais para que a experiência espacial seja adquirida.
O som físico é uma onda mecânica que se propaga em um meio físico que
fornece a audição de eventos sônicos e atributos de um espaço acústico, conectando o
mundo externo ao ouvinte. Os processos cognitivos, contendo a história pessoal de
ouvintes individuais, transformam a sensação bruta de apreensão do som em uma
consciência que tem um significado184.
A percepção do espaço através dos sons inclui influências culturais e pessoais,
sendo que a consciência espacial auditiva varia entre a sensação bruta e níveis mais
elevados de escuta, correspondendo a uma grande variabilidade em sensibilidade para
pistas acústicas e estratégias cognitivas específicas185.!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
181
“Hearing, together with its active complement, listening, is a means by which we sense the events of
life, aurally visualize spatial geometry, propagate cultural symbols, stimulate emotions, communicate
aural information, experience the movement of time, built social relationships, and retain a memory of
experiences” (Blesser e Salter, 2007, p.4).
182
Ibid.
183
Ibid.
184
Ibid.
185
Ibid.

! 177!
Seguindo este raciocínio, para Blesser e Salter186, uma imagem espacial
interna é uma construção cognitiva individual que compreende uma resposta mental
ao estímulo sensorial que será influenciada pela experiência. Nesta perspectiva, esta
construção cognitiva de um espaço é a combinação de regras de geometria, bem como
o conhecimento sobre o mundo físico, adquiridos ao longo da vida. !
Contudo convém ressaltar que a construção cognitiva de espaço na
consciência de um ouvinte é subjetiva e personalizada, sendo uma criação sintética e
ativa ao invés de uma reação passiva ao estímulo. Desta forma, ao detectar um
ambiente espacial, um indivíduo constrói seu próprio entendimento de espaço a partir
de uma combinação da informação sensorial e do conjunto de suas experiências
acumuladas nas vivências cotidianas. Ou seja, os ouvintes interpretam pistas
sensoriais usando a memória de experiências prévias para criar um espaço interior
próprio de um mundo externo187. !
Em sua abordagem do tema, Kendall (2010) considera que uma compreensão
prática do espaço pelo ouvinte não é simplesmente construída no momento em que o
estímulo é recebido, isto é, numa percepção imediata.
As percepções espaciais cotidianas, segundo o autor, são adquiridas através
dos sentidos e integradas de acordo com a nossa representação mental em curso no
mundo ao nosso redor. Nesta perspectiva, a imagem de espaço formada na mente não
é idêntica ao espaço do mundo físico, pois o espaço da mente está em constante
processo de construção em busca de conformação, enquanto que o espaço físico é
estável e não necessita de esforço para ser mantido (Kendall, 2010).
Quando um som é escutado, automaticamente o que foi apreendido pelos
ouvidos é relacionado com o que é conhecido pelo tato, visão, propriocepção, entre
outros sentidos e relações mentais. Ou seja, para a experiência espacial ser
compreendida é necessário uma “consulta” fora do contexto sonoro. É possível pensar
a cognição espacial como um processo que envolve a contribuição de todas as
modalidades sensoriais (Blesser e Salter 2007).
Esta relação de fusão de modalidades sensoriais em uma consciência espacial
auditiva poderia ser relacionada com o que Smalley (2007) chama de “ligação
transmodal”. Para o autor:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
186
Ibid.
187
Ibid.

! 178!
Ligações transmodais ocorrem automaticamente quando os materiais
sonoros parecem evocar o que imaginamos ser parte da experiência
do mundo fora da música, e na escuta acusmática (não apenas música
acusmática) respostas transmodais ocorrem mesmo que esses
sentidos não sejam ativados diretamente apenas para ouvir188 .

Em música eletroacústica, somos levados a contemplar as mais variadas


ligações transmodais, nas quais é possível apreciar as mais diferentes sensações
espaciais como trajetória, texturas e profundidades que podem ser apontadas pelas
possibilidades sonoras apresentadas nesta abordagem composicional.
Tendo em vista os conceitos acima expostos, a noção de ligação transmodal
está intimamente conectada à idéia de espacialidade para a elaboração deste trabalho.
Reforçando esta questão, Nyström (2013) considera que a
espacialidade envolve um espectro de experiências físicas diferentes
associadas com a nossa presença corporal no mundo sonoro
acusmático: habitamos o espaço musical, que nos habita189 .

A dinâmica entre as diferentes facetas da espacialidade é essencial para a


compreensão das metamorfoses espaciais de um evento sonoro. Sendo assim, é
possível direcionar a experiência espacial para diferentes aspectos do som. Além
disso, imagens representações mentais relacionadas ao espaço surgir durante a escuta,
numa lembrança ou na imaginação (Kendall, 2010).
Esta concepção indica que as capacidades espaciais do ouvinte não são apenas
um produto da percepção imediata, mas sim que os ouvintes pensam espacialmente.
Os significados espaciais que o ouvinte vivencia durante uma audição de música
eletroacústica serão o resultado final de uma complexa cadeia de pensamentos e
ações.
Para Kendall190, um dos extremos desta referida cadeia faz parte da obra do
compositor, que imagina significados espaciais durante a confecção da composição e
os produtos deste esforço são os eventos sonoros trazidas à sala de concertos para a
projeção no caso de uma obra eletroacústica. Neste caso, os sons que são projetados

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
188
“Transmodal linking occurs automatically when the sonic materials seem to evoke what we imagine
to be the experience of the world outside the music, and in acousmatic listening (not just acousmatic
music) transmodal responses occur even though these senses are not directly activated in order only to
listen” (Smalley space-form, p.38).
189
“Spatiality involves a spectrum of different physical experiences associated with our bodily
presence in the acousmatic sound world: we inhabit the musical space; it inhabits us” (Nyström, 2013,
p.22).
190
Ibid.

! 179!
em um concerto podem fornecer estímulos sensoriais aos ouvintes, que podem ser
bem diferentes dos trazidos numa composição instrumental.
As disparidades nas experiências podem se manifestar nos diferentes locais em
que o ouvinte está situado durante escuta, bem como nas razões particulares para os
indivíduos estarem presentes naquele concerto. As associações distintas com as fontes
sonoras e os diferentes graus de conhecimentos de música eletroacústica também são
fatores que influenciam as diversidades de experiência. Porém, podem existir
semelhanças fundamentais nas experiências dos ouvintes no meio de toda essa
diversidade.
As particularidades de uma audição espacial fornecem casos de semelhanças
de experiências, que são aparentemente invariáveis para todas as pessoas. Em muitos
casos, a maioria dos ouvintes de um público pode compartilhar percepções e
entendimento das relações espaciais cotidianas, pois parece existir experiências
comuns entre os indivíduos geradas na vivência do mundo natural191.
No que concerne à percepção espacial compartilhada entre indivíduos, Blesser
e Salter (2007) apontam ainda outro conceito interessante, o de horizonte acústico.
Tal conceito refere-se à abstração de fronteiras espaciais criadas na percepção
auditiva individual, ou seja, o horizonte acústico trata da distância máxima entre o
ouvinte e a fonte sonora onde o evento sônico ainda pode ser ouvido192.
Quando um evento sônico ultrapassa este horizonte acústico, ele passa a ser
mais fraco em relação ao poder de mascaramento de outros sons audíveis ou
inteligíveis. O horizonte acústico pode ser então considerado como a fronteira
experiencial que delineia quais eventos são incluídos ou excluídos no momento da
escuta193.
Este horizonte acústico irá delimitar também o que os autores chamam de
arena acústica, que consiste em uma região onde ouvintes são parte de um
comunidade que compartilha uma habilidade para ouvir eventos sônicos. Uma arena
acústica é centrada na fonte sonora e os ouvintes estão dentro ou fora de uma arena de
eventos sonoros194.
A arena acústica também pode ser considerada como a área em que os
ouvintes podem identificar “sons alvos”, que têm intensidade suficiente para subjugar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
191
Ibid.
192
Ibid.
193
Ibid.
194
Ibid.

! 180!
o “ruído de fundo”, considerado como sons indesejáveis. Nesta perspectiva, quando
um som alvo é mais fraco que um ruído de fundo, este som o está além o horizonte do
ouvinte, e consequentemente, fora da arena acústica.
Smalley (2007) apresenta um conceito paralelo, onde espaço arena é todo o
espaço público habitado por artistas e ouvintes. Neste contexto, um público pode estar
consciente dos espaços pessoais e sociais dentro de sua própria zona, através do
comportamento deste público, podendo ainda, buscar um aumento de contextos
pessoais e sociais. Segundo Smalley195, seja qual for o tipo de contexto cultural em
que uma música é executada, é a música em si que carrega informações de espaços
pessoais e de conjunto. Portanto, no espaço arena, uma performance pode fornecer a
integração de diferentes espaços espaços, ainda que exista separação física entre eles.
Conforme Blesser e Salter (2007), arenas acústicas e horizontes acústicos são
equivalentes, o que muda é a referência do que é observado. Os sons indesejados
(ruídos) são importantes neste contexto, pois podem mudar o alvo da arena acústica e
o horizonte acústico do ouvinte. O ruído de fundo está sempre presente num contexto
sonoro, ainda que sem destaque, sendo determinante na delimitação de fronteira de
uma arena acústica, pois a emissão de diferentes sons personaliza um ambiente
particular.
Os conceitos de sons alvos ou sons indesejáveis são determinados por aqueles
que ocupam ou vivem num espaço acústico. Num espaço de execução musical, esta
definição se apresenta da seguinte maneira: os sons produzidos por músicos ou alto-
falantes e a resposta do espaço a este sons podem ser considerados como sons
alvos196.
Em cenário social, que não envolve necessariamente a música, a definição de
som alvo é não é fixa, pois um mesmo som pode ser vivenciado como desejável por
um ouvinte e indesejável por outro. Assim, na visão de Blesser e Salter a “arena
acústica é a experiência da espacialidade social, onde o ouvinte está conectado a
atividade de produção sonora de outros indivíduos”197. Desta forma, os atributos
espaciais dos eventos sonoros são apenas um dos componentes da arena acústica e
em cada situação, tanto coletiva quanto individual, aqueles que ocupam ou vivem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
195
Ibid.
196
Ibid.
197
“The acoustic arena is the experience of a social spatiality, where a listener is concected to the
sound-producing activities of other individuals.” (Ibid., p.25)

! 181!
num espaço tem o direito de manejar o tamanho e a forma de suas arenas acústicas
próprias198.
É importante ressaltar ainda que, em todas as experiências espaciais, existem
duas perspectivas199: uma alocêntrica, onde os objetos são percebidos relativos a um
sistema externo fixo; e outra egocêntrica, na qual os objetos são relativos a um
observador.!
Segundo Kendall (2010), a perspectiva egocêntrica é voltada para o corpo
enquanto que a alocêntrica é uma perspectiva orientada para um exterior. Se
observado de uma perspectiva alocêntrica, um instrumentista estará sempre
localizado na frente da sala de concerto, independentemente do lugar onde o ouvinte
está localizado no público. Em uma perspectiva egocêntrica, uma pessoa mais alta
que o ouvinte se coloque à sua frente, provocará uma experiência individual
diferenciada. Assim sendo, numa perspectiva alocêntrica o indivíduo está situado
dentro de um ambiente externo fixo, implicando que a realidade existe apesar da
existência de tal indivíduo. Já no caso de uma perspectiva egocêntrica o indivíduo
está situado no centro de um universo experiencial onde tudo é interpretado em
relação a ele200.!
Os horizontes acústicos e as arenas acústicas, ou espaço arena como Smalley
propõe, poderiam ser encarados como aspectos de uma experiência espacial na
perspectiva alocêntrica, pois, apesar de as experiências serem variadas, estas são
compartilhadas num contexto sonoro coletivo.!
Sobre as perspectivas egocêntricas, é possível tomar como exemplo os
conceitos de espaço gestual, talvez o espaço conjunto de Smalley (2007). O espaço
gestual é aquele espaço individual vivenciado pelo instrumentista, no qual o corpo
sonoro e o gesto de performance estão ligados fisicamente.
A ação do instrumentista produz uma zona espacial que interage com o espaço
em próprio da fonte instrumental sendo que todo este processo será unido numa
espectromorfologia resultante201.
Sob condições em que o ouvinte não vê a produção dos sons (como acontece
com a gravação), as espectromorfologias fornecem informações do gesto que as
produziu, pois são portadoras de um espaço agencial. Um ouvinte que não participa
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
198
Ibid.
199
Ibid.
200
Ibid.
201
Ibid.

! 182!
do processo de produção de som é capaz de decodificar o grau de intimidade do
espaço gestual através da observação visual, auditiva de propriocepção. Um espaço
gestual nunca existe sozinho: existe sempre algum tipo de contexto, que seria o
espaço conjunto e o espaço arena202.
O espaço conjunto, conforme Smalley, é aquele “dentro do qual os espaços
gestuais individuais estão aninhados, é o espaço pessoal e social entre os artistas: um
grupo de artistas produz um espaço de performance coletivo”203. Observa-se aqui
certa ambiguidade na definição da perspectiva (egocêntrica ou alocêntrica) de tal
espaço, pois, ainda que tenha uma relação de coletividade, a experiência espacial se
dá em um grupo fechado, como uma arena acústica particular que se encontra dentro
de uma arena acústica maior.
Um público pode apreender o espaço conjunto tanto visualmente, quando os
ouvintes apreendem a propriocepção na obra e sabem como ela funciona, quanto na
música, quando os ouvintes reconhecem auditivamente tal propriocepção.
Os espaços gestuais individuais que se encontram dentro de grupos familiares
(como naipes de orquestras, por exemplo) podem se comunicar apenas dentro de seus
grupos familiares204.
No espaço conjunto o tecido da música é revelado no processo de articulação
através da sincronização em um gesto que é coletivo, observando as trocas de
materiais e a colaboração ou a competição de gestos dentro de uma textura. Este
espaço pode estar relacionado com um espaço de comportamento, devido a
necessidade de relação entre vários espaços gestuais individuais. Neste contexto, as
fontes sonoras podem ser consideradas como espaços gestuais particulares, porém
pode existir um movimento espacial global dos materiais musicais, pois as próprias
espectromorfologias são dispersas ou movem-se, em vez de fontes ou causas fixas205.
Os eventos sonoros são constituídos por um objeto, uma ação geradora e um
agente, e estes são experimentados pelo ouvinte através de várias modalidades
sensoriais (Kendall, 2010). A escala física das ações podem muitas vezes serem
inferidas pelos ouvintes dos objetos e agentes que produzem eventos, bem como o
contexto provável em que os eventos ocorrem.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
202
Ibid.
203
“Ensemble space, within which individual gestural spaces are nested, is the personal and social
space among performers: a group of performers produces a collective performed space.” (ibi., p. 42)
204
Ibid.
205
Ibid.

! 183!
O evento conceitual, conforme Kendall206, seria algo que o ouvinte imagina, a
partir das propriedades conceituais usadas no entendimento do que é ouvido, com
base na experiência da escala física de ações. Para o autor, a percepção direta de
relações espaciais auditivas é uma das formas pelas quais os seres humanos
desenvolvem a sua compreensão conceitual de eventos.
O evento conceitual, na concepção do autor207, pode influenciar e restringir
simultaneamente a percepção auditiva, o que se pode exemplificar com ouvintes mais
propensos a ouvir a chuva cair acima do que abaixo deles. Nesta perspectiva, existe
uma interação constante entre a percepção imediata e compreensão do mundo que
rodeia o ouvinte, sendo possível supor que o percebido pode ser influenciado pelo
esperado.
A partir de expectativas e de sensações, o ouvinte ativa o que Thomas (2008)
denominará espaço imaginário, sendo “o espaço íntimo; sentido humano de espaço
(psíquico, corporal, estético)”208.
Para o autor, tal espaço é um espaço projetado no ouvinte e materializado na
escuta, se situando em um lugar além do espaço interno de uma obra. O espaço
imaginário estará, portanto, num nível mais subjetivo, sendo resultado de uma “escuta
209
livre” . Um de espaço imaginário, na perspectiva de Tomas pode ser ativado num
contexto de escuta de música eletroacústica, uma vez que muitos eventos sonoros não
possuem causas conhecidas. Neste contexto, as associações espaciais serão baseadas
em experiências pessoais e subjetivas.
É possível fazer um paralelo do conceito de espaço imaginário com o espaço
mental de Duchenne210. O autor considera que um som escutado num contexto de
música eletroacústica, pode favorecer a formação de uma representação mental por
parte do ouvinte que se insere num contexto espacial imaginário e indefinido.
as imagens de diferentes contextos espaciais e o espaço projetado do som
estabelecem elementos importantes do que o autor chama de espaços mentais211,
contudo, estes elementos são combinados de maneira complexa e pessoal do ponto de
vista do ouvinte.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
206
Ibid.
207
Ibid.
208
“l'espace intime; Le ressenti humain d'espace (psychique, corporel, esthétique)” (Thomas, 2008, p.
142).
209
Ibid.
210
Duchenne em http://multiphonie.free.fr/espaces.htm
211
Ibid.

! 184!
O conceito de imagem sonora (i-som) de François Bayle (2008) enriquece a
discussão sobre a experiência da escuta espacial na música eletroacústica. Na
perspectiva do autor, considerar o espaço e o seu tratamento apenas em relação a
ferramentas e técnicas eletrônicas dá explicações somente no primeiro nível de
percepção proprioceptiva. Refere-se apenas ao que é denominado espaço-objeto,
sendo algo que percorre de modo tridimensional pelo tempo e pela velocidade.
Para o autor, o entendimento vai além, sendo o espaço compreendido ao
mesmo tempo como uma prática, um fenômeno e uma representação212. Em sua obra
de 2007, Bayle considera que no contexto eletroacústico um som que saiu de um
transdutor não é necessariamente reconhecido como um som emitido num ambiente
natural. Um indivíduo tem a ilusão de reconhecê-lo, porém ele não se encontra na
realidade. A partir desta percepção, que o autor denomina “fantasma”, é proposto o
paradigma da imagem de som213.
Portanto, uma imagem seria um “traço (permanente ou alterável) de um
sentimento de uma realidade, a expressão de uma intenção fenomenológica”214. No
contexto de música eletroacústica, a imagem (que o autor chama de i-son) seria um
objeto de escuta pura, que se destaca de qualquer contexto aparente215.
A imagem anteriormente descrita pode ser o ponto de vista do observador que
descreve o objeto observado bem como um contorno, um vestígio sobre um suporte
que denota uma ação. Esta imagem podem ser remodelada, permanente ou passível de
alteração infinita216. Aqui, mais uma vez, é possível ressaltar a faceta subjetiva da
percepção espacial. Uma imagem, no contexto eletroacústico seria, nesta perspectiva,
tanto corpórea quanto mental e o compositor leva em consideração a distinção entre a
configuração externa da imagem do objeto e a configuração interna de imagens
mentais. Assim, a imagem pode ser simultaneamente o objeto, o tempo e o
fenômeno217.
Neste conceito, a percepção do espaço seria mais uma imagem do que uma
sensação pura. Uma entidade sonora, que se manifestará enquanto imagem sonora na
percepção, deverá existir no espaço com seu comportamento, suas contorções
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
212
Ibid.
213
Ibid.
214
“it is a trace (permanent or alterable) of a feeling of a reality, the expression of a phenomenological
intention” (Ibid., p. 244).
215
Ibid.
216
Id., 2008
217
Id., 2008

! 185!
dinâmicas, a sua coerência, que serão localizados e reconhecidos como experiência
vivida218. Desta forma, o espaço do som será bem descrito pela mente, sobretudo no
mundo da imagem sonora. Estes seriam então, espaços de representação219.
A percepção de imagens a partir da escuta parece complexa, pois a noção de
espaço é vienciada como uma soma de sensações combinadas. Apresenta-se como um
arranjo de realidades perceptivas que se ligam com o que é conhecido e ao mesmo
tempo se referem a uma atividade de representação mental mais complexa, deixando
para cada ouvinte certo grau de liberdade (Garcia, 1998).
Além dos aspectos intelectuais e culturais da percepção espacial dos eventos
sonoros, é possível mencionar os diferentes contextos espaciais fornecidos numa
escuta de obra eletroacústica. Tais contextos dão conta de percepções espaciais
referentes ao lugar de projeção, ao dispositivo de projeção, a espacialidade dos
eventos sonoros e das relações entre eles (Merlier, 2011).
A percepção espacial relacionada ao local de projeção é o resultado da escuta
das reverberações, do ressoar do evento sonoro neste espaço, ou ainda da percepção
de amplidão ou confinamento. Estas informações são importantes na construção
mental de uma possível interpretação, por parte do ouvinte, do discurso projetado
neste contexto. Diferentes salas podem proporcionar diferentes escutas da mesma
obra e os dispositivos de projeção também influenciam o modo como o espaço é
percebido, pois “a tomada de consciência (ou não) da existência de alto-falantes
parece estar relacionada com a existência (ou não) de trajetórias sonoras ou de
movimentos”220.
A espacialidade dos eventos sonoros aborda os processos intelectuais
discutidos até este ponto. Merlier221sugere cinco categorias para descrever essa
espacialidade: o banho de som (ambiofonia), a imagem do espaço, o plano sonoro, o
ponto e a “desmistura”222. Algumas das categorias propostas foram discutidas
anteriormente como abordagens ou estratégias composicionais para o uso do espaço,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
218
Id., 1998
219
Id., 2008
220
“la prise de conscience (ou pas) de l'existence des haut-parleurs semble liée à l'existence (ou pas) de
trajectoires sonores ou de mouvements” (Ibid., p.14).
221
Ibid.
222
“Desmistura” foi um termo usado neste trabalho para referir ao termo francês démixage que pode
ser definido como “operação de não misturar; ou seja posicionar (...) n fontes ‘espacialmente’
independentes sobre n canais.” (Merlier, 2006, p. 48, tradução nossa). No original: “opération de ne pas
mixer; c’est-à-dire placer (…) n sources “spatialement” indépendantes sur n canaux”.

! 186!
porém essas abordagens obviamente também influenciam nas diferentes
interpretações da escuta espacial.

3.2 – A Percepção Do Espaço: Aspectos Físicos e Auditivos

Como discutido anteriormente, a percepção dos aspectos espaciais do som,


mais especificamente no contexto de obras acusmáticas, envolve processos
intelectuais de reconhecimentos de parâmetros espaciais. Além dos processos
intelectuais, algumas questões ligadas à acústica e à psicoacústica fornecem
informações que definem o reconhecimento por parte do ouvinte de características
espaciais específicas no ato da escuta. Estão relacionados às pistas auditivas de
localização, distância e pistas fornecidas pela reverberação que são relativas à
percepção de aspectos dos sons individuais ou ainda do ambiente em que tais sons
estão inseridos. Tais pistas serão discutidas a seguir.

3.2.1 – Pistas De Localização De Eventos Sonoros

Até aqui foram abordados os aspectos mais subjetivos e individuais que


influenciam a percepção do espaço e a seguir serão discutidas questões de escuta que
se apresentam de uma maneira geral, de modo igualitário para todos os ouvintes.
A capacidade do ouvinte em escutar o espaço está sujeita a algumas
características da produção do som, características próprias do ouvido no meio em
que o som é propagado e da disponibilidade e capacidade do indivíduo de ouvir
(Pires, 2007). O som em si não possui propriedades espaciais, portanto a percepção da
localização do som irá basear-se na percepção de processamento sonoro, produzido
por objetos que vibram (Yost, 2005).
É necessário ressaltar que a audição é mais limitada do que a visão na
localização dos objetos. A visão é o sentido mais acurado para a identificação de um
evento, porém a audição torna possível uma percepção multidirecional de espaço,
sendo o sentido que percebe bem o espaço que rodeia o ouvinte (Penha, 2014).
No que se refere a escuta da localização dos eventos sonoros, diversas
pesquisas demonstram que a apreensão de tal aspecto se dá a partir de diferentes
fatores. Para Penha:

! 187!
a percepção auditiva da localização espacial está sujeita a erros, em
parte por estar dependente da comparação entre as análises paralelas
de diversos dados. O evento sonoro, correspondente à componente
física do fenômeno da audição, é assim independente do evento
auditivo, correspondente à percepção de um determinado
indivíduo223.

A percepção de localização sonora não é um dado preciso, sendo que


diferentes teorias buscam explicar os fenômenos psicoacústicos envolvidos no evento.
Aspectos relacionados à chegada dos sinais da fonte sonora aos ouvidos, bem como
aspectos espectrais são responsáveis pela percepção de localização dos sons, sendo
possível afirmar que estes dois aspectos podem ser definidos como categorias
(Blauert, 1995) ou critérios (Merlier, 2006) binaurais e monoaurais.
As características binaurais do evento sonoro são aquelas que necessitam do
uso de dois ouvidos para informara o sistema auditivo sobre a posição da fonte sonora
no espaço (Blauert, 1995). O fato dos ouvidos estarem separados pelo crânio terá uma
consequência acústica que influenciará a percepção de localização do som, com dois
efeitos sobre a onda sonora: em primeiro lugar, os sons chegam em tempos diferentes
e, em segundo lugar, eles têm diferentes intensidades (Howards & Angus, 2009).
Estes processos são apontados na psicoacústica como diferença de intensidade e de
nível entre os dois ouvidos.
As desigualdades temporais resultantes da diferença na distância que a onda
sonora percorre desde sua fonte até a chegada em cada ouvido é denominada
diferença de tempo interaural (Pires, 2007). Begault (2000) descreve uma situação
hipotética de condições ideais onde um ouvinte com a cabeça de formato
perfeitamente redondo, sem orelhas externas, sentado dentro de um ambiente sem
ruídos externos, como está representado na Figura 11. Para esse ouvinte hipotético é
colocada uma fonte sonora, a certa distância, ao nível de seus olhos. Segundo o autor,
para modelar esta situação, seria necessário calcular dois percursos que representam a
frente de onda fonte sonora desde sua posição de origem até os dois pontos que
representam os dois ouvidos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
223
Ibid., p. 77

! 188!
The sound path length difference just described is the basis of the interaural time difference (ITD)
cue, and it relates to the hearing system’s ability to detect interaural phase differences below
approximately 1 kHz. A value around .00065 sec is a good approximation of the maximum value
for an average head.

Figura 30 - Representação de duas possibilidades de localização da fonte sonora em situação ideal


(fonte: Begault 2000, p. 32)
Figure 2.1. A listener in an anechoic chamber, with a sound source oriented directly ahead on the
median plane (A) and displaced to 60 degrees azimuth.

Na figura acima são apontadas duas possibilidades de localização na fonte


The sound source at position B in Figure 2.1 will also yield a significant interaural intensity
sonora.
difference (IID)Nacue,
posição A tem-se
but only for thoseo waveform
azimute acomponents
zero graus,that
implicando que
are smaller osthe
than comprimentos
diameter of
the head, i.e., for frequencies greater than about 1.5 kHz. Higher frequencies will be attenuated at the
dos percursos serão iguais, ou seja a onda chegará aos tímpanos ao mesmo tempo e
left ear because the head acts as an obstacle, creating a “shadow” effect at the opposite side. The
com
relation of aa wavefront
mesma intensidade.
to an obstacle of fixed size is such that the shadow effect increases with
increasing frequency (i.e., decreasing size of the wavelength).
Na posição B, a fonte sonora está a 60 graus de azimute para a direita em
For instance, a 3-kHz sine wave at 90 degrees azimuth will be attenuated by about 10 dB, a 6-kHz
relação à cabeça e os caminhos se mostram desiguais, portanto a frente de onda da
sine wave will be attenuated by about 20 dB, and a 10-kHz wave by about 35 dB (Feddersen, et al.,
1957; fonte sonora chegará
Middlebrooks mais
and Green, tardiamente
1991). But belowno tempo no ouvido
approximately esquerdo
1 kHz, IID em relação
is no longer effectiveaoas
a natural spatial hearing cue because longer wavelengths will diffract (“bend”) around the
direito.
obstructing Segundo
surface of theohead,
autorthereby
essa diferença dethe
minimizing comprimento de percurso
intensity differences. sonoro
Everyday é a base
examples of
diffraction are how sunlight bends around the horizon even after the sun has set; or how, between two
da pista de diferença de tempo interaural, e refere-se à capacidade do sistema
office cubicles, low frequencies caused by a source such as a printer are less effectively masked than
auditivo para detectar diferenças de fase interaural inferiores a cerca de 1 kHz.
Devido à situação de configuração binaural da cabeça humana existe uma
32
diferença de tempo entre o som que chega ao ouvido mais próximo de uma fonte e um
outro som mais distante. Se a fonte sonora está localizada exatamente na frente, ou
atrás, ou em qualquer lugar no plano mediano em relação à cabeça, o som vai chegar
aos dois ouvidos de modo simultâneo. Mas, caso a fonte sonora esteja localizada mais
à esquerda da cabeça, o ouvido localizado neste lado receberá o som primeiro
(Howards & Angus, 2009).
Howards & Angus224 ressaltam que é preciso considerar ainda que o som
necessita viajar ao redor da cabeça para chegar até aos ouvidos, resultando em um
atraso adicional para o som. Sobre essa questão, Pires (2007) ao citar Canévet, aponta
que, ao lidar com sons puros e mais contínuos, haverá uma diferença de fase na
chegada do som aos ouvidos, gerada por uma difração em torno da cabeça tornando
possível a identificação do azimute de uma fonte. Entretanto, ao se tratar de sons mais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
224
Ibid.

! 189!
breves este índice desaparece e o sistema auditivo então avaliará as diferenças
instantâneas envoltórias dos sinais à esquerda e à direita para deduzir o azimute.
Deste modo, a autora conclui que a diferença de tempo interaural vai além da
disparidade do tempo de chegada da onda sonora aos dois ouvidos, pois a análise da
fase da onda efetuada por mecanismos complexos da percepção pode ajudar, em
certas condições, o ouvido a calcular a diferença de tempo225.
Voltando à situação hipotética descrita por Begault (2000) na Figura 11, a
fonte sonora localizada na posição B produzirá ainda uma pista de diferença de
intensidade interaural, o segundo aspecto binaural de percepção da localização
sonora. Esta pista só seria possível quando os componentes de forma da onda fossem
menores do que o diâmetro da cabeça, ou seja, valores de freqüência acima de
aproximadamente 1,5 kHz.
Na situação B da Figura 11 isto ocorre devido ao fato das frequências mais
agudas chegarem mais atenuadas no ouvido esquerdo, considerando que a cabeça gera
uma “sombra” no ouvido direito. Segundo Begault (2000) “a relação de uma frente de
onda com um obstáculo de tamanho fixo é tal que o efeito de ‘sombra’ aumenta com
o aumento da frequência (isto é, decresce o tamanho do comprimento de onda)”226. O
autor dá um exemplo de uma onda sinusoidal de 3 kHz a 90 graus de azimute, esta
será atenuada por aproximadamente 10 dB, enquanto que uma onda sinusoidal de 6
kHz será atenuada por cerca de 20 dB.
Ainda conforme Begault227, em frequências inferiores a cerca de 1 kHz a
diferença de intensidade interaural não seria eficaz porque os comprimentos de onda
mais longos serão difratados em torno da superfície da cabeça, minimizando o efeito
da pista. Assim é possível afirmar, de uma maneira mais genérica, que a diferença de
intensidade interaural pode ser considerada uma pista de localização em frequências
mais agudas, enquanto que a diferença de tempo interaural é uma pista de localização
em frequências graves (Howards & Angus, 2009).
Convém citar que as pistas de diferenças interaurais de tempo e de intensidade
não são totalmente precisas na localização de fontes sonoras, pois existem zonas de
ambiguidades na escuta lateral do som no plano horizontal. Isto ocorre devido a uma
ineficiência existente no processo de escuta voltado para a diferenciação entre as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
225
Ibid.
226
“Higher frequencies will be attenuated at the left ear because the head acts as an obstacle, creating a
“shadow” effect at the opposite side.” (Ibid., p. 32)
227
Ibid.

! 190!
localizações nos hemisférios frontal e posterior que apresentam a mesma distância
entre os ouvidos esquerdo e direito.
Quando pistas de diferenças interaurais de intensidade e de tempo são quase
idênticas a partir da emissão de duas fontes sonoras, poderá existir um potencial para
uma confusão entre as posições na ausência de uma pista espacial diferente (Begault,
2000). Numa situação ideal em que a cabeça é uma esfera perfeita, “o lugar
geométrico dos pontos que geram os mesmos valores de ITD e ILD228 forma um
hiperbolóide de revolução, com origem no centro geométrico da cabeça e focos nas
duas orelhas. As retas assíntotas do hiperbolóide formam o cone de confusão” (Gunzi,
2008, p.6, grifo nosso).
Na Figura 12 está representado o referido cone, onde uma fonte sonora está
situada na posição “a” e teoricamente irá produzir diferenças interaurais de tempo e
de intensidade muito semelhantes a uma fonte na posição “b”. O mesmo ocorre com
In fact, identical values of ITD and IID can be calculated for a sound source in space anywhere on a
as fontes nas posições
conical surface “x”from
extending out e the
“y”.
ear Tais semelhanças
(see Figure 2.8). This isresultarão em
called the cone dificuldade
of confusion in na
the literature (see review by Mills, 1972). The cone of confusion has influenced the analysis and
definição
design ofexata
many da posiçãostudies
localization das fontes.
in spite of the oversimplistic modeling of the head. The ability to
disambiguate sources from front to back or from above and below in cases where ITD and IID would
not supply this information has brought about hypotheses regarding the role of spectral cues and
localization. In turn, the most significant locationally dependent effect on the spectrum of a sound
source as it reaches the eardrums can be traced to the outer ears, or pinnae.
x

b
a

y
Figure 2.8.Figura
The cone
31 - of confusion. Identical
Representação do conevalues of IID and
de confusão ITD Begault,
(fonte: can be calculated
2000, p.for
41)a spherical
model of a head at two opposite points anywhere on the surface of the cone (here, a and b show a
front–back ambiguity, and x and y show an elevation ambiguity).

TheEste fato demonstra


Head-Related que somente
Transfer Function com as diferenças interaurais de tempo e de
intensidade
The spectralum sujeito
filtering of a não
soundpode
sourcedeterminar se the
before it reaches umearevento acústico
drum that is caused está posicionado
primarily by the
outer ear is termed the head-related transfer function (HRTF). The binaural HRTF (terminology
frontalmente
for referring ou atrás,
to both left-ou
andainda acima
right-ear oucan
HRTFs) abaixo (Kendall,
be thought 1995). Ou seja, a partir de
of as a frequency-dependent
amplitude and time-delay differences that result primarily from the complex shaping of the pinnae.
uma fonte sonora localizada em qualquer ponto da superfície do cone de confusão,
The folds of the pinnae cause minute time delays within a range of 0–300 µsec (Batteau, 1968) that
centrado
cause theno eixocontent
spectral interaural, os tovalores
at the eardrum de diferenças
differ significantly interaurais
from that of de iftempo
the sound source, it e
were measured, for instance, by an omnidirectional microphone. The asymmetry of the pinnae’s
shape causes the spectral modification to be affected differently as a function of sound source
position; together, the asymmetrical, complex construction of the outer ears causes a unique set of
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
microtime delays, resonances, and diffractions that collectively translate into a unique HRTF for each
228 sound source position (see Wright, Hebrank, and Wilson, 1974; Batteau, 1968; Shaw and Teranishi,
Abreviação dos termos em inglês interaural time differences (ITD) and interaural intensity
1968; Blauert, 1983). In other words, unique frequency-dependent amplitude and time differences
differences (IID), que equivalem à diferenças interaurais de tempo e de intensidade
are imposed on an incoming signal for a given source position. Like an “acoustic thumb print,” the
HRTF alters the spectrum and timing of the input signal in a location-dependent way that is
recognized to a greater or lesser degree by a listener as a spatial cue.
! 191!
The use of HRTF spectral shaping is typically featured as the key component of a 3-D sound system,
from either direct measurement or modeling. This is based on the theory that the most accurate
means to produce a spatial sound cue is to transform the spectrum of a sound source at the eardrum
intensidade serão quase idênticos, podendo ocorrer pequenas variações devido a
formação particular de cada cabeça humana (Kapralos et al., 2003).
Sobre esta questão Penha (2014) afirma que mover a cabeça seria o modo mais
direto de resolver a ambiguidade presente no cone de confusão. O autor clarifica essa
afirmação com a seguinte descrição:

Uma pequena rotação para a direita é suficiente para que, e.g., um


som com azimute θ = 0° e outro com azimute θ = 180° passem a ter
como ouvido ipsilateral, respectivamente, o ouvido esquerdo e o
ouvido direito (...). A mesma rotação fará com que as diferenças
interaurais provocadas por uma fonte sonora com azimute θ = 60°
diminuam enquanto as provocadas por uma fonte sonora com
azimute θ = 120° aumentem229.

Portanto, ao realizar uma percepção auditiva ativa que inclui movimentos de


cabeça, o ouvinte pode perceber com mais precisão a localização da fonte sonora, a
partir da análise das diferenças resultantes de desigualdades das informações que
chegam aos ouvidos, juntamente com a informação proveniente dos movimentos
feitos pela cabeça (Pires, 2007).
É importante discutir também as características monoaurais do evento sonoro,
ou seja, aquelas necessitam apenas de um ouvido para que aspectos espaciais sejam
reconhecidos (Blauert, 1995). As características monoaurais estão ligadas aos efeitos
de filtragem produzidos pela orelha, sendo conhecidas como funções de transferência
relacionadas à cabeça (HRTFs, do inglês, Head-Related Transfer Function) e que
possibilitam superar limitações inerentes ao uso apenas das pistas de diferença
interaural de tempo e de intensidade (Kapralos et al., 2003).
O formato da orelha provoca diferentes atenuações nas ondas sonoras em
função de sua direção de procedência. O cérebro humano tem a capacidade de
reconhecer e interpretar o resultado dessas filtragens como um efeito de
direcionamento, e a partir de tais interpretações é capaz de extrair indicações sobre a
direção dos sons (Merlier, 2006). As dobras da orelha causam atrasos nos sinais
sonoros que modificam o conteúdo espectral que chega aos tímpanos, em relação à
fonte sonora original. Além disso, a assimetria da forma da orelha também
proporciona uma modificação do espectro que será afetada de forma distinta em
função da posição da fonte sonora (Begault, 2000). Assim, é possível afirmar que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
229
Ibid., p. 82

! 192!
mudanças espectrais também podem ser consideradas pistas importantes de
localização espacial dos sons.
Para Penha (2014), nas frequências mais altas a filtragem proporcionada pelo
formato das orelhas é de grande relevância. O autor mostra que a cabeça e os ombros
também possuem um papel importante nessa filtragem, uma vez que provocam
alterações tímbricas, nas regiões abaixo dos 2000 Hz. Ocorre um pico na região dos
3000 Hz que é provocado por uma ressonância do canal auditivo.
Nesta perspectiva é possível concluir que o espectro sonoro que chega aos
ouvidos, a partir de uma localização qualquer, irá variar “não apenas em função do
ponto de origem, mas também em função da fisionomia do ouvinte”230. Portanto, o
efeito de filtragem pode ser considerado pessoal e específico e o indivíduo passará a
reconhecer e interpretar as pistas provenientes de tais filtragens ao longo de sua vida
(Howards & Angus, 2009).
Kendall (1995), considera que pesquisas atuais têm seu foco voltado para uma
audição binaural e o para o papel das HRTFs na escuta da localização sonora.
Segundo o autor, a expressão “binaural” está relacionada com a combinação de
informações das duas orelhas. A adoção do termo “binaural” implica ainda no tipo de
pista interaural típica dos HRTFs, que depende de mudanças no espectro frequência.
As pistas que se referem a diferenças interaurais de tempo e intensidade
parecem atuar mais na percepção de localização em um plano horizontal, enquanto a
percepção de posição do som no plano vertical irá depender primariamente do filtro
exercido sobre a onda sonora pela orelha, além das assimetrias espectrais criadas
pelos reflexos das ondas sobre os ombros e sobre a cabeça do ouvinte (Pires, 2007).
Contudo, existem pesquisas sugerindo que pistas monaurais são importantes
para a escuta de fontes sonoras, sendo localizadas nas laterais do ouvinte (Kendall,
1995). Na verdade, as HRTFs podem fornecer informações usadas para julgar
direções verticais e também resolver problemas de ambiguidades da frente-traseira no
plano horizontal.
Blauert (1995) demonstra que os sinais sonoros ao atravessarem as orelhas
geram distorções que, segundo o autor, dependem da modo das direções de incidência
das fontes sonoras e ainda das suas distâncias. Desta forma, as orelhas externas serão
também responsáveis por uma codificação que transforma direções e distâncias em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
230
Ibid., p. 83

! 193!
informação espectral. Então o sistema auditivo tratará de decodificar tais informações
espectrais como noções de direções e distâncias da fonte sonora. A partir de tais
asserções é possível afirmar que as propriedades monoaurais de percepção de
localização sonora dependem da conformação do espectro de energia resultante da
filtragem das orelhas.
Sobre este aspecto, Kapralos et al. (2003) afirmam que existem estudos
indicando que, conforme as ambiguidades de frente-trás aumentam, a precisão de
localização diminuirá à medida que a largura de banda da fonte diminui. Tal fato
permitiria concluir que para permitir uma localização da fonte de forma precisa é
necessário que a fonte contenha uma vasta gama de frequências.
Portanto, a localização da fonte sonora trata-se de um processo complexo que
envolve a posição física real da fonte sonora e as capacidades de percepção do
ouvinte. A estrutura física individual é importante na capacidade auditiva humana e se
refere, dentre outras coisas, à forma da cabeça, orelhas e ombros, que difere de pessoa
para pessoa. E tal constituição irá interferir em pistas que interferem na audição da
localização de um evento sonoro, podendo ter características binaurais e monoaurais.
As características binaurais referem-se às diferenças interaurais de intensidade e de
tempo, enquanto que as características monoaurais referem-se às diferenças espectrais
dadas pela filtragem do sinal sonoro pelas orelhas.

3.2.2 – Pistas Auditivas de Distância

Foi mencionado anteriormente que o sistema auditivo é capaz de localizar a


fonte sonora, usando uma variedade de pistas, tais como as diferenças interaurais de
intensidade e de tempo e as HRTFs. Tais pistas fornecem aspectos essenciais para a
percepção de posição no âmbito horizontal e vertical. Porém, conforme alguns
autores, num contexto de escuta de uma fonte sonora que se encontra a uma distância
(por exemplo, maior do que cerca de 1m), tais pistas proporcionam poucas sugestões
da distância da fonte (Kapralos et al., 2003).
A percepção da distância de uma fonte sonora envolve um exame cognitivo
das características do som ambiental e uma comparação de informações recebidas
pelos ouvidos a partir do conhecimento prévio de situações de escuta anteriores
(Pires, 2007). Kapralos et al.(2003) relatam pesquisas sugerindo que algumas pistas

! 194!
tem um papel importante na percepção da distância de uma fonte, são elas: potência231
(nível sonoro) das ondas sonoras emitidas pela fonte, a reverberação, o espectro de
frequência das ondas sonoras emitidas pela fonte sonora e a familiaridade com a fonte
sonora.
A potência de um som pode ser considerada uma pista de distância primária na
escuta de uma fonte sonora. Em uma primeira abordagem, a intensidade de um som
pode dar uma indicação de sua proximidade, pois quanto mais próxima a fonte sonora
se encontra, mais fortemente ela será percebida (Merlier 2006). Para um sentido de
afastamento ou aproximação, ou ainda uma sensação de movimento lateral da
esquerda para a direita e vice-versa, as variações e disparidades de intensidades
recebidas por ambos os ouvidos ao longo do tempo também são cruciais (Pires, 2007).
A percepção auditiva é aprendida a partir de observações visuais e aurais
cotidianas, bem como por relações entre o deslocamento físico de fontes sonoras com
Intensity
aumentos ou Cues anddeLoudness
reduções intensidade correspondentes. Por exemplo, um sujeito se
The importance
desviará de objetos of sound intensity
moventes que se aproximam(level) as por a cue trástodele
source
paradistance
evitar umhas been known for
possível
many years. According to Zahorik [169], in 1892 Thompson observed that the intensity of
ensity Cues and Loudness
choque
the sound (Begault, reaching2000). the listener is the primary cue to source distance. Furthermore, given
e importance of sound intensity
its relatively
Numa situação (level) as
simple physicalema cueque to source
corpo distance
properties,
um it has se
sonoro has
also been the
been
encontra known
mostfor
distante studied auditory distance
de um ouvinte
ny years. Accordingcue. to Zahorik [169], in 1892 Thompson observed
This section will describe how sound intensity is used by humans that the intensity of as a cue to source
sound reaching the nas condições
listener
distance isand
theideais
primary
will de um
also cueindivíduo
provide to source
details dedistance.
cabeça
of why it perfeitamente
Furthermore,
is an insufficientesférica,
cuesem
given whenorelhas,
used alone.
relatively simple physical
localizado properties,
em um itrecinto
has alsoanecóico,
been the most com studied
um único auditory
sinal distance
sonoro disponível, a
Consider a far field sound source and a listener placed in an anechoic environment.
. This section will describe how sound intensity is used by humans as a cue to source
tance and will alsointensidade do som emitido (medida de energia propagada
Furthermore, assume the listener’s head is a perfect sphereawith partir
no da fonte ears
external por (pinnae).
provide details of why it is an insufficient cue when used alone.
In such a situation, where the only auditory cue available is intensity of the emitted sound
Consider a far fieldunidade desource
área eand tempo), será atenuado na medida em environment.
que a distância da fonte é
(asound
measure of energyapropagated listener placed
from in thean anechoic
source per unit area and time), will be attenuated
thermore, assume aumentada
the
as listener’s
the source head is et
distance
(Kapralos a perfect
sd 2003).
al., sphere
is increased with
Trata-se no lei
following
da external ears (pinnae).
theinverso
do inverse dosquare
quadradolaw 1/s2d ,, where
que the loss
such a situation, where the only L
of intensity auditory
loss (in dB), cue available is intensitysource
due to increasing of thedistance,
emitted sound
is given by Coleman [32] as:
descreve a perda
measure of energy propagated from the de intensidade
source per unit que éarea ocorreandatime),
partir do willaumento da distância da fonte
be attenuated
the source distance( sd ).is increased following the inverse square law 1/s2d , where the loss
ntensity Lloss (in dB), due to increasing source distance, is given by Coleman ! "[32] as:
sd
Conforme os autores acima Lcitados, loss = a 20 aplicação
× log10 da lei implica em que: “para (1.11)
s0
cada duplicação da distância da fonte, a intensidade (nível) das ondas sonoras que
! " 232
chegam ao ouvinte será reduzida sem
d 3 dB” . Portanto, as fontes sonoras próximas
where s0Lislossthe=original 20 × log source10 distance (e.g. reference distance). (1.11)In other words, for each
s0 intensity (level) of the sound waves reaching the listener
são mais fortes do que as fontes sonoras distantes, devido ao fato do nível de um som
doubling of source distance, the
will be decreased by 3dB. Such a model (although as described below, is certainly not
diminuir em função da distância (Yost, 2005).
completely
ere s0 is the original source distance correct) (e.g.has been used
reference in most
distance). In 3D
otheraudio
words,displays to convey source distance
for each
information
ubling of source distance, the intensity to the (level)
users, without
of the sound requiring
wavesany absolute
reaching the(reference)
listener sound pressure level
l be decreased by 3dB. [16, 19] Such a model (although as described below, is certainly not
mpletely correct) has!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
been used in most 3D audio displays to convey source distance
231
ormation to the users, withoutusado
Aqui
Reverberationserá requiringa aspalavra
aany potência
Distance
absolute como
Cue tradução dosound
(reference) termo loudness,
pressureapontado
level pelos autores
citados neste capítulo.
, 19] 232
“for each
The inverse doubling
square 1/s2d attenuation
of source distance, the intensity (level) of
of intensity ofthe sound waves reaching
a propagating sound the listener
wave is valid under
will be decreased by
very restricted conditions. 3dB” (Kapralos In e Milios, 2003, p.26)
particular, it assumes that the propagating waves reach the
verberation as a Distance
listener (receiver) Cue directly without encountering any obstructions on their direct path from
the source to the receiver or without any modifications due to environmental 195!conditions.
e inverse square 1/s! 2d attenuation of intensity of a propagating sound wave is valid under
Furthermore, the majority of the experiments examining the relationship between distance
y restricted conditions. In particular, it assumes that the propagating waves reach the
and loudness were also conducted under intensity controlled conditions, taking place in
ener (receiver) directly without encountering any obstructions on their direct path from
Esta lei poderia ser usada para calcular e simular posições de fontes em uma
certa distância, mas por ser calculada em situações anecóicas, tal lei se torna
insuficiente para precisar as pistas de distância num ambiente externo cotidiano. A
imprecisão decorre de seu cálculo apenas em situações onde não existe interferência
de ruídos e reverberação na chegada dos sons ao ouvido.
Além da intensidade, a informação espectral da fonte sonora também fornece
pistas relevantes para a percepção de distância. Devido a efeitos de absorção pelo
meio, o conteúdo espectral de uma fonte sonora sofre variação quando está
posicionada à distância do ouvinte (Kapralos et al., 2003). O meio pelo qual as ondas
sonoras se propagam irá funcionar como um filtro low pass, e as faixas mais altas de
um som complexo irão se dissipar progressivamente até chegarem aos ouvidos do
sujeito (Solomon, 2000).
Especificamente, os componentes frequenciais mais altos sofrem uma maior
atenuação na medida que a distância da fonte aumenta. Solomon233 menciona que,
para distâncias aproximadas de 30 metros percorridos em climas temperados,
componentes com frequência de 8000 Hz podem ter uma atenuação de três dB a mais
do que componentes com frequência de 1000 Hz. A atenuação das altas frequências
em uma dada distância aumenta também conforme o aumento da umidade do ar.
Outra pista importante que auxilia na percepção de distância de um evento
sonoro é o reconhecimento da fonte. Um conhecimento prévio por parte do ouvinte de
uma fonte sonora e de um ambiente pode afetar significativamente a sua capacidade
de determinar a distância da fonte, especialmente quando o nível sonoro é a única
pista disponível (Kapralos et al., 2003).
O ouvinte, através de sua experiência cotidiana, identifica as mudanças de
potência e deslocamento de uma fonte já conhecida. No caso da escuta de uma fonte
sonora desconhecida, o ouvinte precisará de mais tempo para se familiarizar com as
alterações de características próprias da fonte que indicam a distância de tal fonte
(Begault, 2000). De maneira geral, as variações no nível sonoro poderão ser usadas
para determinar a distância de um evento, sendo que com a experiência cotidiana os
julgamentos globais de distância podem ser melhorados (Kapralos et al., 2003).
A partir destas considerações pode se concluir que as variações de potência
sonora (nível), as condições ambientais que incluem condições atmosféricas (o meio

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
233
Ibid.

! 196!
através do qual o som deve viajar) e a familiaridade do ouvinte com a fonte afetarão a
estimativa de distância da fonte.

