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CORAGEM DE MULHER

LYN STONE

DIGITALIZAÇÃO E REVISÃO
JOYCE GALVÃO

Clássicos Históricos Especial nº 124

Publicado originalmente em: 2001


Título original: THE HIGHLAND WIFE

O AR DAS COLINAS ESCOCESAS E ESTAVA IMPREGNADO NO DESEJO


DE VINGANÇA!

Mas a impetuosa Mairi MacInness adorava respirá-lo profundamente. Até que


um casamento arranjado com Robert MacBain, um enigmático lorde das Terras
baixas, arrebatou-a para longe… para uma vida de aventura, paixão e um
amor sem palavras.
Generoso de espírito e corajoso no campo de batalha, mesmo vivendo em um
mundo silencioso, Robert MacBain tinha qualidades que qualquer um invejaria.
Ainda assim, faltava um amor intenso e verdadeiro na sua vida. Até que
conheceu e conquistou a linda Mairi. Seria possível que algum dia ela pudesse
ouvir e atender os sussurros apaixonados de seu coração?
PRÓLOGO

— Pela Misericórdia de Deus! — Mairi murmurou.


Ele estava nu como no dia em que nascera!
Olhos arregalados de fascinação, a moça observou MacBain que
examinava os cavalos e retirava os fardos de suas selas. O homem não tinha
vergonha de espécie alguma
Claro, ele devia pensar que não havia ninguém a observá-lo, a não ser o
servo que parecia ter adormecido, Mairi lembrou a si mesma. Porém, não se
dera conta que ela poderia sair do bosque a qualquer momento? Será que ele
queria que ela o visse assim, tão exposto?
Ela enrubesceu diante da visão, mas não conseguia desviar os olhos. Que
músculos ele tinha, pensou, ao vê-lo flexionar os braços, os ombros, as costas.
Ah, aquele corpo era algo digno de ser visto!
Torceu as mãos, imaginando a sensação macia de toda aquela pele
queimada de sol. O desejo de tocá-lo inteiro a dominou…
CAPITULO I

Terras Altas, Escócia. Verão de 1335

O que ele estava fazendo naquele lugar?


Não precisava de uma esposa tão desesperadamente, disse Robert
MacBain a si mesmo. Contudo, ali estava, na estrada, no próprio âmago do
desconhecido, naquelas colinas estranhas. E para se casar com uma noiva que
nunca vira, noiva que devia estar provavelmente mais apreensiva que ele com
re lação a todos os aspectos daquele acordo.
Ainda assim, era obrigado a seguir em frente Thomas de Brus tinha
viajado para muito longe e gastado metade de um ano para arranjar aquele
casamento. E fora obri gado a isso, de forma premente, porque sua irmã havia
rejeitado Rob e rompido um noivado de toda uma vida. Rob não tivera
coragem de recusar isso ao amigo e deixá-lo com essa culpa a lhe pesar nos
ombros. Agora, porém, desejava ter esperado que Thomas se recobrasse e
caísse em si. A data da chegada de Rob havia sido combinada, contudo. Sua
noiva o esperava.
E assim, ali estava ele, encarando o único medo que poderia apavorá-lo.
O medo do desconhecido, a mate rialização de seus piores pesadelos. Esse não
era um medo que pudesse admitir em voz alta. Nem uma coisa que pudesse
evitar.
Olhou ao redor e para cima, para os picos de um cinzento tenebroso que
definiam as Terras Altas. Aquela região ameaçadora parecia-lhe muito diferente
das Terras Baixas, que ele chamava de lar. Não guardava semelhança com
qualquer dos vários lugares do continente que ele visitara, ao participar de
torneios com seu Irmão, Henri,
Rob não desejava estar naquele lugar, mas, apesar disso, seus aromas
peculiares e a beleza inacreditável o fascinavam, Decidiu, por isso, que devia
fixar-se nos aspectos favoráveis da viagem ao invés de em seus temores.
Será que sua noiva das Terras Altas condizia com o lugar em que
habitava? Seria assim tão diferente das mulheres que ele conhecera no
passado? Iria atraí lo ou Pazê-lo sentir repulsa? Ou talvez provocar nele ambas
as sensações, como a terra em que nascera?
A lâmina aguda da antecipação cortou-lhe as apreen sões, Embora não
as dissipassem de todo, certamente fez, com que se tornassem mais
suportáveis. A mulher podia fazer tudo aquilo valer a pena. Thomas lhe afir
mara que ela era muito bonita, tanto quanto apropriada,
Ele inalou profundamente o ar frio, seco e fresco das montanhas e
balançou a cabeça para afastar as preocupações inúteis. Gostasse ou não da
jovem, ela seria sua esposa, Sua família e Thomas iriam parar de se preocupar
com ele. Rob precisava ter um her deiro. Se não pudesse conseguir a pessoa
adequada, deveria assim mesmo aceitá-la para esposa, já que Tom tivera tanto
trabalho.
Um de seus homens, Newton, puxou as rédeas de seu corcel e esperou
até que Rob se aproximasse.
— Craigmuir está logo depois daquelas colinas, meu lorde. — Apontou
para cima, à direita. — Importa-se de descansar? Arrumar-se um pouco? —
Newton coçou o peito e arqueou a sobrancelha. — Sua noiva o espera! O
sorriso divertido no rosto de Newton disse a Rob como ele devia estar sujo,
depois de uma semana via jando com os mesmos trajes.
— Há um córrego um pouco mais acima, que deve mos cruzar, para
chegar lá.
Rob concordou e ultrapassou. Newton. As montarias, ouvindo o barulho
de água, puseram-se a trotar.
Seu pai o ensinara que, em qualquer confrontação, Rob deveria mostrar-
se como se já houvesse conquistado o mundo. Até aquele momento, o
conselho o ajudara e muito. E o haveria de ajudar naquele dia.
— Ele está chegando! Ele está chegando! — gritou o sentinela, na
amurada. Corby pulava de alegria, apontando para o sul.
Mairi Maclnness recusou-se a se mostrar ansiosa. Especialmente quando
todos, em Craigmuir, agiam como se os saltimbancos do Natal fossem
esperados. Supôs que tivessem boas razões para tanta excitação, com a festa
e os preparativos para o casamento iminente. Para eles, seria um belo feriado.
Quanto a si mesma, guardaria o julgamento até saber se teria al gum bom
motivo para celebrar.
Seu pai juntou-se a ela nos degraus do hall.
— É melhor que espere lá dentro, minha pombinha — ele a aconselhou.
— Gostaria de encontrá-lo primeiro.
Mairi condescendeu, porém não se afastou para lon ge, e certamente não
foi para seu quarto para esperar ser convocada. Ao invés disso, dirigiu-se ao
pequeno aposento que seu pai usava para registrar suas contas e guardar seus
livros. Dali, poderia ver tudo que se passasse no hall, sem ser vista. Não
queria surpresas. Se o homem se mostrasse repugnante, Ísso lhe daria tempo
para preparar uma reação apropriada para quando fossem apresentados.
Enquanto esperava, Mairi endireitou mais uma vez o decote da blusa, arrumou
as saias, ajeitou o cinto, a fivela da bolsinha e a bainha da faca. Satisfeita por
estar tão apresentável quanto possível, ela se pôs, então, a olhar avidamente
para a porta do hall.
Seus olhos se arregalaram, maravilhados, quanto, por fim, viu-o entrar.
Misericórdia, ele parecia impressionante, Mais alto que seu pai, era o recém-
chegado, e que belo contraste fazia com seu primo, Ranald. Este, ria esperava
nunca mais ver de novo. Ele se atrasara, mas eis que se aproximava,
apressando-se a se juntar a seu pai e ao visitante, enquanto cruzavam o hall.
Incapaz de conter a curiosidade, desesperada para olhar mais de perto o
estranho que tinha vindo para desposá-la, Mairi decidiu que iria se arriscar a
parecer ansiosa, afinal.
Eles haviam parado ao lado da tribuna. Mairi aproximou-se por detrás e à
direita de seu pai e ficou em silêncio, como era apropriado. Sua hora iria
chegar, e não tão cedo como lhe agradaria.
O emissário do barão de MacBain havia chegado para fazer os arranjos
havia dois meses. Ela o encontrara muito brevemente, porém não soubera por
que o homem estava ali até que ele partira. Depois de tê-la informado de
maneira sucinta dos planos de casamento, seu pai não mais falara sobre o
fato, não importava quanto o importunasse com relação ao assunto.
Mairi havia se preparado para recusar o combinado se não fosse de seu
agrado, não obstante seu pai já ter levado os preparativos para o casamento
até aos detalhes, como a qualidade da fita de sua camisola.
Agora, ela lhe perdoava por isso, pois parecia que ele tinha feito o
melhor, afinal. Sua mãe iria ficar orgulhosa dos arranjos do pai e da aceitação
obediente de Mairi, se fosse viva.
Que agradável surpresa que o pretendente fosse jo vem e ura homem
apresentável, pensou Mairi. Ela já tinha vinte e quatro anos, uns bons dez anos
passada da idade que homens de sua classe buscavam em uma esposa, ela
havia esperado encontrar um noivo por seu dote, menos por seus cabelos ou
dentes.
Que o escolhido não fosse um homem das Terras Altas só contava a seu
favor. Deixar aquele lugar iso lado iria ser pouco sacrifício, no que concernia a
Mairi. Por toda a vida ela ansiava por aventuras e por viajar para novas plagas,
mesmo quando pensava como era improvável que isso acontecesse.
Iria sentir saudade de seu pai, é claro. Embora ele, a maior parte do
tempo, desse-me quase a mesma aten ção que dava a seus cães, ela sabia
que a amava muito. De outra maneira, por que iria se preocupar em cas tigá-
la, uma vez ou outra, e adverti-la para ser mais prudente e cuidadosa?
Já que ela nunca conhecera a mãe, ele devia sen tir-se obrigado a
transformar sua única filha em uma senhora digna. Mairi sentia-se feliz que ele
gostasse dela o bastante para se incomodar a tanto.
Naquele instante, o pai encabeçava sua lista de pes soas favoritas,
simplesmente porque escolhera um ma rido tão distinto para ela.
Pondo de lado os ataques ocasionais dos vizinhos, a vida em Craigmuir
mostrava-se excessivamente aborrecida. Mesmos esses acontecimentos
tinham um ar de mesmice. Os clãs rivais cavalgavam pelas vizi nhanças,
roubavam umas poucas cabeças de gado, cavagavam de volta. Então, os
homens de seu pai partian pura a retaliação. Além de cuidar dos poucos feridos
de ouvir palavrões quando um ataque falhava, nenhum desses fatos afetava a
própria rotina de Mairi.
Agora, ali estava sua esperança em uma grande mudança. Esse homem
tinha cabelos castanho-claros, queimados de sol, penteados recentemente e
afastados da testa larga. Seus olhos cinzenta-escuros pareciam não perder
nada, embora ele não houvesse se voltado e engolido em seco como alguns
faziam, ao entrar no hall cavernoso devia estar acostumado a algo mui to mais
amplo a melhor.
Mairi deduzia isso em virtude de sua túnica de lã, esplendidamente
bordada, e da calça justa, além de seu excelente armamento, que parecia mais
rico e mais caro que 0 do seu pai. Ou de qualquer outro que ela já vira.
As esporas de prata e a cota de malha que ele usava 0 marcavam como
um cavaleiro, assim como um nobre, mas isso ela já sabia, a respeito dele. Um
dos poucos detalhes que conhecia era seu título de barão.
Ele tinha um ar sério e nobre. Ela sorriu, dando-lhe as boas-vindas, de
seu lugar, atrás do lorde, esperando uma resposta pronta que pudesse
significar um gesto de amizade. Contudo, a julgar por suas atitudes con tidas,
o homem podia ter sido confundido com um car rasco. Não deu, nem a ela
nem a seu sorriso, qualquer importância. Claro, ele não devia saber ainda
quem era ela, pensou Mairi.
Ela cerrou os dentes e conservou o sorriso, silencio samente determinada
a não fazer julgamentos preci pitados. Ele devia estar tão preocupado quanto
ela es tava, com relação a este primeiro encontro.
Seu pai ainda não notara que ela estava presente, pois se colocara fora
de suas vistas. Ele acabara de cumprimentar o sobrinho e fazia as
apresentações.
— Lorde Robert MacBain, barão de Baincroft, apre sento-lhe meu
parente e sucessor escolhido, sir Ranald Maclnness. — Ele inclinou a cabeça na
direção do sobrinho que iria ser o senhor dos Maclnness, depois de sua morte.
Ranald era um homem alto e robusto, de trinta anos, que parecia
amaldiçoado por um tolo e perpétuo sorriso de autoconfiança. Os olhos escuros
examinaram o hós pede intensamente quando o olhar cinzento do homem
deteve-se sobre ele.
Embora Ranald usasse a espada, esporas e outras indumentárias de um
cavaleiro, Mairi sabia que ele não possuía nenhuma das qualidades de caráter
re queridas, inerentes a quem quisesse honrar esse título. Cavalheirismo,
humildade e honra eram desconhecidos para ele. Ela ficou a imaginar se isso
seria tão óbvio para alguém que nunca o houvesse visto antes. Contudo, o belo
rosto do lorde MacBain permaneceu tão inexpres sivo que ela não pôde deduzir
o que ele pensava.
— Sir Ranald — disse MacBain, de uma forma seca, o nome parecendo
soar como língua estranha em sua boca.
Ele estendeu o braço e, depois de uma curta hesi tação, Ranald apertou-
lhe a mão, rapidamente.
— MacBain — retrucou, com um desprezo óbvio, ignorando-lhe o título
de barão. Um insulto.
Mairi sentiu uma pontada no peito. Ranald iria seguir com o propósito de
observar tudo, pensou. Ganharia quem apostasse que o homem tinha um
propósito em estar ali, e bera diverso de apenas conhecer seu noivo. Ele vinha
solicitando para si essa honra nebulosa e com alguma regularidade, para
desgosto de Mairi.
— Lamento não poder ficar para as núpcias — disse Ranald. — Devo
retornar a Enslor antes da manhã.
— Esperando problemas? — perguntou o lorde.
— Nada que eu não possa resolver — respondeu-lhe o sobrinho,
secamente. — É coisa de pouca importância que tenho a fazer por esses dias,
quando poderia estar aliviando-o de muitos devores por aqui. o pai de Mairi
suspirou.
A ambição é muitas vezes admirável, Ranald. Porem, não estou morto
ainda, como bem pode ver.
Aquilo poderia degenerar em mais uma briga de família, pensou Mairi,
com apreensão crescente. E como seria em baraçoso. Seu olhar desviou-se
para lorde MacBain, que observava seu pai e Ranald com agudo interesse.
Ranald levou a mão ao peito, com um gesto de irónica aflição.
Não interprete mal minha oferta de ajuda, meu lorde, — Olhou para trás
e cravou seus olhos demo níacos em Mairi. — Assim como interpretou minhas
frequentes propostas para que me tornasse um filho para o senhor.
Lorde Maclnness resfolegou, com. deselegância.
— Ser meu sobrinho é um laço bastante próximo para minha
conveniência. O clã o escolheu há muitos anos, e você terá seus direitos,
porém não através de mim ou dos meus.
Ranald olhou para Mairi de cima abaixo e, então, sorriu, com aquele seu
sorriso grudento e sugestivo. Quantas vezes ele agira assim, prometendo
silencio samente a ela as coisas que iriam acontecer, se a pe gasse sozinha?
De repente, MacBain colocou-se entre os dois, cor tando
propositadamente a visão de Ranald. Somente então ele interrompeu o exame
insultuoso e afastou-se.
Graças a Deus ele se fora, O homem fazia sua pele arrepiar-se como se
ela estivesse coberta de sanguessugas.
Quando, finalmente, estavam livres da presença de Ranald, seu futuro
esposo voltou-se e olhou-a diretamente nos olhos, com se ela fosse a única
pessoa no mundo que valesse a pena fitar. Ela sentiu-se bem, no mesmo
instante. Um tanto acalorada, talvez, porém, bem.
Deus jhe salvasse a alma, esse homem poderia encantar os espinhos dos
paliúros. Ela sentiu-se totalmente roubada quando ele desviou o olhar para
focá-lo em seu pai, em expectativa.
Naquele momento, pela primeira vez, desde que descobrira que estava
para se casar, Mairi Maclnness sentiu o arrepio marcante da ansiedade.
Claro, tinha outras razões para tal sentimento. Nem sequer lhe passara
pela cabeça que ele seria assim tão beío ou que parecesse tão notável, dada a
óbvia relutância de seu pai em falar com ela sobre o casamento.
— Lorde MacBain, esta é minha filha, Mairi Maclnness — disse seu pai,
como apresentação, puxando-a para frente pelo braço, para que ficasse diante
de seu pretendente. — Sua noiva.
De novo, ela se tornou o alvo daquele olhar penetrante. Os olhos cor de
aço emoldurados de longas pestanas abriram-se ligeiramente com ávido
interesse, talvez até mesmo com desejo. Mairi quase estremeceu.
Cautelosamente, como se julgasse que ela poderia recusar o gesto, ele
estendeu a mão larga, a palma calosa para cima. Mairi entregou-lhe a sua e
observou como ele levava seus dedos aos lábios. Suspirou. Ele tinha lábios
maravilhosos.
Os olhos dele não se afastaram de seu rosto enquanto aquela boca
finamente esculpida quase tocava o nó de seus dedos. Ela sentiu-lhe a
respiração quente sobre as costas da mão, o que provocou um formigamento
que lhe subiu pelo braço e que não parou em seu ombro.
— Meu Lorde — ela o cumprimentou. Desejava não ter falado tão baixo e
sem fôlego, mas seu porte e a presença marcante a tinham subjugado,Porém,
da ma
neira mais maravilhosa que ela poderia imaginar.
Minha senhora — ele murmurou, com voz profun da, completamente
desprovida de qualquer inflexão.
Ela não pôde definir se gostava do som dessa voz. contudo, do resto
certamente não havia do que se quei xar, Dele fluía o cheiro das especiarias
custosas do oriente. Cravos, ela deduziu, respirando fundo. E ca nela, que ela
adorava. Seu corpo tinha um cheiro bom, pensou Mairi, acostumada como
estava a homens exa lando apenas o fedor de suor e de cavalo. Meu pai
pigarreou.
Entre, sente-se e descanse — ele ordenou, com uma voz tonitruante,
atravessando o hall em direção a lareira. — Tragam cerveja para nós! — Ele
prati camente gritou as palavras para os servos que agora se alvoroçavam em
torno das mesas, aprontando-as para o jantar.
— Pai! Por favor, fale mais baixo — Mairi o re preendeu baixinho,
cutucando-o no braço.
Ele limitou-sè a resmungar em voz quase inaudível, sem mover os lábios.
— Fico triste em dizer, mas você deve ter paciência o piedade. Falta de
audição, garota. Eu devia ter men cionado antes.
Mairi suspirou, preocupada, porém não em demasia. Uma tal deficiência
era esperada em um homem da idade avançada de seu pai. Contudo, ele não
tinha de tratar todos como se partilhassem de sua aflição. Ainda assim, o
jovem barão parecia não ter tomado conhecimento da queles rugidos. Talvez
compreendesse a situação.
Para sua surpresa, seu pretendente dispensou o con forto das únicas
duas cadeiras estofadas, deixando-as para seu anfitrião e a filha. Uma tal
deferência para com uma senhorita e um velho senhor diziam bem das
maneiras de um homem, ela pensou.
Por quê, então, seu pai parecia tão inquieto? Não temeroso, exatamente,
mas certamente em guarda? Pouca coisa o deixava desconcertado.
Provavelmente se preocupava que ela pudesse desgraçá-los a todos.
Não desta vez. Ela deixara as maneiras precipitadas e impulsivas para
trás. Nunca mais iria atirar-se em uma ação ou a um julgamento, esquecendo
a cautela e os bons pensamentos.
Não estava provando isso agora mesmo? Cada mo vimento que o barão
fizera, ela avaliara com grande cuidado. Afinal de contas, seu futuro dependia
de quan to se entendessem bem.
Mairi curvou a cabeça com modéstia e arrumou as saias, perguntando,
suavemente:
— Sua viagem até aqui foi digna de nota, meu lorde? As colinas são
fascinantes nesta época do ano, não são?
Ele a ignorou completamente como se ela não existisse, toda sua
atenção concentrada sobre o senhor seu pai.
— Fiquei a imaginar se você poderia ter encontrado alguma dificuldade
pelo caminho, ou se a viagem mos trou-se tranquila — ela continuou,
gentilmente, imó vel,, esperando determinada alguma resposta dele.
Ele não lhe deu nenhuma, mantendo os olhos sobre o anfitrião como se
esperasse que ele repreendesse a filha atrevida por falar assim, tão
livremente. O pai enviou-lhe um sorriso de advertência, quando ela o encarou.
— Deixe de impertinência — ele murmurou, man dando-a calar-se.
Aquilo atraiu a atenção de MacBain. Ele inclinou a cabeça para ela
ligeiramente, como se notasse um inseto no chão.
— Você me julga impertinente por falar? — ela pro vocou o barão de
novo. Desafiando-o, na verdade.
Aquilo a fez ganhar um dar de ombros, quase im perceptível. Mal se fez
notar e logo se foi. Seus lábios se curvaram, porém não em um sorriso, mas
em um gesto de ligeira irritação.
E havia pensado que aquele homem tinha boas ma neiras? Que
temperamento horrível, o dele, delibera damente se recusando a respondê-la.
Um cretino con tido. Será que julgava as mulheres tão inferiores, no geral? Ou
era ela, em particular, que ele achava ofensiva? Havia se enganado quanto a
seu olhar de inte resse, afinal de contas?
Quando McBain falou, não foi em definitivo com ela. Ele deixara de
examiná-la e dirigia o olhar para seu pai.
— Quando podemos nos casar? Preciso voltar para casa — ele disse
muito lentamente, no mesmo tom brusco e baixo que não variava em
modulação.
Cada palavra, ele pronunciou distintamente, como se estivesse sozinho.
Será que pensava que seu pai era um retardado? Ou caçoava de um senhor
das Ter ras Altas que não estava acostumado a compreender o inglês correto?
De qualquer maneira, ele não tinha o direito de insultá-lo. Craigmuir podia ser
isolado, porém seus lordes eram certamente educados, apesar disso. O lorde
de Maclnness havia viajado constante mente durante sua juventude, e era bem
letrado. Ele até mesmo insistira para que a filha fosse ensinada a ler e a fazer
contas.
Seu pai suspirou tristemente, ao responder:
— Vocês devem casar-se logo, eu suponho, já que concordamos quanto
a isso. — Então, como se ainda não houvesse respondido, forçou um sorriso e
ergueu a cabeça, assim como a voz: — Logo. Vocês podem se casar esta
semana.
— Esta semana! —- exclamou Mairi. Olhou furiosa para seu pai, disposta
a conseguir que prestasse atenção a ela. Ele não percebia que ela precisava
conhecer aquele homem antes do casamento? Se, na verdade, fosse haver um,
ela pensou, desconfiada. Embora belo, jovem é rico, Mairi não estava certa se
gostava dele, de fato.
Com um gesto seco de concordância, MacBain vol tou-se para ela.
— Você concorda?
Finalmente! Ele se dignara a perceber que ela estava presente à
conversa, podia até mesmo falar, na ver dade. Se havia algo que ela
detestava, era ser ignorada.
Mairi sorriu docemente.
-— Você está brincando, certamente, meu bom lorde! Alguma vez soube
que qualquer solteirona de minha idade tenha desdenhado um casamento?
Contudo, sin to que você devia pensar duas vezes nisso, já que aqui você leva
mais do que barganhou!
— Mairi! — seu pai esbravejou, ofegante. — Con tenha sua língua!
Ela levantou-se e voltou-se para ele, dando as costas ostensivamente ao
barão.
— E daí? Eu tenho vinte e quatro anos, pai. Não que alguém tenha se
aborrecido em notar minha idade nesta última dúzia de anos. Agora, você
convida este homem para me tirar de suas mãos? Ele mal pode olhar para
mim! Não irá nem mesmo responder a uma simples piada.
Seu pai levou as mãos ao peito e revirou os olhos como se tomado por
um ataque de apoplexia. Não que ela acreditasse nisso por um instante. Era
um recurso usado para fazê-la sentir-se culpada e ganhar um pe dido de
desculpas. Bem, ele não conseguiria isso, ela decidiu, Não depois de tentar
casá-la com aquele cre tino sórdido.
- Queira me desculpar, papai —- disse ela, Com toda a arrogância que
pôde. — Irei me retirar e deixá-lo com seu hóspede! Tenho certeza de que ele
não irá «entir minha falta. — Com o queixo erguido e sem um outro olhar para
seu ex-prometido, ela encami nhou-se para a escada.
Por mais belo que fosse o homem, maldita seria ela ne ousasse deixar-se
prender a alguém que provavel mente tinha sido subornado para desposá-la.
Por sua aparência e pela maneira com que se comportava, seu pai não tinha
pago o suficiente para fazer o patife odioso feliz com a transação.
Ela vivera sem um marido durante todos esses anos e passara muito
bem. Por que tomar um que não a considerava digna de um sorriso, de uma
palavra amá vel ou até mesmo um segundo olhar? Que fosse para o inferno,
então. Ela permaneceria uma solteirona. .
Rob gostou da ondulação daqueles quadris bem tor neados que a moça
de lindos cabelos loiros exibiu, ao sair. Uma pena que não tivesse entendido
uma palavra daquilo que ela dissera ou poderia adivinhar a razão pela qual
Mairi deixara a sala.
Ele descobrira que qualquer uma das estranhas ma neiras de se
expressar dos habitantes das Terras Altas era difícil de entender, especialmente
quando alguém falava tão rápido quanto ela o fizera e sem quase mover os
lábios. O velho lorde fazia esforços para que Rob o compreendesse, mas a
jovem, não. Possivelmente, ela não percebera que devia agir assim.
Podia ser isso? Não lhe haviam contado? Thomas lhe dissera que havia
insistido para que a noiva soubesse. Rob estabelecera o fato como uma
condição imprescin dível antes que seu emissário fosse enviado para a busca.
Ele expulsou a preocupação. Thomas nunca menti ria, não acerca disso.
A mulher sabia tudo a seu res peito. Ela simplesmente não sabia como lidar
com a situação, o que lhe poderia ser ensinado com facilidade.
Mairi Maclnness era uma mulher adorável pelos pa drões de qualquer
homem, e de forma alguma era garota tímida que ele tinha temido que
pudesse encontrar. Tho mas não lho dissera sua idade, mas Rob adivinhava
que devia ter passado dos vinte. O que o agradava.
A raiva que mostrara para com seu pai lhe trouxera um colorido ao tom
suave de suas faces. Os olhos azuis tinham faiscado quando ela o incluíra em
seti ataque de ressenti mento. O que quer que tivesse causado tal desprazer a
ela, ele estava contente por ver que a jovem não era passiva, ela possuía
coragem.0 que era bom, pois precisaria dela.
De novo, ele encarou o lorde.
— O senhor contou a ela?
— O quê? — perguntou o velho senhor, cautelosamente, seu olhar
fugindo para ali ou acolá, evitando o de Rob.
Rob o fitou com firmeza, esperando, não se impor tando em abordar o
assunto que o homem já sabia, mas que estava tão obviamente relutante em
discutir.
— Sim, eu lhe disse, mas fui breve. — Ele deixou pender a cabeça e, em
seguida, endireitou-a, de novo, — E deixei por último — admitiu Maclnness.
—- Por último? — repetiu Rob, aborrecido e temeroso que só agora
pudesse entender a raiva da mulher. — Por último, quando?
O lorde pareceu envergonhado e correu a mão pelos cabelos grisalhos.
— Hoje. Agora mesmo.
— Droga! — Rob suspirou fundo e balançou a cabeça.
— Ela vai se acostumar — retrucou Maclnness, em um tom esperançoso.
— Mairi é uma garota sensata… e gentil ■— acrescentou.
— Quando lhe disse — perguntou Rob, escondendo a apreensão —, ela
ficou zangada? — Percebeu que não queria que ela o rejeitasse. Que outros o
fizessem, ele não se importava. Exceto Jehannie. Sua traição quase o
destroçara. Desde que ela rompera o noivado de longa data, ele nem sequer
pensara que pudesse vir a querer se casar com alguém.
Se não precisasse de um herdeiro para Baincroft, jamais Rob teria
concordado que Thomas arranjasse um casamento para ele. Não tinha pressa
alguma. Não, até ter visto aquela mulher…
— Não! Não! Não foi isso que a zangou — assegu rou-lhe o lorde,
meneando a cabeça, — Ela quer ser cortejada, eu acho. Todas as mulheres
querem.
Rob concordou. Precisava fazer-lhe a corte, é claro. Poderia fazer isso,
embora tivesse pouca inclinação para esses jogos amorosos. Nem julgava que
fossem necessários naquelas condições. O contrato de núpcias tinha sido
firmado. A mulher era dele. Tudo o que faltava era assinar os documentos do
casamento, re petir os votos… e deitar-se com ela, é claro. Não que ele fosse
se esquecer disso, agora que a conhecera.
Rob mordiscou o lábio inferior por um segundo, deu-se conta do que
fazia, e logo suas feições se suavizaram. Se ele não a cortejasse da forma
apropriada, como o pai dela sugerira, ela poderia desejar esquecer aquele
detalhe final da cerimonia, que Rob estava tão ansioso por cumprir.
Ela poderia descartar a consumação do casamento, e ele nunca tocaria
aquela pele sedosa e bonita do jeito que queria, ou sentiria de perto aquele
sutil aroma de rosas que dela emanava. Para não mencionar os outros
prazeres que já antecipava.
Ele iria fazer-lhe a corte, mas não a prolongaria. Agora, a única coisa que
queria era casar e voltar para casa.
Quando chegassem a Baincroft, logo a moça perce beria que não tivera
razão para duvidar de sua capa cidade em cuidar dela e dos filhos que teriam
juntos. Lá, entre seu próprio povo, estava sua melhor chance de impressionar
uma esposa.
Contudo, se ela desejasse ser constantemente cor tejada e quisesse
ouvir palavras doces dia após dia, depois do casamento, poderia se ressentir
disso. Rob havia tentado namorar sua primeira noiva tão logo ela tivera idade
para tanto. E aquilo não terminara nada bem.
Seu amado padrasto e o irmão estavam certos, todos aqueles anos, em
avisá-lo para que não demonstrasse quaisquer sentimentos mais doces que
pudesse ter. Tinham dito que ele devia cultivar um comportamento sério e
comedido para ganhar respeito.
Embora ambos falassem das tratativas de Rob com outros lordes,
cavaleiro, e homens de negócios, Rob ficou a imaginar se o conselho não se
mostraria verdadeiro para as mulheres que eíe desejava que o respeitassem.
Deveria fingir-se o namorado sorridente e provoca dor para aquela moça,
como sempre fizera com as mu lheres que ele procurava por prazer? Ou
deveria per manecer de alguma forma indiferente, já que ela era uma nobre e
prestes a ser sua esposa? Gostaria que Trouville ou Henri estivessem ali para
aconselhá-lo quanto a isso.
Não gostava de estar longe de Baincroft, especial mente naquele lugar
estranho onde conhecia apenas os quatro homens que o haviam acompanhado
na via gem. Por causa de sua origem plebeia, não podia man tê-los por perto
nesses encontros delicados com sua futura esposa e o lorde de Maclnness.
Se Thomas tivesse vindo junto, para falar em seu nome, as coisas
poderiam correr mais facilmente. En tão, isso não seria tão complicado, pois
Thomas já co nhecia aquele pessoal. Infelizmente, o amigo ficara na cama, em
Baincroft, com uma perna quebrada.
Rob maldisse sua sorte, a perda dos serviços de seu companheiro e
administrador, em uma hora tão crítica. A ausência de sua costumeira
autoconfiança o inco modava. Por obra de Jehannie, é claro.
Somente uma vez, como uma criança necessitada do amor de um pai,
ele se ressentira com relação ao que pensavam dele ou de sua capacidade. Até
que Je hannie se recusara a desposá-lo.
Desde essa ocasião, a dúvida aumentava a cada novo conhecimento que
travava. Ele devia, de alguma forma, reconquistar a certeza de seu valor. Sua
mãe batalhara diligentemente para instilar nele a autoconfiança, para que ele a
perdesse assim, para sempre. Porém, duvi dava de que pudesse recuperá-la ali
e agora, entre aquelas pessoas estranhas.
Teria sido apenas a falta de cortesia o que pusera lady Mairi a correr?
Não importava quanto ele desejasse acreditar nisso, mas Rob achava difícil que
fosse só isso, especialmente tendo em vista aquilo que acabara de sa ber sobre
ele. Isso sim devia ter parte no fato.
Bem, era azar dela, então, se não pudesse suportar aquele fardo em sua
vida, O preço do dote fora pago. Ela teria que honrar o contrato assinado pelo
pai. Rob a teria como esposa.
O lorde parecia sentir-se miseravelmente, notou Rob. Triste por perder a
filha, suspeitou. Perdê-la para um homem como MacBain não devia ser fácil
para ele.
Rob admitiu que provavelmente se sentiria da mes ma maneira em igual
circunstância. Thomas dissera que havia explicado tudo em detalhes a
Maclnness. E
já que o lorde só contara à filha havia poucos minutos, ela não deveria
conhecer toda a extensão dos fatos.
Ficaria mais consolada em saber que a surdez de Rob não se transmitiria
a seus filhos? Sua mãe lhe assegurara isso, uma vez que ele fora capaz de
ouvir por alguns anos, após o nascimento. Uma febre lhe roubara os sons dos
ouvidos.
Ajudaria se ela soubesse que ele conseguia ouvir algumas coisas?
Escarneceu do próprio pensamento. Os sons graves dos tambores e assobios
estridentes não contavam, quando nada além do silêncio abafado existia entre
os dois extremos. Não, provavelmente ela não se importasse com os pontos
mais delicados do assunto. Para todos os intentos e propósitos, ele era surdo
como uma pedra. E isso era tudo.
O contrato havia custado a ele uma enorme impor tância, porque
Maclnness não havia concordado em deixar que lady Mairi o desposasse, a
princípio, como havia dito Thomas. Contudo, o lorde precisava asse gurar o
futuro da filha, agora que estava ficando velho. Rob poderia não ser capaz de
ouvir a garota, mas podia fazer dela uma mulher muito rica.
Em troca do preço da noiva, Rob ganharia um estado em ruínas próximo
à fronteira, como dote. Um pântano entre as rochas, aquele lugar. Ele se
desviara de seu caminho para examiná-lo, durante a viagem. Poderia muito
bem ter aceitado a mulher sem o dote, diante da propriedade inútil que bem
nenhum traria a ele. Mas, sabia que tal não podia ser feito, mesmo entre as
classes mais baixas, embora Rob se contentasse apenas com uma coisa,
depois de ter visto a moça.
Ele precisava de um filho como herdeiro. Conside rando sua surdez,
provavelmente nenhuma outra fa mília de nobres que soubesse a verdade a
seu respeito lhe confiaria uma filha.
Rob supôs que devia conceder algo a Maclnness, diante dessa verdade.
— Por dois dias, eu lhe farei a corte — prometeu a Maclnness,
estendendo dois dedos para cima, para enfatizar as palavras. — Depois, nós
nos casaremos e partiremos.
O lorde afundou na cadeira e concordou. Então, er guendo-se
penosamente, apontou para as mesas na cabeceira do hall.
— Venha, coma.
Rob tomou assento no lugar de honra. Lady Mairi não apareceu, afinal.
O lorde nada disse até que terminaram a refeição. Só então, voltou-se, e
fitou Rob, com a testa franzida.
— Você vai ser bom para minha Mairi? Gostou dela, afinal?
O coração de Rob condoeu-se da evidente preocupa ção paterna que
podia ver nos olhos do velho senhor e procurou confortá-lo, como pôde.
— Sim, senhor —- afirmou, tentando permanecer in diferente e
falhando, miseravelmente. — Eu gosto dela.

CAPÍTULO II

Na manha seguinte, Mairi acordou e resolveu abordar a situação de


forma mais pragmática do que tinha feito, na noite anterior. Tinha pensado
muito. Se não desposasse aquele barão, nada mudaria para e!a. Passaria o
resto de sua vida contando os linhos e lustrando a mísera coleção de pvataria
de Craigmuir repreendendo os criados insu bordinados e fazendo compras para
o castelo. Contudo, se aceitasse o homem como marido, peio menos teria
alguma chance de estabelecer uma família só sua, de ter filhos que a
amassem.
E por fim, ela veria o que havia além das colinas parcialmente habitadas
o dos vales estreitos das Terra.s Alias. Mais do qualquer coisa, ela ansiava por
conhecer uma cidade, qualquer cidade. Queria viajar, conhecer novos povos e,
com alguma sorte, envolver-se em uma aventura pelo caminho, Só uma já
seria o suficiente. Casar-se com MacBain já lhe favoreceria esse último desejo,
pensou Mairi, com um sorriso oculto.
Ele podia não se importar em falar com ela mais do que o estritamente
necessário, porém Mairi tinha de admitir que não era difícil superar isso. Com o
tem po, seguramente ela o convenceria a adotar alguma atitude mais sensível.
Além do mais, partilhar a cama com ele não seria uma tarefa
desagradável. Acreditava que ele sentira uni breve interesse por ela, nesse
sentido, se não fosse por outro. Supunha que seria o suficiente, a menos que
decobrissem algum outro motivo em comum. Muitos casamentos nem mesmo
contavam com isso para recomendá-los.
Determinada a mostrar a ele que podia ser uma companhia interessante,
Maíri dirigiu-se à cozinha, logo depois da missa, e reuniu em unia cesta uma
porção de queijo, carnes frias e pão fresco recém-saído do forno. Acrescentou
uma garrafa de vinho o saiu em busca de seu noivo, que não se dera ao
trabalho nem de comparecer a missa ou ao desjejum informal que se seguira á
cerimonia.
Ela o encontrou no estábulo, escovando sou cavalo.
— Bom dia, meu lorde — disse, exibindo seu sorriso mais expressivo.
Ele sorriu-lhe em resposta, com uma expressão es tonteante de doçura
que a fez estacar e respirar fundo. Misericórdia divina, o homem podia
enfeitiçar quando se dispunha a isso, pensou Mairi, levando a mão ao peito,
sem perceber. Seu coração havia disparEido em um galope desvairado e
perigoso que ela sentiu verti gens por um instante.
Tão depressa como surgira, seu sorriso se foi. O taci turno barão franziu
a testa ao olhar para a cesta que ela carregava, O que a deixou imaginando se
apenas imaginara a forma com que a recebera. Teria sido um devaneio?
De juízo refeito, Maíri ergueu a tampa do cesto para mostrar a ele.
— Trouxe comida. Há um lugar maravilhoso que eu podevia mostrar-lhe,
se quiser cavalgar. — Apanhou uma sela do varal e estendeu-a a ele,
apontando para uma égua.
— Cavalgar? — Ele olhou ao redor e de volta, para ela. — Sozínhos?
Ela sorriu, de um jeito malicioso, e curvou a cabeça para o lado,
— Por que não? Somos noivos. Quem pode nos censurar?
Com um gesto de incerteza, ele pegou a sela. Mairí sentiu-se feliz apenas
em observá-lo movimentar-se, enquanto Rob encilhava sua montaria e, depois
a dele. A graça em movimento, ela pensou, impressionada pela economia de
gestos em cada ato, pelo jogo dos musculos bem visíveis através das roupas
bem talha das do barão.
Rude ou não, ele fazia seu sangue ferver. Era o pri meiro a conseguir
perturbá-la assim, e, por isso, ela quase lhe perdoava por sua falta de atenção
na noite anterior, E pela ausência do sorriso encantador, na quele instante.
Quem sabe ele fosse apenas tímido ou nunca lhe houvessem ensinado boas
maneiras,
Mairí poderia ensiná-lo. Como primeira lição, ela aguardou, na
expectativa, que ele a ajudasse a montar. Depois de um olhar agudo em sua
direção, ele a segurou pela cintura, ergueu-a como se ela não pesasse mais
que a cesta de comida o colocou-a no lombo da égua.
Aquelas mãos fortes tinham se demorado em seu corpo mais que o
necessário? Ela achou que sim. Bom sinal. Rob montou depressa e puseram-se
a cavalgar em silêncio. Mairi indicava o caminho. Seu lugar especial os
aguardava, uma adorável clareira no bosque onde um riacho corria por entre
as pedras, depois de uma pequena cascata. As samambaias e as flores que ali
cresciam transformavam o lugar em um vale encan tado. Poderiam passar
algumas poucas horaa tranqui la a longe do castelo, para se conhecerem
melhor.
Nao que fosse permitir a ele alguma liberdade, Seria melhor que ele não
tentasse isso antes do casamento. Ou não?
Mairi sorriu para si mesma, quase desejando que ele abandonasse o
respeito. Muitos casais antecipavam seus votos finais. Era evidente que ela não
iria encorajar tais coisas, é claro, mesmo para torná-lo mais gentil. O pai lho
dissera que uma dama deve ter limites.
Por muitas vezes Mairi tinha desejado falar com ou tras mulheres acerca
desse assunto. Sua mãe morrera havia muito tempo, e as poucas criadas que
permaneciam em Craigmuir não eram pessoas para as quais ela pudesse pedir
conselhos dessa natureza, A maioria era livre em conceder favores e não fazia
segredo disso.
Chegaram ao destino. Macbaín permaneceu montado, observava oa
bosques e as cercanias com o olhar alento.
Mairi poderia jurar que ele verificava a grama, pro curando por rastros e
cheirava o ar, como se pressen tisse problemas. Será que ele acreditava que
ela o convidara para uma armadilha de alguma natureza?
— Gosto daqui — diase ele, finalmente, desmontando e vindo ajudá-la a
descer da égua. Então, inclinou-se e apanhou, com um gesto rápido, um
punhado de flores silvestres. — Para você — disse, encarando-a, quando as
estendeu a ela.
Mairi decidiu ignorar a intensidade de seu olhar. Por Deus, ele raramente
piscava.
— Eu lhe agradeço! — murmurou.
Ele certamente não gostava de perder tempo. Ou de se mostrar terno.
Contudo, fizera um esforço para agradá-la e ela lhe daria um crédito, por isso.
— Venha comigo — ela ordenou, pegando a mão forte e puxando-o até a
beira do riacho, disposta a ai? tornar amiga daquele homem, não importava
quão rudes fossem suas maneiras.
Ele abaixou-se, sentando-se, forçando gentilmente Mairi a acompanha-
lor Uma vez acomodado, relanceou os olhos para a água, olhou-a com uma
expressão de safiadora o começou a tirar a botas.
Intrigada com aquela sugestão inesperada, tão contrá ria ao que se
espera de unia moça de boas maneiras, ela aceitou o desafio e fes o mesmo,
arrancando ou sapatos e jogando-os, por sobre os ombros, na grama. Em mo
mentos, estavam sentados, lado a lado, os pés descalços lentamente brincando
na água fria e límpida do riacho. — Ah, isto aqui é uma delícia, não ê? — ela
comen tou, deitando-se sobre o luxuriante tapete verde. — Você tem um lugar
assim, perto de sua casa? Algo espacial para você, como é este, para mim?
Embora não respondesse, ele reclinou-se sobre um dos cotovelos, quase
se deitando sobre ela e fixando aquele olhar ávido sobre seu rosto. Por um
instante, Mairi pensou que ele fosse beijá-la, mas ele apenas apanhou as flores
que ela ainda trazia na mão. Escolheu uma.
— A beleza -— ele murmurou, em um tom rude, ro çando as pétalas em
seu nariz; — está aqui — continuou, tocando-lhe os lábios com a flor, — Aqui
— repetiu, pas sando a haste em seu pescoço até a beirada da gola, Escondida
— ela provocou, escorregando o pequeno botão pelo tecido que lhe encobria os
seios e o ventre.
Um calor estranho espalhou-se por todo o corpo de Mairi, Mais do
qualquer coisa, queria ver de novo aque le sorriso. Ela conseguira fazê-lo
colocar aquela ex pressão encantadora no rosto, antes, no estábulo. Con
seguiria , de novo?
— Um beijo? — ela murmurou, com um ar de timidez, adotando o hábito
peculiar de falar em poucas palavras. Como respostat ele simplesmente
pousou a boca so bre a dela. Depois do uma leve pressão dos lábios, ele
a induziu, com a língua, a recebê-lo. Ela nunca fora beijada assim, na
vida. Que pena, pensou Mairi, des frutando intensamente da sensação. Elo
pôs-se a explo rar todos os cantos, a língua contorcendo-se, suavemente,
roçando-lhe os dentes, os lábios, despertando nela uma onda de prazer. Ela,
então, respondeu, da mesma forma.
Encontrou a abertura quente e úmida de sua boca, provando de seu calor
que, como o dela, aumentava. Adorando cada investida, Mairi nem pensou em
se re trair. As línguas iam e vinham com uma ânsia que enviava uma triiha de
fogo até seu ventre, um calor abrasador que ela mal conseguia controlar. Seu
coração disparou, latejando em seus ouvidos, enquanto fagu lhas dançavam na
linha semicerrada de seus cílios.
Quando ele jogou a cabeça para trás, respirando fun do como ela Mairi
pestanejou, deslumbrada, perce bendo que parte alguma de seus corpos, a
não ser suas bocas, havia se tocado. Se ele conseguia despertar um tal tipo de
sortilégio apenas com os lábios e a língua, o que mais faria com o resto? Ela
deixou es capar um longo suspiro e fechou os olhos, imaginando.
—-Você me deseja? — ele perguntou, E parecia falar serio…
— O céu é azul? — ela retrucou, secamente, os olhos ainda fechados, um
sorriso malicioso estampado nos lábios, — O que acha, seu bobo?
Ele riu. Que som estranho, Mairi pensou. Alto de mais e brusco, como se
ele visse raramente, e aquilo o houvesse pegado de surpresa. Gostou, porem,
de sua risada, mais porque o fizera expressar seus sentimen tos. Certamente
um homem poderia amar uma mulher que o fizesse rir, especialmente se
tivesse tido poucos motivos para tanto em sua vida.
Providenciaria para que risos não lhe faltassem, decidiu Mairi naquele
instante. Risos e filhos. Ambos, em abundância. Riu também, deliciada pelo
pensamento.
Ele parecia mais relaxado agora, mais confortável em sua presença
depois do beijo e da pequena brincadeira.
Por aquilo que pareceram horas, ficaram ali, lado a lado, os dedos dela
entrelaçados aos dele. Uma vez ou outra, ele voltou a cabeça para Fitá-la,
algumas vezes com um ar de ironia, outras com satisfação, porém não
trocaram nem sequer uma palavra. Ela detectou uma certa ansiedade sob a
calma que ele aparentava, corno se pensasse era falar alguma coisa, mas se
contivesse.
Que mistério era aquele homem! Por que não fazia perguntas a eta ou
falava sobre si mesmo? Mairí an siava por saber sobre o lar que ele planejava
lhe oferecer e o caminho que fariam para chegar a seu castelo, nas Terras
Baixas.
Ela permaneceu esperando que ele dissesse alguma coisa primeiro, para
não parecer tão atrevida quando o fora na noite anterior. Ele, porém, parecia
feliz em simplesmente estar deitado ali, banhado pelos raios errantes que se
filtravam pela folhagem da vegetação sobre suas cabeças.
A despeito de sua ansiedade por saber mais a respeito dele, havia muito
a deduzir dessa reflexão silenciosa, Mairi pensou, consigo mesrna. De alguma
forma, sentia uma espécie de paa que se espalhava sobre os dois: como se
houvessem estabelecido uma comunhão de espíritos. E isso só podia uni-los
melhor no casamento, um tal bem estar juntos, depois de um conhecimento
tão breve.
Sentiu-se mal por tê-lo julgá-lo com precipitação na noite anterior e por
tê-lo tratado com desprezo em um daqueles seus ataques de temperamento.
Seu pior de feito era fazer julgamentos precipitados. Ele não era o primeiro o
sofrer com isso, ruas ela poderia tentar remediar as coisas.
Provavelmente ele estivesse apenas cansado e um tanto desnorteado
pela longa viagem. E era muito tímido, é claro. Mairi estava firmamente
convencida de que esse era o grande problema do barão. Nada que ela não
pudesse mudar, naturalmente. Qualquer um que a conhecesse po deria jurar
que Mairi Maclnness não guardava nem se quer um resquício de timidez em
seu comportamento.
De repente, ele levantou-se, colocou as botas e apa nhou Os sapatos
dela. Enquanto ela os calçava, foi bus car a cesta que ainda continuava presa à
sela da égua.
Silenciosamente, falando apenas com o olhar, eles comeram, partilhando
a refeição e imaginando os pen samentos um do outro.
Ele estendeu-lhe uma fatia de queijo, Mairi inclinou-se e prendeu a ponta
dos dedos dele com os lábios, ao levar o pedaço aos. lábios. O faiscar daqueles
olhos acinzentados reacendeu o fogo que o beijo dele havia iniciado, dentro
dela. Ela o sufocou, no entanto. Havia ainda os votos de núpcias a fazer e ele
não devia julgá-la uma libertina.
Contudo, que estranha e íntima refeição estava sen do aquela. Àgora que
haviam se beijado, os olhos de MacBa.in falavam claramente daquilo que
preferiam estar fazendo, embora com uma certa reserva. Mairi decidiu
acreditar que ele agia assim em respeito a ela e o reverenciou por isso,
embora lamentasse o fato.
— Devíamos voltar -— disse, lentamente e com re lutância, quando
finalmente terminaram a refeição.
Ele concordou e pòs-se a ajudá-la a recolher a toalha, pratos e copos, e a
colocá-los na cesta. Então, levantou-se e estendeu-lhe a mão.
No instante em que ela ficou de pé, ele a puxou para seus braços e
envolveu-a com sua força, Mairi podia sen tir o calor de seus lábios roçando-
me o alto da cabeça.
Nunca se sentira assim Ião protegida. E desejada, também. Podia ouvir-
lhe as batidas do coração contra o ouvido, quando recostou a cabeça contra
seu peito. E teve certeza, naquele instante, de que poderia ficar assim, pela
eternidade, e ser feliz.
O som de um trovão distante dispersou seus pensamentos. Estranho.
Não chovia havia dias, e ela não vira nuvens no céu.
De repente, ele ficou tenso, as mãos agarrando-a pelos ombros como se
fossem empurrá-la para longe. Ao erguer os olhos, em uma pergunta
silenciosa, ela percebeu que MacBain parecia ter entrado em estado de alerta,
imóvel e em expectativa, como se pressentisse perigo.
Suas narinas se dilatavam, como se farejasse algo. Então, ele a fitou.
— Ouviu?
— Só um trovão — elã retrucou, dando de ombros. — Bem longe, acho.
A chuva não vai nos pegar tão cedo, mas…
Ele colocou um dedo sobre os lábios dela, mandan do-a calar.
— Escute.
Mairi obedeceu, aguçando os ouvidos e procurando distinguir o ruído
distante.
— Não é trovão! — murmurou, aflita, agarrando-se aos braços dele. O
som não diminuía ou se alterava, era constante e crescia. — Patas de cavalo!
— ela gritou, correndo para as montarias, —Um ataque! Venha, precisamos
nos apressar!
MacBain ultrapassou-a. Montou o cavalo de um salto e sacou a espada.
— Espere aqui! — ordenou, fazendo a montaria girar e partindo em um
galope.
Mairi puxou sua égua para perto da pedra que sem pre usava para
montar, quando vinha até ali. Em um instante, estava atrás de MacBain,
mantendo-se em uma cautelosa distância para o caso de ele voltar-se e
mandar que ela retornasse à clareira.
Mesmo a distância, ela podia ouvir os gritos e berros e o retinir de
metais. Espadas!
Ao chegar mais perto, Mairi percebeu que aquele não era um ataque de
vizinhos para surrupiar umas poucas cabeças de gado de seu pai. Craigmuir
estava sob um sério ataque.
Rob cruzou os portões abertos de Craigmuir e en controu, lá dentro, o
próprio inferno.
Incapaz de distinguir amigos de inimigos em meio à confusão, ele
procurou descobrir onde estavam seus ho mens. Markie jazia esticado no chão,
um buraco aberto no peito, os olhos vazios olhando para o céu. A poucos
passos, estava Elmore, o corpo robusto mergulhado em uma poça de sangue.
Não viu Newton. Nem Andy Miúdo.
Seu olhar rápido deteve-se em um manto azul escuro que esvoaçava
como asas sobre o terreno perto do poço. O lorde!
MacBain esporeou o cavalo e avançou em meio aos atacantes,
derrubando-os com golpes de espada. Uma figura miúda passou por ele e
rumou para o corpo caído.
— Mairiiiii! — gritou Rob, pulando do cavalo. Maldita mulher! Ele não
ordenara que ela ficasse no bosque? Um inimigo atacou-o no momento em que
agarrava Mairi pela cintura. Bem a tempo, ele desviou-se para o lado e ergueu
a espada, atingindo o oponente. A lâmina do atacante passou a poucos
centímetros do rosto de Mairi.
Ele rugiu, retirando a espada do corpo sem vida, furioso e aflito para
levar a noiva a um lugar seguro. Em desespero, ele recuou até a parede do
poço, arras tando-a consigo.
— Fique aqui! — ordenou.
Mairi lhe desobedeceu mais uma vez, desvencilhou-se e correu para o
pai, que lutava para ficar de joelhos. Rob livrou-se de mais um homem que o
teria cortado de cima abaixo, se não fossa rápido, et então, foi juntar-se a ela.
Praticamente arrastando o lorde, ele refugiou pai e filha a um canto, entre a
amurada do castelo e a ar maria, mantendo guarda contra qualquer um que pu
desse feri-los.
Viu, de relance, Andy Miúdo no parapeito da muralha, brandindo um
punhal curto com um ar de vingança. O rapaz acenou para ele e apontou para
um monte de corpo amontoados perto do portão. Ergueu a mão o rodou o
punho, em um sinal que usavam para o nome de Newlon, dada a sua
excelência com um forcado, Então, Andy virou a palma para cima e depois
para baixo. Newton, morto. Maldição!
Rob fez, um gesto, indicando que compreendera. Do contingente que
viera com ele a Craigmuir para buscar a noiva, apenas ele e Àndy haviam
restado. Mal podia esperar para tomar sua nojvat deixar aquela terra
amaldiçoada, e ir-se dali.
Os torneios não lhe haviam ensinado nada? Ele se afastara para longe
demais, esse era o problema. Tor nara-se um homem sem fibra. Como o rapaz
gentil que um dia fora, abrigando no peito aquela profunda reve rência pela
vida contra a qual seu pai o alertara, des vendando-se para aqueles que
poderiam fazer-lhe mal. Trouville o encorajara a viajar pelo continente com
Henri, e, em consequência, Rob estivera ausente quan do o jovem rei da
Inglaterra havia invadido a Escócia, dois anos atrás. Agora, Rob desejava ter
estado lá. Faltava-lhe experiência em batalhas.
Aqui, não havia jogos de guerra com regras estabelecidas pelo marechal
e um clarim para indicar o final,
Homens estavam morrendo! Mairi tinha escapado da morte por muito
pouco e ele mesmo quase mal pudera manter sua vida. Embora não temesse a
morte, tam bém não lhe daria as boas-vindas.
Chegara o momento de fortalecer-se, de novamente banir qualquer
empatia ou simpatia que o pudessem marcar como um fraco. De ser o
guerreiro para o qual fora treinado de forma tão dura. Para matar e matar, ou,
caso contrário, ser morto.
Rob respirou fundo e observou a batalha, procurando identificar
características nos combatentes. Os homens que reconheceu da noite anterior,
no hall de Craigmuir, pareciam ura pouco mais refinados que os brutos enor
mes, cabeludos e seminus, que os atacavam, Esses invasores eram um bando
de esfarrapados e sujos. E, no momento, estavam ganhando a batalha.
Rapidamente, ele voltou-se e ergueu o lorde ferido, colocando-o de pé,
— Entrem! — gritou para Mairí, Com um olhar rá pido, depois de verificar
que a armaria estava vazia, empurrou-a e ao pai, para dentro. — Feche a
porta!
Julgando que os dois estariam a salvo ali, mais do que em qualquer outro
canto naquele lugar esquecido por Deus, Rob respirou fundo, de novo, e partiu
para o combate.
Quando o retinír de metais e os gritos finalmente diminuíram, Mairí ouviu
batidas frenéticas na porta. Aflita, ela espiou por uma freata entre as tábuas e
logo abriu a porta. O jovem Davy, o escudeiro de seu pai, entrou correndo,
— O senhor viu meu lorde? — perguntou o rapaz, caindo de joelhos no
chão da armaria, ao lado do amo. - O senhor viu?
— Então, acabou? — indagou Mairi, com um ar ausente.
— Sim! — retrucou Davy, a voz em um misto de temor e respeito. — O
bando recuou e fugiu. Lorde MacBain partiu atrás deles. Pelas barbas do
Senhor, ele ó implacável! — Então, seu olhar fixou-se na ferida de seu amo, —
Isso está muito feio, senhor!
Mairi o empurrou para fora.
— Traga alguns homens. Precisamos levar meu pai para o castelo. Aqui
está muito escuro para tratar desse ferimento. — Mairi colocou as duas mãos
sobre a cutilada profunda na barriga de seu pai. — Ande logo, Davy! — Seu pai
podia não passar daquela noite, ela reconheceu, mas não iria desistir, —
Aguente firme, pai — murmu rou, lutando para instilar confiança na voz.
O débil sorriso do lorde a preocupou mais que uma dura reprimenda.
Uma de suas mãos enormes agarrou-a pelo punho.
— Filha, vá… embora de Craigmuir, antes que Ra nald descubra-a aqui,
quando voltar.
— Ranald? — O horror que Mairi sentiu fez com que esboçasse um
sorriso de desgosto. — Sim, eu devia ter imaginado que isso era obra dele —
resmungou. — Maldito patife! Aquele bastardo covarde não usou sua própria
espada hoje, eu posso lhe garantir!
— Não, ele deve estar em algum outro lugar, para que possa parecer
inocente. Porém, voltará assim que tenha ouvido que estou morto, filha. Ele é
meu suces sor, Deus lhe esfole a pele.
Mairi ergueu a cabeça, em desafio.
— Podemos defender Craigmuir das pretensões dele, de alguma forma.
— Não, ele ocupará meu lugar aqui, Mairi. O clã decidiu isso, anos atrás
— ele argumentou ofegante. — Porém, ele não terá minha menina. Eu lhe
disse isso… nosso parentesco é muito próximo.
— Há razão maior para não aceitá-lo! — exclamou Mairi. — Eu morrerei
primeiro!
O lorde fechou os olhos e sorriu.
- Case-se com MacBain esta noite, Mairi… e vá embora, antes que seja
tarde demais.
- Psiu! — retrucou ela, para fazê-lo calar-se. Ela iria se casar, porém não
partiria. — Ranald mandou aqueles homens para semear a morte, pai. Ele deve
ser punido por isso, não receber Craigmuir como prémio!
- Pode ser, mas ele… ele conseguirá, apesar disso insistiu o lorde. —
Case-se e vá embora, minha corcínha. Por favor!
— Como queira, pai.
Ela não ia partir, é claro. Jamais abandonaria seu pai quando ele jazia ali,
mortalmente ferido. Nem iria desertar de Seu lar, entregando-o como um
bónus para seu primo bastardo. Contudo, iria desposar MacBain tão cedo
quanto fosse possíve] trazer o padre. Não apenas para satisfazer a vontade de
seu pai. Era esse também seu desejo.
Ranald Maclnness jamais poderia reclamá-la como esposa, nem que ela
tivesse que se casar com o próprio demónio para impedi-lo. Felizmente, não
precisaria chegar a tanto. Tinha um marido à mão, graças às precauções de
seu pai.
Quando os homens, imundos da batalha e tristes pelas perdas que
haviam, sofrido, levaram o lorde para o hall, Mairi o colocou tão confortável
quanto possível. Alguém trouxe uma pilha de lençóis e peles de animais de sua
cama e colocou-as sobre uma das longas ban cadas de carvalho, usadas para
as refeições.
Aquilo pareceu a Mairi como um caixão de defunto, o que, ela percebeu,
logo seria. Ela havia estancado, por fim, a hemorragia, mas não a tempo para
salvá-lo. A túnica, os lençóis que o cobriam, as mangas do vestido dela,
estavam encharcados de sangue. Logo, seu pai não pertenceria mais a este
mundo, ela sabia.
— Estou com você, pai — murmurou. — Estou aqui.
O padre Ephriam havia chegado e administrado os ritos. Agora, vagava
por ali, rezando silenciosamente por seu velho amigo e senhor. Tinha sido um
duro
dever para ele.
Onde estava MacBain? Mairi implorava aos céus, no íntimo, que ele
chegasse a tempo, Seu pai des cansaria em paz se pudesse testemunhar o
casamen to e soubesse que pelo menos ela cumprira uma parte de seu pedido.
Era o mínimo que podia fazer por ele, além de lamentar sua perda e, depois,
vingar sua morte.
Isso, jurou, ela faria. Era seu dever e o desejo mais profundo de seu
coração. Ranald Maclnness iria morrer de modo cruel pelo que fizera naquele
dia. Ela podia visualizar seus cabelos negros esvoaçando ao vento, aquele seu
sorriso permanentemente congelado em sua face, quando apontara a cabeça
sobre a colina, fora doa portões de Craigmuir.
Uma hora mais tarde, quando ela já quase desistira, MacBain entrou,
seguido por vários dos homens de seu pai. Agora não mais com a aparência de
um noivo, ele trazia uma expressão selvagem no rosto e apre sentava-se como
o vencedor que provara ser. Seu pai o escolhera de forma sábia para ela. E
para Craigmuir. Ao ver que MacBain parava a distância e perma necia em
silêncio, Mairi chamou-o para mais perto.
— Devemos nos casar agora — ela anunciou, fri sando cada palavra,
temendo, por alguma razão obscura, que ele pudesse objetar.
Ele limitou-se a fitá-la, com uma interrogação nos duros olhos
acinzentados.
Meu pai está morrendo. Ele quer me ver casada e em segurança com
você, sem demora. Eu também o desejo. o barão voltou-se para o padre, que
fez um gesto, Concordando. Das mangas, padre Ephriam retirou os
pergaminhos preparados antes da chegada de Mac Hnin, e estendeu-os ao
noivo.
Em instantes, eles haviam assinado os papéis, e o contrato oficial estava
firmado. Mesmo sem os votos falados, eram marido e mulher. Tudo o que
faltava eram as palavras de aceitação e, mais tarde, a consu mação. Mairi
agarrou a mão de MacBain, ansiosa para prosseguir com a cerimónia, pelo bem
de seu pai.
O lorde os observava da bancada sobre a qual jazia. com grande esforço
para suprimir as lágrimas, Mairi sor riu para ele, dizendo-lhe, com o olhar,
quanto o amava.
Não importava que ele tivesse sido um velho pai rabugento que a
censurara muito mais do que a elogiara. Ela podia ver seu carinho agora muito
mais claramente do que nunca, ante a preocupação que tivera para com ela.
— Lorde Robert Alexander MacBain, deseja tomar esta mulher, Mairi
Maclnness, como esposa? —- proclamou o padre.
— Sim — respondeu o lorde, em um tom rouco, apertando gentilmente
a mão dela na sua.
Mairi notou as manchas de sangue nas mãos de ambos e estremeceu de
pavor. Aquilo lhe pareceu um mau pres ságio. Não, disse a si mesma, esse
casamento seria feliz. O sangue derramado iria uni-los inexoravelmente.
Observou o barão tirar um anel de ouro do dedo mínimo e enfiá-lo em
seu dedo anular. Parecia um círculo de fogo, quente do calor da batalha, úmido
e engraxado de suor e sangue que ele exudara por ela e pelos dela. Ela fechou
o punho para mantê-lo no lugar. Um punho fechado, sinal de uma vingança pro
metida que devia ser honrada.
— Lady Maíri Maclnness, deseja tomar esto homem como marido?
Ela ergueu os olhos para MacBain, Robert, como acabara de saber, e
percebeu um ligeiro olhar de apreensão. Temia que ela pudesse dizer não?
— Eu desejo— ela declarou, e concordou com a cabeça, para melhor
enfatizar. Não deixaria qualquer dúvida. Era sua vontade. Era a esposa desse
homem, agora. Tão Logo fosse humanamente possível, iria certificar-se de que
ninguém pudesse alterar essa condição.
Estranho e atemorízante como ele era, o lorde sabia Lutar e fizera tudo
que pudera para salvá-la e a seu pai, durante o ataque. No momento, Mairi.
não conse guia pensar em melhor recomendação do que essa, para um
marido.
Seu novo lorde podia não ser das Terras Altas, porém era um escocês de
verdade. E quando o casamento houvesse sido sacramentado na cama, ele
seria sua família, Então, não poderia fazer mais nada do que comandar os
homens do seu pai, dando-lhe suas ordens e conduzindo-os à vingança.
Rianald Maclnness devia morrer peias mãos de Mac Bain, e seu marido
tornar-se-ia o senhor do Craigmuir. Ela tomara essa decisão. E nenhum
homem, nem mesmo seu pai, jamais fora capaz de dissuadir Mairi Maclnness,
uma vez que ela houvesse decidido por um curso de ação.
Pela noite afora, Roh ficou sentado, ao lado de Mairí, próximo ao leíto de
morte do lorde. Vez ou outra, ela se inclinava e arrumava as cobertas,
acariciava a testa do pai e segurava-lhe a mão. Sua força e coragom impres
sionavam Rob, Nem sequer por um momento ela chorou pelo que estava por
vir, embora soubesse com certeza,
Uma única vez ela pediu desculpas para subir e foi por pouco tempo. O
suficiente, contudo. O velho lorde ergueu-se e gaguejou ordens expressas a
Rob, dizendo-lhe que tirasse Mairi dali ao primeiro clarão do dia. Ele falava com
dificuldade, embora formasse as palavras claramente, com esforço.
- Ranald a deseja… e ao meu lugar, aqui. Não importa o que Mairi diga,
quero que a pegue e partam.
Rob fez um gesto de concordância, compreendendo,e apertou a mão
trémula que o lorde lhe oferecia,
- Deixe-me com meus homens — instruiu Macln ness, — Viajem logo e
rápido. E cuidem da retaguarda.
Rob não perguntou porquê. Não precisava. Qualquer homem que
desejasse lady Mairi não abriria mão dela com facilidade, O herdeiro de
Maclnness iria insistir. Em seu lugar, Rob certamente faria o mesmo. A mulher
era um tesouro pelo qual valia a pena lutar.
— Eu lhe imploro, não descanse até que minha garota veja as Terras
Altas pela última vez. Nunca mais a traga devolta. Prometa que honrará
meu.último desejo! Jure!
Que alternativa restava a Rob a não ser empenhar sua palavra? Um
derradeiro pedido era sagrado, afinal E o lorde era o pai de Mairi, e agora
também o seu, pelo casamento.
Levando a mão para a espada, Rob empunhou-a e ergueu-a para que o
velho a visse. Inclinou a cabeça e pousou, os lábios contra o cabo cravejado de
jóias e, então, elevou-a um pouco mais, como se jurasse sobre a cruz formada
pelo punho e a lâmina.
— Eu juro — declarou.

