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Copyright © 2022 Lovely Loser

LIE FOR YOU

1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânico, sem consentimento e autorização por escrito do

autor/editor.

Capa:  Larissa Chagas

Diagramação: April Kroes

Revisão: Maria Paula ( @revisamaria no Instagram)

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da

imaginação da autora. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.  Nenhuma parte
desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou

intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA.


 
Sumário
Playlist
Nota da autora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Epílogo
Agradecimentos

 
 

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Esse é um livro independente, ou seja, não é necessária a leitura de outras


obras para a compreensão desta. Lie For You é um livro destinado para os

leitores de new adult, contendo algumas cenas de sexo, linguagem


imprópria, consumo de drogas lícitas e ilícitas e breve abordagem de

violência física.

Desejo uma ótima leitura!


 

Para todas as garotas que sonham com um Atlas ou um Rhysand, porque


todas nós estamos no mesmo barco ilusório.
 

21 de setembro de 2014, guarde esta data. Foi o dia em que ele partiu meu
coração.

— Blakely

21 de setembro de 2014. Foi o dia em que ela me ensinou que dava para

encontrar o amor e a dor na mesma pessoa.

— Ian
 

Eu enterrei o rosto contra o travesseiro para que abafasse meu


gemido.

O despertador vibrava na cômoda. O som estridente e irritante


lembrando-me constantemente de que já eram seis horas da manhã e que eu

precisava me levantar. Após reunir forças, coloquei meus pés para fora da

cama e olhei para minhas meias. Uma diferente da outra. Sem me importar,

calcei os sapatos, porque já havia dormido com o uniforme do trabalho.


Hoje era sábado, o que significava que eu tinha dois turnos.

Pela manhã, eu iria para meu emprego de meio período em uma


cafeteria, de lá seguiria ao Pink Lemonade, um bar universitário, onde eu só

ía aos finais de semana, quando a demanda era tão alta que mal dava para se
mover lá dentro sem esbarrar em alguém ou tomar uma cotovelada não

intencional.

Fui para a cafeteria de metrô, porque ficava meio longe do meu

apartamento. Assim que entrei no estabelecimento, fui recebida pelo cheiro

familiar de grãos de café e torta de amora. Senti meu estômago roncar. Era

como se Gina pudesse escutar, porque disse:

— Você parece faminta. — Ela fez uma pausa, amarrando o avental

ao redor da cintura. — E também parece que foi atacada por um guaxinim.

Eu relevei sua gentileza.

— É, estou com fome mesmo. Esqueci de tomar café da manhã. —

Bocejei, esforçando-me para manter os olhos abertos.

Minhas pálpebras estavam pesadas. Achava que eu poderia dormir


sobre uma das mesas retrôs da cafeteria, ou cochilar enquanto preparava um

expresso. Não me lembrava da última vez em que tive uma noite de sono

digna, sem me preocupar com meus empregos ou pagar o aluguel em dia.

— Também esqueceu de pentear o cabelo — Diamond surgiu por trás

de mim, após o sino tilintar.

Observei-o caminhar até o balcão, posicionando-se ao lado de Gina.

Agora, os dois me lançavam olhares de pena. Fechei a expressão e fui para

o banheiro. Ainda não tinha me olhado no espelho hoje, então fiquei meio
constrangida por minha aparência estar desgrenhada. Além de realmente

estar parecendo que eu havia lutado contra um guaxinim, meu uniforme

estava amassado. Ajeitei os cabelos com as mãos e tirei o tubo de batom

vermelho do bolso.

Eu amava batom vermelho. Depois de passá-lo, pressionei os lábios

um contra o outro.

— Sério, eu daria tudo por uma noite de sono — lamentei,

escorando-me contra o balcão de pedidos.

Gina estava de costas para mim, checando uma das máquinas de café.

Diamond desapareceu. Provavelmente tinha ido para a cozinha, onde

cuidava da bagunça. Gina era a caixa e eu uma garçonete.

— Qualquer coisa? — ela perguntou, olhando-me sobre o ombro.

— Qualquer coisa.

— Até um braço?

— Não me subestime.

O turno começou, após nossa conversa furada dar-se fim. A placa na


porta agora dizia “Bem-vindo, estamos abertos” e eu tinha que forçar um

sorriso toda vez que ia atender alguém na mesa. Claro que às vezes não

dava para segurar a careta quando um engraçadinho dizia que gostaria do

meu número com panquecas e bastante xarope de bordo.


