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O circuito pulsional no ir e vir da alienação e separação


Fragmentos de um caso clínico

Janaina Rocha de Paula1

“(O Outro) é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer.
E eu disse – é do lado desse vivo, chamado à subjetividade,
que se manifesta essencialmente a pulsão”. (Lacan, 1964)

Resumo: Pretende-se neste artigo expor e discutir os movimentos realizados pela criança nas
operações de alienação e separação, propostas por Jacques Lacan, e as vicissitudes intrínsecas
ao circuito pulsional. Na segunda parte deste artigo será feita a exposição de um caso clínico
onde ilustraremos essa “batalha” pulsional pela qual a criança precisa enfrentar para advir como
sujeito.

Unitermos: Alienação, separação, pulsão, circuito pulsional, sujeito.

Introdução

O recém nascido, ainda reduzido à condição de “vivo”, está tomado por necessidades
fisiológicas e sensações corporais de aumento e diminuição de tensão – lugar onde a pulsão se
apoiará de início. Ainda não se estabeleceu uma discriminação entre o limite de seu corpo e o
corpo da mãe e, tampouco podemos falar em subjetividade da criança. Para que o infans,
alienado à figura materna, se constitua como sujeito é necessário que ele atravesse a operação,
definida por Lacan, de separação. O movimento de separação terá como condição o
reconhecimento pela criança de sua completa dependência ao Outro materno,
concomitantemente à percepção de sua insuficiência, de sua dimensão de falta. A separação vai
se instaurando no psiquismo da criança como uma “batalha” pulsional e o conflito intrínseco a
ela, se passa num “ir e vir” entre o alienar-se e o tornar-se sujeito, dando um tom dramático a
esse tempo.

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Psicanalista; Especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG; Mestranda no programa de pós
graduação em psicologia pela UFMG.
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As operações de alienação e separação na constituição psíquica

O olhar materno lançado sobre o infans inaugura a relação entre uma mãe e seu bebê.
Trata-se de um olhar entendido como presença, no sentido de um investimento libidinal, não se
reduzindo, de forma alguma, à função do órgão da visão. A mãe passa a atribuir ao filho o que
ainda não está presente e que pertence, na realidade, ao aparelho psíquico materno. Essa “ilusão
antecipatória” da mãe ver além do orgânico, “aureolando” a imagem que ela vê do bebê é
indispensável para que se dê, no futuro, a erogeneização do corpo do bebê e a unificação de sua
imagem corporal. A presença do olhar do Outro materno será uma condição necessária para que
o “estádio do espelho” se efetue de forma satisfatória, entendido como a aceitação do processo
de alienação radical da criança ao campo do Outro. “O sujeito só é sujeito por assujeitamento ao
campo do Outro” (Lacan, 1964).
O oferecimento do bebê à mãe, num movimento provocativo de “se fazer comer”,
enquanto objeto do gozo materno, torna-se essencial para que ele possa capturá-lo. O riso do
bebê para a mãe “prova” que o gozo fálico da mãe foi fisgado. O bebê apresenta “uma
apetência extraordinária pelo gozo fálico que sua presença desencadeia no Outro materno”,
escreve Marie Christine (1991). Assim, há um movimento tanto da mãe em direção ao bebê,
investindo-o falicamente, como do bebê de se fazer de objeto que completaria a falta da mãe.
Na operação de alienação a criança se identifica aos significantes presentes no campo
do Outro. Eric Laurent (1997) esclarece que a identificação ao significante materno “... funciona
para o sujeito como uma linha mestra durante toda a vida deste. Ele é definido como tal e se
comporta como tal. No próprio momento em que o sujeito se identifica com esse significante,
fica petrificado”. A criança enquanto colada aos significantes da mãe desaparece como sujeito,
pois perde a possibilidade de se apropriar de algo seu. Para que a criança possa de fato ascender
como sujeito é preciso que ela faça cair os significantes alienantes, colocando outros em seu
lugar, marcando com isso, a instauração do processo de separação.
Segundo Lacan (1964), ao contrário da alienação, a separação não é um destino e, por
isso, dependerá de um certo “querer” da criança para que possa se efetuar. Pode-se dizer, de um
enfrentamento da criança, de uma verdadeira “batalha” pulsional ao se descolar da mãe, num
processo não cronológico de um “ir e vir” entre o alienar-se e o separar-se. No intervalo, na
incompletude da fala da mãe e nas brechas deixadas por suas faltas, sejam elas da ordem do
não-todo da linguagem ou na sua própria condição de sujeito castrado, abre-se a possibilidade
da criança de se deparar com a sua própria falta. A separação se dá na medida em que a criança
se depara com essa hiância e, conseqüentemente, com essa mãe castrada passando a questionar
o discurso materno, colocando em seu lugar significantes que dizem de um sujeito de desejo.
Contudo, a separação nunca se constituirá de forma definitiva, ela é sempre incompleta. Em
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outros momentos de sua vida, o sujeito se deparará, novamente, com este conflito entre o
alienar-se e o separar-se. Pois, “o desejo é sempre desejo do Outro”, como nos lembra
repetidamente esse “jargão” lacaniano.