3.2.3 – Reverberação como Pista de Percepção Espacial

A reverberação é uma pista importante na percepção do espaço especialmente


na estimativa de distância, pois fornece pode fornecer informações de um recinto
como sugestões sobre a forma, o material constituinte e o tamanho deste (Chowning,
1977).
Segundo Begault, (2000) o som direto de uma fonte sonora pode ser definido
como a frente de onda que chega aos ouvidos um curso linear, sem ter sofrido
interferência de alguma superfície. Se este som passar por algum objeto, ele sofrerá
uma reflexão e, sendo refletido, resultará na reverberação. Desta forma, a
reverberação se refere a energia de uma fonte sonora que chega ao ouvinte de modo
indireto, ou seja, através da reflexão das superfícies no interior do recinto em que o
ouvinte e a fonte sonora estão inseridos. Este recinto, segundo o autor, é um tipo de
contexto ambiental.
Um recinto, enquanto contexto ambiental, poderá fornecer indicações
simultâneas sobre suas características e sobre a posição da fonte. De maneira
generalizada é possível distinguir, sucessivamente, em um recinto: o som direto, as
primeiras reflexões e as reflexões tardias. As durações e as amplitudes respectivas a
todas estas fases são critérios que nos auxiliam a julgar a proximidade (ou
afastamento) da fonte sonora (Merlier 2006).
De acordo com Begault (2000) três parâmetros físicos descrevem as primeiras
reflexões e as reflexões tardias. O primeiro parâmetro refere ao tempo de
reverberação (denominado t60), que pode ser descrito como “o tempo requerido para
o nível de pressão sonora (...) ser atenuado em 60 dB”234 (Kapralos et al., 2003) a
partir do momento em que encerra-se a emissão da fonte. Este parâmetro é
dependente de características do recinto, como o material das paredes do piso e do
teto, a quantidade e a qualidade de objetos no recinto, dentre outros aspectos235.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
234
“the time required for the sound pressure level (...) to be attenuated by 60dB” (Kapralos et al., 2003,
p. 18)
235
Ibid.

! 197!
No que se refere a experiência auditiva, o tempo de reverberação relaciona-se
com a percepção do tamanho do contexto ambiental, sendo que um valor maior para o
tempo de reverberação é geralmente associado com um recinto maior (Begault, 2000).
Um segundo parâmetro aborda os padrões temporais e espaciais das primeiras
reflexões236 (Begault, 2000). A distribuição espacial das primeiras reflexões ao longo
do tempo, em uma dada situação, existe como função da relação entre a fonte sonora,
o ouvinte, e as características físicas do contexto ambiental. Segundo o autor,
diferentes padrões espaço-temporais podem afetar a percepção da distância e da
ampliação imagem acústica.
Um terceiro parâmetro seria a razão de entre som reverberante e som direto
(R/D) em um contexto específico. O nível do som direto diminui na medida em que o
ouvinte se afasta de uma fonte sonora em um recinto, neste caso, o nível a
reverberação não varia. Este fato pode ser interpretado como uma pista para a
distância237.
Begault238 informa que as reflexões tardias também influenciam na percepção
do espaço. Tais reflexões fornecem a informação perceptual do volume de um espaço
ocupado por uma fonte sonora. É mais fácil perceber isto quando uma fonte sonora
para de vibrar, pois é possível perceber o tempo que demora para os últimos ecos se
deteriorarem, e a forma do envelope de amplitude de deterioração ao longo do tempo.
A reverberação define também um limite para os julgamentos de distância,
havendo um limite superior para a quantidade de reverberação que pode ser misturada
com um som antes de ser atingido um “horizonte auditivo”239. Este conceito está
relacionado ao de horizonte acústico, definido como a distância máxima entre o
ouvinte e a fonte sonora, onde o evento sônico ainda pode ser ouvido (Blesser &
Salter, 2007).
A reverberação de um recinto pode ser útil na identificação de demarcações de
distâncias plausíveis da fonte sonora num horizonte auditivo. Begault ao citar
Sheeline demonstra que a energia reverberante contribui para a definição dos limites
de uma fonte ou de um conjunto de fontes240. Segundo o autor, a reverberação serve
como uma pista para estimar o tamanho e/ou as características do recinto,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
236
Ibid.
237
Ibid.
238
Ibid.
239
Ibid.
240
Ibid.

! 198!
especialemente a distância até aos limites de superfícies. E a partir disto, o processo
cognitivo, que acontece na escuta, pode a partir da reverberação fornecer informações
que definirão extensão de distâncias entre a fonte sonora e a sala.
Mencionando a reverberação, Kapralos et al.(2003) expõem uma situação de
audição na qual um ouvinte recebe o som direto emitido pela fonte sonora, bem como
suas reflexões. Os sons refletidos que este ouvinte recebe, em algumas situações, pode
potencialmente criar uma impressão falsa de emissão de uma fonte sonora no local da
reflexão.
Os autores acima citados denominam “efeito de correspondência” a
capacidade do sistema auditivo em “combinar” o som direto com o refletido, de modo
que ambos sejam ouvidos como um evento único e ainda sejam localizados na direção
correspondente ao som direto. Este efeito torna possível a localização de uma fonte
sonora na presença de reverberação, mesmo quando a energia do som reverberante
seja superior do que a do som direto241. Ainda conforme os autores, experiências
mostram que somos capazes de localizar corretamente uma fonte sonora na presença
de reverberação, fornecida pelas reflexões que chegam dentro de um curto período de
tempo depois de receber o som direto242.
Outro aspecto interessante da reverberação é apontado por Blesser & Salter
(2007), quando consideram que as propriedades físicas da reverberação informam aos
ouvintes algo sobre seus significados experienciais. Para os autores, a energia contida
nas reflexões tardias pode reduzir o tamanho da arena acústica243, enquanto a energia
das primeiras reflexões aumenta o tamanho desta arena, amplificando e dando foco à
fonte sonora.!
Portanto, cada perfil de reverberação demonstra uma área espacial específica
que será relacionada com conhecimento individual de diferentes espaços habitados
por ele. Como consequência, é possível constatar que as propriedades de reverberação
dão informações sobre os significados experienciais, sendo que a reverberação acaba
por influenciar também a produção de afetos que são gerados a partir das expectativas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
241
Ibid.
242
Ibid.
243
Na perspectiva de Blesser & Salter, 2007, p. 21, uma arena acústica se refere a uma região onde
ouvintes são parte de um comunidade que compartilha uma habilidade para ouvir eventos sônicos. Tal
arena acústica é centrada na fonte sonora e, os ouvintes estão dentro ou fora de uma arena de eventos
sonoros.

! 199!
trazidas pelo ouvinte com base no reconhecimento de uma natureza contextual da
cena sonora244. !
A reverberação, então, fornece pistas ao ouvinte a respeito de um ambiente
fechado, que pode ser interpretado como repressor ou aconchegante, bem como a
sensação da experiência de ambientes abertos que dão a impressão de liberdade. Deste
modo, o uso da reverberação, bem como de objetos “secos”, pode se constituir em
ferramentas potentes na construção de cenas espaciais que valorizam ou não certos
afetos nos ouvintes.!
Até este ponto do trabalho foram discutidos aspectos mais gerais acerca da
composição eletroacústica, contemplando as abordagens espaciais na composição ou
ainda a definição de qualificadores referentes aos materiais, bem como as
especificidades da escuta do espaço. Serão tratados a seguir os elementos
composicionais que articulam o espaço na composição eletroacústica, sendo
selecionados o gesto e a textura, escolhidos pela autora por possuírem um foco
espacial inerente à constituição destes elementos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
244
Ibid.

! 200!
Capítulo 4 – O Gesto e a Textura como Articuladores do
Espaço

A noção do movimento é um fator chave que constitui a composição musical,


pois as estruturas musicais só são passíveis de percepção ao se desenvolverem no
tempo, que gera uma noção de progressão, de direção. Segundo Langer (1953)245 as
entidades musicais são “formas moventes do som” e “o reino em que [essas]
entidades se movem é um reino da duração pura”.
O tempo neste contexto é um elemento vivido e experienciado que só será
percebido a partir de movimentos dos eventos sonoros. Quando se refere à música, o
movimento é explorado a partir da constituição espectromorfológica dos eventos
individuais e pela a interação entre estes eventos. O gesto e a textura, na música, são
definidos pela relação entre eventos e por sua constituição interna, que fornecem
experiências espaciais importantes na composição eletroacústica.
O gesto e a textura (ambos podendo ser musicais e/ou sonoros) sempre foram
elementos importantes na concepção de uma escritura musical como um todo, porém,
com o surgimento de músicas eletroacústicas a concepção de tais elementos foi
reinterpretada.
A música eletroacústica é construída com morfologias sonoras que em sua
maioria não tem um foco em elementos composicionais tradicionais como a melodia e
a harmonia. Apesar de reinterpretado, o processo composicional é semelhante ao
praticado nas músicas instrumentais, pois os conceitos de organização do material na
composição ainda permanecem. Na música eletroacústica os princípios
composicionais básicos, como o de organização horizontal e vertical dos materiais,
são adaptados para a interação de morfologias sonoras próprias que são providas
pelos meios eletrônicos e digitais.
Portanto, o gesto e a textura são elementos articuladores atuantes na
composição musical como um todo e se referem a diferentes níveis estruturais de uma
obra, além de serem estratégias de organização do material sonoro em uma
composição. Contudo, na composição eletroacústica, o gesto (musical e sonoro) não
será concebido prioritariamente a partir da combinação de alturas definidas e divisões

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
245
“The realm in which (...) entities move is a realm of pure duration”. (Langer, 1953, p.109)

! 201!
exatas de ritmo e andamento, ou ainda, por um gesto resultante da ação de um
intérprete.
O gesto musical pode ser concebido como um movimento que possui a
potencialidade de expressar algo, estando atrelado a uma causa no ato da escuta. No
contexto eletroacústico, no qual parâmetros musicais tradicionais como melodia e
harmonia têm um papel menos destacado, o conceito de gesto gera uma reflexão por
parte dos compositores e autores, pois com o uso dos meios tecnológicos de produção
sonora, a presença de um intérprete como um agente da fonte sonora instrumental
tornou-se opcional. Nesse novo cenário composicional, o gesto passou a ter uma nova
concepção no contexto musical, sendo que para a música acusmática, o conceito de
gesto se refere a qualidades sonoras.
De forma similar à música instrumental, na música eletroacústica o gesto é
baseado numa ação que provoca existência de um som, e tal ação será reconhecida ou
suposta na escuta. Portanto, o gesto estará intimamente relacionado à percepção aural,
nos processos de significação, de identificação e associação da fonte pela qual o som
poderia ter sido extraído, bem como o modo pelo qual foi produzido,
independentemente de um reconhecimento de alguma fonte.
Assim sendo, um reconhecimento da fonte sonora não possui mais um papel
tão primordial na escuta, sendo que, o gesto está pautado numa percepção formal do
evento sonoro que resulta numa escuta gestáltica do mesmo.
Nas composições feitas em meios eletroacústicos a textura (como o gesto)
também terá seu uso reinterpretado, superando o conceito tradicional relacionado a
combinação de diferentes vozes texturais tradicionais. De maneira geral, a textura
pode ser concebida como a colaboração de vários elementos que são percebidos como
um todo.
A colaboração entre elementos constituintes é responsável pela percepção de
superfícies e estratos de eventos musicais. Os processos colaborativos podem ser
descritos na escuta com o uso de referências a sensações táteis ou visuais, sendo
possível descrever uma textura como “espessa”, “áspera” ou “lisa”, por exemplo.
No caso de um evento sonoro individual, a percepção da textura é dada a partir
do foco na contemplação dos acontecimentos internos do evento sonoro e não em seu
resultado externo. O desenvolvimento de um evento sonoro textural é mais baseado
em transformações processuais do que em trajetórias ou direções lineares bem
definidas.

! 202!
Como estão pautados no movimento ou no desenvolvimento processual do
evento sonoro, o gesto e a textura são estratégias composicionais que possuem uma
espacialidade evidente. Portanto, nesta seção serão discutidos os principais enfoques
conceituais sobre tais elementos, bem como sua participação na articulação do espaço
na composição eletroacústica.
Os conceitos de gesto e textura podem ser trabalhados em conjunto na
composição, contudo optou-se por sua discussão de forma separada neste trabalho,
como uma forma de apresentação mais organizada246.
Ao se estudar o espaço enquanto elemento expressivo mostrou-se importante
explorar os aspectos gestuais como meio de produção de movimentos, bem como a
incorporar a exploração da textura como um importante componente de articulação
espacial.

4.1 – Gesto

O reconhecimento do gesto musical e sonoro como um elemento expressivo


na composição musical não é novidade nos estudos recentes em música. A noção de
trajetória e direcionalidade proporcionados pelo gesto são aspectos buscados por
muitos compositores, pois a potencialidade de gerar a percepção de movimento torna
o gesto um elemento indispensável na escritura musical, desde os primórdios da
composição musical.
Ainda que seja amplamente explorado, o conceito de gesto na composição
musical recebe várias visões. Com as práticas musicais diferenciadas das músicas
feitas até aos dias atuais, o termo gesto na produção musical atual tem sido utilizado
como modo de descrever diferentes campos conceituais.
O movimento é um elemento chave para a noção de gesto, contudo não é a
única questão a ser levada em consideração para tal definição. No senso comum a
ideia de gesto está atrelada a um movimento corporal ou entonações verbais que tem
intenção de informar algo, como o movimento da cabeça que indica uma afirmação a
algo.
Para Bachratá (2010), como meio expressivo, o “gesto em suas formas
múltiplas representa o mais primordial, e ao mesmo tempo, o fenômeno o mais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
246
O interesse acerca do gesto e da textura como referência composicional é um aprofundamento de
estudos anteriores da autora (Dignart, 2007), onde foi priorizado o gesto como princípio formador em
composições eletroacústicas.

! 203!
complexo para comunicar ideias, pensamentos e emoções para os outros e para si
próprio”247. Nas artes o gesto se relacionará também com a expressão de ideias
criativas.
No contexto musical, o gesto será transmitido pela manipulação da sua matéria
primordial: o som, produzido por causas humanas (na performance instrumental) ou
difundido em algum sistema de projeção. A produção de eventos sonoros gera uma
escuta de movimento expresso pelo criador de uma obra, sendo que o gesto musical
vem a ser o elemento composicional resultante da interação dos processos causais
responsáveis pela produção de movimento na obra. No panorama musical atual a ideia
de gesto transita e se modifica entre as práticas musicais distintas e diferentes
tentativas de conceituação, sendo seu uso conectado aos cruzamentos de dimensões
como a composição, a performance e a escuta (Dignart, 2007).
Nos períodos anteriores ao século XX a performance foi o meio exclusivo de
transmissão da música. Numa escuta de performance, o ouvinte reconstitui
internamente o universo gestual que acompanha as sucessões de notas e ritmos
produzidas pelos instrumentos musicais. Nesta situação a música é fruto dos corpos
que a produzem, sendo impossível para o ouvinte ficar alheio à presença desses
corpos.
A esse respeito, Wishart (1986) considera que parte de deleite na escuta de
uma música é o resultado da apreciação da origem humana inerente nos sons que se
expressa por meio do gesto na performance. Portanto, em uma compreensão mais
tradicional, o gesto sonoro relaciona-se a uma atividade humana física, onde um fluxo
de atividades liga-se a uma causa e a uma fonte.
No Romantismo do século XIX, a valorização do ato performático do
instrumentista era uma prática recorrente na composição musical, fornecendo uma
concepção de gesto ligada ao ato de tocar instrumentos. A ideia de gesto herdada do
Romantismo influencia muitos compositores atuais em suas escrituras, estando
intimamente ligada à valorização de virtuosismos da prática instrumental e conferindo
maior importância à performance como forma de “exaltação” do instrumentista.
Portanto, o conceito de gesto na composição da música romântica parece estsr mais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
247
“Gesture in its multiple forms represents the most primal and on the same time the most complex
phenomenon for communicating ideas, thoughts and emotions to others and self.” (Bachratá, 2010,
p.94)

! 204!
relacionado com o impacto da performance como fonte criativa do que com
formulações mais abstratas ou estruturas aplicadas à composição.
As composições que empregam o gesto em uma concepção mais romântica
revelam uma grande preocupação com a expressividade e dramaticidade instrumental
e com o contorno melódico. Nesta abordagem de escrita musical, o movimento
gestual do corpo promove valores de expressão e de construção da composição. Neste
contexto, o gesto musical possuirá uma trajetória contínua no tempo expressado pelo
movimento do corpo de um instrumentista. Sendo assim, nestas obras, o gesto
instrumental contribui para o desenvolvimento de fluxo contínuo e de trajetória
direcional proporcionados por melodias que valorizam experiências diretas com o
instrumento mesmo na construção de um pensamento abstrato.
A partir de análise de obras mais tradicionais, Hatten (2001 e 2004) faz um
estudo sobre características do gesto musical que influenciam na composição. Para
ele, obras musicais que priorizam o gesto musical podem considerar a estrutura
motívica de uma frase como equivalente a uma “articulação gestual” da textura.
Limites motívicos podem coincidir com limites gestuais, sendo que ligaduras e outras
indicações de articulação podem permitir o reconhecimento da segmentação
característica de uma frase (Hatten, 2001).
Assim, a ideia de gesto pode vir ligada a noção de ação humana, mas não se
reduz apenas a isso. Jensenius et al (2010) apontam que a palavra “gesto” pode ser
conceituada do ponto de vista da comunicação, do controle e da metáfora.
Do ponto de vista da comunicação, os gestos funcionam como meios de
significado na interação social. Neste caso o termo é mais comumente usado na
linguística, em estudos comportamentais e na antropologia social. Já no caso do
controle, o gesto é entendido funcionando como um elemento de sistemas como os
computacionais e interativos e a abordagem frequentemente está associada às áreas de
interação humano-computador, música computacional.
Na perspectiva da metáfora, a noção gesto relaciona-se com a projeção de um
movimento físico, do som, constituindo-se em uma abordagem apropriada para
produção e composição musical devido à potencialidade de escuta de movimento
causada pelas estruturas sonoras248.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
248
Ibid.

! 205!
Em música, a concepção de gesto pode vir acompanhada da ideia de
correlação entre movimento corporal e escuta, ou seja, uma causa viva gera a energia
responsável pelo movimento sonoro. O gesto de um instrumentista, neste caso, será a
ação humana responsável por produzir os eventos sonoros pretendidos pelo
compositor, que serão percebidos por um ouvinte.
Um gesto físico do produtor de som pode refletir uma atitude ou um
movimento, que instiga uma intuição e revela uma ideia, um fato, ou uma ação
(Kululuka, 2012) concebida pelo compositor. Neste caso, a ação do movimento
gestual de um performer participa de toda uma formulação interna voltada à
percepção final de uma obra. Assim, um movimento gestual humano torna possível a
revelação de um comportamento sonoro, se houver a intenção de escuta das estruturas
que serão ouvidas como musicais.
Sobre a questão da intenção na definição de gesto musical, Métois (1997)
define que o gestos musicais são objetos que medem uma “lacuna entre uma intenção
musical de nível mais baixo (cognição, psicologia, musicologia) e uma forma de onda
simples (física)249”. Essas “intenções musicais são objetos que necessitam de algum
conhecimento ou expectativas sobre o que a música é suposto ser”250. Portanto, as
intenções se originam por parte do compositor, ou mesmo do performer diretamente,
para a produção do som, bem como por parte do ouvinte que interpreta o resultado
sonoro de um gesto físico como um elemento musical.
Além do aspecto da performance, o gesto musical pode ainda ser diferenciado
em duas categorias conforme Zagonel (1992): o gesto físico e o gesto mental. A
primeira categoria refere-se à produção do som enquanto fenômeno físico, e possui
uma relação de causa entre a ação gestual e o resultado sonoro proveniente de tal
movimento. Este é o caso do gesto resultante da performance instrumental, como
comentado anteriormente, pois o gesto físico envolve também a noção de gesto
corporal, que não produz, mas sim, acompanha o som.
A segunda categoria, o gesto mental, faz alusão aos gestos físicos e suas
relações causais, ocorrendo na forma de uma imagem ou ideia de outro gesto. A ideia
deste gesto é apreendida por meio da experiência que é guardada na memória,
servindo de parâmetro para que o compositor possa prever um determinado resultado
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
249
“the gap between the lowest-level musical intention (cognition, psychology, musicology) and a
simple wave form (physics)” (Métois, 1997, p. 16).
250
“Musical intentions are objects that require some knowledge or expectations about what music is
supposed to be” (ibid. p. 15).

! 206!
sonoro no momento da interpretação. Este gesto então, não necessariamente indica
apenas um plano corporal do músico, ou um movimento físico em um instrumento,
mas pode indicar uma estrutura sonora característica. Porém, o gesto mental sempre
fará referência a um gesto físico (musical ou não) que é apreendido anteriormente por
meio da experiência251.
A ideia de um gesto mental que gera uma imagem de uma ação física é
expandida com a definição de gesto musical dada por Hatten (2001 e 2004). Para o
autor o “gesto musical é movimento (implícito, virtual, atualizado) interpretável como
um signo, seja intencional ou não, e como tal comunica informação sobre o
gesticulador (ou o personagem, ou ainda a individualidade que o gesticulador está
personificando ou incorporando)252”.
Este movimento pode ser percebido na escuta e é projetado através de
estruturas musicais específicas. Ainda na concepção do autor, a informação
comunicada pode ser classificada como qualitativa, dinâmica ou simbólica. Uma
informação qualitativa comunica uma “(...) atitude, modalidade, ou estado emocional
do gesticulador (ou agente presumido)”253. No caso da informação dinâmica serão
revelados objetivos, reações e orientações que realizam o gesto. E por último, uma
informação simbólica pode comunicar significados que vão além de características
qualitativas e dinâmicas. Tais informações podem se basear em convenções culturais
ou interpretações, como ocorre em contextos artísticos254.
Hatten também sugere que a intermodalidade é um aspecto importante na
percepção do gesto, em que dinâmicas e formações gestuais podem ser expressas por
meio de diferentes sentidos, todos os quais têm em comum a característica de
continuidade no tempo255. O gesto, em sua concepção, possui ainda o caráter
evolutivo, isto é tem capacidade de mover-se e a habilidade de oferecer a percepção
do movimento de uma composição musical.
O gesto também é entendido, não apenas como um movimento, mas como um
movimento que expressa algo (Iazzetta, 1996), ou seja, com uma significação
especial. Mais do que uma mudança no espaço, um ato corporal ou movimento
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
251
Ibid.
252
“Music gesture is movement (implied, virtual, actualized) interpretable as a sign, whether
intentional or not, and as such it communicatesinformation about the gesturer (or character, or persona
the gesturer is impersonating or embodying)” (Hatten, 2004, p. 125).
253
“(...) attitude, modality, or emotional satate of the gesturer (or presumed agent)” (ibid.).
254
Ibid.
255
Ibid.

! 207!
mecânico, o gesto refere-se a um fenômeno expressivo que se torna real por meio do
movimento. Na perspectiva da música, o gesto pode ser encarado como um gerador
de significação e sua função é proporcional ao seu poder de expressão.
Cadoz e Wanderley (2000), ao citarem Delalande, apontam que o gesto não
deve ser analisado de um ponto de vista estritamente motor, porém sua função
também pode estar relacionada com a imaginação como produção efetiva do som.
Para os autores, são indicados níveis gestuais que vão desde o nível funcional
até o simbólico. São eles: o gesto eficiente, o gesto acompanhador e o gesto
figurado256. O gesto eficiente refere-se basicamente à produção mecânica do som e na
escuta se refere à noção de uma ação física, de um esforço. Ouve-se um gesto que
golpeia, empurra, fricciona. Neste contexto, mesmo no caso de um som sintetizado
pode ser formada a imagem de um movimento fictício que teria podido produzir este
som (Delalande, 2003).
Já o gesto acompanhador é relacionado com o emprego do corpo como um
todo, mas não está necessariamente envolvido diretamente com a produção do som. A
respiração marcada do instrumentista antes da execução é um exemplo. Assim, o
gesto acompanhador, não é manifestadamente necessário à execução sonora257.
O gesto figurativo é o que apresenta maior abstração em sua concepção, sendo
representações de movimento independentemente de uma origem física real. Tal nível
gestual pode estar intimamente ligado à concepção do gesto no ato da composição e
na escuta de música eletroacústica, assemelhando-se à ideia de gesto evocado258
definido pelo autor como a noção de representação de um movimento que se encontra
dissociada de uma interpretação dinâmica real. Por exemplo, uma imagem de uma
queda poderia ser caracterizada morfologicamente por uma aceleração uniforme de
qualquer parâmetro após um período de estabilidade, ao invés de uma descida brusca
de frequências (Delalande, 2003d).
O termo gesto, no contexto musical, pode ser considerado ainda como uma
força ou energia aplicada que desloca de alguma maneira um material, podendo ser
captado como uma forma sonora resultante de uma evolução no tempo. Sendo assim,
o gesto age como mediador entre a ideia musical do criador e o som resultante,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
256
Do original no idioma francês: geste effecteur, geste accompagnateur, geste figuré (Cadoz e
Wanderley, 2000, p. 77)
257
Ibid.
258
Do original geste évoqué (Delalande 2003d).

! 208!
portanto o gesto poderia ser como uma ação sobre um meio que articula a
composição. Sobre a noção de energia geradora de som (Dignart, 2007).
Kululuka (2001) sugere que gesto musical se relaciona com uma ação que
transmite vida a um som, que será interpretado como musical ou não pelo ouvinte.
Ainda na concepção do autor, tanto a realização quanto a escuta deste som estão
relacionados aos gestos ou pela imagem destes, sendo que a percepção de estruturas
que determinam um território musical se dá por meio de tais gestos. Portanto, mesmo
nas músicas que não contém um gesto real, como é o caso das músicas acusmáticas, a
ligação entre gesto e som se faz presente pela energia “viva” dada por uma causa
energética imaginada.
Além de proporcionar uma escuta de movimento, o gesto musical é percebido
numa perspectiva gestáltica259que fornece uma concepção mais formalista para o
gesto musical, referindo-se à união em uma única forma perceptual de parâmetros que
constituem um objeto composto com uma característica própria (como um trecho
melódico, por exemplo). Tal união pode ter, ou não, a relação causal entre movimento
do corpo e som, sendo então o gesto musical considerado como gestalt quando é
encarado como um todo reconhecido.
Na concepção de Robert Hatten (2001), a ideia de gestalt também se faz
presente na definição de gesto musical. Para o autor, uma das principais competências
que torna possível compreender um gesto é o aspecto da identidade gestáltica que ele
possui, isto é, o gesto musical é o produto de um único movimento pressuposto ou de
um conjunto coordenado de movimentos pressupostos.
De acordo com a concepção de Hatten, o gesto musical pode ser relacionado a
um conceito holístico que sintetiza num todo indivisível o que os teóricos analisam
separadamente como melodia, harmonia, ritmo e metro, tempo, articulações,
dinâmicas e fraseado. Para ele, o gesto oferece uma proximidade, de significado
afetivo, de uma síntese de elementos que podem ser projetados como Gestalt. Quando
o ouvinte segue a evolução do significado indicado pela variação do gesto, será
guiado pelo discurso de um movimento (Hatten, 2006).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
259
Segundo o dicionário on-line de francês Larousse, gestalt significa uma “Fato, para uma entidade
perceptiva, de ser tratada pelo sujeito como um todo ao invés de uma justaposição de partes”. Ou seja,
trata-se da percepção de várias qualidades de um fenômeno como um todo. No original: “Fait, pour une
entité perceptive, d'être traitée par le sujet comme un tout plutôt que comme une juxtaposition de
parties” (disponível em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/gestalt/36840?q=Gestalt#36782,
tradução nossa).

! 209!
Neste ponto de vista, o gesto é indivisível, ou seja, não é possível separar os
“ingredientes” que o compõe. Tais “ingredientes”, em proporções definidas,
determinam os efeitos finais do movimento gestual. Segundo o autor, uma
fragmentação dos elementos constitutivos do gesto em uma análise musical, quase
nunca faz uma reconstrução de uma linguagem gestual.
A qualidade gestáltica do gesto musical também é responsável por uma
qualidade de continuidade, unindo na percepção eventos acústicos isolados e
proporcionando formações coerentes, nuances, variações e/ou consistência de
parâmetros variados. As variações mencionadas são percebidas enquanto um
movimento260.
Além das abordagens composicionais que priorizam ao uso do gesto como
uma referência ao movimento corporal, existe o caso em que o gesto é tido em uma
concepção mais abstrata na estruturação musical. Neste caso, o movimento gestual
proveniente de ações humanas não é tratado como premissa criativa ou de
significação, mas sim o pensamento abstrato referente aos sons e as suas relações.
Ainda assim, uma construção de gestos sonoros ligados à uma performance,
pode eventualmente servir de base para possíveis abstrações musicais, pois uma
construção musical abstrata pode ser baseada em uma experiência instrumental vivida
do compositor. Seria, então, uma ilusão conceber uma hierarquia de ordem entre
pensamento e experiência, entre ideia e descoberta, mesmo porque, no ato criativo
ambas costumam ser atividades mútuas (Aldrovandi, 2000b).
Sobre uma noção mais abstrata para o gesto na criação musical, Zampronha
(2005) considera que o gesto pode introduzir significações na composição, sendo
utilizado de um modo desafiante na concepção poética da música contemporânea
recente. Como fundamentação, o autor pontua algumas suposições sobre o uso do
gesto na composição musical mais recente, considerando que a segmentação do som
em parâmetros foi um procedimento comum em diferentes tendências composicionais
por volta da década de 1950.
Nesta prática, acreditava-se que parâmetros individuais conservavam suas
características inalteradas, apesar dos modos em que eles eram combinados, porém,
ao fim da década de 1980 reconheceu-se que as maneiras pelas quais tais parâmetros
são combinados afetam a percepção final deles. A partir deste reconhecimento foi

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
260
Ibid.

! 210!
iniciada uma busca de alternativas para a composição musical não baseada
necessariamente na segmentação. Uma delas, sugerida por Zampronha, seria a
exploração do gesto musical na composição, que poderia fornecer resultantes
composicionais que atribuem materialidade e significação para o material sonoro.
Portanto a relação entre materialidade sonora e significação é muito próxima, e que o
gesto está na margem entre estes dois domínios
A unidade decorrente da percepção se relacionará com a significação na obra,
sendo os parâmetros tratados como um conjunto, não independentemente uns dos
outros, e as interferências múltiplas entre eles são levadas em conta, o que
proporciona uma escuta mais global. Portanto, as configurações globais, com suas
transformações espectrais e morfológicas se tornam mais importantes na composição
do que uma estrutura lógica usada para organizar o microscópico em uma obra.
Na perspectiva de Zampronha, o gesto fornece uma construção musical
baseada em alguma referência concreta, que pode ser usada como base
composicional. A coerência presente no gesto é transferida para a composição a fim
de basear relações diferentes entre parâmetros261. É importante ressaltar que tal
referencialidade não é necessariamente baseada na associação a um gesto
instrumental, porém pode ser buscada em associações com diferentes movimentos
conhecidos na experiência de escuta cotidiana.
O uso do gesto como um recurso na poética do compositor também é uma
abordagem recorrente na composição musical contemporânea, conforme a proposta
de Zampronha262. Nesta concepção, o gesto que é identificado como uma
configuração delimitada, podendo também ser manipulado como se fosse um motivo.
A memória pode conservar traços pertinentes que identificam um gesto e pode
interpretar novos aspectos destes traços como sendo novos aparecimentos do mesmo
gesto, ou variações deste.
Assim, na concepção do autor, o fato do gesto proporcionar a materialidade
sonora e significação produz consequências que são de grande relevância para a
música contemporânea recente e o seu uso nas composições atuais torna possível
transformar e re-significar as possibilidades oferecidas pela materialidade sonora263.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
261
Ibid.
262
Ibid.
263
Ibid.

! 211!
Nesta característica composicional são realizadas associações com
movimentos que não são necessariamente musicais e manipulados como elementos
musicais em forma de gestos sonoros. Sendo assim, ao se encontrar na margem entre
materialidade sonora e significação musical, o gesto volta a ser um recurso eficiente,
completo, que possibilita transformar o que é não-musical em musical dentro de uma
obra264.
O compositor Ferneyhough (1993a, 1993b) tem uma visão diferente sobre o
uso do gesto como um fim composicional, considerando ilusório pensar que existe
naturalmente uma energia retórica interna fornecida pelo gesto. Concebe que é uma
irrealidade pensar que tal energia seria suficiente para superar outras funções
formativas de um “contínuo formal”265, portanto a noção de gesto está relacionada
com a “referência a hierarquias específicas de convenção simbólica”266.
Em seu artigo “Form-Figure-Style: An Intermediate Assessment”267, o
compositor desaprova a concepção de compositores atuais para os quais o gesto, em
uma composição, pode ser visto como uma representação de emoções, sendo que esta
concepção poderia causar um retorno a uma estética Romântica. Além disso,
transparece também o descontentamento do compositor com a noção de isolamento de
parâmetros musicais como elementos estruturantes na obra, como era o caso do
serialismo268.
Como alternativa a estes conceitos, Ferneyhough propõe o uso do que
denominou figura, que seria “(...) um elemento de significação musical composto
inteiramente de detalhes definidos por sua disposição contextual (...)”269. Trata-se de
uma desconstrução do gesto em elementos individuais, sendo que cada elemento
possui um desdobramento autônomo (Zampronha, 2005). Tal processo resulta em um
conteúdo determinante que fornece um potencial renovador para o desenvolvimento
musical, composto de detalhes definidos pela disposição no contexto de tais
elementos. Como complemento, o compositor aponta que o gesto pode ser encarado,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
264
Ibid.
265
Id. 1993a
266
Id. 1993b
267
Id. 1993a
268
Ibid.
269
“(...) an element of musical signification composed entirely of details defined by their contextual
(...)”(id., 1993b p. 12,)

! 212!
como um “congelamento” da força constituinte da figura, sendo que este irá
representar energias expressivas270.
A noção de figura é relacionada aos conceitos de energia e linhas de força
musical. A energia é o esforço investido em objetos musicais, enquanto que as linhas
de força são descritas como “(...) objeto veicular, ímpeto conjuntivo estabelecido no
ato de passar de um evento musical discreto para outro”271. Desta forma, as linhas de
força são delineadas entre os objetos, gerando uma noção de “impulsão conectiva”
entre eles (Aldrovandi, 2000b), podendo produzir a noção de movimento para uma
obra. Este conceito é inverso à disposição isolada dos objetos musicais em “mônadas
expressivas” 272.
Ainda seguindo a concepção de Ferneyhough, o gesto é compreendido como
um sentimento expressivo que será considerado como um “congelamento” de forças,
proporcionado por uma troca ausente das energias expressivas. Um conteúdo afetivo
do gesto pode ser, em certa medida, apenas se relacionado de maneira vaga com a sua
“superfície perceptível” 273.
Portanto o uso da figura tem a função de proporcionar modos de liberar um
excesso de discursividade, por meio do rompimento da “volatilidade latente” do
gesto. Assim, uma desconstrução dada pela figura ou ainda uma reformulação do
objeto gestual em si é substituído, na concepção de Ferneyhough, por uma “teia
cintilante de troca de energia”274 que será uma importante fornecedora de movimento
para a construção musical.
A proposta de desconstrução do gesto proporcionado pela figura é questionada
por Zampronha (2005) que considera que não há uma desconstrução do gesto em si,
pois a fragmentação em unidades individuais suprime relações simbólicas,
particularmente as relações simbólicas estereotipadas. Os estereótipos que fornecem
“gatilhos” que implicam em uma “presença sufocante de estilismo historicamente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
270
Ibid.
271
“(...) their vehicular object the connective impetus established in the act of moving from one
discrete musical event to another” (id, p. 13).
272
Ferneyhough usa o termo “mônadas expressivas” para questionar a ideia de alguns compositores de
que existem categorias de gestos musicais que naturalmente transparecem determinadas imagens
emocionais. O compositor argumenta que na prática estas unidades gestuais se fundem umas às outras
gerando um princípio que é denominado como “mônadas expressivas denotativas” (no original:
“expressive denotational monads”). Ele considera que as mônadas “negam seu próprio potencial de
energia interna evocando-o no próprio ato da significação”. (Ferneyhough, 1993a, p. 35, tradução
nossa).
273
No original: “latent volatility” (Ferneyhough, 1993b, p. 13).
274
No original: “a shimmering web of energy exchange” (ibid., p. 14)

! 213!
concreto”275 são destruídos neste processo. Na percepção de Zampronha, uma ação
figural implicaria na realidade de gestos sem tais gatilhos que definem estereótipos
em movimento.
A crítica de Zampronha reside no fato de que o gesto, na verdade, não é
desconstruído e sim utilizado como um elemento chave para relacionar os parâmetros
entre si em uma unidade significante. Neste ponto de vista, retirar estereótipos faz
com que gesto seja inserido na margem entre a materialidade e significação do som,
sendo capaz de conectar estes dois domínios e abrindo espaço para o surgimento de
novas significações musicais276.
Assim como na composição musical, o gesto tem diferentes funções na escuta,
como a coporificação dos sons. O ouvinte, no processo de fruição da obra, pode usar
o gesto como uma metáfora para comportamentos dinâmicos, sendo as metáforas um
meio de capturar um momento ou aspecto sonoro e conectar-se com ideias musicais
vindas de uma ação física promotora de algum movimento.
Além da imagem de ação que o gesto musical promove na escuta, é possível
que ocorra um processo de imaginação de certas qualidades ou acontecimentos
desconhecidos, sem nome que os qualifique melhor em classe ou gênero de ação. No
ato da escuta o gesto musical pode proporcionar uma experiência auditiva de algum
“movimento, passagem, corte ou microforma no plano sonoro” (Aldrovandi, 2000b,
p. 16).
Após estas explanações, é possível avaliar que a noção de gesto musical na
composição não se trata apenas de uma associação a um movimento físico humano,
pois o gesto possui determinadas características próprias, as quais permitem que
surjam qualidades sonoras individuais.
Os elementos sonoros, ouvidos como um todo no gesto musical, são
percebidos como um movimento caracterizado por uma causa que o produz. A causa
pode ser alusiva a movimentos físicos, bem como a forças desconhecidas oriundas do
tratamento e combinação dos eventos sonoros pelo compositor. Além disso, o gesto
dará ao conjunto musical aspectos direcionais e possuirá trajetos que conduzem o
discurso para um objetivo, considerando sua característica de possuir um movimento.
Convém lembrar que a noção de gesto musical está relacionada a eventos
musicais particulares que resultarão em focos individuais na escuta global de uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
275
“(...) the suffocating presence of historically concrete stylistic” (Zampronha, 2005).
276
Ibid.

! 214!
obra. Este foco em eventos individuais é uma das características chave que diferencia
a noção de gesto do conceito de textura que será discutido mais adiante.
Assim, na composição musical em geral, dependendo da estratégia criativa, o
gesto terá um campo de referência próprio. Alguns compositores priorizam o gesto
musical com um enfoque no movimento do instumentista, enquanto outros relacionam
a ideia de gesto mais com à organização sonora ou forma musical. Existem ainda os
casos em que o uso do gesto se valoriza mais com os processos de escuta, como no
caso da música eletroacústica (Dignart, 2007).
Na composição eletroacústica, a presença de um intérprete como um agente da
fonte sonora instrumental tornou-se opcional. No caso das músicas acusmáticas, ou
eletrônicas puras, a ausência de uma imagem visual direta conduz a outras estratégias
de uso do gesto musical e sonoro. Os gestos explorados no processo composicionais
baseados na ideia acusmática, são puramente sonoros e não fornecem as informações
perceptuais equivalentes a um conhecimento corporal dos gestos instrumentais.
No contexto eletroacústico, o gesto é concebido como uma união de
parâmetros sonoros, percebida como uma unidade morfológica no contexto da escuta.
Tal unidade conterá uma causa de geração sonora que pode ser identificável (uma
ação humana, por exemplo), bem como uma causa que pode ser inferida ou
imaginada. Tal unidade perceptual possui ainda a característica de fornecer à
percepção a noção de um movimento direcional, que será significante no contexto da
composição.
Durante a escuta de eventos sonoros providos por meio eletrônico, um
indivíduo pode não associar o uso do corpo como um fator primordial ao processo
composicional. Com o uso na composição de meios digitais e eletrônicos como
produtores de som, a primazia da influência sensório-motora na concepção de objetos
musicais dá lugar a uma abstração codificada. Na atualidade, todos os passos da
produção de uma obra “podem reduzir-se à intervenção codificada sobre o modelo
digital de um sinal físico” (Levy, 1998, p. 20). Portanto, o compositor cria materiais
musicais novos, desconhecidos e o ouvinte desenvolve estratégias perceptuais que não
faziam parte de seu repertório no ato da escuta (Dignart, 2007).
Com a exclusão da figura do intérprete instrumental (consequentemente das
referências visuais) a experiência de escuta do gesto foi alterada. A relação que o
ouvinte possuía com o dispositivo causal dado na performance é revisado com este

! 215!
novo material musical, resultando que a herança técnica do passado se demonstra
insuficiente neste contexto.
O compositor parece ser compelido a buscar estratégias composicionais
específicas que dão uma noção de movimento e coerência, sendo o gesto sonoro é
explorado como um meio de geração de movimento. Este contexto de familiarização
com gestos instrumentais foi quebrado, assim fornecendo ao ouvinte certa
instabilidade em sua percepção do discurso.
Na ótica de Zampronha (2005), o ouvinte estabelece conexões indiciais entre o
que é escutado numa apresentação e os gestos feitos por um performer em seu
instrumento. Tais indicialidades podem estabelecer um campo de interesse rico para o
ouvinte, porém no contexto da música eletroacústica para suporte fixo, estas conexões
não demonstram ser tão aparentes. Em sua grande maioria, os sons gerados de
maneira eletrônica ou digital não possuem um princípio de identidade causal direta,
não permitindo ao ouvinte vincular os eventos sonoros a nenhum tipo de fonte ou
gesto que lhe seja familiar.
Para Smalley (1986), a música eletroacústica lida com uma organização
sonora que vai do real ao surreal, portanto as ligações tradicionais com o fazer sonoro
físico são rompidas para os ouvintes. Sendo assim, os sons produzidos nos meios
eletrônicos e digitais, muitas vezes podem parecer ambíguos e abstratos para quem os
escuta.
Sobre este assunto, Manoury (1988) compara a perda de referencialidade
causal com uma situação “sobrenatural” para a escuta, pois na música eletroacústica
as causas e efeitos podem ser independentes entre si. Para ele, existe um desvio entre
uma situação natural e uma situação de escuta de obras eletroacústicas, sendo que o
compositor, ao criar sua obra deve ter ciência de tal desvio. Trata-se de uma revisão
de parâmetros conceituais que ocorrem na composição eletroacústica.
Para o autor, a solução para uma escuta satisfatória seria uma menor procura
de uma causalidade para os eventos sonoros, decorrente da busca de uma maior
integração dos fenômenos sonoros a um discurso determinado. Nesta abordagem, os
meios tecnológicos não são tratados como um intermediário entre o criador e o
ouvinte, mas sim como um elemento que age entre o gesto e o fenômeno percebido.
Tal ação é oculta (Manoury, 1988), sendo proporcionada apenas pelo movimento
sonoro.

! 216!
Assim na música eletroacústica, desprovida de perfomance, o gesto físico é
transcendido e novas possibilidades que eram impraticáveis dadas as limitações
corporais humanas, tornam-se agora plausíveis pois, além da criação de diferentes
sons e espaços durante um concerto eletroacústico, pode-se estender a noção de gesto
para outros domínios que antes não eram considerados musicais (Zampronha, 2005).
A concepção de gesto volta-se agora essencialmente para valores de escuta,
sendo relacionada a apenas aspectos do sonoro, e não por movimentos de
performance (Dignart, 2007). O gesto se faz presente por meio de sua energia,
podendo ser percebido pelo ouvinte com graus de apreensão variados. O gesto, na
música acusmática, se relaciona basicamente a um modo de se referir a um evento
sonoro que é marcado por sua singularidade ou significância (Aldrovandi, 2000b).
A percepção aural será o único meio de apreensão do gesto musical e sonoro
que está intimamente relacionado ao modo pelo qual foi originado por uma causa
independentemente do reconhecimento a alguma fonte e o gesto passa a ser uma
forma de alusão a um movimento sonoro a partir de suas particularidades dadas na
escuta. O conceito de gesto permanece na composição acusmática, contudo seu uso
não é baseado necessariamente numa relação com o corpo e sim definido apenas pela
apresentação de qualidades sonoras que serão formas de representação de
movimentos.
Sem referências visuais diretas e sem a presença de intérpretes, a música
eletroacústica estimula um aspecto imaginativo para a escuta, ainda assim associações
com imagens visuais podem inevitavelmente ocorrer. Para Smalley uma característica
visual é imprescindível para a percepção do campo gestual; as correlações da
trajetória de movimento-energia não podem ser imaginadas sem relações visuais
conhecidas (Smalley, 1992).
As imagens que os gestos sonoros promovem na escuta são resultantes de
experiências pessoais do ouvinte, ou seja, o gesto adquire sua significação através da
vivência do ouvinte com os signos que o circundam, e esta significação é construída
por meio da interação entre o fenômeno vivenciado durante a vida, conforme como os
sentidos apreendem tal fenômeno (Iazzetta, 2000).

! 217!
Aldrovandi (2000a) concebe outra noção de gesto no contexto eletroacústico,
fazendo uma relação do gesto sonoro com os conceitos de fatura e allure277,
propostos por Schaeffer. Na concepção autor, a percepção de um gesto sonoro é
evidente na escuta quando o ouvinte percebe que um determinado som possui agente
energético possível para a produção deste som.
Numa concepção Schaefferiana, “o termo fatura denota a intenção
incorporada do gesto instrumental, ou ainda, (...) a criação ativa do som”278. Assim, a
fatura é a característica do som que define a percepção de uma energia aplicada no
objeto de produção sonora. A fatura não é necessariamente dependente de
reconhecimento da fonte original, mas sim da percepção dos agentes do processo de
produção sonora original (Aldrovandi, 2000a). Na concepção de Aldrovandi, é
possível aproximar a noção de fatura com a ideia de gesto, pois a percepção da fatura
leva em consideração os tipos de ação que produzem o som e o modo de
comportamento de tais sons279.
O conceito de allure pode ser um complemento para a noção de fatura. Allure
consiste na característica que “revela o que o agente de sua energia é, bem como se
esse agente está vivo ou não”280 (Chion, 2009). Assim, allure pode ser entendido
como uma marca da fatura (Aldrovandi, 2000a).
Allure é também relacionado com as flutuações de um som sustentado, sendo
que as ondulações podem indicar a “vida” do agente produtor de som. Na concepção
de Aldrovandi, uma marca de um agente humano pode ser caracterizado como uma
flutuação flexível na sustentação do som, ou ainda como um traço formal perceptível
natural(Aldrovandi, 2000a). Estas “marcas” fornecidas por tais variações flutuantes,
parecem contribuir para uma ideia de causalidade proporcionada pelo gesto, fazendo
com que o conceito de allure também se integre à noção de gesto.
Na composição eletroacústica, manipulações complexas dos gestos sonoros
podem conferir dramaticidade e materialidade às obras, contudo Iazzetta (2000)
considera que os sons produzidos por meios eletrônicos e digitais não incorporam
relação gestual alguma aos dispositivos que os produzem. Portanto, a eliminação das
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
277
Optou-se por neste texto, não traduzir o termo pelo fato de aparentemente não existir uma boa
representação do termo em uma única palavra na língua portuguesa.
278
“the term facture denotes the intention embodied in the instrumental gesture, or again, (...), the
active creation of sound (...)”(Chion, 2009, p. 130).
279
Ibid.
280
“reveals what the agent of its energy is, and whether this agent is living or not (...)” (Chion, 2009, p.
179).

! 218!
referências visuais de uma performance (prática acusmática da música eletroacústica)
fornece grande autonomia e liberdade composicionais, pois são baseadas unicamente
no sonoro. Ao mesmo tempo, tal prática sofre uma perda nas dimensões simbólicas e
significativas dadas pelo movimento visual de um performer.
Para alguns autores e compositores, uma alternativa para tal perda seria incluir
sons que podem representar os gestos em si, ou seja, movimentos individuais
(Zampronha, 2005). Estes sons podem ser escutados como gestos sonoros que irão
produzir outros sons e que possuem um grande impacto em concertos281. Neste caso, a
escuta de uma obra eletroacústica, que tem seu reconhecimento de causalidades
proporcionado pela exploração de gestos sonoros, pode fornecer um efeito retórico
interessante a ser explorado na construção de vários discursos musicais desta
prática282.
Deste modo, na música eletroacústica, o gesto sonoro e musical pode ser
explorado como uma matéria para o discurso musical, desenvolvido a partir de
processos composicionais baseados apenas em morfologias sonoras. Como a noção de
movimento proporcionada pelo gesto sonoro adquire significações apenas na escuta,
tais gestos podem ser incorporados como material constitutivo de uma composição.
Pode se considerar que a música eletroacústica reinterpretou a concepção de
gesto no contexto musical, que num momento anterior era relacionado essencialmente
ao movimento físico de um instrumentista e agora é tratado unicamente pela
manipulação do sonoro.
Portanto, a música eletroacústica inovou os modelos perceptivos de gestos,
baseados em gestos instrumentais ou vocais que eram referência nos processos de
percepção dos elementos musicais durante a escuta. A prática acusmática, onde o
movimento gestual é dado apenas pelo som, fornece uma noção de intimidade com o
gesto em si e suas particularidades, contribuindo uma experiência auditiva rica e
ampla.
O uso de dispositivos gestuais é um meio de se buscar familiaridades para as
sonoridades eletrônicas e o surgimento do protocolo MIDI foi importante no
desenvolvimento de pesquisas na área de interfaces gestuais. O uso de tal padrão por
muitos compositores teve como finalidade a recuperação do gesto instrumental como
o controle manual, que aparentemente foi perdido na música feita unicamente em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
281
Ibid.
282
Ibid.

! 219!
estúdio. Estas músicas que usam as interfaces gestuais (principalmente com o auxílio
do protocolo MIDI) como meio de produção de som e a “ação” sonora muitas vezes
podem se dissociar do movimento mecânico real.
Um gesto, por exemplo, ascendente de uma mão pode disparar um som grave
e descendente, desconectando uma referência gestual direta entre produção e
resultado de som. Porém, o aspecto visual continua presente em uma apresentação,
fato que gera uma noção de referencialidade importante na escuta. Neste caso, o
movimento gestual sobre os sons eletrônicos permite um agenciamento atento ou
intencional de certas qualidades sonoras, com a possibilidade de descobertas e
surpresas sonoras interessantes.
No caso de músicas mistas, quando um instrumento acústico interage com
sons eletrônicos em um suporte fixo, existe uma troca frequente de informações
gestuais no ato da performance. As obras, nesta abordagem, costumam explorar
aspectos mais concretos relacionados com o gesto humano, bem como noções mais
abstratas dadas por sons do meio eletrônico, muitas vezes não referenciais.
O compositor pode reinterpretar a noção de gesto instrumental de modo que os
sons dados na performance se fundam com os gestos abstratos da parte eletrônica,
bem como explorar as referências a movimentos reais de gestos instrumentais em
timbres desconhecidos do meio eletroacústico. Também pode ocorrer a incorporação
de sensores no instrumento ou no corpo do performer, resultando na transferência de
gestos instrumentais e físicos em novos sons e gestos sonoros (Bachratá, 2010).
A performance no contexto eletroacústico, seja com o uso de instrumentos
eletrônicos ou acústicos, apresenta qualidades de adaptação e espontaneidade que
pode dissolver o que muitos consideram como uma rigidez dada pela projeção de um
suporte fixo. Um benefício deste uso é a flexibilidade e a surpresa que podem ser
conferidas ao ato performático.
Mesmo existindo uma tentativa de restabelecimento de uma referencialidade
visual da performance instrumental no contexto eletroacústico, a escuta continua a ter
um papel primordial na experiência do gesto musical. O reconhecimento tímbrico de
um instrumento tradicional, agora é reformulado na percepção pelas possibilidades
diversas dadas pelas novas tecnologias.

! 220!
4.1.1 – Abordagens Conceituais de Gesto Aplicadas à Música Eletroacústica

Considerando a conceituação do gesto desenvolvida anteriormente, seguem-se


os apontamentos de diferentes abordagens propostas a respeito de aspectos
constitutivos e descritivos do gesto sonoro no contexto da música eletroacústica.
Algumas destas abordagens além de serem estratégias descritivas interessantes
fornecem delineamento conceitual que poderá ser usado como referência para uma
estruturação musical.