Na pausa, fui para os fundos da cafeteria, onde a maioria de nós

íamos para respirar.

— O que vai fazer hoje à noite? — Diamond me questionou, atraindo

meu olhar para seu rosto.

Ele ajeitava o cabelo rebelde.

— Trabalhar.

Ele franziu as sobrancelhas, tirando um maço de cigarro do bolso.

Após colocar um em seus lábios, o acendeu com o isqueiro.

— Você só trabalha.

— É, só trabalho. Não tenho pais ricos para me bancarem, né?

Ele me deu um sorriso constrangido.

— Tá arisca hoje, Blake.

Suspirei. Diamond vinha de família rica, seus pais o forçaram a


arranjar um emprego após ele afundar um de seus navios particulares na

Califórnia, com seus amigos mimados. Era meio patético e engraçado.

— Foi mal, tô cansada.

— Dá um trago. — Diamond estendeu o cigarro em minha direção.

Dei uma tragada, depois o devolvi.

Ficamos ali por alguns momentos, em silêncio. Depois de algum

tempo, voltei para dentro e roubei um pedaço de torta que estava na


cozinha. Após finalizar meu turno, eu voltei para meu apartamento

minúsculo. Tinha algumas horas livres antes de ir para o bar, que aproveitei

para dormir.

Quando acordei, já era noite, e já estava na hora. O bar também

ficava longe de onde eu morava, então fui de metrô outra vez. Assim que

cheguei ao estabelecimento, ele já estava lotado. Foi uma luta atravessar o

mar de corpos até o balcão do bar.

Estava focada, preparando um martini, enquanto a música preenchia

meus ouvidos com batidas violentas. Me virei, entregando a bebida para o

cliente. Depois, voltei-me para o outro, já sentindo seus olhos em mim. Foi

quando aconteceu, um daqueles momentos em que o mundo parece não

existir ao seu redor. Você sente o coração bater mais rápido, mas os

membros de seu corpo ficam completamente imóveis.

Você entra num transe.

Então, é sugado de volta para a realidade, esperando que tudo não

passe de um fruto de sua imaginação.

Mas é real. Tão real que deixa um gosto amargo em sua boca.

— Blakely. — Meu nome escapou por seus lábios como uma

maldição.
Pela sua expressão, ele parecia tão surpreso quanto eu. Tão mais belo

do que eu me lembrava, há alguns anos. Seu cabelo castanho caía em sua

testa, dando-o um ar jovial que não combinava com as mandíbulas travadas

e os olhos azuis sérios.

Ele me encarou. Frio. Indiferente.

Havia ódio ali, até mesmo repulsa.

O tipo de ódio que fazia os ossos gelarem e dava nós em meu


estômago. O tipo de ódio que era um lembrete constante de que eu havia

partido seu coração.

E aquilo havia o transformado.

— O que você tá fazendo aqui? — ele disse, não escondendo o nojo


em seu tom de voz.

Como uma tartaruga encolhida em seu casco, eu recuei, sem fôlego.

Meu coração estava disparado. Não consegui parar de encará-lo. Sua


expressão, o jeito como me olhava, tudo. Imaginei algumas vezes como

seria reencontrá-lo, depois de tudo. Nenhum cenário havia sido tão cruel.

— Responde, porra. — Sua voz voltou a me atingir, ríspida.

Engoli em seco, sentindo o rosto pegar fogo.

— Está agindo como se a cidade fosse sua, como se esse bar te

pertencesse. — Tentei devolvê-lo o olhar mortal, me recompondo. — Não


que seja da sua conta, mas eu trabalho aqui, caso não esteja claro. E, se não

for fazer um pedido, se manda.

Ele ficou em silêncio. Ian Sweddish, meu primeiro amor e coração

partido, respirou fundo.

— Uma dose de tequila, anjo.

Algumas memórias estalaram na minha mente. Cerrei os dentes por


conta do apelido. Preparei o drink em silêncio, as mãos trêmulas. Ian

observava com atenção, o que me deixava ainda mais nervosa.


Provavelmente tinha reparado. Pensei que fosse fazer um comentário

maldoso, mas ele permaneceu quieto, surpreendentemente.

Depositei o copo em sua frente.

