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INTERESSANTE

Editorial

Homo ideus
geniales
A
rapidez, com que a humanidade criou uma vacina contra a
Covid-19, algo inimaginável há apenas uma década atrás,
foi muito mais do que sorte, foi a consequência da nossa
evolução como espécie. Somos as únicas criaturas na natureza
que questionam a sua origem, a sua evolução e o seu futuro, e que
fazem descobertas e invenções que visam melhorar a sua qualidade
de vida, encontrar o sentido da sua existência e desvendar os
mistérios do cosmos. Inventar, criar, inovar, abstrair, raciocinar,
imaginar? Isto é o que temos vindo a fazer desde que emergimos
como o género Homo há 2,8 milhões de anos. Nessa altura já
fabricávamos ferramentas de pedra (há 3,3 milhões de anos, outros
hominídeos faziam o mesmo), e entre 1,8 milhões e 800.000 anos
começámos a dominar o fogo. Desde então, a taxa de invenções e
descobertas tem crescido quase exponencialmente. Mas quais delas
moldaram a humanidade? Neste número da Edição Biblioteca de
Super Interessante,o astrofísico e escritor científico Miguel Ángel
Sabadell selecionou uma centena de invenções e descobertas
em diferentes áreas do conhecimento que representaram uma
verdadeira rutura com o modo de vida que havíamos mantido
até então e que afetaram a humanidade no seu todo.

CARMEN SABALETE
DIRETORA
Sumário

sumário
CIÊNCIA TECNOLOGIA
DESTILAÇÃO.....................................................................7 FERRO.............................................................................. 105
CALENDÁRIO MODERNO..........................................8 ARCO............................................................................... 106
ELETRICIDADE...............................................................10 PÓLVORA....................................................................... 108
FISSÃO NUCLEAR..........................................................12 BORRACHA....................................................................110
GEOMETRIA.....................................................................14 CIMENTO E BETÃO.................................................... 112
INSULINA.........................................................................16 CEIFEIRA-DEBULHADORA......................................114
MICROSCÓPIO..............................................................18 AÇO.................................................................................... 116
PLÁSTICO......................................................................... 20 ARADO............................................................................. 117
RAIO-X............................................................................... 22 ÓCULOS...........................................................................118
FRIGORÍFICO................................................................ 24 INTERNET..................................................................... 120
REVOLUÇÃO VERDE................................................... 26 LASER................................................................................122
SISTEMA MÉTRICO..................................................... 28 MÁQUINA A VAPOR.................................................. 124
TELESCÓPIO................................................................... 30 MOINHOS......................................................................126
TERMÓMETRO.............................................................. 32 COMPUTADOR............................................................ 128
DINAMITE....................................................................... 34 PILHA............................................................................... 130
RÁDIO..............................................................................132
CIVILIZAÇÃO TELEVISÃO..................................................................... 134
ESCRITA.............................................................................37 SATÉLITE..........................................................................136
AGRICULTURA............................................................... 38 RELÓGIO........................................................................ 138
SANEAMENTO............................................................... 40 TELEFONE...................................................................... 140
DINHEIRO...................................................................... 42 TELÉGRAFO................................................................... 142
DEMOCRACIA............................................................... 44 TRANSISTOR................................................................ 144
DOAÇÃO DE CONSTANTINO................................ 46 corantes.................................................................... 146
ESCOLAS........................................................................... 48 PREGO............................................................................. 148
FOGO................................................................................. 50
IMPRESSÃO......................................................................52 TRANSPORTE
LÍNGUA............................................................................. 54 roda................................................................................ 151
LEI........................................................................................ 56 bússola..........................................................................152
SISTEMA POSTAL.......................................................... 58 mapas.............................................................................. 154
farol...............................................................................156
HUMANIDADES BARCO..............................................................................157
PAPEL...................................................................................61 caminhos-de-ferro............................................158
DICIONÁRIO................................................................. 62 estradas...................................................................... 160
ROMANCE....................................................................... 64 gps..................................................................................... 161
MÚSICA............................................................................. 66 carro.............................................................................162
PINTURA.......................................................................... 68 autocarro................................................................ 164
PIADA................................................................................. 70 avião............................................................................... 166
BUDISMO..........................................................................72
CRISTIANISMO............................................................. 74 VIDA QUOTIDIANA
HINDUISMO...................................................................76 agulha de costura.............................................169
ISLÃO................................................................................. 78 máquina de costura........................................ 170
JUDAÍSMO....................................................................... 80 lâmpada ELÉTRICA..................................................172
fonógrafo................................................................174
SAÚDE máquina de escrever........................................176
VACINA............................................................................. 83 fotografia moderna........................................178
AGULHA HIPODÉRMICA.......................................... 84 água carbonatada............................................. 180
ANESTESIA....................................................................... 86 máquina de lavar................................................ 182
CONTRACEPTIVOS..................................................... 88 soutien........................................................................ 183
ANTISSÉPTICOS............................................................ 90 casa de banho........................................................ 184
ASPIRINA......................................................................... 92 SALÃO de beleza...................................................... 186
SABÃO ............................................................................... 94 Velcro............................................................................187
QUININo........................................................................ 96 boa mesa...................................................................... 188
PENICILINA.................................................................... 98 pão, vinho e cerveja......................................... 189
QUIMIOTERAPIA........................................................ 100 chá e café.................................................................. 190
PASTEURIZAÇÃO........................................................ 102 cartão de crédito..............................................192
6
1 Destilação
O processo de separação de líquidos, que é fundamental para a química atual,
já era conhecido em várias partes do mundo há vinte e três séculos.

S
e quisermos separar duas substâncias lí- outro nível. Conservam-se esquemas de destila-
quidas que tenhamos misturado anterior- dores nas obras de dois alquimistas gregos: Cleo-
mente, temos de aprender a destilar. Os patra, a Alquimista — de quem só conhecemos o
humanos aprenderam a fazer isto muito seu pseudónimo e que viveu entre os séculos III
cedo: em tabuinhas acádias datadas de e IV —, e o seu compatriota e contemporâneo,
cerca de 1200 a.C. podemos encontrar descrições Zósimo de Panápolis, que escreveu um dos mais
de processos de perfumaria, o que mostra que antigos livros conhecidos sobre alquimia. Zósimo
uma forma presumivelmente rudimentar de des- atribui a invenção do alambique à primeira verda-
tilação já era conhecida na antiga Mesopotâmia. deira alquimista, Maria, a Judia. Só sabemos que
Não há dúvida de que, com o passar do tempo, ela viveu em Alexandria por volta do século I e te-
o processo foi aperfeiçoado, e no ano 200 já se mos alguns fragmentos dos seus livros porque são
conhecia a água destilada: o mais famoso dos co- citados por autores posteriores. Estes aparecem
mentadores gregos sobre as obras de Aristóteles, sobretudo em O Diálogo de Maria e Aros sobre o
Alexandre de Afrodísia, também conhecido como Magistério de Hermes, um resumo das suas obras
o Exegeta, descreveu como fazê-lo num dos seus de um autor cristão desconhecido.
livros. Por aquela altura, temos provas de que a
destilação era conhecida em locais tão distantes EM MEADOS DO SÉCULO IX, A ALQUIMIA ÁRA-
como o Egito, a Índia e a China. BE COMEÇOU A DESTACAR-SE, e entre todos os
Mas foram os alquimistas muçulmanos, de quem seus praticantes brilhou Yabiribn Hayyan, que
tirámos o nome do aparelho utilizado na destila- é considerado o fundador da química. Escritor
ção, o alambique, embora não tenham sido eles prolífico, são-lhe atribuídos quase três mil arti-
que o inventaram, que levaram o processo para gos e livros, e o seu trabalho demonstra o valor
que dava à experimentação: “O mais
importante e essencial em química é
AGE FOTOSTOCK

realizar trabalho prático e fazer ex-


periências, pois quem não faz tra-
balho prático e experiências nunca
alcançará o menor domínio”. A Ibn
Hayyan — cujo nome foi latinizado
para Geber — é também atribuída
a utilização de mais de vinte tipos
de instrumentos que são hoje em
dia básicos em qualquer laboratório
de química, como o alambique e a
retorta empregados na destilação,
bem como a descrição de muitos
processos químicos atualmente co-
muns, como a cristalização. e

Ibn Hayyan, conhecido como Geber (c. 722-


c. 815), foi um alquimista hispano-árabe
considerado o pai da química. Utilizou ins-
trumentos tais como o alambique nas suas
experiências.

7
2 Calendário
moderno
Pensamos que o nosso tempo se rege pelas estrelas... mas mesmo o
nosso calendário atual é influenciado por crenças e decimais.

E
mbora o ciclo das estações seja evi- na mesma data, e isso significava conceber um
dente, desenhar um calendário para o calendário baseado no sol. Não sabemos bem
prever não é fácil. Apenas três medidas como o fizeram, mas há já seis mil anos cal-
regulares podem ser utilizadas para cularam que o ano solar durava 365 dias e um
contar a passagem do tempo: uma é o quarto de dia, e criaram um calendário de doze
ciclo da noite e do dia; outra é o ciclo das esta- meses de trinta dias cada um, com a adição de
ções (que assimilamos ao ano solar); e a terceira cinco dias extra — chamados epagómenos pe-
é as fases da lua. Neste caso, é fácil de contar os los gregos — dedicados aos deuses. Mas a não
vinte e nove dias entre duas luas cheias, e talvez contabilização desse quarto de dia havia de ter
seja por isso que os primeiros calendários foram o seu preço: com o passar dos anos, os meses
lunares. O problema é que um ano solar não egípcios perderam a sincronia com as estações,
tem um número inteiro de meses lunares, e isso e o inverno chegou no verão.
complica as coisas. Os romanos também estavam cientes deste
Os egípcios foram os primeiros a perceber problema. Devido às imprecisões do seu ca-
que era realmente necessário um calendário lendário, em 46 a.C. Júlio César, a conselho do
que estivesse em sincronia com as estações do astrónomo Sosígenes, decretou que o ano teria
ano, de modo que todos os anos caíssem sempre 445 dias, de modo a trazer as estações para as

ALBUM

À esquerda, um calendário
juliano romano de 1520. Acima,
o Papa Gregório XIII, que
ordenou saltar dez dias a partir
de 1582 e ajustar o calendário
às celebrações católicas.

AGE

8
O primeiro calendário solar, de acordo com o Nilo
O s egípcios foram os primeiros a descobrir
a duração do ano solar e a defini-lo de uma
forma prática. Desenvolveram um calendário
(chamado em astronomia o nascimento he-
liacal), o novo ano começava e os cinco dias
epagómenos eram dias de festa celebrando o
que satisfazia as necessidades diárias dos seus nascimento dos seus deuses.
habitantes, que eram determinadas por aquele

AGE
que decidia o ritmo de vida: o Nilo. O calendário
egípcio primitivo era um nilómetro, um simples
pau vertical no qual o nível da água era marcado
todos os anos. Foi aí que tudo começou: basta-
va observar o ciclo do Nilo durante alguns anos
para se perceber que não correspondia às fa-
ses da lua. Assim, conceberam um ano de doze
meses com trinta dias, mais outros cinco dias: o
ano do Nilo, que os egípcios começaram a utili- O nilómetro
media a cla-
zar em 4241 a.C., acabava de nascer. ridade e o
O início do ano fixaram-no em relação a ou- nível da
tro corpo celestial: a estrela mais brilhante do água do rio
firmamento, Sirius. Quando aparecia no hori- durante a
zonte, ao mesmo tempo que o Sol se punha época das
cheias.

datas certas, e que no ano seguinte entraria em dos Huguenotes no dia de São Bartolomeu em
vigor uma reforma do calendário, que se de- Paris. Dez anos após o massacre, em 1582, Gre-
nominaria a partir de então juliano. Os meses gório XIII ordenou que ao dia 4 de outubro se
passariam a ter 30 ou 31 dias e acrescentar- seguisse o dia 15 do mesmo mês, para que no
-se-ia de quatro em quatro anos mais um dia, ano seguinte o equinócio da primavera caísse
“repetido no sexto dia antes do primeiro dia do no dia certo, a 21 de março. Esta data era — e é
mês de março”, ensanduichado entre 23 e 24 — muito importante para a Igreja, pois o equi-
de fevereiro. Mas apesar desta reforma, ainda nócio da primavera define a celebração mais
havia alguns problemas com o calendário. Para importante da cristandade: o aniversário da
começar, era onze minutos e meio mais longo morte e ressurreição de Jesus.
do que o ano solar, e ao longo dos séculos es-
ta pequena diferença começou a notar-se: em PARA EVITAR QUE ESTE DESFASAMENTO SE
1582 o dia do equinócio para primavera, 21 de REPETISSE, o novo calendário, chamado gre-
março, estava deslocado dez dias para 11 de goriano, suprimiu o dia bissexto nos anos que
AGE
março. terminassem em centenas, a menos que fossem
Foi então que divisíveis por quatrocentos. Mas a autoridade
entrou em ação da Igreja Católica estava a ser questionada pelos
Gregório XIII, movimentos reformistas, e a Europa protes-
o papa que será tante recusou-se a aceitar esta reforma por vir
lembrado para de Roma; não se convenceram da tal mudança
sempre pela sua até ao final do ano de 1752. Durante 170 anos, os
oração de ação de europeus viveram com dois calendários.
graças em 1572 Quando Gregory XIII decidiu retirar esses
após o massacre dez dias em 1572, houve muitos protestos. Al-
guns cidadãos recusaram-se a aceitar que as
suas vidas fossem encurtadas pelo direito pa-
Um calendário de
pedra do século II pal, e os trabalhadores exigiram o seu salário
encontrado no Cam- integral no mês reduzido, mas, como seria de
po Marzio em Roma. esperar, os seus empregadores recusaram. e

9
3 Eletricidade
Muito antes de de se saber qualquer coisa sobre ela, os egípcios conhe-
ciam um peixe do Nilo que causava um doloroso formigueiro.
IMÁGENES: AGE
da Rainha Isabel, William Gilbert, publicou De
O físico dinamarquês Oersted demonstrou a ligação en- Magnete, o primeiro tratado puramente expe-
tre eletricidade e magnetismo em 1820, o que abriu o rimental da ciência moderna. Gilbert viu que o
caminho para uma febre de investigação em física. efeito criado pela magnetite e o produzido pelo
âmbar eram totalmente diferentes, e deu-lhe o
nome da palavra grega para esta peça de resina
fossilizada: elektron. Mas a primeira utilização
da palavra eletricidade deve-se ao estudioso
inglês e melancólico inveterado Thomas Brow-
ne, que a introduziu no seu trabalho de 1646,
Pseudodoxia Epidemica, no qual combateu os
erros e superstições do seu tempo.

NOS SÉCULOS SEGUINTES, SURGIRAM INÚ-


MERAS INVESTIGAÇÕES para tentar determi-
nar as propriedades do fenómeno feitas por fi-
guras tão ilustres como o burgomestre de Mag-
deburgo Otto von Guericke — que construiu o
primeiro gerador eletrostático, embora ele não
o soubesse —, o químico inglês Robert Boyle —
que determinou que a repulsão elétrica se veri-
ficava mesmo no vácuo — ou as não menos fa-
mosas experiências de Benjamin Franklin com
o seu cometa. Franklin ficou tão fascinado pela
eletricidade que vendeu grande parte da sua ri-
queza para continuar a sua investigação.
No final do século XVIII, Luigi Galvani obser-
vou que uma perna de sapo dissecado se contraía
quando colocada sobre uma mesa perto de um
gerador eletrostático — chamou a isto eletrici-
dade animal — algo que chamou a atenção de
Alessandro Volta, o que o levou a inventar a pri-

E
meira bateria elétrica (pilha voltaica) que conse-
ra conhecida desde os tempos do an- guia manter um fluxo constante de corrente. A
tigo Egito graças a um animal, o pei- sua invenção abriu caminho à investigação que
xe-gato eléctrico, que era chamado permitiu que a água fosse decomposta nos seus
o trovão do Nilo. Este peixe-gato era elementos pela passagem da corrente elétrica.
capaz de produzir uma eletrocussão de Humphry Davy e o seu jovem assistente Michael
mais de 350 v. Tales de Mileto experimentou a Faraday dividiram a água em hidrogénio e oxi-
eletricidade estática criada ao esfregar o âmbar génio e obtiveram sódio e cloro. No entanto, es-
com um pedaço de lã por volta de 600 a.C. Mas te processo de decomposição elétrica e a causa
os gregos confundiram-na com outro miste- da migração dos seus produtos para os polos da
rioso fenómeno ligado a uma rocha peculiar, o bateria criou uma controvérsia animada. A lição
magnetismo. que se tirava era que as reações químicas produ-
Durante séculos, a eletricidade permaneceu ziam eletricidade e a eletricidade produzia rea-
uma curiosidade, até que em 1600 o médico ções químicas, nada mais do que isso.

10
No século XVIII, Luigi Galvani descobriu que as
pernas de um sapo dissecado se moviam se rece-
bessem uma faísca de eletricidade.

A grande síntese veio de um escocês, Ja-


mes Clerk Maxwell, que chegou à conclu-
são de que todos os tipos de eletricidade
conhecidos até então (estática, galvânica,
termoelétrica...) eram os mesmos, que a
eletricidade não era uma substância e que
a luz, a eletricidade e o magnetismo esta-
vam relacionados. Após duas décadas de
intenso trabalho, conseguiu completar a
sua grande obra A Dynamical Theory of
the Electromagnetic Field, que dividiu
Até 1819 acreditava-se que o magnetismo e em sete partes e a apresentou numa reunião da
a eletricidade eram dois fenómenos comple- Royal Society em dezembro de 1864. Nela des-
tamente diferentes. Foi durante o inverno do creveu aquilo a que chamou “a teoria eletro-
início desse ano que um professor de física da magnética da luz”. Assim começava a obra: “A
Universidade de Copenhaga chamado Hans teoria que proponho pode ser chamada de teo-
Christian Oersted observou durante uma pa- ria do campo eletromagnético, porque tem a ver
lestra pública sobre magnetismo que, quan- com o espaço na vizinhança dos corpos elétricos
do uma bússola se aproximava de um fio que e magnéticos, e pode ser chamada de teoria di-
transportava eletricidade, a agulha mudava nâmica porque assume que há matéria em mo-
de direção e deixava de apontar para norte. vimento no espaço, que produz os fenómenos
Esta e outras descobertas levaram o francês eletromagnéticos observados”.
André-Marie Ampère a pensar que se a cor- Como acontece frequentemente quando
rente elétrica se comportava como um íman, se apresenta uma grande teoria antes do seu
deveria ser de alguma forma um íman. Am- tempo, ninguém lhe prestou muita atenção ou
père demonstrou também que dois fios que compreendeu que se tratava de uma verdadei-
transportam corrente elétrica se repeliam ou ra revolução científica. e
se atraem um ao outro da mesma forma que
dois ímanes. Nos anos seguintes, trabalhou
arduamente para obter uma teoria matemá-
tica que explicasse os resultados obtidos até
então. Em 1825 publicou o seu grande traba-
lho, Mémoire sur la théorie mathématique
des phénomènes électrodynamiques uni-
quement déduite de l’experience, uma obra
que tem sido considerada os Principia da
eletrodinâmica.

EM 1831, MICHAEL FARADAY ERA DIRETOR


do laboratório da Royal Institution e demons-
trou numa série de experiências engenhosas e
brilhantes que uma corrente elétrica podia ser
induzida numa bobina de cobre por meio de um
íman. O detalhe crítico ao fazer isto, que Fara-
day quase descobriu por acaso, foi que a cor-
rente só era produzida se o íman fosse movido
na presença do fio. Se deixava quieto o íman
ao lado do fio, não se media nada: este simples
facto é o que está por detrás de qualquer dis-
positivo que ligamos. Estas descobertas mos-
traram que o magnetismo e a eletricidade eram Benjamin Franklin provou a utilidade das suas teorias sobre
apenas aspetos do mesmo fenómeno. eletricidade e metais por meio de pára-raios.

11
4 Fissão nuclear
A possibilidade de gerar alterações nos núcleos dos átomos a
partir do neutrão estimulou a investigação sobre a sua divisão.

AGE
Numa central nuclear, o calor
gerado pelo reator é transferi-
do, sob a forma de água
quente pressurizada, para um
circuito de água separado que
produz vapor para acionar as
turbinas e gerar eletricidade.
À direita, uma ilustração do
momento da divisão do átomo
na fissão nuclear.

AGE

A
descoberta do neutrão em 1932, a gem judaica e teve de fugir, como tantos outros,
partícula sem carga elétrica que da Alemanha nazi. Trabalhava no laboratório
faz parte do núcleo atómico, abriu do físico Manne Siegbahn no Departamento de
uma nova etapa na síntese de no- Física do Instituto Nobel da Academia Sueca
vos elementos químicos. Como é das Ciências, onde foi completamente ignora-
eletricamente neutro, pode entrar livremente da (apenas a sua correspondência com Hahn
no núcleo atómico e provocar alterações, uma e Strassmann e com o pai da teoria quântica,
possibilidade que foi investigada pelo físico ita- Niels Bohr, a manteve no mundo da ciência).
liano Fermi em 1934. Que isto poderia produzir
novos elementos químicos incitou os cientistas A 10 DE NOVEMBRO DE 1938, HAHN, QUE TI-
alemães Otto Hahn e Fritz Strassmann do Ins- NHA IDO A COPENHAGA para dar uma pales-
tituto de Química Kaiser Guilherme em Berlim tra, encontrou-se com ela, Bohr e Otto Frisch
a bombardear átomos de urânio com neutrões (sobrinho de Meitner, cuja paixão pela física
lentos. Nas suas experiências descobriram que herdou) porque certos resultados não o con-
havia algo que não conseguiam explicar, e foi venciam: ao bombardear urânio com neutrões
nessa altura que entrou em cena uma antiga parecia ter produzido tório e rádio. Estes dados
colega de ambos, Lise Meitner, que tinha co- não convenceram Meitner, que o exortou a re-
meçado a trabalhar com Hahn em 1907 sem re- petir a experiência. Para ela, era impossível que
muneração e em segredo, pois a Universidade o rádio tivesse aparecido. Hahn fê-lo: a 19 de
de Berlim não gostava de ver mulheres a rondar dezembro escreveu a Meitner que o rádio que
os laboratórios. Em 1938 Meitner vivia em Esto- afirmava ter encontrado comportava-se qui-
colmo, porque, embora protestante, era de ori- micamente como bário. Hahn não podia aceitar

12
AGE
Nasce a bomba atómica
A 16 de julho de 1945 às 5h30 da ma-
nhã, num canto do campo de tiro da
Força Aérea em Alamogordo, o físico Julius
Robert Oppenheimer acaba de dar a ordem
para detonar a primeira bomba atómica da
história. O General Farrell, um assistente do
Lise Meitner e Otto Hahn trabalharam juntos na divisão General Groves — o homem responsável
do átomo em 1938. Só ele recebeu o Prémio Nobel. pelo Projecto Manhattan — relatou: “Toda
a região foi banhada por uma luz devorado-
que fosse bário porque nenhum processo con-
ra... Em trinta segundos deu-se a explosão,
hecido produzia um núcleo com uma diferença
a pressão do ar atingiu duramente os seres
de massa tão grande em relação ao seu prede-
cessor, e a diferença de massa entre o urânio e o e as coisas, e quase imediatamente se ouviu
bário era de 40%. Como poderia o bário ter sido um rugido persistente e lúgubre, como um
formado a partir do urânio? anúncio da vinda do dia do juízo final”. Este
O Natal aproximava-se, e Hahn e Strassmann foi o resultado de pouco mais de dois anos
queriam deixar tudo acabado, por isso não es- de trabalho no laboratório de Los Álamos no
peraram pela resposta de Meitner e enviaram os Novo México.
seus resultados à revista Naturwissenschaften Além da bomba que tinha acabado de ex-
a 22 de dezembro. Para Meitner, o que estava plodir, duas outras foram construídas: uma
em jogo era um novo fenómeno, e juntamente com uma aparência arredondada que foi
com Frisch dedicou o Natal a articular uma teo-
apelidada de Fat Man, e outra com uma apa-
ria que explicaria como o núcleo de um átomo
rência magra e magra que lhe valeu o apeli-
poderia dividir-se em núcleos mais pequenos e
porque é que se libertava tanta energia. Quan- do de Little Boy.
do informaram Bohr, este bateu com a mão na Assim que o teste experimental foi con-
testa e disse: “Que tolos fomos nós!” Tinham cluído, vários B-29s da base de Roswell par-
perante eles um novo fenómeno que precisava tiram para o Pacífico com eles a bordo. Às
de um nome. Frisch falou com o biólogo Wil- 2h45 do dia 6

AGE
liam Arnold e perguntou-lhe como se dizia em de agosto, um
biologia quando uma célula se dividia em duas: dos bombar-
fissão, respondeu. deiros chama-
do Enola Gay,
A 7 DE JANEIRO DE 1939, BOHR DEVERIA VIA-
que tinha sido
JAR PARA OS ESTADOS UNIDOS PARA par-
adaptado para
ticipar numa conferência na Universidade de
Princeton. Ele concordou com Meitner e Frisch transportar o
que não mencionaria nada sobre a sua descoberta Little Boy, des-
até ser publicada, e estes enviaram-na à revista colava da ilha
Nature a 16 de janeiro de 1939 (foi publicada no de Tinian, perto
mês seguinte). Mas, na viagem de barco aos Es- de Guam, nas
tados Unidos, Bohr comentou a um colega sobre Ilhas Marianas.
o novo fenómeno da fissão nuclear e esqueceu- O seu destino:
se de lhe dizer que se tratava de um fenómeno Hiroxima.
confidencial. Este colega, quando lhe pergunta-
ram numa reunião informal se sabia de algo no-
vo, revelou o que sabia. Quando Bohr descobriu, Anos mais tarde, a Real Academia Sueca das
envergonhado, enviou uma nota à Nature em Ciências anunciou que Hahn iria receber o Pré-
defesa da prioridade de Meitner e Frisch, algo mio Nobel da Química de 1944 pela sua desco-
que incomodou muito Hahn, uma vez que a no- berta da fissão de núcleos atómicos pesados, e
ta não o mencionava nem a Strassmann. A fissão ignorou os que realmente sabiam o que se estava
nuclear já era um facto científico. a passar: Meitner e Frisch e

13
AGE
Rafael retratou Euclides ensinando geometria
a um grupo de estudantes no famoso fresco
A Escola de Atenas que adorna as paredes do
Palácio Apostólico no Vaticano.

5 Geometria
Se existe um ramo da matemática que descreve com precisão a
forma como percebemos a realidade, é este que Euclides compilou.

O
s antigos egípcios imaginavam seus lados, contendo os quatro pontos cardeais.
que a Terra tinha a forma de um Para outros povos, o universo era uma roda, ou
ovo, e pensavam que era protegi- mesmo um tetraedro.
da durante a noite pela Lua, uma
grande ave branca. Homero en- DISCOS, OVOS, QUADRADOS... SÃO TUDO FOR-
tendia o nosso planeta como um disco redon- MAS, E O ESTUDO das formas é o estudo da geo-
do rodeado pelo rio Oceano, algo que divertia metria. Juntamente com a aritmética — a arte da
Heródoto, que pensava ser óbvio que o nosso adição e da subtração — provavelmente não existe
planeta estava rodeado por um deserto. Para nenhum ramo da matemática mais próximo da
Ésquilo, a Terra era um paralelogramo bem pro- realidade que percebemos.
porcionado. Em contraste, os astecas acredita- A geometria pode ser vista para onde quer
vam que vivíamos num quadrado. De facto, o que olhemos: desde as conchas de alguns mo-
universo inteiro limitava-se a cinco quadrados, luscos até à rosácea no portal da Catedral de
um central e os outros quatro em cada um dos Chartres, desde as parcelas e muros de cultivo

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numa aldeia até ao cristal de sal comum. Sem Sabemos muito pouco sobre Euclides. Pensa-se
geometria, é impossível estabelecer algo tão que nasceu por volta de 325 a.C. Embora tanto o
simples e ao mesmo tempo tão necessário co- local onde veio ao mundo como as circunstâncias
mo a extensão das terras agrícolas. Queiramos da sua morte sejam completamente desconheci-
ou não, utilizaremos a geometria que nos ensi- dos, crê-se que morreu por volta de 270 a.C. em
naram na escola e multiplicaremos o compri- Alexandria. Algumas fontes medievais mencio-
mento pela largura. nam que ele nasceu em Mégara, mas isto é um er-
ro, pois referem-se a outro Euclides, um filósofo
GEOMETRIA — COM UM ‘G’ MAIÚSCULO — socrático do século V a.C. Raramente é mencio-
NASCEU HÁ 2300 anos na então próspera e nado pelo nome por outros antigos matemáticos,
florescente cidade de Alexandria. A dinastia e desde Arquimedes é conhecido como o autor
macedónia dos Ptolomeus tinha construído dos ‘Elementos’. As primeiras referências vêm
um templo dedicado às Musas — o Museion ou do matemático Proclus cerca de 450, quase sete
Museu —, famoso pela sua grande biblioteca séculos mais tarde, no seu Comentário sobre Eu-
contendo milhares de pergaminhos trazidos de clides, que é a fonte de referência sobre geome-
todas as partes. Foi aí que Euclides escreveu um tria na Grécia antiga .
dos textos mais famosos da história da mate- Segundo ele, Euclides viveu no tempo de Pto-
mática: Elementos. Composto por treze livros, lomeu I, que reinou no Egito entre 325 e 285
este tratado é importante por duas razões: a.C., e menciona uma conversa — possivelmen-
primeira, porque compila tudo o que se sabia te apócrifa — entre o matemático e o seu rei:
sobre geometria até essa altura; e segunda, “Ptolomeu perguntou-lhe uma vez se não havia
porque o fazia de uma forma que permanece- um caminho mais curto para a geometria do que
ria para sempre como método de trabalho em os seus Elementos, ao que ele respondeu que
matemática. A partir de alguns postulados, que não havia um caminho real para a geometria”.
se aceitavam sem demonstração, já que são tão Proclus refere ainda que Euclides era mais ve-
evidentes, deduzem-se todas as consequências lho que Arquimedes e Eratóstenes. Não sabemos
possíveis, todos os teoremas. De facto, Euclides muito mais sobre o autor de um livro que se diz
partiu de apenas cinco postulados, e com eles ser o livro mais traduzido, publicado e estudado
construiu o que conhecemos como geometria. do mundo ocidental, sem contar com a Bíblia. e

GETTY AGE FOTOSTOCK

À esquerda, página de rosto da primeira edição inglesa de Os Elementos de Euclides, de 1570. À direita, uma página com
diagramas da primeira edição impressa — publicada em Veneza em 1482 — com texto em latim, correspondente à parte
final da proposição 14 do Livro II, e os comentários iniciais e a proposição 1 do Livro III.

15
6 Insulina
Desde finais do século XIX, os cientistas têm vindo a investigar
formas de melhorar a vida dos diabéticos graças a esta hormona.

E
m 1889, Josef von Mering e Oskar Min- gação entre esta víscera e a diabetes. Pesquisas
kowski estavam a estudar a função do posteriores mostraram que o pâncreas produz
pâncreas durante a digestão, e para is- uma secreção que controla o uso orgânico do
so removeram esta glândula de um cão. açúcar, e a ausência desta secreção causa defeitos
Ao iniciarem as suas pesquisas, ficaram no metabolismo da glicose que aparecem como
surpreendidos com uma reviravolta inesperada sinais de diabetes. O passo seguinte foi, eviden-
quando um dos seus assistentes apontou algo temente, isolar esta substância fundamental,
que lhe pareceu peculiar: havia uma grande denominada insulina em 1916 pelo fisiologista
quantidade de moscas à volta da urina do cão. inglês Edward Albert Sharpey-Schafer.
Intrigados com a enxameação de dípteros à vol- Muitos tentaram e falharam. Em outubro de
ta da poça de urina, Von Mering e Minkowski 1920, o cirurgião canadiano Frederick Banting
examinaram-na. A causa era bastante simples: convenceu-se de que a melhor maneira de obter
estava cheia de glicose. E a existência deste açú- um extrato puro de insulina era provocar uma
car na urina é um indicador comum da diabetes. atrofia do pâncreas, deixando intactas as suas
Os dois médicos alemães notaram um detalhe: ilhotas de Langerhans, fábricas de insulina e glu-
o facto de o cão não ter pâncreas sugeria uma li- cagon. Escreveu no seu livro de trabalho: “Ligar

AGE
CORDON

Acima, John J.R. Macleod, um médico


escocês que em 1923 partilhou o Pré-
As primeiras insulinas no mercado eram de origem animal e mio Nobel da Medicina com o canadia-
GETTY

causavam reações adversas em alguns pacientes. no Frederick Banting pela extração de


insulina terapêutica de animais.

16
O grande sucesso da engenharia genética
D urante os sessenta anos após a primeira
injeção de insulina na história, a insuli-
na era obtida de vacas e porcos. Permanecia
Para o fazer, utilizaram a bactéria modelo para
a investigação biológica, Escherichia coli. Inse-
riram o gene que codifica a insulina em huma-
sempre o mesmo problema desde o início: nos no seu genoma usando o vetor pBR322,
as impurezas que continha, que causavam um plasmídeo — um anel de ADN não infecio-
problemas alérgicos, tais como erupções so que se replica autonomamente dentro das
cutâneas. Em 1963, a insulina voltou a fazer células — criado em 1977 num laboratório da
história como a primeira proteína a ser sinte- Universidade da Califórnia em São Francisco
tizada in vitro. Foi alcançado quase simulta- pelo mexicano Francisco Bolívar Zapata. O re-
neamente por duas equipas de investigado- sultado foi uma insulina humana barata, poten-
res: uma na Alemanha, liderada por Helmut te e segura, sem os problemas de alergia dos
Zahn na Universidade Técnica de Aachen, seus homólogos animais. Comercializada como
e a outra nos Estados Unidos, liderada por Humulina, foi a primeira proteína recombinante
Panayotis G. Katsoyannis na Universidade aprovada como medicamento.
de Pittsburgh.

AGE
Mas foi só em 1978 que, graças ao desen-
volvimento da engenharia genética, e em parti-
cular da técnica de ADN recombinante, Arthur
Riggs e Keiichi Itakura, do Beckman Research
Institute, e Herbert Boyer, da Genentech (uma
filial da multinacional Roche), conseguiram
sintetizar a insulina utilizando técnicas biotec-
nológicas. Tornou-se a primeira proteína obti- Caneta de injeção de humulina, a primeira insulina
da desta forma. humana sintetizada pela Genentech em 1978.

ductos pancreáticos do cão. Manter os cães vivos mas Macleod sugeriu que os repetissem com
até os acinos degenerarem, libertando as ilhotas. um desenho experimental melhorado. Estes
Tentar isolar a sua secreção interna e aliviar a gli- segundos resultados também foram bem su-
cosúria [nível elevado de glicose na urina]”. cedidos, mas tiveram o inconveniente de a ex-
tração da insulina canina ter demorado várias
NA PRIMAVERA DE 1921, BANTING EXPLICOU semanas. Banting pensou que ganharia tempo
A SUA IDEIA A John James R. Macleod, Profes- se utilizassem o pâncreas de fetos de bezerros:
sor de Fisiologia na Universidade de Toronto, em dezembro tinham até conseguido extrair
Canadá. Macleod não ficou muito convencido insulina do pâncreas de uma vaca adulta.
com a proposta, mas fez o que um cientista de- A 11 de janeiro de 1922, a primeira injeção
ve fazer: comprovar se a ideia podia funcionar de insulina foi dada a um rapaz de cator-
independentemente do que se pudesse acredi- ze anos, Leonard Thompson. Infelizmente,
tar. Ofereceu a Banting um laboratório e dois o processo de purificação não tinha corrido
assistentes, Charles Best e Clark Noble. Mas muito bem, fazendo com que o rapaz sofres-
Banting só precisava de um, por isso deixaram se uma série de reações alérgicas tão graves
a sorte decidir: atiraram uma moeda ao ar e ga- que o tratamento foi cancelado. Os doze dias
nhou Best. A 31 de julho de 1921, Banting e Best seguintes foram uma corrida contra o tempo
isolaram a secreção das ilhotas de Langerhans para obter um extrato aceitável do pâncreas
e injetaram-na noutro cão cujo pâncreas tinha de um boi. A 23 de janeiro, o jovem Leonard
sido previamente removido: no espaço de uma foi injetado com uma segunda dose e desta
hora, os níveis de açúcar no sangue baixaram vez funcionou quase sem reações adversas.
em 40%. Graças à insulina, Leonard sobreviveu tre-
Alguns meses mais tarde, Banting e Best ze anos ao que até então se considerava uma
apresentaram os seus resultados a Macleod, doença fatal: diabetes tipo 1. e

17
Modelo em tamanho real do microscópio
do neerlandês Antonie van Leeuwenhoek.

IMÁGENES: AGE

7 Microscópio
O utensílio que nos permite ver as coisas mais pequenas tem uma
história semelhante à do telescópio e tem gerado o mesmo interesse.

O
s microscópios compostos nas- que ele concebeu para a marinha inglesa nesse
ceram quase ao mesmo tempo mesmo ano.
que o telescópio: se uma combi- Também não é surpreendente que os mesmos
nação de lentes pudesse aproxi- nomes que estiveram envolvidos na invenção do
mar objetos distantes, não havia telescópio também apareçam aqui, repetindo
nada que impedisse outra de tornar visível o as mesmas coisas. Temos Johannes Zacharias-
minúsculo. Devemos um destes primeiros mi- sen, que disse que o seu pai Zacharias Janssen
croscópios a Cornelius Drebbel, um inventor tinha inventado o microscópio — disse a mes-
holandês que por vezes é chamado o Edison ma coisa sobre o telescópio — em 1590. Depois
do seu tempo. Por volta de 1620, quando esta- temos Hans Lippershey, o primeiro a patentear
va ao serviço do Duque de Buckingham, mos- o telescópio e que também reivindicou a pater-
trou-lhe o seu microscópio feito de duas lentes nidade para o dispositivo. Alguns apontam para
convexas. O nobre não deve ter ficado muito Galileu como o inventor, mas o que ele fez foi
entusiasmado, pelo menos não tanto como melhorar o que tinha visto de Drebbel em Roma
com outra das suas invenções: o submarino, em 1624 (como já tinha feito com o telescópio).

18
Chamou-lhe occhiolino, ‘olho pequeno’, mas que a extensão é proporcional à força, e explica
no ano seguinte o médico papal Giovanni Faber a elasticidade de uma mola.
rebatizou-o para microscópio (do grego ‘olhar Mas foi o neerlandês Antonie van Leeuwe-
para o pequeno’) numa reunião da Academia nhoek, um homem de negócios que se tornou
Nacional dos Linces em Roma (como tinha feito cientista, que levou a microscopia a outro nível.
com o telescópio). E até a história da ciência por Aquele que é considerado o pai da microbiolo-
vezes se repete... gia era um observador hábil e persistente como
poucos: construiu ele próprio um microscópio
MAS OS PARALELISMOS ENTRE OS DOIS INS- com uma ótica tão boa que era capaz de alcan-
TRUMENTOS não terminam aí. Se o telescópio çar trezentos aumentos. Observador apaixona-
revolucionou a nossa posição no universo, o do das coisas mais pequenas, a 9 de outubro de
microscópio revolucionou a nossa compreen- 1676 relatou a descoberta da existência de mi-
são da vida. O primeiro a descrever em detalhe crorganismos, as bactérias, que duzentos anos
um tecido orgânico foi o presbítero e astró- mais tarde abririam as portas a uma das bases
nomo Giovanni Battista Odierna no seu livro da medicina moderna: a microbiologia.
O Olho da Mosca de 1644. Mas o verdadeiro No ano seguinte, Leeuwenhoek fez outra
best-seller, aliás o primeiro na história da lite- grande descoberta: o espermatozóide huma-
ratura científica, foi Micrographia, principal- no. Detetou-o quando observou a ejaculação
mente devido às suas espetaculares ilustrações de um doente com gonorreia, que um estu-
de insetos e plantas vistos ao microscópio. É dante de medicina lhe trouxe para ser exa-
neste livro que a palavra célula aparece pela minado. Leeuwenhoek descobriu pequenos
primeira vez. O seu autor foi um brilhante, ar- animais com caudas, e, surpreendido, exa-
rogante, orgulhoso e conflituoso cientista in- minou o seu próprio sémen para confirmar a
glês chamado Robert Hooke, que entrou para a sua existência. Tal como no caso das bactérias,
história como aquele que enunciou a lei mais levámos dois séculos a perceber o significado
curta da física: ut tensio, sic vis, que significa desta descoberta. e

À esquerda, uma reconstrução em tamanho real do microscópio utilizado pelo cientista inglês Robert Hooke (1635-1703)
nas observações que lhe permitiram publicar Micrographia, um trabalho em que apresentou ilustrações tão avançadas pa-
ra a época como as das imagens da direita.

19
8 Plástico
Insubstituível nas nossas vidas, este material foi desenvolvido
devido à dificuldade de produzir grandes quantidades de marfim.

AGE
m meados do século XIX, um grande britânica, mas sim vital
número de caçadores brancos percor- para adornar as casas
ria a África abatendo elefantes. Tama- do Império Britânico e
nha mantança devia-se a uma mistura jogar bilhar. As melho-
de diversão e negócios: o mercado do res bolas de bilhar eram
marfim na Europa e na América triplicara em feitas com o coração das
trinta anos. A Inglaterra importava meio mi- melhores presas de ele-
lhão de quilos de marfim por ano. Se uma pre- fante. A escassez destes
sa de elefante pesa cerca de 30 quilos, mais de proboscídeos em África
8300 elefantes tiveram de ser exterminados só era uma má notícia para
para cobrir as necessidades anuais inglesas. os jogadores de bilhar.
O marfim não era um material estratégico O Império Britânico não
necessário para a sobrevivência da indústria podia parar por causa Alexander Parkes, inventor da
de alguns elefantes. parkesina.
AGE

EM 1869, OS FABRICANTES DE BOLAS DE BI-


LHAR PHELAN E COLLANDER ofereceram um
prémio de 10 mil dólares a quem pudesse en-
contrar um substituto para o marfim. A oferta
chamou a atenção de dois irmãos impressores de
Nova Iorque, John e Isaiah Hyatt. Para começar,
compraram uma patente inglesa de 1862, em
nome do químico Alexander Parkes. Referia-se
a um material chamado parkesina, que era es-
sencialmente nitrocelulose tratada com ácido
nítrico e um solvente: foi o primeiro plástico na
história. Parkes tinha apresentado a sua inven-
ção na Exposição Universal de Londres em 1862,
onde lhe foi atribuída uma medalha de ouro. De-
vido ao seu sucesso, Parkes começou a produzir
objetos com o seu parkesin: cabos para facas,
botões, dentes artificiais, caixas de joias... O em-
preendimento foi de curta duração, pois a sua
empresa, localizada no popular bairro londrino
de Hackney, faliu em 1868.
Com a patente de Parkes, os irmãos Hyatt
puseram-se a trabalhar. Após vários fracassos,
acabaram por obter um material que era indis-
tinguível do marfim original. Fácil de moldar,
duro, uniforme e resistente à água, óleos e áci-
dos, tinha o aspeto, com o tratamento adequa-

Fábrica de nitrocelulose, um composto altamente inflamá-


vel que se tornou o principal ingrediente da pólvora mo-
derna e das primeiras fibras e plásticos artificiais.

20
GETYY
do, de marfim, coral, âmbar, ônix e até
mármore. Isaiah chamou-lhe celuloide.
Mas a história deste novo material não
estaria completa se não voltássemos a 1833,
quando um químico francês chamado Hen-
ri Braconnot passou parte do seu tempo a
experimentar a química vegetal, ou, por
outras palavras, a brincar com ácido nítri-
co e batatas. Pouco tempo depois, um pro-
fessor da Universidade de Basileia chamado
Christian Schönbein realizou o mesmo tipo
de experiência, mas substituindo as batatas
por algodão hidrófilo e adicionando ácido
sulfúrico. O resultado final foi um novo ti-
po de arma: algodão explosivo ou nitrato de
celulose, que encantou os militares, pois era
três vezes mais potente do que a pólvora e
não produzia nem fumo nem o típico dispa-
ro de tiro, pelo que o inimigo não conseguia
ver de onde vinha.
Em 1958, o Dr. McCabe do Instituto Nacional do Coração (EUA)
TAMBÉM TINHA AS SUAS APLICAÇÕES
mostra um coração feito de cloreto de polivinilo ou PVC.
CIVIS: misturado com éter, era utilizado
como antisséptico; se misturado com cânfora, dentistas. Devido à cânfora, este marfim artifi-
aquecido e um pouco torcido, aparecia o celu- cial tinha um odor penetrante, e aproveitaram
loide dos Hyatts. Estes irmãos perceberam que este facto para o publicitar como um dente que
tinham uma mina em mãos, pois o seu celuloide cheirava a limpo. Claro que também tinha os seus
podia substituir o marfim em todas as suas apli- inconvenientes: como Schönbein experimentou,
cações. Por exemplo, como dentes falsos para os em certa ocasião, um destes dentes explodiu. e

E o PVC chegou
A descoberta do cloreto de polivinilo ou
PVC foi pura serendipidade, e duas vezes:
a primeira pelo químico francês Henri Victor
nas em 1926 que Waldo Semon, que tinha
sido contratado pela B. F. Goodrich Com-
pany nos Estados Unidos para desenvolver
Regnault em 1835, a segunda pelo alemão um substituto sintético para a cada vez mais
Eugen Baumann em 1872. Em ambos os ca- cara borracha natural, inventou o cloreto de
sos apareceu depois de expor o cloreto de polivinilo plastificado, que patenteou sob o
vinilo (um gás doce, incolor, instável a altas título “Composição sintética similar à borra-
temperaturas e facilmente inflamável) à luz cha e seu método de fabricação. Método de
solar, o que deixou um sólido branco. Não sa- preparação de produtos de halogeneto de
bemos bem porquê, mas nenhum dos cientis- polivinilo”.
tas se candidatou a uma patente. Quem o fez Os primeiros produtos vinílicos produzidos
foi outro alemão, Friedrich Klatte, em 1913, pela Semon foram bolas de golfe e saltos al-
quando inventou um novo método de poli- tos, bem como revestimentos resistentes à
merização (o processo pelo qual pequenas água para tecidos. A procura disparou duran-
moléculas constroem moléculas maiores) do te a Segunda Guerra Mundial, quando o PVC
cloreto de vinilo com luz solar. começou a ser utilizado como isolamento de
Embora tenha patenteado o processo, não cabos em navios militares. Atualmente, o PVC
viu qualquer utilidade real para o PVC, talvez é o terceiro maior plástico vendido no mundo,
por ser tão difícil trabalhar com ele. Foi ape- depois do polietileno e do polipropileno.

21
9 Raios X
Röntgen ofereceu à ciência sua descoberta, que tanto tem ajudado
no diagnóstico e na conceção de terapias graças às radiografias.

E
m meados do século XIX, os cientistas na-se condutor. O que se observa é uma des-
ficaram entusiasmados com as descar- carga elétrica, um raio de luz brilhante a viajar
gas elétricas produzidas naquilo que do terminal negativo para o terminal positivo.
poderia ser considerado o antepassa- Se mais ar for retirado e a pressão for reduzida
do dos anúncios de néon: um tubo de para uma milésima parte do normal, os raios
vidro fechado com cerca de 90 cm de compri- desaparecem e um brilho ténue enche o tubo.
mento, nas extremidades do qual tinham sido Nos anos 1870, o excelente químico e físico ex-
soldados elétrodos metálicos ligados a uma perimental William Crookes estudou este tubo
corrente de alta voltagem. Em condições nor- de descarga e aperfeiçoou-o. Criou assim o que
mais, o ar é um mau condutor de eletricidade, ficou conhecido como o tubo de Crookes.
mas se a pressão for suficientemente reduzida A única complicação tecnológica real era
pela remoção de um volume significativo de ar remover o ar do tubo. Uma vez o tubo feito e
e se for aplicada uma tensão elétrica, este tor- selado, aplicava-se a corrente elétrica e uma lu-
minosidade fantasmagórica inundava a sala. O
IMÁGENES: AGE
fenómeno era tão fascinante e inexplicável que
deixou tanto especialistas como leigos de boca
Imagem da primeira ra- aberta, e na Inglaterra do século XIX tornou-se
diografia de artérias. uma experiência clássica dos cientistas que ga-
Foi realizada em 1899 nhavam a vida a passear pelas cidades e a dar
no Hospital Saint Tho- palestras populares.
mas em Londres, inje-
tando mercúrio no ca- ESTE ERA O CAMPO DE TRABALHO DO FÍ-
dáver de uma criança. SICO WILHELM CONRAD RÖNTGEN no seu
laboratório na Universidade de Würzburg
(Alemanha): estudar as propriedades das des-
cargas em diferentes tipos de tubos de vácuo.
E foi entre novembro e dezembro de 1895 que
o físico silencioso, tímido e solitário descobriu
algo que iria revolucionar a medicina. Infeliz-
mente, não sabemos realmente o que acon-
teceu nessas semanas cruciais, pois Röntgen
mandou queimar todas as suas notas aquando
da sua morte. No entanto, podemos ter uma
ideia aproximada.
No início de novembro estava a experimen-
tar um dos tubos de descarga ao qual tinha
acrescentado uma fina janela de alumínio para
permitir a saída dos raios catódicos do tubo,
pois queria saber o que lhes acontecia fora do
tubo. Para proteger a fluorescência no interior
do tubo, cobriu tudo com um pedaço de cartão
preto. Mas então algo extraordinário aconte-
ceu: quando fez a ligação, Röntgen observou
surpreendido um brilho a aparecer numa tela
fluorescente próxima. Disposto a verificar esta

22
peculiar observação, na burg Medical-Physical
noite de 8 de novembro Society. A 4 de janeiro
de 1895, Röntgen cobriu de 1896 fez a sua primei-
completamente o tubo ra apresentação pública à
com cartão preto, certi- sociedade, incluindo uma
ficando-se de que estava radiografia de um assis-
completamente opaco: tente, e no dia seguinte
desligou a luz e ligou o um jornal austríaco mos-
tubo, e viu um brilho fra- trou-a ao mundo.
co num banco de ensaio
no laboratório. Ligou e A LOUCURA ESTA-
desligou o tubo repeti- VA LANÇADA: TODOS
damente e o brilho fraco QUERIAM ter o seu re-
continuava a aparecer: trato ósseo, foram publi-
provinha de uma placa cados poemas, e os raios
fluorescente que ele tinha X apareceram em ban-
colocado conscientemen- das desenhadas, contos e
te longe do tubo. Röntgen mensagens publicitárias.
começou a suspeitar que Os detetives privados pu-
Ilustração de um exame de radiografia (1898).
se tratava de um novo ti- blicitavam-se a si próprios
po de raio. Durante as semanas seguintes não como utilizando dispositivos Röntgen para se-
saiu do seu laboratório, tentando compreen- guir os cônjuges infiéis, e até a roupa interior
der as propriedades do que chamou de raios de chumbo apareceu para evitar os indiscretos
X. Um dia, quando estava a testar a capacidade óculos de raios X. Nos Estados Unidos, Tho-
de diferentes materiais para parar estes raios, mas Edison estava entre os que se mostravam
viu o seu próprio esqueleto a cintilar na tela ansiosos por aperfeiçoar a descoberta de Rönt-
fluorescente de platinocianeto de bário. Nesse gen: o seu objetivo era construir uma lâmpada
momento, decidiu manter toda a sua investi- de raios X para uso doméstico, mas nunca con-
gação em segredo, sem mencionar a ninguém seguiu. Foi a classe médica que rapidamente
o que tinha descoberto. Segundo confessou a percebeu a utilidade desta descoberta.
um amigo, apenas disse à sua mulher “que es- A primeira utilização de raios X em condi-
tava a fazer algo que faria as pessoas, quando ções clínicas foi feita por John Hall-Edwards
ouvissem falar disso, dizer: “Röntgen perdeu o em Inglaterra, a 11 de janeiro de 1896, quando
juízo”. Seis semanas mais tarde, decidiu tirar a fez um raio X a uma agulha presa numa mão.
primeira radiografia de sempre. A cobaia era a E a 14 de fevereiro de 1896, este médico de
mão da sua mulher, Anna Bertha. Quando viu Birmingham foi também o primeiro a utilizar
o esqueleto dela, exclamou: ‘Vi a minha morte! raios X numa operação cirúrgica. Semanas
O artigo original, Sobre um novo tipo de depois, Ivan Romanovich Tarkhanov, chefe
raios, juntamente com a radiografia da mão do Departamento de Fisiologia da Academia
da sua mulher, foi publicado a 28 de dezembro Médica Militar de São Petersburgo, irradiou
de 1895 na revista Proceedings of the Würz- sapos e insetos com raios X e concluiu que es-
tes “não só fotografam, mas também afetam
a matéria viva”. As suas pesquisas mostraram
que influenciavam o sistema nervoso central,
o coração e o desenvolvimento embrioná-
rio: a radiobiologia tinha acabado de nascer.
Em junho de 1896, os raios X já estavam a ser
utilizados para localizar balas nos feridos no
campo de batalha. Röntgen nunca solicitou
uma patente sobre as suas radiografias, por-
que sentia que todos deveriam beneficiar do
seu trabalho. O seu altruísmo teve um custo
pessoal considerável: na altura da sua morte
em 1923, Röntgen estava falido devido à infla-
Wilhelm Conrad Röntgen, fotografado por volta de 1895. ção após a Primeira Guerra Mundial. e

23
10 Frigorífico
Quando o jovem físico francês Carnot concebeu a sua máquina de ciclo
fechado, não fazia ideia de como isso iria mudar os lares do século XX.

E
m 1824, apareceu um pequeno livrinho Carnot não estava interessado em conseguir
que revolucionaria a forma como ve- uma melhoria técnica da máquina a vapor, mas
mos o mundo. Tinha o título Reflexões sim em ver como tirar o máximo partido de
sobre o poder motriz do fogo e sobre qualquer máquina térmica. Ele tentou conceber
as máquinas adequadas para desen- uma máquina ideal, uma idealização abstrata
volver este poder. O seu autor era filho do Mi- de máquinas reais, que hoje em dia é conhecida
nistro da Defesa de Napoleão e tio de um futuro como o ciclo Carnot. Consiste num dispositivo
Presidente da República, Nicolas Léonard Sadi composto por um cilindro com um pistão, den-
Carnot. Tentara AGE
tro do qual se encerra
publicá-lo na um gás, e duas fontes de
revista cien- calor: uma quente e ou-
tífica mais in- tra fria, que fornecem a
fluente da épo- diferença de tempera-
ca, os Annales tura necessária para que
de Physique, a máquina funcione.
mas o seu editor
tinha-o rejeita- O CICLO É COMPOS-
do, pelo que TO POR QUATRO FA-
não teve outra SES. Na primeira fase,
escolha senão colocamos o cilindro
publicá-lo com em contacto com a
o seu próprio fonte quente. Depois o
dinheiro. Neste gás no interior absorve
trabalho, Car- o calor, expande-se e
not estudava o move o pistão. Agora
desempenho da vem a engenhosa ideia
máquina a va- de Carnot: interrom-
por, mas o que per o contacto com a
nunca poderia fonte quente antes que
imaginar era a o pistão chegue ao fim
revolução inte- do seu percurso. Nes-
lectual que pro- te ponto, o dispositivo
vocaria, uma é colocado dentro de
transformação um reservatório tér-
maior do que a mico, ou seja, é man-
provocada por Os sistemas de refrigeração por compressão permitiram manter os tido isolado para que o
Newton, uma alimentos em melhores condições e mais tempo. calor não escape para
vez que com o o exterior. Quando o
francês tinha acabado de nascer a ciência da pistão atinge o fim do seu percurso, coloca-
termodinâmica. Infelizmente, este livro — um mos o pistão no refrigerador, o gás arrefece, a
dos textos mais importantes da história da sua pressão baixa e o pistão começa a descer.
ciência — não teve o menor impacto nos cien- Antes de terminar a compressão, voltamos a
tistas do seu tempo, e tivemos de esperar um colocá-lo no reservatório térmico e deixamos
quarto de século para que as suas ideias fossem o pistão terminar o seu percurso de modo a
tidas em conta. que, se a sincronização estiver correta, o gás

24
AGE

no interior recupera o seu estado inicial. En-


cerramos o ciclo.
Se o considerarmos como um todo, o gás não
alterou o seu estado, pois permaneceu como
estava no início, mas a fonte quente forneceu
uma certa quantidade de calor e a fonte fria
retirou uma quantidade distinta. A diferença
entre ambas foi invertida na movimentação do
pistão, na realização do trabalho. É óbvio que
quanto mais alta for a temperatura da fonte
quente, maior será a expansão do gás e mais fa-
cilmente o cilindro se moverá. O mesmo acon-
tecerá com a fonte fria: se a tivermos a uma
temperatura muito baixa, a máquina funcio-
nará melhor. Aqui, a fonte fria é de extraordi-
nária importância, porque sem ela não haveria
diferença de temperatura e seria um ciclo es-
téril; a fonte quente faria mover o pistão, mas
teríamos de fazer nós mesmos o trabalho para o
fazer descer. O que Carnot demonstrou é como
Na década de 1930, a General Electric concebeu um mo-
realizar o trabalho graças à troca de calor.
delo de frigorífico plano, sem o monitor superior.
A CONSEQUÊNCIA MAIS IMPORTANTE DE TU- então, vários inventores foram aperfeiçoando a
DO ISTO É QUE podemos deduzir uma lei geral conceção de Cullen. Um deles foi o engenheiro
para máquinas térmicas: a eficiência de qual- e empresário americano Oliver Evans, que era
quer ciclo fechado — o gás volta ao seu estado apaixonado pela máquina a vapor. Apesar da sua
inicial — e reversível — pode seguir numa di- compreensão limitada dos princípios físicos que
reção ou na contrária — é independente do pro- lhe estão subjacentes, viu o seu potencial muito
cesso utilizado e depende exclusivamente do ca- mais claramente do que os seus contemporâ-
lor trocado. Reversível é a palavra mágica: Car- neos. Numa nota no final do seu livro The Steam
not percebeu que o seu ciclo poderia funcionar Engineer’s Guide, Evans apontou involuntaria-
como um refrigerador, extraindo calor da fonte mente o que Cullen tinha provado anos antes,
fria e transferindo-o para a fonte quente. e incluiu o primeiro desenho pormenorizado e
Curiosamente, a ideia de um mecanismo de teoricamente coerente para fazer um refrigera-
refrigeração artificial surgiu muitos anos antes dor de compressão de vapor, e identificou todos
do trabalho seminal de Carnot. Em 1755, o quí- os componentes principais de um ciclo de refri-
mico e médico escocês William Cullen concebeu geração. Corria o ano de 1805.
o primeiro processo de refrigeração artificial Em 1816 juntou-se a outro inventor, Jacob
da história, que consistia nu- Perkins, para melhorar desenhos que incluíam
ma bomba de vácuo aplicada um motor experimental a vapor de alta pres-
a um recipiente de éter etílico, são, mas que era impraticável para a tecnologia
um líquido incolor e altamen- de fabrico da época.Utilizaram-na noutra in-
CORDON

te inflamável com um sabor venção, a pistola de vapor, uma metralhadora


acre. Cullen conce- automática com uma taxa de fogo de mil balas
beu um vácuo parcial por minuto. Uma arma que o Duque de Well-
no recipiente com a ington rejeitou por ser demasiado destrutiva.
bomba, que baixou Anos mais tarde, Perkins, utilizando os prin-
o ponto de ebulição cípios originais de Evans, desenvolveu e cons-
do éter, que fervia, truiu uma máquina frigorífica por compressão
absorvendo o calor de vapor de ciclo fechado, que patenteou a 14
circundante e criando de agosto de 1835. Infelizmente, não foi comer-
uma pequena quan- cialmente bem sucedido. Foi Frederick William
tidade de gelo. Mas Wolf Jr. que, em 1913, lançou o Domelre (DO-
não foi além desta Mestic Electric REfrigerator), o primeiro frigo-
demonstração. Desde rífico elétrico comercial da história. e

Primeiro frigorífico mecânico


arrefecido a ar, 1913.
25
Na década de 1960, a revolução verde salvou

GETTY
os habitantes da Índia da fome.

11 Revolução
verde
CORDON
Norman Borlaug.

A investigação de variedades de cereais mais resistentes com a


mecanização da agricultura levou à transformação agrícola.

