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Além da literatura 

Marcos Natali
(Universidade de São Paulo)

Tenemos que reconocer — al menos yo lo reconozco — que


los críticos somos algo así como una incómoda parodia
del Rey Midas: todo lo que tocamos se “convierte” no en
oro sino en literatura.
Antonio Cornejo Polar, Escribir en el aire

No início do século XIX, ao descrever, num de seus múltiplos e variados

comentários sobre o sonho de uma Weltliteratur que transcendesse os limites

das literaturas nacionais, Goethe sugere que as peculiaridades de uma nação

são como suas moedas; ambas, em vez de impedir, possibilitam a troca entre os

países.1 Assim, apesar da especificidade de cada tradição literária nacional,

seria a suposta universalidade de um terceiro termo – um conceito abstrato e


Este texto é uma versão revista e ampliada de um artigo publicado na revista Literatura e
Sociedade, da USP, em 2006. Por comentários a versões anteriores deste texto, agradeço a
Roberto Zular, Jaime Ginzburg e Ana Cecilia Olmos, a colegas que participaram de seminário
no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP em que o texto foi
debatido e ao público de eventos na Universidad de Chile e na Universidad Nacional Autónoma
de México, onde sou grato em particular a Rodolfo Mata. Agradeço ainda aos editores e
revisores do periódico Comparative Literature Studies, onde uma tradução de partes deste texto
foi publicada em 2008 com o título “Beyond the Right to Literature”.
Duas breves observações sobre o título do texto (sobre sua falta de originalidade, na verdade):
soube, após sua primeira publicação como artigo, da existência de “Para além da literatura com
a literatura”, de Lígia Chiappini (Lusorama, Atas do Congresso de Lusitanistas Alemães de 1999,
org. Axel Schönberger). Além de não ter sido o primeiro caso de uma referência ao “além” do
literário no título de um texto crítico, não seria o último; em 2014 foi publicado em Portugal
todo um livro chamado, justamente, Além da Literatura, desta vez de autoria do crítico literário
português João Bigotte Chorão (Quetzal, 2014).
1
Apud Stefan Hoesel-Uhlig, “Changing Fields: The Directions of Goethe’s Weltliteratur”. Em
Christopher Prendergast (org.), Debating World Literature. Londres: Verso, 2004, p.36-37.
neutro, anterior a qualquer comparação e além de qualquer localismo – que

permitiria que fosse concebido e implementado um sistema mundial. No caso

da Weltliteratur, a abstração que tornava possível o exercício de superação das

particularidades locais era a própria ideia de literatura. Afinal, como Goethe

afirmaria em outra ocasião, ele estava “cada vez mais convencido de que a

poesia é o patrimônio universal da humanidade, revelando-se em todos os

lugares e em todos os tempos em centenas e centenas de homens”.2 A

universalidade do conceito, por sua vez, parecia repousar, ao menos nesses

momentos, na confiança na universalidade da própria humanidade, de forma

que, ao recomendar a leitura de um romance chinês, Goethe busca superar a

resistência de Eckermann assegurando que “os chineses pensam, agem e

sentem quase exatamente o mesmo que nós; e logo percebemos que somos

perfeitamente como eles”.3

Nos textos dispersos em que Goethe esboça diferentes concepções de

literatura mundial, há momentos em que a Weltliteratur parece um projeto

ainda a ser realizado – através da atenção a tradições literárias longínquas, da

tradução entre as línguas, do abandono de preconceitos localistas – e outros em

que ela é um objeto já existente, uma espécie de arquivo literário global à

espera de que suas obras sejam descobertas e reconhecidas por leitores

2
Segundo Johann Peter Eckermann, citado em David Damrosch, What Is World Literature?
Princeton: Princeton University Press, 2003, p.1.
3
Ibidem, p.11.

3
cosmopolitas aventureiros. Desde a perspectiva universalista, pensa-se que

algo como a literatura já estaria sendo produzido em diferentes cantos do globo

antes mesmo da invenção de expressões como “literatura mundial” ou

“literatura universal”. Diferenças entre línguas e entre tradições literárias não

impediriam a tradução e a apreciação, pois no fim os idiomas e as tradições –

as moedas de Goethe – se referem à mesma ideia original.

Esse tipo de raciocínio tem um lugar estabelecido no campo dos estudos

literários, e não é incomum que a teoria literária enfatize na literatura

justamente sua suposta falta de contornos, sua maleabilidade, sua

adaptabilidade, seu não-lugar, sua capacidade ilimitada de assimilação, sua

propensão a, conforme escreveu a crítica Gayatri Chakravorty Spivak, “escapar

do sistema”.4 Os exemplos abundam, na teoria e na crítica literária, revestindo

o conceito de literatura de uma aura difusa de naturalidade e inevitabilidade.

É a tensão entre as definições idealistas de literatura e as historicistas, presente

já no escritor alemão, que este texto vai abordar, através da discussão de um

episódio em que a convivência intranquila entre as duas concepções tem

implicações políticas significativas.

Entre outros casos possíveis, o foco aqui se deterá em um único texto,

um ensaio de Antonio Candido cuja influência sobre o campo dos estudos

literários no Brasil seria difícil sobrestimar. Ler “O direito à literatura”,

4
Gayatri Chakravorty Spivak, Death of a Discipline. Nova York: Columbia University Press,
2003, p.52.

4
publicado pela primeira vez em 1988, permitirá que se perceba como a

imprecisão histórica e conceitual em torno à definição da literatura foi

necessária para a elaboração de certo modo de intervenção na vida cultural e

institucional do país.5 Ao recuperar a argumentação do texto de Candido, o

objetivo aqui será também chamar a atenção para complicações e

ambivalências presentes em debates recentes sobre direitos culturais,

resumidas aqui pela operação que no texto de Candido busca dobrar uma ideia

5
Exemplos da influência do texto “O direito à literatura” são numerosos demais para serem
elencados aqui. O texto chega a aparecer em diretrizes de ONGs e programas escolares, em
muitos casos funcionando como uma espécie de guia, superando impasses e encerrando
discussões difíceis. Na crítica literária local as referências também sobejam; menciono aqui
apenas alguns artigos acadêmicos recentes, começando por dois para os quais o texto de
Candido serve como âncora: “Literatura para todos” de Leyla Perrone-Moisés (em Literatura e
sociedade, v.9, 2006, p. 16-29), onde as “palavras sábias” do texto surgem como desfecho de
uma análise das diretrizes do Ministério da Educação para o ensino da literatura; e “A literatura
como direito” de Telê Ancona Lopez (em Literatura e sociedade, v.11, 2009, p. 216-219). Para
um exemplo em que há análise do texto de Candido, ver “Revisitando a teoria da necessidade”,
de Fábio Durão (manuscrito inédito, apresentado no XXVIII International Congress da Latin
American Studies Association de 2009). Durão lê “O direito à literatura” como um texto em que
Candido dá “um passo adiante”, em relação às Teses sobre a necessidade de Adorno, “ao abordar
diretamente a questão da ficção”. Mesmo assim, são identificados, no texto que é descrito como
“uma peça-chave no discurso da crítica literária brasileira das últimas décadas”, “problemas”,
sendo que o primeiro, “menos importante aqui, refere-se à universalidade dada à literatura”.
Mais grave, para Durão, é o autor fazer uso de “uma ideia tradicional sobre o processo de
composição artística”, ideia que “merece ser questionada”, com sua oposição entre caos e
forma. Como contraponto a isso e à “positividade do conceito de fabulação, aqui ligada a uma
cegueira em relação à existência da indústria cultural”, algo que “permite que a ética
humanista-idealista sobrevenha ao imperativo material”, Durão propõe a ideia de
“negatividade estética”, associando inclusive o direito à literatura a um “direito à
negatividade”. Finalmente, “Literatura e direitos humanos: notas sobre um campo de debates”,
de Jaime Ginzburg (em Crítica em tempos de violência. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2012),
termina, após análises de obras de Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Sérgio Sant’anna e
Sérgio Bianchi e depois da indagação sobre o lugar dos direitos humanos nos estudos literários
contemporâneos, com o questionamento da categoria do universal no texto de Candido e
daquilo que constituiria as necessidades da humanidade. Já para uma leitura preocupada com
a figuração do leitor em “O direito à literatura”, ver Patricia Trindade Nakagome, A vida e a
vida do leitor: um conceito formado no espelho (Tese de Doutorado em Teoria Literária e
Literatura Comparada, USP. São Paulo, 2015). Anterior à publicação da primeira versão deste
texto, em 2006, mas desconhecido por mim à época, é o excelente posfácio de Abel Barros
Baptista ao livro O direito à literatura e outros ensaios (Coimbra: Angelus novus, 2004).

5
generalizante de literatura sobre práticas culturais variadas. O interesse do

caso particular do crítico brasileiro está também no fato de que o mesmo crítico

responsável pela divulgação no Brasil da noção de “sistema literário” e pela

consolidação de uma narrativa para historiar a formação da literatura

brasileira escreverá, neste outro contexto, que “a literatura aparece claramente

como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”,

insistindo ainda que “não há povo e não há homem que possa viver sem ela,

isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de

fabulação”.6 Manifestação universal, todos os homens, todos os tempos: são

expressões estranhas para um autor cuja obra se caracterizou em tantos

momentos justamente pela historicização da cultura e a atenção aos processos

sociais.

No Candido de “O direito à literatura”, a afirmação da generalidade do

literário encontrará o argumento de que a “expressão” por meio da ficção é

inerente aos seres humanos, manifestando-se em

todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os


níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que
chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis
da produção escrita das grandes civilizações.7

E a declaração da universalidade da literatura levará imediatamente a uma

reivindicação política: se todas as pessoas têm uma disposição literária, se

6
Antonio Candido, “O direito à literatura”. Em Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995,
p.242.
7
Ibidem.

