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Marcos Natali
(Universidade de São Paulo)
são como suas moedas; ambas, em vez de impedir, possibilitam a troca entre os
Este texto é uma versão revista e ampliada de um artigo publicado na revista Literatura e
Sociedade, da USP, em 2006. Por comentários a versões anteriores deste texto, agradeço a
Roberto Zular, Jaime Ginzburg e Ana Cecilia Olmos, a colegas que participaram de seminário
no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP em que o texto foi
debatido e ao público de eventos na Universidad de Chile e na Universidad Nacional Autónoma
de México, onde sou grato em particular a Rodolfo Mata. Agradeço ainda aos editores e
revisores do periódico Comparative Literature Studies, onde uma tradução de partes deste texto
foi publicada em 2008 com o título “Beyond the Right to Literature”.
Duas breves observações sobre o título do texto (sobre sua falta de originalidade, na verdade):
soube, após sua primeira publicação como artigo, da existência de “Para além da literatura com
a literatura”, de Lígia Chiappini (Lusorama, Atas do Congresso de Lusitanistas Alemães de 1999,
org. Axel Schönberger). Além de não ter sido o primeiro caso de uma referência ao “além” do
literário no título de um texto crítico, não seria o último; em 2014 foi publicado em Portugal
todo um livro chamado, justamente, Além da Literatura, desta vez de autoria do crítico literário
português João Bigotte Chorão (Quetzal, 2014).
1
Apud Stefan Hoesel-Uhlig, “Changing Fields: The Directions of Goethe’s Weltliteratur”. Em
Christopher Prendergast (org.), Debating World Literature. Londres: Verso, 2004, p.36-37.
neutro, anterior a qualquer comparação e além de qualquer localismo – que
afirmaria em outra ocasião, ele estava “cada vez mais convencido de que a
sentem quase exatamente o mesmo que nós; e logo percebemos que somos
2
Segundo Johann Peter Eckermann, citado em David Damrosch, What Is World Literature?
Princeton: Princeton University Press, 2003, p.1.
3
Ibidem, p.11.
3
cosmopolitas aventureiros. Desde a perspectiva universalista, pensa-se que
4
Gayatri Chakravorty Spivak, Death of a Discipline. Nova York: Columbia University Press,
2003, p.52.
4
publicado pela primeira vez em 1988, permitirá que se perceba como a
resumidas aqui pela operação que no texto de Candido busca dobrar uma ideia
5
Exemplos da influência do texto “O direito à literatura” são numerosos demais para serem
elencados aqui. O texto chega a aparecer em diretrizes de ONGs e programas escolares, em
muitos casos funcionando como uma espécie de guia, superando impasses e encerrando
discussões difíceis. Na crítica literária local as referências também sobejam; menciono aqui
apenas alguns artigos acadêmicos recentes, começando por dois para os quais o texto de
Candido serve como âncora: “Literatura para todos” de Leyla Perrone-Moisés (em Literatura e
sociedade, v.9, 2006, p. 16-29), onde as “palavras sábias” do texto surgem como desfecho de
uma análise das diretrizes do Ministério da Educação para o ensino da literatura; e “A literatura
como direito” de Telê Ancona Lopez (em Literatura e sociedade, v.11, 2009, p. 216-219). Para
um exemplo em que há análise do texto de Candido, ver “Revisitando a teoria da necessidade”,
de Fábio Durão (manuscrito inédito, apresentado no XXVIII International Congress da Latin
American Studies Association de 2009). Durão lê “O direito à literatura” como um texto em que
Candido dá “um passo adiante”, em relação às Teses sobre a necessidade de Adorno, “ao abordar
diretamente a questão da ficção”. Mesmo assim, são identificados, no texto que é descrito como
“uma peça-chave no discurso da crítica literária brasileira das últimas décadas”, “problemas”,
sendo que o primeiro, “menos importante aqui, refere-se à universalidade dada à literatura”.