4.1.1.1 – Objetos Sonoros Gestuais

A noção de Objeto Sonoro dado por Pierre Schaeffer foi um importante marco
conceitual e influenciou grandes mudanças no pensamento musical e muitos
compositores passaram a encarar o material sonoro de um modo diferente ao que
vinha sendo praticado na escritura musical no ocidente. De forma similar, os ouvintes
também foram influenciados para uma nova escuta proporcionada pelo surgimento de
tal conceito.
O objeto sonoro se refere “a qualquer fenômeno e evento sonoro percebidos
como um todo, como uma entidade coerente, sendo ouvido por meio de escuta
reduzida. O evento sonoro é voltado a si mesmo, independentemente de sua origem
ou do seu significado” (Chion, 2009)283. Este conceito surgiu a partir de experimentos
de processamento sonoro em fita magnética realizados por Schaeffer que, ao
desnaturalizar sons gravados (por meio de processos de corte, inversão, aceleração e
desaceleração da fita), desvendou as particularidades mais internas dos eventos
sonoros individuais. Tais particularidades só podem ser percebidas quando não há
uma referencia causal que obscureça os detalhes.
Para que haja a apreensão de tais particularidades que definem um objeto
sonoro, o ouvinte deve praticar a escuta reduzida. Tal conceito já foi citado em outros
momentos deste trabalho, mas vale a pena lembrá-lo como um fundamento para essa
discussão. A escuta reduzida na verdade é uma “atitude que consiste em ouvir o som

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
283
“(...) every sound phenomenon and event perceived as a whole, a coherent entity, and heard by
means of reduced listening, which targets it for itself, independently of its origin or its meaning”
(Chion, 2009, p. 32).

! 221!
por si só, como um objeto sonoro, removendo sua fonte real ou suposta e o
significado que pode transmitir”284.
Por um bom tempo estes foram os principais conceitos que serviram como
referência a muitas composições elaboradas numa estética baseada na música
concreta, ou numa perspectiva acusmática. Contudo, novas teorias foram sendo
desenvolvidas para a descrição dos eventos sonoros no meio acusmático. Godøy
(2006) expandiu a noção de objeto sonoro de Schaeffer, propondo a noção de objetos
sonoros gestuais285. Para o autor, a noção de não referencialidade e não causalidade
do objeto sonoro é insuficiente pois, nesta concepção tal objeto parece possuir
componentes gestuais na recodificação do som musical na mente do ouvinte286.
Na proposta do autor, a partir de escuta repetida e de um rastreamento sonoro,
o ouvinte recodifica o evento sonoro em imagens gestuais-sonoras que são
multimodais. Tais imagens são resultantes de associações baseadas nas forças
biomecânicas (que o ouvinte imagina que seu corpo executa) e em associações visuais
cinemáticas e motoras dadas por propriocepção. Tal formação de imagens é um
processo bidirecional, no qual as imagens gestuais podem gerar imagens sonoras,
também sendo possível ocorrer o processo inverso287.
Um ponto de partida para a expansão do conceito de objeto gestual sonoro é
divisão dos objetos em tipologias e morfologias, como proposto por Schaeffer. Na
concepção schaefferiana, um tipo de objeto sonoro é definido por sua “sua aparência
geral, resultante da combinação de características morfológicas elementares”288. Cada
tipo é classificado a partir de atributos específicos do objeto, como os envelopes de
altura, conteúdo espectral etc.
A morfologia trata-se de um “procedimento descritivo (...) de objetos sonoros,
que foram identificadas e classificadas pela tipologia”289. Tal processo descreve
características particulares chamadas de critérios, definidos como: massa, timbre
harmônico, dinâmica, grãos, allure, perfil melódico e perfil de massa290.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
284
“(...) listening attitude which consists in listening to the sound for its own sake, as a sound object, by
removing its real or supposed source and the meaning it may convey” (Ibid.,p. 30).
285
No original em inglês: Gestural-Sonorous Objects (Godøy, 2006).
286
Ibid.
287
Ibid.
288
“(...) general physiognomy, resulting from the combination of elementary morphological
characteristics” (Chion, 2009, p. 109).
289
“(...) descriptive procedure (...) of sound objects, once they have been identified and classified by
typology” (ibid., p. 110).
290
Ibid.

! 222!
Godøy (2006) usa apenas alguns dos conceitos de tipologia e morfologia como
referência para a sua expansão do conceito de objeto sonoro, com tipos relacionados a
envelopes globais, tais como: tipos impulsivos, tipos sustentados e tipos iterativos.
Tais conceitos utilizados pelo autor são assemelhados à noção de “fatura gestual”
proposta por Schaeffer291. Quando são relacionados à noção de faturas os tipos são
denominados gesto pontual, gesto contínuo e gesto iterativo.
O autor manifesta que, nestes exemplos de Schaeffer, o conteúdo espectral
também é levado em consideração, sendo denominado de massa292. A massa seria
então descrita como tendo altura definida, altura complexa, e vários graus de
estabilidade, evolução ou instabilidade de alturas (Chion, 2009).
Dentre as características morfológicas indicadas por Schaeffer, Godøy (2006)
ressalta apenas algumas, principalmente aquelas que se referem às características
internas do objeto, como a evolução das alturas ou do conteúdo espectral. São elas: a
forma, a massa, o grão, o timbre harmônico (distribuição espectral) e o movimento.
Após examinar brevemente a tipo-morfolgia de Schaeffer, Godøy destaca
alguns componentes gestuais num contexto mais amplo relacionado com o som em
geral. O autor apresentou as seguintes classes de gesto com base em estudos
anteriores293: gestos produtores de som, ou de excitação: por exemplo, bater, golpear,
passar o arco, soprar, cantar, chutar, etc; gestos de modificação: podem se relacionar
às mudanças morfológicas propostas por Schaeffer, como por exemplo, o movimento
e de grãos será modificado se aplicar vibrações em diferentes velocidades e
amplitudes, gestos de acompanhamento de som, tais como evoluções de timbre ou
dinâmicos do foco principal de atenção etc.; gestos amodais, afetivos ou emotivos:
referem-se a movimentos associados a sensações mais gerais de movimento como, o
esforço, a velocidade, a agitação, calma, etc.
Nesta concepção de Godøy, praticamente toda a catalogação dada pela
tipologia e morfologia de Schaeffer pode ser associada a vários gestos produtores e
moduladores de som e o autor pretende demonstrar que existe um componente gestual
incorporado na conceituação de Schaeffer, a qual é fundamentada na escuta causal
cotidiana294.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
291
Ibid.
292
Ibid.
293
Ibid.
294
Ibid.

! 223!
Porém, Godøy (2006) considera que as categorias gestuais também possuem
certo grau de abstração, pois em uma escuta de tais gestos o ouvinte utiliza sua
percepção do conhecido, bem como desconhecido, praticando o que é denominado
“projeção antropomórfica”295.
Quando o autor estabelece os conceitos, não refere exclusivamente ao uso de
gestos sonoros na música eletroacústica, porém os conceitos são perfeitamente
aplicáveis a esta abordagem estética, considerando-se que os eventos sonoros
produzidos em meios tecnológicos podem fornecer informações sobre a produção ou
modificação durante a sua escuta. Tal informação poderá ser identificável com ações
reais, bem como com ações desconhecidas que serão apreendidas por meio da
comparação de sensações dadas nas experiências pessoais de causalidade do ouvinte.

4.1.1.2 – Unidades Semióticas Temporais (USTs)

Como o gesto pode ser entendido como a resultante da soma de diferentes


parâmetros sonoros, gerando uma noção de movimento, surge a equivalência com
algumas das Unidades Semióticas Temporais (USTs). O conceito de Unidades
Semióticas Temporais surgiu a partir de estudos de pesquisadores do Laboratoire
Musique et Informatique de Marseille (MIM) em 1992, sob a direção de François
Delalande (Hautbois, 2010).
Os estudos estavam orientados para um desenvolvimento dos conceitos
schaefferiano de objeto sonoro, oriundos da escuta reduzida. Tomando como base os
problemas analíticos apontados na música eletroacústica, os pesquisadores buscaram
uma noção de objeto sonoro enquanto conceito, levando em consideração “o som em
um contexto temporal e significante296 (Hautbois, 2010). A partir da coleta e análise
de diversas obras eletroacústicas, os pesquisadores observaram que certas figuras
sonoras portadoras de efeitos sonoros cinéticos, dinâmicos ou estáticos pareciam ser
portadoras de significação. Tais constatações foram responsáveis pela definição das
Unidades Semióticas Temporais como “segmentos musicais que possuem um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
295
No original anthropomorphic projection (ibid., p. 155).
296
“le son dans un contexte temporel et signifiant” (Hautbois, 2010)

! 224!
significado temporal devido à sua organização morfológica e cinética”297. Favroy
(2007) disseca o termo da seguinte maneira:

“Unidades” porque são fragmentos musicais, “Semióticas” porque


estes fragmentos parecem portadores de um sentido, frequentemente
em relação de homologia com algo de extramusical e “Temporais”
porque o sentido está em função da forma como a matéria sonora
organiza-se, evolui, no tempo. Este sentido permanece perceptível
mesmo fora de contexto musical298.

O conceito de Unidades Semióticas Temporais pode ser comparado ao gesto


quando este é entendido como um movimento significante dado por segmentos
musicais. Sobre esta questão, Delalande (2003) aponta que representações de
movimento podem ser geradas independentemente de qualquer origem gestual real e a
elaboração do conceito das USTs buscou tal representação de movimentos gerados
exclusivamente pelo sonoro.
Na realidade, as Unidades Semióticas Temporais evocam uma temporalidade
fornecida pela representação de um movimento, mais do que o sentimento de um
movimento real299.
A partir dos estudos realizados, os pesquisadores do MIM catalogaram figuras
sonoras que parecem produzir um significado temporal e efeitos cinéticos300
(Hautbois, 2010). Tais figuras foram classificadas em dezenove Unidades Semióticas
Temporais que serão demonstradas no quadro abaixo (Figura 13).

INVARIANTES
Movimentos de fluxos e
refluxos regulares que
Por onda
propulsam adiante, e depois se
Invariantes por repetição deixam levar.
Repetição cíclica e regular, com
Que Gira
aceleração em cada ciclo que dá
a impressão de um movimento

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
297
“(...) des segments musicaux qui possèdent une signification temporelle en raison de leur
organisation morphologique et cinétique” (Hautbois, 2010, disponível em
http://www.musimediane.com/numero5/02-SEMIOGENE/).
298
“Unités” car ce sont des fragments musicaux, “Sémiotiques” car ces fragments semblent porteurs
d'un sens, souvent en relation d'homologie avec quelque chose d'extra-musical et “Temporelles” car le
sens est fonction de la façon dont la matière sonore s'organise, évolue, dans le temps. Ce sens restant
d'ailleurs perceptible même hors contexte musical” (Favroy, 2007, p.52).
299
Ibid.
300
Descrições mais detalhadas e exemplos de trechos musicais de cada UST podem ser consultados em
http://www.labo-mim.org/site/index.php?2008/08/22/44-liste-des-19-ust

! 225!
de rotação.

Repetição mecânica em caráter


Obsessivo
de repetição

Fórmula lenta reiterada


(repetida) provocando um
sentimento de espera e de tensão
Em suspensão
(aqui, não é a reiteração que
caracteriza a invariância, mas o
efeito de espera que gera).
Estrutura sonora contínua,
Invariantes por estagnação Estacionário
imóvel e sem tensão.

Eventos sonoros pontuais


bastante lentos, sem formação
Em flutuação de estrutura, produzindo um
estado globalmente estável e
sem tensão.

Sem direção por divergência de Sucessão incoerente de


informação informações sonoras diferentes.
Densidade superabundante das
Invariantes por efeito caótico Sem direção por excesso de informações sonoras,
informação provocando um sentimento de
saturação.

VARIANTES
Progressão cuja atividade
Que avança motora renovada conduz para
frente de maneira regular.
Processo orientado para uma
Trajetória inexorável direção cuja evolução é
Variantes em evolução uniforme previsível.

Fórmula lenta cuja repetição


Opressão irregular dá a impressão de uma
dificuldade para avançar.

Extinção progressiva, do tipo


Sur l’erre ressonância, sem intervenção
complementar.
Retardação do desenrolar de
Frenagem uma figura sonora devido à uma
força externa contrária.

Variantes em evolução Efeito de alongamento


contrariada Estiramento progressivo gerando uma
tensão.

Fórmula constituída de duas


fases opostas cuja repetição é
Que quer arrancar
percebida como uma intenção
de movimento sem sequência.

Suspensão seguido de depósito,


Queda ascendente ou descendente, com
aceleração.
Variantes em equilíbrio rompido
Ponto de apoio seguido de uma
Impulso
aceleração dinâmica.

! 226!
Efeito de compressão e
Contraído-estendido
relaxamento.

Movimento interrompido numa


Suspensão-interrogação
posição de espera.

Figura 32 - Classificação das Unidades Semióticas Temporais (adaptado de: Hautbois, 2010, tradução
nossa)

Todas as Unidades Semióticas Temporais, segundo Hautbois (2010), foram


analisadas por seu conteúdo semiótico através das características morfológicas,
cinéticas e semânticas. Dentre as características morfológicas, foram usados critérios
como: a duração; a reiteração (pode ou não ocorrer); o número de fases e a matéria
sonora (que podem ser contínuas ou descontínuas). As características cinéticas
analisadas são: o tipo de aceleração e o desenrolar temporal (que pode ser rápido ou
lento). A avaliação das as características semânticas observa a direção, o movimento e
a energia301.
A classificação das Unidades Semióticas Temporais traz ainda sua divisão em
subcategorias de acordo com os métodos de invariância302. As invariâncias indicam
que nem todas as USTs podem ser relacionadas à noção de gesto, uma vez que para
tanto a unidade deve ter as características gestuais como direcionalidade e
movimento.
Portanto, na concepção de gesto adotada neste trabalho, as UST que se
relacionam com a noção de gesto seriam: “que avança”, “trajetória inexorável”,
“opressão”, “sur l’erre”, “frenagem”, “estiramento”, “que quer arrancar”, “queda”,
“impulso”, “contraído-estendido”, e “suspensão-interrogação”. Cada uma delas
proporciona a sensação de energia imposta sobre o material, bem como
direcionalidades que conduzem a algum objetivo, ainda que seja o “infinito” como é o
caso da UST “trajetória inexorável”.
Algumas das unidades também podem ser pensadas como união de alguns
gestos que geram um sentido único, como é o caso de “invariantes por efeitos
caóticos”, especificamente o caso da UST “sem direção por divergência de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
301
Ibid.
302
Ibid.

! 227!
informação”. Nesta situação, a sensação global de adirecionalidade pode ser
alcançada pela sucessão de gestos sonoros heterogêneos.
O caso da UST “em flutuação” também é um exemplo da soma gestual, pois
ainda que gere a sensação de suspensão temporal (que é uma característica textural) a
UST constituída por ataques esparsos e aleatórios que configuram uma noção de
causalidade em cada um deles (que é uma característica gestual). Portanto, este seria
um exemplo de sucessões de gestos que fornecem uma escuta mais textural dada pela
sensação de adirecionalidade temporal.
Outras USTs são percebidas mais como texturas303, pois são mais voltadas
para a contemplação de atividades interiores de eventos sonoros, além de possuírem
ações coletivas ou estáticas dos elementos constitutivos. Este é o caso da maioria das
“invariantes”, por exemplo as USTs “por onda”, “que gira”, e “obsessivo”, são
exemplos de estaticidades temporais e sonoridades texturais contemplativas que
caracterizam uma textura. As USTs que são invariantes por estagnação também se
comportam auditivamente de modo textural. Os conceitos aqui apresentados serão
úteis para a descrição das características das texturas que serão apontadas mais
adiante nesta tese.
Assim, declaradamente as USTs não se tratam exclusivamente de gestos
sonoros, mas podem servir como um recurso de identificação e delimitação de gestos
sonoros na música eletroacústica, já que essa é constituída de morfologias
diferenciadas da música instrumental.

4.1.1.3 – O Gesto na Espectromorfologia

O conceito de espectromorfologia já foi abordado em outros trabalhos da


autora (Dignart, 2007), porém é importante citá-lo, pois este é uma ferramenta rica
para a definição de aspectos relacionados ao movimento de espectromorfologias
fornecidos pelo gesto. Este conceito se refere a descrição de processos espectrais e
morfológicos que fornecem a definição de uma estrutura que abrange relações e
comportamentos estruturais percebidos na escuta da música (Smalley, 1997). Portanto
pode ser empregada como uma ferramenta para a descrição e análise da experiência
auditiva no contexto da música eletroacústica, sendo que as conceituações buscam
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
303
Os conceitos relativos à de textura serão apontados mais adiante neste trabalho.

! 228!
descrições dos fenômenos com base na materialidade dos eventos sonoros, o que é
percebido em boa medida pela imaginação do ouvinte.
Do ponto de vista de Smalley (1986), o gesto inicialmente faz alusão a uma
atividade humana, que produz o som com resultados espectromorfológicos. Neste
caso, uma ação produz uma espectromorfologia por meio do movimento do gesto
(provindo de um agente) que injeta energia em um corpo sonoro304. A percepção de
uma ação gestual numa escuta, na concepção de Smalley é de processo tátil, visual,
aural e proprioceptivo305, sendo um modo de escuta que liga a produção à uma
experiência sensório-motora e psicológica. Assim a noção de gesto é vista como uma
forma de relacionar aspectos do espectro com a produção dos sons originários de uma
atividade física.
Outra definição de gesto dada por Smalley é de “trajetória de movimento-
energia que excita o corpo sonoro, criando vida espectromorfológica”306. Trata-se de
uma ação que gera direcionalidade e que impele o evento sonoro em direção a um
objetivo. Refere-se também à uma aplicação de energia que tem consequências, um
sinônimo de intervenção, transformação e progresso dos eventos sonoros307.
Uma energia que seja inerente ao movimento espectral será compreendida
como um evento sonoro, podendo também se ligar a uma experiência não sonora. Na
escuta, a energia une-se não só ao movimento em geral, mas a uma ação gestual, cujas
manifestações sonoras estão implicadas numa conexão com uma causa308.
Nesta concepção, a ideia de gesto também está ligada à noção de causalidade,
sendo que na música eletroacústica uma causa gestual pode ser conhecida, suposta ou
imaginada. Quando a causa é desconhecida ela pode ser suposta a partir seus perfis
energéticos que fornecem impressões de algo que possa causar este evento sonoro e
evidências sobre a natureza desta causa
Uma causalidade não é relacionada apenas com a intervenção física, mas pode
também estar relacionada com “eventos naturais e projetados, analogias visuais,
experiências psicológicas sentidas ou mediadas pela linguagem e paralinguagem, aliás

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
304
Ibid.
305
Trata-se dos sentidos pelos quais se percebe os movimentos musculares, relacionado à sensação de
tensão e relaxamento dos músculos e esforço e resistência.
306
“energy-motion trajectory which excites the sounding body, creating spectromorphological life”
(ibid., 1997, p. 111).
307
Ibid.
308
Id., 1994

! 229!
qualquer ocorrência que pareça provocar uma consequência, ou consequência que
pareça ter sido provocada pela ocorrência”309 (Smalley, 1986).
Conforme o autor, uma compreensão por parte do ouvinte pode ser obtida
quanto ele faz uma relação entre o corpo sonoro e a sua causa no ato da escuta, pois o
conhecimento do gesto físico humano se liga com ao conhecimento da música como
uma atividade310. Todavia, as morfologias que compõem a música eletroacústica não
são relacionadas com gestos físicos e frequentemente não existe uma ação causal real
identificável para o evento sonoro311.
Também contribuem para a noção de gesto, as qualidades intrínsecas e
extrínsecas do material musical e na proposta de Smalley a espectromorfologia está
mais voltada a aspectos intrínsecos do som. Estes aspectos são relacionados com a
ideia de timbre, que também lida com o desdobramento temporal e com modelagem
de espectros sonoros312.
Uma obra que valoriza os aspectos intrínsecos do material sonoro é voltada
para a apreciação dos elementos internos que compõem o evento sonoro, sem haver
relações extra-musicais. Entretanto, o autor considera que a escuta de uma obra
musical não se limita ao material interno, ela também pode gerar ligações com
experiências fora de seu contexto. Para ele, a escuta da música é o resultado de uma
construção cultural que possui base extrínseca de referência.
As ligações extrínsecas se referem à conexão com experiências sonoras fora
do contexto musical, compreendendo, além de eventos sonoros conhecidos, uma
ampla gama de fenômenos sonoros desconhecidos e imaginários313. Para que exista
uma ligação extrínseca é necessário que o conteúdo intrínseco possa ter um
significado, portanto o intrínseco e o extrínseco são interativos em uma obra
musical314. Nesta concepção o gesto possui, por natureza, conexões extrínsecas que
estão que podem fazer parte da experiência do sonoro e do não-sonoro.
A noção de vínculo com a fonte315foi desenvolvida para representar as ligações
e Smaley a descreve como: “a tendência natural de relacionar os sons com fontes e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
309
“natural and engineered events, visual analogues, psychological experiences felt or mediated
through language and paralanguage, indeed any occurrence which seems to provoke a consequence, or
consequence which seems to have been provoked by an occurrence. (Smalley, 1986, p. 81)
310
Id., 1997.
311
Id., 1986.
312
Id., 1994.
313
Ibid.
314
Id., 1997
315
Source bonding (Smalley, 1997, p.110)

! 230!
causas supostas, e relacionar sons com outros sons por parecerem ter origens
compartilhadas ou associadas”316. Os vínculos abrangem as ligações com todos os
tipos de materiais sonoros, seja da natureza, da cultura, ou aqueles surgidos em
consequência da atividade humana (Smalley 1997).
Nesta perspectiva, a visão é uma modalidade sensorial que auxilia neste
processo de vinculo com a fonte, pois segundo o autor, o gesto como trajetória de
movimento-energia é percebido fundamentalmente por relações visuais (Smalley,
1992). Deste modo, o autor considera que a música eletroacústica, na realidade, não é
uma arte puramente auditiva, porém uma arte integrada de audição e visão, mesmo
que a visão seja apenas ilusória (Smalley, 1986). Além disso, nesta perspectiva, o
movimento dado pelo gesto musical possui uma relação indicativa automática com a
experiência do não-musical317.
O conceito de substituição gestual318, é proposto por Smalley (1986, 1997)
para identificar quatro níveis diferentes de afastamento das associações identificáveis
em relação ao gesto sonoro na escuta de música eletroacústica. Os níveis de
distanciamento do reconhecimento de fonte-causa são: substituições de primeira,
segunda e terceira ordem e substituição remota. Da primeira à última ordem ocorre
um obscurecimento gradual na associação dos sons com as suas origens físicas
durante a escuta319.
Em cada uma das ordens de substituição gestual podem ser feitas, durante a
escuta, associações com ações conhecidas (tais como a identificação de gestos de
instrumentistas) bem como ligações mentais com outras modalidades perceptivas
(como tato, ou propriocepção) para reconhecer uma fonte originária do evento sonoro
(que pode ser real ou não).
A substituição de primeira ordem lida com a percepção de um nível primário
do som referindo-se ao uso do objeto sonoro antes de uma “instrumentação” ou
incorporação em atividade humana musical, consistindo no primeiro momento em que
os eventos sonoros são reconhecidos como musicais320 (Smalley, 1997).
A substituição de segunda ordem é concernente a uma visão do gesto
instrumental tradicional, na qual é possível identificar as capacidades interpretativas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
316
“the natural tendency to relate sounds to supposed sources and causes, and to relate sounds to each
other because they appear to have shared or associated origins” (ibid., 1997, p. 110).
317
Ibid.
318
gestural surrogacy, no original (Smalley 1997, p. 112).
319
Id, 1997.
320
Ibid.

! 231!
na articulação de um registro. O gesto é inferido a partir do perfil energético que
supõe uma ação humana321.
A substituição de terceira ordem é revelada pela perda da referência
diretamente identificável do gesto, situação na qual ele é deduzido ou imaginado.
Apesar da fonte não ser reconhecida é possível associar, na escuta, uma espécie de
gesto propagador, assim como algumas qualidades de um objeto virtual.
Por último, a substituição remota ocorre quando as noções de causalidade são
totalmente perdidas, dando lugar ao domínio das interpretações psicológicas322. A
causa-fonte nesta ordem é irreconhecível, fazendo com que o ouvinte se reporte às
ligações extrínsecas baseadas no não sonoro. A percepção de gesto é baseada nas
propriedades proprioceptivas dos eventos sonoros, e pela noção de trajetória e
direcionalidade.
Dentro do enfoque da conceituação do gesto na espctromorfologia, é
importante destacar também as especificidades dos processos de estruturação na
música eletroacústica, envolvendo o uso consciente dos gestos sonoros, bem como o
uso da textura.
As especificidades composicionais da música eletroacústica trazem um
questionamento referente às hierarquizações ou não das morfologias, bem como os
modos de estruturação possíveis com este material. Smalley (1997) acredita que as
espectromorfologias eletroacústicas não podem ser reduzidas à noção nota ou pulso
como na música tradicional. Neste contexto a nota ou o pulso não terão uma função
estrutural tão importante quanto na música instrumental.
As morfologias exploradas no contexto eletroacústico não são constituídas
necessariamente de elementos discretos, o que torna difícil uma organização
hierárquica consistente323. Portanto, o conceito de níveis estruturais é proposto por
Smalley (1986 e 1997) como alternativa a uma hierarquização paramétrica dos
materiais sonoros, sendo que os níveis variam do baixo para o alto.
A definição dos níveis estruturais em altos ou baixos da é estabelecida a partir
da aplicação das: noções de gestos; texturas; processos de movimento e crescimento;

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
321
Id., 1986
322
Id., 1986.
323
Ibid.

! 232!
comportamentos das espectromorfologias; funções estruturais; espaço e densidade
espectral e da estruturação em intervalos de tempos maiores ou menores324.
O autor sugere ainda que em uma composição existe a possibilidade de
variação do foco perceptual “em toda uma gama de níveis durante o processo de
audição”325 (Smalley, 1986). Além disso:

uma obra deve possuir esse potencial focal para sobreviver a


audições repetidas durante as quais buscamos não só os frutos da
audição anterior, mas também novas revelações. Se não pudermos
encontrar relações hierárquicas permanentes durante toda uma obra,
devemos, no entanto, descobrir frequentemente hierarquias
fraturadas de diferentes dimensões temporais e números variados de
estratos conforme nossos ouvidos fazem uma varredura a estrutura326 .

O autor também menciona que não existe a necessidade de um nível estrutural


aparecer com muita regularidade durante toda uma obra, bem como que um único
nível não tem obrigatoriedade de funcionar permanentemente durante a uma peça
inteira. O que importa numa composição eletroacústica é que o ouvinte encontre
algum interesse perceptivo nos mais variados níveis estruturais, seja num nível alto de
contornos gestuais mais longos ou seja no nível mais baixo de partículas que
compõem uma textura327.
A noção de funções estruturais (Smalley, 1986 e 1977) se diferencia da ideia
de nível ao se relacionar com as expectativas dadas pela escuta em relação aos gestos
e texturas, sendo que as expectativas se fundamentam no conhecimento cultural do
ouvinte e nas mudanças espectrais dos eventos sonoros328. Por exemplo, uma noção
de direção pode ser prevista na escuta a partir de uma variação espectromorfológica e
as mudanças podem predizer o objetivo da direção, a constância de um
comportamento, entre outros aspectos.
Smalley (1986) sugere que as funções estruturais são baseadas no
reconhecimento de três fases temporais constituintes da espectromorfologia: o início,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
324
Ibid.
325
“the possibility of varying our perceptual focus throughout a range of levels during the listening
process” (id.,1986, p. 81).
326
“a work must possess this focal potential if it is to survive repeated hearings during which we seek
not only the rewards of the previous hearing, but also fresh revelations. If we cannot find permanent
hierarchical relationships throughout a work we shall nevertheless often uncover fractured hierarchies
of varying temporal dimensions and varied numbers of strata as our ears scan the structure” (ibid., p.
81).
327
Id., 1997
328
Ibid.

! 233!
a continuação e a terminação. O modo de funcionamento de cada fase proporciona
uma expectativa diferente na escuta. Com base nas fases temporais, Smalley (1997)
desenvolveu uma lista de termos que pode auxiliar a interpretação do significado
funcional de um evento sonoro, como está exposto no quadro da Figura 14:

Inícios Continuações Terminações


Partida Passagem Chegada
Emergência Transição Desaparecimento
Anacruse Prolongamento Fechamento
Ataque Manutenção Soltura
Contratempo Afirmação Resolução
Tempo forte Plano

Figura 33 - Funções das fases temporais de uma espectromorfologia (adaptação de Smalley, 1997, p.
115)

Seguindo a discussão sobre os processos estruturantes, Smalley (1997) sugere


o conceito de comportamento, referindo-se à relação entre níveis e funções
estruturais. Ou seja, o modo que os eventos sonoros são dispostos em um determinado
contexto composicional são gerados alguns tipos de relações entre tais eventos329.
Os comportamentos gerados pelas interações entre os eventos podem
caracterizar conflito/coexistência, dominação/subordinação, ou justaposição de gestos
independentes330. As relações podem ser heterogêneas, destacando movimentos
gestuais, bem como coletivas caracterizando uma textura.
Um evento sonoro pode também se comportar como uma causa de outro
evento, como é o caso de um som que serve de disparo para outro. Neste caso, a
causalidade de um evento sonoro proporcionada por outro está relacionada ao campo
indicativo do gesto, pois a noção de injeção de energia por um agente é percebida,
sendo a causalidade mais imaginada ao invés de conhecida de uma forma geral331.
As noções de movimento e crescimento, apontados por Smalley (1997),
também são importantes no processo de estruturação de uma obra eletroacústica.
Estes conceitos se referem às informações perceptivas conferidas pelas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
329
Id. 1992.
330
Id. 1997.
331
Id. 1992.

! 234!
espectromorfologias de tendências direcionais que são condutoras de expectativa de
resultados. Como geram expectativa, os processos de movimento e crescimento
podem ser também empregados como funções estruturais em uma obra eletroacústica.
Na realidade, os processos de movimento e crescimento ajudam a descrever trajetos
que indicam a expectativa de um objetivo de chegada para tais eventos332.
Os movimentos são oriundos de contornos espectromorfológicos de orientação
extrínseca (fornecida por gestos) ou a partir em comportamentos textuais internos. A
sensação de movimento pode ser revelada ainda pela noção de crescimento, pois um
evento qualquer também é marcado pela transformação ou mutação dele mesmo.
Assim, o movimento pode incluir algum processo de crescimento, tal como um
estiramento ou estreitamento espectral, por exemplo333.
Como ferramenta descritiva de processo estruturante, Smalley (1986 e 1997)
sugere a catalogação de alguns tipos de movimento. No contexto da
espectromorfologia o autor sugere quatro tipos básicos de movimento: unidirecional,
recíproco, cêntrico/cíclico e multidirecional334, sendo que o gesto sonoro comporta
principalmente os três primeiros tipos, enquanto que as texturas se referem ao último
tipo.
O caráter gestual de um movimento unidirecional é conferido por uma
trajetória bem definida, sendo marcado pelo deslocamento linear para frente ou para
trás, para cima ou para baixo335. As direções que compõe a trajetória reforçam a
noção de continuidade.
O movimento recíproco trata a noção de retorno, gerando direcionamentos a
partir de comportamentos ondulatórios regulares ou irregulares, que se referem a
gestos e a texturas. Neste tipo de movimento existem os trajetos em parábolas que
são em essência gestuais, por se tratarem de trajetórias curvas definidas336.
Os movimentos cêntricos/cíclicos são definidos por ciclos
espectromorfológicos e parecem possuir uma força que direciona o evento sonoro
para um centro. Esta modalidade de movimento pode se dar em espiral, rotação,
torção, redemoinho, tendências pericentrais e movimento centrípeto.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
332
Ibid.
333
Ibid.
334
Id., 1997.
335
Id,, 1986.
336
Ibid.

! 235!
Por se tratarem de comportamentos colaborativos de elementos sonoros, os
movimentos multidirecionais serão comentados na seção deste capítulo que trata
acerca da textura. O autor sugere uma classificação dos tipos de movimentos,
apresentada na Figura 15:

Figura 34 - Processos de movimento e crescimento de Smalley (adaptação de Smalley, 1997, p.116)

Estes tipos de movimento são ferramentas expressivas ricas, pois conferem


possibilidades dramáticas decorrentes da transformação de parâmetros espectrais.
Principalmente os movimentos de natureza gestual são o resultado da variação da
duração, a velocidade e a energia espectral, gerando expectativas importantes para a
construção de um discurso musical.
O espaço espectral contribui também para a definição dos movimentos,
podendo resultar em uma noção de verticalidade em uma obra, como visto
anteriormente neste trabalho. Assim, alguns movimentos implicam em um
“enraizamento” que fornece uma “base” simbólica, enquanto outros movimentos
parecem ser “lançados” para o alto ou ainda “flutuantes” em uma cobertura337. E tais
limites verticais (de “teto” ou “solo”) são proporcionados pelo espaço espectral.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
337
Id., 1986.

! 236!
As trajetórias fornecidas por movimentos gestuais podem se referir também ao
deslocamento espacial das espectromorfologias, e este é um aspecto importante na
formação da espacialidade em música eletroacústica.

4.1.1.4 – O Gesto na Composição no Continuum

Uma outra sistematização de conceitos para a descrição de materiais


eletroacústicos relacionados ao gesto musical foi proposta por Trevor Wishart338 que,
a exemplo de muitos dos pesquisadores da área, também se refere à escuta do objeto
sonoro. O compositor se dedica a uma reflexão sobre os desenvolvimentos na estética
e no fazer musical trazidos pelo advento do uso dos meios tecnológicos na
composição musical.
O autor defende uma construção musical que não se limita ao uso de um
conjunto finito de possibilidades musicais, propondo uma “metodologia musical
desenvolvida para lidar com um continuum339, aplicando o conceito de
transformação”340.
Nesta abordagem os materiais não são baseados em concepções tradicionais,
como nota e pulso e podem ser organizados em uma estrutura que difere das
hierarquias da música tradicional. O autor também defende a possibilidade da
utilização de materiais mais anedóticos, que não seriam necessariamente empregados
em uma abordagem semelhante à música programática do século XIX.
Tal construção musical se refere a um pensamento mais concreto que o autor
descreveu como paisagem341, sendo este conceito um dos aspectos discutidos em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
338
On Sonic Art. Wishart, 1996.
339
Uma metodologia baseada no continuum surge com as práticas musicais que fazem uso de uma
“configuração paramétrica em oposição ao modelo discreto” (Cervini, 2008, p. 37), modelo utilizado
no Serialismo, por exemplo. Este tipo de metodologia lida com as transformações constantes do
material sonoro, fazendo uso de variações de frenquências, de amplitudes, de timbres, entre outros
parâmetros que compõem o objeto sonoro. Cervini (Ibid., p. 43) comenta que “as possibilidades de uso
do continuum estão vinculadas à criação de fluxos cujas alterações são desenvolvidas por articulações e
interpolações, de maneira a evitar rupturas” e tais articulações substituem a organização musical
baseada na parametrização discreta, que é definida em notas e ritmos estratificados em motivos e
frases, por exemplo.
340
“a musical methodology developed for dealing with a continuum using the concept of
transformation” (Wishart, 1996, p. 7)
341
Ibid.

! 237!
abordagens espaciais em composições eletroacústicas no primeiro capítulo. A junção
destas abordagens define o que o autor chama de arte sônica342.
No contexto de uma composição inscrita no continuum, encontra-se a noção
de morfologias dinâmicas, que se refere à caracterização do objeto sonoro submetido
a constantes mudanças da maioria ou de todas as propriedades que o constitui. Os
estágios das mudanças serão percebidos numa totalidade, ou Gestalt, ao invés de
parametricamente (Wishart, 1996). Tais características gestálticas e de mudança
dinâmica se aproximam da ideia de gesto apresentada neste trabalho, pois um estágio
constante de mudança proporciona a escuta de movimento, discutida ao longo deste
capítulo.
Sobre as morfologias dinâmicas, Wishart343 concebe que suas estruturas
podem ser delimitadas em duas classificações diferentes. Primeiro, ele define a
estrutura de certas morfologias como gesto, aqui considerado como uma articulação
do continuum, instigada por um agente.
A segunda classificação morfológica refere-se ao fenômeno natural percebido,
que decorre da associação de causas que são sucedem naturalmente, sem a
intervenção de um agente. Porém, o próprio autor afirma que a distinção entre estas
duas perspectivas é puramente uma convenção, pois tanto um evento sonoro causado
por agentes vivos quanto a geração de outro evento de modo espontâneo referem-se à
constituição de uma morfologia dinâmica (Wishart, 1996).
Os modos de manutenção do som podem gerar informações a respeito da
entrada energética envolvida e dão pistas para duas divisões das morfologias
dinâmicas: a morfologia imposta e a intrínseca. Uma morfologia imposta configura
uma estrutura gestual, trazendo informações acerca da entrada energética do objeto
sonoro. Os tipos de entrada energética são responsáveis por informar à percepção se o
objeto sonoro poderia ser gerado, por exemplo, por um processo físico, ou elétrico.
Mesmo que o som seja gerado por um impulso, a morfologia informa algo sobre a
força que gera tal pulso (Wishart, 1996).
A morfologia intrínseca se refere a informações que podem ser comparadas a
fenômenos naturais, nos quais não há necessariamente uma força de um agente para a
sua produção. Sua produção se deve a forças externas, como a gravidade, por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
342
No original sonic art (Whishart, 1996, p.4)
343
Ibid.

! 238!
exemplo. São exemplos de morfologias intrínsecas movimentos semelhantes ao vento,
à sirene, ao quebrar de ondas, explosões ou bolhas344.
Após definir classificações morfológicas, Wishart propõe um método de
trabalho contrapontístico no continuum, a partir da separação ou re-integração de
fluxos sonoros e morfologias pelo uso da imaginação do movimento espacial dos
sons. Tais fluxos podem ser percebidos relacionados a outros ou interagindo de
alguma forma durante o curso de seus desenvolvimentos345.
O contraponto no continuum, proposto pelo autor, re-interpreta os princípios
básicos do contraponto tonal, onde uma dimensão arquitetônica da música tonal,
baseada na progressão de uma tonalidade para outra, é substituída pelo conceito de
transformação de uma área tímbrica ou morfológica. Outra substituição adotada seria
das interações de consonância e dissonância empregadas em um contexto tradicional
pela evolução gestual e interação entre fluxos independentes346.
Horizontalmente, uma sequência de gestos em um plano linear horizontal pode
ser determinada a partir de um tipo particular de coerência expressiva na interação
entre gestos diferentes. Nesta fase devem ser determinados os tipos de gestos usados,
a sequência de gestos individuais e a proporção de atividade gestual. Na estruturação
vertical desta abordagem, um parâmetro importante é a proporção total da ocorrência
de gestos em cada momento347.
Os gestos podem ser classificados por suas relações com outros, sendo eles:
homogêneos quando possuem partes semelhantes; heterogêneos, quando as partes se
diferenciam totalmente, bem como interativos quando interagem entre si ou possuem
relações de independência348.
Após a definição dos tipos de relações gestuais, o autor sugere seis arquétipos
de organização de ordem vertical de gestos349:
• gestos em paralelo, que são homogêneos e atuam em sobreposição temporal;
• semiparalelo, quando as partes seguem a mesma lógica gestual, porém de uma
maneira assíncrona;

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
344
Ibid.
345
Ibid.
346
Ibid.
347
Ibid.
348
Ibid.
349
Ibid.

! 239!
• independência homogênea, na qual as partes homogêneas se comportam de
modo independente no tempo;
• independência heterogênea, em que a organização vertical dos gestos é
heterogênea e independente;
• os gestos interativos com ligações causais ou imitativas entre eventos
diferentes;
• disparo, onde um gesto serve como entrada energética de outro.
É interessante notar que estas disposições verticais são baseadas nos princípios
básicos de movimentos contrapontísticos tradicionais, porém as regras relacionadas
com intervalos e divisões métricas não se aplicam neste contexto.
Seguindo a linha de pensamento de Wishart, o conjunto de critérios
horizontais e verticais para a organização do gesto permite estabelecer uma
arquitetura refinada para o desenvolvimento contrapontístico da música baseada no
continuum350.
Por meio desta abordagem, Wishart buscou criar ferramentas para a
composição com diversos tipos de materiais musicais, ao mesmo tempo em que
tentou produzir uma base teórica para um contraponto gestual a ser usado na música
eletroacústica. Tal abordagem oferece mais uma estratégia de organização eficaz que
não necessariamente remete à parametrização de elementos musicais, fornecendo uma
escuta proporcionada por uma manipulação artística do material sonoro.

4.1.2 – O Gesto Musical como Fornecedor de Espacialidade em Música


Eletroacústica

Os apontamentos conceituais discutidos até o momento indicam que a


concepção de gesto musical e sonoro se refere à ideia de um movimento significante
em uma obra musical. Isto é particularmente evidente na música eletroacústica devido
às possibilidades de manipulação de trajetórias e posicionamentos sonoros.
Bachratá (2010) comenta que se o gesto for considerado em uma perspectiva
de movimento e deslocamento, este pode ser entendido como uma performance dos
sons no espaço musical, que seria descoberta por propriedades perceptuais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
350
Ibid.

! 240!
Portanto, as particularidades dinâmicas e a escuta de movimento oferecidas
pelo gesto sonoro, juntamente com o uso da espacialização podem ser vistas como
meios de gerar espacialidade na escuta de música eletroacústica. A espacialização faz
com que seja possível a escuta de um percurso sonoro que atravessa um espaço
tridimensional, obtido com a disposição de alto-falantes circundando o ouvinte.
Também é possível gerar diferentes posicionamentos onde os gestos musicais são
iniciados, bem como localizações de seus objetivos.
Sobre a questão do movimento espacial proporcionado na música
eletroacústica, Wishart (1996) defende que a construção musical baseada no
continuum pode exibir estruturas topológicas diferentes que permitem distinguir
qualitativamente modos de movimento, os quais denomina morfologias dinâmicas.
As interações de estruturas musicais com o espaço que elas interagem podem
conduzir transformações morfológicas, as quais são percebidas através das diferentes
mudanças, como, por exemplo, na riqueza espectral ou no contorno espectral. A
articulação espacial funciona, consequentemente, como uma causa determinante
morfológica351.
Movimento, trajetórias e direções são aspectos essenciais para a definição do
gesto musical e a projeção de tais aspectos no espaço torna-se uma característica
importante do espaço extrínseco a ser manipulado no ato da composição
eletroacústica. Desse modo é possível pensar o gesto como um importante portador
dos principais aspectos do espaço extrínseco e a utilização das outras características
deste espaço (como camadas e posição), abordadas anteriormente, será explorada na
manipulação e interação dos vários gestos na “textura espacial” (Smalley, 1991) em
uma perspectiva contrapontística.
Tendo em vista o exposto anteriormente, o gesto é percebido como a união de
vários parâmetros numa perspectiva gestáltica. Dentro destes parâmetros os aspectos
do espaço intrínseco (magnitude, formato e densidade), serão responsáveis pela
constituição dos aspectos extrínsecos destacados no gesto musical. Nesta perspectiva,
um gesto musical pode ser constituído por vários sons que serão percebidos como um
todo em um movimento significante, e cada som conterá sua característica de espaço
intrínseco. Um gesto também pode ser constituído de um único som com uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
351
Ibid.

! 241!
morfologia dinâmica, e tal som também conterá as características espaciais
intrínsecas.
Considerando uma música difundida apenas por alto-falantes, é proporcionada
uma sensação de localização diferenciada em relação àquela obtida por meio da visão
de um concerto, com a presença de intérpretes, pois o espaço é imaginado na ação dos
sons em si e nas trajetórias de seus movimentos. Sobre esta característica de
espacialização da música eletroacústica Menezes (1999) afirma:

Foi somente com os meios eletroacústicos que a mobilização dos


sons no espaço pôde ocorrer como dado da própria estrutura musical.
Se experiências arrojadas de repartição dos instrumentos no espaço
acústico foram realizadas já há muito na transição da Renascença ao
Barroco, todo e qualquer som puramente instrumental, privado de
transformações através de meios eletrônicos, estava e permanecerá
sempre confinado, enquanto a emissão sonora, à sua proveniência
localizada no espaço, determinada pelo corpo do instrumento
gerador. Na música eletroacústica, ao contrário, a própria emissão
sonora pode ser mobilizada no espaço, mediante sua transição
espacial através da utilização de diferentes alto-falantes, durante a
vida mesma de um único som (Menezes, 1999, p. 23).

Esta possibilidade de geração de movimento mencionada pelo autor pode ser


relacionada ao gesto sonoro eletroacústico que, como no caso da prática acusmática,
lida com este aspecto com muita propriedade.
O movimento de morfologias no espaço é uma característica significante na
música eletroacústica e, segundo Caesar, “quando se trabalha deliberadamente com
representações acústicas de ‘espaços’, cria-se, na composição eletroacústica, materiais
de grande teor emocional” (Caesar, 2004). Nesse caso, a escuta é conduzida por
campos imaginados e criados a partir do comportamento, das qualidades
significativas, dos acoplamentos sonoros e da espacialização dos sons. Portanto, gesto
é visto neste contexto como uma trajetória espacial e quando refletido em trajetórias
espaciais na música eletroacústica, proporciona o esclarecimento de funções
estruturais desejadas pelo compositor (Smalley, 1986).
A projeção de música eletroacústica pode ser responsável pela introdução dos
gestos em si mesmos dentro da composição musical, seja pela ação de sons gravados
ou ainda pelos sons processados em tempo real (Zampronha, 2005). O gesto pode
também ser um marcador no processo de escuta, como se fosse a causa do que é
escutado na projeção eletroacústica.

! 242!
Neste sentido é possível citar como exemplo a criação de articulações,
similaridades e diferentes espaços, criar ou acrescentar contrastes, reforçar a
expressividade, referir motivos musicais a deslocamentos espaciais, e outras
possibilidades de articulação do espaço de diferentes conjuntos de alto-falantes
disponíveis em uma sala de concerto (Zampronha, 2005).
Na concepção de Smalley (1986) a projeção desempenha um papel importante
na articulação espacial, envolvido com o processo auditivo no qual a música é
transferida via alto-falantes para um novo espaço acústico – o ambiente escutado.
Nem meios eletroacústicos de transferência, nem o espaço final, são neutros pois
ambos afetam a substância musical e a estrutura. Para o autor, esse processo é um ato
de adaptação e interação espacial que envolve a re-interpretação da estrutura musical
para o ouvinte. Esta re-interpretação se refere ao modo como os eventos se
comportam nas dimensões e propriedades acústicas do espaço final que proporcionará
também, durante a escuta, uma nova percepção do ambiente em que estes sons
ocorrem. É uma maneira de articular o gesto gerando novas significações no contexto
musical.
Em uma obra eletroacústica, um gesto musical pode ser traduzido em trajetória
espacial no momento da concepção e construção da obra, como ocorre no caso de
uma escritura espacial. Contudo, um trajeto espacial de um evento sonoro também
pode ser gerado no momento de uma performance e estas estruturas musicais
espacializadas, na composição eletroacústica, é o que alguns autores (Bachratá, 2010
e Penha, 2014) denominam como gesto espacial.
O gesto espacial tem a função de “veicular uma intencionalidade inteligível”
(Penha, 2014, p. 15) complementando as escolhas musicais de um compositor na
realização de uma obra eletroacústica. Além disso, o uso do gesto espacial em uma
obra eletroacústica “pode ter como consequência a modelação ou articulação da
morfologia do gesto musical”352.
Dentre os conceitos espaciais usados para a estruturação musical, a utilização
do gesto musical serve como um meio de explorar tais conceitos na composição. Um
primeiro exemplo de abordagem espacial que pode demonstrar o uso de gestos é a
orientação espacial. Uma obra que valoriza o uso de gestos sonoros em musicais é
caracterizada por possuir uma orientação espacial extrínseca, uma vez que os gestos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
352
Ibid.

! 243!
musicais são caracterizados por uma escuta baseada em referências causais, que são
externas.
Mesmo que uma causa não seja identificável em uma escuta de música
eletroacústica, o gesto é percebido como um evento sonoro que foi resultado de
alguma ação que seja ao menos imaginada. A escuta gestáltica é outro aspecto que
relaciona o gesto com uma orientação extrínseca, pois a união dos elementos
constituintes é escutada como um todo, ou seja, como uma forma sonora. Tal forma
sonora marca um movimento que é caracterizado pelo aspecto direcional de uma
trajetória. Assim, as relações com o extra-musical proporcionam uma orientação
espacial extrínseca para a escuta.
Um gesto sonoro também pode proporcionar uma escuta de orientação
espectral, considerando que é o resultado de transformações espectromorfológicas.
Em uma obra que possui uma orientação espectral, os aspectos espaciais estão
relacionados com a posição “espectral”, ou seja as alturas, densidades e perspectivas
são alcançadas por meio da exploração do conteúdo espectral dos sons.
Neste tipo de orientação espacial, a trajetória no espaço de projeção serve
apenas como um meio de realçar os cursos já proporcionados pela variações de
frequências e de intensidades do evento sonoro. Estas variações também
proporcionam uma escuta gestáltica do evento sonoro, onde a espacialidade é ocorre
por analogia, pois é definida apenas pelos aspectos constituintes do gesto.
O gesto é um elemento que pode apresentar mais de uma metáfora temporal,
como sugeridas por Nyström (2013). Pode ser citada como exemplo a metáfora do
tempo como objetos em movimentos, amplamente representada por um contraponto de
gestos espaciais. O ouvinte percebe o tempo a partir das relações entre formatos
sonoros em movimentos que podem ser definidos como gestos musicais.
O tempo como força movente é outra metáfora que pode ser alcançada através
do uso do gesto musical, onde os eventos musicais é que parecem exercer uma certa
“força” nos ouvintes. Neste caso, aspectos causais de gestos podem atuar como forças
que metaforicamente “atingem” o ouvinte.
O espaço-fonte, já abordado anteriormente, é estreitamente relacionado ao uso
de gestos na composição, sendo caracterizado por ser percebido a partir de
reconhecimentos e vínculos com fontes que originam um evento sonoro. Tal espaço é
então marcado pela causalidade dos eventos, um dos fatores marcantes que definem o
gesto sonoro e musical.

! 244!
Também relacionada ao uso de gestos está a noção de espaço móvel, na qual
uma fonte gestual não é necessariamente identificável, podendo ser imaginada ou
suposta. Neste contexto, a espacialidade ocorre a partir da noção de mobilidade
conferida pelo uso de gestos musicais e sonoros.
Autores como Dhomont, Wishart e Truax353, apontam a ideia de
espaço/paisagem, ou simplesmente de paisagem que pode ser explorada a partir do
uso dos gestos musicais. Estes espaços ou paisagens, na composição eletroacústica,
são baseados em uma construção que busca uma relação mais próxima com o mundo
real, sendo baseadas na organização de fontes sonoras identificáveis ou supostas.
Toda a mobilidade é marcada pelo uso de sonoridades que possuem causas externas,
que também são aspectos marcantes de gestos.

4.2 – Textura

Assim como o gesto musical, a textura é um componente estruturador


importante na composição. Além disso, os processos de evolução, crescimento e
movimento também fazem da textura um importante fornecedor de espacialidade na
música eletroacústica.
Tradicionalmente, a textura em música está relacionada com a organização
vertical de camadas musicais, frequentemente referidas como “tramas” ou “tecidos”
musicais, nos quais diferentes elementos se entrelaçam formando um complexo de
relações globais (Senna, 2007).
As concepções mais tradicionais de textura musical são mais preocupadas
questões organizacionais do discurso musical, em termos de distribuição de vozes em
linhas melódicas. Nas composições musicais ocidentais que antecederam à
modernidade e à contemporaneidade eram praticadas três principais tipos de textura
musical (Kokoras, 2007): textura monofônica, quando a música possui uma só voz;
textura polifônica, marcada pelo entrelaçamento de vozes musicais independentes e a
textura homofônica, caracterizada por uma linha melódica com um acompanhamento
de vozes harmônicas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
353
As referências às obras dos autores que discutem tais conceitos são dadas no primeiro capítulo desta
tese.