6
todos os povos possuem uma prática literária, se cada sociedade produz

discursos ficcionais, se, enfim, a experiência literária responde a “necessidades

profundas do ser humano”, então a literatura deverá ser considerada um direito

fundamental, um “bem incompressível”, “uma necessidade universal que

precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”.8 O gesto de Antonio

Candido claramente quer ser inclusivo, e isso em um momento em que o que se

debatia no país eram justamente os contornos da democracia a ser adotada com

o fim do regime ditatorial, ocasião em que parecia haver certa abertura para a

especulação a respeito formas menos autoritárias de se pensar a relação entre

categorias como cultura, nação e povo.

Na análise que vou propor a seguir, no entanto, essa tentativa de

formular uma defesa do direito à literatura será lida fundamentalmente como

um exemplo da necessidade de diluir a alteridade em discussões sobre direitos

culturais. Não é fortuito, no caso, que a definição daquilo que se defende seja

elusiva, deslizando de “ficção” a “fantasia” a “lendas”. É essa fluidez que vai

permitir que o apelo seja emoldurado como a defesa simultânea da escrita e da

oralidade, da alta literatura e do folclore, ou melhor, para ser mais preciso: é a

8
Ibidem, p.241-243. Esse ponto havia recebido uma formulação muito próxima naquilo que é
quase um esboço de “O direito à literatura”, o ensaio “A literatura e a formação do homem”, de
1972: “A produção e a fruição desta [da literatura] se baseiam numa espécie de necessidade
universal de ficção e de fantasia, que decerto é coextensiva ao homem, pois aparece
invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação das
necessidades mais elementares. E isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no
adulto, no instruído e no analfabeto”. Antonio Candido, “A literatura e a formação do homem”.
Em Vinícius Dantas (org.), Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades/Ed.34, 2002, p.80.

7
imprecisão que vai permitir que a defesa da escrita seja apresentada como se

fosse também a defesa da oralidade, diluindo toda a tensão envolvida na

expansão da tecnologia do livro e do letramento. No que segue, tentarei ler a

descrição celebratória e afirmativa da literatura como parte de um projeto

pedagógico ligado a uma política da escrita e a políticas de subjetivação que

têm como antecedente a história da colonização e da conversão no continente.

Evidentemente, há defesas possíveis e legítimas do livro, da escrita e da

literatura erudita, que não serão abordadas aqui, onde o foco será em algo

ligeiramente diferente: a forma complexa adotada na defesa da literatura,

forma que permite que a reivindicação da alta literatura seja apresentada como

se fosse na verdade a defesa de formações culturais subalternas.

• • •

Ao longo da obra de Antonio Candido, uma série de obras de arte

individuais serão enaltecidas por sua suposta universalidade. Nesses textos é

possível ler sobre “a universalidade da região” evidenciada em Grande sertão:

Veredas; o modo como, em La casa verde de Mario Vargas Llosa, “o pitoresco e

a denúncia são elementos recessivos, ante o impacto humano que se manifesta,

na construção do estilo, com a imanência das obras universais”; os “livros

universalmente significativos” de José María Arguedas, Gabriel García

Márquez, Augusto Roa Bastos e Guimarães Rosa, autores de uma geração

“marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram

e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos

8
a se descarnarem e adquirirem universalidade”9; os versos da Lira de Gonzaga,

cuja organização a “põe acima do tempo e serve para cada um representar

mentalmente as situações amorosas”, remetendo a “atos ou devaneios dos

namorados de todos os tempos”.10 Nesses exemplos, o adjetivo “universal” tem

intenção consagradora, ao identificar uma característica rara presente apenas

em obras excepcionais, sugerindo portanto que existem livros que não merecem

a qualificação “universal”.

No entanto, dentro da ampla produção do autor, com textos que datam

dos anos 1940 até os 1990, será no texto escrito em defesa da expansão do

acesso à literatura que a concepção universalista do literário em si emergirá

com tamanha força. Não é casual que isso ocorra precisamente em um ensaio

sobre direitos humanos, e a necessidade dessa diluição da historicidade na

argumentação de Candido neste texto pode nos dizer algo sobre a natureza das

reivindicações políticas na democracia, sobre a ambivalência do discurso em

9
Todos em “Literatura e subdesenvolvimento” (Antonio Candido, A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.162, 158, 159, 161). A propósito, escrevendo bem antes
disso, em 1946, Sérgio Milliet já pedira esclarecimentos a Antonio Candido a respeito de sua
avaliação do caráter universal de Guimarães Rosa:
O jovem crítico paulista considera que o sr. Guimarães Rosa transcende o regional em
seus contos, que "Sagarana nasceu universal pelo alcance e a coesão da fatura" e, ainda,
que a língua usada "parece ter atingido o ideal da expressão literária regionalista".
Desejaria que o sr. Antonio Candido esclarecesse melhor a sua concepção do universal
e nos dissesse também em que essa língua erudita e admiravelmente artística de
Guimarães Rosa se prende ainda ao regional.
Em Sérgio Milliet, “Leituras avulsas”. Diário de notícias. Rio de Janeiro, 21 de julho de 1946
(citado em Sônia Maria van Dijck Lima, “Sagarana causou polêmica”. Em Edilene Matos, A
presença de Castelo. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Instituto de Estudos Brasileiros, 2003,
p. 869-885). Devo a Marcelo Silva Souza a referência ao texto de Milliet.
10
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.247.

9
defesa dos direitos humanos e sobre a relação entre cultura e política

progressista.

Afinal, o que encontramos no texto de Candido é a convivência entre duas

concepções de política: por um lado, um modelo pedagógico de democracia,

onde a cultura, uma força civilizadora impregnada de positividade, estará

encarregada da missão de transformar as pessoas em cidadãos modernos,

funcionando inclusive como a base do sistema educacional; por outro lado, o

ensaio ao mesmo tempo vai conter elementos do que poderia ser chamado de

um modelo performativo de democracia, no qual pessoas e grupos seriam

sempre já políticos, inclusive antes de qualquer pedagogia.11 A tensão entre

esses dois modelos políticos certamente não se limita ao ensaio de Antonio

Candido, e na verdade ilustra um impasse que se manifesta de várias formas

em muitas políticas culturais de esquerda. Se o projeto progressista tem sido,

historicamente, um projeto pedagógico, como conciliar essa missão

educacional, que seria irresponsável abandonar por completo, com o

reconhecimento da persistência da diferença cultural?

No já longo debate sobre a relação entre cultura e direitos humanos, o

impasse ocorre sempre que o “direito à cultura” passa a ser visto não apenas

como direito ao acesso a bens culturais privilegiados – à alta cultura, por

11
A distinção é desenvolvida por Dipesh Chakrabarty em “Museums in Late Democracies”,
Humanities Research, v.IX, n.1, 2002, passim, e em Homi Bhabha, “Dissemination: Time,
narrative and the margins of the modern nation”. Location of Culture. Londres: Routledge,
1994, pp. 139–170.

10
exemplo –, mas também como direito a algo como a particularidade cultural,

ou seja, um direito à produção e à reprodução de uma cultura própria. Nessas

situações, discursos reivindicatórios precisam administrar a tensão entre o

universalismo de suas propostas, baseadas muitas vezes em um humanismo

liberal, e a tenacidade da diferença cultural no mundo, que por vezes se insurge

contra o gesto pedagógico. No ensaio de Antonio Candido, a tensão interna é

gerada pelo fato de que o raciocínio parte de um modelo performativo de

democracia e de uma definição descritiva e neutra de cultura – todos têm

literatura, tudo é literatura... – e termina em um modelo pedagógico, com seu

vocabulário normativo, de modo que a insistência na universalidade daquilo

que é defendido – o “literário” – vai deslizar para a defesa da necessidade de

levar algo específico – certo tipo e concepção de literatura – a todos. Quando a

alta literatura e a tradição surgem como desfecho do ensaio e ponto de chegada

da reflexão, elucida-se o motivo do desconcerto que vinha sentindo o leitor que

acompanhava atentamente a defesa enérgica da necessidade de garantir o

direito ao acesso a algo que, estranhamente, todos já teriam.

Se a opção por uma definição inclusiva de literatura, que abarca desde

diferentes formas de oralidade até canções populares, resulta claramente de

um anseio democratizante, talvez já seja possível refletirmos sobre o custo

dessa inclusão em sistemas que presumem comportar a multiplicidade da

experiência. No caso dessa operação dentro dos estudos literários, o que precisa

ser suprimido para que ocorra a inclusão é a especificidade histórica e

11
conceitual de diferentes práticas discursivas subalternas, que passam a ser

agrupadas sob a categoria literatura. A natureza dessa supressão, no entanto,

só se tornará clara se tivermos uma ideia mais precisa do que se entende, afinal,

na argumentação, por literatura. A própria dificuldade em definir o literário, e

consequentemente em identificar o que não seria literatura, é um sinal de como

estamos embrenhados em um sistema epistêmico abarcador. Só será possível

identificar aquilo a que a literatura se opôs e vislumbrar os limites do literário

se trabalharmos com um conceito mais restrito de literatura, entendendo sua

expansão como um processo que não esteve livre de conflito e se baseou em um

imaginário político específico.

No ensaio de Antonio Candido lido aqui, a ideia de literatura irá repousar

sobre dois pilares principais: as noções de ficção e de humanização. Quanto à

primeira, o fenômeno literário será definido como algo que inclui “desde o índio

que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia, até o mais

requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes

de um poema hermético”,12 todos esses objetos verbais sendo definidos como

“manifestações ficcionais”, ou seja, representações discursivas com uma

relação oblíqua com o mundo. Ao longo da obra de Antonio Candido aparecem

diversas formulações para descrever a relação entre literatura e realidade, mas

nesses trechos a literatura é uma prática discursiva com certa independência

12
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.248.

12
em relação ao mundo, uma autonomia diferente daquela permitida a gêneros

discursivos como a história ou a autobiografia. Esse funcionamento peculiar da

referencialidade valeria igualmente para obras de Castro Alves e Émile Zola

como para a “lenda”, o “folclore” e a evocação da lua pelo índio.