Mais grave, para Durão, é o autor fazer uso de “uma ideia tradicional sobre o processo de
composição artística”, ideia que “merece ser questionada”, com sua oposição entre caos e
forma. Como contraponto a isso e à “positividade do conceito de fabulação, aqui ligada a uma
cegueira em relação à existência da indústria cultural”, algo que “permite que a ética
humanista-idealista sobrevenha ao imperativo material”, Durão propõe a ideia de
“negatividade estética”, associando inclusive o direito à literatura a um “direito à
negatividade”. Finalmente, “Literatura e direitos humanos: notas sobre um campo de debates”,
de Jaime Ginzburg (em Crítica em tempos de violência. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2012),
termina, após análises de obras de Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Sérgio Sant’anna e
Sérgio Bianchi e depois da indagação sobre o lugar dos direitos humanos nos estudos literários
contemporâneos, com o questionamento da categoria do universal no texto de Candido e
daquilo que constituiria as necessidades da humanidade. Já para uma leitura preocupada com
a figuração do leitor em “O direito à literatura”, ver Patricia Trindade Nakagome, A vida e a
vida do leitor: um conceito formado no espelho (Tese de Doutorado em Teoria Literária e
Literatura Comparada, USP. São Paulo, 2015). Anterior à publicação da primeira versão deste
texto, em 2006, mas desconhecido por mim à época, é o excelente posfácio de Abel Barros
Baptista ao livro O direito à literatura e outros ensaios (Coimbra: Angelus novus, 2004).
5
generalizante de literatura sobre práticas culturais variadas. O interesse do
caso particular do crítico brasileiro está também no fato de que o mesmo crítico
insistindo ainda que “não há povo e não há homem que possa viver sem ela,
sociais.
6
Antonio Candido, “O direito à literatura”. Em Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995,
p.242.
7
Ibidem.
6
todos os povos possuem uma prática literária, se cada sociedade produz
o fim do regime ditatorial, ocasião em que parecia haver certa abertura para a
culturais. Não é fortuito, no caso, que a definição daquilo que se defende seja
8
Ibidem, p.241-243. Esse ponto havia recebido uma formulação muito próxima naquilo que é
quase um esboço de “O direito à literatura”, o ensaio “A literatura e a formação do homem”, de
1972: “A produção e a fruição desta [da literatura] se baseiam numa espécie de necessidade
universal de ficção e de fantasia, que decerto é coextensiva ao homem, pois aparece
invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação das
necessidades mais elementares. E isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no
adulto, no instruído e no analfabeto”. Antonio Candido, “A literatura e a formação do homem”.
Em Vinícius Dantas (org.), Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades/Ed.34, 2002, p.80.
7
imprecisão que vai permitir que a defesa da escrita seja apresentada como se
literatura erudita, que não serão abordadas aqui, onde o foco será em algo
forma que permite que a reivindicação da alta literatura seja apresentada como
• • •
8
a se descarnarem e adquirirem universalidade”9; os versos da Lira de Gonzaga,
em obras excepcionais, sugerindo portanto que existem livros que não merecem
a qualificação “universal”.
dos anos 1940 até os 1990, será no texto escrito em defesa da expansão do
com tamanha força. Não é casual que isso ocorra precisamente em um ensaio
argumentação de Candido neste texto pode nos dizer algo sobre a natureza das
9
Todos em “Literatura e subdesenvolvimento” (Antonio Candido, A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.162, 158, 159, 161). A propósito, escrevendo bem antes
disso, em 1946, Sérgio Milliet já pedira esclarecimentos a Antonio Candido a respeito de sua
avaliação do caráter universal de Guimarães Rosa:
O jovem crítico paulista considera que o sr. Guimarães Rosa transcende o regional em
seus contos, que "Sagarana nasceu universal pelo alcance e a coesão da fatura" e, ainda,
que a língua usada "parece ter atingido o ideal da expressão literária regionalista".
Desejaria que o sr. Antonio Candido esclarecesse melhor a sua concepção do universal
e nos dissesse também em que essa língua erudita e admiravelmente artística de
Guimarães Rosa se prende ainda ao regional.
Em Sérgio Milliet, “Leituras avulsas”. Diário de notícias. Rio de Janeiro, 21 de julho de 1946
(citado em Sônia Maria van Dijck Lima, “Sagarana causou polêmica”. Em Edilene Matos, A
presença de Castelo. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Instituto de Estudos Brasileiros, 2003,
p. 869-885). Devo a Marcelo Silva Souza a referência ao texto de Milliet.
10
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.247.