Capítulo III

Mairi desceu a escada e retomou seu lugar de vigília, ao lado do pai. Rob
não lhe falou da promessa. Na manhã seguinte a levaria para longe do único
lar que ela conhecera. E não seria uma partida tranquila. Ela teria uma
despedida ainda mais triste a suportar antes que a hora chegasse. Ele sentou-
se ao lado dela, no banco, vendo-a inclinar-se, os cotovelos apoiados na mesa
onde seu pai jazia.
De repente, Mairi endireitou-se e deu um pulo, como se expulsasse o
sono.
— O que foi? — perguntou Rob.
— Você ouviu? O galo cantou — ela murmurou. Ele quase não
compreendeu as palavras. — É de manhã.
Lorde Maclnness voltou a cabeça e sorriu, em um adeus a ambos.
— Guarde-a… em segurança — disse, e exalou seu último suspiro,
parecendo feliz de se entregar à paz da morte.
Nobre até o fim, pensou Rob, admirando o homem por enfrentar a morte
com ele o fizera. Não com suspiros e lamentos. Apenas com um sorriso e uma
ordem visando à segurança da filha. Qualquer um ficaria or gulhoso de morrer
assim, e Rob viu esse orgulho re fletido.nas faces dos homens de Maclnness.
Os delicados dedos de Mairi tremiam quando ela fechou os olhos sem
vida de seu pai. Exaustão, dor e pesar tinham empalidecido suas feições, de
um rosado natural, e tornado seu. corpo rígido de uma tensão que ele gostaria
de dissipar. Seria melhor que ela liberasse sua angústia e se conformasse.
Não, ele pensou, recriminando a si mesmo. Ela não se conformaria
mesmo que chorasse por dias ou meses. Ninguém abandonava um ser amado
para a morte tão facilmente assim.
Rob podia apenas imaginar a terrível e imensa tris teza que sentiria para
sempre se ele perdesse o homem que tratava como pai.
O sentimento que tinha para com seu pai verdadeiro era completamente
diverso. Se, aos dez anos de idade, Rob soubesse como, teria mandado
realizar uma cele bração pelo passamento daquele homem, por ele mes mo,
por sua mãe, e por todos os outros em Baincroft que haviam caído sob a
crueldade daquelas mãos domi nadoras. Mesmo agora, tantos anos mais tarde,
ele não poderia suportar chamar aquele homem de seu pai.
Então, porém, o conde de Trouville havia chegado da França para casar-
se com a viúva. Não podia existir homem mais perfeito, Rob havia decidido
logo depois de conhecê-lo. Ainda hoje acreditava que assim fosse.
Em todas as coisas, Rob lutava diariamente para basear-se no esplêndido
exemplo do conde de como um nobre cavaleiro deveria ser. Ele o chamava de
pai já nessa época, e sempre pensava nele como tal. O filho de Trouville,
Henri, era irmão de Rob, pelos laços do coração. E a morte do conde
certamente iria esmagar seus filhos com uma dor além do suportável.
Não, ele não podia esperar que Mairi banisse sua tristeza para longe em
um curto espaço de tempo.
Quem sabe ela jamais o fizesse, já que ela e o velho lorde obviamente se
amavam verdadeiramente.
Em oposição direta a sua disposição anterior em demonstrar simpatia,
Rob aproximou-se por trás e segurou-a pelos braços, puxando-a para longe do
corpo de seu senhor.
Embora Mairi resistisse, ele fez com que ela se vol tasse e fitou-a,
envolvendo-a nos braços.
— Chore agora — sugeriu.
Por um instante, ela lutou, empurrando-o e esmur rando seu peito com
toda a força que a proximidade entre os dois permitia. Então, de súbito, caiu
sobre ele, os ombros delicados sacudindo-se com os soluços.
— É melhor —■ Rob murmurou, contra os cabelos sedosos e macios que
haviam escapado de suas tranças. Correu as mãos por suas costas,
acarinhando-a e con fortando-a como a uma criança em aflição.
Por sobre sua cabeça, ele lançou um olhar sombrio para todos em torno,
até que se afastassem, para per mitir a Mairi privacidade em seu pranto.
Esperou pacientemente até que sua esposa se re compôs, reprimindo o
choro. Então, a tomou pelos ombros e empurrou-a gentilmente até poder ver-
lhe o rosto, devastado pela dor. Tão adorável era ela, mesmo nos estertores do
luto.
Rob roçou-lhe a face com o dedo.
— Precisamos ir agora — disse, esperando que suas palavras soassem
gentis como ele pretendia.
—- Ir? — ela repetiu, os olhos arregalados procurando os dele, em busca
de entendimento.
— Sim. Agora. Vamos para Baincroft. Ela afastou-se dele, horrorizada.
— Não, não podemos. O que será de papai? Quase desesperada, ela
voltou ao banco onde o corpo jazia. Agarrou a manga ensanguentada da túnica
do velho lorde.
- Eu prometi a ele —- explicou Rob, pronunciando cada palavra em tom
claro e firme, disposto a vencer qualquer argumento, sabendo que ela iria
agarrar-se a qualquer mostra de ternura para conseguir o que queria. Estava
incerto se podia negar alguma coisa a ela, naquele estado, a menos que se
resguardasse de nuas súplicas. — Iremos agora — repetiu.
Mairi lançou-se sobre ele, empurrando-o pelas costas com as mãos
espalmadas.
— Vá então! Saia daqui! Covarde! Se pensa que vou partir…
0 resto de suas palavras se perdeu quando ele a pegou pelos braços e
prendeu-lhe os punhos, com a longa borda solta de seu manto.
Dava-lhe pena restringi-la, ainda que fosse neces sário para sua própria
proteção. Mairi nunca iria partir de boa vontade, porém devia fazê-Io, não
obstante isso. Acima de tudo, ele devia mantê-la em segurança, como seu pai
havia pedido.
Com Maclnness morto e a partida de Mairi, prova velmente não haveria
mais ataques ao castelo e a seus habitantes. O sucessor havia instigado a
primeira invasão. Agora, ele simplesmente chegaria e assumiria o comando,
como o novo lorde. Então, certamente iria atrás de Mairi. Que homem não o
faria?
Rob teria que matá-lo, então, decidiu. Embora re centemente tivesse
descoberto que o afligia tirar uma vida, nesse caso ele não iria se importar.
Soltou um gemido quando a ponta do sapato de Mairi atingiu-lhe a
canela. Ela estava tornando aquilo muito mais difícil do que precisava ser,
contudo ele tinha que admitir sua tenacidade.
A raiva por ter de arrastá-la para longe poderia até mesmo pôr de lado
sua tristeza por algum tempo, ele decidiu, justificando sua necessária rudeza.
Deixá-la-ia pensar que ele era covarde e sem coração, se isso ajudava. Mairi
podia esbravejar e se enfurecer por todo o caminho até Baincroft, e isso iria
ser ótimo para ele. Melhor ainda que ter que suportar seu choro durante a
viagem. Sim, isso lhe serviria para superar os primeiros dias, os piores.
Seus gritos e pragas, quando ele inclinou-se e ergueu-a sobre os
ombros, deviam estar assustando as montarias nos estábulos lá fora, pensou
Rob. Ele podia sentir o ressoar zangado de sua voz no lugar onde o tórax fazia
contato com seus ombros, porém ele era imune a sons como estes, graças aos
céus.
Rob descobrira umas poucas vantagens em ser surdo com o decorrer dos
anos. E essa era uma que, defini tivamente, devia ser incorporada à lista.
Mairi parou de debater-se quando seu marido colo cou-a na sela e
sentou-se à montaria, atrás dela. Tinha o coração em agonia ao ver a confusão
que aquela partida precipitada causava aos habitantes de Craigrauir que ali
estavam, a observá-los. Não havia nada que ela pu desse dizer a eles para
explicar uma tal deserção. E nada que eles pudessem fazer, para ajudá-la.
O escudeiro de seu pai observava a tudo, com lágrimas nos olhos, Pobre
Davy.
O que devia ele e o resto do povo pensar de seu marido, forçando-a a
abandoná-los à mercê de Ranald? E deixar seu pai para ser enterrado no
túmulo da família, sem nem mesmo ouvir uma missa ser rezada em sua
homenagem?
— Oh, por favor! Por favor, fique — ela implorou inutilmente. MacBain
parecia que simplesmente colo cara uma trava na língua. Esporeava a
montaria e se dirigia aos portões que seu comandado tinha aberto.
Mairi mantinha-se tão firme quanto possível, sentindo o calor do corpo
de Rob contra suas costas, o braço dele rodeando-a pela cintura como um laço
de ferro.
Ela ergueu as mãos, ainda amarradas com o cordão de seda e esmurrou-
o em um último protesto. Sua única recompensa foi o machucado causado
pelos elos de sua cota de malhas.
As lágrimas encheram-lhe os olhos e escorreram por seu rosto como um
riacho quente. Ela conteve a res piração para acalmar a aflição e o pânico. Seu
desejo por aventuras tinha se esvaído, em face à realidade.
Em uma montaria com suprimentos, o homem de Mac Bain cavalgava
atrás deles, conduzindo pelas rédeas ã égua de Mairi, sem a sela. Ele havia
amarrado sacolas cheias de comida de ambos os lados do animal que mon
tavam. Ela podia ver os contornos dos pães. Sua égua carregava dois pacotes
estranhos assim como um baú de seu pai, contendo o que ela supunha ser
suas roupas.
Uma prega de seu manto de lã vermelha escapara do pacote, apontando
para fora como a língua de uma criança impertinente.
Mairi inclinou-se para o lado e espiou para trás. Viu que os portões de
seu lar se fechavam. Esgotada, não conseguiu nem deixar escapar um suspiro.
Sentia-se miserável.
O braço que MacBain fechara em torno dela apertou se, e ele teve a
audácia de dar-lhe um tapinha nas pernas, corno se a confortá-la. Ela
enrijeceu o corpo e recuou, jogando o quadril contra a calça grossa que ele
usava e teve a satisfação de ouvi-lo inalar o ar, de dor.
- Vou matá-lo por isso, MacBain! — ela anunciou.
Ele incitou o cavalo a um galope assim que dobraram uma curva da
estrada e entraram pela floresta. Então, Mairi não teve mais fôlego para
praguejar. Rob inclinou-a para frente, sob seu corpo, para evitar os galhos
mais baixos, fazendo-a encostar o rosto no pescoço sua do do cavalo. A crina
do animal raspava-lhe a face.
Junte-se a injúria à indignidade, por que não?, pen sou com um lampejo
de fúria. O calor do ódio secou-lhe as lágrimas e ajudou-a a definir um
objetivo.
— Você pagará por isso, MacBain! Eu o farei la mentar profundamente
este dia!
Rob nem se quer tomou conhecimento de sua amea ça. Rumava do sul
para sudoeste em um passo rápido e firme, forçando-a a afastar-se de seu
dever como uma filha de um senhor das Terras Altas, em direção a um futuro
incerto.
E pensar que ela abraçara esse destino de livre vontade não mais que
poucas horas atrás! Se tivesse sabido apenas que MacBain iria trai-la dessa
maneira e fazê-la quebrar sua promessa de vingança, ela teria se negado a
casar-se com ele e o mandaria para o inferno. Iria defender Craig muir contra
as investidas de Ranald e, quem sabe, matar aquele ser ignóbil com as
próprias mãos!
Por que ela sempre agia sem pensar duas vezes? Suas deduções sobre
MacBain tinham sido erradas e agora ele a conduzia para um caminho
desconhecido. Pobre Pai. Pelo menos, ele morrera acreditando que ela Mairi
mostrara obediente uma vez na vida. Deus do céu, ela se equivocara, fazendo
isso!
Mais tarde, quando chegaram a um riacho, Rob julgou que já tinham se
afastado o bastante de Craigmuir e podiam parar por algum tempo, dar água
aos cavalos e permitir que Andy Miúdo descansasse.
Quando fora acossado na passarela da muralha pelos Invasores, o pobre
coitado havia levado uma pancada nas costelas, que o deixara seriamente
machucado, a despeito de sua generosa camada de gordura. Cavalgar naquele
estado devia ser doloroso, na verdade, e não era uma recompensa por sua
valorosa dedicação. Rob sentiu que devia descansar um pouco, também.
Certamente sua nova esposa não seria tola a ponto de se arriscar a
voltar para Craigmuir sozinha, mas ele pretendia mantê-la sob os olhos. Sabia
que Mairi linha detestado deixar o pai imediatamente após sua morte, e Rob
solidarizava-se com isso. Contudo, o velho lorde tinha razão. Mairi devia estar
longe, antes que e sucessor chegasse.
Aquele primo devia estar extremamente impaciente para ter ambos,
Craigmuir e sua senhora, para arqui tetar um ataque tão terrível. Ele seria
lorde, algum dia, Impedir o casamento de Mairi devia ser o objetivo de seu
ato. Rob formara uma impressão desagradável 0 imediata de Ranald
Maclnness, ao lhe ser apresen tado, e não tinha ficado surpreso ao saber que
ele es tava por trás daquele ataque ignóbil.
Perturbava-o ter de deixar a casa de Mairi e seu povo sob uma tal
liderança, mas não havia nada que ele pudesse fazer com apenas um homem
sem condições a seu lado e a própria lei das Terras Altas contra si.
Ele não poderia salvar Craigmuir do novo lorde no momento, porém, a
mulher, sua esposa, ele iria proteger até seu último suspiro, Não se arriscaria a
dei xa-la viúva para se casar com um homem mesquinho que não dava valor à
vida de seus futuros súditos e ao clã. Mais tarde, assim que Rob houvesse
colocado Mairi em segurança, em Baineroft, ele poderia voltar com mais
homens e colocar as coisas em seus devidos lugares, para o povo dos
Maclnness.
Dizer isso a ela não tinha serventia no momento, contudo. Mairi não
estava pronta para ouvir seus pla nos. Em sua ânsia de uma açao imediata
contra seu primo, pela traição, ela não receberia de bom grado a necessária
demora.
Rob desmontou e estendeu os braços para ajudá-la a descer. Ela permitiu
que ele o fizesse, fitando-o com fúria quando já estava no chão,
— Solte-me, seu demónio! — ordenou, erguendo as mãos atadas a ele.
Rob desamarrou-a, com um jeito indiferente e deu um passo atrás,
apontando para a água.
— Beba e refresque-se.
Ele a observou arregaçar as mangas ainda cobertas com o sangue seco
de seu pai e viu o esforço que lhe custou reprimir uma onda de pesar. Como
ele adoraria abraçá-la de novo, confortá-la, suavizar sua raiva e explicar mais
detalhadamente por que a arrastara para longe, tão repentinamente.
Mairi não iria lhe agradecer por isso, ele resolveu, com um dar de
ombros. Afastou-se, para levar a mon taria até a beira do riacho de águas
rápidas que logo teriam que cruzar.
— Está machucado? — Rob perguntou ao amigo, pousando a mão no
ombro do rapaz.
Os cabelos loiros e ralos, escurecidos de suor, caíam sobre a testa de
Andy Miúdo, logo abaixo de seu elmo de couro bem-ajustado. Suas faces
sempre tinham sido muito coradas, mas a dor as empalidecera.
— Não. — Andy balançou a cabeça, mas os lábios apertados e a testa
franzida diziam outra coisa. Rob tinha enfaixado as costelas machucadas com
firmeza, mas sabia que fizera pouco para evitar a dor que o balanço da sela
provocava.
Ele recordou os tempos em que sofrera o mesmo, depois dos torneios.
Com tristeza, fez. um sinal, para dizer que deviam cavalgar novamente, e logo.
Andy concordou, relanceou os olhos para lady Mairi para mostrar que
entendia porquê, e ajoelhou-se com cuidado, à beira da água, para beber.
Rob também olhou para a esposa, que se inclinara sobre a margem,
mergulhando e esfregando as mangas de seu vestido. Seu rosto e os cabelos
dourados estavam molhados, depois que ela lavara as lágrimas.
Sim, a raiva lhe serviria melhor para superar a tris teza do que as
atenções que lhe pudesse dispensar. As sim, ele iria continuar a deixá-la de
lado. Voltou a aten ção para satisfazer a própria sede e a de seu cavalo.
De repente, Andy agarrou-o pelo braço e apontou. Rob ficou de pé, seu
primeiro pensamento julgando ser um ataque. Então, seguindo o gesto
frenético de Andy, ele viu as borbulhas em torno de uin pedaço de tecido e
uma pequena bota apontar para fora da água.
Com um berro, Rob entrou no riacho. A corrente gelada vergastou-lhe as
pernas enquanto ele lutava para agarrar uma ponta do vestido. Sem sucesso.
Lançando-se de corpo inteiro na água, ele lembrou se, tarde demais, do
peso de sua cota de malhas. Afun dou como uma pedra e, então, voltou à
superfície, lu tando com todas as forças na direção das saias e pernas que se
agitavam.
Por fim, fechou o punho nas pregas do vestido e arrastou Mairi para a
beirada do riacho. Sem saber se praguejava ou rezava aos céus, em
agradecimento. Fez. as duas coisas.
Sair da água não foi fácil, porém ele fez um esforço e conseguiu,
trazendo Mairi para a margem. Dobrando-a pelo estômago, ergueu-a pela
cintura, esperando a água que ela pudesse ter engolido.
Graças ao bom Deus, imediatamente ele sentiu o agitar de sua tosse.
Rob desabou ao lado dela, a cabeça caída sobre o braço, quase perto de
desfalecer. Perto dele, ela tremia como se estivesse congelada. Embora o sol
de verão brilhasse e aquecesse o dia, a água estava terrivelmente fria.
Com um suspiro profundo de alívio por saber que ela ainda vivia, ele
puxou Mairi para seus braços, con tendo o fôlego, para poder sentir se as
costelas dela se inflavam, mostrando que a respiração se normalizara. Ela
disse alguma coisa, pois ele podia sentir o mo vimento rápido de seus lábios
contra o rosto. O que quer que fosse, ele imaginou que seria melhor não
entender. Possivelmente fosse um agradecimento por tê-la salvo da morte por
afogamento, mas, provavel mente, deviam ser pragas, culpandoo por tê-la
trazido ao riacho, em primeiro lugar.
Em resposta, Rob simplesmente puxou-a para mais perto e pousou os
lábios em sua têmpora. Ela não o repeliu nem se debateu, e ele, então, sentiu-
se melhor. Voltou a cabeça o suficiente para ver a que distância a corrente os
arrastara. Não por léguas, como tinha pa recido, aparentemente. Mesmo dali,
podia ver Andy Miúdo andando cautelosamente para vir juntar-se a eles. Trazia
as montarias pelas rédeas, a água espadanando nos cos tados dos pesados
animais, ameaçando submergi-los.
Mairi afastou-se dele e sentou-se, tirando os cabelos do rosto.
Acintosamente ignorando-o, ela lutou para ficar em pé e começou a torcer as
dobras da roupa pesada e encharcada. Seus lábios moviam-se, depressa, os
dentes rilhados, como se ela resmungasse para si mesma. Rob escondeu o
sorriso.
— Andy está chegando — disse ele. — Você pode trocar de roupa.
Ah! - Mairi exclamou, erguendo as mãos para o céu o agitando-as, o
temperamento mais evidente que nunca. — Ele fala! Responda-me, MacBain,
você sempre pronuncia não mais que três palavras em uma frase?
Não com frequência — ele respondeu, em três palavras, apenas para
irritá-la.
Talvez Rob devesse ter sido mais condescendente. Afinal, ela havia dito
algo que ele compreendera to talmente. Seria difícil que não o conseguisse, já
que Mairi lançara cada palavra, uma a uma, como pedras sobre ele.
Rob sentiu-se satisfeito. O sarcasmo era fácil de reco nhecer, ele mesmo
o empregava muitas vezes. Sorriu para si mesmo, feliz que ela houvesse
superado o susto. Para Ser honesto, ele próprio estava um tanto abalado.
Contudo, transformar o acidente em um motivo para acariciá-la por mais
algum tempo só iria aborrecê-la mais.
De- novo, ela se refugiava em sua raiva, e ele não se importava em
suportar o impacto disso. Começava a perceber um padrão no comportamento
de Mairi. Ela nunca Iria admitir o medo, mas o mascarava de imediato.
Por enquanto, ele agradecia á providência por aquela bravata. Melhor
assim do que ela se entregar ao so frimento sem esperança. Isso ele não
suportaria presenciar e não seria capaz de suavizar com palavras.
Rob sempre tentava não mergulhar em lamentações de qualquer
espécie, porém, naquele instante, desejou ter mais a oferecer à esposa. Assim
que estivesse mais acostumado a sua maneira de falar, ele poderia se
aventurar a uma conversação mais prolongada. Por enquanto, não havia tempo
para dar-lhe atenção total nem para o tremendo esforço que isso
representaria, tanto de sua parte como da dela. Contudo, sentia-se tentado a
isso. Mairi podia resolver, porém, que não se daria a esse trabalho.
Não podia culpá-la pela falta de compaixão. Podia ser muito perturbador
para ela, se nunca tivesse co nhecido alguém surdo, antes.
Como lady de Craigmuir, devia estar acostumada a estar cercada de
gente pronta a atendê-la, a qualquer pedido. Bem, ele procuraria compensar-
lhe o inconve niente tão logo chegassem, a salvo, em Baincroft. No momento,
porém, ele devia concentrar-se em seguir viagem e não se permitir distrações.
Andy Miúdo trotava em direção a eles, mais pálido do que nunca. Rob
esperou pacientemente e ajudou-o a desmontar.
— Descanse — ordenou, e começou a procurar pelos pacotes por roupas
secas, para si e Mairi.
Pôs de lado um traje vermelho e enfiou a mão mais no fundo, buscando
algo de cor mais natural que me lhor os disfarçasse no ambiente ao redor.
Ainda pingando, Mairi ficou de lado, esperando, até que ele lhe estendeu
um vestido verde-musgo.
— Vá até lá — ele sugeriu, apontando para um arbusto compacto que a
resguardaria de ser vista, enquanto se trocava. Para si mesmo, ele não
precisava de nada.
Arrancou as botas encharcadas. Então, sem qual quer preocupação ou
mostras de recato, ele tirou a cota de malha e a pesada indumentária, sob a
mesma. Depois, tirou a calça e a roupa de baixo. Nu e ainda tremendo, Rob
deixou que o sol aquecesse e secasse sua pele, enquanto amarrava os cavalos.
O encontro de Mairi com a morte lhe havia aplacado a fúria e, de alguma
forma, feito com que enxergasse mais claramente, malgrado a tristeza que a
consumia. MacBain havia salvo sua vida por mais de uma forma,
admitiu.
Se houvessem ficado, Ranald logo teria se apresentado como o sucessor
do lorde. O povo de Craigmuir não teria outra escolha a não ser honrar aquele
traidor como seu novo senhor e obedecer-lhe as ordens. E ele teria mandado
matar MacBain. Depois, tentaria fazer dela sua esposa. Ela iria morrer,
resistindo, Embora suai morte pudesse sublevar o clã contra Ranald, ainda
assim ela estaria morta.
MacBain lhe dissera que havia prometido partir, e não sabia por que e a
quem ele empenhara sua palavra. Em todos os sentidos, fora pelo melhor que
ele a afas tara de Craigmuir. Porém, isso não a absolvia do pró prio juramento
de vingança e teria que persuadir Mac Bain. a ajudá-la a honrar aquele voto.
Mairi espiou pela folhagem que agora a rodeava para ver como ele
aceitara as palavras duras que ela lhe lançara, após o resgate.
- Pela Misericórdia de Deus! — murmurou, quando o viu. Ele estava nu
como no dia em que nascera! De olhos arregalados, fascinada, Mairi observou
MacBain, que examinava os cavalos e retirava os fardos de suas selas. O
homem não tinha vergonha de espécie alguma!
Claro, Rob devia pensar que não havia ninguém a observá-lo, a não ser o
servo que parecia ter adorme cido, Mairi lembrou a si mesma. Porém, não se
dera conta de que ela poderia sair do bosque a qualquer momento? Será que
ele queria que ela o visse assim, tão exposto?
Mairi estremeceu sob a roupa molhada, deixando cair o vestido seco das
mãos. Nem por um momento ela se desnudaria com a possibilidade de ser
vista, como seu marido havia feito.
E, no entanto, ficou a imaginar o que MacBain pen saría, se a olhasse
como ela o olhava agora. Ela era pequena e não tinha grandes atributos de que
se gabar, mas… ele a acharia atraente?
Ela o julgava assim, com toda a certeza! Seu rosto se enrubesceu diante
da visão, mas não conseguia des viar os olhos. Que músculos ele tinha,
pensou, ao vê-lo flexionar os braços, os ombros, as costas. Ah, aquele corpo
era algo digno de ser visto!
Torceu as mãos, imaginando a sensação macia de toda aquela pele
queimada de sol. O desejo de tocá-lo inteiro a dominou. Ele permitiria isso
quando paras sem, para passar a noite?
Era uma piada, isso, Mairi pensou, com um trejeito cómico. Rob
provavelmente insistiria que ela o fizesse! Seu medo somou-se à ansiedade,
em uma batalha que a deixou sem fôlego e confusa.
— Ufa! — exclamou, surpresa, quando ele se voltou. Fechou os olhos
para logo abri-los, para mais uma espiada.
Bem-feito, ela murmurou, antes de se obrigar a olhar na direção oposta.
Extremamente bem-feito. Mairi abanou o rosto com a mão, agarrando-se a um
galho com a outra, a reação que MacBain lhe provocava a perturbava muito.
Determinada a não voltar para a beira do riacho até que ele tivesse
coberto o corpo decentemente, Mairi usou o tempo para tirar as roupas
molhadas e tirar os sapatos. A água gelada escorrendo por seus braços não
serviu para banir a febre que a visão do marido havia provocado nela.
De instantes a instantes, ela se arriscava a unia nova espiadela.
Finalmente, Rob vestiu uma ceroula, que ela ficou a observar, intrigada com a
estranheza da peça íntima.
Os homens das Terras Altas nada usavam debaixo de seus saiotes. Ela
vira, por muitas vezes, de relance, uma nádega exposta e, com menos
frequência, o motivo de orgulho de muitos homens. Ninguém que ela houvesse
espiado tinha algo do que se gabar como MacBain.
Um pequeno suspiro de desapontamento lhe escapou antes que ela
pudesse contê-lo, quando ele enfiou-se dentro da calça. Mairi saiu do bosque
uns poucos mo mentos depois, fazendo barulho para anunciar seu re torno. Ele
acabava de se vestir quando ela o alcançou.
— Seu homem está dormindo — ela murmurou, apontando para o
escudeiro que os acompanhava.
MacBain aquiesceu e cutucou o ajudante com o pé, até que ele
acordasse.
— Hora de ir — disse a Mairi. — Eles nos seguem.
— Os homens de Ranald? — ela indagou, lançando um olhar ansioso pela
clareira. — Como sabe?
Ele deu de ombros e tirou-lhe as roupas molhadas da mão, colocando-as
atrás da sela.
— Ele a deseja — respondeu.
MacBain vestiu a cota de malhas sobre a camisa e afivelou, a espada.
Aproximou-se de Mairi e? dessa vez, quando a segurou pela cintura, ele a
colocou sobre o lombo da égua, entregando-lhe as rédeas.
Ela ficou a observar enquanto ele ajudava o com panheiro a levantar e
notou, pela primeira vez, que o homem parecia estar machucado.
O camarada era atarracado e forte, de cabelos loiros escorridos, e a cara
redonda como uma maçã, embora sem cor. Ela gostou de ver-lhe o sorriso,
especialmente por saber que ele não tinha motivos para sorrir no momento.
— O que aconteceu a você? — perguntou. — Foi ferido no combate?
- Sim. Uma paulada nas costelas, minha senhora ele retrucou,
reprimindo um gemido. — Lorde Rob enfaixou-as. Doem ainda, mas vou
aguentar.
- Muito corajoso de sua parte — Mairi comentou, Ittiefeita que ele não
fosse um choramingas. Voltou-se, para Rob. — Não é, meu lorde?
MacBain não respondeu ou olhou em sua direção. Afastou-se,
cavalgando, e dirigiu-se para os bosques. Mairi seguiu-o, porém, a distância.
— Ele está ocupado, pensando, minha senhora. Nos so Rob pensa muito
— explicou o homem, colocando-se ao lado dela. — Pensa quase tanto quanto
luta.
— Você certamente tem um nome — ela perguntou, sentindo que podia
ter encontrado um aliado ou, pelo menos, alguém com quem conversar. —
Ninguém se importou em me dizer qual é.
— Sou Andy Miúdo — Mairi explicou, sorrindo quan do ela o examinou,
por sobre o ombro. Ele prosseguiu: — É para me distinguir de Andy Grandão, o
filho do moleiro. Aquele sim, é um camarada enorme. Espere só para vê-lo.
Rob gasta muito para alimentá-lo.
— Você trata seu lorde pelo primeiro nome? — per guntou, espantada. —
Ele permite isso?
— Não. Ele só não escuta, e eu imagino que, vez ou outra, não vá se
importar. Não é falta de respeito. Algumas vezes eu me esqueço. Nós nos
conhecemos desde que mamávamos no peito.
— Ah, ele então é um bom lorde, não é? — ela in sistiu, ansiosa por
saber mais sobre o homem enigmá tico com o qual se casara. — Um belo
homem?
Andy Miúdo suspirou.
— Sim, é. Justo em seus julgamentos, justo em suas disputas, e… com
qualidades enormes para se olhar, hein, senhora? — Soltou uma risadinha
safada e soltou uma exclamação abafada. — Ufa!
Um calor espalhou-se sobre o rosto e o pescoço de Mairi.
— Na verdade, sim — ela admitiu, contendo o fôlego, enquanto incitava a
égua a um trote e deixava o bis bilhoteiro para trás.
MacBain podia ser belo de feições e de corpo, porém ela ainda não tinha
certeza quanto à qualidade que Andy Miúdo mencionara. Qualquer marido das
Terras Altas, por sabedoria ou não, pondo todas as promessas de lado, teria
insistido em permanecer em Craigmuir e fazer Ranald Maclnness pagar em
espécie por sua traição e ganância.
Ela devia acreditar que tinha sido uma decisão sábia a de MacBain em
partir. Ele era tão diferente dos outros homens que conhecera que Mairi decidiu
não julgá-lo com precipitação.
Se alguma justiça existia, Ranald iria prosseguir e dar a ela a chance de
vingar-se como havia jurado. Rezou para que assim fosse, e para que tivesse o
poder de fazê-lo por si mesma, se o marido não se mostrasse disposto a
assumir sua parte, quando chegasse a hora.
Poderia ela ser uma boa esposa para MacBain, se ele se recusasse a
ajudá-la? O homem lhe despertava sentimentos que ela mal sabia classificar,
por mais que tentasse.
Ele lhe salvara a vida. Isso devia contar muito, su punha. Por outro lado,
ele a levara do leito de morte do pai à força. Mairi detestava ser forçada a
fazer algo. Preferia que empregassem a razão, para conven cê-la. Se ele
tivesse feito isso, ela teria concordado em partir, sem protestos.
Não, ela não podia entender o que o levava a ser tão gentil em alguns
momentos e agir de forma tão insensível, em outros. Porém, de uma coisa
podia ter absoluta certeza sobre o marido : ele não era de se explicar.
Rob sabia com certeza que estavam sendo seguidos. Sabia, apenas.
Podia sentir. Se Ranald Maclnness não viesse em pessoa, ele mandaria outros,
tal como fizera para livrar-se do pai de Mairi.
Rob também sabia que se alguém tentasse privá-lo daquela mulher, ele
iria até os confins da terra para resgatá-la e não confiaria a tarefa a
subordinados. De sejava que Ranald se arriscasse em pessoa. Isso lhe
pouparia uma jornada de volta às Terras Altas para livrar-se dele, mais tarde.
Para passar o tempo enquanto viajavam, Rob forçou-se a pensar em
palavras, ao invés de em imagens. Embora isso não fosse algo natural, ele
tornara o exercício um hábito desde que aprendera a ler. Logo descobrira que o
ajudava a formar as sentenças, colocar as palavras na ordem certa, para que
ele não parecesse um ignorante. Fazia isso agora, formando listas das
maneiras pos síveis em que podia ocorrer um ataque, se fossem al cançados,
planejando, em seguida, a resposta provável a cada um deles. Por experiência,
tais preparativos sem pre faziam a diferença ao enfrentar qualquer problema.
No que se referia a Mairi, tivera de fazer um esforço muito grande para evitar
que a visão daquela mulher lhe atropelasse os sentidos. Ele a definira em
palavras de forma propositada, Rob dera nome à delicada
fragrancia de rosas que a envolvia de forma tão tentadora. silaba por
sílaba, ele internalizara a descrição de suas tranças, como a seda cor de mel
escorrendo-lhe entre os dedos Soletrara o som tangível de sua voz quando
Mairi gemera ao ser tocada, e silenciosamente descrevera sua alegria no ato
de simplesmente olhar para ela. compusera uma poesia em versos épicos para
cele bra- lhe a beleza e a coragem, vendo as letras se im primirem em um rolo
de pergaminho imaginário, en elaborava a métrica.
Percebeu que enumerar os encantos daquela mulher ocupara uma larga
porção de seu tempo. Tanto tempo que ele ficou a imaginar se isso o ajudava
ou impedia suas tentativas de reduzir o efeito embriagador que Mairi exercia
sobre ele.
Seus sonhos, é claro, ele não seria capaz de controlar, lá, ela
provavelmente tomaria conta de sua mente em toda a sua inteireza. Dada a
maneira com que Mairi reagira ao primeiro beijo que tinham trocado, Rob não
poderia fingir que receava sonhar com aquilo que em palavras seria difícil
imaginar.
Durante todo o dia, atravessaram as Terras Altas, movendo-se com um
passo firme, parando para descan sar sempre que os cavalos pareciam
cansados. Embora estivessem bem distantes de Craigmuir, Rob não alte para o
ritmo. Os homens que poderiam estar seguindo-os não teriam como andar
mais depressa que isso, e ele linha esperanças de que preservassem suas
montarias.
Lançou um olhar de relance para trás e notou a forma orgulhosa com
que Mairi cavalgava. Ela man tinha o queixo erguido e as costas eretas, como
se não houvesse viajado o dia inteiro por um terreno que cer taimente moeria
o mais experiente dos cavaleiros.
Haviam subido e descido colinas e atravessado gar gantas tão estreitas
que seus ombros quase tocavam as paredes de pedra por onde passavam. E,
ainda as sim, Mairi continuava a resistir sem um protesto.
A pequena clareira pela qual passavam agora daria um bom
acampamento, ele supôs. Nenhum lugar seria verdadeiramente seguro até que
houvessem entrado pelos portões de Baincroft, porém não havia como ca
valgar por quatro dias sem um bom descanso.
Já estava quase escuro, e ele admitiu que podia dor mir por algumas
poucas horas, uma vez que não dor mira nada na noite anterior. Velar o lorde
em agonia não permitira isso. Sua noiva devia estar prestes a cair da sela, a
despeito de sua determinação em não demonstrar fraqueza.
Decisão tomada, Rob puxou as rédeas e parou.
— Vamos dormir aqui — anunciou, aproximando-se da montaria de Mairi.
Tirou-lhe as rédeas das mãos, ergueu-a da sela e colocou-a de pé. As
pernas delas fraquejaram, e Rob apanhou-a antes que caísse no chão. Com
uma pequena risada, ele tomou-a no colo e carregou-a até a árvore mais
próxima, de raízes largas que se estendiam sobre o solo.
— Faça uma fogueira — ele ordenou a Andy, e co meçou a retirar os
fardos dos cavalos. Desenrolou uma manta de lã e colocou-a sobre a relva
fofa. Do outro lado dos gravetos que Andy amontoava, Rob estendeu outra
coberta.
Quando indicou, com um gesto, que Mairi podia dei tar-se, ela franziu a
testa, balançou a cabeça e disse algo. Ele só conseguiu captar as palavras
dormir a
seu lado.
Não havia o que discutir. Ela não pretendia dormir com ele. O que não
era surpresa, ele pensou, dando de ombros. Não havia esperado que ela se
deitasse de livre vontade, com ele, naquela noite.
A despeito disso, ele assumiu um ar de aborrecimento e soltou um
suspiro de fingida resignação. Não gostaria que Mairi pensasse que não a
desejava. Certamente ele a queria. Contudo, ali não era o lugar nem o
momento para revelar isso. Tirou a capa e jogou-a a vários passos de distância
do lugar que designara a ela.
Ocupou-se reunindo gravetos, observando disfarçada mente quando ela
se levantou e testou as pernas e, então, desapareceu por entre as árvores por
alguns momentos. Ao voltar, ela apanhou a manta e colocou-a em um lugar
ainda mais distante de onde estava a capa.
Rob deu um sorriso sem graça. Ele jamais iria se impor à esposa em um
lugar como aquele, mas se a deixava tranquila e com um sentimento de
controle colocar uma distância maior entre ambos, ele permi tiria que assim
fosse. Até que ela adormecesse.
Voltou-se, viu que Andy franzia a testa, observando, e fez um gesto para
mostrar ao homem que não estava aborrecido. Andy parecia estar
desenvolvendo um senso de proteção para com a senhora. Provavelmente
pensara que suas palavras ásperas poderiam deixar zangado o marido, mas
Rob não as tomara como ofensa.
A ira de Mairi por ter sido forçada a partir de seu lar obviamente ainda
não se aplacara. Rob quis acre ditar que era isso apenas o que a levava a
repeli-lo, não o fato de abominar sua surdez. Tinha pensado que a deficiência
poderia aborrecê-la e sentira-se ali viado ao perceber que não. Ela o beijara de
forma bas tante ardente, no dia anterior, naquela clareira. Ca sara-se com ele,
não se casara?
Contudo, ficou a imaginar se não teria sido melhor ter deixado o
problema às claras desde o princípio, antes do casamento. Dessa maneiraf ele
saberia exa tamente o que o destino lhe reservava. E ela também.
Desagradava-lhe ficar imaginando o que Mairi pen sava. Nem por uma
vez ela dera mostras de impor tar-se ou não. Será que decidira ignorar sua
surdez, fingindo que não existia? Isso, com certeza, não poderia durar para
sempre.
Algumas pessoas detestavam sinceramente aquela aflição e o
consideravam um amaldiçoado. Por causa disso, Rob se acostumara a
dissimular sua situação, a não ser para os amigos e familiares. Assim que
apren dera a falar, isso não se mostrara difícil. Alguns nem chegavam a
suspeitar de seu problema.
Era uma condição rara, haviam lhe dito. Quando ocorria, muitas pessoas
assim atingidas também se tornavam mudas.
Uns poucos sabiam, é claro, e ele imaginava que fosse objeto de
conversas. Porém, nunca pretendera esconder o fato da noiva escolhida ou do
pai dela.
Ele fizera questão de ordenar a Thomas que contasse ao lorde antes que
o contrato de compromisso fosse firmado, presumindo que contasse à filha os
problemas com os quais ela poderia se defrontar, se aceitasse o casamento.
Rob sabia que sua surdez iria afetar a vida conjugal, Mairi parecia não
entender isso, contudo.
Ele ficou a pensar como ela reagiria se algum tolo o acusasse de aliar-se
aos demónios, de ter barganhado sua capacidade de ouvir em troca de
poderes demo níacos. Já lhe acontecera antes, por duas vezes, uma com o tio
de sua mãe e, depois, mais tarde, com o avô de Thomas e Jehannie, sir Simon.
Até mesmo alguns padres acreditavam nisso.
Rob realmente tinha poderes, é claro. Ele sorriu para si mesmo,
recordando os olhares de reverência e medo, e algumas vezes de terror,
quando lidava com animais. Selvagens ou domésticos, eles o adoravam, podia
con vencê-los a fazer praticamente tudo que desejasse. Sa bia que o segredo
estava em importar-se com eles, em não demonstrar receio e banir o medo de
dentro deles. Eles sentiam que Rob os respeitava, e isso os acalmava,
tornando uma besta selvagem quase tão dócil como um cão preguiçoso.
Enquanto ruminava os pensamentos, Rob tirou a sela dos cavalos e
escovou-os com tufos de grama, exa minando suas pernas à procura de
arranhões, e os cascos, para ver se não havia pedras encravadas. Todos os
três se esfregaram a ele, agradecendo a atenção.
Seus familiares, acusavam alguns. Palavras estra nhas, que tinham um
significado sinistro e, ainda as sim, pareciam descrever a maneira com que na
verdade ele se sentia com relação aos animais. Gostava mais deles do que das
pessoas, às vezes, pois também tinham dificuldade em comunicar o que
realmente necessita vam. Ele fazia um esforço para entendê-los, e os ani mais
retornavam a cortesia. Era simples assim.
Contudo, sua habilidade em ver à noite deixava ató nitos muitos que o
conheciam. Para Rob, parecia tão natural como ver de dia. Deus lhe havia dado
essa capacidade, tinha certeza. Isso se provara realmente valioso às vezes, e
realmente seria de grande ajuda naquela noite, quando partiriam com somente
a ténue luz do luar para guiá-los. Uma dádiva.
Algumas vezes, conseguia adivinhar exatamente o que os outros
estavam pensando. Isso, entretanto, não era uma dádiva. Simplesmente
observava as pessoas com mais atenção do que as outras pessoas se
importavam em fazer. Ou talvez os sons a distraís sem e, por isso, não
conseguissem.
Expressões, braços cruzados sobre o peito, punhos fechados, um tremor
de medo ou raiva, disfarçado sob a máscara de calma, olhos espertos. Isso
tudo trazia a verdade à tona.
Ele podia identificar um mentiroso antes que abrisse sua boca para falar,
e uma mente cheia de ideias cons piratórias não tinha chance de se ocultar a
ele. Havia um ar de intensidade, de cálculo deliberado que parecia escrito na
testa dos dissimulados.
Rob parou sua tarefa e olhou para Mairi. Ela estava sentada sobre a
manta, os cotovelos descansando sobre os joelhos encolhidos, um dedo
enrolando distraida mente uma mecha de cabelos que escapara de suas
tranças. Tinha um ar pensativo e distante.
Era brincadeira de criança enxergar dentro de sua mente, pensou Rob,
com um sorriso enviesado. Mairi estava arquitetando um plano de alguma
espécie. Tam bém pensava em escapar dele e retornar a Craigmuir para vingar
seu senhor, e ora planejava convencer o novo marido a prometer que faria a
proeza por ela.
Impotente no momento, ela obviamente ainda não de cidira o que fazer.
Ele, contudo, devia observá-la e res guardá-la de tomar a primeira opção, se
escolhesse essa.
Talvez devesse dizer logo que decidira voltar e acer tar as contas, caso
Ranald não viesse atrás dele e se lasse seu destino. Rob sorriu. Não era de
todo desin teressante permitir que ela usasse seu charme primei ro para
convencê-lo a aceder a seus desejos. Devia ter algo demoníaco dentro de si,
afinal, para considerar uma tal hipótese.
Andy logo os chamou para partilhar o pão, o queijo e as carnes frias que
havia embrulhado antes de partirem de Craigmuir. Sentaram-se perto do fogo
e pas saram a botija de vinho entre si. Comeram em silêncio.
— Durma, agora — Rob disse a ela, ao terminarem de comer.
Obediente, ela disse boa noite e refugiou-se sobre a manta. Rob enrolou-
se em sua capa e sentou-se, as costas apoiadas em uma árvore próxima. Andy
afastou-se da fogueira e embrenhou-se nas sombras, para o primeiro turno de
vigilância, como era seu dever.
Rob não planejava dormir até que pudesse ficar em um lugar próximo o
bastante de Mairi, de maneira a poder despertar se ela tentasse fugir, durante
a noite. Contudo, acordou com um sobressalto, horas mais tar de, quando a
luz pálida da lua já ia alta, no céu.
Uma sensação de perigo iminente fez sua pele arre piar-se. Levantou-se,
depressa, e correu para os cavalos.
O que há?, Andy perguntou, em gestos, quando ele se aproximou, uma
flecha já esticada no arco.
Perigo, sinalizou Rob. Espere aqui. Fique atento.
Diante da concordância muda e obediente de Andy, Rob. selou seu
cavalo, sem ruído, e conduziu-o para as árvores. Montou rapidamente e
percorreu de volta o caminho anterior por mais de uma hora. A intervalos,
parava, aspirando o ar em todas as direções, buscando sentir o cheiro de
fumaça. Quando a notou, finalmente, deixou que o cheiro o conduzisse.
O acampamento inimigo estava adormecido. Rob contou quatro corpos
enrolados em mantas em torno dos carvões em brasa. Outro estava à parte,
de guarda, mas pegara no sono.
Cinco também era o número de montarias. Sem o mínimo ruído, Rob
conduziu-os para longe do acam pamento e amarrou-os perto de seu cavalo.
Um daqueles homens podia ser o primo Ranald? Rob esperava que sim.
Então, tudo terminaria ali.
Seria inimaginável matar homens adormecidos, de cidiu. E havia uma
ligeira chance de não terem sido enviados pelo novo lorde de Craigmuir.
— Hei, vocês, do acampamento! — gritou. — Mac Bain está aqui!
Deu uma gargalhada ao ver a confusão se instalar. Dois dos homens se
viram presos de tal forma a suas cobertas que não puderam ficar de pé.
O guarda, agora acordado, correu para cima dele, a espada erguida. Rob
o enfrentou e perpassou-o com a lâmina, chutando-o para longe. A vantagem
da sur presa trabalhava a seu favor.
Um segundo homem tentou um golpe mortal, mas Rob o atingiu com
uma cutilada. Com um movimento rápido, pegou o próximo com as costas da
espada. O quarto, boca aberta e olhos arregalados de horror, saiu correndo
para o lado oposto e embrenhou-se nos bos ques, desaparecendo nas
sombras.
Rob rendeu o último do grupo, que ainda lutava para desvencilhar-se das
cobertas. O patife cheirava a bebida. Um golpe duro em sua cabeça imobilizou-
o. Ranald Maclnness devia ter passado a peneira entre os guerreiros e
escolhidos os piores disponíveis. Os mais incapazes dos arrendatários de Rob,
armados com varas, poderiam enfrentar aqueles estúpidos, pensou. Que
arremedo de luta, pensou Rob, amarrando o cativo. Passou-lhe pela mente
perseguir o que havia escapado, mas decidiu não se incomodar. O sujeito
estava a pé e levaria pelos menos dois dias até chegar em Craigmuir. Além
disso, o primo de Mairi precisava receber a mensagem de seu emissário.
Ranald resistiria ao de safio de não possuir Mairi? Rob julgou que não. O patife
viria em pessoa da próxima vez, porém agora estaria de três a quatro dias
atrasado.
Satisfeito por ter resolvido o problema pela duração da viagem até
Baincroft, Rob arrastou o homem amargado até os cavalos, jogou-o sob uma
sela e prendeu-o lá.
Sua intenção era arrancar-lhe algumas respostas. Logo saberia o número
e a espécie de homens quie o primo de Mairi comandava e se iria persegui-la
du rante o caminho até as Terras Baixas.
A informação que conseguisse iria ajudá-lo a desti tuir o primo traiçoeiro
de seu título de lorde, em uma eventualidade. Tinha esperanças de que Mairi
se sen
tisse parcialmente vingada pelo trabalho dessa norte.
— E lorde Rob! — gritou Andy Miúdo, agitando o braço e correndo da
fogueira para perto de onde Mairi se encontrava. — Viu? Eu disse que ele
voltaria logo!
Ela puxou a manta, resguardando-se do frio da noite,
— Quem é aquele? — perguntou, apontando para o corpo pendurado na
montaria maltratada e estranha que seu marido conduzia para o
acampamento.
— Homem de seu primo — respondeu MacBain, pa rando perto da
fogueira. Desmontou e espreguiçou-se, obviamente cansado.
— Ele mandou apenas um? — ela indagou incrédula.
— Cinco — Rob retrucou, calmamente, e afastou-se para tirar o
prisioneiro de cima do cavalo.
— Cinco? Onde estão os outros? O que aconteceu? E como você sabia
que eles…
— Minha senhora, por favor — interrompeu-a Andy Miúdo, interpondo-se
entre ela e MacBain. — Não há motivos para se preocupar. Relaxe um pouco e
vamos ver o que temos aqui.
Mairi deixou escapar um suspiro de exasperação e desistiu, embora
tivesse que fazer um esforço imenso para se conter.
Com olhos ansiosos, ela examinou a escuridão da linha das árvores,
imaginando se, a qualquer momento, os outros quatro iriam irromper, para
lutar e livrar o amigo.
— Onde estão eles? — perguntou a Andy. — O que aconteceu a eles?
— Estão mortos, assim espero — Rob retrucou, ale gremente, esfregando
as mãos. — Ou descobrindo um novo caminho de volta para o lugar de onde
vieram.
— Descanse agora, Andy — ordenou-lhe Rob, ao voltar do local onde
colocara o fardo inconsciente, apoiado contra uma árvore. Voltou-se para a
esposa.
— Volte a dormir.
— Dormir? — ela perguntou, com voz esganiçada.
— Você chega a cavalo, arrastando um homem, diz que há mais quatro
deles por aí e espera que eu vá dormir? — Mairi ergueu as mãos,
impacientemente.
— Ora, eles podem cair sobre nós a qualquer momento! Ou estão
mortos? Cinco contra um, e você quer me fazer acreditar que os matou, a
todos? Se não o fez, pelo menos pode me dizer…
Rob colocou o dedo sobre sua boca e balançou a ca beça, impaciente.
— Você está a salvo.
Ela afastou-lhe a mão com um gesto brusco.
— A salvo? É tudo que me diz? Por que nunca me responde direito,
MacBain? Por que me trata como uma criança mal-educada que não merece
considera ção? Pode me bater ou me ignorar. Tanto se me dá! Eu sabia! Algo
se tramava nos bosques, esta noite. E por que você voltou com apenas…
— Você não sabe de nada! E eu não entendo nada do que está dizendo —
ele falou, com os dentes rilhados.
— Nada!
— Bem, eu sei de uma coisa! — ela gritou, avançando sobre ele com o
punho em riste. — E não faça cara de surpresa! Você nunca me dá ouvidos! É
como se eu não existisse para você…
— Saia daqui, mulher! — Rob vociferou, erguendo-se em toda sua
estatura, os punhos fechados, fazendo os músculos dos braços se retesarem. A
luz bruxuleante da fogueira do acampamento iluminava seu semblante,
imprimindo-lhe um brilho ameaçador.
Um medo maior que qualquer um que ela sentira com as insinuações de
Ranald fizeram sua espinha arrepiar-se. Ali estava um perigo verdadeiro e
imedia to. Ele parecia disposto a derrubá-la de um golpe.
Silenciosamente, Mairi afastou-se dele, torcendo as mãos trémulas,
temendo ter se excedido. Nunca antes ele exibira uma violência tão palpável
para com ela. Porém, Mairi pudera ver o efeito de sua ira em Craigmuir,
durante a batalha com os homens de Ranald.
Esposas não tinham imunidade contra a ira de seus maridos, e ela
certamente afrontara MacBain com seus brados de exigência, há pouco.
Direitos, ela podia ter, mas não devia ter gritado com ele.
Nem deveria ter se recusado a dormir a seu lado, porém não estava
disposta a perdoá-lo assim tão depressa, por tê-la arrastado de Craigmuir
como o fizera. Admitir o fato de que Rob a perturbava profundamente
certamente daria a seu marido uma superioridade sobre ela.
O que ele com certeza demonstrara, agora.
Sem mais palavras, ela caminhou até a manta, dei tou-se sobre a grama
e voltou as costas para ele. Não seria capaz de dormir, porém iria fingir. Pela
manhã, tinha esperanças de que aquele seu temperamento rude houvesse
melhorado. Se os outros quatro homens que Ranald mandara não os
matassem a todos, antes disso.
O silêncio reinou na clareira, o que lhe pareceu estranho. Por que
MacBain não contava a Andy o que havia acontecido? Ou fazia planos para o
caso de ocorrer um ataque? Certamente não cavalgara tanto para voltar e
simplesmente deitar e cair no sono! Porém, não ousava se voltar para ver o
que estava acontecendo.
Mairi fechou os olhos tão apertados quanto pôde e rezou para estar viva
quando a manhã chegasse.
Uma chuvinha fina acordou-a logo depois do raiar do dia. Embora o solo,
sob seu corpo, estivesse relati vamente seco, a cobertura sobre ela, presa a
uma for quilha de galhos, pingava um pouco.
Como ele conseguira construir aquilo bem em cima dela, sem acordá-la?
Do outro lado da clareira, Andy Miúdo jazia deitado sob uma armação
parecida. Nisso, Mairi viu o flanco cinzento da montaria de MacBain
desaparecendo entre as árvores.
— Espere! — ela gritou, jogando longe a coberta e lançando-se atrás
dele. — Não nos deixe! Aonde você vai?
Antes que ela pudesse alcançar a linha das árvores, ele havia sumido.
— Está voltando para enterrar os que ele matou — explicou Andy Miúdo.
E para ver o que pode encontrar entre seus pertences.
Mairi soltou um suspiro de alívio. Por um instante, havia temido que ele
houvesse partido sem eles, aban donando-os. Só então percebeu que MacBain
tomara a direção oposta.
Além disso, ele não deixaria seu homem para trás. Ela, porém, era um
assunto diferente. Depois da ma neira como se defrontara com ele, na noite
anterior, tinha de admitir que não poderia culpá-lo.
A chuva estava passando, mas ela estava toda mo lhada. Felizmente, o
sol sairia logo para secar suas roupas e seus cabelos. Com o corpo moído e
dolorido da noite passada no chão duro, Mairi caminhou até os fardos que
jaziam protegidos em uma pequena reen trância, nas rochas.
Andy Miúdo veio juntar-se a ela, aceitando a porção de pão que ela
partiu e lhe estendeu.
— Ele vai estar de volta antes do meio-dia. Disse para ficarmos de
guarda, vigiando o prisioneiro. — Com o pedaço de pão, Andy apontou para o
homem ainda amarrado à árvore, encharcado até os ossos. O patife tinha um
aspecto miserável.
— Suponho que vamos levá-lo conosco? — perguntou Mairi, cortando
uma porção de queijo com a faca que sempre trazia presa à cintura e
oferecendo-a ao escudeiro.
Andy agradeceu com um sorriso.
— Sim. Rob, quero dizer, lorde Rob, quer interro gá-lo. Descobrir mais
sobre seu primo.
— Com que finalidade?
— Não perguntei. Ele raramente explica suas ra zões, invariavelmente,
são corretas.
Mairi hesitou em falar sobre o marido com um ho mem que o servia, mas
precisava descobrir algo sobre ele, de alguma forma.
— Eu realmente gostaria que ele respondesse mi nhas perguntas. Ele
raramente fala comigo e nunca parece ouvir nada do que digo.
Andy Miúdo dirigiu-lhe um olhar preocupado. Ela percebeu que nunca
devia ter criticado o comporta mento do marido para um de seus serviçais.
— Não estou falando mal dele — assegurou. — Ver dade. Mas, fico a
imaginar por que ele parece tão rígido. Ele é sempre assim?
— Rígido? — Andy repetiu, com uma risada. — Sim, acho que ele pode
ser quando precisa. — Seus olhos faiscaram. — Mas Rob adora uma boa
travessura. Ne nhum de nós estava a salvo dele quando éramos mo leques, e
ele não mudou muito, desde então.
— Travessuras? — perguntou Mairi, incapaz de ima ginar o estóico
MacBain pregando peças para se divertir.
— Oh, sim — assegurou Andy animado. — No mês passado ele humilhou
com sua esperteza um de seus cavaleiros, sir Belden… ele tem um
temperamento da nado, aquele um. Sempre se mete em brigas, sem razão.
— Continue — ela o encorajou. — Por que MacBain fez isso a ele?
— Provocou o homem além do suportável, fazendo caretas,
importunando e caçoando. Exatamente do jeito que sir Belden faria a um
outro. Cutucou-o até que ele exigisse que Rob lutasse com ele. — Andy deu
uma risada e balançou a cabeça. — Aquele sujeito vai pen sar duas vezes
antes de se meter em outra briga por causa de algumas palavras de
provocação.
— MacBain o derrotou sumariamente? — ela perguntou.
— Pode-se dizer que sim. Eles se colocaram em po sição para o duelo,
entende? — Andy ficou em pé, es ticando os braços como se fosse lançar a
espada em um ataque.
— Vamos, termine! — Mairi exclamou, ansiosa por ouvir o desfecho.
— Robbie sacou sua espada enorme para fora da bainha e ergueu-a,
faiscante, ao sol, com um sorriso infernal no rosto, parecendo pronto para lutar
até a morte. — Ele apertou os olhos, os lábios trémulos de mal contida alegria,
observando o efeito de suas pa lavras sobre Mairi.
— E então? — ela perguntou, inclinando-se ansiosa. — O que aconteceu?
Andy fingiu agarrar uma espada imaginária, arran cá-la de uma bainha
invisível e, então, baixou os olhos, parecendo estupefato.
— Cadê a lâmina?
Soltou uma gargalhada, dobrando-se e batendo nos joelhos.
- Rob, secretamente, havia substituído a arma do pateta do sir Belden. O
pobre idiota não tinha nas mãos nada além do cabo e a cruzeta de ligação! —
De novo, ele riu, erguendo a mão, o polegar e o indicador separados por
alguns centímetros. — A lâmina que brada tinha este tamanho!
Mairi riu com ele, imaginando a raiva do cavaleiro.
— Sir Belden deve ter ficado furioso!
— Se ficou! E nós, ao redor, ficamos apontando os dedos e caçoando. O
tolo pretensioso vai dar um tempo antes de fazer desafios por nada.
— Foi prudente fazer o homem passar por bobo? Ele não vai querer se
vingar algum dia?
Andy Miúdo conteve a gargalhada, reduzida agora a um meio sorriso.
— Ora, acho que sim, e Rob pensou nisso. Quando a brincadeira acabou,
ele elogiou sir Belden pela bra vura e presenteou-o com uma espada ainda
mais re finada, do melhor aço que tinha. Fez com que ele ju rasse que nunca a
usaria em um ataque de raiva. "Uma cabeça quente", disse Rob, como o aço
em brasa, não pode se manter nos moldes e cumprir a missão a qual foi
destinada. Ficou subentendido que sir Belden seria punido se não concordasse
em manter seu tem peramento sob controle, dali por diante.
Pensativa, Mairi começou a guardar a comida para a viagem. Então, seu
marido era sábio em tratar com homens, refletiu. Pena que não estivesse
interessado em tratar com mulheres.
Então, ela se recordou da forma doce com que a tratara naquele dia na
clareira, quando haviam se bei jado e da maneira gentil com que a confortara,
quando ela chorara pelo pai.
Sim, ele podia ser brusco e irritante, proferindo suas ordens em palavras
breves e ignorando-a quando ela queria que a ouvisse. Contudo, podia ser que
ele nunca tivesse tido muito tempo para mulheres, antes. Quem sabe coubesse
a ela educá-lo em como tratá-las. A ela, em particular.
Quando ele retornasse, Mairi decidiu que envere daria por uma direção
diferente no trato com seu ma rido. Tinha certeza de que conseguiria promover
uma melhor compreensão entre os dois. Quem sabe até per suadi-lo a encarar
o voto de vingança como seu.
Se ele precisasse de um incentivo maior depois de um dia cercado de
atenção e carinho… bem, sempre haveria a noite para uma persuasão mais
ousada.
Ela relanceou os olhos para a tenda que MacBain construíra para
resguardá-la da chuva. Serviria bem para lhe dar privacidade, se a colocasse
longe do acam pamento. A despeito de sua negativa infantil, na noite anterior,
aos direitos que ele, como marido, tinha sobre ela, Mairi sabia que a
consumação do casamento era questão de tempo.
Sorriu de um jeito misterioso, confiante de que po deria enfeitiçá-lo.
Veria se o marido iria ignorar sua existência, então!