O
termo revolução verde refere-se vez na sua história em país exportador de tri-
à mudança na forma de cultivar go. Isto foi um feito e tanto, dado que, antes do
a terra que começou no México trabalho de Borlaug, o México importava qua-
nos anos de 1940 e levou a um au- se metade das suas necessidades de trigo. Tal
mento sem precedentes na pro- triunfo fez com que os princípios da revolução
dução agrícola. verde se espalhassem por todo o mundo, uma
O responsável foi um agrónomo texano, Nor- vez que as fundações americanas Rockefeller e
man Borlaug, que visitou o México em 1944 pa- Ford promoveram a investigação destas novas
ra pesquisar novas variedades de trigo de alto técnicas agrícolas intensivas.
rendimento e resistentes a doenças. Utilizou o
método clássico de ensaio, prova e erro. Com- NOS ANOS DE 1950, ERA EVIDENTE QUE A
binando os resultados da sua investigação com a ÁSIA estava a enfrentar uma crise alimentar
introdução da mecanização de campo em gran- iminente. O arroz representava 80% das calo-
de escala, o México tornou-se autossuficiente rias consumidas na região, e apenas precisáva-
em trigo em 1956, e na década de 1960 foi capaz mos de projetar o crescimento populacional e
de produzir mais trigo do que os seus cidadãos compará-lo com a produção de arroz para cal-
necessitavam, convertendo-se pela primeira cular que, em alguns anos, não haveria o sufi-

26
ciente para todos. A situação era preocupante: ao oceano, distribuindo água às culturas. Es-
no início dos anos 60, a Índia estava à beira da te complexo sistema é mantido por uma rede
fome. Borlaug e a Fundação Ford conceberam de templos de água a partir dos quais os sa-
um programa de investigação com cientistas cerdotes controlam o sistema agrícola que ci-
indianos, que resultou no desenvolvimento de menta a cultura balinesa. Na segunda metade
uma nova variedade de arroz: IR8. Esta produ- do século XX, sofreram apenas duas fomes. A
zia mais grãos por planta quando era cultivada primeira foi em 1963, quando Agung entrou
com irrigação e fertilizantes. Enquanto a ha- em erupção e cobriu a ilha de cinzas. A se-
bitual variedade indiana só podia produzir no gunda foi na década de 1970, quando chegou
máximo uma tonelada e meia de arroz por hec- a revolução verde. Os esforços do governo
tare por ano, o rendimento da variedade lR8 balinês para introduzir o sistema de produ-
era de dez toneladas por hectare. Esta união de ção agrícola que triunfava em meio mundo
uma cepa de alto rendimento da Indonésia com acabaram por fracassar: uma praga após ou-
uma variedade anã robusta da China produziu tra dizimou as culturas. O governo balinês
resultados surpreendentes; nunca na história admitiu o seu erro e restaurou o antigo siste-
do mundo a produção de arroz duplicou num ma. Por outras palavras, o método tradicio-
único passo. O mesmo aconteceu nas Filipinas, nal, experimentado e testado durante séculos
país que passou de produzir três milhões de to- na ilha, deu aos cientistas da revolução verde
neladas de arroz para sete milhões de toneladas uma grande lição.
em apenas duas décadas, e, seguindo os passos
do México, se tornou exportador de arroz pela MAS O SEU VERDADEIRO FRACASSO É ÁFRI-
primeira vez na sua história. CA, APESAR DAS NUMEROSAS tentativas de
Não há dúvida de que a revolução verde sal- introduzir os projetos mexicanos e indianos
vou milhões de vidas, embora não tenha sido bem sucedidos. Isto deveu-se a vários fato-
bem sucedida em todo o lado. De facto, havia res: por um lado, condições políticas voláteis,
lugares onde provocou o oposto do que se pre- corrupção generalizada e uma quase total falta
tendia. Tal foi o caso em Bali. de vontade por parte dos governos africanos.
No sopé do Monte Agung encontram-se Além disso, há os aspetos ambientais comuns a
centenas de hectares de terraços de arroz per- grande parte do continente, tais como a escas-
filados por palmeiras que crescem ao longo de sa disponibilidade de água para irrigação ou a
valas de irrigação. É um sistema complexo de grande diversidade de declives e tipos de solo
irrigação constituído por túneis, comportas, numa determinada área. Tudo isto faz de África
canais e aquedutos desde as montanhas até o continente onde a revolução verde falhou. e

A incorporação
forçada dos princípios
da revolução verde na
Indonésia levou a
pragas que assolaram
as culturas em Bali.
AGE

27
12 Sistema
métrico decimal
Foi necessária uma revolução para que uma grande parte do mundo
ocidental unificasse as suas medidas... e ainda existem peculiaridades.

A
história começa no século XVII no exemplo, havia a yugada, que era a quantidade
país de onde menos se esperava: In- de terra lavrada por uma parelha de bois desde o
glaterra. Foi então que John Wilkins, nascer do sol até ao pôr-do-sol. Wilkins pensou
ministro anglicano e um dos funda- que tais medições arbitrárias e complexas de-
dores da Royal Society, defendeu um veriam ser substituídas por um sistema único e
sistema decimal de unidades. Nessa altura, a Eu- racional de medição baseado na melhor ciência
ropa era uma algaraviada de formas de medição, disponível. Assim, definiu a unidade de distância
mesmo dentro dos países. Em Espanha, por como o comprimento de um pêndulo que tivesse
um semiperíodo igual a um segun-
do, que constitui uma medida sur-
IMÁGENES: AGE

preendentemente próxima do nos-


so metro: 994 mm. Para Wilkins, o
que era realmente importante em
tais definições era que qualquer
pessoa, em qualquer lugar, pudes-
se duplicar a mesma unidade de
medida de referência (excepto pa-
ra variações locais subtis no cam-
po gravitacional da Terra). Mas a
sua ideia caiu em ouvidos moucos
porque mudar uma tradição requer
uma grande agitação.

FOI ISSO QUE ACONTECEU COM


A REVOLUÇÃO FRANCESA. Era o
tempo da razão, e a ciência desem-
penhou um papel importante na
destruição dos últimos vestígios
do feudalismo. Todos os governos
revolucionários reconheceram a
sua importância e concederam-lhe
privilégios. Alguns cientistas eram
republicanos ardentes e ocupavam
posições de destaque dentro da
nova ordem, enquanto outros, tais
como Lavoisier, embora inicial-
mente tenham colaborado plena-
mente com a revolta, os seus laços
com o antigo regime fizeram deles
carne para guilhotina.

Aplicações do sistema decimal às dimen-


sões, pesos e valor monetário.

28
Na construção da nova sociedade, os cientis-
tas suportaram parte do fardo de mudar a ma-
quinaria obsoleta do Estado e da educação: nas
palavras do matemático Condorcet, fazer algo
“por todo o povo, para todo o sempre”. A sua
primeira medida foi a reforma da educação:
foram fundadas a École Normale Supérieure, a
École de Médecine e a École Polytechnique, um
farol e guia para o que acabariam sendo o ensi-
no científico e os institutos de investigação. A
segunda foi a reforma do sistema de unidades
de pesos e medidas com a introdução do siste-
ma métrico decimal em 1799.

A REORGANIZAÇÃO DA FORMA DE PESAGEM


E MEDIÇÃO foi feita à la Wilkins, ou seja, pro-
curando um sistema definido matematicamen-
te e logicamente, e esquecendo a tradição ou
autoridade. A melhor opção era utilizar uma
escala decimal na qual as diferentes medidas
(tais como metro, decímetro, centímetro) esta-
riam relacionadas umas com as outras usando
prefixos decimais. Napoleão deu continuidade a
esta ideia e introduziu um sistema de mesures
usuelles (medidas habituais) em que as unida-
des francesas tradicionais eram arredondadas
para quantidades métricas; por exemplo, a libra Cilindro de liga de platina e irídio que serviu de referência
de peso era arredondada para 500 gramas. A de- para o peso de um quilograma padrão.
rrota de Napoleão e o regresso de um certo tra-
dicionalismo congelaram a mudança, mas não a tinha-se convertido no sistema de medição para
impediram. O novo sistema métrico regressou, quase toda a Europa continental, que a utilizava
apesar da relutância da sociedade, queixosa por nos negócios e na ciência. O sucesso foi tal que
ter de abandonar as medições que sempre usou. em maio de 1875, dezassete países em todo o
Em meados do século XIX, a França foi comple- mundo, incluindo os Estados Unidos, aderiram
tamente decimalizada, e no final desse século ao Tratado do Metro, estabelecendo uma auto-
ridade mundial sobre metrologia: o Gabinete
Internacional de Pesos e Medidas com sede em
Paris.

APESAR DESTE CONSENSO INTERNACIONAL,


O REINO UNIDO não estava a bordo. Primeiro,
porque o novo sistema tinha sido criado pe-
los seus arqui-inimigos franceses e, segundo,
porque era evidente que o Império Britânico, a
potência mundial na altura, não ia abandonar
o seu novo padrão de medição, o sistema im-
perial, por muito que dissesse a comunidade
internacional.
Em 1965, o governo teve de ceder à pressão da
indústria, pois achou insustentável ter de utili-
zar uma medida para o comércio interno e outra
para o comércio externo. Os anos 70 assistiram
à introdução do decimal na vida britânica...
A milha é a unidade de comprimento no sistema anglo-sa- embora lentamente, pois ainda hoje utilizam as
xão e é igual a 1609,344 metros. suas libras, galões e milhas imperiais. e

29
13 Telescópio
Vários inventores reclamam esta invenção, mas o que é indiscutí-
vel é que foi Galileu o primeiro que o apontou para o céu.

P
or incrível que pareça, Galileu Gali- duas lentes e alinhou-as, e quando olhou atra-
lei não inventou o telescópio. Foi o vés delas reparou que objetos distantes pare-
primeiro a apontá-lo para o céu, mas ciam mais próximos.
soube da sua existência por um cien-
tista francês chamado Jacques Bove- VERDADE OU LENDA, A VERDADE É QUE A 2
dere, que, por sua vez, ouviu dizer que um ótico DE OUTUBRO DE 1608 Lippershey apresentou
na Holanda o tinha construído. os documentos para a concessão da patente aos
Tradicionalmente, considera-se que o pri- Estados Gerais dos Países Baixos.O desenho con-
meiro inventor do telescópio foi Hans Lipper- sistia num tubo com duas lentes, uma delas fixa
shey, um polidor de lentes muito hábil que (a objetiva) e a outra móvel (a ocular) para focar,
viveu em Midelburg (Países Baixos). Segundo e tinha um poder de ampliação de X3. Chamou à
uma velha história, provavelmente de origem invenção kijker, que em holandês significa “es-
apócrifa, devemos a ideia a um dos seus filhos, petador”. Algumas semanas mais tarde, outro
que um dia, brincando na loja do pai, pegou em holandês, Jacob Metius, apresentou a sua pró-
AGE

Esta obra de 1870 de Louis Figuier ilustra


Galileu a mostrar o seu telescópio aos do-
ges e senadores de Veneza, provavelmen-
te em 1609.

30
AGE
pria patente. O governo holandês, vendo que
não conseguia determinar a precedência desta
invenção, resolveu não conceder a nenhum de-
les, embora Metius tenha apresentado uma de-
claração do famoso René Descartes, afirmando
ser ele o verdadeiro inventor. Não sabemos o
que aconteceu nos meses seguintes, mas Metius
retirou a sua patente e não permitiu que nin-
guém visse o seu telescópio. A sua raiva deve ter
sido muito grande, porque no seu testamento
ordenou que todas as suas ferramentas e dese-
nhos fossem destruídos para que ninguém be-
neficiasse deles.

MAS O ASSUNTO NÃO TERMINOU AÍ. ZACHA-


RIAS JANSSEN, outro fabricante holandês de A imagem retrata o holandês Hans Lippershey, fabricante de lentes
lentes e falsificador de moedas que vivia na e inventor do primeiro instrumento para ver ao longe.
mesma cidade que Lippershey, entrou na con-
tenda reivindicando a sua quota-parte. Para Já no século XIII, o filósofo Roger Bacon tinha
tornar a história ainda mais turva, o seu filho escrito que através de uma combinação apro-
Johannes declarou sob juramento que o dese- priada de lentes e espelhos “a uma distância in-
nho feito pelo seu pai em 1590 tinha sido rou- crível poderemos ler as letras mais pequenas... e
bado por Lippershey. o Sol, a Lua e os planetas serão postos ao nosso
No final, foi Lippershey que lucrou: fez algu- alcance”. Contudo, havia um impedimento tec-
mas modificações à sua invenção original — en- nológico: o polimento das lentes. Foi o advento
tre elas, desenvolveu um modelo binocular, os de métodos mais sofisticados que permitiram a
binóculos — e o governo do seu país pagou-lhe realização de progressos. É claro que o telescó-
900 florins pela inovação. pio em si não mudou o mundo.
Curiosamente, o nome telescópio não foi O momento decisivo, aquele que marcaria
cunhado por nenhum dos seus inventores, mas de forma indelével a sua influência na história,
pelo grego Giovanni Demisiani, teólogo, quí- chegou um dia em 1609, quando Galileu apon-
mico e matemático do Cardeal Gonzaga, bispo tou o seu telescópio recentemente construído
de Matua e Tarazona. O batismo teve lugar na para o céu: descobriu estrelas naquela faixa lei-
Academia Nacional dos Linces, em Roma, a 25 tosa da noite que é a Via Láctea, montanhas na
de abril de 1611, quando Galileu apresentou a Lua, os quatro satélites de Júpiter e manchas
sua versão melhorada do engenho para celebrar no até então imaculado Sol. Publicou as suas
a sua nomeação como novo membro. primeiras descobertas astronómicas numa
Seja como for, a ideia do telescópio já estava pequena obra intitulada Sidereus Nuncius (O
na mente de muitas pessoas há muito tempo. Mensageiro Sideral). e
IMÁGENES: AGE

À esquerda, réplicas dos


telescópios inventados por
Galileu em 1609 e Isaac
Newton em 1668.
À direita, esboços das fa-
ses da Lua, de acordo com
as notas publicadas por
Galileu após as suas obser-
vações com o telescópio.

31
14 Termómetro
O conhecimento da expansão dos gases ajudou, no século XVI, a
medir a temperatura. A definição da escala foi mais complicada.

O
IMÁGENES: AGE

primeiro a me- entanto, a sua conceção tinha


O termómetro
dir quantita- uma pequena falha: a altura da
atribuído a
Galileu baseia-
tivamente a coluna de água depende não
-se na ideia de temperatura só da temperatura, mas tam-
que a tempe- foi Galileu. Pa- bém da pressão atmosférica.
ratura altera a ra o fazer, sabia que tinha de Galileu desconhecia este de-
densidade dos encontrar algum fenómeno talhe. Como sabemos, até às
líquidos. natural com o qual seria fácil experiências de Torricelli em
avaliar o efeito das mudanças 1643, acreditar que a atmosfera
de temperatura, e encontrou-o podia exercer qualquer tipo de
num velho conhecido: a dila- pressão era uma ideia absurda.
tação dos gases. As proprieda-
des elásticas do ar tinham sido A PRIMEIRA DESCRIÇÃO IM-
determinadas por experiências PRESSA DE UM termómetro
com ar comprimido em odres data de 1612, num comentário
de vinho desde a época dos sobre Galeno pelo médico e
gregos. A força expansiva do fisiologista Sanctorius da Uni-
vapor também tinha sido apli- versidade de Pádua, que o uti-
cada a vários dispositivos desde lizou para medir a temperatura
os tempos antigos, seguindo do corpo humano. Em 1636,
o caminho traçado no século I Kaspar Enns publicou um li-
por Heron de Alexandria na sua vro intitulado O Taumaturgo
obra seminal Pneumática, que Matemático no qual dedicou
tinha sido publicada em latim um capítulo ao termómetro
no século XVI. de Cornelius Drebbel, um quí-
mico holandês cujos objetivos
GALILEU TINHA TODOS OS científicos eram o estudo da
INGREDIENTES necessários expansão dos gases e a bus-
para conceber o primeiro ca da máquina de movimento
termómetro, e construiu-o perpétuo. Enns intitulou o ca-
por volta de 1597. Sabemos pítulo de Sobre o termómetro
disso não porque apareça ou instrumento do Drebble
descrito em alguma das suas através do qual se investigam
obras, mas porque temos o os graus de calor e frio que se
testemunho dos seus con- encontram no ar, e é o mais
temporâneos. Consistia nu- antigo texto conhecido em que
ma bola de vidro cheia de ar, a palavra termómetro apare-
de cuja parte inferior descia ce. Ele descreve-o como um
um tubo parcialmente cheio tubo com ampolas seladas nas
de água para um recipiente extremidades que, para fun-
inferior que também conti- cionar, dependia da diferença
nha água. Se a temperatura de temperatura do ar em cada
mudava, o volume ocupado uma dessas extremidades.
pelo ar também mudava, e o A partir daí, a construção de
mesmo acontecia com a al- termómetros tornou-se uma
tura do líquido no tubo. No arte, especialmente na região

32
italiana da Toscana, onde
os membros da Academia
Florentina — ou Acade-
mia da Experiência — que
foi constituída em Floren-
ça em 1657, começaram a
medir sistematicamente a
temperatura, pressão e hu-
midade do ar no que se po-
deria chamar uma pesquisa
meteorológica incipien-
te. Os mestres florentinos
construíram eles próprios
termómetros de vidro, se-
lados e cheios de álcool,
com os quais podiam medir
mesmo quando a água con-
gelava. Desenhadores de
verdadeiras obras de arte, À esquerda, gravura do Tratado de Meteorologia (1774), do sacerdote francês Cotte. À
fixaram as marcas divisó- direita, uma ilustração do termómetro supostamente inventado por Galileu.
rias com esmalte derretido,
e a sua precisão foi bastante louvável, da ordem latão cheia de ar e um tubo em forma de U cheio
de um grau, de acordo com a nossa escala atual. de álcool. A temperatura era indicada por um
homenzinho pendurado numa roldana e ligado
A HISTÓRIA DOS PRIMEIROS TERMÓMETROS a uma caixinha que flutuava sobre o líquido no
NÃO ESTARIA COMPLETA sem mencionar o lado aberto do tubo. No entanto, Von Guericke
burgomestre da cidade alemã de Magdeburgo escolheu uma escala de temperatura bastante
Otto von Guericke (1602-1686). Entre as suas ingénua. A origem, localizada a meio caminho
invenções estava um termómetro excecional- do tubo, correspondia à situação do homenzi-
mente engenhoso constituído por uma esfera de nho quando chegavam as primeiras geadas. e

O primeiro medidor de temperatura moderno


N asceu em 1724 das mãos de um vidreiro
neerlandês chamado Daniel Fahrenheit.
Inquisitivo, curioso e cuidadoso, fabricava ter-
termómetro numa mistura de gelo e água, e
dividiu a distância entre os dois pontos em 32
partes. Os outros dois introduziu-os para com-
mómetros de álcool que rapidamente ganha- provar a sua relação: o primeiro era a tempera-
ram uma excelente reputação de precisão. O tura do corpo humano, que na sua escala era
segredo do seu sucesso residia simplesmente de 98º; o segundo, a temperatura da ebulição
na marcação das divisões com um esmerado da água, a 212º. É o que conhecemos como a
cuidado. Não era nada fácil fazer estas marcas escala Fahrenheit.
tão juntas umas das outras num tubo estreito;
era preciso alguém meticuloso e paciente para
o fazer, e Fahrenheit tinha estas características.
Para que a distância entre os pares de mar-
cas fosse sempre a mesma, o holandês esco-
lheu quatro pontos fixos constantes. Escolheu
o zero da sua escala imitando a temperatura
mais baixa do inverno rigoroso de 1709 com
uma mistura de gelo, sal comum e cloreto de
amónio; fixou o segundo ponto colocando o

33
15 Dinamite
A busca de um modo de evitar a instabilidade de um produto muito
perigoso levou a um produto mais seguro mas igualmente letal.

A
7 de maio de 1867, o sueco Alfred mais de um ano. Sobrero considerou-a dema-
Nobel patenteou um explosivo que siado perigosa, e uma vez confessou: “Quando
iria mudar a face do mundo, revo- penso em todas as vítimas que morreram em
lucionando tanto a arte da guerra explosões de nitroglicerina e no terrível caos
como a ciência da construção. que causou — e possivelmente continuará a
O ser humano já estava habituado aos explo- causar no futuro — tenho quase vergonha de
sivos desde que os chineses inventaram a pólvo- admitir que a descoberta é minha”.
ra no século IX. Este pó negro dominou a cena Ainda assim, o processo de fabrico não é de
mundial até o químico italiano Ascanio Sobrero todo complicado: basta adicionar glicerina a
descobrir a nitroglicerina, em 1846. Inicial- uma mistura de ácido nítrico e ácido sulfúri-
mente chamou-lhe piroglicerina, e nas suas co. O problema, e o que realmente aterrorizou
cartas a amigos e colegas advertiu fortemente Sobrero, é que a nitroglicerina tem algumas
contra o seu uso: não foi em vão que o seu rosto tendências irritantes: impura, pode explodir
ficou coberto de cicatrizes depois de um tubo sem aviso, e o mais pequeno toque pode fazê-
de ensaio ter explodido enquanto trabalhava -la explodir.
no laboratório. Ficou tão assustado com a sua Foi aqui que entrou em jogo o referido Nobel,
descoberta que a manteve em segredo durante que se dedicou a procurar uma forma de a esta-

34
AGE

As investigações de Alfred
Nobel visavam encontrar uma
forma de estabilizar a perigosa
nitroglicerina, razão pela qual
lhe chamou o pó de segurança
de Nobel na inscrição da paten-
te da dinamite.

THE ROYAL LIBRARY/WIKIPEDIA

bilizar, pois viu que pode-


ria ser muito útil no mundo
da construção. Para isso
tentou diferentes misturas
de cimento, carvão e ser-
radura, mas falhou. Um
dia, por acaso, reparou que
havia um certo pó de cor
clara que absorvia a nitro-
glicerina. Era diatomita ou
terra de diatomácea, uma
terra siliciosa porosa que
era utilizada para clarificar
o açúcar e que hoje é utili-
zada como pesticida amigo
do ambiente, e como abra-
sivo em pasta de dentes ou
isolante em caldeiras e al-
tos-fornos.

A SUA DINAMITE N.º 1


CONTINHA 75% DE NI-
TROGLICERINA e 25% de
diatomita, e o resultado
podia ser amassado como
barro e colocado em ci-
lindros de cartão. No seu
pedido de patente de 19 de
setembro de 1866, chamou-lhe dinamite ou pó boca e não tardaram em dar-lhe uso: a primeira
de segurança de Nobel. Passou os meses se- bomba de dinamite explodiu em 1870 durante
guintes a aperfeiçoar a mistura, acrescentando a Guerra Franco-Prussiana. O poder destrutivo
serradura como absorvente e nitrato de sódio da invenção foi tal que um jornal francês des-
como agente oxidante para aumentar a força do creveu Nobel como o inventor que “encontrou
explosivo, até que solicitou duas novas paten- formas de matar mais pessoas mais depressa do
tes em 1867. Os militares ficaram com água na que nunca”. e

35
36
AGE
AGE

Henry C.
Rawlinson quase
perdeu a vida en-
quanto estudava
a inscrição de
Behistun, no
atual Irão, que
contém um texto
em persa, elamita
e babilónio.

16 Escrita
Há cerca de 5500 anos, os nossos tataravós começaram a plasmar
as suas ideias em forma escrita, o que pôs fim à pré-história.

N
o outono de 1835, Foi então que a sorte lhe sor- Rawlinson tinha acabado
o diplomata in- riu. A primeira secção do texto de decifrar a escrita cunei-
glês Henry Cres- continha uma lista de reis persas forme do antigo persa, uma
wicke Rawlinson idêntica à descrita por Heródo- das formas mais antigas de
viu com os seus to. Rawlinson conhecia os seus expressão escrita. De facto, a
próprios olhos — foi o primei- nomes, por isso tentou associá- escrita cuneiforme foi adotada
ro ocidental a fazê-lo — o friso -los às inscrições que estavam por acádios, elamitas, hititas,
esculpido na rocha de Behistun, imediatamente atrás dos sím- hurritas..., e inspirou vários
uma montanha perto de Quer- bolos mais repetidos nas duzen- alfabetos.
manxá no Irão. Nele aparecia tas linhas de persa da rocha de A escrita mais arcaica conhe-
um poderoso monarca julgan- Behistun. cida encontra-se numa tábua
do prisioneiros. Por baixo, ha- coberta de signos protocunei-
via inscrições que pareciam EM 1838, APÓS HORAS E HO- formes encontrados no Iraque
explicar a cena. Rawlinson ficou RAS DE ESTUDO PACIENTE, que remonta a 3500 a.C. Esta
fascinado com a história e fez conseguiu decifrar uma men- técnica apareceu então na Me-
repetidas viagens ao lugar para sagem que tinha sido esculpida sopotâmia e espalhou-se de lá
as copiar, uma tarefa que quase vinte e cinco séculos antes, e por todo o mundo? Na verdade,
o fez despenhar-se. com ela, este aviso: “Vós, quan- pensa-se que se tenha desen-
Das três línguas escritas na do passardes no futuro, vereis volvido independentemente,
pedra, só conseguiu reconhecer esta inscrição de figuras huma- na Mesopotâmia (entre 3500
o persa aqueménida. As outras nas que eu esculpi na rocha. Não a.C. e 3100 a.C.), Egito (cerca
três eram o elamita e o babiló- apaguem nem destruam nada! de 3250 a.C.), China (em 2000
nio, e todas estavam escritas em Preservai-as intactas enquanto a a.C.) e Mesoamérica (cerca de
modo cuneiforme. posteridade perdurar”. 650 a.C.). e

O alfabeto GETTY

E m 2700 a.C., a escrita egípcia incluía vinte e dois hieróglifos. Estes eram utilizados como
guias de pronúncia para logogramas – a unidade mínima de um sistema de escrita que
só representa uma palavra – , escrever inflexões gramaticais e, mais tarde, para transcrever
palavras emprestadas e nomes estrangeiros. Mas não eram um verdadeiro alfabeto. Alguns
peritos acreditam que o primeiro sistema alfabético foi o protossinaítico, que surgiu no Egi-
to por volta de 1700 a.C., quando os trabalhadores semitas adaptaram alguns hieróglifos
para escrever na sua língua, mas os poucos textos existentes não nos permitem confirmar. .
O fenício – aqui retratado –, que apareceu por volta de 2000 a.C., foi o primeiro ver-
dadeiro alfabeto. Continha apenas cerca de duas dúzias de letras, pelo que era fácil
de aprender. Além disso, por ser completamente fonémico, podia ser utilizado para
escrever palavras noutras línguas.
37
Durante milhares de anos, os nossos

GETTY
antepassados utilizaram pilões seme-
lhantes a este, que faz parte dos
utensílios incluídos na recriação de
um povoado de 4000 anos encontra-
do na Suécia.

17 Agricultura
A transição de sociedades de caçadores-recoletores para socieda-
des camponesas e agrícolas sedentárias deu origem à civilização.

T
udo aconteceu há cerca de 14.000 Em cada caso foi possível identificar a va-
anos, no chamado Crescente Fértil, riedade selvagem original, o que ajudou a
a região que inclui o Mediterrâneo compreender as diferenças entre elas e as va-
oriental — Síria, Líbano, Jordânia, riedades domesticadas. No caso do trigo alon-
Israel e Palestina — o sudeste da so, por exemplo, a principal distinção está na
Turquia, Iraque e o oeste do Irão. É aqui que forma como as sementes se dispersam: o trigo
os arqueólogos colocam a revolução neolítica, selvagem tem espigas quebradiças e os espigões
um dos marcos mais importantes e estudados individuais quebram-se quando maduros; no
na história da humanidade: o momento em que trigo domesticado, as espigas são menos frágeis
os nossos antepassados deixaram de ser caça- e só se quebram durante a debulha. Por outras
dores-recoletores nómadas para se tornarem palavras, para que o trigo alonso domesticado
produtores e sedentários. sobreviva, precisa de ser colhido e semeado.
Por outro lado, uma comparação do ADN dos
TRÊS CEREAIS FORMAM O TRIUNVIRATO DOS vários tipos de trigo encontrados em todo o
FUNDADORES da agricultura: o trigo racimal (Tri- Crescente Fértil mostra que são basicamente os
ticum turgidum), que tem mais de uma espiga no mesmos, sugerindo que a domesticação só teve
fim do talo; a cevada (Hordeum vulgare); e o trigo lugar uma vez.
alonso (Triticun monoccocum), com um talo fe- Ao longo dos anos, os arqueólogos identifica-
chado e uma espiga larga, que produz muito farelo ram os poucos sítios onde a agricultura pode ter
e pouca farinha. A sua domesticação foi acompa- nascido, tais como Tell Abu Hureyra e Tell Aswad
nhada por outras espécies, tais como: ervilhas, na Síria; Karaca Dag na Turquia; e Netiv Hagdud,
lentilhas, grão-de-bico, ervilhaca amarga e linho. Gilgal e Jericó no Vale do Jordão. Todos estes lo-

38
TISARP / UNIVERSIDAD DE TUBINGA AGE

cais têm entre 12.000 e 10.000 anos e


estão localizados na parte ocidental do
Crescente Fértil, pelo que a agricultura
pode ter tido uma única origem.

CONTUDO, EM 2013 A REVISTA


SCIENCE PUBLICOU UM ARTIGO
que questionava esta conclusão. A
arqueóloga Simone Riehl da Uni-
versidade de Tübingen (Alemanha),
que tem vindo a escavar no local da
aldeia agrícola de Chogha Golan nos
contrafortes das montanhas Zagros
Foram encontrados vestígios de práticas agrícolas primitivas no sítio sírio de
no oeste do Irão, afirma que os seus
Jerf el-Ahmar (à direita), datando de 9200 a.C. A cevada parece ter sido culti-
habitantes começaram a cultivar vada em Chogha Golan no Irão (esquerda) há 11.500 anos.
cevada selvagem, trigo e lentilhas
há mais de 11 500 anos e que formas
domesticadas de trigo apareceram ali há 9800 e estabeleceram a antiguidade do povoado:
anos, quase há tanto tempo como nos locais Chogha Golan foi ocupada continuamente de
conhecidos acima mencionados. cerca de 11.000 a.C. a 7700 a.C., o que coincide
A descoberta de mós e argamassas e de restos com a idade dos restos encontrados no Cres-
vegetais carbonizados apontam nesta direção cente Fértil ocidental. e

O afro-americano que salvou a agricultura do Sul


E m 1864, George Washington Carver — na ima-
gem abaixo — nasceu numa pequena cidade
no estado do Missouri. Não há registo exato da da-
Ali começou a estudar sete hectares do que
se dizia ser o pior solo do Alabama. O proble-
ma com o solo do Sul era que estava esgotado
ta, mas sabe-se que foi perto do fim da Guerra Civil pelo cultivo constante de algodão e tabaco e
americana e que nasceu como escravo. faltava-lhe minerais, mas Carver sabia que o so-
Alguns meses após o seu nascimento, uns fo- lo que era inútil para um produto podia ser uti-
ragidos raptaram o pequeno George e a sua mãe. lizado para outro. Após uma dura luta, conse-
Ela foi vendida antes que o seu proprietário, Mo- guiu que os agricultores da zona introduzissem
ses Carver, a pudesse recuperar. Este foi, contu- a rotação de culturas e plantassem amendoins
do, capaz de salvar a criança. Os Carvers, talvez e batata-doce em vez de algodão. A produção
comovidos, adotaram-no. À medida que foi cres- de ambos foi tão grande que as colheitas não
cendo, mostrou sinais de grande inteligência, mas podiam ser vendidas como alimento. Carver
a sua família não podia dar-se ao luxo de o mandar voltou então ao laboratório e descobriu que
para a escola porque não havia escolas para ne- podia extrair 300 produtos sintéticos a partir
gros na cidade. Assim, enviaram-no para a sede de amendoins, tais como corantes e sabão, e
do condado, para uma escola com apenas uma 118 da batata-doce.
sala de aula, setenta crianças e um professor.
GETTY

Quando terminou os seus estudos, o jovem


Carver decidiu ir para a faculdade, embora não
fosse fácil encontrar uma que admitisse estu-
dantes negros. No final, conseguiu entrar no
Simpson College em Iowa: foi o primeiro a ins-
crever-se lá. Depois foi para a Faculdade Agrí-
cola no mesmo estado e acabou como diretor
do Departamento de Investigação Agrícola do
Instituto Tuskegee para Negros.

39
18 Saneamento
A construção de esgotos e sarjetas nas cidades impediu a propaga-
ção de muitas doenças entre os seus habitantes.

N
o período Neolítico, já existiam po- Na ausência de grandes rios onde as águas re-
ços protegidos que forneciam água siduais pudessem ser descarregadas, estas eram
limpa sempre que necessário, mas utilizadas para fertilizar os campos. Isto acon-
só em 4000 a.C. é que encontramos tecia na Grécia antiga. Os sistemas de esgotos
a primeira instalação de saneamen- levavam-nas para os arredores das cidades, pa-
to, na Babilónia. Tratava-se da fossa. Não era algo ra um vertedouro, e de lá para os campos atra-
que exigisse um grande conhecimento de arqui- vés de um sistema de canalizações.
tetura ou engenharia. Bastava fazer um buraco
no chão. Os seus inventores faziam parte de uma EM ROMA, DEU-SE UM GRANDE AVANÇO A ES-
civilização que dependia da gestão da água dos TE RESPEITO. Os seus engenheiros conseguiram
rios Tigre e Eufrates, pelo que desenvolveram separar as referidas águas residuais por meio de
um sistema hidráulico básico para o transporte uma rede de esgotos urbanos. Infelizmente, as
de água. Aplicaram então os seus conhecimentos pessoas continuaram a atirar os seus resíduos
no transporte das fezes para os esgotos, utilizan- para as ruas até 100 a.C., quando um decreto
do baldes de água e os primeiros canos de argila. tornou obrigatória a ligação de todos os lares ao
A água limpa e o saneamento têm andado sistema.
sempre de mãos dadas, como a população do A utilização de latrinas também se tornou mais
Vale do Indo demonstrou por volta de 3000 a.C. generalizada e a sua conceção tornou-se mais
quando introduziu tanto o abastecimento pú- confortável, permitindo às pessoas defecarem
blico de água como os esgotos nas suas cidades. sentadas, e não agachadas. Além disso, desen-
Em Mohenjo-Daro no Paquistão, por exemplo, volveram-se ideias para recuperar a água já uti-
vemos os primeiros edifícios com latrinas li- lizada nos banhos públicos e nas termas para a
gadas a um sistema de descarga. Os cidadãos descarga de latrinas públicas.
despejavam água nas latrinas e os canos leva- Contudo, embora os romanos conhecessem
vam-na para um esgoto ou para o Indo. bem o conceito de higiene, ainda estavam longe

Os 350 km de túneis que compõem


SHUTTERSTOCK

a rede de esgotos de Bruxelas re-


colhem as águas pluviais e as
águas residuais. Parte desta rede
pertence agora a um museu – na
imagem – que fornece uma visão
sobre o seu funcionamento.

40
GETTY
de conhecer o de desinfe-
ção. Evitavam-se as águas
residuais principalmente
devido ao seu mau cheiro,
mas nada se sabia sobre a
sua insalubridade. Seriam
precisos quase dois mil
anos para que alguém se
apercebesse disto.
Entretanto, com a che-
gada da Idade Média, a
cultura da limpeza desa-
pareceu de muitos luga-
res. Inúmeras cidades do
Mohenjo-Daro no Vale do Indo tinha esgotos há 4500 anos atrás.
Velho Continente estavam
cheias de sujidade e fezes, propagando doenças A situação em Londres era semelhante. A
como a tuberculose, cólera e varíola. Isto causou metrópole cheirava mal, e muitas fossas se
um rápido declínio na esperança de vida, que espalhavam em diferentes bairros. A intro-
em alguns pontos caiu abaixo dos trinta anos. O dução da sanita, que substituiu o vaso sani-
golpe final na higiene veio com a Peste Negra, tário, aumentou o volume de descargas nas
que começou em 1348 e exterminou um terço fossas, que transbordavam para os escoa-
dos europeus em apenas três anos. douros das ruas. Estes estavam concebidos
Na Espanha muçulmana, as coisas foram dife- para recolher a chuva, e não as águas resi-
rentes. Sabe-se que em Córdova ou Granada se duais, de modo que estas fluíam por entre os
separavam três tipos de água: a água da chuva, edifícios, juntamente com os resíduos de fá-
essencial para a vida; as águas cinzentas, prove- bricas e matadouros, antes de ser tudo des-
niente de atividades domésticas; e as águas re- carregado no Tamisa. Em 1830, a situação
siduais. A cultura árabe, que nasceu num clima tornou-se insuportável. O fedor que ema-
de extrema secura, valorizava a chuva como se nava da cidade — culminando no famoso
fosse um dom divino, pelo que nos seus territó- episódio do Grande Fedor na capital inglesa
rios era muitas vezes cuidadosamente transpor- no verão de 1858 — foi agravado por várias
tada para cisternas para posterior utilização. As epidemias de cólera.
águas cinzentas domésticas eram retiradas dos Durante uma destas, em 1847, um médico
pátios das casas através de escoadouros subter- chamado John Snow, que tinha dedicado a sua
râneos ou canalização acima do solo, enquanto vida ao estudo de doenças contagiosas, chegou
as águas residuais seguiam por canos separados à conclusão de que a causa da doença era a água
que conduziam a fossas. potável estar contaminada com substâncias fe-
cais. Alguns anos mais
A CHEGADA DO RENASCIMENTO E DO ILUMI- tarde, Louis Pasteur de-
NISMO SIGNIFICOU uma revolução nas artes e na monstraria que os mi-
ciência, mas não no assunto em questão: durante crorganismos presentes
o século XVII, em quase todos os centros urbanos na água eram a causa
europeus, a sujidade e o odor eram insuportáveis. de muitas destas doen-
A defecação aberta era prática comum, as fossas ças, destronando assim
estavam saturadas, os cidadãos continuavam a de uma vez por todas a
atirar as suas fezes e urina para as ruas, onde os es- teoria do miasma, cujos
gotos, que eram essencialmente valas abertas, as proponentes afirmavam
levavam com dificuldade para os rios. que na realidade eram
Os avanços nas técnicas de recolha e distribui- transmitidas por miste-
ção de água não eram aplicados ao saneamento. riosos maus ares.
WELCOME COLLECTION

Paris é o exemplo perfeito deste grande para- Como resultado des-


doxo: enquanto a cidade atingia os níveis mais te conhecimento, a le-
altos de pestilência por volta de 1660, instala- gislação foi alterada e o
vam-se as famosas fontes e tanques nos jardins saneamento tornou-se John Snow mostrou que a cólera
do Palácio de Versalhes, que não tinha uma úni- uma questão central na era causada por água potável
ca casa de banho. política das cidades. e contendo substâncias fecais.

41
19 Dinheiro
O facto de conferir um valor aos bens e serviços e adquiri-los com
moedas ou documentos de pagamento revolucionou a economia.

O
conceito de dinheiro tem-nos da referida Anatólia para todo o mundo. Assim,
acompanhado desde o apareci- Egina, Samos e Mileto produziram moedas para
mento das primeiras civilizações. os egípcios, e quando a Lídia foi conquistada pelos
De facto, na China, já se utiliza- persas em 546 a.C., a sua utilização espalhou-se
vam conchas como moeda há cer- por todo o território dos vencedores. Os fenícios
ca de cinco mil anos, e os antigos mesopotâmios não as cunharam até meados do século V a.C.,
até desenvolveram um sistema bancário onde as mas depois espalharam-se rapidamente entre os
pessoas podiam depositar cereais, gado cartagineses, que as cunharam
e outros objetos de valor para na Sicília. Os romanos co-
guarda ou comércio. meçaram a cunhá-las a
Questão à parte é a ori- partir de 326 a.C.
gem das moedas. Estas
apareceram como O PAPEL-MOEDA,
um método de pa- POR OUTRO LA-
gamento por volta DO, apareceu
do século VII a.C., pela primeira
mas a sua inven- vez na China,
ção está envolta durante a di-
em mistério. De nastia Tang,
acordo com o entre os anos
historiador grego 618 e 907. Sur-
Heródoto, ocorreu giu por iniciativa
na Lídia, na Anató- dos comerciantes
lia ocidental. “Tanto de chás, um dos
quanto sabemos, eles produtos mais vendi-
[os lídios] foram os primei- R DO
N dos na região. Como os
ros a introduzir a utilização de CO
preocupava ter de transpor-
moedas de ouro e prata, tar os valiosos lingo-
Esta moeda de electro – uma liga de ouro e prata –
e os primeiros a vender cunhada na Lídia, Anatólia ocidental, entre os séculos VII tes de prata utilizados
mercadorias a retalho”, e VI a.C., é uma das moedas mais antigas que existem. como pagamento de
refere. Estas moedas, um lugar para outro,
bastante toscas, eram feitas de electro, uma liga optaram por utilizar uma espécie de recibo, que
natural de ouro e no máximo 44% de prata, bem se chamava dinheiro voador. No entanto, a ideia
como vestígios de cobre e outros metais . não pegou, pois quando tinham de fazer gran-
No entanto, segundo Aristóteles, as primeiras des transações, dava-lhes mais segurança levar
moedas foram cunhadas por Demodice de Cime, consigo os referidos lingotes. A sua utilização
a esposa do rei Midas da Frígia. Claro que, tal foi abandonada durante algum tempo, mas esta
como acontece com os mitos, há um problema forma de dinheiro voltou a surgir no século XI,
com as datas. Houve realmente um rei Midas, quando o primeiro papel-moeda, chamado jiao-
mas ele viveu no século VIII a.C., e parece que as zi, que eram essencialmente notas de banco que
moedas só apareceram muito mais tarde. funcionavam como vales de crédito, também se
Uma terceira opção, defendida por muitos espalhou na China. Cerca de 300 anos mais tar-
numismatas, é que as primeiras moedas foram de, graças a viajantes como Marco Polo, o papel-
cunhadas na ilha grega de Egina, quer pelos go- -moeda chegou à Europa.
vernantes locais, quer pelo rei Fédon de Argos. No entanto, a primeira emissão só foi feita em
De uma forma ou de outra, foram exportados 1661. Foi realizada pelo Banco de Estocolmo,

42
CORDON
propriedade de um comerciante imaginativo Em 1782, o
chamado Johan Palmstruch. Não era mais do que Congresso pe-
uma entidade de depósito, mas este letão-neer- diu-lhe que
landês introduziu várias inovações. Por um lado, fizesse um re-
decidiu utilizar o dinheiro das contas para finan- latório sobre
ciar empréstimos. Não foi uma boa política, por- a situação das
que as pessoas não deixavam o seu dinheiro no moedas que
banco por muito tempo, e os empréstimos eram circulavam nos
obviamente a longo prazo. Surgiu então a ideia de seus territórios.
introduzir notas, que um cidadão poderia trocar No final do seu
sempre que quisesse pelo seu valor em ouro ou relatório, suge-
prata. Embora se tenham tornado muito popula- riu um plano de
res, cometeu um erro tremendo: imprimiu mais decimalização
do que as suas reservas podiam garantir, e o ban- para o futuro sis-
co foi à falência em 1663. tema monetário
norte-america-
UM ÚLTIMO AVANÇO A ESTE RESPEITO DEU-SE no. Isto era algo
EM 1782, QUANDO SE FUNDOU os Estados Uni- novo, pois os
dos.Um dos problemas enfrentados pelos seus países europeus
primeiros líderes foi a ausência de uma moeda não seguiam o
única. Os americanos utilizavam dobrões espa- sistema de fra-
nhóis e os chamados dólares, os johannes por- cionamento de- O dinheiro voador – acima – era fácil de
tugueses, as libras esterlinas, os xelins e pences cimal utilizado transportar. Foi introduzido na China du-
britânicos, os francos franceses e guinéus, e mui- hoje em dia. rante a dinastia Tang, entre 618 e 907, e
tos outros, tais como os ducados, peças de a ocho A propos- daria lugar ao papel-moeda, que também
e coroas, cada uma com valores diferentes em ta interessou a aí foi introduzido no século XI.
cada estado. Thomas Jeffer-
O homem que pôs ordem nesta confusão foi son, e ficou decidido que a moeda oficial seria o
um aristocrata de uma só perna, embaixador do dólar espanhol dividido em cem cêntimos. Seria
seu país durante o Reinado do Terror em França, representado por uma mistura das letras P e S,
membro do Congresso Continental e assistente retiradas da palavra espanhola pesos, o que deu
do Ministro da Fazenda: Gouverneur Morris. origem ao famoso símbolo que o representa. e

Os cheques e os templários
D
GETTY

urante grande parte da Idade Média não havia lugar mais se-
guro do que os mosteiros e conventos templários. Por isso,
a ordem transformou-os em bancos de depósito para dinheiro,
joias e documentos importantes. A partir de 1130, a Ordem do
Templo começou a utilizar as suas próprias reservas para conce-
der empréstimos a juros. Permitia inclusive que se deixasse uma
certa quantia de dinheiro num determinado convento e, através
de uma carta adequada, se levantasse a mesma quantia num
outro convento. Acabava de aparecer o cheque.
Desta forma, era também possível fazer pagamentos para as cru-
zadas na Terra Santa através dos conventos do Templo: uma quantia
era depositada numa das suas instalações na Europa e podia ser
levantada noutra do Oriente. Também era permitido aos mosteiros
possuir aquilo a que hoje chamaríamos uma conta-corrente.
No século XIII, os Templários tinham-se tornado banqueiros
tão competentes e de confiança que os reis de França e outros
nobres guardavam os seus tesouros nos seus recintos.

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20 Democracia
Há 2500 anos, surgiu em Atenas um sistema político inovador que
permitia aos cidadãos envolverem-se no governo.

Na sua famosa oração fúnebre,


ALBUM

Péricles exaltou a bondade da de-


mocracia ateniense, momento
que é capturado nesta obra de
Philipp von Foltz, de 1852.

A
tenas iniciou o século V a.C. testan- pólis podiam participar. Para serem conside-
do uma experiência social pioneira: rados cidadãos, os seus habitantes tinham de
a democracia direta. Nela, todos os ser homens com mais de 18 anos e filhos de
cidadãos tinham o poder de decidir um pai ateniense — a partir de 451 a.C. a mãe
sobre a governação da pólis. Mais também tinha de ser ateniense. Isto signifi-
tarde, os seus aliados e colónias também ado- cava que apenas 20% da população total de
taram um sistema idêntico, mas desde então Atenas tinha o direito de voto.
raramente se voltou a experimentar noutros
locais. A Suíça é o único país com mecanismos A DEMOCRACIA DIRETA CHEGOU POR FASES,
democráticos diretos ao nível dos municípios, IMPULSIONADA pelas reformas lançadas por
cantões e do estado federal. Sólon em 594, por Clístenes em 508 e por Pé-
Uma tal fórmula requer normalmente duas ricles em 462. Destes três, o segundo foi o mais
condições prévias: primeiro, que a comuni- importante e é considerado pelos historiadores
dade seja suficientemente pequena para que o pai da democracia ateniense.
os cidadãos possam assistir a debates e vota- Em última análise, o sistema que emergiu em
ções; segundo, que estejam financeiramente meados do século V envolveu os cidadãos no
bem, permitindo-lhes tempo livre suficiente governo de diferentes formas. Todos tinham
para se envolverem na política. Nos tempos uma voz no fórum mais alto da nação, a ekkle-
antigos, isto significava que os eleitores ti- sia ou assembleia, que se reunia quatro vezes
nham de ter escravos suficientes para fazer por mês na colina de Pnyx, uma colina rochosa
a maior parte do trabalho. Mas nessa demo- no centro de Atenas e a uma curta distância da
cracia ateniense, nem todos os que viviam na Acrópole. Quando havia assuntos importantes

44
U
GN
G/
CN

a tratar, assistiam até cerca de 5000 pessoas, de quinhentos


embora nem sempre tenha sido fácil reunir cada mem-
tão grande multidão. A participação não era bro servia
remunerada, embora o pagamento tenha sido durante um
introduzido cerca de 400 a.C. para compensar mês como um
o tempo perdido no trabalho. Inicialmente, dos cinquenta
qualquer indivíduo podia dirigir-se aos outros pritanos que
quando o arauto perguntava: “Quem quer fa- dirigiam a ad-
lar?”. Mas não era fácil fazê-lo em frente de ministração quo-
tantas pessoas ao ar livre; na maioria das vezes tidiana da cidade;
era sempre feito pelas mesmas pessoas, políti- havia dez meses
cos semiprofissionais conhecidos como rheto- no ano ateniense;
res ou oradores. cada conselheiro, Denário romano do século I a.C.
por assim dizer, tinha cunhado com a introdução do
OS ASSUNTOS DO DIA, COMO A RECOLHA DAS um mandato mensal. O voto num cesto.
PROPOSTAS DE LEI DOS CIDADÃOS e o esta- presidente da bulé mu-
belecimento da ordem das sessões da ekklesia, dava todos os dias, novamente selecionado por
eram discutidos noutro organismo de quinhen- sorteio de entre os pritanos .
tos membros, a bulé ou conselho, onde, em No entanto, o formato grego não foi aceite
princípio, era mais fácil participar nas delibe- em Roma, que se organizou em torno da de-
rações, pois os membros eram escolhidos todos mocracia representativa que serviu de modelo
os anos por sorteio. Além disso, neste conselho para os dias de hoje. e

As declarações de direitos
D epois de conquistar a cidade da Babiló-
nia em 539 a.C., o rei persa Ciro II o Gran-
de fez algo totalmente inesperado: libertou
A maioria destes éditos está relacionada com
a prática budista — de facto, são a primeira pro-
va histórica tangível da existência da prática bu-
todos os escravos, ordenou-lhes que regres- dista. Entre eles encontra-se o que alguns cha-
sassem a casa, e declarou que as pessoas maram a Lei da Misericórdia que, no essencial,
deveriam ser livres de escolher a sua própria dita o seguinte: são proibidas a discriminação
religião. Alguns consideram o Cilindro de Ci- religiosa, a crueldade para com os seres huma-
ro, um artefacto de barro que contém as suas nos e animais e o assassinato de prisioneiros de
declarações — na imagem que acompanha guerra; são prestados cuidados aos doentes, e
estas linhas — a coisa mais próxima na his- se a terra não produzir remédios adequados, o
tória de uma declaração precoce dos direitos império importá-los-á e não permitirá que nenhu-
humanos. No entanto, muitos peritos consi- ma pessoa fique sem apoio familiar ou oficial pa-
deram tal coisa um anacronismo. ra assegurar a sua subsistência; além disso, no
Algo semelhante aconteceu com Ashoka, caso de infrações cometidas por subordinados,
que governou Maurya, o primeiro grande impé- apenas o ato será condenado, mas sem causar
rio da Índia, de 268 a 232 a.C. Depois da guer- dor ao agressor. Por todas estas razões, este tex-
ra de Kalinga contra um estado vizinho — umAGE to é muitas vezes descrito como uma protodecla-
dos confrontos mais sangrentos nesta região ração de direitos.
— Ashoka adoptou o budismo. Em resultado, AGE

abandonou as suas políticas expansionistas e


embarcou numa série de reformas humanitá-
rias. Proclamou trinta e três editais que mandou
inscrever em grutas, paredes, rochas e nos cha-
mados pilares de Ashoka, colunas espalhadas
por todo o império, dando assim a conhecer o
seu conteúdo a toda a população.

45
Um dos frescos que
adorna a Basílica
dos Quatro Santos
Mártires Coroados,
em Roma, mostra o
Imperador Constan-
tino I a reconhecer
a supremacia do
Papa Silvestre.

AGE
21 Doação de
Constantino
O documento do qual supostamente emana a autoridade política dos
papas e que moldou a história europeia revelou-se falso.

P
ode parecer estranho descobrir que a e bispos realizado na cidade de Worms, nas mar-
maior falsificação da história da Euro- gens do Reno. Leão IX não assumiu o cargo, até
pa foi um dos inventos que mais mudou ser endossado pelo povo e clero romanos. Com
essa história, mas realmente assim foi. isto ele quis dizer que não seria considerado papa
Graças a ela, o papado pôde argumen- até ser eleito pela própria Igreja. Mas os impe-
tar o seu direito a governar sobre Roma e recla- radores tinham sido sempre claros: eles eram o
mar obediência a certos territórios italianos, que chefe visível da Igreja e, portanto, tinham mais
ficariam conhecidos como os Estados Papais, autoridade do que o papado. Na altura, Henrique
bem como proclamar a sua superioridade ante a III era um acérrimo defensor desta doutrina.
Igreja do Oriente. Tudo acabaria por rebentar em 1075 - o caso
Tudo começou em 12 de fevereiro de 1049, ficou conhecido como a querela das investiduras
quando o filho de um conde da Alsácia foi eleito - quando o Papa Gregório VII emitiu um Dicta-
sumo pontífice e pastor supremo da Igreja. Ado- tus papae no qual afirmava a supremacia abso-
tou o nome Leão IX. Nessa altura, o novo papa luta do sumo pontífice: era ele quem nomearia
teve de lidar com dois problemas de longa data. bispos, príncipes e imperadores. Também esta-
Por um lado, havia o antigo confronto entre o beleceu o princípio da infalibilidade da Igreja e
papado e o Sacro Império Romano Germânico. impôs o voto de castidade aos padres, que até
Até então, muitos pontífices tinham sido eleitos então estavam autorizados a casar.
por reis. De facto, o próprio Leão IX foi designa- Esta era a frente de batalha pelo poder políti-
do por Henrique III num congresso de príncipes co, mas Leão IX tinha outra de natureza teoló-

46
AGE
gica: as tensões com a Igreja do Oriente e, em a b s ol u t a m e n t e
particular, com o patriarca de Constantinopla, diferente”. Mas
Miguel I Cerulário. Estas fricções, que data- para Roma era al-
vam da queda do Império Romano Ocidental, go óbvio porque
tinham sido exacerbadas pela controvérsia reafirmava a con-
sobre o chamado Filioque do credo cristão. substancialidade
Durante o III Concílio de Toledo, que iniciou de Pai e Filho e
a 7 de abril de 589, tiveram lugar dois aconte- um dos seus dog-
cimentos muito significativos. Por um lado, os mas mais básicos,
visigodos abandonaram o arianismo e conver- a Trindade. Que a
teram-se oficialmente ao catolicismo. Os seus Igreja Oriental
reis tornaram-se assim protetores da nova re- não a aceitasse
ligião oficial. Além disso, houve uma pequena significava que
mas extremamente importante mudança no estavam a ne-
credo, a profissão dogmática da fé dos cristãos: gar tudo isto. No
acrescentou-se o termo Filioque, que se traduz final, esta con-
como “e do Filho”. trovérsia, junta-
mente com a luta Leão IX – acima, numa capela em Eguisheim
(Alsácia) – usou a doação de Constantino para
ATÉ ENTÃO, O CREDO, DEFINIDO APÓS ÁR- pela supremacia
se arrogar a primazia sobre os outros patriarcas.
DUOS debates teológicos e não tão teológicos eclesiástica, le-
nos Concílios de Niceia (325) e Constantinopla vou ao Grande Sisma de 1054, no qual papa e
(381), dizia que o Espírito Santo “procede do patriarca se excomungaram um ao outro.
Pai”. Com a inserção do novo termo, o Espírito Este era o estado de coisas quando Leão IX se
Santo tinha agora dois progenitores, pois “ele sentou na cadeira de Pedro. E para esta luta que o
procede do Pai e do Filho”. Esta nova fórmula esperava, ele procurou no seu arsenal uma arma
permaneceu em segundo plano até ser incorpo- que o servisse bem. Pois bem, encontrou-a num
rada na liturgia de Roma em 1014, durante a co- suposto documento do Imperador Constantino I,
roação do Imperador Henrique II. Foi então que o qual, no século IV, concedia ao Papa da época
os desacordos entre as igrejas se tornaram mais – Silvestre I – e aos seus sucessores o poder im-
evidentes. perial, dignidade e insígnias, bem como a sobe-
Para os cristãos orientais, o acrescento era rania perpétua “sobre Roma, as províncias e as
bárbaro. Em 863 já tinha provocado um bre- cidades de toda a Itália ou as províncias ociden-
ve cisma – terminou em 867 – encorajado pelo tais”. Também lhe concedia a primazia sobre os
então patriarca de Constantinopla, Fócio, um outros patriarcas: Antioquia, Alexandria, Cons-
político hábil e um dos homens mais instruídos tantinopla e Jerusalém.
do seu tempo. Tinha sido nomeado pelo impe-
rador bizantino Miguel III o Bêbado, porque o EM 1054, LEÃO IX ENVIOU UMA CARTA AO SEU
patriarca anterior, Inácio, lhe tinha recusado a HOMÓLOGO EM Constantinopla, na qual citava
comunhão por estar profusamente este texto. Talvez pensasse que is-
amancebado com to resolveria a disputa de uma vez por todas. Um
ARCHIVE COLLECTION

a sua nora. Indig- erro crasso. Essa doação de Constantino não teve
nado, o imperador o efeito desejado, mas serviu o propósito da Igre-
destituiu-o em 858 ja: não só manteve a liberdade e independência
e nomeou Fócio, eclesiásticas do poder civil, como também lhe
que era então um permitiu defender o seu poder terreno e tem-
oficial superior da poral sobre Roma e os seus arredores. É precisa-
sua guarda. mente por esta razão que hoje podemos desfrutar
Em qualquer ca- desse pequeno país que é o Vaticano.
so, para a Igreja do No século XV, provou-se que o documento
Oriente a inclusão era uma fraude. Sobre quando foi feito – já era
do Filioque era conhecido e aceite desde cerca de 850 – e onde –
um absurdo, ao poderia ter sido em Roma ou na abadia de Sain-
Nesta ilustração do final do século XIII, ponto de dizer que t-Denis, perto de Paris – só podemos especular,
os bispos das Igrejas Orientais e Ociden- em Roma estavam mas o que é claro é que a Igreja não renunciou
tais discutem a doutrina em Acre. a ensinar uma “fé aos privilégios que obteve através dele. e

47
22 Escolas
A transmissão de conhecimentos, uma prática exclusiva das elites
e de certas corporações no passado, é um pilar da civilização.

A
s primeiras escolas estavam obvia- própria escrita. Em meados do terceiro milénio
mente ligadas ao desenvolvimento da existiam escolas onde se ensinavam as crianças
escrita. Não é, portanto, surpreen- e adolescentes. De facto, foi encontrado o equi-
dente que tenham nascido na Sumé- valente a notas e trabalhos de casa que datam
ria por volta de 3500 a.C., quando a de 2500 a.C. na cidade de Shurupak.
escrita cuneiforme apareceu. Foram encontrados Ora bem, como os filhos continuariam a
na cidade de Uruk, na margem oriental do Eu- tradição familiar, os filhos de um carpintei-
frates, livros de texto — ou melhor, tabuinhas de ro aprenderiam o ofício de pai e acabariam a
texto. Consistiam em centenas de tabuinhas de trabalhar com madeira. Assim, apenas os des-
barro contendo listas de palavras. Pela sua dispo- cendentes de reis, nobres e escribas recebiam
sição, parece que a ideia era memorizá-las. essa formação. Embora não fosse comum as
Embora a maioria das tabuinhas que foram raparigas frequentarem a escola, também não
descobertas estejam relacionadas com aponta- era proibido, pois é sabido que na Mesopotâmia
mentos financeiros e administrativos, este tipo havia escribas mulheres.
de placas de estudo indicam claramente que
o ensino rigoroso e formal da escrita tinha si- O TRABALHO ENFRENTADO PELOS ALUNOS
do concebido pouco tempo após a invenção da ERA ÁRDUO, já que aprender escrita cuneifor-
me com facilidade exigia habilidade e
concentração. Como diz um dos seus
provérbios: “Quem procura desta-
car-se na escola dos escribas deve
levantar-se ao amanhecer”. Era, no
entanto, um trabalho com futuro,
uma vez que abarcava desde a con-
tabilidade e assuntos administrativos
até à redacção de notas de entrega,
contratos de venda ou simples cartas.
Não é surpreendente, portanto, que o
seu número tenha aumentado até se
tornarem uma classe social.
Os vestígios arqueológicos sugerem
que a educação dos escribas tinha lu-
gar em casas privadas chamadas edu-
ba, “escolas de escribas”. O melhor
exemplo é a Casa F, na cidade de Ni-
ppur, onde foram encontradas cerca
de 1500 peças de tabuinhas datadas de
cerca de 1750 a.C. A maioria consiste
em diferentes exercícios escolares fei-
tos por estudantes.

Nesta cópia dos Elementos de Euclides do sé-


ARCHIVE COLLECTION

culo XIV, pode ver-se uma mulher a ensinar


geometria a estudantes, o que é altamente
invulgar. Segundo os peritos, isto poderia ser
uma personificação da disciplina.

48
GETTY GENNARO BOLOGNA / CC

A madrassa e a Universidade de Qarawiyyin, situada em Fez, sobrevive desde 859. No entanto, em sentido estrito, a Uni-
versidade de Bolonha do século XI – à direita, numa talha medieval – é a instituição mais antiga do seu género.

O que poderia ser definido como educação poderia aprender astronomia ou geometria?
primária consistia em aprender as noções bá- Centenas e centenas de anos ainda estavam por
sicas do cuneiforme ao longo de quatro anos, o passar até ao seu aparecimento.
que implicava escrever longas listas de signos e No século IX, foram fundadas as primeiras
palavras e copiar textos simples. escolas de medicina, relacionadas com os bima-
No primeiro ano, adquiriam as técnicas de ristanos, palavra persa que significa “hospital”
escrita, como trabalhar o barro e as tabui- ou “casa dos doentes”, instituições onde qual-
nhas e utilizar o cinzel para fazer os três tipos quer pessoa necessitada era tratada sem ter de
de cunha — horizontal, vertical e oblíqua —, pagar nada — era a coisa mais próxima do pri-
e começavam a dominar os signos básicos e a meiro sistema de segurança social do mundo —,
escrever os nomes das pessoas. O aluno assimi- uma vez que eram financiadas por doações.
lava o alfabeto silábico B, que consiste em sig-
nos ou sílabas com alguma semelhança com as NO MUNDO ISLÂMICO, OUTRA FONTE DE
palavras sumérias, mas com pouco significado. EDUCAÇÃO ERAM as madrassas, que, sen-
Iniciava-se com uma cartilha para ensinar o do por vezes vistas como algo semelhante aos
aluno a conhecer os signos corretos. seminários católicos, na realidade referem-se
Em segundo lugar, memorizavam e escre- a qualquer tipo de escola. Em 859, Fátima al-
viam listas de palavras organizadas por assun- -Fihri, filha de um comerciante rico, decidiu
to, tais como as do grupo da madeira ou as do utilizar a fortuna que o seu pai lhe tinha legado
grupo da pele e couro. No terceiro ano, iam um aquando da sua morte para construir uma ao
pouco mais longe e aprendiam números, medi- lado da Mesquita Al-Qarawiyyin em Fez, Mar-
das e fórmulas comuns utilizadas em contratos rocos. Originalmente um lugar para o estudo
económicos. Além disso, incorporavam listas do Alcorão e da jurisprudência islâmica, rapi-
de palavras mais complexas. No quarto ano, co- damente se desenvolveu para o ensino da gra-
meçavam a trabalhar em frases sumérias com- mática, retórica, lógica, medicina, matemática
pletas, copiavam modelos de contratos e textos e astronomia, tornando-se a universidade mais
legais e, finalmente, provérbios. Isto servia de antiga do mundo.
transição para o ensino secundário, que consis- No entanto, muitos historiadores ocidentais
tia apenas em duas séries insurgem-se contra esta designação, porque
e cujo objetivo era que acreditam que a universidade não é definida
o escriba apren- pelo que é ensinado, mas sim pela forma como
E
AG

desse a escrever é ensinado. Seria uma comunidade de profes-


textos comple- sores com uma série de direitos, incluindo a
tos e a apreciar autonomia administrativa e a conceção e im-
as principais plementação de currículos, objetivos de in-
composições vestigação e a atribuição de diplomas, que são
da literatura reconhecidos publicamente. E esse é um pro-
suméria. duto puramente europeu. Considerada desta
E os centros forma, a universidade mais antiga seria Bolo-
de ensino su- nha em Itália, fundada em 1088 e reconhecida
perior, onde se como tal em 1158. e

Esta tabuinha suméria de 4000


anos descreve um exercício escolar
em caracteres cuneiformes. 49
O perito em técnicas de
sobrevivência Guido Ca-
mia recria os procedi-
mentos que os Nean-
dertais seguiam para
obter fogo nas mesmas
condições que deviam
GETTY

enfrentar.