“(...) O sujeito traz a resposta da falta antecedente de seu próprio desaparecimento,


que ele vem situar no ponto de falta percebida no Outro.(...) A fantasia de sua morte, de seu
desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr em jogo nessa dialética e ele o
põe, com efeito (...) Sabemos também que a fantasia de sua morte é brandida comumente pela
criança em sua relação de amor com seus pais”.(Lacan, pág.1964)

A separação em conjunção com o circuito pulsional

O termo Trieb foi introduzido por Freud no texto sobre Os três ensaios sobre a teoria
da sexualidade (1905), entretanto é somente em A pulsão e seus destinos (1915) que ele nos
fornece uma visão global desse conceito.
Logo no início Freud (1915) parece nos precaver sobre a obscuridade do conceito. Um
conceito limite entre o psíquico e o somático, um representante psíquico das excitações do
corpo. Na tentativa de diferenciar o que seria uma moção pulsional e um estimulo qualquer, ele
nos esclarece que a pulsão, sendo um estímulo aplicado à mente guarda de diferença com outros
estímulos o caráter de impacto constante que surge de dentro do próprio organismo sendo
necessário diferentes ações para removê-lo. Nesse sentido o que é pulsional diferencia-se
daquilo que é puramente orgânico.
Lacan (1964) retoma essa idéia do texto freudiano valorizando a distinção entre pulsão e
um impulso de registro orgânico. Para ele o impulso vai ser identificado a uma pura e simples
tendência à descarga, em relação à pulsão o que temos é uma excitação interna que não se
elimina por uma simples descarga motora, visto o seu caráter de força constante. Aqui ele nos
diz que “não é o vivo que interessa” (Lacan, 1964). Isso porque se existe vida, manutenção da
vida é porque existe pulsão em funcionamento. O vivo, puramente orgânico, sem ser despertado
para o aspecto pulsional, não pode manter-se vivo.
Esse corpo agora pulsional é o “âmbito de Eros em que brotam as flores do mal, onde a
pulsação da vida é mordida pela morte” (Quinet, ). É no texto de 1920 que Freud estabelece
um novo dualismo pulsional: Eros tende a união, à aspiração ao um, Pulsão de vida; enquanto
Tânatos, Pulsão de morte, é destrutividade e desunião. O sujeito se encontra, então, num
caminho entre duas muralhas. São esses aspectos de Tânatos e Eros que conferem nuances às
relações empreendidas por todo sujeito.
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Freud descreve quatro elementos que relacionados entre si, “numa montagem que não
tem nada de natural” (Lacan, 1964), caracterizam toda moção pulsional.
1. Pressão: quantidade de força, ou medida de trabalho que ela representa. A
pulsão constante é sua própria essência;
2. Finalidade: a finalidade é sempre a satisfação. Sabemos, entretanto, que uma
pulsão não se satisfaz quando apreende o objeto. Nenhum objeto pode satisfazer
a pulsão, nenhum objeto pode retirar aquilo que é a sua própria essência;
3. Objeto: “no que se refere ao objeto da pulsão não existe propriamente falando
nenhuma importância” (Freud, 1905) A pulsão apenas o contorna, num circuito
que só se fecha no seu ponto de partida. Se podemos dizer de satisfação
pulsional seria nada mais do que a realização do seu trajeto;
4. Fonte: é o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo e cujo
estímulo é representado na vida mental por uma pulsão. Para Lacan (1964) as
zonas erogenas são reconhecidas nos pontos em que fazem borda, lugar de
investimento libidinal e fonte de libido.
Esse ponto parece interessante porque em alguns casos essas zonas não fazem borda e o
que temos é um escoamento libidinal. A pulsão se esvaindo, satisfazendo-se não no seu trajeto,
mas no movimento de escorrer.
Como pensar a pulsão, com toda a sua força, nesse movimento empreendido pelo
sujeito de separar-se do Outro?
Para Lacan (1964) o que é fundamental no nível de cada pulsão é o vai-e-vem em que
ela se estrutura. Nenhuma parte desse percurso pode ser separada de sua reversão fundamental,
do caráter circular do percurso pulsional.
Esse caráter de vai-e-vem também está presente no movimento que a criança faz entre
