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Coragem de Mulher - Lyn Stone
Coragem de Mulher - Lyn Stone
LYN STONE
DIGITALIZAÇÃO E REVISÃO
JOYCE GALVÃO
CAPÍTULO II
Capítulo III
Mairi desceu a escada e retomou seu lugar de vigília, ao lado do pai. Rob
não lhe falou da promessa. Na manhã seguinte a levaria para longe do único
lar que ela conhecera. E não seria uma partida tranquila. Ela teria uma
despedida ainda mais triste a suportar antes que a hora chegasse. Ele sentou-
se ao lado dela, no banco, vendo-a inclinar-se, os cotovelos apoiados na mesa
onde seu pai jazia.
De repente, Mairi endireitou-se e deu um pulo, como se expulsasse o
sono.
— O que foi? — perguntou Rob.
— Você ouviu? O galo cantou — ela murmurou. Ele quase não
compreendeu as palavras. — É de manhã.
Lorde Maclnness voltou a cabeça e sorriu, em um adeus a ambos.
— Guarde-a… em segurança — disse, e exalou seu último suspiro,
parecendo feliz de se entregar à paz da morte.
Nobre até o fim, pensou Rob, admirando o homem por enfrentar a morte
com ele o fizera. Não com suspiros e lamentos. Apenas com um sorriso e uma
ordem visando à segurança da filha. Qualquer um ficaria or gulhoso de morrer
assim, e Rob viu esse orgulho re fletido.nas faces dos homens de Maclnness.
Os delicados dedos de Mairi tremiam quando ela fechou os olhos sem
vida de seu pai. Exaustão, dor e pesar tinham empalidecido suas feições, de
um rosado natural, e tornado seu. corpo rígido de uma tensão que ele gostaria
de dissipar. Seria melhor que ela liberasse sua angústia e se conformasse.
Não, ele pensou, recriminando a si mesmo. Ela não se conformaria
mesmo que chorasse por dias ou meses. Ninguém abandonava um ser amado
para a morte tão facilmente assim.
Rob podia apenas imaginar a terrível e imensa tris teza que sentiria para
sempre se ele perdesse o homem que tratava como pai.
O sentimento que tinha para com seu pai verdadeiro era completamente
diverso. Se, aos dez anos de idade, Rob soubesse como, teria mandado
realizar uma cele bração pelo passamento daquele homem, por ele mes mo,
por sua mãe, e por todos os outros em Baincroft que haviam caído sob a
crueldade daquelas mãos domi nadoras. Mesmo agora, tantos anos mais tarde,
ele não poderia suportar chamar aquele homem de seu pai.
Então, porém, o conde de Trouville havia chegado da França para casar-
se com a viúva. Não podia existir homem mais perfeito, Rob havia decidido
logo depois de conhecê-lo. Ainda hoje acreditava que assim fosse.
Em todas as coisas, Rob lutava diariamente para basear-se no esplêndido
exemplo do conde de como um nobre cavaleiro deveria ser. Ele o chamava de
pai já nessa época, e sempre pensava nele como tal. O filho de Trouville,
Henri, era irmão de Rob, pelos laços do coração. E a morte do conde
certamente iria esmagar seus filhos com uma dor além do suportável.
Não, ele não podia esperar que Mairi banisse sua tristeza para longe em
um curto espaço de tempo.
Quem sabe ela jamais o fizesse, já que ela e o velho lorde obviamente se
amavam verdadeiramente.
Em oposição direta a sua disposição anterior em demonstrar simpatia,
Rob aproximou-se por trás e segurou-a pelos braços, puxando-a para longe do
corpo de seu senhor.
Embora Mairi resistisse, ele fez com que ela se vol tasse e fitou-a,
envolvendo-a nos braços.
— Chore agora — sugeriu.
Por um instante, ela lutou, empurrando-o e esmur rando seu peito com
toda a força que a proximidade entre os dois permitia. Então, de súbito, caiu
sobre ele, os ombros delicados sacudindo-se com os soluços.
— É melhor —■ Rob murmurou, contra os cabelos sedosos e macios que
haviam escapado de suas tranças. Correu as mãos por suas costas,
acarinhando-a e con fortando-a como a uma criança em aflição.
Por sobre sua cabeça, ele lançou um olhar sombrio para todos em torno,
até que se afastassem, para per mitir a Mairi privacidade em seu pranto.
Esperou pacientemente até que sua esposa se re compôs, reprimindo o
choro. Então, a tomou pelos ombros e empurrou-a gentilmente até poder ver-
lhe o rosto, devastado pela dor. Tão adorável era ela, mesmo nos estertores do
luto.
Rob roçou-lhe a face com o dedo.
— Precisamos ir agora — disse, esperando que suas palavras soassem
gentis como ele pretendia.
—- Ir? — ela repetiu, os olhos arregalados procurando os dele, em busca
de entendimento.
— Sim. Agora. Vamos para Baincroft. Ela afastou-se dele, horrorizada.
— Não, não podemos. O que será de papai? Quase desesperada, ela
voltou ao banco onde o corpo jazia. Agarrou a manga ensanguentada da túnica
do velho lorde.
- Eu prometi a ele —- explicou Rob, pronunciando cada palavra em tom
claro e firme, disposto a vencer qualquer argumento, sabendo que ela iria
agarrar-se a qualquer mostra de ternura para conseguir o que queria. Estava
incerto se podia negar alguma coisa a ela, naquele estado, a menos que se
resguardasse de nuas súplicas. — Iremos agora — repetiu.
Mairi lançou-se sobre ele, empurrando-o pelas costas com as mãos
espalmadas.
— Vá então! Saia daqui! Covarde! Se pensa que vou partir…
0 resto de suas palavras se perdeu quando ele a pegou pelos braços e
prendeu-lhe os punhos, com a longa borda solta de seu manto.
Dava-lhe pena restringi-la, ainda que fosse neces sário para sua própria
proteção. Mairi nunca iria partir de boa vontade, porém devia fazê-Io, não
obstante isso. Acima de tudo, ele devia mantê-la em segurança, como seu pai
havia pedido.
Com Maclnness morto e a partida de Mairi, prova velmente não haveria
mais ataques ao castelo e a seus habitantes. O sucessor havia instigado a
primeira invasão. Agora, ele simplesmente chegaria e assumiria o comando,
como o novo lorde. Então, certamente iria atrás de Mairi. Que homem não o
faria?
Rob teria que matá-lo, então, decidiu. Embora re centemente tivesse
descoberto que o afligia tirar uma vida, nesse caso ele não iria se importar.
Soltou um gemido quando a ponta do sapato de Mairi atingiu-lhe a
canela. Ela estava tornando aquilo muito mais difícil do que precisava ser,
contudo ele tinha que admitir sua tenacidade.
A raiva por ter de arrastá-la para longe poderia até mesmo pôr de lado
sua tristeza por algum tempo, ele decidiu, justificando sua necessária rudeza.
Deixá-la-ia pensar que ele era covarde e sem coração, se isso ajudava. Mairi
podia esbravejar e se enfurecer por todo o caminho até Baincroft, e isso iria
ser ótimo para ele. Melhor ainda que ter que suportar seu choro durante a
viagem. Sim, isso lhe serviria para superar os primeiros dias, os piores.
Seus gritos e pragas, quando ele inclinou-se e ergueu-a sobre os
ombros, deviam estar assustando as montarias nos estábulos lá fora, pensou
Rob. Ele podia sentir o ressoar zangado de sua voz no lugar onde o tórax fazia
contato com seus ombros, porém ele era imune a sons como estes, graças aos
céus.
Rob descobrira umas poucas vantagens em ser surdo com o decorrer dos
anos. E essa era uma que, defini tivamente, devia ser incorporada à lista.
Mairi parou de debater-se quando seu marido colo cou-a na sela e
sentou-se à montaria, atrás dela. Tinha o coração em agonia ao ver a confusão
que aquela partida precipitada causava aos habitantes de Craigrauir que ali
estavam, a observá-los. Não havia nada que ela pu desse dizer a eles para
explicar uma tal deserção. E nada que eles pudessem fazer, para ajudá-la.
O escudeiro de seu pai observava a tudo, com lágrimas nos olhos, Pobre
Davy.
O que devia ele e o resto do povo pensar de seu marido, forçando-a a
abandoná-los à mercê de Ranald? E deixar seu pai para ser enterrado no
túmulo da família, sem nem mesmo ouvir uma missa ser rezada em sua
homenagem?
— Oh, por favor! Por favor, fique — ela implorou inutilmente. MacBain
parecia que simplesmente colo cara uma trava na língua. Esporeava a
montaria e se dirigia aos portões que seu comandado tinha aberto.
Mairi mantinha-se tão firme quanto possível, sentindo o calor do corpo
de Rob contra suas costas, o braço dele rodeando-a pela cintura como um laço
de ferro.
Ela ergueu as mãos, ainda amarradas com o cordão de seda e esmurrou-
o em um último protesto. Sua única recompensa foi o machucado causado
pelos elos de sua cota de malhas.
As lágrimas encheram-lhe os olhos e escorreram por seu rosto como um
riacho quente. Ela conteve a res piração para acalmar a aflição e o pânico. Seu
desejo por aventuras tinha se esvaído, em face à realidade.
Em uma montaria com suprimentos, o homem de Mac Bain cavalgava
atrás deles, conduzindo pelas rédeas ã égua de Mairi, sem a sela. Ele havia
amarrado sacolas cheias de comida de ambos os lados do animal que mon
tavam. Ela podia ver os contornos dos pães. Sua égua carregava dois pacotes
estranhos assim como um baú de seu pai, contendo o que ela supunha ser
suas roupas.
Uma prega de seu manto de lã vermelha escapara do pacote, apontando
para fora como a língua de uma criança impertinente.
Mairi inclinou-se para o lado e espiou para trás. Viu que os portões de
seu lar se fechavam. Esgotada, não conseguiu nem deixar escapar um suspiro.
Sentia-se miserável.
O braço que MacBain fechara em torno dela apertou se, e ele teve a
audácia de dar-lhe um tapinha nas pernas, corno se a confortá-la. Ela
enrijeceu o corpo e recuou, jogando o quadril contra a calça grossa que ele
usava e teve a satisfação de ouvi-lo inalar o ar, de dor.
- Vou matá-lo por isso, MacBain! — ela anunciou.
Ele incitou o cavalo a um galope assim que dobraram uma curva da
estrada e entraram pela floresta. Então, Mairi não teve mais fôlego para
praguejar. Rob inclinou-a para frente, sob seu corpo, para evitar os galhos
mais baixos, fazendo-a encostar o rosto no pescoço sua do do cavalo. A crina
do animal raspava-lhe a face.
Junte-se a injúria à indignidade, por que não?, pen sou com um lampejo
de fúria. O calor do ódio secou-lhe as lágrimas e ajudou-a a definir um
objetivo.
— Você pagará por isso, MacBain! Eu o farei la mentar profundamente
este dia!
Rob nem se quer tomou conhecimento de sua amea ça. Rumava do sul
para sudoeste em um passo rápido e firme, forçando-a a afastar-se de seu
dever como uma filha de um senhor das Terras Altas, em direção a um futuro
incerto.
E pensar que ela abraçara esse destino de livre vontade não mais que
poucas horas atrás! Se tivesse sabido apenas que MacBain iria trai-la dessa
maneira e fazê-la quebrar sua promessa de vingança, ela teria se negado a
casar-se com ele e o mandaria para o inferno. Iria defender Craig muir contra
as investidas de Ranald e, quem sabe, matar aquele ser ignóbil com as
próprias mãos!
Por que ela sempre agia sem pensar duas vezes? Suas deduções sobre
MacBain tinham sido erradas e agora ele a conduzia para um caminho
desconhecido. Pobre Pai. Pelo menos, ele morrera acreditando que ela Mairi
mostrara obediente uma vez na vida. Deus do céu, ela se equivocara, fazendo
isso!
Mais tarde, quando chegaram a um riacho, Rob julgou que já tinham se
afastado o bastante de Craigmuir e podiam parar por algum tempo, dar água
aos cavalos e permitir que Andy Miúdo descansasse.
Quando fora acossado na passarela da muralha pelos Invasores, o pobre
coitado havia levado uma pancada nas costelas, que o deixara seriamente
machucado, a despeito de sua generosa camada de gordura. Cavalgar naquele
estado devia ser doloroso, na verdade, e não era uma recompensa por sua
valorosa dedicação. Rob sentiu que devia descansar um pouco, também.
Certamente sua nova esposa não seria tola a ponto de se arriscar a
voltar para Craigmuir sozinha, mas ele pretendia mantê-la sob os olhos. Sabia
que Mairi linha detestado deixar o pai imediatamente após sua morte, e Rob
solidarizava-se com isso. Contudo, o velho lorde tinha razão. Mairi devia estar
longe, antes que e sucessor chegasse.
Aquele primo devia estar extremamente impaciente para ter ambos,
Craigmuir e sua senhora, para arqui tetar um ataque tão terrível. Ele seria
lorde, algum dia, Impedir o casamento de Mairi devia ser o objetivo de seu
ato. Rob formara uma impressão desagradável 0 imediata de Ranald
Maclnness, ao lhe ser apresen tado, e não tinha ficado surpreso ao saber que
ele es tava por trás daquele ataque ignóbil.
Perturbava-o ter de deixar a casa de Mairi e seu povo sob uma tal
liderança, mas não havia nada que ele pudesse fazer com apenas um homem
sem condições a seu lado e a própria lei das Terras Altas contra si.
Ele não poderia salvar Craigmuir do novo lorde no momento, porém, a
mulher, sua esposa, ele iria proteger até seu último suspiro, Não se arriscaria a
dei xa-la viúva para se casar com um homem mesquinho que não dava valor à
vida de seus futuros súditos e ao clã. Mais tarde, assim que Rob houvesse
colocado Mairi em segurança, em Baineroft, ele poderia voltar com mais
homens e colocar as coisas em seus devidos lugares, para o povo dos
Maclnness.
Dizer isso a ela não tinha serventia no momento, contudo. Mairi não
estava pronta para ouvir seus pla nos. Em sua ânsia de uma açao imediata
contra seu primo, pela traição, ela não receberia de bom grado a necessária
demora.
Rob desmontou e estendeu os braços para ajudá-la a descer. Ela permitiu
que ele o fizesse, fitando-o com fúria quando já estava no chão,
— Solte-me, seu demónio! — ordenou, erguendo as mãos atadas a ele.
Rob desamarrou-a, com um jeito indiferente e deu um passo atrás,
apontando para a água.
— Beba e refresque-se.
Ele a observou arregaçar as mangas ainda cobertas com o sangue seco
de seu pai e viu o esforço que lhe custou reprimir uma onda de pesar. Como
ele adoraria abraçá-la de novo, confortá-la, suavizar sua raiva e explicar mais
detalhadamente por que a arrastara para longe, tão repentinamente.
Mairi não iria lhe agradecer por isso, ele resolveu, com um dar de
ombros. Afastou-se, para levar a mon taria até a beira do riacho de águas
rápidas que logo teriam que cruzar.
— Está machucado? — Rob perguntou ao amigo, pousando a mão no
ombro do rapaz.
Os cabelos loiros e ralos, escurecidos de suor, caíam sobre a testa de
Andy Miúdo, logo abaixo de seu elmo de couro bem-ajustado. Suas faces
sempre tinham sido muito coradas, mas a dor as empalidecera.
— Não. — Andy balançou a cabeça, mas os lábios apertados e a testa
franzida diziam outra coisa. Rob tinha enfaixado as costelas machucadas com
firmeza, mas sabia que fizera pouco para evitar a dor que o balanço da sela
provocava.
Ele recordou os tempos em que sofrera o mesmo, depois dos torneios.
Com tristeza, fez. um sinal, para dizer que deviam cavalgar novamente, e logo.
Andy concordou, relanceou os olhos para lady Mairi para mostrar que
entendia porquê, e ajoelhou-se com cuidado, à beira da água, para beber.
Rob também olhou para a esposa, que se inclinara sobre a margem,
mergulhando e esfregando as mangas de seu vestido. Seu rosto e os cabelos
dourados estavam molhados, depois que ela lavara as lágrimas.
Sim, a raiva lhe serviria melhor para superar a tris teza do que as
atenções que lhe pudesse dispensar. As sim, ele iria continuar a deixá-la de
lado. Voltou a aten ção para satisfazer a própria sede e a de seu cavalo.
De repente, Andy agarrou-o pelo braço e apontou. Rob ficou de pé, seu
primeiro pensamento julgando ser um ataque. Então, seguindo o gesto
frenético de Andy, ele viu as borbulhas em torno de uin pedaço de tecido e
uma pequena bota apontar para fora da água.
Com um berro, Rob entrou no riacho. A corrente gelada vergastou-lhe as
pernas enquanto ele lutava para agarrar uma ponta do vestido. Sem sucesso.
Lançando-se de corpo inteiro na água, ele lembrou se, tarde demais, do
peso de sua cota de malhas. Afun dou como uma pedra e, então, voltou à
superfície, lu tando com todas as forças na direção das saias e pernas que se
agitavam.
Por fim, fechou o punho nas pregas do vestido e arrastou Mairi para a
beirada do riacho. Sem saber se praguejava ou rezava aos céus, em
agradecimento. Fez. as duas coisas.
Sair da água não foi fácil, porém ele fez um esforço e conseguiu,
trazendo Mairi para a margem. Dobrando-a pelo estômago, ergueu-a pela
cintura, esperando a água que ela pudesse ter engolido.
Graças ao bom Deus, imediatamente ele sentiu o agitar de sua tosse.
Rob desabou ao lado dela, a cabeça caída sobre o braço, quase perto de
desfalecer. Perto dele, ela tremia como se estivesse congelada. Embora o sol
de verão brilhasse e aquecesse o dia, a água estava terrivelmente fria.
Com um suspiro profundo de alívio por saber que ela ainda vivia, ele
puxou Mairi para seus braços, con tendo o fôlego, para poder sentir se as
costelas dela se inflavam, mostrando que a respiração se normalizara. Ela
disse alguma coisa, pois ele podia sentir o mo vimento rápido de seus lábios
contra o rosto. O que quer que fosse, ele imaginou que seria melhor não
entender. Possivelmente fosse um agradecimento por tê-la salvo da morte por
afogamento, mas, provavel mente, deviam ser pragas, culpandoo por tê-la
trazido ao riacho, em primeiro lugar.
Em resposta, Rob simplesmente puxou-a para mais perto e pousou os
lábios em sua têmpora. Ela não o repeliu nem se debateu, e ele, então, sentiu-
se melhor. Voltou a cabeça o suficiente para ver a que distância a corrente os
arrastara. Não por léguas, como tinha pa recido, aparentemente. Mesmo dali,
podia ver Andy Miúdo andando cautelosamente para vir juntar-se a eles. Trazia
as montarias pelas rédeas, a água espadanando nos cos tados dos pesados
animais, ameaçando submergi-los.
Mairi afastou-se dele e sentou-se, tirando os cabelos do rosto.
Acintosamente ignorando-o, ela lutou para ficar em pé e começou a torcer as
dobras da roupa pesada e encharcada. Seus lábios moviam-se, depressa, os
dentes rilhados, como se ela resmungasse para si mesma. Rob escondeu o
sorriso.
— Andy está chegando — disse ele. — Você pode trocar de roupa.
Ah! - Mairi exclamou, erguendo as mãos para o céu o agitando-as, o
temperamento mais evidente que nunca. — Ele fala! Responda-me, MacBain,
você sempre pronuncia não mais que três palavras em uma frase?
Não com frequência — ele respondeu, em três palavras, apenas para
irritá-la.
Talvez Rob devesse ter sido mais condescendente. Afinal, ela havia dito
algo que ele compreendera to talmente. Seria difícil que não o conseguisse, já
que Mairi lançara cada palavra, uma a uma, como pedras sobre ele.
Rob sentiu-se satisfeito. O sarcasmo era fácil de reco nhecer, ele mesmo
o empregava muitas vezes. Sorriu para si mesmo, feliz que ela houvesse
superado o susto. Para Ser honesto, ele próprio estava um tanto abalado.
Contudo, transformar o acidente em um motivo para acariciá-la por mais
algum tempo só iria aborrecê-la mais.
De- novo, ela se refugiava em sua raiva, e ele não se importava em
suportar o impacto disso. Começava a perceber um padrão no comportamento
de Mairi. Ela nunca Iria admitir o medo, mas o mascarava de imediato.
Por enquanto, ele agradecia á providência por aquela bravata. Melhor
assim do que ela se entregar ao so frimento sem esperança. Isso ele não
suportaria presenciar e não seria capaz de suavizar com palavras.
Rob sempre tentava não mergulhar em lamentações de qualquer
espécie, porém, naquele instante, desejou ter mais a oferecer à esposa. Assim
que estivesse mais acostumado a sua maneira de falar, ele poderia se
aventurar a uma conversação mais prolongada. Por enquanto, não havia tempo
para dar-lhe atenção total nem para o tremendo esforço que isso
representaria, tanto de sua parte como da dela. Contudo, sentia-se tentado a
isso. Mairi podia resolver, porém, que não se daria a esse trabalho.
Não podia culpá-la pela falta de compaixão. Podia ser muito perturbador
para ela, se nunca tivesse co nhecido alguém surdo, antes.
Como lady de Craigmuir, devia estar acostumada a estar cercada de
gente pronta a atendê-la, a qualquer pedido. Bem, ele procuraria compensar-
lhe o inconve niente tão logo chegassem, a salvo, em Baincroft. No momento,
porém, ele devia concentrar-se em seguir viagem e não se permitir distrações.
Andy Miúdo trotava em direção a eles, mais pálido do que nunca. Rob
esperou pacientemente e ajudou-o a desmontar.
— Descanse — ordenou, e começou a procurar pelos pacotes por roupas
secas, para si e Mairi.
Pôs de lado um traje vermelho e enfiou a mão mais no fundo, buscando
algo de cor mais natural que me lhor os disfarçasse no ambiente ao redor.
Ainda pingando, Mairi ficou de lado, esperando, até que ele lhe estendeu
um vestido verde-musgo.
— Vá até lá — ele sugeriu, apontando para um arbusto compacto que a
resguardaria de ser vista, enquanto se trocava. Para si mesmo, ele não
precisava de nada.
Arrancou as botas encharcadas. Então, sem qual quer preocupação ou
mostras de recato, ele tirou a cota de malha e a pesada indumentária, sob a
mesma. Depois, tirou a calça e a roupa de baixo. Nu e ainda tremendo, Rob
deixou que o sol aquecesse e secasse sua pele, enquanto amarrava os cavalos.
O encontro de Mairi com a morte lhe havia aplacado a fúria e, de alguma
forma, feito com que enxergasse mais claramente, malgrado a tristeza que a
consumia. MacBain havia salvo sua vida por mais de uma forma,
admitiu.
Se houvessem ficado, Ranald logo teria se apresentado como o sucessor
do lorde. O povo de Craigmuir não teria outra escolha a não ser honrar aquele
traidor como seu novo senhor e obedecer-lhe as ordens. E ele teria mandado
matar MacBain. Depois, tentaria fazer dela sua esposa. Ela iria morrer,
resistindo, Embora suai morte pudesse sublevar o clã contra Ranald, ainda
assim ela estaria morta.
MacBain lhe dissera que havia prometido partir, e não sabia por que e a
quem ele empenhara sua palavra. Em todos os sentidos, fora pelo melhor que
ele a afas tara de Craigmuir. Porém, isso não a absolvia do pró prio juramento
de vingança e teria que persuadir Mac Bain. a ajudá-la a honrar aquele voto.
Mairi espiou pela folhagem que agora a rodeava para ver como ele
aceitara as palavras duras que ela lhe lançara, após o resgate.
- Pela Misericórdia de Deus! — murmurou, quando o viu. Ele estava nu
como no dia em que nascera! De olhos arregalados, fascinada, Mairi observou
MacBain, que examinava os cavalos e retirava os fardos de suas selas. O
homem não tinha vergonha de espécie alguma!