23 Fogo
O domínio desta força foi um ponto de viragem na história da
evolução humana e iria determinar os nossos avanços tecnológicos.

U
m dos momentos mais decisivos de cinzas de madeira que mostram que o Ho-
na evolução cultural humana mo erectus utilizava o fogo há um milhão de
surgiu quando aprendemos a anos atrás. No entanto, há indícios de que o
controlar o fogo. É uma das for- estariam a fazer muito antes, embora não ha-
ças mais importantes na Terra, ja consenso a este respeito. Em Koobi Fora,
e considera-se que é revelador da nossa in- na margem oriental do Lago Turkana, uma
teligência termos sabido como a utilizar. O área famosa pelos muitos fósseis hominídeos
fogo proporcionou-nos calor para enfrentar aí descobertos, encontrou-se um sedimento
o frio, defesa para os predadores, uma forma avermelhado que poderia ter vindo do aque-
de criar novas ferramentas de caça; e mudou cimento a temperaturas entre 200 °C e 400 °C.
a nossa dieta e forma de comer, porque co- É óbvio que os nossos antepassados tiveram
meçámos a cozinhar. experiência direta com o fogo através de incên-
Pensa-se que um membro do género Homo dios, causados principalmente por raios — o
conseguiu dominá-lo entre 1,7 e 2 milhões de fogo mais antigo registado na Terra foi identi-
anos atrás. Portanto, não foi a nossa espécie, ficado a partir do carvão encontrado nas rochas
mas um dos nossos antepassados. Na caver- formadas durante o Siluriano, há cerca de 420
na Wonderwerk, no norte da África do Sul, milhões de anos. Mas como é que os nossos an-
foram encontrados vestígios microscópicos tepassados conseguiram controlá-lo?

50
Sabemos que são necessárias três
coisas para fazer fogo: um combus-
tível para queimar, oxigénio e uma
fonte de calor inicial. Em África,
onde viveram os primitivos Homo
que o obtiveram pela primeira vez,
há muito desse combustível. Por
outro lado, a atmosfera deve ter um
nível de oxigénio superior a 15%,
caso contrário é impossível que a
vegetação se inflame. Encontrar a
terceira coisa, no entanto, é muito
mais complicado.

É PROVÁVEL QUE a interação


humana com o fogo tenha sido
originalmente oportunista: con-
servava-se o fogo com o simples
acrescento do combustível ne-
cessário. Esta capacidade de pro-

AGE
longar a sua existência ao longo
No sítio arqueológico Koobi Fora, no Quénia, foram encontradas provas de
do tempo foi, no entanto, uma que o Homo erectus já controlava o fogo há 1,7 milhões de anos.
verdadeira proeza. A sua fonte po-
dem ter sido os incêndios naturais na savana restos de plantas e animais que não tinham
africana. sobrevivido à queima, tenha levado à desco-
Que os nossos antepassados lá vivessem berta de alimentos cozinhados.
foi uma sorte, porque, de acordo com dife- Temos provas de que o fogo se usava de forma
rentes modelos informáticos, estes biomas contínua num local em Israel entre 400 000 e
precisam de fogos regulares para se mante- 300 000 anos atrás. Sabemos também que uma
rem. Caso contrário, acabam por se tornar lareira tinha uso regular na caverna Qesem, a
áreas de mato e floresta. É seguro presumir doze quilómetros de Telavive. Foram aí encon-
que os primeiros seres humanos que habita- trados restos que indicam que os habitantes as-
vam a savana estavam habituados a ver estes savam carne: até um terço dos vestígios ósseos
incêndios e a seguir o rasto do fogo. Pode identificados — e mais de 80 por cento dos não
ser que a sua curiosidade, estimulada pelos identificados — foram queimados.

NESSA ALTURA, OS
NOSSOS ANTEPASSA-
DOS já eram presumi-
velmente capazes de
iniciar um fogo usando
pedras, mas a prova
mais antiga que se co-
nhece não tem mais de
40 000 anos. Como disse
o arqueólogo norte-a-
mericano Andrew So-
rensen da Universidade
de Leiden, nos Países
Baixos, “os arqueólogos
ainda têm de determi-
nar em que momento o
GETTY

fogo se tornou parte do


A caverna de Qesem em Israel preserva os restos de uma lareira que tinha uso regular conjunto de ferramen-
há 300 000 anos. Representa a mais antiga utilização contínua conhecida do fogo. tas humanas”. e

51
24 Imprensa
A capacidade de fazer múltiplas cópias de um documento escrito sem
ter de o reproduzir à mão constituiu a chave para a difusão da cultura.

D
iz a lenda que no sul da China nos Dunhuang, uma cidade chinesa que era muito im-
anos 480, um certo Gong Xuan- portante nos tempos da antiga Rota da Seda. Entre
xuan, que se intitulava Gong, o os seus compradores estava o explorador britâni-
Sábio, afirmou que um ser sobre- co, mas nascido na Hungria, Marc Aurel Stein. Os
natural lhe tinha dado um selo de textos incluíam todo o tipo de assuntos: história,
jade que lhe permitia escrever sem usar um pin- cálculo, canções populares, danças... Muitos eram
cel: com este selo, ele simplesmente soprava no escritos religiosos relacionados com o budismo,
papel e as letras retratadas apareciam. Algumas mas também com outras crenças e práticas filosó-
pessoas pensam que por detrás desta história ficas, tais como o maniqueísmo e o taoísmo.
está a invenção de algum tipo de dispositivo de
impressão autêntico, e que a parte mitológica es- O QUE AUREL STEIN NÃO PODIA IMAGINAR
tá lá para confundir e dar a impressão de que se ERA QUE TINHA ACABADO DE ADQUIRIR uma
tratava de algo mágico. No entanto, a história da cópia impressa do Sutra do Diamante — uma
impressão vai por outro caminho. composição budista que ensina a prática do des-
Em 1907, um monge taoista chamado Wang prendimento — datada de 11 de maio de 868. Não
Yuanlu começou a vender os livros e manuscri- é apenas o mais antigo livro impresso conheci-
tos que tinha encontrado nas grutas de Mogao em do, mas também a primeira obra publicada sob

O inventor chinês
AGE

Bi Sheng conce-
beu o primeiro ti-
po móvel no sé-
culo XI.

52
ARCHIVE COLLECTION
o que hoje chamaríamos uma licença Creative
Commons, pois foi criada “para distribuição
universal gratuita”. A descoberta deste docu-
mento obrigou os peritos a repensar tudo o que
julgavam saber sobre o desenvolvimento da im-
pressão.

OS PRIMEIROS TRABALHOS IMPRESSOS FO-


RAM FEITOS COM BLOCOS fixos de madeira ou O Sutra do Diamante é o livro impresso mais antigo co-
metal, onde os textos eram esculpidos e depois nhecido: foi publicado na China a 11 de maio de 868.
transferidos para o papel .Este processo foi uti- nada sobre a sua vida, e não teríamos sabido da
lizado essencialmente por razões religiosas, par- sua existência se não fosse um académico e cien-
ticularmente com tratados budistas e taoistas. tista contemporâneo chamado Shen Kuo que se
No século XI, foi muito melhorado quando um referiu à imprensa de Sheng no seu Ensaio sobre
artesão chinês chamado Bi Sheng desenvolveu o Tesouro dos Sonhos.
uma máquina de impressão de tipo móvel. Ele fez Kuo revela também que tipo de tinta era uti-
isto serrando os três mil caracteres chineses mais lizada — uma mistura de resina de pinheiro,
comuns em pequenos pedaços de madeira. Mais cera e cinzas de papel — e acrescenta que se
tarde, faria em cerâmica, que é mais durável. Co- trata de um método eficiente e rápido de copiar
mo era um cidadão comum, não chegou até nós documentos. e

O ponto de viragem que marcou Gutenberg


J ohannes Gensfleisch, conhecido como Gu-
tenberg, entrou para a história como inventor
da imprensa na Europa, mas poucos conhecem
A sua ideia era criar para cada letra um tipo me-
tálico móvel que pudesse ser usado muitas vezes
e que servisse para compor diferentes livros —
os problemas que enfrentou para a sua concre- abaixo à esquerda, uma réplica da sua prensa.
tização. Nasceu em Mainz no final do século Durante vinte anos ele tentou, falhou, endi-
XIV, mas a sua família teve de emigrar para Es- vidou-se e investiu no seu projeto. Finalmente,
trasburgo, uma vez que os Gutenbergs tinham em 1454, construiu seis prensas e começou a
estado do lado dos perdedores na agitação civil compor a sua Bíblia, em latim e em colunas du-
da sua cidade natal. plas, com 42 linhas por página e iluminadas com
Os seus interesses eram díspares. Ele tinha desenhos feitos à mão. Mas a fama, o dinheiro
ganho a vida a esculpir pedras preciosas, a e, possivelmente, a conclusão da edição foram
fazer espelhos, e em meados do século XV para Fust, que ficou com todo o material após
descobrimo-lo envolvido num negócio se- ganhar uma ação judicial contra Gutenberg por
creto que tinha algo a ver com a impressão. este não pagar os juros acordados. Gutemberg
Sabemos isto porque esteve envolvido num continuou a trabalhar na obscuridade e, embo-
processo judicial em cuja ata aparece a pala- ra tenha obtido a ajuda do arcebispo de Mainz,
vra imprimir. De facto, lá em Mainz, Gutenberg nunca saldou as suas dívidas. Morreu na ruína.
dedicou-se inteiramente à impressão, para a Ironicamente, os 49 exemplares da sua Bíblia
qual teve de pedir emprestados 800 florins a que sobrevivem hoje – abaixo à direita, um deles
um certo Johann Fust. – têm um valor incalculável.
GETTY

CORDON

53
25 Linguagem
Esta capacidade, que nos distingue de outros animais, contribuiu
decisivamente para o desenvolvimento da nossa espécie.

S
e falarmos das invenções que mais in- Afinal, com a linguagem, podemos comunicar
fluenciaram a nossa história, poucos de um forma mais precisa do que qualquer ou-
pensariam em destacar a linguagem. tra espécie. Ela permite-nos fazer planos con-
Contudo, foi a linguagem que tornou juntos, ensinar uns aos outros e aprender com
possível o grande salto em frente da a experiência de outros seres humanos distan-
humanidade, pois facilitou o aparecimento de tes no tempo e no espaço. Permite-nos tam-
todas as inovações técnicas, sociais e artísticas. bém armazenar imagens do mundo na nossa
mente e processar informação com uma
eficiência que ultrapassa de longe as capa-
Os últimos estudos cidades de qualquer outro animal. Sem ela,
IMÁGENES: AGE

genéticos e nunca teríamos construído as pirâmides do


anatómicos sugerem Egito ou os foguetões das missões Apollo.
que os Neandertais Infelizmente, as suas origens são o maior
tinham uma linguagem enigma no longo processo pelo qual nos tor-
complexa, não muito
námos naquilo que somos. Possivelmente,
diferente da nossa.
há três milhões de anos, em África,
os nossos antepassados, os austra-
lopitecos, emitiriam grunhidos pra-
ticamente indistinguíveis dos sons
dos chimpanzés, e há um milhão de
anos o Homo erectus utilizaria algu-
mas palavras isoladas. Quem sabe?
O nascimento da língua é um dos
maiores mistérios das ciências so-
ciais, se não o maior.

O ASSUNTO TEM SIDO ALVO DE IN-


TENSAS E veementes discussões. De
tal forma que a Sociedade Linguística
de Paris, uma organização dedicada
ao estudo das línguas, proibiu qual-
quer debate sobre esta questão em
1886; uma proibição que manteve
durante vários anos. O que é que a
linguagem tem de tão especial? Tal-
vez seja por ser uma habilidade única
e complexa, algo que só os humanos
podem fazer .
Foram feitas muitas tentativas
para ensinar alguns símios a falar,
particularmente os nossos primos
e parentes evolutivos mais próxi-
mos, os chimpanzés. O seu genoma
e o nosso diferem apenas 1,3%, mas
neste caso é um salto abismal.

54
Os chimpanzés po-
dem emitir vocaliza-
ções, mas não fa-
lam.Parece que o
gene FoxP2 — à di-
reita — está envol-
vido nesta capaci-
dade, que é
diferente nos chim-
panzés e em nós.

Nem eles, nem os gorilas, nem qualquer ou- conhecido é o filólogo americano Noam
tro animal possuem as estruturas anatómicas Chomsky: na sua opinião, a linguagem é uma
necessárias que lhes permitam falar como nós. característica única da nossa espécie e não po-
Mesmo as tentativas de ensinar linguagem ges- de ser comparada a nada que exista em não-
tual a estes primatas falharam, uma vez que não -humanos. Por conseguinte, teve de aparecer
demonstram capacidade de comunicar acima subitamente em algum momento da nossa
do nível de uma criança de dois anos. Tudo indi- história evolutiva.
ca que são necessárias três coisas para falar co-
mo um humano: um cérebro como o nosso, as A HIPÓTESE DE CHOMSKY É QUE UMA MUTA-
nossas cordas vocais e a nossa inteligência. ÇÃO GENÉTICA num dos nossos antepassados
lhe deu a capacidade de falar e compreender a
HOJE HÁ ESSENCIALMENTE DUAS FORMAS DE linguagem, que foi transmitida à sua descen-
ABORDAR A ORIGEM da linguagem. Uma delas, dência. Uma vez que isso significava uma van-
a que é mais popular na comunidade científica, tagem significativa — pois permite facilmente
consiste nas chamadas teorias da continuidade. dizer a outros membros da sua espécie onde
A ideia subjacente é que a linguagem é algo tão há alimento ou onde está um predador escon-
complexo que é impossível que surja do nada na dido — essa mutação acabou por se espalhar.
sua forma final, ou seja, deve ter surgido através Curiosamente, um estudo da Universidade da
de um processo evolutivo, a partir das protolin- Califórnia em Los Angeles e da Universidade de
guagens primitivas utilizadas pelos nossos ante- Emory, publicado em 2009, parece apoiar este
passados hominídeos. Um exemplo é proposto ponto de vista. Os investigadores descobriram
pelo antropólogo Dean Falk da Universidade que o gene essencial para o desenvolvimento
Estatal da Florida, que sugere que, à medida que da linguagem e da fala, chamado FoxP2, está
os primeiros seres humanos perdiam o pelo, as dentro dos 1,3% que nos separa do chimpanzé.
mães sentiam mais dificuldade em carregar os Além disso, segundo David Geffen, um dos au-
seus bebés nas costas enquanto recolhiam ali- tores do artigo, os ensaios sugerem que a com-
mentos. Ao pousá-los no chão, e para deixar posição em aminoácidos da proteína humana
claro aos bebés que não os tinham abandonado, FoxP2 mudou rapidamente ao mesmo tempo
chamavam-nos e usavam expressões faciais. que a linguagem emergiu nos nossos antepas-
No lado oposto do espectro estão as teo- sados. Será que este gene mutante é o que nos
rias da descontinuidade, cujo defensor mais distingue de toda a vida na Terra? e

55
26 Leis
Há quase 3800 anos, o Código de Hamurábi iniciou uma forma de
compreender a justiça que, no essencial, perdura até aos dias de hoje.

C
ostuma dizer-se
que as leis são o que
O Museu do Lou-
GETTY

vre preserva esta


distingue o homem
estela, na qual es- civilizado do selva-
tão gravadas as gem, mas nas anti-
282 regras do Có- gas culturas do Próximo Oriente
digo de Hamurábi. eram os deuses que as ditavam
Este foi escrito na aos seres humanos, e por isso
Babilónia por vol- eram sagradas. O primeiro con-
ta de 1754 a.C.. junto de tais preceitos foi o de
Shamash ou Utu, o antigo deus
mesopotâmico do Sol, da justi-
ça, da moralidade e da verdade,
e gémeo de Inanna — Ishtar, em
assírio-babilónico — a rainha dos
céus. Foi o rei babilónico Hamu-
rábi que o recebeu, por volta de
1754 a.C., e isto está representado
na imagem que coroa a estela na
qual as leis foram gravadas .
Esta decisão do Shamash sig-
nificou uma mudança radical na
gestão da civilização. Antes da su-
bida de Hamurábi ao poder, eram
os sacerdotes dessa divindade que
atuavam como juízes, mas o mo-
narca ordenou que fossem os fun-
cionários a fazerem esse trabalho.
Foi uma jogada muito inteligente,
que ao mesmo tempo reduzia o
poder dos sacerdotes e fortalecia
o seu.

ESTE CÓDIGO PODE SER VISTO


NO LOUVRE. É um bloco de dio-
rito com 2,5 m de altura por 0,5
m na parte mais larga, encon-
trado em 1901 em Susa, Irão. Foi
para aí levado como despojo de
guerra em 1200 a.C. pelo rei ela-
mita Shutruk-Nahhunte. Foi en-
contrado pelo engenheiro gaulês
Jean-Jacques de Morgan ao efe-
tuar aí escavações e transportado
para Paris em abril de 1902.

56
AGE
O júri
A presença do júri num julgamento remon-
ta à Grécia antiga. O exemplo mais claro
é o caso da sentença de morte de Sócrates
— abaixo, o momento em que está prestes a
ingerir o veneno, numa obra de Jacques-Lou-
is David, 1787. Este júri fazia parte do Heliea,
o Supremo Tribunal de Atenas. Era composto
por seis mil cidadãos com mais de trinta anos
de idade e estava dividido em dez classes de
quinhentos indivíduos, enquanto mil perma-
neciam em reserva. Tal como nas instituições
O rei Hamurábi — acima — reuniu os códigos legislativos
políticas, formava-se parte da Heliea por sor-
babilónicos existentes num só. Este estabelecia as penas
— desde multas até à morte — para vários crimes. teio anual.
No entanto, o júri mais famoso é sem dú-
O texto, escrito em caracteres cuneiformes acá- vida o inglês, cuja origem não é clara. Pode
dios, tem cerca de 3500 linhas dispostas em 51 ter tido origem na própria Inglaterra, mas
colunas lidas da direita para a esquerda. Foi tra- também pode ter sido importada na se-
duzido pelo dominicano assiriólogo Jean-Vincent quência das invasões normandas em 1066.
Scheil em seis meses e consta de um prólogo, 282 Nos seus primórdios, os seus membros
regras e um epílogo. Regulava a vida social e eco- eram testemunhas da vizinhança que da-
nómica em todos os seus aspetos, uma vez que não vam a sua opinião com base no que sabiam.
distingue entre o direito civil e o penal.
Com o colapso da sociedade medieval e o
crescimento das cidades, o papel do júri
O SEU OBJETIVO ERA UNIFICAR OS COMPÊN-
DIOS SEMELHANTES JÁ EXISTENTES nas cida- mudou e este passou a ser convocado para
des do Império Babilónico, estabelecer mandatos determinar os factos do caso com base nas
aplicáveis em todos os casos, e assim impedir que provas apresentadas em tribunal.
cada um fizesse justiça pelas suas próprias mãos.

ARCHIVE COLLECTION
Como diz na sua primeira parte, é um código para
proclamar “ordem justa, para destruir o ímpio e
o perverso, para impedir que os fortes oprimam
os fracos, para que, como faz Shamash, Senhor
do Sol, eu possa erguer-me acima dos homens,
iluminar o país e assegurar o bem-estar do povo”.
As penas para cada crime têm em conta se
existe ou não intenção, e o estatuto social da ví-
tima e do infrator, ou seja, se é um homem livre,
um muskenu — uma espécie de servo —, ou um
escravo. Assim, a pena é maior se o mal foi fei-
to deliberadamente e menor se foi acidental; é
também maior se a vítima é um indivíduo livre e
menor se é um escravo.
Quase todas as penas consistem em multas fi-
nanceiras, mas está prevista também a pena de
mutilação e mesmo de morte. E embora se tenha
dito que o Código de Hamurábi é essencialmen-
te uma lei do talião — o famoso olho por olho e
dente por dente — na realidade só opta por ela
em alguns casos e sempre com a condição de que
tanto o agressor como o agredido pertençam à
mesma categoria social. e

57
No início do século

CORDON
passado, os correios
japoneses costuma-
vam usar tatuagens
elaboradas. Isto re-
solvia um problema:
o vestuário tornava
o seu trabalho difí-
cil, mas a nudez era
uma fonte de cons-
trangimento.

27 Sistema No século
XIX, o serviço

postal
postal moderno
revolucionou a
correspondência.

D
ado que as boas comunicações sageiros montados a cavalo. Apoiados por um
eram essenciais para governar os sistema de postas, estações de paragem, estes
vastos impérios do mundo antigo, viajavam a galope ao longo das excelentes es-
não é surpreendente que entre as tradas que ligavam as suas cidades.
primeiras referências históricas Roma também precisava de manter uma co-
aos sistemas postais esteja o Egito. Por volta de municação fiável e rápida com os governadores
2400 a.C., os faraós já utilizavam mensageiros das províncias distantes. Assim nasceu o cha-
para enviar decretos por todo o território. Tam- mado cursus publicus, o sistema postal mais
bém os encontramos na China, sob a dinastia desenvolvido da antiguidade, que fazia parte
Zhou, quase 1500 anos mais tarde; e na Pér- integrante da sua complexa estrutura militar
sia, Ciro II, o Grande, também utilizava men- e administrativa. As estações de muda eram

58
GETTY
instaladas a intervalos ao longo das estradas,
e a velocidade a que os mensageiros podiam
viajar era inigualável na Europa até ao sécu-
lo XIX: diz-se que podiam percorrer mais de
270 quilómetros num dia e numa noite. Como
podemos imaginar, a manutenção desta rede
eficiente exigia um elevado grau de organiza-
ção, e para isso existia um sistema de inspeção
que controlava minuciosamente o seu funcio-
namento e evitava abusos, tais como a sua uti-
Os imperadores romanos utilizaram o cursus publicus, um ser-
lização para fins privados.
viço postal estatal, para comunicar com os governadores das
províncias.
O SISTEMA POSTAL MODERNO NASCEU COM
A PUBLICAÇÃO EM 1837 da brochura A Refor- facilmente evitável. A solução que propôs foi
ma dos Correios. Foi escrita por um professor introduzir uma taxa de porte uniforme, ou seja,
inglês chamado Rowland Hill, e é considerada cobrar o mesmo pelo envio de uma carta, inde-
um dos mais importantes marcos na história dos pendentemente da distância. O pré-pagamento
serviços postais. Hill fez um estudo exaustivo da dos portes seria feito por meio de selos adesivos
estrutura das despesas das operações postais, vendidos nos correios. Hill propôs uma taxa bá-
demonstrando sem margens para dúvidas que sica de um cêntimo por meia onça (14 gramas),
o custo de levar a carta até ao seu destino era uma medida que era apenas um pouco supe-
insignificante em comparação com o custo da rior ao peso médio das cartas a serem enviadas.
burocracia envolvida no seu envio. Da mesma O selo postal acabava de nascer, emitido pela
forma, deixou claro que as complexas tabelas de primeira vez em Inglaterra em 1840, quando o
recolha baseadas na distância eram despropo- governo britânico lançou o novo sistema postal
sitadas e inflacionavam os custos operacionais, concebido por Hill.
pois exigiam um grande número de emprega-
dos para as aplicar e para preparar as complexas MAS A IMPORTÂNCIA DESTA REFORMA NÃO
contas entre os diferentes postos dos correios. RESIDE NA INTRODUÇÃO DO pré-pagamento
Em suma, mover uma carta custa muito menos sob a forma de selos, mas sim no facto de, invo-
do que todos os trâmites envolvidos. luntariamente, Hill ter deixado o sistema postal
Também percebeu que a cobrança pelo servi- perfeitamente oleado para fazer face à grande
ço quando se entregava a carta era algo que obs- procura deste serviço que se daria anos mais
truía todo o sistema, embora, felizmente, fosse tarde. As suas principais características foram
gradualmente adotadas por outros países; en-
ARCHIVE COLLECTION

tre os primeiros estavam a Suíça e o Brasil em


1843.
A introdução de tarifas uniformes e baratas
foi acompanhada de tarifas ainda mais baixas
para jornais — em alguns locais foram distri-
buídos gratuitamente — e para todo o tipo de
documentos impressos. Inicialmente, estas ta-
xas reduzidas destinavam-se a favorecer a di-
vulgação da educação, mas surgiu um mercado
inesperado, abrangendo todo o tipo de notas
comerciais, material publicitário, revistas...
Em 1869, uma forma ainda mais barata de
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enviar mensagens surgiu na Áustria: o bi-
lhete postal. Nos anos seguintes, tornou-
-se a forma habitual de enviar saudações
quando se viaja ou em férias. e
O professor inglês Rowland Hill (à esquerda) propôs
a aposição de selos em cartas para mostrar que o
serviço postal já tinha sido pago. O primeiro, chama-
do Penny Black, foi enviado em 1840.

59
60
28 Papel
Diz-se que está a dar as últimas, mas
mais de dois milénios após a sua inven-
ção na China, continua a ser uma parte
fundamental das nossas vidas.

D
iz a lenda que por pelo bambu, que crescia mui-

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volta do ano 105, to mais rapidamente e era mais
o sábio eunuco Cai acessível.
Lun apresentou ao Durante a dinastia Song
imperador chinês (960-1279), as técnicas de pro-
o primeiro pedaço de papel, dução de papel melhoraram e
feito de cânhamo. Acredita-se a matéria-prima básica era a
que a sua invenção foi acidental: casca de amora cozida. O papel
alguém deixou a roupa (feita de chinês tinha atingido uma qua-
cânhamo) de molho durante de- lidade tão elevada — era pro-
masiado tempo, que formou um duzido em todos os tamanhos e
resíduo que podia ser pressio- cores — que era comercializado
nado para uma folha muito fina. ao longo da Rota da Seda.
No entanto, provas arqueológi-
cas mostram que o papel existia A FIBRA DA MADEIRA ENTROU Esta pintura sobre papel foi feita al-
na China mais de duzentos anos EM JOGO mais tarde. No século gures entre os séculos V e VII d.C.
antes dessa data. Era feito de XVIII, o papel ainda era feito na
cânhamo, casca, caules de tri- Europa a partir de algodão e tra- Foi amplamente imitado. Na
go e outros materiais que eram pos de linho. À medida que mais década de 1750, o alemão Ja-
embebidos e depois prensados livros foram publicados, as ma- cob Christian Schäffer fez papel
e secos em armações de madei- térias-primas tornaram-se es- a partir de materiais extraídos
ra. Não era apenas usado para cassas, tanto que em Inglaterra de ninhos de plantas e vespas,
escrever: os soldados usavam a lei exigia que os mortos fossem e uma pequena quantidade de
papel dobrado como cota de enterrados em roupas de lã a fim trapos. Em 1800, uma perso-
malha, porque era leve e prote- de poupar algodão e linho para nagem da qual pouco se sabe,
gia das flechas. o papel. Mathias Koops, produziu papel
Foram experimentadas dife- Em 1719, o polímata fran- tanto de palha como de madei-
rentes fibras numa busca para cês René Antoine Ferchault de ra, sem trapos. Para apresentar
encontrar a mistura mais barata Réaumur propôs a utilização a sua invenção, imprimiu um
de materiais que produziriam pa- da madeira como componente livro no seu papel no qual con-
pel da mais alta qualidade. O ro- principal do papel. Inspirou-se tava a história da sua fabricação.
tim — uma planta de crescimento no modo como as vespas faziam E embora tenha citado Réaumur
lento — substituiu o cânhamo, e os seus ninhos a partir da celu- e Schäffer, ele deixou as pobres
no século VIII este foi substituído lose que extraíam dos troncos. vespas anónimas. e

O pioneiro italiano do livro moderno


E
GETTY
studioso e tipógrafo, o italiano Aldo Manúcio (1449-1515) percebeu
que o problema da Bíblia de Gutenberg residia no tipo de letra, a ne-
grito e grande. Não podia ser utilizado para imprimir livros de fácil manu-
seamento. Por volta de 1500 encomendou a Francesco Griffo a criação
de uma tipografia mais prática. Assim nasceu a letra itálica ou bastarda,
baseada na escrita cursiva utilizada na chancelaria papal e nas cartas que
os pensadores enviavam uns aos outros. A outra inovação do Manúcio foi
reduzir o tamanho dos livros ao octavo, o que foi conseguido dobrando
uma folha de papel de impressão de modo a que cada fragmento resul-
tante fosse um oitavo da folha completa, enquanto que a forma tradicional
era imprimir usando uma folha dobrada ao meio. Desta forma, conseguiu
produzir livros mais pequenos e mais manuseáveis.
61
29 Dicionário
A invenção desta obra de consulta promoveu a educação, a
transmissão de conhecimentos e o contacto entre culturas.

A
8 de novembro de 1519, Hernán O dicionário bilingue foi o primeiro tipo de
Cortés e trezentos homens encon- dicionário a existir. O mais antigo consiste em
traram-se pela primeira vez com o tabuinhas cuneiformes do Império Acádio, da-
governante do México, Moctezuma, tadas de 2300 a.C., que incluem diferentes listas
em Tenochtitlán, a capital do seu de palavras na sua língua e em sumério. Foram
império. Após uma troca de presentes e um jan- descobertas em Ebla, no norte da Síria. Neste
tar de peru, fruta e tamales de milho, iniciaram glossário, conhecido como Urra=hubullu, as
a sua conversa. Moctezuma falou em nauatle, palavras estão dispostas por ordem temática.
e Cortés ouviu a tradução dos seus intérpretes: Por exemplo, a tabuinha n.º 4 contém termos
Malintzin, mais conhecida como La Malinche, navais e a tabuinha n.º 17 contém plantas.
uma nobre mexicana que conhecia o maia iuca- O primeiro dicionário conhecido dedicado
teco; e Geronimo de Aguilar, que tinha sido pri- à definição de palavras data do século IV a.C.
sioneiro dos maias durante oito anos e conseguia Foi escrito por Filetas de Cos, um estudioso
traduzir a sua língua para o espanhol. da língua de Homero. Esta obra, que agora
desapareceu, era uma miscelânea desordena-
CORTÉS TEVE SORTE, POIS SEM A SUA AJUDA da que explicava o significado de expressões
TERIA SIDO IMPOSSÍVEL para ele compreender dialectais raras, termos técnicos e arcaísmos
os astecas. Além disso, o primeiro dicionário utilizados na Ilíada e na Odisseia, a maioria
maia-espanhol só apareceu em 1577 e foi com- dos quais eram ininteligíveis já nessa altura.
pilado por missionários franciscanos durante o No entanto, o dicionário homérico mais anti-
processo de evangelização: é o dicionário de Mo- go sobrevivente, intitulado Léxico homérico,
tul, assim chamado porque o seu anónimo autor foi escrito por Apolónio, o Sofista, por volta
— ou autores — residia nessa cidade no Iucatã. do século I.

GETTY

Geronimo de Aguilar e Malinche, uma jovem nauatle,


foram os intérpretes durante o encontro de Hernan
Cortés com Montezuma. Aqui, imaginado por Juan
Ortega em 1885.

62
ARCHIVE COLLECTION
Na Ásia, vários dicionários começa-
ram a aparecer a partir do século IV.
Assim, o sânscrito, Amara-kosha, foi
compilado pela poetisa e lexicógrafa
Amara Simja. Está em verso — para
facilitar a memorização — e consiste
em cerca de 10 000 palavras.
No Japão, o mais antigo dicioná-
rio de caracteres chineses é o Tenrei
banshō meigi, datado de 830. O seu
autor, o monge budista Kūkai, uti-
lizou o dicionário chinês Yupian de
543. Este último é uma das obras mais
significativas da história da escrita
chinesa, pois foi o primeiro a aparecer
depois do Shuowen Jiezi, que marcou No século IV a.C., Filetas — acima, por Rodolfo Amoedo (1887) —
uma revolução na lexicografia cinco compôs um dicionário com o significado de diferentes expressões.
séculos antes. Não só analisa a estru-
tura dos caracteres chineses e explica a sua ori- Os primeiros dicionários árabes foram publi-
gem, mas também é organizado por radicais, cados entre os séculos VIII e XIV. Neles, as pa-
ou seja, cada um dos 214 elementos nos quais os lavras são ordenadas ou pela sua última sílaba
caracteres chineses podem ser decompostos. — por ordem de rima — ou por ordem alfabética
dos radicais, ou por ordem alfabética da primei-
TAMBÉM SOBREVIVERAM VÁRIAS OBRAS ra letra, que é o sistema que utilizamos nos di-
DO SÉCULO XV do Médio Oriente e uma pá- cionários de línguas europeias modernas.
gina do século IX do Frahang-ī Pahlavīg, um Na Idade Média, no Velho Continente, sur-
dicionário anónimo cuja data exata de com- giram glossários de equivalências entre o la-
posição também é desconhecida, contendo tim e as línguas vernáculas de cada lugar. Esta
logogramas aramaicos juntamente com a sua tarefa foi facilitada pelo dominicano italia-
tradução para o persa médio e a transcrição no Johannes Balbus, que escreveu a Summa
fonética para o alfabeto de pazend, outro sis- Grammaticalis, ou o Catholicon, em 1286. Este
tema de escrita persa. grande trabalho contém, entre outras coisas,
tratados sobre ortografia, etimologia e gramá-
tica, bem como um dicionário da língua latina
GETTY

com 670 000 entradas. A ideia de Balbus foi a


de tornar a Bíblia mais compreensível. Era tão
importante que foi um dos primeiros livros a
ser impresso com a nova invenção de Guten-
berg, a imprensa gráfica.
Esta obra serviu de base a vários dicioná-
rios bilingues. Mais tarde, no século XV, apa-
receu outro Catholicon, de Jehan Lagadeuc,
sacerdote bretão da diocese de Tréguier. Este
trabalho com 6000 entradas é o primeiro di-
cionário bretão, o primeiro dicionário francês
e o primeiro dicionário trilingue (bretão-fran-
cês-latim) na Europa. Contudo, o mais antigo
dicionário monolingue escrito na Europa foi o
de Sebastián de Covarrubias, chamado Tesoro
de la lengua castellana o española, publicado
em 1611 em Madrid. e

Os primeiros glossários conhecidos em sumério e acádio


apareceram em Ebla (Síria), de onde provém esta tábua do
terceiro milénio a.C..

63
AGE

Este desenho da artista japonesa Utagawa


Hiroshige, realizado na década de 1840, re-
trata Murasaki Shikibu, a escritora e poetisa
japonesa que inaugurou a arte do romance.

30 Romance
A forma mais popular de literatura nasceu há um milénio com
uma narrativa criada por uma mulher da corte japonesa.

U
m texto escrito é considerado um ta de 1005, Fujiwara no Michinaga, um político
romance se for uma longa histó- japonês que governou o país de facto no início
ria, fictícia ou não, mas credível, do século XI (foi pai de quatro imperatrizes, tio
escrita em prosa e onde predomi- de dois imperadores e avô de três outros) con-
na a narração. Com isto em mente, vidou-a a servir como acompanhante da impe-
o primeiro romance apareceu no Japão por vol- ratriz Shōshi na corte imperial, provavelmente
ta do ano 1000. O seu título, Genji Monogatari por causa da sua reputação como escritora. Após
(O Romance do Genji). A sua autora, Murasaki cinco anos, Murasaki deixou a corte e retirou-se
Shikibu. com Shōshi para a região do Lago Biwa.
Na altura, às mulheres japonesas não era mi-
nistrado o ensino da língua chinesa, a língua es- AO LONGO DE MAIS DE 54 CAPÍTULOS, GENJI
crita do governo japonês, mas o pai de Murasaki MONOGATARI CONTA A VIDA de Hikaru Genji,
era um erudito que não ia permitir que a sua fi- o filho do imperador japonês Kiritsubo, que por
lha não a aprendesse. Aparentemente, a rapa- razões políticas foi retirado da linha de sucessão
riga mostrou uma grande capacidade para isso, e rebaixado ao estatuto de plebeu. Mas a histó-
e rapidamente foi capaz de ler os clássicos com ria, além de descrever em requintados detalhes
fluidez. Ela casou quando tinha vinte e quatro os costumes da sociedade aristocrática da época
ou vinte e seis anos, e deu à luz uma filha. Mas a — que a autora conhecia muito bem — concen-
alegria durou pouco, pois o seu marido morreu tra-se na vida romântica deste belo, sensível e
dois anos após o casamento. talentoso cortesão, além de excelente amante e
Não sabemos quando é que esta autora pionei- amigo de confiança. Cada uma das mulheres da
ra começou a escrever, mas deve ter sido entre sua vida é vividamente descrita, de modo que
o seu casamento e a morte do marido. Por vol- um crítico literário disse que “a obra mostra uma

64
ARCHIVE COLLECTION
sensibilidade suprema às emoções humanas e às
belezas da natureza, mas à medida que avança,
o seu tom sombrio reflete a convicção budista da
transitoriedade deste mundo”.
O romance é escrito em japonês, que era a lín-
gua literária usada pelas mulheres — lembre-se
que não lhes era ensinado chinês, a língua culta
da corte. Isto torna a leitura muito difícil para
aqueles que não são fluentes na língua utilizada
pelas cortesãs, o público a quem se destina a his-
tória. Na realidade, é praticamente ilegível para
qualquer leitor que viva apenas um século após
a sua criação.

OUTRA DIFICULDADE NA SUA LEITURA É QUE


AS PERSONAGENS não são mencionadas pelo
nome, mas pela sua função na corte, ou pelo
seu título honorário, ou ainda pior, pela sua re-
lação com outras personagens, que obviamente
muda à medida que a história avança, mas sem
enredo: é uma série de situações que surgem à
medida que as personagens envelhecem. Se-
ja como for, esta obra, que é considerada uma
obra-prima da literatura clássica japonesa, O Romance do Gengi, numa tradução de Carlos de Oli-
mostra que Murasaki Shikibu possuía um vas- veira para as edições Relógio D’água. Borges disse so-
to conhecimento de poesia: incorpora cerca de bre este romance milenar que “não é que seja melhor
800 waka, poemas corteses que a autora põe na ou mais memorável ou intenso do que a obra de Cer-
boca do protagonista. e vantes, mas é mais complexo”.

A origem do romance moderno


ALBUM

N a Europa do século XVII, apenas se produziam nove-


las, narrativas breves ao estilo das Novelas ejempla-
res de Cervantes (Novelas Exemplares). Estas narrativas
destinavam-se a oferecer ao leitor histórias que falavam de
comportamentos com subtilezas morais, uma alternativa a
atos cavalheirescos ou a aventuras satíricas e picarescas.
Pode dizer-se que o romance moderno nasceu em
1605 com a publicação de O Engenhoso Fidalgo Dom
Quixote de La Mancha, uma sátira de Amadís de Gaula,
um livro medieval de cavalheirismo responsável na obra
de Miguel de Cervantes pela loucura do seu protago-
nista, um herói atípico: Dom Quixote não declama a sua
epopeia com belos versos, nem os seus feitos oferecem
ensinamentos morais ou grandes vitórias, apenas um
escárnio de ideais nobres. Pela sua técnica e estrutura
episódica, é sem dúvida a primeira narrativa moderna.
Em 1678 Madame de La Fayette publicou anonimamen-
te A Princesa de Cléves, utilizando a técnica do roman-
O artista francês Gustave Doré viajou por Espa-
ce espanhol, mas adaptada ao gosto francês, no que é
nha e capturou parte da sua experiência nas fa-
considerado o primeiro romance psicológico, devido à mosas gravuras que fez para uma edição gaulesa
profundidade das suas personagens. de Dom Quixote publicada na década de 1860.

65
31 Música
Uma vida sem ela parece-nos inimaginável. Na verdade, não há nem
nunca existiu uma cultura conhecida sem cantos e instrumentos.

N
ão é irracional pensar que a mú- do, as pedras que poderiam ter sido utilizadas
sica — como a pintura e outras não são facilmente identificáveis devido a ou-
expressões artísticas — nasceu ao tros usos mais quotidianos que se lhes dava. É
mesmo tempo que os seres hu- por esta razão que os instrumentos mais antigos
manos, e que a sua primeira uti- que conhecemos são instrumentos de sopro,
lização foi dupla: como parte de rituais religiosos tais como assobios e flautas.
e como deleite. No entanto, não sabemos quando
ocorreu a mudança da batida rítmica para a me- NO ENTANTO, É DIFÍCIL DETERMINAR SE AL-
lodia, nem como foi descoberto que a mudança GUNS DOS RESTOS encontrados que se as-
do tom da voz poderia alterar o seu som. Na au- semelham a instrumentos musicais o eram
sência de registos escritos, ficamos apenas com realmente, pois a definição do seu uso envolve
escavações arqueológicas para encontrar os res- inevitavelmente um grau de interpretação. Por
tos do que os nossos antepassados usavam para exemplo, os seis ossos de mamute descobertos
fazer música, isto é, os instrumentos. no sítio de Mezin, na Ucrânia, parecem ter si-
Os historiadores da pré-história assumem do instrumentos de percussão. Também foram
que os primeiros instrumentos foram instru- desenterrados chocalhos feitos com ossos ou
mentos de percussão, e que eram feitos dos sementes, bem como conchas, chifres e garras
materiais mais facilmente disponíveis: pedra, que se pensava terem sido utilizados para pro-
madeira ou peles. Mas isto não é mais do que duzir som. Um exemplo do debate são precisa-
uma suposição, uma vez que é quase impossível mente estas últimas peças de madeira presas a
encontrar quaisquer vestígios: por um lado, os uma corda que soam quando se giram: eram um
instrumentos de madeira e couro não se con- instrumento musical ou serviam, por exemplo,
servam com o passar do tempo e, por outro la- como pesos para redes de pesca?

IMÁGENES: GETTY

Esta flauta feita a partir de um osso de abutre tem cerca de 35 000 anos
66 e foi encontrada na caverna Hohler Fels, na Alemanha.
Este petróglifo, criado pelos Anasazi entre 800 e 2500 anos atrás, está localizado no sítio arqueológico Sand Island no Utah.
À esquerda, Kokopelli — um deus da fertilidade entre os nativos do sudoeste da América do Norte — toca flauta.

Onde não há dúvidas é com os apitos feitos portantes de um jantar. Nos lares mais pobres,
a partir dos ossos das falanges animais, alguns um membro da família tocava um instrumen-
dos quais têm cerca de 30 000 anos de idade. to, cantava ou contava uma história após a re-
Não há dúvida de que foram feitos para produ- feição; os ricos tinham escravos para isso ou
zir som ao soprar, mas... foi para criar música artistas profissionais pagos. Os instrumentos
ou apenas ruído? utilizados incluíam tambores, sinos, guizos,
Uma flauta com três orifícios foi encontra- flautas, liras e harpas. As imagens sobrevi-
dano sítio alemão de Geißenklösterle — dos 17 ventes deixam claro o grande amor dos me-
cm de comprimento que se supõe que media, sopotâmios pela música, pois mostram-nos
só se conservam 12 cm. Tem 36.000 anos e foi a escutá-la enquanto bebem cerveja, lêem ou
feita a partir do cúbito de um cisne. Duas ou- relaxam em casa ou no jardim.
tras flautas foram encontradas no mesmo lo-
cal, uma feita com o rádio de um abutre e a NO ANTIGO EGITO, A MÚSICA E A DANÇA
outra com o corno de marfim de um mamute. ERAM MAIS IMPORTANTES do que geral-
Ambas têm cerca de 45 000 anos de idade. mente se pensa. Segundo a egiptóloga Helen
Strudwick, “a música estava em todo o lado:
DE TODOS OS VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS, em banquetes civis ou funerários, procissões
o mais fascinante foi descoberto em 2008, na religiosas, desfiles militares e até no trabalho
caverna Hohler Fels perto de Ulm, também na do campo”. Mas não tinham conceito de nota-
Alemanha: uma flauta de cinco orifícios com ção musical: as músicas eram transmitidas de
uma boquilha em forma de V feita a partir de uma geração de músicos para a seguinte, por
um osso de asa de abutre. E não foi uma des- isso nunca saberemos como soavam as suas
coberta única: foram encontrados outros ins- composições.
trumentos semelhantes datados de há pelo A mais antiga forma conhecida de notação
menos 35 000 anos. De acordo com os cientis- musical apareceu numa tábua cuneiforme
tas responsáveis por estas descobertas, estas encontrada nas ruínas da cidade suméria de
continuam a “demonstrar a presença de uma Nippur, cerca de 100 milhas a sudeste de Bag-
tradição musical bem estabelecida na altura dade, datada de 1400 a.C. Contém instruções
em que os humanos modernos colonizaram o fragmentárias para executar música, que foi
continente europeu”. composta em harmonia tercina e escrita numa
O que é evidente é que a música estava mui- escala diatónica. Outras tábuas contêm nota-
to presente quando surgiram as primeiras ções mais desenvolvidas e como afinar uma
civilizações. Na Mesopotâmia, por exemplo, lira. Estas são as primeiras melodias escritas
a narrativa e a música eram dois aspetos im- encontradas no mundo. e

67
Este animal parecido com
uma vaca é um dos pri-
meiros exemplos de arte
ARCHIVE COLLECTION

figurativa. Foi pintado há


cerca de 40 000 anos na
gruta Lubang Jeriji Saléh,
na Indonésia.

32 Pintura
Uma das coisas que nos tornam humanos é criar imagens que re-
presentam o mundo à nossa volta... e o mundo na nossa cabeça.

P
línio o Velho relata-nos o mito co- dedicaram a decorar as paredes de calcário com
ríntio de Kora, no livro XXXV da sua imagens do mundo em que viviam. A pintura
História Natural. Filha de um oleiro mais antiga foi encontrada na caverna chamada
chamado Butades de Sicião, Kora era Lubang Jeriji Saléh, e é de um animal selvagem
uma jovem apaixonada que, como que se assemelha a uma vaca. A sua idade, cal-
muitas mulheres de todas as idades, em breve culada por datação radiométrica, é de cerca de
perderia o seu amado, pois tinha de partir para 40 000 anos, tornando-a no mais antigo exem-
uma das contínuas guerras travadas pelos anti- plo conhecido de arte rupestre figurativa —
gos gregos. Uma noite ela acordou e viu o perfil imagens representando objetos do mundo real
do jovem reflectido na parede à luz de uma vela. em vez de desenhos abstratos.
Pegou num lápis de carvão e traçou a linha pro-
jetada na parede. Desta forma, a sua imagem AS PINTURAS MAIS ANTIGAS DA EUROPA, SE-
duraria no tempo, e a rapariga não o esqueceria. GUNDO A ÚLTIMA DATAÇÃO realizada em 2012,
Assim nasceu a pintura. É uma bela história, so- encontram-se na caverna El Castillo, na Cantá-
mente isso. bria, e têm aproximadamente 40 800 anos de
Em 2018, numa gruta remota escondida na idade. São seguidas de perto pelo rinoceronte que
quase inacessível floresta tropical da ilha de pode ver-se na caverna Chauvet em França, com
Bornéu (Indonésia), uma equipa de arqueólogos uma antiguidade entre 35 000 e 39 000 anos.
e antropólogos descobriu uma série de pinturas Até agora pensava-se que a arte figurativa
rupestres feitas por humanos primitivos que se nasceu no velho continente, mas a datação

68
desta arte rupestre do sudeste asiático mu- É verdade que temos provas de pintura sim-
da a nossa ideia acerca de onde e quando os bólica em contas perfuradas e conchas escul-
nossos antepassados começaram a pintar as pidas de África entre 70 000 e 100 000 anos
suas impressões do mundo exterior. De facto, atrás, mas parece que aquilo a que poderíamos
parece indicar que houve uma época em que chamar o movimento figurativo nasceu há 40
ocorreu um florescimento artístico simultâ- milénios simultaneamente em todos os lugares
neo em extremos opostos do vasto continen- onde o Homo sapiens se estabeleceu.
te euro-asiático. Mas o que é impressionante No entanto, 2019 trouxe uma nova surpre-
são as semelhanças mais do que evidentes sa: na caverna de Leang Bulu’ Sipong 4 na ilha
entre os estilos de arte rupestre do Bornéu e indonésia de Sulawesi, uma equipa de arqueó-
os encontrados em toda a Europa. Que os ti- logos encontrou uma pintura com cerca de 43
pos de pintura encontrados na gruta Lubang 900 anos de idade, representando um grupo de
Jeriji Saléh apareceram ao mesmo tempo, a caçadores com corpos semelhantes aos huma-
mais de 10.000 km de distância, merece uma nos, mas com cabeças ou outras partes do cor-
explicação. po semelhantes às de aves, répteis e espécies de
fauna endémicas da ilha. Estes teriantropos,
NO BORNÉU FORAM ENCONTRADOS DOIS como são chamados, são mostrados caçando
ESTILOS DE PINTURA, separados no tempo porcos selvagens e pequenos búfalos com lan-
por cerca de vinte milénios. O primeiro, que ças ou cordas, tornando esta cena não só o mais
começou entre 52 000 e 40 000 anos atrás, antigo exemplo de arte figurativa do mundo,
usa tons vermelhos e laranja e inclui stencils mas também o mais antigo registo pictórico do
de mão e pinturas de grandes animais que vi- que seria a narração de uma história. Isto anula
viam na área circundante. Um segundo estilo a hipótese comummente aceite de que a evolu-
distinto surgiu há cerca de 20 000 anos: ba- ção da pintura passou de simples arte rupestre
seia-se em cores púrpuras ou roxas, e os seus precoce há 40 000 anos para composições de
stencils de mão, por vezes ligados por linhas múltiplos temas e a representação de entidades
semelhantes a ramos, apresentam decora- imaginárias como os teriantropos há cerca de
ções internas. 20.000 anos. e

Nas paredes da Cueva de


las Manos, localizada na
ARCHIVE COLLECTION

Patagónia argentina, há
centenas de mãos huma-
nas pintadas há cerca de
8000 anos.

69
33 Piada
A capacidade de fazer piadas e apreciá-las tem sido uma marca
distintiva da nossa espécie desde a remota antiguidade.

E
talvez o que diferencia [os seres hu-
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manos] de outros animais seja o sen-


timento e não a razão. Mais vezes vi
um gato raciocinar do que não rir ou
chorar”, disse Unamuno. É bem possí-
vel que piadas, anedotas e histórias engraçadas
tenham estado connosco desde o momento em
que os nossos antepassados começaram a falar.
Evidentemente, tivemos de esperar pelo apa-
recimento da escrita para podermos ter um re-
gisto disso. O problema é que, pela sua própria
natureza — não se trata de uma expressão cul-
tural refinada — a piada é efémera e popular, de
modo que a sua preservação escrita é mais uma
questão de acaso do que um desejo consciente
de que perdure.

A PIADA MAIS ANTIGA CONHECIDA DATA DE


1900 A.C. Foi concebida na Mesopotâmia, onde
também encontramos os tratados morais mais
arcaicos. Um dos mais famosos é conhecido
como o Poema do Justo Sofredor ou Ludlul bel
nemeqi. Está escrito em acádio e é o poema sa-
piencial mais longo da língua babilónica. Con-
ta a história de um Shubshi-meshre-Shakkan,
que, após proferir um hino introdutório e num
longo monólogo, narra de forma incompreen-
sível as desgraças que lhe sucederam. A lição a
tirar de tudo isto é que, apesar da justiça e ho-
nestidade que poderia adornar um babilónio,
os deuses poderiam castigá-lo com as penas
mais terríveis sem que o pobre homem soubes-
se porquê. É a eterna questão: porque deveria
uma pessoa justa sofrer?
Bem, neste poema podemos ver frases que
exalam uma fina ironia, neste estilo: “Aos po-
bres emprestam dinheiro e preocupações”; ou,
“Os pobres fariam melhor em morrer; se tem
pão, não tem sal, e se tem sal, não tem pão; se
Louco rindo,, uma
obra executada por tem carne, não tem cordeiro, e se tem cordeiro,
volta de 1500 que é não tem carne”. Mas, em si mesmas, não po-
geralmente atribuí- dem ser consideradas uma piada.
da ao pintor holan- A única que chegou até nós e que citamos aci-
dês Jacob Cornelisz ma é das que poderíamos chamar escatológica.
van Oostsanen. Diz assim: “Uma coisa nunca vista nas terras
das cabeças negras [os sumérios]: uma jovem

70
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O papiro Westcar — acima — escrito algures entre 1650 a.C. e 1540 a.C., contém uma das piadas mais antigas da histó-
ria, apresentando um faraó aborrecido e jovens raparigas vestidas apenas com redes.

terna menina a peidar-se enquanto se senta no gamento e doutrina”. Está dividido em duas
colo do seu amado”. partes, e as histórias, extraídas da tradição
Os egípcios também tinham sentido de hu- oral, são escritas em prosa tão simples e clara
mor. No papiro de Westcar, composto por volta que parecem ser faladas. e
de 1600 a.C., há uma piada um tanto machis-
ta: “Como se entretém um faraó entediado?

GETTY
Navegar num barco pelo Nilo cheio de jovens
mulheres vestidas apenas com redes de pesca e
desafiá-lo a apanhar um peixe”.

A MAIS ANTIGA RECOLHA CONHECIDA


DESTAS ENGRAÇADAS MINI-HISTÓRIAS é o
Filógelos grego — algo como o “amante do
riso” — uma coleção de 265 piadas que da-
tam de cerca do século IV ou V. É atribuído a
dois autores dos quais pouco se sabe, Hiero-
cles e Filágrio. Pode ter sido concebido como
um manual de anedotas a contar em reuniões
sociais, e é curioso descobrir que muitas das
anedotas são surpreendentemente familia-
res. De facto,uma delas é muito semelhante
ao muito famoso sketch de loja de animais da
série de comédia britânica Monty Python’s
Flying Circus. Essencialmente, é assim:
“Vai-se ao médico e diz-se: ‘Doutor, quando
acordo, não consigo abrir os olhos durante
meia hora e só depois me levanto’; ao que o
médico responde: ‘Bem, acorda-te meia hora
mais tarde’”.
Em Espanha, as primeiras coleções de pia-
das e contos deste tipo não apareceram até ao
Renascimento. Entre eles, encontramos o livro
Buen aviso y porta cuentos de 1564 , de Juan
Timoneda, de quem sabemos que nasceu em
Valência em 1520 e que foi um peleiro antes de
ser escritor.
É uma coleção de “ditos afáveis e humorís- As primeiras comédias gregas foram apresentadas no sé-
ticos, contos heróicos e contos de muito jul- culo V a.C. Acima, dois atores, retratados em terracota.

71
34 Budismo
Esta doutrina não teísta
com mais de 2500 anos, que
visa a libertação do sofri-
mento, é seguida por 535
milhões de pessoas.

O
termo Buda, que literalmente
significa “despertado” ou “ilu-
minado”, não é um nome pró-
prio mas um título, por isso os
budistas acreditam que haverá
inúmeros Budas no futuro, tal como tem havi-
do no passado. Aquele que pertence à era atual
SHUTTERSTOCK

do cosmos é muitas vezes chamado Gotama ou


Gautama. Portanto, quando a palavra Buda é
usada, refere-se geralmente ao Buda Gautama..
Da origem do budismo e do seu fundador,
Siddhārtha,, que significa “aquele que cum-
priu o seu propósito”, não dispomos de
informação histórica fiável. As primeiras
referências escritas chegaram-nos através
do Tipitaka ou Pali Canon, o mais anti-
go registo existente dos seus discursos,
que foi compilado trezentos anos após a
morte do Buda, onde a realidade e a len-
da estão completamente emaranhadas.

DE ACORDO COM PRATICAMENTE TO-


DAS AS TRADIÇÕES BUDISTAS, o Buda
viveu muitas vidas antes do seu nasci-
mento como Siddhārtha. Estas vidas anteriores mãe, Mahemeye, teve uma noite antes de ele
são descritas em jatakas, que desempenham nascer: nele, um belo elefante, branco como
um papel importante na educação budista. De prata, entrou no seu ventre através do seu la-
tudo isto, podemos deduzir que ele nasceu em do. Ela pediu então aos sacerdotes védicos que
meados do século VI a.C. — A data provável é interpretassem a visão, e eles previram a che-
563 a.C. e que pertencia a uma das famílias mais gada de uma criança que se tornaria um mo-
poderosas da pequena República Shakya, que narca universal.
por sua vez fazia parte do reino Kosala, que se Diz-se que Siddhārtha levava uma vida de
situava entre o atual Nepal e a Índia. grande luxo, que foi interrompida quando,
No suposto local da sua vinda ao mundo, em três excursões fora do palácio, conheceu
Lumbini — agora chamado Rummindei — um velho, um doente e um cadáver. No seu re-
existe um pilar memorial de 6 metros de al- gresso, pediu a um criado que lhe explicasse a
tura colocado por um imperador budista da razão de tais situações miseráveis e terríveis,
Índia do século III. A lenda de Buda, porém, ao que ele respondeu que todos os homens es-
começa com um relato de um sonho que a sua tão sujeitos a tais condições.

72
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Então Gautama encontrou-se com um asce-
ta errante e decidiu descobrir porque mantinha
tal serenidade no meio de tanta miséria. Foi as-
sim que renunciou a uma vida regalada e foi em
busca de alguém que o pudesse instruir no ca-
minho da verdade. Praticou todo o tipo de aus-
teridades e as mortificações mais severas, mas
chegou à íntima convicção de que nenhuma de-
las o levaria ao que procurava.
O mito budista diz que ele foi meditar debaixo
de uma árvore pipal (Ficus religiosa), agora co- Monges do templo de Borobudur (Java) celebram o Vesak:
nhecida como a árvore Bodhi, e prometeu que o nascimento, iluminação e morte de Buda.
só se levantaria quando descobrisse a verda-
de. Passou lá várias semanas, durante as quais é que tudo isto é causado por um desejo egoísta,
foi tentado por Mara, o senhor da ilusão e líder ou seja, um desejo ou uma sede chamada tanha.
dos demónios, mas Gautama permaneceu im- A terceira nobre verdade diz que, mesmo assim,
passível. Mais tarde, percebeu as quatro nobres é possível libertar-se disto. E a quarta nobre ver-
verdades e alcançou a iluminação durante uma dade mostra o caminho para essa libertação.
noite de lua cheia, no mês de maio. Tornou-se Depois deste sermão, os cinco ascetas tor-
assim o 28º Buda. naram-se os primeiros discípulos de Buda e os
primeiros monges — bhikkus —da comunidade
DEPOIS DISTO, PROCUROU CINCO COMPA- — sangha. Viajaram pela região do Ganges en-
NHEIROS e entregou-lhes o seu primeiro ser- sinando a nova doutrina e iniciando novos se-
mão, o Dhammacakkappavattana Sutta, que guidores. Gautama, que percorreu as estradas
pode ser traduzido como Discurso sobre o Pôr durante quarenta e cinco anos, também criou
em Movimento a Roda da Doutrina. O Buda uma ordem de monjas. Sempre ditava os seus
ensinou que aqueles que procuram a ilumina- ensinamentos na língua local.
ção não a encontrarão nem na auto-indulgência Em Kushinagar, noutra noite de lua cheia
nem na auto-mortificação. Ao evitar estes dois em maio, o Buda Gautama de oitenta anos de
extremos, descobre-se o caminho intermédio idade chegou ao nirvana final ou páranirva-
que conduz ao conhecimento, à calma, ao des- na, o fim do ciclo de renascimentos que se
pertar. Numa palavra, ao nirvana. sucedem continuamente até se alcançar este
Este é conhecido como o nobre caminho oi- estado, de acordo com esta crença. Nessa al-
tavo, que consiste na visão certa, pensamento tura, já existia um corpus de leis que todos os
certo, discurso certo, ação certa, vida certa, monges tinham de seguir. No seu último ensi-
esforço certo, atenção certa e concentração namento, conhecido como Mahaparinibbana
certa . Sutta — o mais longo no Pali Canon — indi-
A primeira nobre verdade é que a existência cava-se que os bhikkhus podiam abandonar
está sempre poluída de conflitos, insatisfação, algumas regras menores e preservar as princi-
tristeza e sofrimento. A segunda nobre verdade pais. Mas como não era explicado quais eram,
a comunidade decidiu seguir todas.
CORDON
Segundo a tradição, três meses após a morte
do Buda, foi convocado um concílio, no qual
participaram quinhentos monges que tinham
atingido o nirvana, com o objetivo de preser-
var as suas instruções e a regra monástica. Pa-
rece que durou sete meses, mas não há provas
de que tenha tido lugar. O que fica registado é
a segunda reunião, por volta de 334 a.C. Foi en-
tão que ocorreu o primeiro cisma, no qual um
pequeno grupo de membros idosos tentou, sem
sucesso, mudar a regra monástica. Desde então,
surgiram muitos outros movimentos ou escolas,
Os textos do Canon Pali — acima — contêm as primei- que, em conjunto, constituem a quarta maior
ras referências aos ensinamentos budistas. religião do planeta, em número de seguidores. e

73
35 Cristianismo
Com mais de 2,4 mil milhões de seguidores, esta religião moldou a
história de grande parte do mundo nos últimos dois milénios.
IMÁGENES: ARCHIVE COLLECTION

tar-se, um acontecimento que terminou com


a destruição da cidade de Jerusalém e do seu
famoso templo em 70.
Este era o ambiente em que Jesus, um dos
personagens de que mais se tem escrito ao lon-
go da história e do que menos informação se
tem. Apenas existem fragmentos da sua vida.
Parece que nasceu em Nazaré — e não em Be-
lém, como afirmam os evangelistas Lucas e Ma-
teus — numa família de artesãos. Tinha quatro
irmãos e pelo menos duas irmãs; foi um segui-
dor do asceta João Baptista, em quem se inspi-
rou na sua pregação como profeta apocalíptico
— ele proclamava que a vinda do reino de Deus
era iminente; e foi crucificado por ordem dos
romanos entre os anos 26 e 36, um castigo re-
servado aos rebeldes e traidores. Dissolvido
o grupo dos seus seguidores, os que lhe eram
mais próximos desapareceram até que, após al-
gum tempo, voltaram à vida pública, alegando
que o seu mestre tinha ressuscitado dos mortos.