! 245!
Com o advento da modernidade sonora, novos tratamentos verticais definiram
“tramas” sonoras diferenciadas. Um exemplo é a noção de micropolifonia de Ligeti,
que buscava uma concepção de organização do som baseada na ideia de massa
sonora, onde a organização do material musical era combinada como uma “teia
retorcida, densa e emaranhada” (Cantanzaro, 2005, p.1250).
Para Ligeti, a “teia” corresponde a um “estado”, constituído por diferentes
tipos de movimentos que podem ser estacionários ou móveis, sendo dispostos em
cânones simultâneos ou dados em estagnação de alturas em pontos específicos do
próprio cânone354. O tratamento vertical empregado teria como resultado uma textura
global percebida como uma massa homogênea, que possui variações internas, mas
que é escutada em um aglomerado global externo de acontecimentos.
Esta nova conceituação de massa sonora possibilitou a ampliação da
conceituação de textura em música na contemporaneidade. Quando empregada na
composição, a noção de textura tem fortes ligações com aspectos visuais e táteis na
percepção musical. É possível estabelecer analogias a aspectos físicos como
rugosidades, granulosidade, ou aspectos lisos ou estriados de eventos sonoros.
Na evolução para a atualidade, a noção de textura em música vai além de
percepções referente especificamente à matéria do som (Pires, 2007). O termo pode
ser usado também como um meio descrição de um:

(...) material instrumental ou vocal como sinônimo de timbre e


sonoridade, de densidade vertical e construção das vozes e partes,
intervalo entre as notas de um acorde e a natureza das construções
musicais monofônicas, homofônicas, heterofônicas, polifônicas e
contrapontísticas355

No contexto da música eletroacústica também foram desenvolvidas


terminologias específicas, de cunho predominantemente auditivo, sendo importante o
seu destaque neste trabalho. Textura, em música eletroacústica, faz referência tanto à
organização dos eventos sonoros, quanto ao resultado perceptual. O termo pode estar
relacionado tanto à eventos sonoros individuais (no caso de textura sonora), quanto

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
354
Ibid.
355
“ (...) matériau instrumental ou vocal en tant que synonyme de timbre et de sonorité, de densité
verticale et de construction des voies et des parties, de l’intervalle entre les notes d’un accord et de la
nature des constructions musicales monophoniques, homophoniques, hétérophoniques, polyphonique et
contrapuntiques” (Couprie, 2006, em “Texture – French Definition” disponível em
http://ears.pierrecouprie.fr/spip.php?article3430 ).

! 246!
pode se referir à soma de diversos eventos percebidos como um todo (textura
musical).
Filatriau e Arfib (2005) descrevem a textura sonora como o evento composto
de uma sucessão de elementos micro-estruturais, muitas vezes sujeitos a alguma
aleatoriedade, que são percebidos globalmente em uma coerência temporal e
espectral. Porém é sabido que algumas estruturas sonoras que se comportam em fluxo
e muitas vezes não possuem “micro-elementos” perceptíveis (o caso de sons de
cachoeiras, por exemplo), contudo são considerados como sendo texturas sonoras.
Uma descrição mais genérica é fornecida por Döfler e Matusiak (2013), para
quem a textura sonora seria um fenômeno sonoro que poderia ser entendido como
oposto à noção de objeto sonoro. Para os autores, a ideia de objeto sonoro implica um
tempo de limitação de eventos percebidos, sendo que estes irão se destacar em
relevância de um plano de fundo.
Nesta concepção, a percepção de componentes sonoros como plano de fundo
(que pode ser considerada como textural) ou de objetos sonoros, que são
compactamente estruturados, depende de um “zoom” adotado conscientemente ou
inconscientemente por parte do ouvinte ao escutar determinado evento sonoro.
Nesta situação, o plano de fundo é o elemento que define uma textura, em
oposição aos objetos sonoros, sendo a textura caracterizada por um tipo de aspecto
estacionário durante um período prolongado de tempo. Numa textura desta natureza
ocorrem mudanças no nível microscópico que são integradas pelo ouvinte como parte
constitutiva356.
A partir destas breves conceituações é possível perceber que a noção de
textura em música eletroacústica se refere à uma percepção mais geral de vários
eventos sonoros simultâneos. A partir de tal ideia, Whishart (1994) faz uma definição
mais abrangente do termo no contexto da em música eletroacústica, onde a textura
seria “a sequência em que nenhuma ordem é percebida”357.
É importante ressaltar que esta definição difere da noção de continuum,
discutida anteriormente, que é composta por muitos eventos discretos, enquanto a
textura pode ser relacionada à ideia de ruído, no domínio espectral. Neste contexto, o
espectro se encontra em um estado de mudança sem direções claras, sendo impossível

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
356
Ibid.
357
“sequence in which no order is perceived” (Whishart, 1994, p. 67)

! 247!
definir uma moldura espectral precisa. De forma similar ao ruído, a textura tem
diferentes aspectos com propriedades ricas e limites vagos.
Estruturalmente uma textura pode ser considerada como uma oposição ao
gesto, definido por particularidades exteriores tais como causalidade e trajetos
definidos, enquanto a textura é referida como uma estrutura de foco interno. Nyström
(2009) considera que em música eletroacústica, a textura pode estar relacionada a
“fenômenos espectromorfológicos que têm os atributos de auto-tecelagem, telas
sonoras imersivas, que muitas vezes são qualificadas por características e
comportamentos gerais, ao invés de organização sequencial distinta”358. Ainda na
concepção do autor, a textura pode ser encarada como um fenômeno multi-escalar em
que a apreciação dos aspectos macroscópicos é ligada às atividades internas de baixo
nível dos elementos constituintes359.
Nesta concepção, a noção de textura, marcada pela atenção à atividade interna
dos componentes constituintes sem uma direcionalidade bem definida, se apresenta
contrastante com a ideia de gesto, relativo à percepção propulsão que o dirige para um
objetivo futuro. A sensação de não direcionalidade proporcionada pela textura fornece
um efeito de suspensão temporal, dando uma impressão de gravitação que não possui
uma expectativa direta de começo ou fim360.
Assim, uma textura em música eletroacústica poderia ser definida como um
fluxo de acontecimentos em que as relações entre eventos são percebidas como um
todo. Esta noção também se refere à descrição de consistência de sons, sendo que os
parâmetros que definem tal consistência são a densidade, estratificação e o timbre.
Além disso a textura pode também ser conceituada como um evento que possui
espessura e atividade interna.
A oposição entre gesto e textura é um aspecto muito abordado nos escritos de
Smalley (1986, 1997, 2007). O autor considera que gesto e textura são duas
estratégias de estruturação fundamentais na música eletroacústica. Estas estratégias
são vinculadas a definição de múltiplos níveis estruturais no ato da escuta da
composição (Smalley, 1986).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
358
“spectromorphological phenomena that have the attributes of self-weaving, immersive sound
canvases, which are often qualified by general characteristics and behaviours rather than distinct
sequential organisation” (Nyström, 2009, p. 46).
359
Ibid.
360
Ibid.

! 248!
Na concepção de Smalley, a textura se relaciona com padrões de
comportamento internos de espectromorfologias, consistindo em uma energia que é
interior e auto-propagada. A energia de uma textura será aparentemente deixada aos
seus próprios dispositivos, e continuará apenas funcionando, em vez de ser provocada
por uma ação361. Portanto, enquanto o gesto tem suas origens inteiramente em agentes
produtores de energia, a textura fundamenta-se em detalhes espectromorfológicos
independentes de um corpo de geração sonora362.
A diferenciação da percepção entre o gesto e a textura pode estar ligada ao
foco de atenção em uma escuta eletroacústica. Por exemplo, se um gesto for esticado
no tempo ou perder a sua direcionalidade, uma mudança no foco perceptual ocorrerá.
Ou ainda, se características de movimento ou fisicalidade humana se perdem devido a
um estiramento temporal, uma escuta mais ambiental se põe em evidência363.
Deste modo, quanto mais lentos forem os movimentos gestuais, mais o
ouvinte se concentrará nos detalhes internos do evento sonoro, assumindo então uma
percepção textural. Deste modo, uma música que é primeiramente textural concentra-
se na atividade interna do movimento364.
Contudo é importante ressaltar que uma atividade gestual pode ser responsável
pela formação de uma textura, fenômeno que ocorre quando, na escuta, é possível
inferir inicialmente uma ação geradora de um evento sonoro que poderá, por exemplo,
ser estendido no tempo. Um estiramento temporal, ou um movimento adirecional do
evento sonoro pode conduzir a escuta para a interioridade de tal evento,
proporcionando assim uma escuta textural que é uma consequência de um gesto
gerador.
Na concepção de Smalley, as principais diferenças entre gesto e textura são as
seguintes: enquanto o gesto é intervencionista, a textura não possui interferência; o
gesto é ligado com uma progressão e a textura é concentrada em contemplação; o
gesto impulsiona o tempo para frente, já a textura invoca um presente; o gesto é
caracterizado por um forma externa, enquanto que a textura é voltada à uma atividade
interna; o gesto é voltado à percepção de alto nível da estrutura, a textura é focada em
elementos de baixo nível365.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
361
Id., 1986.
362
Ibid.
363
Ibid.
364
Id., 1997.
365
Id., 1986

! 249!
De forma similar ao gesto, a textura possui conexões em todas as atividades
experienciadas, sendo que uma escuta de texturas terá ligações com aspectos não
necessariamente ligadas ao sonoro. A noção de continuidade e a percepção de
estaticidade temporal podem estar ligadas à percepção de eventos naturais, como a
chuva ou o vento, por exemplo, bem como a atenção às características internas dos
elementos constituintes fornecem noções de superfície e analogias táteis
Sobre esta questão, Hagan (2008) considera que a textura qualifica um
substrato e que, se comparada à percepção tátil ou visual, a textura caracterizaria a
trama de um tecido, ou a maciez de uma pele.
O autor também sugere que uma textura não pode ser separada em partes
constituintes na percepção e se tal segmentação for buscada, uma identidade textural é
perdida. Ainda conforme o autor, uma ampliação do objeto sonoro pode proporcionar
uma textura e, neste caso, os limites das partes de tal objeto, são difusos e pertencem
ao mesmo substrato. Desta forma, os componentes que compõe tal textura
correlacionam-se entre si, amalgamando como resultado de afinidade mútua366.
Para Hagan367, a extensão de um evento sonoro individual deve se estender
para além de uma periferia imaginada do espaço, negando os limites que definem tal
evento, portanto a textura deve subjugar os outros componentes estruturais na
composição. Assim, uma composição que valoriza a escuta textural é marcada pela
noção de contemplação de transformações muito lentas e estaticidade temporal.
Os principais elementos que constituem as superfícies de texturas são
denominados por Bregman (1990) e Nyström (2010 e 2013) como textons e
filamentos. Textons, está relacionado com a qualidade de propagação de uma textura
por meio de “grãos” ou “átomos” sonoros. Uma textura que é marcada por essa
qualidade é caracterizada por ser ouvida como um fluxo de superfície granulada,
dividida em pedaços muito pequenos que se comportam de uma maneira reunida,
classificando um todo textural na escuta.
A noção de “grãos” ou “átomos” sonoros é comparada por Bregman368 com o
conceito de “textons”, termo originalmente mencionado por Julesz (1981) para referir-
se à percepção de texturas no campo visual.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
366
Ibid.
367
Ibid.
368
Ibid.

! 250!
Na abordagem de Julesz os textons estão relacionados à percepção de
“algumas características notáveis locais”369 em uma textura. E para Bregman (1990)
as texturas auditivas podem ser comparadas analogicamente às visuais no sentido que
é possível perceber elementos em baixo nível. Para o autor, os grãos são percebidos
na textura, não como unidades individuais, mas sim em termos de distribuições e
densidades no domínio do tempo, assim como os textons na percepção visual.
Assim, por analogia, o termo texton é usado por Bregman e posteriormente por
Nyström para características de baixo nível da textura granulada. Nyström esclarece
esta analogia do termo, no campo da escuta textural:

A ideia de textons como sendo ‘átomos’ que aparecem em nossa


visão antes de formarmos uma ideia do “que” estamos vendo, parece
relevante para a escuta acusmática, onde espaços podem apresentar-
nos com uma abundância de atividade que em um nível aparece
como uma imagem com características texturizada com
granulosidade, ou pontilhismo local, em um sentido mais abstrato
(...). Assim, textons têm a sua presença mais forte em condições de
escuta visual, como uma convergência de estrutura textural em
domínios auditivos e visuais370.

Esta comparação da noção de grão ou átomo sonoro com a ideia de texton


reforça o caráter multimodal de escuta eletroacústica. Uma descrição de escuta de
uma textura irá se referir a algumas noções táteis como rugosidade ou aspereza, bem
como a determinadas noções visuais, como a granulosidade, por exemplo.
Outro meio de caracterizar o modo de propagação e a noção de superfície é o
conceito de filamentos sugerida por Nyström (2013). Os filamentos são estruturas
elementares que constituem uma textura, caracterizadas por serem unidades contínuas
e lisas temporalmente. Para o autor, o filamento pode ser definido como finito quando
inicia e/ou termina em pedaços de tempos mais curtos do que a duração global de uma
textura. Pode também ser infinito quando começa e termina nos mesmos pontos
temporais da textura. Uma textura constituída por filamentos será percebida como

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
369
“...a few local conspicuous features (...) (Julesz, 1981, p. 91)
370
“The idea of textons being the ‘atoms’ that appear in our vision before we have formed an idea of
what we are seeing, seems relevant to acousmatic listening, where spaces can present us with an
abundance of activity which on one level appears as a textured image with grainy, or pointillistic, local
features, in a more abstract sense, (...).Thus, textons have their strongest presence in conditions of
visual listening, as a convergence of textural structure in auditory and visual domains". (Nyström,
2013, p. 37-38)

! 251!
uma junção de fios que possuem começos e fins, de forma oposta ao que ocorre com
uma superfície granulada.
E, ainda conforme Nyström371, os textons podem aparecer em pontos espaciais
mais precisos enquanto os filamentos não possuem tal demarcação. Portanto, os
filamentos fornecem direcionamentos e contornos mais definidos às texturas, devido à
noção de continuidade temporal.
Um exemplo da diferença entre texturas marcadas pela constituição de textons
ou filamentos pode ser dado pela comparação da escuta de dois fenômenos naturais:
um som de chuva fraca é um exemplo de textura de superfície constituída por textons;
já o som de uma água escorrendo por uma torneira poderia ser descrito como uma
textura constituída por filamentos.
Na música eletroacústica, uma textura é pensada em termos de densidades,
dispersão, propagação e atividade interna, considerando que é constituída por
elementos de baixo nível que se comportam de maneira coletiva, proporcionando uma
escuta global de acontecimentos.
O nível de atividade externa pode variar do estático e lento, para uma
atividade interior complexa que fornece a direcionalidade e movimentos interiores aos
eventos sonoros. O modo como elementos constitutivos da textura (filamentos ou
textons) se comportam no tempo, bem como a maneira que se propagam irá definir a
noção de movimento textural.

4.2.1 – Movimentos Texturais

Em música, o movimento é um componente necessário para expressar as


concepções de espacialidade, materialidade e morfologia, sendo expresso em vários
níveis simultaneamente (Nyström, 2013). O movimento de um evento sonoro pode ser
classificado como sendo interno ou externo, dependendo se o som é examinado em
nível estrutural baixo ou alto (Loufopoulos, 2004).
Um movimento caracterizado como externo pode ser relacionado à noção de
gesto, pois envolve a noção de uma ação externa, ou aparência exterior que define tal
movimento.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
371
Ibid.

! 252!
Se analisado temporalmente, o movimento da textura refere-se
primordialmente à noção de consistência, podendo ser bem percebido em escalas
temporais que variam de perspectiva entre nível macroscópico ou microscópico372.
Para Loufopoulos373, um som textural pode ser percebido em um continumm
que vai de fragmentado a sustentado, dependendo se fragmentos ou partículas sonoras
são percebidas ou não. Texturas mais sustentadas podem ser percebidas como
fragmentadas se examinadas em um nível estrutural baixo374 a exemplo de uma
textura que revela múltiplos fragmentos, como “estalos”, ou variações de intensidade
que fornecem direcionamentos, se observada em um nível estrutural mais baixo.
A percepção do movimento textural pode ocorrer em escalas temporais
maiores ou menores e Nyström (2013) aponta algumas questões que expandem a
discussão apontada por Loufopoulos. Segundo o autor375, a valorização da textura em
um discurso musical permite deformações e transformações espectromorfológicas em
escalas maiores, podendo proporcionar a noção de movimento.
Ainda para o autor, o movimento se manifesta de diferentes modos na textura
espacial, podendo ser desde flutuações de trajetórias espectrais mais amplas até
processos de crescimento multidirecionais. Para Loufopoulos, é possível definir dois
esquemas focais, um exterior e outro interior, relativos a níveis estruturais e
espacialidades do movimento. Em grande parte das obras eletroacústicas, ambos os
focos são explorados, e a percepção focal do ouvinte vai depender tanto do contexto
musical, quanto do grau de atenção376.
O autor sugere, então, quatro critérios para esquemas focais de movimento:
articulação de movimento, fatores ligados com fonte acústica, densidade e variedade
interior377. A articulação do movimento está inserida no meio de um continuum que
se estende do local ao global, sendo que no primeiro extremo a atividade interna da
textura é um considerada como motivo que varia temporalmente, e o segundo extremo
se refere ao movimento que afeta a textura em um todo.
Nesta abordagem, quando o foco é voltado para o interior textural, a atenção é
atraída para longe da noção de crescimento ou direcionalidade, significando que a
textura evolui em períodos mais longos. Já uma noção de esboço de articulação do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
372
Ibid.
373
Ibid.
374
Ibid.
375
Ibid.
376
Ibid.
377
No original: temporal scale, spectral articulation e perspectival articulation. (Ibid., p. 76)

! 253!
movimento, se refere aos contornos espectrais e tendências gerais da textura, que são
articulados através do movimento exterior da textura378.
Os fatores ligados à fonte acústica, ainda que não diretamente ligadas ao
movimento, influenciam a noção de um movimento que esteja situado em um
contexto. Pode se exemplificar com uma acústica reverberante, que representa um
espaço fechado, e pode influenciar um sentido de interioridade de movimento379.
A densidade é associada com os processos de crescimento de uma textura e a
variedade interior define se um foco é interior ou exterior. Em uma textura mais
homogênea é mais fácil perceber a superfície exterior, enquanto que uma textura
composta por espectromorfologias heterogêneas atrairá a atenção para os aspectos
internos desta textura380.
Sobre a noção de continuidade ou direcionalidade, Nystrom381 considera ainda
que a natureza qualitativa de uma textura pode fornecer um sentimento de suspensão
temporal provocando a noção de adirecionalidade na obra musical. O autor indica
também que existem casos em que uma atividade textural fornece potencialidades de
mudança. Nestes casos as propriedades da textura são dinâmicas, fornecendo um
fluxo direcional diferente do rumo fornecido por uma propulsão gestual.
No que se refere aos processos de movimento e crescimento apontados por
Smalley (1986 e 1997), uma textura pode ser definida a partir de movimentos
multidirecionais382, criando expectativas e a maioria tem um sentido de movimento
dirigido. Os movimentos não se limitam apenas à textura podendo também ser
relativos ao gesto, contudo uma textura sonora tem um grande potencial de produzir
direcionalidades múltiplas.
Estes movimentos relativos à textura referem-se à dispersão ou aglomeração
de elementos individuais, divergência ou convergência de percursos dos elementos,
ou a uma dilatação ou contração da largura espectral. Além dos movimentos
propostos, Smalley sugere a ideia de exogenia como um processo de crescimento por
meio da adição de elementos ao exterior de um evento sonoro, o que pode ser
associado à dilatação e à aglomeração.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
378
Ibid.
379
Ibid.
380
Ibid.
381
Id., 2009
382
Id., 1997

! 254!
Para o autor, além da exogenia existe o processo de endogenia que define o
crescimento que vem do interior de um evento ou textura, caracterizando um
“engrossamento” de uma textura ou ainda um preenchimento de um evento sonoro383.
Tais processos de movimento e crescimento multidirecionais, indicados pelo autor,
estão resumidos na Figura 15, apresentada anteriormente neste trabalho.
Smalley menciona ainda movimentos tipicamente texturais que evocam com
mais intensidade uma consistência interna. Estes movimentos são menos apropriados
como ferramentas para a atribuição de níveis ou funções estruturais, considerando a
dificuldade em difícil decompor o interior de uma textura em unidades significativas.
Porém, as mudanças no comportamento interior podem dar pistas sobre as mudanças
em níveis mais altos384.
O autor propõe ainda qualificadores de movimentos texturais, caracterizados
pela ação colaborativa dos componentes internos que constituem a textura. As ações
colaborativas fornecem comportamentos específicos aos movimentos, definidos por
Smalley como: correnteza, flocagem, convolução e turbulência385.
O movimento em correnteza refere-se a uma combinação de camadas que se
deslocam, sendo diferenciadas por lacunas no espaço espectral ou por sua
heterogeneidade386. A flocagem trata de um movimento livre e coletivo dos elementos
microscópicos da textura, cuja atividade e variações de densidade são ouvidas como
um todo, em analogia a um rebanho. A convolução e a turbulência implicam um
entrelaçamento espectromorfológico confuso que gera atividade interna intensa e
caótica387.
Assim como outros autores, Smalley388 sugere que o movimento textural pode
variar em consistência interna, sendo que um movimento contínuo define uma textura
sustentada enquanto que um movimento descontínuo indica uma certa fragmentação.
Dentro do continuum que vai da continuidade até a descontinuidade, o
movimento textural pode variar de iterativo para o sustentado, passando pelo granular,
sendo percebido também conforme a dispersão dos elementos constituintes, que
podem estar dispersos ou compactos. Os elementos constitutivos também podem se
comportar de maneira periódica, aperiódica ou errática.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
383
Ibid.
384
Ibid.
385
No original: streaming, flocking, convolution e turbulence (Ibid., p. 119)
386
Ibid.
387
Ibid.
388
Ibid.

! 255!
Uma textura pode conter um comportamento interno de fluxo contínuo ou em
aceleração e/ou desaceleração e seus elementos internos se comportar de modo
agrupado ou disperso389. Para resumir os diferentes movimentos texturais, Smalley
sugere um gráfico como está apresentado na Figura 16:

Figura 35 - Movimentos Texturais (adaptado de Smalley, 1997, p. 118).

Todos os tipos de movimento texturais indicam expectativas no ato de escuta,


bem como uma importância estrutural específica no ato da composição. São
importantes geradores das espacialidades que podem ser aspectos estruturais e
expressivos importantes na construção de uma obra eletroacústica. Os diferentes usos
estruturais da textura na composição proporcionam diferentes focos de atenção e
fornecem à obra um aspecto muito específico capaz de gerar diferentes experiências
estéticas. A seguir serão discutidas algumas implicações do uso da textura, bem como
do gesto na estruturação de obras eletroacústicas.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
389
Ibid.

! 256!
4.2.2 – O Papel Da Textura nos Processos de Estruturação

Anteriormente foram apontadas as noções de gesto, definido em níveis e


funções estruturais na abordagem de Smalley (1997 e 1986). Porém, cabe ressaltar
que a composição de uma música eletroacústica frequentemente é uma combinação de
gesto e textura, com o foco deslocando-se entre eles, pois se equilibra nos dois polos.
Tal mistura de focos pode gerar diferentes expectativas no ato da escuta.
A forma de utilização dos elementos estruturantes define as terminologias que
se referem à predominância do emprego de gestos ou texturas numa obra
eletroacústica. As terminologias se referem a “carga” gestual ou textural da obra, que
proporciona focos de atenção variados.
Smalley define as estruturas como carregadas por gestos ou carregadas por
texturas390, dependendo de qual elemento é mais passivo ou ativo. Em um contexto
dito carregado por gestos, o gesto é o elemento dominante e a estrutura é fortemente
direcionada temporalmente para frente, ocorrendo que o ouvido se atentará mais ao
movimento do que a detalhes texturais no interior do gesto.
Quando o gesto é menos direcional torna-se possível imaginar uma atração
pelo detalhe interno, criando assim um equilíbrio entre o gesto e a textura. Isto será
interpretado pelo ouvido como um gesto em progresso, ou seja, o gesto terá um
interior mais texturizado. Neste caso a sensação de movimento direcional
permanecerá, mas será um pouco mais evolutivo. Pode-se considerar este caso como
um exemplo de enquadramento gestual391.
Quando uma obra é marcada pela valorização de detalhes e pela estagnação do
tempo, ela será definida como um contexto musical carregado pela textura. Quando a
textura domina em um contexto, a memória de causalidade é perdida na escuta, não
resultando em expectativas ou desejos de resolução. Eventos gestuais ou objetos
podem facilmente ser introduzidos em texturas ou emergidos delas, consistindo em
um exemplo de configuração textural392, no qual a textura fornece o ambiente para as
atividades gestuais.
Diferentes formas de equilíbrio focal podem ser buscadas pelos compositores
em uma obra eletroacústica e para Smalley: “O enquadramento gestual e o contexto

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
390
No original gesture-carried e texture carried (Smalley, 1997, p. 114).
391
No original gesture framing (Id., 1986, p. 82).
392
No original texture setting (Ibid., p.84).

! 257!
carregado pela textura são casos de um equilíbrio suscetível de inclinação pelo
ouvido em qualquer direção. Indicam ainda áreas de tolerância, limites, ambiguidades
abertas a duplas interpretações e cross-fadings perceptuais, dependendo da atitude de
escuta”393 .
De forma similar às noções propostas por Smalley, Nyström (2009) considera
que a textura, em grande parte dos casos, proporciona adirecionalidade, bem como a
noção de suspensão temporal. Contudo, o autor menciona também que existem
situações em que uma atividade textural é marcada por mudanças. Nestes casos, as
propriedades da textura são dinâmicas, fornecendo como consequência um fluxo
direcional com propulsão temporal semelhante ao ato gestual. Portanto, uma textura
marcada por direcionalidades possui uma causalidade intrínseca que propulsiona tal
direção.
Quando se refere à estruturação em música eletroacústica, Nyström394 avalia
que uma hierarquia entre gesto e textura é dada na escala temporal da obra, nas
densidades e no modo de organização de eventos. Para o autor, tais aspectos
composicionais podem ser complementares em uma mesma morfologia, podendo
também caracterizar um desenvolvimento estrutural.
Ainda na concepção de Nyström395, uma relação colaborativa entre o gesto e a
textura pode gerar consequências no tempo e na forma de uma obra, o que pode ser
exemplificado com obras que possuem ações gestuais interagindo em um nível local,
mas que podem ter um caráter textural em um nível global. Do mesmo modo uma
obra que possui uma forma global mais gestual pode ser marcada por escutas texturais
em níveis mais locais.
A noção de direção fornecida por uma textura é mais lenta e gradual do que
aquela obtida através dos gestos, sendo que tal noção pode ser fornecida por
movimentos reunidos de textons, bem como por trajetórias dadas por diferentes
filamentos que constituem a textura. E, dependo do modo como tais elementos se
comportam, um enfoque mais gestual ou textural será dado no ato da escuta.
Ainda conforme Smalley (1997), no conjunto da obra, a atividade gestual é
mais facilmente apreendida e recordada devido à solidez de suas coerências em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
393
“gesture-framing and texture-setting are cases of an equilibrium capable of being tipped in either
direction by the ear. They indicate yet again areas of border tolerances, ambiguities open to double
interpretation and percepetual cross-fadings depending on listening attitude.” (Ibid., p. 84)
394
Ibid.
395
Ibid.

! 258!
contrapartida às apreciações texturais que requerem uma exploração aural mais ativa e
tornam-se uma arte aural de difícil compreensão.
É possível considerar que a valorização do uso da textura ou dos gestos, bem
como um emprego equilibrado destes dois princípios resultarão na forma como se
dará a experiência temporal do ouvinte. A experiência é proporcionada pela evolução
e desenrolar de uma textura ou de gestos, bem como as espacialidades fornecidas por
cada uma destas abordagens.

4.2.3 – A Espacialidade Fornecida pela Textura na Música Eletroacústica

A percepção multimodal (baseada em sentidos visuais e táteis) das texturas é


um elemento importante na escuta espacial de um evento. Textura granulares,
marcadas por textons envolvem a noção de superfícies fragmentadas que possuem
dispersões ou densidades (aspectos espaciais importantes) enquanto as texturas
constituídas por filamentos fornecem direcionamentos e contornos que também geram
espacialidades.
Movimentos texturais também demarcam a noção de espacialidade e ainda que
uma textura não possua uma trajetória bem marcada poderá gerar escutas ambientais,
bem como as topologias de seus elementos constituintes. Variações de densidades, ou
ainda movimentos reunidos de textons, também caracterizam aspectos perceptivos
relacionados ao espaço.
Smalley (1997) sugere o termo textura espacial para definir o modo como a
perspectiva espacial de uma obra é revelada através do tempo, onde o comportamento
global dos eventos sonoros individuais (gestuais ou texturais) define a disposição
espacial da obra.
Deste modo, elementos de nível mais baixo na estrutura que constituem
eventos sonoros percebidos de forma global fornecem espacialidade à obra
eletroacústica, seja no contexto da interação entre gestos, que fornece uma textura
contrapontística ou uma cena auditiva, seja numa escuta imersiva e adirecional de um
evento sonoro de natureza textural. Assim conceitos de escuta global de eventos
fornecem a definição do que é textura, e tais aspectos globais oferecem por natureza a
noção de espaço em música eletroacústica.
Nyström (2013) sugere que as texturas espaciais em obras eletroacústicas
podem ser tão específicas que possuam comportamentos espaço-temporais diferentes

! 259!
dos sons do mundo real. Desta forma, as espacialidades proporcionadas pelas texturas
sonoras se relacionam mais com aspectos visuais do que com os aspectos sonoros do
mundo real.
Segundo o autor, o mundo visual lida mais com deformações elásticas e
crescimentos, que modelam formas e ocupam áreas, ao invés de pontos fixos no
espaço396. No caso de uma escuta de textura em música eletroacústica, as formas
espaciais são relacionadas com as percepções visuais por possuírem deformações que
resultam de atividades internas reveladas no tempo, bem como por contornos
espectrais que se estendem em um espaço perspectivo na hora da projeção.
As imagens sonoras decorrentes de uma escuta acusmática possuem um
caráter mutante e espacial, melhor comparado com aspectos visuais do que com
pontos sonoros fixos dados, por exemplo, em uma escuta de música instrumental.
Portanto a música eletroacústica oferece experiências estéticas por meio de escutas
espaciais imaginativas e não convencionais que são reforçadas por ambientes sonoros
constituídos de gestos ou texturas com movimentos internos.
Nyström397 ressalta ainda que a escuta de música eletroacústica (especialmente
no caso de escutas acusmáticas) possui uma lógica ao mesmo tempo visual e auditiva,
pois considera centros e periferias, movimentos horizontais e verticais, além de
fornecer um senso de direção. Para o autor se existe um senso de orientação no
mundo sonoro, como se o ouvinte tivesse a possibilidade de olhar em uma direção
com a finalidade de “focar em sons”, seria natural que o mesmo “visse” os sons em
sua mente. Portanto, os aspectos visuais são reforçados pelas características próprias
de constituição da textura, seja por sua superfície, seja por seu movimento.
Ainda na concepção de Nyström398, os aspectos visuais de uma textura
fornecem uma relação mais próxima da obra com o ouvinte, pois a textura se
estabelece no espaço da escuta como uma presença aparentemente realística, ainda
que seja irreal. Neste contexto “o ouvinte adquire um senso de participação
incorporada, de orientação e localização no interior de um espaço composto”399. No
caso de escutas de texturas imersivas ocorre que tal sensação é mais evidente.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
396
Ibid.
397
Ibid.
398
Ibid.
399
“the listener acquires a sense of embodied participation, orientation and placement within the
composed space” (ibid., p. 30)

! 260!
No que se refere ao direcionamento espacial de uma obra, a textura privilegia
a orientação intrínseca, tendo em vista que seus comportamentos espaciais são
voltados à composição de atividade interna do evento sonoro, ao invés de se referirem
à movimentos exteriores. Mesmo que a fonte geradora da textura seja reconhecível, a
estaticidade temporal, o direcionamento lento ou a adirecionalidade fornecem uma
escuta contemplativa, que não prioriza apenas o reconhecimento da origem. Assim,
ocorre uma valorização do espaço intrínseco em uma escuta textural.
Uma obra predominantemente textural também pode fornecer uma orientação
espectral, quando as variações de densidades e as distribuições espaciais são dadas
pela exploração do conteúdo espectral da textura. Os limites perspectivos de altura
são proporcionados pelas bandas espectrais que se encontram em regiões frequenciais
altas ou baixas. Neste contexto, as localizações não necessitam ser precisas pois uma
escuta textural pode ser imersiva e envolvente, sendo marcada pela variação do
espectro.
A textura pode oferecer mais de uma possibilidade, no que se refere aos níveis
espaciais, pois quando a textura é pensada como um entrelaçamento de linhas (ou
filamentos) pode fornecer uma escuta espacial em nível madrigalesco, por se tratar da
composição de um tecido global, em analogia a um contraponto vocal complexo.
O nível espacial estrutural também pode ser marcado por um comportamento
textural do material sonoro, o que também ocorre com uso gestual, reforçando-se as
características de tais elementos estruturais são contrastantes, revelando um uso
marcador de uma função estrutural. Os outros níveis estruturais (abstrato, ornamental
e figurativo) também não estão restritos à textura, pois o diferente uso de gestos e
texturas pode proporcionar de maneiras distintas a exploração desses níveis em uma
obra.
Na percepção temporal dada pelo espaço, a textura pode fornecer diferentes
experiências. Das metáforas temporais comentadas anteriormente, o tempo
transparente ajusta-se perfeitamente à noção de textura, pois uma das principais
características da textura é a noção de estaticidade temporal, proporcionando uma
perda de referência de um futuro ou mesmo um passado. Pode se considerar que o
tempo é transparente e não evolutivo, priorizando a contemplação de um presente
aparentemente infinito.
A metáfora do tempo como observador movente também pode ser relacionada
às texturas que possuem uma mobilidade lenta. Por exemplo, uma textura projetada

! 261!
em canais frontais, aumentando gradualmente em intensidade, pode proporcionar a
sensação de que o ouvinte se move para uma região mais próxima da textura em
questão, pois a alteração da intensidade pode proporcionar a ilusão de movimentação
por parte do ouvinte.
A utilização da textura também pode proporcionar o que se denomina espaço
ambiofônico, comentado anteriormente. Uma escuta textural pode ser bem
representada através do envolvimento espacial do ouvinte por uma fonte única, ou
pela junção de vários eventos ocorrendo ao mesmo tempo, sendo que o ouvinte fica
inserido “dentro” de uma realidade sonora e pode contemplar a atividade interna de
tal evento.
A variação das densidades dos elementos individuais, bem como pela ação
coletiva de tais elementos produzindo diferentes volumes gera a noção de espaço
geometria. Uma textura formada por filamentos heterogêneos, ou ainda por gestos
mais distendidos no tempo pode ser configurada em planos e volumes que
caracterizam este tipo de abordagem espacial.
A configuração espaços/paisagens ou espaços miméticos pode ser construída a
partir do uso de sons texturais, desde que estes possuam alguma referencialidade. Por
exemplo, o uso de ambientes sonoros em que são reconhecidos sons que ocorrem em
tempestades, ou ainda sonoridades de cachoeiras, configuram escutas de espaços
referenciais dados por sons de características texturais. Já o espaço ilusão, em um
ambiente de projeção em estéreo, também é revelado por meio de texturas, pois a
superfície e o comportamento interno de seus elementos também podem proporcionar
a ilusão de perspectivas e profundidades na escuta.
Assim, muitas das abordagens espaciais exploradas na música eletroacústica
citadas neste trabalho podem ser alcançadas por meio do enfoque de sons texturais.
Esse fato é revelado por meio da maneira com qual a textura é dispersa no espaço de
escuta, ou pela maneira como ela se propaga, bem como pela percepção de sua
superfície. Estas especificidades das texturas sonoras ou musicais podem
proporcionar diferentes espacialidades na escuta que produzem provendo um
poderoso potencial expressivo.

4.3 – Exemplos do Uso de Gestos e Texturas como Geradores de Espacialidades


nas Obras.
!

! 262!
Nesta seção da tese serão exemplificados, a partir das obras analisadas e
compostas, alguns usos gestuais e texturais como geradores de espacialidades em
obras eletroacústicas, sendo buscados alguns exemplos do uso da textura e do gesto
como meios de articular tais abordagens.
Não foi objetivo desta seção do trabalho analisar novamente as obras em uma
perspectiva gestual e textural, mas sim de apontar algumas estratégias composicionais
que usam tais elementos como geradores de experiências espaciais no contexto da
música eletroacústica. Serão empregados como ferramenta descritiva alguns termos
de classificação de gestos e texturas que foram apontados neste trabalho.
Na obra Vox V de Trevor Wishart é possível encontrar muitos exemplos de tais
utilizações do material. Inicialmente, no trecho que vai do início até aproximadamente
12 segundos, o autor faz o uso de sons provenientes da natureza, como trovões, e sons
resultantes da ação do vento. Os sons são equivalentes ao que o autor chama de
morfologia intrínseca, entendida como fenômenos dinâmicos e que diferem das
morfologias impostas por possuírem energias geradoras auto-propelidas e não
aplicadas.
Os sons de trovões e os movimentos marcados pela força do vento geram
eventos sonoros curtos e direcionais que seriam característicos da escuta de gestos,
porém a soma de todos estes elementos na escuta global fornece ao ouvinte uma
imagem de uma paisagem, onde a noção de tempo não é direcional.
Esta escuta da paisagem construirá uma escuta mais textural, pois todos os
eventos parecem atuar de modo coletivo gerando uma escuta mais contemplativa.
Ainda que se trate de uma escuta voltada para a textura, a espacialidade gerada neste
trecho é similar a uma orientação espacial extrínseca, devido ao uso de sons mais
referenciais. Sendo assim, a escuta pode ser considerada textural devido à atividade
coletiva dos eventos individuais, porém a sonoridade geral é muito referencial e por
isso gera uma associação extrínseca.
Gradativamente, por volta dos 13 segundos, sonoridades de corvos surgem em
um crescendo, consistindo em um evento sonoro marcado por um desenvolvimento
lento e repetições das emissões dadas pelos pássaros. O caráter repetitivo se comporta
energeticamente e de modo semelhante ao descrito pela Unidade Semiótica Temporal
“por ondas”. Gradualmente as repetições se tornam mais velozes e se sobrepõem
temporalmente causando um aumento de densidade dos eventos e compactando mais
a textura global.

! 263!
A camada dos sons de corvos é sobreposta à camada da textura de sons de
eventos naturais do início da obra e ambas crescem em intensidade, gradualmente
sofrem transformações de timbre e de morfologia, fazendo com que o referencial
identificável torne-se mais obscuro. A transformação tímbrica e morfológica aos
poucos se torna mais granular, ou seja, constituída por textons, na qual o aumento das
partículas sonoras é que configura o aumento de densidade percebida.
No intervalo de transformação que começa no início da obra e se estende até
aproximadamente 1’15” a articulação do material é predominantemente textural,
sendo marcado por uma evolução temporal lenta, porém com um certo
direcionamento dado pelo crescimento de densidade dos elementos constitutivos e
pelo aumento de intensidade. O aumento da densidade e da intensidade, juntamente
com a transformação tímbrica e morfológica do material, configuram um aumento de
tensão estrutural que fornecem uma noção de expectativa de resolução.
Se observada mais localmente, em trechos menores, esta parte inicial se
mostra mais textural, porém se analisado de maneira mais integral (todo este trecho) o
comportamento global do material é mais gestual por possuir uma expectativa de que
um objetivo seja alcançado. Observa-se então um contexto de enquadramento
gestual, no qual um ambiente predominantemente textural assume um caráter
direcional. Inicialmente a textura possui uma orientação espacial extrínseca, porém
com a transformação de seus elementos constituintes tal orientação será transferida
para um contexto intrínseco.
A expectativa gerada pelo aumento de densidade e a transformação do
material resultará em um som com ataque marcado em 1’16”, fornecendo uma textura
de caráter diferente da anterior, projetada em todos os canais de projeção, fornecendo
assim uma escuta mais imersiva. A superfície se apresenta mais ondulante do que
granular, como se os elementos individuais fossem maiores que os anteriores. Na
realidade se assemelham mais com filamentos em ondulação rápida do que com uma
iteração de grãos.
A intensidade varia dinamicamente nos canais dando uma noção de vida
interna à textura e este momento é marcado pela sensação de suspensão do tempo,
causando uma certa tensão na estrutura. Alguns gestos, mais fracos aparecem em um
plano focal menos importante em 1’28”, como se fossem pequenas morfologias que
fazem parte da textura e aparecem em relevo ocasionalmente.

! 264!
O ataque em 1’16” poderia ser classificado como gesto produtor de som,
segundo a noção de Godøy (2006) citada anteriormente. Tal ataque vai ser gerador de
uma nova textura que marca um novo momento estrutural, onde a função gestual não
é o principal foco, e sim um condutor para um novo tratamento do material.
Em 1’32”, a variação de intensidade nos canais cessa e a textura é concentrada
apenas nos canais frontais sendo rapidamente transformada morfologicamente em um
único gesto, marcado por um grito nos canais frontais. Aqui ocorre uma mudança de
orientação espacial, conferida pela alteração de um contexto textural para um gestual.
A orientação intrínseca, dada pelo material granular de uma textura é
transformada rapidamente para um material muito direcional, projetado na direção do
ouvinte nos canais frontais. Neste caso, a mudança espacial é reforçada pela alteração
estrutural de uma textura para um gesto. Um contraste estrutural é oriundo da
mudança de perspectiva, de imersivo, contemplativo, com evolução lenta se
transforma em algo projetivo e direcional. Neste contexto, o movimento que era
textural, marcado por propagação dos elementos constitutivos, se torna unidirecional
e gestual.
Aos 2’13” é possível observar outro exemplo do emprego de variação
espacial, oriunda de uma transformação textural. Inicialmente é possível reconhecer
uma textura “fina” (como um filamento), dada pelo som contínuo de uma vocalização
processada eletronicamente, que aos poucos se transforma espectromorfologicamente
em uma textura mais esparsa semelhante a um enxame de abelhas. Neste caso um
espaço que parece mais íntimo e pessoal é marcado por um som textural e simples que
se transforma em um espaço mais amplo e mais povoado.
O som inicial poderia ser considerado um gesto que foi estendido no tempo,
gerando uma escuta característica de textura, que será confirmada como tal ao ser
transformada e dissipada no espaço. Neste exemplo tem-se a noção de um movimento
textural em fluxo que sofre uma dissipação, sendo realçado pela distribuição espacial.
Neste exemplo é interessante notar que a orientação espacial é ambígua, pois
inicialmente é possível considerá-la como extrínseca e posteriormente se tornaria
intrínseca pela percepção de movimento interior dado pela dissipação, sendo que o
reconhecimento do evento ainda ocorre ao se relacionar a textura dispersa com o som
identificável de um enxame de abelhas. Assim a ambiguidade se apresenta da seguinte
maneira: o comportamento da textura atrai o foco para a atividade interior,

! 265!
caracterizando uma orientação intrínseca e a identificação da fonte sonora
caracterizaria uma orientação extrínseca.
De forma similar, na obra Dreaming in Darkness de Åke Parmerud também
foram utilizados materiais referenciais como geradores de espacialidades. O
compositor fez uso de sons reconhecíveis que representam ambientes específicos que
gradualmente se tornam totalmente abstratos e, ao final, voltam a ser reconhecidos de
novo de um modo mais transformado. Especificamente no trecho inicial desta obra,
uma forte referência a uma ação humana é percebida na escuta, caracterizando
momentos gestuais. Sons de passos, de abertura e fechamento de portas são exemplos
de escutas de remetem imediatamente a ações reais.
Cabe ressaltar que gestos de causas identificáveis são utilizados de modo a
caracterizar momentos estruturais, sendo mais evidente o som de abrir e fechar de
portas, inicialmente usado como metáfora de mudança de ambientes espaciais e
gradualmente adquire uma função mais abstrata, como os golpes que parecem ser o
som da porta processado (por exemplo em 8’20”). Neste momento mais abstrato, os
sons do abrir e fechar de portas se tornam elementos constituintes de um contraponto
mais rítmico e menos morfológico.
Os gestos proporcionados pelos sons de abertura e fechamento das portas,
além de importantes marcadores estruturais, atuam também em alguns momentos
como disparos para novos eventos, configurando mudanças de abordagens espaciais.
Por exemplo, por volta de 3’00” um evento sonoro aparentemente textural, com a
superfície mais composta por textons, segue em um crescendo de intensidade e de
atividade interna até culminar em uma batida de porta reverberante em 3’10”.
A batida de porta serve como um disparo para uma nova textura marcada pelo
uso de “sons de pássaros” processados. É uma textura que cresce em intensidade e
densidade até culminar em uma nova batida de porta (agora sem reverberação) em
3’17”. Esta repetição do gesto de batida de porta novamente serve de disparo para
uma textura, agora mais referencial que é marcada por coaxar de sapos em repetição e
uma textura um ruído em fluxo que remete a sonoridades de insetos num ambiente
natural.
No trecho que vai de 3’00” até aproximadamente 3’28”, três ambientes
sonoros diferentes são obtidos por meio da exploração de gestos e texturas. Em um
primeiro momento um evento aparentemente gestual abstrato (onde é aparente uma
superfície com textons) cresce em densidade dando uma noção de direcionamento que

! 266!
culmina numa ação gestual de um bater de porta, oferecendo um novo ambiente
marcado pelos sons de pássaros em textura. A textura também sofre um aumento de
densidade de seus elementos constituintes, caracterizando um movimento direcional
que culmina novamente em um bater de porta e que dispara o terceiro ambiente dado
por uma textura de sons ambientais.
Os adensamentos dos elementos que constituem as texturas referidas acima,
caracterizam a noção de aglomeração de elementos constituintes da textura, um tipo
de movimento textural comentado anteriormente neste trabalho. Trata-se de um
movimento que gera um direcionamento para a textura, configurando a ideia de um
gesto carregado de textura. Este contexto de aglomeração dos elementos individuais
também pode configurar uma ideia de gesto de acompanhamento, uma vez que o
crescimento de densidade da textura serve como um gesto acompanhador da “batida
de porta”.
Assim é possível perceber que a variação de comportamentos dos elementos
interiores de uma textura pode proporcionar certa ambiguidade perceptual, conferindo
dupla função a um evento sonoro: o mesmo evento pode ser percebido como textura
quando observado por seu movimento interior, mas pode ser percebido enquanto
gesto quando adquire direcionalidade e uma “força” condutora para um novo evento
sonoro.
Na obra Human-Space Factory de Hans Tutschku também podem ser
observados diversos exemplos de usos gestuais e texturais como articulação de
abordagens espaciais. Assim como as obras anteriormente citadas, também foram
empregados os sons referenciais e não referenciais em sua estruturação. O compositor
trabalha com a mudança de ambientes espaciais mais reconhecíveis, bem como com
paisagens e com ambientes mais abstratos. Portanto são explorados momentos onde o
foco principal de atenção são as texturas e os gestos ocorrem em outros momentos
como contraponto.
Na parte inicial da obra o compositor valoriza o uso textural do material, o que
gera uma sensação de suspensão temporal, sendo que o trecho introdutório (de 0’00”
até 0’33”) é marcado por uma textura em fluxo que fornece uma ausência de sensação
de direcionamento. O enfoque mais textural do trecho introdutório fornece uma escuta
relacionada à metáfora do tempo transparente. Tal textura evolui lentamente,
tornando-se mais densa no decorrer do tempo, com uma aglomeração de grãos que irá
alterar o timbre da textura, ao mesmo tempo que fornece um direcionamento para a

! 267!
mesma. O direcionamento serve como uma “força condutora” para um som gestual,
com um ataque bem marcado em 0’33”, que age como um marcador estrutural
alterando o tratamento do material.
Outro exemplo de enfoque textural distinto é ocorre no trecho que vai de 3’46”
até 4’39”. Neste trecho alguns elementos gestuais são identificados como falas
humanas e ataques de sons desconhecidos, porém estão sobrepostos a uma textura
mais contínua. Também são sobrepostos temporalmente, configurando mais uma
escuta interior de uma textura global do que uma noção de contraponto gestual.
O emprego dos sons gestuais neste contexto, não fornece direcionamento para
a textura, sendo que esta possui evolução lenta e não indica a configuração de um
direcionamento rumo a um objetivo. Esta abordagem textural tem como resultado que
o ouvinte tem uma noção de ocupação espacial dada pela soma de diversos eventos
diferentes.
Também observa-se na obra Human-Space Factory, que o compositor realiza
um tratamento do material que contrasta com o uso textural dos eventos sonoros,
como, por exemplo, no trecho que vai de 5’07” até aproximadamente 5’50”. No início
deste intervalo são empregados sons gestuais de máquinas como se fossem
engrenagens em funcionamento. São eventos sonoros que possuem trajetórias
circulares bem definidas, sendo dispostos verticalmente em uma relação de
independência homogênea. Para tanto o compositor, em um primeiro momento, usa
apenas morfologias semelhantes que apresentam o mesmo timbre em diferentes
posições temporais, com trajetórias próprias.
Por volta de 5’20”, ocorre no fundo uma textura complexa que enriquece o
contraponto, sendo que as trajetórias gestuais ficam gradualmente mais lentas
enquanto a textura complexa cresce em intensidade até que o tratamento do material
se torna predominantemente textural em aproximadamente 5’50”.
Com a aplicação do tratamento descrito, a impressão espacial também muda,
pois inicialmente o material gestual indicava a percepção de um espaço móvel (dado
pela trajetória de eventos) e após a transformação a noção espacial se torna mais
ambiental, dada pelo tratamento mais textural. No primeiro caso a orientação
espacial era totalmente extrínseca, devido ao uso de gestos, e após a transformação do
material a orientação passa a ser intrínseca, pois o material se torna mais imersivo e
com foco auditivo em atividades interiores do evento sonoro.