Não é incomum que se veja a literatura como uma prática que escapa às

amarras rígidas da historiografia e não está sujeita a seu domínio, e essa ideia

de ficção – uma representação discursiva desvinculada da exigência de

objetividade estrita – só consegue funcionar se existe seu avesso – uma

representação objetiva da realidade. A mediação de algo como a “imaginação”

ou a “fabulação” só distingue a relação da literatura com o real se houver, como

contraponto, uma prática em que essa mesma mediação não ocorra, ou melhor,

que não ocorra da mesma maneira, assim como só pode existir o fetiche – a

illusio – se houver o seu contrário, o fato.13 Se essa formulação estiver correta,

então não haveria literatura antes da historiografia, nem pode haver literatura,

como a modernidade a entende, sem historiografia.14

A categoria literatura é, assim, parte fundamental de uma estrutura

epistêmica ancorada nas ideias de história e objetividade, e com ela tem-se um

13
Nas palavras de Bruno Latour, “Por trás da ostentação do antifetichismo, esconde-se uma
teologia da criação” (em Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Trad. Sandra
Moreira. Bauru: EDUSC, 2002, p. 103).
14
Há um relato esclarecedor do processo gradual que levou à distinção entre fato e ficção na
história da formação do romance inglês em Sandra Guardini Vasconcelos, Dez lições sobre o
romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002. Além de ressaltar a contingência e
a fragilidade do conceito de ficção, o estudo assinala como a distinção entre fato e ficção surgiu
em parte para responder a uma necessidade do sistema jurídico.

13
receptáculo no qual poderá ser lançado tudo aquilo que não é história. A partir

dessa dupla invenção – da história e da literatura, seu outro –, a cartografia

moderna pôde navegar pelo mundo mapeando as formas discursivas que

encontrasse, à margem de genealogias locais e das epistemologias que as

aninhavam, identificando como literários não apenas poemas, romances e

dramas, mas também práticas discursivas que passavam a ser chamadas de

lenda ou folclore (a necessidade desses termos já era sinal de ambivalência),

estas tendo em comum com as demais apenas o fato de que não seriam história.

Em muitas dessas operações tradutórias, ao contrário do que afirma a

conhecida fórmula de Coleridge, para que essas outras práticas discursivas

pudessem ser lidas como literatura o que era necessário era a suspensão da

crença. Não estamos aqui muito distantes da cena imaginada por Terry

Eagleton: viajantes ingleses, ao encontrarem nativos de uma terra distante,

concluem que estes estão entretidos com algum jogo semelhante ao críquete,

quando na verdade estão tentando fazer chover.15 Nas duas operações,

testemunhamos a expansão de uma hegemonia simbólica e de suas categorias

classificadoras, onde “literatura universal” e “literatura comparada”

funcionam como máquinas de tradução, moendo práticas discursivas de

diferentes tipos.

15
Terry Eagleton, As ilusões do pós-moderno. Trad. Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p.54. O trecho é citado e comentado por Vera Follain de Figueiredo em “A nostalgia dos
universais”. Em Eduardo F. Coutinho (org.), Fronteiras imaginadas: cultura nacional/teoria
internacional. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p.204.

14
O segundo elemento a definir a literariedade no ensaio “O direito à

literatura” é a noção de humanização. Do canto do índio à literatura erudita:

em “todos esses casos ocorre humanização”, e a literatura é “fator

indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem em sua

humanidade”.16 A definição de humanização fornecida depois esclarecerá que

se trata de um processo que inclui o “exercício da reflexão”, a “aquisição do

saber” e o desenvolvimento da “percepção da complexidade do mundo”. 17 A

centralidade concedida à racionalidade atribuirá à literatura uma função

“ordenadora”, em embate com a desordem: “Toda obra literária pressupõe esta

superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo

uma proposta de sentido”.18

A ênfase na capacidade da literatura de dar sentido ao mundo, inclusive

através de sua relação crítica com ele, também aparece em um texto mais

recente, escrito por um crítico que, como Candido, é conhecido por sua atenção

à especificidade cultural. Ao defender o direito a escrever e narrar, Homi

Bhabha convocará semelhante vocabulário universalista:

By the “right to narrate,” I mean to suggest all those forms of creative


behaviour that allow us to represent the lives we lead, question the
conventions and customs that we inherit, dispute and propagate the ideas
and ideals that come to us most naturally, and dare to entertain the most
audacious hopes and fears for the future ... Suddenly in painting, dance,

16
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.248, 243. Para uma análise de defesas do
colonialismo no parlamento inglês que citavam a necessidade de uma “humanização do
homem”, ver Gauri Viswanathan, Masks of Conquest: Literary Study and British Rule in India.
New Delhi: Oxford University Press, 2003.
17
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.249.
18
Ibidem, p.246.

15
or cinema you rediscover your senses, and in that process you understand
something profound about yourself, your historical moment, and what
gives value to a life lived in a particular town, at a particular time, in
particular social and political conditions.19

Apesar das diferenças de diversos tipos entre os dois críticos, o paralelo

demonstra uma convergência momentânea entre suas concepções de literatura,

ambas devedoras de certo modernismo. Até o título do ensaio de Bhabha (“On

Writing Rights”) ecoa o de Candido – embora não seja insignificante a passagem

no foco do direito a ser concedido de “literatura” a “escrever” –, e o argumento

do crítico indo-britânico também será democratizante e inclusivo:

The right to narrate assumes that there is a commitment to creating


“spaces” of cultural and regional diversity, for it is only by acknowledging
such cultural resources as a “common good” that we can ensure that our
democracy is based on dialogue and conversation.20

Ao reivindicar a diferença cultural ao mesmo tempo em que insistem na

possibilidade de sua inclusão na estrutura vigente e na existência de um bem

ou espaço comum onde diferenças poderiam conviver (mesmo que com a

matização das aspas, no caso de Bhabha), os dois críticos atenuam as fronteiras

19
Homi Bhabha, “On Writing Rights”. Em Matthew J. Gibney (org.), Globalizing Rights. The
Oxford Amnesty Lectures. Oxford: Oxford University Press, 2003. p.180.
20
Ibidem, p. 181. Entre tantos outros possíveis, menciono um terceiro exemplo de uma
reivindicação política que levará a uma definição inclusiva de literatura, relevante dada a
discussão desenvolvida aqui. Segundo Gordon Brotherson e Lúcia de Sá, em “First Peoples of
the Americas and Their Literature”, “asserting or assuming (as many celebrated academic has
done) that the continent was devoid of literature before Columbus penned his log is like saying
there was no philosophy either”, propondo, então, que “In these circumstances, simply to
demonstrate the prior existence of literature in America and its continuities becomes a priority
in itself”. Em Gordon Brotherson e Lúcia de Sá, “First Peoples of the Americas and Their
Literature”. Em Sophia A. McClennen e Earl E. Fitz (orgs.), Comparative Cultural Studies and
Latin America. West Lafayette: Purdue University Press, 2004, p.8.

16
específicas da concepção moderna de literatura e sinalizam o alcance e o limite

de certo imaginário político.

Pois é a tradução ao conceito de literatura do canto do índio – de

“lendas”, “folclore”, “mitos”, ou seja, fenômenos que outras traduções ao léxico

moderno chamariam de religião – que tornará possível sua defesa em nome do

bem comum e de um patrimônio cultural universal, revelando os termos da

proposta liberal de inclusão. Retomando argumento de Slavoj Žižek, o Ocidente

primeiro precisou traduzir as estátuas budistas do Afeganistão ao vocabulário

universalizante da cultura para então poder defender seu direito à existência.

Para Žižek, o Talibã, em seu desejo de destruir as estátuas (desejo que afinal se

consumou) reconheceu nas imagens sua “religiosidade”, aspecto que o Ocidente

precisou silenciar em sua defesa. Assim, o paradigma que fez a “cultura” se

tornar a categoria central do nosso pensamento é o mesmo que “retira toda a

diversidade do outro para que possamos experimentá-lo”.21 Seria possível até

especular que, caso prosperasse, a tentativa de preservar as estátuas budistas

terminaria por colocá-las em um museu, assim como um crítico humanista

junta textos sagrados e seculares em uma mesma prateleira, evadindo o modo

como o museu e a biblioteca dão nova forma e existência aos objetos que

afirmam querer conservar. Para Michael Ryan, este seria o ponto exato em que

“que o cerne coercivo da generosidade liberal se faz sentir”, demonstrando que

21
Slavoj Žižek, “A paixão na era da crença descafeinada”. Trad. Alexandre Hubner. Folha de São
Paulo, 14 de março de 2004.

17
a posição que o liberalismo não pode incluir é justamente aquela que nega a

validade do próprio pluralismo liberal – isto é, a posição não-liberal. Nesse

sentido a transcendência liberal da diferença é ilusória pois na generalidade de

sua inclusão precisará excluir, tornando-se justamente aquilo que queria

evitar: particular e relativa.22

Assim, ainda que estudos etnográficos e historiográficos não confirmem

a primeira afirmação de Candido – “a literatura aparece claramente como

manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”, isto é, que

todos os povos possuem uma mesma concepção de literatura – a asseveração

será necessária para que desapareçam o atrito e o risco inscritos no segundo

passo – a defesa do projeto de levar (certa) literatura a grupos subalternos.

Esta ocorre sem uma discussão das características específicas da cosmovisão a

que ela pertence. É esse o ponto cego que permitirá que a literatura seja

apresentada como a resposta a um desejo do próprio subalterno.

O estabelecimento da semelhança como ponto de partida não é a única

maneira de se pensar a justiça social,23 mas parece se tornar uma necessidade

incontornável para a argumentação que vai se armando neste “O direito à

literatura”. A arte e a literatura, afinal,

22
Ver Michael Ryan, Marxism and Deconstruction: A Critical Articulation. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1989, p.122.
23
Para alguém como François Jullien, por exemplo, o universal será um horizonte, não um
estado prévio, e o comum seria uma ética, não uma ontologia. Em “Os direitos do homem são
mesmo universais?”. In: Le Monde Diplomatique Brasil, ano 2, n.7, São Paulo, fevereiro de 2008,
p. 30-31.