POUCO DEPOIS DE ANUNCIAR ESSA BOA NO-


VA, as dissensões começaram. De um lado esta-
va a Igreja de Jerusalém, liderada pelo irmão de
Jesus, Tiago — ou Tiago o Justo — cujo principal
interesse era pregar aos judeus. Do outro lado
estava Paulo, um convertido que nunca tinha
Este mosaico de 1261 do pantocrator, isto é, Cristo em conhecido Jesus, mas que convenceu todos a
majestade, pode ser visto em Hagia Sophia em Istambul. acreditar que Jesus lhe tinha aparecido no ca-

N
minho de Damasco e o encarregou de ser o seu
o início do primeiro século, a “apóstolo dos gentios”.
região da Palestina era um barril Por volta do ano 49 realizou-se uma reunião
de pólvora. Desde que a Galileia em Jerusalém que foi vital para o futuro do
e a Judeia foram conquistadas movimento. Nela se debateu o que fazer se os
por Roma em 63 a.C., as revol- pagãos quisessem tornar-se cristãos: deveriam
tas não paravam de ocorrer. A sensação de eles, primeiro, tornar-se judeus, o que impli-
que a chegada de um salvador estava mesmo caria a circuncisão, seguir as leis alimentares e
ao virar da esquina estava a causar tensão num a observância do Sábado? Após intensa delibe-
povo onde auto-proclamados messias conti- ração, foi decidido que poderiam aderir sem ter
nuavam a aparecer dia após dia. De particular de o fazer. Isto acelerou o processo que a fação
importância foi um grupo judeu conhecido judaica da primitiva igreja cristã temia: por um
como os Zelotas, que procurava a expulsão lado, confirmava o impacto limitado da pre-
dos romanos pela força. Finalmente, em 66, gação entre os seus compatriotas; por outro,
conseguiram convencer a população a revol- o sucesso retumbante que estava a ter fora de

74
Israel. Assim, no final do primeiro século, os
cristãos gentílicos dominavam os cristãos ju-
deus. O arquiteto desta mudança de rumo foi o
já referido Paulo.

ESTE PRIMEIRO CRISTIANISMO ENFRENTAVA


UMA CRISE TEOLÓGICA. A pregação insistia
que o regresso de Jesus em toda a sua glória iria
acontecer em menos de uma geração, mas o dia
não chegava e o discurso tinha de ser mudado.
Foi também mérito de Paulo ter substituído
Jesus pelo Cristo, e ter construído toda uma
teologia à sua volta, que é a que encontramos
hoje em todas as denominações cristãs. As suas Esta estela funerária do século III encontrada em Roma
cartas destinavam-se a estabelecer o que é e pode incluir algumas das mais antigas inscrições cristãs.
o que quer o Cristo; em todas elas, Jesus está
ausente. Cristo tornou-se o objeto de culto:
Paulo afirmou que Cristo tinha estado presen- meio de o controlar. Assim, adotaram dos gre-
te na criação, e o autor do evangelho de João gos as assembleias políticas — ecclesia —e dos
identificou-o como o logos, ou seja, o princípio romanos o sistema de um superintendente —
racional do universo “que se fez carne e habi- bispo — de uma província — diocese. No pri-
tou entre nós”. Para João, embora Jesus tivesse meiro século, foi decidido que os bispos seriam
existido desde sempre, num determinado mo- os líderes administrativos, e pouco depois ar-
mento ele tomou um corpo e veio ao mundo. rogaram para si próprios o poder de absolver
À medida que o cristianismo se difundia, os os pecados. A razão? Através deles o Espírito
seus líderes foram forçados a encontrar um Santo atuava. e

Paulo, o grande ideólogo do cristianismo


T odas as confissões cristãs devem a sua teo-
logia, em maior ou menor grau, a Paulo. Três
foram as suas grandes revoluções conceptuais. A
conceito nas outras religiões, mesmo que houves-
se alguma preocupação sobre o que aconteceria
na vida após a morte. Assim, Paulo afirmou que a
primeira foi transformar um pregador do fim dos morte de Cristo era um sacrifício vicário, que eli-
tempos, da Galileia numa entidade espiritual que minou o castigo que toda a humanidade sofreu
veio para nos libertar do pecado. A segunda era pelo pecado original. Assim, a sua salvação no
que qualquer pessoa podia tornar-se cristã. Até próximo mundo estava assegurada pela sua fé.
então, vivia a religião dos seus pais, pois perten-
cer a ela era uma característica da tribo ou clã em
que nasceu. Por outras palavras, a religião estava
no sangue — os judeus são um exemplo disso.
O cristianismo paulino quebrou com tudo isto. A
ascendência e a linhagem já não eram relevan-
tes, como seriam séculos mais tarde no Islão, e a
fé em Cristo era tudo o que era necessário para a
salvação. Isto fez do cristianismo um movimento
religioso que não precisava de ser limitado a uma
Por volta de 1627,
área geográfica ou grupo étnico: tornou-se uma o pintor holandês
religião portátil, disponível para todos. Jan Lievens retra-
A ideia de salvação foi a terceira grande ino- tou o Apóstolo
vação de Paulo. Para os judeus, isso consistia Paulo, que lançou
os alicerces desta
na restauração da nação de Israel. Não existia tal
religião.

75
36 Hinduísmo
Apesar da inexistência de um fundador, esta religião, que hoje tem 1,2
mil milhões de seguidores, reuniu com sucesso tradições diferentes.

E
m vez de uma verdadeira fé, este sis- região. Foi só a partir do século XVI que co-
tema de crenças, possivelmente o mais meçaram a utilizar este termo para se referi-
antigo que perdura no planeta, poderia rem a si próprios.
ser definido como uma amálgama de
divindades pessoais e locais. O QUE É MAIS IMPRESSIONANTE NESTA FÉ,
O termo hinduísmo é um exónimo, pois é o E NÃO ENCONTRAMOS em nenhuma outra
termo utilizado por estrangeiros para se refe- comunidade religiosa, é que os seus aderentes
rir aos hindus. Começou a tornar-se popular aceitam e até celebram a natureza internamen-
no Ocidente após a publicação do livro Hin- te inconsistente da sua tradição. Isto é possível
duísmo de Monier Monier-Williams, um pro- porque acreditam que a verdade ou realidade
fessor de Oxford e perito em sânscrito. Vem não pode ser encapsulada em qualquer crença.
de indos, que era o nome pelo qual os gregos Como muitos hindus dizem frequentemente
chamavam os habitantes do Vale do Indo, e nas suas orações, “que bons pensamentos che-
que por sua vez derivava do sindus persa, que guem até nós de todos os lados”. Por outras
usavam para se referir aos habitantes dessa palavras, a verdade deve ser procurada por ca-
GETTY

Brahma, Vishnu e Shiva


compõem o trimurti, a tríade
das divindades mais
importantes do hinduísmo.

76
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para nos tornarmos a melhor ver-
são de nós próprios.
Todo este sistema foi escrito pela
primeira vez nosVedas acima men-
cionados, entre 1500 e 500 a.C.
Diz-se que neles, os escribas esta-
vam simplesmente a registar o que
sempre tinha existido. Este conhe-
cimento eterno é chamado shru-
ti — poderia traduzir-se como “o
que se escuta” — e encontra-se nas
secções destes escritos conhecidos
como Samhita, Araniaka, Brahma-
na e, o mais famoso, os Upanishad.
Estas obras são complementadas
Os ascetas hindus praticam yoga e, acima de tudo, procuram a libertação pela smritis — “o que se recorda”
— o objetivo último da sua fé — através da meditação e contemplação. — que contam histórias sobre co-
mo praticar a fé e incluem os Pura-
minhos diferentes e ninguém pode reclamá-la nas, as epopeias de Mahabharata e Ramayana, o
como se fosse um dogma. Portanto, para um Yoga Sutra e o Bhagavad Gita, um dos mais im-
hindu, qualquer opinião a seu respeito, mesmo portantes clássicos religiosos do mundo. Con-
a de um guru — que é considerado como tendo tudo, seria um erro considerá-los como a Bíblia
alguma autoridade superior — é condicionada Hindu, pois em nenhum momento eles afirmam
por muitas coisas, tais como o tempo, a idade, ser a palavra de Brahman.
o sexo, o estado de consciência, a posição social
ou a localização geográfica. Não é surpreen- É PROVÁVEL QUE NO TERCEIRO MILÉNIO a.C.
dente que, na sua opinião, a tolerância seja a já houvesse algum tipo de fé que se tornaria, ou
principal virtude religiosa. pelo menos influenciaria, o hinduísmo, quando
Para os seus praticantes, o hinduísmo é chama- uma coligação nómada de tribos que se referiam
do sanatan dharma — em essência, ‘a ordem a si próprios como arianos chegou à região vin-
eterna’ ou ‘o caminho eterno’. Compreendem da da Ásia Central — o termo ariano referia-se
os preceitos estabelecidos nas escrituras co- a uma classe de pessoas, não a uma raça, e sig-
nhecidas como os Vedas, e têm Brahman como nifica “livre” ou “nobre”. Quando chegaram
o princípio supremo universal, a primeira cau- ao Vale do Indo, encontraram uma civilização
sa material e o fim de tudo o que existe. avançada que se tinha desenvolvido a partir de
povoações antes do ano 7000 a.C. É provável
ESTA RELIGIÃO REJEITA A CLASSIFICAÇÃO que tenha havido uma fusão cultural durante o
QUE se tornou popular em meados do sécu- período védico, a época em que os textos mais
lo XIX, a qual divide as crenças em compar- antigos foram compostos. e
timentos estanques: monoteísta, politeísta e
ARCHIVE COLLECTION
panteísta. O hinduísmo é um saco no qual estão
incluídas todas aquelas crenças que não podem
ser classificadas como nenhuma das acima re-
feridas. Então, em que consiste? Poder-se-ia
dizer que é monoteísta, no sentido em que reco-
nhece apenas um deus. No entanto, é também
politeísta na medida em que existem muitos
avatares do mesmo deus. É também henoteís-
ta, porque se pode escolher elevar qualquer um
destes avatares à supremacia; e panteísta, uma
vez que os avatares podem ser interpretados
como representando o mundo natural.
Pode mesmo ser uma forma de ateísmo,
uma vez que é possível substituir o conceito de Entre os textos sagrados desta religião encontra-se a
brâmane por nós próprios, no nosso esforço epopeia de Mahabharata — acima — do século III a.C.

77
A peregrinação anual deste ano a Meca
não reuniu as multidões que sempre cir-
culam à volta da Kaaba, o cubo situado
no meio da mesquita que é o local sa-
grado mais importante do Islão. A cau-
sa: a pandemia de covid-19. A fotografia
foi tirada a 2 de agosto.

37 Islão
Nasceu há catorze séculos entre os clãs e tribos dos desertos
árabes. Hoje é a fé de mais de 1800 milhões de pessoas.

N
o ano 609 d.C. o arcanjo Gabriel tensão de areia habitada por vários clãs e tribos.
apareceu, sob a forma de luz, a Alguns eram nómadas, outros pastores ou agri-
um homem que meditava numa cultores nos oásis, e outros eram comerciantes.
caverna no Monte Hira, perto de Meca era um dos principais centros de popu-
Meca, uma das grandes caravan- lação, e ali conviviam judeus, cristãos, ascetas
çarais do que era então conhecido como Arábia árabes — hanafis monoteístas — e beduínos po-
Feliz. “Lê”, disse-lhe ele. Mas infelizmente, liteístas. O santuário de Kaaba já era um local de
o homem de quarenta anos, conhecido como peregrinação para todos os árabes.
Maomé, não sabia ler nem escrever. O arcanjo
insistiu mais duas vezes: “Lê! [Oh Moamé!] Em FOI EM MECA QUE NASCEU O PROFETA, no clã
nome do teu Senhor, Que criou todas as coisas. Banu Hashim da tribo Quraysh. Era o ano 570
Criou o homem a partir de um zigoto. Lê! Que o ou 571, não é muito claro. Órfão desde criança
teu Senhor é o Mais Generoso. Ensinou [a escri- (o seu pai morreu alguns meses após o seu nas-
ta] com o cálamo. E ensinou ao homem aquilo cimento, e a sua mãe quando tinha seis anos de
que ele não sabia. (Alcorão, 96:1-5). Conta-nos idade), acabou por viver com o seu tio paterno,
a tradição que assim nasceu o Islão. Naquela Abu Talib. Com 20 anos, começou a trabalhar
época, a atual Arábia Saudita era uma vasta ex- para uma viúva rica, Khadija, com quem casou.

78
IMÁGENES: GETTY

apenas o ridicularizaram, mas a fé maometana


espalhou-se, especialmente entre os pobres.
Quando os seus dois principais apoiantes, a sua
esposa e, alguns dias mais tarde, o seu tio, mor-
reram, foi forçado a fugir de Meca em 622. Isto
é conhecido como a hegira e marca o início do
calendário muçulmano.

O NOVO CHEFE DO CLÃ DE MAOMÉ — Abu


Lahab, que era também um dos seus tios —
tornou-se seu inimigo acérrimo, e ele não
sabia onde se refugiar. Mas a sorte deu-lhe a
oportunidade de se tornar o intermediário nas
rixas entre os clãs da cidade de Yatrib. Foi aí
que este líder criou um dos seus mais impor-
tantes conceitos político-religiosos, a ‘umma’.
Quando rompeu com o seu clã, Maomé não
teve outra escolha senão defender que o que é
fundamental são os laços de aliança e não ne-
cessariamente os de sangue, e que o mais im-
portante é a comunidade, ou seja, a ‘umma,
neste caso formada por todos os muçulmanos,
independentemente da sua origem, sexo, esta-
tuto social ou pertença a uma tribo (no mundo
de hoje, a um país) .
Com o tempo, Yatrib chamar-se-á Medina e
Maomé tornar-se-á um verdadeiro líder políti-
co e militar que lutará contra as tribos de Me-
ca. Vitorioso, ele destruirá os deuses pagãos no
Este casamento deu-lhe um estatuto social e santuário da Kaaba e estabelecerá o tawhid, o
económico, mas nenhum filho. Aos quaren- fundamento primário da fé islâmica, a crença
ta anos de idade, Maomé começou a sentir a num só deus. E a Kaaba tornar-se-á o grande
necessidade de se isolar, de meditar; foi nu- símbolo do Islão, uma religião que se tornou
ma destas alturas, como já dissemos, numa global. e
caverna no Monte Hira (hoje conhecida como
Jabal al-Nur, a montanha da luz), que Gabriel
lhe anunciou que Alá o tinha escolhido como
seu profeta, tal como Abraão, Moisés e Jesus ti-
nham sido escolhidos antes dele.
Durante os primeiros três anos do seu mi-
nistério, Maomé pregou o Islão em privado,
principalmente entre os seus familiares e co-
nhecidos mais próximos. A primeira a crer foi
a sua esposa, seguida de alguns parentes e ami-
gos. No quarto ano após a profecia, de acordo
com a crença islâmica, Deus ordenou-lhe que
tornasse pública esta nova fé.
Os primeiros ensinamentos de Maomé foram
marcados pela sua insistência na unicidade de
Deus, na denúncia do politeísmo, na crença no
julgamento final, e na justiça social e económi-
ca. Isto provocou a oposição dos clãs mais ricos
Este manuscrito do Alcorão é guardado na Universidade
e mais importantes de Meca, que temiam per- de Birmingham, Reino Unido. A datação por radiocarbono
der o seu paganismo tradicional e o lucrativo indica que o pergaminho data do início do século VII,
negócio da peregrinação a Kaaba. No início, eles tornando-o um dos mais antigos manuscritos do Alcorão.

79
36 Judaísmo
Vemo-lo como a religião monoteísta por excelência, mas nas suas
origens Yhwh coexistiu com muitas divindades menores.

E
m 1177 a.C., saqueadores de origem merciais. Foi neste ambiente que os israelitas
desconhecida, conhecidos como os emergiram como uma cultura rural na região
Povos do Mar, chegaram ao Egito de- montanhosa cananeia e da Galileia oriental.
pois de devastarem tudo no seu cami- Começaram a expandir-se rapidamente na
nho. Nessa altura, as grandes culturas área circundante, combatendo os filisteus a
do Mediterrâneo Oriental estavam a experi- oeste, os moabitas e amonitas a leste, e os edo-
mentar agitação civil e problemas económicos mitas a sul. Os tempos eram conturbados, e
profundos. A confluência de todos estes acon- enquanto a Babilónia e a Alta Mesopotâmia fo-
tecimentos fez com que em apenas cinquenta ram invadidas por aramaicos e caldeus, a costa
anos civilizações poderosas como os a egípcia, em redor da atual Faixa de Gaza foi colonizada
a hitita, a micénica e a assíria desaparecessem por filisteus.
ou se transformassem. Os restos deste colapso Antes de uma autoridade ou estado centrali-
foram uma série de pequenos reinos e cidades- zado começar a formar-se por volta do século
-estado, tais como os sirio-hititas no norte da X a.C., as gentes da região, praticavam uma
Síria e alguns portos fenícios em Canaã, que forma de religião familiar. Isto é evidenciado
acabariam por se tornar grandes potências co- pela chamada Correspondência de Amarna,
IMÁGENES: GETTY

Historicamente, a
Europa Oriental tem
sido uma região de
povoamento para
muitos judeus, como
o rabino Peter Kar-
dos, que dirige ora-
ções na sinagoga da
Rua Thokoly, em Bu-
80 dapeste.
O Museu de Israel em Jerusalém exibe esta maqueta do Segundo Templo de Jerusalém, tal como existia no século I
a.C. O santuário foi concluído por volta de 515 a.C., após a destruição do Primeiro Templo pelos babilónios.

uma coleção de cartas, na sua maioria diplo- ser humano perante Javé. Na literatura ugaríti-
máticas e escritas em placas de barro, entre ca, vemos algo semelhante. Asherah é a esposa
funcionários egípcios e os seus homólogos d’Ele, a derradeira divindade cananéia, o deus
cananeus, amoritas e babilónicos. Por conse- criador do céu e da terra, o Pai Eterno. Esta in-
guinte, é mais do que provável que a religião fluência do panteão ugarítico no judaísmo tor-
familiar fosse a norma quando Israel e Judá na-se ainda mais clara quando descobrimos que
começaram a construir a sua identidade na- Asherah é mencionada quarenta vezes na Bíblia
cional, e os levou a basear essa identidade na hebraica, onde encontramos provas da origem
linhagem e no local de origem. henoteísta do texto: no Salmo 82, Javé “está na
assembleia dos deuses”, acusa-os de não ajuda-
NO SÍTIO ARQUEOLÓGICO KUNTILLET AJRUD, rem os pobres e necessitados e como resultado
SITUADO NO NORDESTE DA Península do Sinai, retira-lhes o seu estatuto divino.
foi encontrado um par de inscrições do século X
a.C. que dizem: “A YHWH de Samaria e Ashe- ENTRE OS SÉCULOS X A.C. E VI A.C., A ANTIGA
rah” e “A YHWH de Teman [um clã Edomita] e RELIGIÃO ISRAELITA (de Israel) e judaica (de
Asherah”. YHWH, que podemos ler como Javé, Judá) aproximou-se cada vez mais do mono-
é a divindade principal. Asherah era uma di- teísmo, mas a sua consideração como religião
vindade do panteão de Ugarit, uma cidade por- familiar não desapareceu: as contínuas menções
tuária localizada a poucos quilómetros da atual bíblicas da casa de Israel ou da casa de Judá ba-
cidade síria de Latakia, e os primeiros sinais de seiam-se na ideia desta religião ligada ao sangue.
linguagem escrita foram lá encontrados. Assim, É exatamente o oposto no Islão e no Cristianis-
ambas as inscrições mostram que a religião dos mo, onde a aliança com Deus não depende de
proto-Israelitas era henoteísta: isto é, acredita- onde se nasceu ou a que clã se pertence.
vam que existe apenas um deus, mas sem negar Com o passar do tempo e a criação dos esta-
a existência de outras divindades de menor grau, dos de Israel e Judá, a divindade familiar tor-
como é o caso do hinduísmo. Neste caso, foi dada nou-se a divindade do país. O golpe final veio
prioridade a Yahweh (ou Javé). com a escrita dos vários livros da Bíblia hebrai-
Outra inscrição — datada algures do século ca, que foi compilada entre o século VII a.C. e
VIII a.C. — do sítio de Khirbet el-Qom, localiza- o século III a.C.: o panteão daquele proto-ju-
do na Cisjordânia (no futuro reino de Judá) diz: daísmo desaparece e o que resta é uma religião
“Que YHWH abençoe Uriahu porque através de monoteísta que dá a impressão de ter existido
Asherah Ele salvou-o do seu inimigo”. Como desde sempre. Hoje, o judaísmo é seguido por
se pode ver, a deusa Asherah intercede por um 14,3 milhões de fiéis. e

81
82
39 Vacinas
São uma das armas mais poderosas da medicina moderna,
e em tempos de coronavírus, poucas coisas são mais desejáveis.

E
m 1802, a Câmara dos mal. No entanto, tanto Mather de científica mais importante da
Comuns do Reino Uni- como Jenner sofreram o desdém época, o seu presidente avisou-
do premiou Edward do establishement médico. O -o de que “não deveria arriscar
Jenner com £10,000 primeiro teve de confrontar os a sua reputação apresentando
por descobrir e pro- seus contemporâneos por dar aos membros nada que pareça
mover a vacinação, e assim ele ouvidos aos africanos: “Não há ser contrário ao conhecimento
ficou na história. É claro que raça de homens na terra mais conhecido e totalmente incrí-
não devemos dar todo o crédi- falsa e mentirosa”, diziam- vel”. Felizmente, Jenner correu
to a este médico inglês por um -lhe. Quando Jenner pediu pa- o risco, e graças a ele temos uma
tratamento que há muito fa- ra apresentar o seu trabalho em das ferramentas mais poderosas
zia parte da medicina popular. 1798 à Royal Society, a socieda- da medicina moderna. e
Duas décadas antes, um agri- GETTY
cultor chamado Benjamin Jesty
inoculou a sua esposa e dois
filhos adultos com uma vacina
contra a varíola, o que fez com
que os seus vizinhos lhe cha-
massem desumano. Mas tam-
bém não foi ele o descobridor.
Nunca saberemos quem foi o
primeiro, mas sabemos quem
introduziu a vacinação na
América sessenta anos antes
de Jesty: Onesimus, o escravo
do pregador Puritano Cotton
Mather — um dos mais impor-
tantes promotores dos terríveis
julgamentos de Salem — que
disse ao seu mestre que tinha
sido inoculado quando criança
na sua cidade natal .

A VACINA CHEGOU À EUROPA


POR OUTRA VIA. Das cartas da
aristocrata inglesa Lady Mary
Wortley Montagu sabemos que
em Constantinopla em 1717 ela
observou o seguinte: “Um grupo
de mulheres idosas faz negócios
realizando a operação todos os
outonos quando o calor dimi-
nui”. Estas camponesas turcas
utilizavam o líquido das bolhas
de casos ligeiros de varíola para Ilustração de Edward Jenner a dar a sua primeira vacina contra a varíola ,
imunizar as pessoas contra esse em 14 de maio de 1796. O inoculado foi James Phipps, um rapaz de oito anos.

83
Uma seringa hipodérmica
de metal criada pelo médi-
co francês Charles Pravaz
IMÁGENES: GETTY

em 1853 .O seu uso facili-


tou grandemente a admi-
nistração de fármacos.

40 Agulha
hipodérmica
Baseia-se num conceito simples, mas foram necessários milénios
para o desenvolver como um instrumento básico para a medicina.

A
primeira referência ao uso de tubos No século XI, o mais original dos oftalmolo-
ocos em medicina encontra-se na gistas árabes, Ammar ibn Ali al-Mawsili, utili-
grande enciclopédia do mundo clás- zou um tubo de vidro oco para aspirar cataratas
sico, De Artibus. O seu autor, Aulus dos olhos dos seus pacientes, uma técnica que
Cornelius Celsus, que viveu entre o foi utilizada até ao século XIII. Curiosamente,
século I a.C. e o século I d.C., dividiu a sua gran- estes tubos ocos eram utilizados apenas para
de obra em sete partes: agricultura, medicina extrair sangue, pus ou venenos, mas não para
veterinária, direito, arte militar, filosofia, histó- injetar qualquer substância.
ria e medicina. Destes, apenas o último sobrevi-
veu, e é o melhor e mais exaustivo compêndio de A PRIMEIRA SERINGA MODERNA FOI o re-
conhecimentos médicos do mundo romano. sultado da investigação do cientista e filósofo
Celsus descreve precisamente como limpar francês Blaise Pascal em hidrostática e hidro-
feridas usando uma seringa com vinho ou vina- dinâmica, em 1650. Juntamente com a seringa,
gre, e como utilizá-la para remover pus. Alguns inventou também a prensa hidráulica, no que é
anos mais tarde, o inventor dos aparelhos e das uma aplicação directa do que é agora conheci-
máquinas a vapor Heron de Alexandria descre- do como o princípio de Pascal: quando a pres-
veu na sua Neumatica a construção de uma se- são aumenta em qualquer ponto de um fluido
ringa. Ele chamou-lhe pyoulcus ou pyulkos, o confinado, há um aumento igual da pressão em
extrator de pus. Mas não foi uma invenção sua, todos os pontos desse fluido. Mas Pascal, mais
pois o engenheiro hidráulico Ctesíbio já a estava interessado na hidrodinâmica do que na me-
a utilizar em 280 a.C.. dicina, nunca considerou que pudesse ter uma

84
aplicação médica. Seis anos mais tarde, Chris- em Lyon: conhecida como a seringa de Pra-
topher Wren, arquiteto e amigo íntimo de Isaac vaz, depressa se tornou moda nos melhores
Newton (que escreveu a sua famosa Principia hospitais da Europa. e
mathematica em resposta a uma pergunta que
lhe foi colocada por Wren) viu um uso médico
para ela. Equipado com penas ocas de ganso,
bexiga de porco e ópio suficiente para derrubar
um elefante, fez uma visita ao canil de Londres,
onde conduziu a primeira experiência intrave-
nosa de sempre.

SEGUINDO OS PASSOS DE WREN, EM MEA-


DOS DA DÉCADA DE 1660, dois médicos ale-
mães, Johann Daniel Major e Johann Sigismund
Elsholtz, demonstraram que isto também po-
dia ser feito em humanos. Major descreveu co-
mo fazer isto no seu livro Chirurgia infusoria
A prática da medicina moderna não pode ser
(1664). A nova técnica causou furor e começou compreendida sem o uso das seringas inventadas no
a usar-se generalizadamente, mas foi igual- século XIX.
mente rapidamente abandonada: com uma
medicina que não compreendia a natureza das
infeções e médicos em que a higiene era notória
pela sua ausência, as intervenções não termi-
navam bem e as pessoas morriam. Como re-
sultado, as injeções caíram em desuso durante
dois séculos, até meados do século XIX.
Em 1844, o irlandês Francis Rynd conce-
beu a primeira agulha oca de aço, com a qual
administrava subcutaneamente medicação
para a dor. Em 1853 apareceu a verdadei-
ra seringa hipodérmica. Foi a realização de
dois cirurgiões, o ortopedista francês Charles
Gabriel Pravaz e o escocês Alexander Wood.
Nenhum deles sabia o que o outro estava a
fazer: Pravaz adaptou a agulha de Rynd para
administrar coagulantes e Wood combinou a
sua agulha de aço oca com uma seringa pa-
ra injetar morfina num humano. Ao mesmo
tempo que Wood publicava um pequeno ar-
tigo no The Edinburgh Medical and Surgical
Review intitulado “A new method of treat-
ment neuralgia by direct application of opia-
tes to painful points”, explicando o seu teste, Sir Christopher Wren (1632-1723), o primeiro cientista a
o francês estava a fabricar a sua ferramenta administrar substâncias por via intravenosa (a cães).

85
41 Anestesia
Poucas invenções evitaram mais sofrimento do que esta técnica, que
permitiu operações que anteriormente eram impossíveis de suportar.

U
m dos gases mais peculiares de voluntários para o inalar em Hartford, uma pe-
toda a química é o óxido nitroso. quena cidade em Connecticut. Entre eles estava
Descoberto na segunda metade do um jovem, Samuel Cooley, que tinha vindo ver
século XVIII, tem um efeito curio- a atuação com um amigo seu, um dentista de
so nas pessoas: não é tóxico, mas profissão, um tal Horace Wells. Depois de ina-
se inalado, faz-nos cantar, lutar e rir. Foi este lar o gás, Cooley tornou-se violento, pegou-se
último que o tornou popularmente conhecido com os outros voluntários, tropeçou e caiu. A
como gás do riso. queda acalmou-o e ele voltou calmamente pa-
No final do século XVIII, o cientista mais ra o seu lugar. Passado algum tempo, o espeta-
extravagante de Inglaterra, Humphry Davy, dor sentado atrás dele reparou numa poça de
decidiu inalar 18 litros do gás durante sete sangue debaixo do assento de Cooley. O jovem
minutos. Isto levou-o a permanecer incons- tinha cortado a perna e não sentia dor. Como
ciente durante bastante tempo, o que o levou bom dentista, Wells rapidamente percebeu que
a sugerir que o óxido nitroso poderia ser uti- o óxido nitroso seria uma excelente ajuda na
lizado em operações cirúrgicas. Infelizmente, extração de dentes e molares, que eram então
a sua ideia caiu em ouvidos moucos e o óxido extremamente dolorosos. Alguns dias mais tar-
nitroso foi utilizado até ao século XIX apenas de, inalou o gás, pediu a um colega para extrair
como diversão. um dente que tinha danificado, e não sentiu
Foi em 1844 que a história do gás do riso to- qualquer dor.
mou um rumo surpreendente. Um humorista Wells fez uma demonstração deste efeito no
itinerante americano chamado Colton pediu anfiteatro cirúrgico do Hospital Geral de Mas-
IMÁGENES: AGE

O daguerreótipo mos-
tra um grupo de cirur-
giões e um paciente
que em 1850 recriou a
primeira operação feita
sob anestesia geral,
realizada em 1846, em
Boston.
sachusetts a 20 de janeiro de 1845. Foi assis-
tido pelo primeiro reitor da Escola Médica de
Harvard, John Collins Warren, apesar do cep-
ticismo deste em relação a este tratamento da
dor. O paciente que iria ter uma amputação
naquela manhã recusou a operação. Warren
perguntou então à audiência se alguém pre-
cisava de um dente arrancado. Um estudante
levantou a mão. Wells fê-lo inalar o gás, mas
ele estava tão nervoso que começou a retirá-
-lo antes de a substância ter efeito. Os gritos
de dor do pobre homem ecoaram através do
anfiteatro. Os presentes vaiaram Wells e cha-
maram-lhe falsificador. A sua tentativa fa-
lhada levou-o à desgraça com a comunidade
médica, e no espaço de meses abandonou a
sua profissão.

A 30 DE SETEMBRO DE 1846, OUTRO


DENTISTA DE BOSTON, William Thomas O químico inglês Humphry Davy (1778-1829) intuiu as
Green Morton, utilizou com sucesso éter possibilidades do óxido nitroso como um anestésico eficaz.
dietílico — um líquido incolor e altamente
inflamável — para conseguir uma extracção
dentária indolor. A notícia espalhou-se por paciente adormeceu, Warren removeu um
Boston, e Warren, muito perturbado com a pedaço do tumor. Diz-se que, impressiona-
experiência falhada, convidou Morton a ma- do, olhou para os estudantes e disse: “Ca-
nifestar-se novamente no mesmo local onde valheiros, isto não é um disparate”. Numa
Wells tinha falhado. O paciente, cujo nome carta a Morton escrita pouco depois, o mé-
ficou na história como a primeira pessoa a dico e poeta Oliver Wendell Holmes propôs
ser operada sob anestesia, foi Edward Gil- chamar de anestesia ao estado produzido
bert Abbott e tinha um tumor no pescoço. pelo éter, pois a palavra significa “insensi-
Morton administrou o éter, e assim que o bilidade” em grego. e

Inalador de óxido
nitroso utilizado
por volta de
1865. O paciente
aspirava o gás ar-
mazenado num
dispositivo atra-
vés de um saco.

87
IMÁGENES: GETTY

Segundo o Instituto
de Administração de
Saúde, Portugal está
entre os países
europeus que mais
utilizam métodos
contracetivos.

42 Contracetivos
Teríamos assistido à libertação das mulheres sem o advento desta
ferramenta de controlo de natalidade? A resposta é não.

S
e há uma molécula que causou um tu- que suprime a ovulação. Esta molécula, que
multo social, é a noretindrona. Foi é um aliado valioso no tratamento de distúr-
exaltada e vilipendiada por ser a causa bios menstruais e na prevenção de abortos es-
da revolução sexual dos anos 60, o mo- pontâneos, era de fabrico laborioso, e por isso
vimento de libertação das mulheres, o dispendiosa. Era extremamente difícil para os
aumento do feminismo, o aumento da percen- investigadores trabalharem com ela pois a que
tagem de mulheres no mundo do trabalho... utilizavam, extraída de éguas grávidas, custava
Chegou mesmo a ser acusada de ter quebrado mais de $1.000 por grama. Além disso, a maior
a família tradicional, porque é esta molécula parte era comprada por criadores de cavalos de
que está por detrás de todas as discussões sobre raça para evitar abortos nos seus rebanhos.
planeamento familiar e contraceção.
Pode parecer incrível, mas durante as duas MAS NA DÉCADA DE 1940, UM QUÍMICO da
primeiras décadas do século XX, era crime Universidade da Pensilvânia chamado Russell
em muitos países fornecer informações so- Marker, um perito em esteróides, entrou em
bre contraceção. Em 1917, a enfermeira e ati- campo. Ele sabia que estes compostos podiam
vista americana Margaret Sanger, fundadora ser utilizados para fazer progesterona em gran-
da Federação Internacional de Planeamento des quantidades, e sabia também que havia
Familiar, foi presa por prescrever contrace- plantas no mundo vegetal que continham este-
tivos a mulheres imigrantes numa clínica de róides, tais como um certo tipo de batata doce
Brooklyn. E até março de 1972, era ilegal em selvagem do México. Disposto a tudo, renun-
Massachusetts ensinar, vender, prescrever ou ciou ao seu posto, alugou uma casa no campo
mesmo informar sobre os contracetivos. e partiu num passeio de mula pela selva do sul
A base química da contraceção é fornecer à do México. Após a sua expedição agrícola, re-
mulher uma fonte externa de progesterona, colheu dez toneladas de batata-doce, e traba-

88
lhando num laboratório alugado na Cidade do
México, isolou os esteróides por um processo
conhecido como degradação de Marker. De
volta aos Estados Unidos, sintetizou dois quilos
de progesterona, com um valor de mercado de
cerca de 160.000 dólares.

DEPOIS REGRESSOU À CIDADE DO MÉXICO,


PEGOU NA LISTA TELEFÓNICA e convenceu
dois homens de negócios a criar uma em-
presa, a Sintex, destinada a sintetizar pro-
gesterona. A parceria foi de curta duração.
Após dois anos, Marker abandonou o projeto
e regressou a casa. Entretanto, os seus asso-
ciados mexicanos contrataram um químico
cubano, George Rosenkranz, para continuar
o trabalho e sintetizar a hormona masculina,
a testosterona. A Sintex rompeu o monopó-
lio europeu das hormonas e o preço caiu de
A defensora do controlo de natalidade, Margaret Sanger
80 dólares para 1 dólar por grama. Em 1949,
(1879-1966), cobre a sua boca em protesto por não ter sido
a Sintex pediu ao austríaco Carl Djerassi para autorizada a falar sobre o assunto em Boston, nos anos 20.
produzir artificialmente outros tipos de hor-
monas. Usando a degradação de Marker, ele
foi capaz de gerar cortisona a um custo muito Ernesto Miramontes Cardenas descobriram
inferior, usando diosgenina extraída de plan- que esta nova substância era mais potente do
tas como o inhame selvagem. que a hormona natural, mas tinha o mesmo
O seu próximo projeto era obter um com- inconveniente: só podia ser administrada por
posto semelhante a progesterona que pudesse injeção direta. Modificando-a ligeiramen-
ser tomado por via oral. Até então, as mu- te utilizando uma técnica desenvolvida doze
lheres que queriam evitar abortos tinham de anos antes, sintetizaram noretindrona (ou
injetar grandes doses da hormona. Enquanto 19-noretisterona) em 1951, que podia ser to-
investigava, a sua equipa fez uma molécula mada por via oral. Assim, desde a sua comer-
muito semelhante à progesterona, mas com cialização nos anos 60, a noretindrona tem
menos um átomo de carbono na sua estru- sido o ingrediente ativo em quase metade de
tura. Rosenkranz, Djerassi e o mexicano Luis todos os contracetivos orais. e

Barreiras de todas as cores


C oitus interruptus já é mencionado no livro do Génesis e no Corão. No Egito de 1850 a.C., de acordo
com o papiro de Kahun, eram utilizados pessários vaginais feitos de estrume de crocodilo. Outro
método mais higiénico, mencionado no papiro de Ebers, foi a utilização de tampões com penugem
embebidos em sumo de acácia fermentada.
No século II, em Roma, um médico grego chamado Soranos propôs o uso de tampões vaginais fei-
tos de lã embebida em óleo, goma de cedro, mel, romã e polpa de figo. Já no século XVI, o anatomista e
médico italiano Gabriel Falopio propôs o uso de uma bainha de linho para proteger o pénis, no que é a
primeira descrição conhecida de um preservativo. Curiosamente, não é mencionado como um método
de contraceção, mas como um meio de prevenção de doenças venéreas.
Já na primeira metade do século XIX, os supositórios de manteiga de cacau eram utilizados como mé-
todo de contraceção. O principal médico do país no oeste de Massachusetts, Charles Knowlton, propôs
a aplicação de sulfato de zinco na vagina logo após a relação sexual. No início do século XX, o médico
alemão Richard Richter sugeriu o uso de intestino de bicho-da-seda como dispositivo intra-uterino — o
primeiro DIU. Obviamente, as mulheres não estavam muito entusiasmadas com isso.

89
43 Antissépticos
Eles salvaram milhões e milhões de vidas, e continuarão a fazê-lo.

E
m meados do séculoXIX não era bom Muito poucos médicos defendiam a limpeza
ir para um hospital, quanto mais sub- contínua, pois a maioria era a favor da teoria
meter-se a uma cirurgia. Eram lugares do miasma: segundo o grande químico alemão
horríveis, escuros, sem ventilação, e os Justus von Liebig (1803-1873), a fermentação
lençóis em que se era deitado seriam do sangue em cortes infetados produzia gases
muito provavelmente os do paciente anterior, venenosos que emanavam do paciente e se es-
que possivelmente tinha morrido entre eles. palhavam pela sala até envenenarem o pacien-
Embora a anestesia tenha aparecido em 1846, a te próximo, que assim contraía doenças como
maioria dos pacientes consentia a cirurgia ape- a cólera, varíola ou sífilis.
nas como último recurso. Os cortes eram fre-
quentemente infetados e os cirurgiões achavam O CIRURGIÃO BRITÂNICO JOSEPH LISTER
que o pus era uma coisa boa, pois indicava que (1827-1912) ERA UM dos poucos peritos que
a infeção era localizada e não invadia o resto do não acreditava nesta hipótese. Ele tinha lido
corpo. Assim, o paciente era deitado para que o um artigo de Louis Pasteur no qual defendia a
pus escorresse para o chão. teoria dos germes como a origem da doença,

Em 1865, o cirurgião
britânico Joseph Lis-
ter (centro) começou
a usar o ácido carbóli-
co como antisséptico.
Na ilustração ele es-
pera que seja aplicado
a um paciente antes
GETTY

de operar.

90
AGE

algo que a maioria dos médicos rejei-


tou com o argumento esmagador de
que “se não os podemos ver, eles não
estão lá”. Para Pasteur, os micróbios
pululavam por todo o lado e as suas
experiências mostraram que podiam
ser mortos, fervendo-os. Como não
era aconselhável ferver os pacientes,
Lister pensou noutro método para eli-
minar os microrganismos patogénicos.
Voltou-se para o ácido carbólico, que
já tinha sido tentado para tratar infe-
ções cirúrgicas, sem muito sucesso.
Lister perseverou e conseguiu testar
os seus métodos em agosto de 1865,
quando um rapaz de sete anos chegou
à enfermaria Real de Glasgow com uma
fratura múltipla da perna: tinha sido
atropelado por uma carruagem.

SER HOSPITALIZADO COM TAL PRO-


BLEMA ERA levar todos os bilhetes
da rifa para uma viagem só de ida ao
cemitério. As roturas simples, podiam
ser reparadas sem cirurgia, mas as Em 1890 eram administrados antissépticos com dispositivos de latão
múltiplas — com pedaços de osso que como este, que os libertavam no exterior sob a forma de aerossóis.
perfuravam a pele — eram terreno fértil
para infeção. Após a operação, Lister GETTY

limpou cuidadosamente a área danifi-


cada com gaze embebida em ácido car-
bólico e depois cobriu-a com uma fina
folha de metal dobrada sobre a perna
para evitar a evaporação. A infeção não
apareceu.
O ácido carbólico utilizado por Lister
era obtido por destilação de alcatrão
de carvão a temperaturas entre 170 °C
e 230 °C. Escuro e de cheiro profundo,
ardia na pele. Eventualmente Lister
isolou o principal constituinte do seu
ácido carbólico, o fenol. Assim, ele co-
meçou a preparar o que chamou “cata-
plasma de massa de carboleína”, uma
mistura de fenol com óleo de linhaça e
calcário em pó. Colocava esta pasta na
ferida, o que proporcionava uma bar-
reira contra as bactérias. Além disso,
utilizava uma solução muito diluída
de fenol (5%) para lavar a ferida, os
instrumentos cirúrgicos e as mãos do
cirurgião, antes e depois da operação.
O fenol, tóxico mesmo em soluções di-
luídas, foi o primeiro antisséptico da Baixo-relevo romano de uma cirurgia realizada a um homem ferido em
história e mudou radicalmente a des- batalha. Até ao século XX, a ausência de antissépticos condenava
graçada paisagem hospitalar. e muitos soldados à morte com feridas pouco graves que se infetavam.

91
AGE

Tomar aspirina
regularmente —
sempre sob
supervisão médica
— pode prevenir o
risco de problemas
cardíacos.

44 Aspirina
É o medicamento mais utilizado no mundo, e sem dúvida uma das
mais importantes realizações farmacológicas do século XX.

O
ficialmente nascida em 1897, a e dores de ouvido. Plínio, o Velho, na sua Histó-
sua história remonta a 3500 anos. ria Natural, afirmava que era um bom remédio
A molécula que subjaz à aspirina analgésico e antipirético.
é o ácido salicílico, que se encon-
tra na casca de salgueiros perten- APESAR DESTA LONGA HISTÓRIA FARMA-
centes ao género Salix, tais como Salix alba ou COLÓGICA, o interesse científico pela cas-
Salix fragilis. Os Sumérios já sabiam que as fo- ca de salgueiro só surgiu em 1763, quando
lhas destas árvores eram utilizadas para tratar o Reverendo Edward Stone descreveu pela
doenças reumáticas inflamatórias. Os egípcios primeira vez os seus efeitos contra a febre
utilizaram extratos de mirto e salgueiro para em casos de malária. No século XIX, muitos
aliviar as dores articulares. De facto, o papiro investigadores envolveram-se na extração e
Ebers, uma coleção de 877 prescrições médicas síntese química do composto ativo da casca
datadas de 1534 a.C., afirma que o uso de decoc- de salgueiro,que haviam batizado de salici-
ções de murta e folhas de salgueiro no abdómen na. Por volta de 1850 tudo começou a jun-
e nas costas alivia a inflamação e outros proces- tar-se, e peças aparentemente sem ligação
sos dolorosos. começaram a encaixar como um quebra-ca-
Um milénio mais tarde, o pai da medicina, o beças. Por um lado, houve o boom na in-
grego Hipócrates de Cos, receitava casca de sal- dústria química, especialmente na indústria
gueiro para tratar dores inflamatórias e aliviar orgânica, devido à descoberta do primeiro
dores de parto; e Dioscorides, o farmacologis- corante sintético. Por outro lado, havia a ne-
ta romano do século I, cujo De Materia Medi- cessidade de encontrar uma aplicação para o
ca foi o principal manual de farmacopeia até à alcatrão de carvão, um subproduto da des-
Renascença, recomendava a decocção da casca tilação do carvão, o motor da Revolução In-
de salgueiro para o tratamento de cólicas, gota dustrial. A Alemanha era o líder indiscutível

92
GETTY

da Europa em química orgânica, e por isso


tinha muitos peritos dedicados à obtenção
de produtos de alcatrão de carvão.

EM 1886, DESCOBRIRAM-SE POR ACASO AS


PROPRIEDADES ANTI-TÉRMICAS DA ACETA-
NILIDA, um composto derivado do alcatrão
de carvão e utilizado na produção de coran-
tes. Poderia haver mais substâncias deste tipo
no fedorento alcatrão? Este foi o pensamento
de Carl Duisberg, responsável de Investiga-
ção numa pequena empresa alemã de tintura-
ria chamada Friedrich Bayer & Company, que
iniciou uma pesquisa sistemática de produtos
químicos com valor médico. Quando a empre-
sa o colocou no comando, este programa foi in-
tensificado, e deu frutos em 1897, quando um
dos seus químicos, Felix Hoffmann, sintetizou
a aspirina.
Contudo, foram necessários setenta anos pa-
ra clarificar o mecanismo de ação de um me-
dicamento que, ao longo do tempo, revelou
“Com um comprimido de aspirina”, diz este cartaz publici-
propriedades para além das esperadas: previne tário da empresa alemã Bayer, utilizado em Itália em
doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, 1935. O nome aspirina foi inventado pela empresa.
tem um efeito quimiopreventivo contra o can-
cro colorrectal e, na ausência de mais investi- reduz o risco de cancro em pelo menos 20% ao
gação, parece que tomar aspirina diariamente longo de um período de vinte anos. e

Salvador Moncada, o esquecido dos Nobel


O cientista hondurenho Salvador Moncada,
nascido em 1944, estudou medicina em
San Salvador, a capital de El Salvador, precisa-
Mas tudo tem o seu lado negro. Quando o Pré-
mio Nobel da Medicina foi atribuído em 1982
aos investigadores que tornaram possível esta
mente quando o movimento revolucionário cam- descoberta, a ausência deste cientista entre os
ponês naquele país estava em pleno andamen- vencedores foi incompreensível e muito injusta.
to, desencadeando uma longa e cruel guerra ARCHIVE COLLECTION

civil. Nesses tempos difíceis, Salvador Moncada


combinou o início de uma carreira científica com
ativismo político, chegando mesmo a liderar um
movimento estudantil.
Em 1971 mudou-se para Londres com um ob-
jetivo em mente: dedicar-se totalmente à ciên-
cia. Quase freneticamente, iniciou um enorme
trabalho de investigação no campo da fisiologia
cardiovascular. É devido às suas descobertas
iniciais que hoje utilizamos a aspirina como me-
dicamento fundamental para prevenir a trombo-
se e no tratamento de formas agudas de doen-
ça coronária, ataque cardíaco e angina pecto-
ris. Esta contribuição seria suficiente para que Salvador Moncada (à direita) conversa com um colega
Moncada entrasse para a história da medicina. durante o seu tempo como investigador no Reino Unido.

93
45 Sabão
A luta contra a sujidade nunca terminará, mas é muito mais
suportável, uma vez que aprendemos como obter este produto.

A
Rainha Isabel I de Inglaterra (1533- zas de plantas, um método de fazer sabão. Os
1603) disse que tomava banho uma egípcios, que tinham o hábito de tomar banho
vez por mês, “quer precisasse ou regularmente, deixaram-nos a sua receita de
não”. A higiene pessoal era algo que sabão há 3500 anos atrás no papiro Ebers: uma
deixava muito a desejar desde a Ida- mistura de óleos animais e vegetais e sais al-
de Média, quando a Igreja se tornou a luz e o guia calinos, que utilizavam tanto para lavar como
do mundo ocidental. A carne devia ser mortifi- para tratar várias doenças de pele.
cada tanto quanto possível, por isso os cuidados
com o corpo eram pecaminosos. Assim, a cultu- O SABÃO NEM SE APROXIMAVA DOS CORPOS
ra termal romana, onde o banho era uma ativi- DOS ANTIGOS gregos e romanos. Para a higie-
dade social, desapareceu. E a Peste Negra, que ne pessoal usavam pedaços de barro, areia, pe-
desembarcou no porto de Messina em outubro dra-pomes e cinzas, e deixavam as suas roupas
de 1347, encontrou um poderoso aliado na falta à mercê da soda — conhecida no mundo roma-
de higiene na Europa da altura. no como natrium — cinzas, borras de vinho....
E não seria por falta de meios. A água sem- A fim de tornar as peças de vestuário mais
pre lá esteve, e a utilização de sabão para a brancas, utilizavam amoníaco, que os artesãos
higiene pessoal e limpeza de roupa remonta helénicos obtinham a partir da fermentação
a cinco milénios. Temos provas da existência da urina. Não tinham falta de matérias-pri-
de algo semelhante ao sabão em cilindros de mas, uma vez que atrás da porta de muitas lojas
barro babilónico de 2800 a.C., onde se lê que existiam frascos que estavam à disposição dos
as gorduras eram cozidas juntamente com cin- clientes que quisessem urinar.
GETTY

O sabão de Marse-
lha — aqui numa
loja dessa cidade
— tem de ser feito
de acordo com cer-
tas regras para po-
der receber essa
designação.

94
GETTY
Só no século VII é que o fabrico de sabão se
institucionalizou na Europa. Mestres fabrican-
tes de sabão, como mais tarde os pirotécnicos,
ocultavam cuidadosamente o segredo da mis-
tura: óleos vegetais e animais, cinzas de certas
plantas e, claro, as substâncias que lhe davam a
fragrância apropriada. Itália, França e Espanha
foram os primeiros países a entrar no negócio
deste produto: o azeite tinha de servir para al-
guma coisa.

O FABRICO DO VERDADEIRO SABÃO TEVE


ORIGEM EM MARSELHA E GÉNOVA, no século
XV. Para o produzir, os artesãos ferviam azei-
te num caldeirão com uma potassa obtida pelo
O banho não era muito medieval e estava ligado ao pra-
tratamento das cinzas com cal, num processo
zer. Nesta miniatura do século XV vemos um casal a ba-
que foi aperfeiçoado ao longo dos séculos se- nhar-se num luxuoso e ocupado lupanar.
guintes. Contudo, ninguém se preocupou em
descobrir porque é que o sabão limpava tão bem
até ao século XIX, quando o espetacular avanço quando uns químicos alemães descobriram as
da química orgânica foi provocado por algo tão propriedades detergentes de certos derivados
material como a moda e o desenvolvimento de do petróleo: nasceram os detergentes em pó,
novos corantes sintéticos para vestuário. O lon- um negócio que assumiu proporções gigantes-
go reinado solitário do sabão terminou em 1936, cas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. e

Porque é que o sabão limpa?


O s ácidos gordos obtidos de óleos e gor-
duras vegetais e animais são constituídos
por duas partes: um grupo carboxilo, que é uma
O que dá ao sabão a sua peculiar capacida-
de de limpar a roupa é que a sua molécula com-
porta-se como se tivesse uma dupla persona-
molécula constituída por um átomo de hidro- lidade: a extremidade de hidrocarboneto foge
génio, dois átomos de oxigénio e um átomo de da água — é hidrofóbica — e tende a ligar-se à
carbono, ligados a um hidrocarboneto (uma gordura, enquanto a outra extremidade é hidro-
cadeia de átomos de carbono cada um ligado a fílica, adora o elemento líquido. Obviamente,
dois hidrogénios). Por outro lado, uma base ou o efeito de tração do lado hidrofílico deve ser
álcali, que nada mais é do que um sal solúvel de maior para tirar a sujidade da roupa, e nós aju-
sódio ou potássio: os mais comuns são o hidró- damo-lo quando esfregamos a peça de roupa.
xido de sódio ou soda cáustica, e o hidróxido No final, fica com uma pequena gota de sujida-
de potássio ou potassa cáustica. As bases têm de rodeada por um envelope de sabão, um pro-
a propriedade de que quando reagem com um cesso que é ajudado pelo uso de água quente.
ácido neutralizam-no, e é isto que se procura AGE

quando se trata de obter sabão.


O método utilizado desde a época babilóni-
ca chama-se saponificação: consiste no aque-
cimento de gorduras com as cinzas de plantas
alcalinas, que produzem sabão, água e glice-
rina. Dependendo da base utilizada, teremos
um tipo de sabão ou outro. Se for utilizado so-
da, obtemos sabões de sódio, que são duros;
se for utilizado potassa, obtemos sabões mais
suaves. Fábrica de sabão em Lomé, capital do Togo.

95
46 Quinino
Extraído da casca de uma árvore, tem sido fundamental no
combate à malária, talvez a doença mais letal da nossa história.

E
ntre os primeiros e mais importantes tornado um local ideal para o mosquito Ano-
tratamentos conhecidos estava a medi- pheles — o transmissor da malária — que che-
cina tradicional quíchua para as febres, gou a bordo de navios europeus e se tornou um
que numa reviravolta própria de um inimigo temível para os invasores: em julho de
thriller se revelou essencial na cura de 1698, cinco navios escoceses com 1200 colonos
uma doença que assolava África, Ásia e Europa, e partiram para criar a Nova Caledónia em Da-
que se pensa que tenha matado mais de metade rien (Panamá), um local ideal para um enclave
de todos os seres humanos que alguma vez vive- comercial. Nos seis meses seguintes ao desem-
ram na Terra: a malária. barque, metade dos colonos tinha morrido de
O quinino é extraído por pulverização da casca malária; no verão, o número de mortos chegava
de uma árvore, a cinchona, que cresce nas selvas a dez por dia. Um destino semelhante aguardava
montanhosas do Peru. Devido ao seu forte sabor os colonos da colónia inglesa da Virgínia: de 1607
amargo, era normalmente dissolvido em água a 1627 mais de 80% dos recém-chegados morre-
açucarada. Esta é a origem da água tónica. ram de malária antes de terem estado no Novo
A introdução do quinino marcou o início da Mundo durante um ano.
farmacologia moderna e permitiu o estabeleci-
mento do colonialismo europeu em África. Até MAS EM MEADOS DO SÉCULO XVII, UM BOATO
então, os europeus tinham perdido grandes nú- PERSISTENTE COMEÇOU a espalhar-se nos sa-
meros de tropas e colonos nos seus esforços para lões sociais de toda a Europa: havia um remédio
conquistar o continente (“o túmulo do homem milagroso contra o mal aire num lugar misterio-
branco”). As Américas, por seu lado, tinham-se so chamado Peru. Alguns anos mais tarde, espa-
AGE

Fragmentos de casca seca da árvore de


cinchona, da qual se extrai quinino,um
potente alcalóide antipalúdico.

96
GETTY
lhou-se a notícia do espantoso poder da casca
dos jesuitas, do pó da condessa e da cinchona.
Segundo a lenda, Doña Francisca Enríquez de
Rivera, quarta Condessa de Chinchón e Vice-
-rainha do Peru, tinha sido miraculosamente
curada das febres tercinas graças a este medi-
camento. No entanto, a descoberta em 1930 no
Archivo de Indias do Diario del Virreinato de
Chinchón (maio 1629 - maio 1639) revela que foi
o vice-rei e o seu filho que sofreram as febres; No século XIX, os ingleses estacionados na Índia combatiam a
nele estão registadas as datas e os tratamentos a malária com água tónica, uma bebida contendo quinino.
que foram submetidos.
Não sabemos a data exata da chegada desta As restantes potências europeias estavam
casca curativa a Espanha: a primeira descrição mais do que interessadas em obter sementes
botânica data de 1663, embora anteriormente desta árvore misteriosa para a cultivar noutro
dois monges, um agostinho em 1633 e um jesuí- lugar.Em meados do século XIX, alguns euro-
ta em 1652, tivessem falado da cascarilla (como peus tinham conseguido obter algumas, mas
se chamava a cinchona no Equador e no Peru) e produziam um quinino de baixa qualidade.
das suas propriedades curativas. É possível que Além disso, o cultivo da árvore era problemá-
já estivesse em Espanha em 1639, uma vez que tico porque é bastante sensível à altitude, tem-
alguns professores da Universidade de Alcalá peratura e tipo de solo: cultivá-la fora do seu
curaram um colega de teologia com cinchona. habitat natural era difícil.
Por outro lado, pensa-se ter chegado a Roma
no saco de um jesuíta em 1632. Seja como for, EM 1864, CHARLES LEDGER, UM INGLÊS QUE
o anúncio da existência de um medicamento VIVIA NO PERU desde 1841 como comercian-
milagroso numa Europa devastada pela malária, te de lã de alpaca, decidiu tentar a sua sor-
desde o Don ao Po, foi como dizer hoje que tinha te com o quinino. Anos antes havia traficado
sido encontrado um remédio para a SIDA. com alpacas, que contrabandeou do Peru para
a Austrália, por isso deve ter pensado que se
AS CASCAS E O QUININO CHEGARAM À EU- conseguiu tirar os animais de lá, seria mais fácil
ROPA, MAS DURANTE MAIS DE UM SÉCULO fazer o mesmo com algumas sementes. Ledger
ninguém soube como eram as árvores das quais encontrou uma melhor variedade para produ-
era extraída. Mesmo assim, a casca de cinchona zir quinino, agora conhecido como Cinchona
em pó era um negócio muito lucrativo, primei- ledgeriana, e em 1865, arriscando a sua vida
ro para Espanha e depois para o Peru, Equador na Bolívia e com a ajuda de um índio aymara
e Bolívia: basta saber que nos anos 1840 os cida- chamado Manuel Incra, recolheu vários qui-
dãos e soldados britânicos residentes na Índia los e enviou-os para o seu irmão em Londres.
gastavam 700 toneladas de casca de cinchona Quando o governo boliviano soube deste rou-
por ano para as suas doses anti-malária (a pro- bo, torturaram o pobre Incra até à morte.
pósito, adicionavam gin à mistura que deviam Ledger prometeu vender estas sementes,
beber e assim nasceu o gin tónico). Não admira mas o tiro saiu-lhe pela culatra: não conseguiu
que quisessem manter em segredo tudo o que convencer potenciais compradores de que o
tinha a ver com a cinchona. seu produto contrabandeado era realmente se-
mentes de cinchona. No final,o governo
GTRES
holandês comprou-lhas por 20 dólares!
Foi o negócio do milénio: em 1930 as
suas plantações de cinchona Ledger, em
Java, estavam a produzir 10.000 tonela-
das de quinino, 97% do total mundial. e

Fabrico de comprimidos de quinino numa fábrica


na República Democrática do Congo, um país
que produz grandes quantidades deste remédio
contra a malária.

97
AGE

47 Penicilina
Uma série de felizes coincidências e o acaso levaram à síntese
de um dos antibióticos mais eficazes da história.

