Você está na página 1de 5
Histdrico e Conceituacao José Givaldo Melquiades de Medeiros 0 patriarca [Lu a lacuna que o médico mais preparado inte Tectualmente relama na sua formagio see em duas diregdes. Necessita,essencialmente, de nde uma psicologia nascda na prdica médica eca de atender ds exigéncias proprias do exerccio da sua profissdo (grifo. do autor), mas, por outro Jado, experimenta um vago anseio de i além dos cestreitos limites da sua especalidade ¢ levar a sua opiniZo para outros campos cientficos mais mplos, como ateoria do conhecimento, o estado ddas mudancas éticas e estéticas, a evolugdo da vida dos povos etc. a fim de associar a sta cul ture mediconaturalista ao amplo horizonte das CCigncias Filosicas.(p. 13) E assim que se expressa Ernst Kretschmer (1888-1964), cognominado mais tarde o “patriarca da psicologia médica Medizinische Psychologie, cuja primeira publica- fo remete a Alemanha de 1922, A leitura de seu texto revela um professor Inquieto com a formacio médica, tentando, como eleafirma, preencher as lacunas existentes no ensino, a0 seu ver, excessivamente organi cista em seus princfpios. Além disso, demonstra preocupagio com uma formagio médica mais ampla, referindo que, além de necessitarem de uma formagio psicolégica, os médicos querem conhecimentos de outros campos das ciéncias. Kretschmer nao define a psicologia médica, mas ¢ claro ao dizer o qué nio deve ser essa nova disciplina: a disciplina cogitada nio deveria ser confundida com a psicopatologia, nem com a psicologia filos6fica, muito menos com a psicologia fisiol6gica. relagio com a psicologia aplicada, ia apenas servir de apéndice & psi- Também nao quiatria.! Mostra-se bastante consciente ao delimitar © campo dessa disciplina: “uma psicologia nas- ida na pritica médica e capar de satisfazer as exigéncias prépias do exercicio de sua profissio" (p.1). Essa éa discussio que Kretschmer criou e nunca mais deixou de ser atualizada quando se trata de ensino médico. Sempre mantendo sua preocupacao deli- mitante com relacio a0 que deve nado, Kretschmer escreve sua obra abordando temas que, naquele momento, faltava a pratica dos médicos: fungdes psiquicas e substratos anatomofisiolégicos, aparelho psiquico, os Instintos e temperamentos, terminando com informagées sob psicoterapia. Lembra também que um g espago deve ser reservado ao plano afetivo. dinamico, rsonalidades; No entanto, faz uma recomendagio: a psi- cologia médica deve ser absolutamente real e se manter em contato com a vida, Isso significa que ela deverd apoiar 0 maximo seus principais Pontos de vista em casos da pratica médica, sem esquecer, porém, uma base teérica sistemati ada. 4 Parte | Fundamentos da Psicologia médica > Continuidade e psicanalise A despeito de o desenvolvimento tecnolé- gico ter aumentado a distancia entre médico € paciente, os problemas nao decorrem ape nas dat, conforme muitos acreditam, © curso médico, além de ser o periodo de aprendizados cientificos sobre a medicina e stas aplicagoes, € também o tempo da autoconstrucio do estu. dante com relacio ao ser médico, ot seja, tem da construcio de uma “identidade médica” partir da identificagao com mestres, das viven- Outros estudos historicos Em outra vertente, capitane: (1896-1970), um grupo de médicos comegou a discutir as situagdes clinicas vividas por eles e por seus pacientes, vindo essas discusses a flotescer em um liv, publicado em 1954, em que virios conceitos desse fendmeno inter relacional entre o médico e seus pacientes si0 esbocados, agora sob a designacio de relagio médico-paciente® A partir de enti médica se fez cresc embora Kretschn no ano da publicac final da década de Europa se preocup afirma, em 1960, 4 primeiro ano nas ¢ representava ainds insuficiente da psi daquele pais, demo iéncia recente. argentino Ai 1962, um livro bas! corresuas contribu! Em seu preficio a p livro é um apanhad des importantes de aptesenta um enfo enfermidade, com| de psiquiatria, psi ccossamitica e de c ‘ocupando, segund tidade de profissic os, na tentativa de sobre a psicologia ‘Outro trabalho médica, de Zilbo dadeira varredura Dusca dos sentide possam identifi nas estagdes da py psiquidtricas.” Alonso-Ferna tedricas fenomen de 1973, sua visic cos, a psicologia 4 psicologia