alienar-se e separar-se de seus pais. Se num primeiro momento a alienação tornou-se necessária
para a manutenção da própria vida, a separação, nesse tempo, também o é. Entretanto, separar-
se carrega as vicissitudes do necessário e do traumático.
É a criança que deve separar-se de seus pais. Freud nos indica isso em seu artigo
Romances Familiares (1909) dizendo que “ao crescer o indivíduo liberta-se da autoridade dos
pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso
do seu desenvolvimento (...) é absolutamente necessário que essa separação se realize”. Essa
separação difícil e dolorosa se apóia na decepção, na insatisfação, no desprezo e em um projeto
de vingança. Temos aqui todo o caráter pulsional conferindo valor à separação.
Talvez pudéssemos pensar que o movimento de separar-se tenha um valor traumático
maior para aquelas crianças que vivenciaram uma maternagem mais efetiva, em que os laços
mãe e filho são fortalecidos pela presença constante. Sendo assim, para aquelas em que isso não
se tornou a verdade da relação a separação seria menos traumática. Essa é, sem dúvida, uma
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assertiva enganosa. Não nos esqueçamos que a pulsão é o representante de uma realidade
inconsciente, realidade essa habitada por fantasias que são, muitas vezes, mais terríveis do que
as relações vividas na realidade. Na separação é preciso separar-se dos pais enquanto pessoas
reais, mas também daqueles engendrados na fantasia.
A separação tem início porque as coisas não se encaixam tão bem entre pais e filhos. E
isso porque a criança constata que os pais não lhe dão aquilo que ela considera ser um direito
receber – o amor. Aqui não importa qual a afeição que os pais dirigem aos filhos porque nunca é
bem isso, eles ficam sempre insatisfeitos – lembremos do caráter pulsional descrito acima.
Esse tempo de separação inicia-se com o sentimento de vingança dirigido aos pais. A
criança apresenta sentimentos de ódio e uma intensa fantasia destrutiva, com o desejo de ir a
forra em decorrência da decepção que os seus pais lhe infligiram. Nesse ponto há sempre algo
do próprio sujeito, uma parte que lhe cabe na significação que deu à realidade. Essas fantasias
não o são sem um custo para a criança, visto que é aterrorizante pensar que elas podem realizar-
se.
Nesse percurso de alienar-se e separar-se observamos o movimento pulsional que ora
reúne, ora desagrega. Não há força que faça cessar isso que insiste em aparecer.

Uma leitura para um caso

A leitura do caso “Bruno” nos remeteu à teoria das pulsões inseridas nos processos de
alienação e separação amplamente discutidas na teoria lacaniana. A partir desse contexto teórico
tecemos um texto particular na tentativa de elucidar os aspectos clínicos que nos suscitaram
questões. No entanto, essa investigação não excluiu outras leituras possíveis a partir de
distintos aportes teóricos.
O primeiro aspecto que nos chamou a atenção refere-se ao sintoma de “fazer cocô mole
na cueca” o que incomodava as pessoas que cuidavam dessa criança com exceção da mãe. Esta
sempre tinha uma explicação que parecia desconsiderar a gravidade dos conflitos vividos por
Bruno, situação que parecia perpetuar desde o seu nascimento. Esse sintoma pode ser analisado
como uma resposta a um “fracasso” no investimento libidinal da mãe em relação ao seu bebê
(“Eu até me esquecia que estava grávida” sic). As zonas erógenas precisam ser investidas o
suficiente para ganhar o estatuto de borda que circunscreve o trajeto pulsional. Parece que nesse
caso o que escutamos com o sintoma de um “cocô mole” que escorre é o próprio escoamento
pulsional. É um sintoma anal, correlativo à pulsão parcial que se satisfaz tomando o próprio
corpo, pulsões essas ainda não organizadas num objetivo comum. O caráter regressivo do
sintoma aponta para uma fixação da libido na fase anal.
Esse excesso, isso que escoa com o sintoma aparece, também e de maneira marcante na
sessão lúdica apresentada. O cocô que escorre, a “cola em excesso que escorre por todos os
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cantos” é a própria corporificação do aspecto insubordinável da pulsão. Ao mesmo tempo essa


