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Jorge Alegria Simões

Rio de Janeiro, 2021

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S593i Simões, Jorge Alegria.


O inexistente - 1. ed. - Rio de Janeiro: Autografia, 2021.
98 p. ; 21 cm

ISBN: 978-65-5943-671-2

1. Filosofia. 2. Filosofia do sagrado. 3. Bataille, Georges. I. Título.

CDD 100

Maurício Amormino Júnior - Bibliotecário - CRB6/2422

O inexistente
simões, Jorge Alegria

isbn: 978-65-5943-671-2
1ª edição, abril de 2021.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

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prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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A realidade que foge aos cálculos com os quais a humanidade
reconhece aquilo que pode existir do ponto de vista humano,
isto que Georges Bataille chama de imanência, o livre fluxo da
matéria se devorando - se engolindo como ondas num mar -
parece impossível de ser inteiramente percebida para nós (que
precisamos, numa certa medida, estabelecer cálculos para exis-
tir). Mas essa incapacidade parece ser inevitável desde que não
é possível realmente mantermos nossa existência humana sem
uma quantidade mínima de cálculos, já que sem isto passamos
a sofrer as mesmas sanções que a percepção humana aplica so-
bre aquilo que ela desconsidera como parte de si - o que não
é algo que se pode evitar, principalmente se não participamos
do que nos permite legitimar o que existe ou não. Só que essa
participação já nos faria existir e assim já nos salvaria (o que
não muda nada para quem não pode participar).
Assim essa exclusão obriga os que não a evitam o suficiente,
os que não tentam desse modo viver de um modo humano,
ao completo silêncio. Esse silêncio, contudo, pode-se dizer,
era buscado de modo consciente - da maneira como nos diz

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Bataille - pela humanidade antiga com a divisão da vida social
entre as esferas do PROFANO e do SAGRADO.1 A humani-
dade sempre sentiu a necessidade de doar uma parte do seu
tempo a movimentos loucos, irracionais (que nos levam pró-
ximos aos animais) que na antiguidade não deixavam de ter
um caráter religioso, sagrado, na forma de movimentos que do
ponto de vista do nosso cotidiano, no qual somos seres profa-
nos, trabalhadores, HUMANOS, nunca podem ser inteiramen-
te explicados - e dessa maneira nos levam ao silêncio. É como
se o ser humano antigo guardasse ainda o sentimento de que
sua necessidade de se afastar da vida imanente (vida oposta ao
trabalho) devesse ser só um modo de ainda estar nela. Não um
modo de superá-la mas de apenas dar-lhe um elemento a mais.
Isso é o que as religiões da antiguidade de alguma manei-
ra garantiam. Porém mais tarde esse sentimento antigo come-
çou a se perder, se perdeu tanto que o ser humano começou,
com o cristianismo, a tomar esse afastamento mesmo como
sua própria finalidade - na forma do homem que só aceita se
sentir animal enquanto cordeiro que serve e trabalha. Finali-
dade que passou a ser então chamada de Deus. Consequente-
mente a frustração inevitável de uma finalidade tão medíocre
como essa só poderia se cansar e - mas sem deixar ainda ex-
plodir o animal que assim ficou guardado por milênios - veio
no fim das contas a apenas manter o trabalho e a servidão por

1.  Seguiremos com esse vocabulário de Bataille, o qual tomou emprestado do seu amigo
Roger Caillois, apesar de tais termos estarem ligados a tradições que não necessariamente
concordamos – já que não por isso, nos parece, perdem algo da riqueza teórica que tanto
Bataille como Caillois encontram com eles. Usaremos esses termos como órfãos de qual-
quer precedência.

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si mesmos, sem mais nenhum sentimento animal, sem mais
qualquer esperança que compensasse a redução com uma pro-
messa de plenitude que viesse através do sentimento do ani-
mal, do cordeiro (o que, mesmo de modo mentiroso, Deus,
que a partir daí todos começaram a desacreditar, ainda nos
prometia). De modo que o ser humano, após milênios de luta
cristã contra a integralidade de sua animalidade, nem inspi-
rava mais o fascínio de um animal obediente E ASSIM ELE
ACEITOU SER EM SI APENAS TRABALHO E SERVIDÃO.
Dessa maneira vemos que aquilo que desde o começo PRE-
CISOU sumir do que a percepção humana considerava existir,
desde um instinto de recuperar o que se tornou inexistente,
através de um cansaço, foi cada vez mais sendo tomado apenas
como inexistente mesmo. Então a posição central da ciência
em nossa vida se tornou o ápice desse conformismo.
No melhor dos casos os conceitos novos de matéria e ener-
gia escura nos assinalam hoje nossa limitação perceptiva, po-
rém através da própria ciência como nossa intermediária para
nos adentrarmos nesse imperceptível, enquanto as formas de
nos adentrarmos não-científicas (ou seja, irracionais) aquelas
que teríamos se nos víssemos como animais, continuam sem
existir para nós. Mas muito mais que qualquer outra época.

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O que acabamos de descrever, através de uma referência a Ba-
taille e de um modo que nos parece coerente com seu pensa-
mento, é o movimento em que o ser humano lentamente foi
caindo numa relação cada vez mais decadente com aquilo que
ele não consegue perceber inteiramente - e em certo ponto
trata como se não existisse - mas que, estando na base do que
o liga ao animal, enquanto realidade totalmente irracional, o
atrai como parte da sua própria essência. Tal como apenas as-
sinalamos acima, esse movimento, para além da experiência
da antiguidade, teve dois estágios de decadência:

1) O primeiro, o cristianismo, que foi o primeiro grande re-


chaço do ser humano com essa parte da sua essência, se deu
através da redução da sua própria irracionalidade à obediên-
cia do cordeiro. Nessa redução ele apenas passou a buscar a
irracionalidade que pode existir no animal de rebanho (na
forma do amor ao próximo). Desse modo ele passou a se to-
mar como uma finalidade à parte de toda imanência (que
é infinitamente indomável), assim de toda vida puramente

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irracional, da sua própria essência puramente irracional, que
o confunde com a totalidade imanente, em nome de uma
existência humana - isto é, racional e trabalhadora - que só
porque se permite a irracionalidade enquanto aquilo que não
o compromete, que não o torna muito desumano, acredita
então estar acima de todo o resto da vida imanente dos ani-
mais. Consequentemente o ser humano passou a tomar o seu
próprio lado racional como sendo o mesmo que esse tipo de
irracionalidade, como se fosse uma coisa só, como se nisso se
encontrasse a finalidade da vida mesma (Deus) sendo ele o
único animal que passou a viver de acordo com esta (o filho
de Deus). Considerando dessa maneira o resto da vida animal,
o resto da vida animal que há em si, como o Mal.

2) O segundo estágio da decadência humana se deu então com


o advento do tempo da razão e da ciência. Pode parecer es-
tranho que se diga isso desde que esse foi o tempo em que o
mundo se viu “livre” do predomínio da fé cristã e dos arcaís-
mos anteriores. Contudo o modo como o ser humano se viu
“livre” não foi senão através do aumento da própria exclusão
que o cristianismo já havia começado. Se o cristianismo con-
denou uma parte da irracionalidade da vida, o mundo que se
seguiu, o mundo da razão - profano - condenou desse modo
a irracionalidade por inteira. Este mundo, assim, nem sequer
precisou mais falar de Mal, afinal a exclusão se dando intei-
ramente não tem mais necessidade de considerar a existência
do que condena. Enfim, pode-se dizer que foi dessa maneira
que chegamos ao estágio mais decadente da nossa relação

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com nossa própria essência - irracional - que a partir de en-
tão abre uma realidade sem real valor de existência para nós,
realidade que ao menos a humanidade antiga parecia estar
mais próxima, ao ponto de ver nela - através das formas da
religião - algo a ser buscado (por cima do ser humano).

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Tentemos agora, através dos conceitos de Bataille, descrever
melhor esse movimento de decadência –
Podemos ver que com Bataille a diferença entre a religiosi-
dade cristã e a religiosidade antiga está nas suas relações com
esta parte da vida que calcula e trabalha e que, consequente-
mente, instaura as proibições. Ou seja, com a parte PROFANA
(que proibindo estraga nossa sensação de fluidez natural, nos
obrigando dessa maneira a vivermos sob cálculos e limites, nos
restringindo enquanto animais irracionais, nos dando o sen-
timento de termos sido profanados). Segundo ele o mundo
profano sempre se apoiou nas proibições, com as quais impôs
seu limite. Contudo o profano, desse modo, também sempre
retirou da natureza e determinou aquilo que seria o mundo
SAGRADO, como a possibilidade de retornamos ao elemento
imanente da natureza (do qual as proibições e o trabalho nos
afastaram). Quer dizer, sempre foi através desse aspecto profa-
no que, desde os primórdios da humanidade, o homem não só
moldou a natureza (o que inclui a si próprio) como, e em con-
sequência da própria imposição, determinou também o nosso

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retorno ao seu elemento, entendido então como algo sagrado
(que não é mais simplesmente a natureza, mas a consequência
da nossa separação que nos reconecta com ela – por exemplo,
um lobo que não se intimida com os limites humanos, que nos
separou dele, e invade uma aldeia, ele nos dá um sentimento
divino... pois nesse momento sentimos que, apesar de sermos
seres profanos, trabalhadores, diferentes dos animais, estamos
imersos no elemento da natureza que invade; mas sentimos
isso a partir do próprio trabalho humano, a partir do próprio
ponto de vista da aldeia, que no limite não pode suportar
aquela invasão, o lobo, quase como não poderia suportar a pre-
sença de um deus, independentemente de o abater ou não).
Assim o sagrado é o que subsiste ao profano de três modos:
1) como o mundo natural que não é inteiramente redutível ao
mundo profano; 2) como a negação mesma do mundo profa-
no; 3) e, no contramovimento suscitado pela oposição, como
resultado do mundo profano – tendo por origem e razão de ser
o nascimento duma nova ordem de coisas. Assim, ao subsistir,
o mundo sagrado se torna explosão de violência, na forma da
intromissão do elemento imanente em nossa vida de trabalho,
mas, enquanto transgressões que se irrompem, praticadas por
homens organizadamente – podendo então se reestabelecer
constantemente a relação entre proibição e transgressão.2
Mas essa é a diferença entre a religiosidade antiga e a religio-
sidade cristã: pois se a primeira extraía das proibições o espírito
da transgressão, a última se opõe ao próprio espírito de trans-
gressão. O cristianismo pretendia um amor que fosse princípio

2.  Bataille comparará essa relação com um motor.

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e fim, onde os homens sendo chamados a amarem-se uns aos
outros estariam transfigurados pela continuidade divina. Esse
movimento, que o cristianismo mantém, nos seria dado na ex-
periência do sagrado. Contudo com a contrapartida de que o
mundo sagrado passou a ser visto como o mundo do trabalho
mesmo – “O mundo divino penetrou o mundo das coisas”.3
O cristianismo fez assim a continuidade entrar no quadro
da descontinuidade: em consequência, nos diz Bataille, ele
“transformou o outro mundo num local onde se prolongavam
todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de mul-
tidões condenadas, tal como Deus, à descontinuidade eterna
de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios,
transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para
sempre arbitrariamente distintos uns dos outros, para sempre
arbitrariamente desligados dessa totalidade do ser à qual era
contudo necessário religa-los.”4 Se trata portanto de uma to-
talidade atomizada onde já não se rompe o isolamento. É que
no próprio amor o isolamento passou a ser definitivo – onde
o caminho da violência que a transgressão traçava se dissipou.

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3. Bataille, O Erotismo, O Cristianismo, tradução de João Bénard da Costa, ed. Antígona,


Lisboa, p.102.
4.  Idem, p.104

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Se o sagrado foi então lançado para o mundo profano nada
mais subsistiu que confessasse claramente o carácter funda-
mental do pecado, da transgressão. De modo que a transgres-
são se tornou o fundamento da decadência do diabo, ao invés
da sua divindade, na expulsão do seu culto do mundo: “ O dia-
bo – o anjo ou o deus da transgressão (da insubmissão e da
revolta) – era expulso do mundo divino. Era de origem divina,
mas, na ordem das coisas cristãs (que prolongava a mitologia
judaica), a transgressão deixava de ser o fundamento da sua
divindade para passar a ser o da sua decadência. O diabo de-
caía do privilégio divino que só havia possuído para se perder.
Rigorosamente falando, não se tinha tornado profano, pois
que conservava do mundo sagrado , donde era originário, um
carácter sobrenatural. Mas não houve nada que se não fizesse
para o privar das consequências da sua qualidade religiosa. O
culto, que nunca deixou de se lhe votar, sobrevivência do culto
das divindades impuras, foi banido do mundo. A morte nas
chamas era prometida a todo aquele que se recusasse a obe-
decer e que extraísse do pecado o poder e o sentimento do

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sagrado. Nada nem ninguém podiam conseguir que Satanás
deixasse de ser divino, mas esta verdade perene era negada com
o rigor dos suplícios. Num culto que sem dúvida havia manti-
do aspectos religiosos, passou-se a ver uma criminosa irrisão da
religião. Na própria medida em que esse culto aparecia como
sagrado, viu-se nele uma profanação.”5 Assim o cristianismo
definiu a seu modo os limites do mundo sagrado.
Se na religião pagã a esfera sagrada se compunha ainda do
puro e do impuro (que se relaciona com o que entendemos
como angelical e diabólico), sendo inclusive o sagrado impuro
fundamento, no cristianismo houve uma quebra nesta esfera: a
impureza passou a ser rejeitada, mas como o cristianismo não
podia rejeitá-la completamente, foi então lançada, para o mun-
do profano – que também se confundia com a pureza, mas
de outro modo. É que a Igreja tinha uma lógica: um aspecto
do profano, o bem, se aliou ao hemisfério puro do sagrado, à
parte divina; e o outro aspecto, o mal, se aliou ao hemisfério
impuro, à parte diabólica. Contudo no primeiro caso o sagra-
do puro ainda era separado do mundo profano por limites
formais, mas não no segundo caso. No cristianismo já não há o
formalismo do sagrado impuro que havia no paganismo. A impu-
reza já não é mais que profana. De modo que com a atenuação
do sentimento do sagrado se presta cada vez menos atenção
ao diabo. Como diz Bataille: “Acredita-se cada vez menos nele,
pode mesmo dizer-se que já se não acredita nele. O que signi-
fica que o sagrado negro, cada vez mais mal definido, deixou
de ter qualquer sentido. O domínio do sagrado reduziu-se ao

5.  Idem, p.105.

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Deus do Bem, cujo limite é o limite da luz: nada mais resta no
domínio do sagrado que seja maldito.”6 Enfim, no cristianismo
a proibição é absoluta.

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6. Idem, p.107.