N
a década de 1920, o escocês Ale- do de Fleming. La Touche conseguiu isolar um,
xander Fleming já era um perito Penicillium notatum. Ambos os laboratórios
reconhecido em bactérias cha- tinham janelas que eram quase impossíveis de
madas estafilococos. Foi-lhe pe- abrir, por isso trabalhavam com a porta aber-
dido que escrevesse um capítulo ta, especialmente nos meses de verão. Como
sobre eles num compêndio de bacteriologia a La Touche não dispunha de uma campânula de
ser publicado pelo British Medical Research gases, a atmosfera no seu laboratório estava a
Council. Em finais de 1927, enquanto cumpria transbordar com esporos de Penicillium. Al-
essa missão, leu um artigo que o levou a inte- guns voaram para o de Fleming.
ressar-se por uma classe muito particular des-
tes microrganismos,o Staphylococcus aureus. NO SEU REGRESSO DE FÉRIAS EM SETEM-
Na altura,o alergologista alemão Storm van BRO DE 1928, Fleming, que era bastante
Leeuwen estava a dar uma série de palestras no descuidado e só limpava as placas de cultu-
St Thomas’ Hospital em Londres. Aí apresen- ra quando se amontoavam na pia, começou a
tou a teoria de que alguns doentes asmáticos arrumar o seu laboratório. Por casualidade,
eram alérgicos a certos bolores frequentes nas a placa contaminada com Penicillium esta-
suas casas. John Freeman, alergologista do St. va em cima das outras, e ao colocá-las todas
Mary’s Hospital, onde Fleming trabalhava, de- na bandeja, observou como a colónia de es-
cidiu investigar nesse sentido e contratou um tafilococos se decompunha ao contacto com
jovem micólogo irlandês chamado Charles J. La o bolor .A destruição de uma cultura pura de
Touche para cultivar bolores, o que começou a bactérias como resultado da exposição inad-
fazer no laboratório situado mesmo de baixo vertida a contaminantes atmosféricos é um

98
GETTY
medicamentos da época, a penicilina tinha
grandes vantagens: podia ser aplicada dire-
tamente nos tecidos humanos, era mais po-
tente que o fenol como inibidor bacteriano, e
era ativa contra muitas espécies de bactérias,
Micrografia do fungo Penicillium chrysogenum (em
incluindo as que causam meningite, gonorreia
baixo), que inibe o crescimento da bactéria Bacil-
lus subtilis (em cima). A inibição, causada pelos e infeções estreptocócicas, tais como a infla-
antibióticos — incluindo a penicilina G, segrega- mação da garganta.
da pelo fungo — é vista no anel transparente en- Também demonstrou ser um antibiótico
tre as duas espécies. À direita: Alexander Fleming. mais eficaz do que as sulfanilamidas e sem os
seus efeitos secundários — as sulfanilamidas
são tóxicas para os rins. Descobriu-se que não
problema habitual dos bacteriologistas. O era necessário inocular soluções muito puras:
grande mérito de Fleming foi que ele não dei- os estreptococos são sensíveis a diluições mui-
tou fora a sua cultura contaminada. Escreveu to baixas de penicilina, da ordem de 1 parte em
um artigo explicando a sua descoberta, mas 50 milhões.
não despertou quase nenhum interesse. Além
disso, todas as suas tentativas para obter um MAS A ESTRUTURA QUÍMICA DESTA SUBS-
extrato puro da substância que matou a bac- TÂNCIA NÃO TINHA SIDO RESOLVIDA E, por-
téria falharam. tanto, não pôde ser sintetizada. Extraí-la dos
Em 1939, um grupo de cientistas da Uni- bolores era tarefa de microbiologistas, não de
versidade de Oxford iniciou a procura de um químicos. Em julho de 1943, as empresas far-
método para o conseguir e dois anos mais macêuticas americanas estavam a produzir
tarde completou o primeiro ensaio clínico. O 800 milhões de unidades do novo antibiótico.
resultado correspondeu ao velho adágio: “O Um ano mais tarde, atingiram o seu pico: 130
tratamento foi um sucesso, mas o paciente mil milhões de unidades por mês. Durante a
morreu”. Um dos pacientes, um polícia com Segunda Guerra Mundial, milhares de quími-
uma infeção avançada, foi injetado com uma cos em trinta e nove laboratórios nos Estados
solução de penicilina. Em 24 horas estava me- Unidos e no Reino Unido trabalharam ardua-
lhor, cinco dias depois a febre desapareceu e a mente para estabelecer a estrutura química da
infeção começou a diminuir. Mas nessa altu- penicilina, o que foi conseguido em 1946. Co-
ra os investigadores já lhe tinham dado toda mo resultado, foi sintetizada em 1957.
a penicilina disponível — o conteúdo de uma O curioso de toda esta história de coinci-
colher de chá — e a infeção retornou: o pobre dências interligadas é que durante muitos
homem morreu. Um segundo paciente tam- anos, Alexander Fleming esteve convencido
bém morreu, mas o terceiro, um rapaz de 15 de que a sua descoberta era de interesse pu-
anos com envenenamento do sangue por esta- ramente académico, e nunca encontraria uma
filococos, foi curado. Comparada com outros aplicação real. e

99
GETTY

A quimioterapia é
o principal trata-
mento para a
maioria das leuce-
mias infantis.

48 Quimioterapia
Os tratamentos com produtos químicos são um dos pilares da
medicina moderna, com especial menção para o cancro.

P
aul Ehrlich era um jovem médico ale- as toxinas. No entanto, o objetivo de Erhlich
mão, doutorado na Universidade de não era desenvolver tratamentos com soro, mas
Estrasburgo no final do século XIX com encontrar substâncias que ajudassem o corpo a
um trabalho sobre coloração de células. combater a doença. E entre os seus principais
Ao regressar do Egito, onde tinha ido inimigos estava a bactéria Treponema pallidum,
para se curar da tuberculose, que havia contraí- responsável pela sífilis.
do enquanto investigava o germe que a causa,
começou a trabalhar com Emil von Behring, o APOIADO POR UM EXÉRCITO DE ASSISTEN-
descobridor dos anticorpos. Desta associação TES, passou ano após ano a experimentar sem
surgiu a teoria que explica o mecanismo de fun- descanso, em busca daquilo a que chamava
cionamento destas substâncias presentes no um projétil mágico que destruiria esse micror-
corpo humano e que nos defendem da doença. ganismo. No instituto, experimentaram uma
E não só. Em 1892, obtiveram um soro contendo substância atrás da outra sem sucesso. Quando
anticorpos que neutralizava a toxina da difteria. chegaram à 606, o benzeno, tinham alguma es-
O governo alemão, impressionado com esta perança de que servisse para algo. Infelizmente,
conquista, criou em 1896 uma instituição para a pessoa encarregada de estudar os seus possí-
o desenvolvimento de novos soros, o Real Ins- veis efeitos nos animais informou que não era
tituto Prussiano de Investigações e Ensaios de esse o caso.
Soros, e colocou Ehrlich ao comando. Aí desen- Em 1908 Ehrlich recebeu o Prémio Nobel da
volveu vários métodos de coloração de tecidos Medicina pela sua contribuição para a sorotera-
com anilina, com o objetivo de estudar melhor pia. Se tivessem esperado um par de anos, teria

100
AGE
sido atribuído por algo muito mais importante.
Em 1910, um pós-doutorado japonês, um certo
Hata, veio ao laboratório do cientista alemão.
A fim de se familiarizar com as técnicas de
investigação do instituto, começou a repetir
testes que já tinham sido realizados. Para sua
surpresa, descobriu que a substância descar-
tada 606 matava a espiroqueta causadora da
sífilis. Ehrlich, após verificar cuidadosamente
os resultados de Hata, patenteou-a e colocou-
-a no mercado. O composto 606 passou a cha-
mar-se Salvarsan, um dos primeiros fármacos
sintéticos eficazes para a cura de doenças infe-
ciosas e a primeira grande vitória da chamada
quimioterapia.
A investigação do bacteriólogo alemão Paul Ehrlich
(1854-1915) foi o início da quimioterapia.
MAS A BATALHA TINHA APENAS COMEÇADO.
Anos antes, em 1898, a Princesa Vitória, viúva
do Imperador alemão Frederico III, tinha sido que se espalhou através da água e se misturou
diagnosticada com cancro da mama inoperá- com o combustível de navios danificados ou
vel. Tal evento e a atenção dos meios de comu- afundados. Uma nuvem de gás mostarda acabou
nicação social levaram parte da alta sociedade por se infiltrar na cidade. 628 militares foram
alemã a decidir apoiar financeiramente a in- hospitalizados com sintomas de intoxicação por
vestigação do cancro. Ehrlich recebeu um pe- gás mostarda, e no prazo de um mês 83 tinham
dido pessoal do imperador alemão Guilherme morrido. O que não se sabe é quantas vítimas ci-
II, filho da rainha Vitória, para dedicar todas as vis houve — e deve ter havido muitas — porque
suas energias a uma cura para a doença. Ehrli- muitos dos habitantes de Bari deixaram a cidade
ch foi sincero e disse-lhe que isto exigiria muita para procurar refúgio.
investigação e que não seria alcançado em bre-
ve. O médico aplicou os mesmos métodos que O TENENTE-CORONEL STEWART FRANCIS
tinham funcionado tão bem antes e assumiu ALEXANDER, UM PERITO EM GUERRA QUÍ-
que uma terapia semelhante à vacinação po- MICA, examinou os tecidos de algumas das
deria valer a pena, pelo que tentou gerar imu- vítimas e descobriu que tinham sofrido uma
nidade ao cancro através da injeção de células perigosa redução do número de glóbulos bran-
cancerosas enfraquecidas. Obviamente que cos no seu sangue. E esta foi a pista. Então dois
não funcionou. farmacologistas, Louis S. Goodman e Alfred
Foi nesta altura que rebentou a Primeira Gilman, entraram em ação e pensaram que o
Guerra Mundial, revelando o poder destruti- gás mostarda poderia ser um possível trata-
vo da tecnologia, com produtos letais como o mento para algumas leucemias caraterizadas
terrível gás mostarda, que na realidade era um por uma sobreprodução de glóbulos brancos.
líquido. Foi chamado gás porque no campo de Devido à elevada toxicidade deste gás, que
batalha era vaporizado por explosivos. Os seus contém enxofre, testaram outros compostos
efeitos foram tão catastróficos que durante a semelhantes, em que o azoto ocupa a posição
Segunda Guerra Mundial nenhum dos lados se de enxofre. O primeiro paciente tratado com
atreveu a utilizá-lo, embora todos o tenham eles mostrou um progresso espetacular após
mantido perto da frente no caso de o inimigo o 48 horas e no décimo dia a massa do linfoma
usar primeiro. Paradoxalmente, a exposição ca- tinha desaparecido completamente.
sual das tropas a este gás tornou possível dar um O sucesso foi o tiro de partida para testar
grande passo em frente na luta contra o cancro. outras variantes das mostardas que tinham
Aconteceu quando o navio de transporte Alia- sido desenvolvidas como armas químicas de-
do SS John Harvey, transportando uma carga vastadoras. E embora nenhuma delas tenha
dessa substância, foi atingido num ataque aéreo curado qualquer tipo de cancro, os seus efei-
alemão no porto italiano de Bari, a 2 de dezem- tos de diminuição do tumor inauguraram uma
bro de 1943. O navio explodiu, matando toda a das terapias oncológicas mais utilizadas e efi-
sua tripulação e libertando o líquido venenoso, cazes atualmente: a quimioterapia. e

101
49 Pasteurização
Hoje em dia, custa-nos imaginar o avanço que este método constituiu
para eliminar os microorganismos patogénicos dos alimentos líquidos.

T
odos sabemos que a melhor maneira é descrito no diário dos monges japoneses no
de suprimir a presença de microrga- templo de Tamon’in, Tamon’in nikki, escrito
nismos patogénicos nos alimentos sem interrupção entre 1478 e 1618.
líquidos, como o leite, é aquecê-los. Em 1768, o padre e cientista italiano Laz-
Isto não só elimina as bactérias cau- zaro Spallanzani realizou uma série de ex-
sadoras de doenças, como também preserva periências para testar a veracidade da então
o produto por mais tempo. Este método era mais popular teoria do surgimento da vida, a
conhecido na China pelo menos já em 1117, e geração espontânea, que afirmava que a vi-

IMÁGENES: GETTY

102
da podia aparecer quase automaticamente a (Appert colocava uma rolha de cortiça e se-
partir de matéria inerte. Para tal, Spallanza- lava-o com cera) e depois colocá-lo em água
ni cozinhou um caldo de carne durante uma a ferver. Quando em 1800 Napoleão ofereceu
hora e depois selou o recipiente; depois de o um prémio de 12 000 francos a qualquer pes-
deixar assim por um período de tempo razoá- soa que pudesse descobrir um método simples
vel, descobriu que não tinham aparecido mi- e eficaz de conservação de alimentos, Appert
crorganismos, e isto levou-o a afirmar que os decidiu continuar a experimentar e a aperfei-
micróbios não saíam da matéria inerte, mas çoar o seu método. Em janeiro de 1810, ga-
que se moviam através do ar. Além disso, po- nhou o prémio, mas para o cobrar, o tribunal
deriam ser mortos por fervura. obrigou-o a torná-lo público: publicou-o no
Em 1795, um pasteleiro parisiense chamado seu livro A Arte de preservar as substâncias
Nicolas-François Appert começou a experi- animais e vegetais.
mentar formas de conservar os alimentos, e
descobriu um processo que tem sido utilizado MEIO SÉCULO DEPOIS, FOI A VEZ DO CIEN-
por todos os pasteleiros desde então: colocar TISTA FRANCÊS LOUIS PASTEUR. No verão de
o alimento — uma compota, por exemplo — 1864, enquanto estava de férias na cidade de
num frasco de vidro, selá-lo hermeticamente Arbois, encontrou uma forma de evitar o apa-
recimento de uma acidez desconfortável nos
vinhos locais envelhecidos durante muito tem-
po em barris de carvalho. Ele descobriu que era
suficiente aquecer o vinho a cerca de 50 graus
Celsius durante um curto período de tempo.
Ao fazê-lo, qualquer vinho poderia ser enve-
lhecido nos barris sem medo de acidificação: a
famosa pasteurização tinha acabado de nascer.
O curioso é que esta técnica foi aplicada pri-
meiro ao vinho e à cerveja e muito mais tarde ao
leite, o que torna muito claro qual a bebida que
mais nos preocupa que se estrague... e

Esquerda: Uma fábrica de pasteurização de leite em Den-


ver, em 1948. Acima: Louis Pasteur, o cientista francês a
quem devemos esta técnica benéfica.

103
104
50 Ferro
Como descobrimos este metal que nos permitiu construir ferramentas
mais fortes e mais duradouras? Parece que a inspiração caiu do céu.

D
e acordo com os para fazer ferramentas e armas Uma pista encontra-se em
gregos e romanos, de qualidade superior às feitas de muitos dos artefactos encon-
por volta de 1800 bronze, essa liga de cobre e esta- trados nas escavações da Idade
a.C., nas margens nho. Trabalhar o bronze era rela- do Bronze, que contêm ferro,
do Mar Negro, no tivamente simples, pois o estanho tais como a famosa adaga de Tu-
norte da Anatólia, vivia um povo derrete a pouco mais de 230°C e o tankhamón, uma faca de ferro
designado de Cálibes. Não cul- cobre a quase 1100°C, tempera- alongada com um punho dou-
tivavam a terra nem pastavam o turas que podem ser alcançadas rado. A análise química revelou
gado, mas dedicavam-se a fazer com simples fogos. Mas o ferro, impurezas de níquel na adaga,
armas inigualáveis. Não se sabe que derrete a 1538 ºC, requer um sugerindo que o ferro foi extraí-
como, mas descobriram que o processo de fundição intencional do de um meteorito metálico,
ferro, um metal que ninguém co- e complexo. O que lhes deu a cha- uma vez que a sua composição
nhecia antes, podia ser fundido ve para começarem a utilizá-lo? é essencialmente a mesma que a
do ferro da adaga. Será possível
SHUTTERSTOCK que a primeira coisa que os fer-
reiros usaram tenha sido o ferro
derretido pela nossa atmosfera?

HITITAS E SUMÉRIOS RECO-


NHECERAM ESTA LIGAÇÃO
chamando ao ferro o fogo do
céu; e o termo assírio para este
elemento é metal do céu. Mes-
mo a palavra egípcia para ele,
significa “trovão do céu”. Com
os meteoritos como inspiração
e guia, o reconhecimento de
minérios de ferro na Terra era
quase inevitável. Em termos
poéticos, foi o céu que permitiu
dar o salto para a Idade do Ferro.
Esta influência tecnológi-
ca celestial na cultura humana
também pode ser vista na Gro-
nelândia. Ali, uma das surpresas
dos primeiros exploradores euro-
peus foi que a tribo esquimó dos
inuítes do noroeste da Gronelân-
dia usava facas, pontas de arpões
e ferramentas de gravação feitas
de ferro. Mas não há lá minas! A
sua fonte de abastecimento era
um meteorito a mais de 2000 qui-
O ferro era utilizado para construir ar- lómetros de distância. e
mas mais fortes, o que constituía uma
importante vantagem militar para as
pessoas que o conheciam. Na imagem,
o comodíssimo trono de ferro da saga
As Crónicas de Gelo e Fogo. 105
Na Mesquita-Catedral de Córdova há uma
floresta de 856 colunas de mármore,
jaspe e granito que suportam 365 arcos
em ferradura de duas cores.

51 O arco
IMÁGENES: SHUTTERSTOCK

O interior dos edifícios estava condenado à escuridão... até que


esta invenção permitiu a passagem da luz através das paredes.

A
credita-se que a utilização do arco apareceu o iwan, um grande alpendre sob um arco
na arquitetura remonta a 4000 a.C., com três dos seus quatro lados fechados para for-
quando se construía com tijolos se- mar uma pequena abóbada. Esta estrutura peculiar
cos ao sol. Este é um dos elementos foi adoptada pelos vários impérios que dominaram
estruturais que tem suscitado mais a região, até que o império sassânida construiu o
curiosidade ao longo da história da arquitetura. imponente arco de Taq-i Kisra, o único remanes-
Não surpreende, pois foi utilizado para abrir bu- cente visível da cidade de Ctesifonte. A data da sua
racos nas paredes. No entanto, a sua utilização construção não é clara — entre os séculos II e VI —
mais comum foi em estruturas subterrâneas, co- mas é a maior abóbada independente construída
mo sumidouros, pois resolvia o problema do im- até aos tempos modernos. O iwan acabaria por se
pulso lateral exercido pela água ao circular no seu tornar uma marca da arquitetura islâmica, uma
interior. Isto pode ser visto no arco encontrado característica dos palácios, mesquitas e madrasas,
na cidade suméria de Nippur, que foi construída onde o arco ogival ou pontiagudo, introduzido no
antes de 3800 a.C.. século IX durante o califado abássida, substituiu o
Raramente foram encontrados arcos em casas ou arco semicircular.
templos, tais como o descoberto na porta de uma Os romanos foram os primeiros a apreciar as
casa de tijolos de lama datada de cerca de 2000 a.C. vantagens e imensas possibilidades arquitetóni-
em Tell Taya no Iraque, ou os que se encontram nas cas do arco. Aprenderam a técnica de esculpir as
portas das cidades cananéias da Idade do Bronze de pedras em forma de cunha — essencial para cons-
Ascalão (cerca de 1850 a.C.) e Tel Dan (cerca de 1750 truir um arco — com os Etruscos, refinaram-no e
a.C.), ambas em Israel. Na Pérsia, no século VI a.C., utilizaram-no em todas as suas construções civis:

106
portões, pontes, aquedutos.... Até introduziram A primeira tentativa de compreender como
o arco do triunfo, como monumento militar. A funciona encontra-se nos manuscritos de Leo-
união de vários arcos que formam uma abóbada nardo da Vinci (1452-1519). Desde então, o esta-
começou a ser utilizada no século I a.C. para co- belecimento da forma e espessura ideais do arco
brir grandes espaços interiores, tais como corre- tem sido objeto de estudo por numerosos cientis-
dores e templos. Quando perceberam que o arco tas e arquitetos ao longo dos séculos. O processo
de uma ponte não tinha de ser um semicírculo, de construção não era trivial: os pedreiros cons-
os romanos introduziram também uma variante truíram-no primeiro no chão, esculpindo todas
peculiar do arco redondo: o arco segmentado, as pedras para que encaixassem perfeitamente.
uma secção circular — ou seja, uma parte de uma Durante a Idade Média não há registo de quais-
circunferência — com o centro por baixo das im- quer tratados ou manuais de construção que ex-
posições — o local onde a parede, coluna ou pilar plicassem a técnica: talvez fosse considerado um
que suporta o arco termina. segredo e os mestres pedreiros só o transmitiam
oralmente àqueles em quem confiavam.
CURIOSAMENTE, E APESAR DE OS ROMANOS O único documento da Idade Média que sobre-
TEREM UTILIZADO O ARCO EM GRANDE ESCA- viveu até aos dias de hoje é o caderno de viagens
LA, não temos qualquer registo de que tenham Livre de portraiture, do mestre construtor fran-
feito alguma coisa para compreender a física por cês Villard de Honnecourt. Escrito entre 1220 e
detrás dele. Por exemplo, Vitruvius, o estudio- 1240, inclui desenhos sobre todos os temas que
so romano do século I e autor do tratado Os Dez lhe interessam: arquitetura, escultura, biologia...
Livros de Arquitetura, diz que para abrir um Contém também a primeira descrição por um
buraco numa parede para uma porta ou janela autor europeu de um mecanismo perpétuo. Mas
“devemos descarregar as paredes através de ar- o seu principal interesse era a construção, e é por
cos compostos por aduelas [os blocos de arcos] isso que escreveu: “Neste livro pode-se encon-
cujas juntas convergem para o seu centro”. Mas trar uma ajuda válida para a grande arte da cons-
não diz mais. trução e algumas instruções de carpintaria”. e

Em Sintra (Portugal) encontra-se a


Quinta da Regaleira, um palácio
construído no início do século XX com
elementos arquitetónicos manuelinos,
românticos, neo-góticos e mitológicos.
107
52 Pólvora
O aparecimento dos primeiros explosivos revolucionou os campos
de batalha e assim transformou de forma decisiva o mundo.

C
onsiderada pelos chineses como obter. O enxofre é encontrado sob forma nativa
uma das suas quatro grandes in- perto de fontes termais ou áreas vulcânicas, e o
venções — sendo as outras três a salitre pode ser obtido a partir de excrementos
bússola, o papel e a imprensa — a de animais, deixando-os repousar e decompor.
pólvora é o primeiro explosivo da Isso forma cristais de nitrato de potássio, que são
história. Não sabemos quando foi descoberto, depois extraídos através da lavagem do estrume
mas parece haver uma primeira pista no li- com água.
vro Cantong qi, escrito no CORDON
ano 142 por um alquimista A PRIMEIRA REFERÊN-
taoísta chamado Wei Bo- CIA CLARA À PÓLVORA é
yang. O seu título pode ser encontrada muitos sécu-
traduzido como O Paren- los depois, no Taishang
tesco dos Três, pois trata Shengzu Jindan Mijue de
de três temas principais: 808, onde aparece a se-
cosmologia, taoísmo e al- guinte fórmula: seis par-
quimia. Boyang refere-se tes de enxofre, seis partes
a uma mistura de três pós de salitre e uma parte de
que “voariam e dançariam” alface. Meio século de-
violentamente e, embora pois, o texto Zhenyuan
seja impossível ter a certe- miaodao yaolüe reúne
za de que estava a falar de trinta e quatro receitas
pólvora, não temos conhe- de misturas e elixires que
cimento de nenhum outro podem causar danos —
explosivo que seja feito com destes, três mencionam o
três componentes. salitre como ingrediente.
Aparentemente, a desco- Não só isso, mas adver-
berta da pólvora estava re- te para um particular-
lacionada com Wu de Han, mente perigoso: “Alguns
um dos grandes imperado- aqueceram juntamente
res da história chinesa, que enxofre, realgar [um sul-
iniciou o seu reinado em 141 O compêndio Wujing Zongyao de armamento fureto de enxofre de cor
a.C. e fez do confucionis- (1044) já descrevia alguns dos usos militares da vermelha] e salitre com
pólvora, tais como esta lança de flecha.
mo a filosofia do Estado. O mel; produz-se fumo (e
imperador Wu pediu aos seus alquimistas que chamas), de modo que as mãos e o rosto foram
investigassem os segredos da vida eterna, e, na queimados, e até a casa inteira foi queimada”.
sua busca, um dia aqueceram uma mistura de Esta é uma forma de pólvora de baixa potência
15% de enxofre e 75% de salitre — nitrato de onde o mel é utilizado como fonte de carbo-
potássio. O que obtiveram não foi o elixir da no. Os alquimistas chineses batizaram
vida eterna, mas algo completamente oposto... este composto explosivo como me-
No ano 318 aparece outro livro, Baopuzi ou dicina para o fogo, o mesmo
O Livro do Mestre que Abraça a Simplicida- termo que usam hoje
de, escrito por um estudioso da dinastia Chin em dia para a
chamado Ge Hong. Descreve uma mistura que pólvora.
provoca explosões: duas partes de enxofre, três
partes de carvão e quinze partes de salitre. Dos
três compostos, o primeiro é o mais fácil de

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Originalmente utilizado
para divertimento da corte
sob a forma de fogo-de-ar-
tifício, não demorou muito
tempo até que os chineses se
apercebessem do valor mili-
tar de tal descoberta. Em 904
setas incendiárias revestidas
com pólvora foram utilizadas
no cerco de uma cidade, e a
partir daí começou a apare-
cer uma grande variedade de
armas: em 1044 um compên-
dio de armamento militar,
Wujing Zongyao, enumera
em detalhe três fórmulas ma-
gistrais para preparar pólvora A pirotecnia é uma-
contendo uma média de treze prova tangível de
ingredientes. Não só isso, mas que nem todos os
usos da pólvora são
também lista os seus usos,
destrutivos.
tais como flechas incendiá-
rias, bombas, projécteis e
todo o tipo de granadas. Os
nomes que têm são, no mínimo, curiosos, tais para a Europa, onde encontramos
como pau voador incendiário para subjugar referência à pólvora no Opus Maius
demónios ou bomba imparável de fogo in- (1267), uma obra do filósofo, teólogo
tenso do céu em chamas . e cientista inglês Roger Bacon. Des-
de esse momento, aquele pó negro
COMO É SEMPRE O CASO QUANDO SE dominou os campos de batalha do
TEM UMA VANTAGEM ESTRATÉGICA, mundo até à invenção posterior
os imperadores chineses esforçaram-se do algodão explosivo e da nitro-
muito para manter este conhecimento glicerina. e
dentro das suas fronteiras, e declara-
ram a produção de pólvora um segre-
do de Estado juntamente com a prática
da astronomia, pois interpretar os si- Hoje em dia, a pólvora utilizada
nais do céu era conhecer o futuro do nas balas é branca ou sem fumo,
imperador. Mas um segredo não pode que não deixa quase nenhum resí-
ser guardado para sempre, e a fórmula duo na arma. É mais potente e es-
da pólvora acabou por encontrar o seu tável e é insensível a mudanças de
caminho para o mundo muçulmano temperatura e choques.
por volta de 1240. A partir daí, saltou
RSTOCK
SHUTTE

109
IMÁGENES: SHUTTERSTOCK

A borracha é um polímero elástico


que ocorre como uma emulsão lei-
tosa na seiva de várias plantas,
mas hoje também pode ser produ-
zida sinteticamente.

53 Borracha
Após Dunlop ter inventado o pneu com câmara-de-ar, este material
tornou-se o ouro branco das selvas americanas.

Q
uando a segunda expedição no Diário da Viagem ao Equador por ordem do
de Colombo parou na ilha La rei, que ele publicou em Paris em 1751. Contém
Espanõla, nenhum dos seus a primeira descrição do curare, a utilização de
membros poderia imaginar a im- quinino para tratar a malária e as propriedades
portância do que estavam a ver: da borracha.
os povos indígenas locais estavam a jogar uma
espécie de mistura de futebol e basquetebol.
ba O VÁRIOS POVOS PRÉ-COLOMBIANOS ESTA-
que era impressionante não era o jogo em si, VAM BEM CONSCIENTES DOS seus benefícios
mas a bola com que jogavam: uma bola de bor- para além dos puramente recreativos: faziam
racha . O seu nome deriva da palavra quechua uma espécie de sapato de goma, obtido mergu-
cautchuc, que significa “lágrimas da árvore”; é lhando os pés numa mistura de látex; prendiam
o látex contido na seiva de várias plantas, tais pedras e metais a cabos de madeira ou acol-
como as do género Hevea. choavam esses cabos, e também o untavam em
Foram precisos três séculos para que este no- tecidos para obter tecidos repelentes de água.
vo material interessasse aos europeus, graças Na sequência das revelações de De La Conda-
ao trabalho do naturalista francês Charles-Ma- mine, os botânicos europeus procuraram en-
rie de La Condamine, que após ter passado dez contrar outras plantas capazes de fornecer uma
anos a explorar o Peru e o resto da Amazónia — substância semelhante à da seiva de Hevea, en-
a sua primeira expedição pelo famoso rio sul- quanto os cientistas, especialmente os cientis-
-americano — escreveu sobre as suas andanças tas ingleses, procuravam ativamente possíveis

110
aplicações. Uma das primeiras foi a sua uti- cobrir a vulca-
lização como borracha de apagar, que foi en- nização.
contrada pelo clérigo e cientista inglês Joseph Contudo, a
Priestley, o descobridor do oxigénio. sua ingenuidade
Em 1819, um engenheiro inglês autodida- foi a sua desgra-
ta chamado Thomas Hancock descobriu que a ça. Ele mostrou
borracha tinha uma propriedade curiosa: podia a sua descober-
soldar-se a si própria. Nessa altura conheceu o ta a Macintosh
químico Charles Macintosh, que, por sua vez, e disse-lhe que
não sabia o que fazer com o benzol que sobra- não podia re-
va da sua fábrica como subproduto do fabrico velar a fórmula
de corantes, e do qual acabara de descobrir ser porque ainda
um solvente melhor para a borracha do que a não a tinha pa- Charles Goodyear descobriu a vulcanização
aguarrás. Desta associação surgiu o famoso im- tenteado. O as- da borracha depois de se ter endividado e
permeável mackintosh, que nasceu após be- tuto Macintosh de ter dedicado cinco anos à investigação
suntar uma tela com uma mistura de borracha disse ao seu só- autodidata .
e benzol. cio, Hancock, e
em pouco tempo chegaram ao mesmo resultado
NO ENTANTO, A BORRACHA TINHA UMA SÉ- que Goodyear, embora mergulhando a borracha
RIA DESVANTAGEM: era muito sensível ao ca- num banho de enxofre derretido.
lor. Apareceu então em cena um ferrageiro de O americano não registou a patente até ter
Connecticut chamado Charles Goodyear, que a certeza de que tinha aperfeiçoado todo o
viu claramente os enormes benefícios econó- processo, o que ocorreu oito semanas depois
micos se pudesse descobrir um método para de Hancock o ter feito, e patenteou-o a 21 de
a endurecer. Depois de tentar e tentar com novembro de 1843. Ele chamou a este pro-
diferentes substâncias, um dia em 1839, num cesso vulcanização e trouxe a borracha para
ataque de arrebatamento, atirou para o fogão as nossas vidas de tal forma que, entre 1872
a última mistura que tinha obtido: uma mis- e 1912, houve o que veio a chamar-se febre
tura de borracha, enxofre e chumbo branco. da borracha. Isto desencadeou a exploração
E o milagre aconteceu. Em vez de derreter, a da Amazónia, bem como a propulsão econó-
mistura endureceu e os restos que não carbo- mica de cidades como Iquitos no Peru e, em
nizaram eram resistentes ao calor enquanto particular, as cidades brasileiras de Belém e
permaneciam elásticos: tinha acabado de des- Manaus. e

111
54 Cimento
e betão
São a chave de toda a construção: os materiais que ligam as
pedras e tijolos sobre os quais se levantam as civilizações.

T
anto quanto sabemos, o cimento Mas o cimento em si, uma mistura de calcá-
apareceu pela primeira vez no pla- rio e argila calcinada e depois triturada com
neta há doze milhões de anos no que um pouco de gesso que endurece na presença
é hoje Israel. Claro que não tem na- de água, não é o que mantém os edifícios de
da a ver com alienígenas ou antigas pé. Para tal, deve ser adicionado um agrega-
civilizações avançadas que estão agora extin- do, que é classificado como cascalho, cascalho
tas: foi produzido naturalmente quando uma ou areia, dependendo do seu tamanho. A isto
formação de xisto betuminoso — uma rocha chama-se betão.
sedimentar rica em matéria orgânica a partir
da qual se pode produzir petróleo — foi encon- AS PRIMEIRAS ESTRUTURAS SEMELHANTES
trada ao lado de um leito de calcário queimado A BETÃO foram construídas pelos nabateus,
devido a causas naturais. que forjaram um pequeno império no sul da Sí-
O cimento é apenas um dos vários materiais ria e norte da Jordânia por volta de 6500 a.C.
que usamos para construir os nossos edifícios. e cuja cidade mais representativa foi Petra. Isto
Por exemplo, babilónios e assírios usavam breu foi possível porque existem depósitos de areia
e areia para unir tijolos queimados ou placas de de sílica fina à sua volta, e quando a água fil-
alabastro, e no Egito blocos de pedra cimen- tra através dela pode ser transformada em al-
tavam-se com uma argamassa de areia e gesso go chamado pozolana, semelhante a uma cinza
queimado que frequentemente continha tam- vulcânica arenosa que, como veremos, é um
bém alguma calcite. excelente componente para fazer betão. Com
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O cimento usado pelos antigos ro-


manos, por exemplo, era de quali-
dade superior ao cimento que usa-
mos hoje em dia.

112
Quando um agregado, como o cascalho, é
adicionado ao cimento, o resultado é be-
tão como o que estes dois trabalhadores
estão a retirar de um camião betoneira.

tal material disponível à porta, os nabateus suas estruturas foram construídas empilhando
tinham simplesmente de o recolher, mistu- pedras de diferentes tamanhos e preenchendo
rá-lo com cal e aquecê-lo nos mesmos fornos os espaços entre elas à mão com argamassa: em
que usavam para fazer a sua cerâmica. Assim, 95% das construções de Roma, a argamassa
em 700 a.C. estavam a construir fornos onde mais utilizada era um cimento calcário que en-
coziam esta argamassa — uma mistura de um durece lentamente ao reagir com o dióxido de
aglomerante como o cimento, cal e gesso com carbono do ar. Algo muito débil.
areia e água — e com ela construíam as suas ca-
sas e as suas cisternas subterrâneas de água — MAS PARA OS SEUS GRANDES EDIFÍCIOS,
que mantinham em segredo e que era uma das COMO O COLISEU, que eram construídos para
razões pelas quais eram capazes de sobreviver durar, utilizavam outra coisa, harena fossicia,
no deserto. Os nabateus perceberam que du- uma mistura de cal esmagada e areia vulcâni-
rante o fabrico era necessário manter a mistura ca que, como nos diz Vitruvius, “é encontrada
tão seca quanto possível, pois o excesso de água perto do Monte Vesúvio. Misturada com cal e
enfraquece o betão. Para o fazer, eles compac- seixos, não só dá firmeza a todo o tipo de cons-
tavam-no e aplicavam-no assim, com uma sé- truções, mas quando os molhes são construídos
rie de ferramentas especiais. no mar pode pôr-se debaixo de água”. E não só:
Entretanto, no Egito, por volta de 3000 a.C., a sua resistência é impressionante. Em 2013, foi
era usado gesso e argamassa de cal para cons- analisado um fragmento de betão datado de 37
truir as pirâmides: a pirâmide de Keops exigiu a.C., que atraiu a atenção dos cientistas devido
aproximadamente 500.000 toneladas, utiliza- ao bom estado em que se encontrava após dois
das como cama para as pedras do revestimento mil anos sujeito às ondas do Mediterrâneo. Esta
exterior da pirâmide. Os habilidosos pedreiros mistura de cal e cinza é a já mencionada pozo-
egípcios colocavam estas pedras com juntas lana, cujo nome advém da cidade de Pozzuoli,
abertas não mais largas do que meio milímetro. no oeste de Nápoles, onde esta cinza vulcânica
Evidentemente, todas as grandes construções era extraída.
usaram alguma forma de betão. Uma das arga- Hoje o nosso agregante não é harena fossi-
massas mais curiosas é a que os chineses utili- cia, mas o chamado cimento Portland, um no-
zaram na construção da Grande Muralha: arroz me que não se refere à cidade americana, mas à
pegajoso. ilha com o mesmo nome no Canal da Mancha.
Até 200 a.C., os romanos construíam com Se usássemos essas cinzas romanas para fazer
um betão que não era como o betão que usamos o nosso betão, usaríamos menos cal e o forno
hoje: não era um material plástico que podia poderia funcionar a uma temperatura mais
ser despejado porque era fluido, era mais como baixa, poupando assim combustível. Espertos
escombros cimentados. De facto, a maioria das os romanos. e

113
Um exército de 22 ceifeiras-debulhadoras colhe
soja no estado brasileiro de Mato Grosso.

55 Ceifeira-
debulhadora
Duas grandes invenções — a debulhadora e a segadora — combi-
naram-se para criar a máquina que revolucionou a agricultura.

O
cultivo de cereais é uma das ati- Inglaterra e Escócia por volta de 1830 .Tudo co-
vidades agrícolas mais antigas meçou em 1786, quando o engenheiro mecânico
— estima-se que o tenhamos co- escocês Andrew Meikle construiu a primeira de-
meçado a fazer há 12 000 anos bulhadora da história: trabalhava por impacto,
— mas é também uma das mais in- batendo as roldanas entre um cilindro rotativo
tensivas em mão-de-obra, como qualquer pes- e um cilindro côncavo fixo; ventoinhas e penei-
soa que tenha participado na colheita e debulha ras, respetivamente, ventilavam e limpavam os
sabe. Manipular a foice — ou gadanha — requer grãos. Conduzida por quatro cavalos, a debulha-
habilidade, sob pena de cortar algo mais do que dora de Meikle podia debulhar cerca de 0,7 to-
um dedo; e a debulha, com a qual separamos o neladas de trigo por hora. Após patentear a sua
grão do joio, envolve um trabalho considerável invenção, o fabrico de máquinas debulhadoras
que desde tempos imemoriais tem tido de fazer- começou em 1789.
-se em cooperação com o vento, no que é conhe- Ao longo dos anos tornaram-se mais sofisti-
cido como aventada. cadas, e conseguiram processar duas toneladas
de trigo por hora com uma tripulação de vinte
NO SÉCULO XVIII, COMEÇÁMOS A PROCURAR e cinco homens. Se a debulha tivesse sido feita
FORMAS DE MECANIZAR ESTE PROCESSO. à mão, teria exigido o dobro da mão de obra. De
Obviamente, a primeira coisa que teve de ser cavalos passou-se para motores a vapor, o que
inventada foi a debulhadora, a parte mais incó- aumentou a capacidade de trabalho, especial-
moda da colheita. Apareceu no final do século mente quando puderam começar a utilizar palha
XVIII e a sua utilização espalhou-se por toda a como combustível em vez de carvão ou lenha.

114
GEORGE HERIOT SWANSTON

Ilustração de 1851 mostrando a cegadora inventada pelo escocês Patrick Bell. Equipada com
duas rodas, exigia a potência dos cavalos para abrir caminho através da cultura.

As cegadoras existiam des- Sunchales (Argentina), o imigrante italiano Al-


de 1826, graças ao clérigo es- fredo Rotania patenteou a primeira ceifeira-de-
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cocês e inventor Patrick Bell, bulhadora autopropulsionada do mundo.
que concebeu uma máquina A máquina de Rotania estava equipada com
puxada a cavalo, operada por dois homens. No um motor Hercules e o diferencial de um ca-
entanto, Bell perdeu o interesse na sua invenção mião Chevrolet; ele deu-lhe tração às rodas
e nunca a patenteou. Foi um americano, Cyrus dianteiras e uma caixa de duas mudanças para a
McCormick, que construiu uma na Virgínia e co- frente e uma para trás. Com uma largura de cor-
meçou a comercializá-la em 1839. A melhoria em te de 4 metros e uma velocidade de trabalho de
relação ao trabalho humano era óbvia: a sua má- 4 km/h, era capaz de colher até quinze hectares
quina fazia o trabalho de quase uma centena de por dia. Uma verdadeira proeza. e
ceifeiros. Nos Estados Unidos, era como um maná RANSOMES, SIMS & JEFFERIES LTD.
do céu, pois ao mesmo tempo que a cegadora de
McCormick chegava ao interior do país, o mesmo
acontecia com os caminhos-de-ferro, o que lhes
permitia transportar o excesso de farinha para os
portos orientais e vendê-los à Europa.

MAS A INVENTIVIDADE NÃO SE FICOU POR AÍ:


AS DUAS MÁQUINAS — cegadora e debulhado-
ra — não poderiam ser combinadas numa só? A
resposta a essa pergunta foi a ceifeira-debulha-
dora, um nome que se tornou moda em 1920. A
primeira foi concebida no Michigan por Hiram
Moore e John Hascall em 1838; era tão pesada
que requereu a força de vinte cavalos para a
mover. Moore aperfeiçoou a sua invenção e em
meados dos anos 1840 desenvolveu uma ceifei-
ra-debulhadora de dezasseis cavalos que podia
cortar, debulhar e limpar oito hectares de trigo
num dia.
A partir desse momento, apareceram diferen-
tes ceifeiras-debulhadoras, cada vez maiores e
puxadas por uma grande manada de animais:
entre trinta e cinquenta mulas ou cavalos. Tudo
o que restava era motorizá-los, primeiro com
motores a vapor e depois incorporando um tra- A debulhadora (no centro) oferece vantagens claras sobre a debulha
tor, até 18 de dezembro de 1929, na cidade de com um malho (em cima) ou por calcamento de cavalo (em baixo).

115
56 Aço
A diferença entre o ferro e o aço reside numa pequena percentagem
de carbono. Acrescentá-lo foi um desafio para os ferreiros.

A
história do aço está ligada à do fer- foi colocar pequenos pedaços de ferro forjado
ro. A única diferença entre eles é juntamente com carvão vegetal nos cadinhos,
quase insignificante: no máximo selá-los e colocá-los num forno. Desta forma,
2% de carbono, um pequeno adi- o ferro forjado fundia e absorvia o carbono
tivo que faz uma grande diferen- do carvão vegetal. Quando os cadinhos eram
ça. Se o ferro forjado apareceu nas margens abertos, o que aparecia era o aço, a que cha-
do Mar Negro e permitiu aos hititas criar um mavam ukku.
dos exércitos mais poderosos da história anti-
ga, o ferro fundido foi feito pela primeira vez O AÇO INDIANO COMEÇOU A VIAJAR POR
na China por volta de 500 a.C. Mas nenhum TODO O MUNDO. Em Damasco era utilizado
dos dois era perfeito: o ferro forjado continha para forjar as suas famosas espadas de aço
apenas 0,8% de carbono, pelo que lhe faltava de Damasco, que se dizia serem capazes de
a resistência à tração do aço, e o ferro fundi- cortar penas em pleno ar. Também chegou a
do chinês, com 2%-4% de e carbono, era mais Toledo, onde ferreiros hispânicos forjavam
frágil. Os ferreiros do Mar Negro começaram a armas para as legiões romanas. O aço era
incorporar barras de ferro em carvão vegetal, vendido a Roma por comerciantes abissínios
o que criou ferro forjado com revestimento de desonestos, que lhes mentiam sobre a sua
aço. Mas na Índia tiveram uma ideia melhor. origem: diziam-lhes que era feito pelos Seres,
Por volta de 400 a.C., os ferreiros indianos um povo que vivia no que é hoje a China oci-
inventaram um método de fundição que adi- dental, famoso por ser o lugar de origem da
cionava a quantidade perfeita de carbono ao seda. Assim, vindos de um país tão distante,
ferro. A chave estava num recipiente de barro os romanos não tinham qualquer desejo de lá
para o metal fundido: o crisol. O que fizeram ir para o conquistar. e

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116
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57 Arado
O sedentarismo é a base da civilização. A agricultura é a base do
sedentarismo. E o arado é a base da agricultura.

E
m 1978, o historiador da ciência James Bubeneč na República Checa. Um campo arado
Burke fez uma pergunta simples aos de 2800 a.C. também foi descoberto em Kaliban-
espectadores da sua série documental gan, no Paquistão.
Connections: “Rodeado pelos restos O aparecimento do arado marcou um ponto
da civilização e sem acesso à tecnologia de viragem na história da agricultura. Primei-
moderna, de que precisaria para se manter vivo ro, porque facilitou o trabalho árduo de lavrar
e aos restos da civilização? A sua resposta foi: a terra; e segundo, porque melhorou a quan-
“Um arado”. tidade e a qualidade das culturas ao ser capaz
A emergência da agricultura mudou de forma de penetrar a maior profundidade, no solo e se-
indelével não só o planeta, mas também os se- mear mais profundamente, fora do alcance de
res humanos. Levou ao surgimento de cidades, roedores, aves e outros animais .
à divisão do trabalho e à desigualdade social. Mas a grande revolução veio quando os ro-
Em suma, à civilização. O cultivo diligente da manos desenvolveram a sua própria versão,
terra aguçou a nossa inteligência, porque pre- conhecida hoje como o arado romano. A ino-
cisávamos de ferramentas agrícolas. De todas as vação foi dupla: incorporaram uma peça de
ferramentas agrícolas, há uma que teve sem dú- ferro para aprofundar o solo — a relha — e in-
vida uma influência decisiva na forma de obter troduziram o que se chama uma aiveca, uma
alimentos da terra: o arado. pequena peça horizontal colocada atrás da re-
lha para ajudar o agricultor a mover os torrões
A PRIMEIRA VEZ QUE CULTIVÁMOS A TERRA, de terra que aparecem quando se lavra de for-
UTILIZÁMOS PAUS E ENXADAS rudimentares. ma mais eficiente. Esta inovação foi particu-
Usaram-se em áreas férteis, como as margens larmente importante nos solos que não eram
do Nilo, para fazer sulcos nos quais se plantavam muito férteis, pois virar o solo trouxe nutrien-
sementes. Algumas enxadas antigas, tais como a tes para a superfície. É sem dúvida a invenção
mr egípcia, eram pontiagudas e suficientemente mais duradoura da história, pois permaneceu
fortes para limpar o solo rochoso. No entanto, a igual até ao século XVIII, quando em 1730 Jo-
domesticação de animais como os bois tornou seph Foljambe patenteou o conhecido arado de
possível converter a enxada num arado puxado Rotherham: mais triangular, aproveitava mui-
por eles. As primeiras provas da sua utilização to melhor a força de tração que se autilizava na
estão datadas entre 3500 a.C. e 3800 a.C. em Europa, o cavalo. e

117
58 Óculos
Há 33 por cento de probabilidade de estar a ler estas linhas neste
momento graças a esta invenção (ou às lentes de contacto).

D
izem que é a quinta invenção mais óculos. No seu livro mais importante, Kitāb al-
importante da humanidade, e po- -Manāzir ou Livro da Óptica, escrito entre 1011
derão estar certos, quanto mais e 1021, demonstra duas ideias fundamentais: a
não seja devido à sua utilização primeira é que vemos objetos porque refletem
generalizada: cerca de um ter- a luz solar e chega aos nossos olhos, contradi-
ço da população mundial usa óculos. A perda zendo assim nada mais nada menos que Eucli-
da visão tem sido sempre uma maldição para des, que na sua Óptica argumentava que vemos
aqueles que sofrem com ela; já o romano Cícero porque os nossos olhos emanam “raios visuais”
se queixava amargamente de que os seus escra- que são de natureza corpórea. A segunda é que
vos lhe tinham de ler os seus livros e cartas. não são os olhos que são responsáveis pela nossa
Foi o astrónomo e físico árabe Hasan ibn al- visão, mas sim o cérebro.
-Haytam, conhecido na Europa como Alhacen, Alhacen foi o primeiro a sugerir que as lentes
que lançou as bases teóricas para o advento dos polidas podiam ajudar nas deficiências visuais,
mas não foi mais longe do que isso. Em 1240 o seu
livro chegou à Europa, onde foi traduzido para
CORDON

o latim e encontrou uma audiência muito inte-


ressada entre os membros de várias ordens mo-
násticas, que retomaram a pesquisa de Alhacen
onde ele parou. Primeiro vieram os Francisca-
nos: o inglês Robert Grosseteste, no seu tratado
De Iride (Sobre o Arco-íris), escrito entre 1220 e
1235, menciona o uso de lentes para “ler as letras
mais pequenas a distâncias incríveis”.

ALGUNS ANOS MAIS TARDE, EM 1262, O SEU


DISCÍPULO ROGER BACON ESCREVEU sobre
as propriedades de ampliação das lentes. Tudo
parecia estar pronto para a invenção dos óculos
em Inglaterra, mas na realidade isto aconteceu
no norte de Itália, provavelmente em Pisa, por
volta de 1290 e graças a outra ordem religiosa, os
dominicanos.
Temos duas pistas que apontam nessa direção.
Por um lado, o sermão dado pelo dominicano
Giordano da Rivalto na basílica de Santa Maria
Novella em Florença, a 23 de fevereiro de 1305:
“Ainda não passaram vinte anos desde que foi
encontrada a arte de fazer lentes (occhiali), que
fazem ver bem, que é uma das melhores e mais
necessárias artes que o mundo tem”. [...] Vi aque-
le que os fez pela primeira vez, e falei com ele”.
O texto abreviado deste sermão, no qual aparece
esta citação, encontra-se na Biblioteca Medicea
Este fresco de Tommaso da Modena, datado de 1352, é o Laurenciana, uma das mais importantes biblio-
primeiro testemunho gráfico da utilização de óculos. tecas de Florença, que conserva mais de onze mil

118
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manuscritos. Outra pista são
as crónicas do mosteiro domi-
nicano, então anexado à igreja
de Santa Caterina d’Alessan-
dria em Pisa, que menciona
um monge chamado Alessan-
dro della Spina: “Óculos, que
foram feitos primeiro por al-
guém que não estava disposto
a partilhá-los, ele [Della Spi-
na] fê-los e partilhou-os com
todos com um coração alegre e
disposto”. Estas crónicas des-
crevem Alessandro como um
monge modesto, um copista O estudioso muçulmano Hasan ibn al-Haytam, conhecido como Al-Haqeen, desco-
hábil, um miniaturista muito briu os princípios da ótica. A imagem mostra uma estátua dele em Teerão, Irão.
engenhoso e versado em me-
cânica. Não é surpreendente que Da Rivalto co- rem: chapéus onde os penduravam com fios,
nhecesse Della Spina: ambos eram dominicanos uma faixa de couro à volta da cabeça... As pati-
e nativos de Pisa. lhas não apareceram até ao século XVIII.
A primeira pintura que mostra alguém a usar
A INVENÇÃO NÃO DEMOROU MUITO A ESPA- óculos é um fresco (foto à esquerda) na casa
LHAR-SE: em 1301, em Veneza, foram promul- capitular do antigo convento dominicano de
gados regulamentos da guilda para regular a San Nicolò em Treviso, pintado por Tommaso
venda de óculos. Estes primeiros óculos, que fo- da Modena em 1352: mostra o cardeal francês
ram utilizados para corrigir presbiopia ou vista Hugues de Saint-Cher num scriptorium. A
cansada, consistiam em duas lentes biconvexas primeira loja de ótica do mundo foi inaugurada
feitas de quartzo transparente, berilo ou vidro em 1466 em Estrasburgo. No entanto, ninguém
de Murano, embebidas em armações de madei- sabia porque serviam para corrigir defeitos
ra ou chifre de vaca e colocadas diretamente no visuais: tivemos de esperar até 1604, quando
nariz — similar ao que chamamos “salazares” o astrónomo Johannes Kepler publicou a pri-
em Portugal —. Ter de os usar durante muito meira explicação correta da razão pela qual as
tempo fez com que as pessoas começassem a lentes convexas podiam corrigir a presbiopia e
procurar formas de os usar sem medo de caí- as lentes côncavas, a miopia. e

Reprodução em madeira
dos primeiros óculos fei-
GE
tos na Alemanha, data- TT
Y

dos de 1350.

119
59 Internet
Fundamental para a vida moderna, o mais surpreendente desta
invenção é que ainda não descobrimos todo o seu potencial.

D
iz a lenda que teve origem num Licklider, que tinha sido diretor do IPTO entre
projeto militar dos EUA para criar 1962 e 1964.Lick, ou J. C. R., como era popu-
uma rede informática que ligasse larmente conhecido, é uma das grandes figu-
os centros de investigação de de- ras da história dos computadores. Foi também
fesa nos anos 60 nos Estados Uni- psicólogo e, enquanto esteve no IPTO, cunhou
dos. Não foi assim. o termo intergalactic computer network para
Tudo começou em 1965, quando Bob Taylor, se referir a uma rede informática que seria “o
um psicólogo especializado em psicoacústi- principal e essencial meio de troca de informa-
ca que trabalhava para a NASA na Divisão de ção para governos, instituições, corporações e
Controlo e Visualização de Voo Tripulado — a indivíduos”.
agência espacial estava profundamente envol-
vida no programa Apollo — foi contratado pelo E NÃO SÓ ISSO... COMO CHEFE DO IPTO, LICK
Gabinete de Tecnologias de Processamento de INICIOU três dos mais importantes desenvolvi-
Informação (IPTO), que fazia parte da Defense mentos na tecnologia da informação: a criação
Advanced Research Projects Agency, a famosa de departamentos de informática nas universi-
DARPA, historicamente o foco de todo o tipo dades e os conceitos de time-sharing e traba-
de teorias de conspiração. A sua função era fi- lho em rede. E em 1966 publicou um trabalho
nanciar grandes programas de investigação in- visionário, Man-Computer Symbiosis, no qual
formática nas principais universidades. Taylor descrevia a necessidade de uma interacção mais
estava convencido que os computadores, co- simples entre computadores e utilizadores .
municando uns com os outros, deveriam for- Taylor estava no mesmo comprimento de
mar uma grande rede. Esta ideia não era sua; onda. Se os computadores estivessem ligados
tinha sido sugerida por Joseph Carl Robnett numa grande rede, os investigadores que fizes-
SHUTTERSTOCK

A Web levou quatro anos para chegar a


50 milhões de pessoas, enquanto a te-
levisão levou treze anos, e a rádio le-
vou dezoito anos.

120
Os pioneiros da Rede. Sentados, da esquerda para a direita: Robert Taylor, Frank
GETTY

Heart, Roland Bryan e Douglas Engelbart . De pé, da esquerda para a direita: Severo
Ornstein, Barry Wessler, David Walden, Leonard Kleinrock, Wesley Clark, Ben Barker e
Truett Thach. Foto à direita, uma escultura em honra da Internet em Israel. AVISHAI TEICHER PIKIWIKI

sem trabalhos semelhantes em diferentes lo- nal e um procedimento diferentes para aceder
cais poderiam partilhar recursos e resultados. a cada tipo de computador. Isto incomodava
Além disso, não seria necessário gastar grandes muitíssimo Taylor: se tinha de aceder a três
somas de dinheiro para que todas as universi- computadores, tinha de ter três terminais di-
dades tivessem os seus computadores: bastaria ferentes no seu escritório.
concentrar recursos num par de locais onde Herzfeld ficou encantado, e ainda mais quan-
pudessem ser instalados computadores muito do Taylor lhe disse que a rede poderia ser à prova
potentes e aos quais todos pudessem ter acesso de falhas, para que se um computador falhar, os
remoto através de simples terminais. outros poderiam continuar a trabalhar nos de-
mais. Quando Herzfeld perguntou se seria de-
COM ESTAS IDEIAS EM MENTE, TAYLOR FOI masiado difícil de materializar, Taylor disse que
VER O CHEFE DE DARPA, Charles M. Herzfeld, não, eles praticamente sabiam como fazê-lo.
um físico-químico que passou para o mundo Em vinte minutos, Taylor deixou o escritório de
dos computadores depois de ouvir uma pales- Herzfeld com um milhão de dólares debaixo do
tra de um dos pais da informática, o matemá- braço para desenvolver a ARPANET.
tico húngaro-americano John von Neumann. Em outubro de 1969, a primeira mensagem
Taylor disse a Herzfeld que esta rede iria tam- foi enviada entre a Universidade da Califórnia
bém resolver o que ele chamava o problema em Los Angeles e o Stanford Research Institu-
do terminal: o funcionamento de cada com- te (SRI), localizado em Menlo Park, também
putador dependia de quem era o fabricante, na Califórnia. Pouco depois, a Universidade
e porque era impossível para o Departamento da Califórnia em Santa Bárbara e a Universi-
de Defesa — o maior comprador mundial de dade de Utah juntaram-se à rede. Assim, no
computadores — comprar todos os computa- final de 1969, existiam quatro computadores
dores de que precisava a um único fabricante, ligados à ARPANET: a Internet tinha acabado
os trabalhadores tinham de utilizar um termi- de nascer. e

121
Nem todos são fãs
de lasers: James
Bond, por exemplo,
foi quase cortado ao
meio por um laser
de tamanho indus-
trial em Goldfinger
(1964).

60 Laser
IMÁGENES: GETTY

Telecomunicações, medicina e indústria são apenas alguns dos


setores que beneficiaram desta grande invenção.

U
m laser é, na essência, um feixe de que o fotão incidente. Obviamente, se tivermos
luz coerente. Isto significa que não uma população inteira de eletrões excitados no
se espalha rapidamente como a luz mesmo nível, podemos obter uma cascata de
de uma lâmpada, mas permanece fotões, todos com a mesma energia. Daí, o laser.
num feixe a longas distâncias, e Era isto que Einstein tinha descrito. Em 1928,
é também monocromático: enquanto a luz de Rudolf W. Ladenburg confirmou a existência de
uma lâmpada emite em toda a gama visível de fenómenos de emissão estimulada, e, em 1950,
luz, um feixe laser está confinado a uma parte Alfred Kastler propôs uma forma eficaz de in-
muito pequena do espectro. verter a população de eletrões, a bombagem
A pré-história do laser remonta ao tercei- ótica, que foi confirmada experimentalmente
ro trabalho de Albert Einstein sobre a forma dois anos mais tarde.
como a matéria interage com a luz. Publicado
em 1917, intitulava-se Sobre a Teoria Quânti- A 26 DE ABRIL DE 1951, CHARLES HARD TOW-
ca da Radiação, e descrevia a teoria da emissão NES da Universidade de Columbia (EUA) estava
estimulada de radiação. Para o compreender, sentado num banco de jardim em Washington,
temos de compreender como um átomo emite longe de casa. Tinha tido uma reunião porque o
luz: se um dos seus eletrões absorver um fotão Pentágono, que financiava parte do seu trabalho
de luz com a energia certa, ele sobe para um no Laboratório de Radiação, queria melhorar as
nível de energia mais elevado; diz-se que está suas comunicações e sistemas de radar utilizando
excitado. Após algum tempo, cai para um ní- comprimentos de onda mais curtos para alcançar
vel de energia mais baixo e emite um fotão cuja distâncias maiores. Naquela manhã de primavera
energia é exatamente a energia que separa os no parque, Townes inventou uma forma de cons-
dois níveis. Isto é uma emissão espontânea. A truir um dispositivo capaz de estimular a emissão
emissão estimulada significa que se tivermos de microondas amplificadas: o maser. Dois anos
um eletrão num nível superior e lhe enviarmos mais tarde, com a ajuda de dois estudantes de
um fotão com a mesma energia que a diferença pós-graduação, James P. Gordon e H. J. Zeiger,
entre os níveis, o eletrão cairá para o nível in- terminou a construção do primeiro maser da his-
ferior e emitirá um fotão com a mesma energia tória. E patentearam a sua criação, que só amplifi-

122
cava microondas, não o seu trabalho fosse devi-
a luz infravermelha ou damente certificado.
visível. Em 1959 abandonou a
Poderia o princípio Universidade de Columbia
do maser ser aplicado porque estava ansioso por
à luz visível? Para ver patentear a sua invenção
se era possível, jun- e porque acreditava er-
tou-se ao seu cunha- roneamente que tinha de
do, Arthur Leonard construir um laser para a
Schawlow, que tra- patentear. Abandonou a
balhava nos Labora- sua tese de doutoramen-
tórios Bell, a mesma to e foi trabalhar para
empresa que pagava O físico Charles Hard Townes (à esquerda) e o seu assisten- uma empresa privada,
a Townes como con- te James P. Gordon posam com a sua grande criação, o o Grupo de Investigação
sultor. Nos dias de maser, um dispositivo capaz de amplificar as microondas. Técnica (TRG). Gould con-
semana, Schawlow venceu-os a trabalhar no
pesquisava a supercondutividade, que era desenvolvimento de um laser, e até obteve finan-
pelo que Bell lhe pagava e nos fins-de-sema- ciamento da agência de investigação do Depar-
na juntava-se ao seu parente para ver como tamento de Defesa DARPA. Mas depois as coisas
podiam construir um maser de luz visível. Em correram mal: a DARPA declarou o projeto classi-
dezembro de 1958 publicaram os resultados ficado e, porque Gould tinha estado envolvido em
dos seus esforços na revista Physical Review atividades comunistas, foi proibido de participar
e, através da Bell Laboratories, patentearam a no projeto. Sem Gould, TRG perdeu a corrida,
sua ideia . que foi ganha pelos Laboratórios de Investigação
Mas a história não acaba aqui: este foi o ponto Hughes, recentemente fundados. Theodore Mai-
de partida de uma guerra de patentes que durou man operou o primeiro laser em 16 de maio de
trinta anos. 1960, iluminando uma vareta de rubi rosa com
superfícies revestidas de prata com uma lâmpada
PARA COMPREENDER O QUE ACONTECEU, de flash de alta potência.
DEVEMOS RECUAR ATÉ 1957, quando um es- Enviou imediatamente um artigo relatan-
tudante de doutoramento na Universidade de do o seu trabalho à prestigiada Physical Re-
Columbia (EUA), Gordon Gould, descobriu uma view Letters, mas surpreendentemente foi
forma de construir um ressonador ótico, uma rejeitado. Maiman apostou e submeteu-a à
peça fundamental sem a qual Nature — uma revista ainda
é impossível obter um feixe de mais seletiva do que a ante-
laser estreito, coerente e in- rior — mas os editores acei-
tenso. Já tinha feito algo seme- taram-na e esta foi publicada
lhante em 1956 para Townes, a 6 de agosto. Porém a sua
quando propôs como realizar empresa não ia esperar pela
a bombagem óptica para o seu publicação, e a 7 de julho de
maser. Descreveu o ressona- 1960 realizou uma conferên-
dor no seu livro de trabalho cia de imprensa anunciando
— para além das suas outras a descoberta. Imagine-se a
possíveis aplicações na espec- celeuma que se seguiu, co-
trometria, interferometria, meçando-se a falar do raio
radar e fusão nuclear — sob o da morte.
título Cálculos aproximados Gould apresentou um pe-
sobre a viabilidade de um LA- dido de patente em abril de
SER. Amplificação da luz por 1959. O Instituto Americano
emissão estimulada de ra- de Patentes negou-o porque
diação. Esta é a primeira vez os Laboratórios Bell tinham
que o acrónimo laser aparece. depositado a sua patente laser
Gould sabia o que tinha entre mais cedo. Após três décadas
mãos, por isso dirigiu-se a um Gordon Gould levou vinte e oito anos para de litígio, Gould conseguiu fi-
notário para que, pelo menos, conseguir o reconhecimento que merecia. nalmente obter a sua. e

123
61 Máquina
a vapor
A Revolução Industrial mudou o futuro do Homo sapiens, impulsio-
nado por um engenhoso motor que pôs de lado a energia animal.