! 268!
Dentre as obras analisadas, a composição Surface de Adrian Moore apresenta
diversos exemplos de usos gestuais e texturais como modo de gerar espacialidades.
Nesta obra foram empregados de forma predominante eventos sonoros não
identificáveis, contudo, os recursos gestuais e a escuta de superfícies texturais de tais
eventos fornece uma noção de “concretude” ao material sonoro.
Cabe ressaltar que se a obra for observada em um nível mais geral e
macroscópico irá assumir o conceito de Unidade Semiótica Temporal “sem direção
por divergência de informação”. Ainda que a obra em seu conjunto contenha um
grande número de USTs, o comportamento global da obra é similar ao da referida
unidade, ou seja, o uso de objetos sonoros heterogêneos em sobreposição e em
sequência proporciona uma certa noção de não direcionalidade.
Nesta obra o compositor fez um uso rico e predominante de gestos sonoros
com trajetórias bem definidas e causalidades supostas, configurando uma orientação
espacial extrínseca e gestual. A gestualidade da grande maioria dos eventos sonoros
também proporciona a exploração da noção de espaço móvel como citado
anteriormente.
Porém, é interessante observar que a exploração de gestos heterogêneos
proporciona um certo aspecto textural para a composição, conferindo a noção de
ambiente buscada pelo compositor. Ressalta-se ainda que a obra não apresenta uma
forma definida e não há indicação de que esteja direcionada a um objetivo futuro, fato
que caracterizaria um gesto. Deste modo é possível afirmar que, em função de sua não
direcionalidade, a obra poderia ser classificada como textural, porém simultaneamente
configura um contexto carregado por gestos, considerando a predominância deste
tipo de eventos.
A obra permite a observação de diversos exemplos das abordagens gestuais
apontadas neste trabalho. A noção de contraponto gestual ocorre no trecho que vai de
0’44” até aproximadamente 0’54”, onde o compositor explora a noção de
independência homogênea ao dispor gestos de mesmo timbre em posições temporais
um pouco defasadas e com trajetórias diferentes, ou seja, gestos com conteúdo
espectromorfológico semelhante se comportam de modo independente no tempo.
No trecho que vai de 2’042 até 2’28” é possível observar uma relação de
independência heterogênea com gestos de diferentes timbres, trajetórias e tamanhos
sobrepostos e sequenciados, gerando uma relação de fissão entre eventos sonoros, o
que fornece um ambiente de grande atividade e mobilidade.

! 269!
Ainda que a obra seja predominantemente gestual, o autor emprega as texturas
com diferentes funções. Observa-se a função de background, no trecho que vai de
9’36” até aproximadamente 9’48”, onde um ruído em fluxo contínuo serve de plano
de fundo para gestos com trajetórias definidas em primeiro plano. Contudo, a textura
é ouvida em primeiro plano em alguns momentos, como no trecho que vai de 11’36”
até 11’48”. Aqui uma outra textura em fluxo dá a sensação de suspensão temporal, e
os pequenos movimentos gestuais que aparecem neste trecho, por serem muito
pequenos temporalmente, assemelham-se a elementos integrantes da textura, como se
fossem relevos. Os gestos aqui citados podem ser apontados como exemplos de gestos
de acompanhamento de som, citados anteriormente. Na realidade consistem apenas
em momentos que acompanham a textura ao invés de se destacarem como unidades
individuais.
Em função desta exploração mais abstrata de gestos e texturas a espacialidade
se torna mais artificial, não configurando uma paisagem mimética. O espaço se
apresenta móvel e habitado por movimentos que fazem alusão a energias causais que
são apenas supostas ou imaginadas sobre um contexto que aparentemente não é real.
Assim, os movimentos das espectromorfologias e as interações entre eles são os
fornecedores da noção de espaço habitado, como num ambiente, porém um ambiente
irreal.
A utilização predominante de materiais sonoros não reconhecíveis também faz
parte da obra 2261 de Mario Mary. Se observada em sua configuração mais global,
foi priorizado o emprego de gestos em detrimento das texturas, porém o tratamento do
material é mais direcional, diferentemente da obra Surface.
Em uma perspectiva macroscópica, a obra 2261 apresenta um contexto
carregado de gestos, porém a textura também se mostra um elemento estrutural
importante, marcando alguns momentos de foco da atenção em sua fruição. Na
realidade existe um equilíbrio destas duas funções estruturais, pois o compositor
explora tanto contrapontos gestuais como alguns momentos mais estacionários
marcados por texturas.
Logo ao início da obra, um evento sonoro em um rápido crescendo e
decrescendo configura um gesto que, em sua primeira aparição, é acompanhado por
um som mais contínuo que serve de resíduo para este som. O mesmo gesto do início é
repetido em 0’05”, de forma mais alongada, mas ainda configurando uma escuta mais
gestual.

! 270!
Uma terceira repetição do gesto ocorre em 0’11”, servindo como geração de
um evento sonoro mais alongado no tempo e de caráter mais textural. Neste caso o
gesto apresenta uma função de disparo, na disposição contrapontística dos gestos.
Quando o gesto assume a função de disparo na estrutura ocorre uma mudança de
orientação espacial de extrínseca nas primeiras aparições (caráter unicamente gestual)
para elemento gerador de textura no caso da terceira repetição. Aqui o gesto atrai o
foco de atenção para o seu interior, configurando uma orientação intrínseca, podendo
ser referido como um gesto produtor de som, por gerar um novo contexto sonoro.
A nova textura produzida poderia ser classificada como uma superfície com
maior conteúdo de textons, considerando que possui partículas sonoras que se
comportam coletivamente. Porém ao fundo, em um plano focal inferior, é possível
ouvir um som contínuo, com o mesmo timbre do gesto que iniciou o trecho. Trata-se
de uma textura com a superfície constituída por filamento que serve de plano de
fundo para o evento sonoro cuja superfície é composta por textons.
Como foi visto na descrição de abordagens espaciais em capítulos anteriores
deste trabalho, esta obra explora diferentes espacialidades, sendo uma delas o espaço
artificial, resultante da relação contrapontística e polifônica de gestos e texturas. Uma
abordagem espacial mais artificial é obtida com o uso de eventos sonoros
irreconhecíveis. Além da qualidade artificial muitos espaços são caracterizados como
móveis devido à referida exploração polifônica do material.
Um exemplo marcante de polifonia ocorre no trecho entre 3’06” e 4’07”, onde
os tratamentos contrapontísticos são dados pelo uso gestos e texturas heterogêneos,
dispostos em relações de interação ou independência. O início do tempo é dado por
um ataque percussivo (gestual) de forte intensidade em todos os canais que depois é
repetido seguido de uma textura ondulante. Neste caso, a repetição do ataque tem a
função de disparo para a textura que segue.
A textura, que ocorre em 3’10”, tem um comportamento de UST “que
avança”, pois, a sua aceleração no desenrolar do tempo aparenta conduzir o tempo
para frente, em um comportamento gestual. Apesar de constituir um comportamento
gestual, tal evento sonoro é referido como textura por possuir uma superfície
composta por textons aparentes, configurando um contexto que é carregado por
textura, consistindo em um evento é direcional, mas que é sustentado até o final do
trecho em 4’05”. Mesmo tendo uma duração longa, esta textura reforça a sensação de

! 271!
direcionalidade por variar em intensidade e em velocidade de atividade de seus
elementos constituintes.
Ainda no trecho descrito, ocorrem algumas aparições de gestos sobrepostos à
textura, como aos 3min e 15s onde alguns gestos com trajetórias definidas são
sobrepostos em uma relação contrapontística de independência homogênea e
heterogênea. A independência homogênea ocorre quando gestos de mesmo timbre e
comportamento semelhante são dispostos em posições espaciais e temporais
diferentes. Neste mesmo segmento a relação de independência heterogênea ocorre em
relação à textura e os referidos gestos. Observa-se ainda que as relações de
independência neste trecho também ocorrem com o aparecimento de novos gestos,
por exemplo em 3’45”.
No segmento anteriormente descrito também é possível identificar uma
relação de interação entre gestos heterogêneos, o que ocorre quando um som contínuo
e agudo, com trajetória circular, serve como uma “força” energética que culminará em
um ataque metálico. Diversos tratamentos contrapontísticos entre gestos e texturas são
ricamente explorados ao longo da obra, sendo que as funções estruturais de
contraponto e de momentos com predominância das texturas na obra 2261 geram
espacialidades principalmente voltadas ao abstrato, decorrente da mobilidade e
interação entre gestos, bem como pela ocupação de espaços dados por texturas.
A obra Vox Alia de Annette Vande Gorne também revelou diversos exemplos
tratamentos gestuais e texturais como geradores de espacialidades. O material base
para a construção desta obra consistiu na gravação de sons vocais que foram
processados gerando diferentes configurações estruturais. As conformações obtidas
variam entre predominâncias gestuais ou texturais do material sonoro, contribuindo
para a construção de diferentes espacialidades.
Um exemplo interessante de uso textural é dado no trecho inicial do primeiro
movimento da obra, denominado Giocoso. Na seção introdutória a compositora
sobrepõe diferentes camadas compostas por eventos sonoros contínuos como se
fossem linhas melódicas e cada uma destas camadas possui contornos que delimitam
faixas espectrais que variam dinamicamente, como se fossem linhas animadas que
compõem um tecido complexo de eventos.
Cada uma destas linhas possui atividades internas que as diferem umas das
outras: algumas linhas tem o movimento em ondas, outras possuem um
comportamento mais iterativo e outras ainda fluem de maneira mais contínua. A

! 272!
sobreposição de tais linhas provoca a perda de direcionalidade configurando uma
escuta textural, com imersão do ouvinte neste contexto. A compositora manipula a
posição de projeção de cada camada, contudo a noção de escuta mais textural não fica
alterada, pois a complexidade de atividade gerada pelo uso de sobreposição de
materiais heterogêneos fornece uma noção de não-direcionalidade do tempo.
Um uso textural diferente é ocorre no final desta mesma seção (aos 4’48”),
onde um evento sonoro mais contínuo e simples caracteriza novamente uma escuta
textural, porém, a simplicidade do evento proporciona a escuta de um espaço mais
vazio e etéreo. Tal textura não possui muitos elementos internos, apenas filamentos
que configuram um contorno bem definido que desaparece ao infinito. A textura aqui
descrita aparenta ser o resultado do processamento de uma gravação de um canto
Khoomei400.
Muitos usos texturais com diferentes resultados espaciais serão ainda
explorados ao longo da obra, ressaltando-se o trecho que faz parte do movimento
denominado furioso, (aproximadamente 14’36” até 15’48”) em que se configura uma
escuta mais textural, porém com um movimento unidirecional.
A textura mencionada é caracterizada por possuir uma evolução lenta e por
atrair a atenção auditiva para a sua atividade energética interior. Entretanto, em um
determinado momento (mais precisamente em 15’8”), um filamento desta textura
entra em ascensão frequencial caracterizando um glissando para uma região aguda.
Deste modo a textura começa a adquirir direcionalidade, mas em uma evolução lenta,
fornecendo uma situação de textura carregada por gesto. Neste caso, o foco de
atenção ainda permanece na atividade interna da textura, mas a ascensão frequencial
proporciona uma expectativa de “chegada” a algum objetivo.
Além da exploração de diferentes contextos texturais também é possível citar
algumas amostras interessantes de usos gestuais, o que pode ser exemplificado pelo
som vocal do início do movimento denominado Amoroso (em 5’10”). Trata-se de uma
espacialidade metafórica dada por um gesto, pois o som vocal deste início possui uma
característica gestual fornecida pela identificação causal e pelo comportamento
espectromorfológico do evento em questão.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
400
O Canto Khoomei é originado na Mongólia. Trata-se do canto típico mongol que é executado em
“uma só voz que gera harmônicos simultâneos [que] imita o som do vento soprando no deserto (...)”.
No original “una sola voz genera armónicos simultáneos imita el sonido del viento soplando en la
estepa” (Sagredo, 2006 p.52)

! 273!
Neste caso, a espacialidade da vocalização é projetada em um crescendo
simultaneamente ao traçado gradativo de um trajeto circular em torno do ouvinte. A
gestualidade deste evento marca a imagem de um afeto específico, representado pelo
abraço que é percebido espacialmente por meio do envolvimento espacial da fonte
gestual.
Outros empregos de gestos como meios de geração de espacialidades baseadas
em metáfora podem ser destacados na obra, como no caso do início do movimento
Innocentemente (em 10’15”), quando uma sobreposição de gestos heterogêneos
provenientes de sons vocálicos de bebês faz alusão ao imaginário não direcional de
um bebê, bem como ao mundo inconstante infantil.
Nesta abordagem, os gestos são dispostos verticalmente em uma relação de
independência heterogênea onde cada elemento parece não interagir com o outro.
Esta sobreposição gera uma noção de multidirecionalidade do material global,
configurando uma escuta ambígua entre textura e gestos. A espacialização contribui
para essa noção de multidirecionalidade, uma vez que cada material gestual é
projetado em um par de canais diferentes.
A escuta resultante é gestual, considerando que é possível identificar
diferentes causas geradoras dos elementos que compõem o trecho. Ao mesmo tempo a
escuta pode ser textural por ser difícil estabelecer um foco de atenção direcional.
Apesar da sobreposição proporcionar uma escuta textural, é possível afirmar que
neste trecho a orientação espacial é extrínseca devido à existência de reconhecimento
de fontes.
Um outro exemplo de espacialidade inusitada decorrente do emprego gestual
do material é observado ainda no movimento Innocentemente da obra, aos 10’56”,
quando um grito alegre de bebê é transformado em uma textura mais granular. O grito
identificável, de orientação espacial extrínseca, serve como gesto de disparo para uma
textura mais granular de orientação intrínseca, demarcando um novo momento
estrutural do movimento, contrastante com o início da obra, sendo marcado por uma
evolução lenta do material e uma sobreposição mais simples de morfologias mais
contínuas.
Nas obras compostas no âmbito deste trabalho, a exploração gestual e textural
como geradoras de espacialidades foram escolhas conscientes. Como citado
anteriormente, em Locus as seções que representavam o “espaço percorrido” e o
“posicionamento espacial” fizeram uso de material gestual como um meio de

! 274!
representar tais conceitos. Nestas seções, usos variados de processos de movimentos
gestuais foram explorados como meios de gerar espacialidades. Um exemplo desta
exploração pode ser observado em 3’11”, quando é possível perceber um movimento
recíproco em parábola em um gesto composto por uma superfície de ataques
iterativos. Este gesto possui uma trajetória curva muito bem definida que começa no
canal frontal e segue em curva pelo lado direito até uma posição traseira.
Em 3’58” observa-se um exemplo de gestos produtores de som no qual é
possível inferir uma causa de produção de som dado por pancadas. Existem também
gestos amodais, nos casos em que as causas são relacionadas a sensações mais gerais
de movimento, como por exemplo o gesto dado em 3’33” no qual é percebido um
“esforço” próprio de geração de trajetória.
A segunda e a terceira seção empregam predominantemente relações
contrapontísticas entre os gestos. Um exemplo deste tratamento do material é
observado no trecho que vai de 3’42” até aproximadamente 3’50”, no qual foi
explorada a noção de relação vertical entre duas morfologias diferentes em
independência heterogênea. Neste exemplo pode ser notado um som gestual de
movimento ondulante e descontínuo que age em oposição a um som contínuo e
agudo.
Outro exemplo de tratamento contrapontístico vertical é observado em 3’48”,
no qual é possível observar também sua disposição em semiparalelo e ainda uma
relação de independência homogênea entre eventos sonoros. Neste exemplo, duas
morfologias gestuais em glissando possuem em um primeiro momento o mesmo
timbre, mas são dispostas temporalmente um pouco afastadas em uma arranjo vertical
em semiparalelo.
Enquanto estes gestos ainda soam, um terceiro gesto em glissando, também
descendente, aparece em seguida, porém com outro timbre e duração, configurando a
relação de independência homogênea. A independência é temporal (indicada pela
defasagem), mas a semelhança morfológica indica a homogeneidade do material.
Ainda nestas seções são percebidos gestos que poderiam ser descritos em
analogia a algumas das Unidades Semióticas Temporais. Um destes exemplos pode
ser observado em 4’32”, quando ocorre impulso, que é uma “variante em equilíbrio
rompido”. Neste caso parece existir uma força que aparentemente “empurra” o evento
sonoro fazendo ele variar no tempo, caracterizando a referida UST.

! 275!
Na última seção desta obra é possível citar um padrão que parece ser de um
movimento textural. O adensamento, já referido anteriormente, de eventos percussivos
que inicia-se em 5’36” configura um exemplo de aglomeração dos elementos
atômicos da textura, ou seja, constrói assim um padrão de agrupamento de tais
elementos.
Outros casos de aplicação de gestos e textura como meio de fornecer
espacialidades são explorados em Cerberus. Devido ao fato desta obra se basear na
manipulação de gestos como referencia estrutural, é possível afirmar que esta é
configurada por um contexto composicional carregado por gestos, pois existe a
predominância destes elementos estruturais em seu discurso.
Como consequência da referida exploração a característica temporal desta
composição é fortemente conduzida para a “frente”, pois os movimentos são em sua
maioria direcionais. Por esta razão os detalhes texturais são menos importantes nos
focos de atenção da obra.
Na organização vertical dos gestos neste trecho introdutório, existem relações
contrapontísticas de interação ou de disparo. Um exemplo de tais relações é
registrado aos 0’08” quando um gesto de trajetória definida, que possui um timbre
mais ruidoso, serve de impulso para um som metálico de ataque definido.
Além deste exemplo, os 18 segundos iniciais da obra se estabelecem por
sequências e sobreposições de gestos que servem de disparos a outros gestos, gerando
uma energia estrutural que impulsiona a obra para um objetivo que (intencionalmente)
é a seção inicial.
Na primeira seção é possível perceber organizações verticais dos gestos que
possuem relação de independência homogênea ou heterogênea que definem
tratamentos contrapontísticos entre os eventos. Casos de independência homogênea
podem ser percebido em diversos momentos da obra, como por exemplo no trecho
que vai de 1’22” até 1’33”, no qual um evento sonoro textural serve de plano de fundo
para gestos com diferentes timbres e comportamentos que possuem trajetos espaciais
independentes.
Um padrão de independência homogênea é fornecido em 1’37”, quando um
gesto da família morfológica “nuvem frequencial” possui trajetória espacial
unidirecional, que segue em linha reta transversal do canal 1 até o canal 8. Logo em
seguida (em 1’38”) aparece outro som da mesma família morfológica em uma região
frequencial mais grave. O segundo som possui uma trajetória circular que inicia-se no

! 276!
canal 1 e segue o trajeto em sentido anti-horário. Neste caso a homogeneidade do
material é dada pela similaridade morfológica, enquanto que a independência é dada
pelo afastamento temporal e pelos caminhos espaciais diferentes.
Os eventos sonoros pontuais que se iniciam em 1’52” são espaçados no tempo
e geram um efeito que poderia ser comparado à Unidade Semiótica Temporal em
flutuação. Esta disposição temporal pode fornecer um estado temporariamente estável
e sem tensão. Tais eventos podem ser considerados como o que Godøy (2006)
classifica como gestos produtores de som, já que estes ataques pontuais são supostas
ações de um agente que percute algum objeto.
Estes ataques, como visto anteriormente, se aproximam temporalmente de
maneira gradual e em seguida se sobrepõem gerando um aumento de densidade. Tal
densidade é reforçada até o ponto em que a escuta deixa de ser a de gestos pontuais e
passa a ser percebida como uma textura constituída de uma superfície granular em
2’30”. Este adensamento poderia ser considerado mais um exemplo de um padrão de
agrupamento que caracteriza um movimento textural.
Este exemplo sugere também a identificação de uma aglomeração dos
elementos percussivos, que antes eram gestuais e depois caracterizam-se como
agentes de um movimento textural. Essa aglomeração é revelada também pela adição
de mais gestos percussivos, em 2’32”. Tal processo de adição de novos textons
fornece também a noção de exogenia.
A aglomeração de eventos texturais gradualmente se torna mais densa e vai
adquirindo um trajeto espacial único caracterizando a noção de movimento reunido
dos elementos percussivos. Este comportamento em trajetória espacial única
configura uma situação na qual uma superfície textural é percebida, mas o movimento
global caracteriza um enquadramento gestual de tal textura.
Em 2’40” é acrescentada à esta textura de elementos percussivos uma camada
de um som textural derivada da família morfológica “nuvem frequencial”. Esta nova
camada possui o mesmo caminho espacial que a textura corrente, realçando o caráter
gestual da mesma.
Em Indução também é possível observar algumas amostras de exploração de
eventos gestuais ou texturais como estratégia para a geração de espacialidades. No
segmento que vai de 0’19” até 0’57” são apresentas algumas causas geradoras de
som, tais como sonoridades que remetem à ações como golpes e quedas. Neste
contexto é possível perceber comportamentos de interações gestuais.

! 277!
Um caso de interação é fornecido em 1’31”, quando um movimento
semelhante a um “ricochete” de um som com ataque definido serve de disparo para
um som percussivo de timbre metálico numa região aguda. Este trecho valoriza essa
noção de ações que “causam” outros sons que podem servir como agentes que
produzirão outros eventos sonoros.
Movimentos gestuais de eventos sonoros são explorados no trecho que vai de
2’36” até 3’04” no qual são identificados movimentos recíprocos (como o balançar
de pêndulos) que são alongados no tempo e gradualmente aceleram, gerando um
tensão estrutural de expectativa de um novo acontecimento.
Esta aceleração resulta em um gesto alongado no tempo, numa região
frequencial aguda e contínua, fornecendo a percepção de outro conceito abordado
neste capítulo: o da UST frenagem. Este comportamento (já descrito como exemplo
de outro conceito neste trabalho) do evento sonoro tem a intenção de proporcionar
uma sensação de energia contrária que fornece uma resistência que parece inibir o
avanço do tempo.
A segunda seção é constituída basicamente por um material textural que torna
possível apontar alguns casos de movimentos texturais. É possível observar um destes
casos em 4’14”, quando alguns grãos da superfície se comportam em fluxo, como se
estivessem sendo “despejados” em um ambiente.
Existe ainda um exemplo de compactação da textura explorado em 5’39’,
quando a textura se contrai ao ponto de se tornar um gesto com trajetória definida,
definindo um padrão de agrupamento.
Foram apresentadas apenas algumas amostras de diferentes usos de gestos ou
texturas como elementos com funções estruturais desta obra. Tais gestos e texturas
fornecem abordagens espaciais importantes na estruturação da obra.
Nem todas as ferramentas descritivas apontadas neste capítulo foram usadas
para relatar os gestos e texturas das obras analisadas, pois a catalogação de todas as
abordagens vai além da proposta deste trabalho. Os conceitos aqui apresentados
tiveram a finalidade de ilustrar a discussão proposta.

! 278!
Conclusão

Este trabalho buscou relatar diferentes pontos de vista para a exploração de


aspectos espaciais em composições eletroacústicas. Para tanto foi realizado um
levantamento bibliográfico que abarcou desde os princípios básicos de entendimento
do espaço em composições musicais, até os diferentes enfoques espaciais que
estruturam uma obra. Cada um destes conceitos foi vinculado a um ou mais autores,
sendo que estes serviram de fundamento teórico para o desenvolvimento das
abordagens práticas.
No nível basal da conceituação dos aspectos espaciais relatados nesta tese,
estão as noções de espaço externo e espaço interno. O primeiro conceito refere-se ao
espaço escutado a partir da organização espacial dos eventos sonoros e suas relações
entre eles, sendo que estes aspectos podem ser apreendidos na escuta. O espaço
interno se refere àquele que é estabelecido no interior da obra, a partir de contornos
dos eventos sonoros, dos movimentos e de outros aspectos específicos do material.
O conceito, o espaço extrínseco, complementa tais definições, relacionando-se
com a resultante perceptiva da escuta do som no espaço. Ou seja, considera a
espacialidade resultante na escuta do evento sonoro e do seu comportamento em
interação com o ambiente em que ele existe. Já o espaço intrínseco é componente do
extrínseco, sendo percebido a partir da escuta dos componentes espaciais internos de
sons e eventos sonoros individuais.
Também foi discutido neste trabalho o conceito de espaço composto, como
resultante da organização dos eventos sonoros, configurando os aspectos espaciais
gerais em uma obra. O espaço composto é importante na configuração de um espaço
de escuta que lida com a configuração espacial em que a obra é ouvida, sendo
composta pelos dispositivos de projeção e pelo espaço físico em que ocorre a
projeção. O espaço composto unido ao de escuta fornece informações a um espaço
percebido, vinculado a uma experiência estética do ouvinte.
Os elementos espaciais primários citados acima servem de fundamento para a
determinação de uma escritura do espaço, que busca a estruturação de uma obra
eletroacústica. A escritura do espaço trata de estabelecimentos estruturais que levam
em consideração o espaço, enquanto parâmetro componível.

! 279!
No processo de estruturação escritural de uma obra eletroacústica, o espaço
pode receber tratamentos composicionais típicos como tensão e relaxamento, conflito
e consonância além de uma definição de coerência espacial.
Numa estruturação musical pode ocorrer a predominância ou alternância de
orientações espaciais, sendo que estas são divididas em orientação intrínseca e
orientação extrínseca. Uma obra que prioriza uma orientação intrínseca tem a sua
organização estrutural do material voltada para os aspectos internos do som, como as
variações de diferentes parâmetros durante a evolução temporal, sem o foco em uma
referência externa. Podem possuir ainda um foco em aspectos relacionados ao
espectro, gerando uma orientação espectral.
As obras que possuem uma orientação extrínseca são baseadas na exploração
de eventos sonoros e processos composicionais associados a algo externo à sua
constituição. Neste contexto, as obras que valorizam materiais reconhecíveis ou
semelhantes à sons gravados que geram sugestões de imagens reais diretas,
configurando um reconhecimento de um espaço conhecido, sendo esta abordagem
denominada orientação ambiental.
Ainda no processo de estruturação, podem existir diferentes abordagens de
tratamento espacial como a delimitação de níveis espaciais que podem ser definidos
como: abstrato, estrutural, ornamental, figurativo, arquetípico e madrigalesco. Estes
níveis são definidos a partir do modo como os materiais são organizados
composicionalmente, gerando estratégias estruturais específicas que são baseadas no
tratamento espacial.
Dentre as conceituações das abordagens presentes em escrituras do espaço foi
apontada neste trabalho a noção de definição espacial, que pode ser única ou
composta de configurações espaciais múltiplas.
Nas obras que fazem uso de uma escritura espacial, o tempo pode ser
concebido como subordinado ao espaço e algumas temporalidades são exploradas a
partir do tratamento espacial.
Foram descritas algumas metáforas que indicam esta relação de percepção do
tempo produzida pelo tratamento espacial, sendo destacadas a metáfora do tempo
transparente onde os eventos, ou os ambientes, possuem uma característica mais
estática e não fornecem uma noção de evolução temporal direcional. A metáfora do
tempo como força movente ocorre quando o tempo é sentido como uma força sobre o
ouvinte, fornecida pelo movimento de eventos sonoros. A metáfora do tempo como

! 280!
objetos em movimento acontece quando o ouvinte escuta a obra apenas como um
observador estático, não estando inserido no terreno onde a obra acontece. A metáfora
do tempo como observador movente é o caso em que os movimentos dos eventos
sonoros dão a sensação de que ouvinte está se deslocando para o futuro.
Dentre as abordagens espaciais no processo de composição eletroacústica
também foi discutido o conceito de forma-espaço como postura auditiva e
composicional que enfoca o espaço como guia de escuta ou referência composicional.
Foram descritas categorias espaciais como um meio de abordar o espaço na
estruturação das obras, sendo expostas as categorias: espaço geometria, espaço-fonte,
espaço ambiofônico e espaço ilusão. Foi ainda discutida a noção de espaço móvel
como possibilidade de produção de um espaço percebido a partir da exploração de
aspectos gestuais e da transformação do material sonoro. Sobre a concepção espacial
global, também foram apontados os conceitos de espaço/paisagem, espaço/metáfora,
espaço/artifício.
Algumas sugestões de nomenclatura descritiva para qualificadores espaciais
dos materiais musicais também foram assinaladas neste trabalho. Estes qualificadores
podem ser aplicados tanto em eventos sonoros individuais, quanto em conjuntos e
cenas auditivas.
Os qualificadores sugeridos foram os seguintes: matéria (que contém
densidade e textura), formato, tamanho/magnitude, largura, área, posição/localização,
distância, envolvimento, lugar, movimento, trajetória, direcionalidade, processos de
crescimento, variação de forma, variação de direção, variação de densidade,
aproximação/afastamento e variação de lugar.
Foram mencionados aspectos físicos e auditivos que influenciam na percepção
do espaço, como as pistas de localização fornecidas pelas diferenças interaurais de
intensidade ou de tempo e a pista de percepção do espaço fornecida pela
reverberação. Tais conceituações serviram como um fundamento teórico informativo
que resultou no melhor entendimento dos aspectos espaciais que a serem manipulados
numa composição musical.
As conceituações de gesto e textura, como o modo de tratamento do material
que podem proporcionar espacialidades na composição eletroacústicas, assumiram
uma importância fundamental neste trabalho. O gesto foi relacionado a um
movimento sonoro com potencialidade de expressar algo, estando vinculado a uma
causa no ato da escuta, sendo percebido de maneira gestáltica e possuindo uma

! 281!
direcionalidade evidente. A textura consiste em tratamento do material que resulta na
escuta da colaboração de vários elementos (de baixo nível estrutural) que são
percebidos como um todo a partir de seus movimentos internos.
Estes dois elementos estruturais são recursos composicionais amplamente
explorados em composições eletroacústicas proporcionando, cada um à sua maneira, a
percepção de movimento e se constituindo em ferramentas poderosas para a geração
de espacialidades.
Acerca das composições realizadas pela autora e citadas ao longo desta tese, é
importante ressaltar que estas buscaram explorar de um modo pessoal os diversos
aspectos espaciais que foram articulados pelo uso do gesto e da textura. As obras são
experiências práticas de construção musical baseadas em alguns questionamentos e
reflexões da autora sobre estratégias composicionais que proporcionassem escutas
imaginativas a partir de estruturações baseadas no espaço. A partir de tais reflexões,
as composições foram estabelecidas sobre critérios abstratos de estruturação que
levassem em consideração aspectos espaciais como referência da constituição de
estruturação formal.
Deste modo, foram compostas três obras neste trabalho: Locus, Cerberus e
Indução e nestas peças os tratamentos dos materiais e a delimitação formal são
subordinados a aspectos espaciais específicos. Deste modo, as composições foram,
muito resumidamente, concebidas da seguinte maneira: Locus teve a sua concepção
estrutural elaborada referencialmente sobre parâmetros espaciais que definem um
ambiente; Cerberus foi elaborada a partir da referência de um aspecto espacial dado
especificamente pelo material em si: a trajetória; por fim, a obra Indução tem como
referência de delimitação formal um aspecto espacial dado na escuta: a orientação
intrínseca e extrínseca.
Nesta exploração do espaço como um princípio estruturante, o gesto e a
textura tiveram um papel estratégico importante na elaboração formal. Cada um
destes elementos estruturantes foi explorado com a intenção principal de fornecer
espacialidades específicas desejadas nas obras.
Apesar da estruturação usar aspectos espaciais específicos como referência, o
tratamento do material que enfocava o uso de gesto ou texturas forneceu algumas
abordagens espaciais além daquelas usadas para gerar a forma global. Sendo que os
espaços explorados foram relatados nas descrições dos casos particulares ao longo do
texto.

! 282!
As composições constituem-se assim como um meio de experimentação
estética dos conceitos abordados neste trabalho, servindo como um exemplo
composicional que ilustra abordagens nas quais parâmetros espaciais são significantes
no contexto de concepção da obra.
Os exemplos apresentados ilustram a convicção da autora que a articulação do
espaço em música pode ser usada como uma dimensão expressiva da linguagem
musical, particularmente na música eletroacústica. Entretanto a música eletroacústica
não é a única vertente que valoriza o espaço enquanto elemento composicional. Desta
forma, os compositores desta prática devem estar cientes que este parâmetro contribui
para uma escuta que valoriza a experiência de sensações já vividas pelo ouvinte.
Apesar deste trabalho se basear em conceitos retirados dos levantamentos
bibliográficos como estratégia descritiva dos procedimentos analíticos e criativos, este
trabalho é o resultado de reflexões particulares feitas a partir das composições
realizadas. O impacto pretendido nesta tese foi o de apontar, por meio das criações da
autora, estratégias poéticas pessoais que contribuem para o desenvolvimento do
cenário composicional atual. Portanto, o processo criativo descrito neste trabalho
aponta uma visão individual de como escolhas composicionais relacionadas ao espaço
podem contribuir para o desenvolvimento de saberes relacionados ao fazer musical
em um contexto musical eletroacústico contemporâneo.
No futuro, a autora pretende ampliar as experimentações destes conceitos por
meio de composições que valorizem outros aspectos espaciais como referência de
estruturação da obra. Acredita-se que a exploração espacial é um objeto de estudo, no
contexto da composição eletroacústica, que fornece ricas possibilidades de
experimentações artísticas que demandam mais estudos.
!
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! 284!
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! 297!
Anexos

! 298!
Anexo 1 - Índice do Áudio Contido no DVD
!
Pasta Obras:

Composição I – Locus (2010-2015)

Locus_8ch
Pasta com os arquivos dos canais individuais da versão octofônica de Locus
no formato .aif

Locus_stereo
Pasta com os arquivos das versões estéreo e binaural de Locus no formato .aif

Composição II – Cerberus (2013)

Cerberus _8ch
Pasta com os arquivos dos canais individuais da versão octofônica de
Cerberus no formato .aif

Cerberus _stereo
Pasta com os arquivos das versões estéreo e binaural de Cerberus no formato
.aif

Composição III – Indução (2014)

Indução _8ch
Pasta com os arquivos dos canais individuais da versão octofônica de Indução
no formato .aif

Indução _stereo
Pasta com os arquivos das versões estéreo e binaural de Indução no formato
.aif

! 299
!

Anexo 2 - Descrição das Obras a Partir das Escutas


Analíticas

Neste anexo estão inseridos os textos descritivos referente às obras


selecionadas para a análise, além da descrição das composições realizadas pela autora.
Todos os exemplos composicionais citados ao longo do texto da tese foram extraídos
destas descrições analíticas feitas a partir das escutas da autora.
A investigação esteve voltada ao uso de abordagens espaciais nas obras em
questão, não sendo objetivo a descrição da estrutura completa das obras nem as
intenções do compositor, mas sim apontar os usos de concepções espaciais
consideradas importantes para exemplificar os conceitos abordados neste trabalho.
Portanto, as escutas tiveram o propósito de perceber as maneiras pelas quais os
compositores conceberam o espaço e a espacialização na construção de suas obras.
As descrições destas obras não foram baseadas prioritariamente no
desenvolvimento temporal, mas sim na identificação das estratégias de manipulação
dos espaços internos e da espacialização do material, como ferramentas de realce ou
de desenvolvimento estrutural. Desta forma, o enfoque das escutas foi voltado mais
para a percepção de cenas espaciais em momentos importantes, do que para o
desdobramento temporal do material. A opção foi feita buscando identificar se a
constituição de contextos espaciais pode contribuir expressivamente para a construção
da coerência em uma obra.
No contexto das escutas analíticas o tempo, em subordinação ao espaço, é
apenas uma mudança de “perspectiva” auditiva, onde são buscados os aspectos
estudados neste trabalho. É importante ressaltar, que não se trata de um julgamento
acerca da escolha primordial dos compositores, mas sim de perceber a maneira pela
qual as manipulações espaciais influenciam estruturalmente as obras musicais
eletroacústica

“Vox V” (1986) de Trevor Wishart

No que se refere ao espaço de escuta, esta obra foi concebida para ser difundia
em quatro canais, sendo que cada um dos altos falantes deve estar disposto em cada

300
!

canto da sala. Esta concepção espacial sugere um efeito de reforço para os aspectos
metafóricos da obra.
A obra está construída a partir da imagem da deusa hindu Shiva, associada a
processos de destruição e renovação. A metáfora explorada na obra consiste na
criação do mundo por meio da “supervoz” de Shiva (Williams, 1993). A imagem de
criação do mundo parece ser produzida pela difusão de sons provenientes de vozes
primeiramente projetadas apenas nos canais frontais, sendo transformadas
espectromorfologicamente no decorrer de seu movimento no espaço quadrifônico.
Para a criação de tais imagens metafóricas nesta obra, foram empregadas
fontes sonoras naturais como a voz humana, sons de pássaros, sinos ou ainda de
ambientes naturais. Também foi observado o uso de transformação dos sons gravados,
bem como de sons desconhecidos. A utilização dos sons gravados fornece
informações referenciais importantes, contudo a obra também é marcada pela
transformação gradual de tais referencialidades para uma escuta mais interna e/ou
abstrata do material.
As transformações de referencialidades geram mudanças de perspectivas
aurais, bem como de orientações espaciais. Logo no início da obra (de 0’00” até
aproximadamente 1’07”), o compositor apresenta materiais bem reconhecíveis porém
com usos espaciais diferenciados. Na primeira aparição sonora (em 0’00”), os sons
naturais de vento já indicam uma forte referencialidade do material que, por natureza,
já possui uma espacialidade inerente.
Uma escuta predominantemente focada na referencialidade ocorre até
aproximadamente 0’33”, sendo possível perceber um ambiente externo onde o vento e
sons ocasionais de trovões indicam a ação natural de existência dos sons. Todo
movimento interno gerado por essa textura evoca a memória de um momento de
chuva ou tempestade.
Gradualmente, num plano focal menos importante, uma nova camada textural
é apresentada em aproximadamente 0’13”, sendo constituída de sons de corvos. Neste
momento, a noção de uma paisagem exterior é reforçada com a soma dos sons de
vento com os dos corvos.
A textura desenvolvida a partir dos sons de corvo é iniciada com muito baixa
intensidade, a qual gradualmente vai crescendo, o que caracteriza uma aproximação
do ouvinte com o objeto escutado. Como se trata de aumento global da intensidade da

301
!

cena, a percepção resultante equivale a uma noção de aproximação por parte do


ouvinte.
No trecho descrito acima é possível estabelecer uma associação com a noção
da metáfora do tempo como observador movente, pois numa experiência espacial de
movimento do ouvinte, uma paisagem não se aproxima de um indivíduo, mas sim, o
indivíduo se aproxima da paisagem. O crescimento de intensidade da textura dos
corvos gera uma impressão de mudança de foco, na medida em que é intercalada com
o foco da textura da chuva. Inicialmente a textura de chuva é a única aparente, sendo
seguida pela textura dos sons de corvos que cresce em intensidade a ponto de consistir
no primeiro plano da peça em 1’00”.
As características dos aspectos espaciais dos eventos sonoros nesta obra
indicam sua utilização como um dos parâmetros para delimitação de seções. Observa-
se uma estrutura de escuta do tipo tradicional ABA’, onde o comportamento e a
orientação do material é bem característica. A primeira seção identificada se inicia em
0’ 00” estendendo-se até aproximadamente 1’16”; a segunda no intervalo de 1’17” até
4’17” e a seção final vai de 4’18” até o encerramento da obra em 6’ 00”.
O gráfico abaixo (Figura 1) ilustra um resumo da forma global encontrada na
escuta do comportamento dos materiais desta obra. As marcações de tempo não são
indicadas, pois a imagem busca ilustrar uma aproximação das proporções de uso dos
materiais no tempo.

!
Figura 1 - Forma de Vox V de Trevor Wishart.

As seções das extremidades (A e A’) são marcadas por uma concepção mais
referencial do material musical, conferindo a noção de um espaço/paisagem e,
consequentemente, uma orientação espacial extrínseca. A seção mediana da obra (B)
é marcada por uma manipulação espacial mais irreal e contrapontística, com
orientação mais intrínseca. Níveis espaciais figurativos foram explorados com o uso
de sons reconhecíveis e imagens de paisagens, considerando que a percepção de

302
!

algum elemento reconhecível pelo ouvinte poderá resultar na imaginação ou


associação com imagens espaciais baseadas em sua experiência cotidiana.
O material que constitui as cenas naturais de paisagens reconhecíveis
apresentadas na primeira seção sofre transformações que alteram a orientação espacial,
na medida em que a seção se desenrola temporalmente. Aos 0’43” é adicionada ao
fundo da textura que fornece a imagem de uma paisagem externa (sons de corvos e
ventos) uma textura de caráter “borbulhante”, sendo que esta adição muda
gradualmente a percepção de um espaço realista para um espaço mais imaginado.
O espaço paisagem vai se tornando menos realístico na medida em que a
intensidade das camadas segue aumentando, resultando no aumento de densidade da
textura global. Também se observa a transformação espectral do material das camadas
que formam a textura global, bem como a sua fusão até que os sons das gaivotas,
unidas à textura borbulhante, não são mais percebidos em 1’10”. Simultaneamente,
um fluxo sonoro mais granular, como um drone não reconhecível, começa a se formar
na percepção. Tal fluxo granular, ainda que não reconhecível, parece ser herança de
transformações de materiais decorrentes do movimento interno do espectro.
Uma alteração de noção espacial também é percebida em 1’15”, pois antes
desta marcação de tempo os sons eram projetados apenas nos canais frontais e a partir
deste ponto mais materiais sonoros são adicionados nos canais posteriores. Esta
adição tem como resultado um aumento na densidade da textura, além de promover
uma tensão estrutural. Desta forma é possível fazer uma ligação com a ideia de nível
espacial estrutural1, onde o modo como o compositor faz a espacialização realça um
momento estrutural importante de tensão.
A tensão experimentada na escuta da obra aumenta na medida em que o
material se transforma, tornando-se mais denso e compacto, aumentando também em
intensidade. A transformação mencionada segue até o momento em que a textura, que
tinha o foco de atenção interno ao som, se funde de tal modo que será percebida como
uma emissão vocal reconhecida (em 1’16”).
Esta emissão vocal é altamente associativa e dirige bruscamente a orientação
espacial intrínseca do material para uma orientação extrínseca e gestual. A
gestualidade é marcada pelo movimento veloz do espectro, além do estabelecimento
do formato de uma vocalização com contornos marcados. Esta mudança brusca de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
conceito abordado anteriormente no capítulo 1 deste trabalho.

303
!

orientação espacial gera uma espécie de cadência que delimita o fim da primeira
seção.
Em 1’17” é apresentada a nova seção, possuindo uma configuração de cena
espacial contrastante com a paisagem reconhecível em relação à cena textual anterior.
O material é tratado de um modo mais contrapontístico, onde vários eventos sonoros
heterogêneos, com diferentes trajetos ou crescimentos interiores, interagem no espaço
interno da composição.
Nesta seção o compositor faz uso também de material referencial e associativo,
porém com uma organização mais abstrata, gerando uma percepção espacial diferente
de uma paisagem. O discurso espacial ficou definido por uma noção predominante de
espaço/artifício decorrente da disposição polifônica do material. Quando se observa o
uso de sons reconhecíveis, estes não estão necessariamente dispostos espacialmente
de uma maneira realística.
Além das disposições irreais, os eventos sonoros associativos também sofrem
transformações que os tornam surreais. Destaca-se (em 1’58”) a possibilidade de
distinção de sons vocálicos que possuem gestualidade aparente nos canais frontais.
Estes sons são sobrepostos temporalmente a uma textura de outro tipo de vocalizações
gerando um espaço totalmente artificial que resulta do comportamento
contrapontístico dos materiais sonoros.
Aos 2’13” da obra, observa-se outro exemplo interessante de mudança
espacial decorrente da transformação do material sonoro, onde o som de uma única
voz (em mono) é transformada gradualmente na sonoridade de enxames de abelha.
Trata-se de um trecho onde não há espacialização e os eventos são projetados
unicamente nos canais frontais, sendo a noção espacial decorrente apenas das
mudanças de pistas espectrais.
Ressalta-se também que a configuração espacial do evento sonoro anterior a
esse (aproximadamente de 2’01” até 2’13”) é marcada por um preenchimento espacial
conferido pela projeção de gestos vocais nos canais frontais e por uma textura mais
granulada nos canais traseiros. Aqui a espacialização foi usada estruturalmente, como
forma de realçar um momento estrutural de contraste.
Ao longo desta seção são apresentados sons reconhecíveis adicionais, como
um relinchar de cavalo (em 3’53”), porém tais sons são usados de modo
descontextualizado ou fundidos a outros eventos sonoros, caracterizando um uso de
nível espacial mais abstrato. A manipulação de mudanças contextuais de eventos

304
!

sonoros reconhecíveis, ou ainda as transformações do material permeiam toda esta


seção. Estas alterações promovem também variações dos enfoques espaciais que
variam de orientações extrínsecas para intrínsecas dos eventos.
A última seção, iniciada em 4’17” e seguindo até o final, retoma a noção de
paisagem decorrente do uso de sons de trovoadas e de chuva, sendo que tal paisagem
é percebida tridimensionalmente através da quadrifonia (em 5’19” aproximadamente).
Porém, de forma diversa da seção inicial da obra, esta seção principia com um
material de teor associativo que apresenta um caráter mais abstraído2.
É possível perceber o caráter abstraído na referência de um som de trovão que
foi esticado no tempo, sendo que o estiramento temporal de uma fonte sonora conduz
o foco de escuta para aspectos mais internos desse evento sonoro, conferindo uma
orientação extrínseca a este pequeno trecho. Gradualmente, no decorrer da seção, o
material vai se transformando e se tornando mais referencial até o momento final da
obra, quando uma paisagem de um ambiente externo chuvoso é novamente
reconhecido.
Aparentemente não houve utilização de materiais artificiais nesta obra, sendo
empregados sons naturais, processados ou não. A opção por este tipo de material
confere à obra orientação espacial extrínseca ao invés de espectral, pois os
movimentos ou configurações espaciais se baseiam em variações internas mais
orgânicas, originadas pela constituição interna mais “natural” dos sons gravados.
Portanto, fica evidente nesta obra uma exploração do espaço fonte, decorrente das
causalidades inerentes da maior parte do material.
A escuta da obra permite identificar ainda a exploração constante das noções
estruturais de conflito e consonância, bem como de tensão e relaxamento espacial.
Pode-se citar como exemplo básico de consonância e relaxamento a apresentação da
paisagem encontrada na seção final.
A ideia de conflito e de tensão pode ser obtida a partir do uso de trajetórias e
de transformações não usuais para uma vocalização humana, como a textura formada
por sons vocais processados em 1’16” até 1’31”. Esta textura sofre variações espaciais
panorâmicas que desconfiguram qualquer fala humana habitual. Além disso, o caráter
textural deste trecho gera uma expectativa de resolução que ocorre no evento vocal-
gestual em 1’33”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Em referência a ideia de sintaxe abstraída de Emmerson (1986) apontada anteriormente neste trabalho.

305
!

A exploração de alguns outros conceitos espaciais abordados neste trabalho


também se faz presente, podendo ser citada a noção de espaço ilusão que ocorre no
início da obra, com a apresentação de paisagens realistas apenas nos canais frontais.
Também pode ser observado o uso de uma perspectiva aural variável, na qual
mudanças bruscas de cenas auditivas ocorrem, como pode ser percebido na transição
da primeira para a segunda seção. No que se refere ao estilo espacial global, a obra é
constituída de configurações espaciais múltiplas, uma vez que as orientações espaciais
variam constantemente.

“Surface” de Adrian Moore

A obra Surface foi composta em 2008, sendo concebida para a difusão em


uma configuração espacial 7.13, pois esta configuração torna possível a escuta da obra
em ambientes particulares (como na residência do ouvinte) e não apenas em salas de
concerto, o que amplia as possibilidades de percepção das espacialidades da obra.
A composição teve como base a visão do compositor acerca do conceito de
“ambiente” em composição eletroacústica4. Na proposta do compositor, o ambiente
não será definido a partir de abordagens realísticas do material sonoro, como ocorre
na ideia de espaço/paisagem. Para o compositor, o ambiente será constituído pelo
comportamento vivo dos eventos sonoros, sua interação com a cena.
A interação entre os eventos sonoros, constituídos de gestos e texturas, e as
relações entre eles são definidas por ações energéticas, de movimento e variação de
planos focais, fornecendo ao ouvinte a percepção de que os sons “residem” num certo
lugar. Esta configuração resulta ainda em que o ouvinte fique posicionado no meio
desses acontecimentos e os eventos o circundam proporcionando uma sensação de
imersão no local de atuação do material musical. Este modo de utilização do material
indica a aproximação de uma categorização do espaço geral dentro da ideia de
espaço/metáfora.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
Trata de um sistema comercial que busca o “foco na criação de um espaço próprio para consumo
audiovisual que levou a uma abertura no mercado para a adaptação de um protocolo que era já
utilizado nas salas de cinema há algum tempo: o Dolby Surround” (Rua, 2012, p.) O Sistema de
espacialização sonora surround 7.1 é uma expansão do sistema 5.1, surgido a partir do Dolby Surround,
sendo caracterizado pelo uso de 7 canais de áudio independentes e um canal de projeção de graves. É
composto por: canais frontais esquedo central e direito; canais laterais esquerdo e direito; canais
traseiros esquerdo e direito e um subwoofer.
4
cf. nota de programa da obra disponível em http://adrian-moore.staff.shef.ac.uk/music/surface.pdf

306
!

Ao contrário das demais obras estudadas neste trabalho, esta não faz uso de
materiais reconhecíveis, porém podem ser percebidas fortes ligações referenciais
auditivas com causas possíveis, devido ao comportamento orgânico dos sons.
Por meio dos movimentos e dos tratamentos sonoros, o compositor fornece ao
ouvinte uma percepção admiravelmente tátil de fontes sonoras desconhecidas, sendo
possível perceber claramente a materialidade das forças que geram os sons, bem como
causas prováveis. Podem ser citadas associações com ações como pancadas ou fricção,
como causas imaginadas. As trajetórias muito bem definidas, as metamorfoses da
espectromorfologias, as variações de velocidade, e ainda, o uso cuidadoso de planos
focais contribuem para essa percepção de materialidade sonora.
A estruturação geral da obra é baseada numa polifonia complexa carregada de
gestos e, ainda que sejam utilizados os sons texturais, a característica mais marcante
da obra é a sobreposição de diferentes trajetos bem definidas. A alta complexidade de
eventos heterogêneos sobrepostos, apesar de muito energéticos e baseados em trajetos,
torna o tempo não-direcional, pois a alta densidade de eventos torna impossível uma
percepção temporal de um modo linear ou narrativo. O ouvinte se encontra imerso
num ambiente onde todos os acontecimentos são velozes e se movem em todas as
direções.
A concepção da obra em multi-canais realça e dá vida à noção de ambiente,
uma vez que os caminhos sonoros explorados podem ser ocupados por mais eixos
vetoriais que vão além das posições direita e esquerda. A disposição dos alto-falantes
é dada em seis caixas em paralelo e uma no centro e à frente do ouvinte, conforme
demonstrado na Figura 2, apresentada abaixo:

307
!

LFE (surface_LFE.wav)
Centre (surface_C.wav)

Front L (surface_FL.wav) Front R (surface_FR.wav)

Side L (surface+SiL.wav) Side R (surface_SiR.wav)

Surround L (surface_SurL.wav) Surround R (surface_SurR.wav)

Figura 2 - Disposição dos projetores deSurface


som da obra
(2008) eletroacústica
7.1 soundfile and speakerSurface
layout de Adrian Moore (Imagem
informativa fornecida pelo autor via correio eletrônico).

Por ser disposta em multi-canais, esta configuração de projeção favorece a


imersão e, consequentemente, os tratamentos espaciais tridimensionais do material
composicional. O posicionamento de um alto-falante ao centro e na posição frontal
pode fornecer uma informação espacial diferenciada, contribuindo para a noção de
imersão do ouvinte no ambiente, uma vez que este canal proporciona um aumento de
definição das trajetórias que ocorrem na frente do ouvinte (como em 1’56”, quando
um som metálico tem a trajetória da direita para esquerda, passando pelo centro).
A noção de aproximação e afastamento também é realçada pelo uso do canal
central, como em 2’59”, quando um gesto curto parece ser lançado velozmente da
direita para a esquerda, concentrando a sua energia no canal central. A estratégia
resulta na sensação de que o som passa num campo de visão muito próximo ao rosto
do ouvinte, quando tomada a referência à percepção visual. Contudo, cabe ressaltar
que o canal frontal central é usado esporadicamente na obra, principalmente para
gerar uma imagem de proximidade com o ouvinte e dar destaque a um gesto em
particular.
Da perspectiva temporal, a estruturação do espaço desta obra pode ser
relacionada com a noção da metáfora do tempo como força movente, ainda que possa
haver dúvida nesta aproximação. A organização dos materiais a partir do uso de
gestos e movimentos muito energéticos poderia indicar também a caracterização
também como a metáfora do tempo como objetos moventes. Contudo, nesta obra, o
ouvinte não parece ser apenas um observador e sim um habitante deste ambiente que
sofre influências energéticas dos acontecimentos sonoros, mesmo estando numa
posição passiva de escuta.