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Normalmente, ao compararmos a redução cristã com a religio-
sidade antiga, dificilmente não chegamos a conclusões afeta-
das. Contudo a moleza com que tratamos a nós mesmos, e aos
outros, não parece que se justifica sequer aos olhos das antigas
divindades. É certo que com o amor cristão, e também em seu
ódio, o sagrado se reduziu ao limite da luz, limite que, pode-
mos dizer, também foi a fogueira. Segundo o famoso livro me-
dieval Malleus Maleficarum, o demônio pode atuar sobre o cor-
po de uma pessoa, suas faculdades, contudo sem nunca poder
atuar de forma direta sobre seu entendimento e vontade. De
modo que até a vida de Jó pôde ser guardada:
“Há que assinalar que existem dificuldades nessas questões
a respeito do amor e o ódio... Pois estas paixões invadem a von-
tade, que em seu próprio ato sempre é livre, e que não pode ser
forçada por criatura alguma, aparte de Deus, quem a governa.
Do qual resulta evidente que nem o demônio nem uma bruxa,
que atuam segundo esse poder, podem obrigar à vontade de
um homem a amar ou odiar. Uma vez mais, já que a vontade,
como o entendimento, existe de maneira subjetiva na alma, e

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só pode entrar na alma Quem a criou... ainda que o demônio
não possa atuar de forma direta sobre o entendimento e a von-
tade do homem, no entanto, segundo todos os sábios teólogos
do segundo Livro das Sentenças, sobre o tema do poder do de-
mônio, este pode atuar sobre o corpo, ou sobre as faculdades
que lhe pertence ou que lhe é concomitante, seja por meio de
percepções internas ou externas... do contrário, existe a autori-
dade de Jó, e como disse Jeová a Satã: ‘Eis aqui, e está em tuas
mãos’. Isto é, que Jó se encontra em seu poder. Mas isto só se
referia ao corpo, pois Ele disse: ‘Mas guarde sua vida’, isto é, a
mantenha intacta. E esse poder que Ele lhe concedeu sobre
seu corpo, também lhe concedeu sobre todas as faculdades
vinculadas com o corpo, que são as quatro ou cinco percep-
ções exteriores e interiores, a saber: o Bom Sentido, a Fantasia
ou Imaginação, o Pensamento e a Memória.”7
Contudo, vale a pena repararmos no seguinte: se as adver-
tências desse livro, este usado na Inquisição, auxiliaram na re-
dução da influência do demônio - não só no limite da vontade
(pois ele não tinha limite formal) mas no próprio fogo - isto
não pôde ocorrer senão acentuando ainda mais tal influência.
Não crer-lhe era um erro herético. A perseguição luminosa, as-
sim, também alimentava o maldito: “É inútil argumentar que
qualquer resultado de bruxaria possa ser fantasioso e irreal,
porque a fantasia não se consegue sem a busca pelos poderes
do demônio, e é preciso que se tenha estabelecido um contrato

7.  Kramer e Sprenger, Malleus Maleficarum (O martelo das bruxas), Questão: A respeito das
bruxas que copulam com demônios. Porque as mulheres são as principais adeptas às supers-
tições malignas?, O método de pregar às pessoas sobre o amor enaltecido, p. 48.

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com ele, por meio do qual a bruxa, real e verdadeiramente, se
obrigue a ser a serva do diabo e se consagre a ele por inteiro, e
isso não se faz em sonhos, nem sob a influência de ilusão algu-
ma, somente colaborando real e fisicamente com o demônio
e consagrando-se a ele. Pois em verdade, este é o fim de toda
bruxaria: Efetuar encantamentos por meio de olhares seduto-
res ou jogos de palavras, ou qualquer outro feitiço, tudo isso
pertencendo ao diabo.”8 Por outro lado Bataille não deixa de
assinalar em relação ao culto satânico que como só sabemos
dele o que veio das confissões extraídas pelos juízes dos tortu-
rados, nunca poderemos saber ao certo se suas práticas vieram
da imaginação dos inquisidores ou do culto real. Contudo, diz
ele, tudo nos leva a crer que ele realmente existiu. Aliás, se con-
sideramos o próprio Malleus Maleficarum, se a Fantasia ou Ima-
ginação não deixa de ser vulnerável, como todas as faculdades,
à atuação do demônio, podemos afirmar então com Bataille:
“Imaginários ou não, os sabbats corresponderam, de resto, a
uma forma que se impôs à imaginação cristã. Descrevem o
desencadear das paixões que o cristianismo implicava e que
o cristianismo continha; imaginários ou não, o que os sabbats
definem é a situação cristã.”9 Situação esta em que a volúpia do
Mal corresponde com o homem piedoso: ao não haver mais
nenhum formalismo para o maldito, isto é, tendo sido bani-
da completamente a permissão de seu ritual, banimento do

8.  Idem, Questão: Se a crença na existência de seres como as bruxas é parte essencial da fé
católica e manter com obstinação opinião contrária tem um manifesto conteúdo de here-
sia, p.11.
9.  Bataille, O Erotismo, p.110

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próprio fogo, uma imensa possibilidade foi aberta. A redução
ao Mal profano passou a permitir desde então – a profanação.
Podemos entender com isso o aprofundamento nos graus da
perturbação sensual, pois quando o cristianismo proibiu com-
pletamente a transgressão, Satanás era então pecaminoso. Isto
é, havendo o transgressor perdido completamente a possibili-
dade da transgressão (que antes do cristianismo era permitida
organizadamente), ele não podia senão pecar, e apenas como
pecador. A volúpia mergulhava então no Mal. Portanto “ima-
ginárias ou não, as descrições dos sabbats têm um sentido: são
o sonho duma alegria monstruosa.” (Alegria que talvez não
chegue a nós tão fortemente senão através dos livros de um au-
tor posterior que ainda abordaremos, o qual, segundo Bataille,
prolongou esse sonho: o Marquês de Sade.)
Tentemos descrever esse movimento: quando a proibição
se tornou enfim absoluta, o desespero da impossibilidade de
transgredir pôde produzir então uma emoção tão intensa
quanto o corpo invadido completamente pela luz, imagem
que nos leva, evidentemente, à fogueira. Mas assim a luz de
Deus ainda sustentada não deixa de se relacionar com a an-
gústia, que nos leva próximos ao êxtase, de um corpo que não
encontra senão a possibilidade em sua decrepitude, tal como
a predestinação de um monge ou padre. Contudo ainda mais
intensa é, na completa redução do corpo, a tentação então de
lançar-se, em sua própria decrepitude, ainda contra sua única
possibilidade. Movimento que tem que resolver a decrepitude
num só golpe de perecimento, como uma aceleração que, sem
já esperanças de rompimento, não a torne menos que fatal. O

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que assim, nesse lançamento fútil, pode surgir como digno de
veneração, é a veneração completamente reduzida, mas que
permanece então como tentação de produzir a mais alta emo-
ção do que romperia de vez com o limite absoluto.
Emoção evidentemente que não pode surgir sem estar de
antemão condenada, onde seu surgimento mesmo não surge a
não ser como uma perspectiva absurda. Nesse momento, e pela
emoção do que não vai permanecer de modo algum, porque já
não o poderia pelo começo – a invasão da luz pode ser deseja-
da como o melhor intensificador. Como se o quanto maior for,
mais nos deixará tentados ao que não pode ser tentado, a não
ser como inexistente. Portanto o que descrevemos aqui é o mo-
vimento no qual o próprio satanista pode desejar a existência
do Deus do Bem, naquilo mesmo em que é repressor, e senão
como repressor, do mesmo modo em que se tornaria tentador
não desejar a si mesmo a não ser baixo esta repressão.10
Contudo esse movimento parece que não evitou, por fim,
os <<espíritos livres>> (assim os chama Bataille), em contra-
partida à negação da Igreja, negarem igualmente o sagrado da
Igreja. Assim houve, contudo, nessa perspectiva desse movi-
mento, uma dupla perda: “Nessa negação, a Igreja, com o tem-
po, perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença
sagrada: perdeu-o sobretudo na medida em que o diabo, ou o
impuro, deixou de estar na base duma perturbação fundamen-
tal. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar

10.  O que parece que corresponde com a afirmação teológica de Nietzsche: de que Deus
talvez tenha sido a criação do Diabo.

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no Mal.”11 A volúpia, a tentação do Diabo, já não era então
mais a única reduzida – o mundo por inteiro se tornou profa-
no. A consciência do pecado, assim, não se manteve a não ser
ligada à consciência de uma fraude. O Deus do Bem foi tendo
enfraquecida qualquer relação com sua própria evocação dolo-
rosa, carbonizadora; assim como o desespero do sufoco carnal,
quando era ameaçado pela luz incandescente, onde os sentidos
cada vez mais perturbados como as faculdades atingidas pelo
demônio, nos dava ainda o vislumbramento monstruoso de
um erotismo maligno, quer dizer, da festa infernal, vai se afas-
tando então, enfim, da <<certeza de fazer o mal>>, levado ao
estado de coisas onde só pode haver a mecânica animal. O ero-
tismo, como o próprio fedor que atrai o inferno, dificilmente
sobrevive a um mundo livre. Mas, mesmo assim, não é o caso
de lamentarmos – mesmo que, é verdade, enquanto a Igreja
ainda perseguia o pecado imaginamos, conforme a sugestão
teológica, já o aparecimento de uma mitologia semi-cristã:
onde o culto de Satanás cedeu lugar ao culto das divindades
adoradas pelos camponeses medievais. Bataille o afirma: “Em
rigor, não é absurdo postular no diabo um Dionysos redivivus.”
Porém, enfim, já estamos livres do pecado: “ultrapassar uma
situação não pode significar regressos ao ponto de partida”12.
Desde que os espíritos livres profanaram o Deus da Luz, não
deixamos de estar então à nossa própria disposição, e pode-
mos ainda nos abrir à recordação inconsciente da metamor-
fose infindável. Seus aspectos ainda são disponíveis. Mas se a

11.  Bataille, O Erotismo, p.111


12.  Idem, p.111.

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consequência do cristianismo foi a preponderância profana,
onde um sentimento de empobrecimento, como a melancolia
que se sente às vezes quando um combate é atenuado, porque
de certo modo já amávamos o inimigo – a liberdade, tão en-
tediante quanto um banho de moleza, também nos oferece o
relaxamento que o predador aproveita da vítima. Eis seu aspec-
to querido. Por fim pudemos ser, gradativamente, felizmente,
encurralados por uma razão ascendente.
É em tal asfixia que, tal como afirma Bataille, os livros de
Sade prolongam os sonhos dos sabbats, indo aliás até muito
mais longe. Se as narrações dos sabbats corresponderam a uma
procura de pecado, Sade negou então Mal e pecado. Mas, em
contrapartida, fez intervir a idéia de irregularidade. De modo
que podemos dizer que, se Sade introduziu com sua obra nor-
malmente irregularidades escandalosas, insistindo no carácter
irregular do mais simples elemento de atração erótica – tam-
bém foi o primeiro a ter associado a mecânica animal com a
transgressão da lei. Deu assim um primeiro passo, colocando
em jogo os lados heterogêneos da vida humana, que, como di-
zíamos, configuravam a preponderância profana.

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Digamos dessa maneira: o que tornou o mundo profano tão
decepcionante foi apenas ter dado continuação à negação cris-
tã. Assim a Ciência foi colocada facilmente no lugar daquilo
que no passado se considerava como sagrado, servindo para
apaziguar ainda mais a perturbação já apaziguada que o ser
humano podia manter sob as religiões.
No melhor dos casos então, hoje em dia, tomamos a expe-
riência do mundo antigo como aquilo que deve ser recupe-
rado, mas somente na forma de um “humor”, de um “ânimo”,
que nos ajudaria a sair de certos impasses atuais - impasses in-
clusive criados por havermos perdido a sensibilidade de antes.
Daí os nietzscheanos que insistem tanto em evocar algo que
chamam de “Dionísio”, se declarando em tudo “dionisíacos”...
Porém o que eles compreendem com esse nome não está
mais próximo do terror de uma realidade antiga que se afir-
maria de modo inteiramente autônomo a nós, da liberdade
da nossa mente, da liberdade que nos atribuímos hoje, intei-
ramente à parte dos propósitos iluminados das cabeças dos
“emancipados” e “nietzscheanos”.

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Evitemos tirar conclusões sobre a amplidão do que Nietzs-
che considerou como Dionísio. Mas o temor que esse nome
inspirava a um grego antigo não guarda mais relação com o
que nos inspira hoje. De modo algum.
Para além da falsificação que a esquerda sempre fez com
Nietzsche (não só os nazistas e os neoliberais o falsificaram),
tentando de todos modos conciliar sua filosofia com preocu-
pações sociais que não lhe pertencem, aquilo que se chama
hoje de “dionisíaco” não passa, na verdade, da aspiração por
uma nova ordem social que possa impedir enfim todo abuso
da desigualdade (igualando todos através do que todos supos-
tamente seriam “dionisíacos”), usando assim o nome de Dioní-
sio em vão, como se ele fosse quase um justiceiro, um policial
que na verdade nos traz a igualdade (os que usam seu nome
querem no fundo é a POLÍCIA - claro que sem jamais dizer
isso, afinal esperam que a filosofia em si faça esse papel).

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Segundo Bataille a vida humana é composta de dois lados he-
terogêneos: um lado sensato e outro violento: “nos extremos,
em certo sentido, a existência é, fundamentalmente honesta e
regular. O trabalho, o cuidado com os filhos, a benevolência e
a lealdade regulam as relações dos homens entre si. No sentido
contrário, a violência reina sem limites, os homens pilham e
incendeiam, matam, violam e supliciam”.13
Podemos dizer que essa composição nos obriga então a cons-
tatar que o nosso aspecto regular - este que nos separou dos ani-
mais, que instaurou o reino do PROFANO, ao nos permitir a
permanência contínua das ações que desenvolveram as primei-
ras ferramentas e assim o início da vida do trabalho humano
- que esse aspecto não é o bastante para nos descrever. A vida
humana, para além dele, sempre se manifestará de modo oposto
ao trabalho, nem que para isso chegue a extremos de violência.
Dessa maneira a descrição de Bataille nos leva a concluir
que o ser humano não é mais caracterizado pela sua capaci-
dade de trabalhar do que pelo que ele é apesar dela. Assim se

13.  Bataille, O Erotismo, p.164.

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a tradição antropológica coloca o trabalho como a origem in-
contestada do ser humano - nada nos parece impedir, inversa-
mente, de afirmar também que esta origem se dá na verdade
no próprio animal que quis se arriscar sobre a parte da vida
mais hostil a si - – se deixando tornar cada vez mais um ser
regular (isto é previsível, o que é perigoso para qualquer ani-
mal) para ganhar então a possibilidade de percorrer um terre-
no inesperado, aumentando o seu poder enquanto ANIMAL.
Mas o quanto podemos valorizar o aspecto animal do hu-
mano, este que o torna heterogêneo consigo mesmo, é o que
decide como entendemos a definição de humano. De modo
que pode-se dizer que Bataille dedicou sua obra a elaborar os
fundamentos que devolveriam a animalidade do ser humano.
Nisso a importância que ele dá ao erotismo é crucial para esse
novo entendimento e, por isso mesmo, fruto de um imenso
mau estar (que não deve ser desprezado).
O erotismo, enquanto aquilo que nos conduz ao nosso
próprio aspecto heterogêneo, animal, não pode deixar de se
manifestar na forma mais repugnante para a forma de enten-
dimento regular humana - a forma racional. Essa repugnância
(que é a repugnância de uma parte inevitável que nos compõe)
certamente fez Bataille virar os olhos para a obra de Sade, e
tomá-la inclusive como “incontornável”. Mas também é o que
fez dar a ela um papel decisivo no confronto que o mundo in-
teiramente profano abriu com a animalidade perdida.
Para dizer de um modo direto - esta obra é tão incontorná-
vel quanto APÁTICA. Porém é por isso mesmo que ela pôde
reestabelecer uma relação entre razão e violência.