Claro, Rob devia pensar que não havia ninguém a observá-lo, a não ser o
servo que parecia ter adorme cido, Mairi lembrou a si mesma. Porém, não se
dera conta de que ela poderia sair do bosque a qualquer momento? Será que
ele queria que ela o visse assim, tão exposto?
Mairi estremeceu sob a roupa molhada, deixando cair o vestido seco das
mãos. Nem por um momento ela se desnudaria com a possibilidade de ser
vista, como seu marido havia feito.
E, no entanto, ficou a imaginar o que MacBain pen saría, se a olhasse
como ela o olhava agora. Ela era pequena e não tinha grandes atributos de que
se gabar, mas… ele a acharia atraente?
Ela o julgava assim, com toda a certeza! Seu rosto se enrubesceu diante
da visão, mas não conseguia des viar os olhos. Que músculos ele tinha,
pensou, ao vê-lo flexionar os braços, os ombros, as costas. Ah, aquele corpo
era algo digno de ser visto!
Torceu as mãos, imaginando a sensação macia de toda aquela pele
queimada de sol. O desejo de tocá-lo inteiro a dominou. Ele permitiria isso
quando paras sem, para passar a noite?
Era uma piada, isso, Mairi pensou, com um trejeito cómico. Rob
provavelmente insistiria que ela o fizesse! Seu medo somou-se à ansiedade,
em uma batalha que a deixou sem fôlego e confusa.
— Ufa! — exclamou, surpresa, quando ele se voltou. Fechou os olhos
para logo abri-los, para mais uma espiada.
Bem-feito, ela murmurou, antes de se obrigar a olhar na direção oposta.
Extremamente bem-feito. Mairi abanou o rosto com a mão, agarrando-se a um
galho com a outra, a reação que MacBain lhe provocava a perturbava muito.
Determinada a não voltar para a beira do riacho até que ele tivesse
coberto o corpo decentemente, Mairi usou o tempo para tirar as roupas
molhadas e tirar os sapatos. A água gelada escorrendo por seus braços não
serviu para banir a febre que a visão do marido havia provocado nela.
De instantes a instantes, ela se arriscava a unia nova espiadela.
Finalmente, Rob vestiu uma ceroula, que ela ficou a observar, intrigada com a
estranheza da peça íntima.
Os homens das Terras Altas nada usavam debaixo de seus saiotes. Ela
vira, por muitas vezes, de relance, uma nádega exposta e, com menos
frequência, o motivo de orgulho de muitos homens. Ninguém que ela houvesse
espiado tinha algo do que se gabar como MacBain.
Um pequeno suspiro de desapontamento lhe escapou antes que ela
pudesse contê-lo, quando ele enfiou-se dentro da calça. Mairi saiu do bosque
uns poucos mo mentos depois, fazendo barulho para anunciar seu re torno. Ele
acabava de se vestir quando ela o alcançou.
— Seu homem está dormindo — ela murmurou, apontando para o
escudeiro que os acompanhava.
MacBain aquiesceu e cutucou o ajudante com o pé, até que ele
acordasse.
— Hora de ir — disse a Mairi. — Eles nos seguem.
— Os homens de Ranald? — ela indagou, lançando um olhar ansioso pela
clareira. — Como sabe?
Ele deu de ombros e tirou-lhe as roupas molhadas da mão, colocando-as
atrás da sela.
— Ele a deseja — respondeu.
MacBain vestiu a cota de malhas sobre a camisa e afivelou, a espada.
Aproximou-se de Mairi e? dessa vez, quando a segurou pela cintura, ele a
colocou sobre o lombo da égua, entregando-lhe as rédeas.
Ela ficou a observar enquanto ele ajudava o com panheiro a levantar e
notou, pela primeira vez, que o homem parecia estar machucado.
O camarada era atarracado e forte, de cabelos loiros escorridos, e a cara
redonda como uma maçã, embora sem cor. Ela gostou de ver-lhe o sorriso,
especialmente por saber que ele não tinha motivos para sorrir no momento.
— O que aconteceu a você? — perguntou. — Foi ferido no combate?
- Sim. Uma paulada nas costelas, minha senhora ele retrucou,
reprimindo um gemido. — Lorde Rob enfaixou-as. Doem ainda, mas vou
aguentar.
- Muito corajoso de sua parte — Mairi comentou, Ittiefeita que ele não
fosse um choramingas. Voltou-se, para Rob. — Não é, meu lorde?
MacBain não respondeu ou olhou em sua direção. Afastou-se,
cavalgando, e dirigiu-se para os bosques. Mairi seguiu-o, porém, a distância.
— Ele está ocupado, pensando, minha senhora. Nos so Rob pensa muito
— explicou o homem, colocando-se ao lado dela. — Pensa quase tanto quanto
luta.
— Você certamente tem um nome — ela perguntou, sentindo que podia
ter encontrado um aliado ou, pelo menos, alguém com quem conversar. —
Ninguém se importou em me dizer qual é.
— Sou Andy Miúdo — Mairi explicou, sorrindo quan do ela o examinou,
por sobre o ombro. Ele prosseguiu: — É para me distinguir de Andy Grandão, o
filho do moleiro. Aquele sim, é um camarada enorme. Espere só para vê-lo.
Rob gasta muito para alimentá-lo.
— Você trata seu lorde pelo primeiro nome? — per guntou, espantada. —
Ele permite isso?
— Não. Ele só não escuta, e eu imagino que, vez ou outra, não vá se
importar. Não é falta de respeito. Algumas vezes eu me esqueço. Nós nos
conhecemos desde que mamávamos no peito.
— Ah, ele então é um bom lorde, não é? — ela in sistiu, ansiosa por
saber mais sobre o homem enigmá tico com o qual se casara. — Um belo
homem?
Andy Miúdo suspirou.
— Sim, é. Justo em seus julgamentos, justo em suas disputas, e… com
qualidades enormes para se olhar, hein, senhora? — Soltou uma risadinha
safada e soltou uma exclamação abafada. — Ufa!
Um calor espalhou-se sobre o rosto e o pescoço de Mairi.
— Na verdade, sim — ela admitiu, contendo o fôlego, enquanto incitava a
égua a um trote e deixava o bis bilhoteiro para trás.
MacBain podia ser belo de feições e de corpo, porém ela ainda não tinha
certeza quanto à qualidade que Andy Miúdo mencionara. Qualquer marido das
Terras Altas, por sabedoria ou não, pondo todas as promessas de lado, teria
insistido em permanecer em Craigmuir e fazer Ranald Maclnness pagar em
espécie por sua traição e ganância.
Ela devia acreditar que tinha sido uma decisão sábia a de MacBain em
partir. Ele era tão diferente dos outros homens que conhecera que Mairi decidiu
não julgá-lo com precipitação.
Se alguma justiça existia, Ranald iria prosseguir e dar a ela a chance de
vingar-se como havia jurado. Rezou para que assim fosse, e para que tivesse o
poder de fazê-lo por si mesma, se o marido não se mostrasse disposto a
assumir sua parte, quando chegasse a hora.
Poderia ela ser uma boa esposa para MacBain, se ele se recusasse a
ajudá-la? O homem lhe despertava sentimentos que ela mal sabia classificar,
por mais que tentasse.
Ele lhe salvara a vida. Isso devia contar muito, su punha. Por outro lado,
ele a levara do leito de morte do pai à força. Mairi detestava ser forçada a
fazer algo. Preferia que empregassem a razão, para conven cê-la. Se ele
tivesse feito isso, ela teria concordado em partir, sem protestos.
Não, ela não podia entender o que o levava a ser tão gentil em alguns
momentos e agir de forma tão insensível, em outros. Porém, de uma coisa
podia ter absoluta certeza sobre o marido : ele não era de se explicar.
Rob sabia com certeza que estavam sendo seguidos. Sabia, apenas.
Podia sentir. Se Ranald Maclnness não viesse em pessoa, ele mandaria outros,
tal como fizera para livrar-se do pai de Mairi.
Rob também sabia que se alguém tentasse privá-lo daquela mulher, ele
iria até os confins da terra para resgatá-la e não confiaria a tarefa a
subordinados. De sejava que Ranald se arriscasse em pessoa. Isso lhe
pouparia uma jornada de volta às Terras Altas para livrar-se dele, mais tarde.
Para passar o tempo enquanto viajavam, Rob forçou-se a pensar em
palavras, ao invés de em imagens. Embora isso não fosse algo natural, ele
tornara o exercício um hábito desde que aprendera a ler. Logo descobrira que o
ajudava a formar as sentenças, colocar as palavras na ordem certa, para que
ele não parecesse um ignorante. Fazia isso agora, formando listas das
maneiras pos síveis em que podia ocorrer um ataque, se fossem al cançados,
planejando, em seguida, a resposta provável a cada um deles. Por experiência,
tais preparativos sem pre faziam a diferença ao enfrentar qualquer problema.
No que se referia a Mairi, tivera de fazer um esforço muito grande para evitar
que a visão daquela mulher lhe atropelasse os sentidos. Ele a definira em
palavras de forma propositada, Rob dera nome à delicada
fragrancia de rosas que a envolvia de forma tão tentadora. silaba por
sílaba, ele internalizara a descrição de suas tranças, como a seda cor de mel
escorrendo-lhe entre os dedos Soletrara o som tangível de sua voz quando
Mairi gemera ao ser tocada, e silenciosamente descrevera sua alegria no ato
de simplesmente olhar para ela. compusera uma poesia em versos épicos para
cele bra- lhe a beleza e a coragem, vendo as letras se im primirem em um rolo
de pergaminho imaginário, en elaborava a métrica.
Percebeu que enumerar os encantos daquela mulher ocupara uma larga
porção de seu tempo. Tanto tempo que ele ficou a imaginar se isso o ajudava
ou impedia suas tentativas de reduzir o efeito embriagador que Mairi exercia
sobre ele.
Seus sonhos, é claro, ele não seria capaz de controlar, lá, ela
provavelmente tomaria conta de sua mente em toda a sua inteireza. Dada a
maneira com que Mairi reagira ao primeiro beijo que tinham trocado, Rob não
poderia fingir que receava sonhar com aquilo que em palavras seria difícil
imaginar.
Durante todo o dia, atravessaram as Terras Altas, movendo-se com um
passo firme, parando para descan sar sempre que os cavalos pareciam
cansados. Embora estivessem bem distantes de Craigmuir, Rob não alte para o
ritmo. Os homens que poderiam estar seguindo-os não teriam como andar
mais depressa que isso, e ele linha esperanças de que preservassem suas
montarias.
Lançou um olhar de relance para trás e notou a forma orgulhosa com
que Mairi cavalgava. Ela man tinha o queixo erguido e as costas eretas, como
se não houvesse viajado o dia inteiro por um terreno que cer taimente moeria
o mais experiente dos cavaleiros.
Haviam subido e descido colinas e atravessado gar gantas tão estreitas
que seus ombros quase tocavam as paredes de pedra por onde passavam. E,
ainda as sim, Mairi continuava a resistir sem um protesto.
A pequena clareira pela qual passavam agora daria um bom
acampamento, ele supôs. Nenhum lugar seria verdadeiramente seguro até que
houvessem entrado pelos portões de Baincroft, porém não havia como ca
valgar por quatro dias sem um bom descanso.
Já estava quase escuro, e ele admitiu que podia dor mir por algumas
poucas horas, uma vez que não dor mira nada na noite anterior. Velar o lorde
em agonia não permitira isso. Sua noiva devia estar prestes a cair da sela, a
despeito de sua determinação em não demonstrar fraqueza.
Decisão tomada, Rob puxou as rédeas e parou.
— Vamos dormir aqui — anunciou, aproximando-se da montaria de Mairi.
Tirou-lhe as rédeas das mãos, ergueu-a da sela e colocou-a de pé. As
pernas delas fraquejaram, e Rob apanhou-a antes que caísse no chão. Com
uma pequena risada, ele tomou-a no colo e carregou-a até a árvore mais
próxima, de raízes largas que se estendiam sobre o solo.
— Faça uma fogueira — ele ordenou a Andy, e co meçou a retirar os
fardos dos cavalos. Desenrolou uma manta de lã e colocou-a sobre a relva
fofa. Do outro lado dos gravetos que Andy amontoava, Rob estendeu outra
coberta.
Quando indicou, com um gesto, que Mairi podia dei tar-se, ela franziu a
testa, balançou a cabeça e disse algo. Ele só conseguiu captar as palavras
dormir a
seu lado.
Não havia o que discutir. Ela não pretendia dormir com ele. O que não
era surpresa, ele pensou, dando de ombros. Não havia esperado que ela se
deitasse de livre vontade, com ele, naquela noite.
A despeito disso, ele assumiu um ar de aborrecimento e soltou um
suspiro de fingida resignação. Não gostaria que Mairi pensasse que não a
desejava. Certamente ele a queria. Contudo, ali não era o lugar nem o
momento para revelar isso. Tirou a capa e jogou-a a vários passos de distância
do lugar que designara a ela.
Ocupou-se reunindo gravetos, observando disfarçada mente quando ela
se levantou e testou as pernas e, então, desapareceu por entre as árvores por
alguns momentos. Ao voltar, ela apanhou a manta e colocou-a em um lugar
ainda mais distante de onde estava a capa.
Rob deu um sorriso sem graça. Ele jamais iria se impor à esposa em um
lugar como aquele, mas se a deixava tranquila e com um sentimento de
controle colocar uma distância maior entre ambos, ele permi tiria que assim
fosse. Até que ela adormecesse.
Voltou-se, viu que Andy franzia a testa, observando, e fez um gesto para
mostrar ao homem que não estava aborrecido. Andy parecia estar
desenvolvendo um senso de proteção para com a senhora. Provavelmente
pensara que suas palavras ásperas poderiam deixar zangado o marido, mas
Rob não as tomara como ofensa.
A ira de Mairi por ter sido forçada a partir de seu lar obviamente ainda
não se aplacara. Rob quis acre ditar que era isso apenas o que a levava a
repeli-lo, não o fato de abominar sua surdez. Tinha pensado que a deficiência
poderia aborrecê-la e sentira-se ali viado ao perceber que não. Ela o beijara de
forma bas tante ardente, no dia anterior, naquela clareira. Ca sara-se com ele,
não se casara?
Contudo, ficou a imaginar se não teria sido melhor ter deixado o
problema às claras desde o princípio, antes do casamento. Dessa maneiraf ele
saberia exa tamente o que o destino lhe reservava. E ela também.
Desagradava-lhe ficar imaginando o que Mairi pen sava. Nem por uma
vez ela dera mostras de impor tar-se ou não. Será que decidira ignorar sua
surdez, fingindo que não existia? Isso, com certeza, não poderia durar para
sempre.
Algumas pessoas detestavam sinceramente aquela aflição e o
consideravam um amaldiçoado. Por causa disso, Rob se acostumara a
dissimular sua situação, a não ser para os amigos e familiares. Assim que
apren dera a falar, isso não se mostrara difícil. Alguns nem chegavam a
suspeitar de seu problema.
Era uma condição rara, haviam lhe dito. Quando ocorria, muitas pessoas
assim atingidas também se tornavam mudas.
Uns poucos sabiam, é claro, e ele imaginava que fosse objeto de
conversas. Porém, nunca pretendera esconder o fato da noiva escolhida ou do
pai dela.
Ele fizera questão de ordenar a Thomas que contasse ao lorde antes que
o contrato de compromisso fosse firmado, presumindo que contasse à filha os
problemas com os quais ela poderia se defrontar, se aceitasse o casamento.
Rob sabia que sua surdez iria afetar a vida conjugal, Mairi parecia não
entender isso, contudo.
Ele ficou a pensar como ela reagiria se algum tolo o acusasse de aliar-se
aos demónios, de ter barganhado sua capacidade de ouvir em troca de
poderes demo níacos. Já lhe acontecera antes, por duas vezes, uma com o tio
de sua mãe e, depois, mais tarde, com o avô de Thomas e Jehannie, sir Simon.
Até mesmo alguns padres acreditavam nisso.
Rob realmente tinha poderes, é claro. Ele sorriu para si mesmo,
recordando os olhares de reverência e medo, e algumas vezes de terror,
quando lidava com animais. Selvagens ou domésticos, eles o adoravam, podia
con vencê-los a fazer praticamente tudo que desejasse. Sa bia que o segredo
estava em importar-se com eles, em não demonstrar receio e banir o medo de
dentro deles. Eles sentiam que Rob os respeitava, e isso os acalmava,
tornando uma besta selvagem quase tão dócil como um cão preguiçoso.
Enquanto ruminava os pensamentos, Rob tirou a sela dos cavalos e
escovou-os com tufos de grama, exa minando suas pernas à procura de
arranhões, e os cascos, para ver se não havia pedras encravadas. Todos os
três se esfregaram a ele, agradecendo a atenção.
Seus familiares, acusavam alguns. Palavras estra nhas, que tinham um
significado sinistro e, ainda as sim, pareciam descrever a maneira com que na
verdade ele se sentia com relação aos animais. Gostava mais deles do que das
pessoas, às vezes, pois também tinham dificuldade em comunicar o que
realmente necessita vam. Ele fazia um esforço para entendê-los, e os ani mais
retornavam a cortesia. Era simples assim.
Contudo, sua habilidade em ver à noite deixava ató nitos muitos que o
conheciam. Para Rob, parecia tão natural como ver de dia. Deus lhe havia dado
essa capacidade, tinha certeza. Isso se provara realmente valioso às vezes, e
realmente seria de grande ajuda naquela noite, quando partiriam com somente
a ténue luz do luar para guiá-los. Uma dádiva.
Algumas vezes, conseguia adivinhar exatamente o que os outros
estavam pensando. Isso, entretanto, não era uma dádiva. Simplesmente
observava as pessoas com mais atenção do que as outras pessoas se
importavam em fazer. Ou talvez os sons a distraís sem e, por isso, não
conseguissem.
Expressões, braços cruzados sobre o peito, punhos fechados, um tremor
de medo ou raiva, disfarçado sob a máscara de calma, olhos espertos. Isso
tudo trazia a verdade à tona.
Ele podia identificar um mentiroso antes que abrisse sua boca para falar,
e uma mente cheia de ideias cons piratórias não tinha chance de se ocultar a
ele. Havia um ar de intensidade, de cálculo deliberado que parecia escrito na
testa dos dissimulados.
Rob parou sua tarefa e olhou para Mairi. Ela estava sentada sobre a
manta, os cotovelos descansando sobre os joelhos encolhidos, um dedo
enrolando distraida mente uma mecha de cabelos que escapara de suas
tranças. Tinha um ar pensativo e distante.
Era brincadeira de criança enxergar dentro de sua mente, pensou Rob,
com um sorriso enviesado. Mairi estava arquitetando um plano de alguma
espécie. Tam bém pensava em escapar dele e retornar a Craigmuir para vingar
seu senhor, e ora planejava convencer o novo marido a prometer que faria a
proeza por ela.
Impotente no momento, ela obviamente ainda não de cidira o que fazer.
Ele, contudo, devia observá-la e res guardá-la de tomar a primeira opção, se
escolhesse essa.
Talvez devesse dizer logo que decidira voltar e acer tar as contas, caso
Ranald não viesse atrás dele e se lasse seu destino. Rob sorriu. Não era de
todo desin teressante permitir que ela usasse seu charme primei ro para
convencê-lo a aceder a seus desejos. Devia ter algo demoníaco dentro de si,
afinal, para considerar uma tal hipótese.
Andy logo os chamou para partilhar o pão, o queijo e as carnes frias que
havia embrulhado antes de partirem de Craigmuir. Sentaram-se perto do fogo
e pas saram a botija de vinho entre si. Comeram em silêncio.
— Durma, agora — Rob disse a ela, ao terminarem de comer.
Obediente, ela disse boa noite e refugiou-se sobre a manta. Rob enrolou-
se em sua capa e sentou-se, as costas apoiadas em uma árvore próxima. Andy
afastou-se da fogueira e embrenhou-se nas sombras, para o primeiro turno de
vigilância, como era seu dever.
Rob não planejava dormir até que pudesse ficar em um lugar próximo o
bastante de Mairi, de maneira a poder despertar se ela tentasse fugir, durante
a noite. Contudo, acordou com um sobressalto, horas mais tar de, quando a
luz pálida da lua já ia alta, no céu.
Uma sensação de perigo iminente fez sua pele arre piar-se. Levantou-se,
depressa, e correu para os cavalos.
O que há?, Andy perguntou, em gestos, quando ele se aproximou, uma
flecha já esticada no arco.
Perigo, sinalizou Rob. Espere aqui. Fique atento.
Diante da concordância muda e obediente de Andy, Rob. selou seu
cavalo, sem ruído, e conduziu-o para as árvores. Montou rapidamente e
percorreu de volta o caminho anterior por mais de uma hora. A intervalos,
parava, aspirando o ar em todas as direções, buscando sentir o cheiro de
fumaça. Quando a notou, finalmente, deixou que o cheiro o conduzisse.
O acampamento inimigo estava adormecido. Rob contou quatro corpos
enrolados em mantas em torno dos carvões em brasa. Outro estava à parte,
de guarda, mas pegara no sono.
Cinco também era o número de montarias. Sem o mínimo ruído, Rob
conduziu-os para longe do acam pamento e amarrou-os perto de seu cavalo.
Um daqueles homens podia ser o primo Ranald? Rob esperava que sim.
Então, tudo terminaria ali.
Seria inimaginável matar homens adormecidos, de cidiu. E havia uma
ligeira chance de não terem sido enviados pelo novo lorde de Craigmuir.
— Hei, vocês, do acampamento! — gritou. — Mac Bain está aqui!
Deu uma gargalhada ao ver a confusão se instalar. Dois dos homens se
viram presos de tal forma a suas cobertas que não puderam ficar de pé.
O guarda, agora acordado, correu para cima dele, a espada erguida. Rob
o enfrentou e perpassou-o com a lâmina, chutando-o para longe. A vantagem
da sur presa trabalhava a seu favor.
Um segundo homem tentou um golpe mortal, mas Rob o atingiu com
uma cutilada. Com um movimento rápido, pegou o próximo com as costas da
espada. O quarto, boca aberta e olhos arregalados de horror, saiu correndo
para o lado oposto e embrenhou-se nos bos ques, desaparecendo nas
sombras.
Rob rendeu o último do grupo, que ainda lutava para desvencilhar-se das
cobertas. O patife cheirava a bebida. Um golpe duro em sua cabeça imobilizou-
o. Ranald Maclnness devia ter passado a peneira entre os guerreiros e
escolhidos os piores disponíveis. Os mais incapazes dos arrendatários de Rob,
armados com varas, poderiam enfrentar aqueles estúpidos, pensou. Que
arremedo de luta, pensou Rob, amarrando o cativo. Passou-lhe pela mente
perseguir o que havia escapado, mas decidiu não se incomodar. O sujeito
estava a pé e levaria pelos menos dois dias até chegar em Craigmuir. Além
disso, o primo de Mairi precisava receber a mensagem de seu emissário.
Ranald resistiria ao de safio de não possuir Mairi? Rob julgou que não. O patife
viria em pessoa da próxima vez, porém agora estaria de três a quatro dias
atrasado.
Satisfeito por ter resolvido o problema pela duração da viagem até
Baincroft, Rob arrastou o homem amargado até os cavalos, jogou-o sob uma
sela e prendeu-o lá.
Sua intenção era arrancar-lhe algumas respostas. Logo saberia o número
e a espécie de homens quie o primo de Mairi comandava e se iria persegui-la
du rante o caminho até as Terras Baixas.
A informação que conseguisse iria ajudá-lo a desti tuir o primo traiçoeiro
de seu título de lorde, em uma eventualidade. Tinha esperanças de que Mairi
se sen
tisse parcialmente vingada pelo trabalho dessa norte.
— E lorde Rob! — gritou Andy Miúdo, agitando o braço e correndo da
fogueira para perto de onde Mairi se encontrava. — Viu? Eu disse que ele
voltaria logo!
Ela puxou a manta, resguardando-se do frio da noite,
— Quem é aquele? — perguntou, apontando para o corpo pendurado na
montaria maltratada e estranha que seu marido conduzia para o
acampamento.