CAPITULO V

Rob rolou os corpos dos homens de Ranald para uma ravina próxima,
deitou-os e cobriu-os com pedras. Depois de uma prece rápida por suas almas,
voltou e pôs-se a remexer seus suprimen tos e pertences, procurando por
alguma prova que pu desse ligá-los ao primo de Mairi.
Cada embornal continha o mesmo número ínfimo de moedas de prata,
indicando que haviam sido con tratados para alguma tarefa e haviam recebido
adian tado pelo serviço. Não era uma prova conclusiva de que o novo lorde
de.Craigmuir os contratara, mas o suficiente para confirmar as suspeitas de
Rob.
A cunhagem das moedas parecia familiar a Mac Bain. Se fora Ranald
Maclnness quem pagara aqueles homens, ele devia ter conseguido o dinheiro
da mesma forma que Rob conquistara uma boa porção de sua fortuna,
participando de torneios fora da Escócia. E, aparentemente, o homem era um
vencedor. Estranho que nunca houvessem se encontrado, antes.
Ele recolheu os fardos com mantimentos e apanhou os cavalos que
deixara amarrados, na noite anterior. Agora, provavelmente, ele, Mairi e Andy
Miúdo fariam o restante da viagem em segurança.
Mesmo que Ranald saísse em sua perseguição, ele só saberia que deveria
fazê-lo quando o homem que fugira retornasse para contar que o ataque
encomen dado falhara. E, como o sujeito estava a pé, seria im possível para
Ranald alcançá-los antes que chegassem a Baincroft.
Rob precisava apenas se preocupar em tornar a jor nada para casa tão
agradável e confortável quanto pos sível para sua nova esposa.
No caminho de volta ao acampamento, ele conside rou suas outras
preocupações com respeito a Mairi. Quanto mais pensava sobre os atos da
esposa nos úl timos dois dias, mais isso o aborrecia.
Em todos os momentos que haviam estado juntos, ela jamais se
esforçara para falar de uma maneira que ele pudesse compreendê-la. E,
quando o fizera, fora por mero acaso. Tampouco havia mencionado o fato de
que ele não podia ouvir, nem para vilipendiá-lo por isso ou para descartar o
problema como trivial.
Quanto mais o tempo passava, mais vezes conver savam, e mais
estranho aquilo tudo lhe parecia. Ele podia jurar que ela não sabia de nada.
Da última vez, ele lhe explicara que não conseguia entender o que ela
lhe dissera. Não colocara o problema da forma mais clara possível? Porém,
mesmo então, se fosse honesto para consigo mesmo, tivera a sensação de que
ela não captara o significado de suas palavras. E essa sensação é que lançara
dúvidas em sua mente.
Será que o pai de Mairi não lhe contara? Teria o lorde mentido? Qual
seria o propósito em omitir algo tão importante?
Era possível que Mairi estivesse com medo de tocar no assunto e o
ofender. Se fosse isso, quem sabe ela tivesse conservado com Andy a respeito.
— Ora! O que temos aqui? — Andy Miúdo correu para encontrá-lo, assim
que Rob entrou no acampa mento. — Mais quatro animais estropiados? Venha,
coma alguma coisa. Eu vou amarrá-los.
Rob jogou-lhe as rédeas e desmontou.
Mairi aproximou-se, com uma caneca de vinho.
— Venha — disse, com um sorriso, tomando-lhe a mão. Disse outras
coisas também, uma longa se quência de palavras, porém Rob não conseguiu
en tender o sentido.
Quase explicou isso a ela, mas pensou melhor. Por que não observá-la e
tentar descobrir o que estava se passando? Depois, perguntaria a Andy sobre o
que ha viam conversado desde que haviam deixado Craigmuir.
Se o velho lorde a houvesse mantido desinformada, então Rob teria de
encontrar uma maneira de contar a novidade da forma mais suave possível.
Pôs-se a observá-la. Rob adorava o jeito animado com que ela usava as
mãos graciosas, gesticulando enquanto falava. Espantava-o que Mairi fosse tão
in génua com relação a sua beleza e ficou a imaginar o porquê. Será que os
homens que a rodeavam nunca haviam elogiado seu semblante adorável? Ou
Mairi não os levara a sério? Ela não parecia orgulhosa ou inquieta com sua
aparência, como muitas mulheres se mostravam. Seu comportamento natural
e espontâneo o intrigava, agora e desde que a vira pela primeira vez. Poderia
ficar observando-a por horas.
Quando ela o conduziu para perto do fogo, ele se guiu-a, esperando
poder responder as perguntas que ela lhe fizesse, até poder discernir o quanto
Mairi sa bia. Tinha esperanças de estar enganado sobre a ex tensão de sua
ignorância.
Era inteiramente possível que ela tivesse mais pro blemas em decifrar as
frases dele do que ele as dela.
Isso, contudo, em nada contribuiu para diminuir-lhe as preocupações.
Que espécie de casamento teriam, se nenhum dos dois tivesse a menor ideia
do que o outro estava dizendo, a maior parte do tempo?
Sua mãe lhe ensinara que alguns sotaques faziam a boca mexer-se de
forma diferente, mesmo quando o idioma era o mesmo. Podia ser verdade que
suas pa lavras soassem tão estranhas aos ouvidos dela que Mairi não pudesse
entender o que ele dizia?
— Um momento, por favor — disse ele, lentamente, erguendo um dedo e
oferecendo um sorriso para ate nuar sua atitude, ao levantar-se e deixá-la.
Ela, ob viamente, pretendia que ele continuasse a seu lado, porém Rob
precisava resolver aquele mistério.
Andy Miúdo tinha conduzido os cavalos capturados e sua própria
montaria para um local mais distante, para escová-los e alimentá-los.
Rob aproximou-se dele, sabendo que os cavalos iriam esconder os
movimentos de sua mão quando usasse a linguagem dos sinais. Ele e a mãe
haviam estabelecido uma série deles quando Rob era ainda muito pequeno,
antes que aprendesse como se expressar em palavras. Desde então, Rob, a
família, e as pessoas mais pró ximas, em Baincroft, comunicavam-se por
sinais, tor nando as palavras desnecessárias. Só os abandonava quando em
presença de gente estranha. Todos que co nhecia achavam a linguagem dos
gestos mais conve niente, especialmente em circunstâncias quando não
estavam muito próximos ou não queriam ser ouvidos.
Tal como agora.
Ela sabe? Acha que seu pai que contou que não posso ouvir?, perguntou
Rob.
Andy balançou a cabeça. Sua boca moveu-se, en quanto gesticulava: Ela
não sabe de nada. Tenho certeza. Ela perguntou por que você não presta
atenção ao que diz. Se soubesse… Ele deu de ombros, visivel mente
consternado.
Rob concordou e correu o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. Pensou
no que deveria fazer, a seguir.
Seria um choque para ela saber, agora, que se casara com uma pessoa
deficiente, sem ter conhecimento pré vio do fato. Mairi poderia acreditar que
seu pai a enganara. Ou, pior ainda, que Rob os iludira, a ambos. Ela se sentiria
ludibriada, depois de o casamento ser um fato consumado.
. Rob olhou por cima do lombo do animal que estava entre ele e Mairi,
colocando a mão em concha para enxergar melhor. Ela estava em pé, os
braços cruzados no peito, encarando-o e esperando obviamente por seu
retorno.
O casamento era um fato consumado? Não, ele decidiu, não era. Ainda
não. E Mairi certamente merecia fazer uma escolha antes que união se
tornasse verda deira, devia ter a oportunidade de decidir seu futuro.
Rob resolveu que sua única esperança era provar a Mairi que ele podia
ser um marido adequado, a des peito daquilo que logo ficaria sabendo a
respeito dele. Se confessasse agora, poderia perdê-la para sempre. Ela não
teria tempo para conhecê-lo. É claro, ela po deria deixá-lo, não importava o
que ele fizesse, mas Rob tinha pelo menos uma chance de ganhar seu res
peito. E iria aproveitá-la.
Por ora, ele devia manter o casamento em uma con dição na qual
pudesse ser desfeito, se assim Mairi de sejasse, quando descobrisse tudo. O
que significava não se deitar com ela, naturalmente. De qualquer for ma, ele
não planejava fazer isso até que houvessem chegado em casa e pudesse
oferecer a ela o conforto adequado, devido a uma mulher intocada.
Andy Miúdo tocou-lhe o braço para chamar sua aten ção. Não conte nada
a ela, agora, aconselhou. Espere até chegarmos a Baincroft. Ela verá quanto
as pessoas o admiram… Que não se importam. Ele estalou os dedos e fez uma
cara engraçada para mostrar quanto o fato era irrelevante. Ela não vai dar
importância, assim que tiver visto por si mesma.
Então, Andy Miúdo tinha chegado à mesma conclusão. Rob sentiu-se
inferiorizado. Não estava inteira mente certo se conseguiria sustentar a
situação. Não seria fácil manter o segredo, viajando em convivência tão
próxima com ela.
Você precisa me ajudar, pediu a Andy. Fique por perto. Responda suas
perguntas ou repita a mim. Pode fazer isso?
— Sim! — exclamou o homem, em voz alta, balaçando a cabeça com
entusiasmo. — Como já fiz, antes. Andy Miúdo não era tão eficiente como
Thomas e uns outros a quem ele e a mãe haviam ensinado a linguagem dos
sinais,- porém Rob não podia se permitir críticas, no momento. Certamente os
dois conseguiriam dar conta da situação pelos poucos dias que faltavam até
chegarem a Baincroft.
E, somando-se a isso tudo, Rob percebeu que ele precisava fazer-lhe a
corte, comportamento que o pai de Mairi havia sugerido, se quisesse manter a
espe rança que conservar Mairi ligada a ele, assim que ela soubesse da
verdade e se deparasse com a escolha.
Juntos, ele e Andy terminaram a tarefa de cuidar dos cavalos e voltaram
ao lugar onde Mairi havia es tendido uma toalha e arrumado uma refeição para
ele. — Isso parece ótimo — ele comentou, ao sentar-se de pernas cruzadas em
frente a ela, para comer. Quando ela lhe ofereceu uma fatia de queijo, Rob
aceitou, e, ao pegar a porção; segurou-lhe a mão, bei jando-lhe o dorso dos
dedos. Fitou-a nos olhos, deixan do-a perceber seu interesse por ela, como
mulher.
Mairi tinha um sorriso encantador, pensou, sentindo-se o mais triste dos
cavaleiros. Porém, entregar-se à melancolia nada adiantaria, tinha que
conquistá-la.
— Ah, que delícia — ele assegurou, depois de terminar a refeição,
limpando as migalhas dos dedos e pondo-se de pé. Os lábios dela moveram-
se, em uma frase totalmente incompreensível. Ele sabia que pre cisava
responder, diante da expressão dela, sobrance lhas arqueadas, a cabeça
inclinada para o lado.
Relanceando o olhar para Andy, que se colocara por detrás de Mairi, ele
leu em seus lábios: "Vamos partir logo?. O tolo ainda acrescentou um gesto,
com os dedos, imitando o movimento.
Rob limpou a garganta e fingiu pensar. Então, formou a frase, com
cuidado,
— Sim. Fique pronta.
Aquilo pareceu satisfazê-la, pois ela começou a re colher as sobras de
comida e a dobrar a toalha. Andy já desmontara as tendas improvisadas. Nos
minutos seguintes, ocuparam-se em preparar a partida.
Como havia feito no dia anterior, Rob assumiu a liderança, puxando as
montarias extras atrás de si, evi tando que Mairi ficasse mais perto e tentasse
conversar.
Vez ou outra, lançava um olhar por sobre o ombro e dirigia a ela um
sorriso de encorajamento. Andy parecia ocupado em entretê-la, e por várias
vezes Rob surpreendera os dois travando uma conversa animada.
Que maravilha devia ser, ele meditou, poder falar qualquer coisa a
alguém sem ter que pensar muito. Ele não apenas tinha que prestar uma
enorme atenção às contorções dos lábios e da língua, como também
Ela levantou o queixo, de um jeito voluntarioso. Os lábios rosados se
repuxaram e os olhos se apertaram. Sem qualquer comentário, ela reuniu a
dignidade ultrajada como uma capa protetora e afastou-se, passando por Andy
e dirigindo-se para longe da luz da fogueira.
Andy deu de ombros e sorriu, sem graça, parecendo pedir desculpas pelo
ocorrido e pelas maneiras de Mai i. Rob sentiu vontade de esmurrá-lo. Ao invés
disso, endereçou-lhe o sinal mais rude que havia aprendido e despachou-o
para o bosque.
Ele tinha feito papel de idiota diante dela. Um marido mal-humorado,
desatencioso e ingrato. E um tolo, por Deus.
Se algum dia em sua vida precisara ficar sozinho, esse era o momento.
Rob sentia-se mortificado e inca paz de falar qualquer coisa quanto a isso.
Mairi viu que o marido desaparecia na escuridão e, rapidamente,
aproximou-se de Andy Miúdo.
— Por que motivo ele está tão bravo? — perguntou. — Pouco antes,
parecia bastante satisfeito… — Tanto que ela se arriscara a propor que
construíssem outro abrigo e que o partilhassem. Era ela quem devia se sentir
ofendida. E estava.
— Ele não está zangado, minha senhora! Está exausto, é tudo. E
preocupado, também.
Mairi suspirou e esfregou as mãos nos braços, para espantar o frio.
— Acho que terei de aceitar que ele é um homem de poucas palavras… E
a maior parte delas não passa de grosserias.
A risadinha cáustica de Andy a surpreendeu. Ela o encarou aborrecida.
— Isso lhe parece uma piada? — perguntou. — Você acha que falo
demais para me adaptar a ele? E ele, pouco demais para se adaptar a mim? É
isso?
— Sim — admitiu Andy. — É isso mesmo. — Colocou a mão no quadril e
adotou o mesmo ar de arrogância que ela usara. Foi ainda mais longe.
Apontou-lhe o dedo. — Veja, lorde Robbie não está acostumado a ter uma
mulher matraqueando e reclamando nos ouvidos dele por qualquer coisa. Com
os homens, ele pode simplesmente dizer o que quer, e pronto.
Mairi revirou os olhos de raiva.
— Não notei que ele tratasse as mulheres de forma diferente. Pelo
menos, não comigo.
— Paciência, senhora — ele retrucou, gentilmente, quase em tom
paternal. — O casamento é uma coisa nova, para ele. Não é provável que ele
vá mudar seus modos em uns meros poucos dias e começar a tagarelar de
uma hora para outra, não acha? Ele nunca foi de falar muito, na verdade. Não
havia necessidade. — Fez uma pausa e coçou o queixo pensativo. — E, é claro,
há a maneira de falar. E difícil de. entender.
Ela ficou rígida.
— Bobagem! Ele não pode levar isso em conta. Eu o compreendo muito
bem. Realmente, ele tem uma forma bastante peculiar de dizer as coisas,
porém…
— Refiro-me a sua maneira de falar — explicou Andy, interrompendo-lhe
a frase. — Diferentemente de mim, que fiz umas poucas viagens até o Norte,
onde tenho parentes, Rob não teve oportunidade de conversar com pessoas
das Terras Altas, antes.
Atónita, Mairi engoliu em seco, incapaz de acreditar naquela afronta.
— Tente falar devagar — ele sugeriu — e com o sotaque das Terras
Baixas, se possível.
Ela cruzou os braços sobre o peito e ergueu o queixo orgulhoso.
— Esta discussão está encerrada. não tenho mais nada a lhe dizer.
— Como queira — retrucou Andy. — eu estava apenas tentando ajudar.
Mairi afastou-se, desgostosa, e começou a desem brulhar os
mantimentos para a refeição da noite.
Como aquele insolente criado ousava criticar sua maneira de falar? Difícil
de entender, ora essa! Colocou vários pães de centeio meio ressequidos sobre
a toalha e começou a procurar as fatias de carrne seca.
MacBain certamente não demonstrara dificuldade alguma em entender
que ela o convidara a partilhar a cama, nesta noite. E não tivera qualquer
problema em recusar o oferecimento.
E ela se comportara de forma bastante meiga. Todos aqueles elogios que
lhe fizera pela forma com que a protegera? Desperdiçados. Ter afirmado que
ela lhe perdoara por amarrar seus pulsos e arrastá-la para longe de casa?
Tempo perdido.
Mairi bufou de raiva e sacudiu a cabeça com vee mência. Nunca mais. De
ora em diante, se ele a qui sesse como esposa, realmente, como esposa de
verdade, ele teria de implorar, de joelhos. Ainda assim, ela po deria continuar
negando-se a ele e planejava dizer-lhe exatamente isso.
Ela podia falar da maneira correta quando queria, sem nem mesmo um
vestígio de sotaque escocês. Podia conversar como se fosse inglesa de sangue
como o rei Eduardo em pessoa. E era isso que íria fazer, então, se fosse para
fazê-lo prestar atenção ao que ela dizia. E só Deus sabia quanto tinha a dizer
Ansiosa, Mairi esperou que MacBain voltasse, planejando uma
confrontação para pôr um ponto final em tudo aquilo. Contudo, não o viu
retornar ao acampamento.
Obviamente, ele havia voltado, pois, em algum mo mento, enquanto ela
e Andy partilhavam a refeição, ela percebeu que o cavalo dele sumira do lugar
onde estivera amarrado, junto com os outros.
Aborrecida, ela estendeu as mantas sobre a grama, para passar a noite.
Sem conseguir sossegar, virou-se e remexeu-se, tentando ajeitar-se para
dormir. Puxou a coberta, respirando fundo, para se acalmar.
Andy Miúdo se deitara de lado e estava adormecido, recostado contra a
sela e os fardos de mantimentos, um pouco distante da fogueira.
A lenha se reduzira a carvão, ela podia ver através dos olhos
semicerrados. Ficou imóvel, percebendo uma sombra que se aproximava na
direção de seus pés. Se MacBain havia mudado de ideia e resolvera partilhar
os lençóis em uma hora tão tardia, definitivamente tinha chegado atrasado.
Determinada a fingir que dormia, ela fechou os olhos.
De súbito, Mairi sentiu que mãos se fechavam em torno de seu pescoço,
os polegares comprimindo sua traquéia. O corpo do homem imobilizava o dela,
dei xando livres apenas seus braços. Não era MacBainl Começou a esmurrá-lo,
lutando freneticamente para respirar, incapaz de emitir um som.
Em desespero, levou a mão para a cintura, lutando em vão para
encontrar a bainha de sua faca. O homem a atrapalhava, ela não podia
alcançar a arma.
Ela não podia morrer! Não ali! Não desse jeito!
Faíscas luziam e dançavam diante de seus olhos. Os pulmões
queimavam. Mairi sabia que tinha poucos instantes para se livrar. Com um
último esforço, cerrou os punhos e bateu com eles, com toda a força, nos
ouvidos do atacante. Ele grunhiu, as mãos duras aper tando ainda mais. Ela
continuou lutando, enterrando as unhas nos pulsos do animal, tentando girar o
corpo sob o peso do bruto.
No instante em que se rendeu à evidência de que era inútil se debater,
inexplicavelmente ele pareceu voar para longe dela. As mãos soltaram-se de
seu pes coço tão de repente, que a facilidade para encher o pulmão de ar a
surpreendeu. Contudo, não conseguiu se mover.
Sons de metal contra carne e um grunhido horrível e ameaçador,
misturado a gritos desesperados por mi sericórdia se elevaram. O terror a
imobilizou mais ain da. Mairi simplesmente não podia se mexer.
Ouvia a voz de Andy Miúdo berrando, o relinchar de cavalos assustados,
palavras ásperas gritadas, ge midos e lamúrias, súplicas e impropérios. Nada
disso a fez mover-se. Só se ocupara em encher os pulmões famintos de ar.
Ela descobriu que era-lhe dolorido respirar e entregou-se a isso com
lágrimas nos olhos. Queria gritar em agradecimento, expressar sua alegria por
estar viva, mas nenhum som escapava de sua garganta ma chucada, nem
mesmo um suspiro. Ela estremeceu, fechando os olhos.
Abriu-os quando braços fortes a rodearam. Tomada de um terror
renovado, ela debateu-se até que aquela voz profunda e monocórdica
quebrou-lhe a resistência com palavras sem sentido.
MacBain abraçou-a, protegendo-a com o corpo e passando a mão
suavemente em seus cabelos , instantes depois ele tomou-a nos braços e
carregou-a para perto do fogo. Andy Miúdo apressou-se em jogar mais lenha
para reacender as chamas, e agachou-se ali, olhando-os com preocupação.
MacBain abaixou-se e sentou-se, segurando-a no colo.
— Vire-se — ordenou.
Mairi percebeu que a ordem era para Andy Miúdo e não para ela, quando
o homem voltou-se e ficou de costas.
As carícias de MacBain imediatamente mudaram para uma exploração
sensual de seu corpo. Seus dedos longos e sensíveis procuraram a junta dos
ombros de Mairi e rapidamente desceram por um dos braços e, depois, pelo
outro.
Ele pressionou-lhe levemente os quadris enquanto examinava o rosto. O
toque a aqueceu, porém, ao mes mo tempo, ela sentiu um tremor espalhar-se
por sua espinha. Tentou empurrá-lo quando ele lhe ergueu as saias, acima dos
joelhos. De súbito, percebeu, embora embaraçada, que espécie de abuso ele
queria constatar. Ficou imóvel. No momento, estava impossibilitada de dizer a
ele que não sofrera o que ele havia imaginado.
Delicadamente, ele esfregou a palma da mão pela extensão de seu
ventre, em um toque íntimo de extrema leveza, carinhoso e breve. Com um
resmungo de evidente alívio, ele lentamente afastou a mão e abraçou-a,
embalando-a no colo como uma mãe faria a um bebé assustado.
Vencida, Mairi começou a soluçar. Sacudida pelo choro, ela enterrou o
rosto na túnica macia, os dedos agarrados ao tecido, sem se importar com o
frio metal da cota de malha que protegia o peito de MacBain.
Ali estava a segurança. Ali estava o protetor que a Malvara da morte
certa, novamente. Queria poder se enterrar dentro dele e ficar lá, para
sempre.
Ele a embalou por algum tempo, passando suave mente a mão em seus
braços, cabelos e costas, trans mitindo-me calor para que pudesse expulsar o
horrível frio do medo. Mairi não tinha lembranças de que alguém a houvesse
confortado e protegido assim, com tamanha ternura.
As lágrimas pararam, por fim, e ela moveu a cabeça, procurando fitá-lo.
— Está ferida? — Rob perguntou. A intensidade de seu olhar a queimava,
aprofundada pelo reflexo do fogo. — Onde?
Ela ergueu a mão trémula até o pescoço e estremeceu diante da
lembrança daquela pressão que qua se a matara.
Ele mexeu-se, aproximando-se do fogo e afastando-a para poder
examiná-la. De testa franzida, tocou a pele e, então, balançou a cabeça, os
olhos cheios de pesar.
— Pode falar? — perguntou, de novo em uma mesma entonação, como
se o som de sua voz pudesse assustá-la.
— Não. Dói muito. Não consigo — murmurou, lentamente, com imensa
dificuldade.
Rob inclinou a cabeça até que a testa tocou a dela. A mão descansava
em sua nuca, com uma pressão suave. Então, ele ergueu os lábios e beijou-a,
suave mente, na têmpora.
0 gesto trouxe à lembrança de Mairi a maneira com seu pai a tratava
sempre que ela se machucava, em criança. O pai lhe torcia o nariz, beijava-a
na testa e dizia para ser corajosa, que iria sobreviver. De alguma forma, as
lições do pai deviam ter calado fundo, pois Mairi sentiu uma ânsia de assegurar
a MacBain que ela não era uma frágil florzinha, não importava quanto se
assemelhasse a uma, naquele instante. Ela esforçou-se por sentar-se e sorrir.
— Estou bem — resmungou, imediatamente se ca lando de dor, esquecendo
qualquer bravata que qui sesse demonstrar.
Rob juntou as sobrancelhas e colocou um dedo sobre seus lábios.
— Fique quieta!
Mairi balançou a cabeça, concordando, mantendo o sorriso com
determinação. MacBain importava-se com ela, deduziu. Ele realmente se
importava.
Ela relanceou os olhos em torno, procurando pelos restos do patife que a
assaltara. Sem dúvida seu ma rido acabara com ele, quem quer que ele fosse.
— Nosso prisioneiro. — MacBain apontou para o lugar onde haviam
amarrado o cativo.
Então, o sujeito conseguira libertar-se. Porém, se assim fosse, por que
não fugira quando se vira livre das cordas? Por que ficara e tentara estrangulá-
la durante o sono? Ela nem sequer o conhecia.
Incapaz de formular as perguntas, Mairi fez um ges to de desalento e
deixou cair os ombros, exausta.
Que importava isso? MacBain não poderia responder pelo homem e
provavelmente o matara. Era improvável que pudessem descobrir por que o
sujeito cometera um ato tão torpe.
— Venha deitar-se — ele sugeriu, e colocou-a delicadamente sobre a
grama, a seu lado. Esticou-se e puxou-a contra o peito forte. — Durma —
murmurou, — Estou aqui.
E realmente estava, ela pensou, com um suspiro de satisfação. Sentia-se
segura para fechar os olhos e dar boas-vindas ao sono.
Contudo, uma ligeira pontada de raiva permanecia, pela recusa anterior
de MacBain em deitar-se com ela. Se ele estivesse onde deveria estar, nenhum
homem teria se atrevido a se aproximar. Mairi ficou a imaginar se a sensação
de culpa podia ter contribuído para toda essa ternura que MacBain
demonstrava agora.
Quaisquer que fossem suas razões ou seus defeitos, ela sempre seria
grata que ele houvesse voltado a tem po de salvá-la. Guardar-lhe ódio não
tinha propósito. Precisava expulsar de si o ressentimento que a recusa lhe
causara. MacBain tinha obviamente percebido o erro de seu comportamento e
mostrava-se muito mais de desejoso de deitar-se ao lado dela.
Mairi remexeu-se, apertando-se contra ele, tomada por uma sensação de
tranquilidade que o corpo forte, rígido e quente, deitado contra suas costas,
transmitia-lhe. A julgar pelo volume de sua virilidade, podia perceber que não
era por falta de desejo que o marido a recusara anteriormente.
Ela deixara bem claro que o queria, e ele mostrava que realmente a
desejava. Então, por que declinara o convite? Rob teria arranjado uma maneira
de ficarem sozinhos, se quisesse. Isso não seria problema.
Não era falta de capacidade, Mairi pensou, esfregando-se contra ele para
testar suas impressões.
Oh, sim, ele era, definitivamente, dotado de muita capacidade.
Por ora, contudo, faria o que ele lhe aconselhara e descansaria. Não
tinha o direito de exigir muito, nessa noite, mais do que aquilo que ele já lhe
concedera. Por mais pronto que Rob pudesse estar para isso, ela se sentia
desgastada demais para tentar seduzi-lo.
Conquistá-lo para sua causa de vingança poderia esperar, por mais
algum tempo.

CAPITULO VI

Tarde da noite, Mairi acordou. Estava sozinha. Estremeceu ao lembrar-se


do ata que recente, tinha a sensação de que acabara de acon tecer. Sem
conseguir mexer-se, moveu apenas os olhos na direção da árvore onde o
prisioneiro estivera amarrado. Percebeu que havia um vulto ali. Então, o
homem não estava morto. Sem dúvida, não poderia escapar novamente, ela
pensou, recordando-se da luta feroz que ouvira, quase inconsciente.
Desviando o olhar, viu o marido e Andy Miúdo, juntos, em um lugar
pouco distante da fogueira quase extinta. Andy gesticulava vivamente, a boca
mexendo-se, embora nenhum som se ouvisse.
Por um breve instante, Mairi pensou que tinha per dido a audição, assim
como a fala. Não podia ser. Con. seguia distinguir o crepitar dos últimos
carvões e os uivos de animais noctívagos, a distância.
Seguiu-se um ruído quando MacBain riscou alguma Coisa da terra, com
uma vara. Ambos olharam para baixo, e Andy fez um gesto de concordância,
apontando para um determinado ponto. Devia ser um mapa ou algo assim, ela
deduziu.
Tinha sido gentil da parte deles afastarem-se para. conversar, para não
acordá-la, pensou Mairi. Intrigada ficou a observar aquele estranho diálogo.
Seu marido tinha os cotovelos nos joelhos e fazia movimentos rápidos e
esquisitos com as mãos e os dedos. Eram gestos graciosos, pois ele possuía
mãos maravilhosas. Suspirou, lembrando-se de como aquelas mãos a haviam
acariciado e acalmado.
Andy Miúdo deu de ombros, balançando a cabeça de um lado para outro,
parecendo responder a alguma pergunta. Aqueles sinais poderiam ser uma
linguagem que os caçadores usavam para comunicar-se sem ruído, para não
assustar a presa? Ou, quem sabe, os guerreiros a utilizavam quando
desejavam contar com o elemento surpresa contra um inimigo?
Mairi sorriu para si mesma, pensando nas muitas coisas que deveriam se
passar entre homens, que as mulheres jamais poderiam suspeitar.
Andy Miúdo passou o dedo indicador pelo pescoço e apontou para o
homem preso à arvore. Bem, aquilo dificilmente seria uma pergunta sutil,
deduziu Mairi. Iriam degolar o prisioneiro?
MacBain balançou a cabeça, com uma expressão aborrecida. Fez mais
gestos estranhos. Fascinada, Mairi continuou a observar, enquanto os homens
travavam aquela conversa silenciosa.
Finalmente, MacBain levantou-se e caminhou alguns passos, postando-se
de costas para o companhei ro. Andy gritou-lhe o nome e, então, bufou,
exasperado, levantando-se também. Impaciente, assim pareceu a Mairi, ele
aproximou-se e tocou o ombro de Rob.
Virando-se, com um ar de indagação, MacBain fitou as mãos de Andy e,
então, respondeu. No silêncio da noite, ela pôde ouvir claramente, de onde
estava, o som de sua voz. Ele parecia agora perscrutar a escuridão do bosque,
em torno, talvez preocupado com o que Andy lhe dissera.
Mairi sentiu uma vaga ansiedade no peito. Lembranças de incidentes que
haviam ocorrido desde o instante em que MacBain se apresentara, em Craig
muir, voltaram-lhe à mente.
Recordou-se do pai falando exageradamente alto com seu noivo e de
como MacBain a ignorara. Teria se dirigido a ele pelas costas, como Andy, há
pouco? Aque la maldita forma de falar em três curtas palavras de comando,
nas perguntas e respostas, que ela tanto odiava, passou-lhe pela cabeça. E o
som estranho e quase imutável de sua voz.
De súbito, uma explicação possível para tudo isso atingiu-a com a força
de um golpe de espada. Mairi conteve o fôlego.
Lágrimas quentes assomaram a seus olhos, e ela cobriu a boca para
sufocar um soluço. Oh, Deus do céu, ele não podia ouvi-la. Ele não podia ouvir
nada.
Mairi chorou silenciosamente por algum tempo. De tristeza, por ele,
lamentando pela vulnerabilidade de seu marido em um mundo tão perigoso.
De decepção, pois nunca seriam capazes de conversar com desenvoltura.
Sentiu o coração apertado, por MacBain, e por si mesma.
Aos poucos foi dominada por uma onda poderosa que era puro instinto
de proteção. O marido precisava dela. Sentia-se feliz que, por sorte, ele a
houvesse escolhido para esposa e não a alguma mulher de cabeça-de-vento
que poderia não reconhecer essa tal dependência.
Logo, contudo, ficou a imaginar por que ninguém se dera ao trabalho de
contar o fato a ela. Seu pai… não tinha dito alguma coisa? Sim, ele dissera,
mas Mairi havia pensado que ele falava de si mesmo, que estava ficando surdo
por causa da idade. Ela fechou os olhos, comprimindo-os com força, espantada
com sua falta de percepção.
A bem da verdade, o próprio MacBain lhe revelara isso, na noite anterior.
Não entendo nada, havia dito, E ela o acusara de não escutá-la. Que horrível
crueldade, pensou, embora não quisesse ser ofensiva, ao dizer isso.
Gemeu, desgostosa consigo mesma. E o gemido lhe doeu a garganta.
Sentiu que merecia bem mais que aque la pequena pontada de dor. Sentia-se
miserável. Com todo o direito, ele devia odiá-la por ter-lhe dito coisas tão
cruéis. Havia uma consolação, contudo. Pelo menos, ele não pudera escutar
aquelas palavras terríveis.
Deus de Misericórdia! O que estava pensando? Con solação? De novo
deixou escapar um gemido, e a dor que se seguiu não dissipou sua culpa.
O que poderia dizer a ele para justificar seu com portamento desde que
haviam se conhecido? Nada. Andy Miúdo lhe contara de forma bastante
explícita que MacBain não conseguia entendê-la. Havia ocultado a razão. Ou
havia mentido?
Pensando bem, ela sabia que Rob compreendera, al gumas vezes, as
coisas que ela lhe dissera. Sua maneira de falar bem podia ser o problema.
Iria esforçar-se por esconder o sotaque, ela prometeu a si mesma. Dali
para frente, iria falar como uma mulher das Terras Baixas. E mais lentamente,
tam bém. E não muitas vezes,
Rob devia ter aprendido a ler as palavras nos lábios das pessoas. Não os
dela, porém.
Mairi percebeu que apenas agora tratava o marido pelo nome, em seus
pensamentos. Seu Rob, um tratamento carinhoso, Robert parecia muito formal
e Robbie, muito infantil para designar um homem de tal envergadura.
Ela nunca pensara nele como Rob, antes, mesmo quando Andy Miúdo o
tratara assim. Fora a simpatia que provocara tal mudança? Piedade? Ah, não,
ela não devia se entregar a tais sentimentos, pois ele não apre ciaria isso,
nenhum homem gostaria. Tinha que dis simular quaisquer atitudes piedosas, a
todo custo. Rob era orgulhoso.
E ela sentia um grande orgulho dele, descobriu Mairi, com surpresa. Para
um rapaz que carregava essa cruz ter se transformado em um cavaleiro, ele
devia ser extraordinário, na verdade.
Quando a manhã chegasse, a primeira coisa que faria seria assegurar a
ele que se colocaria a seu lado nessa difícil situação e faria tudo, dentro de
suas possibilidades, como esposa, para… Para quê?
Mairi levou os dedos às têmporas, pressionando-as com força, tentando
pensar com clareza.
No momento, ela o admirava profundamente por seus feitos. Isso,
misturado ao desejo intenso que ele lhe despertava, podia muito bem ter lhe
alterado o bom senso. Também se sentia extremamente grata, pois ele lhe
salvara a vida. Era muito fácil lhe perdoar por qualquer deslize, considerando
tudo isso.
Mas, só porque ele não podia ouvir, isso não o transformava em santo. A
possibilidade de ele tê-la enga nado devia ser levada em conta, com certeza.
A despeito daquilo que ele lhe dissera em um ar roubo de indignação, na
noite anterior, Mairi não acreditava que Rob realmente quisesse que ela
soubesse que era surdo. Por que outra razão ele teria se dado ao trabalho de
fazer tanto esforço para responder a suas perguntas, como se as houvesse
entendido, quan do não podia? O mais intrigante de tudo isso era por que Andy
Miúdo não falara a verdade quando ela o interrogara sobre o marido?
Sim, eles pretendiam fingir diante dela. E a desonestidade não era uma
boa maneira de iniciar uma vida conjugal. Contudo, Mairi admitiu que se lhe
hou vessem contado, sem que ela conhecesse a gentileza, a lealdade e a
coragem de Rob como conhecia agora, ela certamente teria recusado o
casamento.
Também não estava bem certa do que teria feito se tivessem tido tempo
para se conhecerem melhor, previamente.
Que dilema! Como podia nutrir esperança de tratar com ele, agora que
sabia de seu segredo e ele ainda não se dera conta disso? Diante das
circunstâncias, dificilmente poderia discutir o assunto.
Infelizmente, Rob escolheu aquele instante, em par ticular, para retornar
e deitar-se, ao lado dela. Puxou as cobertas sobre os dois e passou o braço
pela cintura dela, puxando-a para mais perto.
Mairi ficou imóvel, fingindo dormir, incapaz de en frentar diretamente a
situação antes que pudesse pen sar bastante sobre a mesma. Isso requeria
muito mais atenção do qualquer outro problema com o qual já hou vesse se
defrontado.
O rosto dele roçou-lhe a nuca, e ela sentiu um selvagem arrepio de
prazer percorrer-lhe o corpo quando lá bios macios e quentes tocaram
levemente a pele de seu pescoço. Embora delicioso, não era aquilo que
desejava que acontecesse, naquele momento. O desejo toldava-lhe a mente, e
ela parecia prestes a perder o juízo.
Mairi suspirou e esperou por uma nova carícia que pudesse conduzir a
outras, mais íntimas, mas nada mais aconteceu.
Ficou acordada, pela noite afora, até a madrugada clarear o horizonte e
chegar a hora de levantar. Sua garganta doía horrivelmente para que pudesse
conciliar o sono, embora a mente houvesse se aquietado e o corpo, relaxado.
Ocupara as horas tentando determinar o que devia fazer se estivesse correta
em todas as ideias sobre o assunto.
Depois de muito meditar, avaliando os momentos que tinham passado
juntos e tudo o que tinha sido feito e dito, ela não tinha mais a certeza da
noite anterior. E se sua imaginação houvesse elaborado a ideia como uma
desculpa para a maneira com que ele se comportava para com ela?
Contudo, se suas deduções estivessem corretas, Mairi decidiu que devia
permitir que Rob continuasse com sua farsa pelo tempo que desejasse. Admitir
que ela fora capaz de reconhecer o defeito daria a entender que tal fato era
aparente para todos.
Por outro lado, se acontecesse de ela estar redondamente enganada e
ele pudesse escutar perfeitamente bem, ela mal imaginar qual seria a reação
de Mac-Bain, se fosse acusado de ser surdo.
Era melhor não dizer nada.
— Hora de acordar — disse Rob, chacoalhando o ombro de Mairi, com
delicadeza. Levantou-se, e dirigiu-se para o bosque. Precisava colocar as ideias
em ordem antes de tratar com ela. A esposa haveria de querer explicações de
como ele permitira que aquilo acontecesse e o que planejava fazer, em
seguida.
Mairi tinha o direito de saber por que aquele homem havia tentado matá-
la. Porém, mesmo que ele fosse o melhor orador do mundo, não poderia
interrogar o facinora naquela manhã, pois se chegasse perto do patife, iria
matá-lo.
Descobriria tudo assim que chegassem a Baincroft, quando Thomas
interrogasse o prisioneiro por ele. Porém, como poderia explicar tudo isso a
Mairi sem revelar a verdadeira razão pela qual ele não podia fazer o
interrogatório naquele momento, por si mesmo?
Ao retornar ao acampamento, Mairi ainda continuava deitada.
— Está doente? — perguntou preocupado. Ela costumava levantar-se
imediatamente e preparar-se para a viagem.
Viu que os dedos dela apontavam para a garganta e que havia lágrimas
em seus olhos. A vontade de matar o animal que fizera isso a ela invadiu-o, de
novo.
Agachando-se ao lado dela, Rob segurou-lhe o rosto, inclinando-lhe a
cabeça para trás. O pescoço de Mairi mostrava os hematomas resultantes do
ataque. Ele deixou escapar um suspiro de pesar.
— Ponha água para aquecer — gritou para Andy. Tinha algumas ervas
entre os mantimentos. Uma cataplasma iria ajudar a aliviar as dores e uma
tisana facilitaria a deglutição.
Mairi sentou-se e apontou para a boca, balançando a cabeça. Então,
estendeu a palma da mão e fez um gesto, como se escrevesse, com uma
expressão de indagação.
Rob compreendeu. Levantou-se e dirigiu-se ao local onde estavam as
sacolas de viagem. Apanhou uma lou sa e um bastonete de grafite, utensílios
que sempre carregava consigo desde que havia aprendido a escre ver, quando
criança. Em emergência, sempre usava dessas ferramentas para esclarecer
aquilo suas palavras não conseguiam.
Não tinham sido poucas as vezes que precisara delas e agradecia aos
céus por tê-las a mão, no momento. Faria qualquer coisa para poupar Mairi,
pensou, ao voltar e estender-lhe os utensílios. Conhecia muito bem o
aborrecimento que era querer dizer alguma coisa e não poder.
Precisamos partir hoje?, ela escreveu, implorando com os olhos para
descansar mais um pouco.
Rob tomou a lousa da mão dela e apagou as palavras. Escreveu,
rapidamente: Ao meio-dia. Seu primo nos persegue.
Mairi meneou a cabeça, indicando que compreende ra, mas trazendo
ainda nos olhos um ar de indagação. Sem pensar, ele escrevera a resposta ao
invés de simplesmente falar com ela. Onde estava com a cabeça? Mais que
depressa, respondeu.
— Precisamos ir.
De novo, Mairi fez um sinal de compreensão e, logo, baixou o olhar. Rob
deixou o material de escrita ao lado dela e afastou-se, para preparar as ervas.
Quando chegou o meio-dia, Mairi parecia ter melhorado. Rob sorriu
satisfeito. Seguiram viagem. Felizmente, o dia estava ameno e o terreno
começava a tornar-se mais fácil. Estavam deixando as Terras Altas para trás, a
caminho das colinas e vales suaves das Terras do Meio. Alternando as próprias
montarias com aquelas recolhidas dos assaltantes, tinham conseguido poupar
os animais e percorrer a estrada em um tempo mais curto do que Rob havia
esperado.
Andy Miúdo emparelhou o cavalo, pondo-se a cavalgar a lado de
MacBain.
— Podemos chegar a Trouville o mais tardar amanhã, ao entardecer.
— Não — retrucou Rob. — Vamos para Baincroft. -
— Mas…
— Precisamos chegar em casa. E depressa.
— Eu poderia ir na frente — sugeriu Andy, lançando um olhar de relance
para trás, na direção de Mairi.
- Contar a eles o que esperar. Rob considerou a sugestão. Mairi devia
sentir-se miserável. O ataque não só a machucara, como a abalara
profundamente. E a impossibilidade de ingerir alimen tos sólidos iria deixá-la
fraca.
Ela precisava de uma cama macia e de cuidados. As horas a mais que
levariam até chegar em casa, se passassem direto pelo castelo de seus pais,
seriam cer tamente um desconforto desnecessário. Era egoísmo da parte dele
preocupar-se com os próprios problemas, quando poderia, facilmente, aliviar o
sofrimento que Mairi enfrentava.
E seus pais? Ficariam surpresos ao descobrir que, finalmente, ele
arranjara uma esposa? Sabia como ha viam ficado preocupados quando
Jehannie rejeitara o compromisso. Contudo, agora, ele poderia apresentar-se
diante deles com uma filha que iriam amar, com certeza. Estava ansioso por
apresentar Mairi a eles. E eles a Mairi. Quanto mais retardasse esse momento,
mais sua mãe haveria de ficar aflita.
Iriam parar para uma rápida visita, decidiu. Porém, todos deveriam estar
informados da situação e jurar segredo.
— Então, está bem — concordou. — Procure ser rápido e chegar amanhã
à tarde. E certifique-se de que… — Lançou um olhar significativo a Andy para
completar o pensamento.
— Vou cuidar disso.
Andy puxou as rédeas e voltou a cavalgar ao lado de Mairi. Rob arriscou
um olhar para trás e viu que a esposa sorria. Andy devia estar contando a ela
do conforto que logo haveria de desfrutar.
Tinha sido a decisão acertada, pensou. Os pais não sabiam que Thomas
se encarregara de lhe arranjar um casamento. Rob resolvera não contar nada a
eles até que o fato fosse consumado. Sua mãe sonhara em ter Jehannie como
nora e se desapontara demais com o acontecido.
Rob tinha certeza de que eles receberiam Mairi muito bem, afinal, eram
educados, amavam-no demais e desejavam que ele fosse feliz. Contudo, se
iriam apoiar sua decisão de ocultar a verdade, mesmo por um dia ou mais, isso
era outra questão.
O pai poderia concordar, embora certamente fizesse objeções, pois fora
objeto do mesmo tipo de conspiração durante meses, depois que se casara
com sua mãe. Ela tivera medo que o marido não pudesse tolerar o defeito do
enteado e fosse mandá-lo embora. Podia rir-se agora da forma como haviam
julgado mal a Trouville. Não, seu pai poderia não gostar daquela farsa, porém
nada faria para deixar Rob em uma situação difícil.
A única pessoa que o preocupava era Alys, sua irmã. Rezou para que
estivesse cuidando de negócios, em algum lugar, menos no castelo.
Enfim, devia preparar-se para o pior e esperar pelo melhor. Mairi tinha
que saber da verdade, mais cedo ou mais tarde. A única esperança que lhe
restava era que fosse mais tarde, depois que ela houvesse visto que ele podia
se equiparar aos outros lordes, a despeito da surdez.
O pensamento o chocou. Nunca antes ele maldissera seu defeito. Sempre
se determinara a ver o lado bom do fato, as bênçãos de seus outros dons, por
exemplo. A humildade que desenvolvera desde a tenra idade, tornando-o mais
bem preparado para o posto de cava leiro do qualquer outro homem, sua
compaixão natural pelos defeitos dos demais e seus sentidos desenvolvidos
oram dádivas dos céus que deveria apreciar.
Mesmo quando Jehannie o rejeitara, alegando que o avô paterno a
alertara para o defeito de Rob e a influência hereditária que poderia ter, ele
sentira uns imenso alívio só ofuscado pelo orgulho ferido. Na ver dade, não
admitira isso nem para si mesmo até aquele instante. Usara a traição para
evitar aproximar-se de qualquer mulher, desde que isso acontecera. Percebera
que era difícil relacionar-se, partilhar o coração.
Rob balançou a cabeça, intrigado com os estranhos meandros nos quais
sua mente se enredara. Jehannie podia ter abalado sua confiança em si
mesmo, porém jamais o fizera maldizer seu destino, como agora ele maldizia.
Mairi, sim.
Ele podia sentir a revolta crescendo dentro do peito, naquele instante.
Desejou que Deus pudesse escutá-lo. Mais que tudo, desejou poder ouvir o
som da voz de Mairi. Para vibrar com ela quando a levasse para cama, para
acordar com ela todas as manhãs. Para responder com a mesma facilidade
com que a maioria dos homens falava com suas esposas.
Rob ergueu a cabeça e fitou os céus, o rosto transtornado em um desafio
e uma acusação. Através dos dentes cerrados, verbalizou a pergunta que
sempre negara ter dentro do peito, aquela que lhe requeimava a alma, sur
damente, desde que atingira a idade da razão:
— Por que eu?
Mairi percebeu que aquele dia lhe dera nova pro fundidade à
compreensão do comportamento de seu taciturno marido. Tinham parado por
diversas vezes, durante a viagem, e era óbvio que Rob se preocupava com ela.
Temia que o ataque da noite anterior lhe houvesse roubado as forças. De fato,
isso acontecera, mas Mairi apreciara duplamente a consideração. Fi nalmente,
tivera oportunidade de conversar com ele.
Cada vez que desmontavam, eia apanhava depressa a lousa e o grafite e
escrevia tudo o que lhe vinha à mente. Então, estendia a ele e esperava,
ansiosa.
A princípio, ele pusera a lousa de lado e respondera, com uma ou duas
palavras. Porém, como ela conti nuasse a insistir, ele passara a escrever as
respostas.
A testa franzida e a expressão preocupada a aler taram. Rob devia estar
ansioso, esperando que ela co mentasse como parecia mais fácil a ele
expressar-se escrevendo do que falando. Claro que não faria isso. Era um jogo,
a ser jogado a dois.
Provavelmente ele a julgasse um pouco cabeça-de-vento, já que ela
parecia não notar o inusitado da si tuação. Isso não importava. De qualquer
jeito, muitos homens julgavam as mulheres criaturas sem miolos. No que lhe
dizia respeito, Rob logo saberia a verdade quanto a isso, mas, primeiro, ela
tinha intenção de descobrir tudo que pudesse a respeito dele.
Ele se mostrara bastante eloquente quanto à família. Com suas
descrições, ela quase pudera visualizar o respeitado Trouvílle, seu amado
padrasto, e sua sábia o bela mãe, lady Anne. O filho de Trouville, Henri, voltara
para a terra natal, a França, e Rob parecia sentir muita saudade dele. Sua
irmã, Alys, ainda não se casara, e ele deixara a impressão de que se preo
cupava com o fato.
Que filho orgulhoso e que irmão devotado era ele. Mairi bateu palmas e
enviou-lhe um sorriso quando Rob lhe contou que iriam visitar os pais dele, no
dia seguinte. Ela já sabia, é claro, pois Andy havia lhe dito. Porém, queria
expressar sua satisfação. Ele sorriu em resposta, parecendo feliz, embora ela
pudesse ver um ligeiro sinal de preocupação, no fundo de seus olhos.
Mairi sabia que ele temia que a família pudesse revelar seu segredo,
desmascarando-o perante ela. Na verdade, seria bastante difícil deixar de
"descobrir", porém ela tinha a intenção de contornar a situação, se fosse
possível. Queria que o marido confiasse nela o bastante, para contar, ele
mesmo, toda a verdade.
A pronta aceitação em escrever as respostas parecia vir confirmar suas
suspeitas. Ele certamente escrevia com mais desenvoltura do que falava, e
Mairi estava convencida de que não se enganara. Rob era surdo.
Quando pararam, finalmente, para passar a noite, Andy Miúdo saiu a
recolher galhos secos para fazer fogo e Rob ocupou-se em amarrar os cavalos
a uma boa distância, para evitar o cheiro inevitável que a presença dos
animais trazia para o acampamento.
Mairi desembrulhou alguns mantimentos para a refeição e pôs-se a
esperar que os homens voltassem,
O prisioneiro chamou-lhe a atenção. Estava amarrado a uma árvore,
imóvel e calado, a não ser por um ou outro gemido. Ninguém o interrogara
ainda para saber os motivos pelos quais ele tentara matá-la. Mairi já deduzira
que Rob iria esperar até que chegassem a Baincroft, onde alguém se
encarregaria disso. Ela, porém, queria saber. Naquele momento.
Com um rápido olhar em direção à clareira, Mairi assegurou-se de que
Rob estava de costas, ocupado em retirar uma pedra do casco de uni dos
cavalos. Andy ainda não voltara do bosque. Levantou-se e saiu cami nhando,
assumindo um ar casual, até que se aproximou do bandido que ameaçara sua
vida. Abaixou-se para falar com ele, mantendo uma boa distância entre
ambos.
O homem tinha uma aparência terrível, com poucos dentes na boca, os
lábios rachados e cobertos de sangue coagulado, um olho quase fechado com o
inchaço. Andy o amarrara com os pulsos para trás, presos aos tornozelos, e ele
jazia de lado, praticamente incapaz de se mover.
— Qual é seu nome? — ela perguntou, procurando a faca que sempre
trazia pendurada ao cinto.
Embora conhecesse pouco as outras armas que os homens usavam, seu
pai a ensinara muito bem a como empunhar uma lâmina afiada para a própria
proteção. Nunca tivera ocasião para ameaçar alguém com isso, mas sentia que
chegara o momento.
— Quero saber como se chama, antes de… me di vertir — continuou
Mairi, imprimindo uma intenção diabólica na voz. Assustá-lo parecia justo, já
que aquele homem fizera muito pior com ela.
Ele voltou a cabeça, a única parte do corpo que podia mexer, e fitou-a,
os olhos ensanguentados cheios de pavor.
— Nort. Gert Nort — ele gaguejou. — Piedade, se nhora, não foi ideia
minha matá-la, eu juro!
— Ora, ora, eu acho que a minha é matá-lo! Devagar e penosamente —
ela acrescentou, pronunciando as pa lavras com um brilho ansioso no olhar.
Tirou a faca da bainha e pôs-se a brincar com ela, testando a ponta com o
dedo. — Posso ser persuadida a fazer isso rapidamente, se me contar a
verdade. Vou perguntar uma vez só, ouça bem — advertiu. — Quem ou o quê
o convenceu a tentar se arriscar a ser recapturado? Você podia ter fugido. —
Apontou para o marido. — Se tivesse escapado para longe, provavelmente ele
não pudesse pegá-lo.
0 homem engoliu em seco e encarou-a com um olhar suplicante.
— Senhora, promete que não vai se vingar? Que vai me dar uma morte
suave?
Mairi relanceou os olhos para Rob. Ele continuava a lidar com os cavalos
e não olhava nessa direção. Voltou a atenção para o patife que dizia chamar-se
Nort.
— Se me contar, juro que não o farei sofrer. Quem quer me ver morta?
E por quê?
— Ranald Maclnness — ele respondeu depressa. — Ofereceu cinquenta
marcos ao homem que lhe trouxesse sua mão. De um jeito ou de outro, ele
jurou que a teria, senhora.
— Minha mão? — ela perguntou, incrédula. Será que o idiota entendera
mal as palavras de Ranald? Certamente seu primo pretendera dizer a ele que a
levasse de volta a Craigmuir, de maneira que ele pu desse pedir sua mão em
casamento. Impossível que se referisse a outra coisa!
— Viva ou morta, senhora! — exclamou Nort com ên fase. — Foi esse o
trato. Ele deixou bem claro que pagaria por uma coisa ou outra, não
importava. Cinquenta marcos de recompensa. — Então, prosseguiu,
implorando que ela tivesse piedade, explicando as razões pelas quais precisava
do dinheiro e que suas necessidades eram tamanhas que o levaram a aceitar o
assassinato.
Mairi ignorou as súplicas e embainhou o punhal, voltando para a
fogueira.
— Espere! — ele gritou. — Senhora, e sua promessa? Prometeu-me uma
morte rápida! Não pode deixar que eles…
— Sim, eu posso — ela respondeu, por sobre o ombro. — Mantenho
minha promessa. Não serei eu que vou fazê-lo sofrer. Espero que ele o faça —
emendou, apon tando para o marido, ainda ocupado, e incapaz de ouvir a
breve troca de palavras entre ela e o prisioneiro.
As lamúrias do homem não a demoveram, ele devia ter fugido quando
tivera a chance. Que o medo o atormentasse, por algum tempo, até chegar
sua hora.
Ela iria sugerir a Rob que lhe desse um fim rápido, pois abominava a
tortura mesmo quando era merecida. O marido poderia ou não aceitar, mas, ao
final, a maneira com que Nort morreria não seria decisão sua.
O fato de Ranald desejar sua morte não a surpreendia. Enquanto ela
vivesse, o povo de Craigmuir relutaria em aceitar-lhe a autoridade, sabendo
que fora ele quem or denara o assassinato de seu pai. Todos teriam esperança
de que ela voltasse com reforços, para vingar o senhor de Maclnness. Era
assim que as coisas eram feitas.
Contudo, se ela enviuvasse e depois se casasse com Ranald e ficasse sob
o poder dele, todos seriam forçados a se ajoelhar perante ele. E, se ela
estivesse morta, não teriam como esperar que voltasse e o expulsasse de suas
vidas. Mairi podia entender a lógica dos fatos.
Lamentou que Ranald não tivesse mostrado que tipo de homem era,
anos atrás, antes que o clã o houvesse escolhido para sucessor de seu pai. Ao
invés disso, ele fora adotado pela mãe de seu senhor até chegar a cavaleiro.
Então, aparentemente, viajara por algum tempo. Passados dois anos, havia
retornado, exigindo que o colocassem em uma posição de responsabilidade
que o haveria de preparar para ser lorde. Naquela, parecia uma coisa razoável
a fazer, de maneira que lhe foi dada uma das menores fortalezas. Somente
mais tarde, percebeu-se o quão desregrado e ambicioso de poder seu primo se
tornara.
Mairi sempre o evitara, trancando-se em seu quarto cada vez que ele
vinha visitá-los, em Craigmuir. Nem se mostrava, a não ser que seu pai
estivesse por perto, para protegê-la. Ranald nunca disfarçara sua intenção de
tê-la como esposa e absolutamente não deixava de forçar o assunto, se
encontrasse oportunidade.
A despeito disso, ninguém nem sequer ousaria so nhar que ele se
atreveria a promover um ataque para tirar o lorde de seu caminho. Agora, ela
se sentia ainda mais obrigada a vingar a morte do pai e libertar o povo de
Craigmuir das mãos impiedosas de seu primo.
Devia persuadir Rob, de alguma forma, a ajudá-la a cumprir a jura. Se
falhasse, todo o clã sofreria e ela nunca estaria a salvo, enquanto Ranald
vivesse.
Mairi percebeu que Rob se afastava do lugar onde deixara os cavalos e
atravessava a clareira para jun tar-se a ela. Trazia um sorriso ansioso nos
lábios.
Seu comportamento mudara por completo desde que haviam começado
a trocar palavras, por escrito. Ignorando a pontada de culpa que podia
vislumbrar nele pela farsa, Rob parecia bastante feliz em tê-la como esposa.
Ela podia apenas imaginar qual seria sua reação se o enfrentasse com
um ultimato. Conhecendo-o como agora, Mairi decidiu que agira certo. MacBain
não iria responder bem a qualquer exigência, fosse dela, fosse de qualquer
outra pessoa.
Contudo, realmente acreditava que ele moveria céus e terra para prestar
ajuda a um amigo em necessidade. E, sendo assim, Mairi tinha intenção de
tornar-se a amiga mais íntima que lorde Robert MacBain jamais tivera.
Rob aproximou-se e tomou-lhe as mãos nas suas, com um sorriso de
uma doçura tão intensa que lhe roubou o fôlego. O coração de Mairi pareceu
querer saltar do peito quando ele inclinou-se e roçou os lábios contra os dela,
em um beijo tão leve quanto uma pluma. Fechou os olhos e deixou-se inundar
pelas novas e deliciosas sensações que o marido despertava nela.
A parte de seus deveres para com seu pai e o clã, Mairi tinha uma outra
razão bastante forte para es tabelecer um vínculo de amizade com o marido,
ele precisava mais dela do que ela dele.
Ao se dar conta do pensamento, baixou os olhos para que Rob não
pudesse ver neles a compaixão, o que certamente não seria bem-vindo, mas o
sentimento brotava dentro dela toda vez que pensava em tudo o que ele devia
suportar, vivendo sem qualquer som.
Era preciso impedir que seu instinto de proteção se pusesse em seu
caminho, ao tentar definir como se sentia em relação a ele, como um homem.
Era desejo, amor ou um impulso maternal? O que quer que fosse, ela nunca
experimentara algo assim antes, e não sabia que nome dar a isso.
Mairi não conseguia classificar adequadamente seus sentimentos para
com o pobre rapaz que lutara valo rosamente contra uma horrível
desvantagem e para com o guerreiro belo e forte que havia incendiado seu
sangue desde o primeiro instante em que o vira.
Sua confusão era desconcertante, para dizer o mínimo.

CAPITULO VII

No dia seguinte, após a refeição matinal, Mairi ficou a observar enquanto


Andy Miúdo amarrava Gert Nort na sela de um dos animais mais fortes. O
prisioneiro continuava a fitá-la com olhos suplicantes, mas não disse nada.
Andy tomou as rédeas das mãos de Rob.
— Até mais tarde — disse Andy à guisa de despe dida, e partiu para
preparar os pais de Rob para sua chegada, ao final do dia.
— Tome cuidado — retrucou Rob, acenando e vol tando-se para o fogo,
evitando olhar para Mairi.
Culpa, de novo, ela percebeu. Ele havia enviado Andy não apenas para
que fossem bem recebidos, mas para avisar a família que devia apoiá-lo em
sua farsa.
Uma criança sem qualquer discernimento poderia ter entendido os
olhares que os dois homens haviam trocado. Haviam até trocado alguns sinais
com as mãos, quando julgaram que ela estava olhando para outro lado.
Mairi ficou desgostosa com o subterfúgio, triste por saber que Rob
achava aquilo necessário. Será que acre ditava que ela renunciaria a ele e
voltaria para Craig muir? Era um tolo, se assim pensasse.
Rob, como ela o tratava agora em pensamentos, sem pre haveria de
precisar de alguém que cuidasse dele.
E já que fora até as Terras Altas para encontrar uma esposa e, depois,
não contara a ela sobre seu problema, Mairi só podia deduzir que nenhuma
outra mulher o quisera, por causa disso. Ele era dela, para todo o sempre.
Em algum lugar, no recesso de sua mente, Mairi ficou a imaginar se
conseguiria se sair bem como es posa de um homem forte e invencível tal
como Rob seria, se tivesse todos os sentidos intactos. A bem da verdade, ela
precisava ser necessária. Essa era sua natureza. Porém, também apreciaria o
fato de ter que enganá-lo? De predizer seus movimentos e quem sabe exercer
um pouco de controle sobre ele?
Mairi admitia que o orgulho figurava entre seus maiores defeitos. Isso, e
ser tão impulsiva em seus julgamentos. Dessa vez, contudo, ela tinha pesado
cui dadosamente as evidências. Quem sabe pudesse con trolar o orgulho da
mesma forma, algum dia.
Advertiu a si própria, com toda a severidade, para nunca usar sua
vantagem sobre o marido. Devia ser para ele uma colaboradora, uma guardiã
de sua dig nidade e de seu bem-estar.
Rob fitou-a por sobre o ombro e sorriu de seu jeito cativante, com uma
expressão que a fez se sentir a única mulher no mundo que lhe merecia a
atenção. Mairi sus pirou, incapaz de se conter. O que quer que faltasse a esse
homem, pensou, com um arrepio de desejo, não era certamente o atrativo
físico. Além disso, ele revelava uma doce inocência em alguns momentos que
Mairi só notara nas crianças que ainda não haviam aprendido como o mundo
podia ser cruel. Sentiu, então, que estaria disposta a morrer para preservar
essa inocência.
— Venha, descanse — ele sugeriu, estendendo a mão a ela. Já estendera
as mantas e enrolara uma outra para que servisse como travesseiro.
Estava se entregando a devaneios, ou ele pretendia fazer amor com ela,
agora que estavam sozinhos? Mairi tomou-lhe a mão, um tanto ansiosa. Ele,
entretanto, apenas a ajudou a se acomodar sobre a cama impro visada e
afastou-se, ocupando-se em apagar todos os sinais de que tinham acampado
ali.
Ao perceber que Rob desejava somente dar um tempo para que Andy
Miúdo chegasse ao castelo de Trouville, Mairi resolveu dormir um pouco.
Precisaria de toda sua perspicácia quando encontrasse a família do marido.
Não se preocupou em pensar se a aceitariam. Se Rob julgara necessário ir tão
longe para encontrar uma esposa que o quisesse, ela não tinha dúvidas que
seria recebida com satisfação.

— Ele fez o quê? — indagou lady Anne, olhos ar regalados, boquiaberta.