18
só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma
organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades
profundas do ser humano (...). A nossa questão básica, portanto, é saber
se a literatura é uma necessidade deste tipo.24

Dada a condição que estipula, a definição do literário terá que ser ampla e

aistórica. De acordo com o raciocínio, colocar em dúvida a existência prévia da

literatura numa determinada comunidade interditaria não apenas o acesso a

direitos específicos, mas à própria humanidade, dando ao problema contornos

quase teológicos, além de políticos e pedagógicos. Como observou Žižek, “O

dístico cristão ‘todos os homens são irmãos’ (...) significa também que aqueles

que não são meus irmãos não são homens”.25

O que faria a visão liberal e humanista da literatura diante de práticas

discursivas que não tivessem como objetivo a valorização do humano, não

tivessem o humano como único agente ou, ainda, não se regessem pela peculiar

relação com o mundo presente na ideia de ficção? E se o índio hipotético de

Candido, ao cantar e evocar a lua, entendesse a atividade como uma maneira

de estar com uma divindade, não um modo de humanização? E se sequer

operasse através do conceito de ficção, como, para mencionar apenas um

exemplo, parece ser o caso dos tzeltales no sul do México?26

24
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.241.
25
Para depois concluir que, em religiões “particularistas”, “há um lugar para os outros, eles
são tolerados, ainda que sejam olhados com condescendência”. Slavoj Žižek, “O real da ilusão
cristã”. Em V. Safatle (org.), Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo:
Editora UNESP, 2003, p.179-180.
26
Segundo Pedro Pitarch Ramón, entre os tzeltales “no se explica que un relato posea existencia
si se trata de ficción, de acontecimientos imaginarios”. Pedro Pitarch Ramón, Ch’ulel: Una
etnografía de las almas tzeltales. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p.170.

19
• • •

A dificuldade da tradução de termos como “literatura” e “ficção” é apenas

parte do embaraço em que nos encontramos ao entrarmos numa discussão

sobre o direito à literatura. Seria necessário, afinal, encontrar equivalências

para as noções de direito, de universalidade e de humano (quem seria o sujeito

desse direito?). Continuando com os maias, no caso da tradução da Declaração

Universal dos Direitos do Homem ao tzeltal a palavra direito adquire um

sentido mais próximo de reciprocidade, enquanto universal será uma categoria

que abrange o extra-humano (montanhas, almas, etc.).27 Nesse contexto, nota-

se o caráter exclusivamente moderno das descrições do fenômeno literário por

Candido, e é possível ler em textos como “O direito à literatura” o adjetivo

“universal” como um eufemismo para “moderno” e a defesa da “humanização”

como uma convocação à modernização e à secularização. Mais uma vez, aqui

também seria possível imaginar a exposição de uma defesa da modernização,

mas como em outros episódios, o poder do discurso advém de sua apresentação

não como uma nova cultura mas como a ausência de uma cultura particular e

de interesses específicos, como assinalado por Charles Taylor.28 A prova maior

de sua força é precisamente sua invisibilidade; e se confirma seu domínio

quando já não reconhecemos seus limites, cegueira que torna possível esse

27
Ibidem.
28
Charles Taylor, “Two Theories of Modernity”. Public Culture, vol.11, 1, 1999, p.153-174.

20
deslizamento quase imperceptível da modernidade e sua especificidade

histórica e conceitual para uma humanidade universal.

Se essa interpretação estiver correta, e se pudermos então descrever o

gesto de inclusão de Antonio Candido como a tentativa de incorporação

neutralizadora do não-moderno pelo arcabouço conceitual da modernidade,

poderemos então situar o impulso do crítico brasileiro dentro de uma forma de

pensar a cultura, a política e a justiça social de uma geração de intelectuais

latino-americanos. As histórias literárias latino-americanas de meados do

século XX são amplamente celebratórias da inclusão e, implicitamente, da

modernização, em relatos frequentemente construídos à base de vocabulário

universalista semelhante ao encontrado no ensaio “O direito à literatura”.

Como nas melhores doutrinas nacionalistas, há confiança na existência de um

sistema global que permita a “expressão” do local e sua contribuição, com seu

espírito característico, à cultura global.29

Veja-se, como exemplo, o modo como Ángel Rama define a

transculturação literária, processo que ele associa à narrativa latino-americana

de meados do século XX. Para o crítico uruguaio, a transculturação seria a

tentativa de “recompor sobre aqueles elementos [carentes de valorização

artística] um discurso superior que se confirmava e enfrentava os produtos

29
Como exposto por Alberto Moreiras, em A exaustão da diferença: A política dos estudos
culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

21
mais hierarquizados de uma literatura universal”.30 Aqui, até a possibilidade

de comparação já é vista como um triunfo, e a inscrição de práticas discursivas

locais na literatura será apontada até mesmo como a única possibilidade de

sobrevivência, pois esse hibridismo “é a única opção que se impõe para poder

solucionar um choque de forças culturais muito díspares, uma das quais viria a

ser previsivelmente destruída no confronto”.31 Além disso, na descrição da

incorporação daquilo é chamado de “cosmovisão” local, as operações narrativas

da transculturação serão pintadas com tons eufóricos, descritas como capazes

de “superar amplamente as propostas modernizadoras”.32 Nos autores

transculturadores – Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, José Maria Arguedas,

João Guimarães Rosa, entre outros – Rama enxergará a “reconstrução” do

universo local e sua forma de ver o mundo e a “fidelidade à cosmovisão

cultural” local,33 como se o fato de tudo isto ser feito em um gênero como o

romance fosse irrelevante, como se a cosmovisão local não tivesse suas

próprias formas narrativas, como se o contar literário em si já não fosse

indicativo de certa maneira de estar no mundo.

Na mesma linha, a noção de super-regionalismo de Candido exalta

aqueles textos que teriam superado a miopia do regionalismo e foram capazes

30
Ángel Rama, “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”. Em Flávio
Aguiar e Sandra Guardini Vasconcelos (orgs.), Ángel Rama: Literatura e cultura na América
Latina. Trad. Rachel La Corte dos Santos e Elza Gasparotto. São Paulo: EDUSP, 2001, p.237.
31
Ibidem, p.212.
32
Ibidem, p.222.
33
Ibidem, p.232.

22
de encontrar na matéria local substância para a produção de “livros

universalmente significativos”, nos quais a região é transfigurada e adquire

universalidade, alcançando uma esfera além do local.34 Em uma série de textos

do autor brasileiro, será a superação do local e a subsequente entrada na

generalidade o que será celebrado:

O que acontece é que ele [o regionalismo] se vai modificando e


adaptando, superando as formas mais grosseiras até dar a impressão de
que se dissolveu na generalidade dos temas universais, como é normal
em toda obra bem-feita.35

Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção e,


desbastando os seus elementos contingentes, transportou-o, além do
documento, até à esfera onde os tipos literários passam a representar os
problemas comuns da nossa humanidade, desprendendo-se do molde
histórico e social de que partiram.36

Nessas formulações, a transcendência do local é vista de forma favorável e é

elogiada com tanto fervor porque, acredito, é a literatura, e não as formações

culturais locais, o télos da reflexão.

Deve-se reconhecer que é possível que Rama estivesse certo, e que

rejeitar a modernidade tenha de fato um aspecto suicida, como ele coloca.37 De

todo modo, mesmo se fosse o caso, é difícil entender porque o processo

modernizador, empreendido sob ameaça de morte, deveria ser celebrado (a não

34
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”. Em A educação pela noite e outros
ensaios. 2a ed. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.159, 161.
35
Antonio Candido, “A literatura e a formação do homem”, op.cit., p.87.
36
Antonio Candido, “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”. Em Vários escritos,
op.cit., p.174. No mesmo texto, afirma-se que “todos nós somos Riobaldo, que transcende o
cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade”
(p.168).
37
Rama, “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, op.cit., p.213.

23
ser, isto é, que se veja a modernização como necessariamente emancipadora).

Como lembrou também Alberto Moreiras,

Que uma inscrição na cultura dominante possa ser considerada como


constituindo um sucesso (e, portanto, a não-inscrição um fracasso)
sugere um forte posicionamento ideológico com relação à
transculturação como um fenômeno antropológico (...); na verdade, em
última análise, sugere a aceitação da modernização como verdade
ideológica e destino do mundo.38

Ou seja,

é apenas porque o super-regional triunfa em seus esforços pela


integração cultural que a integração do super-regionalismo é uma auto-
integração meramente hegemônica. Torna-se então óbvio que tal auto-
integração exclui – aliás, é nessa exclusão que ela se baseia – tantas
formações culturais subalternas na América Latina.39

• • •

Dado esse contexto epistêmico, não é surpreendente que nas histórias

literárias latino-americanas proliferem as metáforas arbóreas. No campo da

crítica brasileira a formulação mais conhecida é ainda a de Antonio Candido,

que declarou famosamente, em mais de uma ocasião e de diversas formas, em

textos escritos entre os anos 1950 e 1980, que “As nossas literaturas latino-

americanas, como também as da América do Norte, são basicamente galhos das

metropolitanas”.40 Ángel Rama não afirmaria algo muito diferente, ao

descrever “el tronco lingüístico de donde parten las tres lenguas que definen la

38
Alberto Moreiras, A exaustão da diferença, op.cit., p.225. Na própria tradição crítica hispano-
americana há versões menos triunfalistas dessa história, como a que se vê ao longo da obra do
peruano Antonio Cornejo Polar.
39
Ibidem, p.207.
40
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, op.cit., p.151.