cola apresenta-se como o significante da alienação dessa criança ao campo do Outro. “Aí põe
cola no meio do balanço e mete a cara da mãe na cola – fazendo o mesmo com a menina. Em
seguida, amarra bem as duas, com as caras coladas no balanço”. Aqui o material que se
espalha – a cola - é o mesmo que gruda mãe e filho, numa alienação letal na medida em que faz
desaparecer o sujeito. “Agora elas são uma só”.
O riso que aparece associado a essa brincadeira aponta para duas dimensões, uma de um
riso de jubilo que marca a aceitação da criança na operação de alienação ao Outro e por outro
lado, um riso que desvela todo o caráter sádico presente nesse tempo de fixação da libido na
fase anal.
Parece que Bruno abre, com sua brincadeira, a porta para observarmos todo o conflito
psíquico inerente a esse movimento de separação que a criança deve empreender. No ir e vir da
alienação e separação estão contidos o “querer” manter-se “colado” à mãe, visto que essa foi a
condição inicial de sobrevivência e o afeto de ódio que essa própria condição suscita, uma vez
que essa mãe falta inevitavelmente. Na sessão lúdica isso fica demonstrado na ambivalência
com que Bruno concomitantemente tenta incorporar o bebê no pacote - mãe e, ao mesmo tempo,
desfere golpes violentos num movimento de separação que contém todo o ódio e vingança
endereçados à figura materna. Esse ódio e desejo de vingança são decorrentes das fantasias de
insuficiência dos cuidados e atenção materna engendradas pela criança. Nesse caso a separação
ganha um tom mais trágico se pensarmos que essa insuficiência realmente existiu, como se essa
criança tivesse, de fato, contas a acertar com essa mãe.
A separação tem sempre o caráter de necessário e traumático na medida em que garante
a possibilidade do surgimento de um sujeito de desejo desde que a criança abra mão da posição
de objeto do gozo materno. Para abrir mão dessa posição é imperativo que a criança enquanto
alienada ao desejo do Outro morra – “Mas tem de ir”; “Ta afogando... já afogou...pronto,
morreu!” – para que a partir disso possa se apropriar de algo seu – “é minha bola de gude”.
Nas brincadeiras, nas pantomimas que Bruno realiza durante as sessões ele exprime
uma mensagem inconfessa, esse ato é então bem sucedido porque apresenta a verdade do
inconsciente trazendo à cena o que parecia estar fora dela. A análise abre a possibilidade de
localizar a pulsão no seu trajeto sem que seja tão penoso para a criança, fornece um espaço em
que as vivências de vingança e ódio possam ser acolhidas como fantasias, já que para a criança
é tranqüilizador saber que essas fantasias não se realizam. E, finalmente, que a criança possa
elaborar essa operação de alienação e separação intrínsecas à constituição do sujeito.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.

- A pulsão e seus destinos (1915)

- Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905).

- Romances familiares (1909 [1908])

LACAN, Jacques. O seminário: livro 11.(1964) Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ed, 1998.

LAURENT, Eric. “Alienação e separação”, in: Para Ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

LAZNIK-PENOT, M.C. “Por uma teoria lacaniana das pulsões”, in: Dicionário de psicanálise:
Freud e Lacan, 1. Salvador: Ágalma, 1991.

QUINET, Antônio. “A pulsão na análise: sintoma e acting-out”, in: ????? Rio de Janeiro.

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