médi relacioné-la a out autor, a parti de I uma psicopatolo cempfrica da clin Aig de diver do se Pais, Slgemados hi mas Revolugto psiqu fiemacos, quando J os elitr da corps A partir de enti, o interesse pela psicologia médica se fez crescer. F oportuno salientar que, embora Kretschmer tenha fundado a disciphina no ano da publicacao do seu livro, somente no final da década de 1950 & que outros paises da Furopa se preocuparam com essa questdo. Ey afirma, em 1960, que a iniciativa de ter 20h no primeiro ano nas escolas de medicina da Franca representava ainda uma penetracio timida insuficiente da psicologia na formagio médica daquele pais, demonstrando ser esta uma expe réneia recente’ © argentino Arthur Weider publicou, em 1962, um livro bastante consistente em que dis- corre suas contribuigbesparaa psicologia médica. Em seu prefacio i primeira edigao, anuincia que o livzo € um apanhado de escritos de personalida- des importantes desse campo da cincia, em que apresenta um enfoque cientifco da sade ¢ da tenfermidade, com base em concepgbes advindas de psiquiatria, psicologia clinica, medicina psi cossomitica e de outras disciplinas que vinham ‘ocupando, segundo Weider, uma grande quan: tidade de profssionais, de varios matizes médi- ‘cos, a tentativa de apresentar novas concepcbes sobre a psicologia médica." Outro trabalho de peso, Histiia da psicologia médica, de Zilboorg ¢ Henry." fez uma ver ddadeira varredura na historia da medicina em busca dos sentidos humanisticos que nela se possam identificar, com paradas importantes has estagGes da primeira e segunda revolugdes psiquidtricas.” ‘Alonso-Fernindez, versado em correntes tebricas fenomenolégicas, publica, na Espanha de 1973, sua visio sobre os sistemas psicologi- cos, a psicologia social e se esforca para situar a psicologia médica no esquema das cigncias € relaciond-la a outras disciplinas. Segundo esse autor, a partir de Kurt Schneider, desenvolve-se ‘uma psicopatologia baseada na observacio empirica da clinica e na exploragio psicolégica ‘Nova: A primeira revolgio psiguitrica marca 0 gesto do médico frances Philippe Pine (1745-1826) Na con- Alig de diretor do manicdmio de Bicetre, nos arredores ‘de Parise mpressonado plas condigdessub-humanas ‘gue vviam submetidos os pacientes, Pinel conseguiy, ‘en 24 de malo de 1798, autorizagio da comuna rel ‘loodria prisiense para libetar 0s asilados, muitos dees flgemados hi mais de 30 anos, A chamada Segunda ‘Revolugio psgultica diz respeito & chegada dos psico: firmacos, quando Jean Delay e Pere Deninkerrelataram os efeitos da clorpeomazina Capitulo 1 | Histérico e Conceituacao 5 do doente psiquico, construindo uma verda- ddeira patologia do psicoldgico como também, inversamente, uma psicologia da patologia. ‘Tomando como partida essa versio da psico- patologia schneideriana, Alonso-Fernandez DObserva que as relacées da psicologia médica com outras disciplinas e estruturas médicas podem ser representadas em uma espécie de fluxograma traduzido da seguinte maneira: a éstrutura basica da medicina humanista corres- ponde i antropologia médica. Sobre ela, encon- {ram-se a psicologia médica e a psicopatologia. 4 psicologia médica serve de base & medicina psicolégica, enguanto a psicopatologia apoia, fem sua estrutura, a psiquiatria, A relacio da ps: copatologia com a medicina psicolégica faz-se, nesse esquema, pela psicologia médica.” E um esbogo que pode nos servir de reflexdo tendo fem vista que, ainda hoje, hé dissondncias entre testudiosos sobre 0 campo e os limites da psico- logia médica (Figura 1.1) ‘Também nos EUA discutem-se os mesmos problemas. A medicina ¢ a educago médi- ‘cas americanas sio cada vex mais criticadas por falharem em atender as necessidades em Saide priméria dos pacientes e da sociedad ‘Apontam como uma das falhas a falta de pro: fissionais modelo que possam, por seus pro- prios exemplos, influenciarem a formagio do estudante.”" ‘Na Escola de Medicina da Universidade de ‘Washington, essa tentativa de assegurar maior profissionalismo a educagao médica incentivou 4 implementagao de um ensino fundamentado fm profissionais modelo, envolvendo todos os setores ~ estudantes, professores, preceptores € ‘escola como um todo, tentando assegurar um comportamento mais profissional em todos os niveis.