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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades - Luís de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
(Decio Pingnatari,
1957)

A um poeta – Olavo Bilac (1919)

Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego


Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício


Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
João Cabral de Melo Neto – A
imitação da água

De flanco sobre o lençol,


paisagem já tão marinha,  
a uma onda adeitada,
na praia, te parecias
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava


naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha 
(por horizontal e fixa), 
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.

Uma onda que guardasse


na praia cama, finita,
a natureza sem fim 
do mar de que participa,

e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas

mais o clima de águas fundas,


a intimidade sombria
e certo abraçar completo 
que dos líquidos copias.
Ode à minha perna esquerda – José ........a sangrar no meio
Paulo Paes ........de tão grande sertão?

1 ..............................não
..............................n ã o
Pernas ..............................N Ã O !
para que vos quero?
Se já não tenho 3
por que dançar,
Se já não pretendo Aqui estou,
ir a parte alguma. Dora, no teu colo,
Pernas? nu
como no princípio
2 de tudo.

Desço Me pega
.........que .....................subo me embala
................desço...... que me protege.
........................subo Foste sempre minha mãe
........................camas e minha filha
........................imensas. depois de teres sido
(desde o princípio
Aonde me levas de tudo) a mulher.
todas as noites
........pé morto 4
........pé morto?
Corro, entre fezes Dizem que ontem à noite um
de infância, lençóis inexplicável morcego
hospitalares, as ruas ....assustou os pacientes da enfermaria
de uma cidade que não dorme geral.
e onde vozes barrocas
enchem o ar Dizem que hoje de manhã todos os
de p vidros do ambu-
.....a ....latório apareceram inexplicavelmente
.....i sem tampa,
.....n ....os rolos de gaze todos sujos de
.....a sufocante vermelho.
e o amigo sem corpo
zomba dos amantes 5
a rolar na relva.
Chegou a hora
........Por que me deixaste de nos despedirmos
.............................pé morto um do outro, minha cara
.............................pé morto data vermibus
perna esquerda. diante do Juiz
A las doce em punto coragem:
de la tarde não tens culpa
vão-nos separar (lembra-te)
ad eternitatem. de nada.
Pudicamente envolta
num trapo de pano Os maus passos
vão te levar quem os deu na vida
da sala de cirurgia foi a arrogância
para algum outro (cemitério da cabeça
ou lata de lixo a afoiteza
que importa?) lugar das glândulas
onde ficarás à espera a incurável cegueira
a seu tempo e hora do coração.
do restante de nós. Os tropeços
deu-os a alma
6 ignorante dos buracos
da estrada
esquerda... direita das armadilhas do mundo.
esquerda... direita
....................direita Mas não te preocupes
....................direita que no instante final
estaremos juntos
...Nenhuma perna prontos para a sentença
...é eterna. seja ela qual for
contra nós
7 lavrada:
as perplexidades
Longe de ainda outro Lugar
do corpo ou a inconcebível
terás paz
doravante do Nada.
de caminhar sozinha
até o dia do Juízo.
Não há
pressa
nem o que temer:
haveremos
de oportunamente
te alcançar.

Na pior das hipóteses


se chegares
antes de nós
Autopsicografia – Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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