Andy Miúdo estremeceu.
Ela cruzava o pátio quando ele atravessara os por tões, e Andy não
perdera tempo em contar-lhe a no vidade. Na verdade, não havia tempo a
perder. Não quando algumas centenas de almas precisavam jurar manter um
segredo.
— Casou-se, milady — repetiu Andy Miúdo, sentin do-se subitamente
sem jeito e cada vez mais preocupado.
Lady Anne parecia prestes a desmaiar. Precisava explicar tudo a ela, e
depressa.
— Sir Thomas arranjou o casamento. Procurou por toda a Escócia para
encontrar uma esposa adequada. Foi-a Craigmuir, nas Terras Altas,
pessoalmente, e firmou o noivado.
— Entendo — disse iady Anne, embora não pare cesse aprovar o ato de
Thomas.
— Lorde Robbie esperou por dois meses depois de o contrato ser firmado
para reclamar a noiva — continuou Andy —, mas sir Thomas não pôde
acompanhá-lo porque quebrou a perna. Logo depois que chegamos, o castelo
foi atacado.
— Rob ficou ferido? — ela gritou, agarrando-o pelo braço.
— Nem um arranhão — assegurou ele. — Embora tenhamos perdidos
três bons homens. Newton estava entre eles, sinto dizer.
As lágrimas assomaram aos olhos da senhora, ao saber da notícia.
— Pobre Newton. Era um bom camarada. Rob vai sentir falta dele.
Assim como ela, Andy deduziu. Sua castelã havia treinado pessoalmente
Newt para o serviço de Rob e o conhecia desde que o rapaz nascera.
— O lorde foi assassinado, também — acrescen tou Andy.
— O pai da noiva? — perguntou lady Anne, abismada.
— Sim — confirmou Andy. — Antes de morrer, lorde Maclnness pediu
para que o casamento fosse realizado para que ele pudesse ver sua filha em
segurança. Lorde Rob, a noiva e eu nos pusemos a caminho assim que foi
possível. Os bandidos nos deram caça, porém Rob despachou-os todos para o
inferno. Sobrou um, que ele trouxe vivo. — Virou a cabeça, na direção do
prisio neiro. Calou-se, enquanto a senhora passeava de um lado para outro,
torcendo as mãos.
— Então, o casamento é um fait accompli.
— Um o quê?
— Um fato consumado — ela explicou, com impa ciência. — Isso… isso é
uma enorme… infelicidade — resmungou para consigo mesma, voltando a
andar, como se não conseguisse permanecer parada. — Se Rob, pelo menos,
tivesse esperado…
Andy Miúdo jamais vira sua senhora, sempre tão serena, tão perturbada
assim, em todos aqueles anos em que a conhecia.
— O senhor nosso lorde não está em casa? — per guntou, desejando
poder confiar o resto das novidades a ouvidos mais receptivos. Isso,
presumindo que lorde Trouville pudesse reagir com tranquilidade às novas.
— Não! — Ela praticamente gritou a palavra para, em seguida, conter-se,
olhando de um lado para outro, como se procurasse por alguma solução. —
Deve chegar em casa a qualquer momento. — Então, caminhou ate Andy e
pousou a mão em seu braço. — Em quanto tempo acha que Rob e sua noiva
vão chegar?
— Duas, três horas, eu acho. Não antes disso. Um pouco mais, se a
moça estiver cansada e precisar de repouso. O prisioneiro tentou matá-la a
noite passada. A pobre ficou muda por causa da tentativa de estrangulamento.
Lady Anne ofegou, levando a mão ao pescoço. Lançou um olhar rápido
para o prisioneiro, deitado e amarrado sobre a sela e, então, fez um sinal para
um dos guardas que se aproximara, movido pela curiosidade.
— Trancafie este patife e monte guarda. Vamos cui dar dele mais tarde.
Andy, você vem comigo. — Sem esperar por ele, ela dirigiu-se rapidamente
para a es cada que dava entrada para o hall.
Assim que entraram, a senhora de Trouville mandou que uma das criadas
trouxesse comida e cerveja para Andy. Mesmo preocupada com as notícias, ela
não deixava de ser atenciosa, como sempre.
Andy crescera sob a tutela de lady Anne, aprendera a ler e a escrever
com ela, junto com lorde Rob, sir Thomas, lady Jehan, assim como outros
súditos do castelo, como Newt.
Sentira saudade dela quando lorde Trouville construíra esse novo castelo
e mudara-se com ela para ali, a poucas horas de Baincroft.
E, por conhecê-la bem, Andy não podia compreender o que a preocupava
tanto com relação ao casamento de Rob. Sabia, porém, que ela estava aflita
com isso.
— Milady? — atreveu-se a perguntar. — Por que Lorde Robbie não lhe
contou que ia tomar uma esposa?
Ela encolheu os ombros, esfregando os braços com as mãos.
— No último Natal, quando esteve aqui, Thomas jurou que iria arranjar
um casamento para Rob. Eu pensei que era conversa fiada. Afinal, ele se sentia
mal desde que a própria irmã… — De súbito, ela ca lou-se e gemeu. — Jehan!
Voilà! Temos que tirá-la daqui antes que cheguem, Andy!
— Ela está aqui? Deus do céu, ela vai estragar tudo! Lady Mairi não sabe!
- Sobre Jehan? — perguntou lady Anne. — Ora, eu devia saber que não!
Que homem com algum senso iria falar de sua ex-noiva para a nova esposa?
— Não, milady, ela não sabe sobre Rob ! Lady Mairi pensa que ele pode
ouvir! Ele me pediu para dizer à família que não permitisse que…
— Deus nos ajude! — Ela levou os dedos às têmporas e revirou os olhos,
para os céus. — Mas o que ele estava pensando? E essa esposa que ele
encontrou é estúpida, retardada? — Ergueu as mãos para o alto, em aflição. —
Oh, Senhor, era só o que me faltava! U ma nora sem miolos!
— A moça não é boba, milady, mas fala demais. Ao menos por enquanto
é obrigada a ficar calada. Agora, os dois escrevem para se comunicar e
poupar-lhe a garganta. Parecem estar se entendendo, apesar disso.
— Então, por que..
Andy deu de ombros.
— Bem, Rob quer esperar até que ela possa ver por si mesma que ele
não é um inútil. Sabe como é, ob servar como Baincroft prospera tão bem em
suas mãos, e coisas assim. Depois, ele confessará tudo.
Um sorriso cruzou a face de lady Arme, cada vez mais pálida.
— Ah, Andy, um plano absurdo para. ser posto em prática, mas eu me
empenharei de corpo e alma para ajudar, pois não quero colocar empecilhos no
caminho de meu filho.
Ela se calou. Remoía os pensamentos, suspeitou Andy.
Lady Anne era inteligente, com certeza, tinha sempre uma resposta para
tudo, sabia exatamente o que fazer. Em sua opinião, só ficava em segundo
plano para a Mãe Abençoada, embora nem sempre estivesse disposta a per
doar o maucomportamento dos súditos. Andy era teste munha disso. Ele a
venerava.
— Vou avisar a todos para que mantenham silêncio. Você, encontre
Jehan — ela ordenou. — Diga-lhe que deve partir para Baincroft dentro de uma
hora. Pense em algum pretexto, qualquer pretexto, para afastá-la da qui. Você
vai levá-la. Diga que Thomas precisa dela, ou que Rob é esperado lá, a
qualquer momento. Diga qual quer coisa, mas tire-a daqui o mais depressa
possível.
— Ela voltou, por quê? — atreveu-se Andy a per guntar, não se
preocupando em disfarçar a contrarie dade. Jehan, que tinha sido sua amiga
de infância, que fora prometida a Rob e o traíra, quando chegara a hora de se
casar, não lhe merecia o respeito, — Ela mudou a maneira leviana de pensar,
de repente?
— Não — respondeu lady Anne com um sorriso tris te. — Parece que
tudo foi obra de seu avô, afinal. Jehan nunca soube que ele havia anulado o
noivado dela com Rob, até que meu filho quis marcar a data do casamento. Só
no mês passado ela conseguiu esca par de sir Simon. Uma semana depois,
chegou a Bain croft, disposta a honrar seu compromisso com Rob.
— Tarde demais — comentou Andy, bufando. Lady Anne concordou.
— Ela esperou por isso, por anos. E Thomas, obvia mente, não contou
nada sobre seus atos. Mandou-a direto para mim e pediu que ela esperasse
aqui. Vou dar uma dura reprimenda naquele patife quando o vir da próxima
vez! Ele devia ter preparado a irmã para tudo isso!
— Não serei eu que vou dizer a ela! — anunciou Andy, em pânico. —
Conhecendo seu temperamento, sei que Jehan pode muito bem matar o
mensageiro! Não duvido de que Thomas tenha pensado nisso.
Lady Anne deixou escapar um suspiro.
— Não cabe a mim dar explicações, porque não co nheço todos os
detalhes. Você vai levá-la a Thomas, Andy. Ele arranjou essa confusão, que
resolva tudo. — Pez uma pausa e apontou o dedo em riste. — Por ordem
minha, ele tem que fazer isso antes que Rob chegue a Baincroft.
— Bastante justo! — respondeu Andy, na verdade antecipando o
confronto inevitável. Thomas e Jehan digladiando-se, como nos velhos tempos.
Planejava ob servar tudo por detrás de algo sólido e firme.
Com um sorriso de malícia, deixou que lady Anne tomasse as
providências para receber Rob e lady Mairi, enquanto ia procurar aquela que
haveria de chorar pela falta de um noivo.
Quem sabe Jehan não houvesse mesmo rejeitado Rob, como uma vez
pensara. Porém, se houvesse per manecido em casa e não se afastasse por
todos aqueles anos para gozar do brilho da corte, ela nunca teria que passar
por isso. Estaria casada e provavelmente já seria mãe de um monte de filhos.
Contudo, acontecera diferente, e Jehan partira o co ração sensível de
Rob. Por esse ato, nem Andy nem qualquer um outro que houvesse visto como
isso magoara o jovem lorde, iria perdoar aquela gata selvagem.
Andy, por sua vez, nunca gostara muito dela. Queria que ela descobrisse
que havia sido preterida, porém, não contaria nada, nem para ganhar todo o
ouro de dois reinos.

Mairi observava a tudo, ansiosa, procurando os primeiros sinais do


castelo de Trouville. Rob escrevera, na lousa, que era o lugar mais belo da
Escócia. Embora não se comparasse em tamanho aos de Edinburgh, Stirling ou
Roxburgh, que tinha em conta como des lumbrantes, a mobília era mais cara e
sua beleza era insuperável, ele havia prometido. A descrição não significava
muito para Mairi, que nunca vira outros castelos, a não ser o de seu pai.
Ele lhe prometera que viajaria com ela de vez em quando e lhe mostraria
o mundo que conhecera quando participava de torneios. Sugerira até que
poderiam se aventurar pela França, algum dia.
Finalmente, ela viveria as aventuras com as quais sempre sonhara.
Novos lugares, novas pessoas, uma nova vida. O pai ficaria feliz por ela,
pensou. Como desejava poder escrever a ele, mais tarde, e contar tudo, como
ele a havia regalado com fábulas de lugares distantes pelos quais viajara,
quando era jovem.
O pai, porém, estava com Deus. Por mais que la mentasse sua morte,
Mairi sabia que precisava lutar com todas suas forças para fazê-lo lembrado
através de sua pessoa. A filha de Maclnness era ela, dotada da coragem que
teria abençoado os filhos homens, se seu pai os tivesse tido. O pai afirmara
isso a ela. Por isso mesmo, ela jamais fraquejaria ou vacilaria ao se defrontar
com um desafio.
Eis que lá estava o castelo, ao chegarem à colina. Mairi espantou-se.
Nunca, em sua vida, ela imaginara que um tal lugar pudesse existir.
— Pelo Crucifixo sagrado — murmurou deslumbra da. — E magnífico!
Rob deixou escapar um som de satisfação, mas Mairi não conseguiu
desviar os olhos arregalados daquele lugar maravilhoso, para observar o
marido.
As torres brancas pareciam subir até perto das nu vens. Uma muralha
em curva rodeava o castelo, de um branco reluzente que brilhava como a neve
ao sol do entardecer. Em um contraste belíssimo, as colinas suaves sucediam-
se, verdejantes, até chegar ao outeiro onde o castelo se fincara. Uma graciosa
estrada sinuosa subia até os portões imensos.
— Perfeito… — ela murmurou, voltando-se final mente para Rob.
— Sim — ele concordou, sorrindo e fazendo a montaria avançar. — Papai
está fora — acrescentou, e, por alguma razão, aquilo pareceu deixá-lo muito
feliz.
Mairi examinou mais detidamente o castelo, notando a ausência de
cores. Os estandartes estariam voando ao vento se o lorde estivesse em casa.
Seu pai lhe falara sobre esse costume, embora não o empregasse em
Craigmuir. Anunciar a ausência do lorde em sua terra natal seria como fazer
um convite ao ataque.
Quanto mais perto chegavam, mais o trote dos cavalos se acelerava.
Mairi armou-se de coragem, que tinha começado a diminuir sensivelmente.
Não se preo cupara com isso antes, porém a família de Rob devia ser tão
imponente quanto seu castelo. Imponente como a realeza. O que haveriam de
pensar da esposa simples das Terras Altas que seu filho trouxera para casa?
Ela alisou as saias e puxou as mangas pelos punhos, sabendo que nada
disso tornaria seu vestido mais apresentável. Mesmo o mais bonito deles, que
ela deixara para trás na partida apressada, não serviria para en trar naquele
lugar de sonhos.
Mais meia hora, até que chegassem aos portões, e Mairi mergulhou em
um processo destrutivo da auto imagem. Só o recurso de lembrar a si mesma
quem era e aquilo que se esperava dela é que a impediu de tremer como uma
presa diante dos cães. A filha de Maclnness. A esposa de MacBain, ficou a
repetir, sem cessar.
Cavalgaram direto para os portões. Um assobio agudo se ouviu e a
cabeça de Rob voltou-se, na direção do som.
— Olá, Conor! — gritou. — Abra os portões!
Logo a seguir, as grandes portas duplas se escan cararam. Mairi, porém,
só tinha um fato em mente. Rob havia escutado aquele assobio agudo do
homem que chamara de Conor. Ele não podia ter ouvido! Ou podia? Todas suas
últimas deduções se desfizeram, como um pergaminho consumido pelas
chamas. Erra da! Ela estava errada quanto a ele.
Não, não podia estar! Tinha sido uma coincidência que Rob houvesse
olhado para cima naquele instante. Ele sabia onde estaria o guarda. Sim, ele
simplesmente levantara a cabeça para chamar e vira o homem lá. E o guarda
apenas assobiara naquele exato momento, era tudo. Uma coincidência. Deixou
escapar um suspiro de aflição, preocupada que houvesse se precipitado em
fazer o julgamento. De novo.
— Venha, venha — disse Rob, e incitou o cavalo, entrando pelo portal.
As grades levadiças, com suas pontas agudas, des lizavam para cima
com estalidos secos, liberando a passagem.
Mairi jamais vira algo semelhante e conteve o fôlego ao cruzar o portão,
temendo que a grade pudesse cair por acidente e traspassá-los com seus
espinhos horripilantes.
Uma multidão os esperava no pátio. Rob deslizou da sela, desmontando.
Mairi sentiu-se objeto de exame. Olhos curiosos a examinavam, julgando,
medindo, pro vavelmente achando que não era a noiva adequada para o filho
do senhor do castelo.
Ela endireitou os ombros e encarou-os de volta, em desafio. A filha de
Maclnness, repetiu, mentalmente. Um pouco de poeira da viagem e um
simples vestido de lã não iriam diminuí-la. Ela não o permitiria.
Rob agarrou as rédeas da égua e puxou-a através do amontoado de
gente, parando brevemente algumas vezes para trocar um aperto de mão com
vários dos homens. Logo, estavam perto das escadarias.
A multidão se afastou ligeiramente assim que Rob deu a volta e estendeu
os braços para ajudar Mairi a desmontar. No momento em que os pés dela
tocaram as pedras do calçamento, uma voz clara de mulher soou:
— Seja bem-vindo, meu filho. Andy me contou que você me trouxe uma
filha!
Rob segurou Mairi pela cintura.
— Minha mãe, lady Anne — disse com sua voz grave e monótona,
indicando a mulher alta e elegante, tra jada com um caro vestido de seda
verde. — Esta é minha esposa. — Inclinou a cabeça para ela. — Lady Mairi.
— Que bela surpresa é você, minha querida — disse a mulher, com uma
alegria um tanto exagerada. — Estamos encantados por lhe dar as boas-vindas
em nosso lar
— Meus agradecimentos — retrucou Mairi, com uma curta reverência,
envergonhada que sua voz soasse tão rouca como a de Rob. Sua garganta
ainda doía demais. Além disso, notara uma ponta de desapontamento nos
belos olhos acinzentados da sogra, embora suas pala vras tivessem sido
amáveis.
— Robertj por favor, leve sua noiva para o quarto de Alys. Um banho a
espera.
— Onde está Alys? — ele perguntou, parecendo le vemente perturbado
com o pedido da mãe.
— Foi a Edinburgb com seu pai. Devem estar de
volta logo.
— Amanhã? — ele perguntou, seus dedos se enter rando na cintura de
Mairi como se procurassem apoio.
— Esta noite, eu espero — ela respondeu. — A tempo
para a festa.
Rob deixou escapar uma praga muda que passou despercebida de todos,
a não ser de Mairi.
Sua mãe se voltará e subia a escada, e os outros conversavam entre si,
empolgados com a iminência de uma celebração. Mairi ficou a imaginar para
que seria essa festa e pretendia não comparecer.
A confusão reinava por onde passavam. Atravessa ram o grande hall. Ela
jamais vira decoração tão sun tuosa. Estandartes imensos pendiam das
paredes, in tercalados com brasões e tapetes de desenhos extre mamente
elaborados. As paredes mostravam faixas pintadas e um padrão único de flores
douradas. As mesas brilhavam, ostentando toalhas riquíssimas e
imaculadamente brancas. Certamente nem mesmo os reis viviam com tanto
esplendor.
Mairi tropeçou nos degraus quando Rob a conduziu, escada acima, do
hall gigantesco para os quartos da torre. Sentia-se pequena e insignificante, de
repente. Desejou estar em qualquer lugar, menos ali.
Fora um erro de enormes proporções, pensou, seu casamento com esse
homem. O que seu pai tinha em mente ao entregá-la para tal família?
— Está doente? — Rob perguntou, quando entraram
em um dos quartos.
O quarto, confortável e acolhedor, parecia próprio para uma rainha, mais
bonito que qualquer um que ela já tivesse visto. Mairi precisou afastar de si a
in credulidade para poder responder ao marido.
— Não, não estou.
— Tome seu banho — ele ordenou, apontando para a enorme banheira
de madeira que se escondia par cialmente atrás de cortinas de linho branco.
Uma criada estava em pé, ao lado, com um sorriso na boca em que
faltavam dentes. Mesmo seu uniforme parecia mais caro e certamente em
melhor estado que os trajes amarfanhados de Mairi.
Mairi baixou os olhos para si mesma e ficou a ima ginar o que faria. Se
soubesse, pelos menos, que tipo de grandiosidade iria encontrar depois de
casada, teria insistido que seu pai lhe comprasse roupas adequadas.
. Suas coisas podiam ser suficientes para a vida nas Terras Altas, onde o
conforto era a preocupação maior. Mas não ali em um lugar onde a senhora do
castelo vestia-se com uma elegância que muitas rainhas de viam invejar. Com
tristeza, Mairi recordou-se do ves tido de seda verde de lady Arme, de corte
tão diferente do seu, tão simples e sem graça.
— Bobagem! — resmungou, chacoalhando a cabeça diante dos
pensamentos de inveja. — Isso não tem
importância alguma.
— Apresse-se — disse Rob, empurrando-a de uma situação difícil para
outra. Ela não estava preparada para tirar a roupa em sua presença.
Ele deixou escapar uma pequena risada ao perceber seu visível
embaraço. Esfregando-lhe os ombros, como a querer transmitir-lhe confiança,
empurrou-a para frente, com delicadeza. Então, saiu do quarto, fechando a
porta silenciosamente.
O vapor da água quente era o céu, decidiu Mairi. Arrancou as roupas
como se estivessem em chamas e correu para a banheira.
— Ah… — gemeu deliciada, mergulhando até o pes coço na água quente
e perfumada com um toque floral. Devia pedir emprestado um pouco daquela
essência, pois não trouxera o próprio sortimento de óleo de rosas que seu pai
lhe havia dado. Todos os anos, em seu aniversário, ele a presenteava com o
perfume, dizendo que era o mesmo que sua mãe usava. Embora ligei ramente
diferente, o aroma de agora trazia lembranças doces e amargas do pai, que ela
nunca mais veria.
Nunca mais o veria, mas jamais se esqueceria dele nem de sua
promessa de vingá-lo.
Para conseguir ajuda em seu intento, ela precisava causar a melhor
impressão que pudesse ao marido e a toda sua família. Se gostassem dela o
bastante, quem sabe pudessem honrar seus desejos e ceder-lhe os ho mens
para que cumprisse seu voto de vingança e sal vasse seu clã de Ranald.
Quando, finalmente, ela se ergueu e sentou-se, a criada encheu uma
pequena caneca e despejou-a sobre os cabelos de Mairi, ensaboando-os e
esfregando-os delicadamente.
Ela se abandonou à sensação deliciosa de ser banhada como um bebé
frágil, expulsando para longe os pensamentos daquilo que poderia acontecer,
quando emergisse daquele calor aconchegante. Por enquanto, aquele prazer
imediato era tudo que precisava enfrentar.
Precisava de repouso, uma pausa longe da preocupação e as aflições. Iria
se levantar da banheira, ser enxugada e levada para dormir naquela cama
enorme, de aparência gloriosamente macia, com seus caríssimos brocados
pendurados no dossel. O amanhã seria a hora para enfrentar tantos demónios
quantos ela pudesse.
— Suas roupas — anunciou Rob. Jogou a mala sobre a cama e apontou
com o queixo para a porta, em uma ordem silenciosa para que a criada
deixasse o quarto.
A moça apanhou depressa o vestido sujo de Mairi e desapareceu, em um
piscar de olhos.
Mairi sentou-se, espalhando água em torno da ba nheira, segurando o
esfregão para cobrir o peito.
— Saia daqui! — murmurou.
— Papai está em casa — ele anunciou, não parecendo feliz com o fato. —
Ande depressa! — Dizendo isso, apa nhou uma das enormes toalhas de linho e
estendeu-a para Mairi, virando a cabeça e fechando os olhos.
Percebendo a urgência, Mairi agradeceu mental mente o gesto de
cavalheirismo, e saiu da banheira, enrolando-se na toalha.
Em uma fração de segundos, Rob desvencilhou-se das roupas e enfiou-se
no banho. Enquanto ele se es fregava, espirrando água para todo o lado, Mairi
enxugou-se e vestiu-se, apanhando a última blusa limpa e o vestido vermelho,
todo amassado. Era o melhor que tinha e devia servir.
O ruído de Rob se banhando a deixou louca de vontade de espiá-lo, mas
ela recusou-se a permitir que a
tentação a vencesse. Já vira o marido sem roupa, antes,porém não em
um espaço tão íntimo. Tratando-o com a mesma cortesia com que ele a
tratara, Mairi ficou de costas até que ele saísse da água e vestisse suas roupas.
A curiosidade quase a venceu, por diversas vezes, porém ela se manteve firme
em seu propósito.
Finalmente, ela ouviu o barulho da fivela da espada sendo fechada. Podia
encará-lo, agora. Não havia o que discutir, dificilmente ela poderia se recusar a
descer para conhecer o restante da família.
— Você vai conhecer papai. Depois, é a festa. Ela ia protestar, mas ele
colocou um dedo em seus lábios.
— A festa de casamento — ele explicou, com um sorriso cómico.
A bem da verdade, Rob não parecia mais entusias mado que ela, com
respeito às apresentações ou sobre a celebração que se seguiria. Alguma coisa
o preocu pava. Provavelmente, que ela pudesse envergonhá-lo. Essa também
era sua preocupação.
O melhor que poderia fazer era dar-lhe conforto. Era seu dever e desejo.
Mairi esperou até que ele a fitasse, nos olhos. Procurou pelas palavras mais
claras e pronunciou-as uma após a outra, no melhor sotaque das Terras Baixas
que conseguiu.
— Não irei desapontá-lo.
A expressão de Rob transformou-se, de estressada para repleta de
ternura, no compasso do coração. Mairi pôde ler, em seus olhos doces, a mais
completa com preensão. Ele deu um passo à frente e segurou-lhe o rosto entre
as mãos.
— Nem eu a você — prometeu. Então, ele a beijou.
Oh, aquela boca pousava macia sobre a dela, o toque de sua língua era
uma carícia dardejante, ainda que re primida. Muito mais que um beijo de paz
e muito menos que um prelúdio de sedução, aquele beijo aquecia-lhe a alma,
acalmava-lhe os medos e suplicava que ela confiasse.
Quando ele a soltou, Mairi ficou de pé, tremula, fitando aquele sorriso
que lhe agitava o coração. Então, lentamente e com formalidade, ele tomou-a
pela mão e conduziu-a para fora do aposento.

CAPITULO VIII

Rob escoltou Mairi escada abaixo e levou a até perto da imensa lareira,
para es perar pelo conde e por Alys.
Estivera observando a estrada da torre leste até que vira a comitiva se
aproximando. Provavelmente tinham chegado ao pátio enquanto ele e Mairi se
arrumavam para a provação que os esperava. E seria uma provação, com
certeza.
Aquele encontro seria o mais crucial de todos. Todo seu plano poderia ir
por água abaixo. Poderia perder a confiança e a estima de Mairi antes mesmo
de ter a oportunidade de conquistá-las.
As portas do hall abriram-se, e Alys atravessou-as correndo, as saias
farfalhando, descuidada como sem pre de suas obrigações com a etiqueta. Ele
só podia esperar que ela não cometesse nenhuma gafe, em sua excessiva
alegria em voltar para casa.
Embora Rob soubesse que sua irmã jamais se mos trara deliberadamente
indelicada, ela não deixava es capar a oportunidade de desencadear uma
calamidade em potencial sempre que via sinais de problemas.
Deixou escapar um suspiro de alívio quando sua mãe a interceptou,
murmurando em seu ouvido que não falasse com ele por sinais ou deixasse
escapar o segredo por outros meios.
O conde entrou a seguir e caminhou até eles. Tinham lhe contado? Lady
Anne teria encarregado um criado fiel de avisá-lo, do lado de fora? Por outro
lado, a questão era: iria aceder ao pedido de Rob quando ele mesmo sofrera
com a ignorância do mesmo segredo, anos atrás, e nunca adivinhara a verdade
até que Rob tivesse confessado tudo?
— Pai — disse Rob, à guisa de saudação, inclinando-se, para, a seguir,
abraçá-lo. Em seus olhos havia um silencioso apelo para que o conde o
compreendesse.
Trouville encarou-o, arqueando ligeiramente uma das sobrancelhas. Só
Deus sabia o que aquilo significava. Para Rob, pareceu uma reprimenda.
Rob ficou a imaginar se o conde de Trouville causaria em Mairi o mesmo
efeito que provocava na maioria das pessoas ao primeiro encontro. Sua
presença imponente dominava os ambientes, mesmo o grande hall onde se
achavam.
Embora mechas cor de prata riscassem seus cabelos negros e algumas
poucas linhas de expressão marcassem suavemente suas feições, o semblante
nobre do conde tornara-se ainda mais distinto, com o passar dos anos.
Desde o primeiro dia em que o novo marido de lady Anne chegara, Rob
percebera a indubitável generosidade do coração de seu padrasto, mas ficara a
imaginar se isso era devido a seus dons de intuição. Mairi poderia ver isso
também, ou Trouville iria amedrontá-la?
— Robert, é bom vê-lo de novo, meu filho!
Seus olhos argutos caíram imediatamente sobre Mairi, que se abaixava,
em uma profunda reverência. Ele estendeu a mão, erguendo-a.
•— Pai, minha esposa, lady Mairi — anunciou Rob. — Mairi, o conde de
Trouville. — Conteve o fôlego. Rilhou os dentes. Rezou, interiormente.
— Enchanté, mademoiselle — disse seu pai, gentil mente. — Soyez Ia
bienvenue?
Mairi olhou para Rob, pedindo ajuda. Seu rosto tornou-se rubro, como
carvões incandescentes. Rob percebeu imediatamente que ela não falava
francês, nem mesmo o suficiente para entender a simples saudação, nessa
língua.
Oh, Deus, ele sabia exatamente o que ela estava sentindo naquele
instante e quis abraçá-la, para as segurar que ninguém se importava que ela
não soubesse o idioma. Quantas vezes ele mesmo se encontrara em situação
semelhante e sem ter como responder? Aproximou-se e envolveu-a pela
cintura.
— Um teste, pai? — A raiva toldou-lhe as palavras. A expressão do conde
não se alterou.
— Claro que não, filho. Apenas uma cortesia. Você sabe que muita gente
prefere falar minha língua, mesmo neste país. — Voltou-se para Mairi. —-
Minhas desculpas, filha.
— Je regrei… — Mairi ensaiou responder e desistiu.
— Sinto muito, M'seiur le Comte, Meu conhecimento de seu idioma é
muito pobre.
Inexistente, pensou Rob, deixando escapar um suspiro. Trouville tomou
as mãos dela nas suas e sorriu, meneando a cabeça.
— Minha cara, minhas tentativas de falar o gaélico morreram sem nem
mesmo nascer, anos atrás! — Riu.
— Tem algo a ver com minha garganta, aparentemente. Rob jura que o
francês é falado mais com o nariz e se recusa a se expressar nessa língua.
Rob captou grande parte do que o conde dizia e deduziu o resto. Às
vezes, ele ainda se confundia com o sotaque, especialmente quando seu pai
conversava com a mãe e não se importavam de que ele os compreendesse.
Mairi respondeu ao sorriso de Trouville, um tanto sem graça.
— Estou feliz por conhecê-lo, meu lorde — disse,
lenta e cuidadosamente.
Provavelmente em deferência ao fato de que o conde era francês, pensou
Rob. Por que ela não falava com ele assim? Desta vez, ele conseguira entender
cada palavra que ela dissera. Contudo, pudera perceber que ela ainda sentia
dor, ao falar.
— Sua garganta está machucada — explicou, para dissipar qualquer
desconforto que ela ainda sentisse.
Alys aproximou-se e jogou os braços em torno do pescoço de Rob, como
sempre fazia quando o irmão vinha visitá-los. Então, inclinou-se, examinando-
lhe o rosto como se verificasse seu estado de espírito.
— E eu, meu irmão? Vou ser apresentada a ela, ou vai me colocar de
lado?
Rob sorriu sem graça e voltou-se para os demais.
— Mairi, minha irmã, Alys.
Alys abraçou Mairi e beijou-a no rosto. Rob não pôde ver o que a irmã
dizia, mas o sorriso de sua esposa, em resposta, deu-lhe a confiança de que
tudo caminhava bem.
A mãe obviamente avisara Alys para proceder com cautela, como Rob
havia esperado. Parecia que conseguira a cooperação da irmã, afinal.
Entretanto, a sombra da desaprovação continuava a toldar os olhos negros do
conde. Só podia rezar para que fosse uma rea-ção ao segredo que insistira que
fosse mantido e não pela escolha da noiva. Nunca soubera que Trouville fosse
de julgar alguém no instante da apresentação, mas sempre havia uma
primeira vez para tudo.
— Posso lhe dizer uma palavra, senhor?
— Mais do que uma, prometo — retrucou o conde. — No solário?
Rob seguiu-o, sabendo que aquela não seria uma conversa fácil.
No instante em que a porta se fechou, ele foi atingindo pela rajada de
fúria de Trouville.
— Você não contou a ela! Est-ce que tu es fou?
— Não, pai, não sou louco. Thomas disse ao pai dela. E Lorde Maclnness
afírmou-me que contara a ela. — Rob ergueu as mãos para o alto, exasperado.
— Pensei que ela soubesse! Porém, mais tarde, percebi que não. O casamento
estava sacramentado.
— Isso é injusto, Robert! Errado! — Fez um gesto vigoroso, dando
ênfase ao que dizia. E isso indicava que estava fora de si. Desde o princípio, o
conde se recusara a falar por sinais, insistindo que Rob iria aumentar sua
capacidade de compreensão sem a necessidade de conversar com as mãos. Na
verdade, essa recusa ajudara Rob em muito, começando por ampliar seu
vocabulário, ao longo dos anos. — Você não pode continuar a esconder esse
fato dela. Conte tudo!
— Não, pai. Primeiro, ela precisa ver que um pouco de surdez não deve
ser levada em conta.
— É para ser levada em conta! Porque você mentiu. Por omissão, você
mentiu, Rob. Ela pode odiá-lo por isso.
Rob comprimiu os lábios e balançou a cabeça, antes de responder.
— Talvez ela venha a me odiar ainda mais se não puder enxergar além
da surdez. Deixe que ela me conheça um pouco mais. Então, eu lhe direi.
— Ela vai adivinhar, Robert. A menos que seja tola, logo ela irá adivinhar.
— Você não descobriu, lembra-se? Trouville fez um gesto de
exasperação.
— Você era uma criança, e eu acabara de me casar com sua maman.
Havia outras coisas em jogo. Mairi, porém, é sua esposa!
— Sim. E ela pode livrar-se dessa condição quando souber. Eu cuidei
para que ela pudesse escolher. Nós não… — Rob não conseguiu pensar em uma
palavra adequada para explicar que não a levara para cama e não conseguiu
terminar a frase.
Trouville encarou-o atónito. Então passou a mão pelo rosto e balançou a
cabeça.
— Então, provavelmente ela esteja mais preocupada com outra parte de
seu corpo do que com seus ouvidos. Vocês estão casados há… quatro dias?
— Deixe estar, pai, por favor. Sei o que estou fazendo. — Hesitou, por
um instante, antes de pergun tar: — Gosta dela, senhor?
— Oui — confirmou o conde, com um gesto impa ciente. — Ela é bonita,
bastante agradável, embora não muito bem-educada. A questão é: você gosta
dela?
Rob sorriu.
— Gosto. Mairi é uma moça de coragem.
— Coragem? E isso foi tudo o que notou? — per guntou o conde,
erguendo uma das sobrancelhas.
— Não — admitiu Rob, com um ligeiro sorriso. — Sinto desejos por ela,
acho que posso amá-la.
— Então, é o melhor começo. Confesse tudo e não deixe que seja tarde
demais.
— Ainda é cedo. Por favor, pode me ajudar? — pediu Rob, já sabendo,
pela expressão do pai, que havia ven cido. Se Trouville desejasse dizer a
verdade a Mairi, provavelmente já o teria feito.
— Se você insiste… Ela é sua esposa. — Olhou bem dentro dos olhos de
Rob. — Filho, há outro problema que precisamos discutir.
— Más novas? — adivinhou Rob.
O conde deu de ombros, sem saber como o filho iria considerar a notícia.
— Jehan voltou.
O choque pegou-o desprevenido. Rob não pôde conter o engasgo e não
encontrou uma palavra para responder. O pai continuou:
— Sir Williams encontrou-me no portão. Disse que sua maman mandou-
a para Baincroft, para Thomas. 0 irmão tem ordens para devolvê-la à corte da
Ingla terra, amanhã.
— Graças a Deus! — murmurou Rob. Thomas não ousaria contrariar as
ordens de lady Anne. Jehannie teria ido embora quando ele voltasse para casa.
Com certeza.
Tudo o que conseguia pensar era no desastre que aconteceria, se ela não
se fosse. A gatinha selvagem podia não o ter querido para marido, mas ele
bem podia imaginar-lhe a raiva se soubesse que alguém a substituíra, em sua
afeição.
Novamente, Rob sentiu o mesmo alívio que recen temente o
surpreendera com relação a seu casamento cancelado, a despeito do baque em
seu orgulho. Aben çoava o fato, agora que encontrara Mairi.
— Por que Jehannie voltou? — perguntou, temendo ter adivinhado a
razão. Certamente não seria para visitar o irmão.
— Ela não sabia que seu grandpère havia descon siderado seu
compromisso para com você. Jehan não teve culpa.
— Que confusão! — exclamou Rob, fitando o pai com um olhar
preocupado. — Ela vai ferver de ódio.
Trouville deu um sorriso.
— Problema de Thomas, não seu. Não se meta nisso. Jehan vai
sobreviver. Agora, vamos, precisamos nos reunir aos outros.
- Obrigado, pai — disse Rob, com uma reverência formal. — Por tudo.
Inesperadamente, o conde o abraçou. Deu urn tapi-nha nas costas de
Rob e afagou-lhe os ombros e, depois, os cabelos, como sempre fazia quando
discordavam e, em seguida, chegavam a um acordo. Rob sentiu-se como o
filho que errara e fora perdoado, como em muitas outras ocasiões, no passado.
Ele sabia que era amado por esse homem a quem respeitava, acima de
tudo. Quando garoto, pudera contar com esse amor e ainda podia.
Aborrecia-o desapontar Trouville de alguma forma, mas Rob acreditava
estar com a razão, quanto ao problema com Mairi. E era infinitamente grato ao
pai por tranqúilizá-lo com relação a Jehannie. Como ele dissera, ela iria
superar.
Afinal, ele e Jehannie não haviam se amado como um homem e uma
mulher. Não da maneira que poderia amar Mairi, se ela se decidisse a ficar com
ele. E se não ficasse, ele não teria outra esposa. Jehannie era parte de ■ seu
passado e ficaria lá para sempre. Mairi era seu futuro, pelo menos era o que
ele esperava.
— Está cansada, irmã? — perguntou Alys, demonstrando simpatia.
Certamente estava cansada da excessiva atenção com que a irmã de Rob
a sufocava, Mairi admitiu, silenciosamente. A jovem a seguia por toda parte.
Havia insistido que Mairi usasse um de seus novos vestidos, para a festa que
agora compareciam. Estava menos amarrotado, sem dúvida, que os de Mairi,
mas caía sobre seu corpo como uma tenda. E o amarelo doentio da seda dava
a sua tez uma palidez mortal. Ainda assim, a garota parecia supor que lhe
ficava bem.
Alys não passava de uma garota de quinze, talvez dezesseis anos,
embora fosse maior e mais alta que Mairi. Seus olhos acinzentados pareciam
não perder nada e faiscavam de energia, uma energia focalizada inteiramente
sobre Mairi, naquele instante.
Subliminarmente à aparente preocupação de Alys, Mairi julgou que
detectava um vestígio de um humor vicioso. Porém, como uma mulher das
Terras Altas, simples e sem graça, poderia divertir uma dama como lady Alys?
Certamente a filha do rico francês poderia encontrar maneiras mais
requintadas de se divertir do que entretendo a esposa do irmão por umas
poucas horas.
Quem sabe alguém embasbacado de admiração divertisse Alys, pois era
assim que Mairi devia parecer, desde que chegara ali.
E por que não deveria estar? O grande hall do castelo de Trouville por si
só podia engolir a fortaleza inteira de seu pai. Devia haver duas centenas de
almas festejando seu casamento, quando ela não via motivo algum para
festejar, no momento. Tudo o que mais queria era dormir. E em silêncio.
O barulho era grande demais para uma conversação decente. Não que
ela esperasse poder conversar com o marido. Mesmo quando haviam ficado
sentados, lado a lado, partilhando a refeição, ela mal pudera ouvir as próprias
palavras. Gritar para superar o ruído estava certamente fora de questão, sua
garganta ainda doía a qualquer esforço.
Os músicos pareciam tocar de uma forma absurdamente alta durante o
jantar, o que a levara a imaginar ^se a família inteira não seria surda, como
Rob. Desacostumada de tanto tumulto, Mairi sentia a cabeça doer
terrivelmente.
Finalmente, uma horda de criados tirara a mesa, para que o baile
pudesse começar.
Ela e Alys estavam agora paradas a um lado do salão e observavam.
Lady Anne havia reunido um grupo de musicistas, ali. Viveriam no castelo,
para encher de prazer as noites de seus senhores?
Havia seis músicos, com uma harpa, uma cítara, um saltério, tambor,
flauta e vielle. Alys lhe dissera os nomes dos instrumentos, que ela jamais vira
antes. Na verdade, os únicos que reconhecera eram a flauta e o tambor. E isso
apenas enfatizava a Mairi, e pro vavelmente a Alys, como sua vida fora o
inverso de tudo isso, até então.
— Você dança? — perguntou Alys. — Rob é maravilhoso como dançarino.
Ah-ah! Olhe lá, ele se aproxima de maman para a estampie. Observe como são
divinos.
Ela riu, cheia de entusiasmo, e bateu palmas quando Rob ergueu a mãe
para o alto, colocou-a de volta no chão e começou a executar os passos
ligeiros e intrin cados da dança.
O coração de Mairi disparou. O fôlego ficou contido, em sua garganta.
Sentiu que ia desmaiar, embora não conseguisse desviar os olhos dele. Por
Deus! Rob dançava! E dançava bem! E podia…
Ele podia ouvir, ela pensou, com uma sensação de depressão que, sabia,
não deveria estar sentindo. Na verdade, seu marido e a música estavam ern
íntima sintonia. Ele e lady Anne pareciam divertir-se inten samente, nunca
perdendo um único compasso da sel vagem cadência rítmica tocada pelos
musicistas.
Ele poderia ter dado um jeito de parecer um digno dançarino,
simplesmente observando os demais e man tendo os passos no mesmo ritmo.
Contudo, para uma demonstração como aquela, Rob tinha que ouvir a mú sica.
E ela havia estado tão certa que…
Mairi desejou desaparecer, simplesmente desaparecer como se nunca
estivesse estado ali. Continuar no salão, forçando um sorriso, mostrava-se
bem mais ár duo do que podia aguentar. Sentia-se uma perfeita idiota, e ele
devia também julgá-la assim, dado seu comportamento. Todas aquelas
concessões que fizera para que ele pudesse entendê-la pareciam agora com
pletamente estúpidas.
Como cometera um erro tão grave, ao supor que ele fosse surdo? Ele
ouvira o assobio agudo daquele guar da, à tarde. Ela é que não quisera admitir
o fato. E, agora, obviamente, ouvia cada nota que os músicos tocavam.
Novamente, ela alicerçara seu julgamento em supo sições, ao invés de
em fatos. Como pudera estar tão enganada? Como não tivera em mente que
isso seria uma desastrosa limitação para um cavaleiro e para um lorde?
E por que este sentimento de desapontamento, ao saber que estava
errada, quando seria tão importante que seu marido pudesse ouvir? Ela não
era digna dele, se não ficasse feliz com o fato.
A vergonha a dominou, pelos planos que fizera de tornar-se o braço
direito de Rob em todas as coisas, - de ajudá-lo pela vida afora, de ser a
pessoa mais im portante em seu caminho.
Rob não precisava dela. Não ia necessitar de sua ajuda por causa da
surdez e, aparentemente, nem de seu corpo para ter prazer. Não era de
nenhuma valia para ele.
Bem, era doentio desejar ser como uma mãe para o homem com quem
se casara, não era? Que bela esposa se tornaria, comportando-se assim!
Contudo, ela aca lentara a esperança de ter algo de grande importância para
oferecer a ele, além dos filhos que poderiam ter.
Agora, isso lhe parecia impossível. Só Deus sabia como seu dote contava
pouco. E ela que pensara em com pensá-lo de alguma forma…
Tinha de descobrir por que ele a escolhera. Rob devia ter julgado que
uma mulher das Terras Altas teria condições de oferecer-lhe filhos fortes. Os
habitantes das colmas do Norte eram conhecidos por serem des temidos e
assim se mostravam.
Por ora, ela não conseguia pensar em alguma outra boa razão para que
ele tivesse ido tão longe para en contrar uma esposa. O salão do castelo de
seu pai parecia coalhado de belas mulheres, ali mesmo, na quela noite. Um
homem tão belo como Rob poderia ter escolhido qualquer uma delas.
A música parou, e o rumor estrondoso dos aplausos elevou-se. Então, os
músicos iniciaram uma canção me nos agitada e os dançarinos se dispersaram,
em busca de novos parceiros.
Uma jovem particularmente atraente segurou as mãos de Rob, sob o
olhar atento de Mairi, e logo outra, adorável também, tomou-lhe o braço. Ele
disse alguma coisa a elas, que responderam, com a cabeça, fitando-o com um
ar embevecido. Deviam ser palavras doces, com certeza, para merecer tais
sorrisos.
Então, ele encaminhou-se para o lugar onde Mairi estava, ao lado de
Alys.
— Ele é o preferido das mulheres, não é? — comen tou Mairi, sem
refletir.
— Sim, é mesmo! Está com ciúme? — perguntou Alys, com uma
risadinha maliciosa.
— Claro que não! — Mas, estava. — Só fiquei a imaginar por que, se
havia tantas por perto querendo tê-lo, ele viajou para tão longe para casar-se.
Alys revirou os olhos, em um trejeito cómico.
— Voilál Se ele houvesse escolhido uma dessas, teríamos um problema
nas mãos! A pobre noiva seria importunada além do suportável pelo resto das
mu lheres, todas verdes de inveja.
— Irão me importunar? — perguntou Mairi, meio alheada, perturbada
com a visão de seu belo marido caminhando em sua direção, atravessando o
salão
abarrotado de gente.
A cunhada deu de ombros.
— Quem lhe fora prometida rompeu o trato. Quando a conhecer, você
pode perguntar a ela qual foi a razão. — Alys riu como se houvesse feito uma
piada. — A tola deve ter encontrado um bom motivo para pôr um fim ao
compromisso e, eu lhe asseguro, não foi por falta de amor ao nosso belo lorde
Robbie.
— Quem… — Mairi ia perguntar, porém o marido chegou e interrompeu-
a, estendendo a mão a ela.
— Dança?
Por mais que desejasse respostas sobre a ex-noiva, Mairi não conseguiu
pensar em nenhum motivo delicado para recusar o convite do marido. E
também não dese java deixá-lo à mercê daquelas mulheres pegajosas.
— Sim — retrucou, confirmando com a cabeça. — Eu gostaria de dançar.
O olhar intenso de Rob não abandonou o rosto dela enquanto ele a
conduzia para o círculo interno formado pelas mulheres, em torno de um único
músico. O rapaz estava ali para cantar, pois ela percebeu que ele lim pava a
garganta e ensaiava umas poucas notas. Uma das senhoras, ao lado, disse a
outra que seria uma chaplet, uma dança da qual Mairi nunca ouvira falar.
Rob deu um passo atrás, colocando-se do lado oposto a ela, no círculo
externo. Inclinou-se em uma reverên cia quando a flauta trinou, com as notas
de abertura.
Mairi pôde pensar em pouca coisa, salvo no brilho dos olhos cinzentos e
na pressão excitante dos dedos dele, em sua mão, quando os outros
instrumentos vie ram juntar-se à música. Ele a conduziu, parando no
compasso certo para inclinar-se e girar, como faziam os demais.
A cada três pausas, os passos os conduziam para mais perto, até que
seus corpos quase se tocavam. O desejo de estreitar aquela distância quase
tomou conta de Mairi e irritou-a que o mesmo desejo não o afetasse, também.
Rob parecia totalmente indiferente.
Contudo, no último floreio das notas, ao invés do inclinar-se em uma
cortesia, ele segurou-a pelo queixo e beijou-a, sonoramente, na boca. Pela
duração do beijo, tudo o mais ao redor cessou de existir para Mairi.
Quando ele a soltou, risadas e aplausos rromperam de todos os lados.
Rob sorriu, percebendo-lhe a confusão. Antes que pudesse se recobrar, eleja
colocara a mão dela no braço do conde de Trouville e encontrara uma nova
parceira.
Será que todos os homens tinham beijado sua parceira, ou Rob fizera
aquilo porque tivera vontade? Os recém-casados faziam isso, normalmente,
quando dançavam? Talvez nunca soubesse, pois certamente não iria perguntar.
Contudo, iria prestar atenção para ver se ele beijava alguma outra mulher.
O restante da noite transcorreu em um torvelinho. Todas as vezes que
Rob a convidou para dançar, Mairi aceitou. E preocupou-se quando ele não o
fez. Ela pró pria, entretanto, não pudera parar, solicitada por Trou ville e por
outros homens, cujos nomes não conseguia se recordar.
Seus pés doíam e seu rosto tinha cãibras, de tanto manter o sorriso. Se
pelo menos a condessa não tivesse se sentido obrigada a promover uma tal
festa aquela primeira noite… Mairi estava cansada. Não e recobrara ainda nem
do ataque nem da viagem. Queria descansar. E esconder-se, admitiu, amarga
mente, para si mesma. Sim, era esse o seu real desejo. Rob parecia não se
cansar. Só parara de dançar uma vez ou outra, para um copo de vinho, ou para
uma rápida troca de palavras. Não com ela, porém. Para Mairi, só perguntara,
simplesmente, como da primeira vez:
— Dança?
Mairi ainda não conseguia acreditar que estivesse tão enganada quanto à
capacidade dele de escutar. De que outra maneira poderia desculpar seu
comporta mento em Craigmuir e na viagem até ali?
Mesmo agora, em que desfrutavam uma dança bem mais tranquila,
durante a qual os dois poderiam con versar, ele não lhe dirigia a palavra. Será
que lamentava a escolha? Será que desejava ter escolhido uma noiva do local,
ao invés dela, já que seu sotaque o incomodava?
— Bem, você vai ter que se contentar com aquilo que escolheu! —
declarou, jogando a cabeça para trás, quando ele a puxou para mais perto, em
uma distância em que poderia ouvi-la, acima do barulho.
O meio sorriso que Rob lhe dirigiu enfureceu-a. Mairi quase o esbofeteou
na face, só não o fez porque a família inteira os observava.
— Não mais — Rob retrucou, quando as últimas notas soaram. Curvou-
se, em um cumprimento. — A música acabou.
— Bem, obrigada — ela resmungou, furiosa consigo mesma.
— De nada — ele retrucou, alegremente, e conduziu-a para o lugar onde
os pais e a irmã estavam sentados.
Mairi teve vontade de chutar-lhe as canelas, no entanto deixou que ele a
acompanhasse até o banco e se sentasse, a seu lado.
Vieram os brindes. Rob ergueu a taça para o alto, descrevendo um
círculo que abrangia todo o salão.
— A minha esposa — anunciou em voz alta. — A bela lady Mairi.
Mairi sentiu o rosto queimar quando os gritos ecoa ram, e todos beberam
a sua saúde. “Fariam o mesmo para saudar um novo potro recém-nascido",
pensou, rilhando os dentes. Estampou um largo sorriso, entre tanto, e meneou
a cabeça, agradecendo os votos.
Que outra escolha lhe sobrava? Estava casada e de via, portanto, fazer o
que era preciso. Não vivera so nhando com aventuras? Ora, pelo menos, esse
desejo estava realizado.
— Robert me disse que vocês devem partir para Baincroft pela manhã —
comentou Trouville, quando fizeram uma pausa, entre os brindes.
— Devemos? Ele esqueceu de mencionar o fato a mim— retrucou ela,
incapaz de esconder a amargura da voz.
— A mãe de Robert e eu fomos muito felizes lá, nos primeiros anos de
nosso casamento — continuou o con de, com um sorriso encantador. — Os
esforços de seu marido melhoraram em muito o castelo, desde aquela época.
Ele é um excelente lorde, se posso dizer assim. Seu povo o adora.
Lady Anne, que a tudo escutara, inclinou-se para frente.
— E verdade, você jamais encontrará súditos tão leais como os que
Robert comanda. Todos o conhecem muito bem. Nenhum lorde, na Escócia,
importa-se mais que meu filho com o povo sob sua proteção.
— Agradeço por partilharem isso comigo — disse.
— Na verdade, meu novo senhor e eu somos pouco menos que
estranhos um ao outro.
— Um problema fácil de resolver — disse Trouville, Horrindo.
— Como? — indagou Mairi, a frustração toldando lhe o bom senso.
Ele deu uma risada, obviamente surpreso com sua candura. Lady Anne
mordeu o lábio e recostou-se na cadeira. Mairi não soube precisar se a mãe de
Rob se ofendera com sua pergunta ou com a falta de uma resposta.
Trouville segurou a mão de Mairi e inclinou-se, fa lando bem perto de seu
ouvido.
— Robert vai roubar seu coração, minha cara, e lhe dar o seu se você
permitir. Como alguém que aprecia um casamento de amor, eu o recomendo
ardentemente a você.
Mairi sentiu-se grata por aquelas boas intenções. O conde, estava claro,
considerava Rob com seu filho ver dadeiro e desejava que fosse feliz. Ela
percebeu nele a bondade inata revestida na capa de formalidade que a posição
de Trouville requeria.
— O senhor é uma pessoa afortunada, meu lorde - murmurou.
— E você também será — retrucou ele, soltando-lhe a mão. — Confie em
Robert. — Levantou-se da cadeira e ficou de pé. Depois de ajudar lady Anne a
fazer o mesmo, ergueu a voz, para que todos pudessem ouvi-lo.
- Desejamos a todos uma boa noite.
Aquilo devia indicar que, finalmente, a festa tinha acabado, pensou Mairi,
com um suspiro de alívio. Rob tomou-a pelo braço, segurando-a firme
enquanto ela lutava para passar o vestido emprestado pelo banco.O que iria
acontecer, agora?
Iria partilhar o quarto com Alys, onde se banhara e se vestira, mais
cedo? Ou ela e Rob se acomodariam em colchões, no salão, como muito
viajantes faziam, ao passarem por grandes castelos, pelo caminho?
Ela relanceou os olhos ao redor, furtivamente, notando a pressa dos
criados em limpar as mesas, e a carregar os bancos, colocando-os contra as
paredes.
Rob conduziu-a para a escada, sem pressa, deixando que seus pais e
Alys subissem, à frente.
Pareceu-lhe natural aceitar sua orientação, ela logo descobriria onde
devia passar a noite.
Provavelmente ele não fosse querer dormir com ela e, pela primeira vez,
Mairi não se importou.
Sentiu saudade do pobre pai, da simplicidade de Craigmuir e do jeito que
as coisas costumavam ser. Tudo o que mais queria, naquele momento, era
debulhar-se em lágrimas e sucumbir à exaustão. A grande aventura tornara-se
um suplício, e o coração lhe doía com o desapontamento.
Por mais que se visse rodeada por centenas de pes soas naquele lugar, e
sem vislumbrar, infelizmente, um instante de solidão no futuro próximo, Mairi
sentia-se irremediavelmente sozinha.