24
literatura latinoamericana” e sustentar que “Venimos de la gran vena cultural

occidental”.41 Antes disso, os críticos Emir Rodríguez Monegal e Pedro

Henríquez Ureña já se valiam de troncos, raízes e galhos para retratar a

evolução das literaturas latino-americanas, o primeiro argumentando que

“nuestra literatura aparece inscripta en tronco hispánico” e o segundo

afirmando que “el Martín Fierro y el Fausto no son ramas que disten del tronco

lingüístico más que las coplas murcianas o andaluzas”.42

Para a historiografia literária, a consequência de se pensar a formação

através de uma árvore genealógica é que se dificulta o reconhecimento da

existência de algo exterior ou anterior à literatura. Um tronco nasce de uma

raiz e seus galhos crescem preenchendo o vazio; passa-se de uma unidade

inicial a uma diversidade secundária, onde a dependência não pode senão ser

inevitável. Como contraste, pensemos na imagem de uma onda, usada em

outras histórias literárias e explorada por Franco Moretti: forças contrárias se

encontram e uma uniformidade tensa busca encobrir a diversidade inicial.43 É

o modelo da árvore, no entanto, que predominará em muitos estudos latino-

41
Ángel Rama, “Un proceso autonómico: de las literaturas nacionales a la literatura
latinoamericana”. Em Homenaje a Ángel Rosenblat en sus 70 años. Caracas: Instituto
Pedagógico, 1974.
42
Emir Rodríguez Monegal, “Nacionalismo y literatura (Un programa a posteriori)”. Em
Marcha, Montevidéu, n. 629, 4.7. 1953: p.14-15 (citado em Pablo Rocca, Ángel Rama, Emir
Rodríguez Monegal y el Brasil: Dos caras de un proyecto latinoamericano. Montevidéu: Ed.
Banda Oriental, 2006.; e Pedro Henríquez Ureña, Seis ensayos en busca de nuestra expresión.
1965: p.20-21 (também citado por Rocca, com a observação de que o trecho fora sublinhado no
exemplar de Rama).
43
Ver Franco Moretti, “Conjectures on World Literature”. Em Christopher Prendergast (org.),
Debating World Literature. Londres: Verso, 2004, p.160-161.

25
americanos, permitindo que se afirme ainda que “Nunca se viu os diversos

nativismos contestarem o uso das formas importadas, pois seria o mesmo que

se oporem ao uso dos idiomas europeus que falamos”,44 raciocínio possível

apenas se o pensamento não sair da esfera do literário.45 Partindo de uma

perspectiva diferente seria possível identificar momentos de atrito com

idiomas e formas europeus e até o conceito de literatura se tornaria incerto.

• • •

Antes de terminar, “O direito à literatura” descreverá com entusiasmo

alguns experimentos sociais que comprovariam a validade de suas hipóteses. O

primeiro é o conjunto de programas sociais desenvolvidos por Mário de

Andrade à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo entre 1935 e 1938, onde

o escritor buscou difundir a cultura livresca e a música erudita levando-a a

público até então inédito, ao mesmo tempo em que, em movimento na outra

direção, estimulava a pesquisa etnográfica sobre a cultura popular,

confirmando e demonstrando, segundo Candido, o “pressuposto de que todos

44
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, op.cit., p.151-152.
45
É também esse lugar do pensamento, com seus pontos cegos, que gera uma posição como a
seguinte, elaborada por Candido em debate sobre a obra de Paulo Emílio Salles Gomes: “Nós
colocávamos para o Brasil esse problema [o do conflito entre “ocupados” e “ocupantes”],
concluindo que não existia. A posição do Paulo Emílio tem que ser pensada um pouco também
historicamente, biograficamente. Ele estava cansado de saber que não tinha sentido você
postular, o[u] reivindicar a preeminência de uma cultura local que não existe. Cultura local do
Brasil é tupi-guarani, que não é propriamente a mais brilhante do mundo, e nem vale como
alternativa” (o riso dos presentes ainda chega até nós). A fala de Candido está transcrita em
“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”. Filme cultura, ano XIII, jul/ago/set 1980,
no.35/36. Debate entre Maria Rita Galvão, Antonio Candido, Ismail Xavier, Jean-Claude
Bernardet e Maurício Segall sobre o artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” de
Paulo Emílio Salles Gomes. Agradeço a Flávia Cesarino Costa a indicação desse texto.

26
os níveis [culturais] são dignos”.46 O relato do episódio serve para afirmar a

dignidade de toda a produção cultural, em suas diversas formas e níveis,

inclusive porque há intercomunicação viva entre os modos erudito e popular,

embora se assegure em seguida, mais uma vez, que as diferentes práticas

culturais possuem capacidades desiguais para estimular a formação pessoal.

Assim, se na página anterior líamos que as obras literárias contribuem para o

“amadurecimento de cada um”, se na página seguinte veremos que Dom Quixote

e Os Lusíadas são “fatores inestimáveis de afinamento pessoal”, e se antes já

víramos, em relação à música e a literatura populares e ao folclore, que

Estas modalidades são importantes e nobres, mas é grave considerá-las


como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à
ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas,47

agora registra-se que em sociedades igualitárias a premissa é que

todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os


níveis eruditos como consequência normal da transformação de
estrutura, prevendo-se a elevação sensível da capacidade de cada um.48

Chegando a uma espécie de ápice – a elevação do tom do texto é nítida –, o autor

declara que se essa passagem do “popular” para o “erudito” não ocorre não é

por falta de capacidade dos pobres, mas simplesmente pela ausência de

oportunidades.

Como corroboração, Candido arrola outros cinco exemplos da capacidade

dos subalternos de apreciar e desfrutar da cultura erudita quando esta lhes é

46
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p. 259.
47
Ibidem, p.257.
48
Ibidem, p.259.

27
apresentada. O objetivo do conjunto de relatos é reforçar a necessidade de uma

reorganização da sociedade de modo a garantir algo mais próximo de uma

“distribuição equitativa dos bens”. Como o texto vinha sugerindo desde o início,

mas vem a explicitar aqui, “Só numa sociedade igualitária os produtos literários

poderão circular sem barreiras”, sendo esta a tarefa para a qual se convoca a

participação dos leitores. Outro exemplo de que o exercício pode ser bem-

sucedido é o experimento social empreendido pelo francês Jean Guéhenno,

escritor “empenhado, mas não sectário”, nos anos 1930. No relato de Candido,

ele deu para ler a gente modesta, de pouca instrução, romances


populistas, empenhados na posição ideológica ao lado do trabalhador e
do pobre. Mas não houve o menor interesse da parte das pessoas a que
se dirigiu. Então, deu-lhes livros de Balzac, Stendhal, Flaubert, que os
fascinaram. Guéhenno queria mostrar com isto que a boa literatura tem
alcance universal, e que ela seria devidamente acolhida pelo povo se
chegasse até ele.49

No mesmo espírito, cita-se a iniciativa do escritor português Agostinho da Silva,

que nos anos 1940 ministrara para operários cursos de filosofia em que autores

como Platão “foram devidamente assimilados”. Menciona-se ainda o caso de

operários italianos que, como consequência de legislação aprovada em Milão

garantindo-lhes tempo para o aperfeiçoamento cultural, podiam escolher uma

atividade cultural de acordo com sua preferência. Conta Candido que, “para

surpresa geral”, os trabalhadores solicitaram cursos de violino e de língua e

literatura italianas. Desse episódio passa-se à constatação da ampla difusão na

49
Ibidem, p.260.

28
Itália da obra de Dante, “conhecida em todos os níveis sociais e por todos eles

consumida como alimento humanizador”.

Este belo exemplo leva a falar no poder universal dos grandes clássicos,
que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo
podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois
têm a capacidade de interessar a todos e portanto devem ser levados ao
maior número.50

A questão a ser abordada diante desses relatos não é, evidentemente, se “gente

modesta”, para usar a expressão de Candido, seria afinal capaz de apreciar o

Amor de perdição, a Divina Comédia ou Balzac. A pergunta interessante não é

essa, mas outra: qual o motivo para a aparição no texto, quase como um

desenvolvimento obrigatório do raciocínio exposto nele, da afirmação de um

consenso a respeito da cultura erudita, apresentada uma e outra vez como

segurança, garantia e confirmação?

Talvez as consequências do gesto se tornem mais claras se imaginarmos

o que ele representa como delimitação das possibilidades de futuro, ao sinalizar

o porvir desejado. Em uma sociedade em que a desigualdade social fosse

superada, a alta cultura seria desfrutada por todos, sem distinções, como, de

resto, já vinha acontecendo, pontualmente, nos episódios citados, nos quais as

distâncias entre as classes eram momentaneamente redimidas, todos se

reunindo indistintamente em torno dos clássicos da cultura ocidental. Nesse

sentido o limite da transformação da sociedade parece estar dado pela mudança

50
Ibidem, p.261.

29
na distribuição daquilo que já existe, não passando pela criação do que ainda

não é. Sob essa luz, o caso de Jean Guéhenno citado como exemplo ganha

relevância por se tratar da tentativa de responder, após a Revolução Russa, a

medidas que buscavam transformar a produção da cultura. É verdade que o

desinteresse dos trabalhadores fora por “romances populistas, empenhados”,

sinalizando a objeção à prática conhecida de escrever obras de conteúdo

operário imaginando que a proximidade temática com o universo do

trabalhador seja suficiente para garantir uma recepção positiva. (Que a

oposição imaginada seja entre literatura “populista” e alta literatura também é

digno de nota, pois expõe a dificuldade de imaginar mudanças profundas na

produção, estando ausente da cena a possibilidade de algo como uma criação

subalterna. A alternativa ao reformismo da defesa do acesso àquilo que já existe

é algo que é chamado de modo depreciativo de “populismo” – e não o

revolucionário.) No trecho a função do repertório recusado é ressaltar o

contraste com a aceitação fascinada de obras de Balzac, Stendhal e Flaubert. O

movimento reconfortante narrado por Candido e comum a textos semelhantes

é a volta à tradição, sem qualquer abalo nesta, mesmo após a transformação

social.