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O mundo que se seguiu ao cristianismo não deixou mais
nenhuma margem para uma irreverência que prejudicasse a
razão coletiva que precisa desde agora ser mantida para que o
mundo exista apenas como uma mecânica que se volta sem bre-
chas ao trabalho. Tal irreverência, portanto, não pode penetrar
nossa existência sem evocar um sentimento de total apatia pela
vida humana. Contudo se não deixamos de ser seres compostos,
jamais reduzidos inteiramente à regularidade que trabalha, o
nosso aspecto avesso necessariamente nos conduzirá a um con-
fronto que - nesse mundo, configurado de modo como nunca
excludente em relação a esta composição - irá consequentemen-
te carregar uma apatia inédita para o próprio ser humano.
Pode-se dizer então que não seria possível, como Sade o fez,
reintroduzir o elemento heterogêneo em nossa configuração
profana sem se tomar a própria humanidade com alvo. Mas
também o mau estar que Bataille provoca e a escassez de serie-
dade filosófica que se lhe dão. Seu tempo foi o de um confron-
to generalizado com o fascismo, onde sua luta foi sobretudo
contra a tendência de apropriação fascista de Nietzsche. Ele,
nessa situação, se impôs contra tal apropriação através de um
grito erótico. Tomando o erotismo mesmo como uma oposi-
ção diametral ao fascismo - nisso, na verdade, até escapando
da filosofia de Nietzsche, que não tinha esse apelo. Assim ele
elevou a importância da vida erótica de um modo exagerado,
não percebendo o elo que não se desfaz.
Daí autores como Deleuze, Guattari, Foucault, recentemen-
te Agamben, e outros tenham se mantido reticentes, ainda que
não de modo expresso, com esta obra. Eles tomaram esta obra

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como um apelo antifascista, porém não por isso se consagra-
ram ao seu peso teórico como podiam ter feito. Esta obra ficou
na verdade desde seu começo isolada filosoficamente. Talvez
com a exceção de Maurice Blanchot, apenas se tangenciou a
parte propriamente teórica.
Digamos: Foucault reconheceu a formulação dos proble-
mas fundamentais por Bataille, porém não os desenvolveu;
Agamben se ateve ao elo que Bataille deixou exposto com o
poder soberano, ignorando contudo a importância fundamen-
tal que tornou necessário tal exposição (que só foi reconheci-
da por ele em parte); Deleuze e Guattari não reconheceram o
quanto o que eles mesmo escreveram se devia ao que Bataille
já havia formulado antes deles, de modo que O Anti-Édipo ja-
mais teria sido escrito sem A Parte Maldita, que o antecipou
em tudo, mantendo nisso um silêncio vingativo.
Enfim, em geral todos se ativeram mais ao apelo terrível
desta obra (muito mais próximo de Sade inclusive do que de
Nietzsche) mas em alguma medida quiseram se manter cegos
à sua riqueza teórica que talvez tenha sido maior do que a de
qualquer filósofo anterior e posterior. Assim pode-se dizer
nesse sentido que Bataille sofreu aquilo mesmo que apontou
em Sade. Como ele diz, ou há aqueles que dizem que gostam
de Sade ou ele é tratado como um perigo para as próprias fi-
lhas. Mas em ambos os casos não se aborda de modo suficien-
temente sério sua obra.
Essa seriedade, para além de uma questão de gosto ou de-
fesa, percebe a violência de Sade em nossa própria consciên-
cia. Só que essa consciência é a consciência do mundo profano

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- que não contém apenas a parte que, contra a violência, nos faz
cuidarmos de nós mesmos mas que é o cuidado em si, como
fim último. Numa situação dessas somente uma violência que
apareça igualmente desmedida, o suficiente para abrir um ca-
minho de APATIA, pode nos conduzir novamente à integrali-
dade da nossa existência (que é essencialmente composta).
Certamente é essa implicação da consciência com uma
abertura ilimitadamente apática que, em prolongamento com
Sade, tomou a obra de Bataille como alvo de uma prudência
que se afasta. Da qual se pode inclusive se afastar gostando.
Mas o que sobretudo parece provocar esse afastamento é
essa abertura ser nomeada por Bataille como o SAGRADO.
O sagrado, nesse confronto mais recente, toma parte desse
caminho de apatia. Seu horizonte surge mesmo como um to-
tal desprezo por aquilo de mais precioso para o ser humano
atual, este que fez sua liberdade equivaler a uma disposição
racional.
Dizendo diretamente: num mundo que se propôs a se
salvar pela razão tudo o que podemos lembrar com o nome
de sagrado nos revira o estômago como se estivéssemos nos
rendendo. Nos apegamos então à razão e tentamos decifrar
o que é que se diz desse modo. Mas em último termo o que
queremos ter certeza é que não estamos sendo conduzidos a
um mar apenas escuro, sem liberdade, predatório apenas, onde
nada resta do nosso discernimento, do discernimento que dá
liberdade, que palita os dentes com tudo que dá a forma ao
que acreditamos ser uma vida digna.

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Essa deve ser a sensação de qualquer mente que procura a
liberdade através de uma negação das religiões de modo ra-
cional. Pois esta é a mente do mundo profano que contra o
último abuso religioso (o Deus cristão) nos salvou através da
negação do que neste ainda desrespeitava as relações humanas.
Mas isso quer dizer que a incapacidade resultante em relação
ao que desrespeita as relações humanas (isto é, a vida mesma)
não só depende de que a apatia contrária a tudo que dignifi-
camos NÃO EXISTA como a vê como o mesmo terror sagrado
do qual o nosso mundo nos salvou.
Dessa maneira a obra de Bataille, podemos dizer, encontra
fundamentos contrários à ideia de uma formação humana
prioritariamente constituída pelo trabalho e pela razão através
de um pensamento do sagrado que, parece, não foi desenvol-
vido pelos filósofos com a devida seriedade - sem quererem se
dar conta do quanto seus pensamentos estariam assim com-
prometidos. O sagrado é um conceito que compromete todos
os outros na medida em que nos permite apontar aquilo que
precisamente não pode ter lugar em nosso tempo.
Mas esse desprezo sobre o qual, normalmente os filósofos
trabalham e criam conceitos, não permite então que o que não
pode existir para nós tenha outro acesso que não seja o das
formas tradicionais da religião - hoje em dia sustentadas de
modo melancólico - ao invés de confrontar abertamente esse
desprezo. Mas o que viria com esse confronto é tão irreal para
nós quanto uma realidade deixada totalmente à parte (apenas
considerada por religiosos e místicos). Com exceção talvez
do conceito de Vontade de Poder, ao abranger de modo mais

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completo a necessidade de apatia, este talvez tenha nos apro-
ximado mais dessa realidade que ainda está para se abrir para
nós– a qual parece coincidir com a de todos os feiticeiros.

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Não queremos com isso desvalorizar o que o mundo profano
evidentemente tem de atraente. Enquanto negação de tudo
que aproxima o humano do animal, de tudo que o faz se sen-
tir não só imerso na imanência mas inclusive tomá-la como
seu próprio fim, como aquilo no qual deve desembocar toda
civilização, como apenas aquilo que pode dar sentido à exis-
tência mesma da civilização – o mundo profano não deixa
ainda de ser uma possibilidade aberta da experiência huma-
na e, portanto, deve ser considerado pelo que pode favorecer
a um exercício de liberdade.
Esse exercício, enquanto prolongamento da negação cristã,
é aquele que vem a se dar com o ser humano que, já sem ne-
nhuma aspiração que possa sobrepassar sua razão, alcança des-
sa maneira o extremo da sua insatisfação. Desse modo a facili-
dade com que ele havia negado antes Deus passa a convidá-lo
a uma exaltação bélica. Quer dizer, ao aceitar ser fortemente
subjugado pela razão e ciência, ele irá querer ao menos con-
verter essa subjugação em algo que expresse sua própria agres-
sividade, o que o permitiria sair um pouco desse marasmo em

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que vive desde o começo do cristianismo. Essa agressividade
veio a se desenvolver então, primeiramente, de modo “tradicio-
nalmente bélico”, isto é, em forma de produção de guerras que
tiraram proveito da racionalização dominante, ou num desen-
volvimento tecnológico cada vez mais perigoso e destrutivo.
Contudo essa agressividade não poderia permanecer ape-
nas nessas vias profanas, ao fim a razão mesma que ainda cons-
titui essas vias precisava virar seu alvo. É como se a satisfação
que tais vias permitem para a agressividade humana começas-
se a ser procurada também de modo mais direto, sem toda a
preparação da guerra e da tecnologia, onde a própria prepara-
ção teria que permitir então a agressividade. Assim o caminho
para a guerra e para a tecnologia começou a nos tentar para
finalidades cada vez menos justificáveis, se abrindo um hori-
zonte no qual a guerra e a tecnologia seriam substituídas ape-
nas por atos loucos. A organização racional, a capacidade de se
coordenar exércitos, empreendimentos, estudos, passou a po-
der se oferecer como instrumento para as transgressões mais
variadas. O empreendimento bélico, desse modo, passou a po-
der ser trocado pela forma da agressividade que poderia se dar
em simples atos, como se a irregularidade que esses atos pudes-
sem ganhar fosse o novo modo possível, no mundo profano,
da guerra – que no lugar de levar massas inteiras confrontarem
a razão dominante através de uma exposição coletiva ao peri-
go, esse confronto pudesse se dar então apenas em pequenos
atos de uma única pessoa solitária. No lugar de povos que se
oferecem à mútua violência para - independente dos motivos
- alcançarem um rompimento com a razão profana, liberando

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pelo menos assim sua irracionalidade, agora as pequenas par-
tes do corpo de qualquer pessoa é que ganharam essa possibili-
dade de se violentarem, com a mesma disciplina dos exércitos.
Ao fim é como se a rebelião que se procurava com a organiza-
ção das guerras tivesse passado a ser possível, a partir de agora,
de um modo direto, sem se desviar mais pelas grandes organi-
zações, sem passar mais pelas organizações da própria institui-
ção da guerra, se dando em qualquer parte, até em uma única
pessoa, nas pequenas partes do seu corpo, que se dividem as-
sim como as nações.
Essa é a “guerra final”, a que chega na matéria em si, e é esta
que quisemos apontar com as irregularidades de Sade na lite-
ratura. De modo em que, a partir do próprio caráter científico
do homem, elas acabam levando - como sua última consequên-
cia - à possibilidade total de abuso do homem pelo homem.
Foi assim que Sade elevou a figura do burguês como uma
individualidade que se sobrepõe aos limites comportados do
homem da razão e da ciência. Como uma individualidade que,
imersa na guerra da matéria, usa sem limites para si toda pro-
fanação social, transformando o mundo industrializado num
mero meio de prazeres individuais que negam qualquer respon-
sabilidade para com o todo da sociedade. O que não deixa de
ser - na forma de paixões que não se deixam reduzir ao medo
coletivo - aquilo que deveria ser exaltado segundo a máxima de
Nietzsche, que diz: “os fortes devem ser defendidos dos fracos”.
Essa liberdade da utilização da mecânica humana, que im-
plica também em introduções de OPRESSÕES IRREGULA-
RES nessa mecânica (entre as quais a sobreposição de uma

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aristocracia que teria se livrado das limitações do mundo profa-
no - realizando um projeto ao mesmo tempo nietzscheano e sa-
diano), é o que para Bataille abriria o horizonte que nos religa à
integralidade da nossa existência - evocando o mesmo sentimen-
to que a humanidade antiga tomava como moral e religioso.
Ainda que esse sentimento também se desse a respeito dos
senhores de escravos, tomados como homens próximos ao di-
vino (sentimento aliás que o cristianismo não deixou de pro-
longar com as colonizações), ainda que esse sentimento perce-
ba a escravidão em si mesma apenas como uma variação das
forças que nos conduz ao sobre-humano, ainda que esse tema
permaneça como uma ferida aberta para nós, se pode dizer
que esse sentimento é então de todos modos, por mais doloro-
so que soe, DE UMA EMANCIPAÇÃO DA ESPÉCIE.
Aquilo que Nietzsche tenta evocar com o termo super-
-homem ou além-do-homem se refere sobretudo a um estado
superior de nossa existência desde que ela alcança sua integra-
lidade (o que implica também na integralidade da maldade,
do prazer de fazer o outro sofrer). Mas tudo isso ainda é muito
pouco para compreendermos a situação humana na qual es-
tamos. Seria necessário, além disso, recorrermos a um outro
estado de existência na qual estamos envolvidos numa outra
relação com os outros, inapercebida pelos filósofos atuais.