9
defesa dos direitos humanos e sobre a relação entre cultura e política
progressista.
ensaio ao mesmo tempo vai conter elementos do que poderia ser chamado de
impasse ocorre sempre que o “direito à cultura” passa a ser visto não apenas
11
A distinção é desenvolvida por Dipesh Chakrabarty em “Museums in Late Democracies”,
Humanities Research, v.IX, n.1, 2002, passim, e em Homi Bhabha, “Dissemination: Time,
narrative and the margins of the modern nation”. Location of Culture. Londres: Routledge,
1994, pp. 139–170.
10
exemplo –, mas também como direito a algo como a particularidade cultural,
experiência. No caso dessa operação dentro dos estudos literários, o que precisa
11
conceitual de diferentes práticas discursivas subalternas, que passam a ser
só se tornará clara se tivermos uma ideia mais precisa do que se entende, afinal,
primeira, o fenômeno literário será definido como algo que inclui “desde o índio
que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia, até o mais
requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes
12
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.248.
12
em relação ao mundo, uma autonomia diferente daquela permitida a gêneros
Não é incomum que se veja a literatura como uma prática que escapa às
amarras rígidas da historiografia e não está sujeita a seu domínio, e essa ideia
contraponto, uma prática em que essa mesma mediação não ocorra, ou melhor,
que não ocorra da mesma maneira, assim como só pode existir o fetiche – a
então não haveria literatura antes da historiografia, nem pode haver literatura,
13
Nas palavras de Bruno Latour, “Por trás da ostentação do antifetichismo, esconde-se uma
teologia da criação” (em Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Trad. Sandra
Moreira. Bauru: EDUSC, 2002, p. 103).
14
Há um relato esclarecedor do processo gradual que levou à distinção entre fato e ficção na
história da formação do romance inglês em Sandra Guardini Vasconcelos, Dez lições sobre o
romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002. Além de ressaltar a contingência e
a fragilidade do conceito de ficção, o estudo assinala como a distinção entre fato e ficção surgiu
em parte para responder a uma necessidade do sistema jurídico.
13
receptáculo no qual poderá ser lançado tudo aquilo que não é história. A partir
estas tendo em comum com as demais apenas o fato de que não seriam história.
pudessem ser lidas como literatura o que era necessário era a suspensão da
crença. Não estamos aqui muito distantes da cena imaginada por Terry
concluem que estes estão entretidos com algum jogo semelhante ao críquete,
diferentes tipos.
15
Terry Eagleton, As ilusões do pós-moderno. Trad. Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p.54. O trecho é citado e comentado por Vera Follain de Figueiredo em “A nostalgia dos
universais”. Em Eduardo F. Coutinho (org.), Fronteiras imaginadas: cultura nacional/teoria
internacional. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p.204.
14
O segundo elemento a definir a literariedade no ensaio “O direito à
através de sua relação crítica com ele, também aparece em um texto mais
recente, escrito por um crítico que, como Candido, é conhecido por sua atenção
16
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.248, 243. Para uma análise de defesas do
colonialismo no parlamento inglês que citavam a necessidade de uma “humanização do
homem”, ver Gauri Viswanathan, Masks of Conquest: Literary Study and British Rule in India.
New Delhi: Oxford University Press, 2003.
17
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.249.
18
Ibidem, p.246.
15
or cinema you rediscover your senses, and in that process you understand
something profound about yourself, your historical moment, and what
gives value to a life lived in a particular town, at a particular time, in
particular social and political conditions.19
19
Homi Bhabha, “On Writing Rights”. Em Matthew J. Gibney (org.), Globalizing Rights. The
Oxford Amnesty Lectures. Oxford: Oxford University Press, 2003. p.180.
20
Ibidem, p. 181. Entre tantos outros possíveis, menciono um terceiro exemplo de uma
reivindicação política que levará a uma definição inclusiva de literatura, relevante dada a
discussão desenvolvida aqui. Segundo Gordon Brotherson e Lúcia de Sá, em “First Peoples of
the Americas and Their Literature”, “asserting or assuming (as many celebrated academic has
done) that the continent was devoid of literature before Columbus penned his log is like saying
there was no philosophy either”, propondo, então, que “In these circumstances, simply to
demonstrate the prior existence of literature in America and its continuities becomes a priority
in itself”. Em Gordon Brotherson e Lúcia de Sá, “First Peoples of the Americas and Their
Literature”. Em Sophia A. McClennen e Earl E. Fitz (orgs.), Comparative Cultural Studies and
Latin America. West Lafayette: Purdue University Press, 2004, p.8.