Antes de passar ao último exemplo descrito por Candido, faço um breve

desvio por um texto também muito utilizado em salas de aula brasileiras, um

ensaio de Julio Cortázar que toca em questões semelhantes às que reverberam

ao longo de “O direito à literatura”. O texto foi apresentado como conferência

30
por Cortázar em Havana em 1963 e publicado alguns anos mais tarde na revista

Casa de las Américas com o título “Algunos aspectos del cuento”.51 Trata-se,

portanto, de uma intervenção em um contexto pós-revolucionário, uma

participação em um de muitos debates sobre a relação entre estética e política

que aconteceram em ou em referência a Cuba nos anos 1960 latino-

americanos.52 É nesse quadro que Cortázar, na época já autor de Los premios e

Historias de cronopios y de famas, um escritor com fama e prestígio em

ascensão, discorre criticamente sobre as carências da literatura que chama de

“revolucionária”. Para o autor, os textos literários produzidos dentro da

Revolução Cubana só “conterão uma mensagem autêntica e profunda” se não

forem

escolhidos por um imperativo de caráter didático ou proselitista, mas,


sim, por uma irresistível força que se imporá ao autor, e que este,
apelando para todos os recursos de sua arte e de sua técnica, sem
sacrificar nada a ninguém, haverá de transmitir ao leitor como se
transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue, de mão a mão,
de homem a homem.53

O contraste que o texto vinha delineando até então, com o objetivo de indicar a

existência de uma alternativa ao particularismo, derivava de debates

51
A primeira publicação foi em Revista Casa de las Américas, n. 60, julho de 1970, Havana. O
texto foi reeditado depois em Jaime Alazraki (org.), Obra crítica/2. Buenos Aires: Alfaguara,
1994, p.365-85. Em português, é traduzido como “Alguns aspectos do conto”, em Jaime Alazraki
(org.), Obra crítica, v.2. Trad. Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999, p.345-363.
52
Para um relato de uma parte dessa história, incluindo uma leitura que relaciona o texto de
Cortázar com Walter Benjamin e Edgar Allan Poe, ver David Kelman, “The Afterlife of
Storytelling: Julio Cortázar's Reading of Walter Benjamin and Edgar Allan Poe”. Comparative
Literature, 60, n.3, 2008, p.244-260.
53
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.163.

31
argentinos sobre o regionalismo, e de lá são convocados os autores Horacio

Quiroga, Ricardo Güiraldes e Benito Lynch, escritores rio-platenses admirados

por Cortázar porque, embora partissem de “temas muitas vezes tradicionais,

ouvidos da boca de velhos gaúchos como um Dom Segundo Sombra, souberam

potenciar esse material e torná-lo obra de arte”.54 Os três

eram escritores de dimensão universal, sem preconceitos localistas ou


étnicos ou populistas; por isso, além de escolherem cuidadosamente os
temas de suas narrativas, submetiam-nos a uma forma literária, a única
capaz de transmitir ao leitor todos os valores, todo o fermento, toda a
projeção em profundidade e em altura desses temas. Escreviam
tensamente, mostravam intensamente. Não há outro modo para que um
conto seja eficaz.55

A conclusão prescritiva também aqui tem um efeito reconfortante. Ela

permitirá que se dê o seguinte passo, já esperado dado o raciocínio anterior: a

composição de fórmulas para a composição de um bom conto. Não surpreende

que o texto tenha se tornado leitura obrigatória em algumas disciplinas

introdutórias de cursos de Letras e que seja citado como fonte de critérios de

seleção para jurados de prêmios literários.56

54
Ibidem, p.159.
55
Ibidem.
56
O Prêmio Jabuti, por exemplo, que divulgou um manual que explica o que espera dos contos
avaliados. “Economia. Nada deve haver de supérfluo. Tudo no conto tem motivação” é um dos
critérios apresentados no texto entregue ao júri da Câmara Brasileira do Livro encarregado de
selecionar o melhor livro de contos (Câmara Brasileira do Livro, 46o Prêmio Jabuti. Guia de
orientação aos jurados, p.25). O oitavo critério do mesmo volume – “Surpresa. Algum filão
(história secundária, geralmente a mais importante) oculto deve aflorar à superfície nos
interstícios e no fim do conto” – parece vir também das teses sobre o conto de Ricardo Piglia
(“Teses sobre o conto” e “Novas teses sobre o conto”. Em Formas breves. Trad. José Marcos M.
de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004). Já os critérios para a avaliação de
narrativas mais longas inclui a exigência de “retratar uma crise que afete a trajetória das
personagens”, especificando que “Ação + História + Transformação devem estar presentes”.
Curiosamente, neste caso também aparece a cobrança de uma “mitopoética implícita”, que
seria “mais eficaz se for de caráter nacional”.

32
No texto de Cortázar a questão é apresentada como relacionada à

liberdade – Quiroga, Güiraldes e Lynch teriam se emancipado de “preconceitos

localistas ou étnicos ou populistas”, livrando-se de qualquer cultura particular,

as restrições castradoras superadas pela competência técnica.57 Mas com a

inversão do quadro seria possível dizer que o que está sendo cobrado dos

escritores é a fidelidade a uma concepção idealista de literatura, com a

promessa de que com isso seriam alcançados grupos variados de leitores em

diferentes espaços no presente e no futuro.

A hipótese da permanência seria difícil de comprovar, como lembra

Antoine Compagnon em O demônio da teoria, na discussão daquilo que chama

de “prova da posteridade”, pois nosso limite é o presente e pouco podemos dizer

sobre a sobrevivência de obras além dele.58 A “prova da exterioridade”, no

entanto, parece mais facilmente testável, e por isso não faltam em textos como

os examinados aqui exemplos de experiências sociais demonstrando o

reconhecimento instantâneo do valor de obras canônicas além das fronteiras

em que foram produzidas. É o que fará também o “Alguns aspectos do conto”,

apelando a uma “roda de homens do campo” que, como os trabalhadores de

Guéhenno citados por Candido, não vão reagir favoravelmente a um conto

“escrito com uma deliberada simplicidade para pô-lo, como dizia o autor, ‘no

57
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.158.
58
Antoine Compagnon, O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes
Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, p.251-252.

33
nível do camponês’. A narrativa foi ouvida cortesmente, mas era fácil perceber

que não havia tocado fundo”.59 Em seguida, lê-se aos camponeses o conto “A

pata do macaco” de W. W. Jacobs.

O interesse, a emoção, o espanto e, finalmente, o entusiasmo foram


extraordinários. Recordo que passamos o resto da noite falando de
feitiçaria, de bruxas, de vinganças diabólicas. E estou seguro de que o
conto de Jacobs continua vivo na lembrança desses gaúchos analfabetos,
enquanto o conto pretensamente popular, fabricado para eles, com o
vocabulário, as aparentes possibilidades intelectuais e os interesses
patrióticos deles, deve estar tão esquecido como o escritor que o
fabricou.60

Da mesma forma, uma representação de Hamlet teria suscitado “entre gente

simples” uma emoção semelhante, embora se reconheça que a apreciação feita

por esse público não seja do mesmo nível que a de especialistas.

Mas que importa? Só sua emoção importa, sua maravilha e seu arroubo
diante da tragédia do jovem príncipe dinamarquês. O que prova que
Shakespeare escrevia verdadeiramente para o povo, na medida em que
seu tema era profundamente significativo para qualquer um – em
diferentes planos, sim, mas atingindo um pouco de cada um – e que o
tratamento teatral desse tema tinha a intensidade própria dos grandes
escritores, graças à qual se quebram as barreiras intelectuais
aparentemente mais rígidas, e os homens se reconhecem e
confraternizam num plano que está mais além ou mais aquém da
cultura.61

Uma prova, portanto, mais uma vez, exibida como evidência da possibilidade

da ruptura de barreiras sociais e intelectuais, como se verá também no último

exemplo apresentado por Candido em seu ensaio, desta vez através de um

relato autobiográfico:

59
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.162.
60
Ibidem.
61
Ibidem.

34
...quando eu tinha doze anos, na mesma cidade de Poços de Caldas, um
jardineiro português e sua esposa brasileira, ambos analfabetos, me
pediram para lhes ler o Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, que
já tinham ouvido de uma professora na fazenda onde trabalhavam antes
e que os havia fascinado. Eu atendi e verifiquei como assimilavam bem,
com emoção inteligente.62

Em comum com Cortázar há a importância que o relato concede ao testemunho.

Ambos estavam lá, diante de ouvintes concretos, e podem então atestar a

legitimidade do acontecimento, aproximando a narrativa dos testemunhos do

sobrenatural e do milagre. O “interesse” e a “emoção” são detectados sem

dificuldade (“era fácil perceber”, escreve Cortázar) nos rostos de fácil

deciframento de jardineiros e camponeses, e em certo sentido é também disso,

dessa capacidade de interpretação, que os relatos dão testemunho: do poder de

discernir, desde o privilégio, a verdade da experiência do subalterno. Insistindo

um pouco no gênero do testemunho do milagre, é significativo que a prova da

generalidade das obras e de seu alcance venha de experimentos com

subalternos, apontados uma e outra vez, nos dois textos, como “modestos” e

“simples”, do mesmo modo que na Igreja Católica há uma predisposição para

aceitar como verdadeiros os milagres relatados por pessoas vistas como

inocentes (pobres, camponeses, crianças).

Esse episódio final de “O direito à literatura”, encerrando o movimento

geral do texto, não busca apresentar desafios maiores ao pensamento. Não é

uma exigência à teoria ou à filosofia o que se formula ali, nem à imaginação

62
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.261.