O
pai da máquina a vapor foi um O Amigo do Mineiro. O engenho revelou-se
huguenote francês que era pro- pouco eficaz e perigoso porque a alta pressão
fessor de matemática na Prússia do vapor fazia saltar as tubagens e caldeiras. Só
no final do século XVII: Denis tinha de ser aperfeiçoado, e a melhoria não veio
Papin. As suas ideias atraíram a da equipa inglesa, mas sim de Papin.
atenção da sociedade científica mais importan- Tendo-se tornado Fellow da Royal Society e
te da época, a Royal Society, que o convidou a estabelecido em Londres, ouviu falar da inven-
apresentá-las em Londres . ção de Savery. Em 1707 tinha concebido uma
Entretanto, um quinquilheiro sem prepara- caldeira de alta pressão com um forno incorpo-
ção científica, de Darmouth chamado Thomas rado que acionava as pás de um navio. No ano
Newcomen estava em parceria com Thomas seguinte, pediu quinze libras ao secretário da
Savery, um engenheiro militar que tinha aca- Sociedade Real para realizar uma experiência
bado de patentear uma bomba de mina movida relacionada com a sua invenção. A resposta foi
a vapor. Savery estava plenamente consciente contundente: só lhe seria dado o dinheiro se lhe
da importância da sua invenção, e assim o fez fosse garantido de antemão o sucesso. O pobre
constar no seu pedido de patente: chamou-lhe Papin ficou sem o dinheiro e sem o seu motor e,
algum tempo depois, morreria em Londres na
mais absoluta miséria.
GETTY

AGORA ERA A VEZ DE NEWCOMEN. Tomou


conhecimento do desenho de Papin e decidiu
modificá-lo. Depois de muito trabalho duro,
que culminou em 1712, Newcomen colocou em
funcionamento a sua máquina atmosférica,
também conhecida como máquina de fogo. O
problema era a sua fraca eficiência: a bomba de
Newcomen, embora engenhosa, não era capaz
de extrair água das minas com rapidez suficien-
te, desperdiçava muito carvão e não podia ser
aplicada a outra coisa que não fosse bombear.
No entanto, a favor deste quinquilheiro pouco
instruído, deve dizer-se que em cinquenta anos
ninguém foi capaz de melhorar a sua máquina.
E depois veio o ano de 1765. Passaram oito
anos desde que James Watt, um engenheiro me-
lancólico e incansável, tinha trabalhado na ofi-
cina de reparação da Universidade de Glasgow
(Escócia). Na sala de trabalho descansava uma
maqueta à escala da máquina de Newcomen, que
era utilizada pelos professores nas suas demons-
A máquina a vapor de Watt foi a primeira verdadeiramente prá- trações. Com ela à sua frente, Watt ponderava
tica e impulsionou a Revolução Industrial. como melhorar o seu desempenho. As modifi-

124
CORDON

O motor Stirling
N os primeiros anos do século XIX ,os pro-
prietários industriais começaram a exigir um
maior desempenho das suas máquinas, forçan-
do-as a trabalhar a pressões cada vez mais ele-
vadas, com um maior risco de explosões. A morte
e a mutilação eram comuns nas fábricas que uti-
lizavam o omnipresente motor a vapor. Foi então
que um clérigo escocês, Robert Stirling, movido
pela tragédia, decidiu usar algum do tempo que
usava para os seus sermões, para criar um motor
O francês Denis Papin demonstra o seu motor a vapor
diante de testemunhas no final do século XVII. de alto desempenho que funcionasse a pressões
mais baixas. Assim nasceu o motor de Stirling.
cações por ele introduzidas, embora à primeira É composto por dois cilindros, com um pis-
vista possam parecer menores, foram cruciais.
tão em cada um, e um regenerador que Stirling,
Por um lado, fez com que a condensação do va-
como um bom escocês, batizou de economiza-
por ocorresse fora do pistão — no condensador
— mantendo assim o pistão permanentemente dor. É a peça chave do motor e está localizada
quente e o condensador sempre frio. Por outro na conduta que une os dois cilindros; serve pa-
lado, aumentou a pressão nas etapas iniciais da ra aquecer o gás frio e arrefecer o quente. Mas
expansão do pistão para minimizar a inevitável este motor tinha os seus inconvenientes, es-
perda de vapor. sencialmente três: um, a forma subtil e delicada
Mas a verdadeira revolução veio quando Watt como os dois pistões são acoplados por meio
se perguntou se ela poderia ser utilizada para de um sistema complicado de engrenagens e
mais do que apenas o abastecimento de água cambotas; dois, a perda de eficiência do motor
das minas. Tudo o que seria necessário era devido ao atrito, pois tinha demasiadas peças
converter o movimento de subida e descida da
móveis; e três, a dificuldade em encontrar um
bomba num movimento circular. A descober-
regenerador quase perfeito.
ta das chamadas engrenagens sol e planeta,
na qual uma roda dentada girava em torno de Todos estes impedimentos técnicos, junta-
outra como um planeta à volta do sol, foi feita mente com o aparecimento anos depois dos
por um dos seus assistentes, William Murdock. motores de combustão interna (ver invenção
nº 82: Carro) confinaram o motor não poluen-
COM ESTA NOVA TRANSMISSÃO, A BOMBA te, silencioso e autónomo de Stirling à obscu-
DE ÁGUA tornou-se a máquina revolucionária ridade do esquecimento, mesmo ao lado dos
que deu início à Revolução Industrial. Em 1795 seus sermões.
Watt tinha-a instalado em praticamente todos
GETTY

os processos de manufatureiros de Inglaterra. A


sua fábrica de Birmingham tornou-se o mensa-
geiro de uma nova era, e não apenas por causa
da máquina a vapor.
Duas transformações silenciosas, mas profun-
das, nasceram aí. Uma, de James Watt; a outra,
de Murdock. Watt introduziu mudanças enge-
nhosas na construção dos seus motores, a fim de
maximizar a taxa de produção. Dividiu os dife-
rentes trabalhos em outros mais específicos, com
trabalhadores dedicados exclusivamente a eles,
em algo parecido com uma linha de montagem
primitiva. Pela sua parte, Murdock transformou
as escuras noites inglesas em dias brilhantes. Foi
o primeiro a tornar a iluminação a gás uma em-
presa económica e tecnologicamente viável. e

125
62 Moinhos
Impulsionados por água ou
por vento, permitiram às
SHUTTERSTOCK
civilizações de todo o mundo
moer cereais durante milénios.

S
e existe alguma substância indispensável à
vida, é a água. Os seres humanos precisam
dela para beber, lavar, irrigar os campos...
E isto obrigou-os a procurar formas de a
extrair, transportar e armazenar. Trans-
portar água de um lugar para o outro significa
transpor diferenças de altura, algo que só pode ser
feito de duas maneiras: tirando partido de qual-
quer diferença de altura ou bombeando. Há sécu-
los que se sabe como elevar água, quer através de
uma corrente de conchas, quer com o chamado
cilindrro de Arquimedes, um tubo cheio de água
enrolado à volta de um cilindro como a rosca de
um parafuso — daí o seu nome — que, ao rodar,
fazia a água subir ao longo do comprimento do
tubo. Diz-se que Arquimedes o inventou por volta
do século III a.C. durante a sua estadia no Egito, e
aparentemente foi utilizado para extrair água da
primeira doca seca do mundo. Desta forma, con-
seguiu satisfazer a paixão por navios gigantescos
do Rei de Alexandria Ptolomeu IV, um homem
de caráter odioso. Tanto a corrente como o cilin-
dro eram conduzidos por escravos ou animais, e
é curioso que ninguém tenha pensado em usar a
força da corrente dos rios para o fazer.

AS NORAS OU RODAS DE água, um nome que


vem do árabe na’ûrah, têm a sua origem num
dispositivo muito antigo cuja forma peculiar lhe
deu o nome de tympanum . Utilizada para drena-
gem no Egito — ainda hoje — consistia numa roda
com furos para permitir a entrada de água e a sua
armazenagem no centro da roda. Evidentemen-
te, quando a roda girava, a água saía dos canos à
altura do eixo.
O segundo uso que foi dado à roda d’água foi
para moer grãos. O pão era o alimento principal
dos povos antigos e a obtenção da farinha neces-
sária era um processo lento e laborioso: o grão
era colocado entre duas pedras planas e a de ci-
ma era movida incessantemente para trás e para
a frente. Uma pessoa — geralmente uma jovem
escrava — moeria grão suficiente para fazer pão

126
GETTY
para oito pessoas. Em lares maiores, todo um
exército de mulheres passaria o dia inteiro a des-
lizar uma pedra sobre a outra. Com a construção
de moinhos em forma de ampulheta, como o que
foi descoberto em Pompeia, o som familiar das
pedras de moagem deixou de se ouvir nas casas,
mas foi com o advento do moinho de água que a
moagem assumiu proporções industriais. Nos úl-
timos anos do Império Romano, o abastecimento
de farinha de Roma provinha de uma bateria de
moinhos de água localizados no monte Janículo,
o local do famoso bairro de Trastevere atual. Co-
nhecidos como moinhos de Vitrúvio em home-
nagem ao homem que os descreveu pela primeira
vez, consistiam numa roda de pás ligada por um
eixo a uma roda dentada acoplada a uma roda ho-
rizontal que movia a pedra de moagem.

APESAR DA SUA UTILIDADE, O MOINHO DE


ÁGUA TINHA UM PROBLEMA GRAVE que era di-
fícil de resolver: precisava de um ribeiro de água
Os sistemas de impulsão humanos para elevar água — esquerda
nas proximidades. Não é, portanto, surpreen-
— foram substituídos por moinhos de vento — direita.
dente que o moinho tenha sido inventado num
país tão árido como a antiga Pérsia. Também foi tradição anterior que os situa por volta de 644,
utilizado para moer grãos, e temos referências a durante o reinado do segundo califa muçulmano
eles em duas regiões: Sistan, no sudeste do Irão Omar I, que foi um dos inimigos mais acérrimos
atual, e Khorasan, no nordeste. Hoje, provavel- de Maomé até à sua conversão ao Islão.
mente não o reconheceríamos como um moinho, O moinho de vento espalhou-se pela Ásia e Eu-
pois as seis ou doze lâminas que continha roda- ropa: no norte da China encontramos um moi-
vam horizontalmente em torno de um eixo ver- nho de vento horizontal no século XIII, enquanto
tical. Conhecemo-los pelos escritos do geógrafo que o moinho de vento de eixo horizontal chegou
persa Alistacri, por isso pensa-se que aparece- ao sul da Europa no século XI, através do al-An-
ram por volta do século IX, embora exista uma daluz e do Mar Egeu. e
SHUTTERSTOCK

Não há silhueta mais reconhecível


nas paisagens de La Mancha do que
a dos moinhos de vento, como estes
em Mota del Cuervo (Cuenca).

127
63 Computador
Quando as máquinas passaram de realizar o nosso trabalho físico para
realizar também o intelectual, nasceu uma nova era: a da informática.
GETTY

Os operadores programavam o ENIAC, um dos primeiros computadores, ligando cabos e ajustando interruptores.

N
a Inglaterra do século XVII, um pelo militar e inventor alemão Johann Helfrich
computador era um ser humano. von Müller e pôs-se a trabalhar para o melhorar,
A sua função era realizar opera- mas nunca o construiu. O mesmo aconteceu com
ções aritméticas, repetindo-as o seu outro desenho, a máquina analítica, a coisa
vezes sem conta, a fim de com- mais próxima do computador de hoje, cujo de-
pilar tabelas matemáticas úteis a engenheiros, senho foi concluído em 1835. O que é certo é que
arquitetos, astrónomos, militares... Por isso, no entre as milhares de páginas de notas e esboços
final desse século, Napoleão encarregou o mate- que deixou, encontramos os componentes que
mático Gaspard de Prony de elaborar as tabelas formam um computador moderno: uma unida-
trigonométricas e logarítmicas mais precisas al- de lógica que realiza os cálculos — a CPU —, uma
guma vez realizadas. De Prony decidiu dividir os estrutura de controlo com instruções — a lingua-
cálculos mais complexos em cálculos mais sim- gem de programação — e um local para guardar
ples, para que pudessem ser feitos por pessoas os cálculos — a unidade de memória.
menos qualificadas. Uma das bases dos compu-
tadores acabava de nascer. A PARTIR DE ENTÃO, APARECERAM VÁRIOS
Isto inspirou certamente o britânico Charles MODELOS de computadores analógicos, mas
Babbage a ir um passo mais longe: e se substi- todos tinham o mesmo inconveniente: eram
tuíssemos os seres humanos por máquinas para concebidos para fazer um cálculo específico, e se
o fazer? Babbage é frequentemente referido como se quisesse que fizessem outro, era preciso mu-
o pai da informática, embora as suas máquinas dar ou substituir engrenagens e circuitos .
nunca tenham passado da prancheta de dese- O conceito do computador moderno surgiu
nho. O mais próximo que chegou de construir em 1936. Então um jovem matemático chamado
um computador mecânico foi com a sua máqui- Alan Turing chegou à conclusão de que um com-
na diferencial, concebida para calcular um tipo putador teria de ser capaz de resolver qualquer
de funções matemáticas chamadas polinomiais. problema que pudesse ser traduzido em termos
Babbage descobriu um modelo teórico concebido matemáticos e reduzido a uma cadeia de opera-

128
ções lógicas utilizando apenas um código biná- desejariam para a sua casa, 167 m2, foi posto em
rio (zero-um ou certo-errado). Tudo muito ao funcionamento a 10 de dezembro de 1945. Con-
estilo de De Prony. sumia 174 quilowatts e dizia-se que, cada vez
A 12 de maio de 1941, em Berlim, o engenhei- que se ligava, as luzes de Filadélfia tremeluziam
ro Konrad Zuse punha em marcha o computa- por alguns momentos. Não sabemos se isto é
dor que tinha acabado de construir na sala dos verdade, mas fazia subir a temperatura na sala
fundos da sua casa. Tinha-o financiado com onde foi colocado para 50ºC.
uma pequena subvenção do governo alemão, Mas, insistimos, foi ENIAC o primeiro compu-
e utilizou relés telefónicos: batizado de Z3, foi tador da história? Aparentemente, não. Havia
o primeiro computador digital eletromecânico outro antes: o ABC, um acrónimo para Atana-
controlado por um programa. Zuse requereu soff-Berry Computer, que foi desenvolvido por
novamente fundos para substituir os relés por John Vincent Atanasoff e o seu assistente Cliff
componentes eletrónicos, mas o governo recu- Berry em 1942 na Iowa State University (EUA).
sou o financiamento porque “não era importan-
te para a guerra”. O Z3 foi totalmente destruído EM 19 DE OUTUBRO DE 1973, E APÓS UM DOS
a 21 de dezembro de 1943 durante um bombar- JULGAMENTOS mais longos alguma vez realiza-
deamento dos Aliados em Berlim. dos nos Estados Unidos — 135 dias de julgamento
Enquanto isto acontecia na Alemanha, nos e 77 testemunhas — o juiz federal Earl R. Larson
arredores de Londres — em Bletchley Park— e decidiu: “Eckert e Mauchly não inventaram o
no mais estrito segredo, uma equipa de cientis- computador eletrónico automático, mas deduzi-
tas sob a direção de Turing estava a construir um ram-no do trabalho do Dr. John Vincent Atana-
computador eletrónico, digital e programável. soff”. Aparentemente, Mauchly tinha-se encon-
Chamava-se Colosso e o seu objetivo era decifrar trado com Atanasoff em várias ocasiões entre de-
o código Enigma, a máquina cifradora utilizada zembro de 1940 e junho de 1941, o que lhe tinha
pelos militares alemães, seus inimigos na guer- dado boas ideias para a construção de elementos
ra. Foi o primeiro computador, tal como Turing essenciais do ENIAC. A cobertura mediática desta
o definiu? Não, porque não conseguia resolver decisão teria sido enorme, se o escândalo Water-
todos os problemas. Foi-o outro computador, gate não tivesse rebentado na altura.
o ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Será que tudo acaba aqui? Como nos bons
Computer? thrillers, há uma última reviravolta: em 1988,
Desenvolveram-no secretamente para o Exér- o mexicano Raúl Rojas, nascido na Alemanha,
cito dos EUA, o físico John Mauchly e o enge- provou que o Z3 foi realmente o primeiro com-
nheiro elétrico John Presper Eckert da Univer- putador, uma vez que preenchia todos os cri-
sidade da Pensilvânia em 1945. Foi concebido térios da Turing. O problema é que só temos
para fazer os cálculos complexos que os cientis- acesso aos seus planos, e nem todos estão con-
tas necessitavam para construir uma bomba de vencidos de que tenha sido útil para qualquer
hidrogénio, e foi programada por seis mulheres. problema. As espadas sobre quem inventou o
Com um custo de 800.000 dólares, um peso de primeiro computador moderno continuam a
30 toneladas e ocupando um espaço que muitos esgrimir-se. e
GETTY AGE

John V. Atanasoff (à esquerda), numa conferência de imprensa para assinalar o décimo aniversário da decisão judicial
que o reconheceu oficialmente como o criador do primeiro computador digital eletrónico, o ABC (à direita).

129
64 Pilha
Ofereceu pela primeira vez um fluxo estável de eletricidade, a
centelha da era elétrica em que vivemos hoje.

A
lessandro Giuseppe Antonio ram-no a tornar-se padre ou advogado. Mas
Anastasio Volta nasceu a 18 de em meados do século XVIII houve algo que
fevereiro de 1745, em Como encheu os salões aristocráticos de especula-
(Itália), numa família lombarda ção: a eletricidade. E Volta, aos quinze anos
aristocrática intimamente ligada de idade, decidiu que o que realmente queria
à Igreja. Com tal bagagem, não é surpreen- estudar era física.
dente que tenha estudado Letras Clássicas A sua paixão era tal que a 18 de abril de 1769
na Escola de Retórica dos Jesuitas de Como. publicou um pequeno tratado intitulado Sobre
Tanto professores como familiares pressiona- a força de atração do fogo elétrico. Nele fala-
va do que os físicos sempre procuraram: uma
visão unificada dos fenómenos aparentemente
A bateria de não relacionados. Neste caso, Volta formulou
Volta demons- uma visão única de todos os fenómenos elétri-
trou que a pre- cos até agora conhecidos... com pouco suces-
sença de teci- so. Inclinado a decifrar a verdadeira natureza
do muscular da eletricidade, Volta pouco depois construiu
animal não era um gerador eletrostático que produzia eletri-
necessária pa- cidade sem a necessidade de esfregar cons-
ra produzir tantemente uma vareta com um pedaço de lã,
uma corrente
como era então feito: chamou-lhe um eletró-
elétrica.
foro perpétuo.

ENTRETANTO, NO INÍCIO DA DÉCADA DE


1780, UM COMPATRIOTA seu chamado Luigi
Galvani divertia-se realizando experiências
no seu laboratório. Um dia reparou que uma
perna de sapo dissecada se contraiu quando
colocada perto de um gerador eletrostático.
Intrigado, Galvani continuou a investigar este
fenómeno espantoso. Batizou a sua nova des-
coberta de eletricidade animal, que mais tar-
de se conheceria como galvanismo.
O trabalho que Galvani publicou em 1791
sobre o efeito da eletricidade na perna deste
sapo atraiu a atenção de Volta. Na esteira uni-
ficadora do seu primeiro trabalho científico,
ele tinha a certeza de que não havia nada de
extraordinário nas contrações do membro do
batráquio, que não era um tipo de eletricida-
de diferente daquela já conhecida. Em termos
AGE simples, os nervos e músculos comportaram-
-se como um aparelho ultra-sensível capaz
de detetar correntes elétricas muito fracas,
muito mais do que aquelas mensuráveis com
os instrumentos do seu tempo. Isto levou-o
a uma amarga controvérsia com Galvani, que

130
GETTY

Galvani e a ressurreição
dos mortos
P ara Galvani, a eletricidade animal era causada
pelo próprio organismo, em particular o mús-
culo localizado na pélvis. Em caso afirmativo, qual
era a relação entre a eletricidade e a vida? Se esta
pergunta inspirou Mary Shelley a escrever o seu
Frankenstein, houve alguns cientistas que levaram
este caminho muito a sério. Um deles foi o neto de
Galvani, Giovanni Aldini, que fez uma digressão
pela Europa com um espetáculo sinistro: a eletri-
ficação de um homem morto. A sua fama atingiu
o auge a 18 de janeiro de 1803, quando no Royal
College of Surgeons, em Londres, eletrocutou o
cadáver de George Forster, de vinte e seis anos de
idade, que tinha sido condenado a ser enforcado
por assassinar a sua mulher e filho.
Aldini tomou posse do cadáver e nesse mesmo
dia preparou a sua experiência perante os olhos
de vários médicos e curiosos membros do públi-
co. Começou por colocar elétrodos no seu rosto:
com o choque elétrico, o maxilar contraiu-se e o
olho esquerdo abriu. Com diferentes elétrodos
A 20 de março de 1800, Volta escreveu uma carta ao pre-
espalhados pelo seu corpo, Aldini fez o executa-
sidente da Royal Society of London para anunciar a sua do mexer os seus braços, encurvar-se até a pa-
invenção, a primeira bateria elétrica da história. recer respirar. Mas Aldini guardou o melhor para
o fim: ele colocou um elétrodo no ouvido, outro
era inflexível em que se tratava de um fenó- no ânus e abriu o circuito. O corpo sem vida de
meno totalmente novo. Mas Volta quis provar Forster começou a mover-se como se estivesse
que estava errado e embarcou numa série de a dançar uma dança macabra. Alguns pensavam
experiências que culminaram na invenção da que Aldini iria realmente trazer o assassino de vol-
primeira pilha elétrica prática, que descreveu
ta à vida; até as atas revelavam que, se isso acon-
numa carta dirigida à prestigiosa Royal So-
tecesse, o condenado seria enforcado de novo.
ciety em Londres, a 20 de março de 1800.
Mas Aldini não partilhava esta opinião: para ele, a
A BASE DA SUA PILHA ERA UMA CÉLULA DE eletricidade “exercia uma influência considerável
DIFERENTES MATERIAIS METÁLICOS, tais sobre o sistema muscular e nervoso”, mas de for-
como folha-de-flandres e zinco, separados ma alguma afetava o coração.
por discos de cartão humedecido e ligados em
GETTY

série .Uma combinação destas células consti-


tuía a bateria, cuja potência dependia do nú-
mero de células utilizadas: o primeiro gerador
de corrente contínua da história, foi monta-
do com trinta destas células. Não só isso, mas
Volta conseguiu também demonstrar duas
coisas muito importantes: que a corrente elé-
trica estava relacionada com as reações quí-
micas dos materiais pelos quais a eletricidade
passava, e que certos tipos de metal eram mais As experiências de Galvani com pernas de rãs
eficientes do que outros em facilitar a passa- levaram-no a concluir que existia eletricidade animal.
gem de corrente elétrica através deles.e

131
65 Rádio
O meio de comunicação de massas mais apreciado pelo público foi, na
sua origem, a demonstração prática de importantes teorias físicas.

U
m dia, em 1888, um professor de extremo da sala de aula e, como o génio da Es-
física alemão chamado Heinrich cócia tinha previsto, Hertz provocou uma faísca
Rudolf Hertz estava a ensinar aos no recetor quando ligou o emissor. Após a ma-
seus alunos a confirmação expe- nifestação, um dos seus alunos perguntou-lhe
rimental das teorias de um colega se isto alguma vez seria de utilidade prática. Ao
escocês, James Clerk Maxwell, sobre o eletro- que Hertz respondeu: “Absolutamente não. Es-
magnetismo. Maxwell, após um soberbo esforço ta é apenas uma interessante experiência labo-
de síntese, tinha criado uma teoria que descre- ratorial que prova que Maxwell tem razão. Não
via todos os fenómenos elétricos e magnéticos vejo qualquer aplicação para esta misteriosa e
numa única formulação. Como consequência da invisível energia eletromagnética”.
sua teoria, Maxwell tinha previsto a existência Hertz era um grande físico, mas um péssi-
de ondas que se propagavam à velocidade da mo profeta. Se ele não tivesse morrido em 1894,
luz. Além disso, de acordo com ele, a própria luz quando tinha apenas trinta e seis anos de idade,
era uma onda eletromagnética. teria percebido o seu erro. Pois, precisamente no
Nessa manhã, Hertz trouxe para a sua sala ano seguinte, um italiano de vinte anos, Gugliel-
de aula um par de instrumentos desenhados e mo Giovanni Maria Marconi, utilizando o instru-
construídos por ele: um emissor e um recetor de mento concebido por Hertz, transmitiu e recebeu
ondas eletromagnéticas. Colocou cada um num uma mensagem na casa do seu pai em Bolonha.
SHUTTERSTOCK
Começava a era da telegrafia sem fios.

AO MESMO TEMPO QUE MARCONI, O


FÍSICO RUSSO ALEXANDER Stepanovi-
ch Popov fazia o mesmo no seu labora-
tório em São Petersburgo. Um dia, em
maio de 1895, enviou e recebeu um sinal
a quase 600 metros de distância, e em
março de 1897 equipou o cruzador russo
África com um recetor de rádio enquan-
to instalava um semelhante em terra,
em Kronstadt. Em 1900, ficou provada a
necessidade de tais instalações: o navio
de guerra Almirante-General Apraksin
ficou preso no gelo no Golfo da Finlân-
dia, e, graças ao sistema de rádio Popov,
o navio conseguiu contactar estações
nas ilhas Hogland e Kutsalo, a 45 quiló-
metros de distância, que enviaram uma
mensagem ao quebra-gelo Ermak.
Mas havia ainda um problema a resolver:
se houver apenas um transmissor, nada
acontece, mas quando há muitos, o rece-
tor capta os sinais de todos eles, tornando
a comunicação impossível. Marconi tra-
balhou neste problema e em abril de 1900
obteve a histórica patente inglesa 7777 para
o seu seletor de frequências. Desta forma,

132
CORDON
diferentes transmissores emitiriam com diferen-
tes comprimentos de onda — frequências — e o
recetor ajustaria o circuito seletor para escolher
uma ou outra. Por outras palavras, ele descobriu o
mostrador dos nossos aparelhos de rádio.
Em 12 de dezembro de 1901 Marconi recebeu
uma mensagem simples ao largo da costa da Ter-
ra Nova: a letra S em código Morse. O importante
não era a mensagem em si, mas que tinha sido
transmitida do outro lado do Atlântico, a partir
da Cornualha em Inglaterra. Quatro dias mais O salvamento do navio russo Almirante-General Apraksin em 1900
tarde, a 16 de dezembro, a façanha de Marconi foi o primeiro exemplo prático da utilidade da rádio.
foi noticiada na imprensa mundial. Até então, os
cientistas acreditavam que tal evento era impos- distância. Quatro anos mais tarde, em 1910, foi
sível: uma mensagem não podia ser enviada para emitido o primeiro programa de rádio diário da
além do horizonte, pois os sinais propagam-se Charles Herrold School of Radio Broadcasting
em linha reta e perder-se-iam no espaço devido à em San Jose, Califórnia. e
curvatura da Terra. O facto de poderem realmen-
te fazê-lo deve-se à camada da atmosfera conhe-
cida como ionosfera, a uma altitude de cerca de
150 km. Esta camada foi prevista pelo físico inglês Marconi não foi o
Oliver Heaviside em 1902, mas a sua existência
não foi confirmada até 1923.
inventor da rádio
E QUANTO À TRANSMISSÃO DA VOZ HUMANA?
MARCONI COMEÇOU A TRABALHAR NELA em
A 21 de junho de 1943, o Supremo Tribunal
dos EUA decidiu, numa decisão sem pre-
cedentes, que não era verdade que Marconi se
1913, mas um engenheiro e militar de Castellón, adiantara a todos com as suas patentes de tele-
Julio Cervera, tinha-o conseguido onze anos an- grafia sem fios. O caso era muito claro: a patente
tes. Durante três meses, em 1898, Cervera tinha de Marconi para o seletor de frequências, essen-
estado a trabalhar no laboratório de Marconi. No
cial para escolher a emissão desejada no mos-
seu regresso a Espanha, pôs-se a trabalhar e a 31
trador, foi arquivada em abril de 1900. Alguém
de agosto de 1899 solicita a sua primeira patente
em telegrafia sem fios. Cervera criou a segunda se tinha adiantado, um dos inventores mais pe-
rede permanente no mundo, entre Tarifa e Ceu- culiares e mitologizados da história, um homem
ta — a primeira tinha sido instalada por Marconi extravagante de quase dois metros de altura, com
entre a Ilha de Wight e Bournemouth — e fez a uma voz aguçada e o porte de uma cegonha: Ni-
primeira transmissão de voz em 1902: durante kola Tesla. A sua patente 645 576 para um dispo-
quarenta dias comunicou Jávea com Ibiza. sitivo semelhante foi registada a 2 de setembro
Entretanto, do outro lado do Atlântico, o de 1897 e aceite a 20 de março de 1900. Tesla
inventor americano e auto-proclamado pai da embarcou numa série de disputas legais que aca-
rádio Lee De Forest desenvolvia a primeira vál- bou por perder. E a Academia Sueca das Ciências,
vula de vácuo industrialmente útil da história
ignorando a lei não escrita que o descobridor é
em 1906. Inaugurou assim a era da eletrónica:
quem primeiro publica, atribuiu o Prémio Nobel
chamou-lhe de tríodo, porque tinha três liga-
ções, três pernas. Foi uma grande invenção que da Física a Marconi em 1909.
tornou possível a rádio, a telefonia de longa
GETTY

Guglielmo Marconi.
distância e a televisão.
Na véspera de Natal desse ano, um canadiano
chamado Reginald Aubrey Fessenden transmi-
tiu de Brant Rock (Massachusetts, EUA) o pri-
meiro programa de rádio do mundo: um par de
canções, a leitura de um poema e uma saudação
de Natal escrita por si próprio. A emissão foi
ouvida por operadores de rádio num navio que
navegava a várias centenas de quilómetros de

133
IMÁGENES: GETTY
A televisão é muito mais do
que mero entretenimento.
Aqui, um dos pais da inven-
ção, Vladimir Zworykin (à es-
querda), e o Dr. John Biesele
olham para as células cance-
rígenas, ampliadas num ecrã
de televisão a cores, em julho
de 1958.

66 Televisão
Tem menos de um século, mas a “caixa mágica “é uma das inven-
ções que mais tem influenciado e influencia sociedade de hoje.

D
devido à nossa paixão pela caixa relho de televisão. O seu dispositivo utilizava o
mágica, devemos recordar e ce- chamado disco de Nipkow, que foi inventado em
lebrar a data de 2 de outubro de 1884 pelo alemão Paul Julius Gottlieb Nipkow:
1925. Porquê? Nesse dia, o enge- um disco plano e circular com uma série de pe-
nheiro escocês John Logie Baird quenas perfurações em forma de espiral, que vão
conseguiu transmitir a imagem de um boneco de do centro para o exterior. Ironicamente, Nipkow
ventríloquo chamado Bill em Londres através de deixou a patente expirar quinze anos depois de
um sistema mecânico de televisão da sua inven- a ter requerido, porque ninguém mostrou qual-
ção montado no sótão da sua casa. Foi um feito quer interesse nela.
e tanto, considerando a escassez de materiais e A televisão eletromecânica da Baird era mui-
meios à sua disposição. O aparelho nada tinha a to semelhante a uma câmara escura fotográfica,
ver com a ideia que todos nós temos de um apa- mas com o disco de Nipkow situado no orificio

134
de entrada. O próprio Nipkow esteve numa Estados Unidos em 1919. Zworykin tinha uma
das suas demonstrações: “Centenas de pessoas vantagem: o seu professor e mentor tinha sido o
aguardavam pacientemente para ver a televisão próprio Boris Rosing. Na primavera de 1930, foi
pela primeira vez. Estava a ficar nervoso a cada contratado pela Radio Corporation of America
minuto. Naquele preciso momento pude ver, (RCA), que o colocou à frente de uma equipa de-
pela primeira vez, o que eu tinha idealizado há dicada de corpo e alma à televisão. A sua chegada
quarenta e cinco anos atrás”. foi como uma dádiva de Deus: em poucos meses
tinham construído um recetor de raios catódicos
É CLARO QUE UM SISTEMA MECÂNICO NÃO com sessenta linhas de definição.
ERA A MELHOR OPÇÃO para a transmissão de Mas a parte mais complicada ainda faltava:
imagem. Anos antes, em 1908, o engenheiro esco- substituir o transmissor, que ainda era mecâ-
cês Alan A. Campbell-Swinton publicou um artigo nico, por um tubo de raios catódicos. Assim,
na revista científica Nature descrevendo como se Zworykin decidiu correr um risco e utilizar um
poderia alcançar a visão elétrica distante, utili- baseado em novos princípios, que tinham si-
zando um instrumento inventado pelo russo Boris do patenteados anos antes pelo já mencionado
Rosing no ano anterior: o tubo de raios catódicos, Tihanyi. As experiências começaram em abril
que nada mais é do que um canhão de eletrões de 1931 e, depois de prometedores resultados
que pode ser dirigido para onde se quiser, usando experimentais, batizou o novo tubo da câma-
dois campos magnéticos perpendiculares um ao ra como um iconoscópio. Em junho de 1934,
outro. Isto abriu o caminho para inventores em Zworykin e o licenciado da RCA Telefunken
vários países começarem a trabalhar em busca da apresentavam a televisão ao mundo. e
primeira televisão eletrónica do mundo: os mais
proeminentes foram Kálmán Tihanyi na Hungria,
Philo Farnsworth nos Estados Unidos e Kenjiro
Takayanagi no Japão.
No final, o tubo de televisão moderno nasceu
no laboratório do russo naturalizado americano
Vladimir Kozmich Zworykin, que tinha estado
a investigar a televisão desde que chegou aos

O engenheiro escocês John Logie Baird demonstrou a sua


invenção mais famosa, a televisão, aos membros da Insti-
tuição Real e à imprensa técnica utilizando manequins de
ventríloquo.

135
67 Satélite
Nascido durante a Guerra Fria, foi o Sputnik 1 que abriu o
caminho para o espaço e a exploração do nosso sistema solar.

E
m 4 de outubro de 1957, o mundo intei- esforços e esperanças em encontrar um meio
ro ficou estupefacto com um aconte- de permitir à humanidade viajar para o espaço.
cimento espantoso: a União Soviética O primeiro é o russo Konstantin Eduardovich
tinha acabado de lançar com sucesso o Tsiolkovsky, cerca de 1883; o segundo, cerca de
primeiro satélite artificial da história, 1909, o americano Robert Hutchings Goddard;
uma esfera brilhante de alumínio com pouco e finalmente, por volta de 1923, o alemão Her-
mais de meio metro de diâmetro, pesando cer- mann Julius Oberth.
ca de oitenta quilos e com quatro antenas em Dois outros nomes devem ser acrescentados:
forma de cauda de quase três metros de com- Wernher von Braun, um seguidor da escola
primento. Era o Sputnik 1, a palavra russa para Oberth, e Sergei Pavlovich Korolev, um discí-
“companheiro de viagem”. pulo de Tsiolkovsky. De facto, foi Korolev que
Os inícios desta proeza encontram-se na foi o arquiteto da vitória espacial russa com o
China, há cerca de mil anos, quando a pólvora lançamento do Sputnik.
foi inventada. Foi então que osprimeiros fo- A propósito,poderíamos ter chegado ao espa-
guetes começaram a ser feitos e, alguns sécu- ço um pouco mais tarde do que 1957 se duran-
los mais tarde, Cyrano de Bergerac imaginou te a Segunda Guerra Mundial o alto comando
no seu livro História Cómica dos Estados e alemão não tivesse sido determinado a criar a
Impérios da Lua, por volta de 1650, uma car- arma suprema: um foguetão capaz de destruir
ruagem com uma série de foguetes ligados às o inimigo. Para este fim, forneceu a Wernher
laterais a fim de se erguer e alcançar o nosso von Braun todos os meios à sua disposição. Pa-
satélite natural. ra tal, construíram a base em Peenemünde, na
Mas se quisermos ser mais realistas, as bases costa báltica da Alemanha, a partir da qual fo-
para a realização do Sputnik 1 há que procurá- ram produzidos os temidos V-2. A 3 de outubro
-las nos três homens que concentraram os seus de 1942, foi lançado o protótipo, uma máquina

Técnico soviético a GETTY

trabalhar no Sputnik
1 em 1957, o que
colocou a URSS à
frente dos EUA na
corrida espacial.

136
GETTY
GETTY

lançamento espacial,
tornou-se a data maldi-
ta do programa espacial
americano: o satélite
Vanguard caiu no chão
dois segundos depois de
os motores terem sido
ligados. A NASA, que na
altura não existia, regis-
taria mais tarde que o
ponto na órbita do saté-
Cadela Laika no Sputnik 2. lite mais afastado da Ter- Wernher von Braun segurando um
ra era 60 centímetros. e modelo do seu foguetão V-2.
de 13 toneladas capaz de atingir uma distância
de 300 quilómetros voando a uma velocidade
de 5700 km/h. No final da guerra, os russos e
americanos, conscientes do valor militar des-
O pioneiro dos foguetões
ta nova arma, tentaram apoderar-se de todo o
know-how e recursos dos alemães, tanto hu-
manos como técnicos.
K onstantin Tsiolkovsky - na imagem - profes-
sor de uma escola russa, foi o primeiro a lan-
çar as bases da construção moderna de fogue-
tes. E fê-lo antes do final do século XIX. Aos dez
A UNIÃO SOVIÉTICA VENCEU A PRIMEIRA anos de idade adoeceu com escarlatina, o que
BATALHA. O local era Baikonur, localizado na o deixou praticamente surdo e o fez, confessou
atual República do Cazaquistão, a sul dos Urais
anos mais tarde, vítima do ridículo. “Esta defi-
e a oeste da Mongólia. A sua localização nessa
ciência tornou-me um estranho para as pessoas
altura era muito complicada. Até 1975, a loca-
lização oficial oferecida pelo governo soviético e induziu-me a ler, a concentrar-me e a sonhar.
era uma antiga cidade mineira com o mesmo Eu tinha o desejo de fazer algo grande, heróico...
nome, quase 400 km a nordeste do atual porto Toda a minha vida consistia em meditação, cál-
espacial. Esta fica perto da pequena cidade de culo e trabalho experimental.
Tyuratam e da cidade de Zarya, rebaptizada Le- Curiosamente, o seu interesse em viagens
ninsk em 1958 e rebaptizada Baikonur em 1996. espaciais foi alimentado pelo místico Nikolai
Uma cidade que foi construída exclusivamente Fyodorov, que desempenhou um papel crucial
para albergar o pessoal do cosmódromo. nos seus anos de formação, desabituando-o
O lançamento do Sputnik 1 foi um golpe para das suas ideias suicidas e ensinando-lhe que o
o orgulho americano. Três anos antes, o Pre-
destino final da humanidade residia na conquis-
sidente Eisenhower tinha anunciado que es-
ta do espaço. Fyodorov acreditava na unificação
perava lançar um satélite artificial, e o mundo
inteiro estava a seguir o seu progresso tecnoló- da humanidade para uma fase final de “auto-
gico sem prestar atenção aos soviéticos . criação, imortalidade e semelhança divina”, na
O segundo golpe ocorreu a 3 de novembro, “transformação de um universo mortal num cos-
quando o Sputnik 2, um satélite em forma de mos imortal”. Para o conseguir, o universo tinha
cone, transportou um pequeno cão chamado de ser controlado e dominado, e isso significava
Laika como passageiro. Ela foi o primeiro ser construir naves espaciais.
vivo lá em cima, e tornou-se a primeira mártir AGE

da era espacial: durante muito tempo pensou-


-se que ela tinha morrido em órbita, sete dias
após o lançamento; no entanto, sabemos agora
que ela morreu após seis horas devido a pro-
blemas respiratórios e paragem cardíaca em
resultado do sobreaquecimento na cabina e do
stress sofrido pelo animal.
Perante tal humilhação pública, os Estados
Unidos pisaram o acelerador. Contudo, 6 de
dezembro de 1957, o dia previsto para o seu

137
SHUTTERST

68 Relógio
Primeiro utilizamos a natureza — o sol, a água e a areia — para
medir a passagem das horas; depois utilizamos a mecânica.

D
urante séculos, o passar do tempo ram mostram que o fluxo de água durava cerca
era marcado pela sombra do sol. de seis minutos. Em Roma, a medida do clepsi-
E era uma medida muito conve- dra era de cerca de vinte minutos, o tempo atri-
niente, pois qualquer pessoa podia buído aos advogados de ambos os lados para os
medir a passagem do tempo sem a seus pleitos. Um jurista poderia pedir ao juiz até
necessidade de instrumentos especiais. Foram seis clepsidra adicionais — cerca de duas horas
os gregos que aperfeiçoaram os relógios de sol e — para apresentar os seus argumentos. Numa
os romanos que os tornaram populares: utiliza- ocasião, um advogado até pediu ao juiz dezasseis
vam-nos para fixar os horários das refeições. No clepsidra — cinco horas — o que mostra que os
entanto, a água tornou possível libertar-nos da advogados naqueles dias também tinham a ver-
tirania do sol e assim poder contar até as horas borreia dos advogados de hoje.
de escuridão. O seu principal problema, enfren-
tado pelos relógios de água primitivos era a cali- A AMPULHETA SUBSTITUIU O RELÓGIO DE
bração das horas, especialmente se tivermos em ÁGUA. Os primeiros relógios de areia conheci-
conta que a sua duração era variável, uma vez dos datam do século VIII, quando os fabricantes
que a hora do dia era dividida em doze horas, de vidro conseguiram fechá-los hermeticamen-
o que significava que no verão eram mais lon- te para impedir a entrada de humidade. Práticos
gas do que no inverno. Por esta razão, os gregos para medir curtos intervalos de tempo, o seu
utilizaram o relógio de água, a que chamaram uso espalhou-se no século XVI a todos os âmbi-
clepsidra, para controlar a duração das alega- tos da vida: os padres usavam-nos para medir a
ções nos tribunais. Os relógios que sobrevive- duração dos seus sermões; os professores, para

138
GETTY
as suas aulas; os cozinheiros, para as suas re- blema devido à rota-
ceitas; os pedreiros, para calcular as suas horas ção da terra. Assim,
de trabalho; e no mar, para medir a velocidade a 8 de julho, a Rainha
dos navios. Mas os primeiros passos para um Ana emitiu a Lei da
relógio mecânico foram dados por monges, que Longitude, ofere-
precisavam de saber as horas indicadas para as cendo um prémio —
suas orações. Esses primeiros instrumentos £20.000 — a quem
não diziam as horas, mas faziam-no soar: eram resolvesse o pro-
relógios de alarme colocados na cela do monge blema. Os astróno-
encarregado de informar os outros sobre as ho- mos pensavam que a
ras canónicas. melhor maneira era
fazer medições pre- Retrato de John Harrison, pioneiro
do cronómetro que foi vilipendiado
O ADVENTO DO RELÓGIO MECÂNICO MUDOU cisas da posição da
pela elite científica do seu tempo
A FORMA DE VER O TEMPO. Se os de sol, água e lua no céu, um mé- por ser um simples artesão.
areia mostravam o fluxo das horas, estes outros todo apontado pelo
foram criados para tocar uma campainha. No próprio Isaac Newton. Entretanto, os mecâni-
século XIV foram instalados em todas as cidades cos e artesãos apostavam na construção de um
e aldeias, de modo que as torres das igrejas se cronómetro de precisão.
tornaram torres do relógio. Gradualmente, fo- O holandês Christiaan Huygens abriu cami-
ram-se anunciando frações de uma hora, como nho a esta alternativa ao publicar Horologium
os quartos, embora o ponteiro dos minutos fosse Oscillatorium em 1673, o segundo livro mais
lento a aparecer. De facto, o conceito moderno importante da história da mecânica depois do
da hora, o produto da divisão do dia em vinte e Principia Mathematica de Newton. Mas, claro,
quatro partes iguais, só surgiu no século XIV, e os o pêndulo não responde muito bem ao balanço
segundos começaram a fazer parte da medição de um navio no mar...
do tempo no final desse século.
Mas houve algo que desencadeou o desenvol- ENQUANTO OS GRANDES ASTRÓNOMOS E
vimento de relógios mecânicos altamente pre- FÍSICOS INGLESES estavam a tentar aperfei-
cisos, os cronómetros, o problema científico çoar o seu método lunar, inútil e extremamente
central da chamada Era da Exploração: deter- complicado, um carpinteiro sem instrução cha-
minar a longitude de um navio em alto mar. A mado John Harrison estava a construir cronó-
resolução do problema tornou-se uma questão metros cada vez mais precisos. Em 1764, o seu
de Estado na Inglaterra em 1714: a sobrevivên- quarto relógio, testado a bordo do HMS Tartar
cia do comércio marítimo dependia do cálculo destinado a Barbados, acumulou um erro de
de rotas precisas, e isto era impossível a menos apenas 39 segundos. Mas o Astrónomo Royal
que a posição do navio fosse determinada com Nevil Maskelyne, membro do Conselho da Lon-
precisão. A latitude não é um problema — para gitude, escreveu um relatório desfavorável: co-
isso temos o sol — mas a longitude é um pro- mo poderia um simples artesão ganhar! Após
dois anos de espera e animosidade aber-
ta da Comissão da Longitude, o filho de
SHUTTERSTOCK

Harrison escreveu uma carta emocionada


ao Rei Jorge III. Este ficou surpreendido e
decidiu testar pessoalmente o seu quinto
e último cronómetro, e descobriu que o
erro era de um terço de segundo por dia.
Pediu ao Parlamento que lhe atribuísse o
prémio em dinheiro, para grande desgosto
de Maskelyne e dos seus colegas cientistas.
Harrison recebeu o dinheiro, mas não o
prémio oficial .
No mesmo ano, o Conselho elaborou
novas condições para o prémio, tão rigo-
rosas que Maskelyne disse, a rir: “Dei aos
Antigo relógio de sol nas muralhas do histórico Castelo do mecânicos um osso tão duro de roer que
Monte São Miguel, Cornualha, Inglaterra. lhe vai partir os dentes”. e

139
69 Telefone
Por vezes, grandes invenções vêm de várias mentes brilhantes ao
mesmo tempo, e foi isso que aconteceu com este dispositivo.

U
ma vez que o telégrafo começou 1876, a americana Elisha Gray apresentou a do-
a espalhar-se, mudando radical- cumentação da sua invenção no escritório de
mente o mundo das comunica- patentes de Washington ao mesmo tempo que
ções, o passo seguinte era óbvio: a Bell o fez em Boston. A candidatura de Gray che-
procura do telégrafo falante. Isso gou algumas horas antes da do britânico, mas os
significava encontrar uma forma de converter advogados deste insistiram em pagar imediata-
os impulsos elétri- mente a taxa de candidatura: como resultado,
cos em som. o escritório registou primeiro a candidatura de
STEFANO BIANCHETTI / GETTY

Aconteceu em Bell, que foi oficialmente aprovada a 7 de março.


1876. Embora todos Três dias mais tarde, o escocês fez a famosa cha-
tenhamos em mente mada ao seu assistente que provava a viabilidade
o nome do escocês da sua invenção: “Sr. Watson, venha cá. Quero
Alexander Graham vê-lo”.
Bell, a história não O telefone foi lançado na Feira Mundial em
é assim tão simples. Filadélfia, em junho de 1876. Entre os presentes
A 14 de fevereiro de encontrava-se o físico William Thomson — mais

À esquerda, Bell, em Nova Iorque, fazendo a primeira chamada telefónica de longa dis-
tância para Chicago em 1892. Abaixo, o telefone utilizado pelo escocês na demonstra-
ção de seu invento à Rainha Vitória em 1878, na Osborne House (Isle of Wight). GETTY

140
A história do detetor de metais de Graham Bell
D epois do telefone, Bell começou uma esca-
lada de invenções, incluindo um protótipo
de pulmão artificial de aço, o fotofone e o grafo-
tava. Após o fracasso, os médicos decidiram
realizar uma exploração cirúrgica. E, após vá-
rias tentativas de remover a bala — que realiza-
fone. Mas uma das invenções mais curiosas do ram sem esterilizar os instrumentos ou lavar as
escocês nascido em Edimburgo era um locali- mãos — uma infeção que se espalhou pelo seu
zador de objetos metálicos no interior do corpo organismo acabou por levar o 20º presidente
humano. E ele teve de o fabricar a contra relógio. dos Estados Unidos à sepultura.
Tudo aconteceu em julho de 1881, quando foi

AGE
encarregado pela Casa Branca de desenvolver
uma máquina capaz de localizar a bala que atin-
giu o presidente, James Abram Garfield, quando
este se encontrava numa estação de comboios
de Washington.
O seu “detetor de metais” era teoricamen-
te perfeito, mas não funcionou. Ou melhor, foi
ineficaz, uma vez que não conseguiu localizar
onde se encontrava a bala. Em parte porque o
médico responsável pela vida do presidente Bell desenvolveu um dispositivo para tentar localizar a
usou-o para a procurar onde pensava que es- bala alojada no corpo do Presidente J. A. Garfield..

tarde conhecido como Lord Kelvin — que tinha sistema de Bell, que atingiram 2,2 milhões em
rapidamente acumulado uma pequena fortuna 1905, e 5,8 milhões em 1910. Cinco anos mais tar-
graças a algumas patentes no campo da tele- de, a primeira linha telefónica transcontinental
grafia e que, como bon vivant que era, a tinha entrou em funcionamento.
gasto durante uma breve estadia em Paris. Foi Mas há um lado negro em toda a história. Em
ele que trouxe o telefone de Bell para Inglaterra. 1854, um italiano baseado em Nova Iorque, An-
No entanto, o dispositivo descrito na patente tonio Meucci, tinha desenvolvido um telefone
não era prático. Só depois de uma reconstrução primitivo — o teletrófono — que tinha testado
profunda da ideia original é que se desenhou pela primeira vez em Staten Island. Em 1871 de-
um que pudesse ser produzido em grande es- positou uma patente provisória junto do Institu-
cala. A Bell Telephone Company iniciou as suas to de Patentes dos Estados Unidos. Mais de um
operações a 11 de julho de 1877, e no mesmo mês século depois, em junho de 2002, uma resolução
chegou à Europa o primeiro telefone comercial, da Câmara dos Representantes dos EUA deixou
apresentado em Plymouth (Inglaterra) pelo en- claro que Meucci deveria ser reconhecido pelo
genheiro chefe do Correio Geral Britânico, Wil- seu trabalho pioneiro no desenvolvimento do te-
liam H. Preece, na presença do próprio Bell. lefone e que se “ele tivesse podido pagar a taxa
de 10 dólares para manter a patente provisória
EM 1878, A PRIMEIRA LINHA FOI IMPLANTADA em 1874, Bell não poderia ter recebido uma pa-
E a primeira central telefónica foi posta em fun- tente”. Alguns até sugerem que o escocês não
cionamento. Três anos mais tarde, quase 49 000 foi muito honesto e pode ter usado o teletrófono
telefones estavam em funcionamento. Em 1885, como ponto de partida. Curiosamente, parte do
a Companhia Americana deTelefones e Telégra- material de Meucci desapareceu sem deixar rasto
fos (AT&T) foi criada e dominou as comunicações do mesmo laboratório onde Bell conduziu as suas
telefónicas durante o século seguinte. A certa al- experiências. E as acusações de jogo sujo não pa-
tura, os empregados da Bell System denegriram ram por aí: há também indicações de que os seus
deliberadamente o sistema telefónico dos EUA advogados adquiriram certos detalhes técnicos
a fim de reduzir os preços das ações de todas as da invenção de Gray, que foram acrescentados à
empresas do setor e assim facilitar ao escocês a patente de Bell depois de esta ter sido arquivada
aquisição dos seus concorrentes mais pequenos. e que usaram no protótipo que foi utilizado para
Em 1900 existiam quase 600.000 telefones no fazer a primeira chamada telefónica da história. e

141
Este antigo dispositivo tecnológico,
considerado o avô da Internet, era
utilizado tanto para fins civis como
militares.

70 Telégrafo
SHUTTERSTOCK

Marcou o início da era da informação ao permitir a comunicação


imediata a milhares de quilómetros.

O
século XIX assistiu a uma segunda ideia de um tal telégrafo, em que não intervém
revolução industrial baseada na a corrente elétrica, era totalmente impraticável.
ciência e não na engenharia. De- Quando Volta inventou a bateria elétrica em
senvolveu-se em dois campos: um 1800, a situação mudou. Talvez prevendo a sua
foi a química, com o aparecimento importância, Napoleão promoveu a construção
de corantes sintéticos; o outro, fruto das expe- de uma enorme pilha galvânica na Ecole Polyte-
riências de Alessandro Volta e Michael Faraday, chnique em 1813. Apesar do inconveniente óbvio
foi a eletricidade. No início, a produção de cor- de ter uma longa fila de baterias ligadas entre si,
rente elétrica dependia de um longo conjunto de era suficiente para produzir a eletricidade neces-
baterias e só era útil em laboratórios. sária para o funcionamento do telégrafo.
No século XVIII, a eletricidade era o brinquedo Em 1809, o médico alemão Samuel Thomas
dos cientistas, e muitos começaram a procurar von Sömmerring propôs um telégrafo eletro-
aplicações práticas, tais como a transmissão de químico, que era uma versão melhorada da do
informação com ela. Assim, em 1753, um leitor médico espanhol Francisco Salvá Campillo. Con-
da The Scots Magazine — a mais antiga revista sistia em trinta e seis fios, um para cada letra e
do mundo, e ainda hoje publicada — sugeriu a número. Quando a corrente elétrica chegava ao
ideia de um telégrafo eletrostático: utilizando recetor, o fio, que estava imerso num recipien-
um fio para cada letra do alfabeto, uma mensa- te com ácido, libertava hidrogénio, que formava
gem poderia ser enviada à distância. Contudo, a bolhas: onde aparecesse, era a letra correspon-

142
GETTY
dente. O telégrafo de Von Sömmerring tinha um do sobre telegrafia
alcance de vários quilómetros, embora ter trin- elétrica.
ta e seis latas de ácido não fosse nada prático. Ronalds estava à
frente do seu tem-
A INVENÇÃO DO ELETROÍMAN FOI UM IM- po: os componen-
PULSO PARA A BUSCA DO telégrafo, como tes que descreveu
demonstrado em 1828 por Joseph Henry, que estariam em uso
o utilizou para desenvolver um dispositivo que vinte anos mais
resolvia um dos grandes problemas da telegra- tarde, quando o te-
fia: superar a alta resistência dos seus fios, que légrafo entrou na
fazia com que o sinal se enfraquecesse rapida- sociedade. A déca-
mente. Henry conseguiu fazer soar uma campa- da de 1830 foi uma
inha a um quilómetro e meio de distância. sucessão de desen-
Mas o primeiro telégrafo verdadeiramente volvimentos em
operacional foi inventado por Francis Ronalds diferentes países
em 1816 usando... surpresa, surpresa ...eletri- e com diferentes
cidade estática! Na sua casa instalou uma com- graus de sucesso. Samuel Morse inventou o sistema de
plexa rede telegráfica que se estendia por 10 km. Em 1837, William código que leva o seu nome, utilizado
A linha estava ligada a mostradores rotativos Fothergill Cooke e para enviar mensagens por telégrafo.
nos quais tinha impresso as letras do alfabeto e Charles Wheatsto-
que se moviam quando os impulsos elétricos os ne desenvolveram um sistema telegráfico bem
atingiam. Ele ofereceu a sua invenção ao Almi- sucedido que, como recetor, utilizava uma sé-
rantado Britânico, mas eles rejeitaram-na como rie de agulhas num painel que utilizavam para
“totalmente desnecessária”. Ronalds descreveu apontar as letras do alfabeto. Na sua patente de
a sua invenção e o que ela significaria como uma maio recomendaram um sistema de cinco agu-
revolução nas comuni- lhas para codificar vinte das vinte e seis letras.
cações num folheto Foram eles que estabeleceram a primeira linha
intitulado Descri- telegráfica da história, entre Euston e Camden
ções de um telé- em Londres.
grafo elétrico. E
de alguns ou- MAS O TELÉGRAFO COMO O CONHECEMOS
tros aparelhos FOI PATENTEADO EM 1837 pelo americano
elétricos. É Samuel Morse juntamente com o seu assistente
o primeiro Alfred Vail, que foi o inventor do instrumento
trabalho que recolhia as mensagens e que tantas vezes vi-
publica- mos nos filmes ocidentais: uma tira de papel que
Y
TT

imprimia pontos e traços à medida que a men-


GE

sagem avançava. Para além do aparelho, Morse


teve a ideia de substituir letras e números por
uma nova língua, o código Morse. O primeiro te-
legrama foi enviado a 11 de janeiro de 1838, numa
distância de 3 km. Em 1844, enviou o primeiro
telegrama de longa distância entre Washington e
Baltimore, com 71 km de distância.
Em 1847, na Alemanha ,Werner von Siemens
e Johann Georg Halske fundaram uma empre-
sa que construiu a rede telegráfica na Rússia e
depois instalaram um cabo de Londres através
de Berlim até Calcutá. e

O telégrafo de cinco agulhas de Charles Wheats-


tone e William Fothergill Cooke foi um dispositi-
vo de telecomunicações elétricas bem sucedido.

143
71 Transistor
Se o desenvolvimento no século XIX foi baseado na máquina a vapor,
a era das comunicações baseou-se neste dispositivo eletrónico.

A
eletrónica primitiva começou a plitude uma vez detetado, ou seja, dispor de
desenvolver-se entre o final do sé- um sistema amplificador. A primeira solução
culo XIX e o início do século XX, e satisfatória foi proposta por John Ambrose
foi possível graças a dois avanços. Fleming em 1904, que foi o ponto de partida
O primeiro produziu-se em 1874, para o desenvolvimento de válvulas de vácuo,
quando o físico alemão Karl Ferdinand Braun aquelas coisas semelhantes a lâmpadas que
descobriu um fenómeno que mais tarde seria aparecem nos filmes de ficção científica dos
utilizado como detetor de sinal em recetores: anos 50, quando querem mostrar um com-
os contatos de um metal com certos cristais putador em funcionamento. Apesar das suas
podem conduzir a corrente numa só direção; limitações inerentes, permitiram a conceção
a este fenómeno chama-se rectificação. O se- dos primeiros equipamentos eletrónicos.
gundo resolveu um dos problemas mais im- No final da Segunda Guerra Mundial, os la-
portantes das emissões de rádio: a atenuação boratórios de investigação eletrónica estavam
que, com a distância, sofre o sinal emitido, a dar voltas à ideia de conceber um disposi-
o que torna necessário aumentar a sua am- tivo que pudesse substituir as dispendiosas,
IMÁGENES: GETTY
enormes e extremamente frágeis válvulas de
vácuo. Era claro para os cientistas que tinham
de procurar algo radicalmente diferente se
quisessem obter equipamento eletrónico fiá-
vel no campo das comunicações, que tinha
sofrido uma grande revolução com a desco-
berta da rádio.

OS LABORATÓRIOS BELL, UM CENTRO DE IN-


VESTIGAÇÃO CRIADO EM 1924, centrou o seu
trabalho nesta direção, e em 1945 estabeleceu
um grupo dedicado à compreensão da física
dos materiais chamados semicondutores. Foi
o diretor dos laboratórios, Mervin J. Kelly, que
tomou duas decisões que se revelaram cruciais
para o futuro da investigação: estudar apenas o
germânio e o silício, e retomar uma ideia pro-
posta em 1930 sobre o controlo da intensidade
da corrente elétrica em semicondutores. A sa-
bedoria desta abordagem, juntamente com o
planeamento cuidadoso e detalhado de Kelly,
valeu rapidamente a pena. A 23 de dezembro
de 1947, John Bardeen e Walter Brattain de-
senvolveram o primeiro tipo de amplificador
de estado sólido, denominado “transistor de
pontas de contacto”. Algumas semanas mais
tarde, William Shockley desenvolveu sozinho

Réplica do primeiro transístor em fun-


cionamento , inventado por físicos
americanos dos Laboratórios Bell.

144
Da esquerda para a direita, vencedores do Prémio Nobel da Física de 1956, John Bardeen, William Shockley e Wal-
ter Brattain, pelas suas pesquisas sobre semicondutores e a descoberta do transístor. A imagem é de 1948.

a teoria da condução de corrente em semi-


condutores e propôs a conceção do transís-
tor de germânio. Alguns meses mais tarde,
os Laboratórios Bell desenvolveram a tec-
nologia para o seu fabrico comercial.

NO ENTANTO, NINGUÉM FEZ CASO DA


PROPOSTA dos Laboratórios Bell. Para pro-
mover o seu transistor, libertaram a patente
e ensinaram à indústria pública e privada o
processo de fabrico. Em poucos anos, a im-
portância desta descoberta foi reconhecida
e Shockley, Bardeen e Brattain receberam o
Prémio Nobel da Física de 1956 pelo seu tra-
balho sobre o transístor.
Ao mesmo tempo, diferentes empresas
trabalhavam para melhorar os processos
de fabrico, e em 1954, a Texas Instruments
introduziu os primeiros transístores de silí-
cio. A produção em massa tinha começado e
a era da eletrónica acabara de nascer.
A parte amarga desta história é que pou-
cos reconhecem hoje o papel decisivo de-
sempenhado por Mervin Kelly, o chefe dos
Laboratórios Bell, cujo nome foi injusta- Este díodo eletrónico era um dos tubos ou válvulas de vácuo
mente remetido para o esquecimento. e do engenheiro britânico John Ambrose Fleming.