16
específicas da concepção moderna de literatura e sinalizam o alcance e o limite
Para Žižek, o Talibã, em seu desejo de destruir as estátuas (desejo que afinal se
como o museu e a biblioteca dão nova forma e existência aos objetos que
afirmam querer conservar. Para Michael Ryan, este seria o ponto exato em que
21
Slavoj Žižek, “A paixão na era da crença descafeinada”. Trad. Alexandre Hubner. Folha de São
Paulo, 14 de março de 2004.
17
a posição que o liberalismo não pode incluir é justamente aquela que nega a
que ela pertence. É esse o ponto cego que permitirá que a literatura seja
22
Ver Michael Ryan, Marxism and Deconstruction: A Critical Articulation. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1989, p.122.
23
Para alguém como François Jullien, por exemplo, o universal será um horizonte, não um
estado prévio, e o comum seria uma ética, não uma ontologia. Em “Os direitos do homem são
mesmo universais?”. In: Le Monde Diplomatique Brasil, ano 2, n.7, São Paulo, fevereiro de 2008,
p. 30-31.
18
só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma
organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades
profundas do ser humano (...). A nossa questão básica, portanto, é saber
se a literatura é uma necessidade deste tipo.24
Dada a condição que estipula, a definição do literário terá que ser ampla e
dístico cristão ‘todos os homens são irmãos’ (...) significa também que aqueles
tivessem o humano como único agente ou, ainda, não se regessem pela peculiar
24
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.241.
25
Para depois concluir que, em religiões “particularistas”, “há um lugar para os outros, eles
são tolerados, ainda que sejam olhados com condescendência”. Slavoj Žižek, “O real da ilusão
cristã”. Em V. Safatle (org.), Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo:
Editora UNESP, 2003, p.179-180.
26
Segundo Pedro Pitarch Ramón, entre os tzeltales “no se explica que un relato posea existencia
si se trata de ficción, de acontecimientos imaginarios”. Pedro Pitarch Ramón, Ch’ulel: Una
etnografía de las almas tzeltales. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p.170.
19
• • •
não como uma nova cultura mas como a ausência de uma cultura particular e
quando já não reconhecemos seus limites, cegueira que torna possível esse
27
Ibidem.
28
Charles Taylor, “Two Theories of Modernity”. Public Culture, vol.11, 1, 1999, p.153-174.
20
deslizamento quase imperceptível da modernidade e sua especificidade
sistema global que permita a “expressão” do local e sua contribuição, com seu
29
Como exposto por Alberto Moreiras, em A exaustão da diferença: A política dos estudos
culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
21
mais hierarquizados de uma literatura universal”.30 Aqui, até a possibilidade
sobrevivência, pois esse hibridismo “é a única opção que se impõe para poder
solucionar um choque de forças culturais muito díspares, uma das quais viria a
cultural” local,33 como se o fato de tudo isto ser feito em um gênero como o
30
Ángel Rama, “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”. Em Flávio
Aguiar e Sandra Guardini Vasconcelos (orgs.), Ángel Rama: Literatura e cultura na América
Latina. Trad. Rachel La Corte dos Santos e Elza Gasparotto. São Paulo: EDUSP, 2001, p.237.
31
Ibidem, p.212.
32
Ibidem, p.222.
33
Ibidem, p.232.
22
de encontrar na matéria local substância para a produção de “livros
34
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”. Em A educação pela noite e outros
ensaios. 2a ed. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.159, 161.
35
Antonio Candido, “A literatura e a formação do homem”, op.cit., p.87.
36
Antonio Candido, “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”. Em Vários escritos,
op.cit., p.174. No mesmo texto, afirma-se que “todos nós somos Riobaldo, que transcende o
cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade”
(p.168).
37
Rama, “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, op.cit., p.213.
23
ser, isto é, que se veja a modernização como necessariamente emancipadora).