* "Em uma pesquisa canadense, tanto 0 pablico em geral como 0s outros profissionais de saiide no médicos, quando perguntados sobre o papel Priquitra rea Psicologia médica. | Psicopatologia Antropologia médica Figura 1.1 Representago das elagdesinteriscipina res na metade humanista da medicina (Font: Alonso- Feinéndez, 1977) 6 Parte | Fundamentos da Psicologia Médica desses profissionais, indicaram deficiéncias na performance deles como humanistas, comuni adores e educadores dos pacientes." > Psicologia médica no Brasil + Opioneiro No Brasil, Perestrello,” com seu livro medi ina da pessoa vem a ser um dos primeiros a aprofundar as aplicagbes da psicandlise no front da medicina. Em sua andlise hist6rica, afirma: ‘Com isso (a escuta psicanalitica) o suposto abismo entre 0 homem normal e 0 alienado desaparecia. A psicologia sobre a qual a psiquia- tria se baseari dai por diante sera uma psicolo- sgia humana ea nova psiquiatria uma psiquiatria humanizada, (...] J& no so os olhos do psi uiatra seu principal instrumento de trabalho: so seus ouvidos” (p.7) Contudo, nao & somente a defesa de uma ati tude de resgate do humano na psiquiatria que trata o autor. Ele tece conceitos renovados como a relagio transpessoal, diagnéstico da doenga €do doente, o médico como remédio e antir- remédio e desenvolve um capitulo especifica ‘mente sobre a medicina da pessoa." Outros trabalhos, como 0 de Uchoa,!* analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanilise professor catedritico de psiquia tia da Escola Paulista de Medicina, foram difundindo as ideias da psicologia médica, Em seu texto, aponta falhas nas correntes psicold- gicas que tentam se tornar mais préximas da ‘medicina por meio de uma énfase exagerada no laboratério, proclama 0 advento da psicologia da personalidade, em especial as correntes ditas, dindmicas, como tendo possibilitado o engran- decimento da psiquiatria e da moderna medi: cina psicossomitica, e defende: “uma medicina total, unitéria, antropolégica, isto 6 a antropo: logia médica’ Discipulo de Perestrello, Mello Filho! des- taca-se na histéria recente da psicologia médica brasileira como um dos grandes articuladores do pensamento psicossomético nos anos 1980, quando langou 0 seu livro Concepgdo psicossomitica, um misto de andlise hist6- rica, incluindo um relato de experiéncia bem- sucedida vivida pelo autor no Hospital Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Depois, publicou Psicossomtica hoje e Grupo e corpo, constituindo assim uma triade de peso na formatagao do pensamento da p: cossomitica no Brasil, com seus varios entrela: ‘gamentos com a psicologia médica, Outro trabalho, na mesma esfera acadé- mica e também voltado para a questio da satide, agora do médico residente, deve-se a Nogueira-Martins, que trabalhou o tema residéncia médica ~ um estudo prospectivo sobre dificuldades na tarefa assistencial e fon- tes de estresse, concluindo que o estresse tende a diminuir com o passar do tempo, mas que hi grandes problemas a serem resolvidos dentro das residéncias médicas, como modificacées programaticas e maior ateng30 com a sobre- carga de trabalho a que sio submetidos os jovens médicos. Tem-se também estudado outros ramos da psicologia médica, como as condigées de sade dos médicos defendida, inicialmente, como tese de doutorado e publicada uma versio em livro = 0 Médico como paciente ~ de Alexandrina Meleiro.” iio podemos esquecer a obra essencial de Neury Botega, relativa A pritica psiquié- trica em hospital geral, ampliada e reeditada recentemente,* que, por intermédio de seus textos, tem aprofndado temas que constituem terreno comum com a psicologia médica. + Movimento atual da psicologia médica no Brasil Percebendo a dificuldade tanto para con- ceituar quanto para delimitar o campo da dis ciplina, realizou-se em 1993 uma pesquisa no Brasil sobre a “Conceituacio atual e ensino de psicologia médica no Brasil’ Outro tra. batho, também através de enquete postal © com objetivo afim, estava sendo realizado na ‘mesma época por Botega.