CAPITULO IX

Rob chegara a pensar que a festa jamais fosse acabar. Como regra,
adorava dançar, mas ter que observar Mairi volteando pelo salão com todos os
homens presentes tinha certamente ofus ado esse prazer.
Para sua tristeza, reconhecera seu ciúme diante do fato. Ele, que nunca
tivera ciúme de alguém, até onde podia se recordar. Definitivamente, isso era
humilhante.
Uma coisa boa resultara do baile, contudo. Ele havia impressionado a
esposa com sua desenvoltura, reco nheceu, um tanto envaidecido. Sim, Mairi
nem mesmo tentava esconder seu prazer e quase engasgara quando o vira
dançando com a mãe.
Seria difícil que ela soubesse que ele sentia a música diretamente na
alma. Era uma das poucas coisas que conseguia ouvir, pelo menos de forma
suficientemente clara para afirmar que ouvia, e ele adorava isso.
Seus pais sustentavam, permanentemente, um conjunto musical, fazia
anos. A mãe os contratara quando ele era um garoto, assim que Rob lhe
contara que conseguia escutá-los.
Embora o baile houvesse dado a Mairi a oportunidade de admirá-lo em
algo que fazia muito bem, Rob desejava que pudessem ter dispensado a
cansativa celebração daquela noite. Ela precisava mais de descanso do que de
festas ou danças. Se sua mãe não houvesse insistido em como era importante
a aceitação de Mairi por seus súditos, ele nunca teria concordado com tudo
aquilo. A.maior parte do povo que vivia sob a proteção de Trouville era
aparentada com o de Baincroft. Nobres e plebeus, todos eram considerados da
família. Embora essa fosse sua primeira visita ali, em meses, o inter câmbio
entre os dois Estados era constante.'
Muitas das pessoas presentes deviam estar se sentindo bastante
confusas com a súbita aparição de Jehannie e, logo depois, com a chegada de
Rob com outra mulher como esposa. Especialmente os pais de Jehannie. O pai
dela era o padre dali, e sua mãe, a curandeira. Casados por vinte e cinco anos,
haviam servido a lady Anne durante todo esse tempo. Ela, por sua vez, tinha
desprezado a visão da igreja com relação a clérigos casados e dado a eles um
teto, primeiro em Baincroft e, depois, ali, quando desposara Trouville.
Desde que ele e Mairi haviam chegado, a ausência de padre Michael e
lady Meg havia sido notada. A aparente deserção de Jehannie ao compromisso
com Rob causara aos pais dela um grande embaraço, assim como para
Thomas. Isso tudo devia parecer a eles como se Rob estivesse punindo
Jehannie por algo gue não era sua culpa, afinal. E como agora soubesse gue
ela não era responsável pelo rompimento, Rob sentira que devia fazer tudo que
estivesse a seu alcance para evitar quaisquer sen timentos desagradáveis
entre o pessoal, por tê-la subs tituído. Tentara explicar-se para aqueles que
percebera poderiam contar a historia aos demais.
A festa lhe dera a oportunidade de assegurar a todos que estava
satisfeito com sua nova esposa e que, mes mo assim, ainda queria bem a
Jehannie. Os esforços da noite haviam se mostrado exaustivos e bem-suce
didos, pelo menos era o que esperava.
Rob conduziu Mairi escada acima, seguindo para o quarto de Alys, onde
entrou, junto com ela.
— Está cansada? — perguntou.
— Sim — ela respondeu, olhando ao redor como se procurasse por
alguma coisa, ou, provavelmente, por alguém.
Sua irmã iria passar a noite em uma acomodação menor, no andar
superior, o que era o correio e adequado, diante das circunstâncias. Como Rob
era um visitante e um lorde, tinha direito ao segundo melhor quarto. Além
disso, ele ocupara aquele mesmo aposento durante anos e o considerava como
seu sempre que vinha ao castelo.
Os criados haviam removido a banheira e arrumado o ambiente, depois
da louca correria de ambos para se aprontarem para a festa. A lareira
crepitava, espa lhando um calor agradável, e as velas aromáticas
acrescentavam seu toque dourado de luz, tornando o quarto aconchegante.
Era um convite para amantes, se fosse esse o caso de ambos, pensou
Rob, deixando escapar um suspiro de resignação.
Alys havia modificado o quarto, dando a ele um toque feminino, com os
brocados de um verde pálido pendendo do dossel e os travesseiros de fronhas
bordadas. Pela primeira vez, Rob ficou feliz com a mudança que pro
vavelmente deixaria Mairi mais confortável.
Também o agradava o fato de que a cama enorme continuasse ali, feita
para acomodar seu peso e esta tura. Pelo menos, não precisaria dormir face a
face com Mairi, excitado como estava.
Mairi interrompeu-lhe os pensamentos quando o to cou no braço,
fazendo a pergunta que ele já esperava.
— Onde está sua irmã?
Ele conseguia entendê-la melhor, percebeu. Talvez o cansaço a fizesse
falar mais devagar, ou, quem sabe, Mairi houvesse passado a noite
conversando mais pau sadamente com seu pai, para fazer-se compreender, e
não tivesse ainda abandonado a prática.
Como desejava poder escutar sua voz… Seria aguda ou baixa? Acharia
seu sotaque das Terras Altas exótico e agradável, ou irritante?
Ah, ela esperava uma resposta.
— Ela vai dormir lá — Rob apontou para o teto, indicando o andar
superior. — Nós, aqui — continuou, inclinando a cabeça em direção à cama
convidativa, na qual provavelmente ele passaria a noite, atormen tado e sem
conciliar o sono, porque ainda não poderia ter Mairi como esposa.
Os lábios dela se abriram, sem fala, e seus olhos se arregalaram. De
medo? Ele duvidava. De surpresa, mais provavelmente. Ela não esperava
partilhar um quarto com ele, muito menos uma cama.
Na verdade, Rob preferia que tivesse sido feito outro tipo de arranjo, pois
não pretendia exercer seu direito de marido até que Mairi soubesse a verdade
sobre ele. E só então, com a condição de que ela desejasse isso. Contudo,
voluntariamente, não seria ele a escolher dor mir sozinho. Uma tal decisão
levantaria muitas per guntas, afinal ele e Mairi estavam casados a menos que
uma semana. Deviam sujeitar-se, portanto.
Como se houvessem passado juntos todas as noites, e fosse natural, Rob
tirou os sapatos e começou a despir-se tranquilamente. Tirou a túnica e soltou
a fivela do cinto.
Rapidamente, Mairi desapareceu por detrás do pai nel que escondia o
lavatório. Ele sorriu, ao perceber como a esposa era previsível.
Quando ela saiu do esconderijo, ele já se enfiara, nu, entre as cobertas,
mesmo sabendo que aquilo era uma tentação. Recostou-se, apoiado em um
dos cotovelos, observando-a.
Ela ainda usava a combinação, uma peça íntima recatada que escondia
seus encantos quase tão com pletamente como seu vestido. Rob admirava o
pudor, em uma mulher. Mesmo assim, lamentava não poder libertá-la do
recato, naquela noite. Vestida ou não, a visão de Mairi o excitava. Mas, depois
de sofrer as angústias do desejo por todos aqueles dias e noites, aprendera a
suportar com estoicismo seus impulsos.
Rob sorriu e puxou as cobertas, em um convite. Será que ela o aceitaria
se ele resolvesse tomá-la, agora?.
Silenciosamente esperou, mantendo o sorriso de desafio.
Ela cruzou o quarto com alguma hesitação, morden do o lábio e
observando-o, com cautela. Lentamente deitou-se.
Rob permaneceu imóvel, até que ela se acomodou, mantendo, como
pôde, um espaço entre ambos, e puxou as cobertas até o pescoço. Então, ele
se inclinou sobre ela, deixando claro que pretendia beijá-la.
Só uma vez, ele prometeu a si mesmo. Não tinha pensado em outra
coisa desde aquele rápido beijo, durante a dança. Apenas um simples roçar de
lábios para desejar boa-noite era o que pedia, nem mesmo iria tocá-la com as
mãos.
Rob pousou a boca na dela, resvalando na maciez rosada de seus lábios,
sentindo que Mairi continha o fôlego. Incapaz de resistir, ele continuou com a
carícia, contornando com a língua a abertura úmida. Ah, ela era doce como o
marzipã.
Saboreá-la um pouquinho mais não faria mal, ele resolveu, ao perceber
que ela não se afastava. Rob inclinou a cabeça para o lado e colou a boca na
dela. Como se encaixavam bem, pensou. E a imaginação levou-o para muito
mais longe.
Ele sentiu que a palma da mão dela deslizava, he sitante, de seu peito
para seu pescoço, os dedos fle xionados enterrando-se em sua carne. A fome
do desejo o arrebatou, percorrendo seu corpo como uma lâmina incandescente
que se cravou em suas entranhas com uma dor prazerosa. Uma dor bem-
vinda, pois ele co nhecia bem o agudo prazer que era aliviar tal agonia. Porém,
não podia. Ainda não.
— Mairi… — ele murmurou, contra os lábios dela, e sentiu a vibração de
seu nome murmurado por aquela boca trémula.
Só mais um beijo, prometeu, de novo. Só mais um pouco daquela
deliciosa tortura e, então, cessaria com essa loucura. Mas, assim que a tocou,
ela o envolveu, com calor. Um outro beijo, para que ela pudesse se saciar.
Como haveria de negar isso a ela? Por quê, pelos céus, havia de querer evitar
isso?
A deliciosa mistura do sabor, do contato, do cheiro de Mairi provocou-lhe
um arroubo de desejo, vindo do fundo de seu peito. Os cabelos dela havia se
soltado dos gram pos, caindo em cascata pelos travesseiros. A luz das velas
incidia sobre eles, tornando as mechas fios de ouro puro. Como pérolas
nacaradas, sua pele brilhava, em um tom de rosa pálido, quase branco. Ele a
beijou, sofregamente, como se bebesse o néctar dos deuses.
Pare, agora, sua mente implorou aos sentidos tol dados pela paixão. E,
contudo, ela o enlaçou mais uma vez e mais outra, exigindo, até que ele
perdeu a conta dos beijos, até que esqueceu de controlar as mãos e por onde
vagavam, até que ele não se importou mais que ela tivesse uma escolha…
De súbito, a honra foi mais forte que o instinto, e Rob lembrou-se de seu
juramento, que ecoou em seu cérebro como o toque de um tambor em um
salão vazio.
Com relutância, afastou os lábios dos dela. Respirou, sorvendo o ar,
fitando Mairi profundamente, nos olhos escurecidos de desejo. Ela parecia
suplicar por mais, ele, porém, tinha que resistir à tentação. Obrigou a mão que
pousara naqueles quadris macios a subir até o braço e até os dedos com que
ela o prendia pelo pescoço. Enlaçando a mão na dela, levou-a até os lábios e
depositou um beijo sobre os dedos.
— Não podemos continuar — murmurou, docemente, tentando suavizar a
dureza da recusa, mais para si mesmo que para ela. — Não aqui.
Mairi relanceou os olhos pelo quarto como se tivesse esquecido onde
estava e murmurou algo. Ele percebeu que os lábios dela haviam se movido,
trémulos, e, en tão, apertaram-se com força.
O quê? O que ela dissera? Devia estar perguntando por que não podiam
continuar. Era certamente o que ele perguntaria, se fosse Mairi.
— Amanhã — prometeu precipitadamente. — Quando estivermos em
casa. — Então, contaria tudo a ela.
Haveria tempo o bastante para que ela pudesse ver tudo que ele podia
realizar? Poderia mostrar a riqueza e as condições de Baincroft, tanto do
castelo como do Estado e do povo que acreditava nele, apesar de tudo, e
assegurar a Mairi que ele era um bom lorde? Um homem digno de ser seu
marido? Ela veria com seus próprios olhos e, depois, concordaria em ficar com
ele.
"Por favor, meu Deus", implorou, mentalmente, "faça com que ela
escolha ficar e que o casamento seja um fato consumado, que não possa ser
desfeito."
— Amanhã à noite — Rob afirmou, suplicando com o olhar que ela
entendesse, sem mais explicações. — Sim?
Mairi retraiu-se, afastando-se para observá-lo. Seu olhar percorreu-lhe o
corpo, agora descoberto até a cintura. Os contornos volumosos, sob a coberta,
deixavam claro o desejo dele por ela.
Quando os olhares se encontraram novamente, ela sorriu.
— Não aqui — ele repetiu, com a esperança de que ela julgasse que ele
não queria possuí-la no quarto da irmã.
Ela liberou o fôlego que estivera contendo, relaxando os ombros. Rob
notou que, em sua loucura, soltara os laços da camisola de Mairi que, agora,
caía aberta, revelando parte dos seios. Ele acariciara aqueles montes macios,
em um toque breve, mas a textura daquela pele permanecia em seus dedos,
despertando uma im pressão erótica em sua mente.
Rob julgou que daria tudo que possuía se pudesse pousar os lábios
naquele ponto precioso, que seus olhos devoravam. Porém, obrigou-se a
desviar o olhar e fi tou-a, encabulado, em um pedido mudo de desculpas.
— Amanhã… — Mairi repetiu, hesitante, as palavras agora ditas de forma
clara para ele, tão clara como o fato de que ela não apreciava a espera, assim
como Rob.
Mairi o desejava. Se ela continuasse a querê-lo, de pois que ele
confessasse, Rob iria mover céus e terras para não desapontá-la, de maneira
alguma, em coisa nenhuma. Definitivamente.
Ela baixou os olhos e fechou a camisola lentamente. Virou-se, de costas,
e puxou as cobertas, até o pescoço.
Rob descobriu que era impossível não tocá-la, uma última vez. Pousou a
mão em seu ombro e acariciou a lã da coberta, sabendo muito bem como seria
a sen sação de maciez daquela pele de seda sob seus dedos, se o tecido
desaparecesse. Então, tirou o último grampo que restara nos cabelos dela e
colocou-o sobre a me sinha-de-cabeceira, ao lado da cama.
As velas ainda queimavam, e ele as apagou, pondo um fim à tentação
visual. Na escuridão, aquele cheiro de mulher o provocou ainda mais. A
recordação da boca deliciosa e da textura daquela pele pareceu in tensificar-se,
sem o auxílio da luz, e ele descobriu que a imagem erótica de Mairi não
dependia de seus olhos.
Desprovido da audição e agora também da visão, Rob lutou contra seus
outros sentidos até que, exausto, entregou-se ao sono.
Amanhã, foi seu último pensamento, sua prece mais fervorosa, até que a
inconsciência o dominou.
Na manhã seguinte, Rob acordou cedo, como sempre. Quando o sol se
ergueu no horizonte e iluminou o quarto, encontrou-o de olhos abertos,
observando Mairi que dormia um sono profundo. Ela parecia uma criança, os
punhos dobrados sob o queixo, os joelhos encolhidos. Muito jovem, sem a
postura arrogante com que sempre se mostrava.
Que felicidade que o velho lorde não a houvesse ca sado, anos atrás,
com aquele maldito primo ou com algum outro homem. Agora, ela pertencia a
ele, por enquanto, pelo menos. Para sempre, se pudesse con servá-la a seu
lado.
Estou quase apaixonado por você, Rob estendeu a mão e afastou uma
mecha dourada de cabelos do rosto de Mairi. Não, era mais do que isso, sentia
algo como estar embriagado, pensou, com um sorriso.
Mairi remexeu-se, e ele se afastou, observando-a es preguiçar-se como
um gatinho. Os olhos dela se abri ram, e seu olhar pousou sobre Rob.
— Bom dia, Mairi — disse ele, com um sorriso.
Sua resposta perdeu-se por trás da mão com que Mairi cobriu a boca,
mas ele leu o receio e a incerteza em seus olhos, muito abertos, e na testa
franzida.
— Nada tema — murmurou. — Não é preciso. Ela riu, balançou a cabeça,
e levou a mão às cobertas, jogando-as para baixo e levantando-se. Ele
também se ergueu, do outro lado da cama, vestindo a roupa de baixo.
Mairi cruzou o quarto e voltou-se, encarando-o. Seus lábios se moveram,
mas o jorro de palavras perdeu-se, antes que ele pudesse captar uma.
Baincroft. Era pouco para deduzir o que a preocupava, mas, felizmente, ela
virou~se para a sacola de roupas.
Ah, um problema tipicamente feminino. O que usar. Rob descobrira-se,
muito cedo na vida, quanto decisões dessa natureza infernizavam as mulheres.
Ele podia ajudá-la.
— O vermelho — disse, enfatizando a escolha com um sorriso. — Gosto
de vermelho.
Ela apertou os lábios, pegou a roupa e ergueu-a, com um suspiro de
dúvida.
— Confie em mim — assegurou Rob, experimentando um agudo
sentimento de culpa pela afirmação, sabendo que estivera mentindo a ela
pelos últimos quatro dias.
Ele se vestiu apressadamente e saiu, para deixá-la à vontade, com a
higiene matinal.
Os dois compareceram à missa, a primeira a que iam como marido e
mulher. Padre Michael abençoou-os com uma prece especial, embora o fizesse
com uma tal atitude de tristeza e pesar que mais parecia uma extrema-unção
Afinal, o padre era o pai de Jehannie e amava de mais a filha. Lady Meg,
a mãe de Jehannie, também fora à missa, porém nem ela nem padre Michael
cum primentaram, particularmente, a Rob ou a Mairi, de pois do ofício
religioso.
Rob desejou que a mudança no curso dos aconteci mentos não
significasse para ele a perda da amizade do casal. Os dois haviam sido um
esteio na vida de Rob desde o nascimento, uma espécie de pais adicionais, 0
que seria verdade, se ele houvesse desposado Jehannie.
Se pelo menos aquela garota de génio apimentado não houvesse
insistido em acompanhar o avô até a corte inglesa, quando ele viera visitá-los,
Rob agora estaria casado com ela.
O destino tinha sido generoso ao evitar isso, ele pen sou, com um ligeiro
sentimento de culpa. Se estivesse casado, como planejara, jamais teria
encontrado Mairi.
Sua mãe treinara Jehannie, desde criança, para ser baronesa,
acreditando que Rob precisaria da assistência de uma esposa esperta, para
ajudá-lo a lidar com os problemas que poderia encontrar, como lorde de
Baincroft.
Também instruíra o irmão de Jehannie, Thomas, a quem Trouville sagrara
cavaleiro, nas coisas que o ra paz deveria saber para agir como escudeiro e
porta-voz de seu filho. Era um alívio para Rob saber que não perderia a
atenção do amigo, já que o casamento com Mairi fora ideia de Thomas, ele que
arranjara tudo.
Será que eles me odeiam, agora?, Rob perguntou, por sinais, à mãe,
quando Mairi não estava olhando. Apontou para padre Michael e lady Meg.
Não!, ela respondeu, também em gestos, vivamente. Dê-lhes lhes
tempo. Estão magoados.
Rob concordou com a cabeça e tomou o braço de Mairi, conduzindo-a da
capela para o salão.
Ela parecia serena e estava bonita mesmo com aque I vestido amassado
e o singelo véu de linho. Mairi era uma mulher que não precisava de jóias para
dar brilho à própria aparência radiante. Ele, porém, adoraria presenteá-la com
pedras preciosas, mesmo assim.
De repente, ele se deu conta que não dera nenhum presente a ela. Tinha
um broche de esmeralda, em Baincroft, que serviria maravilhosamente como
uma prenda, na manhã em que houvessem consumado o casamento.
Se isso acontecesse, relembrou a si mesmo.
O orgulho enchia seu peito cada vez que olhava para a esposa. Seus
sentimentos já tinham ultrapassado a luxúria e o desejo de protegê-la, e se
estendido para algo muito superior ao que ele sentira por Jehannie embora a
conhecesse a vida inteira.
Fora uma infelicidade para a família dela que sir Simon houvesse
enganado a neta e magoado seus pais com a atitude. E, mesmo assim, Rob
estava tão incri velmente feliz por ter Mairi ao invés de Jehannie que resolveu,
definitivamente, que não sentiria mais culpa por isso pois a decepção deles não
era obra sua.
Depois de quebrarem o jejum com a família, Rob permitiu que sua mãe o
convencesse a ficar mais um pouco. Baincroft ficava há apenas duas horas a
cavalo, e ele queria dar tempo a Jehannie para voltar para a corte e para o
avô, antes de chegarem em casa.
Qualquer dia desses, ele poderia encontrar-se com ela e pacificar tudo,
porém duvidava de que ela pudesse' aceitar vê-lo com uma bela esposa a seu
lado.
Além disso, Mairi poderia ficar muito magoada ao saber que fora a
segunda escolha, mesmo sem ter que tratar com a primeira noiva e seu
temperamento difícil
Por mais de uma hora, permaneceram no solário Rob ficou a observar a
mãe e Alys conversando ani madamente com Mairi. Abençoadas fossem as
duas faziam com que ela se sentisse bem-vinda. Até então, Mairi parecera
pouco à vontade. Agora, não.
Alys nunca gostara de sua ex-noiva. Embora a irmã jamais houvesse sido
negligenciada, talvez tivesse de senvolvido uma espécie de inveja por causa da
atenção que Jehannie sempre recebera de sua mãe, como futura esposa de
Rob.
Já com Mairi, Alys estava se comportando maravilhosamente, e ele rezou
para que continuasse assim.
Enquanto as mulheres conversavam, Rob sentou-se diante do fogo, com
o pai. Este logo o encheu de con
selhos. A conversa, metade em palavras, metade em gestos disfarçados,
seria engraçada se Rob não ficasse preocupado que Mairi pudesse adivinhar-
lhe o segredo.
— Eu contarei a ela, hoje, pai! — Rob exclamou, finalmente, esperando
pôr um ponto final ao assunto.
Pelo canto dos olhos, viu que as mulheres voltaram as cabeças, em sua
direção.
Droga! A impaciência o dominara, e ele se esquecera de manter a voz
baixa. Agora, todas o estudavam, Mairi em especial.
— Hora de partir — ele declarou, levantando-se para evitar quaisquer
perguntas. Estendeu a mão. — Venha, Mairi.
Não houve objeções, ele percebeu. Obviamente, todos estavam ansiosos
que ele levasse Mairi a Baincroft e contasse a ela toda a verdade.
Seria possível que seus pais mantivessem alguma esperança que Mairi
rompesse o contrato de casamento quando ele lhe dissesse aquilo que
precisava dizer? Sinceramente, ele esperava que não. E, mesmo assim, eles
deviam estar pensando que, se acontecesse, com certeza isso abriria o
caminho para Jehannie.
O que não poderiam saber era que Rob não queria mais tê-la como
esposa, não depois de ter encontrado e se casado com Mairi,
Lutaria com todas as forças, faria qualquer coisa para que ela quisesse
ficar e para que o amasse, em resposta.
Alys propôs-se a ajudar Mairi a preparar a bagagem, enquanto Rob e o
pai saíam para mandar arrear os cavalos.
Assim que as mulheres deixaram o aposento, o conde resolveu contar a
Rob as novidades sobre o prisioneiro que Andy Miúdo escoltara até ali.
— O homem que atacou sua esposa está morto — disse
— Você o matou? — perguntou Rob, incapaz de acreditar que Trouville
tiraria a vida de alguém.
O conde arqueou uma das sobrancelhas.
— Deixei um punhal por perto, em um esquecimento muito conveniente.
Ele temia ser torturado.
— Eu queria respostas — resmungou Rob desapon tado. — Informações.
O conde deu de ombros, como se isso não importasse.
— Arranquei dele tudo o que você poderia saber. . — E então?
— Ranald Maclnness lidera um bando de facínoras uma escória de
bandidos de outros clãs que serviria a qualquer senhor por dinheiro. Ele quer
sua mulher. Viva ou morta.
— Morta? Por quê? — perguntou Rob, sem entender por que Ranald
poderia querer ver Mairi morta. 0 homem que a atacara devia estar louco ou
não com preendera as instruções de Ranald.
— O povo de Craigmuir não o servirá como um lorde enquanto Mairi
viver — explicou Trouville. — A menos que ele a mantenha como refém,
fazendo dela sua esposa.
— Ele virá atrás dela — murmurou Rob. Não pre cisava saber de mais
nada, pois nunca questionara isso. Porém, só agora compreendia que nem
amor nem desejo por Mairi tinham parte na perseguição de seu inimigo. A vida
dela seria desprezada ou transformada em um inferno, se Ranald atingisse
seus objetivos.
Embora quisesse vingar a morte do pai de Mairi e estívesse ansioso por
afastar dela qualquer futura ameaça, Rob tinha esperança de poder resolver as
coi sas entre Mairi e ele, primeiro. Ali estava uma outra razão para não se
demorar.
- De dois a três dias, quando muito — concluiu. Ele virá.
Rob sentiu a mão firme de seu pai pousar em seu ombro e voltou-se.
- Vou mandar colocar um espião. Ele nunca chegará a Baincroft.
- Não. Deixe-o vir! — exclamou Rob, com raiva.
— Você não gostará da matança — disse Trouville, os olhos negros
toldados de tristeza. — Não é uma coisa fácil.
Rob percebeu então que nada dissera sobre a batalha do Craigmuir, onde
matara gente até perder a conta. Aparentemente, nem Andy Miúdo, que não
tivera tem po de entrar em detalhes, além de ter anunciado que o pai de Mairi
havia sido assassinado.
O conde treinara Rob desde a infância e se mostrara orgulhoso quando o
garoto fora sagrado cavaleiro e vencera os torneios através do continente.
Ainda assim, considerava o filho incapaz de violências e com o co ração terno
demais para se defrontar com uma ameaça verdadeira.
— Já tive um batismo de sangue, pai — Rob admitiu, com tristeza. —
Realmente não gosto disso, mas esse homem precisa morrer por minha
espada.
— Que assim seja — disse Trouville, adotando a costumeira formalidade.
— Só me resta desejar-lhe sucesso na jornada.

CAPITULO X

Onde está Andy Miúdo? — perguntou Mairi a Rob, enquanto cavalgavam,


lado a lado, a caminho de Baincroft.
Rob colocara pergaminhos novos e vários pedaços de grafite em sua
bagagem e na dele, mas ela preferiu não pegá-los. Sua garganta doía pouco, e
ela sabia agora que Rob podia escutar perfeitamente. Assim, escrever não
tinha sentido.
Ele a fitou, parecendo preocupado.
— Hum… Andy?
Ela fez um gesto afirmativo.
— Em Baincroft — Rob explicou, com sua voz pro funda e ressonante.
Aquele timbre imutável desencadeou um tremor de ansiedade pelo corpo
de Mairi. Como não se dera conta de que gostava daquele som? Ninguém
falava como ele, e quem sabe essa fosse a razão. Fazia parte de Rob, e ela
apreciava isso.
Mairi recordou-se como o apelo do desejo de Rob a mobilizara na noite
anterior. E também sua promessa de que, naquele noite, ele a faria sua, em
todos os sentidos. A ansiedade que sentia aumentava a cada passo das
montarias.
Rob despertara nela necessidades que desconhecia.
Queria tornar-se mulher. Sua mulher. Ela o desejava, é claro, mas esse
desejo ia além dos prazeres que ele poderia oferecer-lhe na cama. Queria
conhecê-lo de todas as maneiras.
Sem dúvida, ele era gentil, corajoso e honrado. Ainda assim, ela
precisava partilhar de seus pensamentos e seus sonhos e poder contar a ele os
dela. Parecia que os dois haviam consumido uma grande parte de seu tempo,
juntos, evitando intimidades.
Ele se determinara a retardar uma maior aproximação, embora Mairi
soubesse que Rob á desejava tão ardentemente quanto ela o queria. Ele mal
conseguia dissimular o fato e a evidência se mostrava por si só, com espantosa
regularidade. Ela notara, e ele sabia disso.
Mairi compreendera por que ele não quisera se dei tar com ela, no chão,
pela primeira vez, durante a viagem, ou, mais tarde, no quarto da irmã.
Baincroft devia representar algo verdadeiramente precioso para esse homem.
Ele haveria de querer consumar o casa mento no lugar onde viveriam e
envelheceriam juntos, onde seus filhos haveriam de nascer, e onde ela e Rob
descansariam unidos, pela eternidade, quando chegas se a hora.
Aíys lhe contara que Rob fora sagrado lorde em Bain croft, com a idade
de dez anos, quando seu pai verdadeiro morrera, de uma febre. Não era de
admirar que tivesse orgulho de seus domínios, tendo governado aquele Estado
durante tanto tempo.
Ele cavalgava à frente, em sua pressa de chegar em casa, e Mairi ficou a
imaginar o que os esperava lá.
Andy Miúdo os precedera para deixar tudo pronto para a chegada dos
dois. Ela não o vira desde que ele partira, na manhã do dia anterior, com o
prisioneiro e os cavalos apreendidos. Pelo menos, ela podia esperar encontrar
um rosto amistoso para saudá-la, em Baincroft.
— Vão fazer outra festa para nós? — perguntou.
— Olhe lá — disse ele, ignorando sua pergunta e apontando para uma
série de colmas ondulantes in terceptadas por grupamentos de árvores.
Rob havia diminuído o passo da montaria para que Mairi pudesse
alcançá-lo. Juntos, silenciosamente ad miraram a paisagem. A distância, um
riacho sinuoso abria caminho através das rochas e desaguava em um imenso
lago azul. O sol da tarde rebrilhava em sua superfície como pedras preciosas.
— Além da água — anunciou Rob, com um gesto do braço —, tudo é
meu.
Nosso, pensou Mairi consigo mesma, que agora não tinha outro lugar
para chamar de seu.
Pareceu a ela que tinham ainda um longo caminho pela frente, contudo,
o campo, nos arredores, mostrava uma beleza incrível e a tarde era bastante
agradável, favorecendo a viagem. O tempo estava deliciosamente cálido,
mesmo para o verão, e o aroma das flores sil vestres parecia dar-lhes boas-
vindas.
— Quanto falta? — ela perguntou, notando o olhar interrogativo que Rob
lhe dirigia.
— Umas poucas léguas — ele retrucou secamente, parecendo
desapontado. Voltou-se e estalou a língua para instigar o cavalo.
— Suas terras parecem maravilhosas, pelo pouco que pude ver — ela
comentou, incitando a égua e ten tando alcançar o marido. — Mal posso
esperar para chegar lá. Rob? Rob!
Tarde demais para tentar apaziguá-lo, ela supôs, pois Rob havia
avançado bem à frente, guiando a montaria pelo tapete florido e através dos
espinheiros cin zentos que cobriam o chão, ao redor.
Ela devia lembrar-se de responder mais depressa com elogios quando ele
fizesse seus comentários. Or gulhoso como era de tudo que possuía,
naturalmente eíe havia esperado que ela sentisse o mesmo e ficara aborrecido
quando Mairi não o demonstrara.
— Este deve ser um solo fértil! — ela exclamou, na esperança de
remediar a situação. — As flores silvestres crescem em abundância, as árvores
e a grama são tão verdes!
Ele não disse nada, continuando a seguir em frente. Que temperamento
tinha seu marido! Ela tentou, de novo, Cavalgando agora bem atrás dele, Mairi
perguntou, ansiosa:
— Diga-me, o gado daqui, é semelhante ao das Terras Altas? Fica
enorme?
Nada. Ela devia tê-lo deixado muito zangado. Então, de repente, ele
voltou-se para olhar por sobre o ombro, com um sorriso nos lábios.
— Você sabe nadar?
— Não propriamente — ela confessou.
Os lagos gelados das Terras Altas e os riachos com suas corredeiras
provocadas pelo degelo da primavera não encorajavam a natação. Ninguém
nadava de espontânea vontade, por lá, apenas para se salvar em caso de
acidente. Ele não lembrava da desventura sofrida perto de Craigmuir? Nadar?
Pois sim!
— É perigoso cruzar o riacho? — perguntou, julgando que iriam rodear o
córrego onde era mais raso e não houvesse risco.
Depois de um instante de hesitação, ele voltou-se na sela, a expressão
de felicidade ainda inalterada.
— Duas centenas de habitantes.
Por Deus, o que tinha o número de habitantes a ver com o perigo de um
afogamento acidental? A alegria de voltar para casa devia ter alterado seu
cérebro Ela concordou, sorrindo, enquanto ele a observava, es perando a
resposta.
— Quantos!
— Sim, duas centenas — ele repetiu, com um suspira de satisfação, e
fitando de novo a terra além do lago — E são prósperos.
Mairi logo pensou em algo para perguntar que pu desse deixá-lo feliz.
— E a colheita? O que se planta por aqui?
— As crianças — ele retrucou, ainda examinando com orgulho visível a
pequena parte de seu estado que tinham pela frente. — São saudáveis.
Mairi deixou escapar uma gargalhada.
— Realmente, que fartura! Plantações de bebes! -Uma piada? Era algum
progresso! — Elas florescem em boas condições, meu lorde?
Ele voltou-se e encarou-a mais uma vez, parecendo muito sério agora.
— Três cavaleiros treinados — disse. — Cinco escudeiros. Cinco pajens.
Todos, bons garotos.
— Hummm! — Mairi exclamou, sem saber o que ele pretendia dizer com
essa afirmação. Os homens que faziam parte de seu séquito eram problema
dele e tinham pouco a ver com ela.
Por que será que ele jogava os assuntos como se mentes ao vento? Tão
logo começava um, logo o abandonava, por outro. E não respondia as
perguntas, a menos que a encarasse quando ela falava.
A suspeita anterior voltou, deixando-a preocupada. Mairi esperou até que
Rob dirigisse a atenção total mente para o caminho. Ficou a uma boa distância
par trás, para que ele não pudesse distinguir-lhe a face, mesmo com o canto
dos olhos. Então, perguntou, de maneira bem clara:
— Podemos parar por um instante? Acho que minha égua está
mancando.
Ele não lhe deu resposta, nem diminuiu o passo da montaria. Ora, a ela,
ele poderia ignorar, mas Rob nunca Iria arriscar aleijar um animal valioso só
para provocá-la.
De novo, ela o testou.
— A natureza chama, meu lorde. Por favor, podemos descansar aqui só
um pouquinho? — gritou, com todas as forças.
Ele continuou cavalgando como se ela não tivesse dito nada.
O coração de Mairi disparou no peito. Ela agarrou as rédeas e sua
respiração travou-se em um soluço de tristeza.
— Vou lançar uma maldição sobre você se não parar neste exato
momento! — berrou, na esperança de que ele se voltasse, para responder. —
Olhe para mim, Robert MacBain!
Nada.
Pouco mais tarde, Rob refreou o cavalo, pôs-se a esperar por ela e
pareceu aflito ao ver as lágrimas que escorriam pelo rosto de Mairi. Lágrimas
que ela não pudera estancar ou esconder.
- Você está com saudade de casa — ele murmu rou, com tristeza, cheio
de ternura e preocupação. - E do lorde…
Tudo o que ela pôde fazer foi concordar quando ele estendeu a mão e
tomou a dela, depositando um beijo dentro da palma. A compaixão, em seus
olhos, era maior do que ela poderia suportar, naquele instante em que Mairi
sentia o coração partido, por ele
Ela não conseguia explicar como ele pudera dançar tão bem, nem como
parecia ter ouvido o assobio, nos portões do castelo. Porém, Rob não
entendera uma única palavra que ela dirigira a ele, pelo caminho Isso, ela
podia jurar.
Embora não entendesse como, sabia que ele escutava algumas coisas,
porém, estava absolutamente certa de que ele não conseguia ouvi-la. De
alguma forma, ele lia as palavras em seus lábios quando a observava falar, e,
quando não podia ver, Mairi faria melhor con versando com o vento.
— Não chore — ele implorou, olhando-a, dentro dos olhos.
Mairi forçou um sorriso e enxugou o rosto com a manga do vestido.
Fungando, apontou para seu destino.
— Você é meu lorde, agora — declarou, formando cada palavra
cuidadosamente na boca, para que ele não as perdesse. — E minha casa é
Baincroft.
O alívio sombrio nos olhos dele premiou-lhe o es forço, porém Mairi teve
de imaginar que desafios iria enfrentar no futuro, por causa disso. Só na noite
an terior, quando pensara que ele podia ouvir, ela se per mitira ponderar sobre
os problemas de ter um marido e senhor que não pudesse escutar. Pareciam
superados e ela dera graças a Deus por não ter que se defrontar com eles.
Somente então ela percebera o quanto a surdez de Rob poderia afetar sua
própria existência.
Quando julgara, a princípio, que ele era surdo, Mairi não considerara toda
a extensão de tal deficiência, ape nas a tragédia imediata para o próprio Rob.
Muitas almas dependiam dele como lorde, deviam esperar pro teção e bem-
estar da parte dele.
Como ele conseguira levar adiante suas responsa bilidades? Quem
cuidara de seus negócios, zelara para que não tagarelassem a respeito ou
fizessem brincadeiras por trás de suas costas? E, por que essa pessoa não o
acompanhara na viagem até Craigmuir?
Rob não tinha um protetor entre aqueles que haviam viajado com ele,
ela sabia, pois os homens nem mesmo eram cavaleiros e não o haviam
acompanhado quando ele entrara no salão de seu pai, para finalizar os
arranjos para o casamento. Devia ser sir Thomas, o homem responsável pelo
noivado, que deixara Rob ir sozinho.
Como isso a deixava zangada! Que coisa horrível que ninguém estivesse
ao lado dele, para ajudá-lo! Será que ela poderia ocupar essa posição em
Baincroft, se o protetor o houvesse abandonado? Ela precisava des cobrir como
e não era tarefa fácil, já que ninguém costumava dar credenciais a uma
mulher.
Mairi desabou sob o peso da responsabilidade que assumira, sem saber.
Devia fortalecer-se para essa ta refa e idealizar um plano. Uma Maclnness não
desistia ao se defrontar com um desafio.
Aparentemente, nem um MacBain. Rob não era um fraco de espírito,
tinha certeza. Ele enfrentara seu dever e abrira seu caminho da melhor forma
que pudera. saber disso aqueceu-lhe o espírito debilitado.
Em primeiro lugar, ela teria de ganhar sua confiança pois, obviamente,
ainda não a conquistara, já que ele ainda tinha medo de contar a ela a
verdade.
Em seguida, precisava certificar-se de falar sempre de forma que ele
pudesse compreendê-la. Ela já come çara a agir assim e parecia que
funcionava.
Por último, Mairi sabia que tinha de ganhar o respeito daqueles que
viviam em Baincroft. Pois se uma chama desejasse partilhar do governo de seu
lorde, não poderia sujeitar-se candidamente aos homens acostu mados a se
governarem, por tão longo tempo.
Rob não era uma criança indefesa, contudo, e, de finitivamente, não era
um simplório, pois uma brilhan te inteligência reluzia naqueles olhos cinzentos,
pro fundamente observadores. De mente ágil, sim, e rápido nos pés, para um
homem tão grande. Ele já provara ser um hábil guerreiro, mas mesmo assim,
conduzir um baronato inteiro sem ouvir o que se passava ao redor certamente
seria impossível a qualquer um.
Mairi resolveu que conquistaria o amor do marido antes do próximo pôr-
do-sol e, então, ele a recompen saria com sua confiança, confessando sua
limitação física e pedindo-lhe ajuda. Se não o fizesse, ela perguntaria de forma
direta e, depois, ofereceria auxílio.
Por enquanto, ela precisava retardar a vingança ao pai e, embora o
adiamento afizesse sentir-se desleal e a desapontasse grandemente, havia
muita coisa a colocar nos eixos ali. Ela não podia esperar que o ma rido e seus
comandados iniciassem uma guerra contra seu primo, tão longe da Escócia.
Pelo menos, não ainda.
Ranald podia segui-la até ali, e Rob parecia acreditar nisso. Se tal
acontecesse, Mairi só podia esperar que Rob e seu povo soubessem conduzir
os meios de defesa Embora tivesse presenciado diversos ataques a Craigmuir,
Mairi pouco sabia sobre como organizar os homens para tal evento.
Seu marido certamente conseguiria sair-se bem em um combate corpo a
corpo, porém ela ficava a imaginar se ele seria capaz de assumir o comando de
uma batalha. Em um lugar como aquele, que parecia que a guerra jamais
tocara, talvez ele nunca tivesse tido a oportunidade de aprender.
Pela misericórdia do Senhor, Mairi esperava que Rob confiasse nela.
Precisavam desesperadamente conversar, para saber de que forma sua surdez
afetava sua capacidade. Só então ela poderia decidir o que fazer, em seguida.
Rob estava preocupado. Temia que Mairi chegasse em casa exausta e em
lágrimas. Devia ter deixado que qla descansasse mais um dia antes de viajar,
porém ele precisava ir para Baincroft.
Afinal tinha certeza de que Ranald chegaria, dentro de poucos dias.
Precisava armar suas defesas, deixan do-as em perfeita ordem, antes que isso
acontecesse.
Além disso, a farsa de que podia ouvir enfraquecia, o ele não tinha
certeza de por quanto tempo ainda poderia mantê-la. Mairi precisava saber,
tinha esse direito. Se, pelo menos, ele encontrasse uma maneira suave de
contar a ela…
Nunca, desde que fizera dez anos e vivera a mesma mentira com
Trouville por poucos meses, ele fizera o mínimo esforço para esconder a
surdez. Jamais negara sua condição, embora não passasse, voluntariamente, a
informação. Não era da conta de ninguém, afinal.
Henri ou Thomas, e muitas vezes o próprio conde, acompanhavam-no
normalmente aos torneios, assumindo o encargo das conversas quando outros
cava leiros se reuniam, em uma confraternização social.
Seu escudeiro encarregava-se de informá-lo quando tal não acontecia,
porém Gareth fora sagrado cavaleiro, e partira para ganhar suas próprias
recompensas. Henri assumira seus deveres na França, nos domínios de
Trouville, os quais herdaria algum dia. E Thomas, é claro, curtia a perna
quebrada.
Essa aventura em que Rob se metera, sozinho, mostrava-se mais difícil
do que ele havia imaginado, mas não impossível, graças a Deus. Ele se
arranjara por conta própria, pela primeira vez, contudo, precisava
urgentemente de descanso, ansiava por voltar a ser ele mesmo.
Precisava de Mairi. E precisava que a verdade se ins talasse entre os
dois. Ela devia ver como ele fora bem sucedido na administração de Baincroft e
como o acordo firmado por seu pai provara ser em seu benefício.
Mairi tinha que querer ser dele antes que a paixão o dominasse e
tomasse as rédeas do destino de ambos E, por causa da promessa que fizera,
na noite anterior, ele tinha apenas um dia para convencê-la.
Chegaram ao ponto em que se cruzava o riacho. Seus homens e os de
Trouville haviam construído uma ponte ali, feita de troncos apoiados nas
pedras. Ele desmontou e ajudou Mairi a descer, deixando que aquele corpo ado
rável deslizasse ao longo do seu até que os pés dela tocassem o chão. Suave
tortura, deliciosa tortura.
Ela sorriu, as lágrimas agora secas e o rosado da face brilhando
delicadamente como pétalas de rosa, Rob adorava aquela pele, fina, suave e
macia. Ele sen tiu que seu coração se acelerava, quando a segurou pela
cintura.
— Aqui estamos — disse, apontando para o outro lado da ponte.
— Sim — Mairi retrucou.
Rob percebeu o nervosismo que ela tentava esconder. Devia estar com
medo que o povo de Baincroft não a recebesse bem. E alguns bem poderiam,
pois ela não era parte de sua gente, mas uma mulher das Terras Altas.
Era melhor que Thomas houvesse atentado para essa possibilidade, ou
Rob tinha intenção de tirar-lho a pele, com a perna doente ou não. E se o
patife não houvesse despachado sua irmã até a hora em que che gassem, Rob
providenciaria para que pegassem a es trada, por bem ou por mal. Mairi não
precisava do mais aborrecimentos depois de tudo o que sofrera na Viagem até
ali, e ele planejava certificar-se de que nada a importunasse.
Tomou-lhe a mão e caminharam, atravessando o ria cho, puxando as
montarias. Mais além, ele tirou o man to da sacola e estendeu-o no chão.
— Descanse — murmurou, afastando-se para levar os animais para
beber, à beira do riacho.
Rob ajoelhou-se a poucos metros, corrente acima, lavou as mãos e
sorveu um gole de água. Ao erguer
0 rosto, viu que Mairi o seguira, para refrescar-se e matar a sede.
Seguindo um impulso, ele mergulhou as mãos em concha e levantou-as,
cheias do líquido fresco, oferecendo a ela, com um sorriso provocante.
Mairi recuou e riu, enfiou as mãos no riacho, dando um piparote que fez
a água espirrar no rosto dele.
— Garota malvada! — ele exclamou, examinando a correnteza. O lugar
era raso, embora turbulento. Não haveria perigo. Ele fez um gesto, seguido de
um olhar initerrogativo.
— Não! — reclamou Mairi. — Não devemos chegar molhados…
Ele deu de ombros, concordando com ela. Mairi tinha razão, afinal,
dificilmente aceitaria tirar as roupas e certamente não poderia nadar vestida.
Qualquer dia, ele a traria de volta, para o ponto onde o riacho se
transformava em uma piscina tran quila. Quase como aquele lugar, em
Craigmuir, onde haviam se beijado pela primeira vez.
Pensando nisso, Rob abaixou e colheu algumas flores silvestres.
— Para você — disse, estendendo-as a ela.
Mairi engoliu em seco e, então, inclinou a cabeça e aceitou, levando os
miosótis até o nariz.
Rob gostaria de transmitir confiança a ela, prometer por sua vida e sua
honra que ela continuaria feliz e protegida ali, amada pelo resto de seus dias.
Queria que Mairi soubesse disso, contasse com isso, sentisse conforto com
isso.
Porém, as palavras amontoaram-se em sua cabeça até ele teve medo
que saíssem, na ordem errada, ou que seu tom de voz soasse muito duro e
áspero e su focasse a ternura que havia nelas.
Ao invés disso, ele inclinou-se e beijou suavemente os lábios de Mairi. E,
mesmo assim, aquilo não pareceu suficiente para selar as promessas não
pronunciadas, vindas do coração, que ele desejava lhe fazer. Nem para ele e,
aparentemente, nem para ela.
Quando os lábios de Mairi abriram-se, sob os dele, em um convite
irrecusável, Rob sentiu que todas suas boas intenções iam por água abaixo.

CAPITULO XI

Mairi deslizou os dedos pelos cabelos dou rados e deliciou-se com o gosto
da boca de Rob e com a pressão daquele corpo roçando contra o seu, até que
tocasse com os pés na grama macia. Um desejo imenso de tê-lo invadiu-a,
uma necessidade ur gente de oferecer a ele tudo o que tinha para dar,
O murmurejar sonoro da água a correr entre as pedras e o retinado da
cotovia, a distância, ficariam perdidos para Rob, refletiu Mairi, com tristeza.
Assim como as palavras que ela pronunciasse, no fogo da paixão. Pensando
nisso, aumentou o fervor em seu beijo, colocando nele tudo que sentia.
Por um infindável, ainda que breve interlúdio, Mairi abandonou-se,
confiando que Rob se entregaria ao de sejo também. Não queria que ele
parasse.
Ele a soltou, as bocas ainda muito próximas, correndo as mãos fortes
sobre ela, como se quisesse acalmar qual quer arroubo que tivesse despertado
em Mairi.
— Será preciso muito mais que isso — ela murmurou, mais para si
mesma.
Rob ergueu a cabeça, talvez sentindo a respiração de Mairi roçar-lhe a
orelha.
— Hein? — perguntou, sorrindo. Mairi decidiu ser direta.
— Eu o quero — sussurrou, destacando cada pala vra, como se fosse
uma questão de vida ou morte.
— Eu sei — ele respondeu, os olhos acinzentados permeados de um
intenso desejo e da mais plena com preensão. Afastou uma mecha que caía
sobre a testa de Mairi, com um gesto delicado, e riu.
— Não basta — retrucou Mairi insatisfeita. Afastou-se e sentou-se, de
costas para ele. Sabia muito bem quanto ele estava excitado e lutava, com
todas as forças, para não olhar para aquele ponto do corpo, que o denunciava.
Seria tão simples resolver todo aque le desconforto. O dele e o dela.
Agora não, afirmou a si mesma. Rob estava impaciente para chegar em
casa. E, com certeza, ansioso por deitar-se com ela, não tinha por que se
preocupar.
Se, pelo menos, pudesse dissipar a febre que lhe queimava as entranhas,
ela poderia achar alguma gra ça no episódio, como ele. Isso a deixava
zangada. Talvez fosse melhor rir do que resmungar, como tinha vontade de
fazer.
Afinal, estavam ali, parados à margem do riacho, em plena luz do dia,
bem visíveis da ponte, qualquer um que passasse poderia vê-los. E imagine só
que cena presenciaria, se continuassem com aquilo.
Mairi maldisse as mãos trémulas. Jogou a trança desfeita para debaixo
da rede de cabelos e forçou um sorriso, antes de se voltar. Ele já estava de pé
e es tendeu a mão para ajudá-la a levantar-se.
— Você é uma doçura — disse Rob, com um sorriso brincalhão.
— E você é cruel — ela retrucou, franzindo a testa. Raras vezes ela
ouvira aquela risada gostosa, sonora e profunda como a voz dele, e natural
como a de uma criança. Contagiante, também.
Foi impossível deixar de rir com ele e de si mesma, pelos pensamentos e
atos tão ousados e impróprios. E dele, também, simplesmente porque Rob
conseguia ficar ali, visivelmente excitado, e ainda conseguia brincar com o
fato.
Ainda rindo, ele a conduziu até a montaria e ergueu-a, colocando-a na
sela. Assim que a viu sentada, deu-lhe um tapinha nas coxas, acariciando-a
gentilmente.
— Oh, meu Rob, como você é alegre.
Ele entregou-lhe as rédeas e fechou os dedos sobre os dela.
— Minha fogosa Mairi — respondeu, com um olhar sugestivo.
Ela não teve certeza se gostava daquela observação! Fogosa não era a
palavra que ela usaria para descrever a si mesma, anteriormente, mas, tinha
que reconhecer, era bem apropriada no que dizia respeito a Rob.
Por várias vezes, até o momento, os dois haviam se aproximado de uma
maior intimidade e recuado. Ela daria um basta àquilo. Se ele a beijasse, de
novo, a menos que estivessem no meio do salão, durante a refeição, com toda
a gente observando, ela tinha intenção de ir em frente!
Fique avisado, meu distinto lorde Robbie, pensou. As imagens que se
formaram em sua mente, daquilo que poderia acontecer se ele não se
precavesse da silenciosa advertência, fizeram-na sorrir durante todo o caminho
até Baincroft.
Quanto mais perto chegavam, mais Rob apressava o passo das
montarias. Logo, o castelo surgiu.
— E lindo! — ela exclamou. Logo, percebeu que os olhos do marido não
estavam sobre ela. Avançou e pôs-se a cavalgar a seu lado, repetindo o que
dissera. Precisava ter isso em mente, Mairi repreendeu-se. Ele precisava ver as
palavras.
— Sim — respondeu RoB, os olhos acinzentados brilhando de emoção e
agradecendo a ela. Rezava para que Mairi sentisse o mesmo que ele. — Um
belo lar.
Alys havia alertado Mairi para não esperar que Baincroft fosse igual ao
castelo de Trouville. E não era. Pelo menos, não no tamanho, que parecia ser a
metade da quele dos pais de Rob, embora maior que o de Craigmuir.
Bem diferente da fortaleza nas Terras Altas e de suas muralhas maciças,
este parecia alvo e limpo de qualquer sujeira ou aspecto de negligência.
O lorde nunca dera muita importância às aparências, apenas às defesas.
Ali, certamente, estava um lugar mais pacífico que seu lar, nas Terras Altas.
Uma troca justa, reconheceu Mairi. A rude magnificência da terra de
onde ela fora arrancada para a paz e a beleza deste lugar resplandecente.
Ela ouviu a trompa de boas-vindas soar, lá em cima, na torre de vigia.
Então, logo que se aproximaram dos portões, ouviu-se um assobio agudo,
muito parecido com aquele que os saudara, quando haviam chegado a
Trouville.
Rob imediatamente olhou para cima e acenou, sorrindo, para o homem
em pé na muralha. Este, contudo, não sorriu em resposta, parecendo até
mesmo aborre cido ao vê-los ali.
Os portões já se abriam, e Rob avançou, abrindo caminho. O pátio
fervilhava de gente. Deviam ter estado em plena atividade e, agora, pareciam
congelados no lugar, à vista de seu lorde.
Ou, quem sabe, era para ela que lançavam os olhares preocupados.
Alguns trocaram gestos e sinais, outros murmuravam entre si.
Rob notou, também, ela percebeu, pela postura tensa de seus ombros e
pela junta esbranquiçada de seus dedos nas rédeas. Com um cumprimento
fortuito para um e para outro, entre aqueles que se enfileiravam conforme
avançavam, ele continuou cavalgando até chegar aos degraus de madeira do
castelo.
Um homem magro e bonito, de cabelos negros, esperava-os no topo da
escadaria, apoiado em duas bengalas. Mairi reconheceu sir Thomas, o cavaleiro
que tinha ido a Craigmuir para arranjar seu casamento com Rob.
Então, ele tinha se machucado, deduziu Mairi. Isso explicava por que não
voltara a Craigmuir para ajudar Rob, como devia ter feito. Vê-lo ali era um
grande alívio. Felizmente, percebia-se que ele era ainda capaz de realizar suas
tarefas como administrador de Rob.
Mairi sorriu para o cavaleiro, que se limitou a morder o lábio e encarar
seu marido, com expressão preocupada.
Será que seus súditos tinham medo de Rob? Sua chegada os assustava?
Andy Miúdo parecera gostar muito de Rob e temê-lo tão pouco a ponto de
algumas vezes se portar de forma impertinente. Mairi, agora, sentia-se aflita
que pudesse existir um lado obscuro em MacBain que ela ainda não soubesse.
Rob desmontou e veio ajudá-la a descer. Com uma das mãos em sua cintura,
ele a conduziu para cima, pelos degraus, enquanto os criados corriam e
começavam a retirar a bagagem das montarias. . A meio caminho, sir Thomas
pôs-se a gesticular, freneticamente. Mairi deduziu que Rob fizera alguma
pergunta com as mãos, que ela não pudera ver, pois o marido praguejou alto,
em seguida:
— Você conhece Thomas? — ele perguntou a ela, quando se
aproximaram do cavaleiro, deixando evi dente sua impaciência nas
apresentações.
— Sim — respondeu Mairi. — Meus cumprimentos, senhor.
O cavaleiro inclinou-se como pôde, em uma reverência, equilibrando-se
nas bengalas.
— Seja bem-vinda, minha senhora.
Rob mal lhe deu tempo para endireitar-se, passando pelo homem e
entrando pela porta. No instante em que chegaram ao grande salão,
imediatamente conduziu a esposa em direção à escada. E parecia tão
apressado que quase a arrastava.
Uma estranha sensação dominou Mairi. Essa urgência toda não era
porque Rob fosse movido por alguma necessidade imperiosa de ficar a sós com
ela, mais parecia que ele queria escondê-la, tirá-la fora do caminho. E a toda
pressa.
Algo muito esquisito estava acontecendo ali. Ou prestes a acontecer. Algo
que todos sabiam, menos ela.
— Ah, então, é verdade! — ouviu-se um grito zangado. A voz aguda
chamou a atenção de Mairi para o alto da escadaria.
Uma criatura miúda, de cabelos negros, as mãos nos quadris, estava em
pé, no topo da escada. Parecia ter a mesma idade de Mairi. Era baixa, de uma
beleza delicada e vestia um traje deslumbrante, de linho todo bordado. E
estava absolutamente furiosa.
Rob estacou, bufando, e ergueu os olhos para o céu. Praguejou tão baixo
que só Mairi pôde ouvir.
De repente, as mãos da criatura puseram-se a voar em movimentos
estranhos, como se lançassem uma virulenta maldição sobre os dois, e Mairi
não conseguiu desviar os olhos, fascinada.
Então, tão fulminante como o mergulho de um gavião, a jovem desceu
os degraus, aproximou-se de Rob e esbofeteou-o com força, em plena face. O
estalo ecoou pelas paredes, acompanhado pela interjeição horrorizada dos
criados que presenciavam a cena.
Rob suportou o golpe sem vacilar, e não deu resposta, nem com
palavras, atos ou expressões. Mairi julgou e ele estava em estado de choque.
Ela, com certeza, estava. Tivesse qualquer pessoa, homem ou mulher,
alguma vez afrontado seu pai desse jeito, com tal fúria, a cabeça do
tresloucado estaria no chão, aos pés do imbecil, em uma hora dessas.
Então, a jovem enfurecida passou por eles, desceu a escada, cruzou o
salão e saiu, pela porta aberta. Rob empertigou-se e voltou a cabeça,
observando-a. Foi o único movimento que fez.
— O quê, em nome de Deus, foi aquilo? — perguntou Mairi horrorizada.
Rob não respondeu. Sua boca, normalmente tão expressiva,
transformara-se em uma linha dura. Um músculo pulsava em sua mandíbula.
Na face esquerda, destacava-se a mancha avermelhada que os dedos haviam
imprimido.
Os criados, no salão, ainda ofegavam, os olhos correndo do portal por
onde a mulher saíra e para Rob. Todos, como Mairi, esperavam uma reação.
Tinha que haver alguma, na opinião dela.
Ele continuou de pé, em silêncio, por algum tempo.
Então, como se nada houvesse acontecido, voltou-se e desceu, cruzando
o salão e indo ao encontro de sir Thomas. O cavaleiro movia-se
desajeitadamente, parecendo vencido pela dor quando parou.
— Ela se foi — anunciou.
— Para onde? — perguntou Rob.
Sir Thomas balançou a cabeça e deu de ombros.— Saiu cavalgando —
disse, hesitando apenas um instante antes de acrescentar: — Em seu cavalo.
De novo, aquele músculo da mandíbula pulou quando Rob cerrou os
dentes. Seguiu-se um momento tenso de silêncio.
Aquela mulher tinha afrontado seu lorde, causado um tremendo
embaraço a ele diante de seus súditos, e roubara um valioso garanhão. Mairi
teve medo. Temia ouvir qual seria a penalidade a ser aplicada, mes mo que
essa punição fosse obviamente merecida para um tal ato inominável de
idiotice.
— Mostre Baincroft a Mairi — ordenou Rob, secamente, medindo sir
Thomas com um olhar que prometia uma retribuição severa, a qual não podia
cumprir de imediato.
Aquela expressão amedrontou-a, pois Mairi jamais vira uma tal fúria na
expressão do marido, a não ser durante a batalha, em Craigmuir, e, mais
tarde, quando ela fora atacada.
Mesmo atemorizada, ela tinha que fazer a pergunta que a incomodava.
Puxando-o pela manga, para chamar sua atenção, ela o encarou.
— Você vai atrás dela?
— Não. — Ele segurou-a pelo ombro e, então, deslizou a mão por seu
braço, em um toque suave que desceu até tocar-lhe os dedos.
— Vá com Thomas. —Tentou sorriu, mas foi só um arremedo. — Por
favor,
Mairi aquiesceu, sem vontade de afastar-se dele naquele momento,
dadas as circunstâncias. Rob tinha bons motivos para estar aborrecido, ela
admitiu, embora ficasse preocupada em vê-lo assim. Não havia nada que
pudesse fazer para ajudá-lo a resolver o problema, contudo.
Se Mairi conhecia um pouco o marido, seu bom humor logo voltaria, ele
não parecia ser daqueles que cultivasse o ódio. Para o próprio bem daquela
mulher, Mairi esperou que estivesse certa, quanto a isso.
Sir Thomas ofereceu-lhe o braço, e Mairi aceitou. A formalidade parecia
ridícula, já que ele precisava daquela mão para apoiar a segunda bengala e
conseguir andar,
O pobre homem parecia perto de um colapso, ou devido aos
acontecimentos do ataque daquela criatura desvairada ou de dor na perna
machucada. Rob já os deixara.
— O que houve com você? — ela perguntou.
— Caí e quebrei a perna, faz quinze dias — murmurou, tentando colocar
um sorriso no rosto.
— Então, deveria estar na cama. Ou sentado, com a perna devidamente
apoiada.
Mairi esperava, com isso, ganhar a confiança do cavaleiro e saber a
verdadeira história que estava por detrás do acontecido e as razões para tanto.
— Não se preocupe, minha senhora — ele murmurou, enquanto andavam
em direção ao fundo do salão.
— Permita-me apresentar-lhe a sra. Morgan. Ela irá acompanhá-la a uma
visita pelos aposentos da torre e acomodá-la no quarto do lorde. É difícil para
mim subir a escada.
— Tenho certeza de que lorde MacBain não teve intenção de ordenar
que você tentasse.
— Não se engane, minha senhora. Rob poderia ter quebrado alegremente
minha outra perna e minha cabeça também, em uma hora dessas!
— Creio que o trata de maneira muito íntima, senhor— ela o repreendeu.
Será que todos os vassalos falavam dele com tal desrespeito? Mesmo Andy
Miúdo se referira a ele com muita intimidade. Chamar um lorde pelo nome,
sem o título, era coisa que nunca ouvira e mesmo ela se recusava em tratá-lo
assim. As únicas vozes que se permitira fora durante seus encontros mais
íntimos. Aquilo não lhe parecia apropriado.
Os problemas ali deviam ser ainda piores do que havia suspeitado. Sim,
ele precisaria de sua ajuda para colocar as coisas no devido lugar.
- Minhas sinceras desculpas — resmungou Thomas, claramente ofendido
com o comentário. — Rob e eu crescemos juntos e, às vezes, esqueço meu
lugar. Não passo de um humilde administrador, afinal, e provavelmente nem
isso serei depois do dia de hoje.
— Eu gostaria que você… o senhor me contasse do que se passa, sir
Thomas. 0 pessoal estava tremendo de medo, como se nossa chegada fosse
um pesadelo. Aquela tresloucada que atacou meu marido tem alguma a coisa a
ver com isso, não é?
— Obviamente — ele admitiu, com um suspiro de resignação. —
Contudo, não estou autorizado a falar sobre isso.
Mairi considerou a resposta e julgou que a moça devia ser a amante de
Rob.
— Bem, ela não é parente, posso adivinhar. Nem uma simples criada, a
julgar por sua ousadia.
A expressão agoniada do cavaleiro ficou ainda mais patente. Ele abriu a
boca para falar, mas fechou-a, em seguida. Então, pareceu tomar coragem e
murmurou:
— Não devo falar sobre ela, minha senhora. Ela não é problema seu.
— Não importa. Creio que já me disse o suficiente. Que outra razão
poderia ter seu marido para ordenar a seu pessoal que não falasse sobre
aquela mulher, a menos que ela fosse sua concubina?
Rob não tinha sido o único a sofrer com o olhar de ódio daquela mulher.
Como esposa, de alguma forma sobrara uma parte para Mairi, naquele ataque.
E a chegada da legítima senhora a Baincroft dificilmente provocaria um tal tipo
de retirada de alguém que não fosse uma amante.
Thomas conduziu Mairi para o fundo do salão e para as cozinhas, onde a
deixou aos cuidados da sra. Morgan. Esta provou ser uma criatura de face
esculpida em madeira, que provavelmente pronunciaria ainda menos palavras
sobre o assunto. Mairi nem se atreveu a perguntar.
Bem, que tremendas boas-vindas para a nova esposa do lorde a
Baincroft, pensou Mairi, meneando a cabeça, com tristeza. Mesmo lindo e
confortável, aquele castelo abrigava segredos obscuros e aflitivos.
Parecia que seu marido era objeto de temor por parte de seus vassalos,
mas não de respeito. Acrescido a Isso, Mairi precisaria tratar com a amante de
Rob, que tinha um temperamento difícil e nenhum bom senso. Aquela mulher
voltaria, ela não tinha dúvida.
Depois que Rob tivesse lhe dado a punição pela bofetada e pelo furto,
Mairi com certeza veria a criatura atrelada a um marido qualquer, em um
futuro bem próximo. Expulsar uma mulher, mesmo uma de virtudes
contestáveis, era inadmissível, e era responsabilidade da senhora do castelo
providenciar que esses problemas fossem resolvidos.
Graças a Deus, Rob havia escolhido uma Maclnness como esposa. Uma
mulher mais fraca poderia ter qualificado essa tarefa como odiosa. Ela, porém,
aceitava o desafio, disse Mairi a si mesma, com firmeza.
-Nada de festa, esta noite, declarou Rob, por sinais, e, então, cruzou os
braços no peito, de testa franzida.
— Otimo! — exclamou Thomas aliviado. Sinto muito com respeito a
Jehannie, emendou, esfregando a mão sobre o coração e correndo o polegar
pelo rosto para indicar o nome da irmã. Continuou, os movimentos duros e
enfáticos. Tentei convencê-la a ir embora. Eu tentei!
Sem dúvida, Thomas devia ter tentado. Rob sabia exatamente o quanto
Jehannie podia mostrar-se irredutível e teimosa.
Thomas parecia hesitante, agora.
Sua esposa acha que minha irmã é sua amante.
Rob ergueu os olhos para o teto, em um gesto de desânimo, caiu
sentado sobre uma cadeira, ao lado da lareira, e suspirou. Meneou a cabeça
aborrecido.
Explicarei a ela, mais tarde.
Thomas concordou, o rosto ainda pesado de preocupação.
— Jehannie está inconformada.
— Jehannie vai procurar mamãe — Rob assegurou, em voz alta, pois
Thomas estava de costas. — É o melhor. — Então, mudou de assunto, pois não
havia nada mais que pudessem fazer, no momento, acerca da ex-noiva. —
Devemos nos preparar para lutar contra o primo de minha esposa — disse,
amontoando as palavras e não se preocupando em corrigir o atropelo. Com
Thomas, não precisava se dar a esse trabalho. O amigo o compreendia,
totalmente.
Thomas o encarou, deixando escapar um longo suspiro.
Andy me contou que os homens do novo lorde os seguiram, e você os
despachou.
Rob usou as mãos de novo e contou a Thomas tudo o que havia se
passado. Suspeitava que Andy já houvesse se antecipado e relatado a história
completa, quando chegara a Baincroft no dia anterior, trazendo Jehannie.
Você interrogou o prisioneiro que capturou?, perguntou Thomas.
Trouville interrogou. Ranald Maclnness quer ver Mairi morta,, se não
puder casar-se com ela. Rob explicou a Thomas que soubera quantos homens
e que tipo de exército o primo de Mairi poderia lançar contra eles, quando
chegasse. E muitos outros deviam ter sido contratados para substituir aqueles
que ele matara.
Thomas admitiu que poderia ser um problema. Baincroft mantinha
poucos soldados acostumados a batalhas,
— Vou examinar as defesas — resolveu Rob, levantando-se e dirigindo-se
para a porta, disposto a fazer pelo menos alguma coisa produtiva, naquele dia.
O amigo tomou-o pelo braço.
— Sim? — perguntou, baixando os olhos para Thomas, que continuava
sentado.
— E Jehannie, Rob? Concordei que ela fosse ficar com lady Anne e lorde
Edouard, mas, e depois? O que ela deve fazer? Tenho que pensar em alguma
coisa.
Havia uma súplica nos olhos de Thomas, não de um súdito para seu
lorde, mas de um amigo para outro. Thomas adorava Jehannie.
Rob percebeu que também gostava dela. De forma bem semelhante a
Thomas, como uma irmã. Não era justo que ela sofresse por algo que não era
culpa sua, pelo noivado rompido. Embora tivesse reagido de forma absurda e
embaraçado a ambos diante de todos, ele não tinha intenção de puni-la.
Seria para o bem dela, porém, Jehannie precisava aprender a se
controlar. Quantas vezes ele e Thomas haviam pensado que isso era
necessário, para resguardar Jehannie de si mesma? Para precavê-la de alguma
tolice que poderia muito bem mergulhar os três em mais problemas do que
poderiam contornar? Muitas vezes. Era um espanto que tivessem chegado a
idade adulta ilesos. Mesmo agora, Rob sabia que faria qualquer coisa dentro de
suas forças para evitar que Jehannie sofresse.
— Porei tudo em seus devidos lugares, Tom — ele afirmou ao melhor
amigo, com um sorriso que não deixava dúvidas. Deu um tapinha afetuoso no
braço de Thomas, para tranquilizá-lo.
— Você devia falar com ela — sugeriu Thomas. —Não vai falar?
— Sim, depois que resolver meu problema com Ranald Maclnness.
Os ombros de Thomas relaxaram, e seu comportamento mudou por
completo. A preocupação pareceu evaporar-se, deixando-o leve.
Thomas provavelmente o conhecia melhor que qualquer outro homem, e
acreditava que Rob conseguiria resolver quaisquer situações. Mesmo tendo
frequentado a corte assiduamente antes de se tornar maduro e assumir seu
lugar de direito como lorde, a absoluta confiança que seus súditos colocavam
nele sempre assustara um pouco a MacBain. Não era a primeira vez que
imaginava se poderia encontrar uma solução para o que parecia insolúvel. Mas,
de alguma forma, ele daria conta do problema.
A responsabilidade pesava-lhe nos ombros como um manto de chumbo,
manto que ele vestira, de pronto, para o que desse e viesse. Afinal, isso lhe
cabia por direito de nascença, e ele o mantinha apenas em virtude do difícil
trabalho de sua família em prepará-lo para o posto com tamanha eficiência.
Nunca o tiraria, de boa vontade.
Se pelo menos Mairi pudesse tomar uma parte das tarefas de Thomas,
Rob pensou, com um certo desconforto interno. Confiança. Um bem precioso
que ele não garantira da esposa, mas precisava conquistar, antes que pudesse
chamá-la de sua mulher.
Com esse pensamento, ele respirou fundo e saiu para supervisionar a
guarda. Seria uma longa tarde e uma noite ainda mais longa, ele suspeitava.
Havia a armaria a ser inspecionada em primeiro lugar, para determinar
se tudo estava em ordem. As armas deviam ser examinadas e distribuídas, e
cada homem ter sua posição assinalada para defender o castelo, em caso de
ataque.
Graças a Deus, faziam manobras de treinamento todos os meses e seus
soldados mantinham-se em forma, embora não houvesse muitos para instruir.
Nunca fora preciso contratar mais, seria uma despesa desnecessária, mais a
alimentação e a hospedagem. Quem haveria de adivinhar que algum dia ele
teria necessidade de um exército?
A noite iria requerer mais esforços que preparar uma batalha. Por mais
que desejasse Mairi, Rob agora percebia que fora precipitado em fazer-lhe
aquela promessa.
Se passasse por cima disso e a levasse para a cama, teria que revelar
seu segredo primeiro, para que ela pudesse escolher se ficaria com ele ou
anularia o casamento. E não havia tempo suficiente antes de se recolherem,
para avaliar qual seria a reação dela. Ele estaria ocupado demais, preparando
as defesas.
Rob correu a mão pelo rosto, demorando-se na face que ainda ardia com
a bofetada de Jehannie. Diante de tantos problemas, Mairi suspeitava que ele
tinha Uma amante, uma com a audácia de mostrar livremente sua raiva e fugir
com seu cavalo.
A devoção de seus súbitos certamente não se mostrara evidente em seus
rostos, naquele dia. No semblante de todos apenas se vira a curiosidade aguda
do que poderia acontecer quando Jehannie pusesse para fora sua fúria. O que
sua esposa deveria estar pensando dele, naquele momento? E como ele
poderia mudar as ideias de Mairi a seu favor, em tão poucas horas?
Pelo decorrer do dia, Rob pôs de lado suas preocupações o melhor que
pôde e concentrou-se nos preparativos. Ranald Maclnness não devia esperar
que ele estivesse de prontidão, imaginou. Tinha esperança de que os homens
de Ranald fossem não mais experientes em batalhas que aqueles que
encontrara em Craigmuir e no caminho para casa. Se assim fosse, o número
de soldados não seria de grande importância.
A trompa soou, no fim da tarde, quando Rob vinha da armaria com a
espada recém-afiada. Por um instante, ele esperou por um sinal da sentinela
da torre, informando que os escoceses das Terras Altas se aproximavam.
Ao invés disso, um dos portões abriu-se o bastante para que Andy Miúdo
passasse a cavalo. Rob percebeu, imediatamente, que algo estava errado. Dera
ordens a Andy que seguisse Jehannie e zelasse por sua segurança.
Andy galopou pelo pátio e desmontou depressa, jogando as rédeas para
o jovem Elfled, que acompanhara Rob na verificação das armas.
— Ela sumiu! — gritou Andy, o rosto vermelho, bufando da dura
cavalgada. Fez um sinal, indicando que a perdera.
Não está com minha mãe?, perguntou Rob, por gestos. Andy tirou o elmo
e balançou a cabeça, gesticulando.
— Não. Em lugar nenhum, pelo caminho. Simplesmente, sumiu! Você
precisa encontrá-la!
O coração de Rob quase parou. Se tivesse acontecido de Jehannie cruzar
com Maclnness e seus homens… Então, lembrou-se que ela costumava
desaparecer quando era criança, toda vez que alguma coisa não saia do jeito
que queria. Não seria de todo impossível que ela usasse um truque desses,
agora. Estava magoada e com raiva como nunca a vira.
Mesmo assim, Jehannie sabia melhor que ninguém que não devia se
aproximar de uma comitiva de homens estranhos e também como iludi-los, se
os visse se aproximando. Não havia como Maclnness e seus seguidores
viajarem, passando despercebidos.
Se, por alguma armadilha do destino, os homens a houvessem avistado,
Rob sabia que o cavalo que Jehannie roubara podia deixar para trás um pônei
das Terras Altas a qualquer instante. Ela era uma excelente amazona e o
garanhão era rápido como o vento. Com o problema de Maclnness, ele não
teria razão para dar caça a ela.
Rob ficou a imaginar em que lugar ela decidira esconder-se desta vez, na
velha torre em ruínas ou em alguma cabana vazia de pastor. Não tinha dúvidas
de que ela ficaria onde se enfiara até que a população inteira de ambos os
castelos tivesse esgotado todos os esforços para encontrá-la.
Não dessa vez, decidiu Rob. Não tinham nem homens a desperdiçar em
uma busca inútil, nem ninguém para cavalgar até o castelo de seu pai e pedir a
ele que fizesse isso. Se ela era ainda tola o bastante para pensar que todos
iriam largar suas tarefas e correr como cães atrás de seus rastros, Jehannie
estava redondamente enganada.
Ela se escondeu, disse a Andy. Deixe-a estar.
— Thomas não vai gostar disso!
Rob arqueou as sobrancelhas. Andy nunca dera muita importância ao que
Thomas pensava. Embora normalmente se dessem bem, Thomas jamais
permitira que Andy esquecesse qual dos dois tinha um nascimento espúrio e
quem ocupava um nível social mais alto. Andy Miúdo geralmente torcia o nariz
diante disso, dizendo que poderia ter sido sagrado cavaleiro, também, se
tivesse bajulado Trouville por anos, como Tom fizera.
Agora, parecia realmente consternado. Ou preocupava-se com Thomas,
ou ainda estava enamorado da garota como estivera, quando eram crianças.
Eu contarei a Thomas, afirmou Rob.
Andy concordou com relutância. Então, olhou ao redor e percebeu uma
atividade incomum, no pátio.
— Maclnness?
— Provavelmente. Acho que em um dia ou dois. — Com ar ausente, Rob
correu o dedo pela face da lâmina, admirando a suavidade do aço finamente
temperado.
— Ordens? — perguntou Ândy, endireitando os ombros e deixando as
preocupações com Jehannie a cargo de Rob.
— Pegue suas armas. Descanse. Assuma a sentinela à meia-noite.
— Você está certo — concordou Andy, voltando por um momento antes
de rumar para o alojamento. — Lady Mairi, está bem?
— Muito bem — retrucou Rob, feliz que sua esposa houvesse conquistado
a atenção de um de seus amigos.
— Você já contou a ela? — indagou Andy, com um olhar significativo.
Rob bufou, sem vontade de enfrentar esse problema, quando tinha tanta
coisa para pensar.
— Não me venha com conselhos, Andy! O homem retirou-se, sem
comentários.
Se mais alguém ousasse dizer a ele o que devia fazer, naquele dia,
pensou Rob, ele bem podia ter uma reação idêntica a de Jehannie: dar-lhe
uma bofetada!