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Para tentarmos relacionar essa experiência com uma forma de
filosofia mais respeitada, considerada importante para o pensa-
mento tradicional e acadêmico, seria interessante abordarmos o
modo como Adorno e Horkheimer aproximaram Sade e Kant.
Na Dialética do Esclarecimento, segundo Adorno e Horkhei-
mer, Sade realizou empiricamente o que Kant fundamentou
transcendentalmente: ou seja, a intuição do ser sob o aspecto
da manipulação e da administração. São as pirâmides de gi-
nastas - as quais servem de modelo para as equipes esportivas
modernas - e que se encontram “nos teams sexuais de Juliette,
onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do cor-
po é desdenhada, nenhuma função permanece inativa”.
Há aí, para Adorno e Horkheimer, tal como as futuras
equipes esportivas, o anúncio de uma forma de organização
integral da vida – pela própria razão calculadora. Kant tenta-
va ainda derivar da razão o dever do respeito mútuo de uma
lei - o que, para os autores, não encontra nenhum apoio na
crítica - contudo com Sade a razão está completamente

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funcionalizada: o que não só interessa a sociedade industriali-
zada, mas é o que a ordem totalitária vem a instalar.
No esclarecimento a natureza é amaldiçoada, sua influên-
cia é escravidão. Assim os homens se desembaraçam da mi-
tologia, que só pode conhecer o espírito na natureza – mais
particularmente a mitologia do catolicismo: a doutrina da
ordo e a religião popular pagã que continuava viajando à sua
sombra. Tal como bem diz o príncipe de Sade, como exemplo
de administração: “...ateizai e desmoralizai incessantemente o
povo que quereis subjugar; enquanto ele não adorar um deus
diverso do vosso, não tiver costumes diferentes dos vossos,
sereis sempre seu soberano... em compensação deixai a ele
a mais extensa faculdade criminal; puni-o somente quando
seus dardos se dirigirem contra vós.”14
Assim a razão esclarecida se desembaraça como economia
de mercado, como a potência em que ela se destroça. O que
desse modo domina no esclarecimento se libera então como
mercado livre, sendo este mesmo o horror que tragará o su-
jeito burguês e a sociedade. Já a utopia, tal como uma ideia
de associação de homens livres, passa a merecer toda fúria

14.  Marquês de Sade, Histoire de Juliette. Ou em outra fala do príncipe: “...é pelo mais extre-
mo terror que é preciso substituir as quimeras religiosas. Liberte-se o povo do temor a um
inferno futuro, e ele se entregará em seguida, destruído o medo, a tudo. Em vez disso, subs-
titua-se esse pavor quimérico por leis penais de uma severidade prodigiosa e que atinjam a
ele apenas. Que importa ao rico a ideia de um freio que não cai jamais sobre sua cabeça, se
ele compra com essa vã aparência o direito de atormentar todos os que vivem sob seu jugo?
Não encontraremos ninguém nessa classe que não permita que se imponha a ele a mais
densa sombra da tirania, desde que sua realidade recaia sobre os outros.” Citado por Adorno
e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, tradução de Guido Antonio de Almeida, ed.
Zahar, Rio de Janeiro, pp.76, 77.

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da ratio, pelo mito que é. Mas é obedecendo ao seu próprio
princípio que o esclarecimento não consegue se deter nem
mesmo diante do mínimo de fé sem o qual o mundo bur-
guês não poderia subsistir, de modo que se torna assim opres-
sivo. A aristocracia, portanto, era-lhe uma aliada possível – de
modo que a filosofia - após ter proclamado a virtude burguesa
e a filantropia - retorna enfim ao que havia antes meramente
tomado como mentira: a autoridade e a hierarquia. O esclare-
cimento então, já sem argumentos, pode enfim, e desse modo,
perverter a si mesmo: “Atrelado ao modo de produção domi-
nante, o esclarecimento, que se empenha em solapar a ordem
tornada repressiva, dissolve-se a si mesmo”.15
Os dirigentes, na totalidade da ordem burguesa, evidente-
mente se conservam lutando pelo poder fascista e, os indiví-
duos, se adaptando a qualquer preço à injustiça.16 Dessa ma-
neira é que o fascismo libera o que ainda se ligava ao respeito
e amor recíproco kantianos pelo controle da própria classe
burguesa17 (que, aliás, jamais consideraria como esclarecido al-
guém que deixasse escapar um lucro meramente pelo motivo
kantiano do respeito à mera forma da lei – senão um supers-
ticioso, um tolo). O fascismo só se permitiu proteger o mun-
do burguês enquanto a concentração econômica não havia
progredido o suficiente, mas, estando finalmente liberto desta
necessidade, pôde enfim poupar o povo dos sentimentos mo-
rais, através da disciplina férrea – de modo que “em oposição

15.  Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, p.80.


16.  Idem, p.78.
17.  Idem, p.75.

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ao imperativo categórico e em harmonia tanto mais profunda
com a razão pura, ele trata os homens como coisas, centros de
comportamentos”.18 Passa a ser possível finalmente uma orga-
nização integral da vida, como as futuras equipes esportivas.
É dessa passagem da burguesia aos trustes totalitários que,
afirmam os autores, Sade teria erigido um primeiro (frühes)
monumento a sentido de planejamento (Planen). Contudo
eles assim nos deixam entender que se cumpriu a intenção
inicial de Kant, de um entendimento dirigido apenas pela
razão, sem a direção de outrem – como passagem da meno-
ridade à maioridade: “A obra do marquês de Sade mostra
o ‘entendimento sem a direção de outrem’, isto é, o sujeito
burguês liberto de toda tutela”. A razão tornada então puro
e simples órgão, rebaixado à natureza, se tornou ela mesma
assim uma finalidade sem fim, que se atrela a todos os fins,
ou seja, o plano considerado em si mesmo.19
Com o planejamento o esclarecimento deu mais um passo
na linha da destruição e da civilização, dos progressos violen-
tos ao longo do desenvolvimento humano – se distinguindo,
portanto, de toda desmitologização anterior. Até mesmo a
obra de Kant, comparada com a obra de Sade, assim como a de
Nietzsche, passa a aparecer então como uma revogação do seu
próprio pensamento.20
Vemos como Adorno e Horkheimer se referem à perso-
nagem de Sade, Juliette, como uma excelente manejadora do

18. Idem.
19.  Idem, p.77.
20.  Idem, p.80.

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órgão do pensamento racional – como uma amante do siste-
ma e coerência: “No que concerne ao autodomínio, suas ins-
truções estão para as de Kant, às vezes, assim como a aplicação
especial está para o princípio.” É desse modo que ela disserta
sobre a autodisciplina do criminoso: “Primeiro, imagine seu
plano com vários dias de antecedência, reflita sobre todas as
consequências, examine com atenção o que poderá lhe ser
útil... o que seria suscetível de traí-la, e pese essas coisas com o
mesmo sangue-frio como se tivesse a certeza de ser descober-
ta.”21 Podemos entender a afirmação de Juliette como a con-
centração na razão do que se desvia com a emoção, que pode
enfraquecer, portanto, a execução criminosa: não deixando
então a razão se submeter a nenhum fim e ao mesmo tempo
a impondo como finalidade, como plano, pelo sangue-frio. A
razão insubmissa pode assim, tem que poder, ser a mais crimi-
nosa, de modo que o crime a libera da submissão, a não ser da
submissão que ela mesma dá pelo seu próprio funcionamen-
to, que ela impõe. Evidentemente o que mais oferece perigo à
razão é a possibilidade da sua própria ruína, ou seja, o crime
descoberto, cuja emoção pode prejudicar a imaginação do pla-
no – portanto é essencial tomar essa ruína de antemão para
exercitar o sangue-frio com ela, para que se saiba se é possível
suportar até o fim sem nenhum desvio, isto é, manter o funcio-
namento racional inabalado ainda que pela pior emoção: que
viria da sua ruína. Mas assim já nada mais pode dirigir senão a
razão, o que, como sabemos, era a própria exigência de Kant –
ele para quem o entusiasmo também era algo mau, tal como a

21.  Marquês de Sade, Histoire de Juliette. Citado por Adorno e Horkheimer, Idem, p.81.

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calma e a determinação constituíam a força da virtude: “Tal é o
estado de saúde na vida moral; ao contrário, a emoção, mesmo
quando é excitada pela representação do bem, é uma brilhante
e instantânea aparição que deixa atrás de si a lassidão.”22
Eis aqui, em Kant, o dever da apatia: ela que contudo, e
tal como para Sade, não se confundirá com a insensibilidade,
no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. Só que se em
Kant a apatia é ainda um pressuposto da virtude, para a amiga
de Juliette, Clairwil, a relação passa a ser com o vício: “Minha
alma é dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível
à feliz apatia de que desfruto. Ó Juliette,... tu te enganas tal-
vez sobre essa sensibilidade perigosa de que se orgulham tanto
imbecis.”23 A apatia, dizem Adorno e Horkheimer, surge nos
momentos decisivos da história burguesa e mesmo da Anti-
guidade: como um dar-se conta da própria impotência – o que
“torna mais fácil para os privilegiados, em face do sofrimento
dos outros, enfrentar as ameaças a si próprios.”24
Do mesmo modo que, para a razão formalista, a liberdade
de remorsos é essencial, pois o arrependimento é de um passa-
do que na verdade é um nada, precisando antes ser prevenido
como o faz a burguesia. Juliette assim ama o que a razão permi-
te. De modo que, ao estar liberada da virtude kantiana, o pro-
to-histórico só pode permanecer nela subterrâneo. O proto-his-
tórico é considerado pela civilização tabu, tal como a burguesia

22.  Kant, Metaphysische Anfänge der Tungendlehre. Citado por Adorno e Horkheimer,
Idem, p.82.
23.  Marquês de Sade, Histoire de Juliette. Citado por Adorno e Horkheimer, Idem.
24.  Marquês de Sade, Histoire de Juliette. Citado por Adorno e Horkheimer, Idem.

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se previne do arrependimento: o que o permite, ao carregar o
estigma da bestialidade, se tornar um comportamento destru-
tivo. Juliette não o pratica senão como tabu. Mas se mantendo
sob o tabu, não é mais primitivo mas bestial. Ela encarna assim
o amor intellectualis diaboli, que, como explicam os autores, é
esse prazer em derrotar a civilização com as próprias armas. Ju-
liette assim tira as consequências que a burguesia quis evitar.
O que Adorno e Horkheimer encontram na passagem da
razão burguesa ao fascismo é levado, portanto, às consequên-
cias de Juliette (ela que já não evita o peso da razão). Com o es-
clarecimento tudo ao fim se dissipa à luz da razão. Felizmente,
nessa dissipação, o catolicismo é também uma parte como um
resto de mitologia (e talvez, como seria o desejável, mais como
mitologia do que um modo de dominação) . É verdade que Ju-
liette se dedica à faina do sacrilégio, que também os católicos
têm no sangue desde os tempos arcaicos – mas ao fazê-lo como
o que só pode ser mantido proibido, como o que só pode ser
mantido tabu - intensificando assim a potência destruidora do
sacrilégio - ela apenas se dedica ao sacrilégio então esclareci-
damente, isto é, com a própria potência da razão formalista,
potência, evidentemente, desmitologizante. Não recusando
tampouco o predomínio da sua força administrativa.

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Se o mundo da razão surge com o assassinato de Deus, se nos-
sa tarefa é a partir de agora seguir adiante com um mundo no
qual Deus está morto, a razão, livre de toda divindade, deve
confrontar o abismo da sua própria possibilidade ilimitada. Si-
tuação que não deixa de nos levar ao fascínio.
As relações tornadas inteiramente racionais e mecânicas de-
vem agora, a partir apenas da sua capacidade administrativa, da-
rem conta do que apenas a irreverência humana, que se dava o
direito de num momento suspender a razão, podia lidar – e per-
mitir assim uma chance de não enlouquecermos simplesmente.
Mas isso quer dizer que a razão passou a se atribuir uma
tarefa heroica de rechaçar a loucura nos mais altos graus da sua
própria impotência. Isso implicou enfim numa irreverência do
próprio ser humano como racional, numa tendência, estando
Deus morto, de divinizar o próprio ser humano enquanto tal.
Podemos dizer que o fascismo foi, sem dúvida, o mais alto
grau desse heroísmo e autodivinização. Com ele a razão admi-
nistrativa foi o mais longe possível frente o que pode enlou-
quecer o ser humano, fazendo o máximo possível para colocar

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a forma racional humana ao lado de tudo o que em outras
épocas foi considerado como dos deuses. O que para nós pare-
ce hoje apenas um abismo.
Nesse caso Adorno e Horkheimer estão certos em pensar
o fascismo como consequência da razão tornada apenas um
instrumento. Porém o caso de Sade pertence - propriamente -
não ao começo desse heroísmo mas a seu fim, ao cansaço que
começou a fazer o heroísmo ceder frente ao próprio abismo.
A importância de abordarmos a proximidade da obra de Sade
com o fascismo, portanto, vem da passagem de um a outro,
com a queda deste último. Porém esta é uma abordagem prati-
camente inversa daquela de Adorno e Horkheimer (estes que,
à parte do que dizem de Juliette, lamentam por Sade de um
modo que deixamos omitido).
A obra de Sade oferece à história humana o marco visível no
qual a razão instrumental passou, num contorno quase vinga-
tivo, a se voltar contra seu próprio heroísmo. Sem reconhecer
ainda o fracasso de uma razão que não reconhece mais limites,
fez esta operar em função de um ódio que equivale ao fracasso.
Mas essa experiência de uma razão que alcança o seu fracas-
so a partir de sua exacerbação permite uma plenitude no ser
humano que, a partir de então, pode vislumbrar não apenas o
que é viver na maior separação possível com sua própria ani-
malidade como, sobretudo, o quanto essa separação realmente
é relevante para sua composição que, transbordando inevi-
tavelmente a razão, não pode deixar de tomar a razão como
aquilo que nossa animalidade interna sempre tomará como
algo menor que si.

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O cansaço inevitável da razão que, contra tudo o que a levava
a considerar o aspecto oposto da vida, se mantinha heroicamen-
te, sem dúvida foi apenas o resultado do modo como, ao negar
qualquer relação com o que se lhe opõe, se expôs ainda mais
– então se cansando e passando a se deixar usar para qualquer
perversão. Acontece que ao passar a se deixar usar dessa manei-
ra, tocou o extremo daquilo que o ser humano poderia tocar ao
tentar alcançar o máximo do rechaço do animal (que ele não
pode deixar de ser). Experiência de rechaço, portanto, preciosa
para a compreensão de si mesmo, da sua própria composição.

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O cansaço que faz a razão se tornar perversa aponta dessa ma-
neira para o retorno ao antigo jogo das partes do ser humano,
no qual ele se aproxima e se afasta da própria animalidade.
Mas essa perversão, sendo aquela de Sade, é assim a perver-
são pelo que já não existe, o que nos obriga a nos calarmos, en-
quanto animais. O silêncio é portanto aquilo que melhor tes-
temunha o que permanece, inexistente em nossa consciência.
Sade mesmo, dessa maneira, pronunciou o que deveria ter
ficado em silêncio. O que conferiu então a esta pronúncia uma
violência que, ainda que nos trazendo um desejo inconfessável
de fazer o próximo sofrer, é, APESAR DISSO, o oposto de toda
violência de carrasco.
Portanto, segundo Bataille, Sade falou o que não poderia,
pois o que ele evocou com sua linguagem foi uma violência
que não pode vir jamais a ser legitimada, falando aquilo que
só uma vítima poderia falar enquanto é calada. Aquilo que já
não existe no momento mesmo em que já conseguimos o di-
reito de dizê-lo e que, se apesar de tudo, é dito – é então de
modo paradoxal. Mas o paradoxo só pode assim ser sustentado

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na direção de uma solidão absoluta, aquela mesma que per-
tence à vítima no momento em que deixa de existir, mas que
nesse desaparecimento, num movimento já impossível, deve
ainda se afirmar soberanamente.
Ou seja, se Sade falou foi em nome de uma vida silencio-
sa, que é a da vítima, se tornando desse modo porta-voz do
homem soberano, cortado do gênero humano, o solitário: “O
homem solitário de que Sade é o porta-voz não se importa, de
forma alguma, com seus semelhantes, porque é, na sua solidão,
um ser soberano, que nunca se explica, que nunca tem contas
a dar a ninguém. Nunca se detém com medo de sofrer as con-
sequências do mal que fez aos outros: está só e nunca entra nos
vínculos que um sentimento de fraqueza, comum a todos eles,
entre eles se estabelece. Isto exige uma extrema energia, mas é
exatamente da extrema energia que se trata.”25
O homem normal é o que limita, em relação aos outros, em
relação à existência que os outros lhe permitem, as consequên-
cias ruinosas a que aspira soberanamente - alcançando cons-
ciência de si -, já Sade, por outro lado, deu um valor soberano
ao excesso de sua imaginação, negando a realidade dos outros.
Contudo na solidão à que a negação dos outros o conde-
na, onde está cortado do gênero humano, com uma violência
contrária a “lealdade para com o outro que é a lógica, que é a
lei, que é o princípio da linguagem”26– Sade, apesar de tudo,
fala. A linguagem então, paradoxal, de lealdade relativa, passa
a se dedicar àquilo de que se pretende cortada. De modo que

25.  Bataille, O Erotismo, p.111.


26. Idem.

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dá voz a personagens que na verdade só poderiam ser silencio-
sas, atacando tudo o que se opõe à soberania de suas paixões
– aproveitando do caráter ilimitado da literatura para propor
uma espécie de humanidade soberana.