145
72 Corantes
O primeiro corante sintético foi descoberto por acaso. Era um
derivado do alcatrão de hulha, e revolucionou a indústria

q
uem não viu em filmes medie- amarelo ocre nas pirâmides egípcias da sexta
vais donzelas, cavaleiros e no- dinastia (2345-2180 a.C.) em Saqqara.
bres com roupas de cores vivas? O mundo dos corantes permaneceu mais ou
Estamos habituados a um mun- menos o mesmo, à procura de novas fontes de
do de moda colorida e parece cores naturais, até meados do século XIX. De-
impossível que alguma vez
vez tenha estado sub- pois a deusa da sorte sorriu a William Henry
merso numa monocromia cinzenta. Mas era Perkin, um adolescente que trabalhava como
realmente assim;
assim; o mundo não era tão colorido assistente do então famoso químico alemão
antes do século XIX. August Wilhelm von Hofmann, professor no
O costume de tingir roupa data do perío- Royal College em Londres.
do Neolítico, como atestam os têxteis encon-
trados na povoação de Çatalhöyük, no sul da HOFMANN FICOU FASCINADO COM OS DERI-
Anatólia. Aí foram encontrados vestígios de VADOS QUÍMICOS do alcatrão de hulha, uma
corantes vermelhos, possivelmente de ocre — substância preta e pegajosa que se obtém des-
pigmentos de óxido de ferro de barro — que, tilando esse tipo de carvão na ausência de ar;
juntamente com os castanhos e laranjas, foram assim se extraiem a maior parte dos compostos
as primeiras cores utilizadas para tingir rou- voláteis retidos no seu interior e a converte em
pas. Seguiram-se os azuis, os amarelos e, final- coque. Este processo produzia o gás necessário
mente, os verdes. para a iluminação. A chama do gás de carvão,
Os tecidos policromados ou multicoloridos de cor amarela, iluminou as ruas de Londres em
apareceram no terceiro ou segundo milénio 1812, permitiu concertos à noite no Brighton
a.C.: foram encontrados tecidos com uma ur- Pavilion em 1821 e a leitura do jornal em casa em
didura castanha-avermelhada e uma trama 1829. Mas a destilação de carvão também tinha

SHUTTERSTOCK

Tanques e cubas de corante de várias


cores numa oficina de curtumes tradi-
cional na cidade de Fez (Marrocos).
146
GETTY
tremendamente interessante: quando limpou
com alcoól o frasco com que tinha estado a
trabalhar, cujo resultado era uma estranha
substância negra, a água tinha ficado roxa.
Perkin tinha apenas dezoito anos de idade.
A conselho de um amigo, ele enviou uma
amostra do seu corante a uma empresa têxtil
escocesa: a resposta foi que tingia bem a seda,
mas não o algodão. Na altura, os dois principais
corantes em uso eram azul índigo e vermelho
alizarina, ambos extraídos de plantas. Perkin
decidiu patentear a sua descoberta e, com as
economias do seu pai e do seu irmão, trans-
formou-a num processo industrial. O novo co-
Perkin obteve um corante roxo brilhante enquanto tenta- rante, anilina púrpura, fazia lembrar a cor das
va, em 1856, sintetizar o quinino para tratar a malária . pétalas de malva silvestre.
A descoberta de Perkin fascinou os costurei-
os seus inconvenientes. O principal era um re- ros franceses e rapidamente se descobriu que
síduo negro, mal-cheiroso e lamacento gerado poderia ser aplicado ao algodão se fosse pré-
durante o processo: o alcatrão. Completamen- -tratado. Sendo Paris o centro da moda mun-
te inútil, as destilarias despejaram-no no rio ou dial, a malva de Perkin fez em breve furor em
lago mais próximo. Em meados do século XIX, todo o mundo. Até a Rainha Vitória se juntou
o Tamisa estava tão poluído que o Parlamento à tendência quando, em 1862, apareceu num
teve de fechar por causa do mau cheiro. O pro- evento público — a Exposição Real — usando
blema era grave: não podia deixar-se de pro- uma peça de vestuário comprida tingida com
duzir gás para a iluminação, mas também não o corante.
se podia continuar a envenenar a água. Após Mais importante: foi algo aparentemente
várias tentativas para resolver o problema, um tão frívolo como o mundo da moda que im-
grupo de químicos alemães encontrou uma so- pulsionou o aparecimento de um novo tipo de
lução: também destilaram o alcatrão. Graças indústria, a indústria química. e
a isso obtiveram uma série de produtos úteis,
tais como parafina para lâmpadas de petróleo GETTY

ou o fenol, a partir do qual se podia facilmente


Este vestido de
obter anti-sépticos ou a própria aspirina, o áci- seda de 1862
do acetilsalicílico. foi tingido
com o corante
UM DIA HOFMANN PERGUNTOU-SE SE PO- de malva de-
DERIA SINTETIZAR QUININO a partir de um Sir William
dos derivados do alcatrão. Se o pudesse fazer, Henry Perkin .
os benefícios seriam enormes, pois o Impé-
rio Britânico estava envolvido numa série de
guerras tanto na América como na Ásia, e a
malária estava a dizimar as suas tropas: o Ge-
neral Anopheles — o mosquito que transmite
a doença — estava a ganhar a batalha.
Durante as férias da Páscoa de 1856, o jo-
vem Perkin decidiu passar o seu tempo livre
à procura de uma forma de produzir quinino
no mini-laboratório que tinha montado no
seu pequeno apartamento. Pensou ser capaz
de o obter através da oxidação de uma molé-
cula orgânica extraída do alcatrão de carvão,
a anilina — um composto que cheira a peixe
podre. Falhou na sua tentativa, mas, em tro-
ca, os seus olhos aguçados descobriram algo

147
73 Prego
Tem sido um elemento chave em todos os tipos de construção
durante milhares de anos. No entanto, os pregos foram feitos à
mão até ao século XIX.

S
e quisermos manter algo unido, preci- partir de barras de ferro forjado: nesta altura,
samos de um prego. Mas não são apenas nasceu o prego cortado ou para estampagem,
utilizados para isso, como a Bíblia tes- com uma ponta quadrada e romba, que são
temunha: são também utilizados para muito mais fortes e por isso utilizados para
crucificar ou simplesmente assassinar. trabalhos pesados.
Este último uso foi o sofrido pelo comandante Hoje temos 2200 variedades de pregos. E
cananeu Sísera às mãos da sua exemplar esposa uma curiosidade: parece que o termo penny
judia Jael, que com um martelo cravou um na surgiu na Inglaterra medieval para descrever o
sua têmpora “até cravá-lo na terra”. Segundo preço de uma centena de pregos. e
os peritos, esta história, registada no Livro dos
Juízes, é uma das mais antigas do Antigo Testa-
mento — cerca de 1200 a.C. — provando que os
pregos, sejam de madeira ou metal, são muito
antigos. De facto, os pregos de bronze encon-
trados no Egito datam de 3400 a.C.
Fundamentais para qualquer sociedade —
um exército romano, por exemplo, abandonou
sete toneladas de pregos ao evacuar a fortaleza
de Inchtuthil em Perthshire, Britânia, em 86
a.C. — é surpreendente descobrir que só no
início do século XIX é que aprendemos a fazê-
-los mecanicamente. Até então, eram feitos à
mão: os artesãos eram chamados cravadores, e
faziam-nos a partir de barras de ferro prepara-
das por cortadores.

ANTES DA REVOLUÇÃO DAS TREZE COLÓ-


NIAS, A INGLATERRA ERA O MAIOR FABRI-
CANTE de pregos do mundo e, como era de
esperar quando pegavam em armas, era vir-
tualmente impossível obter pregos nas coló-
nias americanas. A escassez era tal que quando
as pessoas mudavam de casa, queimavam a
sua velha casa para recuperar os pregos. Como
resultado, não era difícil encontrar famílias a
fazer pregos nas suas casas sentadas à volta da
lareira em dias de mau tempo ou à noite. Não
era apenas o trabalho de pobres; até Thomas
Jefferson orgulhava-se dos seus pregos. Numa
carta escreveu: “Eu próprio sou um prega-
dor.... O seu fabrico foi uma faceta importante
da vida”.
O processo de fabrico só foi mecanizado em
1790-1820, quando várias máquinas foram in-
ventadas para automatizar a sua produção a Pregos feitos à mão na
Sibéria em meados do
século XIX.

148
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

149
150
74 Roda
Vem-nos frequentemente à mente quando falamos das primeiras
invenções feitas pelo homem, mas na realidade é bastante recente.

E
m 1920 Sir Leonard Woolley escavou o tú- tínhamos carro-

PIERRE PERRIN / SYGMA VÍA GETTY


mulo do monarca sumério Abargi, de Ur ças e carruagens.
no Iraque atual, que reinou por volta de Porque a parte
2500 a.C. Ali encontrou, ao lado dos es- difícil não era
queletos de dezenas de criados mortos pa- inventar a roda,
ra assistirem o governante no mundo vindouro, os mas saber como
restos de duas carroças de quatro rodas, cada uma ligá-la a uma pla-
puxada por três bois abatidos ao mesmo tempo que taforma estável
os criados. Foram também encontradas carruagens através de um
de batalha ao lado de burros asiáticos — os cavalos eixo.
ainda não tinham sido domesticados. As rodas sóli- Não foi fácil de- Arqueólogo Leonard Woolley (à direita) com
um baixo-relevo de Carchemish (Turquia).
das consistiam em dois semicírculos unidos e pro- senhar um eixo
tegidos por couro e cobertos com cobre ou bronze. fixo com rodas rotativas: requeria carpintaria de
É curioso que a roda seja o arquétipo da tecnolo- precisão, capaz de trabalhar a madeira de modo a
gia primitiva quando, de facto, demorámos muito que as extremidades do eixo fossem lisas e redon-
tempo a inventá-la. De facto, estávamos a obter das, assim como os buracos no centro das rodas,
ligas metálicas em fornos, a construir canais e na- caso contrário haveria demasiada fricção. Além dis-
vios à vela ou a conceber instrumentos musicais so, tinham de encaixar bem nos buracos das rodas,
tão complexos como as harpas, quando ainda não mas não demasiado apertados para que pudessem
rodar livremente. Para não mencionar o tamanho
do eixo: um eixo grosso geraria demasiada fricção,
JOHN O’NEILL / WIKIMEDIA

Roda de madeira enquanto um eixo estreito seria demasiado fraco


maciça. para suportar uma carga. Quanto à plataforma, eles
precisavam de ter toros dos quais pudessem tirar
largas tábuas de madeira.

TUDO ISTO SUGERE QUE A RODA FOI INVENTA-


DA NUM ÚNICO LOCAL e daí exportada para o
resto do mundo tão rapidamente que é impossível
localizar a área onde apareceu pela primeira vez.
Contudo, há provas de que, a partir de meados do
quarto milénio a.C., os veículos com rodas surgi-
ram quase simultaneamente nas proximidades do
Mar Morto do norte, nas culturas Maykop, Kur-
gan e Cucuteni-Trypillian. Aparentemente esta-
vam rigidamente presos ao eixo, que girava com
eles. Uma configuração que funciona bem, se não
fosse pelo facto de, por vezes, se ter de fazer cur-
vas; neste caso, uma vez que tudo gira à mesma
velocidade, a única forma é fazer com que um
deles derrape. No tempo do rei Abargi, as rodas
já giravam separadamente do eixo, embora o eixo
estivesse preso à carroçaria. Foram necessários
vinte a trinta séculos para que o eixo dianteiro pi-
votante aparecesse. e

151
75 Bússola
Durante muito tempo foi considerada uma invenção chinesa,
mas outra civilização adiantou-se-lhes quase mil anos.

T
alvez porque há poucas coisas
Em terra ou no mar, é um instrumen- tão fascinantes como a obser-
to que tem guiado e orientado os vação do comportamento de
SHUTTERSTOCK

humanos nas suas viagens para o um par de ímanes, o magne-


desconhecido. tismo sempre esteve envolto
em mistério. Para os antigos, era uma
prova tangível da existência de forças
invisíveis à nossa volta: há algo mais
surpreendente do que contemplar um
pedaço de ferro misteriosamente atraí-
do por um íman, ou sentir uma oposição
invisível quando tentamos aproximar os
polos norte de dois deles?
Como todos os mistérios, a história do
magnetismo começa com uma lenda, a de
um jovem chamado Magnes, que viveu na
Grécia antiga. Um dia, enquanto cuidava
do seu rebanho, encostou a ponta de metal
do seu bastão contra uma grande rocha. O
bastão agarrou-se a ele com tal força que
o rapaz não o conseguiu recuperar. Um
pequeno tributo por ter ficado na história
como descobridor de uma rocha com pro-
priedades mágicas, batizada de magnetite
em sua honra. Evidentemente, tudo isto
é uma fábula. A palavra magnetite pro-
vém muito provavelmente da região grega
Magnesia, onde estas pedras foram encon-
tradas pela primeira vez.

OS CHINESES TAMBÉM TINHAM CONHE-


CIMENTO DESTE FENÓMENO. No século II
a.C. descobriram que um pedaço alongado
de magnetite flutuando num balde de água
ficava alinhado na direcção norte-sul. Esta
descoberta foi aparentemente um subpro-
duto da prática supersticiosa conhecida
como adivinhação geomântica, que envol-
via atirar objetos — como pedras ou peças
de metal gravadas — sobre uma mesa a
fim de prever eventos futuros com base na
sua posição. Em 376 a.C., o general Huang
Ti utilizou esta curiosa propriedade para
comandar o seu exército, mas surpreen-

152
CORDON

dentemente, os chineses só a Yale (EUA) encontraram


aplicaram à navegação marí- um objeto curioso duran-
tima 900 anos mais tarde. Foi te uma escavação numa
logo importada pelos árabes e, povoação olmeca em San
com eles, chegou à Europa. Lorenzo (Veracruz, Méxi-
co). Era feito de hematite,
NO SÉCULO XIII, ENQUANTO um material que havia sido
OS NAVIOS EUROPEUS ESTA- amplamente utilizado na
VAM A SER EQUIPADOS com construção de alguns dos
o novo instrumento, o fran- edifícios da cidade, tais co-
cês Peter Peregrinus de Mari- mo o chamado Palácio Ver-
court investigava a natureza do melho. Datado entre 1400
magnetismo. Desconhecemos e 1000 a.C., a Coe parecia
quando nasceu e como foi a uma bússola. Disposto a
sua vida pessoal; na verdade, comprová-lo, colocou-o
só sabemos dele pelo que Roger sobre uma cortiça e pô-lo
Bacon escreveu no seu Opus a flutuar numa tigela de
Maius. Apenas conhecemos o água: orientou-se imedia-
seu tratado Epistola de Magne- A Epistola de Magnete de Maricourt é o tamente para o norte. Em
primeiro tratado científico sobre as 1975, o astrónomo John
te, que podemos datar de 1269
propriedades dos ímanes.
porque num dos poucos exem- Carlson colocou a hipóte-
plares sobreviventes aparece no final: “Actum se de que os olmecas poderiam tê-lo utilizado
in castris in obsidione Luceriæ anno domini como instrumento geomântico, tal como os
1269 º 8º filière Augusti” (Feito no acampa- chineses.
mento durante o cerco de Lucera, 8 de agosto Em qualquer caso, este objeto prova que a
de 1269). Esta carta mostra uma impressionan- data da descoberta da bússola tem de ser atra-
te finura experimental: descreve os detalhados sada quase mil anos e, além disso, tem de ser
estudos que realizou com a bússola e revela co- localizada num continente diferente. e
mo descobriu a existên-
cia das duas polaridades
magnéticas, que desig- CORDON

nou como polos norte e


sul. Na sua opinião, as
forças misteriosas que
obrigavam o ferro a mo-
ver-se em direção ao
íman eram semelhan-
tes às que obrigaram os
planetas e o sol a girar à
volta da terra.
Mas terão sido os
chineses realmente os
inventores da bússola?
Muito provavelmente
não. Em 1968, os ar-
queólogos Paula Krot-
ser e Michael D. Coe
da Universidade de

Antiga bússola chinesa,


que consistia num íman
com a forma de uma co-
lher. Esta rodava sobre
uma placa de bronze.

153
A projeção de Mercator é um tipo
de projeção cartográfica concebida
por Gerardus Mercator, em 1569,
para representar a Terra num mapa
plano. Este data de 1664.

76 Mapas
BUYENLARGE / GETTY

Estas representações geográficas demonstram o interesse humano


em conhecer, explicar e, em alguns casos, conquistar o mundo.

S
aber como é o mundo e ter um guia pa- res, onde parece que as grandes bestas e os seus
ra nos ajudar a navegá-lo tem sido um heróis habitavam. Assim, embora se diga fre-
dos esforços intelectuais mais antigos da quentemente ser a primeira tentativa conhecida
humanidade. O primeiro mapa do mun- de cartografia — diferentes lugares são mostra-
do conhecido data de 700-500 a.C. e foi dos nas suas posições aproximadas — o verda-
encontrado no final do século XIX no local da deiro objetivo desta tábua era, de facto, explicar
cidade iraquiana de Sippar, no noroeste da an- como eles viam o mundo de uma perspetiva mi-
tiga Babilónia. Trata-se de uma tabuleta meso- tológica. Tiveram de passar mais vinte séculos
potâmica muito danificada, contendo inscrições até à chegada do trabalho do grande cartógrafo
cuneiformes e uma imagem do mundo tal como flamengo Gerard Kremer.
os mesopotâmicos o viam: a Babilónia aparece O problema de desenhar um mapa é pura-
no centro do mapa, e também menciona os im- mente matemático: projetar a superfície da ter-
périos assírio, elamita, e outros. Na área central ra sobre uma folha de papel. A técnica habitual
aparece uma zona circular com a legenda “Mar é desdobrar a superfície do sólido; exatamente
Salgado”. No seu limite exterior está rodeado o contrário do que costumávamos fazer nos
pelo que se estima serem oito regiões triangula- nossos tempos de escola, quando cortávamos a

154
AGE

superfície estendida de um cilindro num peda- Em 1552, Mer-


ço de papel e, depois de algumas dobras e um cator instalou-se
pouco de cola, ele aparecia construído sobre a em Duisburg. Foi
mesa. Isto, que pode ser feito facilmente com o aí, sob o patro-
cilindro ou com o cone, é impossível com a es- cínio do Duque
fera. Por outras palavras, não se pode construir William de Jüli-
uma esfera a partir de um pedaço de papel. Por ch-Cléveris-Berg,
esta razão, é muito difícil desenhar mapas úteis que desenvolveu
que se aproximem muito da realidade. No en- a projeção — um
tanto, um matemático do século XVI conse- método de repre-
guiu fazê-lo. sentação da su-
perfície da Terra
O SEU VERDADEIRO NOME ERA GERARD KRE- num plano — que
MER, mas, seguindo a tradição de latinizar os leva o seu nome. Retrato de Gerardus Mercator
nomes, traduziu-o para Gerardus Mercator, pois O primeiro mapa- (1512-1594), cujo trabalho foi
continuado pelo seu filho Rumold.
Kremer (flamengo) e Mercator (latim) significam -múndi do mun-
“comerciante “. Estudou humanidades na Uni- do a utilizá-lo foi
versidade Católica de Lovaina, onde se formou publicado em 1569, e consistia em dezoito
em 1532, e depois começou a trabalhar como ma- lâminas. A técnica era simples e direta: con-
temático sob a direção do astrónomo holandês siderar a Terra não como uma esfera, mas
Regnier Gemma Frisius, famoso pela sua capaci- como um cilindro. Obviamente, esta pro-
dade de construir instrumentos de medição. jeção introduz distorções, mas tornou pos-
Em poucos anos, Mercator ganhou uma exce- sível traçar rotas de navegação com maior
lente reputação como cartógrafo e construtor de precisão do que os mapas anteriores.
instrumentos. No entanto, em 1544 foi acusado No mesmo ano, Mercator iniciou o seu pla-
de heresia — por simpatizar com os luteranos — no mais ambicioso: contar a história do mundo
e preso e encarcerado durante sete meses. Aca- ilustrada com mapas. Chamou-lhe Atlas, em
bou por ser libertado graças à pressão dos seus homenagem ao nome do mítico titã grego que
colegas estudantes na universidade. carrega o mundo sobre os seus ombros. e

Cartas de navegação feitas de paus


N a opinião de muitos, o povo das Ilhas
Marshall na Micronésia está entre os
melhores navegadores do mundo, pois na-
diferentes ilhas o distorcem. É um conheci-
mento que tem sido transmitido de pai para
filho desde tempos imemoriais. Apenas al-
vegar no Oceano Pacífico sem se perder é guns ilhéus são capazes de conceber e ler
um feito e tanto. Especialmente porque as estas cartas, que não são à escala: são uma
ilhas são muito difíceis de localizar, já que referência mnemónica para um marinheiro
não têm elevações de terra e só podem ser experiente dirigir grupos de até quinze ca-
vistas quando se está bastante perto delas. noas através do oceano.
As Ilhas Marshall são habitadas há dois
mil anos e, para navegar entre elas, os
GETTY

ilhéus desenvolveram cartas náuticas que


estão entre as mais exatas conhecidas. Ou-
tra proeza, considerando que são feitas de
pequenos ramos e das veias centrais das fo-
lhas de coqueiro. Nestes mapas, a posição
exata das ilhas é representada com con-
chas cauri, tal como os padrões de ondas
deixados pelo relevo do fundo do mar — o
chamado fundo marinho — e a forma como

155
77 Farol
Indispensáveis para guiar os navios quando estes se aproximam de
terra, as origens destas edificações remontam ao Antigo Egito.

A
navegação de cabotagem e a chega- antigo farol sobrevivente é a Torre de Hércules
da ao porto não é tarefa fácil, espe- do século I em La Coruña.
cialmente na escuridão da noite ou
no meio de uma tempestade. As- OS FARÓIS MODERNOS COMEÇARAM A SER
sim, a partir do momento em que CONSTRUÍDOS NO FINAL DO SÉCULO XVII. De
nós, humanos, partimos para o mar, tivemos de todos, o mais importante — devido à complexi-
inventar formas de avisar os barcos de que a sua dade do local; o seu recife é um dos mais peri-
chegada a terra estava próxima, e o mais óbvio gosos do mundo para a navegação — foi o farol
era acender fogueiras nas colinas adjacentes. E de Eddystone Rocks no Canal da Mancha, a 19
se não houvesse elevações nas proximidades? quilómetros do porto de Plymouth Sound em
Colocavam esses fogos em plataformas. Estáva- Inglaterra, um dos mais importantes da Grã-
mos apenas a um passo de erguer edifícios per- -Bretanha.
manentes para abrigar esse fogo. Henry Winstanley foi o responsável pela sua
edificação, e fê-lo em madeira e em forma oc-
E OS ALEXANDRINOS DERAM ESSE PASSO togonal. Tornou-se o primeiro farol erguido em
QUANDO CONSTRUÍRAM o primeiro sistema alto mar. A construção, que começou em 1696,
de alerta permanente da história em Faros, uma foi difícil e perigosa, não só porque estava a 20
pequena ilha ao largo de Canopo — uma antiga quilómetros da costa, mas também devido à
cidade portuária egípcia cuja alcunha, Kah Nub, guerra com a França (a Guerra dos Nove Anos):
significa “solo dourado”. Erigido durante o rei- um corsário gaulês fez prisioneiro Winstan-
nado de Ptolomeu II por volta do século III a.C., ley e destruiu tudo o que ele tinha construído.
não era muito diferente dos faróis de hoje. A cer- No entanto, Luís XIV ordenou a sua libertação
ca de 100 metros de altura, todas as noites um vi- imediata: “A França está em guerra com a In-
gia assegurava que o fogo se mantinha aceso. glaterra, não com a humanidade”, explicou o
A utilidade de tais construções espalhou-se monarca gaulês.
pelo mundo e os romanos, conscientes do seu Winstanley completou o seu farol, que foi ace-
valor, ergueram mais de trinta faróis ao longo da so pela primeira vez a 14 de novembro de 1698. A
SHUTTERSTOCK costa, desde construção sobreviveu ao seu primeiro inverno,
o Mar Negro embora tivessem de ser feitas reparações. Para o
até ao Ocea- proteger da devastação do mar, foi revestido no
no Atlântico. exterior com uma pedra dodecagonal e mante-
Destes, o mais ve-se uma secção superior de madeira, que tinha
4,6 m de altura e 3,4 m de diâmetro.
A luz era fornecida por 60 velas e um
grande candeeiro a óleo pendurado.
O farol avisou os marinheiros dos re-
cifes até à grande tempestade de 1703,
quando um ciclone extratropical que
atingiu o centro e o sul de Inglaterra
o fez desparecer da face da Terra a 27
de novembro. Na altura, Winstanley
e outros cinco homens estavam no
farol, a reabilitá-lo e a remodelá-lo.
Nunca mais se ouviu falar deles. e

A Torre de Hércules, em La Coruña, é o farol


mais antigo do mundo ainda em funciona-
mento .À sua direita, o construído por Wins-
HULTON ARCHIVE / GETTY tanley em Eddystone Rocks, no século XVII.
156
IMÁGENES: GETTY

O Antigo Egito foi pioneiro na


construção de barcos. Também a
Mesopotâmia, onde os kuphars
— como os da imagem acima —
sulcavam os rios Tigre e Eufrates.

78 Barco
Foi vital para a exploração dos recursos hídricos, o
desenvolvimento do comércio e a descoberta de novas terras.

E
m 1955, perto da cidade holandesa de A civilização do Vale do Indo — no noroes-
Pesse, um operador de gruas encon- te do subcontinente indiano — também na-
trou o que parecia ser um tronco de vegaria por esta altura, tendo em conta que,
dois metros de comprimento, duran- numa das suas cidades mais a sul, Lothal, se
te os trabalhos de construção da auto- encontrou um molhe concebido para receber
-estrada A28. No entanto, quando o virou, viu barcos de 18 a 20 metros de comprimento e 4
que tinha sido escavado. Um agricultor local, a 6 metros de vau.
Hendrik Wanders, levou-o para a Universida-
de de Groningen, onde foi datado entre 8040 POUCOS POVOS TÊM SIDO TÃO ADEPTOS DO
e 7510 a.C. Parecia um bote, mas será que era? MAR como os orientais, tanto o chinês como o
Alguns historiadores sugeriram que era dema- indiano. A tecnologia naval do primeiro esteve
siado pequeno para navegar; outros que po- sempre vários séculos à frente da do Ocidente;
deria ter sido um bebedouro para animais — o e na Índia, apesar da estranha crença de que
problema é que não havia animais domestica- qualquer hindu que atravessasse os mares per-
dos na Europa naquela época. dia a religião, a sua literatura contém numero-
sas referências a expedições marítimas. Existe
OS PRIMEIROS VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS mesmo um tratado sânscrito, Yukti Kalpa Ta-
DO TRANSPORTE FLUVIAL apontam para o ru, compilado por alguém chamado Bhoja Na-
Egito e a Mesopotâmia, por volta do quarto mi- rapati, que ensina não só como fazer barcos,
lénio a.C. Na terra dos faraós, canoas e balsas mas também quais as melhores madeiras.
de junco evoluíram para barcos maiores — há É também essencial mencionar os austro-
representações de barcos egípcios, utilizados nésios. Originários de Taiwan, inventaram
para transportar obeliscos no Nilo a partir do o catamarã, a canoa de balancim, a vela de
Alto Egito, que tinham até 100 metros de com- pinça de caranguejo, etc., bem como técni-
primento. Na Mesopotâmia, a jangada de peles cas avançadas de construção e navegação de
estendida sobre uma estrutura de madeira e o barcos, com os quais colonizaram rapida-
kuphar, um barco largo, curto e redondo feito mente as ilhas do Sudeste Asiático por volta
de materiais impermeáveis e montado sobre de 3000-1500 a.C. A partir das Filipinas e do
uma estrutura de madeira, dominaram o trans- leste da Indonésia, instalaram-se também na
porte fluvial. Neste caso, o que se procurava era Micronésia entre 2200 e 1000 a.C. São, por tu-
a leveza para que animais de carga, por terra, do isto, considerados os melhores navegado-
pudessem arrastá-los rio acima. res do mundo. e

157
79 Caminho-de-
ferro
A sua história começou há dois séculos, com a locomotiva a vapor.
Foi uma revolução para a população e para a economia da época.

O
engenheiro e químico escocês Ja- a primeira locomotiva de Trevithick, mas sabe-
mes Watt sabia que a sua máquina mos muito pouco sobre ela: apenas um desenho
a vapor podia ter uma infinidade de e uma carta que o inventor escreveu a um amigo
utilizações, para além daquela para sobrevivem; nem sequer sabemos se alguma vez
a qual a concebeu: bombear água de funcionou. O inglês continuou a aperfeiçoar a sua
minas. Já se utilizava no enchimento do algodão e máquina, e em 21 de fevereiro de 1804 teve lugar
estava a pensar em utilizá-la para propulsar veí- a primeira viagem de comboio de sempre quan-
culos. O problema residia no seu grande tamanho do uma das suas locomotivas transportou cinco
porque funcionava com vapor de baixa pressão e vagões, carregados com dez toneladas de ferro,
necessitava, além de um cilindro, um condensador e setenta passageiros a uma velocidade de quase
e uma bomba de ar separada. A única forma de re- 4 km/h ao longo dos quase 16 km da linha férrea
duzir o seu tamanho era conceber uma que funcio- que liga as cidades galesas de Penydarren e Aber-
nasse a altas pressões, o que aumentava o risco de cynon, que era utilizada para transportar ferro e
explosão. Watt patenteou a nova máquina e a sua carvão.
primeira conceção para uma locomotiva a vapor Trevithick continuou a construir locomotivas
em 1784. No mesmo ano, o seu assistente William até 1808, mas o pouco interesse que despertaram
Murdoch construiu uma maqueta à escala de um — eram caras e pesadas — levou-o a desistir .
carro a vapor autopropulsionado.
Uma vez ultrapassado o principal inconvenien- O TESTEMUNHO TOMOU-O, EM 1812, OUTRO
te, vários engenheiros e inventores começaram a INGLÊS, MATTHEW MURRAY, que construiu uma
procurar uma forma de construir uma locomoti- locomotiva a vapor de dois cilindros a que cha-
va economicamente rentável. Mas tiveram de es- mou Salamanca em honra do Duque de Welling-
perar que a patente de Watt da máquina a vapor ton e da sua vitória na Batalha de Arapiles. Murray
expirasse. Isso aconteceu em 1800, e logo no ano introduziu dois melhoramentos: reduziu o peso,
seguinte, Richard Trevithick em Inglaterra e Oli- para evitar que partisse os carris, e melhorou a
ver Evans nos Estados Unidos, conceberam mo- aderência aos carris por meio de uma roda denta-
tores que usavam vapor de alta pressão. Dois anos da, de modo que foi também o primeiro comboio
mais tarde, a Coalbrookdale Iron Works construiu de cremalheira e pinhão da história.
IAN DAGNALL / CORDON
Em 1813, também em Inglaterra, um supervisor
de minas de carvão chamado William Hedley, o
engenheiro Jonathan Forster e o mecânico Timo-
thy Hackworth construíram a locomotiva Puffing
Billy. Ao contrário da de Murray, era alimentada
unicamente pela aderência roda-carril, sem cre-
malheira e pinhão; conseguiram isso, distribuin-
do o peso entre várias rodas. Foi utilizada para
transportar carvão de Wylam Colliery para as do-
cas de Lemington-on-Tyne em Northumberland,
na fronteira escocesa.
Um ano mais tarde, George Stephenson, ins-
pirado pelo trabalho dos seus compatriotas Tre-
Locomotiva a vapor no vithick, Murray e Hedley, convenceu o gerente
National Railway
Museum em York,
Inglaterra, um dos
maiores do mundo.
SSPL / GETTY

comboio que tinham planeado para ligar as duas


cidades deveria ser puxado por uma locomotiva
ou por cabos acionados por uma locomotiva a va-
por estacionária. Para decidir, organizaram um
concurso de talentos. Cinco locomotivas foram
submetidas e tiveram de percorrer uma milha e
realizar uma série de testes. Estes duraram seis
dias e contaram com uma assistência de 15.000
espectadores. Apenas uma conseguiu chegar ao
fim: a Rocket, que ganhou o prémio monetário
de £500.
A partir desse momento, o vapor tornou-se a
As locomotivas Francis Trevithick’s Cornwall — na pon- fonte de energia dominante nos caminhos-de-
te — e Richard Trevithick’s Pen-y-Darren. -ferro de todo o mundo durante mais de um sé-
culo. A bitola internacional de 1,435 m, a mais
da mina de Killingworth — onde trabalhava — a difundida no mundo, foi a escolhida por Ste-
permitir-lhe a construção de uma locomotiva a phenson para a sua locomotiva, já que era a utili-
vapor. O hábil Stephenson melhorou conside- zada na mina onde trabalhava. e
ravelmente os modelos dos seus predecessores.
O primeiro baseou-se no desenho de Murray, e

GETTY
mais tarde chamou-lhe Blücher em homenagem
ao general prussiano cujo avanço forçado para
auxiliar Wellington em Waterloo foi decisivo para
a vitória. Podia puxar um comboio de 30 tonela-
das a 6,4 km/h. Diz-se que este modelo foi segui-
do por outros quinze, embora não haja provas da
existência de todos eles.

O SEU GRANDE SUCESSO VEIO COM A ROC-


KET, que ele construiu para as Provas de Rainhill.
O concurso, realizado em outubro de 1829, foi
convocado porque os diretores da linha ferro-
viária de Liverpool e Manchester, que estava em Em 1829, a Rocket, de George Stephenson, tornou-se
construção desde 1826, não tinham a certeza se o uma referência para as locomotivas do futuro.

Da lâmpada de grisu à locomotiva


E m 1813, Humphry Davy, o cientista mais extra-
vagante da sua época, foi homenageado co-
mo o verdadeiro inventor da lâmpada de seguran-
talidade, a um guarda-freios de vagonetas e filho
de um mineiro chamado George Stephenson. Ele
tinha inventado antes de Davy uma lâmpada ba-
ça para as minas. Depois de receber a Legião de seada no mesmo princípio — uma placa de metal
Honra concedida por Napoleão pelo seu trabalho perfurada rodeava a chama — e estava em uso em
sobre galvanismo e eletroquímica, Davy conce- muitas minas inglesas.
beu a famosa lâmpada que tem o seu nome para Ao saber do prémio, Stephenson ficou furioso,
evitar explosões de metano em minas de carvão. mas a elitista Royal Society não quis corrigir o seu
Após numerosas experiências, descobriu que, se erro, pelo que lhe foi negado o direito a uma pa-
rodeasse a chama da lâmpada com uma fina gaze tente e ao prémio. Os seus apoiantes organizaram
metálica, o calor emitido não acendia o gás circun- uma recolha pública e angariaram £1,000, que lhe
dante, já que se dedicava a aquecer o metal. Por deram como bónus. O dinheiro não só apaziguou
esta descoberta recebeu um prémio de £2000 e Stephenson, mas permitiu-lhe iniciar o trabalho
os elogios da Royal Society. No entanto, o prémio pelo qual seria recordado como um dos maiores
deveria ter sido partilhado, ou entregue na sua to- inventores da humanidade: a locomotiva a vapor.

159
80 Estradas
Embora as estradas dos romanos sejam o seu maior expoente, os
primeiros a pavimentar caminhos foram os Mesopotâmicos.

A
ssim que surgiram as cidades e al- húmida perto de Glaston-

CORDON
deias, surgiu a necessidade de as bury, Inglaterra.
ligar por meio de caminhos pedo- A mais antiga calçada
nais; e quando o transporte sobre em pedra foi encontrada
rodas foi inventado, chegaram as no Egito por volta de 2600
estradas, uma vez que os caminhos naturais não a.C.: atravessava uma zona
eram suficientemente resistentes, especialmen- deserta a quase 70 quiló-
te quando molhados. Por outro lado, à medida metros a sudoeste da atual
que as cidades cresciam, valia a pena pavimen- Cairo e tinha dois metros
tar as ruas com pedras: a grande cidade-estado de largura. Só em 1993 é
Suméria Ur foi a primeira a fazê-lo, por volta de que as pessoas se apercebe-
4000 a.C. Da mesma época data uma calçada de ram porque foi construída:
madeira descoberta durante a escavação de uma nesse ano, dois arqueólo-
Reconstrução da estrada do
turfeira pré-histórica adjacente à prisão de Bel- gos britânicos descobriram Sweet Track na Reserva Natural
marsh em Plumstead, Greenwich, Inglaterra; é os restos de uma grande Nacional de Shapwick.
anterior a Stonehenge em mais de quinhentos pedreira de basalto numa
anos. As zonas húmidas adjacentes a rios como das extremidades da estrada. Esta pedra vul-
o Tamisa eram uma importante fonte de ali- cânica escura era utilizada para pavimentar o
mento e as plataformas de madeira facilitavam interior dos templos mortuários de Gizé, bem
a travessia destas zonas inundadas, como disso como para servir de base aos sarcófagos reais,
testemunham Post Track e Sweet Track, dois ca- pois a sua cor simbolizava a lama escura e vivifi-
minhos de madeira datados de 3800 a.C. que fo- cante do Nilo. A estrada corria desde a pedreira
ram descobertos nos Somerset Levels, uma zona até à margem noroeste do antigo lago Mer-wer,
SHUTTERSTOCK a que os gregos chamavam Moeris e que hoje,
com um décimo da sua antiga área, é chamado
A Via Appia Antica foi
uma das estradas mais Birket Qarun. Assim, o basalto era transportado
importantes do Impé- da pedreira para o lago, e de lá, todos os verões,
rio Romano. quando chegava a época das cheias do Nilo, o la-
go conetava com o rio e o basalto chegava a Gizé.

AS REDES DE ESTRADAS NASCERAM COM OS


GRANDES IMPÉRIOS. Em 500 a.C., o monarca
Dario I, o Grande, começou a construir um ex-
tenso sistema de estradas, incluindo a famosa
Estrada Real, para ligar as principais cidades
do Império Persa. A sua qualidade era tal que
os mensageiros podiam percorrer os seus 2700
quilómetros em sete dias.
Mas foram os romanos os verdadeiros en-
genheiros rodoviários: no seu apogeu, o im-
pério, estava ligado por vinte e nove estradas
principais que saíam de Roma e cobriam quase
80.000 quilómetros de estradas pavimentadas.
Fizeram-no principalmente por razões milita-
res: precisavam que as suas legiões pudessem
viajar rapidamente de uma zona para outra. e

160
81 Sistema de
Desenvolvido
pelo exército

Posicionamento
americano, cedo
foi libertado

Global (GPS)
para uso civil
global.

A
4 de outubro de 1957 dois físicos da Guerra Fria ter ocorrido a 1 de setembro de
americanos, William Guier e George 1983: caças soviéticos abateram o voo comercial
Weiffenbach, estavam ocupados a 007 da Korean Air, com 269 pessoas a bordo. O
monitorizar o sinal de rádio trans- Boeing 747 entrou no espaço aéreo soviético de-
mitido pelo Sputnik. Era um sim- pois de se desviar da sua rota habitual e foi aba-
ples sinal sonoro, mas notaram que a frequência tido ao passar perto de uma base de submarinos
do sinal aumentava à medida que se aproximava atómicos na península de Kamchatka. Como
e diminuía à medida que se afastava: era o efeito resultado, o então Presidente Ronald Reagan
Doppler em ação, o mesmo que acontece quan- ofereceu o sistema GPS à aviação civil uma vez
do um carro em movimento buzina. Este facto concluído, o que ocorreu seis anos mais tarde.
deu-lhes uma ideia: não só um satélite podia ser Em 1989, a Força Aérea lançou o primeiro saté-
rastreado simplesmente medindo a frequência lite GPS totalmente operacional. Devia ser posto
dos sinais de rádio, como era possível saber a lo- em órbita por um vaivém espacial, mas o desastre
calização dos recetores no solo pela sua distância do Challenger — que se desintegrou 73 segundos
aos satélites. Esta é a base concetual do GPS mo- após o lançamento em 1986 — levou à decisão de
derno: calcula a localização e a velocidade me- utilizar um foguete Delta II. No mesmo ano, sur-
dindo o tempo que leva a receber sinais de rádio giu o primeiro dispositivo manual de navegação
de quatro ou mais satélites. GPS, o Magellan NAV 1000. e

AGE / GE ASTRO SPACE / SPL


TRÊS ANOS MAIS TARDE, A MARINHA DOS EUA
LANÇOU o primeiro sistema de navegação por sa-
télite, Transit: utilizava uma constelação de cin-
co satélites e fornecia a posição de um navio uma
vez por hora. Em 1963, a Aerospace Corporation
concluiu um estudo propondo que um sistema
de satélites que enviasse sinais para recetores em
terra continuamente poderia localizar qualquer
veículo em movimento no solo ou no ar a qual-
quer velocidade. Isto exigia a instalação
de relógios muito precisos nestes satéli-
tes, como ocorreu com o Timation, que,
em 1967, demonstrou que era possível
colocar um relógio atómico no espaço.
Em 1974, a Marinha e a Força Aérea
juntaram-se para lançar o primeiro de
uma constelação de vinte e quatro saté-
lites que constituiria o primeiro sistema
GPS do mundo, Navstar. Todos estavam
CORDON

equipados com relógios atómicos e, a


partir de 1980, também transportavam
sensores para detetar lançamentos de mísseis
Acima, o satélite do sistema de
e explosões nucleares. posicionamento global (GPS)
A sua utilização militar foi alargada ao âm- Navstar Block 2R.
bito civil após um dos incidentes mais graves À esquerda, Magellan NAV 1000.

161
82 Carro
O fabrico de uma força motriz que substituiu os cavalos revolucionou
o século XIX. Nomes pouco conhecidos contribuíram para isto.

N
ormalmente os seres humanos de carro da história. Sem dizer ao marido, pe-
criam coisas por necessidade, gou no carro e conduziu até Pforzheim para visi-
mas não foi esse o caso do carro. tar a sua mãe, a 100 quilómetros da sua casa em
Quando o alemão Nicolaus Otto, Mannheim. No caminho tiveram de parar para
um merceeiro que tinha apren- abastecer — compraram o combustível (éter de
dido engenharia por si próprio, desenvolveu o petróleo) numa farmácia — Bertha teve de lim-
primeiro motor de combustão interna em 1866, par o carburador com o seu alfinete de chapéu e
os cavalos e os caminhos-de-ferro estavam a usar as suas ligas para proteger um cabo. Pediu
desempenhar um papel excelente no transpor- até a um sapateiro para colocar algum couro nos
te de pessoas. travões porque estavam a deteriorar-se.
Um engenheiro, Carl Benz, estudou o traba-
lho de Otto e decidiu melhorá-lo. Construiu um AO MESMO TEMPO QUE BENZ, GOTTLIEB
motor a gasolina e instalou-o num carro de três DAIMLER e o seu colaborador Wilhelm Maybach
rodas, que patenteou em 1886: a Benz Patent- estavam a fazer o mesmo, instalando um motor
-Motorwagen. No entanto, a sua invenção pas- da sua própria criação numa bicicleta: o primei-
sou despercebida até 5 de agosto de 1888, quando ro ciclomotor acabara de fabricar-se — levaria
a sua esposa Bertha, acompanhada pelos seus um pouco mais de tempo para que os veículos de
dois filhos adolescentes, fez a primeira viagem entrega ao domicílio aparecessem. A 8 de março
IMÁGENES: GETTY

O austríaco Siegfried Marcus construiu


este carro a gasolina que atingia uma
velocidademáxima de 6 km/h.

162
de 1886, Daimler montou o seu motor
de 1,5 cv — a que chamou “relógio de
avô” devido à sua semelhança com um
relógio de pêndulo — numa carruagem,
que atingiu 15 km/h. No ano seguinte,
instalou-o num barco, criando assim
a lancha a motor, o seu grande sucesso
comercial. Na sequência desta ideia de
equipar tudo o que se movia com um
motor de combustão interna, Daimler
construiu o primeiro camião em 1896.
Contudo,os veículos a motor eram
caros, e assim permaneceram até 1905:
eram apenas o brinquedo dos ricos. Foi a
Primeira Guerra Mundial que fez os mi-
litares compreenderem que os camiões
tinham um papel muito importante a
desempenhar: é mais fácil destruir um
comboio do que um camião, e além dis-
so, estes vão até onde se quer. O engenheiro alemão Gottlieb Daimler em um dos seus automó-
veis de quatro rodas, conduzido pelo seu filho Adolf.
A história tem tratado bem Carl Benz e Gottlieb
Daimler, mas não tão bem os outros.Porque na Um memorandum datado de 4 de julho de 1940
realidade Benz e Daimler não foram os primeiros a afirmava: “O Instituto Bibliográfico e a editora
construir um veículo com um motor de combus- F. A. Brockhaus foram notificados de que no
tão interna. Um belga, Étienne Lenoir, e um aus- futuro as enciclopédias se referirão aos dois en-
tríaco, Siegfried Marcus, já o tinham feito antes. genheiros alemães Gottlieb Daimler e Carl Benz
Na década de 1850, Lenoir encontrou uma for- como os criadores do automóvel moderno, e
ma de acender o gás nos candeeiros de rua dentro não a Siegfried Marcus”. e
de um contentor através de uma faísca elétrica:
tinha acabado de inventar a vela de ignição. Ficou
apenas a um passo de desenvolver um motor, e
Lenoir fê-lo, construindo um com uma potência
de 1,5 cv. Em 1863, montou-o numa carruagem
de três rodas, e com ela fez uma viagem de 18 qui-
lómetros... em 11 horas. Contudo, embora o gás
fosse um combustível muito mais limpo do que o
carvão, era muito perigoso e havia sempre o risco
de explodir. Por conseguinte, teve de ser encon-
trado outro tipo de combustível.

EM 1864 SIEGFRIED MARCUS TEVE UMA BRI-


LHANTE IDEIA ENQUANTO PENSAVA em como
iluminar casas com uma mistura de gasolina e
ar que se acenderia com uma faísca. Ele desco-
briu que a reação era tão violenta que pensou
em usá-la como fonte de energia para mover
as coisas. Pouco depois, instalou um motor de
dois tempos nas rodas traseiras de um carrinho
de mão que percorreu uma distância de 180 me-
tros. Marcus foi em frente e, em 1888, construiu
um automóvel, embora seja difícil estabelecer a
cronologia exata da sua invenção, uma vez que,
sendo de origem judaica, a Alemanha nazi des-
truiu todos os documentos relacionados com Os nazis tentaram apagar da história o pioneiro automóvel
ela. Ele próprio também foi apagado da história. Siegfried Marcus porque era de origem judaica.

163
O inventor da dili-
gência a vapor, o
inglês Goldsworthy
Gurney, foi cirur-
gião, químico, ar-
quiteto, professor
e construtor.

IMÁGENES: GETTY

83 Autocarro
Obra de um prolífico inventor inglês, a sua implementação foi um
obstáculo intransponível para as mentes conservadoras da época.

O
primeiro autocarro — uma dili- chamada Bude Light — em honra da localidade
gência de oito lugares e seis rodas costeira com o mesmo nome onde vivia, que era
movida a vapor — foi inventa- a estância balnear da moda na época vitoriana:
do em 1830 por Sir Goldsworthy ao introduzir oxigénio no meio da chama de uma
Gurney, que era o protótipo do típica lâmpada de petróleo standard, produziu
chamado cavalheiro científico da era vitoria- uma luz branca intensa. Utilizando uma série de
na — um investigador que, graças à sua fortuna lentes e prismas, Gurney iluminou todos os cor-
pessoal ou a outro tipo de trabalho, podia fazer redores e salas da sua mansão com apenas uma
ciência sem ter de estar filiado em qualquer ins- destas luzes.
tituição. No seu caso, o seu trabalho como ci- Depois de a testar num farol em 1839, confir-
rurgião — primeiro na Cornualha, onde nasceu, mou-se que fornecia duas vezes e meia mais luz
e depois em Londres — permitiu-lhe prosseguir do que uma lâmpada de petróleo semelhante. Lu-
a sua verdadeira paixão: a ciência. tou para que fosse instalada em faróis, mas o custo
Ele inventou todo o tipo de aparelhos, desde de o fazer era demasiado elevado e a Bude Light
uma tocha de oxidrogénio até um instrumen- acabou na gaveta das invenções esquecidas.
to musical constituido por copos que se toca- Em 1823 interessou-se pelas possibilidades-
va como um piano. Até criou uma luz peculiar, práticas do vapor, e dois anos depois, após o

164
estrondoso sucesso da locomotiva de
George Stephenson, começou a con-
siderar a ideia de um carro movido a
vapor. No mesmo ano registou uma
patente para “um aparelho de pro-
pulsão de carros em estradas ou ca-
minhos-de-ferro comuns, sem a ajuda
de cavalos, com velocidade suficien-
te para o transporte de passageiros e
mercadorias”. Em 1826 comprou uma
oficina e começou a melhorar o dese-
nho: introduziu um tubo de escape de
vapor para o passar dos cilindros para
a caixa de fumos situada por baixo da
chaminé, aumentando assim a tiragem
e obtendo mais potência.
Em 1829 já tinha o protótipo pronto,
que ele próprio conduziu de Londres
Desenhos de patentes do carro de Gurney, cuja aparência exterior lembra as
a Bath, cerca de 130quilómetros. Foi diligências do século XIX, mas sem os cavalos de tração.
um sucesso retumbante e, dois anos
mais tarde, havia uma linha a funcio-
nar entre Gloucester e Cheltenham
composta por três autocarros. Tam-
bém, a 22 de abril de 1833, o primeiro
autocarro urbano apareceu nas ruas
de Londres. A invenção de Gurney
era superior às carruagens puxadas
por cavalos: muito menos propenso
a capotar, viajava mais depressa, era
mais barato, e fazia menos estragos
nas estradas e percursos pedonais ao
utilizar pneus largos.

CONTUDO, A EMPRESA FALHOU DE-


VIDO ao conservadorismo mais recal-
citrante. Os trusts rodoviários impu-
seram portagens muito elevadas aos
autocarros a vapor, o que inviabilizava
qualquer empresa de transporte auto-
propulsionada. Os autocarros puxados Gravura mostrando o autocarro que cobria o percurso Londres-Bath. Atingia uma ve-
por cavalos, contudo, eram autorizados locidade média de 22 km/h, incluindo o tempo necessário para o reabastecimento.
a circular livremente. Face a esta situa-
ção, a empresa de Gurney ficou sem fundos na e 3 km/h nas zonas urbanas. Também exigia que
primavera de 1832, e ele foi forçado a leiloar os um homem com uma bandeira vermelha — daí
bens comerciais restantes, e até teve de cobrir a alcunha dada à lei — andasse à frente do veí-
as suas perdas com grande parte da sua fortuna culo para avisar os que andavam a cavalo da sua
pessoal. chegada pelas estradas do país. Obviamente, is-
A oposição do governo inglês à mecanização do to obrigava o carro a mover-se ao ritmo de uma
transporte rodoviário foi tornada clara pela Lei pessoa, daí o limite de 6 km/h. Com este regula-
da Locomotiva de 1861. Enquanto inicialmente mento, a administração inglesa fez desaparecer
limitava a velocidade das locomotivas rodoviá- o transporte autopropulsionado das suas estra-
rias a 8 km/h nas cidades e 16 km/h em campo das durante trinta anos. Porquê? Alguns histo-
aberto, a reforma de 1865 — popularmente co- riadores sugerem que a razão era que o governo
nhecida como a Lei da Bandeira Vermelha — re- tinha fortes interesses económicos ligados aos
duziu estes limites para 6 km/h nas zonas rurais caminhos-de-ferro. e

165
84 Avião
Considerando a quantidade de tráfego aéreo no mundo de hoje, é
difícil acreditar que tenha tido início há pouco mais de um século.

A
história reconheceu os irmãos após vários anos, construiu um com 52 cavalos
Wright como os verdadeiros arqui- de potência. Dezembro de 1903 foi um mês de
tetos do longínquo sonho da huma- fazer parar a respiração! No dia 8, Langley ten-
nidade de sulcar os céus. De facto, a tou voar no seu Aeródromo A pela segunda vez.
Federação Aeronáutica Internacional Lançado de uma catapulta, o avião acabou por
(FAI) reconhece o seu voo de 17 de dezembro de cair no rio Potomac. Nove dias mais tarde, os
1903 em Kill Devil Hills (Carolina do Norte, EUA) irmãos Wright faziam voar o seu Flyer.
como o primeiro voo sustentado, controlado e
tripulado numa embarcação mais pesada do que WILBUR E ORVILLE WRIGHT TINHAM FEITO DE
o ar. TUDO NA VIDA: geriram uma tipografia, depois
A última década do século XIX foi uma ver- uma editora, um jornal e uma loja de venda e re-
dadeira corrida para ver quem era o primeiro a paração de bicicletas. A morte de Lilienthal em
voar, começando pelo engenheiro francês Clé- 1896, num acidente com o seu avião, levou-os a
ment Ader, que em 1890 terminou a construção entrar seriamente no mundo da aviação. Como
de um avião com motor a vapor, Éole: descolou, os seus antecessores, estudaram primeiro como
mas não conseguiu controlá-lo e caiu depois de controlar o avião em voo através da constru-
voar cinquenta metros. ção de planadores. Após duas falhas e duzentas
Havia dois problemas principais a resolver: a conceções testadas no túnel de vento que cons-
potência do motor e a estabilidade em voo. A truíram, o terceiro planador foi um sucesso.
maioria dos inventores começavam pelo segun- Contudo, a parte complicada estava ainda por
do, compreendendo a aerodinâmica do voo, vir: a construção de um motor que fosse sufi-
utilizando planadores. Como fez, em 1884, o cientemente potente e não demasiado pesado.
alemão Otto Lilienthal, conhecido como o Rei Optaram por um motor a gasolina, mas nenhum
Planador. Ou, em 1896, o astrónomo america- fabricante foi capaz de construir um. Falaram en-
no Samuel Pierpont Langley, que, como resul- tão com Charlie Taylor, o mecânico da sua oficina
tado, recebeu 50.000 dólares do governo para de bicicletas: em seis semanas construiu um mo-
construir um planador de reconhecimento. O tor de 12 cavalos de potência num metal menos
seu passo seguinte foi acoplar-lhe um motor; habitual, o alumínio, o que o tornava mais leve.
CORDON

À esquerda, o primeiro voo bem


sucedido do Wright Flyer, em
1903. Abaixo, os artífices da
proeza: os irmãos Wright.
CORDON

166
Companhias aéreas modernas
A detonação da primeira bomba atómica so-
viética em 1949 levou os americanos a con-
ceberem a primeira cadeia de radares de defe-
a manutenção dos aviões, horários da tripulação,
requisitos de combustível e tudo o mais que uma
companhia aérea precisava de saber em tempo
sa controlada por computador. Este sistema de real. O SABRE, que processava grandes quantida-
alerta precoce foi chamado DEWLine. Um dia des de informação em segundos, tornou possível
de primavera em 1953, um engenheiro da IBM a complexidade das viagens aéreas modernas.
que trabalhava no projeto voou com a American

GEORGE RINHART / GETTY


Airlines. Por acaso, ele estava sentado ao lado do Sistema de processamento
presidente da empresa e começaram a falar. O de dados IBM para a Ame-
rican Airlines.
homem da IBM explicou o princípio subjacente
ao DEWLine ao seu companheiro de voo, e rapi-
damente viu que seria uma aplicação perfeita para
a reserva de voos. A American Airlines lançou este
sistema no início da década de 1960 com o nome
de SABRE, ligando agências, terminais de reserva
e balcões em todos os Estados Unidos. Em breve
estendeu-se a tudo o que estava relacionado com

GETTY
Tinham o seu Flyer: tinha-lhes custado menos
de mil dólares, cinquenta vezes menos do que
Langley tinha recebido por ter desenvolvido um
planador para o governo. Pesando 274 quilos, es-
tava pronto para entrar para a história. Qual dos
dois irmãos o pilotaria? Uma moeda ao ar livre
decidiu-o: Orville. Apenas uns poucos sortudos
testemunharam o voo, pois os Wright não esta-
vam interessados em torná-lo público.

NO ENTANTO, HÁ DUAS NUVENS NEGRAS


QUE ENSOMBRAM ESTE FEITO. O primeiro é
Gustav Weißkopf, um emigrante alemão nos
Estados Unidos que mudou o seu apelido para
Whitehead. Começou a fazer os seus próprios
desenhos de aviões em 1897 e, após quatro
anos, a 14 de agosto de 1901, afirmou ter fei-
to um voo controlado e motorizado com o seu 1907 fotografia do pioneiro brasileiro Alberto-
monoplano, Número 21, em Fairfield (Con- Santos Dumont sentado no seu avião.
necticut). Isto foi noticiado num jornal local,
o Bridgeport Sunday Herald, a 18 de agosto. Parque de Bagatelle, em Paris, diante de cente-
Tudo o que resta deste avião é a sua descrição e nas de testemunhas. O seu avião, com uma es-
algumas fotos publicadas na revista Scientific trutura de bambu e madeira, juntas de alumínio
American em junho de 1901, onde se dizia estar e forrado com seda japonesa, tinha duas rodas
concluído e “pronto para testes preliminares”. de bicicleta como trem de aterragem e um cesto
O problema é a falta de informação: não há ne- de vime como cockpit. E para o voo, um motor
nhuma prova gráfica do voo, nem sabemos co- de 50 cavalos de potência. Para alguns peritos
mo se realizou. em aviação, esta foi a primeira vez que voou um
A outra nuvem que escurece o horizonte avião real: o 14-bis descolou sem a ajuda de ca-
dos Wright é o brasileiro Alberto Santos Du- tapultas ou a necessidade de esperar por uma
mont. A 23 de outubro de 1906 voou no seu corrente de vento adequada, como tinha sido o
14-bis sessenta metros ao longo do Sena no caso dos Wright. e

167
168
85 Agulha de coser
Esta pequena ferramenta afiada, com um orifício para enfiar o fio, tem
sido utilizada desde a pré-história para tecer peças de vestuário.

C
oser um botão numa camisa, remen- fixar pontas de pedra a
dar um par de calças, cerzir uma meia cabos de madeira pa-
...A costura tem estado connosco desde ra fazer lanças, foram
que nos vestimos pela primeira vez. De também encontradas no
acordo com a versão mitológica conta- mesmo local e datadas
da no Génesis, isto aconteceu quando Deus expul- de há cerca de 70.000
sou Adão e Eva do paraíso por terem comido o fruto anos.
proibido da árvore do conhecimento. Ao provar a Mas a prova inequí-
maçã, não se pode dizer que os nossos antepassados voca de que a costura
aprenderam muito, mas começaram a sentir vergo- é a arte mais antiga do
nha da sua própria nudez. Desde então, os humanos mundo vem da caverna
têm tido necessidade de vestuário, ao ponto de este de Denisova na Sibéria.
ter passado de uma espécie de maldição a um negó- Existe aí uma agulha de
cio. E, claro, o vestuário não seria nada sem costu- cerca de 7 cm de com-
ra, uma actividade que, pelo menos entre as nossas primento, com um orifí-
avós, é sinónimo de se desenvencilhar, ou não nos cio na extremidade para
diziam “ele nem sequer sabe coser num botão”? inserir a linha, datada de
há 50.000 anos. Contu-
REMENDAR A ROUPA TEM ESTADO SEMPRE PRE- do a peculiaridade desta
SENTE NA ESPÉCIE HUMANA. Na Gruta de Sibudu, descoberta não é tanto
um abrigo rochoso num penhasco de arenito ao lar- a descoberta da agulha, DP

go do Oceano Índico na África do Sul, foi encontra- mas que possivelmente


do o que parece ser uma agulha de osso com 61.000 pertenceu a uma espé-
anos. A ponta de seta mais antiga, semelhante em cie do género Homo, o
idade à agulha, e a mais antiga cola composta (feita denisovano, cujos res-
de goma vegetal e ocre vermelho), utilizada para tos foram encontrados nesta área da Sibéria em
GETTY
2010 e cuja origem esta-
ria numa rota de saída de
África diferente da dos
Neandertais e dos huma-
nos modernos. Aparen-
temente, a costura não é
uma arte exclusiva nossa,
os Homo sapiens. e

Desde os tempos pré-históricos


até ao século XIX, as agulhas
com um orifício chamado olho
eram feitas à mão. Inicialmente
feitas de osso ou madeira, fo-
ram mais tarde feitas de metal.
As primeiras agulhas metálicas
produzidas em massa foram co-
locadas à venda em 1826.

169
As máquinas de costura foram inven-
tadas para reduzir o tempo de trabalho
nas empresas têxteis.Os primeiros mo-
delos não prosperaram porque havia o
receio de que retirariam trabalho aos
alfaiates e costureiras.
GETTY

86 Máquina de
costura
Esta invenção, capaz de coser rapidamente grandes quantidades de rou-
pa, revolucionou a indústria têxtil na segunda metade do século XIX.