— Homem de seu primo — respondeu MacBain, pa rando perto da
fogueira. Desmontou e espreguiçou-se, obviamente cansado.
— Ele mandou apenas um? — ela indagou incrédula.
— Cinco — Rob retrucou, calmamente, e afastou-se para tirar o
prisioneiro de cima do cavalo.
— Cinco? Onde estão os outros? O que aconteceu? E como você sabia
que eles…
— Minha senhora, por favor — interrompeu-a Andy Miúdo, interpondo-se
entre ela e MacBain. — Não há motivos para se preocupar. Relaxe um pouco e
vamos ver o que temos aqui.
Mairi deixou escapar um suspiro de exasperação e desistiu, embora
tivesse que fazer um esforço imenso para se conter.
Com olhos ansiosos, ela examinou a escuridão da linha das árvores,
imaginando se, a qualquer momento, os outros quatro iriam irromper, para
lutar e livrar o amigo.
— Onde estão eles? — perguntou a Andy. — O que aconteceu a eles?
— Estão mortos, assim espero — Rob retrucou, ale gremente, esfregando
as mãos. — Ou descobrindo um novo caminho de volta para o lugar de onde
vieram.
— Descanse agora, Andy — ordenou-lhe Rob, ao voltar do local onde
colocara o fardo inconsciente, apoiado contra uma árvore. Voltou-se para a
esposa.
— Volte a dormir.
— Dormir? — ela perguntou, com voz esganiçada.
— Você chega a cavalo, arrastando um homem, diz que há mais quatro
deles por aí e espera que eu vá dormir? — Mairi ergueu as mãos,
impacientemente.
— Ora, eles podem cair sobre nós a qualquer momento! Ou estão
mortos? Cinco contra um, e você quer me fazer acreditar que os matou, a
todos? Se não o fez, pelo menos pode me dizer…
Rob colocou o dedo sobre sua boca e balançou a ca beça, impaciente.
— Você está a salvo.
Ela afastou-lhe a mão com um gesto brusco.
— A salvo? É tudo que me diz? Por que nunca me responde direito,
MacBain? Por que me trata como uma criança mal-educada que não merece
considera ção? Pode me bater ou me ignorar. Tanto se me dá! Eu sabia! Algo
se tramava nos bosques, esta noite. E por que você voltou com apenas…
— Você não sabe de nada! E eu não entendo nada do que está dizendo —
ele falou, com os dentes rilhados.
— Nada!
— Bem, eu sei de uma coisa! — ela gritou, avançando sobre ele com o
punho em riste. — E não faça cara de surpresa! Você nunca me dá ouvidos! É
como se eu não existisse para você…
— Saia daqui, mulher! — Rob vociferou, erguendo-se em toda sua
estatura, os punhos fechados, fazendo os músculos dos braços se retesarem. A
luz bruxuleante da fogueira do acampamento iluminava seu semblante,
imprimindo-lhe um brilho ameaçador.
Um medo maior que qualquer um que ela sentira com as insinuações de
Ranald fizeram sua espinha arrepiar-se. Ali estava um perigo verdadeiro e
imedia to. Ele parecia disposto a derrubá-la de um golpe.
Silenciosamente, Mairi afastou-se dele, torcendo as mãos trémulas,
temendo ter se excedido. Nunca antes ele exibira uma violência tão palpável
para com ela. Porém, Mairi pudera ver o efeito de sua ira em Craigmuir,
durante a batalha com os homens de Ranald.
Esposas não tinham imunidade contra a ira de seus maridos, e ela
certamente afrontara MacBain com seus brados de exigência, há pouco.
Direitos, ela podia ter, mas não devia ter gritado com ele.
Nem deveria ter se recusado a dormir a seu lado, porém não estava
disposta a perdoá-lo assim tão depressa, por tê-la arrastado de Craigmuir
como o fizera. Admitir o fato de que Rob a perturbava profundamente
certamente daria a seu marido uma superioridade sobre ela.
O que ele com certeza demonstrara, agora.
Sem mais palavras, ela caminhou até a manta, dei tou-se sobre a grama
e voltou as costas para ele. Não seria capaz de dormir, porém iria fingir. Pela
manhã, tinha esperanças de que aquele seu temperamento rude houvesse
melhorado. Se os outros quatro homens que Ranald mandara não os
matassem a todos, antes disso.
O silêncio reinou na clareira, o que lhe pareceu estranho. Por que
MacBain não contava a Andy o que havia acontecido? Ou fazia planos para o
caso de ocorrer um ataque? Certamente não cavalgara tanto para voltar e
simplesmente deitar e cair no sono! Porém, não ousava se voltar para ver o
que estava acontecendo.
Mairi fechou os olhos tão apertados quanto pôde e rezou para estar viva
quando a manhã chegasse.
Uma chuvinha fina acordou-a logo depois do raiar do dia. Embora o solo,
sob seu corpo, estivesse relati vamente seco, a cobertura sobre ela, presa a
uma for quilha de galhos, pingava um pouco.
Como ele conseguira construir aquilo bem em cima dela, sem acordá-la?
Do outro lado da clareira, Andy Miúdo jazia deitado sob uma armação
parecida. Nisso, Mairi viu o flanco cinzento da montaria de MacBain
desaparecendo entre as árvores.
— Espere! — ela gritou, jogando longe a coberta e lançando-se atrás
dele. — Não nos deixe! Aonde você vai?
Antes que ela pudesse alcançar a linha das árvores, ele havia sumido.
— Está voltando para enterrar os que ele matou — explicou Andy Miúdo.
E para ver o que pode encontrar entre seus pertences.
Mairi soltou um suspiro de alívio. Por um instante, havia temido que ele
houvesse partido sem eles, aban donando-os. Só então percebeu que MacBain
tomara a direção oposta.
Além disso, ele não deixaria seu homem para trás. Ela, porém, era um
assunto diferente. Depois da ma neira como se defrontara com ele, na noite
anterior, tinha de admitir que não poderia culpá-lo.
A chuva estava passando, mas ela estava toda mo lhada. Felizmente, o
sol sairia logo para secar suas roupas e seus cabelos. Com o corpo moído e
dolorido da noite passada no chão duro, Mairi caminhou até os fardos que
jaziam protegidos em uma pequena reen trância, nas rochas.
Andy Miúdo veio juntar-se a ela, aceitando a porção de pão que ela
partiu e lhe estendeu.
— Ele vai estar de volta antes do meio-dia. Disse para ficarmos de
guarda, vigiando o prisioneiro. — Com o pedaço de pão, Andy apontou para o
homem ainda amarrado à árvore, encharcado até os ossos. O patife tinha um
aspecto miserável.
— Suponho que vamos levá-lo conosco? — perguntou Mairi, cortando
uma porção de queijo com a faca que sempre trazia presa à cintura e
oferecendo-a ao escudeiro.
Andy agradeceu com um sorriso.
— Sim. Rob, quero dizer, lorde Rob, quer interro gá-lo. Descobrir mais
sobre seu primo.
— Com que finalidade?
— Não perguntei. Ele raramente explica suas ra zões, invariavelmente,
são corretas.
Mairi hesitou em falar sobre o marido com um ho mem que o servia, mas
precisava descobrir algo sobre ele, de alguma forma.
— Eu realmente gostaria que ele respondesse mi nhas perguntas. Ele
raramente fala comigo e nunca parece ouvir nada do que digo.
Andy Miúdo dirigiu-lhe um olhar preocupado. Ela percebeu que nunca
devia ter criticado o comporta mento do marido para um de seus serviçais.
— Não estou falando mal dele — assegurou. — Ver dade. Mas, fico a
imaginar por que ele parece tão rígido. Ele é sempre assim?
— Rígido? — Andy repetiu, com uma risada. — Sim, acho que ele pode
ser quando precisa. — Seus olhos faiscaram. — Mas Rob adora uma boa
travessura. Ne nhum de nós estava a salvo dele quando éramos mo leques, e
ele não mudou muito, desde então.
— Travessuras? — perguntou Mairi, incapaz de ima ginar o estóico
MacBain pregando peças para se divertir.
— Oh, sim — assegurou Andy animado. — No mês passado ele humilhou
com sua esperteza um de seus cavaleiros, sir Belden… ele tem um
temperamento da nado, aquele um. Sempre se mete em brigas, sem razão.
— Continue — ela o encorajou. — Por que MacBain fez isso a ele?
— Provocou o homem além do suportável, fazendo caretas,
importunando e caçoando. Exatamente do jeito que sir Belden faria a um
outro. Cutucou-o até que ele exigisse que Rob lutasse com ele. — Andy deu
uma risada e balançou a cabeça. — Aquele sujeito vai pen sar duas vezes
antes de se meter em outra briga por causa de algumas palavras de
provocação.
— MacBain o derrotou sumariamente? — ela perguntou.
— Pode-se dizer que sim. Eles se colocaram em po sição para o duelo,
entende? — Andy ficou em pé, es ticando os braços como se fosse lançar a
espada em um ataque.
— Vamos, termine! — Mairi exclamou, ansiosa por ouvir o desfecho.
— Robbie sacou sua espada enorme para fora da bainha e ergueu-a,
faiscante, ao sol, com um sorriso infernal no rosto, parecendo pronto para lutar
até a morte. — Ele apertou os olhos, os lábios trémulos de mal contida alegria,
observando o efeito de suas pa lavras sobre Mairi.
— E então? — ela perguntou, inclinando-se ansiosa. — O que aconteceu?
Andy fingiu agarrar uma espada imaginária, arran cá-la de uma bainha
invisível e, então, baixou os olhos, parecendo estupefato.
— Cadê a lâmina?
Soltou uma gargalhada, dobrando-se e batendo nos joelhos.
- Rob, secretamente, havia substituído a arma do pateta do sir Belden. O
pobre idiota não tinha nas mãos nada além do cabo e a cruzeta de ligação! —
De novo, ele riu, erguendo a mão, o polegar e o indicador separados por
alguns centímetros. — A lâmina que brada tinha este tamanho!
Mairi riu com ele, imaginando a raiva do cavaleiro.
— Sir Belden deve ter ficado furioso!
— Se ficou! E nós, ao redor, ficamos apontando os dedos e caçoando. O
tolo pretensioso vai dar um tempo antes de fazer desafios por nada.
— Foi prudente fazer o homem passar por bobo? Ele não vai querer se
vingar algum dia?
Andy Miúdo conteve a gargalhada, reduzida agora a um meio sorriso.
— Ora, acho que sim, e Rob pensou nisso. Quando a brincadeira acabou,
ele elogiou sir Belden pela bra vura e presenteou-o com uma espada ainda
mais re finada, do melhor aço que tinha. Fez com que ele ju rasse que nunca a
usaria em um ataque de raiva. "Uma cabeça quente", disse Rob, como o aço
em brasa, não pode se manter nos moldes e cumprir a missão a qual foi
destinada. Ficou subentendido que sir Belden seria punido se não concordasse
em manter seu tem peramento sob controle, dali por diante.
Pensativa, Mairi começou a guardar a comida para a viagem. Então, seu
marido era sábio em tratar com homens, refletiu. Pena que não estivesse
interessado em tratar com mulheres.
Então, ela se recordou da forma doce com que a tratara naquele dia na
clareira, quando haviam se bei jado e da maneira gentil com que a confortara,
quando ela chorara pelo pai.
Sim, ele podia ser brusco e irritante, proferindo suas ordens em palavras
breves e ignorando-a quando ela queria que a ouvisse. Contudo, podia ser que
ele nunca tivesse tido muito tempo para mulheres, antes. Quem sabe coubesse
a ela educá-lo em como tratá-las. A ela, em particular.
Quando ele retornasse, Mairi decidiu que envere daria por uma direção
diferente no trato com seu ma rido. Tinha certeza de que conseguiria promover
uma melhor compreensão entre os dois. Quem sabe até per suadi-lo a encarar
o voto de vingança como seu.
Se ele precisasse de um incentivo maior depois de um dia cercado de
atenção e carinho… bem, sempre haveria a noite para uma persuasão mais
ousada.
Ela relanceou os olhos para a tenda que MacBain construíra para
resguardá-la da chuva. Serviria bem para lhe dar privacidade, se a colocasse
longe do acam pamento. A despeito de sua negativa infantil, na noite anterior,
aos direitos que ele, como marido, tinha sobre ela, Mairi sabia que a
consumação do casamento era questão de tempo.
Sorriu de um jeito misterioso, confiante de que po deria enfeitiçá-lo.
Veria se o marido iria ignorar sua existência, então!
CAPITULO V
Rob rolou os corpos dos homens de Ranald para uma ravina próxima,
deitou-os e cobriu-os com pedras. Depois de uma prece rápida por suas almas,
voltou e pôs-se a remexer seus suprimen tos e pertences, procurando por
alguma prova que pu desse ligá-los ao primo de Mairi.
Cada embornal continha o mesmo número ínfimo de moedas de prata,
indicando que haviam sido con tratados para alguma tarefa e haviam recebido
adian tado pelo serviço. Não era uma prova conclusiva de que o novo lorde
de.Craigmuir os contratara, mas o suficiente para confirmar as suspeitas de
Rob.
A cunhagem das moedas parecia familiar a Mac Bain. Se fora Ranald
Maclnness quem pagara aqueles homens, ele devia ter conseguido o dinheiro
da mesma forma que Rob conquistara uma boa porção de sua fortuna,
participando de torneios fora da Escócia. E, aparentemente, o homem era um
vencedor. Estranho que nunca houvessem se encontrado, antes.
Ele recolheu os fardos com mantimentos e apanhou os cavalos que
deixara amarrados, na noite anterior. Agora, provavelmente, ele, Mairi e Andy
Miúdo fariam o restante da viagem em segurança.
Mesmo que Ranald saísse em sua perseguição, ele só saberia que deveria
fazê-lo quando o homem que fugira retornasse para contar que o ataque
encomen dado falhara. E, como o sujeito estava a pé, seria im possível para
Ranald alcançá-los antes que chegassem a Baincroft.
Rob precisava apenas se preocupar em tornar a jor nada para casa tão
agradável e confortável quanto pos sível para sua nova esposa.
No caminho de volta ao acampamento, ele conside rou suas outras
preocupações com respeito a Mairi. Quanto mais pensava sobre os atos da
esposa nos úl timos dois dias, mais isso o aborrecia.
Em todos os momentos que haviam estado juntos, ela jamais se
esforçara para falar de uma maneira que ele pudesse compreendê-la. E,
quando o fizera, fora por mero acaso. Tampouco havia mencionado o fato de
que ele não podia ouvir, nem para vilipendiá-lo por isso ou para descartar o
problema como trivial.
Quanto mais o tempo passava, mais vezes conver savam, e mais
estranho aquilo tudo lhe parecia. Ele podia jurar que ela não sabia de nada.
Da última vez, ele lhe explicara que não conseguia entender o que ela
lhe dissera. Não colocara o problema da forma mais clara possível? Porém,
mesmo então, se fosse honesto para consigo mesmo, tivera a sensação de que
ela não captara o significado de suas palavras. E essa sensação é que lançara
dúvidas em sua mente.
Será que o pai de Mairi não lhe contara? Teria o lorde mentido? Qual
seria o propósito em omitir algo tão importante?
Era possível que Mairi estivesse com medo de tocar no assunto e o
ofender. Se fosse isso, quem sabe ela tivesse conservado com Andy a respeito.
— Ora! O que temos aqui? — Andy Miúdo correu para encontrá-lo, assim
que Rob entrou no acampa mento. — Mais quatro animais estropiados? Venha,
coma alguma coisa. Eu vou amarrá-los.
Rob jogou-lhe as rédeas e desmontou.
Mairi aproximou-se, com uma caneca de vinho.
— Venha — disse, com um sorriso, tomando-lhe a mão. Disse outras
coisas também, uma longa se quência de palavras, porém Rob não conseguiu
en tender o sentido.
Quase explicou isso a ela, mas pensou melhor. Por que não observá-la e
tentar descobrir o que estava se passando? Depois, perguntaria a Andy sobre o
que ha viam conversado desde que haviam deixado Craigmuir.
Se o velho lorde a houvesse mantido desinformada, então Rob teria de
encontrar uma maneira de contar a novidade da forma mais suave possível.
Pôs-se a observá-la. Rob adorava o jeito animado com que ela usava as
mãos graciosas, gesticulando enquanto falava. Espantava-o que Mairi fosse tão
in génua com relação a sua beleza e ficou a imaginar o porquê. Será que os
homens que a rodeavam nunca haviam elogiado seu semblante adorável? Ou
Mairi não os levara a sério? Ela não parecia orgulhosa ou inquieta com sua
aparência, como muitas mulheres se mostravam. Seu comportamento natural
e espontâneo o intrigava, agora e desde que a vira pela primeira vez. Poderia
ficar observando-a por horas.
Quando ela o conduziu para perto do fogo, ele se guiu-a, esperando
poder responder as perguntas que ela lhe fizesse, até poder discernir o quanto
Mairi sa bia. Tinha esperanças de estar enganado sobre a ex tensão de sua
ignorância.
Era inteiramente possível que ela tivesse mais pro blemas em decifrar as
frases dele do que ele as dela.
Isso, contudo, em nada contribuiu para diminuir-lhe as preocupações.
Que espécie de casamento teriam, se nenhum dos dois tivesse a menor ideia
do que o outro estava dizendo, a maior parte do tempo?
Sua mãe lhe ensinara que alguns sotaques faziam a boca mexer-se de
forma diferente, mesmo quando o idioma era o mesmo. Podia ser verdade que
suas pa lavras soassem tão estranhas aos ouvidos dela que Mairi não pudesse
entender o que ele dizia?
— Um momento, por favor — disse ele, lentamente, erguendo um dedo e
oferecendo um sorriso para ate nuar sua atitude, ao levantar-se e deixá-la.
Ela, ob viamente, pretendia que ele continuasse a seu lado, porém Rob
precisava resolver aquele mistério.
Andy Miúdo tinha conduzido os cavalos capturados e sua própria
montaria para um local mais distante, para escová-los e alimentá-los.
Rob aproximou-se dele, sabendo que os cavalos iriam esconder os
movimentos de sua mão quando usasse a linguagem dos sinais. Ele e a mãe
haviam estabelecido uma série deles quando Rob era ainda muito pequeno,
antes que aprendesse como se expressar em palavras. Desde então, Rob, a
família, e as pessoas mais pró ximas, em Baincroft, comunicavam-se por
sinais, tor nando as palavras desnecessárias. Só os abandonava quando em
presença de gente estranha. Todos que co nhecia achavam a linguagem dos
gestos mais conve niente, especialmente em circunstâncias quando não
estavam muito próximos ou não queriam ser ouvidos.
Tal como agora.
Ela sabe? Acha que seu pai que contou que não posso ouvir?, perguntou
Rob.
Andy balançou a cabeça. Sua boca moveu-se, en quanto gesticulava: Ela
não sabe de nada. Tenho certeza. Ela perguntou por que você não presta
atenção ao que diz. Se soubesse… Ele deu de ombros, visivel mente
consternado.
Rob concordou e correu o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. Pensou
no que deveria fazer, a seguir.
Seria um choque para ela saber, agora, que se casara com uma pessoa
deficiente, sem ter conhecimento pré vio do fato. Mairi poderia acreditar que
seu pai a enganara. Ou, pior ainda, que Rob os iludira, a ambos. Ela se sentiria
ludibriada, depois de o casamento ser um fato consumado.
. Rob olhou por cima do lombo do animal que estava entre ele e Mairi,
colocando a mão em concha para enxergar melhor. Ela estava em pé, os
braços cruzados no peito, encarando-o e esperando obviamente por seu
retorno.
O casamento era um fato consumado? Não, ele decidiu, não era. Ainda
não. E Mairi certamente merecia fazer uma escolha antes que união se
tornasse verda deira, devia ter a oportunidade de decidir seu futuro.
Rob resolveu que sua única esperança era provar a Mairi que ele podia
ser um marido adequado, a des peito daquilo que logo ficaria sabendo a
respeito dele. Se confessasse agora, poderia perdê-la para sempre. Ela não
teria tempo para conhecê-lo. É claro, ela po deria deixá-lo, não importava o
que ele fizesse, mas Rob tinha pelo menos uma chance de ganhar seu res
peito. E iria aproveitá-la.
Por ora, ele devia manter o casamento em uma con dição na qual
pudesse ser desfeito, se assim Mairi de sejasse, quando descobrisse tudo. O
que significava não se deitar com ela, naturalmente. De qualquer for ma, ele
não planejava fazer isso até que houvessem chegado em casa e pudesse
oferecer a ela o conforto adequado, devido a uma mulher intocada.
Andy Miúdo tocou-lhe o braço para chamar sua aten ção. Não conte nada
a ela, agora, aconselhou. Espere até chegarmos a Baincroft. Ela verá quanto
as pessoas o admiram… Que não se importam. Ele estalou os dedos e fez uma
cara engraçada para mostrar quanto o fato era irrelevante. Ela não vai dar
importância, assim que tiver visto por si mesma.
Então, Andy Miúdo tinha chegado à mesma conclusão. Rob sentiu-se
inferiorizado. Não estava inteira mente certo se conseguiria sustentar a
situação. Não seria fácil manter o segredo, viajando em convivência tão
próxima com ela.
Você precisa me ajudar, pediu a Andy. Fique por perto. Responda suas
perguntas ou repita a mim. Pode fazer isso?
— Sim! — exclamou o homem, em voz alta, balaçando a cabeça com
entusiasmo. — Como já fiz, antes. Andy Miúdo não era tão eficiente como
Thomas e uns outros a quem ele e a mãe haviam ensinado a linguagem dos
sinais,- porém Rob não podia se permitir críticas, no momento. Certamente os
dois conseguiriam dar conta da situação pelos poucos dias que faltavam até
chegarem a Baincroft.
E, somando-se a isso tudo, Rob percebeu que ele precisava fazer-lhe a
corte, comportamento que o pai de Mairi havia sugerido, se quisesse manter a
espe rança que conservar Mairi ligada a ele, assim que ela soubesse da
verdade e se deparasse com a escolha.
Juntos, ele e Andy terminaram a tarefa de cuidar dos cavalos e voltaram
ao lugar onde Mairi havia es tendido uma toalha e arrumado uma refeição para
ele. — Isso parece ótimo — ele comentou, ao sentar-se de pernas cruzadas em
frente a ela, para comer. Quando ela lhe ofereceu uma fatia de queijo, Rob
aceitou, e, ao pegar a porção; segurou-lhe a mão, bei jando-lhe o dorso dos
dedos. Fitou-a nos olhos, deixan do-a perceber seu interesse por ela, como
mulher.
Mairi tinha um sorriso encantador, pensou, sentindo-se o mais triste dos
cavaleiros. Porém, entregar-se à melancolia nada adiantaria, tinha que
conquistá-la.
— Ah, que delícia — ele assegurou, depois de terminar a refeição,
limpando as migalhas dos dedos e pondo-se de pé. Os lábios dela moveram-
se, em uma frase totalmente incompreensível. Ele sabia que pre cisava
responder, diante da expressão dela, sobrance lhas arqueadas, a cabeça
inclinada para o lado.
Relanceando o olhar para Andy, que se colocara por detrás de Mairi, ele
leu em seus lábios: "Vamos partir logo?. O tolo ainda acrescentou um gesto,
com os dedos, imitando o movimento.
Rob limpou a garganta e fingiu pensar. Então, formou a frase, com
cuidado,
— Sim. Fique pronta.
Aquilo pareceu satisfazê-la, pois ela começou a re colher as sobras de
comida e a dobrar a toalha. Andy já desmontara as tendas improvisadas. Nos
minutos seguintes, ocuparam-se em preparar a partida.
Como havia feito no dia anterior, Rob assumiu a liderança, puxando as
montarias extras atrás de si, evi tando que Mairi ficasse mais perto e tentasse
conversar.
Vez ou outra, lançava um olhar por sobre o ombro e dirigia a ela um
sorriso de encorajamento. Andy parecia ocupado em entretê-la, e por várias
vezes Rob surpreendera os dois travando uma conversa animada.