CAPÍTULO XII
Mairi logo percebeu que, se quisesse ganhar uma posição segura em
Baincroft, teria de agir depressa. A essas alturas, tanto sir Thomas como a
relutante sra. Morgan tinham se livrado dela como pessoa de pouca
importância.
Seu passeio pelo castelo incluíra uma breve olhada pelas cozinhas e por
um corredor que conduzia ao quarto principal.
O aposento tinha uma enorme cama, o baú com as roupas de Rob, uma
pequena mesa e duas cadeiras diante da lareira. Havia umas poucas armas
penduradas em ganchos, nas paredes, e uma pesada armação de madeira para
suportar sua cota de malhas.
Era um quarto masculino, sem cortinas caras ou qualquer outro enfeite
frívolo, mas admiravelmente grande, maior do que muitos cavaleiros poderiam
desfrutar. E imaculadamente limpo. Aquilo a confortou. Mão precisaria treinar
as criadas nas tarefas da casa. Não se furtaria a acrescentar seu próprio toque,
eventualmente, se o marido não se importasse. Mairi ficou a imaginar se Rob
não gostava de tapeçarias e lúcidos preciosos, no quarto de dormir. Tinha
muito que aprender sobre ele. Seria um homem sovina? Nãoparecera, em
outros aspectos.
Pelo menos, usava as velas de cera de abelha, ao invés da malcheirosa
banha, pensou, apanhando uma e aspirando seu aroma agradável.
Devia apreciar as peles, pois havia muitas sobre a cama. Os cortinados
eram simples, de linho tingidos de açafrão, despidos de qualquer bordado e
imploraram por algum enfeite. Pensou em um motivo para decorá-las.
O baú, sob a janela, não trazia qualquer entalhe decorativo. Era de
carvalho liso, com trincos e dobra: dicas sem adorno, parecidos com os que
seu pai tinha. Mairi sentiu saudade de casa.
A janela era envidraçada, uma concessão bem-vinda para conservar o
calor e prevenir contra a poeira. Além disso, para sua satisfação, havia uma
enorme lareira instalada junto à parede, ao invés dos braseiros abertos usados
em Craigmuir,
Nenhum fogo aquecia o quarto agora, contudo, e a sra. Morgan não se
oferecera para acender a lareira. Simplesmente deixara Mairi no quarto e
prontamente se afastara, como se tivesse coisas mais importantes a fazer.
Mairi decidiu que não ficaria, como uma tola, onde tinha sido largada.
Afinal, ela era a nova senhora de Baincroft, e podia ir onde bem lhe
aprouvesse.
Se ninguém se dispunha a mostrar-lhe as redondezas e apresentar-lhe o
lugar, ela veria o castelo por si própria. Ora, ali era seu lar, afinal.
Com passos firmes, voltou para o salão. A agitação confusa e as muitas
pessoas que corriam pelo enorme ambiente fizeram-na esconder-se em um
nicho na parede, onde ficou, observando, nas sombras.
Os homens arrastavam cavaletes de madeira e os abriam em U,
enquanto as mulheres os espantavam, aos gritos, assim que as pranchas eram
colocadas e armadas. Metros de linho branco esvoaçavam e caíam, vestindo as
mesas.
Mairi temeu que estivessem preparando o lugar para uma festa. Já lhe
bastara uma. Se Rob estivesse por ali, ela iria reclamar com ele.
Nisso, percebeu que homens entravam, usando cotas de malhas e
colocando as armas sobre as mesas, parecendo prontos para a guerra. O
barulho e a excitação geral cresceram com a chegada de mais gente.
Diante do aparato militar, Mairi se deu conta da causa e lamentou que
ninguém visse motivo para incluir a senhora da casa no planejamento de tudo
aquilo. Quem sabe muitos deles não tivessem se apercebido ainda que tinham
uma senhora. Andy podia não ter avisado, com a amante de Rob nas
dependências do castelo.
Mairi saiu de seu esconderijo e caminhou por entre eles. Vez ou outra,
alguém lhe dirigia um olhar curioso, porém ninguém falou com ela nem lhe deu
maior atenção.
Não era de se admirar, já que nem sabiam de sua existência ainda, e, a
considerar por seus trajes simples, podiam estar pensando que se tratava de
uma pobre criada que o lorde trouxera de sua viagem.
O pensamento a incomodou, não ajudando em nada a melhorar seu
humor. Era óbvio que Rob não os avisara, de antemão, que tinha se casado.
Ninguém sabia, mais especialmente aquela mulher que o esbofeteara.
— Lady Mairi, o que faz aqui? — perguntou sir Thomas, atrás dela.
Mairi voltou-se, as mãos na cintura. O cavaleiro tinha a ousadia de
mostrar-se impaciente.
— Esqueceu-se, senhor? Esta é minha casa. Por acaso não posso andar
por onde quiser? E o que é tudo isso, afinal? O que estão fazendo?
Notara as cestas de ervas medicinais que as criadas amontoavam e as
toalhas de linho sendo rasgadas, em faixas. Mairi sabia exatamente o que
estavam preparando ataduras e recolhendo os medicamentos. Fizera o mesmo,
muitas vezes.
Sir Thomas avançou, arrastando-se nas bengalas e aproximou-se.
Parecia que as palavras lhe faltavam.
— Rob… Lorde Robert quis, simplesmente, que deixássemos… ah… tudo
em ordem para… ah…
— Ele está esperando por Ranald, não está? Meu primo? Thomas deixou
escapar um suspiro de desabafo.
— Sim, está. — Com um gesto, indicou as mesas. — Vamos deixá-las
preparadas, caso haja alguém ferido para medicar. A senhora não devia saber
ou se preocupar com isso.
Ela arqueou uma das sobrancelhas, tal como Rob fazia, às vezes,
esperando parecer imponente como uma baronesa devia ser.
— Não serei tratada como criança, sir Thomas. Assim como lorde Robert
deve dirigir os preparativos de nossas defesas e uma possível batalha, meu
dever é tomar providências para os resultados que isso possa trazer.
— Como desejar, minha senhora — ele concordou com relutância. —
Porém, não é necessário.
Mairi relanceou os olhos para as cozinhas, e, então, deu-se conta de que
sua conversa ganhara audiência. .0 nível de ruído decrescera, assim como o
trabalho, e as pessoas haviam parado para escutar. Otimo, pensou. Era uma
boa hora para estabelecer sua autoridade.
— Como estamos de mantimentos, se houver um cerco? — perguntou,
ao cavaleiro. Pronunciou as palavras cuidadosamente, querendo
intencionalmente expressar-se como uma das pessoas do lugar. Se não a
aceitassem, se fosse muito diferente, ela não teria voz ali, mesmo que fosse a
esposa do lorde.
— As despensas estão praticamente abarrotadas — respondeu um rapaz,
orgulhoso, como se houvesse reunido as provisões pessoalmente. — Carne em
quantidade, seca e fresca. Os cereais são poucos, já que estamos longe da
colheita, pois é verão…
— Sim, posso entender — ela respondeu, dispensando as explicações.
Havia outros assuntos, mais urgentes, que o pão. — Água? Onde ficam os
poços?
O criado endireitou-se, sentindo que todos tinham dirigido a atenção
tanto para ele como para ela.
— São dois, minha senhora. Bem protegidos e acessíveis.
— Tirem bastante água e mantenham caldeirões fervendo, para limpar
os ferimentos. Quero as cestas com ervas dentro do alcance, assim como as
ataduras. Vamos precisar também de linha e de agulhas. — Fez uma pausa por
alguns instantes. — Ah, sim, e mande algumas pessoas percorrerem as
despesas e os quartos menos usados para recolher todas as teias de aranha
que encontrarem. — Calou-se, tamborilando o dedo na boca, pensando.
— Teias, minha senhora?
— Para estancar sangramentos — ela respondeu, com ar ausente, ainda
perdida em pensamentos.
— Quem sabe a senhora queira determinar as manobras aos homens…
—- sugeriu Thomas, com ironia.
— Não, isso nunca — ela retrucou, preferindo ignorar o sarcasmo. —
Contudo, informe aos guardas dos portões principais e também do posto
avançado que nenhuma pessoa desconhecida deve entrar por nossas
muralhas. Preste atenção, se aquele homem chegar aqui, pode ter certeza que
tentará conquistar sua posição usando de subteríugios. Acautele-se contra
qualquer estranho que queira entrar ou poderemos ter nossas muralhas
invadidas antes de nos darmos conta disso.
Ele quase deixou escapar um suspiro de enfado.
— Suponho que a senhora seja a voz da experiência em assuntos de
guerra…
Ela o encarou, olhos nos olhos.
— A quantos ataques assistiu, em Baincroft, sir Thomas?
As faces de Thomas tornaram-se vermelhas. Ele se apoiou nas muletas e
desviou o olhar.
— A apenas um, que me lembre — admitiu, com uma voz praticamente
inaudível. — Porém, não era, realmente…
— Quantos, senhor? — ela insistiu. — Não ouvi.
— Um! — Ele quase berrou. — E não foi de um inimigo. Foi um mal-
entendido. Este é um lugar pacífico. Não guerreamos uns contra os outros, nas
vizinhanças.
Ela inclinou a cabeça, como se agradecesse a cooperação.
— Bem, senhor, sofremos ataques regularmente, no lugar de onde eu
vim. E de inimigos perigosos, como este que meu lorde espera.
Um murmurejar quebrou o silêncio. Mairi não tinha intenção de
subestimar quaisquer das ordens do cavaleiro, ou de aplicar-lhe tal golpe
baixo. Ele parecia disposto a matar alguém.
— Meu senhor o tem em alta conta, sir Thomas. Sinto-me obrigada a
pedir seu auxílio para aquilo que, acredito, deva ser feito. Se ultrapassei
minhas atribuições como senhora desta casa, peço que me perdoe. O povo de
lorde MacBain é meu povo agora, e eu gostaria de zelar por sua segurança e
bem-estar da melhor forma que eu possa. Irá me ajudar?
— Sim, irei -— ele concordou, o orgulho ainda ferido, ela podia perceber.
Ainda assim, mostrava-se condescendente, agora que ela havia abrandado as
exigências.
— Então, agradeço-lhe de coração. — Mairi olhou ao redor, para aqueles
que os encaravam, preocupados e tensos. — Vocês, voltem às tarefas a que sir
Thornas os encarregou. Não temos tempo a perder. Mexam-se!

O amontoado de gente que se juntara em torno deles dispersou-se,


imediatamente, e logo o salão fervia de atividade.
Só então Mairi viu o marido recostado contra a porta, braços cruzados
sobre o peito, observando-a com a intensidade de falcão que apenas ele
possuía.
Sem saber o que fazer, Mairi sorriu, com um jeito inocente.
Ele não sorriu em resposta.
A seu lado, ela ouviu sir Thomas pigarrear. Quando falou, sua voz traía
um certo tom divertido.
— Fico a imaginar como Rob irá aceitar partilhar as ordens com você.
— Você esqueceu e usou, novamente, o tratamento íntimo para falar de
seu lorde, sir Thomas.
Sua risadinha a enervara.
— Não me esqueci. Eu o trato assim porque somos íntimos, lady Mairi.
Somos irmãos, em todos os sentidos. Acha que ele irá abandonar nossa
amizade de toda uma vida em consideração a uma estranha das Terras Altas?
— Não — ela retrucou, com voz, adocicada. — Porém, caso ele tenha que
escolher, entre um de nós dois, o que eu pretendo jamais exigir dele, é melhor
que você considere quais as armas que possui que possam concorrer com
aquilo que eu tenho a oferecer, senhor.
— Suas armas, como a senhora as chama, não valem uma vela diante
das minhas, senhora. A mulher que ele sempre amou e com a qual realmente
quis casar é minha irmã. Seu lorde, tão precioso, ainda a ama e sempre a
amará. Que acha disso?
Atónita, Mairi teve que se esforçar para não tremer, diante da novidade.
Porém, não daria ao odioso cavaleiro aquela satisfação. Ao invés disso,
repuxou os lábios em um sorriso que esperou, sinceramente, parecesse
vitorioso.
— Sim, muito bem, mas não foi esperto de sua parte ter arrumado o
casamento dele comigo, não é mesmo?
— Foi um erro, eu admito, e apenas uma circunstância me forçou a fazê-
lo — ele retrucou, com um altivo erguer do queixo. — Uma circunstância que
se alterou, recentemente, devo acrescentar.
O silêncio cheio de significados que se seguiu obrigou-a a lançar um
olhar para Rob e, rapidamente, de volta para o cavaleiro. Mairi assumiu sua
postura mais formal. Uma pose que, esperava, deixasse clara a posição de lady
que devia ocupar.
— Não sei onde ela se encontra no momento, porém mantenha sua irmã
longe deste lugar, sir Thomas, ou vai lamentar o dia em que nos conhecemos.
Não me queira ter como sua inimiga. Acredite, é verdade!
— Temo que seja muito tarde para considerar uma alternativa — ele
retrucou, em um tom suave. — Logo Rob verá, como eu vejo, que péssima
escolha fiz. Infelizmente, eu a transformei em baronesa aqui, Mairi Macínness,
mas acredite, posso, com a mesma facilidade, modificar isso.
— E seu lorde não terá palavra nisso? Não me importa quanto diz que o
conhece, mas está subestimando Robert MacBain. Ele não é uma marionete
para dançar nos cordões que você segura!
— Diga a ele, então — desafiou-a sir Thomas, fazendo um gesto em
direção a Rob, que ainda os observava, a distância. — Vá, agora, e repita tudo
o que me disse, palavra por palavra. Veja o que ele tem a dizer sobre isso.
Mairi lançou um olhar apaixonado para o marido, — Creio que devo
esperar até a noite para fazer meu discurso, senhor. Posso não conhecer a
linguagem secreta que você usa com meu lorde, por enquanto,mas acredito
realmente que eu possa inventar uns poucos gestos que irão superar os seus.
O espanto do cavaleiro diante de sua afirmação não a gratificou. Mairi
enviou a Thomas um olhar furioso, como em um desafio, convidando-o a um
duelo, e afastou-se para assumir seu novo papel, como lady MacBain.
Rob não quis confrontar, nem seu cavaleiro nem sua esposa, com
respeito à cena que tivera lugar entre ambos. Aqueles falsos sorrisos e as
palavras amargas, trocados entre os dois, não contribuíam em nada para a paz
em sua casa, e ele já tinha muito com se preocupar.
No entanto, supôs que devia penetrar no âmago do problema e tentar
acomodar as coisas. E como Mairi saíra para as cozinhas, ele acenou para
Thomas e, a seguir, saiu do salão para esperá-lo.
O pátio estava tão agitado como o interior do castelo, de maneira que ele
parou no terraço, do lado de fora da porta. Em vez de se trancarem no solário,
ali parecia o único lugar onde ele e Thomas poderiam ter um pouco de
privacidade, sem terem que subir a escada.
Seus homens não eram negligentes, ele notou com orgulho, embora
alguns pensassem que estavam se preparando para um torneio ao invés de
uma provável batalha. Ficariam tristemente desapontados se MacInness não
chegasse.
Apenas uns poucos eram soldados experimentados, tendo lutado na
França contra os ingleses, porém a maioria era como ele, antes daquele ataque
em Craigmuir. Jovens e destreinados para uma real confrontação com o
inimigo, acostumados apenas com as regras da batalha de mentira dirigida
pelo grande general dos torneios. Jogos de guerra.
A vista disso, Rob supôs que devia nutrir esperanças de estar enganado
quanto a Ranald Macínness. Seria ótimo se o patife se satisfizesse em
permanecer nas Terras Altas até que Rob pudesse reunir um exército e seguir
até lá, para destroná-lo de sua posição de lorde. Não havia muita chance,
contudo, que isso acontecesse, pois o primo de Mairi estaria esperando uma
retaliação da parte dela pela morte do pai. Ranald não tardaria.
Baincroft não contava com mais de um ou dois dias para preparar-se
para um ataque. Conseqúentemente, quaisquer querelas internas não
poderiam ser toleradas. Uma guerra de cada vez, era suficiente.
Assim que Thomas apareceu, Rob estendeu a mão, a palma para cima,
com um curto movimento. Explique-se. Um menear de cabeça, um olhar de
fingida inocência, com culpa nos olhos escuros que evitavam os seus. — Ela
tem uma língua ferida, Rob — exclamou Thomas exasperado. Segurar as
bengalas impedia que ele usasse a linguagem dos sinais.
— Você a escolheu — recordou-lhe Rob secamente.
— Por engano. — Thomas suspirou e balançou a cabeça. Suas próximas
palavras continham um apelo e eram inteiramente esperadas. Rob sabia que
Thomas iria abordar o fato, mais cedo ou mais tarde. — Deixe-a de lado,
Robbie. Tome Jehannie como esposa, em seu lugar. — Ele ergueu uma das
bengalas, apertando o punho fechado com que a segurava contra o peito. Uma
pequena concessão, um meio sinal, indicando seu desejo de abandonar o
assunto, se Rob assim desejasse.
— Continue — Rob insistiu. — Diga o que pensa.
— Se eu tivesse esperado… — começou Thomas, parecendo triste,
deixando que Rob imaginasse o resto.
Ele compreendia os sentimentos de. Thomas, é claro, porém não podia
permitir que continuasse. Pousou a mão no ombro do amigo e fitou-o nos
olhos, enquanto falava. - Eu me casei com esta mulher, Tom. Está feito.
— Mas, você ama Jehannie! — exclamou Thomas. — Seu coração se
partiu quando pensamos que ela não queria casar-se com você, lembra? Você
agora está apenas zangado porque ela o feriu. Mas aquela horrível bruxa das
Terras Altas vai fazer coisa pior!
Rob fechou os dedos nos ombros de Thomas e sentiu que o amigo ficava
tenso de dor.
— Mairi é minha senhora, Thomas, para o que der e vier — disse, em voz
baixa, como em uma advertência. — Aceite o fato. Não importa o que venha a
acontecer, eu não me casarei com sua irmã.
— Essa mulher vai procurar colocá-lo contra mim — Thomas o avisou,
livrando-se do aperto da mão de Rob.
— Como você procura colocar-me contra ela? — perguntou Rob. — Não
posso admitir uma coisa dessas, Thomas. Façam as pazes.
— Mas…
Rob afastou-se e postou-se de costas, para mostrar que não aceitaria
nenhum argumento, nem toleraria qualquer protesto. Cruzou os braços no
peito, decidindo que era hora de assumir o papel legítimo de lorde. Não que
apreciasse brandir sua posição como uma espada, para se impor, mas era a
única maneira de co locar um ponto final ao assunto. — Eu o ordeno!
Um instante mais tarde, ele percebeu que Thomas se fora. Também se
deu conta que fizera pouco progresso em reparar a ruptura entre seu cavaleiro
e sua esposa. O que quer que houvesse se passado entre os dois, no salão,
nada tinha a ver com aversão. Não se conheciam ainda o bastante para
desenvolverem antipatias, um pelo outro.
Tudo decorria dos anseios de Thomas por esperar que as coisas
transcorressem do jeito que todos sempre haviam pensado que seriam.
Thomas cuidaria das terras de Rob, e Jehannie, da casa e das necessidades
pessoais do senhor de Baincroft.
Lady Anne havia planejado a vida do filho como se fosse um assunto de
Estado, preparando o que quer que fosse necessário para assegurar sua
sobrevivência. Ele não podia culpá-la por isso. Porém, os planos mais bem
elaborados com frequência mostravam-se distorcidos.
No caso de seu casamento, Rob não podia se impedir de estar contente
com ele. Porém, odiaria perder o amigo.
Por mais que amasse Thomas, contudo, iria substituí-lo se ele não
aceitasse Mairi e lhe concedesse o respeito devido como lady de Baincroft. Isso
magoaria Rob muito mais que a perda de Jehannie podia ter causado e, além
do mais, não conseguia imaginar como Thomas reagiria, se isso acontecesse.
Jehannie poderia vir a se casar com outro e ter uma vida feliz, mas
Thomas nada mais sabia fazer, além de administrar aquele lugar. Nenhum
outro lorde lhe daria tamanha liberdade e confiança. Tom nascera para isso,
fora treinado para desempenhar esse papel, exclusivamente, e era bom no que
fazia. Rob devia muito de seu sucesso como barão a Thomas de Brus.
De alguma maneira, Rob tinha de convencê-lo de que não havia
necessidade de abandonar sua lealdade para com a irmã, nem para com seu
lorde e amigo. Infelizmente, aquela confrontação não tinha ajudado em nada.
O pobre sujeito sentira-se empurrado em ambas as direções. Rob lhe
daria tempo para assimilar as coisas na mente e então, conversariam, de novo.
Quanto a Mairi, não devia estar entendendo o que estava acontecendo
ali. Devia presumir que a antipatia de Thomas por ela derivava de alguma
outra coisa. O que quer que Thomas tivesse dito a ela, no salão, Rob podia
apostar que não fora a verdade.
Rob sabia que devia procurá-la e tentar explicar. Não era uma tarefa que
o agradava. Nem mesmo estava certo de poder conduzir bem a conversa, dada
sua dificuldade de entender o que ela dizia, às vezes.
Estava fazendo progressos nesse ponto, julgou, ou talvez Mairi tivesse
levado em conta o conselho de Andy Miúdo e tentado mudar sua maneira de
falar. Agira assim, com certeza, ao se dirigir ao conde de Trouville e,
aparentemente, decidira continuar se expressando mais claramente.
Seria possível que já soubesse a verdade sobre ele? Alguém teria
contado ou ela adivinhara, como Trouville afirmara que poderia acontecer? A
impulsiva Mairi teria abordado o assunto, se já soubesse. Teria que contar a
ela, e faria isso, em algum momento, naquele dia.
Talvez esperasse pela noite. Isso lhe daria o dia inteiro para pensar e
decidir como fazê-lo.
Não seria coisa fácil de falar nem de ouvir. Temia esse momento.
Desejava que o pai dela tivesse cumprido com seu dever e informado a filha
antes que Rob houvesse chegado a Craigmuir.
Então, novamente, pensou que, se o lorde tivesse agido assim, Mairi
poderia ter mandado expulsá-lo para fora dos portões, e ele jamais teria a
oportunidade de conhecê-la, quanto mais se casar com ela. E, ao chegar em
casa, teria encontrado Jehannie disposta a unir-se a ele.
Ele esfregou a face, já recomposta da bofetada que Jehannie lhe
aplicara, e imediatamente imaginou que tipo de casamento teria com ela.
Cheio de ataques temperamentais e com ela sempre conseguindo as coisas, a
sua maneira. Pelo menos Mairi poderia ser mais sutil, em seus métodos. Se
resolvesse ficar. Sua vida, que sempre transcorrera sem atropelos até a
quinzena passada, tinha se tornado, subitamente, um emaranhado novelo de
linha, pensou Rob, meneando a cabeça.
Dali para frente, ele prometeu a si mesmo, nunca mais tentaria enganar
Mairi, ou qualquer outra pessoa. Embora não tivesse contado a ela uma
mentira, Rob sabia melhor que ninguém que, para tanto, as palavras não eram
necessárias. A verdade tinha que ser dita e, diferentemente da ideia falsa em
que ela acreditara, essa verdade exigia uma explicação.
Preparando-se para a difícil tarefa, Rob entrou no salão, o peso de seus
deveres clamando por ele em todas as direções. O mais árduo dos deveres,
contudo, precisava ser enfrentado, em primeiro lugar.
A sra. Morgan estava em pé, perto da saída, ao fundo do salão. Ergueu
os olhos e o viu. Abriu-se em um sorriso.
Onde está minha senhora?, perguntou Rob, em sinais, a ela.
O sorriso da mulher morreu em seus lábios. Ela ergueu a mão da cintura
e apontou o polegar em direção à porta do solário.
Rob atravessou o salão, ignorando os que tentaram interrompê-lo e
atormentá-lo com perguntas. Sem bater, entrou.
Ele havia esperado encontrá-la sozinha e ainda preocupada com o
encontro com Thomas. Com um gesto de cabeça para as duas criadas que a
ajudavam a dispor as velas em caixas, ele as dispensou. Assim que as moças
saíram, ele fechou a porta e recostou-se contra a madeira.
— Vamos precisar de muita luz para… — Mairi disse, apontando as
caixas.
Rob ergueu a mão, pedindo silêncio, e observou-a depositar
cuidadosamente a vela que ela segurava em um pequeno castiçal de metal.
— Não diga mais nada — ordenou. — Escute. Mairi aquiesceu com a
cabeça, os lábios apertados.
Parecia esperar ser castigada por ele.
— Sobre Thomas… — ele começou.
Ela abriu a boca para falar mas se conteve.
Rob prosseguiu, sentindo que ela tinha todo o direito de saber a causa da
hostilidade de seu administrador. Com certeza isso a ajudaria a compreender o
ressentimento do rapaz.
— Eu ia me casar — explicou, medindo cada palavra — com Jehannie de
Brus, a irmã dele.
Os olhos dela buscavam respostas, embora Mairi guardasse silêncio.
Como ele desejava cruzar a distância que os separava e tomá-la nos braços,
reafirmando a ela que não devia se preocupar com aquilo que dizia respeito a
Jehannie. Porém, isso desencadearia uma enxurrada de perguntas que Mairi
mal conseguia conter, e Rob sabia que não teria condições de compreender
metade do que ela falasse.
Então, resolveu dizer aquilo que julgava ser o melhor.
— O avô de Jehannie foi contra. Mairi arqueou uma das-sobrancelhas.
— O contrato de noivado foi anulado.
Ela afastou os olhos por um instante como se absorvesse a informação e
o que poderia aquilo significar. Então encarou-o novamente, encorajando-o a
prosseguir.
— Ela estava aqui — ele continuou. — Você a viu.
Rob percebeu o momento exato em que a identidade de Jehannie
tornou-se clara para ela. Ela pis cou, como se recordasse o encontro
malfadado, na escada, ao chegarem.
— Thomas a adora — prosseguiu Rob, esperando que ela aceitasse essa
razão para o comportamento infantil de seu amigo. E percebeu que assim
parecia.
Graças a Deus, ele conseguia ler em seus olhos. — Thomas vai se
emendar. — Tinha dito a palavra certa? Seria emendar ou desculpar? Não
conseguia pensar direito quando a fitava nos olhos. Parecia que todo seu
conhecimento, duramente conquistado, inexistia, tal como sua audição.
Embora ela não lhe fizesse perguntas, Rob sabia que Mairi tinha muito a
lhe perguntar. A preocupação toldava-lhe as feições enquanto ela permanecia
de pé, as mãos se retorcendo, como se quisesse transmitir confiança a si
mesma.
Será que ela pensava que ele ainda amava Jehannie? De uma certa
forma, ele amava. A amiga de infância sempre significaria muito para ele. Uma
esposa, porém, dificilmente aceitaria de bom grado uma notícia dessas, se ele
admitisse. Nem Rob poderia negar, pois havia prometido a si mesmo que não
mentiria de novo para Mairi. As palavras o abandonaram. Ele não julgava que
nenhuma delas pudesse explicar a diferença entre uma amizade de uma ,vida
toda com Jehannie e os sentimentos novos e poderosos que agora sentia, por
Mairi. E, com toda a certeza, também não poderia simplesmente contar a ela,
confessar que não podia ouvir. Depois da declaração de que fora rejeitado
como marido para Jehannie, devia parecer a Mairi que ela fora uma
escolha secundária.
Na verdade, fora exatamente isso que acontecera. Mairi haveria de
concluir que seu homem de confiança fora buscar uma noiva bem longe para
que a reputação de Rob não chegasse até a família dela. E se havia motivos
para que ninguém mais o quisesse, por que haveria Mairi de querer?
Ele não podia correr esse risco. Ainda não. Tinha que encontrar uma
forma, alguma maneira de contar a ela a verdade, sem lançar sobre si um
enfoque tão ruim. Ele precisava pensar em algo.
Rob sabia que o melhor era enfrentar os fatos de uma vez. As horas
corriam, a noite já começara a cair, e ele ainda tinha assuntos pendentes a
resolver.
Assim que houvessem terminado de jantar, ele a levaria para o quarto e
a tomaria verdadeiramente como esposa. E, quando esse momento chegasse,
não mais poderia retardar o cumprimento de seu dever para com a verdade.
Até lá, tinha que saber como e de que forma dizer-lhe tudo.
Em algum lugar recôndito e escondido em sua mente, Rob buscou
conforto no fato de que estaria muito escuro, então, para que Mairi o
abandonasse. Ele teria a noite inteira para convencê-la de que sua surdez não
importava, para persuadi-la a continuar sendo sua esposa.
Embora ainda o observasse, Mairi caminhou até a mesa e apanhou a vela
que colocara no castiçal. Ao voltar a suas tarefas, ela parecia dizer que a
conversa estava encerrada.
Ele não podia sair, contudo, se ela ainda continuava com aquela
expressão de desconforto.
— Mairi? — murmurou, levando a mão para tocá-la na cintura, — Não se
preocupe.
Ela baixou os olhos para a mão dele e, então, lentamente, fitou-o e
sorriu.
Rob se deu conta de como Mairi podia ser enigmática, quando queria.
Logo quando julgara que podia ler sua mente apenas olhando bem em seus
olhos azuis, ela pestanejara e se tornava um total mistério para ele.

CAPÍTULO XIII

Mairi havia se preparado da melhor forma possível contra qualquer


ameaça que pudesse advir, mas isso pouco adiantara naquele terrível encontro
que tivera com Rob, no solário.
A princípio, ela acreditara que ele viera pôr um ponto final na fraude que
havia entre ambos. Faziam um belo par, com Rob insistindo em sua farsa e ela
assumindo o papel de esposa desavisada.
Gostaria de ter abordado diretamente o problema, dias atrás, quando
sentira as primeiras suspeitas. Mas ela tentara poupar-lhe o orgulho, e,
fazendo isso, contribuíra enormemente para a própria infelicidade e
provavelmente a prolongara.
Rob queria contar tudo a ela, mas, ao invés de resolver a questão, ele
lançara um outro problema, ainda maior, no meio da confusão. Jehan de Brus.
Tudo se tornara claro para Mairi quando soubera quem era aquela mulher. Rob
devia amá-la muito para permitir que o afrontasse, roubasse-lhe o cavalo e,
ainda assim, referir-se a ela sem demonstrar qualquer ressentimento.
Mairi havia preferido não confrontá-lo a respeito disso. Na verdade, não o
culpava. Rob devia estar envol vido em tudo aquilo de boa-fé, e, depois,
sofrera uma enorme decepção quando a mão de Jehan lhe fora negada. Como
podia culpá-lo disso? Ele precisava de um herdeiro, refletiu.
E acontecera de ser ela, Mairi, a escolhida pelo irmão do verdadeiro amor
de Rob. Ou sir Thomas havia procurado remediar a situação procurando outra
noiva, ou ficara preocupado em perder seu posto de administrador, se não o
fizesse.
Isso, porém, não era importante. Thomas a detestava, e Rob apenas
vinha tentando honrar o contrato de casamento o melhor que podia. Na
verdade, ele parecia estar se esforçando o máximo para que as coisas dessem
certo entre os dois, a despeito de seu de sapontamento. Quem sabe até por
causa disso mesmo.
Ela tentaria também. O marido se importava com ela e não queria vê-la
infeliz. Também a desejava, Mairi não podia duvidar. Se fosse uma boa esposa,
talvez algum dia ele pudesse vir a amá-la. Se Jehan de Brus ficasse longe.
Rob chegou para o jantar uns poucos minutos mais cedo. Tinha se
arrumado exclusivamente para ela, refietiu Mairi, ou era seu costume
apresentar-se assim, para as refeições? Tinha se banhado, e os cabelos úmidos
estavam penteados para trás, longe do rosto. Cheirava a sabonete de ervas.
Mairi recordou-se, de repente, do dia em que haviam deixado Craigmuir,
quando ela caíra no riacho e ele a resgatara. Ao chegarem à margem, ela o
vira todo molhado, as gotas de água brilhando como pedras preciosas sobre o
corpo magnífico.
Estremeceu com a lembrança, pensando no que poderia acontecer mais
tarde no quarto. Não haveria mais conversas sobre lady Jehan, isso era certo.
Mairi tinha intenção de apagar as recordações daquela mulher da mente do
marido, se fosse possível.
Antes, porém, precisavam suportar aquela refeição, embora fosse
preferível passar fome, considerando a atitude daqueles que iriam compartilhar
do jantar.
Ela mal conhecia as pessoas presentes, mesmo aquelas com as quais
cruzara, durante o dia. As duas jovens criadas que recrutara para ajudá-la, de
tarde, haviam se apresentado espontaneamente. Depois, havia a hostil sra,
Morgan e o insuportável administrador, sir Thomas. Nenhum deles amistoso ou
com disposição para aceitá-la.
Enquanto os retardatários chegavam, ela espiou para ver se via Andy
Miúdo, com a esperança de que aparecesse. Um rosto hospitaleiro seria bem-
vindo.
Por fim, ela o viu entrar e tomar um lugar nas mesas mais distantes. Ele
acenou, mas não deu mostras de estar feliz em revê-la.
Rob levantou-se e estendeu a mão a Mairi, tão logo todos estavam
reunidos. Ela ficou de pé, a seu lado.
— Dêem as boas-vindas a minha esposa — ele ordenou, fazendo uma
pausa para observar cada face para, a seguir, acrescentar: — Lady Mairi.
Ninguém pareceu especialmente contente com o casamento ou com
vontade de expressar votos de felicidade. Uns poucos tiveram a audácia de
trocar olhares entre si, como se julgando se deviam mesmo tomar
conhecimento da nova senhora de Baincroft.
Ela ficaria infinitamente feliz em pôr um ponto final à refeição e deixar o
salão, mesmo que isso significasse subir aquela escada e passar a noite com
um homem que amava outra mulher.
Jehannie. O nome ressoava em sua cabeça como um insulto. Não por
lady Jehan, mas por Jehannie, fora como Rob a chamara. Tinha sido um
deslize, ou ele desejava deixar bastante clara sua intimidade com a irmã de sir
Thomas?
Como em uma reação retardada ao anúncio do casamento, feito por Rob,
Mairi notou que os cavaleiros e escudeiros dobravam-se, até a cintura, a mão
direita cruzada no peito. Uma reverência forçada? Provavelmente ela não
houvesse notado, mas seu marido devia ter feito algum daqueles sinais,
mostrando seu desprazer diante da indiferença de seus súditos.
As mulheres inclinaram-se, em um cumprimento rápido, mais parecendo
ter perdido o equilíbrio depois de muito vinho. O que não era possível, já que
ninguém tavia sido servido ainda.
Só sendo extremamente generosa e otimista, Mairi poderia levar em
consideração aquelas reverências tardias e as cortesias forçadas. A maioria dos
presentes simplesmente limitara-se a curvar a cabeça, em uma aceitação
relutante.
De expressão fechada, o marido resmungou de insatisfação, esperou que
Mairi sentasse e tomou seu lugar, à cabeceira, sem qualquer comentário.
Imediatamente, voltou-se para sir Thomas, que estava à esquerda.
— Tom?
Era uma sugestão óbvia, pois Rob se recostara para que sir Thomas
pudesse dirigir-se a Mairi. O cavaleiro sentiu-se obrigado a atender à
insinuação.
— Que haja paz entre nós, minha senhora, como quer meu soberano.
— Se essa é a verdadeira intenção, sir Thomas, então, não temos
qualquer disputa — respondeu Mairi, relanceando um olhar para Rob, para ver
como o marido reagia.
Ele pareceu disposto a dar o pacto como feito, e Mairi prometeu a si
mesma que tentaria entrar em acordo com o cavaleiro. Mas, se isso incluísse
trazer a irmã dele de volta para Baincroft, para viver ali, isso ela não
permitiria. Mairi temia reagir como seu primo Ranald, que fingia docilidade
para atingir seu alvo.
Sir Thomas não lhe dirigiu mais a palavra, permanecendo imerso em
profunda conversação com o outro homem, a seu lado.
Rob, é claro, não tinha nada a dizer. Limitou-se a servi-la de uma porção
depois da outra, da travessa que partilhavam. Na verdade, obrigava-a a comer
depressa demais, como se Mairí estivesse morrendo de inanição e ele fosse
sua única fonte de alimento. E, embora a refeição fosse provavelmente
saborosa, Mairi mal conseguia sentir o gosto da comida.
O jovem pajem que servia a mesa colocada sobre a plataforma ria
constantemente por trás de suas costas, correndo de um lado para outro para
encher as taças de vinho, com uma vivacidade de quem estava em uma
taverna. Ela deveria chamar-lhe a atenção por isso, mas, quem sabe, não
fosse o caso. O pobre rapaz era o único, no salão, a mostrar alegria.
Deus do céu, como gostaria de estar em qualquer outro lugar essa noite,
refletiu Mairi, quando Rob ofereceu a ela outra fatia de carne. Mastigou,
furiosamente, desejando que aquele martírio acabasse, mas o suplício
continuou até que todos os pratos foram servidos e a refeição, finalmente,
terminou.
Rob levantou-se de imediato.
— Boa noite! — exclamou, para ninguém, em particular.
Umas poucas pessoas responderam. Outras, limitaram-se a acenar. Sir
Thomas estampou um sorriso sem graça no rosto, que podia significar nada,
ou tudo. Era de satisfação maligna, ela deduziu, quando o cavaleiro exclamou:
— Quero lhe desejar uma boa noite, minha senhora — e prosseguiu, com
voz melosa —, pois que me vejo compelido a isso.
— Não tema, senhor. Eu a farei muito mais que boa — retrucou Mairi,
inclinando a cabeça como se agradecesse —, pois me sinto compelida a tanto.
E não há nada que possa me impedir, não é?
Ele afastou o olhar depressa, dando a Mairi uma sensação momentânea
de vitória.
Com a mão de Rob em sua cintura, Mairi e o lorde atravessaram o salão,
em direção à escada. Ganhar o respeito do povo de Baincroft podia não estar a
seu alcance, afinal, pensou Mairi, com tristeza. Duvidava até que pudesse
conquistar o marido. Porém, não admitiria a derrota, até que houvesse
tentado.
O que quer que a irmã de Tbomas houvesse feito para ganhar o amor de
Rob, Mairi determinou-se a fazer melhor. Se, pelo menos, soubesse como a
outra agira… Podia apostar que não era por esbofeteá-lo.
Será que tinham feito amor? Muitos homens e mulheres faziam, quando
eram noivos. Não era motivo de censura e, às vezes, até encorajado. Ainda
bem que Rob não saíra correndo atrás daquela mulher, quando ela se fora,
desvairada de ódio. Era um bom sinal.
Chegaram à porta do quarto e Rob abriu-a, afastando-se para que Mairi
entrasse.
Alguém havia desfeito a bagagem, passado seus vestidos e pendurado as
roupas em cabides. O cavalete de madeira suportava a cota de malhas de Rob,
agora polida, enquanto a espada e o escudo enfeitavam a parede. Quem quer
que tivesse cuidado de tudo também tinha acendido a lareira.
Mairi observou quando Rob abaixou-se, levou um longo palito até as
brasas e acendeu com ele as velas que estavam sobre a mesinha, ao lado da
cama.
Ela esfregou as mãos, uma na outra, e os braços, tremendo, embora o
quarto estivesse aquecido. Não sabia o que fazer, em seguida. Devia se despir
ou esperar que ele o fizesse?
— Venha, sente-se — ele sugeriu, colocando uma cadeira perto da
lareira.
Intencionalmente, Mairi roçou o corpo contra o dele. quando se
aproximou para sentar-se. Sua mão tocou a do marido, cujos dedos fecharam-
se sobre os dela. O calor e a ânsia que brilhavam nos olhos de Rob a encheram
de esperança.
Antes que a dúvida a dominasse, Mairi ficou na ponta dos pés e beijou-o
no queixo. Rob era muito alto, e ela só o alcançava até ali.
A surpresa dele foi visível. Então, justamente como Mairi queria, ele
baixou a cabeça lentamente até que seus lábios descansaram por um instante
sobre a fronte de Mairi, deslizaram suavemente até a sobrancelha e, para
baixo, pela face.
Em um gesto natural, ela voltou ligeiramente o rosto para que sua boca
encontrasse a dele. Aquele beijo era cálido e convidativo, tinha sabor de vinho
e especiarias, um narcótico para os sentidos. As mãos de Rob, deslizando por
seus cabelos e acariciando-a, com volúpia, faziam-na sentir vertigens de
prazer e de esperança.
Ela exultou, ao perceber-lhe a excitação, a maneira com que o corpo dele
se comprimia contra o seu, revelando o desejo óbvio. Naquele dia mesmo ela
havia prometido, a si mesma e a ele, que, se Rob fizesse isso de novo…
O gemido que ele deixou escapar incitou-a a ser ousada. Mairi apertou-
se contra Rob, ondulando os quadris, tentando guiar aquela parte dele para o
lugar onde devia se encaixar.
Ele afastou os lábios dos dela e segurou-lhe o rosto com as mãos. Fitou-
a com a intensidade de seu olhar faminto e murmurou-lhe o nome, a voz
saindo em um
som profundo e doce. Uma música para os ouvidos de Mairi, que agora
sabia que ele não fingia. Era ela que ele queria e não outra mulher.
Não disse nada, só abriu os lábios, esperando que os dele retornassem.
Como única resposta, arqueou-se contra ele, de novo, fechando os olhos, em
êxtase.
Quanto a beijou, o gemido rouco de Rob reverberou através dela como
um suave trovão. Mairi sentiu que seus dedos fortes puxavam-lhe as saias até
o tecido amontoar-se na cintura. Só por um instante, ele rompeu a carícia,
para tirar-lhe as vestes pela cabeça, voltando a beijá-la, com sofreguidão.
Como se viesse de muito longe, ela ouviu um baque de metal ferindo o
chão, e soube que era o cinto dele. Sua cabeça girou quando ele a ergueu no
colo, carregando-a para a cama. Lá, ele a colocou sobre as cobertas,
mantendo-a cativa, primeiro com o corpo, depois com um beijo profundo e
prolongado, que pareceu durar por uma eternidade. E, então, como em um
passe de mágica, livrou-se das roupas.
Pele contra pele, ele a manteve presa, enquanto se deliciavam em uma
ardente e ao mesmo tempo suave fricção. Mairi saboreou a inacreditável
sensação dos corpos roçando-se, diferente de qualquer outra que já tivesse
experimentado.
O cheiro dele, um misto de especiarias e do pesado almíscar do desejo,
enchia-a de um tal anseio, que ela percebeu que poderia morrer se ele não a
tomasse por inteiro. A respiração ofegante e os sons indecifráveis que ele
deixava escapar da garganta diziam-lhe muito mais do que palavras ardentes.
As mãos de Rob a enlaçaram pela cintura e ele se jogou na cama,
arrastando-a, até que estavam deitados, enroscados um ao outro.
Deus o ajudasse, o que tinha feito? Sua honra não valia nada diante da
luxúria? Jamais, em todos seus anos de vida, ele desprezara os princípios da
honradez, especialmente por alguns poucos momentos de prazer carnal.
Não, estava provado que era mais que isso, admitiu. Muito mais que
prazer, não havia palavras para descrever o que sentia. Pelo menos, nenhuma
que ele soubesse.
Aquela mulher o completava, fazia-o sentir-se mais do que era ou
mesmo melhor homem do poderia ser. E Rob a traíra.
Mairi não poderia opinar se continuariam a viver como marido e mulher,
não era mais uma donzela para desposar outro homem. Ele cuidara disso, em
seu egoísmo, Poderiam ter feito um filho, ali mesmo, pensou, horrorizado por
sentir uma tal alegria diante da possibilidade. E se ela passasse a odiá-lo,
assim que ele lhe contasse a verdade? E se tomasse a decisão do deixá-lo, a
despeito do que acontecera?
Devia acordá-la, dizer-lhe tudo e acabar com aquele suplício. Não, não
podia, o que fizera fora cruel demais. Ela devia dormir primeiro, recobrar as
forças. Também ele precisava se recobrar.
Mesmo agora, a mente traiçoeira não mostrava remorso. Por mais que
tentasse negar, Rob exultava por ter enredado Mairi inexoravelmente, selando
o casa mento. Mais que um sórdido prazer, era uma loucura.
Ele balançou a cabeça e fitou-a de novo, incapaz de resistir. Maldito
fosse, sua concupiscência o levava a querer tomá-la de novo, mal tendo
acabado de possuíla. Desejo avassalador, melhor dizendo, com o gosto dela
ainda em sua boca e o cheiro do prazer ainda o enlouquecendo como uma
bebida afrodisíaca.
Sentiu-se arrasado e procurou dormir. Sonhos In distintos com as
consequências nefastas de seus atos o perseguiram e o acordaram por duas
vezes, até que, finalmente, conseguiu descansar.
A consciência registrou, de uma forma nebulosa, uma absolvição
imaginária, a carícia suave de uma mão macia, a mão de Mairi. Um sonho
bom, pelo menos.
Os dedos gentis percorreram seu peito, descendo por seu ventre e
esvoaçaram, hesitantes, em torno da fonte de seus problemas. Logo, esse
ponto se transformava no centro de sua existência. Rob remexeu-se com
desconforto, desejando um toque mais ousado, um aperto mais firme, uma
promessa mais clara de satisfação.
No recesso dos sonhos, ele podia tomá-la livremente e sem reservas,
como já fizera antes, muitas vezes, desde o primeiro encontro. Então, por que
não aproveitar?
Ali, porém, ah… ela se mostrava mais audaciosa do que nunca,
provocando-o até levar o prazer ao mais puro delírio. Estranhamente, desta
vez, parecia real demais, e ele não queria abandonar aquele sonho. Não agora,
quando estava quase lá, no céu, com Mairi.
O corpo dela deslizou ao longo do seu, leve como uma pluma, macio
como a seda, a ternura fluindo sobre líle como o perdão. Rob suspirou,
afagando os seios arredondados que lhe roçavam o rosto e provou do mibor de
mel daqueles pequenos botões rosados.
Gemeu, ao lembrar-se do ninho de caracóis dourados, onde cravara a
espada de sua masculinidade. Procurou u abertura, deslizando primeiro entre
os lábios úmidos 0, então, penetrou-a. Sentiu que se fundia a ela, redimido.
Mairi começou a se mover, provocando-o com a lenlidão de suas
ondulações, ameaçando silenciosamente mordá-lo, se ele ousasse aumentar o
ritmo. Ele não Iria arriscar-se e abandonou-se, entregue a ela, deliCÍando~se
no prazer prolongado.
Que dure para sempre, implorou ao destino, nunca mis queria emergir
daquele êxtase.
O ímpeto do orgasmo o apanhou de surpresa, cedo demais. Rob lutou,
tentando reter o sonho vívido, com tamanho desespero que o próprio esforço o
despertou.
O ligeiro peso sobre seu corpo não se dissipou. Mairi estava deitada
sobre ele, abraçando-o, os lábios roçando seu peito, as mãos enroscando-se
em seus cabelos, as pernas abandonadas, ao longo das dele.
Não era um sonho!
Rob soltou um longo suspiro de resignação. Não ha via nada que pudesse
pensar ou dizer a si mesmo ou a Mairi que justificasse aquilo que havia feito.
Tomou uma decisão. Prática, pelo menos, ou ampa rada pelo fato de que
ainda permanecia dentro dela. Já que perdera a oportunidade de jogar limpo, e
Mairi não tinha mais o poder de decisão, ele tentaria com pensá-la de alguma
forma. Iria satisfazê-la tão infini tamente, que Mairi jamais pensaria em
abandoná-lo, não importava o que acontecesse.
Abraçou-a e tomou-lhe a boca sem mais reservas. Ainda excitado e
enclausurado dentro do ninho úmido, entregou-se à paixão, amando-a com
todas as forças. O que tinha a perder?
Ele não precisava de ouvidos para julgar a resposta de uma mulher às
carícias de sua mão ou de sua boca, por todo aquele corpo delicioso. Os
gritinhos de satisfação e os gemidos de prazer, ele podia sentir diretamente
através da pele arrepiada. E aquilo o punha em fogo e o mantinha ardendo,
cada vez mais quente e em chamas, enquanto a noite caminhava para o
alvorecer.
Rob acordou com alguém o chacoalhando, pelo ombro.
Mairi. Seus olhos se abriram quando ela se inclinou, sobre ele, parecendo
preocupada. Seus lábios se mo viam rápidos.
— O que foi? — perguntou, passando a mão pelos cabelos e balançando
a cabeça para aclarar os pensamentos, sem perder de vista aqueles lábios
agitados. Deus misericordioso, ela bem podia falar mais devagar!
Ela lançou um olhar aflito para a janela onde o sol brilhava, enquanto
tentava transmitir-lhe a mensa-fgem. Seus lábios eram rápidos mas Rob tinha
outros meios de entendê-la.
Dormir até mais tarde que o normal não iria aborrecê-la e, portanto, não
podia estar recriminando o marido por isso. No entanto, algo lá fora provocara
|em Mairi essa aflição. A única outra coisa que ele podia imaginar era que ela
ouvira a trompa, anunciando a chegada de alguém.
De repente, ela jogou-se para fora da cama e apanhou uma das peles
que a cobriam. Antes que Rob pudesse fazer qualquer gesto, ela chegou à
porta, des trancou-a e abriu-a.
Diante de uma Mairi seminua e descabelada, o tímido sir Olin McKinnon
pareceu abalado demais para falar. Balançando-se nos pés e de cabeça baixa,
ele tentou, sem sucesso, não olhar para sua senhora.
Ela era uma visão gloriosa, com a massa volumosa de cachos dourados
caindo-lhe pela face e pelas costas, p corpo delicado enrolado em peles, as
pernas bem torneadas expostas, e um dos pés pequeninos cobrindo o outro,
para aquecê-lo. Rob desejou não ter nada mais a fazer do que apreciar sua
esposa, naquela manhã. Mas, aparentemente, não seria assim.
Mairi devia ter ouvido a trompa, e Rob já suspeitava que novidades
traziam sir Olin até ali. Um caso de morte na família ou incêndio nos quar los…
não, nenhuma dessas possibilidades era provável. Havia apenas uma razão
para esta intrusão.
O inimigo havia chegado.