— Sal e limão? — questionei, despretensiosamente. Queria que ele

desaparecesse o mais rápido possível.

Ian assentiu, mantendo aqueles olhos desconcertantes em mim.

Cortei um pedaço de limão. Estava tão atônita que ao pegar o pote


que continha sal, minhas mãos vacilaram. O sal caiu como neve sobre a

superfície de madeira do balcão. Engoli em seco. Ian permaneceu


inexpressivo, como se eu fosse patética e o entediasse.

Inesperadamente, Ian se curvou para frente, apoiando os cotovelos no


balcão, agora havia pouca distância entre nós. Arregalei os olhos.
Enrolando uma das mãos ao redor do meu pulso, ele aproximou minha mão
de seus lábios. Então, fazendo meu coração quase sair pela boca, ele passou

a língua no dorso de minha palma, onde havia respingado um pouco de sal.

Se afastando, ele entornou o copo de tequila, batendo-o vazio sobre o

balcão. Depois, sugou o suco do limão.

— Saúde — disse, o rosto sério, virando-se e me deixando para trás.


 

antes, passado

Havia duas trilhas próximas uma da outra no píer e uma delas era

para caminhada na praia. No lado esquerdo, costa oeste, as pessoas


andavam e coletavam conchas como se procurassem algo. Algumas das

conchas ainda tinham águas-vivas vivas dentro delas, era por isso que a

garota de botas de plástico rosa choque chamativa arremessava alguma


delas para longe, coletando o restante num balde.

Eu estava a observando há algum tempo.

Quando me cansei, mudei o olhar para um velho que ia de barco a


remo até alguns surfistas e os ajudava a voltar para o píer, o que de alguma
forma tornava as coisas mais eficientes e menos lentas à espera de um ciclo

de ondas.

Continuei minha análise.

Do lado direito, costa leste, as pessoas agiam muito mais

cautelosamente, porque colhiam figos brancos de uma velha árvore na


praia.

— O que aconteceu com seu olho?

A voz foi tão repentina que quase caí do píer, direto para o mar. Meu

coração batia forte quando pus os olhos na garota. Ela segurava uma vara
de pesca e calçava as botas de plástico horripilantes, segurando o balde

cheio de conchas em uma das mãos. O cabelo escuro gerava contraste

enorme com seus olhos verdes. Com o sol atrás de si, uma espécie de halo

era criada ao seu redor, o que a dava um ar angelical.

— Você é surdo? — Ela aumentou o tom de voz, falando

pausadamente, depois de alguns momentos de silêncio.

Continuei a encarando, com o cenho franzido. Então, me voltei para

frente. Para a água, sua superfície calma e o horizonte além, com uma

cadeia de montanhas.

— Sabe que se eu fosse surdo mesmo não iria entendê-la, mesmo que

falasse gritando, não é? — resmunguei.


Pelo canto do olho, captei o momento em que ela se sentou ao meu

lado, sobre as placas de madeira.

— Então, o que houve com seu olho? — Ela me ignorou, jogando o

anzol no mar e balançando suas pernas suspensas no ar.

Me perguntei se ela sabia o que estava fazendo, ou que o anzol

precisava ser lançado com uma isca, mas permaneci em silêncio.

— Eu caí — respondi secamente, omitindo a parte de que meu pai

tinha problemas com álcool.

Eu já havia esquecido do meu olho latejando, mas, ao ser citado por

aquela garota intrometida, a dor havia retornado. Cerrei um dos punhos

discretamente e segurei um gemido de dor. Olhei para ela com o olho bom.

Suas íris já estavam presas em mim, observando-me.

— É um machucado bem feio — concluiu, em voz alta.

— Obrigado. — Fui irônico.

— Você entrou numa briga de rua?

Semicerrei o único olho que ainda abria.

— Já disse que caí.

— Você é um mentiroso horrível, sabia? — A garota suspirou. — Se

não quiser contar, tudo bem, mas não mente.


Ficamos em silêncio outra vez. Eu não sabia por que ela estava aqui,

ou quem era, ou de onde havia surgido. Nunca havia a visto em Oak

Springs e aqui todo mundo se conhecia, pois a cidade podia muito bem ser
comparada a um ovo de tão pequena. Havia cerca de três mil habitantes

aqui, quando alguém se mudava, todo mundo ficava sabendo.