Que maravilha devia ser, ele meditou, poder falar qualquer coisa a
alguém sem ter que pensar muito. Ele não apenas tinha que prestar uma
enorme atenção às contorções dos lábios e da língua, como também
Ela levantou o queixo, de um jeito voluntarioso. Os lábios rosados se
repuxaram e os olhos se apertaram. Sem qualquer comentário, ela reuniu a
dignidade ultrajada como uma capa protetora e afastou-se, passando por Andy
e dirigindo-se para longe da luz da fogueira.
Andy deu de ombros e sorriu, sem graça, parecendo pedir desculpas pelo
ocorrido e pelas maneiras de Mai i. Rob sentiu vontade de esmurrá-lo. Ao invés
disso, endereçou-lhe o sinal mais rude que havia aprendido e despachou-o
para o bosque.
Ele tinha feito papel de idiota diante dela. Um marido mal-humorado,
desatencioso e ingrato. E um tolo, por Deus.
Se algum dia em sua vida precisara ficar sozinho, esse era o momento.
Rob sentia-se mortificado e inca paz de falar qualquer coisa quanto a isso.
Mairi viu que o marido desaparecia na escuridão e, rapidamente,
aproximou-se de Andy Miúdo.
— Por que motivo ele está tão bravo? — perguntou. — Pouco antes,
parecia bastante satisfeito… — Tanto que ela se arriscara a propor que
construíssem outro abrigo e que o partilhassem. Era ela quem devia se sentir
ofendida. E estava.
— Ele não está zangado, minha senhora! Está exausto, é tudo. E
preocupado, também.
Mairi suspirou e esfregou as mãos nos braços, para espantar o frio.
— Acho que terei de aceitar que ele é um homem de poucas palavras… E
a maior parte delas não passa de grosserias.
A risadinha cáustica de Andy a surpreendeu. Ela o encarou aborrecida.
— Isso lhe parece uma piada? — perguntou. — Você acha que falo
demais para me adaptar a ele? E ele, pouco demais para se adaptar a mim? É
isso?
— Sim — admitiu Andy. — É isso mesmo. — Colocou a mão no quadril e
adotou o mesmo ar de arrogância que ela usara. Foi ainda mais longe.
Apontou-lhe o dedo. — Veja, lorde Robbie não está acostumado a ter uma
mulher matraqueando e reclamando nos ouvidos dele por qualquer coisa. Com
os homens, ele pode simplesmente dizer o que quer, e pronto.
Mairi revirou os olhos de raiva.
— Não notei que ele tratasse as mulheres de forma diferente. Pelo
menos, não comigo.
— Paciência, senhora — ele retrucou, gentilmente, quase em tom
paternal. — O casamento é uma coisa nova, para ele. Não é provável que ele
vá mudar seus modos em uns meros poucos dias e começar a tagarelar de
uma hora para outra, não acha? Ele nunca foi de falar muito, na verdade. Não
havia necessidade. — Fez uma pausa e coçou o queixo pensativo. — E, é claro,
há a maneira de falar. E difícil de. entender.
Ela ficou rígida.
— Bobagem! Ele não pode levar isso em conta. Eu o compreendo muito
bem. Realmente, ele tem uma forma bastante peculiar de dizer as coisas,
porém…
— Refiro-me a sua maneira de falar — explicou Andy, interrompendo-lhe
a frase. — Diferentemente de mim, que fiz umas poucas viagens até o Norte,
onde tenho parentes, Rob não teve oportunidade de conversar com pessoas
das Terras Altas, antes.
Atónita, Mairi engoliu em seco, incapaz de acreditar naquela afronta.
— Tente falar devagar — ele sugeriu — e com o sotaque das Terras
Baixas, se possível.
Ela cruzou os braços sobre o peito e ergueu o queixo orgulhoso.
— Esta discussão está encerrada. não tenho mais nada a lhe dizer.
— Como queira — retrucou Andy. — eu estava apenas tentando ajudar.
Mairi afastou-se, desgostosa, e começou a desem brulhar os
mantimentos para a refeição da noite.
Como aquele insolente criado ousava criticar sua maneira de falar? Difícil
de entender, ora essa! Colocou vários pães de centeio meio ressequidos sobre
a toalha e começou a procurar as fatias de carrne seca.
MacBain certamente não demonstrara dificuldade alguma em entender
que ela o convidara a partilhar a cama, nesta noite. E não tivera qualquer
problema em recusar o oferecimento.
E ela se comportara de forma bastante meiga. Todos aqueles elogios que
lhe fizera pela forma com que a protegera? Desperdiçados. Ter afirmado que
ela lhe perdoara por amarrar seus pulsos e arrastá-la para longe de casa?
Tempo perdido.
Mairi bufou de raiva e sacudiu a cabeça com vee mência. Nunca mais. De
ora em diante, se ele a qui sesse como esposa, realmente, como esposa de
verdade, ele teria de implorar, de joelhos. Ainda assim, ela po deria continuar
negando-se a ele e planejava dizer-lhe exatamente isso.
Ela podia falar da maneira correta quando queria, sem nem mesmo um
vestígio de sotaque escocês. Podia conversar como se fosse inglesa de sangue
como o rei Eduardo em pessoa. E era isso que íria fazer, então, se fosse para
fazê-lo prestar atenção ao que ela dizia. E só Deus sabia quanto tinha a dizer
Ansiosa, Mairi esperou que MacBain voltasse, planejando uma
confrontação para pôr um ponto final em tudo aquilo. Contudo, não o viu
retornar ao acampamento.
Obviamente, ele havia voltado, pois, em algum mo mento, enquanto ela
e Andy partilhavam a refeição, ela percebeu que o cavalo dele sumira do lugar
onde estivera amarrado, junto com os outros.
Aborrecida, ela estendeu as mantas sobre a grama, para passar a noite.
Sem conseguir sossegar, virou-se e remexeu-se, tentando ajeitar-se para
dormir. Puxou a coberta, respirando fundo, para se acalmar.
Andy Miúdo se deitara de lado e estava adormecido, recostado contra a
sela e os fardos de mantimentos, um pouco distante da fogueira.
A lenha se reduzira a carvão, ela podia ver através dos olhos
semicerrados. Ficou imóvel, percebendo uma sombra que se aproximava na
direção de seus pés. Se MacBain havia mudado de ideia e resolvera partilhar
os lençóis em uma hora tão tardia, definitivamente tinha chegado atrasado.
Determinada a fingir que dormia, ela fechou os olhos.
De súbito, Mairi sentiu que mãos se fechavam em torno de seu pescoço,
os polegares comprimindo sua traquéia. O corpo do homem imobilizava o dela,
dei xando livres apenas seus braços. Não era MacBainl Começou a esmurrá-lo,
lutando freneticamente para respirar, incapaz de emitir um som.
Em desespero, levou a mão para a cintura, lutando em vão para
encontrar a bainha de sua faca. O homem a atrapalhava, ela não podia
alcançar a arma.
Ela não podia morrer! Não ali! Não desse jeito!
Faíscas luziam e dançavam diante de seus olhos. Os pulmões
queimavam. Mairi sabia que tinha poucos instantes para se livrar. Com um
último esforço, cerrou os punhos e bateu com eles, com toda a força, nos
ouvidos do atacante. Ele grunhiu, as mãos duras aper tando ainda mais. Ela
continuou lutando, enterrando as unhas nos pulsos do animal, tentando girar o
corpo sob o peso do bruto.
No instante em que se rendeu à evidência de que era inútil se debater,
inexplicavelmente ele pareceu voar para longe dela. As mãos soltaram-se de
seu pes coço tão de repente, que a facilidade para encher o pulmão de ar a
surpreendeu. Contudo, não conseguiu se mover.
Sons de metal contra carne e um grunhido horrível e ameaçador,
misturado a gritos desesperados por mi sericórdia se elevaram. O terror a
imobilizou mais ain da. Mairi simplesmente não podia se mexer.
Ouvia a voz de Andy Miúdo berrando, o relinchar de cavalos assustados,
palavras ásperas gritadas, ge midos e lamúrias, súplicas e impropérios. Nada
disso a fez mover-se. Só se ocupara em encher os pulmões famintos de ar.
Ela descobriu que era-lhe dolorido respirar e entregou-se a isso com
lágrimas nos olhos. Queria gritar em agradecimento, expressar sua alegria por
estar viva, mas nenhum som escapava de sua garganta ma chucada, nem
mesmo um suspiro. Ela estremeceu, fechando os olhos.
Abriu-os quando braços fortes a rodearam. Tomada de um terror
renovado, ela debateu-se até que aquela voz profunda e monocórdica
quebrou-lhe a resistência com palavras sem sentido.
MacBain abraçou-a, protegendo-a com o corpo e passando a mão
suavemente em seus cabelos , instantes depois ele tomou-a nos braços e
carregou-a para perto do fogo. Andy Miúdo apressou-se em jogar mais lenha
para reacender as chamas, e agachou-se ali, olhando-os com preocupação.
MacBain abaixou-se e sentou-se, segurando-a no colo.
— Vire-se — ordenou.
Mairi percebeu que a ordem era para Andy Miúdo e não para ela, quando
o homem voltou-se e ficou de costas.
As carícias de MacBain imediatamente mudaram para uma exploração
sensual de seu corpo. Seus dedos longos e sensíveis procuraram a junta dos
ombros de Mairi e rapidamente desceram por um dos braços e, depois, pelo
outro.
Ele pressionou-lhe levemente os quadris enquanto examinava o rosto. O
toque a aqueceu, porém, ao mes mo tempo, ela sentiu um tremor espalhar-se
por sua espinha. Tentou empurrá-lo quando ele lhe ergueu as saias, acima dos
joelhos. De súbito, percebeu, embora embaraçada, que espécie de abuso ele
queria constatar. Ficou imóvel. No momento, estava impossibilitada de dizer a
ele que não sofrera o que ele havia imaginado.
Delicadamente, ele esfregou a palma da mão pela extensão de seu
ventre, em um toque íntimo de extrema leveza, carinhoso e breve. Com um
resmungo de evidente alívio, ele lentamente afastou a mão e abraçou-a,
embalando-a no colo como uma mãe faria a um bebé assustado.
Vencida, Mairi começou a soluçar. Sacudida pelo choro, ela enterrou o
rosto na túnica macia, os dedos agarrados ao tecido, sem se importar com o
frio metal da cota de malha que protegia o peito de MacBain.
Ali estava a segurança. Ali estava o protetor que a Malvara da morte
certa, novamente. Queria poder se enterrar dentro dele e ficar lá, para
sempre.
Ele a embalou por algum tempo, passando suave mente a mão em seus
braços, cabelos e costas, trans mitindo-me calor para que pudesse expulsar o
horrível frio do medo. Mairi não tinha lembranças de que alguém a houvesse
confortado e protegido assim, com tamanha ternura.
As lágrimas pararam, por fim, e ela moveu a cabeça, procurando fitá-lo.
— Está ferida? — Rob perguntou. A intensidade de seu olhar a queimava,
aprofundada pelo reflexo do fogo. — Onde?
Ela ergueu a mão trémula até o pescoço e estremeceu diante da
lembrança daquela pressão que qua se a matara.
Ele mexeu-se, aproximando-se do fogo e afastando-a para poder
examiná-la. De testa franzida, tocou a pele e, então, balançou a cabeça, os
olhos cheios de pesar.
— Pode falar? — perguntou, de novo em uma mesma entonação, como
se o som de sua voz pudesse assustá-la.
— Não. Dói muito. Não consigo — murmurou, lentamente, com imensa
dificuldade.
Rob inclinou a cabeça até que a testa tocou a dela. A mão descansava
em sua nuca, com uma pressão suave. Então, ele ergueu os lábios e beijou-a,
suave mente, na têmpora.
0 gesto trouxe à lembrança de Mairi a maneira com seu pai a tratava
sempre que ela se machucava, em criança. O pai lhe torcia o nariz, beijava-a
na testa e dizia para ser corajosa, que iria sobreviver. De alguma forma, as
lições do pai deviam ter calado fundo, pois Mairi sentiu uma ânsia de assegurar
a MacBain que ela não era uma frágil florzinha, não importava quanto se
assemelhasse a uma, naquele instante. Ela esforçou-se por sentar-se e sorrir.
— Estou bem — resmungou, imediatamente se ca lando de dor, esquecendo
qualquer bravata que qui sesse demonstrar.
Rob juntou as sobrancelhas e colocou um dedo sobre seus lábios.
— Fique quieta!
Mairi balançou a cabeça, concordando, mantendo o sorriso com
determinação. MacBain importava-se com ela, deduziu. Ele realmente se
importava.
Ela relanceou os olhos em torno, procurando pelos restos do patife que a
assaltara. Sem dúvida seu ma rido acabara com ele, quem quer que ele fosse.
— Nosso prisioneiro. — MacBain apontou para o lugar onde haviam
amarrado o cativo.
Então, o sujeito conseguira libertar-se. Porém, se assim fosse, por que
não fugira quando se vira livre das cordas? Por que ficara e tentara estrangulá-
la durante o sono? Ela nem sequer o conhecia.
Incapaz de formular as perguntas, Mairi fez um ges to de desalento e
deixou cair os ombros, exausta.
Que importava isso? MacBain não poderia responder pelo homem e
provavelmente o matara. Era improvável que pudessem descobrir por que o
sujeito cometera um ato tão torpe.
— Venha deitar-se — ele sugeriu, e colocou-a delicadamente sobre a
grama, a seu lado. Esticou-se e puxou-a contra o peito forte. — Durma —
murmurou, — Estou aqui.
E realmente estava, ela pensou, com um suspiro de satisfação. Sentia-se
segura para fechar os olhos e dar boas-vindas ao sono.
Contudo, uma ligeira pontada de raiva permanecia, pela recusa anterior
de MacBain em deitar-se com ela. Se ele estivesse onde deveria estar, nenhum
homem teria se atrevido a se aproximar. Mairi ficou a imaginar se a sensação
de culpa podia ter contribuído para toda essa ternura que MacBain
demonstrava agora.
Quaisquer que fossem suas razões ou seus defeitos, ela sempre seria
grata que ele houvesse voltado a tem po de salvá-la. Guardar-lhe ódio não
tinha propósito. Precisava expulsar de si o ressentimento que a recusa lhe
causara. MacBain tinha obviamente percebido o erro de seu comportamento e
mostrava-se muito mais de desejoso de deitar-se ao lado dela.
Mairi remexeu-se, apertando-se contra ele, tomada por uma sensação de
tranquilidade que o corpo forte, rígido e quente, deitado contra suas costas,
transmitia-lhe. A julgar pelo volume de sua virilidade, podia perceber que não
era por falta de desejo que o marido a recusara anteriormente.
Ela deixara bem claro que o queria, e ele mostrava que realmente a
desejava. Então, por que declinara o convite? Rob teria arranjado uma maneira
de ficarem sozinhos, se quisesse. Isso não seria problema.
Não era falta de capacidade, Mairi pensou, esfregando-se contra ele para
testar suas impressões.
Oh, sim, ele era, definitivamente, dotado de muita capacidade.
Por ora, contudo, faria o que ele lhe aconselhara e descansaria. Não
tinha o direito de exigir muito, nessa noite, mais do que aquilo que ele já lhe
concedera. Por mais pronto que Rob pudesse estar para isso, ela se sentia
desgastada demais para tentar seduzi-lo.
Conquistá-lo para sua causa de vingança poderia esperar, por mais
algum tempo.
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
Rob escoltou Mairi escada abaixo e levou a até perto da imensa lareira,
para es perar pelo conde e por Alys.
Estivera observando a estrada da torre leste até que vira a comitiva se
aproximando. Provavelmente tinham chegado ao pátio enquanto ele e Mairi se
arrumavam para a provação que os esperava. E seria uma provação, com
certeza.
Aquele encontro seria o mais crucial de todos. Todo seu plano poderia ir
por água abaixo. Poderia perder a confiança e a estima de Mairi antes mesmo
de ter a oportunidade de conquistá-las.
As portas do hall abriram-se, e Alys atravessou-as correndo, as saias
farfalhando, descuidada como sem pre de suas obrigações com a etiqueta. Ele
só podia esperar que ela não cometesse nenhuma gafe, em sua excessiva
alegria em voltar para casa.
Embora Rob soubesse que sua irmã jamais se mos trara deliberadamente
indelicada, ela não deixava es capar a oportunidade de desencadear uma
calamidade em potencial sempre que via sinais de problemas.
Deixou escapar um suspiro de alívio quando sua mãe a interceptou,
murmurando em seu ouvido que não falasse com ele por sinais ou deixasse
escapar o segredo por outros meios.
O conde entrou a seguir e caminhou até eles. Tinham lhe contado? Lady
Anne teria encarregado um criado fiel de avisá-lo, do lado de fora? Por outro
lado, a questão era: iria aceder ao pedido de Rob quando ele mesmo sofrera
com a ignorância do mesmo segredo, anos atrás, e nunca adivinhara a verdade
até que Rob tivesse confessado tudo?
— Pai — disse Rob, à guisa de saudação, inclinando-se, para, a seguir,
abraçá-lo. Em seus olhos havia um silencioso apelo para que o conde o
compreendesse.
Trouville encarou-o, arqueando ligeiramente uma das sobrancelhas. Só
Deus sabia o que aquilo significava. Para Rob, pareceu uma reprimenda.
Rob ficou a imaginar se o conde de Trouville causaria em Mairi o mesmo
efeito que provocava na maioria das pessoas ao primeiro encontro. Sua
presença imponente dominava os ambientes, mesmo o grande hall onde se
achavam.
Embora mechas cor de prata riscassem seus cabelos negros e algumas
poucas linhas de expressão marcassem suavemente suas feições, o semblante
nobre do conde tornara-se ainda mais distinto, com o passar dos anos.
Desde o primeiro dia em que o novo marido de lady Anne chegara, Rob
percebera a indubitável generosidade do coração de seu padrasto, mas ficara a
imaginar se isso era devido a seus dons de intuição. Mairi poderia ver isso
também, ou Trouville iria amedrontá-la?
— Robert, é bom vê-lo de novo, meu filho!
Seus olhos argutos caíram imediatamente sobre Mairi, que se abaixava,
em uma profunda reverência. Ele estendeu a mão, erguendo-a.
•— Pai, minha esposa, lady Mairi — anunciou Rob. — Mairi, o conde de
Trouville. — Conteve o fôlego. Rilhou os dentes. Rezou, interiormente.
— Enchanté, mademoiselle — disse seu pai, gentil mente. — Soyez Ia
bienvenue?
Mairi olhou para Rob, pedindo ajuda. Seu rosto tornou-se rubro, como
carvões incandescentes. Rob percebeu imediatamente que ela não falava
francês, nem mesmo o suficiente para entender a simples saudação, nessa
língua.
Oh, Deus, ele sabia exatamente o que ela estava sentindo naquele
instante e quis abraçá-la, para as segurar que ninguém se importava que ela
não soubesse o idioma. Quantas vezes ele mesmo se encontrara em situação
semelhante e sem ter como responder? Aproximou-se e envolveu-a pela
cintura.
— Um teste, pai? — A raiva toldou-lhe as palavras. A expressão do conde
não se alterou.
— Claro que não, filho. Apenas uma cortesia. Você sabe que muita gente
prefere falar minha língua, mesmo neste país. — Voltou-se para Mairi. —-
Minhas desculpas, filha.
— Je regrei… — Mairi ensaiou responder e desistiu.
— Sinto muito, M'seiur le Comte, Meu conhecimento de seu idioma é
muito pobre.
Inexistente, pensou Rob, deixando escapar um suspiro. Trouville tomou
as mãos dela nas suas e sorriu, meneando a cabeça.
— Minha cara, minhas tentativas de falar o gaélico morreram sem nem
mesmo nascer, anos atrás! — Riu.
— Tem algo a ver com minha garganta, aparentemente. Rob jura que o
francês é falado mais com o nariz e se recusa a se expressar nessa língua.
Rob captou grande parte do que o conde dizia e deduziu o resto. Às
vezes, ele ainda se confundia com o sotaque, especialmente quando seu pai
conversava com a mãe e não se importavam de que ele os compreendesse.
Mairi respondeu ao sorriso de Trouville, um tanto sem graça.
— Estou feliz por conhecê-lo, meu lorde — disse,
lenta e cuidadosamente.
Provavelmente em deferência ao fato de que o conde era francês, pensou
Rob. Por que ela não falava com ele assim? Desta vez, ele conseguira entender
cada palavra que ela dissera. Contudo, pudera perceber que ela ainda sentia
dor, ao falar.
— Sua garganta está machucada — explicou, para dissipar qualquer
desconforto que ela ainda sentisse.
Alys aproximou-se e jogou os braços em torno do pescoço de Rob, como
sempre fazia quando o irmão vinha visitá-los. Então, inclinou-se, examinando-
lhe o rosto como se verificasse seu estado de espírito.
— E eu, meu irmão? Vou ser apresentada a ela, ou vai me colocar de
lado?
Rob sorriu sem graça e voltou-se para os demais.
— Mairi, minha irmã, Alys.
Alys abraçou Mairi e beijou-a no rosto. Rob não pôde ver o que a irmã
dizia, mas o sorriso de sua esposa, em resposta, deu-lhe a confiança de que
tudo caminhava bem.
A mãe obviamente avisara Alys para proceder com cautela, como Rob
havia esperado. Parecia que conseguira a cooperação da irmã, afinal.
Entretanto, a sombra da desaprovação continuava a toldar os olhos negros do
conde. Só podia rezar para que fosse uma rea-ção ao segredo que insistira que
fosse mantido e não pela escolha da noiva. Nunca soubera que Trouville fosse
de julgar alguém no instante da apresentação, mas sempre havia uma
primeira vez para tudo.
— Posso lhe dizer uma palavra, senhor?
— Mais do que uma, prometo — retrucou o conde. — No solário?
Rob seguiu-o, sabendo que aquela não seria uma conversa fácil.
No instante em que a porta se fechou, ele foi atingindo pela rajada de
fúria de Trouville.
— Você não contou a ela! Est-ce que tu es fou?
— Não, pai, não sou louco. Thomas disse ao pai dela. E Lorde Maclnness
afírmou-me que contara a ela. — Rob ergueu as mãos para o alto, exasperado.
— Pensei que ela soubesse! Porém, mais tarde, percebi que não. O casamento
estava sacramentado.
— Isso é injusto, Robert! Errado! — Fez um gesto vigoroso, dando
ênfase ao que dizia. E isso indicava que estava fora de si. Desde o princípio, o
conde se recusara a falar por sinais, insistindo que Rob iria aumentar sua
capacidade de compreensão sem a necessidade de conversar com as mãos. Na
verdade, essa recusa ajudara Rob em muito, começando por ampliar seu
vocabulário, ao longo dos anos. — Você não pode continuar a esconder esse
fato dela. Conte tudo!
— Não, pai. Primeiro, ela precisa ver que um pouco de surdez não deve
ser levada em conta.
— É para ser levada em conta! Porque você mentiu. Por omissão, você
mentiu, Rob. Ela pode odiá-lo por isso.
Rob comprimiu os lábios e balançou a cabeça, antes de responder.
— Talvez ela venha a me odiar ainda mais se não puder enxergar além
da surdez. Deixe que ela me conheça um pouco mais. Então, eu lhe direi.
— Ela vai adivinhar, Robert. A menos que seja tola, logo ela irá adivinhar.
— Você não descobriu, lembra-se? Trouville fez um gesto de
exasperação.
— Você era uma criança, e eu acabara de me casar com sua maman.
Havia outras coisas em jogo. Mairi, porém, é sua esposa!
— Sim. E ela pode livrar-se dessa condição quando souber. Eu cuidei
para que ela pudesse escolher. Nós não… — Rob não conseguiu pensar em uma
palavra adequada para explicar que não a levara para cama e não conseguiu
terminar a frase.
Trouville encarou-o atónito. Então passou a mão pelo rosto e balançou a
cabeça.
— Então, provavelmente ela esteja mais preocupada com outra parte de
seu corpo do que com seus ouvidos. Vocês estão casados há… quatro dias?
— Deixe estar, pai, por favor. Sei o que estou fazendo. — Hesitou, por
um instante, antes de pergun tar: — Gosta dela, senhor?
