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JUPIRA

Arte e mistério na Cidade Aluminosa

Em 20 de abril de 1987, numa bela manhã ensolarada, eu, com minha máquina fotográfica e a equipe
do grupo de jovens de Itaguajé, chegamos à propriedade rural do Sr. José de Freitas Miranda, na
água da Jupira, a alguns quilômetros de Colorado.

Em meio a uma vegetação baixa, constituída de algumas plantações de subsistência, bem como um
pouco de ervas daninhas; despontavam portais, torres, e uma série de outras tantas construções
erguidas com cimento e ferro. Eis a entrada da cidade “Aluminosa”.

No arco principal um imenso aviso, que se repetiria em outras partes da obra:

“Último dia do mundo. 28 de dezembro de 1999, às quatro horas da tarde.”

Uma imensa torre com um alto-falante feito de ferro e cimento projeta-se para os céus, de onde as
trombetas dos anjos anunciarão o fim do mundo. Próximo dali, o sino de cimento no alto de outra
torre (sino da alvorada) que badalará no dia derradeiro. Tudo ali é rústico, porém muito engenhoso.
Segundo seus familiares, Zé Miranda fez tudo sozinho, seguindo apenas a orientação das vozes. Em
meio a tantas outras construções inacabadas, uma delas se destaca por sua estrutura de concreto que
pelo arcabouço seria um grande salão, onde está escrito: “CANPO DOS REGULAMENTOS QUE
DEUS DEIXO PARA O POVO SI ADIVERTIR”.

E em meio a tantos avisos e advertências, uma delas chama a atenção, evidenciando que mulheres
não podem entrar no “mistério”, (assim ele próprio denominava sua obra), de vestido curto, gola
aberta ou roupa masculina. “Os vestidos podem ser de qualquer moda, (...) mas têm de ter três dedos
para baixo dos joelhos”, sob pena de ficarem “paralíticas, cegas ou aleijadas”.

Logo surge de uma casinha simples, seu Zé Miranda, cego desde 1975. Roupas simples,
sobrancelhas grosas e a estrutura física de um típico sertanejo. É atencioso, calmo e reservado como
se caracterizam os rurícolas. Perguntado sobre os motivos daquilo tudo, Seu José limitou-se a
responder:

“-São as almas.”

A história de Jose de Freitas Miranda perde-se no tempo, contudo, ainda nos dias de hoje causa
espanto, apesar do total descaso a que está relegada sua obra.

Nascido em Itapuí no interior Paulista, sempre viveu na área rural e nunca foi à escola.
Por volta de 1959/60, tendo recebido mensagens durante a noite, para que construísse a “Cidade
Aluminosa”, seu José teria vendido 10 alqueires de sua propriedade para dar início ao seu projeto
mais audacioso; a construção de um abrigo, nos mesmos moldes da arca de Noé, onde as poucas
pessoas que acreditassem em suas profecias e ali se refugiassem no dia fatídico, seriam salvas do fim
do mundo, que segundo ele, se acabaria em fogo.

O período de construção de toda a obra vai de 1961 a 1975. Foram construídos pórticos, torres,
túneis, fonte luminosa e até os bancos. Um com o nome de seu José e outro com o nome de “ Deus
Nosso Senhor, o mistério encantado”. Local este que era para “... o povo ir lembrando seu passado
até o tempo em que o homem não tinha essa feição de hoje.” A frase evolucionista evidencia um
conhecimento atípico para um homem de formação singela.

Mas de todo o seu trabalho o que mais chama atenção são as estátuas. Na maioria são seu próprio
auto-retrato, que fez com a ajuda de um espelho e sem nenhuma aula de arte. Impressiona
sobremaneira como conseguiu esculpir com cimento, e com tanta riqueza de detalhes, sobretudo nas
faces.

Foi dentro de um galpão contíguo que encontrei várias delas, tomadas pela poeira, juntamente com
os restos da maquete que lhe servia de guia. Todavia mesmo na obscuridade do local, entrecortada
por alguns raios de sol que ali penetravam pelas frestas da rude construção, se notava perfeitamente
a fisionomia de seu José, ali retratadas com tanta maestria.

Os olhos feitos com bolinhas de gude eram de um incrível realismo e pareciam fitar-me com certo
espanto e insistente fixação. Para as sobrancelhas, ao invés do alto relevo, fez ranhuras com material
pontiagudo, o que causou um efeito fantástico. Os sulcos da face, as maçãs do rosto, lábios nariz,
tudo muito bem delineado, dentro da capacidade do artista e, sobretudo do material usado. Para
resolver o problema dos braços, as mãos quase sempre estão sobrepostas sobre o peito. A maioria
das esculturas são bustos, contudo, há algumas de corpo inteiro. Uma delas mais ao fundo, com um
movimento diferenciado de braços e cabelos longos, parecia representar a figura de Jesus Cristo.