P
or mais essencial que seja a costura, só cios foram à sua fábrica e destruíram as máqui-
suscitou o interesse da moderna tec- nas. O desenho de Thimonnier, contudo, não era
nologia em 1755, quando o médico e uma máquina de costura propriamente dita, mas
inventor alemão Charles Frederick Wie- simplesmente uma mecanização da operação de
senthal patenteou o primeiro dispositivo costura manual.
de costura mecânico, uma agulha de ponta dupla
com um buraco numa das extremidades. A sua QUEM INTRODUZIU A MÁQUINA DE COSTURA
patente não mostrava nenhum mecanismo para QUE TODOS conhecemos foram Walter Hunt em
acioná-la, mas envolvia a utilização de dois pa- 1832 e Elias Howe — sem saber nada da máquina
res de dedos mecânicos, um para passar a agulha fabricada pelo primeiro — em 1845. Hunt era um
através do tecido e o outro para o segurar do ou- engenheiro americano, um prolífico inventor de
tro lado. Trinta e cinco anos mais tarde, em 1790, engenhocas do dia-a-dia, como o alfinete de segu-
Thomas Saint, um marceneiro londrino, registou rança. Hunt nunca patenteou o seu dispositivo por
outro mecanismo de costura destinado a ajudar no receio de que isso retirasse trabalho aos alfaiates e
fabrico de selas de couro, sapatos, correias, velas costureiras. O seu compatriota Howe, um humil-
náuticas, mas parece que nunca o construiu. de mecânico de vinte e um anos que concebeu uma
Foi apenas em 1830 que se viu a primeira má- máquina de costura no pobre sótão onde vivia, fê-
quina de costura em ação. Foi construída em Pa- -lo. Mas a sorte não estava do seu lado porque não
ris por Barthélemy Thimonnier com o objetivo de conseguia encontrar investidores para implemen-
fazer uniformes para o exército francês. Mas no tar o seu invento. Assim, fez as malas e partiu com o
ano seguinte, algumas centenas de alfaiates que seu irmão e a sua mulher para Inglaterra. Em Lon-
temiam que a invenção arruinasse os seus negó- dres, conseguiu vender a máquina por 250 libras,

170
GETTY

mas uma série de disputas com o seu parceiro in- que o tinha defendido
glês obrigou-o a regressar aos Estados Unidos em dois anos antes numa
1848 sem um tostão no bolso. Nesta altura, outros ação judicial intentada
empresários tinham começado a construir as suas por Howe contra a sua
próprias máquinas de costura, obrigando Howe patente. Foi Clark quem
a defender a sua patente em tribunal. Um desses introduziu estratégias
empresários foi Isaac Merrit Singer. de vendas que desde en-
tão não abandonaram
ANTES DE SE TORNAR O MILIONÁRIO CONS- o mundo dos negócios.
TRUTOR das máquinas que têm o seu nome, Entre outras coisas, ele
Singer trabalhava como mecânico numa loja em pensou que seria uma
Boston, a mesma cidade onde Howe tinha inven- boa ideia lançar a revista
tado a sua máquina. Logo acima do modesto apar- Singer Gazette, que seria Thimonnier concebeu uma má-
tamento onde vivia residia um homem chamado distribuída gratuitamen- quina para costura de uniformes.
Phelps que construía máquinas de costura. Singer te aos compradores da máquina, onde seriam pu-
interessou-se por elas porque viu que ali havia blicados novos usos e produtos das suas máquinas
dinheiro e começou a trabalhar numa forma de de costura. Da mesma forma, Clark introduziu o
melhorar as que já estavam no mercado. Juntou- pagamento por prestações: as Singer vendiam-
-se a dois amigos, que lhe emprestaram 40 dólares -se com um adiantamento de 5 dólares e depois
para que pudesse levar o seu trabalho a bom ter- prestações mensais fáceis com juros. Foi também
mo. Quando finalmente terminou a sua máquina, Clark que inventou a ideia de recolher máquinas
estava na hora do teste e... não funcionou! Os seus de costura antigas e oferecer um desconto por
amigos deixaram-no e ele ficou a perguntar-se o elas na compra de uma Singer. Como se isso não
que poderia ter corrido mal. Como não conseguia bastasse, ele ganhou as bênçãos das igrejas ame-
pensar em nada, foi para casa de mau humor e en- ricanas ao oferecer máquinas de costura a preços
vergonhado. Mas quando andava pela rua, teve de baixos aos seus grupos e convenceu os maridos de
repente uma ideia, correu de volta à oficina, ajus- que as suas esposas teriam mais tempo livre de-
tou o parafuso de tensão e a máquina funcionou. vido a elas. Com estas técnicas de venda, em 1861
Claro que uma coisa é ter uma invenção que Singer vendia mais máquinas de costura do que
funcione e outra bem diferente é tornar-se mi- qualquer outra empresa, e seis anos mais tarde a
lionário com ela. Howe é um exemplo claro. Em Singer Corporation tornou-se a primeira empresa
1851, Singer associou-se com Edward C. Clark, multinacional na história. e
AGE GETTY

O empresário americano Isaac Merritt Singer (1811-1875) fez melhorias significativas no desenho de máquinas de costura
e fundou a Singer Sewing Machine Company. À direita, um dos modelos mais vendidos, com pedal e armário.

171
87 Lâmpada elétrica
Este pequeno dispositivo levou a luz a casas e ruas e mudou para
sempre a civilização no final do século XIX.

U
GETTY

ma das experiências mais fasci-


nantes que a nossa civilização tec-
nológica tem deixado para trás é a
sensação de escuridão. Quando a
humanidade vivia em em redor de
uma fogueira, a sensação de abandono e medo do
que se move na escuridão da noite estava enrai-
zada na parte mais profunda da cultura. Com o
advento da iluminação a gás e, sobretudo, mais
tarde, da iluminação elétrica, a escuridão per-
deu algum do seu significado, pois já não era
inevitável. O principal artífice desta mudança
foi Thomas Alva Edison. A iluminação a gás já
existia nessa altura, mas não era suficientemente
brilhante e o perigo de incêndio e explosão es-
tava sempre presente. Os cientistas sabiam que
se uma corrente elétrica fosse passada através de
um fio condutor, este aqueceria, mas poderia ser
levado à incandescência e fazê-lo brilhar? Du-
rante os primeiros setenta e cinco anos do século
XIX, cerca de trinta inventores tentaram e fa-
lharam. A teoria era simples e elementar, mas as
dificuldades práticas pareciam intransponíveis.

EM 1878 EDISON TINHA TRINTA E UM ANOS E


ERA CONSIDERADO o maior e mais brilhante
inventor dos tempos modernos. Quando anun-
ciou a sua intenção de resolver o problema nesse
ano, houve uma regozijo geral. Todos estavam
convencidos de que Edison poderia conseguir
qualquer coisa. Ele era um génio, sem dúvida,
mas génio, como ele próprio disse, consiste em
1% de inspiração e 99% de transpiração. Inven-
tar exige um trabalho árduo e constante. Criar
a lâmpada elétrica exigiu muito dele, pois tinha
subestimado as dificuldades. Determinado a
utilizar fios de platina, levou um ano e 50.000
dólares a descobrir que este metal não era o mais
adequado para o filamento incandescente. Após
centenas de experiências, ele encontrou algo
que brilhava em cor vermelho sem derreter ou
quebrar. Paradoxalmente, não era um metal,
A lâmpada incandescente ou lâmpada elétrica produz luz mas um frágil filamento de algodão queimado,
ao aquecer um filamento metálico que fica avermelhado ou, por outras palavras, um fino fio de carbono.
pela passagem de corrente elétrica. A 21 de outubro de 1879, montou um destes fi-

172
ALBUM DOMINIO PÚBLICO

Thomas Alva Edison no seu laboratório em Menlo Park, Nova Jersey. Aí ele descobriu o efeito Edison ou emissão termiónica,
que é o fluxo de partículas carregadas causado por uma força eletrostática que empurra os eletrões para a superfície.

lamentos numa lâmpada e esta iluminou inin- tão extraordinária. Escreveu-o no seu caderno
terruptamente durante quarenta horas. A 31 de de notas e em 1884 a sua mentalidade empreen-
dezembro, Edison lançou a operação final: na dedora encorajou-o a patenteá-lo. O fenómeno
última noite de 1879, a rua principal da sua ci- foi chamado o efeito Edison.
dade, Menlo Park em Nova Jersey, foi iluminada Contudo,o génio de Menlo Park esqueceu-se
por corrente elétrica. deste curioso fenómeno e nunca mais pensou
sobre ele. Hoje sabemos que é o produto de um
TENDO CONSEGUIDO CONCEBER UMA FORMA fluxo fraco de eletrões entre o filamento do bul-
DE ACENDER UMA LÂMPADA, Edison trabalhou bo e o filamento metálico. Mais tarde, quando os
arduamente para melhorar a sua eficiência. Ele cientistas foram capazes de manipular e ampli-
queria encontrar um filamento que durasse mais ficar esta chuva de eletrões no vácuo e, também,
tempo. Como de costume, testou tudo o que lhe controlar o comportamento da corrente elétrica
ocorreu. Entre outras coisas, teve a ideia apa- com muito mais precisão, o efeito Edison foi a
rentemente tola de prender um fio metálico ao chave que abriu a porta ao desenvolvimento da
bulbo onde tinha feito o vácuo. Colocou este fio primeira válvula de vácuo. Com ela começou a
perto do filamento, mas sem lhe tocar. Ou seja, era da eletrónica. e
os dois elementos, filamento
SHUTTERSTOCK
e arame, estavam separados
por um pequeno espaço vazio.
Edison acendeu o bulbo para
ver se a presença do fio me-
tálico preservaria de alguma
forma o filamento e impediria
a sua quebra. Isso não aconte-
ceu, mas observou algo muito
curioso: uma fraca corrente
elétrica fluía do filamento para
o fio através do vácuo.
Entre todo o vasto conhe-
cimento prático que o famoso
inventor tinha sobre eletrici-
dade, não havia nada que pu- A iluminação pública elétrica, agora omnipresente, generalizou-se nos Estados
desse explicar uma descoberta Unidos na década de 1890 com a invenção da lâmpada.

173
88 Fonógrafo
O primeiro dispositivo capaz de gravar e reproduzir som abriu a porta
ao gira-discos e aos dispositivos musicais que se lhe seguiram.

A
história teria sido diferente se em a anatomia do ouvido. Poderia haver uma forma
1857 um francês chamado Édouard- de montar um equivalente mecânico do nosso
-Léon Scott de Martinville não ti- aparelho auditivo?
vesse atirado a toalha ao chão. Em
25 de março desse ano, patenteou o TUDO O QUE HAVIA A FAZER ERA CONSTRUIR
fonoautógrafo, um aparelho capaz de converter UMA MEMBRANA QUE MOVESSE PEQUENAS
a voz humana em traços num papel. Este im- ALAVANCAS ao estilo dos ossículos do ouvido
pressor e livreiro parisiense tinha ficado fascina- de modo a deixar uma marca num pedaço de
do com a fotografia desde que o seu compatriota papel, como os sulcos de um arado. Apresen-
Joseph Nicéphore Niépce conseguiu capturar a tou o seu fonoautógrafo à Academia Francesa
paisagem que se via através de uma janela da sua de Ciências a 26 de janeiro de 1857. O som fazia
casa, numa placa de estanho (uma liga de esta- vibrar um pedaço de pergaminho preso a uma
nho, cobre, antimónio e chumbo) untada com cerda fina, que por sua vez traçava uma linha
betume da Judeia e óleo de lavanda. Esta primei- ondulada sobre uma folha de papel enrolada
ra fotografia da história, tirada em 1826, necessi- num cilindro rotativo e coberta com uma fina
tou de oito horas de luz solar para ser capturada. camada de fuligem. Desta forma, a voz humana
Scott perguntou-se então se algo semelhante era gravada em forma de ondulações traçadas
poderia ser feito com o som, e olhou para os de- num pedaço de papel, tal como o batimento do
senhos de um livro que estava a imprimir sobre coração num eletro.
AGE

O fonógrafo, inventado por Thomas Alva Edi-


son e registado em 1878, é submetido a uma
sessão de testes antes de ser comercializado.

174
AGE

O dispositivo passou completa-


mente despercebido e entusias-
mou apenas alguns cientistas. A
razão era óbvia: Scott não consi-
derou o processo inverso, ou seja,
a conversão deste traço em som.
Mas em 2008, uma equipa de cien-
tistas conseguiu reproduzir acus-
ticamente uma das tiras de papel
que Scott tinha gravado a 9 de abril
de 1860. Era uma parte da canção
tradicional francesa Au clair de la
lune, cantada por ele próprio. É a
mais antiga gravação sobrevivente
da voz humana, agora com mais de
um século e meio de idade.

QUEM PRIMEIRO RESOLVEU O


QUE A SCOTT HAVIA PASSADO
foi o seu compatriota Charles Cros, Edison foi um dos inventores mais prolíficos da história, especialmente no
poeta e cientista amador com ideias setor das telecomunicações. Registou 1093 patentes em seu nome.
peculiares. Em 1874 tinha proposto GETTY

que a melhor maneira de se conetar


aos habitantes de Marte era cons-
truir um espelho gigantesco capaz
de focar os raios do Sol na super-
fície do planeta e queimá-lo, mas
deixando uma mensagem. A fim
de fazer da sua nova invenção uma
prioridade, a 30 de abril de 1877,
entregou um relatório das suas
ideias num envelope selado à Aca-
demia das Ciências. A sua proposta
era gravar fonoautografia em pla-
cas metálicas em vez de papel. Para
reproduzir o som, bastava fazer o
processo inverso: rodar a placa me-
tálica à mesma velocidade a que foi
gravada e colocar uma agulha liga-
da a um diafragma que, ao vibrar,
produziria esse som. Chamou-lhe
O fonógrafo tinha um precedente no fonoautograma, patenteado em 1857
paleófono.
pelo francês Scott de Martinville (à esquerda, testando o dispositivo).
Mas depois chegou a notícia de
que do outro lado doAtlântico um prolífico in- nadores e ao próprio presidente. Na prestigiada
ventor e empresário chamado Thomas Alva Edi- Academia Nacional de Ciências dos EUA, Edison
son tinha acabado de apresentar o fonógrafo. O foi descrito como “o inventor mais engenhoso
dispositivo baseava-se no mesmo princípio, neste país... ou em qualquer outro”. O Washin-
mas utilizava uma folha fina de alumínio enro- gton Post descreveu a sua apresentação como
lada num cilindro canelado. A qualidade do som “uma cena que viverá na história”. Foi assim
era má e só podia ser tocada algumas vezes antes que o famoso personagem se tornou subitamen-
do papel se partir, mas a invenção lançou Edi- te o Feiticeiro de Menlo Park. Curiosamente,
son para a estratosfera. Em abril de 1878, viajou embora tenha patenteado o seu fonógrafo em
para Washington do seu laboratório de ideias 1878, pouco fez para o melhorar até anos mais
em Menlo Park, Nova Jersey, para demonstrar tarde, quando outros inventores como Graham
o seu fonógrafo a cientistas, congressistas, se- Bell lançaram os seus”. e

175
A filha de Christopher Latham Sholes,
inventor do teclado QWERTY, testa
uma máquina experimental nos EUA
em 1939. À direita, a primeira Re- GETTY
GETTY

mington com tabulador.

89 Máquina
de escrever
Desde finais do século XIX até ao advento dos computadores, foi
a ferramenta indispensável nos escritórios de todo o mundo.

E
m 1865, o Reverendo Rasmus Malling- alcance dos dedos mais rápidos, com as vogais à
-Hansen foi nomeado diretor do Instituto esquerda e as consoantes à direita. Atingiu 800
Real para Surdos-mudos de Copenhaga e toques de tecla por minuto. Nesta base, concebeu
inventou a primeira máquina de escrever, o skrivekugle, que se assemelha a um grande al-
a que chamou skrivekugle (bola de es- fineteiro.
crever) pela sua forma. No seu trabalho, percebeu
que enquanto a maioria das pessoas só conseguia PATENTEOU-O E CONTINUOU A MELHORÁ-LO.
escrever quatro caracteres por segundo, com a A BOLA TRIUNFOU EM COPENHAGA e nas Ex-
linguagem de surdos chegava-se até doze. Pode- posições Universais de Viena (1873) e Paris (1878).
ria um dispositivo ser concebido para imitar isto? Recebeu encomendas de todo o mundo e tornou-
A parte mecânica tinha de ser resolvida, o que não -se a primeira máquina de escrever a ser produzi-
era complicado porque já existia algo semelhante: da à escala comercial, mas tinha uma falha: não se
o piano. O mais custoso seria encontrar a melhor conseguia ver o papel ou o que estava a ser escrito
disposição das letras no teclado para obter a velo- nele à medida que o dispositivo passava.
cidade de digitação rápida. Entretanto, nos Estados Unidos, o editor
Malling-Hansen fabricou um modelo semiesfé- Christopher Latham Sholes e o impressor Samuel
rico de porcelana, desenhou as letras nele e estu- W. Soulé patentearam uma máquina para nume-
dou pacientemente os tempos de datilografia para rar páginas de livros e bilhetes em 1866, e mostra-
diferentes configurações de teclado. No final, co- ram-na a Carlos Glidden, um advogado e inventor
locou as letras mais frequentemente utilizadas ao amador que estava a trabalhar numa charrua me-

176
AGE

cânica. Perguntaram-lhe se utilizador principal. Como


a máquina não podia impri- Densmore disse, “é melhor
mir tanto letras como núme- descobrir um defeito agora
ros, por isso os três uniram do que depois de termos co-
forças e começaram a dese- meçado a fabricar”.
nhar uma. O seu primeiro Uma das questões-chave
modelo tinha um teclado de continuou a ser o teclado.
duas filas com teclas de mar- Densmore sugeriu a separa-
fim para letras maiúsculas e ção das combinações de le-
teclas de ébano para núme- tras mais comuns para evitar
ros. Não incluíram o 1 ou o 0 o encravamento, uma vez
porque pensavam que o O e A skrivekugle (bola de escrita) foi patenteada que o tempo de recuperação
o I cumpririam essa função. A pelo Dane Rasmus Malling-Hansen em 1872. de uma tecla uma vez premi-
máquina era apenas uma das da era lento: assim nasceu a
muitas em circulação e isso dificultava a procura ideia de Sholes do teclado QWERTY.
de um parceiro financeiro. Encontraram um em No entanto ,Sholes estava cada vez mais farto
James Densmore, que, quando viu a máquina, da sua invenção, que ele considerava “um cru-
não ficou convencido e sugeriu que o trio a me- zamento entre um piano e uma mesa de cozi-
lhorasse. Soulé e Glidden abandonaram o projeto nha”. No final, vendeu a sua parte da patente
e deixaram Sholes e Densmore sozinhos. a Densmore por 12.000 dólares. O único sócio
que ficou de pé, então, começou a procurar um
PENSARAM QUE OS SEUS POTENCIAIS CLIEN- fabricante em grande escala e encontrou um
TES INCLUIRIAM OS ESTENÓGRAFOS, por is- numa empresa de armamento da Guerra de Se-
so decidiram pedir ajuda a alguns deles. Entre cessão: E. Remington and Sons, que após o fim
aqueles que aceitaram, havia um em Washin- da guerra tinha diversificado as suas ofertas
gton, James O. Clephane, que assumiu o cargo para incluir não só armas, mas também máqui-
com mais vontade. Testou os protótipos tão in- nas de costura e maquinaria agrícola. Em 1 de
tensamente que destruiu vários, mas os seus co- março de 1873 a Remington entrou em campo e
mentários, muitas vezes cáusticos, foram muito comprometeu-se a fabricar 1000 máquinas de
úteis e ajudaram-nos a refinar a sua máquina e escrever com a opção de produzir mais 24.000.
a melhorar a qualidade. Tornou-se claro que, Densmore recebia direitos exclusivos de venda
antes de lançar um produto no mercado, era e distribuição. Foi um acordo em que ambas as
sensato procurar o conselho de quem iria ser o partes ganharam. e
SHUTTERSTOCK

O teclado QWERTY é a disposição de letras e caracteres que se tornou padrão em quase todas as máquinas.

177
90 Fotografia
moderna
Uma pequena câmara escura capaz de alojar um suporte que fixava a
luz — a película de celuloide — revolucionou o mundo da imagem.

E
m maio de 1861, o Royal Institution de mente. A audiência no Royal Institution nesse
Londres convidou o físico James Clerk dia viu a primeira fotografia a cores da história.
Maxwell, pai do eletromagnetismo, O surpreendente é que tenham sido necessários
para dar uma palestra sobre a sua teo- muitos anos para que o resultado se repetisse.
ria das cores. Em vez de falar sobre os
princípios teóricos, Maxwell fez um exercício DE FACTO, OS PERITOS DOS LABORATÓRIOS
prático para mostrar que qualquer cor poderia KODAK NÃO RESOLVERAM O ENIGMA até um
ser gerada a partir das três primárias. Ele pensou século mais tarde. Segundo eles, a experiência
que se tirasse três fotografias do mesmo objeto de Maxwell nunca deve ter funcionado porque a
usando um filtro verde, um vermelho e um azul placa fotográfica era totalmente insensível à luz
e as projetasse simultaneamente e sobrepos- vermelha. Se conseguiu, foi devido a uma série
tas, usando os mesmos filtros, conseguiria algo de coincidências. Por um lado, o corante verme-
nunca antes visto. Havia apenas um problema: lho na fita refletia alguma luz ultravioleta para
as placas fotográficas da época eram sensíveis além dessa cor, e a solução de Sutton para o filtro
ao azul, mas muito pouco ao vermelho. Em to- vermelho tinha uma passagem de banda na mes-
do o caso, era apenas uma questão de tentar. No ma região do espetro ultravioleta. Não só isso,
King’s College tinha um colega, Thomas Sutton, mas a emulsão utilizada nas placas não era sen-
que era um fotógrafo especializado, que o ajuda- sível ao vermelho, mas ao ultravioleta. Assim, o
ria. Tiraram três imagens de uma fita escocesa, que tinha realmente acontecido no Royal Insti-
sobrepuseram-nas e a fita via-se maravilhosa- tution é que a fotografia obtida com a cor ver-
GETTY

Imagem estereoscópica, de
1910, de um homem suspenso
de uma viga sobre as ruas de
Manhattan. A fotografia foi uti-
lizada como publicidade para as
câmaras Eastman da Kodak.
ta quantia de cinco milhões de dólares. A nova
invenção utilizava tiras de um material flexível,
transparente, não inflamável, o celuloide. Era
uma base inerte perfeita para produtos químicos
fotográficos. Acabara de nascer a película ou fil-
me. Em 1888 a Eastman trouxe para o mercado
uma máquina suficientemente pequena para ser
segura numa só mão. Deu-lhe o nome de Kodak
e colocou a fotografia ao alcance de todos. e

O sucesso da câmara Kodak inventada por George East-


man residiu não só no próprio dispositivo, mas também
no suporte de película que lhe permitia tirar mais de
uma centena de fotografias.

melha tinha sido efetivamente produzida numa


gama do espetro invisível ao olho humano.
Do acima exposto, fica evidente que em mea-
dos do século XIX tirar fotografias era dispen-
dioso, demorado e oneroso. Os negativos eram
placas de vidro, as câmaras eram caixas de
madeira monstruosas e eram utilizados baldes
e baldes de produtos químicos. Mas esse mun-
do iria mudar alguns anos mais tarde. Um dia,
em 1870, George Eastman deixou o banco onde
trabalhava desde os catorze anos de idade por-
que não lhe foi dada a promoção que esperava.
Determinado a instalar-se por conta própria,
utilizou todas as suas poupanças para se tornar
fabricante e comerciante de material fotográ-
fico. A Eastman estava preparada para revolu-
cionar o mercado fotográfico, trazendo-o para
todas as casas e anunciou o novo processo de
desenvolvimento com o slogan: “Carregue no
botão. Nós faremos o resto”.

GEORGE EASTMAN APERFEIÇOOU UMA TÉC-


NICA JÁ EM USO , que consistia em impregnar
um rolo de papel com gelatina e brometo de
prata. Colocava-se o papel na câmara, a foto-
grafia era tirada, revelava-se, a parte impressa
era colocada num copo e despegava-se o papel.
Este processo tinha os seus problemas: o papel
rasgava-se, a emulsão fotográfica formava gru-
mos e a imagem saía muitas vezes desfocada. De-
pois, em 1884, chegou a solução. Não se sabe se
a ideia original foi de Eastman ou de um obscuro Acima, a primeira fotografia a cores da história, de uma
ministro episcopal chamado Hannibal Goodwin. fita de tecido escocês, foi tirada em Londres em 1861 pe-
Alguns dizem que os advogados da família East- lo físico James Clerk Maxwell (acima, durante uma das
man fizeram um acordo com o clérigo pela boni- suas experiências sobre eletromagnetismo).

179
91 Água
carbonatada
Foram necessários grandes avanços químicos para se conseguir esta
bebida borbulhante, apreciada pelas suas propriedades digestivas.

O
temível grisu e os ares inflamáveis Stephen Hales, que tinha mostrado que os gases
das minas e pântanos começaram podiam ser fixados em líquidos ou sólidos. Nessa
a atrair a atenção dos cientistas do altura pensava-se que o que agora chamamos dió-
século XVIII, que os armazenavam xido de carbono não era mais do que o ar comum
em bolsas e depois os queimavam. infetado por fumos e vapores estranhos. Ao fixar
William Brownrigg, um médico inglês preocupa- estes ares mineiros, Brownrigg fez água carbona-
do com a saúde dos mineiros que os respiravam, tada por volta de 1740. O problema era que nin-
era um deles. Para os estudar in situ, mandou guém sabia o que era.
construir um laboratório que alimentou com O primeiro passo para identificar estes vapo-
os gases de uma mina de carvão de Whitehaven res como substâncias diferentes do ar foi dado
através de tubos de chumbo. Para os retirar da pelo médico escocês Joseph Black em 1756. O seu
água utilizava um método inventado em 1727 por trabalho Experimentos com Magnesia alba, cal
viva e outras substâncias alcalinas é um dos
GETTY
poucos ensaios na história da química que intro-
duz muitos conceitos e resultados inovadores .

O CURIOSO É QUE A SUA PESQUISA COMEÇOU


COM UM OBJETIVO MUITO DIFERENTE: encon-
trar uma explicação para um conhecido remédio
para eliminar cálculos renais, uma doença co-
mum entre os grandes bebedores do século XVIII.
A Câmara dos Comuns tinha dado £5000 a uma
mulher chamada Joanna Stephens por ter en-
contrado um tratamento válido que consistia na
ingestão de conchas de caracóis calcinadas mistu-
radas com mel. Black estudou e pesou o gás liber-
tado pelas conchas, calcário e magnésia quando
aquecido, e chamou-lhe ar fixo, porque era ab-
sorvido pela água com cal. Ele tinha descoberto o
dióxido de carbono. Embora não o pudesse isolar
nem descrever todas as suas características, mos-
trou que podia ser encontrado livre na natureza e
transferido de um corpo para outro.
Também descobriu duas coisas que mudaram
tudo o que se acreditava anteriormente: que era
diferente do ar produzido pela dissolução de um
metal com ácidos; e que se assemelhava ao ar que
tinha sido sujo pela combustão. O que Black de-

Um copo de água carbonatada com as suas bolhas característi-


cas. Esta bebida popular é também conhecida como água com
gás ou água seltzer. É normalmente bebida por si só e por ve-
zes combinada com certas bebidas alcoólicas.

180
AGE
monstrara é que podia existir um ar que
não o ar comum e que tomava parte ati-
va em certos processos químicos .
A sua pesquisa foi continuada por
Henry Cavendish, um cientista excên-
trico e distraído mas meticuloso no seu
trabalho. Cavendish sempre viveu como
um recluso, detestava a companhia de
outros homens e tinha pavor das mu-
lheres, ao ponto de as suas criadas serem
proibidas de passar por ele nos corredo-
res da sua casa. Em 1766, aos 35 anos de
idade, enviou o primeiro de uma série de
artigos para a Royal Society intitulado O médico e químico escocês Joseph Black, descobridor do dióxido de
On the Factitious Air. carbono, realiza uma experiência de calor na Universidade de Glasgow.

ENTRE OUTRAS COISAS, CAVENDISH DESCO- mia. Infelizmente, as suas opiniões religiosas e
BRIU QUE SE DISSOLVESSE MÁRMORE em ácido políticas custaram-lhe o trabalho. Mas Priestley
clorídrico obtinha o ar fixo de Black, e se dissol- não desanimou e decidiu contribuir para o su-
vesse zinco, ferro e estanho no mesmo ácido e óleo cesso da expedição. O seu interesse em investigar
de vitríolo produzia um gás particular, peculiar e as características de todos os gases que lhe caíam
altamente combustível a que chamava ar infla- nas mãos tinha-o levado a uma cervejaria perto
mável; um gás que se obtinha sempre através da da sua casa em Leeds. Aí descobriu uma proprie-
reação de um metal com qualquer ácido. Tinha dade interessante do ar fixo de Black, que era li-
descoberto o hidrogénio. Cavendish pôs fim a esse bertado durante a fermentação da cerveja loira.
sentimento vago de que os gases não eram senão Se deixasse um pires de água no topo da vasilha
ar mais ou menos rarefeito. Se pudesse obter o do jarro, esta adquiria um sabor agradável e aci-
mesmo tipo de gás por procedimentos diferentes dulado que lembrava a água seltzer. Mais tarde
e sempre com as mesmas características, não era o descobriu que poderia alcançar o mesmo resulta-
produto de misturas arbitrárias de ar com diferen- do passando a água de um copo para outro no to-
tes tipos de impurezas. po do jarro durante três minutos. As experiências
Aqui entrou em jogo o clérigo dissidente (co- convenceram-no de que as suas qualidades me-
mo eram chamados aqueles que se opunham ao dicinais se deviam ao gás dissolvido no mesmo, e
anglicanismo) Joseph Priestley, um exemplo do em 1772 patenteou um mecanismo que impreg-
tipo de cientista radical e liberal que floresceu nava a água com ar fixo. O Capitão Cook instalou-
em França e Inglaterra na segunda metade do -o no Resolution e no Adventure a tempo para a
séculoXVIII. Em 1771 o famoso Capitão Cook ofe- viagem. O dispositivo foi bem sucedido e Pries-
receu-lhe o posto de astrónomo na sua segunda tley recebeu a Medalha Copley, a mais alta dis-
expedição, tendo ficado impressionado com o tinção da Royal Society. A água gasosa tornou-se
trabalho inicial de Priestley em ótica e astrono- o primeiro sucesso comercial da nova química. e
AGE CORDON

GETTY

À esquerda, um diagrama das experiências com hidrogénio do cientista britânico Henry Cavendish (1731-1810). À direita, o apare-
lho utilizado por outro dos colegas químicos de Cavendish, Joseph Priestley (1732-1804), para estudar a composição do ar.

181
92 Máquina de
lavar
Este dispositivo eletromecânico, que revolucionou a vida doméstica, le-
vou algum tempo a desenvolver-se até alcançar o automatismo atual.

L
avar pode ser uma tortura, quase tan-
to como tentar desvendar a história da
invenção da máquina de lavar, em que
muitas mãos trabalharam. A primeira
máquina conhecida foi concebida pe-
lo teólogo e naturalista alemão Jacob Christian
Gottlieb Schäffer, que para além de publicar
textos sobre botânica, ornitologia e entomolo-
gia, fazia excelentes prismas e lentes. Descreveu
a sua máquina de lavar num livro de 1767 inti-
tulado Die bequeme und höchstvortheilhafte
Waschmaschine (A conveniente e altamente
: GETTY

vantajosa máquina de lavar).


Durante mais de um século, diferentes invento-
Um anúncio para máquinas de lavar roupa de1870.Estas pri-
res americanos, ingleses e alemães fizeram altera- meiras versões eram manuais eexigiam força para funcionar.
ções e melhoramentos a um design que acabou por
resultar no design que conhecemos hoje. O pri- a roupa na segunda residência. E em 1885 Sarah
meiro elemento foi o tambor, inventado em 1782 Sewell, consciente do esforço físico necessário
e que podia ser horizontal ou de carregamento su- para operar a máquina de lavar e da imensa ener-
perior. Mas além disso, a roupa tinha de ser escor- gia que os seus filhos desenvolviam durante o dia,
rida, um processo que removia a água da roupa e, patenteou uma estranha máquina de lavar que
com ela, a sujidade. O canadiano John E. Turnbull funcionava graças a um baloiço acoplado onde as
aceitou o desafio e patenteou uma “máquina de la- crianças podiam brincar.
var com rolos de torcer” em 1843.
Havia também coisas curiosas. Em 1871 Wiliam A CHEGADA DO SÉCULO XX TROUXE A ELETRI-
Clark registou a primeira máquina de lavar rou- CIDADE PARA A CASA e não demorou muito até
pa transportável, puxada por cavalos, para lavar que alguém colocasse um motor elétrico na má-
quina de lavar. Não sabemos quem foi o primeiro
a ter sucesso, mas por volta de 1904 os anúncios
apareceram em jornais e revistas. Finalmente,
em 1909, a primeira máquina de lavar elétrica
foi comercializada nos Estados Unidos, chamada
Thor. Construída pela Hurley Electric Laundry
Equipment Company de Chicago, tinha sido con-
cebida pelo engenheiro Alva J. Fisher em 1908. De
acordo com a patente, tinha um “cilindro perfu-
rado montado de modo a poder rodar dentro da
banheira que contém a água de lavagem”. Uma
série de pás levantava a roupa enquanto o cilin-
dro girava, o qual, após oito rotações, mudava de
direção para evitar que os tecidos se enrolassem
numa massa compacta. e

A máquina de lavar elétrica foi criada em1908 por Alva J


TY
: GET

Fisher, mas não se tornou omnipresente nos lares ameri-


182 canos até aos anos 50. Este modelo, 3324, data de 1961.
93 Soutien
Este artigo de lingerie libertou as mulheres das ataduras dos antigos
espartilhos e corpetes.

A
té 1913, os soutiens eram meros apên- conheceu uma designer da Warner Brothers Cor-
dices aos insuportáveis espartilhos set Company e explicou-lhe a sua invenção. Dias
de cordas, quase tão desconfortáveis depois recebeu uma oferta de 1500 dólares pela
como as armaduras dos cavaleiros sua patente. Ela aceitou, encantada. Foi muito
medievais. Mas nesse ano, a jovem bom negócio para a Warner, porque o valor real
aristocrata nova-iorquina Mary Phelps Jacobs mu- da patente está estimado em mais de 15 milhões
dou a história. Ela tinha comprado um vestido de de dólares.
noite caro para uma festa e ficou encantada com
ele, mas mostrava o contorno do espartilho e achou NOS ANOS LOUCOS DO CHARLESTON, QUAN-
que isso era imperdoável. A solução ocorreu-lhe DO O IDEAL DE BELEZA feminina era a mulher
então. Com a ajuda da sua criada, ela fez um sou- de peito chato e aspeto ameninado, Ida Rosenthal
tien improvisado com um par de lenços brancos, conseguiu mudar isso ao promover soutiens que
uma fita e um fio. As suas amigas perceberam que realçavam o busto. A costureira nascida na Bie-
Phelps estava a usar roupa interior original, leve lorrússia classificou as mulheres americanas por
e prática, e ela fez para cada uma um soutien que tamanho de peito, e desenvolveu uma linha de
lhes deu como presente. Depois de uma desconhe- moda destinada a valorizar a figura feminina de
cida lhe ter enviado um dólar juntamente com a acordo com a idade. E triunfou. Conta-se que nos
encomenda de um modelo, ela decidiu submeter a anos 60, quando jovens mulheres queimavam os
sua criação ao instituto de patentes. seus soutiens como símbolo da libertação da mu-
Em 1914 obteve uma patente para o soutien sem lher, muitas viram isto como o fim do soutien.
costas, e com algumas amigas começou a pro- Rosenthal replicou: “Somos uma democracia.
duzi-lo artesanalmente. Mas as boas ideias não Todas as pessoas têm o direito de se vestir ou de se
prosperam sem uma campanha publicitária, por despir. Mas aos 35 anos, uma mulher já não tem
isso o negócio da mulher que passou a chamar-se uma figura que lhe permita prescindir de um sou-
Caresse Crosby falhou. Algum tempo depois, ela tien. O tempo joga a meu favor”. e
AP

E
RCHIV
TKM A

O soutien, acima, foi pa-


tenteado por Mary Phelps
Jacob em 1914. Anos
mais tarde, a costureira
Ida Rosenthal, esquerda,
melhorou e desenvolveu o
design e inventou o siste-
ma de medidas que ainda
hoje é utilizado.

183
Para chegar à sanita
atual, de uma só
peça, com o sifão e
a bacia fixados, tive-
mos de passar por
séculos de maus
cheiros.

SHUTTERSTOCK

94 Sanita
A sanita tornou possível evacuar os dejetos corporais em privacidade,
promovendo assim a higiene e combatendo o mau odor.

D
urante a Idade Média, as pessoas suas páginas este conselho prudente: “Se passar
faziam as suas necessidades onde por uma pessoa que se está a aliviar, deve fingir
bem lhes parecia. Com o passar não está a ver”.
do tempo, a situação tornou-se
tão má que em 1589 a corte in- E, NO ENTANTO, HOUVE TENTATIVAS DE
glesa teve de pendurar o seguinte aviso no pa- CRIAR UMA ANTECESSORA PARA A SANITA JÁ
lácio: “Ninguém, seja quem for, antes, durante NO SÉCULO XVI. Foi Sir John Harington quem
ou depois das refeições, seja tarde ou cedo, é concebeu o primeiro dispositivo para descarga;
autorizado a sujar as escadas, corredores ou a Rainha Isabel I de Inglaterra encomendou um
roupeiros com urina ou outras porcarias”. O para ser instalado no seu palácio em Richmond.
fedor que emanava das ruas, casas e pessoas era Harington, que era poeta, escreveu um livro so-
insuportável. Cidades como Paris eram esgo- bre a retrete, A New Discourse of a Stale Sub-
tos enormes onde se podia encontrar alguém a ject Called the Metamorphosis of Ajax, mas o
defecar em cada esquina. Vale a pena recordar seu tom humorístico não agradou à rainha e o
que a construção inicial do palácio de Versa- inventor e o seu génio foram esquecidos.
lhes no século XVII incluía fontes grandiosas e Duzentos anos mais tarde, o matemático e re-
nenhuma retrete. Não admira que Erasmo de lojoeiro escocês Alexander Cumming patenteou
Roterdão tivesse referido, em 1530, “ser indeli- a sua própria versão de sanita. Trabalhava com
cado saudar alguém enquanto está a urinar ou a uma alavanca que, quando puxada, libertava
defecar”. Nem é surpreendente que um manual água de um reservatório, abria uma tampa no
de boas maneiras de Setecentos recomende nas fundo da sanita e esvaziava o seu conteúdo pa-

184
AGE

ra o esgoto. Algo semelhante ao que temos nos


comboios de hoje. Além disso, um sifão — o ca-
racterístico tubo em forma de S — isolava a sani-
ta do esgoto principal.

DEPOIS ENTROU EM CENA JOSEPH BRAMAH,


UM INVENTOR E SERRALHEIRO INGLÊS que se
dedicava a instalar as sanitas de Cumming em
casas e viu que um acessório tão útil poderia ser
melhorado. Em 1778 patenteou o seu próprio
modelo, uma sanita com autoclismo muito me-
lhorada na qual substituiu a válvula deslizante
por uma escotilha articulada para evitar o seu
congelamento durante os meses frios. Ao longo
do século XVIII, a Bramah, como a sua invenção
era conhecida, o verdadeiro predecessor dos sa-
nitários modernos, tornou-se popular, embora
nem sempre tenha conseguido um isolamento
perfeito dos gases desagradáveis que se forma-
vam em esgotos e fossas mal ventilados.
Mas só no século XIX é que a engenharia dos
esgotos foi levada a sério. E isso deveu-se à epi-
demia de cólera que assolou a Europa entre 1827
e 1835, propagada por um sistema de esgotos in-
salubres, o que forçou as autoridades a estabe-
lecer como prioridade máxima livrar as cidades
da sujidade e dos maus cheiros. Finalmente, na
1591 esboço do dispositivo de descarga feito pelo poeta britâ-
segunda metade do século XIX, a sanita de Bra- nico Sir John Harington. Embora não tenha tido sucesso na al-
mah evoluiu para o modelo de uma só peça que tura, é considerado um predecessor da sanita e a primeira ten-
conhecemos hoje, com a bacia e o sifão unidos. e tativa para resolver o problema do saneamento nas cidades.
AGE ALBUM

Ilustração da sanita desenvolvida em 1778 por Joseph Bramah (1749-1814). Este inventor inglês (acima) melhorou
as ideias de John Harington e Alexander Cumming e patenteou o seu próprio desenho, que já incluía uma válvula,
como se pode ver na imagem. Além disso, Bramah foi o autor de numerosas invenções, tais como um dispensador de
cerveja para estabelecimentos públicos e uma fechadura de segurança.

185
Muitos dos conceitos atuais de requin-
te e beleza — maquilhagem, pentea-
do, higiene, vestuário — foram de-
senvolvidos nos salões da Córdoba
muçulmana do século IX pelo músico e
SHUTTERSTOCK

poeta curdo Zyriab. Este pode ser con-


siderado o primeiro influencer.

95 Salão de
beleza

ARCHIVE COLLECTION
Os conceitos de moda, refinamento, beleza e cuidado corporal fo-
ram trazidos para o Ocidente por um poeta do século IX de Bagdad.

H
oje, é muito fácil manter-se a par Ziryab partilhou o seu conhecimento e delica-
das novas tendências em qualquer deza com o povo de Córdoba. Abriu o primeiro
campo — é para isso que servem os instituto de beleza do mundo na cidade, onde dava
influencers — mas esta profissão conselhos sobre higiene, maquilhagem e cuida-
não é nova. No século IX, a cidade dos capilares. Introduziu o uso de desodorizante,
considerada a Meca da música e da poesia, aquela de uma pasta de dentes primitiva e funcional com
que marcava o ritmo em perfumes e moda, boas um sabor agradável cuja composição não conhece-
maneiras e estilo de vida requintado era Bagdad. mos, de champô e perfumes, sem esquecer a ma-
Foi aí que um jovem curdo de pele castanha, de nicure. Saber maquilhar-se era essencial, tal como
voz melodiosa, Abu l-Hasan Ali ibn Nafi’, apeli- depilar-se, pois para o Ziryab a pele tinha de estar
dado de Ziryab — “melro”, em árabe — se tornou sempre limpa e suave. Inovou no penteado e intro-
um dos primeiros influencers da história. O seu duziu o corte de cabelo moldado, de modo a que a
mentor foi Ishaq al-Mawsili, um músico da corte testa e as orelhas ficassem visíveis.
de Harun al-Rashid. Diante dele, Ziryab fez uma
atuação que impressionou o califa, o que deixou CLARO QUE O ESTILO DE VESTUÁRIO E AS
cheio de ciúmes o seu mentor, que o aconselhou, SUAS CORES TINHAM DE mudar de acordo com
para seu próprio bem, a deixar a cidade. a época do ano. De junho a setembro, o branco
Ziryab seguiu estes conselhos e viajou pri- era a melhor cor; na primavera, cores brilhantes
meiro para a Síria e depois para a Tunísia, onde com seda e tecidos leves; e no inverno, acolchoa-
vagueou até oferecer os seus serviços ao emir dos e peles. Também recomendou um código de
de Córdova, Al-Hákam I. Este aceitou e Ziryab vestuário diferente para a manhã, tarde e noite.
zarpou para al-Andalus. Quando chegou, o Por tudo isto e pela sua forma de compreender
emir já tinha morrido e quem governava era o a comida e as maneiras à mesa, Ziryab revolu-
seu filho, Abderramão II, a quem Ziryab apre- cionou Córdoba e transformou-a na cidade eu-
sentou as suas ideias pioneiras sobre a arte de ropeia de referência para quem quisesse passar
bem viver. por elegante, fino e educado. e

186
96 VelcroEste sistema de fecho mecânico de tecidos à base de ganchos e
anéis inspira-se no mecanismo de fixação de algumas sementes.
Um dia, em 1955, o engenheiro elétrico obter um gancho para cada anel. No início, foi
George de Mestral estava a caçar com o seu utilizado o nylon, mas os ganchos e os anéis
cão nos campos verdes da sua terra natal, ficavam emaranhados e não havia maneira de
a Suíça. Quando voltou para casa, reparou obter um bom fecho. O problema foi resolvido
que tanto o seu casaco como o seu cão esta- utilizando uma mistura de nylon e poliéster, o
vam cobertos de cardos. Intrigado, decidiu que tornou a invenção muito mais resistente à
usar um microscópio para descobrir porque luz ultravioleta, aos químicos e ao calor.
se agarravam às suas roupas e viu que estas
sementes estavam pejadas de ganchos que DE MESTRAL LEVOU OITO ANOS PARA ME-
se agarravam tenazmente aos anéis do teci- CANIZAR O PROCESSO PARA OS GANCHOS,
do. Este era o plano da natureza. Os cardos e mais um para criar o tear que corta os laços
agarram-se ao pêlo dos animais que roçam depois de os tecer. No total, passou dez anos a
na planta. Desta forma, as sementes podem criar um processo mecanizado e eficiente. Em
dispersar-se e germinar noutros locais. De 1951, depositou uma patente na Suíça, que lhe
Mestral interrogou-se se um sistema artifi- foi concedida quatro anos mais tarde. De Mes-
cial poderia ser concebido para copiar esta tral abriu em pouco tempo lojas na Alemanha,
invenção natural, e assim nasceu o fecho de Suíça, Reino Unido, Suécia, Itália, Países Bai-
velcro, cujo nome deriva das palavras fran- xos, Bélgica e Canadá. A patente expirou em
cesas velours, que significa “veludo”, e cro- 1978, apesar dos esforços do titular da patente
chet, “gancho”. para a renovar.
Os primeiros fechos foram feitos em Lyon, Hoje em dia utilizam-se também o aço e os
França, à mão e de forma desesperadamen- tecidos sintéticos para fabricar este fixador que
te lenta. Fazer os laços era simples, mas a fi- revolucionou a vida quotidiana. E tudo graças à
ta com os ganchos mostrou-se um problema bardana-menor (Arctium menos), uma planta
enorme. A ideia era produzir os anéis de tecido que um dia decidiu agarrar-se ao casaco de um
e cortá-los perto das suas extremidades para suíço curioso e inquiridor.e

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TKM ARCHIVE

O engenheiro suíço Geor-


ge de Mestral inventou o
velcro depois de ter repa-
rado como as sementes de
cardo se agarravam à rou-
pa. Em 1951, patenteou o
seu produto, o que consti-
tuiu um enorme sucesso a
nível mundial.

187
97 Boa mesa
Antes do Zyriab, reinava a desordem nas refeições. O poeta cur-
do introduziu as boas maneiras culinárias e a gastronomia.

O
referido Ziryab introduziu a arte preparações. Entre eles estava o ziriabí, um as-
de viver bem na Europa no sécu- sado de favas salgadas que ainda é preparado em
lo IX, que começou com a mesa. A Córdoba, e introduziu novos alimentos, tais co-
mesa devia ser coberta com toa- mo espargos, que até então tinham sido conside-
lhas de couro muito fino e requin- rados um vegetal não comestível.
tadamente trabalhado; as toalhas de mesa de Mas Ziryab era também um grande músico cuja
linho eram, de acordo com o curdo, muito gros- fama o precedeu. Quando chegou a Córdoba, Ab-
seiras. As taças e copos de prata ou ouro deviam derramão II, antes mesmo de o ter ouvido cantar,
ser substituídos por taças de cristal delicadas e ofereceu-lhe um palácio e um salário de 200 di-
elegantes, uma vez que permitiam apreciar as nares de ouro. Ziryab abriu uma escola de música
diferentes cores do conteúdo. Tendo em conta no que deve ser considerado o primeiro conser-
a escassez da loiça de mesa que recomendou, vatório na Europa, que estava aberto a todos, in-
Ziryab promoveu a construção de uma fábrica dependentemente da sua origem social. Técnicas
de vidro em Córdova, que desfrutou de grande poéticas, tais como o moaxaja, e técnicas musi-
fama durante anos. cais, tais como o zéjel, que era tocado em alaúdes,
flautas, tambores e adufes ou castanholas, foram
QUANTO À APRESENTAÇÃO DOS ALIMENTOS, aí aperfeiçoadas. Ziryab criou quase mil poemas
A REVOLUÇÃO foi completa. Os alimentos não melódicos que acabaram por ser tocados na An-
deviam ser empilhados num único prato sem or- daluzia e em toda a bacia mediterrânica.
dem ou arranjo, como era habitual no seu tempo. Foi ele que tornou popular na corte, o nubah,
Ziryab estabeleceu a nossa ordem atual de comer: a base da tradição musical andaluza que significa
sopas primeiro, seguidas de pratos de carne, aves “esperar a sua vez”. Ziryab introduziu nos coros
ou peixe, e depois doces: bolos com mel, frutos de nubah “os cantores que não mudaram”, os
secos como nozes e amêndoas, e doces recheados famosos castrati. Nos séculos seguintes, as suas
com avelãs ou pistácios ou frutas aromatizadas. vozes encantariam tanto os amantes da música
Para terminar, um copo de licor. que em 1589 o Papa Sisto V escreveu a bula Cum
Ziryab trouxe para al-Andalus, e de lá para a pro nostri temporali munere, a fim de incluir
Europa, receitas que tinha aprendido nas suas alguns cantores castrados no coro da Basílica de
viagens, bem como algumas das suas próprias São Pedro em Roma. e
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ALBUM

O arranjo dos talheres, a


utilização de copos e ta-
ças de cristal e pratos re-
finados — acima, um da
dinastia omíada — e ou-
tros costumes surgiram
na sofisticada Espanha
muçulmana.

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Acima, ânforas de vinho encontradas na


Sicília. À direita, frescos no túmulo de
Ken-Amun, superintendente dos arquivos
reais durante a XIX Dinastia do antigo
Egito em Tebas. Mostram o processo de
preparação da massa e de fabrico do pão.

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98 Vinho, Os três produtos


alimentares mais

pão e antigos e mais


difundidos devem o

cerveja seu desenvolvimento à


primitiva biotecnologia.

E
m 2018, um grupo de arqueólogos espa- claro que a cerveja de outrora não era como a
nhóis encontrou os restos carbonizados cerveja de hoje, embora também fosse usada pa-
de um pão cozido de há 14.400 anos no ra brindar aos mortos, pelo que sabemos dos res-
local de Shubayqa 1, um povoado de ca- tos encontrados num cemitério natufiano. Mais
çadores-recoletores natufianos na Jordâ- importante é a implicação destas descobertas: se
nia. Por outras palavras, a produção de pão a partir os caçadores-recoletores estavam a fazer pão e
de cereais selvagens existia antes do advento da cerveja a partir de grãos selvagens, é possível que
agricultura. E sabemos que os natufianos também eles próprios os tivessem acabado por cultivar e
fabricavam cerveja: foram encontrados restos na desencadeado a revolução agrícola neolítica.
caverna Raqefet no Monte Carmelo, perto de Haifa Enquanto o pão e a cerveja eram originários do
(Israel). A sua utilização não estava ligada à diver- Próximo Oriente, o vinho surgiu na área da atual
são, mas a motivos rituais e religiosos. Geórgia, perto do Mar Negro. Os vestígios arqueo-
lógicos e arqueobotânicos datam a vinicultura
A DESCOBERTA DA FERMENTAÇÃO DOS de 6000 a.C., espalhando-se pelo Irão por volta
GRÃOS PARA PRODUZIR A BEBIDA foi aciden- de 5000 a.C. e alcançando a Sicília em 4000 a.C.
tal, pela observação do processo natural. Mais Os vestígios da mais antiga adega conhecida, na
tarde, esses humanos desenvolveram o seu pró- gruta Areni-1 no sul da Arménia, datam também
prio método: faziam germinar os grãos em água deste período. Foram aí encontrados tanques de
e depois drenavam-nos, secavam-nos e arma- fermentação, um lagar e jarros de vinho. Mas se a
zenavam-nos. A seguir, convertiam o amido do cerveja era consumida em ritos religiosos, o mes-
trigo ou da cevada em malte e finalmente aque- mo não acontecia com o vinho. Na Ásia, as coisas
ciam-no e deixavam-no fermentar com levedura também não eram muito diferentes: o vinho de
selvagem. Foi a levedura Saccharomyces cere- arroz, que é feito de forma semelhante à cerveja,
visiae, um fungo unicelular, que é responsável apareceu na China em 7000 a.C., provando que o
pelo facto de podermos apreciar uma sanduíche, consumo de álcool pelos seus efeitos intoxicantes
um copo de vinho ou uma caneca de cerveja. É anda de mãos dadas com a civilização.e

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O chá é obtido a partir da infusão das folhas e botões da


planta do chá (Camellia sinensis). É a bebida mais consu-
mida no mundo depois da água, devido ao seu sabor fres-
co, ligeiramente amargo e adstringente. É seguido em po-
pularidade pelo café, que, com o leite, é o principal
produto de pequeno-almoço em muitos países .

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99 Chá e café
A China e o Médio Oriente parecem estar na origem do consumo destas
bebidas estimulantes, hoje omnipresentes em todo o mundo.

O
s chineses consomem chá há mi- os registos escritos permanecem, e aqui depa-
lhares de anos. A primeira prova ramo-nos com um problema: a atual palavra
física conhecida, registada em chinesa para chá surgiu no século VIII, e não é
2016, vem do mausoléu do impe- claro se outras palavras mais antigas para plan-
rador Han Jing em Xi’an, conhe- tas com usos semelhantes se referem realmente
cido mundialmente pelos famosos guerreiros ao chá. Por exemplo, há um termo que aparece
de terracota. Os restos de chá encontrados em textos antigos que significa “vegetal amar-
pertenciam ao género Camellia (a espécie não go”: refere-se ao chá ou a outras plantas dife-
pôde ser determinada) e indicam que os impe- rentes que também são amargas, tais como a
radores da dinastia Han bebiam esta infusão no chicória?
século II a.C., embora provavelmente já o fizes-
sem muito antes: há indicações de que o con- A ORIGEM DO CAFÉ É AINDA MAIS OBSCU-
sumo de chá remonta ao século X a.C. Sabe-se RA.SABEMOS QUE A PLANTA é originária do
que usavam a bebida como medicamento, mas sul da Península Arábica — a planta do café
não sabemos quando começou a ser usada co- (Coffea arabica) é um arbusto perene nativo
mo estimulante. da Etiópia e do Iémen — mas não há provas
Traçar a história do chá é complicado. Dei- diretas do cultivo e consumo de café antes do
xando de lado as provas arqueológicas, apenas século XV. O que temos são lendas, como a de

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Kaldi, o pastor de cabras etíope do século IX
que descobriu o café quando reparou como
as suas cabras estavam excitadas depois de
comer os grãos de uma planta. Ou o Xeque
Omar, famoso por curar os doentes através da
oração, que descobriu o café quando foi para
o exílio no Iémen, para uma caverna deserta
perto de Wusab. Tudo o que encontrou para
comer foram algumas bagas amargas. Ele ten-
tou tudo para as cozinhar, até que um dia lhe
ocorreu fervê-las.
O café é feito a partir dos grãos torrados e moídos do fru-
ALGUNS HISTORIADORES SUSPEITAM QUE to da planta do café, conhecido como o cafeeiro.
A PRIMEIRA MENÇÃO da planta pode ser uma
pequena referência às sementes nas obras do cafetarias eram locais onde os homens se reu-
médico persa al-Razi do século IX, mas só em niam para cantar, dançar e tocar música. Para
1587 é que “Abd al-Qadir al-Jazairi compilou alguns, o café era semelhante ao vinho e por
uma obra sobre a história e as controvérsias le- isso tinha de ser banido. De facto, em 1524 o
gais deste produto intitulada Umdat al safwa fî café foi suprimido durante algum tempo em
hill al-qahwa (Defesa da quintessência do ca- Meca, e no Cairo houve motins religiosos con-
fé). Al-Qadir conta que o Xeque Jamal-al-Din tra casas de café em 1534. A primeira cafetaria
al-Dhabhani foi o primeiro a adotar o costume em Istambul abriu em 1554, o que provocou,
de beber café por volta de 1454, que mais tarde tal como no Cairo, surtos de zelo religioso
se espalhou entre os místicos islâmicos, os Su- contra o consumo de café, entre 1570 e 1580.
fis, pela sua faculdade de “afastar o sono”. Foi nesta altura que as primeiras referências
Os líderes religiosos muçulmanos logo de- europeias a esta perigosa bebida começaram a
saprovaram o seu consumo, porque as novas aparecer. e

Cafeína, um composto-chave em chás herbais


E sta substância psicoativa está presente
no café, no chá e no cacau. É um estimu-
lante poderoso do sistema nervoso e uma das
enxaquecas, para aumentar a pressão sanguí-
nea e como diurético. No entanto, a cafeína é
tóxica: 10 gramas administradas oralmente
drogas mais estudadas. A cafeína bloqueia o são suficientes para matar um adulto, o que
efeito no cérebro da adenosina, um nucleósi- significa que uma dose fatal requer entre 55 e
do que retarda a libertação de outros neuro- 125 chávenas de café ou chá de uma só vez. O
moduladores e pode induzir o sono. Não se consumo global de cafeína está estimado em
pode dizer que a cafeína cause insónia, mesmo cerca de 120.000 toneladas por ano.
que sintamos assim. O que ela faz é dificultar a SHUTTERSTOK

ação da adenosina.
Em todo o caso, quando experimentamos
este estimulante, o nosso ritmo cardíaco au-
menta, alguns vasos sanguíneos dilatam-se e
certos músculos contraem-se mais facilmente.
Mas isto deixa de acontecer se nos conver-
termos em consumidores regulares: o nosso
organismo adapta-se à cafeína e o efeito de-
saparece. O fígado, responsável pela metabo-
lização da cafeína, demora meio dia a eliminar
A cafeína é um alcaloide sólido, branco, cristalino e
90% da cafeína consumida. A cafeína é tam- de sabor amargo que atua como uma droga psicoati-
bém utilizada para prevenir a asma, para tratar va e estimulante do sistema nervoso central.

191
100 Cartão de
crédito
Este pequeno objeto de plástico com uma tira magnética que identi-
fica o seu proprietário revolucionou o consumo no século XX.

N
o Código de Hamurábi, o primei- 1946 um banqueiro de Brooklyn, John Biggins,
ro conjunto de leis da história, lançou o cartão Charg-It, muito semelhante aos
que foram emitidas pelo rei epó- cartões de crédito modernos: o cliente podia
nimo da Babilónia em 1760 a.C., utilizá-lo para pagar um produto a um retalhis-
encontramos a primeira referên- ta que seria reembolsado pelo banco emissor
cia escrita a um sistema de crédito, com regras em qualquer montante, que depois solicitava
sobre empréstimo, reembolso e juros, provan- ao cliente. Era um bom sistema, mas apenas
do que a compra a prestações é tão antiga como alguns comerciantes, aqueles que tinham a sua
a civilização. Na verdade, nunca deixou de ser loja perto do banco de Biggins, aceitaram o car-
popular. tão Charg-It.
No final do século XIX, os comerciantes do
Oeste americano ofecreciam aos seus clientes O CONCEITO EVOLUIU EM 1950 QUANDO O DI-
uma forma de crédito que lhes permitia pagar as NER’S CLUB CARD, o primeiro cartão de crédito
suas contas depois de terem colhido as suas co- moderno, foi introduzido. Foi concebido para ser
lheitas ou vendido o seu gado. Em 1914, a Wes- utilizado em todos os restaurantes de Nova Ior-
tern Union foi mais longe e deu placas metálicas que e, mais tarde, em todos os restaurantes dos
a clientes selecionados: quem as tivesse podia Estados Unidos. De acordo com o próprio Di-
adiar os seus pagamentos até uma data especí- ner’s Club, a ideia chegou ao empresário Frank
fica. Dez anos mais tarde, empresas como a Ge- McNamara em 1949, quando jantava com clien-
neral Petroleum Corporation fizeram o mesmo. tes no Majors Cabin Grill em Manhattan. Quando
Estes cartões de crédito primitivos só podiam ser chegou o momento de pagar a conta, McNamara
utilizados no comerciante que os emitia e o seu percebeu que se tinha esquecido da carteira em
principal objetivo era o de fidelizar os clientes. casa. Há várias versões do que aconteceu a se-
A crise de 1929 interrompeu o processo, mas guir. De acordo com alguns, McNamara escapou
após a Segunda Guerra Mundial, o mundo do di- à humilhação habitual de lavar a loiça assinando
nheiro de plástico voltou a ganhar terreno. Em um papel que concordava em pagar o jantar. Se-

O Visa e o American Express Card estão na vanguarda de um negócio que mudou a forma como as pessoas com-
pram bens e serviços.

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Alfred Bloomingdale, vice-presidente do Diner’s Club, foi um visionário que ajudou a espalhar rapidamente o cartão de
crédito, primeiro em Nova Iorque, depois no resto dos Estados Unidos e finalmente em todo o mundo. Já nos anos 50
ele previa que o dinheiro físico, as notas de banco, desapareceria à medida que os famosos cartões se espalhassem.

gundo outros, ele chamou a sua esposa para lhe

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trazer o dinheiro. Seja como for, Diner refere-se
a esta anedota como A Primeira Ceia.
A filosofia por detrás do Diner’s Club era
“assinar agora, pagar depois”, como faziam
os membros deste clube de jantar. McNamara,
juntamente com o seu sócio Ralph Schneider,
empreendeu a criação do clube com vinte e sete
restaurantes e duzentos sócios, a maioria ami-
gos e conhecidos.

ALFRED BLOOMINGDALE, NETO DO FUN-


DADOR DA FAMOSA loja de armazéns Bloo-
mingdale’s em Nova Iorque, foi nomeado
vice-presidente do Diner’s Club. Era um ho-
mem à frente do seu tempo, que previu que o
dinheiro iria desaparecer e que o uso do cartão
de crédito iria aumentar: “Chegará o dia em que
o cartão de plástico tornará as notas obsoletas”,
disse ele.
O negócio do Diner’s tinha duas vertentes:
cobrava às lojas uma taxa de 7% sobre todas
as compras, e exigia aos titulares dos cartões o
pagamento de uma taxa anual de 3 dólares. O
sistema tornou-se popular muito rapidamente,
e no primeiro ano atingiu 20.000 utilizadores.
Não demorou muito tempo até que outras em-
presas saltassem para o comboio. Oito anos após
a fundação do Diner’s Club, a American Express O Código de Hamurábi (1760 a.C.) não é apenas o conjun-
e a Carte Blanche começaram a emitir cartões, to de leis mais antigo da história, mas também o primeiro
e o Bank of America seguiu o mesmo caminho documento a conter referências específicas a empréstimos
com o seu BankAmericard, agora mais conheci- de crédito. Estabelece regras sobre pagamentos diferidos,
do como Visa. e juros e outras questões financeiras.

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Direção Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es)

REDAÇÃO
Redatora chefe Cristina Enríquez
(cenriquez@zinetmedia.es).
Coordenação de design Óscar Álvarez
(oalvarez@zinetmedia.es).

REDAÇÃO EM MADRID
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Telefone: +34 810 583 412.
E-mail: mhistoria@zinetmedia.es

Colaboram neste número:


Miguel Ángel Sabadell (textos),
y Aje Arruti (edição Secção Ciência).

Consultora Marta Ariño


Diretor Geral Financeiro Carlos Franco
CRO (Diretor Comercial) Alfonso Juliá
(ajulia@zinetmedia.es)
Diretor de Desenvolvimento de Marca
Óscar Pérez Solero (operez@zinetmedia.es)

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A Super Interessante é uma publicação
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