Ou seja,
• • •
textos escritos entre os anos 1950 e 1980, que “As nossas literaturas latino-
descrever “el tronco lingüístico de donde parten las tres lenguas que definen la
38
Alberto Moreiras, A exaustão da diferença, op.cit., p.225. Na própria tradição crítica hispano-
americana há versões menos triunfalistas dessa história, como a que se vê ao longo da obra do
peruano Antonio Cornejo Polar.
39
Ibidem, p.207.
40
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, op.cit., p.151.
24
literatura latinoamericana” e sustentar que “Venimos de la gran vena cultural
afirmando que “el Martín Fierro y el Fausto no son ramas que disten del tronco
inicial a uma diversidade secundária, onde a dependência não pode senão ser
41
Ángel Rama, “Un proceso autonómico: de las literaturas nacionales a la literatura
latinoamericana”. Em Homenaje a Ángel Rosenblat en sus 70 años. Caracas: Instituto
Pedagógico, 1974.
42
Emir Rodríguez Monegal, “Nacionalismo y literatura (Un programa a posteriori)”. Em
Marcha, Montevidéu, n. 629, 4.7. 1953: p.14-15 (citado em Pablo Rocca, Ángel Rama, Emir
Rodríguez Monegal y el Brasil: Dos caras de un proyecto latinoamericano. Montevidéu: Ed.
Banda Oriental, 2006.; e Pedro Henríquez Ureña, Seis ensayos en busca de nuestra expresión.
1965: p.20-21 (também citado por Rocca, com a observação de que o trecho fora sublinhado no
exemplar de Rama).
43
Ver Franco Moretti, “Conjectures on World Literature”. Em Christopher Prendergast (org.),
Debating World Literature. Londres: Verso, 2004, p.160-161.
25
americanos, permitindo que se afirme ainda que “Nunca se viu os diversos
nativismos contestarem o uso das formas importadas, pois seria o mesmo que
• • •
Andrade à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo entre 1935 e 1938, onde
44
Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, op.cit., p.151-152.
45
É também esse lugar do pensamento, com seus pontos cegos, que gera uma posição como a
seguinte, elaborada por Candido em debate sobre a obra de Paulo Emílio Salles Gomes: “Nós
colocávamos para o Brasil esse problema [o do conflito entre “ocupados” e “ocupantes”],
concluindo que não existia. A posição do Paulo Emílio tem que ser pensada um pouco também
historicamente, biograficamente. Ele estava cansado de saber que não tinha sentido você
postular, o[u] reivindicar a preeminência de uma cultura local que não existe. Cultura local do
Brasil é tupi-guarani, que não é propriamente a mais brilhante do mundo, e nem vale como
alternativa” (o riso dos presentes ainda chega até nós). A fala de Candido está transcrita em
“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”. Filme cultura, ano XIII, jul/ago/set 1980,
no.35/36. Debate entre Maria Rita Galvão, Antonio Candido, Ismail Xavier, Jean-Claude
Bernardet e Maurício Segall sobre o artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” de
Paulo Emílio Salles Gomes. Agradeço a Flávia Cesarino Costa a indicação desse texto.
26
os níveis [culturais] são dignos”.46 O relato do episódio serve para afirmar a
declara que se essa passagem do “popular” para o “erudito” não ocorre não é
oportunidades.
46
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p. 259.
47
Ibidem, p.257.
48
Ibidem, p.259.
27
apresentada. O objetivo do conjunto de relatos é reforçar a necessidade de uma
“distribuição equitativa dos bens”. Como o texto vinha sugerindo desde o início,
mas vem a explicitar aqui, “Só numa sociedade igualitária os produtos literários
poderão circular sem barreiras”, sendo esta a tarefa para a qual se convoca a
participação dos leitores. Outro exemplo de que o exercício pode ser bem-
escritor “empenhado, mas não sectário”, nos anos 1930. No relato de Candido,
que nos anos 1940 ministrara para operários cursos de filosofia em que autores
atividade cultural de acordo com sua preferência. Conta Candido que, “para
49
Ibidem, p.260.
28
Itália da obra de Dante, “conhecida em todos os níveis sociais e por todos eles
Este belo exemplo leva a falar no poder universal dos grandes clássicos,
que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo
podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois
têm a capacidade de interessar a todos e portanto devem ser levados ao
maior número.50
essa, mas outra: qual o motivo para a aparição no texto, quase como um
superada, a alta cultura seria desfrutada por todos, sem distinções, como, de
50
Ibidem, p.261.