A família sempre foi contra os gastos que fazia com a construção daquele refúgio, que ele próprio
chamava de “mistério”, todavia, instigado pelas vozes que ouvia, ele persistiu em seguir fielmente as
orientações e foi em frente construindo, até o início da cegueira, que aconteceu por volta de 1975,
quando, segundo o próprio José Miranda, certo anjo lhe colocou um capuz, tirando assim sua visão.

Ainda que muitos tenham lhe taxado de louco, ele visitou diversos psiquiatras, sem que nenhum
diagnóstico positivo lhe fosse imputado. Faleceu em 1994, deixando para a posteridade um legado
intrigante.

Seja pelas orientações vindas das almas, ou por qualquer outro motivo, o fato é que Zé Miranda
construiu uma série de monumentos e obras de arte que no passado trazia curiosos de todas as partes
do Brasil. Diversos foram os jornalistas que teceram matérias sobre seu trabalho, porém, mais
diversa ainda foi a sua obra.

As pessoas às vezes evitam comentar o assunto, todavia há quem diga tratar-se de alguma espécie de
esquizofrenia, ainda que nenhum médico tenha atestado tal patologia. A parapsicologia poderia
explicar o fato defendendo a tese de que o ser humano pode ter certa percepção extra-sensorial, ou
seja, por outras vias que não os sentidos físicos. A religião tradicional poderia dizer que se trata de
uma fé muito primitiva e obcecada, mal focalizada ou mal compreendida. Outros seguimentos
religiosos poderiam ligar isso à ação de entidades do mal, ou do próprio demônio. Enquanto que no
popular, seria a ação de fantasmas, almas penadas e assombrações.

Para quem acredita na comunicação mediúnica, o caso do Sr. José Miranda é bem típico, e um
aconselhamento com especialistas no assunto poderia ter melhor lhe direcionado em suas ações.
Porém a mediunidade, que faz referencia a uma energia sutil e semi-material (ectoplasma), ainda que
inerente à muitas pessoas, não tem amparo científico, é mais uma das muitas manifestações de fé.
Embora a fé talvez seja exatamente a questão.

De qualquer forma, seja fenômeno psíquico, paranormal, visionário ou apocalíptico o fato é que a
obra existe. Lamentavelmente o que se verifica nos dias de hoje, é o total abandono a que foi
deixado todo o trabalho de uma vida. Imagino que uma ação pública eficiente poderia ter
transformado todo o local em um imenso ponto turístico. Dessa forma preservando toda a obra
artística do Sr. Miranda, bem como valorizando sobremaneira sua herança singular. Com efeito,
trata-se de um caso único, demais peculiar, cuja obra deveria ser resgatada e preservada, bem como
seu criador ser evidenciado, para a grandeza de seu nome e orgulho de sua família.
Ainda que para muitos possa parecer um devaneio, o legado de José de Freitas Miranda deveria ser
imortalizado nos anais da história e da arte contemporâneas, independente de quaisquer que sejam as
motivações ou explicações para a obra. Afinal, pra fazer o que ele fez e como fez, tem mesmo que
ter muita determinação e, sobretudo coragem.

NOTA - No século XIX o Frances Hippolyte Léon Denizard Rivail, que se notabilizou pelo mundo com o pseudônimo
de Allan Kardec, investigou com afinco os fenômenos mediúnicos. De acordo com seus trabalhos, publicados em
diversos livros, existem pessoas que possuem o dom da mediunidade, que se caracteriza por uma faculdade especial de
se comunicar com os espíritos de pessoas desencarnadas. De acordo com Kardec, em muitos casos, a pessoa pode
possuir o dom, receber a comunicação e não saber, por falta de conhecimento, do que se trata. Nesses casos, uns acharão
que é a voz de Deus ou dos anjos; outros que são as legiões do mal. Allan Kardec, menciona ainda, que muitos espíritos
ainda pouco evoluídos, também chamados de zombeteiros, muitas vezes se comprazem em tirar proveito da simplicidade
de pessoas sensitivas menos avisadas, e aproveitam para lhes enviar mensagens mentirosas e enganadoras, levando-os
muitas vezes a praticarem atos singulares, demais impensáveis e extravagantes.

Bibliografia
Folha de Londrina/Folha do Paraná – Edição de 11/08/1999
Folha de Londrina/Jornal do Paraná – Edição de 16/08/1987
Tablóide “Nicolau” nº 4 – pagina 22 e 23
O Diário.com – Edição digital de 24/02/2002 (Maringá.odiario.com) (visitado em 30/06/13)
Cidade santa é esquecida em Colorado – www.oplanob.com.br (visitado em 30/06/13)

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