308
!

Quando considerado o estilo espacial global, o compositor parece manter uma


definição espacial única, pois a noção de ambiente permanece durante toda a obra,
ainda que existam momentos em que a orientação é mais intrínseca do que extrínseca.
As mudanças de orientação percebidas fazem parte do desenrolar dos eventos que
caracterizam o ambiente, como se alguns personagens deste cenário saíssem
temporariamente e o ouvinte experimentasse apenas a existência de um ambiente e a
natureza na qual tais personagens habitam.
Acerca das mudanças de orientação espacial, é possível destacar pontos
estruturais importantes, sendo um deles a orientação espacial mais intrínseca do
material observada nos os primeiros 11 segundos da obra. Esta orientação decorre do
uso de sons texturais contínuos e com poucos eventos sonoros de formatos e
contornos delineados.
Observa-se ainda que a textura global deste trecho é marcada pela soma de
camadas com espectromorfologias diferentes, onde a primeira camada (que começa
num crescendo) tem um morfologia em fluxo, sem altura definida, e se concentra
numa região frequencial média. A projeção de tal textura está concentrada nos canais
frontais esquerdo e direito, não sendo projetada no canal central e estas características
são muito marcantes para a noção de presença. A segunda camada começa em 0’04” e
tem uma característica morfológica que pode ser comparada à pontos luminosos
cintilantes, consistindo em uma textura com ataques transitórios numa região
frequencial aguda. Este evento sonoro fornece a consciência da existência do espaço
na verticalidade.
Por volta de 0’07”, num plano focal mais distante, é possível perceber a
existência de pequenos gestos numa região mais grave, apontando o realce da ideia de
profundidade deste ambiente. Aos poucos a textura fica uma pouco mais forte em
intensidade e tem um aumento energético por variações espectrais que dão a
impressão de movimento. Em 0’12” um gesto mais grave surge em primeiro plano e
parece anunciar forças energéticas que compõem este ambiente. O comportamento
energético de tal evento sonoro não parece ser causado por algum ser vivo, todavia
poderia ser interpretado como algo que sofre influência de alguma força natural, como
um vento, ou outro tipo de força.
Gradualmente novos “personagens” são introduzidos na textura global, alguns
com mais destaques que outros, e sua presença confere mais densidade ao ambiente.
Tais personagens são constituídos por gestos que parecem estar submetidos a forças

309
!

naturais, ou simplesmente “existem” enquanto seres moventes produzindo a sua


trajetória própria.
A característica acima descrita pode ser observada no gesto que ocorre em
0’12”, ou ainda em 1’40”, possuindo micro variações frequenciais internas, trajetória
muito bem definida e localização numa região mais aguda. Os eventos sonoros
gestuais que se apresentam sobrepostos são heterogêneos e muitos sofrem variações
de densidade, foco, tempo ou ainda de trajetória ao longo do tempo. Cabe ressaltar
que tais eventos ainda podem ser reconhecidos como uma variação das mesmas
“famílias” tímbricas que apareceram no ambiente em momentos anteriores.
Ao longo de sua duração, a obra segue com o mesmo comportamento
polifônico, porém nenhum momento será igual ao outro por se tratar da atuação
simultânea de diferentes gestos sonoros em movimento. Esta abordagem permite uma
metáfora do ambiente natural que será sempre reconhecido como o mesmo, existindo
partir das relações entre seres e os eventos naturais que estão em constante mudança.
A percepção de ambiente permanece inalterada, ainda que em breves
momentos ocorram alguns destaques estruturais. Um exemplo pode ser dado em
3’20”, quando uma pequena pausa na polifonia gestual conduz a atenção para uma
textura marcada inicialmente pelos sons transitórios agudos apresentados logo no
início da obra. Esta pausa na polifonia também causa a impressão de esvaziamento do
ambiente, contudo não produz a noção de troca da cena e sim de um momento
espacial diferente do mesmo ambiente em que o ouvinte está inserido. A polifonia
retorna em 3’27” conferindo ocupação ao ambiente.
Outro exemplo de destaque estrutural pode ser observado em 4’46”, quando
um evento sonoro em glissando ascendente surge no interior da polifonia, tornando-se
o foco principal em 4’50”. Tal glissando continua em ascendência até 5’00” e gera
uma sensação de tensão, de expectativa de resolução que ocorre com um gesto
explosivo, em 5’01”, percebendo-se ainda uma certa noção de cadência.
Destaca-se aqui o nível espacial arquetípico decorrente do uso espacial
contemplando um movimento de uso tradicional em música eletroacústica
(crescimento de tensão estrutural seguido de explosão). Após este movimento (em
5’07”) o ambiente passa a ter um comportamento levemente diferenciado em relação
aos, pois os gestos são mais alongados no tempo e separados por distância temporais
maiores, proporcionando a impressão de um novo esvaziamento.

310
!

É possível observar outros conceitos espaciais na estruturação da obra como o


espaço móvel, que se refere a uma categoria de espaço na qual a espacialidade é
definida pela exploração da transformação do material e dos aspectos gestuais. Esta
obra poderia ser um bom exemplo de “estudo cinético”, pois a exploração do espaço
móvel não é fundamentada num realismo ambiental, e sim nas relações interativas
entre os gestos e as texturas não realistas que compõem a cena espacial.
É importante ressaltar que o alto teor de materialidade encontrado nesta obra
difere da noção de realismo, pois a materialidade é realçada pela percepção de
aspectos de superfície, comportamento e de movimento dos eventos sonoros que são
baseados numa experiência que não é necessariamente sonora.
O realismo é dado pelo reconhecimento mais direto do material, em termos de
natureza, de ligação direta com a fonte real, bem como da imagem imediata do objeto
ou ato provocada na escuta. Uma abordagem realista é baseada no natural e fazendo
também uso da materialidade do evento sonoro enquanto uma abordagem mais
materializada do evento não obrigatoriamente fornecerá pistas acerca de objetos reais
e conhecidos, podendo ser baseada apenas na imaginação.
A exploração do espaço móvel em Surface tem o movimento gestual como
base de sua construção, não apenas a constituição de texturas ou posicionamentos
estáticos, o que fornece uma perspectiva aural móvel, como já referido anteriormente.
A partir da escuta analítica de Surface é possível perceber um uso intenso de
concepções do espaço como um elemento musical, assumido também grande
importância estrutural resultando em uma escuta materializada dos eventos sonoros
além de proporcionar uma experiência temporal que está subordinada às explorações
espaciais do material.

“2261” de Mario Mary

A obra 2261 de Mario Mary foi composta em 2009 para difusão em octofonia,
sendo as caixas de projeção dispostas em círculo e numeradas em pares. Esta é uma
configuração de espacialização mais clássica que permite a exploração de trajetos em
diferentes posições espaciais dos eventos sonoros.
O material sonoro empregado consiste, em sua maioria, de eventos sonoros
não reconhecíveis. O uso de material não reconhecível pode conduzir à uma
percepção espacial mais abstraída, metafórica, ou ainda artificial.

311
!

Antes de definir e demonstrar quais abordagens espaciais foram exploradas, é


importante considerar a estratégia composicional empregada na construção da obra.
Acerca desta, o próprio compositor (Mary, 2013) informa que usou recursos
composicionais concebidos por ele como “orquestração eletroacústica” e “polifonia
do espaço”.
O conceito de orquestração eletroacústica se refere à combinação espectral
com o objetivo de formar um todo auditivo, incluindo as concepções de fusão e fissão
espectral. O conceito de fusão é relativo à percepção de dados espectrais que são
ouvidos como um todo enquanto a fissão ocorre quando os componentes de um
espectro são percebidos individualmente quando tocados em simultâneo, ou seja, não
se integram na percepção5.
Além das noções de fusão e fissão espectral, o conceito de orquestração
eletroacústica também inclui a ideia de timbre complexo, referindo-se à superposição
de timbres com identidades distintas. São timbres mais simples que o autor denomina
como timbres parciais, possuindo identidades diferentes, e apresentando evoluções
temporais espaciais próprias6.
O conceito de “polifonia de espaço” empregada pelo autor faz referência à
evolução espacial simultânea e independente de vários elementos que, para serem
percebidos enquanto polifonia, devem ser identificados individualmente além de ter
trajetórias com rotas claramente distintas umas das outras.7
Esta abordagem quase instrumental da organização do material musical
fornece uma visão fundamentada na escritura, onde o espaço é um aspecto essencial,
devendo ser tratado com atenção para que os resultados de fusão, fissão ou polifonia
estejam bem definidos na escuta. Nesta abordagem, a posição dos sons individuais
que compõem os timbres complexos pode gerar uma escuta tridimensional dos
eventos sonoros resultantes, enquanto as trajetórias com direções e velocidades muito
bem definidas proporcionam uma riqueza para a polifonia.
Na escuta da obra 2261 é possível perceber o uso escritural do espaço, tendo
como função realçar a orquestração, ou ainda a polifonia. É uma abordagem espacial
concebida em termos e volumes, trajetos e planos, constituindo uma ideia de nível
espacial abstrato. Neste caso, o espaço não é necessariamente trabalhado de maneira

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Id., 2011
6
Ibid.
7
Id., 2013

312
!

realista, mas sim colocado a serviço de uma construção espacial baseada numa sintaxe
abstrata.
A obra é muito rica em exemplos de orquestração eletroacústica, sendo que a
noção de fusão é muito aparente nos momentos em que a soma de diferentes timbres
de sons percussivos é percebida, na escuta, como um único evento sonoro. Os ataques
percussivos aparecem em diversas situações (1’00”, 2’14”, 3’02”, 3’09”, 3’34”, 4’07”,
entre outras).
Estes ataques soam como se algum objeto tivesse sido percutido por algum
material (baqueta de madeira ou metal). Um número expressivo dos ataques é
difundido simultaneamente em todos os canais e, se ouvidos separadamente, cada
canal projeta um timbre diferente, porém, todos os sons projetados possuem o
comportamento morfológico muito semelhante, produzindo na escuta um único som
que ocupa todos os lugares.
Além da ideia de fusão, a projeção de materiais sonoros em vários canais
fornece uma percepção de um objeto sonoro de magnitude e área maiores em relação
ao mesmo objeto projetado em um número menor de canais. Como exemplo, os
ataques observados aos 6’36” possuem uma extensão menor, pois, além de não serem
os únicos materiais do trecho, são difundidos apenas em alguns canais o que diminui a
área de projeção que compõe o evento sonoro.
Logo na parte inicial da obra, em 0’06”, também é possível reconhecer um
trabalho de orquestração, com a repetição da primeira morfologia apresentada. Esta
repetição é projetada apenas nos canais traseiros (canais: 5, 6, 7, e 8), sendo que, após
o ataque, uma nova textura surge rapidamente nos canais 2 e 3, possuindo um timbre
diferente daquela projetada nos canais traseiros. Mesmo com esta diferença ela se
funde de tal modo que é percebida como uma reverberação da morfologia apresentada
anteriormente.
Aos 4’20” outra abordagem de orquestração pode ser percebido quando ocorre
um ataque percussivo simultaneamente em todos os canais e cada canal projeta um
timbre diferente, resultando numa percepção global de um timbre único. Logo após o
ataque, as continuações dos sons em cada canal são muito heterogêneas, e a
sobreposição destes diferentes eventos forma uma textura muito complexa, percebida
como um evento global de movimento interno. Essa fusão tem duração muito curta
(aproximadamente 1”), sendo que nos momentos seguintes o desenvolvimento

313
!

comportamental heterogêneo de cada camada proporcionará um aspecto mais


polifônico.
A polifonia do espaço também é muito evidente ao longo da obra e muitos
momentos estruturais são constituídos pela sobreposição de eventos sonoros
heterogêneos, tanto em sua constituição tímbrica quanto em seu aspecto espacial. O
trecho que vai de 3’06” até 4’07” é marcado por muitos movimentos internos além do
uso de diferentes volumes e planos. São observados golpes percussivos de timbres
metálicos que interagem com gestos circulares ou cíclicos (exemplo em 3’31”) além
de atuarem sobre um evento sonoro mais textural e movente, com oscilações rápidas
de altura.
Não resulta muito claro se a abordagem espacial dos eventos sonoros teve um
uso estruturante na forma global da obra, contudo o uso diferenciado do
comportamento dos eventos sonoros que definem novas seções proporciona uma
escuta distinta dos aspectos espaciais em cada trecho. Ocasionalmente a mudança de
comportamento global dos eventos sonoros, num determinado trecho, também é
marcada pela variação da orientação.
O trecho que vai do início da obra até 1’17” poderia ser considerado como
uma introdução da peça, sendo marcado por duas orientações espaciais diferentes.
Inicialmente, nos canais traseiros, sons repetitivos e espaçados no tempo são
acrescidos de texturas mais longas, além de gradualmente haver uma projeção de
eventos nos canais mais centrais. Este trecho propicia uma noção de não
direcionalidade, decorrente do uso de texturas contínuas marcadas por crescimento
gradual, podendo se afirmar que a orientação espacial é intrínseca, definida pelo foco
interior do evento sonoro.
Em 0’59” a textura espectral se torna mais densa, crescendo velozmente até
resultar num ataque que ocorre por volta de 1’00”. Este ataque muda
instantaneamente a orientação de intrínseca para extrínseca, pois no momento
seguinte é apresentada a sobreposição de gestos, ataques e texturas que configuram a
polifonia.
O trecho que vai de 1’18” até 2’24” é marcado pelo uso de um material
tímbrico específico além da polifonia de espaço e a sobreposição de gestos e ataques
heterogêneos (até 1’22”) gera um gesto global que impulsiona o tempo para o
momento seguinte, onde se iniciará o desenvolvimento da polifonia. O gestos
distintos são separados temporalmente e projetados em diferentes posições espaciais e

314
!

ao fundo tem-se texturas contínuas em camadas servindo de plano de fundo para os


ataques.
Em alguns momentos surgem gestos com trajetórias circulares (como aos
2’00”) que se destacam na cena. Neste trecho a predominância é do desenvolvimento
dos eventos texturais e dos ataques espaçados no tempo, mesmo que existam gestos
contrapondo esta ambiência. Ou seja, a polifonia aqui é menos densa que no trecho
anterior e marcada por uma ideia de tempo menos impulsionado, realçado por pontos
espaciais esparsos.
O trecho seguinte (de 2’24” até 3’03”) tem o conteúdo morfológico e espectral
bastante diverso do anterior e se caracteriza pela predominância de texturas mais
graves e agitadas (semelhante a trêmolos não-periódicos), com movimento mais lento.
São acrescentadas algumas trajetórias espaciais (como em 2’30”), frequentemente
mais estendidas temporalmente, diferentemente dos ataques do trecho anterior. Os
trechos que seguem são desenvolvimentos da ideia de polifonia espacial ou de uma
organização mais textural. Cada trecho que compõe a obra foi separado pelos golpes
percussivos resultantes dos processos de orquestração comentados anteriormente.
São identificados seis trechos que possuem tratamentos morfológicos e
tímbricos diversos dos materiais, gerando contextos composicionais específicos, o que
pode ser exemplificado pelos diferentes contrapontos gestuais ou trechos mais
texturais. Os trechos característicos indicados neste trabalho foram os seguintes:
• De 1’18” até 2’23”: Polifonia pouco densa. A predominância é do
desenvolvimento dos eventos texturais e de ataques espaçados no tempo,
mesmo que existam gestos contrapondo esta ambiência.
• De 2’24” até 3’03”: Possui conteúdo morfológico e espectral bem diferente do
trecho anterior. O trecho é caracterizado pela predominância de texturas mais
graves e “sacudidas”, semelhante a um trêmolo não-periódico, que tem
movimento mais lento. São acrescentadas algumas trajetórias espaciais (como
por exemplo em 2’30”), frequentemente mais estendidas temporalmente,
diferente do que ocorre nos ataques do trecho anterior.
• De 3’04 até 4’06. A mesma textura “sacudida” deste trecho é sobreposta a
outros gestos com trajetórias mais perceptíveis (como um caminho circular
que ocorre 3’38) e ataques (semelhantes a pancadas em objetos). Estas
sobreposições tornam a polifonia um pouco mais densa.

315
!

• De 4’07” até 5’46”: polifonia mais densa e carregada de trajetórias e


morfologias gestuais heterogêneas.
• De 5’47” até 7’16”: trecho caracterizado por um ambiente de textura mais lisa,
marcada por altura aguda contínua e desenvolvimento lento, com pouca
direcionalidade.
• De 7’17” até 10’25”: uso de textura lisa com variação frequencial, fazendo
contraponto com diferentes trajetórias.
• De 10’26” até 10’51”: trecho final da obra. Este fragmento contém uma
textura em fluxo sem trajetória definida. O uso mais textural desta parte, por
não possuir uma trajetória, fornece à percepção uma noção de espaço vazio e
profundo ou ainda de “pulverização” de toda energia (fornecida por um
tratamento polifônico do material) explorada ao longo da obra.

A imagem abaixo (Figura 3) representa a forma encontrada na escuta analítica


com a suas devidas proporções de uso de abordagens do material. Para facilitar a
leitura a figura foi dividia em duas partes.

!
Figura 3 - Forma encontrada na escuta analítica de 2261 de Mario Mary.

316
!

Sobre outros aspectos do tempo e espaço, é possível afirmar que a exploração


temporal obra é predominantemente baseada na metáfora do tempo como objeto
movente, uma vez que o ouvinte é um observador dos trajetos que o cercam.
Acerca do estilo espacial global, observa-se que a obra é constituída de
configurações espaciais múltiplas, sendo que cada configuração ocorre nos trechos
descritos anteriormente. O conceito de espaço geometria também parece pertinente à
obra, considerando sua organização baseada em volumes e formatos sonoros
definidos por trajetos identificáveis. Considerando a disposição orquestral dos timbres
eletroacústicos, também é aplicável o conceito de espaço arquitetural no qual
diferentes superfícies são constituídas pela soma de diferentes classes de materiais
sonoros.

“Dreaming in Darkness” de Åke Parmerud

A obra Dreaming in Darkness de Åke Parmerud, composta em 2005, foi


concebida para ser difundida em 6 alto-falantes, dispostos em pares, circundando o
público. Conforme a nota de programa8, o compositor revela que esta obra é uma
tentativa de representar “fragmentos surrealistas de sonhos de pessoas cegas”. Os
surrealismos são obtidos com a transformação gradual do material referencial e
identificável em um material musical abstrato.
A abordagem espacial também vai se alterando no decorrer da obra, sendo que
a primeira parte é constituída por paisagens espaciais realistas e miméticas que se
tornam artificiais por meio da transformação do material. A orientação predominante
é extrínseca, mesmo nos momentos onde o material musical abstrato foi utilizado. A
obra apresenta também variação de um nível espacial figurativo nos momentos de
materiais reconhecíveis, para um nível espacial mais ornamental, no momento onde
foi empregado material mais abstrato ou abstraído.
No momento mais mimético da obra, o compositor apresenta diferentes
imagens de espaços reais alternados pelo abrir e fechar de uma porta, como no trecho
que vai 0’00” até 0’45”onde é realizada uma alternância entre ambientes externos e
internos. As imagens de exterior e interior são formadas a partir do uso de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Disponível no site pessoal do compositor em http://www.parmerud.com/MediaArtist/Dreaming.html

317
!

reverberações provenientes de construções das cenas em diferentes planos e os sons


de passos representam o elemento de ligação entre os ambientes.
Quando estes sons são mais secos, com pouca reverberação, indicam um
ambiente interno que se encontra delimitado por materiais não reflexivos. Quando os
sons possuem maior reverberação indicam um ambiente mais amplo, porém também
delimitado. Quando o som de passos se torna granular, como pisadas em pedras ou
poças d’água, pode indicar referências sobre um ambiente ao ar livre.
O trecho que vai de 0’00” a 0’20”, sugere um ambiente interno, mais próximo
do ouvinte, não consistindo em uma cena necessariamente real, porém plausível à
imaginação devido ao uso de sons realistas. Neste trecho ocorre a primeira noção de
aproximação, quando três toques de campainha são ouvidos em sequência, sendo cada
repetição é mais forte do que a anterior, como se o ouvinte estivesse em aproximação
com aquela fonte. A noção de aproximação também tem o efeito de delimitação de
uma perspectiva de profundidade para o espaço.
Aos 0’11”, sons secos de passos se aproximam através de uma trajetória
oriunda dos canais traseiros para os frontais, delimitando a ocupação tridimensional
do ambiente de escuta. Os passos seguem até o momento de abertura de uma porta em
20”. Abre-se uma porta e é possível perceber um ruído de fundo, somado a sons de
pássaros ao longe, sugerindo a imagem de um ambiente exterior.
Quando a porta se fecha (em 0’25”) o ambiente fica novamente seco e sem
ruído de fundo e neste momento o ambiente só é “observado” através da porta que
separa os dois ambientes. Esta percepção espacial aparenta estar relacionada com a
ideia de espaço ilusão gerando predominantemente em um ambiente estereofônico.
Em seguida (em 0’26”), os passos são percebidos com mais reverberação,
como se estivessem mais distantes do ouvinte, porém em uma área delimitada,
segundo até a abertura e fechamento de porta (em 0’33”). De 0’33” a 0’38”os passos
são ouvidos ainda mais distantes que o anteriores e estão mais velozes (como se
estivessem correndo), além de contarem com um pouco mais de reverberação.
Na abertura e fechamento da porta em 0’33”, a espacialização não condiz com
uma situação realista, o que pode ser observado pela emissão de um som de abertura
da maçaneta que é dado no canal 3 e a batida que a fecha no canal 5.
Durante a sequência da abertura de portas, os sons de passos parecem ser
submetidos a um processo de filtragem espectral, resultando mais abafados, como se
ouvidos em ambiente distinto daquele onde acontecem. O ambiente muda novamente

318
!

em 0’42” (também com o som da porta), sendo marcado pela variação do timbre dos
sons de passos, agora mais granulares, como se pisassem em cascalho ou água. Estes
passos se tornam acelerados como se estivessem “correndo” até o som de fechamento
de porta em 0’44”.
A partir deste momento a abordagem da narrativa dos ambientes muda,
tornando-se mais surrealista, abstraindo-se de forma gradual. No trecho que vai de
0’44” até 1’07”, a abordagem espacial começa a mudar, pois o estiramento temporal
do som do ranger da porta muda o foco referencial para uma orientação intrínseca (até
1’07”). O contraponto espacial, elaborado com a sobreposição de sons de abertura de
porta (em 1’00”), a projeção de cada som em diferentes canais e com ritmos
diferentes também resulta na perda da imagem de uma paisagem realista. A ausência
dos sons de passos neste pequeno trecho, contribui para a noção de surrealismo.
Uma imagem natural é rapidamente retomada no trecho que vai de 1’08” até
1’25”, a partir da composição de uma cena externa resultante do uso de sons de
pássaros, conversas, risadas e música ao fundo. Mas, esta referencialidade é perdida
rapidamente com o surgimento de uma textura granular que cresce em intensidade até
culminar em uma batida de porta em 1’25”, onde outro ambiente é apresentado.
Neste momento da obra os ambientes espaciais se afiguram ainda mais
oníricos, pois cada cena se apresenta mais irreal, sofrendo o efeito adicional das
transições repentinas que configuram uma situação irreal. De 1’25” até 3’17” o
compositor manipula sons reconhecíveis que representam ambientes específicos,
como água, tique-e-taques de relógios sobrepostos com sons de roncos. Os elementos
reconhecíveis vão se sobrepondo temporalmente de modo a gerar uma textura ou
contraponto mais abstraído. Também sofrem alterações espectrais perdendo a sua
referencialidade extrínseca (por exemplo, o som de água se torna uma textura com
ataques muito curtos em 3’02”) .
Em 3’18” o ambiente já se encontra marcado por um desenvolvimento lento
do material, alterando novamente o foco para uma orientação intrínseca. A textura
global contém, inicialmente, sons naturais tais como rãs somados a um ruído de fundo
contínuo, que é presente, mas não apresenta mudança significativa de região
frequencial. A dinâmica total varia muito pouco neste trecho, o que fornece uma
noção da metáfora do tempo transparente, ou seja sem uma evolução para o presente
ou para o futuro.

319
!

Aos 3’38”, são adicionados gradualmente a essa textura pequenos acentos ou


gestos que vão ocupando o espaço, sendo que esta intervenção de gestos e ataques no
ambiente começa a alterar o seu interior. A metamorfose é gradual e o movimento da
textura global é muito lento, seguindo até 5’53”.
Observa-se que a organização da obra se torna totalmente não referencial a
partir deste ponto, pois o trecho começa vazio e recebe gradualmente elementos de
composição como pequenos ataques e movimentos gestuais. Aos 6’42” uma primeira
aparição de um material de rítmica marcada é adicionada e até aproximadamente 9’46”
a textura global vai sendo acrescentada de elementos abstratos, com marcação rítmica
distinta, mudando o caráter da obra.
O caráter fica definido pelo uso de elementos musicais tradicionais, com
ritmos marcados, porém com exploração tímbrica eletrônica. Muitos dos sons usados
anteriormente nos ambientes realistas se tornaram divisões rítmicas ou tratamentos
abstratos. Pode-se citar como exemplo os sons de portas funcionando ritmicamente
em 8’55”.
Um clímax ocorrer aos 9’00”, em virtude da complexidade de contrapontos e
polifonia decorrentes do uso de sons com intensidade mais forte em relação a outros
momentos da música. A orientação espacial se apresenta extrínseca, por ser marcada
pela percepção das características externas das interações entre os sons. São relações
definidas pelas trajetórias e posições do material, bem como pela relação de divisão
rítmica e pela polifonia do material eletrônico.
Por volta de 9’34” observa-se uma redução gradativa na complexidade da
textura, bem como a conversão da rítmica predominante em morfologias com rítmicas
não marcadas. Em 10’01”, as morfologias já estão mais destacadas do que as divisões
rítmicas, sendo também mais espaçadas temporalmente e se tornando mais lentas.
Aos 10’50” um som de abertura de portas marca o período de encerramento da
obra, onde são apresentados elementos reconhecíveis de partes anteriores da obra
(como sons de relógio, sino, pássaros e abrir e fechar de portas), porém com
espaçamento temporal mais curto, como se fora uma textura contrapontística de
sobreposição dos ambientes referenciais apresentados no começo da obra.
A imagem abaixo (Figura 4) ilustra a um resumo da descrição da forma desta
obra encontrada na escuta analítica. Os termos descrevem os principais
comportamentos dos materiais explorados ao longo das seções.

320
!

!
Figura 4 - Forma encontrada na escuta analítica de Dreaming in Drakness de Åke Parmerud.

Esta descrição da estruturação da obra fornece algumas pistas acerca da


abordagem do espaço empregada nesta composição. O estilo espacial global é
marcado por configurações espaciais múltiplas, intercaladas no decorrer da peça. O
compositor varia a noção de interior e exterior de um espaço referencial, bem como a
orientação de extrínseca para intrínseca. Observa-se ainda que o discurso vai do
mimético ao abstrato, passando pelo abstraído.
Percebe-se uma estruturação do espaço do tipo espaço/paisagem inicialmente,
contudo gradualmente são introduzidas noções metafóricas até a conversão em um
espaço artificial.
São explorados ainda elementos de dissonância espacial, como o uso da
rítmica feita em 8’55”. O espaço recebe também níveis ornamentais no trecho mais
abstrato (aproximadamente em 9’00”), quando as posições ou trajetos não parecem
afetar a estrutura, mas sim realçar certos eventos rítmicos ou tímbricos específicos.
Esta obra contém ainda muitos detalhes de uso espacial que demandariam
mais escutas para um melhor detalhamento e descrição. A escuta analítica realizada
para este trabalho permitiu identificar a exploração da alternância de diferentes
abordagens espaciais, bem como a mudança gradual da perspectiva aural total gerada
pela mudança de abordagem do material musical.

“Human-Space Factory” de Hans Tutschku

A obra Human-Space Factory foi composta em 1999 e, como boa parte de


obras em multicanais, é configurada para ser difundida em oito canais dispostos em
pares. O material sonoro é composto de sons reconhecíveis, predominando sons de
fábrica e vozes humanas, bem como de sons não reconhecíveis com aparente origem
no processamento dos sons gravados.

321
!

As abordagens do espaço na obra são perceptíveis na espacialização de


trajetórias e posicionamentos dos eventos sonoros, bem como das transformações
espectrais, demonstrando um uso estrutural das diferentes abordagens do espaço. A
estrutura geral da obra está dividida basicamente em três seções que são marcadas
pelo uso diferenciado do material. A primeira vai de 0’00” até 4’38”, a segunda de
4’39” até 8’29” e a terceira de 8’30” até 12’48”.
A primeira seção é predominantemente marcada pela evolução gradual de um
material com característica mais textural, disposto em um fluxo contínuo de
acontecimentos no qual ocorrem com intervenções mais ou menos periódicas de outro
material contrastante, de natureza gestual. É possível identificar três partes diferentes
nesta seção: uma introdução (de 0’00” até 0’33”); a primeira parte (de 0’34” até
2’38”) e a segunda parte (de 2’38” até 4’38”).
O trecho introdutório é iniciado com uma textura em fluxo em crescendo,
composta de duas camadas tímbricas, uma numa região frequencial muito aguda e
outra numa região mediana. Com esta configuração é possível fazer uma associação
de um timbre vocal na camada de frequências médias, como se fosse a vogal “a”,
contudo se trata de um som está “congelado”, não permitindo a caracterização de
nenhuma pronúncia vocal.
A camada que se localiza na região mais aguda preenche um espaço espectral
mais alto, proporcionando uma noção da existência de uma região espacial superior,
como se fosse um “teto”. A textura mais aguda é projetada com a mesma proporção
em todos os canais enquanto a textura mediana varia em intensidade nos canais em
tempos diferentes, reforçando um aspecto de animação e de tridimensionalidade do
espaço.
Como o material utilizado não possui variações espectrais significantes, o
resultado é uma impressão de um tempo estático, possibilitando uma referência com a
metáfora do tempo transparente. Adicionalmente a textura estática também
desempenha a função de tornar perceptível uma “presença” espacial, sendo que o
espaço gerado engloba o ouvinte, porém não exerce “força” sobre ele, apenas
informando que o ouvinte habita este “lugar”.
Em 0’05” é acrescentada uma camada mais grave e mais gestual, com
comportamento espectral mais ruidoso e em fluxo, semelhante às outras camadas,
porém disposta em um plano focal mais fraco. Trata-se de um evento que possui

322
!

aspectos gestuais marcados por variações de intensidade em rápidos crescendos e


decrescendos, assemelhando-se ao comportamento de ondas.
É possível perceber trajetórias neste evento, contudo não são muito definidas
devido à sua composição espectral grave e ruidosa. Tal material aparece e desaparece
com uma certa periodicidade. Estes trajetos e comportamento de tal evento fornecem
agora uma ideia de movimento interno da textura global.
Gradualmente essa textura global cresce em intensidade e na velocidade dos
movimentos, marcados pelas variações de intensidade, resultando em maior
movimento interior de todo ambiente englobante. O aumento de intensidade fornece
uma tensão estrutural (gerando uma expectativa de resolução) e a tensão aumenta com
a inclusão de outra camada de sons vocais estáticos numa região um pouco mais
grave do que a região das frequências médias (em 0’24”). Os sons vocais adicionados
são ainda mais associativos do que os da região média devido à sua constituição
frequencial.
A tensão decorrente do crescimento da textura é “resolvida” estruturalmente
(em 0’30”), num decrescendo que resulta em um novo som que tem trajetória circular
definida e uma morfologia que gera associação com um movimento causado pela
manipulação de objeto metálico.
Os eventos descritos nestes primeiros segundos da obra são demonstrativos da
variação de orientação espacial, pois num primeiro momento o aspecto estático e de
desenvolvimento lento atrai a atenção da escuta para a interioridade do ambiente. Ao
contrário, o aumento de tensão gerado pelo aumento de intensidade e acréscimo de
camada, juntamente com a resolução provida pelo som gestual, desvia, quase que
imediatamente, o foco para uma orientação extrínseca. Este momento de contraste de
material e de comportamento dos eventos sonoros também serve como uma
apresentação dos dois “mundos” sonoros explorados: o humano e as máquinas, ou
objetos em movimentos.
É possível perceber através da escuta que a primeira seção da obra tem a
predominância de uma ideia específica: a orientação intrínseca de certos eventos
sonoros será entrecortada com certa periodicidade por materiais de orientação mais
extrínseca, caracterizando um estilo espacial global constituído de espaços múltiplos
intercalados. Outro conceito aplicável aqui é o de perspectiva aural variável, onde a
perspectiva varia entre o móvel e o fixo.

323
!

As duas subdivisões se seguem nesta seção apresentam comportamento geral


do material similar à introdução, com orientações espaciais intercaladas, contudo são
utilizados materiais diferentes e com variações. As referências dos diferentes espaços,
proporcionados por materiais reconhecíveis (humano e máquina), continuam a ser
exploradas. De forma similar aos segundos introdutórios da obra, a primeira parte (de
0’33” até 3’38”), também é composta por texturas estáticas entrecortadas por eventos
gestuais breves. As texturas apresentam timbres diferentes daqueles usados no início,
porém induzem a mesma noção de tempo transparente.
Seguindo o gesto que serve de transição da introdução para a primeira parte
(em 0’34”) ocorre a revelação de uma textura estática, mais fraca em intensidade,
contrastando com o som anterior que é forte, movente e direcional. Tal textura assume
a função de reverberação do ataque metálico resultante do gesto de transição,
fornecendo uma noção de esvaziamento do espaço global e de repouso do momento
energético precedente. A ocorrência de um espaço “vazio” e reverberante novamente
indica a orientação intrínseca.
A reverberação segue até 0’38”, quando um novo gesto rápido “invade” esse
vazio espacial fornecendo a referência a algum objeto em movimento com trajetória
circular, resultando em um ataque metálico em 0’40”. Tal ataque é seguido por uma
nova reverberação, com timbre diferente da anterior, que torna a “esvaziar” o espaço
global, contudo gerando a percepção de um ambiente sonoro diferente.
A primeira parte da primeira seção prossegue com o padrão de ambiente
reverberante, interrompido por ataques curtos recorrentes, espaçados temporalmente,
que mudam o timbre da reverberação. Os ataques geralmente estão numa região mais
grave e com alguma reverberação, dificultando uma localização espacial precisa.
Reforça-se que durante os golpes o espaço tem orientação extrínseca por sugerir uma
causa provável, contudo o acréscimo da textura conduz o foco para o intrínseco. Os
ataques sofrem variações nas suas aparições e, em alguns casos, possuem uma rápida
trajetória como, por exemplo, em 1’10”.
Por volta de 1’12”, os ataques continuam ocorrendo, porém sem interrupções
da textura contínua, resultando em interações entre os ataques e a textura num mesmo
ambiente da composição, como numa cena espacial, sendo que os espaços se tornam
simultâneos ao invés de intercalados.
Na medida em que esta primeira parte avança no tempo, a textura contínua e
os ataques constantes sofrem variações graduais em seu conteúdo espectral. Algumas

324
!

das variações da textura apontam discretamente para um timbre semelhante ao vocal,


como em 1’49” quando é possível reconhecer um evento sonoro que pode ser
associado a um “coro” de vozes entoando a letra “e”. Este timbre vocal se encontra
espalhado nos canais e não possui uma trajetória definida, configurando ainda um
momento textural mais estático da obra, no qual existe referencialidade.
Embora o som vocal seja reconhecível, a textura estática fornece uma
percepção de espaço não realístico, e sim de surreal e imaginado. Esta abordagem
poderia ser relacionada à ideia de espaço/metáfora, por este não estar ligado a um
realismo, mas sim à configuração interna do evento sonoro em questão.
A seguir, em 2’11”, o tempo gradualmente se torna mais movente com
transformação e aceleração dos materiais. Ocorre uma noção de adensamento da
textura decorrente do acréscimo de algumas camadas que, juntamente com o
movimento, fornece uma escuta de preenchimento espacial.
As diferentes camadas da textura possuem movimentos espaciais e espectrais
diferentes entre si, aumentando a tensão do trecho e, ainda que se observe um
aumento de movimento, o trecho ainda se desenvolve com pouca velocidade, com o
foco mais intrínseco do que extrínseco, pois as camadas se movimentam nos canais
reforçando um caráter imersivo no trecho.
Os elementos vocais se tornam mais perceptíveis, contudo ainda são apenas
sugestões, pois o formato dos eventos é diferente dos que são próprios de
vocalizações características humanas. Os ataques continuam a ocorrer
simultaneamente, mas com espaços temporais menores e aperiódicos, aumentando a
sensação de tensão.
Então, com um aumento rápido da densidade, em 2’37”, a textura global
funde-se num único gesto denso e mais opaco que novamente “resolve” a tensão
estrutural deste trecho. É um gesto que cresce rapidamente em intensidade conferindo
uma velocidade que “empurra” o tempo para o próximo trecho. Mais uma vez a
orientação intrínseca é rapidamente conduzida para uma orientação extrínseca.
Este gesto veloz tem função de “disparar” uma nova parte da seção que inicia
em 2’58”. De forma similar à parte anterior, mas com outros sons, uma textura fraca e
contínua dá a noção de esvaziamento do espaço que novamente evolui através da
interpolação de espaços diferentes.
Este espaço será caracterizado por uma textura contínua e em fluxo,
intercalada por um evento que representa um espaço movente e denso. No trecho que

325
!

antecede a esta parte, a textura contínua era intercalada por ataques percussivos ou
gestos rápidos de sons que pareciam de objetos, representando um espaço percebido
como próximo ao ouvinte. Agora, o evento sonoro intercalado à textura contínua não
possui ataque gerador, sendo constituído de densidade de elementos e movimentos
internos. Ao ouvir repetidamente a obra, constatou-se que se tratam de recortes em
fragmentos de uma textura maior que será apresentada adiante.
Os eventos sonoros decorrentes dos fragmentos são apresentados
periodicamente, de forma análoga aos ataques que ocorrem na primeira parte dessa
seção. Na medida em que são apresentados, a sua duração é ligeiramente aumentada
de forma que, gradativamente, se torna possível a percepção de que se trata da
representação de uma paisagem espacial mais complexa. Tal paisagem é constituída
por eventos sonoros reconhecíveis que trazem à percepção a imagem de uma feira-
livre (por volta de 3’28”), possivelmente no Brasil, devido à língua e expressões
ouvidas.
A textura contínua, é o outro dado espacial que é intercalado com os
fragmentos da paisagem. Esta textura contínua em fluxo que compõe o espaço deste
trecho é englobante e principia mais fraca, como nas partes anteriores, o que produz
uma a impressão de vazio espacial. Mas durante o seu desenvolvimento vai sofrendo
mutações graduais, além de receber elementos humanos reconhecíveis, como os sons
de passos que ocorrem em 3’21”.
Ainda neste trecho, as diferentes configurações espaciais novamente
abandonam o seu caráter intercalado passando a ser simultâneas por volta de 3’18”,
quando uma textura de vozes (do tipo “multidão”) surge ao fundo da textura mais
contínua, contudo os fragmentos continuam a surgir com duração cada vez maior.
A seguir, os dois ambientes (de máquinas e humanos) vão se sobrepondo em
espaços simultâneos, crescendo em intensidade e movimento, causando novamente
uma tensão estrutural. Convém destacar que a distribuição da textura que gera a
imagem da feira livre nos oito alto-falantes valoriza a noção de espaço tridimensional,
resultando em uma com maior verossimilhança, ou seja, maior proximidade com a
realidade. Porém não se trata de uma imagem totalmente realista, pois está sobreposta
a outra espacialidade marcada por uma textura contínua mais lisa, uma espécie de
ruído de fundo. Esta simultaneidade de espaços é bem perceptível do trecho que vai
de aproximadamente 3’40” até 4’39”.

326
!

A tensão estrutural segue aumentando (de forma semelhante às partes


anteriores) com o adensamento da textura e aumento da intensidade de seus
componentes. Gradativamente, as vozes se tornam mais preponderantes sobre a
textura contínua, fazendo referência à paisagem real de uma feira. As vozes não se
apresentam espacializadas de modo totalmente realista, mas ainda assim a
referencialidade do material realça a imagem da referida feira.
A referencialidade neste trecho novamente aponta para uma orientação
extrínseca e a sobreposição das diferentes vozes (palavras e vocalizações diversas)
vão se adensando até se fundirem em 4’39” no foco da fala de apenas um homem: “...
e cinquenta, o peixe”. Aqui o ambiente espacial muda bruscamente, pois a fala é
difundida mais fortemente que a textura global, sendo que o trecho poderia ser
comparado a um close-up repentino em um filme, onde a imagem de apenas um
homem se destaca numa multidão. Portanto, o espaço deixa de ser de uma cena e
passa a ser um espaço pessoal.
Depois deste gesto tem início a segunda seção (de 4’39” até 8’29”),
observando-se um tratamento diferenciado do material em relação à primeira seção.
Esta segunda seção é caracterizada por uma polifonia elaborada a partir de
contrapontos gestuais, com trajetórias mais definidas e exploradas e o espaço é mais
gestual (ligado à causas reconhecidas ou imaginadas). Em uma parte expressiva da
execução o ouvinte está no centro observando, ao invés de ser envolvido por texturas
contínuas, ainda que as texturas contínuas ocorram em alguns momentos. Esta
concepção mais gestual “empurra” o tempo para frente, ao contrário do uso de um
tempo mais estático na seção anterior.
O início da segunda seção tem ainda uma característica envolvente e textural,
com certo movimento interno marcado por variações de intensidades e ataques
esporádicos, com posicionamentos ou trajetórias não definidos. A textura é composta
de camadas de timbres e comportamentos internos diferenciados, constituindo uma
cena espacial que não é real, sendo que uma das camadas é composta de pequenos
ataques curtos, espalhados nos canais, conferindo a sensação de pontos que “piscam”.
Esta espacialização envolve o ouvinte, sendo mais ambiental que gestual,
contudo gradualmente a textura cresce e serão acrescentados ataques e trajetórias em
4’57”. São trajetórias sobrepostas à textura, conferindo novamente uma noção de
espaços simultâneos.

327
!

Em 5’07” a textura cessa e trajetórias definidas movimentam-se no espaço


vazio, ou seja, no silêncio. Os gestos são constituídos de timbres metálicos, como se
fossem engrenagens de uma máquina ou ainda roldanas, tendo trajetos definidos,
unidirecionais sendo circulares ou transversais. Os gestos serão sobrepostos em
contraponto, porém sua família tímbrica é semelhante, reconhecida por sua superfície
mais dura e áspera, como objetos de metal.
Neste momento o ouvinte encontra-se no meio de movimentos que o
circundam em sentidos mais variados e se torna um observador de ações. A
temporalidade deste trecho pode ser comparada à metáfora do tempo de objetos em
movimento. Gradualmente uma textura mais caótica, com trajeto de difícil definição é
percebida ao fundo (por volta de 5’11”), porém em está num plano focal muito
distante.
No desenvolvimento do trecho, a velocidade dos eventos que tem trajetos
definidos vai diminuindo e a textura de fundo vai se tornando mais forte, assumindo
maior destaque na escuta. Aos 5’38” a textura já é bem perceptível e a simultaneidade
de espaços fica evidente, sendo que a velocidade dos trajetos continua aumentando e
o enfoque na textura se aprofunda, caracterizando uma mudança de plano focal.
Em 5’52” a textura já é percebida em plano focal principal, mas os trajetos dos
sons mecânicos de engrenagens ainda podem ser ouvidos. Tal textura é densa e
caótica, como se estivesse formada por sons modificados da feira livre e segue em seu
adensamento até ser “compactada” por um gesto metálico equivalente a uma
raspagem de objetos de metais em 6’03”. Trata-se de um gesto de raspagem, com
deslocamento definido que atua como a força que dispara uma nova
espectromorfologia.
Ainda nesta segunda seção, são mantidas as ideias de transições e
simultaneidade de espaços, dispostas em contraponto. Os focos variam entre espaços
marcados pela polifonia, elaborada a partir das trajetórias de sons de máquinas (de
7’13” até 7’53”), e a soma de espaços resultante da textura de vozes somada a trajetos
(de 7’54” até 8’19”).
Novamente as camadas são fundidas em 8’20” para resultar no enfoque da voz
de um vendedor de feira livre, concentrada nos canais esquerdos. Esta fala é seguida
instantaneamente pela sobreposição de eventos sonoros gestuais, com trajetórias
diferentes, derivados de algum movimento de máquina. Neste curto período de tempo
(de 8’20” até 8’29”) os espaços não são simultâneos, e sim sequenciais.

328
!

Os dois eventos, dispostos em sequência, servem de transição para a última


seção que se inicia em 8’30”. Trata-se de uma textura contrastante com a anterior,
considerando-se que é mais vazia espacial e espectralmente, mais textural e com sua
de orientação mais intrínseca. De forma semelhante à seção inicial, as trajetórias e
posicionamentos não estão em destaque neste trecho final.
Nesta seção, o trecho que vai de 8’30” até 11’00” é marcado pela evolução
lenta de uma textura contínua, que sofre intervenções de alguns gestos. Como
exemplo pode-se citar os sons percutidos que se assemelham a passos em
9’20”demonstrando a sobreposição de um espaço diferente do textural. Em 9’29”,
num plano focal mais ao fundo, é possível ouvir vozes conversando como se
localizadas em um outro ambiente. Este espaço acontece simultaneamente com aquele
onde estão localizados os passos individuais e a textura contínua em fluxo.
Em aproximadamente 9’44”, a textura começa a ficar mais intensa, densa e
pouco reconhecível. O aumento da intensidade torna possível distinguir movimentos
internos adicionais, caracterizando uma orientação intrínseca. Esta textura
gradualmente vai sofrendo mutações e torna possível perceber (em 10’36”)
frequências que evocam timbres vocais, porém o fato da textura ainda ser contínua
dificulta o reconhecimento preciso de uma vocalização. Tal textura segue em
crescimento de intensidade e de movimento interno (com uma pequena pausa em
10’46”), – gerando um aumento de tensão novamente, que tem seu ápice em 10’57” e
encerra-se em 11’00”.
O trecho que vai de 11’00” até 11’37” é contratante com a evolução lenta da
textura do trecho anterior, sendo marcado por um contraponto de sons humanos
(passos, vozes individuais) e sons não reconhecíveis. Este contraponto também é
destacado por diferentes trajetórias e planos, sendo apresentadas ainda algumas notas
de piano, com altura definida, para sua composição, bem como um grito feminino.
Em 11’36”um evento sonoro com trajetória circular serve como disparo para
uma nota tocada mais forte no piano, sem posição definida (projetada em todos os
canais). Neste momento a sustentação deste som é convertida em uma textura de foco
interno, marcando a mudança de tipos de sons usados. A nota de piano mantida está
sobreposta a um som denso que segue em um rápido crescendo e decrescendo,
resultando em uma sensação de dilatação e contração da textura global.
A seguir o som de piano desaparece (em 11’44”), restando uma textura mais
estática, fraca e envolvente, como característica de outro ambiente. Tal textura segue

329
!

estática, sofrendo incursões de morfologias mais gestuais (como em 11’58”) e a


textura vai se metamorfoseando até que se transforma em outra, com natureza difrente
em 12’01”. A morfologia desta nova textura é semelhante a um movimento de
“chocalho” que se encontra defasado nos canais, gerando um efeito espacial de
perguntas e respostas, evocando sons de cigarras numa mata. A orientação espacial
aqui ainda é intrínseca, mas a natureza da textura muda a noção de ambiência sonora
e tal textura marca o final da obra em fade-out.
Um resumo da estruturação geral de Human-Space Factory é representado na
imagem abaixo (Figura 8). Para facilitar a leitura a estruturação foi dividida em duas
partes. Cada subseção é marcada por uma letra (“a”, “b”, etc.), sendo que cada uma
destas possui um trabalho diferente de interpolação ou sobreposição de espaços
fornecidos pelos materiais principais desta obra (humano-texturais e fábrica-gestuais).

!
!

Figura 5 - Forma de Human-Space Factory de Hans Tutschku (primeira parte)

Na figura acima, as setas indicam articulações estruturais que servem de


pontos de mudanças das subseções. As articulações são os eventos sonoros que foram
nomeados anteriormente como “fusões” ( que são resultantes dos adensamentos da
das texturas provenientes da simultaneidade de espaço). As “fusões” podem ser um

330
!

evento de origem humana (como por exemplo a fala perceptível em 4’39”, ou um som
com origem em sonoridades de fábrica (como o que ocorre em 6’03”). Os tópicos
abaixo resumem os trabalhos de simultaneidade ou interpolação dos materiais que
delimitam as seções e subseções.
• Seção A (de 0’00” até 4’38”):
o subseções a (de 0’00 até 2’39”) e a’ (de 2’40 até 4’38”): os materiais são
dispostos em interpolação de fragmentos dos dois tipos de eventos (de
origem de sons humanos e de fábrica), seguidos de uma simultaneidade
dessas fontes que caminham em direção a uma conclusão na articulação.
• Seção B (de 4’39” até 8’29”):
o Subseções b (de 4’39” até 5’05), b’ (de 5’06” até 6’05”), b” (de 6’06
até 70’04) e b’” (de 7’04” até 8’29”): inicialmente, em cada subseção,
é apresentado apenas um tipo de material (textural ou gestual).
Gradualmente, em um plano focal inferior, é inserido o outro tipo de
material em simultaneidade. Com o passar do tempo, os materiais se
encontram em um mesmo plano focal, reforçando assim a sua
simultaneidade. Por fim as subseções são concluídas com um evento
de articulação (um som de origem humana ou de fábrica).
• Seção C (de 8’30” até 12’46”):
o Subseções c (de 8’30” até 11’06”) e c’ (de 11’07” até 11’44”): Assim
como na seção B, os materiais destas subseções começam apenas com
um tipo de evento, em seguida interagem em simultaneidade com o
outro tipo de evento para em seguida terminarem em uma articulação.
As diferenças principais em relação à seção B são as transformações
aplicadas a estes materiais e a nova proporção temporal dos processos
composicionais explorados.
o Subseção c” (de 11’45” até 12’46”) : Nesta subseção a
simultaneidade de espaços é a principal abordagem que por fim
encerra a obra em um fade-out da textura global.
A descrição formal indica que o espaço foi usado estruturalmente nesta obra,
sendo que cada seção é marcada pelo uso diferenciado do estilo espacial global. O
compositor utiliza na mesma obra múltiplas configurações espaciais de forma
intercalada e/ou simultânea, conforme as seções da obra.

331
!

Em alguns momentos, os espaços metafóricos são definidos pela


referencialidade do material, originária do uso de sons provenientes de máquinas e de
vozes humanas. Esses espaços mais metafóricos são obtidos a partir do emprego de
um nível espacial figurativo, no qual as imagens espaciais decorrentes da
referencialidade aparentam já serem conhecidas. Porém, espaços mais abstratos
também são apresentados através do uso de polifonias de trajetórias, bem como da
sobreposição de diferentes planos focais.

“Vox Alia” de Annette Vande Gorne

A obra Vox Alia foi composta por Annette Vande Gorne no período entre 1992
até 2000, originalmente em octofonia, com canais dispostos em pares. É um exemplo
claro de uso escritural do espaço pois cada movimento foi definido com uma
configuração espacial específica na constituição da estrutura formal global. Pode se
observar que diferentes noções de espaço são exploradas, tanto na disposição e
constituição interna dos materiais sonoros, quanto nas escolhas de modos de projeção
nos alto-falantes.
O material sonoro de base na estruturação da obra é unicamente a voz humana,
sendo processado, organizado e espacializado com a finalidade de representar os
diferentes sentimentos presentes nos movimentos da obra. A estruturação em
movimentos reforça um pensamento escritural, confirmado quando a obra é ouvida
repetidamente.
A obra é uma suíte dividida em cinco movimentos, sendo que quatro destes
levam nomes de sentimentos ou afetos e o último é uma homenagem a Pierre
Schaeffer. Os movimentos são denominados como Giocoso; Amoroso;
Innocentemente; Furioso e Parola Volante 9 , contendo energia e visão da
espacialização diferenciada.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9
Havia mais um movimento denomidado Lamento, contudo não faz parte da versão enviada pela
compositora.