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O homem normal não é apenas o que limita o que aspira, Ba-
taille o diz diretamente – “A humanidade nada tem a ver com
a existência dos altos cimos”.27
Contudo, se ainda hoje prevalece o dever de tomarmos plena
consciência dos atos e obedecermos à lei da razão, para Bataille
não foi sempre assim: houve antes a pretensão de escapar às limi-
tações nem que fosse na pessoa de um semelhante com a qual a
humanidade pretendeu ter a visão do <<homem integral>>, na
sua impotência em conceder um êxito pessoal igual a todos.
“De acordo com a vontade de todos, o soberano recebia o
privilégio da riqueza e da ociosidade e para ele se reservavam as
jovens mais novas e mais bonitas.”28 O instrumento espetacular
da monarquia com o qual “pretendia-se que o espetáculo dos
privilégios reais devia compensar a pobreza da vida comum (tal
como o espetáculo das tragédias compensava da vida satisfei-
ta)”29, a soberana exuberância que conhecemos pelas narrações

27.  Idem, p.170.


28.  Idem, p. 145.
29.  Idem, p.146.

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do passado, basta, segundo Bataille, “para demonstrar a relativa
pobreza dos exemplos que a escória americana ou os ricos eu-
ropeus nos oferecem ainda. Acrescente-se a esta verificação que,
exceto nesses casos, já não existe o instrumento espetacular da
monarquia. Apenas nos limitamos ao mais lamentável.”30
Porém Bataille não deixa de se referir também ao momento,
como o desfecho do mundo antigo, em que o espetáculo deixa
de corresponder aos desejos da multidão: “Cansaço? Esperança
individual de ter acesso a uma satisfação em que cada um a si
próprio se satisfizesse?”31 De todos modos se no terceiro milê-
nio no Egito a multidão revoltada queria também os privilégios
e a imortalidade do soberano – foi também o que aconteceu
com o povo francês que, em 1789, queria viver para si próprio,
de modo que no crescimento das manifestações de fúria: “Só
um homem isolado, o Marquês de Sade, aproveitou e soube
compreender o que via no desenvolvimento de um sistema e,
combatendo-o, elevá-lo às suas mais extremas consequências.”32
Sade toma o partido da Revolução, mas não sem deixar,
com uma imaginação exorbitante, de escapar às limitações
com um sistema que “não é só a mais perfeita realização dum
método que leva à eclosão do indivíduo integral por sobre
uma multidão fascinada, como, sobretudo, a sua crítica”.33
Ou seja, se os privilégios dos senhores escapam à razão, Sade
não criticou o regime monárquico apenas em nome de um

30. Idem.
31. Idem.
32. Idem.
33. Idem.

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homem mediano, bem limitado pela razão contra os abusos,
igualitário34; senão para conceber, ao contrário, uma possibi-
lidade superior à dessa instituição35– que, aliás, como lembra
Bataille, sempre esteve bem temperada de razão.
Mas como Sade faz a extrapolação? Se aproveitando do ca-
rácter ilimitado da literatura: “Daí que Sade viesse a propor
aos seus leitores uma espécie de humanidade soberana cujos
privilégios deixariam de estar de acordo com o consentimento
das massas. Sade imaginou privilégios exorbitantes em com-
paração com os dos senhores e dos reis. Os que houvessem as-
sumido a crueldade dos grandes senhores e dos reis, tornados
omnipotentes e impunes pela ficção romanesca, podiam do-
minar o mundo. O aspecto gratuito da invenção e o seu valor
espetacular deixavam aberta uma possibilidade superior à das
instituições que corresponderam, mais ou menos adequada-
mente, ao desejo de uma existência livre de limites.”36

******

34.  Ainda que se tenha apontado essa tendência nele.


35.  Se atraindo pelo fedor, pela feiúra, pela velhice, pelo excremento...
36.  Bataille, O Erotismo, p.147.

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Vemos um autor como Günther Anders, que não deixa de con-
fessar a arte como dependente do privilégio, nos explica o se-
guinte: sempre onde houve diferenças sociais e relações de do-
mínio houve, como por um ato de liberdade, a possibilidade
de distanciamento do quotidiano social para uma esfera mais
alta do mundo – como uma distância solene da qual sempre
proveio o que chamamos arte. A existência da arte seria assim
dependente da existência do privilégio, na media em que ela é
a liberdade de se retirar do cotidiano. Liberdade que escapa à
limitação – podemos dizer, que é própria do cotidiano, onde
prevalece o trabalho, a necessidade da ação eficaz, que portan-
to exclui qualquer ócio, qualquer distância, tornando tudo
útil. A arte então, como é para Anders, e comparando com
análise de Bataille, torna-se possível escapando da racionalida-
de que tudo diminui, utiliza e domina – através do privilégio
da riqueza que permite o espetáculo artístico. Por exemplo a
pretensão de elevação a uma esfera de redenção positiva, sen-
sorial, da música romântica, pós-romântica ou impressionista.
Pretensão que chama e “eleva” o ouvinte, o leitor: “Não é por

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acaso que em todas as culturas vale como ‘bela’ (= solene), em
primeira linha, a linguagem sacerdotal. Linguagem da corte,
linguagem do tribunal, em suma, todas as linguagens da auto-
ridade proporcionam as características de distância imprescin-
díveis à beleza e à elevação da ‘linguagem artística’”.37
Anders, contudo, não deixa de afirmar que sempre quando
prevaleceram as ideologias de igualitarismo, em que os graus
da hierarquia social começaram a se nivelar, a “beleza” foi ata-
cada. O idioma artístico então começou a se igualar ao idioma
cotidiano. Anders chega mesmo a questionar, nesse caso, se
assim ainda há arte, e não um gênero totalmente novo. Diz
ele: “De fato, a distância da beleza ou da obra de arte é a tal
ponto reflexo da distância e do desnível sociais (intensidade
de pressão) que, por mais desagradável que a tese possa soar,
a neutralização de classes paralisa a arte – processo cujo tipo
tanto Hegel como Marx já haviam descrito há mais de cem
anos; se não expressamente em relação à arte, pelo menos em
relação ao ‘espírito’ em geral.”38
Mas Sade não nos levou a um gênero totalmente novo.
Contudo algo de novo aconteceu na literatura. Vimos que
com ele a possibilidade vertiginosa, onde contemplamos um
último corte na liga de sustentabilidade, e assim de linguagem,
chegou ainda a uma linguagem - onde não poderia chegar -, na
forma de uma linguagem da vítima. Nos aproximamos assim
ao exemplo que nos dá Anders – que não deixa de também

37.  Günther Anders, Kafka: Pró & Contra, tradução de Modesto Carone, ed. COSACNAI-
FY, São Paulo, p.88.
38.  Idem, p.89.

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nos produzir, mesmo hoje em dia, um mau estar, para não di-
zer, tanto pior, aos que pretendem amá-lo: Kafka.
Tal como Sade, Kafka também não deixou de chegar a uma
linguagem, de escrever, se distanciando, em seu tempo, não só
da concepção mais tradicional da arte como também do que
seria o gênero novo – permanecendo, portanto, como um mau
estar para muitos leitores engajados: tanto pior para Anders se
fruído como “bem cultural”.

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Mas por que, ao falarmos de Sade, nos referimos a um autor cuja
vida foi muito mais tímida, cuja obra é antes da sobriedade per-
manente, que tendia inclusive a excluir todos altos e baixos? Nos
atendo a leitura de Günther Anders, algo parece ressoar. Também
nós, como muitos outros, atribuímos a Sade uma precursão?
A distância de Kafka é aquela onde o homem não é livre,
pois não acontece mais por um ato de liberdade do homem,
mas é o mundo como um todo que dele se distanciou. Se con-
sideramos tanto o distanciamento social quanto a exigência
do igualitarismo como partes do poder de ação do mundo, da
luta social, que impõe metas que precisam ser alcançadas que
então submetem as ações – Kafka nos distancia como aque-
le que perdeu todo o poder de ação e assim não pode impor
mais nada, apenas tem a distância que lhe é imposta e, banido,
no extremo do isolamento total, só pode tornar possível “uma
espécie de língua fantasma vinda da terra de ninguém”.39
Anders chama essa linguagem de sóbria, em oposição à lin-
guagem solene da esfera superior social. É o alemão burocrático

39.  Idem, p.87.

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de Kafka, que registra na distancia. Linguagem de protocolo ou
dossiê, que desse modo “empresta, ao caso nele registrado (mes-
mo o mais criminoso), a aparência de uma coisa que, de agora
em diante, por estar registrada, está ‘em ordem’ ”40. Por exemplo
os fragmentos do processo de K., incluindo neles sua execução.
Mas aqui a análise de Anders encontra uma impossibilida-
de: é que para ele a linguagem de protocolo ao registrar os fa-
tos protocolados, lhes dando aparência de ordem, os justifica.
Esse é seu “contra”41. A distância que nomeia em Kafka, mesmo
sem liberdade, mas exatamente por não ter liberdade, só pode
justificar o que distanciou. O registro, dando aparência de or-
dem, justifica. Mas o que nos interessa é que nessa acusação o
que entra em questão é a distância do sem-liberdade. Afinal
como seria possível nos distanciarmos do mundo? Enfim tal-
vez tudo seja só um engodo, só um modo de falar, uma preten-
são, mas que ao fim nunca deixou de ser socialmente bem po-
sicionada e pronunciada como interesse de uma posição – ou
seja, que nunca se deixou, evidentemente, o mundo. O que é
interessante da conclusão de Anders é que ela é o resultado de
quem pretende defender Kafka. Mas assim, recusando, como
diz Anders, seus niilismos sedutores, acaba ressaltando o que
é perturbador ainda melhor do que quem apenas “gostaria” de
Kafka. Tornando-o, por conseguinte, ainda mais sedutor.

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40.  Idem, p.91.


41.  Expresso no título do seu livro.

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A sobriedade de Kafka, que para Anders não era mais de uma
distância social, mas do mundo como um todo, condensa as
linguagens: tanto a linguagem do repudiado, humilde, que
apenas pode falar em tom oficial, como a do funcionário de-
sinteressado que apenas dá um despacho ou uma promessa vã:
“Como se a palavra-de-poder de Deus e a palavra-de-impotên-
cia da criatura se condensassem, na língua religiosa, num úni-
co idioma transfigurado”42. É o alemão burocrático único de
Kafka, que como linguagem de protocolo, é também o idioma
de todos os seus personagens. Como diz Anders:

“Não existem, propriamente, diferenças entre as linguagens dos


tolos, dos inteligentes, dos grandes ou dos pequenos. É natural
que essa linguagem da distância exclua determinados tons, como
intimidade, entusiasmo, descontrole, indignação etc. Muitas de
suas frases assustam pela precisão, própria de comunicados ofi-
ciais; outras têm a justeza, a minúcia e a flexibilidade de leis, que
forçam a leitura mais exata possível, porque o desconhecimento

42.  Günther Anders, Kafka: Pró & Contra, p.90.

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da lei não protege contra a punição; outras, o teor de relatórios
médicos; outras, finalmente, o tom modesto de petições. Mas sua
linguagem tende sempre ao protocolo; e linguagem de protocolo
é bem a expressão mais adequada para o idioma de Kafka.”43

É na linguagem de protocolo, ou dossiê, que se condensa-


riam assim as linguagens ligadas a quem fala e quem se cala,
e possível apenas no isolamento – que em Sade tomou a for-
ma da Bastilha. Mas que em Kafka se tornou seu estilo sóbrio,
segundo Anders, através de um único plano: onde sem a es-
perança de ser ouvido e sem ideia de um ouvinte determi-
nado nunca incorreu “no perigo de ficar incerto quanto ao
volume da voz, o grau de elevação etc., e sem perceber mudar
de uma tonalidade para outra...”44
Teria sido portanto menos paradoxal? Só que Kafka não
deixou de morrer sem se excitar com a ideia de queimar sua
obra. Adivinhamos então uma cumplicidade na solidão, sus-
peitamos uma relação com caminhos anteriores – onde, se é
correta a relação com o passo de Sade, independente de Kafka
o haver lido ou não, agora o homem normal mesmo estaria
em jogo, e um passo novo haveria acontecido na distância.

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43.  Idem, p.91.