29
na distribuição daquilo que já existe, não passando pela criação do que ainda
não é. Sob essa luz, o caso de Jean Guéhenno citado como exemplo ganha
social.
30
por Cortázar em Havana em 1963 e publicado alguns anos mais tarde na revista
Casa de las Américas com o título “Algunos aspectos del cuento”.51 Trata-se,
forem
O contraste que o texto vinha delineando até então, com o objetivo de indicar a
51
A primeira publicação foi em Revista Casa de las Américas, n. 60, julho de 1970, Havana. O
texto foi reeditado depois em Jaime Alazraki (org.), Obra crítica/2. Buenos Aires: Alfaguara,
1994, p.365-85. Em português, é traduzido como “Alguns aspectos do conto”, em Jaime Alazraki
(org.), Obra crítica, v.2. Trad. Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999, p.345-363.
52
Para um relato de uma parte dessa história, incluindo uma leitura que relaciona o texto de
Cortázar com Walter Benjamin e Edgar Allan Poe, ver David Kelman, “The Afterlife of
Storytelling: Julio Cortázar's Reading of Walter Benjamin and Edgar Allan Poe”. Comparative
Literature, 60, n.3, 2008, p.244-260.
53
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.163.
31
argentinos sobre o regionalismo, e de lá são convocados os autores Horacio
54
Ibidem, p.159.
55
Ibidem.
56
O Prêmio Jabuti, por exemplo, que divulgou um manual que explica o que espera dos contos
avaliados. “Economia. Nada deve haver de supérfluo. Tudo no conto tem motivação” é um dos
critérios apresentados no texto entregue ao júri da Câmara Brasileira do Livro encarregado de
selecionar o melhor livro de contos (Câmara Brasileira do Livro, 46o Prêmio Jabuti. Guia de
orientação aos jurados, p.25). O oitavo critério do mesmo volume – “Surpresa. Algum filão
(história secundária, geralmente a mais importante) oculto deve aflorar à superfície nos
interstícios e no fim do conto” – parece vir também das teses sobre o conto de Ricardo Piglia
(“Teses sobre o conto” e “Novas teses sobre o conto”. Em Formas breves. Trad. José Marcos M.
de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004). Já os critérios para a avaliação de
narrativas mais longas inclui a exigência de “retratar uma crise que afete a trajetória das
personagens”, especificando que “Ação + História + Transformação devem estar presentes”.
Curiosamente, neste caso também aparece a cobrança de uma “mitopoética implícita”, que
seria “mais eficaz se for de caráter nacional”.
32
No texto de Cortázar a questão é apresentada como relacionada à
inversão do quadro seria possível dizer que o que está sendo cobrado dos
entanto, parece mais facilmente testável, e por isso não faltam em textos como
“escrito com uma deliberada simplicidade para pô-lo, como dizia o autor, ‘no
57
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.158.
58
Antoine Compagnon, O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes
Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, p.251-252.
33
nível do camponês’. A narrativa foi ouvida cortesmente, mas era fácil perceber
que não havia tocado fundo”.59 Em seguida, lê-se aos camponeses o conto “A
Mas que importa? Só sua emoção importa, sua maravilha e seu arroubo
diante da tragédia do jovem príncipe dinamarquês. O que prova que
Shakespeare escrevia verdadeiramente para o povo, na medida em que
seu tema era profundamente significativo para qualquer um – em
diferentes planos, sim, mas atingindo um pouco de cada um – e que o
tratamento teatral desse tema tinha a intensidade própria dos grandes
escritores, graças à qual se quebram as barreiras intelectuais
aparentemente mais rígidas, e os homens se reconhecem e
confraternizam num plano que está mais além ou mais aquém da
cultura.61
Uma prova, portanto, mais uma vez, exibida como evidência da possibilidade
relato autobiográfico:
59
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.162.
60
Ibidem.
61
Ibidem.
34
...quando eu tinha doze anos, na mesma cidade de Poços de Caldas, um
jardineiro português e sua esposa brasileira, ambos analfabetos, me
pediram para lhes ler o Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, que
já tinham ouvido de uma professora na fazenda onde trabalhavam antes
e que os havia fascinado. Eu atendi e verifiquei como assimilavam bem,
com emoção inteligente.62
subalternos, apontados uma e outra vez, nos dois textos, como “modestos” e
62
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.261.