332
!

O primeiro movimento, Giocoso, tem duração de cinco minutos e, conforme


nota de programa10, seu material musical está baseado em cantos vocais de diversos
continentes não-europeus, misturados com um “passado ocidental”. Este material não
é imediatamente identificado, pois sofre processamentos eletroacústicos, fornecendo
uma escuta não diretamente referencial. É importante ressaltar que os processamentos
empregados nos áudios dos cantos de diversas culturas mantém perfis melódicos que
fornecem movimento frequencial interno aos eventos sonoros resultantes.
O tratamento espacial pode ser usado como uma metáfora do afeto deste
movimento, pois a imagem do Giocoso (“brincalhão”, “lúdico”) é obtida a partir dos
jogos espaciais resultantes do material musical. Num primeiro momento os diferentes
materiais delimitam um recinto, através de uma ocupação gradual do espaço
octofônico e a seguir os materiais são projetados em diferentes grupos de canais,
como em um jogo de perguntas e respostas, ou de aparecimento e desaparecimento.
Tais jogos podem ser melhor ilustrados com uma descrição da forma de todo o
primeiro movimento, que está dividido em duas seções com tratamentos espaciais
específicos. A primeira seção (0’00” até 2’34”) é dividida em duas subseções: uma de
0’00” até 1’10” e a outra de 1’11” até 2’34”.
Na primeira subseção observa-se a sobreposição das diferentes camadas de
materiais, sendo cada uma composta por eventos sonoros contínuos, como se fossem
linhas melódicas. Porém, devido ao processamento dos sons, inicialmente não há
linhas melódicas reconhecíveis, mas sim variações frequenciais e rítmicas que
configuram contornos semelhantes a possíveis melodias. Cada linha contém timbres e
comportamentos internos diferentes, sendo que alguns são mais contínuos e outros
mais rítmicos.
Neste início, essas camadas de linhas são sobrepostas temporalmente
constituindo uma textura global complexa e de grande movimento interno e a seção já
começa com várias camadas sobrepostas, sendo que algumas entram em defasagem
temporal. Cada alto-falante projeta uma ou mais linhas diferentes em defasagem,
fornecendo uma percepção espacial imersiva, onde o ouvinte está inserido dentro de
um ambiente sonoro composto por um fluxo complexo de acontecimentos
heterogêneos que o envolve.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
Uma nota de programa da obra foi enviada por Annette Vande Gorne para a autora desta tese por
correio em 2013.

333
!

A configuração do material musical, a partir da sobreposição de linhas


heterogêneas, fornece uma escuta que remete a um madrigal polifônico. Contudo,
além do processamento sonoro do material vocal, a espacialização de tais linhas
expande as possibilidades imaginativas na escuta, indo muito além desta referência.
As diferentes linhas da textura global são projetadas de modo dinâmico,
fluindo pelos canais como se percorressem um espaço com a finalidade de delimitar e
ocupar tal espaço. De forma diversa de um madrigal tradicional, as fontes movem-se
em torno do ouvinte, envolvendo-o num espaço fechado e com movimento interno.
Ainda nesta subseção, no trecho que vai de 0’35” até 1’10”, ocorre um recuo
energético, com a pausa de algumas camadas de eventos sonoros e persistência de
apenas uma camada de sons mais agudos, com textura mais lisa e com pequenas
variações de freqüência, projetada inicialmente apenas nos canais 2 e 3. Contudo, em
0’41”, todos os canais passam a projetar novamente as diferentes camadas de eventos
sonoros.
Portanto, no início são projetadas camadas diferentes em canais distintos e
neste momento os eventos sonoros parecem ser derivados dos anteriores, entretanto
estão numa dinâmica bem mais fraca. O efeito deste recuo energético poderia ser
interpretado de duas maneiras diferentes: a primeira como um “eco” da energia inicial
apresentada no trecho introdutório e a segunda como um afastamento espacial dos
“personagens” que compõe esta cena sonora.
Outras interpretações decorrentes do uso deste material poderiam ser feitas,
conforme as associações estabelecidas com as experiências vividas pelo ouvinte. Em
termos estruturais, a diminuição de energia provoca uma situação de contraste do
material musical em relação ao apresentado no início, realçado pela espacialização. A
textura global mais tênue (em 0’41”) segue num “tutti” até 0’55”, quando eventos
sonoros que estavam presentes em 0’35” surgem novamente, agora nos canais 1, 2, 3
e 4. Este novo “esvaziamento” segue até o fim da subseção em 1’10”.
A subseção iniciada em 1’11” tem uma abordagem de desenvolvimento do
material diferentes da anterior, iniciando-se com camadas sobrepostas temporalmente
e numa dinâmica mais forte, de modo semelhante ao início da obra, porém como
material mais ritmado e um número menor de camadas sobrepostas. Esta entrada
novamente causa contraste em relação ao trecho anterior(ao final da primeira
subseção), pois o que antes sugeria um espaço mais vazio, com acontecimentos mais

334
!

distantes, agora é marcado pelo preenchimento do espaço com noção de aproximação


dos materiais em torno do ouvinte.
A textura global observada neste trecho é composta de duas camadas tímbricas
e rítmicas principais: uma em uma região mais aguda e com ritmos mais acelerados e
outra numa região mais grave com a rítmica um pouco mais lenta. A primeira camada,
mais aguda, é difundida com maior concentração nos canais frontais e traseiros
(canais: 1, 2, 7 e 8), no primeiro momento da subseção. A segunda camada é
projetada nos canais do centralizados (3, 4, 5 e 6).
As camadas são apresentadas em alternância espacial como uma forma de
“pergunta e resposta”, sendo esta abordagem de espacialização explorada ao longo de
toda esta subseção. Um exemplo desta alternância espacial ocorre em 1’11”, quando
um material rítmico na região frequencial mais aguda é projetado nos canais 1 e 2,
sendo “respondido” nos canais 7 e 8 (em 1’18”) e a seguir no canal 5 (em 1’34”). Em
seguida um material semelhante é projetado no canal 6 (em 1’34”) e ainda nos canais
1 e 2 (em 1’54”). O material de “resposta” projetada nos diferentes canais é um pouco
variado em cada reaparecimento, sendo a variação oriunda de processamento do
material sonoro
Observa-se uma outra camada da textura global, um pouco menos destacada
que a mais aguda, porém muito presente no trecho. Tal camada recebe o tratamento
de alternância espacial quando, logo ao início, é projetada em pequena defasagem
entre os canais centrais resultando numa intercalação rápida da rítmica deste evento
sonoro. A projeção em defasagem gera o efeito de um tremolo espacial que oscila
entre os lados esquerdo e direito.
Abordagens de aproximação e afastamento também são aplicadas a estes
materiais, tanto nos momentos em que estão concentrados em posições espaciais
específicas, quanto nos momentos em que estão crescendo em intensidade. Pode-se
exemplificar com o evento que ocorre em 1’26”, quando a camada mais grave fica
mais forte nos canais 3, 5 e 6 proporcionando uma noção de aproximação lateral do
material, como se um grupo de fontes semelhantes se aproximasse coletivamente do
ouvinte.
Os efeitos espaciais de perguntas e respostas, bem como os afastamentos e
aproximações são explorados, juntamente com variações do conteúdo espectral, até o
final da seção em 2’33”. Gradualmente o material se desenvolve tornando-se
levemente mais denso e complexo e sua variação espectral culmina num timbre vocal

335
!

(ainda um pouco processado eletronicamente) entoando algumas repetições da palavra


“aleluia” no final da seção. Trata-se de um trecho disposto em alternância espacial em
todos os canais. A fusão de uma textura complexa, difundida em alternância espacial
nos canais, gera a noção de fechamento ou cadência para esse trecho que se apresenta
valorizado por essa espacialização.
A segunda seção (iniciada em 2’34”) contrasta com a primeira em relação ao
uso do material e espacialização, sendo marcada por um comportamento menos
contínuo do material, com menos sobreposições, caracterizando um ambiente sonoro
um pouco mais vazio. São observados movimentos sonoros mais deslizantes que são,
em alguns momentos, entrecortados por eventos sonoros diferenciados projetados em
regiões espaciais específicas.
Um exemplo desta forma de manipulação do material ocorre no trecho que vai
de 2’34” até 3’12”, onde um evento sonoro textural de superfície mais lisa, sobreposta
a uma camada composta por algumas variações internas de dinâmica e frequências, é
projetada em todos os canais. Cada canal individual difunde esta textura com uma
versão um pouco diferente das outras, resultando em uma noção de movimento
interno do ambiente sonoro total.
Aos 2’52” um novo evento sonoro contrastante, de natureza mais gestual,
surge bruscamente nos canais 5 e 6, enquanto a textura contínua segue nos canais 3 e
4. Neste mesmo momento os canais 1, 2, 7 e 8 deixam de projetar qualquer som, fato
este que traz o novo evento sonoro para o primeiro plano. O novo evento sonoro é
repetido, nos mesmos canais, por mais três vezes neste trecho e a cada repetição sofre
alguma variação em seu conteúdo espectral. Em 3’4”, esse mesmo material tímbrico é
projetado nos canais 1 e 2, seguido pela repetição nos canais 5 e 6 (em 3min e 6s),
resultando na impressão de um cânon espacial.
Gradualmente outros materiais mais fluídos vão surgindo ao longo da seção,
sendo entrecortados por eventos sonoros mais gestuais, localizados em pontos
espaciais diferentes como se estivessem em diálogo. O surgimento de camadas
adicionais aumenta um pouco a sensação de polifonia, como no trecho entre 3’36” e
4’00”, caracterizado pelo uso contrapontístico de dois ou mais tipos de eventos
sonoros heterogêneos, projetados em canais diferentes e em momentos distintos.
O desenvolvimento acima descrito prossegue até um decrescendo de dinâmica
e esvaziamento textural em aproximadamente 4’40”. O esvaziamento da textura é
ressaltado pelo desaparecimento gradual dos sons nos diferentes canais, restando

336
!

apenas um resíduo decrescente da textura nos canais 7 e 8. O resíduo é difundido em


defasagens onduladas no estéreo dos canais traseiros, resultando em um movimento
espacial sinuoso. A diminuição da textura, juntamente com o resíduo da textura nos
canais traseiros, proporcionam a impressão de que os “personagens” deste ambiente
sonoro se afastam na perspectiva.
O movimento Giocoso reserva ainda um último elemento surpresa,
apresentado em 4’59”, quando um evento sonoro gestual e curto é difundido em
alternância espacial apenas nos canais 3 e 4. Trata-se de um som vocal reconhecível
entoando a palavra “aleluia” semelhante a aquele utilizado no final da primeira seção
em 2’34”. Novamente esta repetição terá a função de cadência que fecha este
movimento.
A imagem abaixo (Figura 6) ilustra um resumo da forma global da obra. As
seções são nomeadas com base na interpretação metafórica que o uso do material e o
modo de projeção proporcionam, conforme mencionado anteriormente.

Figura 6 - Forma do movimento Giocoso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

No segundo movimento, Amoroso (de 5’10” até 10’03”) percebe-se a


utilização de um material totalmente diferente do movimento anterior, considerando a
busca da imagem de um afeto diferente. Os materiais são mais líricos, sendo
compostos a partir de eventos provenientes de sons vocais processados (vozes
femininas), de cantos provenientes de coros religiosos (masculinos) e ainda de um
material granular agudo de origem desconhecida.
O movimento melódico do coro pode gerar associações com ambientes de uma
catedral ou um monastério, porém não é ouvida uma paisagem realística e sim um
ambiente sobrenatural. A sensação de irrealidade decorre da interação das vozes
“irreais” do coro processado com outros personagens (oriundos dos vocalizes

337
!

femininos) ou ainda com faixas de sons curtas que se apresentam onduladas e


granulares e com um contorno mais definido.
A sobreposição destes diferentes materiais confere um tratamento mais
contrapontístico e polifônico a este movimento, onde cada camada da polifonia
contribui para a delimitação de um espaço vertical, marcado pelo conteúdo espectral.
A delimitação provida pelo espaço espectral permite associações metafóricas, sendo
possível perceber uma região mais alta, como um teto ou cúpula que resulta do uso
dos sons granulares e agudos. As vozes dão a impressão de uma profundidade que
decorre dos tratamentos eletrônicos aplicados nelas.
O uso deste material mais lírico e melódico pode resultar na interpretação do
título Amoroso, o que pode ser reforçado pelo uso de vozes masculinas e femininas
como a representação do amor de um casal. O alto teor ornamental do material
melódico reforça esta idéia, contudo não foi objetivo deste trabalho apontar
precisamente a intenção da composição, e sim relatar possíveis associações geradas
na escuta da obra.
A espacialização também é um parâmetro da escritura que pode contribuir
para a metáfora do afeto deste movimento, o que pode ser observado no trecho que
vai de 5’23” até 6’34”, quando o material é claramente distribuído em dois planos
espaciais, sendo que o primeiro é projetado nos quatro alto-falantes frontais (1, 2, 3 e
4) e o segundo nos quatro alto-falantes traseiros (5, 6, 7 e 8). O primeiro grupo de
alto-falantes difunde o material oriundo das vozes masculinas do canto dos coros
religiosos e o segundo grupo difunde os sons oriundos dos vocalizes femininos. Cabe
reforçar que estes materiais são processados eletronicamente, o que numa primeira
escuta geral da obra só fornece associações reconhecíveis em alguns momentos e não
em todo o trecho. Porém, com a escuta repetida, é possível perceber que, mesmo nos
momentos em que os materiais não possuem uma referencialidade direta, estes ainda
contêm contornos reconhecíveis dos materiais de origem, que no caso são as vozes.
Os dois planos espaciais obtidos são ligados pela terceira camada da polifonia
que consiste nos sons granulares e agudos. Estes sons possuem movimentos erráticos
e breves com trajetórias que atravessam os oitos canais, unindo os dois planos como
se fosse uma relação entre os personagens. Ademais, o comportamento interno deste
material (gestual, curto e veloz) é contrastante com o comportamento do material dos
outros planos (que possuem uma evolução temporal mais lenta), o que fornece um
caráter mais textural para os personagens.

338
!

Em 5’10” observa-se outro tratamento espacial que poderia ser interpretado


como a metáfora de um sentimento amoroso, pois um evento sonoro proveniente de
vocalização feminina é projetado num crescendo rápido e de forma simultânea vai
traçando um trajeto circular em torno do ouvinte. O trajeto circular se transforma
numa escuta envolvente, como se o ouvinte fosse “abraçado” por este evento sonoro.
Além da trajetória de tal evento, o tipo da vocalização melódica é muito dramática e
lírica, sendo o único plano focal deste momento da obra, o que poderia reforçar tal
associação metafórica. Esta mesma ideia de “abraço” é ocorre em 6’35”, quando um
evento sonoro mais textural é iniciado nos canais traseiros e tem sua continuação nos
canais frontais, mais uma vez envolvendo o ouvinte.
A escuta do movimento Amoroso sugere que sua forma se delimita conforme
as seguintes seções: A (de 5’10” até 6’34”), A’ (de 6’35” até 8’03”), B (de 8’04” até
8’59”) e B’ (de 9’00” até 10’03”). As duas primeiras seções são caracterizadas pelo
uso de material um pouco mais reconhecível, enquanto nas duas últimas se observa
um tratamento mais abstraído das fontes sonoras.
Ainda que o tratamento do material seja semelhante nas seções A e A’, são
observadas variações, seja no material espectromorfológico, nas combinações
contrapontísticas e na espacialização, que se constitui em um aspecto estrutural
importante. As duas seções começam com um evento sonoro de destaque no plano
focal, espacializado de forma mais envolvente e seguido por um desenvolvimento
mais contrapontístico do material.
O evento sonoro em destaque é o vocalize de voz feminina, em trajetória
circular, que ocorre no início do movimento, sendo que sua a repetição em A’ aparece
no trecho que vai de 6’32” até 7’10”. A variação na repetição é obtida com o
tratamento tímbrico diferenciado e com o estiramento temporal de tal evento. De
forma similar ao início do movimento, esta repetição ocupará gradualmente todo o
espaço de escuta através da projeção nos canais traseiros, transferência para os canais
frontais, o que fornece uma escuta envolvente de tal evento.
Após o evento inicial, as seções se desenvolvem em planos espaciais,
marcados pelo material utilizado e reforçados pela distribuição nos canais de difusão:
um plano é dado nos quatro canais frontais, outro nos quatro canais traseiros e um
terceiro transita entre os dois planos como elemento de ligação espacial. Tais planos
parecem ter a mesma importância estrutural, variando esporadicamente o foco da
atenção, conforme o desenvolvimento do material.

339
!

O material empregado possui evolução temporal mais lenta, atraindo a escuta


para uma orientação mais intrínseca, com algum grau de referencialidade dada pelo
reconhecimento da fonte. O material granular, com variação espectral e movimentos
curtos serve de ligação espacial entre estes dois planos, pois suas trajetórias erráticas
ou circulares passam por todos os canais de projeção.
Na primeira seção o plano das vozes masculinas era projetado nos canais
frontais 1, 2, 3 e 4, enquanto o plano das vozes femininas estava projetado nos canais
traseiros restantes. Já na segunda seção os planos se apresentam invertidos, sendo que
o material das vozes femininas está projetados nos canais frontais e o proveniente do
coral é projetado nos canais traseiros. Convém ressaltar que estes materiais sofrem
variações de intensidade, frequência, duração e até de espacialização dentro do plano
em que atuam.
Para as duas últimas seções (B e B’) foi realizado um tratamento espacial e
espectromorfológico diferenciado do material, resultando em uma característica mais
abstraída. Uma identificação mais precisa de fonte é dada no final da obra, quando
são aparentes as vozes masculinas e femininas entoando notas definidas e contínuas.
Nestas seções não fica mais claramente perceptível a separação do material em dois
planos espaciais dispostos em extremos, pois estão divididos em tipos de materiais
com uma espacialização mais baseada em trajetórias, proporcionando um
desenvolvimento textural distribuído em todos os canais.
O material sonoro que contém a trajetória parece ser derivado dos mesmos
eventos sonoros granulares de movimentos erráticos e curtos que ocorrem nas seções
anteriores, porém são mais velozes e com pouca reverberação. Na realidade, tais
eventos aparecem ao longo de toda a obra, servindo também como elemento de
ligação entre as seções. No momento inicial dessas seções, esses eventos sonoros
estão percorrendo um espaço “vazio” que consiste no único plano focal, sendo um
fator contrastante que marca a diferença entre as duas seções iniciais e as duas finais.
No trecho que vai de 8’04” até aproximadamente 8’12” os sons gestuais
granulares são os únicos pontos focais, porém a partir deste momento uma aceleração
de ataques provoca a evolução para uma textura mais granular, de orientação mais
intrínseca, que gradualmente preenche o espaço octofônico. Em alguns momentos, os
materiais gestuais aparecem no foco de atenção, como em 8’30”, contudo a textura
granular ainda permanece com a função de preenchimento espacial. Tal textura
começa a decrescer em 8’56” até o seu desaparecimento em 8’59”.

340
!

A última seção (B’) começa aos 9’00” com um comportamento similar do


material semelhante, sendo marcada inicialmente por explorações de movimentos
curtos com trajetórias definidas. O comportamento indica uma orientação espacial
mais extrínseca que vai mudando gradualmente para uma situação textural. O material
agora sofre variações também em sua natureza, como os gestos iniciais do trecho (de
9’00” até 9’20”) que se tornam dotados de mais reverberações do que os anteriores,
fornecendo a imagem de um espaço amplo delimitado.
A parte textural inicia-se lentamente, num plano focal inferior (por volta de
9’13”) e vai crescendo gradualmente até se converter no plano principal por volta de
9’50”. As trajetórias gestuais ainda ocorrem durante o crescimento da textura,
gerando dois planos estruturais diferentes, porém não polarizados no espaço, como
ocorre nas primeiras seções. O evento sonoro textural iniciado em 9’13" se torna
reconhecível, ao contrário do que ocorre na seção B, sendo semelhante a um canto em
voz masculina numa nota sustentada, que se assemelha a um canto Khoomei.
Um som vocal feminino entoando também uma única nota dá origem a uma
nova camada sonora reconhecível que aos poucos se mistura na textura e em 9’54” os
sons gestuais estão quase imperceptíveis, por serem projetados apenas nos canais
traseiros 7 e 8. Neste momento resta apenas como foco de atenção a textura
constituída a partir dos sons identificáveis de canto feminino e masculino, numa baixa
intensidade e fundidos espacialmente nos canais 1, 2, 3, 4, 5 e 6. A fusão destes
elementos poderia simbolizar a união definitiva entre os personagens que poderiam
representar o afeto deste movimento. Tal textura decresce até o seu desaparecimento
em 10’03”.
O esboço abaixo (Figura 7) ilustra um resumo da delimitação formal deste
movimento.

!
Figura 7 - Forma do movimento Amoroso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

341
!

O terceiro movimento é denominado Innocentemente e se inicia em 10’15”,


caracterizado pelo uso predominante de materiais sonoros oriundos de sons vocais
executados por bebês, bem como pela presença de um som, também vocal, de um
indivíduo adulto realizando alguma brincadeira com uma criança, o que ocorre
esporadicamente.
O uso de sons infantis aponta de forma imediata para a metáfora da inocência
que se torna ainda mais reforçada pela espacialização aplicada ao movimento. Em
vários momentos os materiais musicais são reconhecíveis em sua maioria, sendo mais
gestuais, sendo projetados no espaço de maneira multi-direcional, como no
comportamento de descoberta de uma criança.
No início do movimento (aos 10’15”) diversos sons de bebês são sobrepostos
temporalmente e espalhados nos canais de modo defasado, sem uma trajetória precisa.
Diferentes grupos de sons como gritos e risadas são separados em duplas estéreo que
são projetados simultaneamente, resultando num ambiente caótico e de
acontecimentos não lineares, funcionando como um fluxo sonoro intenso
“impulsionado” para fora dos alto-falantes.
Contrariamente à ideia de multidirecionalidade de projeção do material, a
forma global do movimento se estabelece de maneira estrita numa palíndrome,
resultando tanto da disposição temporal dos eventos sonoros, quanto da
espacialização. Esta configuração implica em que um material musical inicialmente
projetado nos canais 1 e 2, passa a ser projetados nos canais 3 e 4, ou 7 e 8.
A primeira seção da palíndrome é demarcada no trecho que vai de 10’15” até
12’16” e uma a segunda seção se estende de 12’17” até 14’30”. As duas seções
também são divididas em duas partes, sendo uma marcada pela sobreposição de
materiais reconhecíveis e de intensidade forte, com orientação extrínseca (de 10’15”
até 11’00”) e a outra tem um desenvolvimento mais lento e textural (de 13’15” até
14’30”), numa intensidade fraca, contrastando com a anterior. Uma segunda parte de
cada seção encontra-se entre estes dois extremos temporais.
A sobreposição de diferentes sons reconhecíveis (na parte mais intensa da
seção) produz a imagem onírica de um fluxo (como uma “cascata”) de sons
energéticos, compostos por diferentes sons infantis que fornecem um espaço
desordenado. Observa-se que as direções não são definidas, como ocorre no espaço de
brincadeira de uma criança.

342
!

No trecho inicial deste movimento, os sons são projetados como “jorros”


texturais nos pares estéreos, com uma sensação resultante de imersão num mar
agitado, onde ondas “batem” no ouvinte vindas de todas as direções. Cabe ressaltar
que cada par estéreo projeta um material em particular, formando diferentes camadas.
Portanto, o movimento não-direcional da textura global parece configurar um caso da
metáfora do tempo como força movente, devido à capacidade dos eventos sonoros em
provocar a ilusão de exercer uma força sobre o ouvinte.
Em 10’57” ocorre um clímax estrutural com a substituição súbita da textura de
camadas heterogêneas pela projeção de um único som reconhecível, um grito
animado do bebê. É um grito de forte intensidade, projetado apenas pelos canais 5 e 7,
exercendo uma força que “empurra“ o ouvinte para uma nova atmosfera, contrastante
com a anterior. O grito se transforma em um zumbido que se apresenta em um fluxo
textural, gerando assim um novo ambiente contrastante.
O novo ambiente que surge é mais vazio em relação ao anterior, sendo
povoado por texturas mais suaves, de evolução temporal mais lenta. Esta
configuração atrai a atenção para uma outra realidade, também onírica, que se
apresenta marcada por maior estabilidade e continuidade do material. Nesta nova
imagem, as imagens reconhecíveis do bebê aparecem mais esporadicamente e de
modo mais impreciso. A metáfora para a percepção de mundo inconstante de uma
criança também pode ser estabelecida a partir do contraste de imagens espaciais
desenvolvido neste trecho.
As diferentes camadas mais contínuas também são projetadas em pares
estéreos, eventualmente com comportamento espacial defasado, ondulante, com
alternância espacial entre os pares de canais. Este comportamento de difusão em
estéreo nos canais 5 e 6 pode ser observado por volta de 11’27” e fornece maior
riqueza para a noção de um espaço textural interno vivo. As camadas ainda são
compostas por falas do bebê e outros gestos vocais, porém mais processados e fracos.
As falas mais reconhecíveis estão mais espaçadas temporalmente, não sendo
sobrepostas, resultando em uma escuta mais íntima e de observação mais individual
do bebê.
Em 11’48” a textura, que era mais vazia, começa a ser “povoada” por risadas
ou outros gestos vocais muito processados, que permitem um certo grau de
reconhecimento. De forma gradual a textura vai se tornando mais abstraída até que
em 12’06” os sons se tornam não referenciais, indicando ser uma marcação da

343
!

mudança de seção da palíndrome. O caráter textural e contínuo do material ainda


ocorre, pois o final na primeira seção é semelhante ao início da nova seção, o que é
característico nesta forma musical.
Ainda neste trecho, a noção de relevo é um aspecto espacial interessante que é
explorado esporadicamente. Um exemplo deste evento ocorre por volta de 12’22”,
quando a textura global aparenta um comportamento interno como um “enxame”,
com variações que tornam reconhecíveis contornos gestuais da fala do bebê. Ainda se
observam contornos espectrais característicos da fala, porém a composição textural
interna de “enxame” resulta em que a fala do bebê seja percebida como um relevo
nesta textura.
No momento em que ocorrem os espelhamentos característicos da palíndrome,
os materiais apresentados na primeira seção estão dispostos ordenadamente em
retrogrado na segunda seção, podendo sofrer pequenas variações em suas repetições.
Além desta disposição de inversão temporal do material, um espelhamento espacial
também é realizado, como dito anteriormente.
Um exemplo do espelhamento de canais que ocorre na palíndrome pode ser
reconhecido quando o som de uma risada de um bebê (em 11’39”) é projetado nos
canais 3 e 4, num plano focal menos importante, sendo repedido num plano focal
mais destacado nos canais 1 e 2 (em 12’52”). O espelhamento espacial reforça a ideia
metafórica de inconstância do comportamento do bebê, já que cada evento cada vez
aparece num posicionamento espacial diferente.
Em 13’15” observa-se a repetição do som de grito tinha a função de marcador
da mudança de contexto estrutural na primeira seção, O grito tem a mesma função,
sendo projetado novamente nos canais 6 e 7, marcando o início de uma textura densa,
análoga a uma “multidão”.
Os eventos heterogêneos, moventes e energéticos novamente se sobrepõem,
para recriar a ideia da textura caótica do começo da obra. Em 13’58” um novo clímax
estrutural é dado pelo aumento na densidade de eventos, bem como pela sobreposição
de eventos gestuais e texturais heterogêneos. A tensão construída é desfeita
gradualmente num decrescendo, porém o relaxamento é interrompido com um
elemento surpresa em 14’20”. Trata-se de um evento sonoro reconhecível,
proveniente de uma única fala de bebê, projetado em defasagem rápida nos canais 1 a
6, como em alternâncias espaciais ondulantes que reforçam uma espacialidade

344
!

multidirecional. Este evento sonoro gradualmente se desfaz num decrescendo para


uma textura contínua que serve de reverberação da fala do bebê.
O esboço abaixo (Figura 8) ilustra a demarcação formal deste movimento da
obra. É possível perceber que cada parte da palíndrome possui duas estratégias
diferentes de uso do material.

Figura 8 - Forma do movimento Innocentemente da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne

Na sequência, novo um sentimento é representado no quinto movimento,


denominado Furioso, sendo produzido pelo uso da espacialização. Um material com
timbre áspero, ritmado e energético é projetados nos canais frontais com muita
intensidade como se fosse um grito resultante de um momento de ira. A percepção é a
de que o ouvinte está recebendo diretamente na face a força energética do sujeito em
fúria.
Este recurso de projeção frontal, como representação de um “arremesso”
energético provocado por uma fala, apresenta similaridade com aquele utilizado por
Trevor Wishart em Vox V, citado anteriormente. Na obra de Wishart, o evento sonoro
proveniente de uma voz e projetado nos canais frontais, também representa um grito,
no caso, o da deusa Hindu Shiva. Porém este grito não representa necessariamente um
afeto, mas uma energia que é destruidora ou criadora de todas as coisas. Na obra de
Vande Gorne não é utilizado diretamente um som reconhecível de voz, sendo que a
energia de um grito é representada por um material textural de forte intensidade. A
escuta permitiu a percepção de que este efeito espacial usado por ambos compositores
possui um alto teor comunicativo, dramático e metafórico.

345
!

O desenvolvimento deste movimento é marcado por uma evolução temporal


contínua, com a transformação gradual do material principal, tornando difícil a
identificação de uma forma delimitada. Contudo, é possível descrever dois
“momentos” mais característicos no contexto global, onde o segundo momento parece
ser resultante do primeiro.
O primeiro momento (de 14’44” até 16’36”) é caracterizado por um aumento
gradual na energia emitida nos canais frontais, que gradualmente recua e se
transforma numa sonoridade mais lisa e macia, semelhante a vocalizações de
meditação ao final da segunda parte (de 16’36” até 19’37”).
O início da obra é marcado com a entrada súbita e “agressiva” de um material
sonoro ruidoso e intenso, projetado nos canais frontais (1 e 2) e traseiros (7 e 8),
atuando como um “golpe” energético que resulta na sensação de uma força que
“pressiona” o ouvinte frontalmente e atrás. Desta forma, o ouvinte não é mais um
mero observador, e sim o indivíduo que recebe uma força causada por alguma ação.
Após este “golpe” inicial, uma textura de superfície áspera, ruidosa e intensa segue
projetada apenas nos canais frontais, de forma mais uniforme.
Tal textura prossegue num movimento coletivo dos elementos internos, como
se fora um córrego, sendo que as alterações espectrais internas graduais deste evento
sonoro configuram um crescimento energético. Em 14’58” a superfície mais áspera se
torna mais suave pela transformação tímbrica, porém existe ainda muita energia
interna auto-impulsionada.
O evento segue com sua transformação interna e por volta de 15’12” um
crescimento energético é realçado pela ascensão gradual de uma faixa espectral,
configurando uma impressão de subida vertical, promovida pelo espaço espectral. A
subida gradual proporciona a consciência de uma noção de altura física e também é
responsável por gerar uma imagem referencial de um veículo com trajetória
ascendente, tal como um avião ou um foguete.
Esta imagem de movimento e de associação com um personagem específico é
originária de uma experiência vivida em um contexto não musical, sendo este fato
realçado pelo espaço espectral. A ascensão da faixa espectral resulta na impressão do
ouvinte ter se transformado momentaneamente num observador dos movimentos, ao
invés de sofrer as forças dele.
O movimento ascendente segue perceptível até 16’12”, onde há um
adensamento e aumento de energia na entrada de projeção dos canais 3, 4, gerando

346
!

um momento de tensão estrutural, realçado pela espacialização. O acréscimo de


canais de projeção altera novamente a percepção do ouvinte, que passa de observador
a sujeito que sofre a influência de forças energéticas, percebidas como uma ação
exercida neste ouvinte. A seguir, a textura dos canais 3 e 4 deixa de soar por um
momento (em 16’27”), caracterizando um recuo temporário da energia e em 16’37”
ocorre um novo impulso energético, proporcionado pelo acréscimo da projeção de
novas camadas texturais, agora projetadas em todos os canais simultaneamente.
Neste momento o timbre da textura global se apresenta transformado em
relação ao material projetado anteriormente nos canais frontais. A difusão em todos os
canais fornece uma percepção que pode ser associada a uma “inundação” ou
“enxurrada”, provocada pela projeção em todas as direções ao redor do ouvinte. O
conteúdo tímbrico ruidoso desta textura também contribui para a noção de
“enxurrada”.
Não são percebidas trajetórias bem definidas neste movimento inteiro, e sim
um movimento interno global decorrente da manipulação das variações de intensidade
nos diferentes canais, bem com das variações espectrais internas do evento sonoro. O
impulso que gera essa “inundação” tem função de elemento de ligação entre as duas
partes deste movimento da obra.
O segundo momento (de 16’36” até 19’37”) será marcado pelo recuo gradual
da energia total do movimento da obra anunciando a calmaria que se segue. O
material sonoro que compõe a “inundação” gradualmente se transforma até o timbre
resultar alterado para um som que gera associações com uma emissão de voz feminina
(em 17’02”). Esta voz reconhecível é projetada somente nos canais frontais, sendo
que os demais canais reforçam o movimento gestual deste som (3 e 4) ou mantém um
resíduo da textura ruidosa anterior (5, 6, 7 e 8). Estas diferentes projeções nos canais
são percebidos neste momento como um todo textural.
A textura resultante do som vocal feminino cresce e a seguir sofre um recuo
energético (em 17’10”), com manutenção de uma textura residual mais fraca, porém
que ainda possui um certo movimento interno. Convém ressaltar que os movimentos
texturais internos contribuem para a percepção da natureza, da superfície ou de um
noção física de uma textura. No caso deste trecho, a textura se caracteriza por
pequenos pontos estalantes que não configuram uma sensação tátil de aspereza, e sim
um movimento auto impulsionado como o da energia elétrica.

347
!

A textura apresenta um crescendo, juntamente com um adensamento do


material (em 17’16”) e um novo recuo em 17’19”. Após o recuo, a textura fica um
pouco mais estável sendo projetada apenas nos canais 1 e 2, o que realça a perda de
energia. A textura contém ainda uma morfologia auto impulsionada, com timbre
semelhante, em 17’10”.
A textura acima descrita segue com poucas variações tímbricas internas e
dotada de movimentos que definem uma propagação, realizada apenas nos canais
frontais até por volta de 17’48”, quando ocorre um novo adensamento textural, a
partir da projeção de camadas adicionais da mesma textura nos outros canais. O
incremento na projeção gera novamente uma escuta mais envolvente e imersiva,
porém com menos energia interna do que nos trechos anteriores. Esta textura imersiva
contém variações espectrais internas que “passeiam” nos canais produzindo uma
sensação de movimento interior do evento sonoro.
A projeção espacial prossegue em um tutti até o final da obra, configurando
uma percepção espacial mais ambiofônica do material musical. Esta estratégia é
contrastante com a projeção focada que ocorria nos canais frontais na parte inicial do
movimento. No decorrer do tempo a textura global sofre transformações tímbricas
graduais e aos poucos se torna menos ruidosa e menos intensa e esta mudança
tímbrica resultará numa única textura granular “fina”, longa e suave. Se torna melhor
percebida em aproximadamente 19’05”, e a seguir esmorece gradualmente até o seu
desaparecimento em 19’37”.
A “suavização” gradual da textura caracteriza um momento de recuo
energético que poderia evocar uma perda do sentimento de ira que é representado
logo ao início da obra. Durante o processo de transformação tímbrica da textura
global, em aproximadamente 18’40”, as camadas texturais projetadas nos canais 5 a 8,
são transformadas na sonoridade de vocalizações alteradas eletronicamente,
semelhantes a um canto Khoomei (como o usado no movimento Amoroso). Ainda que
seja um timbre reconhecível, não é imediatamente identificado, uma vez que se
encontra fundido a outras camadas projetadas no restante dos canais. Contudo a soma
deste timbre com o outros confere à textura global uma aura meditativa, como um
momento de calmaria que é alcançado após a ira.
Portanto, o movimento Furioso é caracterizado pelo desenvolvimento gradual
do material, simbolizando a transformação de um estado de espírito baseado na ira
para uma fleuma ou calmaria subsequente. Esta forma de abordagem do material,

348
!

juntamente com a aparente ausência de trajetórias de eventos individuais, indica a


predominância de uma orientação espacial intrínseca, na qual os movimentos e
transformações internas são predominantes.
Um resumo da disposição formal deste movimento pode ser verificado na
imagem abaixo (Figura 9). Cada seção identificada é nomeada pelo comportamento
da energia da textura principal. A espacialização reforça as inflexões da energia,
sendo que esta evolui de uma situação de fúria até a calmaria. Tais abordagens de
projeção são descritas em mais detalhes nos anexos deste trabalho.

!
Figura 9 - Forma do movimento Furioso da obra Vox Alia de Annette Vande Gorne.

O último movimento da obra, Parola Volante, é também o mais curto, com


duração de 19’51” até 21’48”. Sua duração menor que os outros movimentos e suas
particularidades apontam para a configuração de uma coda. Não se trata de um
movimento que representa algum afeto ou sentimento como mote composicional e
sim de uma homenagem a Pierre Schaeffer e seus pensamentos. O material sonoro
básico é constituído de gravações de falas identificáveis e a transformação eletrônica
destas, incluindo principalmente a voz do próprio compositor, conferindo a este
movimento um grande potencial para a geração de imagens de comunicação.
O material é organizado de maneira polifônica, evocando Bach, um dos
compositores favoritos de Schaeffer, conforme a compositora11. A ideia de polifonia é
mais manifesta pela relação entre os materiais sonoros do que pela espacialização,
considerando que este movimento é construído em estereofonia.
O espaço aqui é explorado sobretudo pelas impressões geradas pelos materiais,
sendo que as noções de planos focais, de distâncias, aproximações e afastamentos se
tornam muito bem identificáveis a partir da manipulação espectromorfológica dos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
Esta informação foi fornecida por nota de programa enviada por correio pela compositora para a
autora deste trabalho.

349
!

eventos sonoros. Além disso, os trajetos em estéreo ouvidos nos oito canais
contribuem para a ilusão de um espaço tridimensional. A orientação espacial deste
movimento é predominantemente extrínseca, com a espacialidade baseada na
percepção de falas reconhecíveis e movimentos gestuais contrapontísticos.
Como a obra é organizada a partir de um material discursivo, o tempo é
percebido de modo direcional, orientando para um objetivo final. O ouvinte não
participa deste discurso, apenas aprecia os movimentos dados pelos eventos as
interações entre eles. Assim é possível dizer que a noção da metáfora do tempo como
objetos moventes foi explorada neste movimento.
A construção de Parola Volante não indica sua estruturação numa concepção
formal perceptível e o desenvolvimento do discurso parece ser elaborado apenas a
partir de transformações sonoras baseadas em gravações de falas proferidas por
Schaeffer. Aqui ocorre uma abordagem curiosa, pois as frases proferidas por
Schaeffer versam sobre transformações morfológicas e espaciais do som, sendo que a
compositora buscou aplicar os conceitos expostos pelo compositor nas transformações
do material.
Dois marcadores estruturais apontam uma delimitação do início e do fim da
obra, sendo elaborados a partir da fala “J’adore Bach” proferida por Schaeffer. A
primeira aparição ocorre em 19’58” e a segunda aparece em 21’35”, podendo ser uma
referência ao uso polifônico dos materiais, bem como à preferência de Schaeffer por
Bach.
A espacialização em multicanal, com o uso trajetórias definidas não aparenta
ser um elemento estrutural importante neste movimento, portanto a espacialidade é
obtida com a escuta da constituição dos eventos sonoros individuais. A espacialidade
pode ser identificada em 21’10”, com a ocorrência de um espaço de proximidade
decorrente do uso da fala de Schaeffer em um primeiro plano, focal e sem
reverberação, configurando a imagem de uma fala próxima ao ouvinte que observa.
Outro exemplo de espacialidade é a simultaneidade espacial percebida nos
momentos em que a fala reconhecível está sobreposta a outros materiais tímbricos e
gestuais diferentes. A fala não possui espacialização, sendo projetada de modo
equilibrado em todos os canais, enquanto os eventos sonoros não reconhecíveis, que
ocorrem num mesmo espaço-tempo, são velozes e com trajetórias panorâmicas no
espaço estéreo.

350
!

Assim, neste exemplo, o espaço representado pela voz é pessoal, referencial e


linear, enquanto o espaço representado pelo material gestual é artificial, caótico e
polifônico. Este tipo de tratamento do material pode ser ouvido desde 21’10” até
20’25” e no intervalo entre 21’02” e 21’15”. As falas reconhecíveis são gradualmente
transformadas, adquirindo um aspecto mais abstraído, resultando incorporadas ao
espaço contrapontístico dos sons não identificáveis.
Esta seção possui ainda muitas particularidades estruturais de interesse,
contudo o foco deste trabalho foi de apontar o uso da espacialização como um
elemento importante na construção formal ou estrutural, bem como a exploração de
espacialidades decorrentes dos eventos sonoros individuais e da relação entre eles.
A descrição de vários aspectos espaciais da obra Vox Alia reforça que tal obra
é um excelente exemplo de uso escritural do espaço em música eletroacústica. O uso
da espacialização como metáfora de afetos subjetivos, unido à uma concepção formal
mais tradicional, fornece experiências auditivas muito expressivas. Espaços inusitados
e criativos permitem uma escuta imaginativa realçada pela manipulação consciente e
planejada dos aspectos espaciais. Assim, neste contexto, o espaço é encarado como
um parâmetro estruturante de mesma importância que outros aspectos composicionais
tradicionais.
Muitos dos conceitos tratados neste trabalho foram explorados nesta obra,
podendo-se citar Parola Volante com estilo espacial global marcado pelo uso de
configurações espaciais múltiplas e simultâneas; Furioso onde a compositora parece
explorar uma definição espacial múltipla. A orientação varia nos movimentos entre
intrínseca e extrínseca, sendo que em Innocentemente e em Parola Volante há uma
predominância maior da orientação extrínseca, marcada pela referencialidade direta
dos materiais. Já no movimento Furioso a orientação intrínseca é um aspecto
marcante do material. Nos movimentos Giocoso e Amoroso observa-se maior
equilíbrio na exploração de tais orientações.
Todos as espacialidades são resultantes da exploração de um nível espacial
figurativo, onde o tratamento espacial nos níveis mais detalhados e no nível mais
global se referem ao metafórico e ao imaginário. É uma exploração espacial que pode
gerar uma escuta associativa, construída a partir do uso de materiais referenciais e
abstraídos.
A própria autora comenta que a obra Vox Alia é construída a partir da ideia de
“figurativismo”, revelado por meio do jogo de figuras espaciais e reforçando a ideia

351
!

de que o espaço pode ser pensado como elemento que realça a expressividade da obra
musical (Gorne, 2002). Ainda conforme a autora, a obra foi concebida com a intenção
de expressar o espírito barroco dos afetos por meio das configurações espaciais. O
espírito barroco ao qual a autora se refere considera questões relacionadas a
expressividade, o afeto, a imagem e a figuração12.
No contexto da música eletroacústica, o

espaço considerado como parâmetro musical, permite também um


novo figurativismo, que reforça o poder dos sons e a capacidade de
comunicação das obras que estão além de qualquer outro código ou
processo13.

Portanto, se torna possível perceber que o uso espacial nesta obra vai além de
um uso ornamental, sendo concebido, juntamente com os outros parâmetros, como
um elemento articulável de grande importância estrutural na construção da ideia
composicional.

Descrição dos processos composicionais realizados neste trabalho.

A seguir serão descritas obras compostas pela autora e que tiveram como fio
condutor o uso do espaço como um elemento de referência para a formulação
escritural. São obras prioritariamente compostas para um sistema de projeção em oito
canais e priorizam a escuta acusmática como um meio de experiência sensorial.
A escolha para as experimentações poéticas foi baseada na manipulação do
espaço por meio da escritura, não pela interpretação espacial em concerto. A
preferência pela escritura espacial decorre da possibilidade de desenvolver etapas de
planejamento que proporcionam momentos reflexivos sobre o conteúdo a ser
expressado por meio da manipulação do espaço. E, tais reflexões contribuem para o
desenvolvimento de um processo investigativo que busca estratégias de tratamento do
material que melhor reflitam a poética adotada durante o processo criativo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Ibid.
13
“L’espace, considéré comme paramètre musical, permet aussi un nouveau figuralisme qui renforce le
pouvoir des sons et la capacité de communication des œuvres qui échappent à tout autre code ou
processus” (ibid.).

352
!

Locus (2010-2015)

Esta obra teve uma primeira versão em 2010 para apenas quatro canais e
posteriormente teve sua espacialização reformulada para um ambiente em oito canais,
devido à possibilidade de emprego dos meios de projeção disponibilizados pelo
Centro de Investigação em Música Electrónica (CIME) da Universidade de Aveiro.
As pesquisas bibliográficas e as escutas analíticas de outras obras eletroacústicas
também influenciaram a nova espacialização, porém o princípio estruturador
permaneceu o mesmo, pois este se revelou parte do processo de investigação poética
apontada neste trabalho.
Em seu caráter global a obra foi construída com base na noção de
espaço/metáfora, pois o tratamento espacial do material sonoro foi realizado com a
finalidade de proporcionar um espaço que faz alusão à diferentes sensações ou
descrições espaciais. Também foi explorada em Locus a ideia de espaço artificial,
pois o resultado da manipulação e tratamento dos eventos sonoros proporcionou
imagens espaciais que não representam espaços ou paisagens reais. O tratamento
abstrato fornecido por uma abordagem formalista de estruturação da obra também
reforça esta ideia de espaço artificial.
Diferentes noções espaciais, ligadas à percepção visual, tátil ou auditiva foram
o fio condutor para a uma delimitação de forma e a partir de tais referências, cada
seção foi relacionada a uma caracterização espacial específica, portanto a obra está
dividida estruturalmente em quatro secções, as quais foram concebidas a partir de
conceituações espaciais como: espaço vazio, espaço percorrido, espaço ocupado e
espaço preenchido.
Os espaços gerados não são excludentes entre si, pois um espaço percorrido
caracteriza um espaço ocupado, bem como um espaço preenchido. Porém, cada
situação foi simbolizada metaforicamente de forma diferente e isolada, através de
uma perspectiva pessoal no tratamento do material musical.
O tratamento dado ao material pode ser identificado com o conceito de espaço
extrínseco ou textura espacial, configuração espacial gerada a partir do resultado do
comportamento espacial dos eventos sonoros, das interações entre eles e com o
ambiente onde existem.

353
!

Deste modo, cada seção consiste em um tipo de espaço extrínseco,


representados graficamente na Figura 2 onde os retângulos representam o ambiente de
escuta da octofonia e o ouvinte estaria localizado ao meio.

Figura 10 - Representação gráfica do espaço extrínseco em Locus

O material sonoro empregado consistiu majoritariamente em sons sintetizados,


sendo alguns sons gravados e processados. Os materiais foram selecionados após as
decisões espaciais que delimitaram a obra. O processo de estruturação teve como
prioridade identificar ou desenvolver morfologias que proporcionassem a melhor
representação metafórica dos aspectos espaciais escolhidos, ao invés da geração de
desenvolvimentos tímbricos.
Na primeira seção (de 0’00” até 2’06”), buscou-se uma noção de “espaços
vazios”, com a imagem metafórica de pouca ou nenhuma habitação de seres ou
objetos num ambiente virtual. As morfologias usadas para representar tais aspectos
consistiram em texturas sonoras de longa duração, com os registros de altura variando

354
!

entre extremos graves e agudos, aludindo a um ambiente amplo, com o espaço


demarcado por limites espectrais de alturas.
As texturas empregadas são alongadas temporalmente e se transformam
gradualmente a partir de um desenvolvimento lento, buscando caracterizar apenas
uma noção de presença espacial. É uma presença que pode ser percebida a partir da
sobreposição de diferentes camadas texturais que se identificam por conterem
superfícies compostas por textons ou de filamentos.
O uso variado dos dois tipos de superfícies texturais tem como propósito
evocar a existência do espaço e sua projeção em todos os canais podendo
proporcionar ao ouvinte uma escuta imersiva, como se ele estivesse posicionado ao
centro deste espaço “vazio”.
O uso de texturas nesta primeira seção também poderia ser identificado com a
metáfora do tempo transparente, onde a evolução lenta do material não fornece
claramente uma expectativa de futuro nem de passado dos acontecimentos sonoros.
A orientação espacial nesta seção é fundamentalmente intrínseca, decorrente
de movimentos texturais, pois o foco de atenção auditiva pretende ser a atividade
interna dos elementos que compõem a textura. Além disso, a escuta tem seu foco mais
voltado para a transformação espectromorfológica gradual, em relação às atividades
que ocorrem fora do ambiente sonoro.
A abordagem textural da primeira seção é constituída por diferentes camadas
(que surgem de modo gradual) que tem a função de representar diferentes ambientes
ou transformação dos espaços. A obra é iniciada com uma textura global composta
por camadas sobrepostas constituídas de textons (granulares) e filamentos, em um
espectro amplo de frequências.
Aos 0’11” uma nova camada de textura com superfície mais “rugosa” é
acrescentada e em 0’23” outra camada mais lisa, sem grãos, numa região mais aguda,
também se torna aparente. Ao longo desta primeira seção, outras camadas texturais
“nascem” e “morrem”, buscando de diferentes formas a geração das imagens de
ambientes vazios.
Cabe ressaltar que o emprego de texturas foi uma opção pela representação
apenas metafórica dos espaços, pois o movimento textural não remete para ações de
um agente, mas sim tem a função de proporcionar a percepção de “habitação” de
algum lugar. Lugares vazios contém elementos naturais como por exemplo vento, luz
e poeira, que não necessariamente remetem à uma ação humana, e considerou-se que

355
!

as escutas texturais são elementos estruturantes que podem simbolizar bem esta
composição ambiental. Houve a intenção de retratar um espaço imaginário que
contém diferentes “compartimentos” e não um ambiente real, sendo que os
compartimentos são representados pelas transformações e não pelo contraste entre
texturas.
Gradualmente o ambiente vazio é transformado por meio da variação da
textura global e, no decorrer do tempo, alguns elementos com contornos mais
definidos aparecem num plano de fundo (como o que ocorre em 0’37”, onde um som
agudo e tremulante é ouvido). Neste contexto ocorre um evento sonoro ambíguo para
a definição estrutural de um gesto ou textura, pois parece ter origem em alguma fonte,
mas seu comportamento contínuo retira a noção de direção. Esta sonoridade foi
construída como um evento sonoro gestual, porém se comporta como uma textura em
sua evolução.
Gradativamente a textura global se torna mais forte em intensidade e com um
maior movimento interno, ocorrendo também um aumento de densidade com a adição
de novas camadas. Em 2’06” sucede uma condensação de parte da textura que se
transforma num gesto, devido à sua localização definida. Esta transformação de
textura para gesto caracteriza a transição para a segunda seção 2 (que tem início em
2’07”).
A segunda seção, relacionada à noção de “espaço percorrido”, é caracterizada
pelo uso constante de movimentos espaciais de gestos sonoros variados. Buscou-se
explorar noções de movimentos gestuais que são caracterizados por trajetórias
definidas e causalidades inferidas acerca de fontes imaginadas ou supostas.
Dentre o material utilizado, grande parte é originária sínteses e
processamentos sonoros, de forma que as noções de causa e movimentos estão mais
relacionadas com transformações espectromorfológicas do que com a identificação de
fontes. Os sons gravados se encontram descontextualizados de uma paisagem
realística, com a intenção de que sejam percebidos por seus movimentos gestuais, que
interagem com os outros eventos sonoros da composição.
A estratégia composicional empregada para representar os espaços percorridos
consistiu no uso de contrapontos de gestos e texturas. Os gestos foram dispostos como
elementos principais neste trecho, porém o uso de texturas teve como propósito de
simbolizar o espaço percorrido pelos gestos, ou seja, aquele espaço que anteriormente
estava vazio.