— Oui — confirmou o conde, com um gesto impa ciente. — Ela é bonita,
bastante agradável, embora não muito bem-educada. A questão é: você gosta
dela?
Rob sorriu.
— Gosto. Mairi é uma moça de coragem.
— Coragem? E isso foi tudo o que notou? — per guntou o conde,
erguendo uma das sobrancelhas.
— Não — admitiu Rob, com um ligeiro sorriso. — Sinto desejos por ela,
acho que posso amá-la.
— Então, é o melhor começo. Confesse tudo e não deixe que seja tarde
demais.
— Ainda é cedo. Por favor, pode me ajudar? — pediu Rob, já sabendo,
pela expressão do pai, que havia ven cido. Se Trouville desejasse dizer a
verdade a Mairi, provavelmente já o teria feito.
— Se você insiste… Ela é sua esposa. — Olhou bem dentro dos olhos de
Rob. — Filho, há outro problema que precisamos discutir.
— Más novas? — adivinhou Rob.
O conde deu de ombros, sem saber como o filho iria considerar a notícia.
— Jehan voltou.
O choque pegou-o desprevenido. Rob não pôde conter o engasgo e não
encontrou uma palavra para responder. O pai continuou:
— Sir Williams encontrou-me no portão. Disse que sua maman mandou-
a para Baincroft, para Thomas. 0 irmão tem ordens para devolvê-la à corte da
Ingla terra, amanhã.
— Graças a Deus! — murmurou Rob. Thomas não ousaria contrariar as
ordens de lady Anne. Jehannie teria ido embora quando ele voltasse para casa.
Com certeza.
Tudo o que conseguia pensar era no desastre que aconteceria, se ela não
se fosse. A gatinha selvagem podia não o ter querido para marido, mas ele
bem podia imaginar-lhe a raiva se soubesse que alguém a substituíra, em sua
afeição.
Novamente, Rob sentiu o mesmo alívio que recen temente o
surpreendera com relação a seu casamento cancelado, a despeito do baque em
seu orgulho. Aben çoava o fato, agora que encontrara Mairi.
— Por que Jehannie voltou? — perguntou, temendo ter adivinhado a
razão. Certamente não seria para visitar o irmão.
— Ela não sabia que seu grandpère havia descon siderado seu
compromisso para com você. Jehan não teve culpa.
— Que confusão! — exclamou Rob, fitando o pai com um olhar
preocupado. — Ela vai ferver de ódio.
Trouville deu um sorriso.
— Problema de Thomas, não seu. Não se meta nisso. Jehan vai
sobreviver. Agora, vamos, precisamos nos reunir aos outros.
- Obrigado, pai — disse Rob, com uma reverência formal. — Por tudo.
Inesperadamente, o conde o abraçou. Deu urn tapi-nha nas costas de
Rob e afagou-lhe os ombros e, depois, os cabelos, como sempre fazia quando
discordavam e, em seguida, chegavam a um acordo. Rob sentiu-se como o
filho que errara e fora perdoado, como em muitas outras ocasiões, no passado.
Ele sabia que era amado por esse homem a quem respeitava, acima de
tudo. Quando garoto, pudera contar com esse amor e ainda podia.
Aborrecia-o desapontar Trouville de alguma forma, mas Rob acreditava
estar com a razão, quanto ao problema com Mairi. E era infinitamente grato ao
pai por tranqúilizá-lo com relação a Jehannie. Como ele dissera, ela iria
superar.
Afinal, ele e Jehannie não haviam se amado como um homem e uma
mulher. Não da maneira que poderia amar Mairi, se ela se decidisse a ficar com
ele. E se não ficasse, ele não teria outra esposa. Jehannie era parte de ■ seu
passado e ficaria lá para sempre. Mairi era seu futuro, pelo menos era o que
ele esperava.
— Está cansada, irmã? — perguntou Alys, demonstrando simpatia.
Certamente estava cansada da excessiva atenção com que a irmã de Rob
a sufocava, Mairi admitiu, silenciosamente. A jovem a seguia por toda parte.
Havia insistido que Mairi usasse um de seus novos vestidos, para a festa que
agora compareciam. Estava menos amarrotado, sem dúvida, que os de Mairi,
mas caía sobre seu corpo como uma tenda. E o amarelo doentio da seda dava
a sua tez uma palidez mortal. Ainda assim, a garota parecia supor que lhe
ficava bem.
Alys não passava de uma garota de quinze, talvez dezesseis anos,
embora fosse maior e mais alta que Mairi. Seus olhos acinzentados pareciam
não perder nada e faiscavam de energia, uma energia focalizada inteiramente
sobre Mairi, naquele instante.
Subliminarmente à aparente preocupação de Alys, Mairi julgou que
detectava um vestígio de um humor vicioso. Porém, como uma mulher das
Terras Altas, simples e sem graça, poderia divertir uma dama como lady Alys?
Certamente a filha do rico francês poderia encontrar maneiras mais
requintadas de se divertir do que entretendo a esposa do irmão por umas
poucas horas.
Quem sabe alguém embasbacado de admiração divertisse Alys, pois era
assim que Mairi devia parecer, desde que chegara ali.
E por que não deveria estar? O grande hall do castelo de Trouville por si
só podia engolir a fortaleza inteira de seu pai. Devia haver duas centenas de
almas festejando seu casamento, quando ela não via motivo algum para
festejar, no momento. Tudo o que mais queria era dormir. E em silêncio.
O barulho era grande demais para uma conversação decente. Não que
ela esperasse poder conversar com o marido. Mesmo quando haviam ficado
sentados, lado a lado, partilhando a refeição, ela mal pudera ouvir as próprias
palavras. Gritar para superar o ruído estava certamente fora de questão, sua
garganta ainda doía a qualquer esforço.
Os músicos pareciam tocar de uma forma absurdamente alta durante o
jantar, o que a levara a imaginar ^se a família inteira não seria surda, como
Rob. Desacostumada de tanto tumulto, Mairi sentia a cabeça doer
terrivelmente.
Finalmente, uma horda de criados tirara a mesa, para que o baile
pudesse começar.
Ela e Alys estavam agora paradas a um lado do salão e observavam.
Lady Anne havia reunido um grupo de musicistas, ali. Viveriam no castelo,
para encher de prazer as noites de seus senhores?
Havia seis músicos, com uma harpa, uma cítara, um saltério, tambor,
flauta e vielle. Alys lhe dissera os nomes dos instrumentos, que ela jamais vira
antes. Na verdade, os únicos que reconhecera eram a flauta e o tambor. E isso
apenas enfatizava a Mairi, e pro vavelmente a Alys, como sua vida fora o
inverso de tudo isso, até então.
— Você dança? — perguntou Alys. — Rob é maravilhoso como dançarino.
Ah-ah! Olhe lá, ele se aproxima de maman para a estampie. Observe como são
divinos.
Ela riu, cheia de entusiasmo, e bateu palmas quando Rob ergueu a mãe
para o alto, colocou-a de volta no chão e começou a executar os passos
ligeiros e intrin cados da dança.
O coração de Mairi disparou. O fôlego ficou contido, em sua garganta.
Sentiu que ia desmaiar, embora não conseguisse desviar os olhos dele. Por
Deus! Rob dançava! E dançava bem! E podia…
Ele podia ouvir, ela pensou, com uma sensação de depressão que, sabia,
não deveria estar sentindo. Na verdade, seu marido e a música estavam ern
íntima sintonia. Ele e lady Anne pareciam divertir-se inten samente, nunca
perdendo um único compasso da sel vagem cadência rítmica tocada pelos
musicistas.
Ele poderia ter dado um jeito de parecer um digno dançarino,
simplesmente observando os demais e man tendo os passos no mesmo ritmo.
Contudo, para uma demonstração como aquela, Rob tinha que ouvir a mú sica.
E ela havia estado tão certa que…
Mairi desejou desaparecer, simplesmente desaparecer como se nunca
estivesse estado ali. Continuar no salão, forçando um sorriso, mostrava-se
bem mais ár duo do que podia aguentar. Sentia-se uma perfeita idiota, e ele
devia também julgá-la assim, dado seu comportamento. Todas aquelas
concessões que fizera para que ele pudesse entendê-la pareciam agora com
pletamente estúpidas.
Como cometera um erro tão grave, ao supor que ele fosse surdo? Ele
ouvira o assobio agudo daquele guar da, à tarde. Ela é que não quisera admitir
o fato. E, agora, obviamente, ouvia cada nota que os músicos tocavam.
Novamente, ela alicerçara seu julgamento em supo sições, ao invés de
em fatos. Como pudera estar tão enganada? Como não tivera em mente que
isso seria uma desastrosa limitação para um cavaleiro e para um lorde?
E por que este sentimento de desapontamento, ao saber que estava
errada, quando seria tão importante que seu marido pudesse ouvir? Ela não
era digna dele, se não ficasse feliz com o fato.
A vergonha a dominou, pelos planos que fizera de tornar-se o braço
direito de Rob em todas as coisas, - de ajudá-lo pela vida afora, de ser a
pessoa mais im portante em seu caminho.
Rob não precisava dela. Não ia necessitar de sua ajuda por causa da
surdez e, aparentemente, nem de seu corpo para ter prazer. Não era de
nenhuma valia para ele.
Bem, era doentio desejar ser como uma mãe para o homem com quem
se casara, não era? Que bela esposa se tornaria, comportando-se assim!
Contudo, ela aca lentara a esperança de ter algo de grande importância para
oferecer a ele, além dos filhos que poderiam ter.
Agora, isso lhe parecia impossível. Só Deus sabia como seu dote contava
pouco. E ela que pensara em com pensá-lo de alguma forma…
Tinha de descobrir por que ele a escolhera. Rob devia ter julgado que
uma mulher das Terras Altas teria condições de oferecer-lhe filhos fortes. Os
habitantes das colmas do Norte eram conhecidos por serem des temidos e
assim se mostravam.
Por ora, ela não conseguia pensar em alguma outra boa razão para que
ele tivesse ido tão longe para en contrar uma esposa. O salão do castelo de
seu pai parecia coalhado de belas mulheres, ali mesmo, na quela noite. Um
homem tão belo como Rob poderia ter escolhido qualquer uma delas.
A música parou, e o rumor estrondoso dos aplausos elevou-se. Então, os
músicos iniciaram uma canção me nos agitada e os dançarinos se dispersaram,
em busca de novos parceiros.
Uma jovem particularmente atraente segurou as mãos de Rob, sob o
olhar atento de Mairi, e logo outra, adorável também, tomou-lhe o braço. Ele
disse alguma coisa a elas, que responderam, com a cabeça, fitando-o com um
ar embevecido. Deviam ser palavras doces, com certeza, para merecer tais
sorrisos.
Então, ele encaminhou-se para o lugar onde Mairi estava, ao lado de
Alys.
— Ele é o preferido das mulheres, não é? — comen tou Mairi, sem
refletir.
— Sim, é mesmo! Está com ciúme? — perguntou Alys, com uma
risadinha maliciosa.
— Claro que não! — Mas, estava. — Só fiquei a imaginar por que, se
havia tantas por perto querendo tê-lo, ele viajou para tão longe para casar-se.
Alys revirou os olhos, em um trejeito cómico.
— Voilál Se ele houvesse escolhido uma dessas, teríamos um problema
nas mãos! A pobre noiva seria importunada além do suportável pelo resto das
mu lheres, todas verdes de inveja.
— Irão me importunar? — perguntou Mairi, meio alheada, perturbada
com a visão de seu belo marido caminhando em sua direção, atravessando o
salão
abarrotado de gente.
A cunhada deu de ombros.
— Quem lhe fora prometida rompeu o trato. Quando a conhecer, você
pode perguntar a ela qual foi a razão. — Alys riu como se houvesse feito uma
piada. — A tola deve ter encontrado um bom motivo para pôr um fim ao
compromisso e, eu lhe asseguro, não foi por falta de amor ao nosso belo lorde
Robbie.
— Quem… — Mairi ia perguntar, porém o marido chegou e interrompeu-
a, estendendo a mão a ela.
— Dança?
Por mais que desejasse respostas sobre a ex-noiva, Mairi não conseguiu
pensar em nenhum motivo delicado para recusar o convite do marido. E
também não dese java deixá-lo à mercê daquelas mulheres pegajosas.
— Sim — retrucou, confirmando com a cabeça. — Eu gostaria de dançar.
O olhar intenso de Rob não abandonou o rosto dela enquanto ele a
conduzia para o círculo interno formado pelas mulheres, em torno de um único
músico. O rapaz estava ali para cantar, pois ela percebeu que ele lim pava a
garganta e ensaiava umas poucas notas. Uma das senhoras, ao lado, disse a
outra que seria uma chaplet, uma dança da qual Mairi nunca ouvira falar.
Rob deu um passo atrás, colocando-se do lado oposto a ela, no círculo
externo. Inclinou-se em uma reverên cia quando a flauta trinou, com as notas
de abertura.
Mairi pôde pensar em pouca coisa, salvo no brilho dos olhos cinzentos e
na pressão excitante dos dedos dele, em sua mão, quando os outros
instrumentos vie ram juntar-se à música. Ele a conduziu, parando no
compasso certo para inclinar-se e girar, como faziam os demais.
A cada três pausas, os passos os conduziam para mais perto, até que
seus corpos quase se tocavam. O desejo de estreitar aquela distância quase
tomou conta de Mairi e irritou-a que o mesmo desejo não o afetasse, também.
Rob parecia totalmente indiferente.
Contudo, no último floreio das notas, ao invés do inclinar-se em uma
cortesia, ele segurou-a pelo queixo e beijou-a, sonoramente, na boca. Pela
duração do beijo, tudo o mais ao redor cessou de existir para Mairi.
Quando ele a soltou, risadas e aplausos rromperam de todos os lados.
Rob sorriu, percebendo-lhe a confusão. Antes que pudesse se recobrar, eleja
colocara a mão dela no braço do conde de Trouville e encontrara uma nova
parceira.
Será que todos os homens tinham beijado sua parceira, ou Rob fizera
aquilo porque tivera vontade? Os recém-casados faziam isso, normalmente,
quando dançavam? Talvez nunca soubesse, pois certamente não iria perguntar.
Contudo, iria prestar atenção para ver se ele beijava alguma outra mulher.
O restante da noite transcorreu em um torvelinho. Todas as vezes que
Rob a convidou para dançar, Mairi aceitou. E preocupou-se quando ele não o
fez. Ela pró pria, entretanto, não pudera parar, solicitada por Trou ville e por
outros homens, cujos nomes não conseguia se recordar.
Seus pés doíam e seu rosto tinha cãibras, de tanto manter o sorriso. Se
pelo menos a condessa não tivesse se sentido obrigada a promover uma tal
festa aquela primeira noite… Mairi estava cansada. Não e recobrara ainda nem
do ataque nem da viagem. Queria descansar. E esconder-se, admitiu, amarga
mente, para si mesma. Sim, era esse o seu real desejo. Rob parecia não se
cansar. Só parara de dançar uma vez ou outra, para um copo de vinho, ou para
uma rápida troca de palavras. Não com ela, porém. Para Mairi, só perguntara,
simplesmente, como da primeira vez:
— Dança?
Mairi ainda não conseguia acreditar que estivesse tão enganada quanto à
capacidade dele de escutar. De que outra maneira poderia desculpar seu
comporta mento em Craigmuir e na viagem até ali?
Mesmo agora, em que desfrutavam uma dança bem mais tranquila,
durante a qual os dois poderiam con versar, ele não lhe dirigia a palavra. Será
que lamentava a escolha? Será que desejava ter escolhido uma noiva do local,
ao invés dela, já que seu sotaque o incomodava?
— Bem, você vai ter que se contentar com aquilo que escolheu! —
declarou, jogando a cabeça para trás, quando ele a puxou para mais perto, em
uma distância em que poderia ouvi-la, acima do barulho.
O meio sorriso que Rob lhe dirigiu enfureceu-a. Mairi quase o esbofeteou
na face, só não o fez porque a família inteira os observava.
— Não mais — Rob retrucou, quando as últimas notas soaram. Curvou-
se, em um cumprimento. — A música acabou.
— Bem, obrigada — ela resmungou, furiosa consigo mesma.
— De nada — ele retrucou, alegremente, e conduziu-a para o lugar onde
os pais e a irmã estavam sentados.
Mairi teve vontade de chutar-lhe as canelas, no entanto deixou que ele a
acompanhasse até o banco e se sentasse, a seu lado.
Vieram os brindes. Rob ergueu a taça para o alto, descrevendo um
círculo que abrangia todo o salão.
— A minha esposa — anunciou em voz alta. — A bela lady Mairi.
Mairi sentiu o rosto queimar quando os gritos ecoa ram, e todos beberam
a sua saúde. “Fariam o mesmo para saudar um novo potro recém-nascido",
pensou, rilhando os dentes. Estampou um largo sorriso, entre tanto, e meneou
a cabeça, agradecendo os votos.
Que outra escolha lhe sobrava? Estava casada e de via, portanto, fazer o
que era preciso. Não vivera so nhando com aventuras? Ora, pelo menos, esse
desejo estava realizado.
— Robert me disse que vocês devem partir para Baincroft pela manhã —
comentou Trouville, quando fizeram uma pausa, entre os brindes.
— Devemos? Ele esqueceu de mencionar o fato a mim— retrucou ela,
incapaz de esconder a amargura da voz.
— A mãe de Robert e eu fomos muito felizes lá, nos primeiros anos de
nosso casamento — continuou o con de, com um sorriso encantador. — Os
esforços de seu marido melhoraram em muito o castelo, desde aquela época.
Ele é um excelente lorde, se posso dizer assim. Seu povo o adora.
Lady Anne, que a tudo escutara, inclinou-se para frente.
— E verdade, você jamais encontrará súditos tão leais como os que
Robert comanda. Todos o conhecem muito bem. Nenhum lorde, na Escócia,
importa-se mais que meu filho com o povo sob sua proteção.
— Agradeço por partilharem isso comigo — disse.
— Na verdade, meu novo senhor e eu somos pouco menos que
estranhos um ao outro.
— Um problema fácil de resolver — disse Trouville, Horrindo.
— Como? — indagou Mairi, a frustração toldando lhe o bom senso.
Ele deu uma risada, obviamente surpreso com sua candura. Lady Anne
mordeu o lábio e recostou-se na cadeira. Mairi não soube precisar se a mãe de
Rob se ofendera com sua pergunta ou com a falta de uma resposta.
Trouville segurou a mão de Mairi e inclinou-se, fa lando bem perto de seu
ouvido.
— Robert vai roubar seu coração, minha cara, e lhe dar o seu se você
permitir. Como alguém que aprecia um casamento de amor, eu o recomendo
ardentemente a você.
Mairi sentiu-se grata por aquelas boas intenções. O conde, estava claro,
considerava Rob com seu filho ver dadeiro e desejava que fosse feliz. Ela
percebeu nele a bondade inata revestida na capa de formalidade que a posição
de Trouville requeria.
— O senhor é uma pessoa afortunada, meu lorde - murmurou.
— E você também será — retrucou ele, soltando-lhe a mão. — Confie em
Robert. — Levantou-se da cadeira e ficou de pé. Depois de ajudar lady Anne a
fazer o mesmo, ergueu a voz, para que todos pudessem ouvi-lo.
- Desejamos a todos uma boa noite.
Aquilo devia indicar que, finalmente, a festa tinha acabado, pensou Mairi,
com um suspiro de alívio. Rob tomou-a pelo braço, segurando-a firme
enquanto ela lutava para passar o vestido emprestado pelo banco.O que iria
acontecer, agora?
Iria partilhar o quarto com Alys, onde se banhara e se vestira, mais
cedo? Ou ela e Rob se acomodariam em colchões, no salão, como muito
viajantes faziam, ao passarem por grandes castelos, pelo caminho?
Ela relanceou os olhos ao redor, furtivamente, notando a pressa dos
criados em limpar as mesas, e a carregar os bancos, colocando-os contra as
paredes.
Rob conduziu-a para a escada, sem pressa, deixando que seus pais e
Alys subissem, à frente.
Pareceu-lhe natural aceitar sua orientação, ela logo descobriria onde
devia passar a noite.
Provavelmente ele não fosse querer dormir com ela e, pela primeira vez,
Mairi não se importou.
Sentiu saudade do pobre pai, da simplicidade de Craigmuir e do jeito que
as coisas costumavam ser. Tudo o que mais queria, naquele momento, era
debulhar-se em lágrimas e sucumbir à exaustão. A grande aventura tornara-se
um suplício, e o coração lhe doía com o desapontamento.
Por mais que se visse rodeada por centenas de pes soas naquele lugar, e
sem vislumbrar, infelizmente, um instante de solidão no futuro próximo, Mairi
sentia-se irremediavelmente sozinha.
CAPITULO IX
Rob chegara a pensar que a festa jamais fosse acabar. Como regra,
adorava dançar, mas ter que observar Mairi volteando pelo salão com todos os
homens presentes tinha certamente ofus ado esse prazer.
Para sua tristeza, reconhecera seu ciúme diante do fato. Ele, que nunca
tivera ciúme de alguém, até onde podia se recordar. Definitivamente, isso era
humilhante.
Uma coisa boa resultara do baile, contudo. Ele havia impressionado a
esposa com sua desenvoltura, reco nheceu, um tanto envaidecido. Sim, Mairi
nem mesmo tentava esconder seu prazer e quase engasgara quando o vira
dançando com a mãe.
Seria difícil que ela soubesse que ele sentia a música diretamente na
alma. Era uma das poucas coisas que conseguia ouvir, pelo menos de forma
suficientemente clara para afirmar que ouvia, e ele adorava isso.
Seus pais sustentavam, permanentemente, um conjunto musical, fazia
anos. A mãe os contratara quando ele era um garoto, assim que Rob lhe
contara que conseguia escutá-los.
Embora o baile houvesse dado a Mairi a oportunidade de admirá-lo em
algo que fazia muito bem, Rob desejava que pudessem ter dispensado a
cansativa celebração daquela noite. Ela precisava mais de descanso do que de
festas ou danças. Se sua mãe não houvesse insistido em como era importante
a aceitação de Mairi por seus súditos, ele nunca teria concordado com tudo
aquilo. A.maior parte do povo que vivia sob a proteção de Trouville era
aparentada com o de Baincroft. Nobres e plebeus, todos eram considerados da
família. Embora essa fosse sua primeira visita ali, em meses, o inter câmbio
entre os dois Estados era constante.'
Muitas das pessoas presentes deviam estar se sentindo bastante
confusas com a súbita aparição de Jehannie e, logo depois, com a chegada de
Rob com outra mulher como esposa. Especialmente os pais de Jehannie. O pai
dela era o padre dali, e sua mãe, a curandeira. Casados por vinte e cinco anos,
haviam servido a lady Anne durante todo esse tempo. Ela, por sua vez, tinha
desprezado a visão da igreja com relação a clérigos casados e dado a eles um
teto, primeiro em Baincroft e, depois, ali, quando desposara Trouville.
Desde que ele e Mairi haviam chegado, a ausência de padre Michael e
lady Meg havia sido notada. A aparente deserção de Jehannie ao compromisso
com Rob causara aos pais dela um grande embaraço, assim como para
Thomas. Isso tudo devia parecer a eles como se Rob estivesse punindo
Jehannie por algo gue não era sua culpa, afinal. E como agora soubesse gue
ela não era responsável pelo rompimento, Rob sentira que devia fazer tudo que
estivesse a seu alcance para evitar quaisquer sen timentos desagradáveis
entre o pessoal, por tê-la subs tituído. Tentara explicar-se para aqueles que
percebera poderiam contar a historia aos demais.
A festa lhe dera a oportunidade de assegurar a todos que estava
satisfeito com sua nova esposa e que, mes mo assim, ainda queria bem a
Jehannie. Os esforços da noite haviam se mostrado exaustivos e bem-suce
didos, pelo menos era o que esperava.
Rob conduziu Mairi escada acima, seguindo para o quarto de Alys, onde
entrou, junto com ela.
— Está cansada? — perguntou.