35
política. A dificuldade que resta está associada à administração e à gestão dos

bens existentes, e ela que precisará ser sanada, fazendo com que predomine

nessa concepção do que são os direitos humanos “a luta por um estado de coisas

em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura”, como se lê

perto do final do texto.63 A sociedade moderna produziu benesses e confortos

desejáveis por todos, capazes de a todos satisfazer. Sua falha foi não os

generalizar, sendo essa a tarefa que falta. Universalizar o que as classes

favorecidas já têm não seria, evidentemente, pouca coisa em um país como o

Brasil. No entanto, a consequência da argumentação é que a exclusão e a

violência necessárias para manter a segregação não são vistas como

constitutivas da cultura produzida nessa configuração social.64

Mas as cenas de encontros com subalternos em cidades europeias ou na

província argentina ou brasileira são felizes também por outro motivo. A ida ao

subalterno, o encontro face a face, é narrado com alegria por descobrir no olhar

do outro o desejo por aquilo que já se tem, em uma espécie de confirmação do

63
Ibidem, p.262.
64
Para uma amostra de como debates dentro da esquerda sobre situações análogas muitas vezes
levaram a conclusões muito diferentes, registro um exemplo, retirado de Robert Kurz, que
chega a enxergar potencial emancipador no esvaziamento da educação: “Se a educação para a
grande massa é desmantelada de maneira tão crassa, desaparece também sua função anterior
de disciplinamento. Desse modo, porém, é desencadeado não apenas um ‘analfabeto
secundário’, mas talvez também uma ‘inteligência subversiva’ que não siga mais os princípios
do totalitarismo econômico. Pode ser que a administração capitalista da crise educacional
ponha a caminho, sem querer, uma nova contracultura intelectual.” Em Robert Kurz, “O efeito
colateral da educação fantasma”. Em Folha de São Paulo, 11 de abril de 2004, pp.18-19. Já no
debate sobre mudanças nas formas de acesso à universidade, a perspectiva equivalente à
posição universalista é a reivindicação de inclusão sem que se tenha no horizonte a necessidade
simultânea da transformação da instituição que já existe.

36
privilégio. Assim, a crítica à “literatura proletária” e à “literatura populista”

destinada aos pobres alega que houve um equívoco na interpretação daquilo

que o subalterno deseja, que na verdade sempre fora a alta cultura. O giro é

importante pois é ele que permitirá a defesa da alta literatura em nome dos

subalternos e de seus próprios critérios e desejos, diluindo a tensão do encontro

entre as classes e transformando-o em consenso, a confirmação da

possibilidade de uma conciliação (futura) entre as classes.

Mais uma vez, a alternativa não deve ser a volta da dúvida quanto à

capacidade de compreensão e apreciação de obras eruditas. Também não é a

redução do sentido de uma obra às suas condições de produção ou às relações

de poder vigentes no momento de sua criação. As interrogações que este texto

tenta esboçar são outras, em primeiro lugar a pergunta sobre o sentido dos

complexos movimentos discursivos encontrados em textos como “O direito à

literatura”. Esses certamente não são simples, mas parecem incluir o interesse

pela preservação, mesmo em circunstâncias extremas como cenários

revolucionários, de algo que poderia ser definido como uma política

pedagógica. Nas histórias de Jean Guéhenno, de Agostinho da Silva, e até na

palestra de Cortázar, é o lugar e o poder do pedagogo como mestre o que se

confirma. É sua voz que declara, no testemunho em primeira pessoa, que a

apreensão ocorreu e que as obras foram “devidamente assimiladas”. É ele quem

poderá verificar que houve “emoção inteligente” na recepção de Camilo Castelo

Branco, Shakespeare e W. W. Jacobs.

37
Como indício de como a especulação poderia ter tomado outros rumos,

recorro a uma cena do livro O mestre ignorante, de Jacques Rancière.65 Como

em Cortázar e Candido, a história que se conta também vai provocando o

arrebatamento da linguagem utilizada, embora o relato se entusiasme com

aspectos bem diferentes daqueles já elencados. Não será a descoberta da

capacidade do outro, surpreendentemente evidenciada (“para surpresa geral”,

escreveu Candido sobre os operários italianos) na recepção de uma obra.66 A

admiração também não é gerada pela manifestação pelo outro de algo que

confirma o mesmo. Não é a alegria de constatar que o que outro quer é, afinal,

Balzac, Stendhal e Flaubert. A emoção vem, ao contrário, da verificação do

caráter supérfluo do professor. No episódio ao qual Rancière regressa, voltando

aos inícios do século XIX, alunos assumem a função de professores de si

mesmos, dada a ausência do pedagogo. Como contraponto, na sociedade

pedagoga é necessário preservar o lugar do professor-observador, esse sujeito

capaz de divisar e atestar a inteligência e, no limite, a humanidade, do

subalterno.

Vejamos a questão desde outro ângulo: o que aconteceria se encontros

como os relatados por Candido e Cortázar não terminassem conforme

65
Jacques Rancière, O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. L.
do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
66
O que a ideia da leitura como “assimilação” sugere como teoria da leitura mereceria atenção
maior. Em “O direito à literatura”, lê-se que a “boa literatura” foi “acolhida devidamente pelo
povo”, que os textos filosóficos “foram devidamente assimilados”, e que o jardineiro e sua
esposa “assimilavam bem” o Amor de perdição (op.cit., p.260-261).

38
planejado, isto é, se não fossem histórias felizes? O que acontece se, em uma

situação concreta qualquer, “pessoas modestas” não reconhecem o “poder

universal dos grandes clássicos” e recusam o Fausto ou Os Lusíadas? No texto

de Candido não há sinal de ruído nos experimentos realizados, resultado,

talvez, da brutalidade dos destinatários imaginados para esse texto dos anos

1980.67 Cortázar, por sua vez, é levado a reconhecer a possibilidade do

dissenso: “Por certo, seria ingênuo crer que toda grande obra possa ser

compreendida e admirada pela gente simples; não é assim e não pode sê-lo.”68

No entanto, sempre que isso ocorrer o que estará faltando é um trabalho

pedagógico: “O que é preciso fazer é educá-lo, e isso é numa primeira etapa

tarefa pedagógica e não literária”.69 Cria-se assim a estranha situação em que

valores estéticos universais, capazes de ultrapassar diferenças históricas,

culturais e sociais, precisam ser... ensinados! Uma iniciação prévia e uma

formação particular passam a ser pré-requisitos para o pertencimento ao

universal.

• • •

Falta um último movimento, pois não é inteiramente certo que não

existam nuanças na recepção da alta cultura no esquema apresentado por

67
O ponto de partida de Candido é a crítica à negação de direitos básicos a empregados
domésticos (que, esclarece, também precisam descansar, etc.), problema que no Brasil está
longe de ser parte do passado. É ele que levará àquilo que é definido como um “pressuposto
dos direitos humanos”: “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é
também indispensável para o próximo” (ibidem, p.239).
68
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.162.
69
Ibidem, p.163

39
Candido. No penúltimo parágrafo do texto aparece uma referência a uma

camada social que não assimila devidamente obras conceituadas quando em

contato com elas. No trecho o tom mais uma vez será elevado e o volume da

prosa aumentará. Antes serena e afável, o texto aqui será tomado pela

indignação. Reproduzo o parágrafo na íntegra:

Nesse contexto, é revoltante o preconceito segundo o qual as minorias


que podem participar das formas requintadas de cultura são sempre
capazes de apreciá-las – o que não é verdade. As classes dominantes são
frequentemente desprovidas de percepção e interesse real pela arte e a
literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero
esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda, porque dá
prestígio gostar deste ou daquele pintor. Os exemplos que vimos há
pouco sobre a sofreguidão comovente com que os pobres e mesmo
analfabetos recebem os bens culturais mais altos mostram que o que há
mesmo é espoliação, privação de bens espirituais que fazem falta e
deveriam estar ao alcance como um direito.70

É na representação da classe alta que virá o reconhecimento da complexidade

da questão, com a sugestão de que o acesso afinal pode não ser suficiente para

a apreciação e não garante a fruição genuína. Note-se que o que o trecho parece

colocar em dúvida em primeiro lugar é não apenas a disposição, mas a

capacidade para apreciar “formas requintadas de cultura”, justamente aquilo

que fora necessário comprovar na sequência de experimentos sociais. A essa

deficiência na “percepção” se juntará a indiferença, mantendo-se a aparência

de interesse apenas porque algum prestígio resulta da proximidade com as

artes. À diferença das cenas anteriores, nesse teatro tudo está atravessado pelo

70
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.262.

40
conflito de classes, da facilidade do acesso à encenação do gosto pela cultura

como busca de prestígio e poder, tornando a cena tensa e intricada, em

contraste com a ausência de qualquer conflito nos casos relatados ao longo das

páginas anteriores.

Não é imaginável que alguns dos operários portugueses ou italianos, que

o jardineiro português, ou ao menos um ou outro trabalhador francês, também

tivessem percebido que “está na moda” ou “dá prestígio gostar deste ou daquele

pintor”? Que notassem inclusive a expectativa ansiosa presente no olhar do

intelectual envolvido no experimento social? Consideradas essas

possibilidades, os episódios não deixariam de ter interesse, mas seria

necessário um passo analítico adicional em sua interpretação, com

repercussões tanto para a teoria e a prática pedagógicas como para a filosofia

política.

Não se trata de preocupação diante de uma possível injustiça com a

classe dominante, mas de apontar que, se o artigo de Candido fosse um

romance, os personagens mais interessantes, complexos e vivos seriam os ricos

(na adaptação ao cinema desse romance, os melhores atores do elenco seriam

escalados para esses papeis). Fechando o triângulo da cena, a personagem do

intelectual, heroica e plena de certezas, revela-se uma espécie de vidente, capaz

de enxergar tanto o interesse surpreendente, porém genuíno, dos pobres

quanto a falsidade dos ricos, comovendo-se com a sofreguidão de uns,

indignando-se com o esnobismo de outros.

41
A situação lembra as inquietações que atravessam Pode o subalterno

falar?, de Gayatri Spivak,71 estudo que se pergunta acerca do motivo que leva a

crítica ao sujeito soberano a recuar diante do sujeito oprimido, regressando a

uma concepção simplificada de subjetividade. Quando é anulada a diferença

entre “saber de” e “lutar por”, o embate principal passa a ser aquele que ocorre

no interior da classe dominante – entre primos, digamos –, com setores bem-

intencionados e generosos da elite disputando com rivais moralmente nefastos

a alma do subalterno. (Spivak demonstra como até mesmo na defesa da abolição

do sati, a imolação de viúvas, ocorre silenciamento das vítimas a serem

resgatadas, permitindo que o relato da salvação do outro seja narrado como a

disputa entre diferentes grupos de homens – ingleses de um lado, indianos de

outro – pelo corpo e a vida da mulher indiana.) Adaptando um pouco

toscamente a equação elaborada por Spivak para representar a estrutura dos

debates no contexto colonial indiano sobre a prática do sati – a fórmula é:

“homens brancos estão salvando mulheres de cor de homens de cor” (“White

men are saving brown women from brown men”)72 –, a versão aqui seria algo

como o seguinte: bons homens ricos estão salvando homens e mulheres pobres

de maus homens ricos. Uma das consequências do esquema é que o intelectual,

falando em nome da experiência concreta (a realidade dos oprimidos, seu

71
Gayatri C. Spivak, “Can the subaltern speak?” Em Cary Nelson e Lawrence Grossberg,
Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago: University of Illinois Press, 1988, p. 271-
313. Em português, Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
72
Spivak, Pode o subalterno falar?, op.cit., p.94.