— De onde você é? — questionei a ela, quando não fui capaz de

conter a curiosidade.

— Nova Jersey. — Ela ergueu a vara de pesca antes submersa na

água, fazendo com que alguns respingos nos atingissem. Fez uma careta ao

ver que não havia conseguido nada, o que era meio óbvio.

— E o que está fazendo aqui?

— Vim passar as férias com minha mãe.

— Ah. — Foi tudo o que saiu de mim. — Legal.

Ela ficou em silêncio e olhou para longe. Foi a primeira vez que

demonstrou algum tipo de hesitação desde que surgiu repentinamente.


Parecia difícil fazer alguém como ela se constranger, ou ficar encolhida.

— Você não tá aqui de férias, não é? — perguntou para mim, o tom

de voz baixo.

— Na verdade, estou. — Cocei o pescoço. Não queria falar sobre

isso.
Para minha sorte, ela desviou de assunto:

— Você sabe pescar?

Hesitei em responder.

— O suficiente para saber que você não vai capturar nenhum peixe

sem uma isca.

— Não sabia o que por e não ia colocar as mãos em minhocas. — Ela

puxou a vara para fora da água e observei o anzol que estava usando, era

grande demais, outro empecilho na pesca.

— Tem outros tipos de isca que você pode usar — resmunguei.

— Você toca violão? — Me ignorou, focando os olhos no

instrumento ao meu lado pela primeira vez. Até eu tinha me esquecido de

que estava ali.

— É baixo — murmurei.

— Toca alguma coisa.

Arqueei as sobrancelhas.

— Não.

— Por quê?

— Não tô afim.
— Por favor, só uma música — ela continuou implorando

pateticamente e me irritando de um jeito que ninguém nunca tinha irritado

antes.

Comecei a tocar uma das músicas que eu sabia, só para ver se ela ia

embora depois disso. Quando terminei, ela parecia impressionada, mas a

única coisa que disse foi:

— Você quer se tornar músico?

— Talvez.

Ela permaneceu em silêncio por algum tempo.

— Tenho que ir agora — falou, fazendo-me suspirar.

Finalmente.

Nós não dissemos nada, ela se levantou e foi embora, sem ao menos

dizer seu nome. Demorou dois anos para que nos víssemos outra vez.
 

Como era domingo, eu estava de folga do emprego na cafeteria, o


que foi uma oportunidade perfeita para almoçar com Elle, minha meia-irmã

mais nova. Agora, estávamos sentadas numa mesa em uma lanchonete


aconchegante de Boston.

Ela olhava para o cardápio como se estivesse lendo um catálogo de

plantas.

Elle mascou o chiclete em sua boca; fez uma bolha cor-de-rosa e

explodiu. Repetiu o processo pelo menos umas três vezes e finalmente me

encarou.

— Não estou com fome — disse, desinteressada.


— Seu pai disse que não comeu nada hoje. — Fui cautelosa ao dizer

as palavras. — Tem certeza?

— Ele também é seu pai — murmurou, parecendo incomodada.

Anuí um suspiro. Elle estava certa, mas nosso pai havia me

abandonado com a minha mãe, quando eu ainda era apenas uma criança e
ela estava se afundando em substâncias ilegais, tornando-se uma viciada.

Elle era fruto de sua segunda mulher, o casamento que havia dado certo. E,

embora ele fosse meu pai, não tinha costume de chamá-lo assim, ainda mais

porque não fui criada por ele.

— Que tal um cheeseburguer com fritas? — continuei, mudando de

assunto.

Desta vez, ela mal se deu ao trabalho de me responder. Olhou para a

janela, observando o fluxo de pessoas lá fora. Engoli um nó de frustração

que se formou em minha garganta. Voltei a fitar o menu.

— Está tentando acelerar o processo? — Sua voz me pegou

desprevenida, ergui os olhos do cardápio.

— O quê?

— Está querendo que eu morra mais rápido?

Suas palavras me atingiram como socos no estômago.


Elle estava num tratamento contra o câncer há cinco meses. Consegui

me mudar mês passado para Boston, na esperança de ficar próxima de

minha meia-irmã. As coisas não estavam dando tão certo, no entanto. Ela

relutou bastante no início. Não queria me ver, nem falar comigo.