— Sim — ela respondeu, olhando ao redor como se procurasse por
alguma coisa, ou, provavelmente, por alguém.
Sua irmã iria passar a noite em uma acomodação menor, no andar
superior, o que era o correio e adequado, diante das circunstâncias. Como Rob
era um visitante e um lorde, tinha direito ao segundo melhor quarto. Além
disso, ele ocupara aquele mesmo aposento durante anos e o considerava como
seu sempre que vinha ao castelo.
Os criados haviam removido a banheira e arrumado o ambiente, depois
da louca correria de ambos para se aprontarem para a festa. A lareira
crepitava, espa lhando um calor agradável, e as velas aromáticas
acrescentavam seu toque dourado de luz, tornando o quarto aconchegante.
Era um convite para amantes, se fosse esse o caso de ambos, pensou
Rob, deixando escapar um suspiro de resignação.
Alys havia modificado o quarto, dando a ele um toque feminino, com os
brocados de um verde pálido pendendo do dossel e os travesseiros de fronhas
bordadas. Pela primeira vez, Rob ficou feliz com a mudança que pro
vavelmente deixaria Mairi mais confortável.
Também o agradava o fato de que a cama enorme continuasse ali, feita
para acomodar seu peso e esta tura. Pelo menos, não precisaria dormir face a
face com Mairi, excitado como estava.
Mairi interrompeu-lhe os pensamentos quando o to cou no braço,
fazendo a pergunta que ele já esperava.
— Onde está sua irmã?
Ele conseguia entendê-la melhor, percebeu. Talvez o cansaço a fizesse
falar mais devagar, ou, quem sabe, Mairi houvesse passado a noite
conversando mais pau sadamente com seu pai, para fazer-se compreender, e
não tivesse ainda abandonado a prática.
Como desejava poder escutar sua voz… Seria aguda ou baixa? Acharia
seu sotaque das Terras Altas exótico e agradável, ou irritante?
Ah, ela esperava uma resposta.
— Ela vai dormir lá — Rob apontou para o teto, indicando o andar
superior. — Nós, aqui — continuou, inclinando a cabeça em direção à cama
convidativa, na qual provavelmente ele passaria a noite, atormen tado e sem
conciliar o sono, porque ainda não poderia ter Mairi como esposa.
Os lábios dela se abriram, sem fala, e seus olhos se arregalaram. De
medo? Ele duvidava. De surpresa, mais provavelmente. Ela não esperava
partilhar um quarto com ele, muito menos uma cama.
Na verdade, Rob preferia que tivesse sido feito outro tipo de arranjo, pois
não pretendia exercer seu direito de marido até que Mairi soubesse a verdade
sobre ele. E só então, com a condição de que ela desejasse isso. Contudo,
voluntariamente, não seria ele a escolher dor mir sozinho. Uma tal decisão
levantaria muitas per guntas, afinal ele e Mairi estavam casados a menos que
uma semana. Deviam sujeitar-se, portanto.
Como se houvessem passado juntos todas as noites, e fosse natural, Rob
tirou os sapatos e começou a despir-se tranquilamente. Tirou a túnica e soltou
a fivela do cinto.
Rapidamente, Mairi desapareceu por detrás do pai nel que escondia o
lavatório. Ele sorriu, ao perceber como a esposa era previsível.
Quando ela saiu do esconderijo, ele já se enfiara, nu, entre as cobertas,
mesmo sabendo que aquilo era uma tentação. Recostou-se, apoiado em um
dos cotovelos, observando-a.
Ela ainda usava a combinação, uma peça íntima recatada que escondia
seus encantos quase tão com pletamente como seu vestido. Rob admirava o
pudor, em uma mulher. Mesmo assim, lamentava não poder libertá-la do
recato, naquela noite. Vestida ou não, a visão de Mairi o excitava. Mas, depois
de sofrer as angústias do desejo por todos aqueles dias e noites, aprendera a
suportar com estoicismo seus impulsos.
Rob sorriu e puxou as cobertas, em um convite. Será que ela o aceitaria
se ele resolvesse tomá-la, agora?.
Silenciosamente esperou, mantendo o sorriso de desafio.
Ela cruzou o quarto com alguma hesitação, morden do o lábio e
observando-o, com cautela. Lentamente deitou-se.
Rob permaneceu imóvel, até que ela se acomodou, mantendo, como
pôde, um espaço entre ambos, e puxou as cobertas até o pescoço. Então, ele
se inclinou sobre ela, deixando claro que pretendia beijá-la.
Só uma vez, ele prometeu a si mesmo. Não tinha pensado em outra
coisa desde aquele rápido beijo, durante a dança. Apenas um simples roçar de
lábios para desejar boa-noite era o que pedia, nem mesmo iria tocá-la com as
mãos.
Rob pousou a boca na dela, resvalando na maciez rosada de seus lábios,
sentindo que Mairi continha o fôlego. Incapaz de resistir, ele continuou com a
carícia, contornando com a língua a abertura úmida. Ah, ela era doce como o
marzipã.
Saboreá-la um pouquinho mais não faria mal, ele resolveu, ao perceber
que ela não se afastava. Rob inclinou a cabeça para o lado e colou a boca na
dela. Como se encaixavam bem, pensou. E a imaginação levou-o para muito
mais longe.
Ele sentiu que a palma da mão dela deslizava, he sitante, de seu peito
para seu pescoço, os dedos fle xionados enterrando-se em sua carne. A fome
do desejo o arrebatou, percorrendo seu corpo como uma lâmina incandescente
que se cravou em suas entranhas com uma dor prazerosa. Uma dor bem-
vinda, pois ele co nhecia bem o agudo prazer que era aliviar tal agonia. Porém,
não podia. Ainda não.
— Mairi… — ele murmurou, contra os lábios dela, e sentiu a vibração de
seu nome murmurado por aquela boca trémula.
Só mais um beijo, prometeu, de novo. Só mais um pouco daquela
deliciosa tortura e, então, cessaria com essa loucura. Mas, assim que a tocou,
ela o envolveu, com calor. Um outro beijo, para que ela pudesse se saciar.
Como haveria de negar isso a ela? Por quê, pelos céus, havia de querer evitar
isso?
A deliciosa mistura do sabor, do contato, do cheiro de Mairi provocou-lhe
um arroubo de desejo, vindo do fundo de seu peito. Os cabelos dela havia se
soltado dos gram pos, caindo em cascata pelos travesseiros. A luz das velas
incidia sobre eles, tornando as mechas fios de ouro puro. Como pérolas
nacaradas, sua pele brilhava, em um tom de rosa pálido, quase branco. Ele a
beijou, sofregamente, como se bebesse o néctar dos deuses.
Pare, agora, sua mente implorou aos sentidos tol dados pela paixão. E,
contudo, ela o enlaçou mais uma vez e mais outra, exigindo, até que ele
perdeu a conta dos beijos, até que esqueceu de controlar as mãos e por onde
vagavam, até que ele não se importou mais que ela tivesse uma escolha…
De súbito, a honra foi mais forte que o instinto, e Rob lembrou-se de seu
juramento, que ecoou em seu cérebro como o toque de um tambor em um
salão vazio.
Com relutância, afastou os lábios dos dela. Respirou, sorvendo o ar,
fitando Mairi profundamente, nos olhos escurecidos de desejo. Ela parecia
suplicar por mais, ele, porém, tinha que resistir à tentação. Obrigou a mão que
pousara naqueles quadris macios a subir até o braço e até os dedos com que
ela o prendia pelo pescoço. Enlaçando a mão na dela, levou-a até os lábios e
depositou um beijo sobre os dedos.
— Não podemos continuar — murmurou, docemente, tentando suavizar a
dureza da recusa, mais para si mesmo que para ela. — Não aqui.
Mairi relanceou os olhos pelo quarto como se tivesse esquecido onde
estava e murmurou algo. Ele percebeu que os lábios dela haviam se movido,
trémulos, e, en tão, apertaram-se com força.
O quê? O que ela dissera? Devia estar perguntando por que não podiam
continuar. Era certamente o que ele perguntaria, se fosse Mairi.
— Amanhã — prometeu precipitadamente. — Quando estivermos em
casa. — Então, contaria tudo a ela.
Haveria tempo o bastante para que ela pudesse ver tudo que ele podia
realizar? Poderia mostrar a riqueza e as condições de Baincroft, tanto do
castelo como do Estado e do povo que acreditava nele, apesar de tudo, e
assegurar a Mairi que ele era um bom lorde? Um homem digno de ser seu
marido? Ela veria com seus próprios olhos e, depois, concordaria em ficar com
ele.
"Por favor, meu Deus", implorou, mentalmente, "faça com que ela
escolha ficar e que o casamento seja um fato consumado, que não possa ser
desfeito."
— Amanhã à noite — Rob afirmou, suplicando com o olhar que ela
entendesse, sem mais explicações. — Sim?
Mairi retraiu-se, afastando-se para observá-lo. Seu olhar percorreu-lhe o
corpo, agora descoberto até a cintura. Os contornos volumosos, sob a coberta,
deixavam claro o desejo dele por ela.
Quando os olhares se encontraram novamente, ela sorriu.
— Não aqui — ele repetiu, com a esperança de que ela julgasse que ele
não queria possuí-la no quarto da irmã.
Ela liberou o fôlego que estivera contendo, relaxando os ombros. Rob
notou que, em sua loucura, soltara os laços da camisola de Mairi que, agora,
caía aberta, revelando parte dos seios. Ele acariciara aqueles montes macios,
em um toque breve, mas a textura daquela pele permanecia em seus dedos,
despertando uma im pressão erótica em sua mente.
Rob julgou que daria tudo que possuía se pudesse pousar os lábios
naquele ponto precioso, que seus olhos devoravam. Porém, obrigou-se a
desviar o olhar e fi tou-a, encabulado, em um pedido mudo de desculpas.
— Amanhã… — Mairi repetiu, hesitante, as palavras agora ditas de forma
clara para ele, tão clara como o fato de que ela não apreciava a espera, assim
como Rob.
Mairi o desejava. Se ela continuasse a querê-lo, de pois que ele
confessasse, Rob iria mover céus e terras para não desapontá-la, de maneira
alguma, em coisa nenhuma. Definitivamente.
Ela baixou os olhos e fechou a camisola lentamente. Virou-se, de costas,
e puxou as cobertas, até o pescoço.
Rob descobriu que era impossível não tocá-la, uma última vez. Pousou a
mão em seu ombro e acariciou a lã da coberta, sabendo muito bem como seria
a sen sação de maciez daquela pele de seda sob seus dedos, se o tecido
desaparecesse. Então, tirou o último grampo que restara nos cabelos dela e
colocou-o sobre a me sinha-de-cabeceira, ao lado da cama.
As velas ainda queimavam, e ele as apagou, pondo um fim à tentação
visual. Na escuridão, aquele cheiro de mulher o provocou ainda mais. A
recordação da boca deliciosa e da textura daquela pele pareceu in tensificar-se,
sem o auxílio da luz, e ele descobriu que a imagem erótica de Mairi não
dependia de seus olhos.
Desprovido da audição e agora também da visão, Rob lutou contra seus
outros sentidos até que, exausto, entregou-se ao sono.
Amanhã, foi seu último pensamento, sua prece mais fervorosa, até que a
inconsciência o dominou.
Na manhã seguinte, Rob acordou cedo, como sempre. Quando o sol se
ergueu no horizonte e iluminou o quarto, encontrou-o de olhos abertos,
observando Mairi que dormia um sono profundo. Ela parecia uma criança, os
punhos dobrados sob o queixo, os joelhos encolhidos. Muito jovem, sem a
postura arrogante com que sempre se mostrava.
Que felicidade que o velho lorde não a houvesse ca sado, anos atrás,
com aquele maldito primo ou com algum outro homem. Agora, ela pertencia a
ele, por enquanto, pelo menos. Para sempre, se pudesse con servá-la a seu
lado.
Estou quase apaixonado por você, Rob estendeu a mão e afastou uma
mecha dourada de cabelos do rosto de Mairi. Não, era mais do que isso, sentia
algo como estar embriagado, pensou, com um sorriso.
Mairi remexeu-se, e ele se afastou, observando-a es preguiçar-se como
um gatinho. Os olhos dela se abri ram, e seu olhar pousou sobre Rob.
— Bom dia, Mairi — disse ele, com um sorriso.
Sua resposta perdeu-se por trás da mão com que Mairi cobriu a boca,
mas ele leu o receio e a incerteza em seus olhos, muito abertos, e na testa
franzida.
— Nada tema — murmurou. — Não é preciso. Ela riu, balançou a cabeça,
e levou a mão às cobertas, jogando-as para baixo e levantando-se. Ele
também se ergueu, do outro lado da cama, vestindo a roupa de baixo.
Mairi cruzou o quarto e voltou-se, encarando-o. Seus lábios se moveram,
mas o jorro de palavras perdeu-se, antes que ele pudesse captar uma.
Baincroft. Era pouco para deduzir o que a preocupava, mas, felizmente, ela
virou~se para a sacola de roupas.
Ah, um problema tipicamente feminino. O que usar. Rob descobrira-se,
muito cedo na vida, quanto decisões dessa natureza infernizavam as mulheres.
Ele podia ajudá-la.
— O vermelho — disse, enfatizando a escolha com um sorriso. — Gosto
de vermelho.
Ela apertou os lábios, pegou a roupa e ergueu-a, com um suspiro de
dúvida.
— Confie em mim — assegurou Rob, experimentando um agudo
sentimento de culpa pela afirmação, sabendo que estivera mentindo a ela
pelos últimos quatro dias.
Ele se vestiu apressadamente e saiu, para deixá-la à vontade, com a
higiene matinal.
Os dois compareceram à missa, a primeira a que iam como marido e
mulher. Padre Michael abençoou-os com uma prece especial, embora o fizesse
com uma tal atitude de tristeza e pesar que mais parecia uma extrema-unção
Afinal, o padre era o pai de Jehannie e amava de mais a filha. Lady Meg,
a mãe de Jehannie, também fora à missa, porém nem ela nem padre Michael
cum primentaram, particularmente, a Rob ou a Mairi, de pois do ofício
religioso.
Rob desejou que a mudança no curso dos aconteci mentos não
significasse para ele a perda da amizade do casal. Os dois haviam sido um
esteio na vida de Rob desde o nascimento, uma espécie de pais adicionais, 0
que seria verdade, se ele houvesse desposado Jehannie.
Se pelo menos aquela garota de génio apimentado não houvesse
insistido em acompanhar o avô até a corte inglesa, quando ele viera visitá-los,
Rob agora estaria casado com ela.
O destino tinha sido generoso ao evitar isso, ele pen sou, com um ligeiro
sentimento de culpa. Se estivesse casado, como planejara, jamais teria
encontrado Mairi.
Sua mãe treinara Jehannie, desde criança, para ser baronesa,
acreditando que Rob precisaria da assistência de uma esposa esperta, para
ajudá-lo a lidar com os problemas que poderia encontrar, como lorde de
Baincroft.
Também instruíra o irmão de Jehannie, Thomas, a quem Trouville sagrara
cavaleiro, nas coisas que o ra paz deveria saber para agir como escudeiro e
porta-voz de seu filho. Era um alívio para Rob saber que não perderia a
atenção do amigo, já que o casamento com Mairi fora ideia de Thomas, ele que
arranjara tudo.
Será que eles me odeiam, agora?, Rob perguntou, por sinais, à mãe,
quando Mairi não estava olhando. Apontou para padre Michael e lady Meg.
Não!, ela respondeu, também em gestos, vivamente. Dê-lhes lhes
tempo. Estão magoados.
Rob concordou com a cabeça e tomou o braço de Mairi, conduzindo-a da
capela para o salão.
Ela parecia serena e estava bonita mesmo com aque I vestido amassado
e o singelo véu de linho. Mairi era uma mulher que não precisava de jóias para
dar brilho à própria aparência radiante. Ele, porém, adoraria presenteá-la com
pedras preciosas, mesmo assim.
De repente, ele se deu conta que não dera nenhum presente a ela. Tinha
um broche de esmeralda, em Baincroft, que serviria maravilhosamente como
uma prenda, na manhã em que houvessem consumado o casamento.
Se isso acontecesse, relembrou a si mesmo.
O orgulho enchia seu peito cada vez que olhava para a esposa. Seus
sentimentos já tinham ultrapassado a luxúria e o desejo de protegê-la, e se
estendido para algo muito superior ao que ele sentira por Jehannie embora a
conhecesse a vida inteira.
Fora uma infelicidade para a família dela que sir Simon houvesse
enganado a neta e magoado seus pais com a atitude. E, mesmo assim, Rob
estava tão incri velmente feliz por ter Mairi ao invés de Jehannie que resolveu,
definitivamente, que não sentiria mais culpa por isso pois a decepção deles não
era obra sua.
Depois de quebrarem o jejum com a família, Rob permitiu que sua mãe o
convencesse a ficar mais um pouco. Baincroft ficava há apenas duas horas a
cavalo, e ele queria dar tempo a Jehannie para voltar para a corte e para o
avô, antes de chegarem em casa.
Qualquer dia desses, ele poderia encontrar-se com ela e pacificar tudo,
porém duvidava de que ela pudesse' aceitar vê-lo com uma bela esposa a seu
lado.
Além disso, Mairi poderia ficar muito magoada ao saber que fora a
segunda escolha, mesmo sem ter que tratar com a primeira noiva e seu
temperamento difícil
Por mais de uma hora, permaneceram no solário Rob ficou a observar a
mãe e Alys conversando ani madamente com Mairi. Abençoadas fossem as
duas faziam com que ela se sentisse bem-vinda. Até então, Mairi parecera
pouco à vontade. Agora, não.
Alys nunca gostara de sua ex-noiva. Embora a irmã jamais houvesse sido
negligenciada, talvez tivesse de senvolvido uma espécie de inveja por causa da
atenção que Jehannie sempre recebera de sua mãe, como futura esposa de
Rob.
Já com Mairi, Alys estava se comportando maravilhosamente, e ele rezou
para que continuasse assim.
Enquanto as mulheres conversavam, Rob sentou-se diante do fogo, com
o pai. Este logo o encheu de con
selhos. A conversa, metade em palavras, metade em gestos disfarçados,
seria engraçada se Rob não ficasse preocupado que Mairi pudesse adivinhar-
lhe o segredo.
— Eu contarei a ela, hoje, pai! — Rob exclamou, finalmente, esperando
pôr um ponto final ao assunto.
Pelo canto dos olhos, viu que as mulheres voltaram as cabeças, em sua
direção.
Droga! A impaciência o dominara, e ele se esquecera de manter a voz
baixa. Agora, todas o estudavam, Mairi em especial.
— Hora de partir — ele declarou, levantando-se para evitar quaisquer
perguntas. Estendeu a mão. — Venha, Mairi.
Não houve objeções, ele percebeu. Obviamente, todos estavam ansiosos
que ele levasse Mairi a Baincroft e contasse a ela toda a verdade.
Seria possível que seus pais mantivessem alguma esperança que Mairi
rompesse o contrato de casamento quando ele lhe dissesse aquilo que
precisava dizer? Sinceramente, ele esperava que não. E, mesmo assim, eles
deviam estar pensando que, se acontecesse, com certeza isso abriria o
caminho para Jehannie.
O que não poderiam saber era que Rob não queria mais tê-la como
esposa, não depois de ter encontrado e se casado com Mairi,
Lutaria com todas as forças, faria qualquer coisa para que ela quisesse
ficar e para que o amasse, em resposta.
Alys propôs-se a ajudar Mairi a preparar a bagagem, enquanto Rob e o
pai saíam para mandar arrear os cavalos.
Assim que as mulheres deixaram o aposento, o conde resolveu contar a
Rob as novidades sobre o prisioneiro que Andy Miúdo escoltara até ali.
— O homem que atacou sua esposa está morto — disse
— Você o matou? — perguntou Rob, incapaz de acreditar que Trouville
tiraria a vida de alguém.
O conde arqueou uma das sobrancelhas.
— Deixei um punhal por perto, em um esquecimento muito conveniente.
Ele temia ser torturado.
— Eu queria respostas — resmungou Rob desapon tado. — Informações.
O conde deu de ombros, como se isso não importasse.
— Arranquei dele tudo o que você poderia saber. . — E então?
— Ranald Maclnness lidera um bando de facínoras uma escória de
bandidos de outros clãs que serviria a qualquer senhor por dinheiro. Ele quer
sua mulher. Viva ou morta.
— Morta? Por quê? — perguntou Rob, sem entender por que Ranald
poderia querer ver Mairi morta. 0 homem que a atacara devia estar louco ou
não com preendera as instruções de Ranald.
— O povo de Craigmuir não o servirá como um lorde enquanto Mairi
viver — explicou Trouville. — A menos que ele a mantenha como refém,
fazendo dela sua esposa.
— Ele virá atrás dela — murmurou Rob. Não pre cisava saber de mais
nada, pois nunca questionara isso. Porém, só agora compreendia que nem
amor nem desejo por Mairi tinham parte na perseguição de seu inimigo. A vida
dela seria desprezada ou transformada em um inferno, se Ranald atingisse
seus objetivos.
Embora quisesse vingar a morte do pai de Mairi e estívesse ansioso por
afastar dela qualquer futura ameaça, Rob tinha esperança de poder resolver as
coi sas entre Mairi e ele, primeiro. Ali estava uma outra razão para não se
demorar.
- De dois a três dias, quando muito — concluiu. Ele virá.
Rob sentiu a mão firme de seu pai pousar em seu ombro e voltou-se.
- Vou mandar colocar um espião. Ele nunca chegará a Baincroft.
- Não. Deixe-o vir! — exclamou Rob, com raiva.
— Você não gostará da matança — disse Trouville, os olhos negros
toldados de tristeza. — Não é uma coisa fácil.
Rob percebeu então que nada dissera sobre a batalha do Craigmuir, onde
matara gente até perder a conta. Aparentemente, nem Andy Miúdo, que não
tivera tem po de entrar em detalhes, além de ter anunciado que o pai de Mairi
havia sido assassinado.
O conde treinara Rob desde a infância e se mostrara orgulhoso quando o
garoto fora sagrado cavaleiro e vencera os torneios através do continente.
Ainda assim, considerava o filho incapaz de violências e com o co ração terno
demais para se defrontar com uma ameaça verdadeira.
— Já tive um batismo de sangue, pai — Rob admitiu, com tristeza. —
Realmente não gosto disso, mas esse homem precisa morrer por minha
espada.
— Que assim seja — disse Trouville, adotando a costumeira formalidade.
— Só me resta desejar-lhe sucesso na jornada.
CAPITULO X
CAPITULO XI
Mairi deslizou os dedos pelos cabelos dou rados e deliciou-se com o gosto
da boca de Rob e com a pressão daquele corpo roçando contra o seu, até que
tocasse com os pés na grama macia. Um desejo imenso de tê-lo invadiu-a,
uma necessidade ur gente de oferecer a ele tudo o que tinha para dar,
O murmurejar sonoro da água a correr entre as pedras e o retinado da
cotovia, a distância, ficariam perdidos para Rob, refletiu Mairi, com tristeza.
Assim como as palavras que ela pronunciasse, no fogo da paixão. Pensando
nisso, aumentou o fervor em seu beijo, colocando nele tudo que sentia.
Por um infindável, ainda que breve interlúdio, Mairi abandonou-se,
confiando que Rob se entregaria ao de sejo também. Não queria que ele
parasse.
Ele a soltou, as bocas ainda muito próximas, correndo as mãos fortes
sobre ela, como se quisesse acalmar qual quer arroubo que tivesse despertado
em Mairi.
— Será preciso muito mais que isso — ela murmurou, mais para si
mesma.
Rob ergueu a cabeça, talvez sentindo a respiração de Mairi roçar-lhe a
orelha.
— Hein? — perguntou, sorrindo. Mairi decidiu ser direta.
— Eu o quero — sussurrou, destacando cada pala vra, como se fosse
uma questão de vida ou morte.
— Eu sei — ele respondeu, os olhos acinzentados permeados de um
intenso desejo e da mais plena com preensão. Afastou uma mecha que caía
sobre a testa de Mairi, com um gesto delicado, e riu.