35
política. A dificuldade que resta está associada à administração e à gestão dos
bens existentes, e ela que precisará ser sanada, fazendo com que predomine
nessa concepção do que são os direitos humanos “a luta por um estado de coisas
em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura”, como se lê
desejáveis por todos, capazes de a todos satisfazer. Sua falha foi não os
província argentina ou brasileira são felizes também por outro motivo. A ida ao
subalterno, o encontro face a face, é narrado com alegria por descobrir no olhar
63
Ibidem, p.262.
64
Para uma amostra de como debates dentro da esquerda sobre situações análogas muitas vezes
levaram a conclusões muito diferentes, registro um exemplo, retirado de Robert Kurz, que
chega a enxergar potencial emancipador no esvaziamento da educação: “Se a educação para a
grande massa é desmantelada de maneira tão crassa, desaparece também sua função anterior
de disciplinamento. Desse modo, porém, é desencadeado não apenas um ‘analfabeto
secundário’, mas talvez também uma ‘inteligência subversiva’ que não siga mais os princípios
do totalitarismo econômico. Pode ser que a administração capitalista da crise educacional
ponha a caminho, sem querer, uma nova contracultura intelectual.” Em Robert Kurz, “O efeito
colateral da educação fantasma”. Em Folha de São Paulo, 11 de abril de 2004, pp.18-19. Já no
debate sobre mudanças nas formas de acesso à universidade, a perspectiva equivalente à
posição universalista é a reivindicação de inclusão sem que se tenha no horizonte a necessidade
simultânea da transformação da instituição que já existe.
36
privilégio. Assim, a crítica à “literatura proletária” e à “literatura populista”
que o subalterno deseja, que na verdade sempre fora a alta cultura. O giro é
importante pois é ele que permitirá a defesa da alta literatura em nome dos
Mais uma vez, a alternativa não deve ser a volta da dúvida quanto à
tenta esboçar são outras, em primeiro lugar a pergunta sobre o sentido dos
literatura”. Esses certamente não são simples, mas parecem incluir o interesse
37
Como indício de como a especulação poderia ter tomado outros rumos,
admiração também não é gerada pela manifestação pelo outro de algo que
confirma o mesmo. Não é a alegria de constatar que o que outro quer é, afinal,
subalterno.
65
Jacques Rancière, O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. L.
do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
66
O que a ideia da leitura como “assimilação” sugere como teoria da leitura mereceria atenção
maior. Em “O direito à literatura”, lê-se que a “boa literatura” foi “acolhida devidamente pelo
povo”, que os textos filosóficos “foram devidamente assimilados”, e que o jardineiro e sua
esposa “assimilavam bem” o Amor de perdição (op.cit., p.260-261).
38
planejado, isto é, se não fossem histórias felizes? O que acontece se, em uma
talvez, da brutalidade dos destinatários imaginados para esse texto dos anos
dissenso: “Por certo, seria ingênuo crer que toda grande obra possa ser
compreendida e admirada pela gente simples; não é assim e não pode sê-lo.”68
universal.
• • •
67
O ponto de partida de Candido é a crítica à negação de direitos básicos a empregados
domésticos (que, esclarece, também precisam descansar, etc.), problema que no Brasil está
longe de ser parte do passado. É ele que levará àquilo que é definido como um “pressuposto
dos direitos humanos”: “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é
também indispensável para o próximo” (ibidem, p.239).
68
Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, op.cit., p.162.
69
Ibidem, p.163
39
Candido. No penúltimo parágrafo do texto aparece uma referência a uma
contato com elas. No trecho o tom mais uma vez será elevado e o volume da
prosa aumentará. Antes serena e afável, o texto aqui será tomado pela
da questão, com a sugestão de que o acesso afinal pode não ser suficiente para
a apreciação e não garante a fruição genuína. Note-se que o que o trecho parece
artes. À diferença das cenas anteriores, nesse teatro tudo está atravessado pelo
70
Candido, “O direito à literatura”, op.cit., p.262.
40
conflito de classes, da facilidade do acesso à encenação do gosto pela cultura
contraste com a ausência de qualquer conflito nos casos relatados ao longo das
páginas anteriores.
tivessem percebido que “está na moda” ou “dá prestígio gostar deste ou daquele
política.