44.  Idem, p.87.

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Bataille nos conta que, pouco depois da guerra, houve um
jornal comunista (Action) que publicou uma pesquisa com
a pergunta: É preciso queimar Kafka? Pergunta “tanto mais
louca por não ser absolutamente precedida daquelas que a
haviam introduzido: é preciso queimar os livros? Ou, em ge-
ral, que tipo de livros queimar?”45 De todos modos a ideia de
queimar Kafka era lógica no espírito dos comunistas. Kafka
talvez tenha sido o mais maligno entre os escritores: “ele ao
menos não se deixou pegar!...”46
Se o comunismo é a ação que muda o mundo, se é ação por
excelência, nele há então uma subordinação: a existência, a ati-
vidade presente, só tem sentido como mundo que é preciso
mudar, na subordinação ao mundo mudado, situado no tempo.
Mas, assim, a atividade eficaz “não pode nem condenar absoluta-
mente, nem tolerar na prática a atitude propriamente soberana

45.  Bataille, A Literatura e o Mal, Kafka, tradução de Suely Bastos, ed. LPM, Porto Ale-
gre, p.129.
46.  Idem, p.130.

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em que o momento presente se desliga daqueles que seguirão.”47
De modo que num sistema fundado em razão que é o comu-
nismo, para um partido que só respeita a razão, a única atitude
soberana admitida é a da criança, mas na sua forma menor.
Contudo, “a obra de Kafka testemunha, no seu conjunto,
uma atitude inteiramente infantil”48. Mais ainda, é uma atitu-
de que, diante a necessidade de ação, não se atribui nenhum
direito. Kafka então foi honesto. Pois, como diz Bataille, ape-
nas as ações têm direitos. Afinal, “a infância que dominaria te-
ria uma verdade?”49 Testemunhamos assim o Mal, com valor
soberano. Deveríamos, portanto, queimar Kafka?
“Nada é soberando, a não ser sob uma condição: não ter a
eficácia do poder, que é ação, primado do futuro sobre o mo-
mento presente, primado da Terra Prometida”50. Desse modo,
admite-se que a literatura foi para Kafka o que a Terra Prome-
tida foi para Moisés. Ela que lhe recusou a satisfação espera-
da. Mas ele não deixou de escrever, ele que, como diz Bataille,
justamente quis ser um escritor. Bataille chega mesmo a dizer
que seus livros são livros para o fogo, cuja verdade estaria no
fogo, existindo mais para desaparecer: “como se eles estivessem
destruídos de antemão”.51
Se na literatura um objetivo, como qualquer outro, está
sempre sem esperança no tempo, então não se alcança o

47.  Idem, p.146.


48.  Idem, p.132.
49.  Idem, Prefácio.
50.  Idem, p.138.
51.  51- Idem, p.130

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objetivo, não se alcança Canaã, por se tratar de uma “vida hu-
mana”. É o que Kafka diz de Moisés: “Não é porque sua vida foi
muito breve que Moisés não alcançou Canaã, mas porque era
uma vida humana”.52 Kafka teve assim o objetivo em si mesmo
como engodo, de modo que não morreu sem expressar esta
vontade: era preciso pôr no fogo o que ele deixava.
Em um trecho de seu diário Kafka diz: “durante quarenta
anos vaguei fora de Canaã”. Já se considerava então “cidadão
nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma
relação do deserto com as terras cultivadas”, mas, desse modo,
era a viagem ao deserto às avessas, onde olhava para trás como
estrangeiro, e se perguntava: “Será que eu não estaria ainda em
Canaã?” Na miséria onde tudo são visões de desespero, a úni-
ca Terra Prometida que se oferecia era Canaã, “porquanto não
existe uma terceira terra para os homens”.
Assim, com as proximidades contínuas do deserto, Kafka
também tinha esperanças infantis: “em especial no que se refe-
re às mulheres”.53 O desejo por uma vida “normal” parece que
subsistiu em Kafka mesmo depois de já haver desfeito seu noi-
vado (anunciado, desfeito e renovado com F.B.). É o eterno di-
lema de Abraão, segundo Maurice Blanchot, que precisava sa-
crificar, enfim, a própria permanência. O sacrifício de Abraão
é de seu filho, mas enquanto o futuro de Deus na terra, ou seja,
a Terra Prometida. O filho é o tempo que deve ser sacrificado.
Mas o tempo sacrificado não lhe será dado na eternidade do

52.  Idem, p.130.


53.  Trechos do Diário de Kafka. Citados por Maurice Blanchot, O Espaço Literário, tradu-
ção de Álvaro Cabral, ed. Rocco, Rio de Janeiro, pp.62, 63.

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além: “no além nada mais existe senão o futuro, o futuro de
Deus no tempo. O além é Isaac”.54
Canaã permanece então como a única Terra Prometida, jus-
tamente ela que, como o tempo, deve ser sacrificada. Mas se a
condição do soberano é não ter o primado da Terra Prometida, a
solidão ameaça Kafka de todos modos, nele e fora dele. Não exis-
te uma terceira terra. É o deserto, onde pende o horror, como
diz em seu diário: “Se tudo fosse assim como se apresenta no
caminho na neve, seria assustador, eu estaria perdido, não enten-
dido como uma ameaça mas como uma execução imediata”.55
Para Bataille, Kafka nunca quis se evadir verdadeiramente.
Era uma evasão que queria, que devia fracassar. Assim diferia
da evasão vulgar, que se contenta com pouco, apenas com o
prazer, limitada ao compromisso, ao “fingimento” – que não
é livre realmente, não é soberana. “Para ser livre”, diz Bataille,
“lhe seria necessário se fazer reconhecer como tal pela socieda-
de dominante”.56
Kafka, de todos modos, não quis deixar de ser criança ir-
responsável. Entre o capricho, o humor soberano, e a busca
da Terra Prometida, com sua atividade laboriosa, Kafka optou
pelo capricho: assim seus heróis se afundavam numa culpabi-
lidade crescente. Bataille diz : “Sem dúvida é a fatalidade de
tudo o que é humanamente soberano, o que é soberano não
pode durar senão na negação de si mesmo (o menor cálculo e
tudo cai por terra, há apenas servidão, primado sobre o tempo

54.  Blanchot, O Espaço Literário, p.55.


55.  Diário de Kafka. Citado por Blanchot, O Espaço Literário, p.64.
56.  Bataille, A Literatura e o Mal, p.136.

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presente do objeto do cálculo), ou no instante durável da mor-
te. A morte é o único meio de evitar a abdicação da soberania.
Não há servidão apenas na morte; na morte, não há mais na-
da.”57 Ou ainda: “A vida pueril, o capricho soberano, sem cálcu-
lo, não podem sobreviver a seu triunfo.”58 De modo que a per-
gunta “deve-se queimar Kafka?” já havia recebido uma resposta
do autor, que não se atribuía nenhum direito.

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57.  Idem, p.139.


58.  Idem, p.138.

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Anders diz na nota preliminar do seu livro Kafka. Pro &
Contra:

“Fim ou começo. Hoje, quando uns o reivindicam como início –


como uma espécie de santo – e outros o acusam como suma do
fim e levantam a questão ‘Faut-il brûler Kafka?’, é necessário apre-
sentar os autos do processo para o veredicto. O que por este meio
se faz. In dubio pro reo. Entramos no inquérito como advogado,
para aquilatar até que ponto podemos avançar uma defesa. Mas
justamente a escrupulosa vontade de defender traz à tona, desde
logo, traços cuja natureza agravante não pode ser negada. Não
podemos afirmar que vamos deixar a revisão do processo apenas
como advogado de defesa.”

Só podemos estar de acordo – Anders entra como advoga-


do de defesa de quem não se atribui nenhum direito, então
como a defesa não irá assumir, ao final das contas, a natureza
agravante do que defende? Desse modo ele aponta a falta de

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um conceito positivo de liberdade na obra de Kafka, no que
está certo: a infantilidade só é infeliz, culpada, soberana.

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Kafka foi honesto. Quis assim, infantilmente, se incluir entre
os homens comuns, e também mostrar aos outros os limi-
tes de sua compreensão. De modo que até se parecia com o
Grande Inquisidor de Dostoievski: “Estamos, portanto, em
presença de um mistério, que não podemos compreender. E,
como se trata de um enigma, tínhamos o direito de pregar, de
ensinar aos homens que o que estava em jogo não era nem a
liberdade nem o amor, mas um enigma, um segredo, um mis-
tério, ao qual tinham que se submeter, sem qualquer reflexão,
e mesmo contra sua consciência.” 59
O homem comum é aquele que muitas vezes não pode
compreender um plano de conjunto do trabalho ao qual todos
estão condenados. Aquele cuja a menor desatenção “na escava-
ção de um fosso ou na sustentação de uma represa, a menor
negligência, uma atitude egoísta... na tarefa de conservar os
recursos hidráulicos da comunidade, podem originar, nessas

59.  Citado por Walter Benjamin, Magia e Técnica, Arte e Política, Franz Kafka: A propósito
do décimo aniversário de sua morte, tradução de Sergio Paulo Rouanet, ed. Brasiliense, São
Paulo, p.149.

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circunstancias insólitas, grandes males e desgraças sociais de
consequências incalculáveis”.60 Assim precisa de um funcioná-
rio encarregado de administrar com ameaças de morte “uma
estreita e duradoura solidariedade entre massas da população
que muitas vezes eram estranhas e mesmo inimigas entre si”.61
Essa é a descrição de Metchnikov, que Walter Benjamin diz
também ser o esquema da organização em questão para Kafka,
questão que o preocupou como nenhuma outra e era impene-
trável para ele: “trata-se da questão da organização da vida e do
trabalho na comunidade humana”.62
Organização que se assemelha então ao destino e poderia
ser substituída pelo destino. Como, por exemplo, no trecho
citado por Benjamin de A muralha da China:

“A muralha deveria servir de proteção durante séculos; por isso, o


máximo de cuidado na construção, a utilização dos conhecimen-
tos arquitetônicos de todos os tempos e um duradouro sentimen-
to de responsabilidade por parte dos construtores constituíam
pressupostos indispensáveis para esse trabalho. Para as obras
acessórias assalariados ignorantes do povo podiam ser usados,
homens, mulheres, crianças, enfim, todos os que se empregavam
para ganhar dinheiro; mas já para dirigir quatro desses assalaria-
dos um homem culto era necessário, especializado em arquite-
tura... Nós – estou falando aqui em nome de muitos – somente
aprendemos a nos conhecer soletrando as instruções dos nossos

60.  Citado por Benjamin, Idem.


61.  Citado por Benjamin, Idem.
62.  Benjamin, Idem, p.148.

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superiores, descobrindo que sem sua liderança nosso saber acadê-
mico e nosso bom senso não teriam sido suficientes para poder-
mos executar a pequena tarefa que nos cabia no grande todo.”63

Podemos dizer que Kafka não se deixou apanhar na medida


em que se incluiu nesse todo. Nessa postura, Bataille parece ter
encontrado o prolongamento de um plano incompreensível,
como uma soberania que não se defende. Como fala de Kafka:

“Não há nada que ele pudesse afirmar, em nome de que ele pu-
desse falar: o que ele é, que não é nada, só o é na medida em que
a atividade eficaz o condena, ele é apenas a recusa da atividade
eficaz. É por isso que ele se inclina profundamente diante de uma
autoridade que o nega, ainda que sua maneira de se inclinar seja
mais violenta que uma afirmação gritada; ele se inclina amando-
-a, sofrendo-a e opondo a ela o silêncio do amor e da morte ao
que não poderia fazê-lo ceder, porque o nada, que apesar do amor
e da morte não poderia ceder, é soberanamente o que ele é.”64

Postura, tão maligna quanto, desde o nada que ele é, ao fim


manda. Ela que se inclina então amorosamente frente ao que,
em último termo, possui. Tal como o nadador que não nada
ou a cantora que não canta, Kafka, ao ser nada, qualquer gesto
seu, riso seu, já está sobre os vínculos de fraqueza do homem
comum, justamente porque ele quer ser o homem comum,
de modo que seus gestos, vindos do nada, não prestam mais

63.  Franz Kafka, A Muralha da China, citado por Benjamin, Idem, p.148.
64.  Bataille, A Literatura e o Mal, p.147.

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contas, nem se desculpam, superando nossa inclinação. Postu-
ra que celebra imediatamente nossa situação.

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Enfim cabe ainda fazermos algumas reflexões sobre o modo
como esse movimento que tentamos descrever se serve da
abordagem desses diferentes autores, fazendo com que o de-
senvolvimento filosófico e literário, de certo modo, se contor-
nasse sobre si mesmo levando novamente ao que desde o prin-
cípio ficou mau formado no ser humano.
Ao menos Kafka, parece, evitou qualquer desculpa em rela-
ção à incapacidade de se restaurar o sentido animal que deve
ter dado início ao ser humano. A culpabilidade da sua escrita
manteve a exigência de uma imanência que, não podendo exis-
tir senão como meio para a racionalidade, apenas se preserva
enquanto não se submete também ao direito que a abandona.
Daí a condensação. Nele aquilo que recusa o animal não tem
o seu poder recusado mas é totalmente exposto ao que não se
desculpa, ao que não procura não ser culpado, ao que não se
importa em ser soberano na culpa, e que num movimento de
escárnio obriga este poder a ir o mais adiante possível em sua
exclusão, ao ponto de por esse excesso se ver inundado pela
imanência que exclui, enquanto ainda a exclui.

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Mas esta inundação não é mais aquilo que o cristianismo
fez ao trazer uma inspiração - parcialmente - animal à vida que
nos separa do animal. O que o cristianismo tentou foi separar
de vez o ser humano do que constitui a sua própria essência,
tentando nos convencer de que essa separação era em si algo
do animal, abrindo caminho assim para uma separação que,
ao fim, não precisava mais de convencimento nenhum. O que
quer dizer que a confusão cristã tem um sentido precisamente
inverso do que há na condensação kafkaniana.
A confusão é uma razão exaltada pela imanência. A conden-
sação é uma razão humilhada pela imanência. A primeira é a
imanência inserida na soberania da razão, a segunda a razão
inserida na soberania da imanência. Assim nesta última a razão
tem que se tornar SERVA da imanência. O que não restringe
a possibilidade racional, ao contrário. Numa concepção que
considera a razão como superior a tudo, a razão SÓ PODE se
desenvolver de acordo com a sua superioridade, superioridade
que também é a do ser humano, tomando sua própria superio-
ridade como seu fim único, mas assim se limitando a este fim.
Contudo, a razão que serve à imanência perdeu essa limitação.
Aquilo que interessa, dessa maneira, em Adorno e Horkhei-
mer é o modo como analisam em Sade a passagem necessária
da soberania da razão, esta que Kant procurava com a “maio-
riade”, à soberania da imanência, com uma razão tornada livre-
mente criminosa. Ainda que os autores façam uma confusão
completa invertendo o sentido dessa passagem.
Mas esta confusão não é apenas desses autores, ela é pró-
pria da Escola de Frankfurt, de onde veio também a leitura de

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Anders ao julgar Kafka, invertendo, exatamente como Adorno
e Horkheimer, o sentido da imanência. Parece que essa Escola
negligenciou mais ainda, sobre todos os autores que citamos
anteriormente, o pensamento de Bataille, cujo conceito de sa-
grado não permite que se siga adiante com essa confusão que
inverte um sentido evidentemente liberador.
Porém uma leitura ainda mais recente como a de Giorgio
Agamben inverte, então, o próprio pensamento de Bataille.
Como dissemos antes, Agamben expôs o elo que o erotismo
de Bataille mantém com o poder soberano. Ou seja, o modo
como toda violência que se volta contra a ordem racional
guarda ainda com ela uma cumplicidade que não se desfaz:

“0 que ele [Bataille] não consegue decifrar é, precisamente (como


mostra o fascínio que exercitavam sobre ele as imagens do jo-
vem chinês supliciado, que comenta longamente em Les larmes
d’Eros), a vida nua do homo sacer [a relação de violência do ser
imanente], que a aparelhagem conceitual do sacrifício e do ero-
tismo não consegue exaurir.”65

Contudo ao invés de responder a esse impasse, certamente


real, com a tentativa de descobrir a maneira pela qual a vio-
lência pode chegar até o que não pode romper, de pensar sobre
os meios certos para isso, Agamben apenas conclui, seguindo a
covardia frankfurtiana, que essa violência pertence ao que ela

65.  Giorgio Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua l, tradução de Henrique
Burigo, ed.UFMG, Belo Horizonte, p.120.