— Não basta — retrucou Mairi insatisfeita. Afastou-se e sentou-se, de
costas para ele. Sabia muito bem quanto ele estava excitado e lutava, com
todas as forças, para não olhar para aquele ponto do corpo, que o denunciava.
Seria tão simples resolver todo aque le desconforto. O dele e o dela.
Agora não, afirmou a si mesma. Rob estava impaciente para chegar em
casa. E, com certeza, ansioso por deitar-se com ela, não tinha por que se
preocupar.
Se, pelo menos, pudesse dissipar a febre que lhe queimava as entranhas,
ela poderia achar alguma gra ça no episódio, como ele. Isso a deixava
zangada. Talvez fosse melhor rir do que resmungar, como tinha vontade de
fazer.
Afinal, estavam ali, parados à margem do riacho, em plena luz do dia,
bem visíveis da ponte, qualquer um que passasse poderia vê-los. E imagine só
que cena presenciaria, se continuassem com aquilo.
Mairi maldisse as mãos trémulas. Jogou a trança desfeita para debaixo
da rede de cabelos e forçou um sorriso, antes de se voltar. Ele já estava de pé
e es tendeu a mão para ajudá-la a levantar-se.
— Você é uma doçura — disse Rob, com um sorriso brincalhão.
— E você é cruel — ela retrucou, franzindo a testa. Raras vezes ela
ouvira aquela risada gostosa, sonora e profunda como a voz dele, e natural
como a de uma criança. Contagiante, também.
Foi impossível deixar de rir com ele e de si mesma, pelos pensamentos e
atos tão ousados e impróprios. E dele, também, simplesmente porque Rob
conseguia ficar ali, visivelmente excitado, e ainda conseguia brincar com o
fato.
Ainda rindo, ele a conduziu até a montaria e ergueu-a, colocando-a na
sela. Assim que a viu sentada, deu-lhe um tapinha nas coxas, acariciando-a
gentilmente.
— Oh, meu Rob, como você é alegre.
Ele entregou-lhe as rédeas e fechou os dedos sobre os dela.
— Minha fogosa Mairi — respondeu, com um olhar sugestivo.
Ela não teve certeza se gostava daquela observação! Fogosa não era a
palavra que ela usaria para descrever a si mesma, anteriormente, mas, tinha
que reconhecer, era bem apropriada no que dizia respeito a Rob.
Por várias vezes, até o momento, os dois haviam se aproximado de uma
maior intimidade e recuado. Ela daria um basta àquilo. Se ele a beijasse, de
novo, a menos que estivessem no meio do salão, durante a refeição, com toda
a gente observando, ela tinha intenção de ir em frente!
Fique avisado, meu distinto lorde Robbie, pensou. As imagens que se
formaram em sua mente, daquilo que poderia acontecer se ele não se
precavesse da silenciosa advertência, fizeram-na sorrir durante todo o caminho
até Baincroft.
Quanto mais perto chegavam, mais Rob apressava o passo das
montarias. Logo, o castelo surgiu.
— E lindo! — ela exclamou. Logo, percebeu que os olhos do marido não
estavam sobre ela. Avançou e pôs-se a cavalgar a seu lado, repetindo o que
dissera. Precisava ter isso em mente, Mairi repreendeu-se. Ele precisava ver as
palavras.
— Sim — respondeu RoB, os olhos acinzentados brilhando de emoção e
agradecendo a ela. Rezava para que Mairi sentisse o mesmo que ele. — Um
belo lar.
Alys havia alertado Mairi para não esperar que Baincroft fosse igual ao
castelo de Trouville. E não era. Pelo menos, não no tamanho, que parecia ser a
metade da quele dos pais de Rob, embora maior que o de Craigmuir.
Bem diferente da fortaleza nas Terras Altas e de suas muralhas maciças,
este parecia alvo e limpo de qualquer sujeira ou aspecto de negligência.
O lorde nunca dera muita importância às aparências, apenas às defesas.
Ali, certamente, estava um lugar mais pacífico que seu lar, nas Terras Altas.
Uma troca justa, reconheceu Mairi. A rude magnificência da terra de
onde ela fora arrancada para a paz e a beleza deste lugar resplandecente.
Ela ouviu a trompa de boas-vindas soar, lá em cima, na torre de vigia.
Então, logo que se aproximaram dos portões, ouviu-se um assobio agudo,
muito parecido com aquele que os saudara, quando haviam chegado a
Trouville.
Rob imediatamente olhou para cima e acenou, sorrindo, para o homem
em pé na muralha. Este, contudo, não sorriu em resposta, parecendo até
mesmo aborre cido ao vê-los ali.
Os portões já se abriam, e Rob avançou, abrindo caminho. O pátio
fervilhava de gente. Deviam ter estado em plena atividade e, agora, pareciam
congelados no lugar, à vista de seu lorde.
Ou, quem sabe, era para ela que lançavam os olhares preocupados.
Alguns trocaram gestos e sinais, outros murmuravam entre si.
Rob notou, também, ela percebeu, pela postura tensa de seus ombros e
pela junta esbranquiçada de seus dedos nas rédeas. Com um cumprimento
fortuito para um e para outro, entre aqueles que se enfileiravam conforme
avançavam, ele continuou cavalgando até chegar aos degraus de madeira do
castelo.
Um homem magro e bonito, de cabelos negros, esperava-os no topo da
escadaria, apoiado em duas bengalas. Mairi reconheceu sir Thomas, o cavaleiro
que tinha ido a Craigmuir para arranjar seu casamento com Rob.
Então, ele tinha se machucado, deduziu Mairi. Isso explicava por que não
voltara a Craigmuir para ajudar Rob, como devia ter feito. Vê-lo ali era um
grande alívio. Felizmente, percebia-se que ele era ainda capaz de realizar suas
tarefas como administrador de Rob.
Mairi sorriu para o cavaleiro, que se limitou a morder o lábio e encarar
seu marido, com expressão preocupada.
Será que seus súditos tinham medo de Rob? Sua chegada os assustava?
Andy Miúdo parecera gostar muito de Rob e temê-lo tão pouco a ponto de
algumas vezes se portar de forma impertinente. Mairi, agora, sentia-se aflita
que pudesse existir um lado obscuro em MacBain que ela ainda não soubesse.
Rob desmontou e veio ajudá-la a descer. Com uma das mãos em sua cintura,
ele a conduziu para cima, pelos degraus, enquanto os criados corriam e
começavam a retirar a bagagem das montarias. . A meio caminho, sir Thomas
pôs-se a gesticular, freneticamente. Mairi deduziu que Rob fizera alguma
pergunta com as mãos, que ela não pudera ver, pois o marido praguejou alto,
em seguida:
— Você conhece Thomas? — ele perguntou a ela, quando se
aproximaram do cavaleiro, deixando evi dente sua impaciência nas
apresentações.
— Sim — respondeu Mairi. — Meus cumprimentos, senhor.
O cavaleiro inclinou-se como pôde, em uma reverência, equilibrando-se
nas bengalas.
— Seja bem-vinda, minha senhora.
Rob mal lhe deu tempo para endireitar-se, passando pelo homem e
entrando pela porta. No instante em que chegaram ao grande salão,
imediatamente conduziu a esposa em direção à escada. E parecia tão
apressado que quase a arrastava.
Uma estranha sensação dominou Mairi. Essa urgência toda não era
porque Rob fosse movido por alguma necessidade imperiosa de ficar a sós com
ela, mais parecia que ele queria escondê-la, tirá-la fora do caminho. E a toda
pressa.
Algo muito esquisito estava acontecendo ali. Ou prestes a acontecer. Algo
que todos sabiam, menos ela.
— Ah, então, é verdade! — ouviu-se um grito zangado. A voz aguda
chamou a atenção de Mairi para o alto da escadaria.
Uma criatura miúda, de cabelos negros, as mãos nos quadris, estava em
pé, no topo da escada. Parecia ter a mesma idade de Mairi. Era baixa, de uma
beleza delicada e vestia um traje deslumbrante, de linho todo bordado. E
estava absolutamente furiosa.
Rob estacou, bufando, e ergueu os olhos para o céu. Praguejou tão baixo
que só Mairi pôde ouvir.
De repente, as mãos da criatura puseram-se a voar em movimentos
estranhos, como se lançassem uma virulenta maldição sobre os dois, e Mairi
não conseguiu desviar os olhos, fascinada.
Então, tão fulminante como o mergulho de um gavião, a jovem desceu
os degraus, aproximou-se de Rob e esbofeteou-o com força, em plena face. O
estalo ecoou pelas paredes, acompanhado pela interjeição horrorizada dos
criados que presenciavam a cena.
Rob suportou o golpe sem vacilar, e não deu resposta, nem com
palavras, atos ou expressões. Mairi julgou e ele estava em estado de choque.
Ela, com certeza, estava. Tivesse qualquer pessoa, homem ou mulher,
alguma vez afrontado seu pai desse jeito, com tal fúria, a cabeça do
tresloucado estaria no chão, aos pés do imbecil, em uma hora dessas.
Então, a jovem enfurecida passou por eles, desceu a escada, cruzou o
salão e saiu, pela porta aberta. Rob empertigou-se e voltou a cabeça,
observando-a. Foi o único movimento que fez.
— O quê, em nome de Deus, foi aquilo? — perguntou Mairi horrorizada.
Rob não respondeu. Sua boca, normalmente tão expressiva,
transformara-se em uma linha dura. Um músculo pulsava em sua mandíbula.
Na face esquerda, destacava-se a mancha avermelhada que os dedos haviam
imprimido.
Os criados, no salão, ainda ofegavam, os olhos correndo do portal por
onde a mulher saíra e para Rob. Todos, como Mairi, esperavam uma reação.
Tinha que haver alguma, na opinião dela.
Ele continuou de pé, em silêncio, por algum tempo.
Então, como se nada houvesse acontecido, voltou-se e desceu, cruzando
o salão e indo ao encontro de sir Thomas. O cavaleiro movia-se
desajeitadamente, parecendo vencido pela dor quando parou.
— Ela se foi — anunciou.
— Para onde? — perguntou Rob.
Sir Thomas balançou a cabeça e deu de ombros.— Saiu cavalgando —
disse, hesitando apenas um instante antes de acrescentar: — Em seu cavalo.
De novo, aquele músculo da mandíbula pulou quando Rob cerrou os
dentes. Seguiu-se um momento tenso de silêncio.
Aquela mulher tinha afrontado seu lorde, causado um tremendo
embaraço a ele diante de seus súditos, e roubara um valioso garanhão. Mairi
teve medo. Temia ouvir qual seria a penalidade a ser aplicada, mes mo que
essa punição fosse obviamente merecida para um tal ato inominável de
idiotice.
— Mostre Baincroft a Mairi — ordenou Rob, secamente, medindo sir
Thomas com um olhar que prometia uma retribuição severa, a qual não podia
cumprir de imediato.
Aquela expressão amedrontou-a, pois Mairi jamais vira uma tal fúria na
expressão do marido, a não ser durante a batalha, em Craigmuir, e, mais
tarde, quando ela fora atacada.
Mesmo atemorizada, ela tinha que fazer a pergunta que a incomodava.
Puxando-o pela manga, para chamar sua atenção, ela o encarou.
— Você vai atrás dela?
— Não. — Ele segurou-a pelo ombro e, então, deslizou a mão por seu
braço, em um toque suave que desceu até tocar-lhe os dedos.
— Vá com Thomas. —Tentou sorriu, mas foi só um arremedo. — Por
favor,
Mairi aquiesceu, sem vontade de afastar-se dele naquele momento,
dadas as circunstâncias. Rob tinha bons motivos para estar aborrecido, ela
admitiu, embora ficasse preocupada em vê-lo assim. Não havia nada que
pudesse fazer para ajudá-lo a resolver o problema, contudo.
Se Mairi conhecia um pouco o marido, seu bom humor logo voltaria, ele
não parecia ser daqueles que cultivasse o ódio. Para o próprio bem daquela
mulher, Mairi esperou que estivesse certa, quanto a isso.
Sir Thomas ofereceu-lhe o braço, e Mairi aceitou. A formalidade parecia
ridícula, já que ele precisava daquela mão para apoiar a segunda bengala e
conseguir andar,
O pobre homem parecia perto de um colapso, ou devido aos
acontecimentos do ataque daquela criatura desvairada ou de dor na perna
machucada. Rob já os deixara.
— O que houve com você? — ela perguntou.
— Caí e quebrei a perna, faz quinze dias — murmurou, tentando colocar
um sorriso no rosto.
— Então, deveria estar na cama. Ou sentado, com a perna devidamente
apoiada.
Mairi esperava, com isso, ganhar a confiança do cavaleiro e saber a
verdadeira história que estava por detrás do acontecido e as razões para tanto.
— Não se preocupe, minha senhora — ele murmurou, enquanto andavam
em direção ao fundo do salão.
— Permita-me apresentar-lhe a sra. Morgan. Ela irá acompanhá-la a uma
visita pelos aposentos da torre e acomodá-la no quarto do lorde. É difícil para
mim subir a escada.
— Tenho certeza de que lorde MacBain não teve intenção de ordenar
que você tentasse.
— Não se engane, minha senhora. Rob poderia ter quebrado alegremente
minha outra perna e minha cabeça também, em uma hora dessas!
— Creio que o trata de maneira muito íntima, senhor— ela o repreendeu.
Será que todos os vassalos falavam dele com tal desrespeito? Mesmo Andy
Miúdo se referira a ele com muita intimidade. Chamar um lorde pelo nome,
sem o título, era coisa que nunca ouvira e mesmo ela se recusava em tratá-lo
assim. As únicas vozes que se permitira fora durante seus encontros mais
íntimos. Aquilo não lhe parecia apropriado.
Os problemas ali deviam ser ainda piores do que havia suspeitado. Sim,
ele precisaria de sua ajuda para colocar as coisas no devido lugar.
- Minhas sinceras desculpas — resmungou Thomas, claramente ofendido
com o comentário. — Rob e eu crescemos juntos e, às vezes, esqueço meu
lugar. Não passo de um humilde administrador, afinal, e provavelmente nem
isso serei depois do dia de hoje.
— Eu gostaria que você… o senhor me contasse do que se passa, sir
Thomas. 0 pessoal estava tremendo de medo, como se nossa chegada fosse
um pesadelo. Aquela tresloucada que atacou meu marido tem alguma a coisa a
ver com isso, não é?
— Obviamente — ele admitiu, com um suspiro de resignação. —
Contudo, não estou autorizado a falar sobre isso.
Mairi considerou a resposta e julgou que a moça devia ser a amante de
Rob.
— Bem, ela não é parente, posso adivinhar. Nem uma simples criada, a
julgar por sua ousadia.
A expressão agoniada do cavaleiro ficou ainda mais patente. Ele abriu a
boca para falar, mas fechou-a, em seguida. Então, pareceu tomar coragem e
murmurou:
— Não devo falar sobre ela, minha senhora. Ela não é problema seu.
— Não importa. Creio que já me disse o suficiente. Que outra razão
poderia ter seu marido para ordenar a seu pessoal que não falasse sobre
aquela mulher, a menos que ela fosse sua concubina?
Rob não tinha sido o único a sofrer com o olhar de ódio daquela mulher.
Como esposa, de alguma forma sobrara uma parte para Mairi, naquele ataque.
E a chegada da legítima senhora a Baincroft dificilmente provocaria um tal tipo
de retirada de alguém que não fosse uma amante.
Thomas conduziu Mairi para o fundo do salão e para as cozinhas, onde a
deixou aos cuidados da sra. Morgan. Esta provou ser uma criatura de face
esculpida em madeira, que provavelmente pronunciaria ainda menos palavras
sobre o assunto. Mairi nem se atreveu a perguntar.
Bem, que tremendas boas-vindas para a nova esposa do lorde a
Baincroft, pensou Mairi, meneando a cabeça, com tristeza. Mesmo lindo e
confortável, aquele castelo abrigava segredos obscuros e aflitivos.
Parecia que seu marido era objeto de temor por parte de seus vassalos,
mas não de respeito. Acrescido a Isso, Mairi precisaria tratar com a amante de
Rob, que tinha um temperamento difícil e nenhum bom senso. Aquela mulher
voltaria, ela não tinha dúvida.
Depois que Rob tivesse lhe dado a punição pela bofetada e pelo furto,
Mairi com certeza veria a criatura atrelada a um marido qualquer, em um
futuro bem próximo. Expulsar uma mulher, mesmo uma de virtudes
contestáveis, era inadmissível, e era responsabilidade da senhora do castelo
providenciar que esses problemas fossem resolvidos.
Graças a Deus, Rob havia escolhido uma Maclnness como esposa. Uma
mulher mais fraca poderia ter qualificado essa tarefa como odiosa. Ela, porém,
aceitava o desafio, disse Mairi a si mesma, com firmeza.
-Nada de festa, esta noite, declarou Rob, por sinais, e, então, cruzou os
braços no peito, de testa franzida.
— Otimo! — exclamou Thomas aliviado. Sinto muito com respeito a
Jehannie, emendou, esfregando a mão sobre o coração e correndo o polegar
pelo rosto para indicar o nome da irmã. Continuou, os movimentos duros e
enfáticos. Tentei convencê-la a ir embora. Eu tentei!
Sem dúvida, Thomas devia ter tentado. Rob sabia exatamente o quanto
Jehannie podia mostrar-se irredutível e teimosa.
Thomas parecia hesitante, agora.
Sua esposa acha que minha irmã é sua amante.
Rob ergueu os olhos para o teto, em um gesto de desânimo, caiu
sentado sobre uma cadeira, ao lado da lareira, e suspirou. Meneou a cabeça
aborrecido.
Explicarei a ela, mais tarde.
Thomas concordou, o rosto ainda pesado de preocupação.
— Jehannie está inconformada.
— Jehannie vai procurar mamãe — Rob assegurou, em voz alta, pois
Thomas estava de costas. — É o melhor. — Então, mudou de assunto, pois não
havia nada mais que pudessem fazer, no momento, acerca da ex-noiva. —
Devemos nos preparar para lutar contra o primo de minha esposa — disse,
amontoando as palavras e não se preocupando em corrigir o atropelo. Com
Thomas, não precisava se dar a esse trabalho. O amigo o compreendia,
totalmente.
Thomas o encarou, deixando escapar um longo suspiro.
Andy me contou que os homens do novo lorde os seguiram, e você os
despachou.
Rob usou as mãos de novo e contou a Thomas tudo o que havia se
passado. Suspeitava que Andy já houvesse se antecipado e relatado a história
completa, quando chegara a Baincroft no dia anterior, trazendo Jehannie.
Você interrogou o prisioneiro que capturou?, perguntou Thomas.
Trouville interrogou. Ranald Maclnness quer ver Mairi morta,, se não
puder casar-se com ela. Rob explicou a Thomas que soubera quantos homens
e que tipo de exército o primo de Mairi poderia lançar contra eles, quando
chegasse. E muitos outros deviam ter sido contratados para substituir aqueles
que ele matara.
Thomas admitiu que poderia ser um problema. Baincroft mantinha
poucos soldados acostumados a batalhas,
— Vou examinar as defesas — resolveu Rob, levantando-se e dirigindo-se
para a porta, disposto a fazer pelo menos alguma coisa produtiva, naquele dia.
O amigo tomou-o pelo braço.
— Sim? — perguntou, baixando os olhos para Thomas, que continuava
sentado.
— E Jehannie, Rob? Concordei que ela fosse ficar com lady Anne e lorde
Edouard, mas, e depois? O que ela deve fazer? Tenho que pensar em alguma
coisa.
Havia uma súplica nos olhos de Thomas, não de um súdito para seu
lorde, mas de um amigo para outro. Thomas adorava Jehannie.
Rob percebeu que também gostava dela. De forma bem semelhante a
Thomas, como uma irmã. Não era justo que ela sofresse por algo que não era
culpa sua, pelo noivado rompido. Embora tivesse reagido de forma absurda e
embaraçado a ambos diante de todos, ele não tinha intenção de puni-la.
Seria para o bem dela, porém, Jehannie precisava aprender a se
controlar. Quantas vezes ele e Thomas haviam pensado que isso era
necessário, para resguardar Jehannie de si mesma? Para precavê-la de alguma
tolice que poderia muito bem mergulhar os três em mais problemas do que
poderiam contornar? Muitas vezes. Era um espanto que tivessem chegado a
idade adulta ilesos. Mesmo agora, Rob sabia que faria qualquer coisa dentro de
suas forças para evitar que Jehannie sofresse.
— Porei tudo em seus devidos lugares, Tom — ele afirmou ao melhor
amigo, com um sorriso que não deixava dúvidas. Deu um tapinha afetuoso no
braço de Thomas, para tranquilizá-lo.
— Você devia falar com ela — sugeriu Thomas. —Não vai falar?
— Sim, depois que resolver meu problema com Ranald Maclnness.
Os ombros de Thomas relaxaram, e seu comportamento mudou por
completo. A preocupação pareceu evaporar-se, deixando-o leve.
Thomas provavelmente o conhecia melhor que qualquer outro homem, e
acreditava que Rob conseguiria resolver quaisquer situações. Mesmo tendo
frequentado a corte assiduamente antes de se tornar maduro e assumir seu
lugar de direito como lorde, a absoluta confiança que seus súditos colocavam
nele sempre assustara um pouco a MacBain. Não era a primeira vez que
imaginava se poderia encontrar uma solução para o que parecia insolúvel. Mas,
de alguma forma, ele daria conta do problema.
A responsabilidade pesava-lhe nos ombros como um manto de chumbo,
manto que ele vestira, de pronto, para o que desse e viesse. Afinal, isso lhe
cabia por direito de nascença, e ele o mantinha apenas em virtude do difícil
trabalho de sua família em prepará-lo para o posto com tamanha eficiência.
Nunca o tiraria, de boa vontade.
Se pelo menos Mairi pudesse tomar uma parte das tarefas de Thomas,
Rob pensou, com um certo desconforto interno. Confiança. Um bem precioso
que ele não garantira da esposa, mas precisava conquistar, antes que pudesse
chamá-la de sua mulher.
Com esse pensamento, ele respirou fundo e saiu para supervisionar a
guarda. Seria uma longa tarde e uma noite ainda mais longa, ele suspeitava.
Havia a armaria a ser inspecionada em primeiro lugar, para determinar
se tudo estava em ordem. As armas deviam ser examinadas e distribuídas, e
cada homem ter sua posição assinalada para defender o castelo, em caso de
ataque.
Graças a Deus, faziam manobras de treinamento todos os meses e seus
soldados mantinham-se em forma, embora não houvesse muitos para instruir.
Nunca fora preciso contratar mais, seria uma despesa desnecessária, mais a
alimentação e a hospedagem. Quem haveria de adivinhar que algum dia ele
teria necessidade de um exército?
A noite iria requerer mais esforços que preparar uma batalha. Por mais
que desejasse Mairi, Rob agora percebia que fora precipitado em fazer-lhe
aquela promessa.
Se passasse por cima disso e a levasse para a cama, teria que revelar
seu segredo primeiro, para que ela pudesse escolher se ficaria com ele ou
anularia o casamento. E não havia tempo suficiente antes de se recolherem,
para avaliar qual seria a reação dela. Ele estaria ocupado demais, preparando
as defesas.
Rob correu a mão pelo rosto, demorando-se na face que ainda ardia com
a bofetada de Jehannie. Diante de tantos problemas, Mairi suspeitava que ele
tinha Uma amante, uma com a audácia de mostrar livremente sua raiva e fugir
com seu cavalo.
A devoção de seus súbitos certamente não se mostrara evidente em seus
rostos, naquele dia. No semblante de todos apenas se vira a curiosidade aguda
do que poderia acontecer quando Jehannie pusesse para fora sua fúria. O que
sua esposa deveria estar pensando dele, naquele momento? E como ele
poderia mudar as ideias de Mairi a seu favor, em tão poucas horas?
Pelo decorrer do dia, Rob pôs de lado suas preocupações o melhor que
pôde e concentrou-se nos preparativos. Ranald Maclnness não devia esperar
que ele estivesse de prontidão, imaginou. Tinha esperança de que os homens
de Ranald fossem não mais experientes em batalhas que aqueles que
encontrara em Craigmuir e no caminho para casa. Se assim fosse, o número
de soldados não seria de grande importância.