CAPÍTULO XIV

Ranald Mclnness sorriu de satisfação /quando a trompa distante soou,


em alerta, nas muralhas de Baincroft. Tinham sido avistados, embora
estivessem a quase meia légua de distância dos portões.
Admitia agora que tivera receio de que seus soldados não fossem
suficientes ou que suas habilidades não se equiparavam a dos inimigos, para
reclamar sua prima. Os homens que haviam escapado da morte, em Craig-
muir, juravam que não exageravam na ferocidade de MacBain, quando este
viera juntar-se à batalha. A julgar por tudo que haviam dito, ficara a imaginar
se o cavaleiro era tão eficiente com uma espada como ele, Ranald.
Apesar disso, já não duvidava de que sua busca iria terminar em sucesso
e sem desastre, para ambos os lados. Relanceou os olhos para a refém, ao se
aproximarem da curva na estrada, que os conduziria dire-tamente ao castelo.
— Eu a trouxe para casa, para seu amor, Jehan. Não podia me dar ao
menos um ligeiro sorriso de agradecimento? — Riu, diante do olhar furioso da
moça.
— Você mentiu! — ela o acusou, lutando para desvencilhar-se do homem
com quem partilhava a sela.
— E daí? — Gargalhou ele, vendo como a criatura se debatia.
Ranald escolhera o soldado mais forte para segurá-la. A moça era indócil,
propensa a distribuir mordidas. Tinha as marcas dos dentes na mão, para
provar.
— Você vai se livrar dela e ter o caminho livre para se casar com
MacBain.
— Você vai matá-la! — gritou Jehan, lutando ainda mais.
Ranald não conseguia entender por que ela se opunha a seu plano.
— Leve-a para o final da coluna e misture-se com os outros — ordenou
a Red Ciem. — Não quero que a vejam até que eu esteja pronto.
Que golpe de sorte ter encontrado aquela criatura. Seu patrulheiro
Duncan, que havia lutado em Craig-muir, reconhecera o cavalo de MacBain
pastando perto do riacho. Julgavam que haviam encontrado o próprio, até que
Ranald se aproximara, para desafiá-lo. Depararam-se então com aquela moça
miúda, chorando e parecendo perto de morrer de tristeza. O que faria um
homem, a não ser mostrar simpatia, especialmente quando, com isso, poderia
obter informações sobre o inimigo? A mulher estava com o cavalo de MacBain,
e Ranald imaginou que ela devia conhecê-lo bem.
Ela se mostrara bastante acessível, na verdade, depois que Ranald lhe
contara que MacBain lhe roubara a noiva. E sua própria história e a situação
difícil em que se encontrava haviam parecido a ele um belo presságio. MacBain
a amava, ela lhe dissera. Acontecera que os dois tinham sido traídos por seu
avô e, por isso, o homem com quem ela estava destinada a se casar se unira a
outra mulher, Mairi, como forma de magoá-la. Ambos, ela e Ranald, tinham
sido tristemente enganados, havia declarado. Ranald concordara. E, assim,
uma simples troca parecera ideal para resolver o impasse. Jehan por Mairi.
Ela lhe confessara um outro fato importante, então: a surdez de
MacBain. O cavaleiro precisava dela para tornar sua vida mais fácil, dissera, e
isso era algo que nenhuma outra mulher poderia fazer. Ela fora treinada
durante a vida toda para tanto. Jehan se mostrara muito feliz, quando ele
sugerira a troca.
Somente mais tarde, quando haviam acampado para a noite, acontecera
de ela ter ouvido sua conversa com Red Ciem sobre Mairi e o verdadeiro
propósito para levá-la de volta, e se mostrara indignada. Não tinha
importância. O negócio continuava valendo.
De acordo com a moça, MacBain a conhecia desde a infância e a amava.
Seu irmão era o administrador de Baincroft, e a gente de lá, devotada a ela.
MacBain não ousaria recusar-se a resgatar lady Jehan, dando Mairi como
pagamento.
E, assim, Ranald poderia eliminar o último obstáculo entre si e a lealdade
do povo de Craigmuir e de todo o clã dos Maclnness. Tinha nutrido esperanças
de tomar Mairi como esposa e usá-la para ganhar o poder, mas agora sabia
que Mairi poderia complicar as coisas. O povo de seu pai poderia destituí-lo da
posição de lorde, se ela retornasse. Mairi teria que morrer.
Com todos aqueles mercenários que contratara nos últimos meses para
servir sob seu comando, ele logo poderia reger as Terras Altas, Craigmuir seria
o covil perfeito a partir do qual ele conduziria seu plano metódico de conquistar
cada domínio ao norte.
Sua fama, suas terras, e seu contingente de homens iriam aumentar, a
cada vitória. Poderia, algum dia, reger toda a Escócia, pensou Ranald, pela
força, se não por direito. Havia uma antiga ligação de sangue dos Maclnness
com a coroa, e qualquer um seria preferível ao rei atual. Desde já, ele podia
sentir o frémito do poder, o respeito e a riqueza. E no caminho, havia apenas
uma pessoa, sua prima, Mairi.
Ele estalou a língua e incitou a montaria a um galope, ansioso por se
defrontar com o rival e fazer a troca.
Mairi apressou-se a se vestir, apanhando a combinação jogada a um
canto, na noite anterior, e o vestido azul de lã que alguém havia tirado de sua
bagagem e pendurado em um cabide, na parede. Rapidamente, abotoou o
cinto na cintura, enquanto metia os pés nos macios sapatos de couro, feitos
para caminhar dentro de casa. Suas botas resistentes pareciam ter sumido e
não havia tempo para procurá-las.
Atrás de si, ouviu o retinir da cota de malhas, quando Rob retirou sua
armadura do cavalete, a um canto. O tilintar dos elos de metal repercutiu em
seu coração. Teve medo. Baincroft podia muito bem sofrer o mesmo trágico
destino de Craigmuir, se os homens de Ranald encontrassem uma maneira
dese infiltrar pelos portões.
Dessa vez, ela não se esconderia dentro da armaria e esperaria a batalha
findar. Rob iria precisar de sua ajuda, alguém tinha que lhe dar cobertura pelas
costas. Mairi estremeceu ao recordar-se de que não havia ninguém que o
houvesse protegido, na luta anterior. Era um milagre que tivesse sobrevivido.
Qualquer um poderia ter se aproximado por detrás e o cortado, de alto abaixo.
Diante da ideia, agarrou a pequena faca embainhada e presa a um
cordão na cintura. Desejou ter uma arma de verdade, mas sabia que ninguém
lhe daria uma, já que não se esperava que mulheres participassem de
batalhas, mesmo nas Terras Altas, e muito menos, ali, em Baincroft.
— Fique aqui — ordenou Rob, dirigindo-se para a porta.
— Como um de seus cães? Ah! Nem por todo o sangue de Cristo! — Mairi
exclamou, sabendo muito bem que ele não ouviria suas palavras de revolta. Na
pressa, ele não se voltara para ver se ela lhe obedecera ou não. A três passos
atrás, ela o seguiu, escada abaixo, para o salão, praticamente correndo para
acompanhá-lo. — Ande mais devagar, seu animal de pernas compridas! —
reclamou.
Pelo castelo, pela escada e pelo pátio, ela seguiu atrás do marido. O povo
que dependia dele para a própria segurança devia estar desejando que ele
saísse, cavalgando, para enfrentar aquele patife de seu primo, mas Mairi não
iria permitir que ele se expusesse ao perigo, dessa maneira. Se preciso fosse,
ela se jogaria na frente do cavalo.
Para seu alívio, logo percebeu que não era essa a intenção de Rob. Ao
invés disso, ele marchou para os degraus de madeira das paliçadas e galgou-
os; dois de cada vez. Mairi recolheu as saias e saiu correndo, atrás dele.
— O que está fazendo aqui? — exclamou sir Thomas, quando a viu
aproximar-se da passarela das muralhas.
— Eu poderia lhe perguntar o mesmo — ela retrucou, jogando para trás
os cabelos soltos. Seu ar de desafio diminuiu um pouco, quando Rob olhou
para trás e, finalmente, notou-a. Mesmo assim, parecia mais exasperado que
zangado.
Thomas ignorou-a e puxou as mangas de Rob. E, quando este se voltou,
o cavaleiro começou a fazer sinais com as mãos, sem qualquer subterfúgio.
Mas, logo a surpreendeu, quando se pôs a falar. Não era em seu benefício,
Mairi podia apostar. Vários outros homens estavam por perto, paramentados e
armados, assim como Rob e Thomas. Mairi supôs que as palavras eram para
eles.
— Maclnness tem duas vezes o número de homens em sua retaguarda a
mais do que nós, dentro de nossas muralhas. Um contingente de aspecto rude.
Ele exige que você lhe envie a mulher que lhe pertence — disse Thomas,
apontando na direção de Mairi.
— Não — retrucou Rob.
— Ele diz que tem direitos sobre ela, por lei, e que você deve devolvê-la.
Era noiva dele e, conseqúente-mente, não pode ser legalmente sua esposa.
— Ele mente! — exclamou Rob e, com toda a calma, aproximou-se para
olhar pela muralha.
— Recue! — gritou Mairi, tentando afastá-lo da abertura. — Ele tem
arqueiros!
Ninguém lhe deu atenção. Rob subiu em um bloco de pedra, obviamente
colocado ali para dar acesso às ameias. Avançou e ficou de pé, no desvão, as
mãos apoiadas nas paredes, uma de cada lado.
— Maclnness! — berrou. — Quer parlamentar?
— Não! — implorou Mairi. — Não o deixe entrar!
— Voltou-se para sir Thomas e suplicou, uma das mãos agarrando-se a
sua manopla. — Eu lhe imploro, impeça-o!
Thomas fez um gesto para silenciá-la, e Mairi ouviu a voz de Ranald.
— Quem quer que seja você, diga a MacBain que eu tenho esta mulher
aqui, e quero trocá-la pela minha!
— anunciou.
Rob deu um passo para trás, sem responder, e recostou-se contra a
muralha, o rosto pálido. Tinha uma expressão de raiva misturada a um ar de
temor. Não temor por si mesmo, Mairi podia ver.
Ela podia imaginar quem era a mulher que Ranald tinha como refém. Não
podia ser outra, a não ser a moça estúpida que havia saído a galope de
Baincroft, no dia anterior.
— Lady Jehan! — ela gaguejou.
— Não! — gritou Thomas, tentando alcançar o degrau para ver. Não
conseguiu apoiar-se, com a perna quebrada. Rob o impediu, agarrando-o pelo
braço.
— Raciocine, Tom! — ordenou Rob. — Mantenha a cabeça fria!
O cavaleiro aquietou-se, respirou fundo, e libertou-so das mãos de Rob.
— Você vai fazer a troca — exigiu. — Você tem que fazer a troca!
— Vou conferenciar — contemporizou Rob. — Providencie as coisas.
— Eles a trouxeram para frente, Tom. Eu posso vê-la — disse um dos
cavaleiros mais velhos, que havia se inclinado o suficiente para enxergar, lá
embaixo. — Um dos homens a mantém na sela do cavalo, a sua frente. Lady
Jehan parece vermelha de raiva e se debate como se quisesse matar o
bastardo. Mas o sujeito tem um punhal no pescoço dela.
— Deus a proteja — ofegou Thomas, enterrando o rosto nas mãos e
apoiando-se contra a muralha.
— Galen, venha. Conferencie com ele — ordenou Rob. Era óbvio que sir
Thomas estava por demais alterado
para fazer alguma coisa, preocupado com a integridade de Jehan. Mairi
sentiu uma pontada de simpatia. Embora não gostasse de Thomas, respeitava
o amor que ele demonstrava pela irmã.
Galen, o outro cavaleiro, subiu o degrau e ocupou o espaço que Rob
deixara vago.
— Meu lorde quer conferenciar com você sobre isso, Maclnness! — ele
berrou.
— Não há nada a dizer! Vamos fazer a troca! — exclamou Ranald, aos
brados. — A mulher me falou que seu lorde tem pacto com o diabo, e sei que
ele não pode me ouvir. Diga ele que eu matarei esta aqui, se ele se recusar a
negociar.
Sir Galen voltou-se e disse a Rob.
— Ele vai matar lady Jehan, a menos que senhor concorde em negociar.
— Vou sair e enfrentá-lo. Um contra um — determinou Rob. — Por ambas
as mulheres.
— Tolo! Você não pode ir até lá! — exclamou Mairi, lançando as mãos
para o alto, em desespero. — Seus homens o matarão antes que você possa
sacar a espada! Fique aqui dentro. Podemos aguentar um cerco. — Tarde
demais, ela se recordou do que aquilo poderia significar, para a refém de
Ranald.
Rob a observava, pensativamente, estudando-a. Ela ficou a imaginar se
ele poderia estar considerando a possibilidade de uma troca, afinal. Então, ele
falou:
— Vou lutar. — Seu rosto suavizou-se, em um pedido de desculpas. —
Ela é minha amiga.
Mairi ficou imóvel, os olhos presos no rosto do marido. A determinação
expressa ali não admitia quaisquer argumentos. E, a bem da verdade, ela não
podia negar que a mulher precisava ser resgatada. Ranald iria matá-la se Rob
deixasse o assunto como estava.
Ela fez um gesto de concordância, sabendo que ele gostaria de receber
sua aprovação, mesmo que não precisasse disso.
— Vá e salve-a.
— Vou vencer — ele jurou, o olhar firme e cheio de certeza.
Nem por uma vez ela imaginara que Rob pudesse perder uma luta justa
com Ranald. Seu primo era forte, quem sabe até mais robusto que Rob, porém
ela vira o marido em ação, em Craigrauir. O que ela temia é que Ranald
pudesse usar de traição.
Tocou-o, no braço.
— Fique atento a seus truques. Tenho certeza, porém, de que você vai
superá-lo — disse, lentamente, pronunciando as palavras com clareza,
coroando-as com um sorriso.
O sorriso esplêndido com que ele respondeu atingiu-a com toda sua
beleza, e Mairi afastou os olhos, para poder pensar claramente.
Rob pediu que ela descesse mas não a seguiu. Atrás de si, Mairi escutou
um dos homens, dizendo:
— O patife caçoa de você. Chama-o de surdo e acúsa-o de ter… um pacto
com o diabo.
As palavras saíam aos tropeços, quase murmuradas, como se o homem
falasse consigo mesmo. Embora não voltasse a cabeça para ver, Mairi tinha
certeza de que eram acompanhadas por sinais.
— Quando responder, vanglorie-se — sugeriu Rob a sir Galen. — Desafie
suas habilidades — ordenou, fazendo uma pausa. — Contra meu… diabo.
— Sim — respondeu Galen. — Aposto que ele é vaidoso como um galo.
Direi que a história vai se espalhar. Sua fama…
A voz desapareceu, e Mairi deduziu que tinham voltado a falar com sinais
unicamente.
Sir Galen desceu a escada, passando por ela e seguindo para os portões.
Iria negociar o duelo. O plano poderia muito bem funcionar. Ranald nunca
conseguira resistir a um desafio.
Rob tomou-a pelo braço e guiou-a pelo pátio.
— Entre — ordenou de forma brusca, apontando para o castelo.
Mairi fingiu obedecer e caminhou para a entrada, parando no momento
em que percebeu que a atenção do marido se desviara para outro ponto. Ela
precisava encontrar um jeito de permanecer do lado de fora. para saber o que
aconteceria a seguir. Se Rob deixasse a segurança das muralhas, tinha
intenção de segui-lo. Os alojamentos deviam estar desertos, pensou, e saiu
correndo para a edificação construída contra as muralhas. Lá dentro, encontrou
os quartos em desordem, como se todos tivessem se vestido e se armado com
pressa, o que, sem dúvida, tinham feito. Mairi apanhou uma calça abandonada
a um canto e uma túnica cinzenta, de um dos cavaletes.
Escondendo-se atrás da porta, ela arrancou o vestido e a combinação e
enfiou-se nos trajes masculinos. Depois, em uma rápida procura, encontrou
um capuz de lã que ocultaria seus cabelos.
Infelizmente, não havia armas ali. Ela apanhou uma tira de couro que
alguém havia deixado no chão e usou-a para cingir a túnica, larga demais.
Prendeu ali a faca que sempre trazia amarrada na cintura.
Com toda a coragem que pôde reunir, Mairi deixou o alojamento e correu
a juntar-se aos homens que se amontoavam pertos dos portões,
Cautelosamente, manteve Rob na linha de visão, mas permanecendo oculta,
atrás dele.
No momento, todas as atenções estavam dirigidas para o postigo de
acesso aos portões, uma abertura reforçada por onde mal passava um homem
desmontado, conduzindo seu cavalo.
Ouviu vozes. Mairi reconheceu a voz de sir Galen como um dos falantes.
Então, as negociações haviam começado.
As palavras eram indistintas. Pelo menos, de onde ela estava. Mairi
esperou, impaciente, até que o cavaleiro reapareceu, retornando às muralhas.
— Amanhã de manhã — anunciou a todos. Sua expressão dura e fechada
mostrou um sorriso irónico ao apontar o polegar, em direção ao inimigo.
Dobrou a mão sobre o queixo e revirou os olhos para o céu. — Maclnness pode
tirar a noite para rezar!
Gargalhadas saudaram aquelas palavras. Mairi quase riu com os demais,
ao pensar no patife do primo de joelhos, rezando com fervor. O máximo que o
canalha poderia esperar dos céus era que um bem merecido raio o fulminasse.
— Pobre Jehannie… — veio um gemido de preocupação, atrás dela.
Mairi voltou-se e se deparou com a expressão de dor de sir Thomas.
Penalizada, condoeu-se, apesar de suas diferenças.
— Ranald, com certeza, não fará mal a sua irmã — disse, tocando-o
gentilmente no braço.
Ele espantou-se ao ver Mairi nas roupas emprestadas, mas não fez
qualquer comentário.
— Você o conhece bem? — perguntou. Ela deu de ombros e sorriu.
— Não muito bem, eu creio. Mas, eu o via toda vez que chegava em
Craigmuir. Meu pai me mantinha bem longe de seu alcance, preocupado que
Ranald pudesse forçar alguma situação e, assim, conseguir um vínculo entre
nós.
Tarde demais, Mairi percebeu o que havia acabado de dizer. Ranald era
capaz de um estupro. Por mais verdadeiro que fosse, lamentou ter verbalizado
a possibilidade. Sir Thomas já estava preocupado demais com a irmã.
O cavaleiro meneou a cabeça desolado,
— Ele vai se apossar de Jehannie, sei disso, como Rob se apossou de
você. — Suspirou fundo, parecendo ter perdido todas as esperanças. — Se já
não o fez…
Mairi cutucou-lhe o braço.
— Sir Galen disse que ela parecia disposta a matar alguém, não disse?
— Sim — ele admitiu, fitando-a nos olhos, espantado com a pergunta.
Ela forçou um sorriso.
— Está vendo? Ranald não lhe quebrou o ânimo! Se a houvesse
envergonhado, ela não estaria de cabeça baixa, apavorada e alquebrada?
Uma pequena luz de esperança brilhou nos olhos escuros de Thomas, e
Mairi alimentou-a como pôde.
— E o bom sir Ranald não a violentaria esta noite, não acha? Não, não
enquanto estiver guardando vigília para o desafio de amanhã. Vai manter-se
celibatário como um monge, se não pelos motivos certos, mas para conservar
as forças. Seus soldados hão se esperar que ele assim se comporte, não
acredita?
— Você pensa assim de verdade? — Thomas perguntou, desesperado
para acreditar no que ela dizia.
— Sim, claro! — Mairi exclamou, embora tivesse suas dúvidas. Ranald
faria o que bem lhe aprouvesse, mas sir Thomas precisava manter as
esperanças. Ela prosseguiu: — Ele irá querer fazer disso um épico, um tema
para as baladas dos bardos. E como seu feito poderia ser cantado se ele
passasse a noite de vigília desonrando uma virgem inocente? — Mairi calou-se,
mas não conseguiu se conter e perguntou: — Ela é virgem, não é?
— Claro —ele respondeu, com um ar ausente, meditando em tudo o que
Mairi lhe dissera. Então, pareceu ocorrer a ele como era estranho que fosse ela
a estar ali, transmitindo-lhe confiança. — Por quê, entre todas as pessoas, é
você quem está aqui, tentando me tranquilizar?
— Porque eu sou a senhora de Baincroft, a esposa de seu lorde e amigo,
Thomas. Minha lealdade a ele e a Baincroft se estende a você, quer queira ou
não. E, acredite, não desejo que sua irmã sofra qualquer mal.
Ele pareceu ofendido diante daquelas palavras, sem certeza do que
responder. Mairi não se surpreendeu quando ele lhe dirigiu um olhar de
incredulidade e afastou-se. A despeito disso, Mairi se sentia melhor. Conseguira
afastá-lo do desespero. Rob poderia precisar do auxílio de Thomas, e ele não
seria de valia alguma, mergulhado em preocupações.
Uma mão pesada segurou-a pelo ombro. Nem era preciso perguntar a
quem pertencia. Mairi respirou fundo, assumindo uma expressão de total
confiança, e voltou-se, para encarar o marido. Iria atacar, primeiro.
— Sim, certo, posso ser desobediente e não ter serventia alguma por
aqui, mas zelo por seus interesses em meu coração, meu lorde, e farei o que
acho que devo, não importa o que possa ter me ordenado, como se eu fosse
uma nulidade sem miolos, a seu ver! — exclamou Mairi, atropelando as
palavras, assegurando-se que o rápido discurso estaria totalmente perdido,
para o marido.
Ele retorceu a boca em um dos cantos e mediu-a, com um olhar de
reprovação.
— Farei o que devo — ela declarou, secamente e de forma clara, de
maneira que ele não tivesse dúvidas desta vez.
A afirmação evitaria que ele a castigasse publicamente por essa mostra
de vontade, o que era exatamente o que Mairi esperava. Embora tivesse
cedido a suas ordens ao deixar seu lar, ele precisava saber que ela tinha ideias
próprias, que era uma mulher com a qual se podia contar.
Vários dos homens que haviam parado para escutar, só agora percebiam
quem era ela. Mairi ergueu o queixo e dirigiu-se a eles.
— Não é hora de quebrar o jejum?
Sem esperar resposta, Mairi caminhou para os alojamentos, para
apanhar seu vestido.
A prodigiosa habilidade de Rob em julgar os pensamentos de uma pessoa
não funcionava com sua esposa, a não ser que ela o desejasse. Ele havia
percebido antes, e agora tinha certeza. Mairi seguia suas próprias leis, era
única em seu género, e tão invulgar em sua maneira de pensar que,
provavelmente, até um adivinho tivesse problemas em descobrir os meandros
de sua mente.
Ela iria fazer o que tinha que fazer? O que Mairi queria dizer com isso?
Ela não dera atenção às ordens que lhe dera, a nenhuma delas. Ao contrário,
tinha saído do castelo e se vestido com aqueles trajes horríveis, sem dúvida
pensando em seguir com os homens para fora, tivesse o primo dela se decidido
lutar com Rob naquele dia.
Graças a Deus, ele não quisera. Se Mairi ousasse se aventurar para fora
das muralhas, seu primo provavelmente a teria matado, no momento em que
a visse.
Ou, então, Mairi tinha resolvido fugir para longe, assim que passasse as
muralhas. Uma possibilidade plausível, caso houvesse uma saída
desguarnecida, e Deus sabia que havia razões para tanto.
Mairi sabia de tudo agora. Thomas não havia parado para pensar, usando
os sinais abertamente, quando tinham conversado entre as ameias. E ela devia
ter ouvido os insultos de seu primo.
Rob recordou-se exatamente da maneira explícita com que Ranald
Maclnness o acusara de ter poderes barganhados com o demónio. Mairi
escutara aquilo? Aquele velhaco tinha vomitado, em altos brados, aquela
antiga crença que o maligno cobrava um preço por habilidades sobrenaturais.
E o preço a que se referira era um dos sentidos do lorde de Baincroft, a
audição, é claro. E, como castigo, por que não sua própria alma?
Rob já ouvira conversas a esse respeito, antes, de leigos e religiosos e
até mesmo lera acusações por parte do avô de Jehannie. Pacto com o diabo.
A coisa se complicava ainda mais diante de um fato. Ranald Maclnness
devia acreditar que Deus o protegeria no desafio do dia seguinte, contra um
emissário do demónio. Quando Rob derrotasse o patife, aqueles que
estivessem testemunhando a vitória poderiam temer que o diabo
verdadeiramente houvesse triunfado sobre o bem? Ninguém, entre sua gente,
pensaria uma coisa dessas, pois o conheciam bem. Mairi, contudo, poderia
acreditar.
Um arrepio de pavor subiu-lhe pela espinha. O que dissera ela, antes de
afirmar sua intenção de agir conforme devia? Fizera suas as acusações de seu
primo?
Rob deu um murro na palma da mão frustrado. Podia perguntar a
Thomas se ela havia dito alguma coisa sobre isso, quando conversavam.
Porém, não confiava que Thomas relatasse a conversa sem adicionar sua
própria versão dos fatos. Não que fosse mentir deli-beradamente, mas era
óbvio que não gostava de Mairi e podia ter ouvido apenas o que lhe
interessava ouvir.
Tentar salvar o que pudesse de seu relacionamento com Mairi teria que
esperar, até que o problema com seu primo tivesse sido resolvido. Durante a
tarde e pela noite inteira, ele faria vigília, dentro da capela. Maclnness tinha
expressado uma idêntica intenção.
O que poderia parecer, se seu inimigo passasse a noite de joelhos,
murmurando preces, enquanto Rob despendesse as mesmas horas desfrutando
dos prazeres terrestres com Mairi, no quarto? Não seria com se ele fosse o
próprio demo?
Rob confiava em sua força e habilidade sem questionar, quando saía em
competições, em qualquer campo, contra qualquer oponente. Seu povo,
contudo, haveria de esperar dele que se preparasse para essa prova com todo
o cerimonial necessário para tanto. Porque era uma prova, um julgamento, não
havia engano. Os rituais ali seriam ainda mais importantes que aqueles que
fizera antes, diante desse mesmo povo, aceitando a sagração como cavaleiro.
Ele iria se banhar, quebrar o jejum, prostrar-se sobre as pedras, diante
do altar, confessar e colocar-se de alma nua, entregando-a a misericórdia do
Criador. Assim, ninguém ali se veria assaltado por qualquer dúvida a quem
teria sido garantido o poder de direito, quando Rob tirasse a vida de Ranald
Maclnness.
A parte dessa consideração, a ajuda divina bem que poderia auxiliá-lo,
em tudo o que o afligia. Por mais que se entregasse aos preparativos para o
encontro iminente, ele sabia que não poderia colocar de lado suas
preocupações com relação a Mairi. Poderia evitá-la o dia todo? Uma breve
explicação pelo pecado da omissão e sobre o que a surdez poderia significar
para ambos no futuro, dificilmente ajudaria a colocar as coisas no lugar. Jamais
poderia justificar-se por ter escondido esses fatos dela.
Levaria tempo para compensá-la por tudo aquilo que tinha acontecido
entre os dois, na noite passada, para recuperar sua confiança e começar de
novo. Presumindo que ela permitisse. Sim, iria rezar. Tinha que rezar.
— Tom! Aqui — chamou, quando viu o amigo caminhando
desajeitadamente de volta ao castelo.
Thomas imediatamente mudou a direção e aproximou-se, tentando com
esforço manter a pose. Rob deu-lhe um tapinha no ombro.
— Vou ganhar, Tom.
— Eu espero. — Thomas, então, apontou com a cabeça em direção ao
salão. — Ela é louca, você sabe.
— Mairi? Louca? Você acha? — perguntou Rob, com uma curta
gargalhada. — De raiva ou… — Tamborilou com os dedos, na têmpora.
Thomas ergueu uma das bengalas, repetiu o gesto e concordou, em
resposta.
Rob arqueou as sobrancelhas. Que acusação era essa?
O que o leva a pensar que ela é maluca?
Ela se vestiu como um homem, respondeu Thomas, correndo as costas
dos dedos pela roupa. Em seguida, franziu a testa e bateu corn o punho
fechado sobre a palma da mão, cruzando em seguida os dedos, como espadas.
Ela dá conforto ao inimigo.
— A Maclnness? — Rob interrogou em voz alta,incrédulo.
Não, a mim, Thomas gesticulou, balançando a cabeça e esfregando as
mãos, desistindo de qualquer tentativa de entender o comportamento de Mairi.
E?, perguntou Rob, ainda com a esperança de que Thomas pudesse
mencionar o que Mairi havia dito, sem ter que perguntar.
Ela me confunde sobremaneira. Nunca faz o esperado. E o provoca com
palavras quando sabe que você não pode ouvi-la. A mulher é louca.
Bem, aquilo não podia ser levado em conta. Fossem quais fossem as
coisas estranhas que Mairi fizesse ou dissesse, todas eram por culpa dele, Rob.
Ele a desposara sob um falso disfarce, intencionalmente ou não. Depois,
tirara sua virgindade, embora plenamente consciente de que nada poderia
dissolver um casamento consumado, a não ser a morte. Porém, também sentia
plena certeza de que Mairi não o acusaria de nenhuma dessas faltas, se a
salvasse de seu primo, Ranald, e assim, ao mesmo tempo, vingasse a morte
de seu pai.
Indispor-se com o homem que fizesse isso por ela não faria sentido. Mairi
podia agir de forma inesperada, quando isso a interessava, mas com certeza
não era tola, muito menos louca.
— Vigília, esta noite — disse a Thomas. — Escolha os homens para a
guarda.
— Ora, isso é loucura! — exclamou Thomas, quase derrubando as
bengalas, ao posicioná-las para suportar-lhe o peso.
Rob sorriu para o velho amigo.
— Caprichos de um pagão, Tom. Dê-me sua indulgência.

CAPITULO XV

Mairi ignorou os olhares curiosos que a .cercaram, quando entrou no


salão, vestida de homem. Carregava as próprias roupas dobradas no braço,
enquanto passava por todos, tentando manter um ar de dignidade.
Trocar-se de novo nos alojamentos teria sido muito arriscado, depois que
os homens haviam se dispersado de perto dos portões.
Além disso, depois de ter sido arrancada tão intempestivamente para
fora da cama de núpcias, naquela manhã, precisava banhar-se, escovar os
cabelos e arrumar-se de maneira apropriada.
Os sapatos macios escorregavam na escada e os ressaltos das pedras
machucavam-lhe as solas dos pés, fazendo-a lembrar-se da tolice de não ter
procurado suas botas. Ela devia parecer ridícula, pensou.
Que importava que essas pessoas a vissem, assim, vestida de homem?
Afinal, já haviam decidido que não gostavam dela, não importava o que ela
fizesse. Ainda mantinham a esperança de que Rob pudesse substituí-la pela
irmã do administrador.
Mairi suspirou ao abrir a porta do quarto e jogar suas roupas sobre a
cama. Mesmo enquanto se livrava da túnica rota e da calça masculina, pensou
seriamente em conservá-las e abandonar aquele lugar.
Mairi havia esperado que Rob confiasse nela, depois que se entregara a
ele por inteiro. Será que sua disposição não provara que ela pretendia ser uma
esposa para ele, em todos os sentidos? Não fizera tudo o que pudera para
ganhar sua confiança e fazer com que ele a amasse?
Com toda a honestidade, contudo, ela tinha que admitir que houvera
pouco tempo, tanto na noite anterior como nesta manhã, para que ele se
explicasse. Ainda assim, ele devia a ela uma satisfação.
Embora percebesse estar enamorada de Rob, Mairi sabia que esse
sentimento provavelmente nascera do ímpeto poderoso da paixão que
flamejava entre os dois. Aquele mútuo desejo carnal tinha sido evidente desde
o princípio, mas, sozinho, dificilmente embasaria o amor verdadeiro.
Quem sabe não tivesse o direito de esperar sentimentos mais profundos
por parte de Rob, tão prematuramente. E tinha de admitir que podia estar
confusa, ainda sob o impacto do êxtase recente. Não, não podia ser amor,
devia ser luxúria. Porém, era um sentimento tão intenso que parecia bem
maior que isso.
Supondo que tudo que tivessem fosse o prazer da cama, o que faria?
Embora isso não fosse para se descartar, não era suficiente, pensou, com um
suspiro de tristeza.
Na verdade, Rob provara ser muito melhor que um simples adepto dos
deveres de um marido, e ela tinha certeza de que lhe dera prazer, e muito. As
lembranças deliciosas de suas mãos percorrendo-a, seguida da recordação da
língua atrevida e carinhosa, fluíram por seu corpo, arrepiando-lhe os pêlos.
Visualizar as imagens na mente por si só provocava uma onda de fogo que lhe
corria pela espinha e a fazia tremer de desejo.
Seria extremamente difícil viver sem ele, depois daquela noite. Sim,
seria quase impossível desistir, para o bem de seu orgulho.
Mairi mergulhou um pano de linho na bacia e lavou o rosto e o pesco ço,
braços e pernas, seios e partes íntimas, refrescando o calor que a requeimava.
Esfregou-se, com força, como que para apagar as marcas dos beijos, das
carícias, o cheiro de Rob que ainda impregnava seu corpo. Lavar as lembranças
da noite de amor não diminuiu nela o desejo de tê-lo, de novo, naquela noite.
E todas as noites, dali para frente. Desejo de partilhar sua cama, de ter seus
filhos, de zelar por seu conforto e felicidade de todas as formas. Esse era seu
sonho mais querido. Rob, porém, tinha o poder de lançar esses sonhos contra
as rochas da realidade, se nunca viesse a amá-la.
Mairi haveria de sempre amá-lo, mas poderia não ser suficiente para
satisfazer, a nenhum dos dois, nos anos que viriam.
O que dizer se ele começasse a sonhar que ela fosse lady Jehan? E se ela
passasse a nutrir ressentimentos contra ele, por causa disso? Honestamente,
tinha que confessar que já se ressentia diante de sua preocupação para com a
mulher, refém nas mãos de Ranald, mesmo que ela própria também se
preocupasse.
Precisava esperar para ver o que aconteceria, depois de Rob ter duelado
com seu primo e salvado a ex-noiva. Fazia mais sentido do que se esgueirar
pelo portão dos fundos, fugindo da situação.
Era possível que os guardas não permitissem que ela passasse, mesmo
para o próprio desgosto, pensou Mairi. Deviam conhecer cada pessoa, dentro
dos muros de Baincroft, e iriam descobrir sua fuga, em um instante.
Provavelmente tivessem ordens de não abrir os portões por quaisquer razões
que fossem e, mesmo que a deixassem sair, Ranald poderia capturá-la.
Supondo que sua fuga fosse bem-sucedida, não ficaria sempre a
imaginar se agira com precipitação, sem dar a Rob a oportunidade de confiar
nela?
Por último, e não menos importante, Mairi não tinha ideia para onde ir,
se pudesse escapar.
Poderia voltar a Craigmuir, é claro. Estaria em segurança. Depois da
manhã seguinte, Ranald certamente estaria morto e seu pai vingado, tal como
ela desejava.
O clã lhe daria as boas-vindas ao lar, mas Mairi também sabia que o
conselho buscaria imediatamente escolher um outro homem, para lorde.
Haveria uma reunião para decidir quem ocuparia esse posto, e ela, então, teria
que se contentar em ser apenas mais uma simples mulher da comunidade.
Não teria mais os privilégios especiais, como filha do lorde.
Ainda assim, como poderia permanecer ali, como esposa de um homem
que não confiava nela, e como senhora de um povo que a tratava com
desdém?
Pesadas todas essas considerações, Mairi percebeu que a única escolha
prudente era ficar onde estava. Pelo menos, por enquanto.
Depois que Rob tivesse resgatado lady Jehan, veria que ventos sopravam
entre aqueles dois.
Relanceou os olhos para as roupas emprestadas que jogara no chão e
decidiu que iria usá-las novamente. Quando a manhã chegasse, iria se
disfarçar e sairia com os homens para testemunhar a luta. Desde que Rob não
a visse, ninguém se importaria que estivesse ali, mesmo que a
reconhecessem. E, assim, teria condições de ver o rosto de Rob no momento
que ele se reunisse à ex-noiva.
Se ele desse qualquer demonstração de que ainda preferia aquela
mulher, em vez de Mairi, ela deixaria Baincroft. Por mais que acreditasse que o
amava, não se sujeitaria a aceitar migalhas de sua atenção e a competir com
outra, que era dona de seu coração.
Mairi jogou o esfregão de linho na bacia e passou as mãos molhadas na
face, para dissipar a súbita onda de raiva. Poderia tomar outro rumo, se
preciso fosse. Craigmuir sempre fora carente de tecelãs.
Teve vontade de se esconder pelo resto do dia, porém sabia que não o
faria. O povo dali não a trataria melhor, caso se tornasse uma reclusa. Já a
julgavam bastante estranha, ela suspeitava. Enquanto vivesse em Bain-croft,
fosse por aquele dia, apenas, ou pelo resto da vida, ela assumiria seu papel de
senhora, de baronesa. Era seu direito.
Decisão tomada, tão logo se vestiu, Mairi desceu confiante para o salão e
passou a organizar os trabalhos, da comoção em que estavam, para uma
atividade produtiva. O povo de Baincroft podia ressentir-se, mas, a menos que
seu marido, o lorde, ordenasse de forma contrária, Mairi sabia que toda aquela
gente tinha obrigação de lhe seguir as ordens.
Entregou-se ao trabalho, acreditando que isso faria o dia passar mais
depressa. Infelizmente, porém, as horas intermináveis arrastavam-se, com
lentidão assustadora. Rob e metade dos homens haviam chegado para a
refeição do meio-dia, engolido em pé a comida e a cerveja fermentada, e
saíram apressados para dar lugar aos demais. Todos, dentro do castelo e no
pátio, pareciam estar imersos em atividades. Embora os acontecimentos
tivessem sido programados para ter lugar fora das muralhas, quem sabia o que
os homens de Ra-nald poderiam fazer, assim que ele fosse derrotado? Poderia
ocorrer uma batalha. E o contingente de Rob era em menor número, Mairi
ouvira sir Galen afirmar.
Logo depois de Rob ter terminado sua refeição e o segundo grupo chegar
para comer, Mairi deu um jeito de aproximar-se de sir Galen. Ele era um
gigante de uns trinta e cincos anos, careca, e possuidor do mais comprido
bigode que ela já vira.
A razão para tê-lo escolhido para conversar era que o cavaleiro lhe
dirigira um meio sorriso, ao entrar no salão. Era isso que o recomendava, pois
certamente era algo a mais do que qualquer um outro lhe tinha endereçado.
Além disso, tinha sido o encarregado de conferenciar com Ranald e fazer o
acordo.
Mairi supunha que ele fosse o capitão da guarda, embora ninguém, na
verdade, houvesse-os apresentado. Sir Galen parecia o mais velho dos homens
e portava-se com extrema segurança. Ela apanhou seu copo de cerveja e
aproximou-se do lugar onde estava o cavaleiro, recostado contra a parede do
fundo.
— O que deve acontecer quando meu lorde matar Maclnness? Acha que
o resto daquela corja vai partir em paz?
Ele deu de ombros e falou, em meio a uma mordida de pão:
— Não, minha senhora, não vai. Porém, isso não tem importância.
— Não tem importância? — ela perguntou, com um ar de incredulidade.
Sir Galen engoliu e sorriu, mostrando belos dentes brancos.
— Lorde Rob mandou buscar reforços em Trouville. Isso irá contar em
nosso favor, de alguma forma.
Graças a Deus. Mairi tomou um gole de cerveja, antes de perguntar:
— Por que não simplesmente cercá-los e dominá-los a todos e acabar
com isso? Por que meu marido deve lutar com Ranald, sozinho?
Ele arqueou a sobrancelha, com expressão de surpresa.
— Pela honra de lorde Rob, naturalmente. Não se pode pôr de lado um
aspecto tão importante como esse, não acha, minha senhora?
Ela meneou a cabeça.
— Jamais, porém meu primo não merece qualquer respeito nem possui
honra alguma. Ele ordenou que meu pai fosse assassinado e planeja fazer o
mesmo comigo. É isso ou vai me enviuvar e casar-se comigo.
— Noto que a senhora não teme pelo destino — ele comentou, com um
sorriso estranho, mordendo um bocado de pão e mastigando enquanto a
observava.
Ela encarou-o nos olhos, extremamente séria.
— Confio nas habilidades de meu marido, pois fui testemunha delas, em
primeira mão. No entanto, eu gostaria de ter um punhal de prontidão, caso
algo venha a sair errado.
— Minha espada estará à mão, não duvide — ele declarou.
— Uma ideia bastante confortadora, sir. Mas acha que poderia encontrar
uma faca para mim? Não enorme, é claro, mas algo afiado e eficiente?
Ele relanceou os olhos para a pequena adaga que ela trazia na cintura.
— Afie essa que tem. Servirá para abrir suas veias, se o inimaginável
acontecer e o bastardo vencer.
Mairi deu uma gargalhada.
— Oh, eu não penso em me matar, meu bom senhor! Tudo o que peço é
uma lâmina bem balanceada e mais comprida que minha mão. Eu me sentiria
mais segura.
Sem desgrudar os olhos dela, sir Galen abaixou-se e levou a mão à bota,
sacando uma adaga de cabo de osso, três vezes maior que a de Mairi, negra
como o pecado e com uma profunda ranhura cor de sangue, da ponta à
empunhadura. Uma coisa perigosa. Justamente o que ela precisava.
— Tenha cuidado para que isso não vá parar no lugar errado — ele
avisou, com as sobrancelhas erguidas, o enorme bigode torcido para um lado.
Ela sorriu com uma calma fingida, tomando a adaga e escondendo-a nas
pregas do vestido.
— Sim, eu a enterrarei no lugar certo, se a necessidade me obrigar, você
pode ter certeza. Muito obrigada, sir Galen.
Ele a fitou de cima abaixo como se avaliasse seus méritos. Então,
meneou a cabeça, parecendo satisfeito. Engoliu o resto da cerveja e afastou-
se.
Às escondidas, Mairi empunhou a arma, testando seu peso. Poderia
nunca precisar usá-la, mas, pelo menos agora não se sentia tão vulnerável
como antes, quando partira de Craigmuir.
Sim, ela iria acompanhar Rob até fora das muralhas, amanhã. Tinha de
fazê-lo, pois não poderia esperar dentro dos portões até que alguém contasse
a ela o que havia acontecido.
Embora não duvidasse do resultado da luta entre os dois homens
envolvidos, Mairi precisava ver, com os próprios olhos, como Rob trataria lady
Jehan, assim que a houvesse livrado de Ranald. Ela precisava observá-los, logo
depois desse momento de vitória, para descobrir os verdadeiros sentimentos
do marido para com aquela mulher.
Depois disso, saberia o que fazer. E se tivesse que partir dali, já estaria
vestida e armada para a viagem.
Tomada a decisão, Mairi levou a adaga para cima e escondeu-a, junto
com a calça e a túnica, debaixo do colchão, para que Rob não as visse e as
tomasse dela.
O restante do dia, ela haveria de passar entre os estranhos, tentando
agir como senhora do castelo.
Mairi preocupou-se quando Rob não apareceu para o jantar. Todos os
seus cavaleiros, inclusive sir Galen e sir Thomas, estavam sumidos, assim
como a maioria dos outros homens.
Mesmo o jovem e tímido padre que ela encontrara brevemente durante
os afazeres do dia estava desaparecido. Ela não esperava que todos
estivessem reunidos à mesa do jantar, mas o fato de nenhum deles estar ali a
deixava intrigada.
Mairi presidiu a mesa, mal conseguindo mastigar um bocado com tantos
olhares cravados sobre ela. Todos deviam culpá-la pela situação. Embora não
desejasse, ela tinha de admitir que eles tinham uma boa razão para julgá-la
responsável por isso.
Se Rob não tivesse se casado com ela e a levado para lá, não teria agora
de enfrentar Ranald em uma luta de vida ou morte, e Baincroft seria ainda o
pacífico lugar que eles sempre haviam desfrutado.
No quarto, ela esperou por horas, na certeza de que ele chegaria,
trazendo a confiança de que não iria falhar.
Ele estivera ali, antes dela, ou alguém tinha entrado, pois o baú de
roupas estava aberto e a lareira, acesa.
Rapidamente, ela verificou se a adaga que sir Galen lhe dera e as roupas
emprestadas continuavam no mesmo lugar. Para seu alívio, estavam sob o
colchão, como ela deixara.
Se pelo menos Rob aparecesse e pudessem fazer amor, mais uma vez,
suspirou. Era um bom momento para que ele confiasse nela e dissesse a
verdade sobre si mesmo, embora já devesse saber que ela conhecia seu
segredo. Dificilmente seria uma prioridade, dada a importância dos outros
problemas que o afligiam, mas poderiam conversar, apesar disso.
Quase metade da noite se passara e Rob ainda não viera reunir-se a ela.
Mairi decidiu que devia sair para encontrá-lo. Se não fosse por outro motivo,
queria desejar a vitória ao marido e reafirmar que acreditava nele.
Apanhou um robe de lã, debruado de pele, que nunca o vira usar.
Enrolou-se nele, saboreando o cheiro de Rob no tecido macio. Os sapatos de
couro deslizavam praticamente inaudíveis pelas pedras, quando ela desceu,
escadaria abaixo.
Tinha intenção de procurar Rob entre aqueles que dormiam dentro do
salão, mas, ao examinar os corpos estendidos, percebeu que só havia
mulheres ali. Estariam todos os homens de pé, em guarda?
Mairi abriu a porta do salão, desceu correndo os degraus e saiu para o
pátio, puxando o robe de Rob contra o corpo, para se proteger do frio da noite.
Tudo estava silencioso, ainda que pairasse no ar uma expectativa quase
palpável.
Havia um número pequeno de sentinelas sobre as passarelas das
muralhas, Mairi notou com surpresa. Dois guardas patrulhavam os portões
principais e outros dois vigiavam o postigo. Aquilo parecia estranho, para a
noite que deveria ser a da primeira batalha que presenciavam em décadas.
Ela relanceou os olhos ao redor, para as edificações dentro das muralhas.
Embora a lua cheia iluminasse as sombras, os alojamentos assemelhavam-se a
um lugar proibido e sinistro, onde nenhuma mulher ousaria entrar no meio da
noite, com tantos homens a um passo de uma batalha.
E se a atacassem, crendo que ela fosse alguém que
houvesse penetrado, furtivamente, para atacá-los à
traição? Reconsiderou a ideia de procurar por Rob ali.
Pela porta da capela, emanava um facho de luz.
Mairi cruzou o campo aberto e aproximou-se, imaginando o que estava
se passando. Uma reunião? Não ouvia vozes.
Ao entrar, ela conteve o fôlego. Centenas de velas lançavam sua luz
sobre a multidão sombria que lá dentro se amontoava.
Alguns dos homens estavam de pé, outros ajoelhados. Outros,
agachados nos cantos. Apenas uns poucos olhos voltaram-se para fitá-la. A
maioria os trazia fechados, no sono, ou em prece.
Parecia que todos os habitantes do sexo masculino de Baincroft, salvo os
poucos guardas que ela vira sobre as muralhas, tinham comparecido a uma
longa e silenciosa cerimonia.
Vestido inteiramente de branco, Rob jazia deitado como uma cruz alva,
no átrio, os braços esticados de ambos os lados, os pés em direção à porta, a
cabeça para o altar, com o queixo apoiado no frio chão de pedras.
Mairi caiu de joelhos e fez o sinal da cruz. Nunca vira uma cena
daquelas, em toda sua vida. O que significava aquilo?
Encontrou os olhos de Andy Miúdo, ao olhar em redor. O rapaz estava
ajoelhado a poucos passos de distância e a espreitava, de esguelha, parecendo
horrorizado de vê-la ali.
Mairi estava prestes a fazer um sinal para que elo a seguisse e contasse
a ela o que estava acontecendo, quando sentiu que a puxavam pelo braço.
Thomas. Com um gesto de cabeça e a expressão í'o chada, ele exigiu
que ela se levantasse e o acompanhasse, Mairi esqueceu-se de Andy e seguiu
atrás do cava leiro. Estava trespassada de curiosidade e não impor tava quem
fosse explicar, só queria descobrir o qui significava tudo aquilo.
Assim que estavam fora do alcance de serem ouvi
dos, perguntou:
— O que é isso? E quanto tempo dura?
— A noite inteira. Ele está em vigília.
— Então, ele vai cair dormindo, convenientemente, enquanto meu primo
o retalha, de alto a baixo? Onde está com a cabeça, Thomas? — Mairi jogou os
braços para cima e revirou os olhos para céu, em desespero. — Ele não pode
dizer uma prece e acabar com isso? Você pode apostar sua alma mortal que
meu primo não vai desperdiçar sua noite de sono!
Thomas riu, uma risadinha ligeira e cheia de significados, que irritou
Mairi ainda mais.
— Ah, então você é uma mulher prática. Nada dessas preces inúteis e
jejuns sem sentido para você.
— Pelos céus, ele nem sequer comeu! — ela exclamou, agarrando-o pelo
braço. —- Escute o que lhe digo! Isso não é necessário nem prudente!
— Eu avisei a ele, para seu próprio bem — retrucou Thomas, meneando
a cabeça. — Mas Rob é assim. Uma vez tendo decidido, nada, a não ser uma
pancada ani-quiladora, pode fazê-lo mudar de ideia. Faz a vigília, pois acredita
que deve.
— Mas, por quê? Ele acha que vai perder?
— Não, é claro que não! — Thomas suspirou e correu os dedos pelos
cabelos. — Ele quer que não haja dúvidas quanto a quem luta ao lado do bem,
amanhã. Rob quer acabar com a antiga crença de que tem um pacto com Satã,
que sacrificou a faculdade de ouvir para possuir poderes demoníacos.
— Por Deus misericordioso! Que loucura é essa? — perguntou Mairi,
levando as mãos ao rosto horrorizada. — Sua própria gente pensaria uma
coisa dessas de seu lorde?
— Aparentemente, aquele homem das Terras Altas ■credita nisso —
Thomas explicou, fazendo uma pausa antes de prosseguir. — E Rob tem medo
de que você acredite também.
— De todas as bobagens… — Mairi resmungou aborrecida e voltou-se,
rapidamente, para entrar na capela e dizer ao marido quanto estava enganado.
Thomas agarrou-a pelas costas do robe e quase desabou sobre ela, ao
perder o equilíbrio. Ela se virou depressa para ajudá-lo, segurando-o pelo
braço.
— Seu tolo! — repreendeu-o. — Vá sentar-se em algum lugar antes que
se machuque seriamente!
— Venha comigo, então — ele exigiu, através dos dentes cerrados —,
pois não pode entrar lá e interromper a vigília.
Mairi manteve-se irredutível.
— Ele não precisou de vigília, quando lutou em Craig-muir. Tenho a mais
absoluta convicção de que Deus tomou o lado de Rob naquele dia, sem a
necessidade de nada disso! — Apontou para a capela e bufou de raiva.
Thomas aproximou-se furioso.
— Senhora, eu a advirto, não caçoe daquilo que ele faz ali. Posso
suportar qualquer coisa, menos que caçoe dele, você compreende? — Ele
agarrou-a pelo braço, os dedos enterrando-se em sua carne, através do tecido.
— Robert é um irmão para mim.
— Não de sangue — ela rebateu, canalizando o aperto impiedoso da mão
dele para alimentar sua raiva. — Mas você teria isso sacramentado pelo
casamento, não é?
— Teria — ele admitiu. — Se fosse deixado a meu arbítrio, ele a levaria
hoje à noite lá para fora e traria minha irmã para casa, de volta ao lugar a que
ela pertence!
— Então, devo agradecer a Deus por essa perna quebrada, pois assim
posso enfrentá-lo, se tentar! — Ela segurou-o pelo pulso e afastou a mão para
longe, quase o derrubando.
Ele endireitou-se, recuperou a pose e não a tocou de novo, percebendo,
obviamente, que era melhor não provocá-la.
— Lamento o que falei. Eu não queria dizer isso — murmurou, em um
tom rancoroso.
— Claro que queria — ela caçoou.
A fúria, porém, arrefecera, quando uma certeza maior se apoderara dela.
Thomas tinha razão, ela jamais poderia se atrever a entrar e tentar persuadir
Rob a abandonar sua vigília. Causaria mais mágoa que um bem, se o fizesse.
Ela poderia envergonhá-lo diante de seus soldados, e ele nunca lhe perdoaria
por isso. Nem mesmo iria dormir, depois, de tão zangado.
Rob provavelmente conhecia suas forças melhor que ela, e devia sentir-
se confiante de que poderia fazê-las prevalecer a despeito da falta de comida e
de sono. Mairi tinha que confiar nele, totalmente, pois não havia outra escolha.
— Deixe-me, Thomas, vou voltar ao castelo. E, já que eu não posso, vá
e zele por ele. Tente fazê-lo descansar um pouco e comer antes da luta.
Ele limitou-se a encará-la com ódio, como se ela houvesse sugerido o
impensável. Talvez assim fosse, já que ela nada sabia acerca desses costumes.
Os homens das Terras Altas eram diferentes. Mesmo assim, Mairi não podia
evitar de se preocupar com Rob.
Caminhou pelo pátio e subiu os degraus. No terraço, diante das portas do
salão, ela se voltou e viu que Thomas entrava na capela. Ficou a imaginar, por
um instante, em que medida, exatamente, o cavaleiro tinha influência sobre
seu marido. E, para ir ao centro do problema, que parte cabia a Lady Jehan
nessa influência.
Na manhã seguinte, eía iria saber.

CAPITULO XVI

A luz acinzentada e ténue do alvorecer infiltrou-se pela janela, e Mairi


despertou com um arrepio. Ela sabia que precisava se levantar e preparar-se,
mas ficou entre as cobertas, olhando, sem ver, o dossel sobre sua cabeça.
Tinha medo desse dia.
Relanceou os olhos para a porta que se abria silenciosamente. Rob
entrou em passos quietos. Carregava no braço o traje branco que usara
durante toda noite e envergava agora a cota de malhas.
A gola da blusa com o xadrez do clã, que ele usava sob a armadura,
prendera-se aos elos de metal, em seu pescoço. Seus cabelos pareciam
emaranhados, as mechas caindo em sua testa. Estava vestido, embora com os
pés ainda descalços.
Ele havia deixado sua espada e o cinto em algum lugar, provavelmente
para evitar que o tinido e o roçar de metal pudessem acordá-la. Mairi ficou a
imaginar quem o ensinara a ter esses cuidados. Uma amante, supunha.
Mairi sentou-se na cama, encarando-o.
— Bom dia — ele murmurou, acrescentando: — Preciso de calça… e de
uma túnica. — Aproximou-se do baú aberto e tirou de dentro uma vestimenta
debruada de lã verde e calça combinando, deixando cair ali o traje branco do
cerimonial.
Ela levantou-se, enrolando-se no robe, e aproximou-se. Quando Rob
fechou os botões e voltou-se, parecia tão fraco como ela temia.
— Você precisa dormir — disse, fitando-o com preocupação.
— Não se aflija — ele retrucou secamente.
Mairi o teria beijado se Rob parecesse disposto. Podia ser o último beijo
que trocaria com ele, caso o marido preferisse lady Jehan.
Ela se recordou, tardiamente, da cerimónia que devia ser algum tipo de
ritual de purificação. Oh, claro, ela não pretendia que Rob julgasse que ela
caçoava dele de alguma forma. A advertência de Thomas, na noite anterior,
calara fundo dentro dela, muito mais do que ousava admitir.
— Vença! — ela murmurou, lentamente, tentando permanecer estóica e
esconder a preocupação. Ele podia interpretar suas palavras como medo de
que ele não tivesse condições de enfrentar Ranald.
— Vencerei — ele assegurou, estudando-lhe a face como a intensidade
que Mairi já esperava. — Você vai assistir?
— Sim, irei.
De repente, ele abraçou-a, a boca apossando-se da dela com uma
ferocidade que Mairi não conhecia. Sua língua penetrou-a, seus braços a
apertaram com fúria, e seu ventre comprimiu-se contra o dela com uma ânsia
próxima do desespero. Antes que ela pudesse recobrar-se da surpresa e
corresponder, Rob soltou-a e deu um passo atrás.
Mairi estendeu a mão para detê-lo, para explicar sua hesitação, mas Rob
voltou-se depressa e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Ela ficou ali, paralisada por alguns instantes, os dedos tocando os lábios,
revivendo aquele beijo e desejando que muitos mais se seguissem.
Percebeu, então, que tinha pouco tempo a perder. Os homens já deviam
estar se reunindo e, tão logo o sol se levantasse do horizonte, iriam deixar as
muralhas. Ela tinha que estar lá.
Uma batida hesitante soou na porta.
— Entre! — ela exclamou.
— Minha senhora — veio um murmúrio assustado. — É Elfled.
Um dos escudeiros de Rob, ela se recordou, um rapazola magro e alto,
de seus treze anos. Ele a ajudara a contar as velas.
— Sim. entre.
Ele entrou, usando apenas uma blusa amarelada que lhe chegava quase
aos joelhos e calça rasgada, pequena para ele.
Sua voz esganiçada alternava entre os graves e os agudos.
— Sir Galen disse que eu podia vir e… ah… pegar as roupas.
— Roupas? — Mairi respondeu com ar inocente. — Que roupas?
Elfled baixou a cabeça.
— Aquelas que a senhora… ah… emprestou. São minhas, sabe, e eu
queria… ah… usá-las. — Ele torceu a barra da velha blusa. — Eu queria estar
bem vestido, hoje — acrescentou.
Mairi devia ter percebido que a pessoa de quem emprestara as roupas
devia ter poucas posses, especialmente se fosse um criado ou um escudeiro
escolhido entre as famílias mais pobres. Ainda assim, ela não estava disposta a
devolver as roupas ao coitado do rapaz. Precisava delas.
— Olhe para você! — ela exclamou, meneando a cabeça com desgosto.
— Essa blusa precisa ser lavada e a calça está muito pequena. Venha comigo
— ordenou, puxando-o pelo braço e empurrando-o, fazendo-o tropeçar nos
pés.
— Mas, minha senhora…
— Entre no vestiário, rapaz. Você não planeja se vestir em minha
presença, não é mesmo? — Ela o empurrou para a porta encravada na parede,
que dava para uma pequena alcova, própria para esse fim. — Tire essa blusa
enquanto vou pegar outra, limpa, embora seja um pouco grande. Com suas
roupas por cima, ninguém vai notar. Dê-me sua calça, também. Precisa ser
remendada.
Resmungando um protesto, Elfled fez como ela mandara.
Mairi correu para o quarto e tirou o robe depressa. Enfiou a blusa de
Elfled pela cabeça e vestiu as outras peças por cima. Escondeu a calça velha,
embora soubesse que o rapaz não se atreveria a entrar no quarto, depois que
ela saísse.
Ela detestava ter que agir assim, deixando o rapaz nu, mas, pelo menos,
ele estaria fora de seu caminho. E quem sabe até fosse confundida com ele, se
o resto dos homens não prestasse muita atenção. Vestiu a túnica e prendeu a
adaga de sir Gaíen no cinto de couro.
Felizmente, ela encontrara suas botas debaixo da cama. Com o capuz
cobrindo seus cabelos e o punhal emprestado na cintura, não tinha com o que
se preocupar, a não ser em manter a cabeça baixa, para que não vissem seu
rosto.
Quando saía do quarto, ouviu uma batida hesitante na porta do vestiário.
— Minha senhora? — veio a voz tímida. — Minha senhora, por favor,
onde está?
Mairi bufou, lamentando a necessidade de pregar uma tal peça ao rapaz,
e balançou a cabeça, disposta a tirar aquilo da mente. Havia coisas mais
importantes a pensar do que na situação do pobre escudeiro. Mandaria
providenciar roupas novas para ele, se tivesse a felicidade de permanecer
como senhora em Baincroft.
Desceu correndo a escada, atravessou o salão praticamente deserto e
saiu pela porta. Conseguiu reunir-se aos últimos homens que se dirigiam aos
portões.
Arqueiros perfilavam-se com as flechas em posição, caso qualquer um
dos mercenários de Ranald se atrevesse a se aproximar dos portões abertos,
enquanto os soldados de Baincroft saíam, com Rob na liderança. Já no campo
aberto que rodeava o castelo, todos se alinharam, acertando os passos, até
que marchavam, ombro a ombro. Estacaram em conjunto, ao se aproximarem
dos opositores. Os homens de Ranald esperavam, fora do alcance da ameaça
das flechas. O destacamento formou, então, um grande semicírculo, no qual
Mairi se incluía. Rob assumira a posição central, e ela se colocara no final, à
direita dele.
Mairi notou que os homens de Ranald eram, em número, pelo menos dez
a mais que os de Rob. Atrás do inimigo, contudo, ela viu surgir uma linha de
cavaleiros montados, na beira da floresta. Eles estacaram ali, a distância, mas
perto o bastante para partir em ataque, caso fosse necessário. O estandarte de
Trou-ville tremulava na ponta de uma lança, com a suave brisa da manhã.
Mairi sorriu. Ranald devia estar furioso com essa reviravolta nos
acontecimentos. Ela deduziu que a tropa de Trouville devia ter roubado os
cavalos dos inimigos durante a noite, já que nenhum dos homens de Ranald
estava montado. Bem feito para seu primo que dissera que passaria a noite de
vigília em preces, ela pensou, com uma risadinha maldosa.
Ranald não mostrava sombras escuras de olheiras sob os olhos. Aquela
boa noite de sono tinha lhe custado caro. Não havia como escapar dali sem
montarias, Mairi podia agora vislumbrar o que viria pela frente. Finalmente,
seu pai seria vingado.
O sentimento de antecipada alegria desapareceu quando Mairi viu lady
Jehan. Seu captor a mantinha presa pela cintura, com o braço forte. Os
cabelos dela, longos e negros, caíam soltos pelos ombros, e a frente de seu
vestido estava rasgada, expondo a curva de um dos seios. Uma adaga, bem
parecida com aquela que sir Galen emprestara a Mairi, faiscava, logo abaixo de
seu queixo. Ela mantinha o ar altivo, mesmo sob a ameaça de morte. Era
digna de admiração pela coragem, Mairi teve que admitir.
— Tragam lady Mairi aqui para fora! — ordenou Ranald.
Ninguém respondeu. Rob simplesmente deu um passo à frente e apontou
para Jehan.
— Liberte-a. Mande que esse homem afaste a lâmina de seu pescoço.
— Não! — exclamou Ranald, balançando a cabeça. O homem que a
mantinha prisioneira não se moveu.
Um impasse, pensou Mairi. E agora? Se Rob matasse Ranald na luta, seu
soldado rasgaria a garganta da mulher. O que, simplesmente, resolveria os
problemas de Mairi com relação a seu casamento, mas era coisa que ela não
suportaria ver acontecer. Mesmo assim, revelar a própria identidade agora não
assegurava que o assecla de Ranald fosse libertar lady Jehan.
— Se você a machucar — Rob ameaçou, a voz profunda e sonora como
um trovão —, todos morrerão.
Ranald relanceou os ombros para trás, para onde o exército de Trouville
bloqueava a passagem, impedindo qualquer escape. Se aquilo o amedrontava,
não deixou que percebessem sua reação. Voltou-se para sir Galen.
— Diga a esse lacaio do demónio que quero as montarias de volta. Diga
a ele que não irei em frente até que todos os cavalos estejam aqui. Traga Mairi
Maclnness para fora. Ela e esta mulher podem ficar juntas, como prémio. —
Ergueu a voz. — Diga a MacBain…
Rob deu mais um passo para frente, levantou a viseira do elmo e
empurrou-a para trás.
— Diga você a mim, Maclnness! Cavaleiro! — Cuspiu no chão, com
desprezo. — Eu digo que você é um assassino!
Ranald sacou a espada e percorreu, com os olhos, a linha de defesa.
Mairi baixou a cabeça depressa.
— Escutem, todos os presentes! — seu primo exclamou. — Quando eu
derrotar MacBain, ambas as mulheres serão minhas! Deus irá lançar uma
maldição a quem não honrar este pacto. MacBain empenhou sua palavra!
Seus olhos negros, semicerrados, faiscavam ameaçadores. E, quem
sabe, de desespero. Ranald tinha que saber que nunca deixaria aquele campo
com vida. Mesmo que, por algum golpe da fatalidade, garantisse a vitória
sobre Rob, os homens de Baincroft e de Trouville certamente o aniquilariam, ali
mesmo, onde estava.
Ou não? Ninguém protestara contra as exigências de seu primo. Será
que honrariam os termos do acordo? Entregariam Mairi e lady Jehan à dúbia
misericórdia de Ranald, se a sorte favorecesse o lado errado?
Ela ficou a imaginar, de súbito, se também deveria ter passado a noite
anterior no chão da capela, rezando por si mesma.
De repente, Jehan deixou escapar um resmungo. Os olhos de Mairi
correram para a mulher. Seu captor erguera a lâmina, forçando seu pescoço, e
Jehan desmaiara, caindo de lado. Ele lhe cortara a pele, e o sangue corria,
ainda que em pequena quantidade. Com a criatura assim pendurada, um peso
morto, o soldado tinha que usar ambas as mãos para suportá-la. Ou então,
podia deixá-la cair, no chão.
Mairi quase bateu palmas. Um ato de coragem, ainda que extremamente
arriscado. Nem por um instante ela imaginou que Jehan de Brus realmente
desmaiara.
Um dos arqueiros de Trouville tinha uma flecha armada, apontada para
as costas do captor. Não se atrevera a dispará-la, contudo. Era óbvio que não
podia ver a posição da faca, do lugar onde estava. Mairi rezou para que o vôo
da flecha atingisse o alvo no momento certo.
O áspero ranger de metal contra metal chamou sua atenção de volta
para os combatentes. Ambos tinham as espadas empunhadas.
Rob e Ranald encaravam-se, medindo-se, andando em círculos, as
lâminas de prontidão. O único ruído que se ouvia, no ar da manhã, era o suave
bater das cotas de malhas e o arrastar de botas contra o cascalho. Mairi
prendeu o fôlego, junto com os demais.
De repente, com um demoníaco grito de guerra, Ranald atacou. As
espadas retiniram quando Rob aparou facilmente o golpe, posicionando-se
calmamente para receber o próximo.
— Você berra demais! — Rob caçoou, com um sorriso de troça.
Ranald avançou. Rob interceptou-lhe a espada com o escudo e
empurrou-o para longe.
— E é desajeitado! — emendou, com uma risadinha.
— Quer desistir?
Ranald soltou uma praga e atacou de novo. Rob simplesmente deu um
passo de lado, as sobrancelhas erguidas, como se desviasse de um estorvo.
— O-ô! — cantarolou. — Melhorou!
Mairi descobria novas inflexões na voz de Rob. Ele estava aproveitando
cada momento para se divertir, exultando com aquilo. Que droga! Devia estar
levando o combate a sério ao invés de ficar só nas provocações. Ranald não
era, obviamente, um espadachim a altura, mas sua espada era afiada e aquilo
não era um jogo!
A luta prosseguiu. Por inúmeras vezes, Ranald saltou para frente,
buscando o alvo, grunhindo a cada esforço, o suor já escorrendo por seu rosto
e pingando em seu queixo. Todas as vezes, a espada de MacBain aparou o
golpe, reduzindo a ameaça a nada. Ainda assim, Rob não contra-atacava. Nem
uma vez se lançou, com raiva ou determinação, disposto a ferir o inimigo.
Continuava a sorrir e a fazer comentários, deixando Ranald ainda mais furioso.
Os homens das Terras Altas observavam a luta, cautelosos, com
crescente desconforto e clara preocupação. Ranald cansava-se, evidentemente.
As ofensivas diminuíam, enquanto ele tentava se recuperar.
— Perdendo as forças? — perguntou Rob, alegremente, examinando o
oponente com um olhar de lobo. Apoiou a espada no chão, segurando-a da
mesma maneira que Thomas segurava a bengala.
Ranald soltou um urro de ódio e partiu para cima dele, a espada
estendida, só para ter o próprio peso como ponto de desequilíbrio, quando Rob
desviou o corpo para o lado. Para Rob, um gesto sem esforço. Para Ranald,
uma humilhação.
Mairi gostaria que o marido acabasse com aquilo e parasse com as
brincadeiras. Quem poderia adivinhar se o primo, em uma atitude furtiva, não
tentaria um golpe inesperado?
Os dois encaravam-se de novo, Ranaid resfolegando, exausto,
absolutamente tomado pelo ódio.
Até mesmo MacBain parecia sério, agora, como se estivesse pronto para
pôr um fim à luta, de uma vez por todas. Mairi o observou flexionar a mão
sobre a empunhadura da arma, para reforçar o aperto.
Inconscientemente, ela também empunhou a adaga.
Por entre os dentes cerrados, a voz alta e ameaçadora, Ranald ordenou a
seu homem.
— Mate a cadela, Davy. Agora!
Mairi ofegou, o olhar voando para o bruto que prendia lady Jehan. Ele a
sustinha sobre o braço e ergueu o punhal com a outra mão. Os olhos de Jehan
se arregalaram de terror, e ela começou a se debater.
Sem pensar em mais nada, a não ser em impedir o assassinato, Mairi
abaixou-se, pegou uma pedra e jogou-a com toda a força, atingindo o homem
na testa. Aquilo apenas o distraiu, mas Jehan deu-lhe uma cotovelada e
desvencilhou-se, caindo no chão de joelhos. Com uma rapidez impressionante,
de deixar a todos atónitos, ela saiu correndo desvairadamente pelo campo
aberto, em direção ao contingente de Baincroft.
Quase simultaneamente, seu captor curvou-se com um grito pavoroso.
Ao cair, estrebuchando, Mairi viu a flecha espetada em suas costas. Graças a
Deus!
Ela voltou os olhos, no mesmo instante, para Rob, temendo que aquilo
pudesse tê-lo distraído e o colocado em perigo. Então, aconteceu. O olhar
desvairado de Ranald encontrou o dela. Tomado de uma fúria inominável e
insana, ele correu na direção de Mairi, a espada estendida para traspassá-la.
Não havia tempo para recuar, nem tempo para correr. Mairi sacou a
adaga do cinto e desviou-se do golpe, mas caiu sob o peso do corpo de Ranald.
Já no chão, sentiu a mordida do aço no ombro. Com o restante das forças, ela
firmou a adaga ainda mais, empurrando-a contra as costelas de Ranald. A cota
de malhas aparara e desviara o golpe, mas a lâmina penetrara pelos elos
quando ele caíra com todo seu peso sobre ela. Eía jazia de costas, quase
esmagada.
— Aaah! — ela berrou, tão surpresa com o sucesso quanto Ranald devia
estar. No entanto, não conseguiu mais respirar.
A voz de Rob chamava-a pelo nome. O peso desapareceu de seu peito.
Mairi lutou para não desfalecer. Seus pulmões não funcionavam. Suas pernas
não se moviam. Não, ela tinha vencido Ranald! Ela vingara o pai. Isso não
podia estar acontecendo! Sua vista turvou-se, e a escuridão ameaçava
envolvê-la. Ela tentou lutar, ainda.
Estava morrendo, percebeu. E era questão de instantes. Logo, seus olhos
não mais se abririam e seu corpo esfriaria. Não sofria. O medo não a
dominava. Apenas a tristeza. Uma tristeza imensa e compulsiva, que não podia
suportar. Rob nunca saberia que ela o amava, nunca mais a abraçaria de novo.
Pelo menos, ela ajudara a salvar Jehan. Para ele. Mairi teve vontade de
rir, ferozmente, diante da ironia do fato, da injustiça do resultado. Mas, não
conseguia respirar.
Estrondos ecoavam a seu redor, carregados de gritos e pragas. Era o
inferno. E era escuro.
Rob ignorou o corpo convulsionado pelos estertores da morte de cima de
Mairi e ajoelhou-se, ao lado dela. Havia pouco sangue, somente um arranhão
profundo que mal rompera a pele, sob o tecido cortado. Ele apertou-lhe o
peito, delicadamente, deslizou as mãos sob suas costelas, e, então, empurrou
novamente o tórax. Ranald expulsara-lhe o ar dos pulmões.
Jehannie aproximou-se, tentando chamar-lhe a atenção. Ele a fitou
furioso.
— Veneno — ela murmurou. — Na lâmina.
— Jesus, não! — Rob gritou, inclinando-se para abraçar Mairi, para
segurá-la contra o peito, para incitá-la a viver. Apertou-a com força, e sentiu a
respiração débil roçar-lhe o rosto. Suspirou de alívio, afrouxando o abraço.
— Para dentro! — gritou Jehannie, apontando para o castelo. Depressa!
Leve-a, completou com sinais, enquanto corria.
Rob ergueu o corpo de Mairi, ficou de pé e tomou-a no colo, seguindo
para as muralhas, notando vagamente todo o inferno que deixava para trás.
Rezava, enquanto atravessava correndo os portões. Jehannie saberia
como agir, sua mãe era uma curandeira. "Por favor, meu Deus", implorou,
"faça com que Jehannie sabia o que fazer".
Nem por um momento ele duvidou de que ela faria tudo que estivesse a
seu alcance para salvar Mairi. Embora lhe faltasse o bom-senso em muitas
ocasiões, a Jehan de Brus não faltava o senso de honra. Mairi ajudara a salvá-
la da faca de seu captor, jogando aquela pedra, e Jehannie tinha um débito
para com ela.
— Olho por olho! — ele relembrou-a, quando colocou o corpo inanimado
da esposa sobre a mesa no salão. Embora confiasse em Jehannie, não deixaria
opções para que ela se esquecesse de seu débito.
Ela o ignorou e chamou Gunda, a criada, que estava por perto,
ordenando-lhe alguma coisa. A moça afastou-se, correndo. Com dedos ágeis,
Jehannie rasgou a túnica ensanguentada. Para horror de Rob, ela começou a
apertar o ferimento, fazendo com que sangrasse. Então, de súbito, ele
compreendeu que ela estava drenando o veneno. Obedeceu, quando ela
mandou que continuasse a apertar, embora o penalizasse ver Mairi sangrar.
Gunda logo retornou, trazendo sanguessugas em um pote, e Rob foi
posto de lado, para permitir que as criaturas repelentes fizessem seu trabalho.
Diante de seus olhos, os vermes nojentos grudaram as bocas no ferimento,
sugando. Logo, estavam gordos de sangue. Então, começaram a cair. Mortos,
ele esperava, ou logo estariam, com o veneno. Abençoou as horríveis criaturas,
uma a uma, que podiam salvar-lhe a esposa amada daquele destino cruel.
Jehanníe amassava as ervas que a criada lhe trouxera em um cálice,
acrescentando líquido. Ela ergueu uma das mãos no ar, a palma para cima.
Levante-a.
Rob deslizou o braço sobre os ombros lassos de Mairi e ergueu-lhe o
tronco, aninhando-a contra o peito. Forçando a cabeça de Mairi para trás,
Jehannie despejou um pouco da mistura em sua boca, esfregando-lhe o
pescoço. Repetiu o processo até que toda a infusão tivesse sido engolida.
Rob teve medo de que o remédio descesse para os pulmões e Mairi não
pudesse tossir, para expulsá-lo. Olhou para Jehannie que parecia tão
preocupada como ele.
— Ela vai morrer? — perguntou, implorando com os olhos por um fiapo
de esperança.
Jehannie deu de ombros e meneou a cabeça. Era óbvio que fizera tudo
que podia. Ela pousou a mão no braço dele e apertou-o, de leve, como que
para lhe transmitir conforto.
— Eu ouvi o plano de Maclnness — disse, quando Rob a fitou. — O
veneno é cicuta.
— E isso? — perguntou Rob, apontando para o cálice vazio.
— Uma mistura de coisas. Unha-de-raposa, água de levístico, outras
ervas medicinais para tirá-la da letargia — retrucou Jehannie, parecendo em
dúvida quanto a ter feito o suficiente. Ou, quem sabe, exagerado. As ervas que
usara eram venenosas se tomadas em quantidade. Qualquer criança sabia
disso.
Esfregou a palma da mão sobre o peito, em cima do coração. Sinto
muito.
Rob não respondeu. Se Mairi morresse, não seria por uma atitude
intencional da parte de Jehannie. Confiava nela.
Ele ergueu Mairi da mesa ensanguentada e carregou-a, escada acima,
para colocá-la na cama.
Jehannie seguiu-o, puxando-o pela manga.
— Hidrate-a bem, Rob — ordenou. — Dê-lhe bastante água. Nada de
vinho, nem cerveja.
Rob aquiesceu com a cabeça, deixando Jehannie para trás, para cuidar
daqueles que pudessem estar feridos na batalha que se seguira. Ele
compreendia que o destino de Mairi agora repousava nas mãos de Deus. E o
Todo-Poderoso devia estar terrivelmente ocupado com outros assuntos,
naquele dia, já que permitira que aquilo acontecesse.
Ele abriu a porta com um chute e entrou, colocando Mairi sobre a cama.
Afastou uma mecha de cabelos de sua face. A palidez aumentava, e sua pele
estava úmida e fria ao toque.
— Acorde, Mairi! — ele exclamou, balançando-a gentilmente, e, então,
com mais força. Ela estava como uma boneca de pano, o corpo lasso. — Você
precisa tentar!
Gunda entrou, trazendo água e cerveja. Rob agradeceu e mandou-a
embora, sabendo que a criada ficaria por perto, se ele precisasse de qualquer
coisa. Ele queria ficar a sós com Mairi, pois aqueles poderiam ser seus últimos
momentos de vida.
Nas horas que se sucederam, ele lutou para fazê-la acordar, gotejando
água em sua boca, e carregando-a pelo quarto nos braços. Suas botas
pequeninas arrastavam-se no chão e sua cabeça pendia para o lado, quando
ele tentava forçá-la a andar. Se, pelo menos, ela vomitasse o resto do
veneno…
Parava, de vez em quanto, apenas para pressionar os dedos em seu
pescoço, para reafirmar a si mesmo que o pulso fraco ainda continuava lá.
Quando não conseguia, molhava os próprios lábios e os aproximava dos dela,
para sentir-lhe a respiração.
— Não posso perdê-la! — gritou, por fim, quando suas próprias forças
fraquejaram e ele caiu, ao lado dela, sobre a coberta de pele, para descansar
por um instante. Puxou-a para mais perto, a face enterrada em seus seios. E
chorou. — Não posso perdê-la!
Na quietude absoluta que se seguiu, ele sentiu que um ligeiro tremor
agitava o peito de Mairi, como se ela estivesse deixando escapar um gemido.
Ele ergueu a cabeça, depressa, e fitou-a, a esperança brilhando em seus olhos.