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recusa (com a sua famosa teoria da exceção). De modo que ele
atribui a Bataille a sua própria confusão:

“Bataille troca imediatamente o corpo político do homem sacro,


absolutamente matável e absolutamente insacrificável, que se
inscreve na lógica da exceção, pelo prestigio do corpo sacrificial,
definido em vez disso pela lógica da transgressão.”66

Assim, acusando Bataille de inverter o invertido, ele apenas


compreende a violência erótica como se não fosse mais que
reduzida à relação com a ordem racional, condenando con-
sequentemente a ambiguidade do sagrado (a ambiguidade
entre puro e impuro que é essencial para se pensar o caráter
insubmisso da imanência) – seguindo, nessa inspiração evi-
dentemente cristã, a necessidade de então terminar de excluir
a violência do impuro (que é sempre a parte que traz ambigui-
dade) com um retorno da confusão entre sagrado e profano.
Logo não é de se espantar que Agamben tenha encontrado sua
grandiosa solução com uma volta a Platão. Ou seja, ele apela
para aquela falsa ideia, aquela quimera, da razão que pode se
confundir com a natureza - a “lei natural”-, o que não é nada
mais, enquanto introdução da imanência na razão (o que só
pode ser feito com a parte da imanência que se serve a esta
obediência, que não é ambígua como a impureza), que o em-
preendimento do cristianismo (que, como sugere Nietzsche,
foi só um platonismo para as massas).

66. Idem.

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Isso quer dizer que ele se volta contra a oposição à ordem
racional (oposição erótica) do mesmo modo como Platão se
voltou contra os sofistas – pois tal oposição não deixa de ser
a mesma que os sofistas faziam entre physis e nómos, o que re-
sulta precisamente no que Agamben toma para desvalorizar o
pensamento de Bataille, a união de Bia e Dike:

“Enquanto, em Platão, a ‘lei da natureza’ nasce, portanto, para co-


locar fora de jogo a contraposição sofística entre physis e nómos e
excluir a confusão soberana de violência e direito, nos sofistas a
oposição serve precisamente para fundar o princípio de sobera-
nia, a união de Bia e Dike.”67

Dessa maneira ele claramente está considerando esse re-


torno ao platonismo como um passo mais adiante não só de
Bataille como de Nietzsche, quando é óbvio que ele apenas
retraiu a ambição destes. Consequentemente, desde que para
ele a quimera da lei natural responde melhor ao dilema da vio-
lência, já que “estas figuras [Bataille, Nietzsche, entre outros]
empurram até o limite a aporia da soberania, mas não con-
seguem, todavia, liberar-se totalmente de seu bando.”55 – não
poderia ficar mais à vista como ele inverteu o sentido maior
do pensamento de Bataille, empurrando para longe Nietzsche.
Se a filosofia de Platão vai além do limite que Bataille al-
cança, então o que realmente tornou a filosofia deste atraente
para nós foi precisamente aquilo que não se adequa ao que,

67.  Idem, p. 41.

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para Agamben, deveria ser alcançado. Mas nada tiraria melhor
a atração de Bataille (nada seria mais inversa a esta).
Contudo, isso quer dizer que deveríamos advogar a favor de
Bataille? Ou aquilo que nos atrai a ele se mantém sozinho OU
NÃO É NADA. O que a escola de Frankfurt critica nos autores
comentados não deixa de ser, então, na solidão, um tempero
para a sedução.
Sedução que, quanto mais culpada for, mais nos conduz,
através da abordagem desses mesmos autores, para um movi-
mento inconfessável que nos guia desde o começo humano.

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Apenas mais uma palavra sobre o que devia constranger a
humanidade antiga. Esse constrangimento não deve ter sido
diferente da condensação kafkaniana.
Se no mundo profano o ser humano não consegue ambi-
cionar nada de materializável, se suas ambições apenas po-
dem ir até onde a forma racional do mundo permite, se, para
além disso, nada mais sobra que uma violência que gira no
vazio, o bando agambiano, nos sentimos então empurrados
para uma ausência de lugar que, frente a preponderância pro-
fana, é só um sonho impossível.
Ainda que não concordemos com a solução de Agamben, o
seu mérito foi o de dar uma primeira elaboração teórica para
essa impossibilidade – ela que é a da relação de exceção. Con-
tudo gostaríamos de tomar uma direção diferente no modo de
considerar o que nela permanece sonhando. Se o sonho, em
nosso mundo, é sempre um sonho impossível (ou é apenas tra-
balho) então ele não surge para nós senão exigindo uma tor-
ção que precisa envolver o mundo por inteiro – de modo que
ele se torna busca por cicatrizes que valham pela totalidade da

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nossa existência. Porém, desde que continuamos forçados a
existir dentro dessa totalidade, como ela, e as cicatrizes ainda
não nos destroem, apenas podemos constranger a existência
profana ao que ela é. Desse modo nos atemos a sua existência
ENQUANTO IMPOTENTE.
A condensação da existência profana, dessa maneira (seja
no quanto ela se dá cotidianamente ou em irregularidades que
ainda não a esgotam), vale pelo mais longe que o sonho nos
leva. Se aquilo que constitui o sonho é precisamente o inverso
do profano, a concepção desse mundo sem nenhuma saída é o
que chega mais perto de um modo efetivo em que um sonho
pode ainda se realizar. Mas isso equivale a ver o mundo pro-
fano, que é o nosso, como ele é, O QUE NÃO PERMITE NE-
NHUMA ASPIRAÇÃO. Se aspiramos algo, já queremos sair
do profano, estamos nos deixando já levar por um movimento
da imanência (que sonha). Porém, numa existência exclusiva-
mente profana, A ASPIRAÇÃO NÃO EXISTE.
Portanto O INEXISTENTE é o que retira toda nossa espe-
rança e ao mesmo tempo, precisamente por não dar mais espe-
rança, É O QUE NOS DEIXA DE FRENTE COM AS CONDI-
ÇÕES DE MATERIALIZAÇÃO.
A materialização se dá como a pressão de uma realidade
há milênios deixada à parte, que os olhos atuais se esquivam,
e que POSSUI então o profano. De modo que as transgressões
normais cedem lugar ao que nos trangride por inteiros, in-
cluindo os elos, as relações de exceção, e o mundo profano em
sua integralidade. O quer dizer o inconcebível, o impossível.

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Se dando, desse modo, a transfiguração da realidade no que
usualmente se chama de feitiçaria.
Mas isso quer dizer, a partir daí, a percepção de uma exis-
tência transfigurada totalmente autônoma, que prescinde, em
último termo, de tudo aquilo sobre o qual se baseia o mundo
profano. Apenas se chegamos a esta percepção, que provém da
experiência de materialização do sonho, que atesta uma supe-
rioridade existencial, que deixamos de cair na mesma armadi-
lha que Agamben. De modo que, podemos dizer, as conclusões
de Agamben são perfeitas (e muito bonitas), desde que des-
consideramos a contundência de uma percepção como essa.
Se não a desconsideramos, todo o problema que ele coloca é
só uma parte de si – nos abrindo então um horizonte no sen-
tido inverso de Platão, do cristianismo, de todo monoteísmo,
como também de qualquer ordem que venha unificar e justi-
ficar tudo o que usualmente chamamos de feitiçaria, o que já
existia nas feitiçarias mais antigas, dando começo às idiotices
religiosas (estas que precisavam cair na quimera de Deus).
Para voltarmos à filosofia de Nietzsche, se trata sobretudo do
sentido inverso do que adveio com o monoteísmo, este como
uma maldição elaborada pelos dominados contra seus domina-
dores (como o feitiço dos fracos sobre a existência), o que al-
cançou seu ápice, segundo nossa leitura, com uma humanidade
totalmente servil à razão e ao trabalho. De modo que o mundo
profano nada mais é que a continuação da própria feitiçaria cris-
tã, lançada para neutralizar nossa composição – para que esta,
que sempre se intromete de modo irregular no social, não leve
mais às formas de abuso do humano pelo humano.

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O que quer dizer que o nosso mundo não deixou de ser uma
forma de dominação dos dominados. O que parece ter por isso
um caráter atraente. Só que esta forma de dominação, precisan-
do diminuir a si mesma para ter efeito, nos escraviza (claro, sem
dizê-lo, já que se diminui) através do motivo de que não haja
nenhuma escravidão. É aí que, promovendo a fraqueza humana
para dominar, ela nos deixa ver então o que nela é só fraqueza
mesmo. Enfim, se ela apenas tem efeito dessa maneira, e apenas
tem atração dessa maneira, nada nos impede desrespeitá-la. E
o melhor modo de desrespeitá-la é mostrando a sua diferença
com uma escravidão real (que no fundo ela gostaria de ser).

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Pode-se dizer que até certo ponto toda escravidão dá prazer.
Além desse ponto ela deixa de ser aquilo com o qual as pessoas
são coniventes e passa a ser alvo de protestos. Até ela voltar a dar
prazer e voltar a ser voluntariamente negligenciada. Apenas um
julgamento moral pode estabelecer para as pessoas uma con-
duta contrária a esta ambiguidade, visto que não há outra coisa
que possa fazer as pessoas agirem à parte de seu prazer. O que
quer dizer que há um caráter erótico da escravidão - do ponto
de vista do próprio escravo - que não podemos contornar.
Mas pode-se então dizer que esse caráter é aquilo que de-
fine a linha na qual o que chamamos escravidão aumenta ou
diminui a nossa vitalidade. De modo que o mundo profano,
considerado como o mundo da liberdade e dignidade huma-
na, contra todos os abusos religiosos, como uma intensidade
cada vez mais duvidosa, equivale cada vez mais a uma escravi-
dão sem erotismo, um funcionamento que apenas toma a si
mesmo como fim.
Sem dúvida houve sofrimentos indescritíveis proporciona-
dos por toda forma de escravidão ao longo da história. Porém

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a partir do momento em que se pode tirar prazer de um sofri-
mento indescritível, nada pode evitar que um escravo também
venha a gostar da sua própria situação, até defendê-la. E em
nada se pode condená-lo nisso, a não ser que entremos num
julgamento moral.
Do mesmo modo se o desprazer de um escravo o fizer se
rebelar, isso não deixa de ser (ao invés do idealismo de uma
liberdade ilusória) a reivindicação da intensidade com aquilo
que o domina, intensidade ainda não alcançada ou já aban-
donada, que, caso não seja cumprida, pode levar o escravo a
tentar romper definitivamente com sua relação. Mas o que o
escravo então procura - pouco importa os discursos de liber-
dade que o escravo use para isso - não é o rompimento com
esse tipo de relação, mas o retorno da intensidade desse tipo
de relação, que ele irá então procurar em outro lugar, de outras
maneiras, de maneiras “emancipadas”.
Agora, o que mais frequentemente acontece é - o escravo
vendo a mediocridade do seu senhor - não conseguir, apesar
disso, romper com a relação. É aí que a escravidão se torna in-
teiramente manutenção de uma fraqueza social. A partir daí
chega-se a um ponto no qual, tanto escravo quanto senhor, po-
dem preferir que nada mais mude e chegam a recusar a ambi-
ção por aumento do prazer pois com esse aumento vem tam-
bém a percepção da sua impotência de conquista.
Enfim, é a escravidão como manutenção da fraqueza que,
para permanecer, começa a permitir todo tipo de afrouxamen-
to. Desde que ela se mantenha, aceita a maior quantidade de
“liberdade”. Consequentemente se cria um estado de empatia

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que os militantes de todo tipo irão passar a reivindicar como
uma imensa conquista histórica e tomar como parâmetro para
todo seu pensamento e prática (como se assim estivessem sen-
do radicalmente opostos à essência da escravidão).
O escravo, nisso, ele que não podia romper com uma rela-
ção insatisfatória, tem a possibilidade de se sentir vingado, ven-
do seu senhor medíocre perecer dessa maneira, parecer igual
a si. Mas assim se mantém para sempre preso nessa mesma re-
lação insatisfatória - que é precisamente a prisão que constitui
hoje o nosso mundo profano.
Apenas uma reconquista da relação ENQUANTO MEIO
PARA INTENSIDADE é o que poderá o satisfazer, nem que
para isso seja necessário o escravo mandar e o senhor obedecer.

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Pode-se dizer, de certo modo, que a obra de Bataille favore-
ce esse ponto de vista, tanto mais por seguir a inspiração de
Nietzsche. Mas também se pode dizer que esta obra foi (muito
antes de Maio de 68) uma das primeiras a cruzar o pensamen-
to de Nietzsche com as exigências marxistas da sua época. Ao
menos uma das primeiras a fazer isso de modo convincente.
O modo como Bataille introduz o erotismo no pensamen-
to econômico, transformando a economia numa expressão da
vontade de poder (substituindo a finalidade de acúmulo de
riquezas pelo seu gasto), permitiu a ideia de uma emancipação
do proletariado apenas como gasto, ao invés da reivindicação
do acúmulo roubado pelo burguês - como Capital - – de modo
que a Revolução, num sentido próximo ao do ponto de vista
anteriormente descrito, teria o interesse do combate contra a
escravidão demasiada leve do mundo burguês (isto é, profano).
Soma-se a isso as ideias geológicas contidas nos textos do Acé-
falo, segundo as quais as montanhas, como pontos mais altos
da terra - que poderíamos comparar com os picos da sociedade
sobre o terreno social, as elites - nunca se elevam à algo eterno

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mas em direção a sua própria corrosão da terra - corrosão que
se poderia comparar às sabotagens sociais, as revoluções.
Se, contudo, o modo como Bataille faz esse cruzamento en-
tre Nietzsche e a esquerda é algo que pode permitir uma mi-
litância real, tal como Bataille chegou a pertencer junto com
André Breton e outros, sem trair no fim das contas o próprio
pensamento de Nietzsche, isso é algo que permanece como
uma pergunta em aberto. Até que ponto, ainda que a militân-
cia parta de uma inspiração que pareça concordar com Nietzs-
che, não será necessário para isso o acordo com pautas avessas
a essa mesma inspiração? Mas existe no fim alguma militância
que não seja feita nesse acordo? Não é, por fim, esse acordo
mesmo o que faz toda militância ser militância?
Para perguntar de outra maneira – quanto o caráter de gas-
to sobrevive às exigências morais que persistem, mesmo que
de modo escondido, mesmo que de modo “não-moral” nas mi-
litâncias? A dureza com a qual uma militância se mantém no
tempo, que precisa para poder se manter no tempo, não pode
ser compatível em último termo com uma expressão pura-
mente dionisíaca. Até porque é difícil imaginar uma expressão
dionisíaca que queira ser levada a sério.
Um forma de militância que queira ser puramente irreve-
rente deixaria, por princípio, de ser militância. Se considerar-
mos isso, podemos entender porque Nietzsche tomou todo so-
cialismo como continuação do cristianismo (afinal a seriedade
dos que militam nele, que não pode ser rompida, corrompida,
é a mesma que o cristianismo diviniza).