42
interesse verdadeiro e sua capacidade inerente, aos quais o intelectual teria

acesso), reforça a tradicional divisão de trabalho entre pensamento e ação,

mantendo “a contradição não reconhecida de uma posição que valoriza a

experiência concreta do oprimido, ao mesmo tempo que se mostra acrítica

quanto ao papel histórico do intelectual”.73

De onde vem a necessidade dessas contorções? Por que é preciso

dissimular a afirmação da particularidade (e talvez da superioridade) da

cultura erudita? Uma parte da resposta está na economia discursiva da

democracia representativa, que é o território ocupado pelo texto. Sua estrutura

se baseia não exatamente no silenciamento do outro, mas na apropriação de

sua voz, pois nela é preciso representar o subalterno, e não mais modificar ou

transformá-lo sem a sua anuência.

A questão interessante é também a seguinte: quais são as situações que

justificam a manifestação dessa ira presente no final de “O direito à literatura”?

Como saber se a indignação e a revolta não apontam para a possibilidade do

uso da força quando o valor da alta cultura não for considerado auto-evidente,

ou quando o interesse por ela ou não surgir ou não for interpretado como

autêntico? É possível que esse seja o dilema de qualquer pedagogia que se

queira justa, precisando conviver com o equilíbrio frágil que resulta da

73
Ibidem, p.30-31.

43
obrigação da oferta (dada a desigualdade na distribuição dos bens) e a

necessidade de reconhecer a legitimidade da recusa.

• • •

Este texto começou com a referência de Goethe às moedas que, como as

línguas, tornariam possível a troca e a comparação, uma analogia útil por nos

levar a outro pensador alemão que, alguns anos mais tarde, também estaria

avaliando a função de moedas, sistemas de troca e mercados globais. Vejamos:

No lugar da tradicional autossuficiência e do isolamento das nações surge


uma circulação universal, uma interdependência geral entre os países. E
isso tanto na produção material quanto na intelectual. Os produtos
intelectuais das nações passam a ser de domínio geral. A estreiteza e o
isolamento nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas
literaturas nacionais e locais nasce uma literatura mundial.74

Embora a referência à literatura seja breve e apareça em meio à descrição

detalhada da criação do mercado global, o trecho do Manifesto Comunista,

exemplo de um modo de pensar recorrente na obra de Marx, pode nos impelir

a pensar a abstração, a universalidade e a diferença de outra forma, ajudando-

nos a desenvolver inclusive outra maneira de entender a literatura comparada.

A Weltliteratur das anotações de Goethe citadas no início deste texto

contrasta com o mercado mundial de Marx pois neste a abstração não é natural

e não depende de uma natureza comum dos objetos comparados. A abstração –

que inclusive tem um sujeito histórico específico: a burguesia – é o resultado

74
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista 150 anos depois. Trad. Victor H.
Klagsbrunn. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998, p.11-12.

44
direto da circulação de bens propiciada pela modernidade capitalista. É a troca

de mercadorias que vai atribuir valor abstrato a objetos singulares, tornando

abstrato também o trabalho real, em um processo que sempre terá que

enfrentar a singularidade irredutível presente no corpo do operário. A troca e

a comparação, e, portanto, a abstração, são aqui simultâneas à circulação, e não

anteriores a ela; é a circulação, não o produto, que torna possível a abstração,

a equivalência e a comparação. Para que um sapato e uma cadeira tenham o

mesmo valor de troca, eles não precisam ter uma natureza comum. “Duas coisas

diferentes”, Marx escreverá no Capital, “só se tornam quantitativamente

comparáveis depois de sua conversão a uma mesma coisa. Somente como

expressões de uma mesma substância são grandezas homogêneas, por isso,

comensuráveis.”75

A aspiração do capital é criar um sistema aplicável a todos os casos

possíveis, mas o anseio terá que permanecer apenas um desejo, pois a abstração

nunca é absolutamente vitoriosa e a tensão da conversão da singularidade em

valor abstrato jamais desaparece de todo. A natureza fantasmagórica da

abstração levará Dipesh Chakrabarty a afirmar que “nenhuma forma histórica

do capital, independentemente da globalidade de seu alcance, poderá ser um

universal”, sugerindo que a resistência irredutível que Marx enxergou no corpo

75
Karl Marx, O Capital, v.1. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel, 1982, p.57.

45
do operário pode ser pensada também em termos culturais.76 Da mesma forma,

nenhuma literatura poderia ser universal, embora a comparação exija a

tradução constante de práticas discursivas singulares ao conceito geral de

literatura. Chamar de literatura, ou ficção, o que é outra coisa seria portanto

uma forma dessa violência tradutora que abafa a diferença contida naqueles

horizontes conceituais que incluem outras formas de entender a relação entre

a palavra, objetos verbais, a representação da realidade e o lugar do sujeito

humano na criação e recepção dos discursos. Como o operário na fábrica em

sua relação com a abstração do trabalho, todas essas práticas discursivas

existirão sempre em tensão com o impulso universalizante. A literatura

comparada, com sua atenção à particularidade de textos e contextos, poderia

estar em uma posição privilegiada para desenvolver essa reflexão crítica sobre

o conceito de literatura, reconhecendo as ruínas deixadas pelo caminho no

trânsito entre línguas, tradições e obras.77

76
Dipesh Chakrabarty, “Universalism and Belonging in the Logic of Capital”. Em Public Culture,
32, 2000, p.675.
77
Essa leitura do uso do conceito de Weltliteratur no Manifesto Comunista se distingue da
interpretação do texto de Marx e Engels feita por Haroldo de Campos em “El sentido de la teoría
literaria y de la literatura comparada en las culturas denominadas ‘periféricas’”, Filología, XXX,
1-2, 1997, p.101, 107-108. Haroldo de Campos enxerga no texto de Marx uma literatura mundial
livre da separação entre as línguas e da divisão do trabalho, “la idea paradisíaca de una
literatura universal homogenea, patrimonio de una humanidad ‘desbabelizada’” e “una
concepción teñida de optimismo marxista que envuelve... aspectos de utopía milenarista,
fuertemente impregnados de teologismo laico”, além de um “optimismo mesiánico”. No entanto,
não parece claro que a Weltliteratur descrita pelo Manifesto surgiria com o fim da divisão de
trabalho e do conflito social. Ao contrário, ela seria um sistema típico do capitalismo, baseado
na contradição e na abstração forçada. É um modelo que parece permitir maior tensão interna
do que o esquema alternativo proposto por Haroldo de Campos, com seu apelo a uma
“convivencia productiva y dialógica de las diferencias en el tablero combinatorio de lo universal”
e sua defesa da “realización de un esfuerzo crítico multidireccional en el sentido de la promoción
de lo plural y de lo diverso como figuras de un ábaco móvil, siempre capaz de nuevas

46
Se essa reflexão permite que comecemos a esboçar uma cartografia do

literário, também nos ajudaria a vislumbrar um espaço além das fronteiras do

pensamento que tem a literatura como horizonte único. É isso, afinal, o que a

leitura de Marx nos estimular a fazer. É possível encontrar na “Ideologia

alemã”, por exemplo, a afirmação de que nossa forma de entender a arte só

pode existir em uma sociedade com uma divisão de trabalho como a

capitalista.78 O raciocínio é concluído com a surpreendente afirmação de que

na sociedade comunista não haverá pintores, já que a concentração de talento

artístico em determinados indivíduos é análoga à concentração de riqueza no

capitalismo. Por isso é tão relevante o lugar em que foi pronunciada a

conferência de Cortázar; é como se, na sociedade pós-revolucionária, se

vislumbrasse uma ameaça ao sistema cultural anterior, precisando então ser

reforçada a continuidade da tradição. A revolução não deveria provocar

mudanças drásticas no modo de produção da cultura – antes ou depois da

revolução, o que conta é o domínio da “técnica” e a irresistível força das coisas

fundamentais, a serem transmitidas “de homem a homem”.79

Como já cheguei até aqui, me arriscarei mais um pouco, tentando

formular uma pergunta um pouco perversa, que espero que não esteja fora de

lugar. A expansão da literatura é frequentemente exaltada por escritores como

configuraciones, donde lo tercero, lo excéntrico, lo descentrado, nunca sea un tercero ‘excluido’


de la combinatoria de posibilidades”.
78
Karl Marx, A ideologia alemã. Trad. L. Castro e Costa. S. Paulo: Martins Fontes, 1998.
79
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.163.

47
Antonio Candido e Cortázar com apelo à sua complexa função política, que

permitiria que ela contribuísse à sua maneira para a expansão da justiça social

e a formação de indivíduos e sociedades. Mesmo sem uma transformação

radical da sociedade, sua capacidade de ultrapassar as barreiras sociais,

confirmando semelhanças entre grupos aparentemente distantes, seria a

demonstração de algo como uma justiça já conquistada, ou pelo menos um sinal

do que esta seria. No entanto, o que aconteceria se, em um cenário hipotético

qualquer, no limite mesmo do literário, aquém ou além da literatura,

concluíssemos que a literatura não coincide com a justiça? Afinal, quando elas

convergem não há dilema ético e não há, propriamente, decisão a ser tomada.

Mas se tivéssemos que escolher entre literatura e justiça, onde ficaria nossa

fidelidade?

48

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