A trompa soou, no fim da tarde, quando Rob vinha da armaria com a
espada recém-afiada. Por um instante, ele esperou por um sinal da sentinela
da torre, informando que os escoceses das Terras Altas se aproximavam.
Ao invés disso, um dos portões abriu-se o bastante para que Andy Miúdo
passasse a cavalo. Rob percebeu, imediatamente, que algo estava errado. Dera
ordens a Andy que seguisse Jehannie e zelasse por sua segurança.
Andy galopou pelo pátio e desmontou depressa, jogando as rédeas para
o jovem Elfled, que acompanhara Rob na verificação das armas.
— Ela sumiu! — gritou Andy, o rosto vermelho, bufando da dura
cavalgada. Fez um sinal, indicando que a perdera.
Não está com minha mãe?, perguntou Rob, por gestos. Andy tirou o elmo
e balançou a cabeça, gesticulando.
— Não. Em lugar nenhum, pelo caminho. Simplesmente, sumiu! Você
precisa encontrá-la!
O coração de Rob quase parou. Se tivesse acontecido de Jehannie cruzar
com Maclnness e seus homens… Então, lembrou-se que ela costumava
desaparecer quando era criança, toda vez que alguma coisa não saia do jeito
que queria. Não seria de todo impossível que ela usasse um truque desses,
agora. Estava magoada e com raiva como nunca a vira.
Mesmo assim, Jehannie sabia melhor que ninguém que não devia se
aproximar de uma comitiva de homens estranhos e também como iludi-los, se
os visse se aproximando. Não havia como Maclnness e seus seguidores
viajarem, passando despercebidos.
Se, por alguma armadilha do destino, os homens a houvessem avistado,
Rob sabia que o cavalo que Jehannie roubara podia deixar para trás um pônei
das Terras Altas a qualquer instante. Ela era uma excelente amazona e o
garanhão era rápido como o vento. Com o problema de Maclnness, ele não
teria razão para dar caça a ela.
Rob ficou a imaginar em que lugar ela decidira esconder-se desta vez, na
velha torre em ruínas ou em alguma cabana vazia de pastor. Não tinha dúvidas
de que ela ficaria onde se enfiara até que a população inteira de ambos os
castelos tivesse esgotado todos os esforços para encontrá-la.
Não dessa vez, decidiu Rob. Não tinham nem homens a desperdiçar em
uma busca inútil, nem ninguém para cavalgar até o castelo de seu pai e pedir a
ele que fizesse isso. Se ela era ainda tola o bastante para pensar que todos
iriam largar suas tarefas e correr como cães atrás de seus rastros, Jehannie
estava redondamente enganada.
Ela se escondeu, disse a Andy. Deixe-a estar.
— Thomas não vai gostar disso!
Rob arqueou as sobrancelhas. Andy nunca dera muita importância ao que
Thomas pensava. Embora normalmente se dessem bem, Thomas jamais
permitira que Andy esquecesse qual dos dois tinha um nascimento espúrio e
quem ocupava um nível social mais alto. Andy Miúdo geralmente torcia o nariz
diante disso, dizendo que poderia ter sido sagrado cavaleiro, também, se
tivesse bajulado Trouville por anos, como Tom fizera.
Agora, parecia realmente consternado. Ou preocupava-se com Thomas,
ou ainda estava enamorado da garota como estivera, quando eram crianças.
Eu contarei a Thomas, afirmou Rob.
Andy concordou com relutância. Então, olhou ao redor e percebeu uma
atividade incomum, no pátio.
— Maclnness?
— Provavelmente. Acho que em um dia ou dois. — Com ar ausente, Rob
correu o dedo pela face da lâmina, admirando a suavidade do aço finamente
temperado.
— Ordens? — perguntou Ândy, endireitando os ombros e deixando as
preocupações com Jehannie a cargo de Rob.
— Pegue suas armas. Descanse. Assuma a sentinela à meia-noite.
— Você está certo — concordou Andy, voltando por um momento antes
de rumar para o alojamento. — Lady Mairi, está bem?
— Muito bem — retrucou Rob, feliz que sua esposa houvesse conquistado
a atenção de um de seus amigos.
— Você já contou a ela? — indagou Andy, com um olhar significativo.
Rob bufou, sem vontade de enfrentar esse problema, quando tinha tanta
coisa para pensar.
— Não me venha com conselhos, Andy! O homem retirou-se, sem
comentários.
Se mais alguém ousasse dizer a ele o que devia fazer, naquele dia,
pensou Rob, ele bem podia ter uma reação idêntica a de Jehannie: dar-lhe
uma bofetada!
CAPÍTULO XII
Mairi logo percebeu que, se quisesse ganhar uma posição segura em
Baincroft, teria de agir depressa. A essas alturas, tanto sir Thomas como a
relutante sra. Morgan tinham se livrado dela como pessoa de pouca
importância.
Seu passeio pelo castelo incluíra uma breve olhada pelas cozinhas e por
um corredor que conduzia ao quarto principal.
O aposento tinha uma enorme cama, o baú com as roupas de Rob, uma
pequena mesa e duas cadeiras diante da lareira. Havia umas poucas armas
penduradas em ganchos, nas paredes, e uma pesada armação de madeira para
suportar sua cota de malhas.
Era um quarto masculino, sem cortinas caras ou qualquer outro enfeite
frívolo, mas admiravelmente grande, maior do que muitos cavaleiros poderiam
desfrutar. E imaculadamente limpo. Aquilo a confortou. Mão precisaria treinar
as criadas nas tarefas da casa. Não se furtaria a acrescentar seu próprio toque,
eventualmente, se o marido não se importasse. Mairi ficou a imaginar se Rob
não gostava de tapeçarias e lúcidos preciosos, no quarto de dormir. Tinha
muito que aprender sobre ele. Seria um homem sovina? Nãoparecera, em
outros aspectos.
Pelo menos, usava as velas de cera de abelha, ao invés da malcheirosa
banha, pensou, apanhando uma e aspirando seu aroma agradável.
Devia apreciar as peles, pois havia muitas sobre a cama. Os cortinados
eram simples, de linho tingidos de açafrão, despidos de qualquer bordado e
imploraram por algum enfeite. Pensou em um motivo para decorá-las.
O baú, sob a janela, não trazia qualquer entalhe decorativo. Era de
carvalho liso, com trincos e dobra: dicas sem adorno, parecidos com os que
seu pai tinha. Mairi sentiu saudade de casa.
A janela era envidraçada, uma concessão bem-vinda para conservar o
calor e prevenir contra a poeira. Além disso, para sua satisfação, havia uma
enorme lareira instalada junto à parede, ao invés dos braseiros abertos usados
em Craigmuir,
Nenhum fogo aquecia o quarto agora, contudo, e a sra. Morgan não se
oferecera para acender a lareira. Simplesmente deixara Mairi no quarto e
prontamente se afastara, como se tivesse coisas mais importantes a fazer.
Mairi decidiu que não ficaria, como uma tola, onde tinha sido largada.
Afinal, ela era a nova senhora de Baincroft, e podia ir onde bem lhe
aprouvesse.
Se ninguém se dispunha a mostrar-lhe as redondezas e apresentar-lhe o
lugar, ela veria o castelo por si própria. Ora, ali era seu lar, afinal.
Com passos firmes, voltou para o salão. A agitação confusa e as muitas
pessoas que corriam pelo enorme ambiente fizeram-na esconder-se em um
nicho na parede, onde ficou, observando, nas sombras.
Os homens arrastavam cavaletes de madeira e os abriam em U,
enquanto as mulheres os espantavam, aos gritos, assim que as pranchas eram
colocadas e armadas. Metros de linho branco esvoaçavam e caíam, vestindo as
mesas.
Mairi temeu que estivessem preparando o lugar para uma festa. Já lhe
bastara uma. Se Rob estivesse por ali, ela iria reclamar com ele.
Nisso, percebeu que homens entravam, usando cotas de malhas e
colocando as armas sobre as mesas, parecendo prontos para a guerra. O
barulho e a excitação geral cresceram com a chegada de mais gente.
Diante do aparato militar, Mairi se deu conta da causa e lamentou que
ninguém visse motivo para incluir a senhora da casa no planejamento de tudo
aquilo. Quem sabe muitos deles não tivessem se apercebido ainda que tinham
uma senhora. Andy podia não ter avisado, com a amante de Rob nas
dependências do castelo.
Mairi saiu de seu esconderijo e caminhou por entre eles. Vez ou outra,
alguém lhe dirigia um olhar curioso, porém ninguém falou com ela nem lhe deu
maior atenção.
Não era de se admirar, já que nem sabiam de sua existência ainda, e, a
considerar por seus trajes simples, podiam estar pensando que se tratava de
uma pobre criada que o lorde trouxera de sua viagem.
O pensamento a incomodou, não ajudando em nada a melhorar seu
humor. Era óbvio que Rob não os avisara, de antemão, que tinha se casado.
Ninguém sabia, mais especialmente aquela mulher que o esbofeteara.
— Lady Mairi, o que faz aqui? — perguntou sir Thomas, atrás dela.
Mairi voltou-se, as mãos na cintura. O cavaleiro tinha a ousadia de
mostrar-se impaciente.
— Esqueceu-se, senhor? Esta é minha casa. Por acaso não posso andar
por onde quiser? E o que é tudo isso, afinal? O que estão fazendo?
Notara as cestas de ervas medicinais que as criadas amontoavam e as
toalhas de linho sendo rasgadas, em faixas. Mairi sabia exatamente o que
estavam preparando ataduras e recolhendo os medicamentos. Fizera o mesmo,
muitas vezes.
Sir Thomas avançou, arrastando-se nas bengalas e aproximou-se.
Parecia que as palavras lhe faltavam.
— Rob… Lorde Robert quis, simplesmente, que deixássemos… ah… tudo
em ordem para… ah…
— Ele está esperando por Ranald, não está? Meu primo? Thomas deixou
escapar um suspiro de desabafo.
— Sim, está. — Com um gesto, indicou as mesas. — Vamos deixá-las
preparadas, caso haja alguém ferido para medicar. A senhora não devia saber
ou se preocupar com isso.
Ela arqueou uma das sobrancelhas, tal como Rob fazia, às vezes,
esperando parecer imponente como uma baronesa devia ser.
— Não serei tratada como criança, sir Thomas. Assim como lorde Robert
deve dirigir os preparativos de nossas defesas e uma possível batalha, meu
dever é tomar providências para os resultados que isso possa trazer.
— Como desejar, minha senhora — ele concordou com relutância. —
Porém, não é necessário.
Mairi relanceou os olhos para as cozinhas, e, então, deu-se conta de que
sua conversa ganhara audiência. .0 nível de ruído decrescera, assim como o
trabalho, e as pessoas haviam parado para escutar. Otimo, pensou. Era uma
boa hora para estabelecer sua autoridade.
— Como estamos de mantimentos, se houver um cerco? — perguntou,
ao cavaleiro. Pronunciou as palavras cuidadosamente, querendo
intencionalmente expressar-se como uma das pessoas do lugar. Se não a
aceitassem, se fosse muito diferente, ela não teria voz ali, mesmo que fosse a
esposa do lorde.
— As despensas estão praticamente abarrotadas — respondeu um rapaz,
orgulhoso, como se houvesse reunido as provisões pessoalmente. — Carne em
quantidade, seca e fresca. Os cereais são poucos, já que estamos longe da
colheita, pois é verão…
— Sim, posso entender — ela respondeu, dispensando as explicações.
Havia outros assuntos, mais urgentes, que o pão. — Água? Onde ficam os
poços?
O criado endireitou-se, sentindo que todos tinham dirigido a atenção
tanto para ele como para ela.
— São dois, minha senhora. Bem protegidos e acessíveis.
— Tirem bastante água e mantenham caldeirões fervendo, para limpar
os ferimentos. Quero as cestas com ervas dentro do alcance, assim como as
ataduras. Vamos precisar também de linha e de agulhas. — Fez uma pausa por
alguns instantes. — Ah, sim, e mande algumas pessoas percorrerem as
despesas e os quartos menos usados para recolher todas as teias de aranha
que encontrarem. — Calou-se, tamborilando o dedo na boca, pensando.
— Teias, minha senhora?
— Para estancar sangramentos — ela respondeu, com ar ausente, ainda
perdida em pensamentos.
— Quem sabe a senhora queira determinar as manobras aos homens…
—- sugeriu Thomas, com ironia.
— Não, isso nunca — ela retrucou, preferindo ignorar o sarcasmo. —
Contudo, informe aos guardas dos portões principais e também do posto
avançado que nenhuma pessoa desconhecida deve entrar por nossas
muralhas. Preste atenção, se aquele homem chegar aqui, pode ter certeza que
tentará conquistar sua posição usando de subteríugios. Acautele-se contra
qualquer estranho que queira entrar ou poderemos ter nossas muralhas
invadidas antes de nos darmos conta disso.
Ele quase deixou escapar um suspiro de enfado.
— Suponho que a senhora seja a voz da experiência em assuntos de
guerra…
Ela o encarou, olhos nos olhos.
— A quantos ataques assistiu, em Baincroft, sir Thomas?
As faces de Thomas tornaram-se vermelhas. Ele se apoiou nas muletas e
desviou o olhar.
— A apenas um, que me lembre — admitiu, com uma voz praticamente
inaudível. — Porém, não era, realmente…
— Quantos, senhor? — ela insistiu. — Não ouvi.
— Um! — Ele quase berrou. — E não foi de um inimigo. Foi um mal-
entendido. Este é um lugar pacífico. Não guerreamos uns contra os outros, nas
vizinhanças.
Ela inclinou a cabeça, como se agradecesse a cooperação.
— Bem, senhor, sofremos ataques regularmente, no lugar de onde eu
vim. E de inimigos perigosos, como este que meu lorde espera.
Um murmurejar quebrou o silêncio. Mairi não tinha intenção de
subestimar quaisquer das ordens do cavaleiro, ou de aplicar-lhe tal golpe
baixo. Ele parecia disposto a matar alguém.
— Meu senhor o tem em alta conta, sir Thomas. Sinto-me obrigada a
pedir seu auxílio para aquilo que, acredito, deva ser feito. Se ultrapassei
minhas atribuições como senhora desta casa, peço que me perdoe. O povo de
lorde MacBain é meu povo agora, e eu gostaria de zelar por sua segurança e
bem-estar da melhor forma que eu possa. Irá me ajudar?
— Sim, irei -— ele concordou, o orgulho ainda ferido, ela podia perceber.
Ainda assim, mostrava-se condescendente, agora que ela havia abrandado as
exigências.
— Então, agradeço-lhe de coração. — Mairi olhou ao redor, para aqueles
que os encaravam, preocupados e tensos. — Vocês, voltem às tarefas a que sir
Thornas os encarregou. Não temos tempo a perder. Mexam-se!
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
EPÍLOGO
Três anos depois
Parem com esse barulho, já! — gritou Mairi, tapando os ouvidos. O
pequeno Ned caçava seu irmão gémeo, Harry, que se esquivou de uma cadeira
e jogou-se na segurança dos braços de seu pai.
— Papai! Ajude-me! — berrou o garotinho de dois anos, escalando o
casaco de Rob e enroscando-se em seu pescoço.
Ned o seguiu.
— Eu o peguei! — exclamou, batendo nas costas do irmão com o
pequeno aro com guizos que encontrara no salão.
A algazarra era insuportável. Algumas vezes, Mairi invejava o silêncio em
que vivia Rob. Já havia barulho suficiente no salão, com os preparativos para
receber o visitante. A trombeta anunciara sua chegada e ele deveria estar
entrando a qualquer momento. Três anos de casada, e Mairi ainda não
conhecia o irmão de Rob, que acabara de chegar da França. O que ele haveria
de pensar dos dois sobrinhos turbulentos, pendurados no pescoço do pai como
mariscos em uma pedra?
Rob ria, feliz, fazendo cócegas das costelas dos garotos até que eles
deixaram seu colo, moles de tanto rir. Mairi pegou os dois pelo cinto e colocou-
os no banco, ao lado da lareira.
— Sente-se, Ned! — ordenou, tirando os guizos de sua mão. — Você,
aqui! — Colocou o menino em uma ponta e agarrou Harry. — E você, lá! Um
momento de silêncio, por favor! E não se sujem!
Harry puxou um pequeno cavalo de pau de dentro de sua jaqueta e
sorriu, o mesmo sorriso do pai, provocando o irmão.
— Meu cavalo.
Então, disparou a falar um amontoado de palavras que nem mesmo Mairi
conseguia adivinhar o que fossem. Ned respondeu no mesmo jeito. A estranha
conversa continuou e os dois decidiram compartilhar do brinquedo, imitando
um galopar do cavalinho ao longo do banco.
Mairi balançou a cabeça e voltou-se para o marido.
— Por que os dois falam assim, Rob? Eu tento ensiná-los! O que há de
errado? Eles insistem nessa… algazarra.
— Misericórdia! — Ele levou as mãos ao rosto, fingindo horror. — Não é
gaélico?
Ela riu, a despeito da aflição com a linguagem dos filhos.
— Não! Isso eu poderia entender!
— Nem francês? — perguntou Rob, parecendo ainda mais preocupado.
— Nem inglês! Nem latim! — ela respondeu, com um olhar furioso.
Rob recostou-se, sorrindo.
— Observe. Garotos? — chamou em um tom firme, obtendo a atenção
dos filhos. — Digam-me. Quem é Harry?
Harrv abanou o dedo indicador.
— Tio Henri… — Fez uma pausa, em uma clara provocação e, então,
apontou para o peito e acrescentou, bem alto: — E eu Harry.
Rob fez um gesto, concordando, e indagou:
— Quem é Ned?
— Vô Edouard e eu— exclamou Ned.
Rob contemplou Mairi com um silêncio eloquente e suspirou. Está vendo?
Por que se preocupar?
Mairi concordou, sabia que ele estava certo. Seus filhos eram tão
perfeitos como qualquer criança barulhenta podia ser. Alguns dias sua vida
parecia feliz demais, achava que devia ter algo errado quanto a isso. Rob a
estava ensinando a viver um dia de cada vez e a esperar que a felicidade
abençoasse o amanhã.
A porta do salão abriu-se, e Mairi alertou Rob.
— Ele está aqui — disse sem necessidade, pois o alto e belo lorde
encaminhou-se com largas passadas para eles, com um sorriso de absoluta
felicidade. Tal como Trouville, ela pensou, embora lhe faltasse a formalidade
inibidora do pai.
— Robert, o Velhaco! — berrou, com uma sonora risada, enquanto
envolvia Rob nos braços.
— Harry, o Infeliz! — Rob respondeu, em um tom vibrante, batendo nas
costas do irmão e abraçando-o. — Bem-vindo, irmão.
Mairi esperou pacientemente para ser apresentada, embora seus
pequenos sapecas se agarrassem às pernas dos homens, como bonequinhos
agitados.
Com um tapinha final, Rob soltou Henri e voltou-se.
— Minha esposa, Mairi — disse, apontando para ela. — Aqui está Henri.
Pensando que ele lhe tomaria a mão, Mairi estendeu-a. Ao invés disso,
ele deu um passo à frente, beijou-a em ambas as faces e disparou uma
torrente de palavras em sua língua nativa.
— Eu não falo… — ela começou.
— Francês. Papai me avisou. Nem ele fala — disse Henri, inclinando a
cabeça em direção a Rob. — Pena. pois eu poderia, dizer-lhe, em segredo, que
você corre perigo de ser raptada para a França por um patife que se apaixonou
por você à primeira vista. Irá comigo, minha formosura?
Mairi revirou os olhos para o céu, desarmada com a brincadeira.
— Oh, claro que sim, meu lorde. Eu e meus gentis bebes vamos fazer de
sua vida um céu! Conheça Harry e seu irmão, Ned.
Henri imediatamente ajoelhou-se e segurou cada um dos garotos pelo
ombro, examinando-os como se fossem cães a serem negociados.
— Ora, ora. Querem ir para a França e serem meus cavaleiros? Vamos
conquistar os ingleses!
Os gémeos balançaram a cabeça, aquiescendo, e jogavam-se nos braços
do tio, como se o conhecessem durante toda a vida.
Mairi resgatou Henri depois de uns poucos minutos das mãos ávidas dos
meninos, e ofereceu a ele um copo de cerveja.
— Você deveria ser pai de seus próprios cavaleiros — Rob sugeriu,
sentando-se. — Quando vai se casar?
— Eu!? — exclamou Henri. — Não é preciso. Harry pode ser meu
herdeiro.
Mairi recorreu a Gunda para tomar conta dos pequenos, antes que se
tornassem impetuosos demais para suportar. A criada sentou-os sobre o banco
e deu-lhes uma guloseima para mordiscar.
— Eles são para lá de maravilhosos! — exclamou Henri. Mairi quase
podia jurar que vira lágrimas brilharem
naqueles olhos escuros. Notou que Rob observava o irmão
pensativamente, ambos pareciam um bocado tristes para uma ocasião tão
feliz. Será que tinha a ver com as razões de Henri em se mostrar disposto a
deixar seu legado para um sobrinho, ao invés de ter filhos seus?
— Estamos felizes em tê-lo conosco, meu lorde — disse ela,
alegremente, mais para mudar aquele estado de espírito do que para fazê-lo
sentir-se em casa. Bain-croft tinha sido o lar de Henri por um tempo maior do
que ela própria vivia ali.
A nuvem escura afastou-se, e a conversação tomou um rumo agradável
que permaneceu durante a refeição.
Mais tarde, eles se sentaram ao pé da lareira, no salão, onde Henri os
encantou com divertidas histórias de suas viagens. Mesmo os garotos
permaneceram sentados, extasiados, encostados um ao outro. Logo as
cabecinhas começaram a pender de exaustão. Era hora de dormir, mas Mairi
detestou pôr um ponto final ao dia. Ter um irmão era uma nova e maravilhosa
experiência para ela.
— Agora, você precisa me falar das Terras Altas, Mairi — exigiu Henri —,
pois esse é um lugar que nunca visitei.
Mais que depressa, ela concordou, seu entusiasmo crescendo enquanto
pensava em seu clã, onde todos estavam felizes agora, tendo o sobrinho de
Ranald como lorde, um bom rapaz que eles haviam escolhido para liderá-los.
Ela contou a Henri como Rob havia ido até as Terras Altas para buscá-la,
destacando as habilidades do marido em batalhas com um tal exagero que fez
Henri rir e Rob corar.
De repente, Rob aproximou-se e tomou-lhe as mãos, impedindo-lhe os
gestos enfáticos.
— Por favor, Mairi! — ele pediu, com um olhar angustiado. — Não na
frente das crianças,
— O quê? — ela exclamou, abrindo as palmas como se houvesse escrito
nelas uma mensagem de advertência. — O que foi que eu disse?
— Que eu sou o melhor amante em toda a Escócia — ele murmurou,
com um sorriso enviesado, cheio de autoconfiança, e um gesto de ombros
embaraçado.
Henri concordou, com uma expressão séria.
— E que ele só poderia ser suplantado por um francês mais bem
equipado e com anos de experiência. — Seus olhos escuros faiscaram. — E que
você está temerariamente tentada a…
Mairi jogou as mãos para cima.
— Estou temerariamente tentada a matá-los!
— Não é um bom sinal — Henri comentou com um arquear da
sobrancelha.
— Eu sei — concordou Rob. — Ela precisa de uma lição. Pode nos
desculpar?
— Certainment! — exclamou Henri.— Ordeno que durmam bem.
Mairi sorriu por sobre o ombro, enquanto Rob a conduzia para a escada,
atrás de Gunda e dos garotos.
— Obrigada pelo desafio que fez a ele… Duvido muito que vá sobrar
tempo para dormir, esta noite!
— O que disse? — Rob perguntou, já que não pudera ver os lábios dela
enquanto Mairi falava.
Ela sorriu com toda a inocência.
— Eu lhe desejei boa noite, meu amor. Uma ótima noite.
FIM