Uma parte ingênua minha achou que Elle continuaria a mesma

garotinha de alguns anos atrás, que ficava feliz quando eu dizia que iria

visitá-la e me telefonava o tempo todo. Com o tempo, as ligações

diminuíram, e as visitas também pararam.

A idolatria pela irmã mais velha havia ficado no passado, junto com

todos os outros momentos.

Ela não era mais a mesma. Estava diferente, assim como eu.

Mas aquele desprezo era novidade.

Eu não o entendia.

— Você não vai morrer — ralhei, entre dentes.

Apertei os dedos com força ao redor do cardápio, até que os nós

estivessem esbranquiçados. Só havia a trazido para cá porque John, nosso

pai, havia dito que eu tinha permissão. Mas eu devia ter perguntado antes

sobre restrições.

Elle não respondeu, ela apenas continuou observando a paisagem,

com um músculo da mandíbula contraído e os olhos austeros, como se


estivesse mordendo a língua para não me dar outra de suas respostas cruéis.

— Elle — a chamei, mas ela me ignorou outra vez. Respirei fundo.

— Eleonor, escute...

— Não me chame de Eleonor. — Sua voz cortante me interrompeu.

Em silêncio, levantei-me da mesa e saí da lanchonete, deixando-a

para trás. Não me importei de olhar sobre o ombro. Fiquei do lado de fora

respirando fundo, até que ouvi passos atrás de mim e enrijeci.

— Desculpe.

Foi tudo o que ela havia dito, o tom de voz quase inexistente, não

passando de um sussurro.

Virei o rosto para encará-la, finalmente. Elle estava com os olhos

escuros focados em mim, os lábios em linha reta. Não tínhamos muito em

comum quando se tratava de aparência. Éramos quase opostos.

— Tá tudo bem. — Soltei um suspiro, notando o arrependimento em

seu olhar. Elle se virou para longe, fugindo.

— Podemos ir embora?

— Claro.

Nenhuma de nós disse nada durante o trajeto, no táxi que chamei.

Quando finalmente chegamos no complexo de casas onde Elle vivia,


precisamos de autorização para entrar. As casas eram imensas, mini

mansões padronizadas num estilo vitoriano.

— Pode manter isso entre nós? — Elle questionou após empurrar a

maçaneta do carro, abrindo a porta. — Acho que o papai ficaria

decepcionado comigo.

Apenas assenti. Observei Elle desaparecer no interior da casa imensa,

depois fui embora.

Mais tarde, em meu apartamento, recebi uma ligação inesperada de

Gina. Larguei a caneca de café que estava tomando para atendê-la.

— Tá a fim de sair hoje? — Sua voz soou do outro lado da linha.

— Para onde?

— Vai ter um show de uma banda que eu gosto num pub aqui perto

de casa. Como sei que você tá de folga, achei que ia ser uma boa pra relaxar

um pouco.

— Vou ter que acordar cedo pra trabalhar amanhã. — Soltei um

suspiro, trocando o peso de uma perna para a outra. — Não sei se vai ser

uma boa ideia.

Gina bufou.

— A gente volta cedo. Só vamos ficar um pouco, tá? Eu também vou

acordar cedo. A gente trabalha juntas, esqueceu?


Pensei por alguns momentos.

— Ok, mas só vou ficar um pouco. Você passa aqui?

— Claro.

Dito isso, Gina se despediu e encerrou a chamada, dizendo que

estaria aqui cerca de oito horas. Já arrependida, me enfiei no chuveiro para

uma ducha rápida, porque já eram sete horas. Coloquei um vestido preto,

que achei escondido no fundo do armário. Lembro de usá-lo muito em


festas no ensino médio. Foi uma surpresa ter me servido, só ficou um pouco

apertado no busto porque meus peitos haviam crescido mais que o

esperado.

Após passar rímel e meu habitual batom vermelho, Gina chegou.

Assim que puxei a porta de seu carro, ela me lançou um olhar surpreso.

— Nossa, você tava escondendo seus peitos por todo esse tempo?

— Cala a boca — murmurei, tentada a subir as escadas outra vez e


mudar de roupa.

Como se pudesse ver o impasse no meu rosto, Gina interveio:

— Nem pense nisso! Você tá linda, entra logo no carro.