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Podemos dizer então que o confronto aberto pelos desejos
que envolvem a escravidão (querendo-a ou combatendo-a) não
permite - a não ser que ignoremos os desejos - a facilidade de
reivindicarmos um respeito, de reivindicarmos que nos levem
a sério, a não ser que essa reivindicação venha da irreverência
da força. Mas essa irreverência não quer um direito que ela não
tome, como resultado da sua ação que se expande sobre as ex-
pansões que já existem, fazendo seus escravos.
Enfim, se não é para fazer conquistas na base da ação, não
há nada a ser reivindicado em termos de direito. Assim num
mundo como o nosso, cuja a escravidão se dá na forma do
afrouxamento social que permite a todos se igualarem, ou agi-
mos para expandirmos nossa força sobre essa igualdade ou nos
calamos. Mas se não nos calamos, nada temos então o que exi-
gir em termos de direito. Essa precisamente é, segundo Batail-
le, a postura de Kafka.

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Assim, a respeito da nossa escravidão, pode-se dizer que Sade
a interrompe enquanto Kafka a condensa. Desse modo, por
um lado, o nosso direito é violentado até o paradoxo enquan-
to, por outro, o paradoxo mesmo é sufocado. Dois modos em
que o prazer (que sempre houve na vitória sobre o direito)
alcança nossa escravidão.
Contudo se parece que sugerimos uma progressão linear
de um autor a outro, como se Kafka completasse o que Sade
começa, nada impede que a progressão seja invertida. O que
diferencia a confusão cristã da condensação de Kafka é preci-
samente que a última não precisa apaziguar a violência que
interrompe aquilo que nos concede o direito.
Afinal, se Kafka conseguiu apesar de tudo escrever é que
nada está a salvo nessa escrita (ela não se fundiu, enfim, com
uma inspiração em Deus). Ela é levada ao excesso somente de
modo cru e é isso que, tal como em Sade, a constrange, pois ela
se vê de frente com o abismo da sua própria liberdade, só que
nesse abismo não há NADA – mas esse nada é... a pura ima-
nência (o deserto a ser percorrido por dezenas e dezenas de

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anos). Para além de tudo que pode se desenvolver a razão (esta
que formula os direitos) tomada como um fim em si.
É precisamente o que Deleuze e Guattari dizem da Kafka,
se referindo à sua maquina abstrata :

“É a máquina abstracta que mede [condensa] em teor o modo


de existência e de realidade dos agenciamentos [palavra-de-poder
de Deus e a palavra-de-impotência da criatura] através da capaci-
dade que eles comprovam ao anular os seus próprios segmentos,
ao impelir as suas pontas de desterritorialização, ao correr sobre
a linha de fuga, ao encher o campo de imanência. A máquina
abstracta é o campo social ilimitado, mas também é o corpo do
desejo, e também é a obra contínua de Kafka, sobre os quais as in-
tensidades são produzidas e onde se inscrevem todas as conexões
e polivocidades.”68

Contudo Deleuze e Guatarri se preocupam muito racional-


mente ainda com a distinção dessa máquina kafkaniana com
o que a poderia torná-la transcendental, reacionária. A culpa-
bilidade da escrita de Kafka, enfim, se torna mais revolucioná-
ria que a esquizoanálise. Além do mais, se estes autores fossem
realmente nietzscheanos iriam preferir nomeá-la como apenas
uma nova forma de escravidão.

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68.  Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka: por uma literatura menor, Tradução de Júlio Cas-
tañon Guimarães, Rio de Janeiro, p.126.

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Enfim, para concluirmos, tentemos numerar do modo mais
sucinto possível o que foi dito:

1) O ser humano se constituiu através da atividade regular do


trabalho que o afasta da imanência, não para superá-la mas
para afirmá-la até mesmo naquilo que mais a rechaça.

2) A história humana foi a de um crescente afastamento do ser hu-


mano desse propósito inicial. Assim enquanto um animal que
se aventurou nessa região hostil da existência (chamada profa-
na) para se provar enquanto animal, começou gradualmente a
definhar sobre o terreno que queria aprender a percorrer.

3) Dessa maneira podemos dividir a história humana em três


grandes momentos: a antiguidade, na qual o ser humano
ainda guardava o impulso de transformar todo o seu traba-
lho num meio para a imanência através da religiosidade an-
tiga; o período cristão, no qual este impulso se viu em sua
totalidade reduzido à vida do cordeiro; o período profano,

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de crescimento científico, no qual este impulso finalmente
se perdeu e o trabalho, o afastamento da imanência, se tor-
nou o próprio fim humano.

4) O propósito inicial, contudo, não deixou de permanecer,


ao menos na forma de uma possibilidade sempre aberta
que não deixa de perverter o modo de afastamento huma-
no, tornando a vida morna que se afasta em só mais uma
irreverência daquilo que a deve superar. Desse modo Deus
também pôde ser afirmado como o filho do Diabo e a razão
científica, ou instrumental, um meio para o abuso – o que ao
menos teve sua expressão com Sade e Kafka.

5) O afastamento humano como meio para a imanência se deu,


com Sade, através da oscilação da escrita entre razão e violên-
cia e, posteriormente, com Kafka, através de uma linguagem
condensada que mergulhou inteiramente na violência com
uma culpabilidade infantil.

6) A reversão do afastamento à imanência implica numa ou-


tra concepção do que é ausência de liberdade. A vida que se
pretende superior à imanência apresenta a liberdade como
o estar à parte do abuso que se encontra entre o resto dos
animais, onde não raro um animal se sobrepõe a outro e o
explora até a morte. Em relação a esta vida a vida que se afas-
ta se sente na direção então de uma possibilidade livre de
toda escravidão. Porém, para isso acontecer, é necessário que
ela, contudo, escravize. Esse tipo de escravidão (que pretende
escravizar toda imanência) é a do mundo profano, científico.

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7) Mas desde que se trata só de mais um modo de escravidão, a
vida profana depende exclusivamente da sua força de escravi-
zação para não voltar a se ver entre os outros animais. Essa é
precisamente a possibilidade que permanece aberta do pon-
to de vista da imanência e que trata toda a vida profana não
mais que como um animal a ser devorado – o que implica
em fazer a escravidão voltar a servir à imanência (o que torna
a escravidão, como sugerimos antes, num modo de prazer).

8) Isso levaria a uma concepção da escravidão a partir da pers-


pectiva inteiramente imanente (cruel) que deve ser melhor
analisada. Mas não faremos isso nesse livro.

9) A finalidade desse livro é, portanto, abordar o que simples-


mente permaneceu inexistente para o ser humano desde o
seu começo - sem deixar de afetar os autores citados - e o
preço que deve ser pago para o que não existe. É um livro
dedicado ao que não existe*.

*Portanto dedicado também a todos que se dedicam ao que


não existe... ou seja, os feiticeiros. Mas apenas enquanto estes
se dedicam a desaparecer, sem buscar nisso um acolhimento
humano ou “prestígio”.
Ou uma feitiçaria ainda por vir, que não existe.

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FILOSOFIA, RELIGIÃO E FEITIÇARIA

Segundo Carlos Castaneda, Don Juan - o velho índio que o


introduziu no xamanismo - disse: “os filósofos são feiticeiros
fracassados”. É como se ele quisesse dizer com isso que os fi-
lósofos estão para sempre limitados ao que apenas pode a fi-
losofia, que não é apenas possível mas necessário irmos para
além da mera construção dos conceitos.
Contudo não nos parece que ele se referia a uma mera ne-
cessidade de complementar o trabalho teórico da filosofia com
experiências práticas. A feitiçaria, como encontramos nos tex-
tos de Castaneda, parece ser sobretudo a capacidade de intera-
gir com o que está além do campo perceptivo. Uma interação
que por si só conduz a um caminho de conhecimento autôno-
mo. Essa interação não deixa de ser exercitada pelos filósofos,
mas parece que para Don Juan eles fracassam ao seguir pelo
caminho dessa mesma interação, pelo caminho que os torna-
ria feiticeiros. Não passariam assim de feiticeiros fracassados,
se servindo do que pertence à feitiçaria para construir uma
quantidade absurda de conceitos.

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Assim esse fracasso, que diz Don Juan, não parece ser dife-
rente do que também encontramos em todas as religiões e, até
mesmo, na feitiçaria. À parte do que já dissemos, nos referindo
especificamente à feitiçaria de Castaneda, é difícil encontrar,
talvez mesmo impossível, algum tipo de feitiçaria que não siga
princípios próximos das religiões. É difícil encontrar, talvez
mesmo impossível, alguma feitiçaria que não guarde em si a
mesma mesquinhez que a das religiões.
Por exemplo os feitiços lançados para nos acomodar no
deserto do conhecimento – matar um inimigo, escravizar a
pessoa amada, etc.. – que são só a pretensão de que o desco-
nhecido irá dessa maneira se apresentar a nós e fazer o favor de
nos compensar a dureza do seu deserto com certos prestígios.
Como se ele quisesse ter a honra de que nós o procurássemos
(e desse alguma importância para nossos inimigos e amores).
Como se, ao ceder em nos dar esses mimos ele não estivesse
assim apenas nos pressionando ao comodismo que tanto insis-
timos, para que morramos.
Fora isso, apenas um rebanho amedrontado acreditaria que
se prender ao que ele mesmo prestigia vá servir de algo para
o abismo que o cerca. O desconhecido, para ele, deve parecer
algo que deve servir à glória que seus iguais podem reconhe-
cer, algo que deve valer como uma ração de boa qualidade (ou
chame como quiser o que um dia poderá tornar a vida dig-
na). Uma feitiçaria que não se preocupe com isso deve parecer

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necessariamente, para esse hábito de grupo, uma escravidão
sem recompensa. Um mero convite a não existir.69*

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*.  Podemos dizer que nem mesmo a doutrina de Castaneda afirmou suficientemente o
inexistente. Afinal, para esta, tudo o que não se submete à “disciplina férrea” (que não é
diferente do ascetismo de qualquer monge) é apenas “egocêntrico”. Contudo seus relatos
deixam escapar a presença de outros xamãs que eram próximos aos da linhagem de Castane-
da e que discordavam da sua “disciplina férrea” (e não por isso tinham menos poder). Claro
que tal discordância só poderia ser, para estes últimos, fruto de egocentrismo. Por fim, com
essa justificativa, é como se essa divergência xamânica não existisse de modo relevante para
tais relatos.

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A FAVOR DA FILOSOFIA DE AGAMBEN

Com nossa divergência a este autor, não queremos deixar de


ressaltar melhor o que é interessante em seu pensamento. Pois
foi ele quem melhor apontou o elo que a violência guarda
com a razão que ataca. Ao menos ele levou adiante essa ques-
tão. Pois isso é o que precisamente torna não só a filosofia
como a própria feitiçaria em algo tão imbecil quanto a religião
(enquanto aquilo que permitiu, nas religiões antigas, ou impôs
diretamente, a ideia estúpida de um deus criador).
Essa violência nunca deixou de ser livre da racionalidade
que ataca. Não à toa Nietzsche diz que a “escória” (miseráveis, la-
drões, vigaristas, prostitutas, etc) não deixam de se colocar como
um meio para Deus. Ou então a ideia da democracia, entenden-
do como um modelo mais flexível para a escória, como uma
“fábrica de tiranos”. Mas mesmo se não chegarmos à formula-
ção de um modelo de governo favorável aos excluídos, a própria
ideia de que uma multidão que subtraindo o Estado constitui,
dessa maneira, algo realmente oposto é, evidentemente, ainda a
procura por um Bom Deus. O que se quer, ao fim, é uma razão

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que favoreça os fracassados... uma razão do povo... por isso en-
tão verdadeira, divina – enquanto ainda se chafurdam na lama.
Frente a isso um recuo à Platão seria mais honesto. Mas
isso, mesmo com a doçura que sentimos em Agamben, não
muda a necessidade de irmos adiante da escória. Que esta pre-
cise de algum modo se sentir importante, é isso, e apenas isso,
que mantém ainda o elo com a ordem que ela mesma não
cessa de rechaçar. Por isso ela se chafurda na própria lama, pois
espera, no fundo, PRESTÍGIO. Só que não há prestígio sem
a própria concessão dos limites que, precisamente, a excluem.
O melhor exemplo disso foi a absoluta racionalização do
mundo atual por conta da pandemia, na qual a própria multi-
dão, com seus movimentos de excluídos e desgraçados, passou
a cumprir o papel do Estado, por conta própria, de modo que
ele não seria já necessário, a multidão por si mesma é capaz de
organizar essa asneira.
Agamben foi quem melhor se pronunciou a respeito disso.
Mas nada nisso deve nos surpreender. Uma multidão que quei-
ra realmente se opor à razão que a domina deveria antes de
mais nada se opor a si mesma, mas o resultado disso não será
mais o que chamamos como multidão. Restará apenas uma
apatia que os próprios defensores da multidão irão querer
mandar para o inferno.
No fim das contas o que todos querem é transformar o pró-
prio sofrimento num meio glorioso e, para tanto, precisam ga-
rantir os limites do que faz parte de sua glória inconfessável.
Mas eles chamam isso de desejo da Multidão, e não de polícia.
Chamam de “outra justiça”, e não de glória.

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O que querem é que seus infernos pessoais de algum modo
conduzam novamente ao Paraíso. Seja o que advém com a
constituição da multidão, com as “leis” do povo, da escória e
a inserção dos excluídos, ou o que for que possa servir de luz
para “os verdadeiros sofredores” (o que também não é diferen-
te do que acontece entre os feiticeiros que só adentram no de-
solado da realidade para alcançar a “Luz”).
A filosofia de Agamben expressa um cansaço em relação à
irreverência que nunca é mantida até o fim de sua própria si-
tuação. Então ele a coloca de volta onde era melhor nunca
ter saído. Nisso ele é melhor filósofo do que a maioria. Porém
a filosofia já havia aberto uma possibilidade de se ir adiante
dessa filosofia de escória.
Foi o que tentamos mostrar com a filosofia de Bataille, mas
na verdade apenas no quanto, nos parece, ela pôde dar segui-
mento corretamente à filosofia de Nietzsche.
Nietzsche pensou sobre uma escória que livre de tudo que
a liga à Deus, de tudo que se liga a isso mesmo de modo incon-
fessável, enquanto esperanças ainda guardadas de melhoria, de
novas relações que pudessem um dia eliminar o inferno - as
várias escravizações da vida humana - pudesse, a escória, enfim
dominar o mundo.

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Este livro foi composto em Sabon
Std pela Editora Autografia e
impresso em papel offset 75 g/m².

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