** Os sintomas eram muito evidentes de que havia uma inquieta- G40 com respeito a esses problemas tedricos € priticos. Em 1995, sob nossa coordenaglo ¢ orga: nizagio, ocorreu 0 I Encontro Nacional dos Professores de Psicologia Médica do Brasil, em Joao Pessoa, PB, Desse encontto participa ram 50 professores ¢ elaborou-se um relatério que dava algumas primeiras orientagdes sobre 'o qué’, “a quem” e “como” ensinar a psicologia médica, De modo gera Visto anteriorment paciente, Assim, sobressaem, cons abordagem’ do. te sujeito [..], relag gio psicossomatic Mais dois ence intervalos de 2 an no Rio de Janeiro em 2004, conseg Nacional em Goisr de Goiinia (ver A psicologia médica, A psicologia més iment nas di aplicagio, dedi jetivos da pritic: médico-pacie psicossocials aos estudante: as equipes, eo nidades. Na carta, a Curriculares, so (6 Ensino de Psico uma delimitagio nado, em uma ter cago de objetivos desenvolvidos na Também sio defi balhados na gradu > Referénc 1. Kretichmer Labor, 1954, 2, Zimerman DE Malo Filho | Medics, 199 3. Moreira MCN, De modo g visto anteriormente, o ensino da relagao médico- paciente. Assim, trés gru Sobressaem, constituinds trés momentos da abordagem do tema inicial: constituigio do sujeito [...], relagio médico-paciente; concep- ‘Gio psicossomatica [.. Mais dois encontros foram realizados com intervalos de 2 anos: o II em Teresépolis e o Ill no Rio de Janeiro, Seis anos se passaram até que, em 2004, conseguiu-se realizar o IV encontro Nacional em Goldnia, no qual se produziu a Carta de Goiiinia (ver Apéndice)-* Sobre o campo da psicologia médica, assim se manifesta a carta foi consensual, conforme temiticas se A psicologia médica, enquanto campo do conhe: ‘imento,nas dimensbes da produgio, ransmissio te aplicagio, dedica-se a0 estudo dos aspectos sub jetivos da pritica médica, incluindo-se: a relagio ‘médico-pacient, a entrevista clinica, os aspectos psicossocials do processo saide-doenca, 0 apoio fos estudantes (apoio psicopedagégico/tutora) © 4s equipes, eo trabalho com as familias e comu nidades Na carta, & semelhanga das Diretrizes Curriculares, sio anunciadas as Diretrizes para 0 Ensino de Psicologia Médica no Brasil. Faz-se ‘uma delimitagio do que deve ou nao ser ensi nado, em uma tentativa de se propor uma unifi cacao de objetivos e contetidos tematicos a serem desenvolvidas nas escolas médicas brasileiras. Também sio definidos os contetidos a serem tra balhados na graduagio médica, Referéncias bibliograficas , Psicologia médica, Barcelona: Editorial Zimerman DE. A formasto ps Malo Fiho Js 4 MCN. Contra a desumanizacio da Medicina: ss médias moderna. Cif ado mii, In 0 Alegre: Artes Freud S- Eaigo picldg ascompletas, Tradurida sob superist de Jame Salo sno, Rio de fneiro: Imago, 1986, 24 Capitulo 1 | Histéricoe Conceituacao Sfp ML. Grade adaengaco Tadao ‘de Gracia Pes There irs, 988. Aetander F Medicina Pacssomatica- priniose ah egies, Porto Alegre: Artes Médias, 1989 Schneider K. Popa fem de Emanuel Car Balin M, mdse pacintee a doena.Traduso de Roberto Mutachia. 2, Rode fcr: Athenew 1975 Fy H.Elementos de Psicologia Medics ne Ey H, Ber ard Brisset C. Manual d i Rio de ‘Conti Buenos Aires: EUDEBA, 1962. Zlboorg G Henry GW. Hi Vicente PQuintr Sed, Sto Paul: Mes loo: Rermdnd A. Pi Madr Ed, Paz Montalvo, euler JB Nardone DA. Role Wiig 8, Wong A, Neil C Rolemodels and students, J Gone tert Med 1997; 1253-56. Goldstein A. Rmoncta , Fryer Eduard Ket fessionals in Medial Education: an Tnstutonal Challenge Academie Medicine 2006; 81(10}871-876. ‘Neufeld Vic Medico como humanist ainda um dest Ecucaciona,Can Med Asso J 1998 159(7)787 78 Perenell D.A medicna da pesos 5 ed Si Paulo: Athen, 2006 chou DM, Pucolagin médica, Sto Pano: Sarvier, Mello Filho J. Concept psicostmatica: visi ata. cr Edges Teno Bras, 1983 Porto leg Nogueire Martins LA Residencia media Cimento. Si Pao: Casa do Piélogo, 2005. Meio MAS. O m acento soe Editorial, 1998 Bota NI org), Pri pagar no hospital const e emergence. Po Araijo RNS, Teotonio ALS, Oliveia MN, Mede IM. Avaiagio do ensino de Psicologia Médica na Universidade Federal da Paraba. I: VI Encontro de iclagto Cents da URPB, 198, fio Pe clas da Vida 1998. Botcga NJ. O ensino da psicologia médica no Bras: ma enguste pst Rev ABP-APAL. 1994 16 T Encontro Nacional ds Professores de Pscolog ca [Rel final. 195 stout 28» 1 Jodo Pes W acional dos Pro Psicologia Mae [Rel inal, 2004 un 45. Goitn

Você também pode gostar