Ainda receosa, sentei-me no banco do carona, fechando a porta. O

trajeto até o pub foi rápido, considerando que Gina não morava tão longe

assim de meu apartamento. Eu nunca tinha vindo até esse lugar antes, foi
até uma surpresa porque estava lotado. A rua estava adornada por carros,

tivemos que parar em outro quarteirão e caminhar até lá.

Ao ser embalada na atmosfera quente e super apertada do interior do

pub, me arrependi ainda mais de ter saído do meu quarto, onde podia ter

tido uma noite longa de descanso. Então, quando a banda da noite foi

anunciada, eu quis morrer, engasgando com a cerveja gelada que eu

bebericava.

— Só pode ser brincadeira.... — murmurei para ninguém em


especial, enquanto os três integrantes eram recebidos por gritos e assobios

assim que cruzaram o palco.

— Eu adoro eles, nossa — Gina disse alto o suficiente para que eu

ouvisse. — Acho que você vai gostar também.

Senti vontade de rir. Ou chorar.

Estávamos sentadas nas banquetas do bar, então aproveitei para

apoiar os cotovelos no balcão de madeira. Entornando a garrafa de cerveja,


comecei a pensar que minha vida era uma grande piada. Achei que não

fosse vê-lo nunca mais, considerando o tamanho de Boston e a quantidade


de pessoas que viviam na cidade, mas, aqui estávamos nós. Como se o

destino quisesse me pregar uma peça.


Ian estava no palco, junto de outros dois rapazes. Era uma surpresa
saber que havia levado a paixão que tinha pela música adiante. Embora

parecesse à vontade enquanto estava lá em cima, com muitos olhares sobre


si, Ian parecia um pouco mais recluso que o vocalista — que tinha grande

presença de palco — e que o baterista, que, apesar de ficar um pouco mais


atrás, balançava o corpo junto com o ritmo da música, como se fossem um

só.

Sem ter para onde fugir, assisti ao show. Não foi tão longo, apenas

quatro músicas que, por mais que não quisesse dar o braço a torcer, eram
muito boas. Quando a banda se retirou, as pessoas recorreram a uma

Jukebox enferrujada no canto do estabelecimento. Alguns grupos


começaram a se retirar, o que deixou o pub com mais espaço.

— Não foi incrível? — Gina questionou, fazendo-me voltar o rosto

para ela e os pensamentos dissiparem.

— É — concordei, tentando sorrir para mascarar meus reais


sentimentos. — Vamos embora?

Ela rolou os olhos.

— Espera um pouco. — Gina olhou ao redor, observando a


movimentação. — Será que eu consigo um autógrafo?

— Não é uma boa ideia.


— Por que não? Nós já estamos aqui. — A garota se levantou da
banqueta, apanhando minha mão e me puxando para longe. — Vem.

Atravessando o mar de corpos, Gina nos levou para fora do pub,

onde fomos recebidas pelo ar gélido da noite noturna. Então, nós


contornamos o prédio, parando em frente a uma saída nos fundos, uma

porta de metal enferrujada que ficava numa rua deserta sem saída.

— Vamos esperar — ela anunciou, fazendo-me a encarar com um


olhar incrédulo.

— De jeito nenhum!

— Só um pouco — suplicou.

— Três minutos e vou embora. Está ficando tarde e fazendo frio.

Além de que nós somos duas mulheres jovens numa rua vazia depois das
dez da noite. O que pode dar de errado, né?

— Com esse pessimismo....

No próximo segundo, nossa discussão breve cessou com o rangido

alto da porta pesada de metal. Nós duas direcionamos nosso olhar para lá.
Ian parou no movimento de riscar o isqueiro para acender o cigarro já preso

entre seus lábios.

Seu olhar alternou entre mim e Gina, depois suas íris se conectaram

as minhas. Primeiro, reconhecimento. Depois, surpresa. Por fim,


indiferença. Se seu rosto havia esboçado algum resquício de emoção há um

segundo, despareceu tão rápido que me perguntei se não havia imaginado.

Então, casualmente, acendeu o cigarro. Enfiou o isqueiro no bolso.

Tragou, depois soltou a fumaça. Esperou.

— Desculpe atrapalhar — Gina finalmente quebrou o silêncio,


parecendo nervosa. Seu rosto inteiro estava vermelho feito tomate. — Eu

sou uma grande fã da banda. Queria saber se vocês podiam me dar um


autógrafo.

Ela começou a revirar a própria bolsa. Tirou um CD de lá dentro.