CAPITULO XVII

Ele tinha certeza. Mairi deixara escapar um gemido. Rob retornou às


tentativas de tentar acordá-la. Pernas e braços tremiam de exaustão, quando
ele procurou sentá-la, dando tapinhas em seu rosto. A cabeça de Mairi tombou
para o lado, como se ela fosse uma boneca quebrada.
Rob suspirou desanimado. Colocou-a de volta sobre os travesseiros,
apoiou-se sobre um dos cotovelos e descansou por alguns instantes. Aquilo
não estava funcionando.
Tocou-lhe a veia do pescoço para sentir-lhe o pulso. Embora não fosse
forte e cadenciada como deveria ser, a batida do coração continuava constante.
Isso devia ser levado em conta, ainda que não fosse suficiente para reanimá-
la.
Era tudo culpa dele. Se, pelo menos, não tivesse ido tão longe para
impressionar Mairi com suas habilidades e procurado acrescentar ao duelo uma
pitada adicional de emoção, com seus insultos àquele famigerado, talvez
aquele desenlace não houvesse acontecido.
Por que não terminara simplesmente com o problema? O fato de não ter
matado a Maclnness imediatamente deixara margens para que Mairi sofresse
aquela horrível injúria.
Rob sabia que Mairi o observava, ela afirmara que o faria. E ele nem
mesmo podia alegar ter julgado que ela presenciava a luta na segurança das
muralhas, pois a reconhecera disfarçada nas roupas do jovem Elfled. Mas era
tarde demais para mandá-la de volta sem revelar sua identidade, para o
inimigo. Então, resolvera exibir-se, como um galo para a galinha, em uma
última tentativa de provar a ela sua habilidade como guerreiro, seu valor e
merecimento para tê-la como esposa.
Vencer de pronto seria uma brincadeira de criança, considerando o ódio
debilitante de Maclnness, aliado à ausência de treinamento adequado. Com um
simples golpe, Rob poderia tê-lo derrotado e evitado um desenlace tão fatídico.
Contudo, com qualquer gesto precipitado, também poderia ter provocado a
morte de Jehannie nas mãos do homem de Ranald.
Além de impressionar a esposa, Rob havia pensado que, se prolongasse
o duelo por algum tempo, o guardião de Jehannie poderia se distrair, deixando
margens para que o arqueiro de Trouville o acertasse, com uma fie chada.
E algo assim havia acontecido, tal como tinha esperanças, com uma
parcela de assistência da própria Jehannie e de sua pequena e corajosa
esposa, com sua presença de espírito.
Que preço Mairi tivera de pagar por aquele ato de bravura. Ele só podia
rezar para que ela não terminasse por pagar com a própria vida.
Rob levantou-se, soltou as fivelas e tirou sua cota de malhas, deixando-a
cair no chão. Arrancou a camisa suada que usava e colocou-a sobre a
armadura. Sacou o punhal que trazia preso à bota e gentilmente cortou fora o
restante da blusa ensanguentada que Mairi trazia. Em seguida, descalçou as
botas pequenas e, com toda a delicadeza, tirou-lhe o resto das roupas.
Ela parecia uma menina, deitada ali, uma menina pálida e sem vida, fria
e inanimada. Rapidamente, ele apanhou uma túnica e enfiou-a por sua cabeça,
vestindo os braços pelas mangas, como se cuidasse de um bebé.
Será que a abraçaria de novo e desfrutaria da beleza do ato de amor
entre ambos, outra vez? Ela havia se apossado de seu coração, assim como ele
se apossara do corpo dela. Queria apenas uma nova chance de mostrar a ela
quanto a amava, quanto a admirava, em todos os sentidos…
Rob alisou o tecido macio, correndo as mãos pelo corpo de Mairi. Então,
cobriu-a até o pescoço com as peles, para aquecê-la.
— Não morra, Mairi — murmurou.
— Como está ela? — perguntou Jehannie, que entrara silenciosamente
no quarto, trazendo um pequeno frasco na mão.
Rob balançou a cabeça e esfregou os dois dedos indicadores esticados,
lado a lado.
Na mesma.
Jehannie colocou o fraco sobre a mesa e suspirou.
Sossegue o coração, ela vai viver.
Faça alguma coisa, ele implorou, com os olhos, pousando a mão sobre o
ombro ferido de Mairi.
Jehannie despejou água dentro de um cálice. Outra infusão de ervas, ele
adivinhou, pelo cheiro, e estendeu-o a ele. Juntos, esforçaram-se para que
Mairi bebesse.
Os olhos dela estavam ligeiramente abertos, mas o olhar era vazio e
ausente como de um cadáver. O sangue de Rob enregelou-se em suas veias,
diante da visão. Teve medo de que ela tivesse morrido. Apressou-se em testar
o puiso.
— Graças a Deus — murmurou, sentindo as batidas fracas.
Jehannie ficou a observá-lo, enquanto recolhia as roupas que ele tirara
de Mairi e as levava para fora do quarto. Quando retornou, poucos instantes
depois, tinha um sorriso nos lábios.
— Encontrei Elfled no vestiário, nu e furioso. Mairi roubou-lhe as roupas.
Rob tentou sorrir em resposta, mas não conseguiu.
Ela veio juntar-se a ele na beira da cama. Parecia incansável em suas
tentativas de acordar sua paciente, enquanto as energias de Rob se esvaíam
visivelmente. A falta de sono e alimentação, aliada à esperança, que se
desvanecia, contribuíam para torná-lo pesado e nada útil.
— Você devia descansar — declarou Jehannie.
— Quando ela acordar — prometeu Rob, enfrentando seu olhar de
reprovação.
Gunda apareceu na porta com uma bandeja cheia de comida. Seu olhar
curioso pousou sobre eles, mas nada disse. Jehannie fez um gesto para que a
criada colocasse a bandeja sobre a mesa, ao lado da lareira. Quando Gunda se
retirou, Jehannie puxou Rob pela mão, afastando-o de Mairi, e cobriu-a com a
manta de pele.
— Deixe-a estar por um pouco e vamos esperar que as ervas façam seu
trabalho. Venha. — Caminhou até a mesa onde Gunda deixara a travessa. —
Coma.
Rob não tinha vontade alguma de comer, porém, fez o que ela sugeria
pois precisava de forças para enfrentar as horas que viriam. Durante todo o
tempo, manteve vigília em Mairi, desejando que ela se mexesse, abrisse os
olhos e enxergasse, desta vez. Gostaria de poder fazer alguma coisa que a
tirasse daquele sono letárgico.
Quando, finalmente, ele terminou de comer, Jehannie tocou-lhe as costas
da mão e disse, em sinais:
Não é sua culpa.
Ele se levantou e deu-lhe as costas. Caminhou alguns passos e ficou a
olhar pela janela, incapaz de sentir-se menos culpado. Sentiu que os braços de
Jehannie o rodeavam pela cintura, viu seus dedos enlaçados na frente, e sentiu
que ela pousava a face contra suas costas. Ele precisava desesperadamente de
conforto, mas sabia que não devia permitir que Jehannie agisse assim.
Segurando-a pelos pulsos, Rob rompeu o abraço e deu um passo para
trás. Ao voltar-se, o que viu nos olhos dela foi apenas compaixão.
Ela o interrogou, colocando a palma da mão sobre o peito dele, na altura
do coração, e apontando em seguida para Mairi.
Você a ama?
Rob aquiesceu, os lábios apertados, o olhar toldado de aflição.
A fisionomia de Jehannie encheu-se de pesar e, então, ela o abraçou de
novo, recostando a cabeça em seu peito. Ele viu-se incapaz de rejeitar a
solidariedade que ela lhe oferecia. Com uma ligeira hesitação, retribuiu o
abraço.
Ela compreendera. Jehannie faria tudo o que estivesse a seu alcance
para salvar Mairi, não apenas porque devia isso a ela, mas também porque não
queria partir o coração de Rob. Acontecesse o que quer que fosse, ela jamais
deixaria de ser sua amiga.
Ficaram assim por um instante e logo ela se afastou. Bateu de leve no
rosto dele com a mão pequenina e eficiente, e sorriu.
— Juntos, Robbie — disse. — Como antes.
— Imp — ele retrucou, chamando-a pelo nome que usava, quando eda
os obrigava, a ele ou a Thomas, a tentar alguma coisa impossível. Rezou para
que a presente missão fosse bem-sucedida.
— Bruxo — ela respondeu com um sorriso. —Vamos lá, então! — Tomou-
o pela mão e puxou-o até a cama.
Para sua surpresa, ao se aproximarem, Rob notou que os olhos de Mairi
estavam abertos. E alertas. Duas tochas azuis, flamejantes, luzindo de
acusações, coroadas de lágrimas.
— Oh, não! — Ele bufou, aflito. Os pensamentos dela não eram mistério
para ele, agora. Rob sabia exa-tamente o que Mairi devia estar pensando.
Mairi não pôde suportar o semblante de súbita aflição no rosto do
marido. Ele devia estar esperando que ela estivesse morta. Desviou o olhar
para lady Jehan, que parecia estar prestes a desfalecer.
— Robbie! — gritou a mulher, os dedos agarrando o braço de Rob. — Ela
acordou! Está vendo?
Rob tinha visto, Mairi pensou com um sorriso de tristeza. E parecia estar
imaginando como poderia explicar seu comportamento de instantes atrás.
— Diga por quê, eu o desafio — ela resmungou. Ele, porém, não podia
ouvi-la. Inútil falar.
Será que ele esperava que ela não fizesse perguntas, depois de tê-lo
visto abraçado com outra mulher? Uma mulher que ele amara e com a qual
quisera se casar? Aqueles sentimentos não pareciam fazer parte do passado.
Mairi bocejou e balançou a cabeça, tentando aclarar as ideias. Mas tudo
parecia girar. Tristemente, agarrou-se a um pensamento.
Que visão viera saudá-la quando finalmente emergira aquele poço negro
onde estivera aprisionada. Pela misericórdia de Deus, ela ainda não havia
exalado o último suspiro, e eles já se entregaram a carícias? A raiva invadiu-a
e abandonou-a tão depressa quanto surgira. Ela se importava?
Sim! Não era sentimento que gostasse de abrigar no peito, ainda mais
agora que não tinha cabeça para lutar ou até mesmo para discutir seus direitos
como esposa. Mairi fechou os olhos com força, desejando voltar para aquele
mundo nebuloso do qual conseguira escapar, com tanto esforço. Estava perto,
convidativo…
— Não durma! — exclamou Rob, chacoalhando-a. Apoiou o joelho na
cama, afundando o colchão.
— Tire as mãos dela, seu imbecil! — gritou Lady Jehan, zangada,
empurrando-o.
Imbecil. Mairi gostaria de rir, mas não teve forças. Rob sentara-se a seu
lado e lhe apertava o pescoço com os dedos. Isso doía. Onde quer que ele a
tocasse, doía. Ela parecia ter o corpo em chamas. Por quê ele agia assim?
Sua cabeça latejava abominavelmente. A língua estava ressequida como
um pedaço de charque, e a boca, amarga e azeda, como vinho estragado.
— Agua — ela conseguiu murmurar, sem esperar, na realidade, que um
dos dois atendesse seu pedido.
Eles quase a mataram afogada. Mairi cuspiu e vomitou, quando Rob
ergueu-a dos travesseiros, e lady Jehan esvaziou um copo cheio dentro de sua
boca.
Ela tentou livrar-se, mas seus braços pareciam estar envoltos em
chumbo. Sem condições de se defender, ela engoliu mais um copo de líquido
frio, até o fim.
— Deixem-me — gaguejou, sem fôlego com o esforço. — Saiam daqui.
A mulher riu, uma risada alta e sonora que fez Mairi desejar vomitar.
— Não é provável que façamos isso, depois de todo o trabalho que
tivemos — disse Jehan, com uma ri-sadinha. — Temo que você precise sofrer
algumas torturas, antes.
Rob afastou rudemente uma mecha de cabelos da testa de Mairi e,
então, enfiou o braço debaixo dos ombros dela, para levantá-la. Ela bendisse
aquele toque, embora doesse. Não, disse a si mesma, não podia se permitir
pensamentos equivocados. Queria absorver as forças dele, era isso. Queria
isso dele, pois não tinha mais forças próprias. Nenhuma.
Antes que Mairi soubesse o que estava acontecendo, eles a colocaram de
pé, apoiada entre os dois.
— Caminhe! — Rob ordenou secamente.
— Você precisa suar — explicou Lady Jehan. — Logo vai poder dormir
quanto quiser. A unha-de-ra-posa e o levístico estão fazendo efeito, eu creio.
Você foi envenenada.
— Envenenada? — Mairi resmungou, vergando com o incessante latejar
da cabeça. Eles a tinham envenenado?
Sim, tinham! E todos iriam acreditar que ela morrera do ferimento que
Ranald lhe causara. Aquele golpe devia ter sido superficial para fazer o
trabalho, mas quem iria acreditar nisso, se somente aqueles dois tinham
cuidado dela?
Não, ela confiava em Rob, queria confiar. Mas, devia? Não sabia por quê,
mas sentia que podia confiar a vida em suas mãos.
Era a mulher, Mairi pensou, com um gemido. A feiticeira, com as ervas
malignas. Entorpecera a noção de honra de Rob com poções, também?
Mairi suspirou, incapaz de fazer mais que se arrastar entre os dois,
enquanto a conduziam pelo quarto. Seus pensamentos fervilhavam febris. A
princípio, quis fugir de Baincroft, escapar, esconder-se. Em seguida, desejou
cair na cama e morrer.
Na verdade, não conseguia imaginar por que eles não a deixavam
descansar em paz. Estava no limite de suas forças, pronta para desistir e
entregar-se ao abraço da morte. Não desejava outra coisa, a não ser dormir,
mergulhar no doce esquecimento.
— Por favor — murmurou, rezando para que permitissem a ela
resguardar a dignidade, se não fosse possível manter a vida.
— Não se preocupe — sua rival assegurou, a voz musical imbuída de
evidente prazer pela maneira com que as coisas se encaminhavam. — O pior já
passou. Só precisamos ter certeza de que as ervas fizeram efeito.
Mairi não se deu ao trabalho de implorar por piedade. Colocou um pé
diante do outro e fez o que a obrigavam. Se o veneno lhe fora ministrado em
altas doses, era inútil lutar.
No entanto, sua mente parecia estar funcionando melhor do que há
poucos minutos. Minutos? Ou horas? A cabeça doía horrivelmente, latejava
ainda mais, mas a sensação de firmeza nos membros aumentava a cada
passo. Quem sabe tivessem julgado mal a quantidade necessária para liquidá-
la.
Se pudesse convencer aqueles dois, induzindo-os a pensar que haviam
atingido seu objetivo, ela pudesse talvez escapar da morte. Mairi continuou a
cooperar até sentir que tinha forças para caminhar por si só.
Então caiu, propositadamente, ficando pendurada molemente entre os
braços dos dois.
— Chega? — ela ouviu Rob perguntar.
— Sim, isso deve bastar — respondeu Jehan. Mairi impediu-se de dizer
qualquer coisa.
Rob a guiou de volta para a cama, ergueu-a nos braços e colocou-a de
costas, sobre o colchão.
A mulher levou a mão a seu pescoço e pareceu satisfeita com o que
sentiu ali. Através dos olhos entreabertos, Mairi observou que o marido fazia o
mesmo movimento e concordava, parecendo aliviado.
Então, Jehan levantou-se, não sem antes puxar Rob para si e beijá-lo
suavemente na face. Tivesse ela forças para tanto, teria esbofeteado os dois.
Ao invés disso, fingiu dormir até que ouviu o marido atravessar o quarto
e parar, perto da lareira. A cadeira estalou. Pouco tempo depois, ela ouviu o
ressonar profundo, indicando que ele adormecera.
Alguém havia trocado a blusa de Elíled e colocado nela sua própria
camisa. Era tudo que ela usava, já que tinham lhe removido até a calça. As
roupas do rapaz haviam desaparecido. Tão silenciosamente como pôde, ela
escorregou para fora da cama e localizou as botas, jogadas a um canto.
Lutando para manter o equilíbrio nas pernas vacilantes, Mairi caminhou
até a parede onde estavam dependurados seus vestidos de lã. Escolheu o mais
resistente, de tecido rústico verde-escuro, e enfiou-o pela cabeça. .
Felizmente para seu marido, ela não tinha mais a adaga que sir Galen lhe
emprestara. Temia ser tentada a usá-la, se a tivesse em mãos.
Sua raiva não conhecia limites, e Mairi permitiu que se expandisse,
sabendo que acobertaria a dor no coração que poderia fazê-la desistir, naquele
momento. Se pelo menos sua cabeça não rodasse tanto, ela faria as coisas
mais depressa e iria embora. Para algum lugar. Decidiria mais tarde.
Com as mãos tremulas, ela enrolou o manto forrado de pele de Rob, para
levá-lo consigo. Embora o tempo continuasse firme e inexplicavelmente
quente, para a estação, seu corpo parecia ter água gelada correndo pelas
veias.
Suas ideias ainda continuavam enevoadas, porém ela julgava que esta
devia ser a única chance que tinha de fugir. Silenciosa como um ladrão em
casa alheia, ela deslizou os pés nus pela escada e abriu caminho pelos cantos
sombrios do grande salão. Enfiou-se em uma alcova e calçou as botas.
Parecia que todos que viviam em Baincroft tinham se reunido ali.
Diversos feridos jaziam sobre macas no chão, e mulheres corriam para lá e
para cá, cuidando deles. Muitos homens estavam agrupados, bebendo cerveja,
rindo e conversando em voz alta.
Trouville estava ainda ali, Mairi notou. Pensou em se aproximar e pedir
ajuda a ele. Descartou a ideia, pensando melhor. Ele poderia não acreditar na
história do veneno e julgar que ela mentia. Ou até mesmo apoiar a decisão de
seu marido de livrar-se dela. Jehan devia contar com os favores especiais dos
pais de Rob, que a conheciam muito bem.
Era estranho, mas, ou não tinham notado sua chegada, ou não se
importavam. Havia muito movimento, para dentro e para fora do salão, e as
portas estavam abertas, o que era excelente para seus planos. Mairi viu um
xale cinzento que alguém esquecera sobre um dos bancos, perto da parede e,
rapidamente, apanhou-o. Enrolou-o sobre os cabelos, deixando que a barra lhe
ocultasse o rosto, pela metade. Talvez fosse bobagem, pois tinha certeza de
que ninguém tentaria impedi-la de sair.
Por que haveriam de se importar, se ela partisse? Agora, que pensava
nisso, descobriu que precisava de um cavalo. Rob teria lhe dado um,
provavelmente, e provisões também, se ela tivesse expressado sua vontade de
ir embora e pedido a ele.
Mas ele podia pensar que seria melhor livrar-se dela de forma
permanente. Se ela estivesse morta, ele es-t taria livre para desposar Jehan
no mesmo instante.
Lentamente e de cabeça baixa, medindo os passos, ela caminhou para a
porta e saiu. Embora estivesse próximo do entardecer, o pátio fervilhava de
gente e de animais, as montarias dos soldados de Trouville, escudeiros e
cavalariços. A tropa inteira devia estar fazendo planos de partir para casa, em
breve. Aquilo podia explicar porque os portões estavam abertos e virtualmente
desguarnecidos.
Aqueles que haviam se reunido próximo aos portões não lhe deram
atenção quando ela se aproximou, envolvidos como estavam nas conversas
sobre a batalha da manhã.
Por uns poucos instantes Mairi retardou-se, ouvindo as bravatas sobre a
vitória. Eles falavam da morte de Ranald e de como ela colaborara no feito. De
pronto, ela se recordou daquele momento terrível, e seu coração ficou ainda
mais enregelado. Cometera um assassinato.. Aquilo devia trazer, se não fosse
prazer, pelo menos satisfação, com certeza. Ao invés disso, ela sentiu tristeza,
tanto por ter tirado a vida do primo, como por sua alma danada, que a forçara
a cometer um tal pecado.
Os homens riram, então, comentando a valentia da selvagem esposa das
Terras Altas que lorde Rob arranjara. Ela encontrara a bainha certa para a
adaga que portava. Nisso, supunha que estavam certos. Com a mão livre, ela
tocou o ferimento. Um arranhão, nada mais. Ranald, porém, tê-la-ia partido
em duas, caso ela não tivesse se desviado. E se não o apunhalasse, o golpe
seguinte poderia ter sido fatal.
Falavam, agora, que os homens de Maclnness haviam lutado
obstinadamente até que alguns poucos restavam de pé. Estes tinham se
rendido e ficariam prisioneiros até que lorde Rob lhes decidisse o destino.
Finalmente, Mairi vislumbrava um rumo a seguir. Poderia retornar a
Craigmuir, enfim, e ficar em segurança. Tudo o que tinha a fazer era imaginar
como. Sem comida ou dinheiro, como iria enfrentar a jornada?
Mairi saiu pelos portões, seus passos arrastando-se de exaustão. A dor
pelo casamento fracassado e a derradeira traição de Rob eram piores que os
efeitos do veneno. Mas, não podia demorar-se, pensando nisso.
Ela apertou o manto enrolado contra o peito e enveredou para longe da
estrada principal. Não queria que Trouville a descobrisse, a caminho de casa, e
exigisse explicações. Dirigiu-se para a floresta que ficava a oeste de Baincroft.
Foi lá que encontrou o pónei das Terras Altas, a rédea arrastando-se no
chão enquanto ele pastava perto dos limites do bosque. Deus estava com ela.
Trouville havia perdido aquele!
— Mairi! — Rob berrou desesperado, esmurrando a porta do vestiário
vazio. Onde estava ela?
Seus pés velozes mal tocaram os degraus, quando ele desceu a escada
correndo, para chegar ao salão. Tudo estava escuro e silencioso, no meio da
noite.
Ele acordou cada alma que ali dormia, cutucando um e outro com a
ponta da bota. Chacoalhou ombros e arrancou travesseiros de cabeças,
gritando, o tempo todo:
— Acordem! Ajudem a procurar!
Faíscas incendiaram os pavios em diversos pontos, quando as tochas
começavam a ser acesas. O salão ganhou vida de novo.
— Minha esposa desapareceu! — ele anunciou, lutando para permanecer
calmo. — Ela está doente. Encontrem-na!
Ele saiu correndo, para os alojamentos. Acordou os soldados.
A busca começou. Cada canto escondido de Baincroft foi devassado.
Nenhum sinal da senhora. A cada novo relatório, Rob tornava-se mais
desesperado, Mairi não estava em lugar algum dentro das muralhas. Ninguém
a vira. Simplesmente ela desaparecera.
A acusação, nos olhos dela, quando acordara, ainda o atormentava. Ela o
vira abraçando Jehannie, e ele não lhe dera explicações. Instintivamente, sabia
que Mairi partira de Baincroft por vontade própria, talvez levada pelo
desespero, para fugir dele.
Doente, com raiva, e sentindo-se traída, a pobre jamais iria enfrentar os
perigos da noite como deveria. Animais selvagens e a exposição ao frio eram
as principais preocupações de Rob. Ladrões e bandidos raramente assolavam
as terras em torno de Baincroft, pois ninguém desejava enfrentar sua cólera.
No entanto, essa possibilidade não podia ser descartada. Rob forçou-se a não
pensar mais no assunto, para não enlouquecer.
Desejava, por todos os santos, que seu pai e seus soldados houvessem
ficado para passar a noite. Rob poderia mandar um mensageiro, pedindo que
voltassem, mas a ajuda iria demorar. Ele precisava agir, e depressa.
Um dos cavalariços trouxe sua montaria, e Rob não perdeu tempo. Pegou
uma tocha acesa, como o restante da tropa, e conduziu o grupo para os
portões.
—- Ela deve ter ido para oeste — disse a sir Galen, que cavalgava a seu
lado. Então, recordou-se de alguma coisa que ela havia escrito na lousa,
quando haviam começado a trocar confidências, na viagem. Era sonho dela, de
toda a vida, conhecer uma cidade. — Ou a leste, para Edimburgo — emendou.
Se ela soubesse que havia uma cidade a leste, pensou. Pela misericórdia de
Deus, ele não sabia por onde começar.
Nuvens toldaram a lua. Havia pouca esperança de encontrar sua esposa,
a menos que eles dessem com ela por puro acidente. Rob suspirou ao perceber
a futilidade da busca, mas não podia abandoná-la. Não, enquanto houvesse a
mais remota chance de que pudessem localizar Mairi.
Mairi não tinha intenção de dormir. Depois de conduzir o pónei que
encontrara para a cobertura das árvores, ela o amarrada ali, para que ambos
ficassem bem escondidos, até que Trouville e seus homens tivessem deixado
Baincroft.
Enquanto esperava, ela julgara prudente descansar um pouco para a
longa cavalgada noturna. Contudo, não acordara na hora que pretendia. Era
manhã agora, e o sol banhava as muralhas do castelo, quando ela olhou para
leste.
Os portões continuavam abertos, ela notou. Ficou a imaginar se o pai de
Rob resolvera esperar o raiar do dia para partir.
Atrás dela, o pónei relinchou, remexendo-se sem parar sob a sela rústica
e forçando a corda que ela enrolara em torno de um galho baixo. Ele precisava
de exercício, Mairi supôs. Não era falta de comida, que ò animal encontrara em
abundância por aqueles pastos. Sua barriga estava distendida, parecendo
prestes a estourar.
Mairi desvencilhou-se do manto que a mantivera aquecida o bastante
para dormir pela noite inteira. O tecido ainda conservava o cheiro de seu
marido, o que não era uma lembrança bem-vinda depois de tudo que havia
acontecido. Dobrou-o, em um pacote, e prendeu-o na sela.
A floresta, ao redor, parecia dar as boas-vindas a ela e ao animal recém-
encontrado. Os passarinhos cantavam, obviamente sem medo dos intrusos, e
ela podia ouvir o murmurejar de água sobre pedras, ali por perto.
Pensando em lavar-se e em dar de beber ao pónei, ela puxou-o pelas
rédeas e pôs-se a vaguear por entre as árvores, até encontrar o riacho.
Mairi ajoelhou-se ao lado da torrente e bebeu alguns goles da água
gelada. Lavou o rosto, enxugando-o nas mangas do vestido. Então, sentou-se
na grama e começou a analisar racionalmente tudo o que havia acontecido,
desde a batalha.
As teias de aranha que pareciam obscurecer suas ideias desapareceram
de sua mente, levando-a a uma percepção clara da situação, e não foi algo que
a agradasse. Sua fuga, de repente, pareceu-lhe covardia. E, de maneira
alguma, fazia jus a uma mulher que tinha enfrentado e derrotado seu maior
inimigo.
— Por que eu deveria fugir? — ela perguntou ao pónei.
O animal relinchou, bateu com uma das patas no chão e baixou a cabeça
para beber.
— Como ele se atreveu a pensar em se ver livre de mim e ainda
conservar aquilo é meu? Terei meu dote de volta!
O animal resfolegou.
— Quem está certo é você, seu pescoço sujo! — Ela se levantou e bateu
com a mão no peito. — Não sou uma tonta de miolos moles que tem medo de
gente parecida com MacBain e aquela bruxa mal-intencionada.
O pónei devolveu o olhar furioso com uma plácida piscadela.
Mairi deu três longos passos para a direita e voltou-se,
dando três outros passos na direção oposta, dirigindo um olhar
examinador para o novo companheiro.
— Eu sou Mairi de Maclnness, saiba disso! E já que resolvi não
permanecer aqui, ainda assim hei de recuperar o que me é devido, antes de
partir! Se o lorde de MacBain quer se livrar de mim, então pode muito bem
devolver minhas terras de dote!
Ela lançou a mão para cima, o dedo em riste para enfatizar o discurso. O
pónei nem se mexeu.
— Sim! Por que eu haveria de perder? Não fiz nada, só aquilo que uma
boa esposa faria. Como posso pensar em voltar para Craigmuir e viver como
uma serva em meu clã, quando tenho terras de minha propriedade para
cuidar? Não voltarei de mãos vazias! — exclamou.
Mairi agarrou as rédeas do pónei e puxou-o de volta, por entre as
árvores, para a estrada. Antes que perdesse a impetuosidade que a dominava,
montou e saiu a galope, em direção aos portões do castelo de Baincroft.

CAPITULO XVIII

Olhos arregalados e queixos caídos de surpresa saudaram Mairi quando


ela passou a galope pelos portões, entrando no pátio. O som frenético da
trombeta anunciou sua chegada.
— Sim, estou aqui! — ela gritou. — Avisem a ele! — Puxou as rédeas do
cavalo em frente aos degraus do castelo e, rapidamente, pulou da sela, caindo
de pé no chão com um baque.
Aquilo tinha que ser feito depressa, eZa decidiu. Galgando a escada e
empurrando a porta, ela avançou para dentro, dando de cara com sir Thomas,
que saía.
— Pelo sangue de Cristo! — ele exclamou, os olhos arregalados de
surpresa. — Onde esteve? Todos estão…
Ela passou por ele, perguntando:
— Onde está MacBain?
— Fora, procurando por você! — ele respondeu, voltando-se e seguindo-
a.
Mairi deduziu que Thomas era a pessoa a quem ela mais precisava ver,
na verdade. Fora ele que arrumara o casamento entre Rob e ela. Poderia,
muito bem, desfazer as coisas.
— Onde estão os documentos do casamento? Quero vê-los.
Ele meneou a cabeça, com firmeza.
— Só seu marido pode…
Ela dispensou a objeção com um gesto zangado das mãos.
— Não brinque comigo, Thomas de Brus! — exclamou, sentindo que
tremia de fúria. — Pegue-os, estou dizendo!
— Ela voltou!
Mairi relanceou os olhos para a direita e viu lady Jehan que cruzava o
salão, correndo em sua direção. Lembrando apenas do atentado da mulher
contra sua vida, Mairi deu um pulo e arrancou o punhal do cinto de Thomas.
Apoiado nas bengalas, ele foi incapaz de impedir o gesto. Mairi rodopiou,
ficando de frente para Jehan, empunhando a arma.
— Não pense em me matar desta vez, sua bruxa maligna! Sua presença
é bem-vinda para MacBain, mas eu terei aquilo que é meu!
A jovem estacou a um passo e desviou-se da adaga. Seus olhos
brilhantes correram do rosto de Mairi para a arma ameaçadora.
— É… é claro que terá — disse, com a voz sumida. Então, pareceu digerir
aquilo que Mairi havia dito. — Matá-la? O que quer dizer com isso?
— Unha-de-raposa! — Mairi exclamou, jogando as tranças sobre os
ombros, para que não a atrapalhassem. — E levístico também? Você admitiu
que me envenenou!
Jehan deu um passo para trás.
— Mas…
Mairi sentiu um aperto de aço fechar-se em torno de seu punho.
— Largue o punhal, minha senhora — Thomas avisou, os dedos
apertando a ponto de cortar a circulação da mão de Mairi. O punhal caiu no
chão, e ele a soltou.
Jehan mergulhou para apanhá-lo, e Mairi, instintivamente, chutou-o para
longe, caindo sobre a mulher para evitar que ela apanhasse a arma.
— Desta vez, não!
Agarrou um punhado de cabelos e puxou, com força, a outra mão
aparando dois punhos em riste. Jehan chutou-a, enterrando-lhe as unhas, e
deu um giro com o corpo, revertendo as posições. Rolaram pelo chão,
engalfinhadas.
— Tome essa, sua ingrata…
A cabeça de Mairi rodopiou com o soco, mas ela o devolveu, com toda a
força. A pancada ressoou, e Jehan soltou um grito de raiva e de dor,
preparando-se para revidar. Mairi, porém, foi mais rápida, e desvencilhou-se,
rolando para o lado. Forçou a oponente a ficar de costas e sentou-se sobre ela,
as pernas escarranchadas, uma das mãos segurando-a pelos cabelos, a outra
pelo pescoço. Sua posição era mais favorável. Havia vencido.
Mas, vencera o quê? E por quanto tempo? Thomas poderia golpeá-la na
cabeça e acabar com tudo. Ela arriscou um olhar para ele, notando que ele
parecia pasmo.
— Não se aproxime! — avisou, encarando-o para avaliar sua reação. —
Ou a estrangularei!
Ele fitou-a horrorizado.
Mairi respirou fundo, tentou acalmar o tremor que a sacudia e, ao
mesmo tempo, continuou a manter lady Jehan subjugada. Felizmente, a moça
percebera que era inútil se debater e jazia agora quieta.
— O que quer? — perguntou Thomas.
— Meu dote de volta! — Mairi exclamou, com firmeza. — Quero o
casamento dissolvido e meu dote devolvido, para que eu possa ter um lar. —
Baixou o olhar para o rosto vermelho de Jehan e estreitou os olhos furiosa. —
Não era preciso me matar. Fique certa, eu não haveria de querer um homem
que deseja outra! — Para sua tristeza, percebeu que as próprias lágrimas
caíam sobre o corpete do vestido de Jehan, deixando manchas no rico brocado
amarelo.
— Rob não me quer! — exclamou Jehan, sem tentar se desvencilhar. —
Ele a ama!
— Ora! Então, por que haveria de me querer morta?
— Ele não quer, sua tonta! Nunca quis! — Ela sorriu e contorceu-se. —
Agora, saia de cima de mim!
Mairi afrouxou o aperto no pescoço de Jehan, mantendo, contudo, a mão
no lugar.
— Você espera que eu acredite nisso? Você disse o nome dos venenos! E
eu vi…
De repente, alguém agarrou Mairi por debaixo dos braços e puxou-a. Ela
caiu com as costas contra um corpo sólido. E soube de imediato quem a
segurava.
— O que está acontecendo aqui? — a voz familiar trovejou.
Ela ergueu o pescoço para fitá-lo, apavorada com o que ele pudesse
fazer. Rob não parecia feliz em vê-la, mas isso não era surpresa.
Jehan levantou-se e ficou de pé, afastando os cabelos revoltos dos olhos
com ambas as mãos. Bufou e respirou fundo.
— Foi Ranald Maclnness quem a envenenou, Mairi. Sua espada estava
impregnada de cicuta. Eu lhe dei uma infusão de unha-de-raposa e levístico
para salvá-la.
Ranald! A enormidade de seu erro atingiu Mairi como um soco. Tudo que
ela ouvira no leito de enferma fazia sentido, agora. Mas, o que presenciara
entre Jehan e seu marido, não.
Rob abaixou-se e fez com que ela se voltasse para encará-lo.
— Você está bem? — perguntou, os olhos duros como pedras.
— Não — ela retrucou, sem fôlego, puxando o vestido para baixo,
sentindo-se uma idiota e miseravelmente errada. Mordeu os lábios sem saber o
que dizer.
Será que Rob a amava? Não podia esquecer que o vira abraçado a lady
Jehan. A jovem o beijara, na face, e ele não parecera se importar.
Ele a fitou intensamente, e Mairi teve vontade de desaparecer.
— Você acredita nela? — ele perguntou suavemente. — E verdade.
Mairi deu de ombros. Rob, era óbvio, tinha entendido as palavras de lady
Jehan com relação ao veneno. Como explicar que se convencera de que os dois
planejavam se livrar dela? Seu julgamento errado tinha sido, em parte, devido
às ideias enevoadas, porém não inteiramente. Havia afeição entre Rob e
aquela mulher, uma afeição de longa data. Era amor ou simples amizade? Os
dois tinham sido noivos.
Mesmo que Mairi amasse Rob, aquele sentimento não seria suficiente
para sustentá-la durante os anos que poderia passar a lado dele, se o marido
amasse verdadeiramente a primeira prometida. Isso significaria apenas a
infelicidade de todos os três.
Mas, como saber a quem ele amava? Ela ergueu os olhos para enfrentar
o olhar frio e grave, mas viu mágoa ali. Ela o ferira com sua acusação. Havia
orgulho, também. Ele não pediria para que ela ficasse, porém, queria. Tentava
disfarçar esse desejo por trás do orgulho. Mairi podia ver.
Jehan falou, as mãos movimentando-se em conjunto com os lábios.
— Ela nunca irá confiar em você, Rob. Portanto, como pode confiar nela?
Você não pode depender dela para cuidar de você.
— Cuidar dele? — Mairi ficou furiosa. Parecia que enxergava tudo
vermelho. — Você acha que ele precisa de cuidados de alguém? Alguma vez
viu este homem em uma batalha? — Bufou, livrando-se dos braços de Rob. —
Não aquela dança cómica de ontem de manhã, mas uma luta de verdade, de
vida ou morte? Ninguém se iguala a ele, eu lhe digo! Ninguém!
Lady Jehan inclinou a cabeça, erguendo a mão para interrompê-la.
— Eu não falo das habilidades dele com relação a isso, Mairi. Rob precisa
de uma esposa que possa falar por ele em assuntos…
— Quais assuntos? — Mairi perguntou, lançando as mãos para cima,
incrédula. — De negócios? Que esposa tem voz ativa nisso, pode me dizer?
Nenhuma, que eu tenha ouvido falar! Ele tem um administrador para isso,
embora eu jure que ele se saiu muito bem em Craigmuir sem seu querido
irmão, quando foi me buscar. Ninguém questiona as ordens de meu marido!
Nem seu valor!
Os olhos de Rob estavam presos aos lábios dela. Ela não conseguiu saber
quanto ele se alegrava com aquilo que ela dizia. Nem se importava, naquele
instante. Não estava falando com ele.
Sua rival relanceou os olhos para Rob e, então, colocou os dedos
cobrindo os lábios enquanto falava.
— Rob está acostumado com nossa ajuda, Mairi. Ele não pode…
O temperamento impetuoso de Mairi aflorou de vez.
— Sim, ele pode! Ele pode fazer qualquer coisa que deseje e sem sua
interferência! Eis aí, você esconde suas palavras por trás da mão, para que ele
não possa ler seus lábios e sentir-se ofendido. Protegendo-o, não é?
Pobrezinho do Robbie…
Jehan tentou falar, mas Mairi a impediu, continuando:
— Sim, você acha que ele ainda é um garotinho, é isso! Você e Thomas!
Durante todos esses anos, a mãe dele a ensinou a tratá-lo assim! A falar por
ele, a fazer as coisas por ele, intrometendo-se entre ele e o mundo! — Agarrou
Jehan pelo braço e chacoalhou-a. — Ele é um homem agora, Jehan! E, por
Deus, ele é meu homem! É melhor você não se esquecer disso!
Jehan mordeu o lábio inferior e ergueu os olhos para Rob, por um longo
instante. Então, libertou-se do aperto de Mairi com um safanão e saiu, pisando
duro, pela porta.
Mairi gostaria de lhe desejar boa viagem! Essa mulher não conhecia Rob
tão profundamente quanto pensava. Como seria desastroso deixá-lo sob os
cuidados de Jehan. Tal como havia declarado, momentos atrás, ele não pre-
cisava ser cuidado! Precisava de uma esposa para amá-lo, acreditar nele, que
ficasse a seu lado. Era só.
Mairi, porém, não poderia deixar Jehan ir embora dessa maneira, a
despeito de tudo. A jovem lhe salvara a vida, quando seria fácil para ela omitir-
se. Tudo que precisava fazer era deixar o veneno agir às escondidas. Não fora
o que fizera. Mairi devia isso a ela, e uma Maclnness sempre pagava suas
dívidas.
Ela cutucou o braço de Rob e disse, lentamente.
— Espere aqui. Eu voltarei.
Com as mãos entrelaçadas nas costas e uma expressão imperscrutável,
ele concordou, com a cabeça.
Apressada, Mairi saiu correndo atrás de Jehan, com a intenção de fazer
as pazes com a rival, não importava quanto fosse inconveniente tê-la por
perto. Ela iria encontrar um jeito de tolerar sua presença, de alguma forma.
— Não vá — gritou, do topo da escada. — Não precisa. Vamos conversar
mais e resolver isso entre nós.
-Eu errei em acusá-la injustamente quanto ao veneno e sinto muito.
— Está resolvido! — retrucou Jehan, lançando a Mairi um sorriso
insolente e uma piscadela.
— Você pode ficar! — exclamou Mairi. Jehan meneou a cabeça.
— Eu só esperei para ver se você servia para Robbie. Você serve!
Mairi ia protestar, mas Jehan a impediu.
— Thomas, a essa hora, já deve ter contado a ele seu pequeno discurso.
Aconselho que aprenda a linguagem dos sinais, mocinha das Terras Altas. Meu
irmão não vai estar em sua cama de casada para traduzir suas palavras.
Mairi revirou os olhos com aquela impertinência.
— Para onde você vai?
— Ficar com lady Anne! — Jehan gritou, enquanto caminhava para os
estábulos. — Não se preocupe comigo! Robbie tem um belo irmão, na França.
Espero que ele precise de alguns cuidados. — A risada a acompanhou, quando
ela voltou-se e seguiu em frente.
Era preciso admitir, aquilo salvava as aparências e devia ser admirado.
Mairi meneou a cabeça, aturdida, voltando para dentro. Aquele dia não
transcorrera como havia esperado. Km nada. Rob provavelmente a puniria, e
ela certamente merecia um castigo. Os amigos mais íntimos do marido a
odiavam e com bastante razão. Seu povo não a queria ali, mas ela iria ficar, a
despeito disso. Todos aqueles desafios a enfrentar, e mesmo assim, seu
coração estava leve como uma pluma. Era incrível.
Rob esperou impaciente pelo retorno de Mairi, quase incapaz de acreditar
no que havia acontecido. Ela voltara a Baincroft por livre e espontânea
vontade.
A princípio, havia exigido suas terras de dote e a dissolução do
casamento, Thomas lhe contara.
Ela havia acusado a Jehannie e a ele de tê-la tentado matar,
administrando-lhe veneno. Isso ele conseguia entender e poderia explicar.
Afinal, Mairi enxergara as coisas de forma diferente, agora. Pelo menos, tinha
esperanças que sim.
Contudo, a confusão se dera quando ela o defendera para Jehannie. Ou
assim Thomas contara. Rob havia apenas compreendido a última parte,
quando Mairi havia declarado que ele era dela. Seu homem.
A esperança crescera em seu coração.,Os dois poderiam se entender,
imaginou, se Mairi realmente acreditasse que pertenciam um ao outro. O
porquê de ela ter decidido assim, tão de repente, é que iria determinar a
sequência dos fatos.
Simpatia por ele ou senso de dever não seriam suficientes para construir
uma vida juntos- Ele queria mais da parte dela. E Mairi merecia muito mais
dele, do que aquilo que ele lhe dera até agora.
— É chegada a hora — ele disse para si mesmo, ao vê-la surgir pela
porta. — Passa da hora.
Thomas voltou-se para encará-lo.
— Hora de quê?
— Oh, disso! — ele simplesmente exclamou, sorrindo. Fez um gesto para
Gunda e ordenou que levasse comida, vinho e água quente para seu quarto.
Ele vinha uma longa noite de cavalgada pelos campos dos arredores, na
procura por Mairi e estava faminto. Mairi devia estar pior ainda.
Verdade fosse dita, toda aquela fome o atormentava, mas seu desejo por
Mairi era maior. A possibilidade de saciá-la o enchia de uma ansiedade que ele
não conseguia conter. Mas, devia ser paciente, avisou a si mesmo. Havia muito
que conversar, antes que pudessem fazer amor. Se fizessem amor de novo.
Thomas recostou-se contra a parede. Você está com problemas, disse,
com sinais.
Rob o mediu com um olhar interrogativo.
Todos vão chamar sua esposa de demónio.
Falaram muito pior de mim, Rob admitiu. E de você.
Por uns instantes, ficaram assim, examinando um ao outro, até que
Thomas jogou os braços para os lados, em um gesto exagerado. Seguiram-se
sinais curtos e desgraciosos.
Eu menti. Eles vão amá-la. Ela é forte, honesta e inteligente. Como você.
Baixou a cabeça por um momento e, então, afirmou. E ela está com a razão.
Sobre o quê?
Seu amigo suspirou, os ombros derrubados, a expressão resignada.
Você não precisa mais de nós, de Jehannie e de mim.
Eu sempre hei de precisar dos amigos, Rob assegurou. Mairi irá precisar
também, não importa o que ache, agora. Ele estava presumindo, que ela
ficaria, percebeu.
Ela não gosta de mim. afirmou Thomas.
Você também não gosta dela, mas isso pode mudar. Rob arqueou uma
das sobrancelhas, em advertência. Ele queria mudanças, caso Thomas
permanecesse ali.
Thomas apoiou-se nas bengalas e afastou-se da parede, falando devagar
para que Rob o entendesse.
— Muito bem, se você é quem diz…
Mairi entrara hesitante. Estava parada, na porta, com as mãos
entrelaçadas. Sorria seu mais inocente sorriso, mas, em seus olhos, Rob podia
ver apreensão e medo de que ele pudesse puni-la pela demonstração de
temperamento.
Com todos os direitos, ele podia fazê-la pagar por aquelas acusações,
por ter brigado com Jehannie e por tê-lo deixado em desespero,
desaparecendo como fizera. Mas, ele sabia que não faria nada disso. Estava
feliz demais por tê-la ali, a salvo, em casa.
— Fizeram as pazes? — perguntou, sabendo que deveria dar a primeira
deixa.
Ela concordou com a cabeça, lançando um rápido olhar para Thomas,
que os observava.
— Sua irmã foi para perto de lady Anne. Disse que não devemos nos
preocupar com ela.
— Temos mais com que nos aborrecer do que com minha irmã
caprichosa, eu diria — retrucou Thomas, com um sorriso. — Seu marido exige
que sejamos amigos.
Mairi comprimiu os lábios por um instante, embora exibisse um olhar de
puro deleite que Rob julgava encantador.
— Então, que assim seja — ela murmurou, formando as palavras
lentamente. E o fez mais para provocar Thomas do que para que Rob a
compreendesse, ele tinha certeza. — Desde que você atenda tudo que eu diga
e faça exatamente como eu queira, tenho certeza de poderemos nos dar muito
bem, senhor.
Rob observou o rosto de Thomas contrair-se, de cómica incredulidade.
Era hora de interceder, antes que aqueles dois começassem a brigar. Eles
nunca haveriam de se olhar, olho no olho, sem sair faíscas, e ele tinha que
aceitar o fato.
Esperava ter pela frente muitos anos para resolver as coisas que ainda
permaneciam entre aqueles dois, mas não pretendia começar naquele
instante. Tinha assuntos mais importantes a tratar.
— Venha comigo — ordenou a Mairi, tomando-a pelo braço, sem lhe dar
qualquer escolha. Ele percebeu o sorriso de provocação que Mairi lançou sobre
o ombro, para um enfezado Thomas.
Assim que entraram no quarto, Rob notou que ela perdera a arrogância e
a valentia. Uma Mairi intimidada pareceu a ele quase irreal.
— Sente-se e coma — ele disse, apontando para a comida que Gunda
havia trazido.
Obediente como nunca, ela sentou-se, partindo um pedaço de pão fresco
e oferecendo a ele. Rob aceitou e também o copo de vinho que ela lhe serviu.
Sentou-se em frente a ela, na outra cadeira.
A refeição terminou depressa, sem que Mairi tivesse dito qualquer
palavra. Limitara-se a observá-lo como um predador, pronto para atacar. Ela
obviamente esperava alguma forma de castigo por seu erro, porém, com toda
certeza, não tinha medo dele.
Rob bebeu o resto do vinho, pousou o cálice sobre a mesa e levantou-se,
para esticar os músculos. Ela continuou a observá-lo, limpando os farelos dos
dedos e mastigando, pensativa.
Não havia mais desculpas para retardar a conversa. Os dois teriam de
chegar a um entendimento. Rob precisava saber se a esposa continuava ali,
com ele, pelas razões corretas e não por dever ou piedade.
Ele se ajoelhou ao lado do baú e tirou a lousa e o grafite, caso
precisassem escrever. Quando os colocou sobre a mesa, ela franziu a testa,
— Não! — exclamou, olhando-o nos olhos. Levantou-se. Ao se
aproximar da cama, voltou-se, cruzou os braços sobre o peito e disse: —
Vamos conversar.
Resignado, Rob começou:
— Você foi enganada.
— Sim, eu sei — ela retrucou com um suspiro. — Meu pai sabia? —
perguntou, estreitando os olhos.
— Sabia. Você me perdoa, Mairi?
— Se você me perdoar. Eu sempre faço julgamentos precipitados e me
comportei mal. — Ela deu de ombros e passou a mão pela testa. — Estava
muito zangada, com medo… preocupada.
— E agora?
— Estou contente.
— Contente por estar comigo?
As palavras dela saíram em um torvelinho, e Rob ergueu a mão para
silenciá-la.
— Fale devagar, por favor. — Aproximou-se e ergueu-a. Ficou de pé,
diante dela, para que pudessem estar face a face, as mãos dela apoiadas em
seus ombros, as suas na cintura de Mairi. — Agora, comece outra vez.
Em pausas, ela contou que havia suspeitado da verdade na noite em que
fora atacada no acampamento, quando vira a troca de sinais entre ele e Andy
Miúdo. Mais tarde, havia ficado em dúvida, durante o baile. Mas suas suspeitas
haviam se confirmado, quando tinham chegado a Baincroft.
Para surpresa de Rob, ela também relatou como se sentira, então. E não
escondeu nenhuma das preocupações com respeito aos problemas que sua
falta de audição poderiam acarretar ao casamento e à vida dela. Raras vezes
alguém lhe falara com tamanha franqueza. Mairi fora direta. Ao final, jurou que
não se importava com isso. Acostumara-se, afirmou. Rob quase riu,
imaginando se algum dia, ele próprio, se acostumaria com o defeito.
Tinha que admirar o esforço concentrado de Mairi, em fazer-se
compreender. Ela exagerava nos gestos e usava as palavras mais simples,
pronunciando uma de cada vez, falando mais alto do que era normal,
acreditando que aquilo pudesse ajudar.
Mairi estava conseguindo ter sucesso. Ele entendia cada palavra e
conseguia compreender o sentido de cada frase. Com o tempo, ele se
acostumaria à maneira de falar da esposa, assim como acontecera, muitos
anos atrás, com Trouville e Henri. Se conseguisse esse tempo. Precisava
certificar-se disso.
— Você quer a liberdade? — perguntou, mantendo a voz baixa, quase um
sussurro.
— Oh, não! — Mairi respondeu, balançando a cabeça em uma negação
veemente.
— Por que não?
A pergunta crucial tinha sido colocada. Rob esperava a resposta. Mairi
não era pessoa de quebrar um juramento. Ele, porém, não queria tê-la a seu
lado, se ela decidisse ficar sob um falso pretexto, ou se lamentasse a união.
Ela pareceu estudar como responder, escolhendo palavras, meio indecisa.
Então, enterrou os dedos nos ombros dele, quase em desespero.
— Porque… eu… me importo com você!
Rob inclinou-se e beijou-lhe a testa. Então, afastou-se, muito sério.
— Você pode ir — disse. — Tomarei providências. Ouro. Criados. Sua
própria casa.
As mãos pequeninas tremeram quando ela tomou o rosto dele e encarou-
o profundamente nos olhos.
— Oh, Rob, esta é minha casa. Eu quero ficar aqui. Quero você — Com
um suspiro fundo, perguntou: — Você entende?
Ele sorriu e aproximou os lábios dos dela.
— Sim, entendo.
O alívio o inundava como a maré cheia. Mairi o queria, ela se importava
com ele. Rob sabia que não era piedade, dever ou algum senso de honra
equivocado que a prendiam ali. Graças a Deus!
Ela devia ter preocupações, contudo. Qualquer mulher teria. Por mais
que a desejasse e que estivesse pronto para reclamá-la como sua, para
sempre, Rob ainda tinha coisas a explicar. Pousou a mão no ventre de Mairi.
— Nossos bebés — disse, esperando transmitir-lhe confiança —vão
escutar. — Embora ela não fizesse perguntas de como ele sabia disso, que os
filhos não herdariam sua surdez, ele podia ler a dúvida nos olhos dela. — Eu
ouvia
— explicou, sorrindo com as lembranças. — As canções de minha mãe.
Meu cachorro latindo. O vento.
— Assobiando na janela? — ela perguntou, animada com as revelações.
— Entre as árvores — ele corrigiu, erguendo a mão, agitando os dedos e
fazendo o sinal que significava árvore. Então, fechou-os, levando-os até o
canto da boca. — A trombeta.
Ela sorriu, incentivando-o.
— É claro, na muralha… quando alguém se aproximava!
— Eu tinha dois… talvez três anos, quando sofri uma febre.
O rosto de Mairi ficou sombrio.
— E agora, nada? — perguntou, tocando gentilmente suas orelhas,
correndo os dedos pela curva externa.
— Tambores. Assobios. Flautas.
— Ah! Eu sabia! — ela exclamou com uma risada.
— O baile! Você é ótimo! •
— Eu sei — ele admitiu, rindo também. — Melhor que você! — brincou,
recebendo em resposta um soco de brincadeira.
— Posso aprender os sinais? — ela perguntou ansiosa, torcendo as mãos
em movimentos que não faziam qualquer sentido.
— Você pode fazer melhor — ele retrucou, beijando-lhe os dedos.
Mairi deu uma risada.
Deus, como ele amava aquele jeito de rir. Parecia tão cheio de alegria,
tão espontâneo. Devia soar como música, pensou.
— Este é seu nome — Rob dobrou os dedos e agí-tou-os, como se
tocasse um pequeno instrumento. — Como os acordes de uma harpa.
Mairi repetiu o gesto, várias vezes, parecendo encantada. Então,
perguntou:
— Qual é o seu?
Ela observou atentamente enquanto Rob tamborilou três dedos no meio
do peito, para indicar o brasão dos MacBain que ele sempre trazia ali,
— Este é o meu.
— Quem usa os sinais? — perguntou Mairi.
— A princípio, minha mãe. Agora, todos.
— Três palavras — ela comentou. — Você raramente diz mais. Por quê?
— Eu lhe disse. Três são suficientes.
— Suponho que sim — retrucou Mairi, com um ar sonhador. — Se forem
as palavras certas.
Rob ergueu-lhe o queixo e fitou-a dentro dos olhos, muito sério. Cruzou
as mãos sobre o coração e, em seguida, abriu-as, estendendo-as a ela. Queria
declarar seus sentimentos.
— Eu a amo.
Mairi suspirou de prazer e inclinou-se. Beijou-o de leve na boca, com
imensa ternura.
— Eu o amo — repetiu, imitando-lhe o gesto. Palavras e mais palavras
poderiam ser trocadas, entre os dois, nos anos vindouros. Porém, tudo de mais
importante tinha sido verbalizado ali, naquele instante.
Rob reclinou-se sobre ela, deíiberadamente roçando o corpo contra o de
Mairi, uma promessa implícita que não precisava ser expressa em palavras.
— Espere! Acho que sei um sinal! — ela exclamou, rindo suavemente e
com uma tal doçura que Rob podia jurar ter ouvido o som. Os dedos de Mairi
entrelaçaram-se em seus cabelos e ela deitou-se sobre as cobertas,
arrastando-o consigo. — Isso significa venha para a cama…
Ele respondeu da maneira mais eloquente possível, usando a boca e as
mãos para mostrar o empenho.
Foi um discurso para jamais ser esquecido.

EPÍLOGO
Três anos depois
Parem com esse barulho, já! — gritou Mairi, tapando os ouvidos. O
pequeno Ned caçava seu irmão gémeo, Harry, que se esquivou de uma cadeira
e jogou-se na segurança dos braços de seu pai.
— Papai! Ajude-me! — berrou o garotinho de dois anos, escalando o
casaco de Rob e enroscando-se em seu pescoço.
Ned o seguiu.
— Eu o peguei! — exclamou, batendo nas costas do irmão com o
pequeno aro com guizos que encontrara no salão.
A algazarra era insuportável. Algumas vezes, Mairi invejava o silêncio em
que vivia Rob. Já havia barulho suficiente no salão, com os preparativos para
receber o visitante. A trombeta anunciara sua chegada e ele deveria estar
entrando a qualquer momento. Três anos de casada, e Mairi ainda não
conhecia o irmão de Rob, que acabara de chegar da França. O que ele haveria
de pensar dos dois sobrinhos turbulentos, pendurados no pescoço do pai como
mariscos em uma pedra?
Rob ria, feliz, fazendo cócegas das costelas dos garotos até que eles
deixaram seu colo, moles de tanto rir. Mairi pegou os dois pelo cinto e colocou-
os no banco, ao lado da lareira.
— Sente-se, Ned! — ordenou, tirando os guizos de sua mão. — Você,
aqui! — Colocou o menino em uma ponta e agarrou Harry. — E você, lá! Um
momento de silêncio, por favor! E não se sujem!
Harry puxou um pequeno cavalo de pau de dentro de sua jaqueta e
sorriu, o mesmo sorriso do pai, provocando o irmão.
— Meu cavalo.
Então, disparou a falar um amontoado de palavras que nem mesmo Mairi
conseguia adivinhar o que fossem. Ned respondeu no mesmo jeito. A estranha
conversa continuou e os dois decidiram compartilhar do brinquedo, imitando
um galopar do cavalinho ao longo do banco.
Mairi balançou a cabeça e voltou-se para o marido.
— Por que os dois falam assim, Rob? Eu tento ensiná-los! O que há de
errado? Eles insistem nessa… algazarra.
— Misericórdia! — Ele levou as mãos ao rosto, fingindo horror. — Não é
gaélico?
Ela riu, a despeito da aflição com a linguagem dos filhos.
— Não! Isso eu poderia entender!
— Nem francês? — perguntou Rob, parecendo ainda mais preocupado.
— Nem inglês! Nem latim! — ela respondeu, com um olhar furioso.
Rob recostou-se, sorrindo.
— Observe. Garotos? — chamou em um tom firme, obtendo a atenção
dos filhos. — Digam-me. Quem é Harry?
Harrv abanou o dedo indicador.
— Tio Henri… — Fez uma pausa, em uma clara provocação e, então,
apontou para o peito e acrescentou, bem alto: — E eu Harry.
Rob fez um gesto, concordando, e indagou:
— Quem é Ned?
— Vô Edouard e eu— exclamou Ned.
Rob contemplou Mairi com um silêncio eloquente e suspirou. Está vendo?
Por que se preocupar?
Mairi concordou, sabia que ele estava certo. Seus filhos eram tão
perfeitos como qualquer criança barulhenta podia ser. Alguns dias sua vida
parecia feliz demais, achava que devia ter algo errado quanto a isso. Rob a
estava ensinando a viver um dia de cada vez e a esperar que a felicidade
abençoasse o amanhã.
A porta do salão abriu-se, e Mairi alertou Rob.
— Ele está aqui — disse sem necessidade, pois o alto e belo lorde
encaminhou-se com largas passadas para eles, com um sorriso de absoluta
felicidade. Tal como Trouville, ela pensou, embora lhe faltasse a formalidade
inibidora do pai.
— Robert, o Velhaco! — berrou, com uma sonora risada, enquanto
envolvia Rob nos braços.
— Harry, o Infeliz! — Rob respondeu, em um tom vibrante, batendo nas
costas do irmão e abraçando-o. — Bem-vindo, irmão.
Mairi esperou pacientemente para ser apresentada, embora seus
pequenos sapecas se agarrassem às pernas dos homens, como bonequinhos
agitados.
Com um tapinha final, Rob soltou Henri e voltou-se.
— Minha esposa, Mairi — disse, apontando para ela. — Aqui está Henri.
Pensando que ele lhe tomaria a mão, Mairi estendeu-a. Ao invés disso,
ele deu um passo à frente, beijou-a em ambas as faces e disparou uma
torrente de palavras em sua língua nativa.
— Eu não falo… — ela começou.
— Francês. Papai me avisou. Nem ele fala — disse Henri, inclinando a
cabeça em direção a Rob. — Pena. pois eu poderia, dizer-lhe, em segredo, que
você corre perigo de ser raptada para a França por um patife que se apaixonou
por você à primeira vista. Irá comigo, minha formosura?
Mairi revirou os olhos para o céu, desarmada com a brincadeira.
— Oh, claro que sim, meu lorde. Eu e meus gentis bebes vamos fazer de
sua vida um céu! Conheça Harry e seu irmão, Ned.
Henri imediatamente ajoelhou-se e segurou cada um dos garotos pelo
ombro, examinando-os como se fossem cães a serem negociados.
— Ora, ora. Querem ir para a França e serem meus cavaleiros? Vamos
conquistar os ingleses!
Os gémeos balançaram a cabeça, aquiescendo, e jogavam-se nos braços
do tio, como se o conhecessem durante toda a vida.
Mairi resgatou Henri depois de uns poucos minutos das mãos ávidas dos
meninos, e ofereceu a ele um copo de cerveja.
— Você deveria ser pai de seus próprios cavaleiros — Rob sugeriu,
sentando-se. — Quando vai se casar?
— Eu!? — exclamou Henri. — Não é preciso. Harry pode ser meu
herdeiro.
Mairi recorreu a Gunda para tomar conta dos pequenos, antes que se
tornassem impetuosos demais para suportar. A criada sentou-os sobre o banco
e deu-lhes uma guloseima para mordiscar.
— Eles são para lá de maravilhosos! — exclamou Henri. Mairi quase
podia jurar que vira lágrimas brilharem
naqueles olhos escuros. Notou que Rob observava o irmão
pensativamente, ambos pareciam um bocado tristes para uma ocasião tão
feliz. Será que tinha a ver com as razões de Henri em se mostrar disposto a
deixar seu legado para um sobrinho, ao invés de ter filhos seus?
— Estamos felizes em tê-lo conosco, meu lorde — disse ela,
alegremente, mais para mudar aquele estado de espírito do que para fazê-lo
sentir-se em casa. Bain-croft tinha sido o lar de Henri por um tempo maior do
que ela própria vivia ali.
A nuvem escura afastou-se, e a conversação tomou um rumo agradável
que permaneceu durante a refeição.
Mais tarde, eles se sentaram ao pé da lareira, no salão, onde Henri os
encantou com divertidas histórias de suas viagens. Mesmo os garotos
permaneceram sentados, extasiados, encostados um ao outro. Logo as
cabecinhas começaram a pender de exaustão. Era hora de dormir, mas Mairi
detestou pôr um ponto final ao dia. Ter um irmão era uma nova e maravilhosa
experiência para ela.
— Agora, você precisa me falar das Terras Altas, Mairi — exigiu Henri —,
pois esse é um lugar que nunca visitei.
Mais que depressa, ela concordou, seu entusiasmo crescendo enquanto
pensava em seu clã, onde todos estavam felizes agora, tendo o sobrinho de
Ranald como lorde, um bom rapaz que eles haviam escolhido para liderá-los.
Ela contou a Henri como Rob havia ido até as Terras Altas para buscá-la,
destacando as habilidades do marido em batalhas com um tal exagero que fez
Henri rir e Rob corar.
De repente, Rob aproximou-se e tomou-lhe as mãos, impedindo-lhe os
gestos enfáticos.
— Por favor, Mairi! — ele pediu, com um olhar angustiado. — Não na
frente das crianças,
— O quê? — ela exclamou, abrindo as palmas como se houvesse escrito
nelas uma mensagem de advertência. — O que foi que eu disse?
— Que eu sou o melhor amante em toda a Escócia — ele murmurou,
com um sorriso enviesado, cheio de autoconfiança, e um gesto de ombros
embaraçado.
Henri concordou, com uma expressão séria.
— E que ele só poderia ser suplantado por um francês mais bem
equipado e com anos de experiência. — Seus olhos escuros faiscaram. — E que
você está temerariamente tentada a…
Mairi jogou as mãos para cima.
— Estou temerariamente tentada a matá-los!
— Não é um bom sinal — Henri comentou com um arquear da
sobrancelha.
— Eu sei — concordou Rob. — Ela precisa de uma lição. Pode nos
desculpar?
— Certainment! — exclamou Henri.— Ordeno que durmam bem.
Mairi sorriu por sobre o ombro, enquanto Rob a conduzia para a escada,
atrás de Gunda e dos garotos.
— Obrigada pelo desafio que fez a ele… Duvido muito que vá sobrar
tempo para dormir, esta noite!
— O que disse? — Rob perguntou, já que não pudera ver os lábios dela
enquanto Mairi falava.
Ela sorriu com toda a inocência.
— Eu lhe desejei boa noite, meu amor. Uma ótima noite.

FIM

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