356
!

Além dos movimentos gestuais, a ideia de plano de fundo e plano de frente


também são usados durante nesta seção, como um dos meios de articular o
contraponto pretendido. Pode-se exemplificar em 2’13” onde movimentos direcionais
estão hierarquicamente posicionados à frente de uma textura contínua e homogênea.
Tal textura serve ambiência para o desenvolvimento de trajetórias, sendo representada
graficamente como uma mancha cinza na ilustração da segunda seção, apresentada na
Figura 10.
Foi explorado o qualificador espacial “aproximação” como forma de geração
da imagem de “espaço percorrido”, como ocorre em 2”28”, quando um gesto se
“aproxima” rapidamente do ouvinte. O gesto é oriundo de uma posição mais afastada
e dirige-se para uma posição mais próxima lateralmente, sendo que a noção
aproximação é determinada pela diferença de intensidade do som.
Uma abordagem diferenciada para a noção de distância pode ser identificada
em 3’09”, onde os gestos possuem diferenças de intensidade, resultando em que
sejam percebidos em distancias diferentes. Nesta abordagem é possível observar notar
que as hierarquias geradas pelas diferenças de intensidade entre os eventos sonoros
podem proporcionar uma escuta de espaço distal.
Várias abordagens espaciais foram exploradas nesta seção, como os diversos
usos de processos de movimentos gestuais, como em 3’11”, quando é possível
perceber um movimento recíproco em parábola, relativo a um gesto composto por
uma superfície de ataques iterativos. É um gesto que possui uma trajetória curva,
muito bem definida, iniciando no canal frontal e seguindo em curva pelo lado direito,
até atingir uma posição traseira.
Em 3’58” é possível notar um emprego de gestos produtores de som, nos quais
é possível inferir uma causa de produção de som, que resulta de pancadas. Também
estão presentes múltiplas ocorrências de gestos amodais, quando as causas são
relacionadas a sensações mais gerais de movimento como em 3’33”, onde é percebido
um “esforço” próprio na geração da trajetória.
Como já relatado, nesta seção buscou-se estabelecer relações contrapontísticas
entre os gestos, o que pode ser observado no trecho que vai de 3’42” até próximo de
3’40”, onde buscou-se aplicar a noção de relação vertical de independência
heterogênea entre duas morfologias diferentes. Neste caso, tem-se um som gestual de
movimento ondulante e descontínuo, agindo em oposição a um som contínuo e agudo.

357
!

Também pode ser citado como tratamento contrapontístico aquele observado


em 3’48”, onde é possível observar ainda a disposição em semiparalelo e uma relação
de independência homogênea. São encontradas duas morfologias em glissando
descendente, que num primeiro momento possuem o mesmo timbre, porém estão
dispostas um pouco afastados temporalmente, o que configura um movimento
semiparalelo.
Ainda nesta seção, podem ser percebidos gestos que poderiam ser descritos
como Unidades Semióticas Temporais, como em 4’32’, onde ocorre um impulso que
consiste em uma variante em equilíbrio rompido. Neste caso parece existir uma força
que “empurra” o evento sonoro, resultando em sua variação no tempo, o que
caracteriza a Unidade Semiótica Temporal.
O uso de gestos como meio de representar um espaço percorrido proporciona a
essa seção uma escuta de tempo direcional, relacionada à metáfora do tempo como
objetos em movimento. Neste caso, a função estrutural dos eventos sonoros é de
fornecer expectativa de um objetivo de chegada para os gestos, erando no ouvinte a
espera por um futuro ainda desconhecido.
A terceira seção tem seu início em 4’30”, com destaque para a noção de
posicionamento, ainda que alguns eventos sonoros ainda possuam uma trajetória. A
estratégia composicional empregada para destacar este aspecto espacial foi a
fragmentação do material sonoro, sendo que os eventos sonoros se encontram mais
espaçados temporalmente e projetados em diferentes altos falantes, proporcionando a
cada som uma posição no espaço.
Outra estratégia para destacar o posicionamento dos eventos sonoros foi a
supressão de um plano de fundo textural, pois a ausência de uma camada sonora mais
contínua (ou em fluxo), proporciona ao ouvinte a noção pontos sonoros distribuídos
em um espaço aberto. Tais pontos podem ser estáticos ou se moverem para direções
precisas, enfraquecendo a noção de polifonia para que sejam evidenciadas as
localizações precisas, como a imagem de uma “pintura” sonora, onde se localizam
apenas formas pontuais.
Em 5’33” os eventos sonoros retomam seus movimentos e iniciam uma
sobreposição, em preparação para a entrada da próxima seção. A transição para a
quarta seção (em 5’36”) é marcada pelo uso de gestos percussivos na região aguda
que gradualmente se adensam até se transformarem em uma textura em 5’45”.

358
!

A quarta seção é caracterizada pelo adensamento textural, buscando gerar uma


imagem metafórica de “espaço preenchido”. Portanto, os eventos sonoros são
sobrepostos e projetados simultaneamente em todos os canais, o que resulta num
espaço preenchido por sonoridades de intensidades fortes que, ao serem sobrepostas,
formam uma textura predominantemente granulada. É uma textura de grande
movimento interno, que envolve o ouvinte em sua escuta, não sendo possível destacar
hierarquicamente nenhum evento sonoro.
A opção pela constituição de uma superfície mais composta por textons se deu
em função da sobreposição de “átomos” ou “grãos” sonoros fornecer uma percepção
de aglomeração do material, ou de movimento reunido, proporcionado uma sensação
de preenchimento espacial.
A descrição de aspectos composicionais desta obra apontou para uma
exploração de experiências auditivas imaginativas, que usam o espaço como um meio
de articular o tempo. Também pode ser observada a busca pela geração de metáforas
associadas a experiências não sonoras em um ambiente musical.

Cerberus (2013)

Cerberus, é uma obra para escuta acusmática composta em 2013, no Centro de


Investigação em Música Electrónica – CIME, sendo uma das obras que também
explora o espaço como um meio de expressão em composições eletroacústicas. Foram
empregados o gesto e a textura como recurso de expressão para o processo de
estruturação, como forma de explorar espacialidades, sendo que a utilização de
materiais gestuais é o recurso mais predominante no desenvolvimento da obra, mas a
textura serve como complemento e como realce para os gestos escolhidos.
A concepção global de Cerberus é baseada em um estudo dos parâmetros
trajetória e localização, que são atributos do espaço. A trajetória é um comportamento
arquetípico do gesto sonoro que proporciona uma escuta espacial imediata na fruição
da obra, e por esta razão é o fio condutor da estruturação formal desta. A localização,
como um parâmetro de manipulação do material sonoro, trata-se de uma
consequência da exploração das trajetórias, que necessitam sair de uma posição
marcada e chegar a um “alvo” ou objetivo.

359
!

É uma obra planejada para oito canais tendo sons gravados e reconhecíveis,
bem como alguns sons sintetizados como opções de material sonoro utilizado. A
escolha pelo uso concomitante de materiais identificáveis e sintetizados se deu a partir
do comportamento espectromorfógico desejado para a exploração das trajetórias.
Buscava-se a delimitação de “famílias” morfológicas específicas, sendo que cada uma
destas famílias proporciona espacialidades diferentes. Assim, as “famílias
morfológicas” escolhidas, por falta de terminologias melhores, foram classificadas
como pela autora como:
• tremolos: família caracterizada por diferentes timbres em tremolos,
repetições iterativas ou sons de morfologias “agitadas”;
• spinnings: família morfológica baseada em sons de objetos em movimento
circular que, quando possuem uma velocidade alta, se assemelham a uma
variação dos trêmolos;
• nuvens frequenciais: morfologia contrastante com as duas famílias
anteriores. São eventos sonoros com superfície textural granular ou em
fluxo de frequências. Tais morfologias podem ter uma apresentação textural
em alguns momentos, mas em outros, podem conter trajetórias definidas,
caracterizando uma escuta gestual.
É necessário ressaltar que a escolha de tais terminologias foi baseada em
associações pessoais da autora, relativas ao comportamento tímbrico e morfológico de
tais eventos
Além das morfologias (com destaque no processo de estruturação), outras
também foram usadas, como complemento, realce e transformação das morfologias
mais importantes. Dentre estas morfologias “secundárias”, são encontrados os sons
com comportamento idêntico ou semelhante a golpes, objetos em que queda ou
“repicando”, bem como ataques percussivos curtos. Tais morfologias construídas a
partir da gravação de sons reais ou de sons sintetizados.
O uso de timbres concretos, abstraídos e abstratos (conforme a terminologia de
Emmerson, 1986) tem a finalidade de induzir a idéia do espaço na escuta, passando
pelo do real, por situações de realidade alterada (ou surrealismos), chegando ao
artificial. Tal uso do enfoque proporciona a variação de configurações espaciais,
sendo possível obter variáveis artificiais, porém com o papel de representar uma
metáfora.

360
!

Como a estratégia de estruturação consistiu na definição de trajetórias e


localizações dos gestos, a principal de referência para o desenvolvimento formal da
obra foram as bifurcações dos trajetos espaciais aplicados às morfologias principais
selecionadas. O título Cerberus, faz referência a estas bifurcações, evocando a
imagem do cão mitológico que possui múltiplas cabeças ligada ao mesmo corpo,
sendo que na obra existe um tronco comum (representado por morfologias de mesma
família) que se divide em trajetórias independentes.
Considerando que a base da concepção da obra é a manipulação de gestos, a
orientação espacial global apresenta-se extrínseca configurando um contexto
composicional carregado por gestos, com predominância deste elemento estrutural.
Esta abordagem resulta também em uma característica temporal fortemente conduzida
para a “frente”, decorrente de movimentos direcionais, onde os detalhes texturais são
menos importantes nos focos de atenção da obra.
A obra se encontra dividida em três seções principais, sendo a primeira
marcada pela apresentação das diferentes morfologias sobrepostas. A segunda é
caracterizada pelo uso de materiais mais gestuais com trajetórias similares, com
bifurcação gradual. Na seção final o material gestual bifurcado em trajetórias únicas.
Cada seção apresenta subdivisões não muito bem definidas, pois o processo de
transformação do material é gradual. Os processos de alteração dos materiais são
dados principalmente pela variação de trajetórias e pelo acréscimo ou mutação de
morfologias.
Um planejamento gráfico foi realizado previamente à construção da obra,
contudo foram necessárias algumas adaptações ao projeto, tendo em vista as
sonoridades que se desejava alcançar. O planejamento gráfico de Cerberus pode ser
observado na Figura 11, que se segue:

361
!

362
!

Figura 11: Manuscrito do planejamento da obra Cerberus

A “leitura” temporal deste planejamento é feita da esquerda para a direita a


partir do título da obra ao canto superior, através das quatro linhas. No canto direito
inferior da figura há uma legenda que indica o que morfologia cada tipo de imagem
representa. Ou seja, as setas sugerem as trajetórias enquanto que as texturas internas
de tais setas indicam as diferentes famílias morfológicas.
Como foi referido há pouco, a obra não foi construída de maneira idêntica ao
que foi planejado graficamente. Primeiramente porque, ela foi concebida
originalmente para ter sete seções, e no processo de construção tais seções não
mostraram forças estruturais suficientes para se manterem como tal. O resultado foi
que, a transformação gradual do material não configurava uma delimitação em tantas
partes formais. Assim, apesar haver um planejamento que delimitava sete seções, na
realidade a obra foi estruturada em três, sendo que as seções que foram antes pensadas
como independentes se incorporam nas seções principais da obra.
Outra alteração em relação ao planejamento inicial se refere ao tempo de
divisão de cada seção, sendo que neste caso as durações previstas para cada seção
também não foram idênticas às realizadas na composição, pois os materiais em muitos
momentos necessitaram ter durações maiores ou menores para que se realçasse as
especificidades estruturais desejadas.
Outro aspecto importante que não é idêntico ao planejamento é a
representação gráfica de trajetórias representadas pelas setas na figura. Tais imagens
são apenas resumos das ideias de direção daquela seção, pois em cada momento
existe mais de um evento sonoro sobreposto no tempo, o que tornaria impossível a
existência de uma única trajetória, como é o caso indicado na figura. Além disso, as
trajetórias dos eventos sonoros individuais não se tratam apenas de movimentos
circulares. Ou seja, são exploradas os mais diferentes “desenhos” de trajetos como por

363
!

exemplo: linhas retas, zig-zags, movimentos em espiral, movimentos erráticos, entre


outros.
Deste modo, a obra se divide nas seguintes seções: a primeira que vai de 0’00”
até 2’44”; a segunda que vai de 2’45” até 6’10” e a terceira que vai de 6’11” até o
final em o 9’32”. É interessante notar que a delimitação de cada seção é um ponto
difícil de reconhecer auditivamente apenas, uma vez que o parâmetro trajetória
espacial não costuma ser processo corriqueiro de delimitação de seções. Isto não que
dizer que no contexto da música eletroacústica tal parâmetro não tenha sido usado,
mas o ouvinte é mais habituado a se apegar a aspectos estruturais relacionados à
alturas, durações ou comportamentos espectromorfológicos durante o processo de
audição de uma obra.
A “bifurcação” espacial das trajetórias é um aspecto que ocorre em algumas
morfologias enquanto outras continuam com suas trajetórias individuais, contribuindo
para que a transição entre as seções seja um processo gradual. Pessoalmente, a autora
acredita que o resultado perceptual foi satisfatório, ainda que não tenha sido preciso,
pois uma relação rica de combinações espaciais e relações contrapontísticas
interessantes foi alcançada a partir deste tratamento do material.
A primeira seção é então, marcada pela apresentação das famílias
morfológicas em relações de interações entre gestos. Esta seção possui um momento
introdutório, que é seguido do desenrolar do material, e um momento de transição
para a segunda seção.
O momento introdutório ocorre de 0’00” até 0’18”, sendo que este é
configurado pela sobreposição de sons de morfologias percussivas, ou de objetos em
quedas ou em “pulos” que servem de disparos a gestos de texturas definidas. Este
momento inicial tem um aspecto muito direcional que serve de “impulso” estrutural
para o início da primeira seção.
Neste trecho foram explorados majoritariamente usos de sons identificáveis
que não foram espacializados de modos realísticos. Por exemplo, o primeiro evento
sonoro que aparece na obra é um som percussivo em movimentos de rebotes rápidos,
como se fosse um objeto que caiu e seguiu em movimentos de salto no solo antes de
sua parada completa. Ao invés de ser espacializado em alternâncias espaciais, o
evento sonoro recebeu uma trajetória de início mais errática (no ataque inicial) e em
sua continuação ela se torna semicircular.

364
!

A escuta deste gesto inicial, sobreposto temporalmente a outros, gera uma


espacialidade não realística, pois apesar de existir uma referencialidade tímbrica de
sons gravados, estes eventos possuem um comportamento espacial
descontextualizados de uma realidade possível. Assim, cria-se neste momento uma
noção de espaço/metáfora, na qual os comportamentos espaciais não realísticos
oferecem mutações na percepção do evento realçando um ambiente virtual que
ultrapassa a realidade.
Em relação à organização vertical dos gestos neste trecho introdutório, estes
possuem relações contrapontísticas de interação ou de disparo. Um exemplo de tais
relações é dado aos 0’08” quando um gesto de trajetória definida que possui um
timbre mais ruidoso serve de impulso para um som metálico de ataque definido que
possui uma trajetória resultante de tal ataque. Assim, estes 18 segundos iniciais da
obra se estabelecem por sequências e sobreposições de gestos que servem de disparos
a outros gestos causando uma energia estrutural que impulsiona a obra para um
objetivo que é a primeira seção.
Em 0’19” inicia-se a primeira seção que é um pouco menos energética que a
introdução, mas ainda é marcada pela direcionalidade temporal aparente fornecida por
gestos. A marcação de um novo momento estrutural (0’19”) é fornecida pelo uso de
um gesto mais alongado onde uma superfície mais textural é ouvida. Tal evento
sonoro parece ser o resultado das ações energéticas geradas a partir dos impulsos
energéticos da introdução.
Ainda nesta seção, serão apresentadas simultaneamente ou em sequência os
três tipos de “famílias morfológicas” descritas anteriormente. Estas famílias aparecem
em diferentes timbres, durações e trajetos espaciais, sendo que esta seção é
caracterizada predominantemente pela relação contrapontística e polifônica do
material musical.
Por possuir relações de contraponto entre gestos, é possível perceber nesta
seção, organizações verticais que possuem relação de independência homogênea ou
heterogênea. O primeiro caso, o de independência homogênea pode ser ouvido em
diversos momentos da obra, como por exemplo o trecho que vai de 1’22” até 1’33”
onde um evento sonoro textural serve de plano de fundo para gestos com diferentes
timbres e comportamentos que possuem trajetos espaciais independentes.
Um outro exemplo de independência homogênea pode ser notado em 1’03”
quando um gesto da família morfológica “nuvem frequencial” segue numa trajetória

365
!

espacial unidirecional em linha reta, sendo que este é seguido (em 1’38”) por outro
evento sonoro de mesma família morfológica do primeiro, porém em uma região
frequencial mais grave. O segundo som possui uma trajetória circular que inicia-se no
canal 1 e segue o trajeto em sentido anti-horário. Neste caso a homogeneidade do
material é revelada pela similaridade morfológica, enquanto que a independência é
indicada pelo afastamento temporal e pelos caminhos espaciais diferentes.
O início da primeira seção é contrastante a introdução por, apesar de ser
gestual, conter elementos de escuta textural. É possível perceber o uso de texturas
contínuas que servem de plano de fundo para boa parte deste momento estrutural,
mais especificamente do trecho que vai de 0’19” até 1’35”.
Inicialmente nesta seção (0’19”), um som mais textural é o foco principal da
atenção, sendo que este parece ser um “resultado” da energia de impulso fornecida na
introdução. Esta textura aos poucos se alonga no tempo sendo sobreposta aos eventos
sonoros gestuais. Os gestos gradualmente se tornam os elementos mais destacados na
escuta retirando a textura do foco principal de atenção, sendo que esta assumirá a
função de ambientação para os eventos gestuais.
Ao longo deste trecho a textura sofre algumas mutações, tais como a mudança
de timbre e realces em relevo, ou ainda um abrandamento de intensidade. Um
exemplo de transformação de timbre ocorre em 1’02” (após o aparecimento de um
gesto de morfologia do tipo tremolo em 1’00”). Neste momento, a textura muda de
uma superfície mais granulada para um comportamento em fluxo contínuo, onde os
grãos não são mais tão bem percebidos. Vale ressaltar que estas texturas são
alongamentos temporais das morfologias que foram denominadas como “nuvens
frequenciais”, pois possuem um comportamento de superfície mais textural que pode
ir do mais granular ao mais contínuo, ou seja em fluxo.
Um exemplo de relevo desta textura pode ser ouvido em 1’37” quando um
adensamento deste evento adquire trajetória linear espacial, com rápida velocidade,
resultando no destaque da imagem de um “pedaço” sendo este podendo ser percebido
como um gesto identificável. Porém, tal gesto, apesar de mais aparente na textura,
ainda parece fazer parte da mesma, devido à semelhança tímbrica que possui com a
textura.
Por volta de 1’52”, um abrandamento de atividade gestual marca o início de
um trecho que serve de transição para a segunda seção, sendo que este trecho se
estende até 2’44”, quando começa a segunda seção. O período de transição é

366
!

assinalado pelo aparecimento de eventos sonoros pontuais de ataques marcados e com


reverberação aparente. Os ataques inicialmente são espaçados no tempo e se
encontram em alturas diferentes contribuindo para uma delimitação de espaço
espectral. Tal delimitação já era de certa forma aparente no trecho anterior, uma vez
que os diferentes gestos continham regiões de altura frequenciais diferentes. Porém
esta delimitação é mais evidente devido ao caráter de concisão gestual dada por sons
curtos e percussivos.
Os ataques que inicialmente são espaçados no tempo geram um efeito que
poderia ser comparado à Unidade Semiótica Temporal “em flutuação”, em que os
eventos sonoros pontuais fornecem um estado temporariamente estável e sem tensão.
Tais gestos (na concepção de Godøy, 2006) seriam classificados como gestos
produtores de som, já que destes são supostas ações agentes que percutem algum
objeto (imaginado) gerando estas sonoridades.
Os sons percussivos gradualmente se “aproximam” temporalmente,
sobrepõem-se pouco a pouco gerando um aumento de densidade. Com o passar do
tempo, a densidade aumenta até o ponto em que a escuta deixa de ser a de gestos
pontuais e para a ser uma textura marcada por superfície granular em 2’30”.
É possível afirmar que existe uma mudança temporária de orientação espacial
neste trecho em que inicialmente é caracterizada por uma orientação extrínseca
revelada pelo posicionamento e comportamento gestual dos eventos sonoros pontuais.
E, na medida que estes pontos começam a se aglomerar eles podem proporcionar uma
escuta mais global de um único evento textural, configurando uma orientação
espacial intrínseca.
Neste trecho é possível identificar exemplos de processos de movimentos
apontados por Smalley (1997) que foram comentados anteriormente. O exemplo mais
aparente é o de aglomeração dos elementos percussivos, que antes eram gestuais e
depois caracterizam-se como agentes de um movimento textural. Essa aglomeração é
resultante também da adição de mais gestos percussivos, em 2’32”, sendo que este
processo de adição de novos textons fornece a noção de exogenia sugerida por
Smalley.
A aglomeração de eventos texturais gradualmente se torna ainda mais densa e
aos poucos adquire um trajeto espacial único caracterizando a noção de movimento
reunido dos elementos percussivos. Este comportamento em trajetória espacial única

367
!

configura uma situação onde uma superfície textural é percebida, mas o movimento
global caracteriza um enquadramento gestual de tal textura.
Em 2’40” é acrescentada à esta textura de elementos percussivos uma camada
de um som textural derivada da família morfológica “nuvem frequencial”. Esta nova
camada possui o mesmo caminho espacial que a textura que já vinha ocorrendo,
realçando o caráter gestual da mesma. Esta soma de camadas proporciona o aumento
ainda maior de densidade que gera uma sensação de tensão estrutural e expectativa de
resolução. A trajetória desta soma de camadas “resultará” num novo evento sonoro da
família morfológica denominada tremolo em 2’45”. Deste modo, mais uma relação de
disparo é identificada neste ponto, pois o trajeto da textura servirá de impulso para o
início do gesto em tremolo.
Este novo gesto em 2’45” é o marco estrutural que indica o início da segunda
seção. Esta nova seção vai de 2’45” até 6’10” aproximadamente. É importante
mencionar que esta seção só é delimitada apenas até “aproximadamente” 6’10”
devido ao fato do final desta seção ainda se cruzar com o início da seção seguinte,
sendo que a transição entre as duas é desenvolvida gradualmente. A característica
deste trecho é então, a bifurcação progressiva dos trajetos espaciais dos diferentes
eventos sonoros.
Este trecho será dividido em subseções onde cada uma é definida pela
exploração de qualidades contrapontísticas relacionadas às trajetórias, ou seja, as
relações verticais entre movimentos espaciais dos eventos. A partir da referência a tais
tratamentos espaciais, as subseções foram divididas e nomeadas da seguinte maneira:
de 2’45” até 4’34” tem-se o “movimento único”; de 4’35” até aproximadamente
6’10” tem-se as “bifurcações”.
O uso do termo “movimento único” não significa que todos os eventos
sonoros individuais contém exatamente o mesmo movimento, mas sim todos seguem
a mesma direção espacial. Os diferentes eventos sonoros possuem durações, timbres e
alturas diferentes, caracterizando a percepção de eventos individuais. E, tais eventos,
apesar de serem independentes entre si, seguem um trajeto comum nesta primeira
subseção. Um exemplo disto é o trecho que começa em 3’03” que é demonstrado
graficamente na figura abaixo (Figura 12):

368
!

Figura 12 - Exemplo de automação do parâmetro azimute no plug-in spatium

Esta figura é uma imagem da automação da espacialização de Cerberus feita a


partir do uso do plug-inSpatium no software Ableton Live 9. A linha vermelha indica a
automação do parâmetro azimute da espacialização. É possível notar que os eventos
sonoros nos diferentes canais possuem o mesmo traçado, porém cada um inicia-se em
tempos diferentes e em posições espaciais também diferentes. Além disso, cada um
dos eventos possui um perfil espectral e morfológico individual. Desta maneira, a
trajetória resultante de cada evento sonoro individual contém o mesmo caminho, mas
será escutada de maneiras diferentes, dadas as diferenças específicas entre os
materiais.
Este tratamento espacial tem a função de provocar uma relação vertical de
independência homogênea. As diferenças de características espectromorfológicas
entre os eventos individuais caracterizam a relação de independência enquanto que a
trajetória semelhante assinala uma homogeneidade. Esta ideia de eventos que seguem
mesmas direções é explorada ao longo de toda a subseção denominada “movimento
único”, sendo que em alguns momentos alguns eventos sonoros mudam o sentido e o
“desenho” de suas trajetórias.
Além da exploração de trajetórias espaciais semelhantes entre os eventos
sonoros, esta seção contém mais algumas especificidades. Um exemplo de disto é o

369
!

modo em que são apresentadas as famílias morfológicas. No trecho que vai de 2’45”
até 2’59” são explorados predominantemente morfologias da família “tremolo”,
sendo que estas possuem um comportamento de movimento interno agitado como se
fossem “sacudidas”. Gradualmente, o efeito de superfície “sacudida” se transforma
em uma superfície constituída de elementos internos iterativos (de aproximadamente
3’00” até 4’34”. Eventualmente, alguns gestos de outra família morfológica tem um
breve aparecimento, como por exemplo em 3’39” quando um evento da família
“nuvem frequencial” faz um movimento gestual de serve de impulso para um outro
evento sonoro da família tremolo.
Estas características em tremolo – reveladas por movimentos internos
“sacudidos” ou iterativos – dos eventos sonoros individuais relacionam-se com a
noção de superfície desses elementos. A percepção de uma superfície como foi visto,
é uma conceito relativo à noção de textura. Porém, cada um destes eventos possuem
delimitações temporais curtas, trajetórias definidas e causalidades supostas ou
imaginadas que determinam uma característica gestual predominante. Assim, os
aspectos de superfície denominam mais a noção de “materialidade” dada ao material
por meio de associações táteis ou dadas durante a escuta de tais morfologias. Porém,
tal evento é percebido por seu aspecto exterior, como o movimento delimitado por sua
trajetória, ou ainda uma causa energética possível que é imaginada ou associada à
uma situação real.
Em 4’35” é escutado um ataque que serve de causa para o surgimento de um
novo trecho. Tal trecho explora novas morfologias que se seguirão até 5’10”
aproximadamente. Estas morfologias são a variação dos eventos com superfícies
caracterizadas por movimento “sacudidos” ou iterativos, sendo estas morfologias
denominadas como como spinning. Estas sonoridades são extraídas de gravações de
sons de objetos em movimento circular rápido, como moedas, ou outros objetos
equivalentes. Neste contexto, também existirão ataques definidos, que são parte de
gravações dos mesmos objetos em queda seguidos do referido movimento circular.
Ainda neste trecho, de modo progressivo, começam a reaparecer morfologias
exploradas nos trechos anteriores, como por exemplo em 4’53” ouve-se um som
iterativo na região aguda. E, no trecho seguinte (que vai de 5’10” até 6’09”) as três
morfologias são exploradas novamente em contraponto.
É importante assinalar que as “bifurcações” começam a ocorrer em 4’45”, e
estas se referem ainda ao material relacionado à família morfológica “tremolo”. Deste

370
!

modo, este trecho poderia ser descrito como a exploração da variação de tremolos
que é tratada da seguinte maneira: os eventos sonoros “sacudidos” se transformam em
“iterativos” que se transforma em “spinnings”. Neste contexto, um tratamento
composicional da música instrumental tradicional – a variação – é traduzido num
contexto organização de morfologias no continuum.
Uma outra variação seria o tratamento espacial das trajetórias, que de 2’45”
até 4’34” eram semelhantes entre todos os gestos usados e a partir de 4’35” começam
a ser independentes entre si. Sendo assim, o trecho que inicia-se em 4’35”
(denominado como “bifurcações”) é constituído da aplicação de trajetórias espaciais
diferentes entre os eventos sonoros. Ou seja, tal trecho contém também bifurcações
nas relações verticais de trajetórias.
De modo gradual os eventos deixam de seguir o mesmo caminho e começam a
se tornar independentes após o trecho citado acima. Além disso, a interação das três
variações da família morfológica “tremolo” que iniciam-se por volta de 5’10”
reforçam tal relação de autonomia de cada evento sonoro individual. É importante
destacar que a “bifurcação” das trajetórias ocorre de maneira gradual, sendo que,
enquanto algumas trajetórias seguem numa mesma direção, outras começam a seguir
seus próprios caminhos.
Deste modo, progressivamente, a relação vertical dos gestos vai de uma
relação de independência homogênea para uma de independência heterogêneaı, sendo
que a parte final da segunda seção é então, novamente caracterizada por uma relação
vertical contrapontística de gestos sonoros que se tornam autônomos.
Em 6’11” um som gestual de ataque bem definido introduz um evento sonoro
da família morfológica “nuvem frequencial”. Esta introdução deste novo evento dá
início ao tratamento espacial da terceira seção que foi denominado “fusões” que se
encerra ao final da obra.
O início desta última seção constitui uma fase de polifonia dos materiais
revelada pela relação de independência entre os eventos construída na seção anterior.
A adição da nova morfologia – “nuvem frequencial” – reforça a delimitação de uma
nova seção, pois um elemento novo é apresentado na escuta.
A denominação desta seção como “fusões” é justificada pelo comportamento
dos gestos que inicialmente interagem em relações independência entre eles e aos
poucos voltam a seguir um trajeto comum. O processo de “fusão” de trajetos também
é progressivo e se desenvolve até ao final da obra, onde é escutada uma única

371
!

trajetória em eventos sonoros de mesma morfologia e timbre. Vale lembrar que tal
“fusão” é apenas metafórica e se refere especificamente ao sentido das trajetórias dos
eventos individuais, e não necessariamente à fusão de timbres, como ocorre em outras
abordagens composicionais apontadas neste trabalho14.
Nesta parte da obra, inicialmente alguns eventos sonoros seguem trajetos
independentes e mais adiante outros eventos gradualmente “adotam” trajetos de
outras morfologias próximas a esses eventos. Um exemplo desta abordagem pode ser
observado em 6’22” quando um som gestual em movimento rápido de rotação é
sobreposto a outro evento de morfologia semelhante mas que inicialmente possui uma
trajetória circular lenta, mas que ao final de sua duração adquire a mesma velocidade
e direção circular do primeiro evento. A seguir, em 6’23”, uma repetição do primeiro
evento é realizada com o mesmo trajeto, enquanto os eventos anteriores ainda soam,
como num movimento contrapontístico de vozes em canon.
Enquanto ocorre tal “canon”, um outro evento sonoro de timbre e morfologia
semelhante, mas com mais reverberação e tempo mais alongado, inicia-se com uma
trajetória mais lenta (em 6’24”) e termina com o mesmo trajeto circular que os
eventos anteriores. Ou seja, neste contexto, os eventos gradualmente possuirão o
mesmo caminho espacial e mesma velocidade, porém em posições temporais
diferentes, anunciando a fusão mais adiante na obra.
Em 7’33”, um outro exemplo de “fusão” pode ser apontado. Neste ponto
vários eventos sonoros gestuais da família “nuvem frequencial” são sobrepostos no
tempo. O primeiro som que possui ataque definido e ocorre alguns instantes antes dos
seguintes e possui uma trajetória própria, enquanto que os sons que o sucedem
possuem trajetos idênticos entre eles. É importante ressaltar que eventos sonoros de
trajetórias idênticas, apesar de possuírem morfologias e timbres semelhantes, possuem
diferenças sutis de contorno espectral, duração e velocidade. Neste contexto, devido a
tais eventos possuírem morfologias e timbres semelhantes, torna-se difícil separá-los
na escuta, configurando um momento de ambiguidade na percepção de trajetórias. Tal
ambiguidade fornece uma escuta espacial obscura, onde é difícil precisar o caminho
exato do material. Pessoalmente, a compositora acredita que este não se configura um
problema composicional, mas sim uma situação onde abre à diferentes interpretações
possíveis para quem escuta a obra.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Outra abordagem para a noção “fusão” foi apontada na obra 2261 de Mario Mary, na qual o autor
trabalha o conceito de “orquestração eletroacústica” que foi abordada no capítulo quatro desta tese.

372
!

Ao longo desta seção serão explorados diversos recursos que representam a


“fusão” das trajetórias que progressivamente irão resultar no desaparecimento de
morfologias independentes, fornecendo um único tipo de morfologia que é
apresentada inicialmente em 9’04” e se estende até o final da obra. Ou seja, de modo
gradual, nesta seção, ocorre um “esvaziamento” de materiais representando uma fusão
de ideias num único contexto tímbrico e morfológico ao final da peça.
Esta morfologia explorada a partir de 9’04” é um evento sonoro não
reconhecível, gestual resultante de um comportamento iterativo de textons sonoros.
Tal evento é uma “síntese” do comportamento interno dos maioria dos eventos
sonoros individuais da obra, que são marcados por tremolos e iterações. O uso das
“nuvens frequenciais” neste ponto da obra tem a função de contraste com os eventos
em tremolos.
Em resumo, abaixo é apresentada uma representação gráfica da divisão formal
das seções da obra, na qual é ilustrado o modo em que as morfologias foram dispostas
no decorrer da duração, bem como os pontos estruturais em que os comportamentos
espaciais definidos pelos trajetos delimitam a forma global da obra (Figura 13). As
marcações de tempo não são indicadas na imagem, pois esta representa apenas a
concepção formal global. Tal exemplo demonstra então, escolhas composicionais
abstratas que delimitam uma estruturação baseada na construção de espacialidades.

Figura 13 - Representação da forma global de Cerberus

É possível afirmar que a obra Cerberus, de diferentes maneiras, aborda a


espacialidade como um meio de concepção formal. O uso do material
predominantemente gestual é um exemplo de espacialidade, pois tal obra explora o
movimento em trajetórias como um meio de gerar uma percepção temporal direcional
que é influenciada pelo comportamento espacial dos eventos sonoros.

373
!

Outro exemplo da exploração de espacialidade é a mistura de materiais


identificáveis com materiais sintetizados, sendo que ambos possuem morfologias que
se assemelham. Como já foi referido, este uso do material induz a uma orientação
espacial extrínseca, já que mesmo quando não se conhece a origem do material
sintetizado, é possível comprá-lo aos materiais reconhecíveis de morfologia similar.
Apesar da existência de sons reconhecíveis da realidade extra-musical, o
tratamento dos materiais não permite a escuta realística de um espaço/paisagem. Este
fato ocorre porque, além do uso de materiais sintetizados que não fariam parte de uma
paisagem, alguns materiais gravados recebem trajetórias que são diferentes das
ouvidas na realidade. Além disso, o tratamento abstrato de organização do material
não permite uma escuta naturalística, mas sim um contexto de nível espacial
estrutural, que como foi abordado anteriormente, se refere ao uso de movimentos dos
materiais como um meio destacar ou clarificar um momento específico da estrutura.
E, nesta obra estrutura e trajeto são conectados no ato de sua escritura, sendo este um
processo abstrato de organização da obra.
O uso predominante de gestos também demonstra a exploração de uma
abordagem composicional que valoriza um espaço móvel. Como foi visto no capítulo
anterior, tal abordagem espacial é desenvolvida a partir da exploração aspectos
gestuais e de transformação do material sonoro. Mesmo nos momentos em que os
gestos são resultantes de eventos sonoros identificáveis, o foco estrutural é dado nos
movimentos e interações destas sonoridades, mais do que no reconhecimento direto
da fonte de tal evento.
É possível também afirmar que a predominância gestual nesta obra faz
referência à noção da metáfora do tempo como objetos em movimento, no qual da
temporalidade é percebida a partir da consciência da passagem de acontecimentos
dados pelos eventos gestuais. E, neste caso, a passagem de acontecimentos é realçada
por trajetórias espaciais que “materializam” movimentos direcionais caracterizando
um tempo induzido para algum “objetivo”.

Indução (2014)

A obra Indução foi concluída em 2014 e também foi composta no CIME, na


Universidade de Aveiro. Da mesma maneira que as obras apresentadas anteriormente

374
!

neste trabalho, esta obra é uma composição que prima o uso de aspectos espaciais
como uma referência de estruturação.
A ideia primeira para a construção da obra foi elaborada a partir da reflexão
por parte da autora da noção de movimento. Dentre as diferentes conceituações a
concepção da noção de movimento como “deslocamento de um corpo, mudança de
posição no espaço”15, ou ainda como “ação, animação, variedade16” serviram de
referência para o desenvolvimento composicional.
A partir de tais conceituações foram pensados meios de representar o conceito
de “movimento” como um parâmetro componível. A maneira escolhida de simbolizar
tais noções foi através da concepção de orientação espacial extrínseca ou intrínseca,
sendo que no primeiro caso são valorizadas as noções de deslocamento e no segundo
de transformações internas do material que são responsáveis por gerar “animação” ou
“variedade”.
Deste modo, a estruturação formal da obra se baseou no conceito de orientação
espacial revelada pelo movimento. Neste contexto, a valorização da escuta dos
aspectos espaciais que remetem a associações com elementos externos à obra (como
causas e trajetórias) fornecem a orientação extrínseca, enquanto que a espacialidade
fornecida pela constituição interna dos eventos fornece para a escuta uma orientação
intrínseca.
A maneira de desenvolver os aspectos relacionados com a exterioridade dos
eventos sonoros na obra foi a exploração das noções de “causa” e “consequência”.
Como meio de valorizar a noção de “causas”, são usados materiais gravados ou
sintetizados que apresentam à escuta noções de ações reconhecíveis ou supostas de
causas possíveis de geração de eventos sonoros. As “consequências” são
representadas por sons que seriam resultantes das ações exteriores.
As “causas” são ilustradas inicialmente por sons que caracterizam quedas,
golpes e choques, e as “consequências” são representadas por movimentos sonoros
resultantes do Efeito Doppler ou “whooshes”17.

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15
No original: “Déplacement d'un corps, changement de position dans l'espace”. Versão francesa on-
line do dicionário Larousse disponível em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais
16
Definição dada na versão on-line do dicionário Michaelis disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=movimento
17
o termo “whoosh” é uma onomatopéia que representa o tipo de morfologia velos que se desloca de
um ponto a outro. Tal efeito é semelhante ao Efeito Doppler, porém a noção de deslocamento é dada
pela variação de intensidade e não envolve variação espectral.

375
!

A referências iniciais de causa e consequência representam a noção de


orientação extrínseca, já que são relacionadas à situações não necessariamente
sonoras, como golpes ou movimento de um objeto “passando” (no caso do Efeito
Doppler).
No decorrer da obra, o material sonoro fica mais alongado temporalmente e
menos reconhecível configurando uma orientação espacial intrínseca, focada nas
variações internas dos eventos sonoros. Deste modo, a escolha de tratamento do
material mais evidente que representasse tais orientações espaciais é o uso de gestos e
texturas sonoras.
Do mesmo modo que Cerberus, em Indução o uso de sons gravados não tem a
finalidade de gerar paisagens realísticas, mas sim proporcionar enriquecer a escuta
espacial. Tais sons são descontextualizados de seus ambientes reais e são sobrepostos
ou misturados a sons sintéticos gerando uma escuta musical baseada em espaços
abstratos e metafóricos dados a partir da combinação dos diferentes eventos e de seus
movimentos particulares.
A estruturação de Indução possui uma abordagem muito simples, pois
basicamente a obra é divida em duas partes principais, sendo que a primeira tem a ver
com causas externas e movimentos resultantes e, na segunda parte as causas dos
movimentos são as transformações internas de texturas.
Sendo assim, esta obra prioriza também a noção de movimento como
elemento estruturante, sendo que este é representado por agentes causas e
consequências externas ou por transformações graduais internas.
Na primeira parte predominam aspectos gestuais e na segunda aspectos
texturais (apesar de existirem os dois aspectos em ambas as partes). Uma
representação da forma global é fornecida na imagem (figura 14) abaixo:

!
Figura 14 - Representação da forma global de Indução

376
!

A figura acima representa apenas a concepção global da obra, e não demonstra


as especificidades descritas ao longo do tempo. Os traçados são apenas imagens
generalistas que servem para ilustrar as concepções de uso do material, e não apontar
relações visuais precisas que ilustram eventos sonoros. Os traços curtos simbolizam
causas, enquanto que as setas pequenas simbolizam trajetórias. O grande traço
borrado na segunda seção irá representar o desenvolvimento textural que será descrito
mais adiante.
A marcação de tempo não é indicada na figura, pois esta representa apenas a
proporção de uso dos materiais. Em resumo, a obra é dividida temporalmente da
seguinte maneira: a primeira seção é delimitada do trecho que vai de 0’00 até 3’02” e,
a segunda seção é demarcada pelo trecho que vai de 3’03” até o final em 9’06”.
Na primeira seção existem subdivisões baseadas no enfoque do material sendo
que estas são definidas pelo enfoque nas “causas” ou nos movimentos
(“consequências”). Os tópicos abaixo indicam as delimitação das subseções:
• Introdução: “Impulso gerador”. Trecho que vai de 0’00” até 0’19”.
• 1ª subseção: “Causas apenas”. Trecho que vai de 0’19” até 0’57”.
• 2ª subseção: “Consequência apenas”. Trecho que vai de 0’58” até 1’05”.
• 3ª subseção: “Causa apenas”. Trecho que vai de 1min e 6s até 1min e 54.
• 4ª subseção: “Consequência apenas”. Trecho que vai de 1’55” até 2’22”.
• Transição para segunda seção: “Causa mais consequência”. Trecho que vai
de 2’23” até 3’04”.
Cada uma destas terminologias foram definidas pela compositora como um
guia para a estruturação aplicável apenas para esta obra. Assim, a primeira seção é
definida por uma interpolação do enfoque estrutural dos elementos composicionais
escolhidos.
Na parte introdutória são ouvidos sons de causas muito aparentes como
quedas e golpes sobrepostos temporalmente e em relação de interação entre eles. Tal
disposição tem a função estrutural de fornecer um impulso energético que origina a
obra, e é por esta razão que foi nomeado como “impulso gerador”.
A subseções que seguem dão enfoque a aspectos extrínsecos específicos. Na
primeira são apresentas causas geradoras de som, mais uma vez variadas de ataques,
golpes e quedas, porém estes eventos são mais espaçados temporalmente.

377
!

Um exemplo de interação é fornecido em 1’31” em que um movimento em


“ricochete” de um som com ataque definido serve de disparo para um som percussivo
de timbre metálico numa região aguda. Este trecho valoriza a noção de ações que
“causam” outros sons que podem servir como agentes que produzirão outros eventos
sonoros.
A segunda subseção é um “isolamento” da sonoridade de trajetórias apenas,
como se fossem escutadas como fenômenos em si. O tipo de morfologia escolhida
busca simbolizar essa “trajetória pura” foi a resultante de Efeitos Doppler, ou ainda
movimentos que se assemelhassem ao trajeto de um pêndulo. Esta escolha por tais
sonoridades não se baseou em nenhuma abordagem espacial documentada por alguma
bibliografia, trata-se apenas de uma escolha estética pessoal que visa um resultado
expressivo significante na obra.
Buscou-se, neste contexto, explorar um momento estrutural contrastante a
partir da “separação” (metafórica) de duas fases de produção de movimento sonoro: a
sua causa e a sua continuação.
Existem ainda os momentos de transição nos quais ocorrem os processos de
junção da “imagem de causa” com a “imagem de movimento”. Um exemplo deste
tipo de processo ocorre 1’49”, quando um gesto em woosh serve de impulso para um
gesto resultante de com um comportamento iterativo.
Este material tratado isoladamente configura uma visão abstrata de
processamento do material sonoro que fornece espacialidades não naturais que se
aproximam da noção de espaço artificial. Tal artificialidade é percebida mesmo
quando é feito o uso de sons gravados, pois estes sons concretos possuirão funções
estruturais específicas, como foi por exemplo o caso dos ataques e quedas usados na
introdução e na primeira subseção da obra.
As subseções que se seguem se tratam da variações tímbrica e morfológica
dos materiais apresentados nas subseções 1 e 2. Estas variações são bem evidentes se
comparadas com as subseções 2 e 4. No primeiro caso são sobrepostas “trajetórias
puras” de um timbre único, porém com durações e alturas diferentes, enquanto que no
segundo caso são sobrepostos materiais que representam tais trajetórias constituídos
de timbres e durações diferenciadas.
A última subseção configura o momento de transição que objetiva a segunda
seção da obra. Este trecho é caracterizado pela exploração da “soma” entre as duas

378
!

“fases” de constituição de um movimento sonoro, ou seja, as causas e as trajetórias


interagem neste contexto.
Neste trecho morfologias com comportamentos semelhantes a ataques,
ricochetes, golpes ou pancadas servem de causas para diferentes trajetos dados por
morfologias resultantes de Efeito Doppler e wooshes. Ou ainda, os trajetos servem de
impulso para golpes ou ataques. Nesta parte são feitas diversas “colagens” de ataques
em trajetórias de timbres diferente, gerando sonoridades artificiais, mas com
movimentos “plausíveis”. A plausibilidade de tais movimento é revelada pela
percepção gestaltica da união de uma “causa” (ataques) com uma “consequência”
(trajetos) que não necessariamente são partes de uma mesma fonte.
Ainda na subseção que serve de transição, vale destacar o trecho que vai 2’36”
até 3’04” onde são identificados movimentos gestuais recíprocos (como o balançar
de um pêndulo) que são alongados no tempo e gradualmente aceleram gerando um
tensão estrutural de expectativa de um novo acontecimento. A aceleração destes
movimentos ruma ao encontro com um gesto alongado no tempo, numa região
frequencial aguda e contínua. Este comportamento fornece uma sensação de força
contrária que não permite o tempo de avançar, como uma situação de frenagem18.
Esta “força de resistência” realça o sentido de tensão estrutural que gera uma
expectativa de resolução.
Uma primeira resolução à essa tensão é apresentada a partir do aparecimento
de um som gestual que varia em freqüência em 3’00”. Este gesto precede um novo
som contínuo e ascendente que caracteriza uma nova “frenagem” que é “resolvido”
em um novo golpe. Este golpe que serve de causa para o surgimento de uma nova
textura granular que se dispersa no espaço em 3’04”. Esta textura granular resultante
do ataque é o ponto estrutural marcador de mudança de seção.
A nova seção tem seu início em 3’04” e se estende até o final da obra. É
possível notar que esta parte da obra tem uma duração muito maior que a primeira,
pois o material principal que a constitui é mais alongado no tempo para proporcionar
a escuta mais textural.
Em contraste com a primeira seção, esta segunda parte possui uma evolução
temporal mais lenta que marca a predominância de uma exploração da metáfora do
tempo transparente, em que não é possível prever um objetivo de chegada próximo.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Em analogia com a UST frengem que faz parte do grupo classificatório “Variantes em evolução
contrariada”. Tais conceituações foram dadas no capítulo 4 desta tese.

379
!

Porém, movimentos são perceptíveis neste trecho, no entanto não são direcionais e
são compostos pela animação interna dos elementos que os compõem.
Este trecho também é assinalado por uma escuta imersiva do material que
revela a noção de espaço ambiofônico em que o ouvinte está inserido em um
“ambiente” sonoro artificial que contém variações que são auto-impulsionadas e não
são causadas por um agente externo.
O trecho inicial desta segunda seção ainda contém a aparição de golpes ou
trajetos gestuais, porém estes servem apenas como elementos que impulsionam
momentaneamente a textura para um momento futuro. Porém, o foco estrutural
continua sendo na escuta textural. Um exemplo de um movimento gestual é
demonstrado em 3’41” onde um ataque muito reverberante é o resultado de um
crescimento de densidade e de velocidade textural que ocorreu na textura.
A constituição morfológica das texturas que compõem a segunda seção são
predominantemente constituídas de superfície textonal, onde a variação interior é
revelada pela relação entre grãos sonoros, “estalos” ou ainda superfície marcada por
pequenos ataques iterativos. Deste modo, esta segunda parte é baseada nas
transformações intrínseca das texturas e não em causas externas ou trajetos definidos.
Neste contexto, a concepção de movimento é gerada a partir das transformações dos
elementos constituintes.
As transformações internas podem gerar noções de movimentos texturais e,
um exemplo deste tipo de movimento é apresentado em 4’28” quando um impulso
energético gera a dispersão dos textons por todo o espaço ambiofônico. Outro
exemplo de movimento textural é observado em 4’14” quando alguns textons se
comportam em fluxo, como se estivessem sendo “despejados” em um ambiente.
Um exemplo de compactação da textura pode ser observado em 5’39’, quando
a textura se contrai ao ponto de se tornar um gesto com trajetória definida. Então, esta
trajetória assumirá a função de “causa” para um evento sonoro textural que se
dispersa no espaço espectral em 5’49”.
Deste modo, a segunda seção se desenvolve a partir de diferentes
metamorfoses da textura, que podem ser tímbricas ou morfológicas. Em alguns
momentos a textura se esvazia (como no trecho entre 6’40” até 6’48”) ou pode se
tornar mais caótica e movimentada (como no trecho que vai de 6’14” até 6’27”
aproximadamente). Na segunda seção existem também alguns materiais gestuais, mas

380
!

estes são fornecem focos principais de atenção e servem estruturalmente como


elementos constituintes da textura.
Em 8’16” ocorre um grande aumento de densidade da textura fornecido pela
sobreposição de textons. Este aumento de densidade é mais intenso que outros dados
anteriormente na obra, e configura mais um momento de tensão estrutural. Os textons
sobrepostos possuem grande reverberação o que podem caracterizar um espaço com
delimitações, pois a reverberação indica a informação de uma imagem de existência
de materiais refletores para este sons.
Assim, com uma noção de espaço delimitado, o aumento de intensidade e de
quantidade de textons tem a função de provocar uma sensação de preenchimento
espacial que é reforçada pela inserção de camadas de texturas em fluxo. Este
“preenchimento” espacial é um ponto estrutural de tensão que irá anunciar o final da
obra. O final é então caracterizado por um rápido “esvaziamento” do espaço dado
pela rarefação dos textons que inicia-se em 8’47” e termina apenas com “resíduos” de
textons em pianíssimo no final da obra.
Esta foi então a descrição de uma terceira obra que valoriza aspectos espaciais
como elementos de referência para a definição de uma escritura em música
eletroacústica. Nesta obra a noção de causa está relacionada com a idéia de injeção de
energia, sendo que a revelação de tal energia a partir de trajetórias torna o espaço
perceptível. Já as texturas, tem a intenção de fornecer a noção de presença espacial
onde o ouvinte está inserido neste “ambiente” espacial artificial.
Além, destes referidos conceitos, esta obra explora outras abordagens
espaciais em sua estruturação como, por exemplo, a noção de espaço móvel na
primeira seção em contraste coma noção de espaço ambiofônico na segunda. O uso de
gestos e texturas também é um recurso predominante como um meio de se adquirir as
espacialidades desejadas na composição.

381
RIA – Repositório Institucional da Universidade de Aveiro

Estes anexos só estão disponíveis para consulta através do CD-ROM.


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Universidade de Aveiro

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