Estendeu em direção a Ian.

— Claro — ele respondeu, com o tom de voz suave, ao mesmo

tempo em que sua expressão continuava séria.

Então, se virou e desapareceu atrás da porta. Troquei um olhar com


Gina. Nenhuma de nós disse nada, porque o clima que permaneceu era

esquisito. O clima que Ian havia estabelecido com seu jeito desconcertante
e um tanto distante.

Cerca de três minutos depois, ele estava de volta. Em silêncio,

devolveu o CD para Gina.

— Obrigada.
Estávamos prestes a ir embora quando o baterista surgiu de repente.

Assim como Ian, ele nos analisou primeiro. Mas sua atenção foi direcionada
para Gina.

— Oi. — Ele sorriu. — Vocês moram por aqui?

Por mais que a pergunta tivesse sido feita no plural, suas íris estavam

fixas em Gina. Tive que estrangular um gemido de frustração quando eles


engataram uma conversa, afastando-se da porta e de mim e de Ian. De

repente, senti seu olhar sobre mim e o encarei.

Suas sobrancelhas estavam arqueadas, como se esperasse uma

explicação. Ou melhor, como se eu o devesse uma.

— Escuta só — comecei. — Não tô a fim de discutir hoje. Vim


acompanhar minha amiga, não sabia sobre sua banda. Não sou uma fã.

Ian nem se dignou a me responder. Apenas jogou a guimba do


cigarro no chão, passando a sola do coturno sobre a brasa ainda acesa.

Silenciosamente, seu olhar começou a descer sobre meu corpo, parando um


tempo a mais no decote.

Engoli em seco, cruzando os braços sobre o peito.

— Para de encarar.

Ele me olhou com tédio.

— Se veste assim e espera que ninguém te olhe?


Enrijeci, ultrajada.

— O que quer dizer com isso? — perguntei, sentindo um músculo na

mandíbula contrair.

Ian deu de ombros.

Aquele gesto de indiferença fez com que meu sangue fervesse ainda
mais. Sua arrogância me dava nos nervos.

Ele agia como se fosse um tipo de deus inabalável. Como se ninguém


valesse seu tempo.

— Continua um babaca. Certas coisas não mudam.

Seu riso foi tão repentino que me fez congelar. Quando cessou, um

sorriso cruel deslizou por seus lábios bem desenhados.

— Eu me esqueci do quanto você era patética. Todos esses anos... —


Ele soltou um suspiro, fingindo estar profundamente decepcionado. —
Achei que você se tornaria alguém digna de respeito.

— E você, pelo visto, só está se tornando um reflexo de tudo o que

odiava. Isso é triste. — Fiz uma pausa, olhando no fundo dos seus olhos. —
No fim, você é igual a ele.

Com ele, Ian sabia a quem eu estava me referindo. Seu pai. Suas
mandíbulas travaram. Ele me olhou com raiva.
— Então fique fora da porra do meu caminho. Ou você sabe o que
vai acontecer.
 

passado

Eu tinha me dado conta de três coisas nesta cidade, após retornar para

ela dois anos mais tarde. 1. As pessoas gostavam muito de pesca. 2. As ruas
sempre estavam vazias, até mesmo durante o dia. 3. O garoto do píer ainda

continuava lá e era mesmo um causador de problemas.

Podia dizer isso porque ele sempre estava machucado. Semana

passada, havia dito que tinha caído. Esta semana, quando apareceu com o
lábio inferior rasgado, disse que havia sido um tombo de bicicleta. E, hoje,

fiquei em silêncio enquanto o observava sentar-se nas placas de madeira,

com um corte no supercílio.


Ele estava tocando baixo hoje, segurando o instrumento contra o

peito. Ele devia gostar muito de música, porque, às vezes, passava horas

sozinho aqui, dedilhando o instrumento.

Em algumas vezes ele tinha plateia. As pessoas paravam para

observá-lo, porque a imagem era atrativa.

Um garoto solitário no píer, apenas com a companhia de sua música.

— O que houve com você desta vez? — questionei-o, cautelosa,


quando ele deixou o baixo de lado.

Ian me ignorou. Respirei fundo, sentando-me ao seu lado e


permanecendo com a boca fechada.

Eu não podia dizer que éramos amigos, mas nossa relação não-

definida havia evoluído desde que tinha o encontrado da primeira vez.