41
A situação lembra as inquietações que atravessam Pode o subalterno
falar?, de Gayatri Spivak,71 estudo que se pergunta acerca do motivo que leva a
entre “saber de” e “lutar por”, o embate principal passa a ser aquele que ocorre
men are saving brown women from brown men”)72 –, a versão aqui seria algo
como o seguinte: bons homens ricos estão salvando homens e mulheres pobres
71
Gayatri C. Spivak, “Can the subaltern speak?” Em Cary Nelson e Lawrence Grossberg,
Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago: University of Illinois Press, 1988, p. 271-
313. Em português, Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
72
Spivak, Pode o subalterno falar?, op.cit., p.94.
42
interesse verdadeiro e sua capacidade inerente, aos quais o intelectual teria
sua voz, pois nela é preciso representar o subalterno, e não mais modificar ou
uso da força quando o valor da alta cultura não for considerado auto-evidente,
ou quando o interesse por ela ou não surgir ou não for interpretado como
73
Ibidem, p.30-31.
43
obrigação da oferta (dada a desigualdade na distribuição dos bens) e a
• • •
línguas, tornariam possível a troca e a comparação, uma analogia útil por nos
levar a outro pensador alemão que, alguns anos mais tarde, também estaria
contrasta com o mercado mundial de Marx pois neste a abstração não é natural
74
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista 150 anos depois. Trad. Victor H.
Klagsbrunn. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998, p.11-12.
44
direto da circulação de bens propiciada pela modernidade capitalista. É a troca
mesmo valor de troca, eles não precisam ter uma natureza comum. “Duas coisas
comensuráveis.”75
possíveis, mas o anseio terá que permanecer apenas um desejo, pois a abstração
75
Karl Marx, O Capital, v.1. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel, 1982, p.57.
45
do operário pode ser pensada também em termos culturais.76 Da mesma forma,
uma forma dessa violência tradutora que abafa a diferença contida naqueles
estar em uma posição privilegiada para desenvolver essa reflexão crítica sobre
76
Dipesh Chakrabarty, “Universalism and Belonging in the Logic of Capital”. Em Public Culture,
32, 2000, p.675.
77
Essa leitura do uso do conceito de Weltliteratur no Manifesto Comunista se distingue da
interpretação do texto de Marx e Engels feita por Haroldo de Campos em “El sentido de la teoría
literaria y de la literatura comparada en las culturas denominadas ‘periféricas’”, Filología, XXX,
1-2, 1997, p.101, 107-108. Haroldo de Campos enxerga no texto de Marx uma literatura mundial
livre da separação entre as línguas e da divisão do trabalho, “la idea paradisíaca de una
literatura universal homogenea, patrimonio de una humanidad ‘desbabelizada’” e “una
concepción teñida de optimismo marxista que envuelve... aspectos de utopía milenarista,
fuertemente impregnados de teologismo laico”, além de um “optimismo mesiánico”. No entanto,
não parece claro que a Weltliteratur descrita pelo Manifesto surgiria com o fim da divisão de
trabalho e do conflito social. Ao contrário, ela seria um sistema típico do capitalismo, baseado
na contradição e na abstração forçada. É um modelo que parece permitir maior tensão interna
do que o esquema alternativo proposto por Haroldo de Campos, com seu apelo a uma
“convivencia productiva y dialógica de las diferencias en el tablero combinatorio de lo universal”
e sua defesa da “realización de un esfuerzo crítico multidireccional en el sentido de la promoción
de lo plural y de lo diverso como figuras de un ábaco móvil, siempre capaz de nuevas
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Se essa reflexão permite que comecemos a esboçar uma cartografia do
pensamento que tem a literatura como horizonte único. É isso, afinal, o que a
formular uma pergunta um pouco perversa, que espero que não esteja fora de
47
Antonio Candido e Cortázar com apelo à sua complexa função política, que
permitiria que ela contribuísse à sua maneira para a expansão da justiça social
concluíssemos que a literatura não coincide com a justiça? Afinal, quando elas
convergem não há dilema ético e não há, propriamente, decisão a ser tomada.
Mas se tivéssemos que escolher entre literatura e justiça, onde ficaria nossa
fidelidade?
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