Eu achava.

— Por que você sempre faz muitas perguntas? — A voz ríspida de


Ian cortou o ar repentinamente.

— O quê... — comecei a murmurar, mas ele me interrompeu:

— Você é intrometida. Sempre. E fala além da conta. — Houve uma

pausa. Seu peito subiu e desceu pesadamente ao soltar um suspiro. — É

irritante.
Ele finalmente me olhou nos olhos. Aquelas íris azuis como dois

blocos de gelo, como se estivessem anunciando uma tempestade de neve de

alto risco. Uma das coisas que haviam mudado, era sua aparência. Ele

estava ainda mais bonito. O que havia permanecido, no entanto, era seu

temperamento esquisito.

Apenas engoli em seco, porque não soube como reagir diante

daquilo. Ele me encarava com raiva. Por mais que soubesse que Ian era um

garoto distante e meio frio, nunca havia me tratado daquela maneira até este

momento.

Com um nó na garganta, me levantei. Cerrando os punhos ao lado do

corpo, fui embora. Levou apenas alguns minutos para que eu estivesse lá,
em frente a casa de minha mãe. Era feia assim como a cidade. Tudo aqui

parecia estar despencando e velho. Pelo menos do lado norte.

A varanda estava meio caída, as cercas que ladeavam a propriedade


também estavam tortas e crescia uma grama irregular na calçada. Abracei

meu próprio corpo. De repente, estar no píer com Ian me odiando não

parecia uma opção tão ruim quanto estar nesta casa.

— Mãe? — chamei, quando empurrei a porta com a ponta do coturno

velho. Ela abriu com um rangido esganiçado, revelando o interior escuro do

lugar.
Minha mãe mantinha todas as janelas fechadas. Ela não gostava

muito de luz. Era raro que ela permitisse que ar fresco e luz entrassem,

embora eu achasse que fariam bem ao lugar, que já estava cheirando a


mofo.

Como não obtive resposta, presumi que ela não estivesse em casa.

Então, abri as janelas e empurrei as cortinas, que levantaram uma névoa de

poeira que umedeceu meus olhos e ardeu minha garganta. Em meio a

tosses, observei a sala.

Como o habitual, havia algumas garrafas de cerveja jogadas no chão,

assim como algumas embalagens de porcarias, como pizza congelada e

macarrão de micro-ondas.

Como um fantasma, minha mãe apareceu subitamente no corredor,

enrolada em um robe de seda que já estava usando há cerca de uma semana

e os pés descalços.

— Quem abriu a porra da janela? — perguntou, semicerrando os

olhos para a claridade.

Ignorando-me na sala, ela caminhou até as cortinas, fechando-as com

um movimento brusco. Então, se virou para mim, os olhos opacos me

observando como se eu fosse uma pedra em seu sapato.

— Blakely, que dia é hoje? — A pergunta foi inesperada.


Observei-a caminhar até a cozinha, revirar a pilha de louça atrás de

uma caneca e encher de água.

— É quinta-feira — murmurei. — Dia onze.

— Quando você vai embora?

Me encolhi dentro da minha jaqueta.

Sabia que minha mãe não estava exatamente feliz com a minha

presença aqui, mas era incômodo ouvi-la dizer coisas como aquela.

Uma parte esperançosa de mim esperava que pudéssemos ter uma

relação boa. Embora minha avó, com quem convivia, tivesse dito que era

uma péssima ideia passar as férias de verão sozinha com ela. Todas as

noites ela me ligava, preocupada.

— Daqui duas semanas.

Jenna se engasgou com um suspiro. Observei a forma como seu

corpo ficou tenso.

Será que eu a incomodava tanto? Eu era irritante, como Ian havia

dito?

Em silêncio, fui para o quarto que estava ficando aqui. Não era bem

um quarto, era um cômodo com um colchão no chão, uma pilha de

travesseiros e dois cobertores e minha mala encostada em uma das paredes.


Apanhei o celular que minha avó havia me deixado levar. Não dava

para fazer muita coisa nele, só receber ligações e jogar Tetris. Fiquei tentada

a ligar para ela e pedir que ela mudasse a data da passagem de ônibus para

amanhã. No fim, acabei desistindo.

Ouvi minha barriga roncar. Fazia um tempo desde que eu não comia

algo bom.

— Vou sair — Jenna anunciou, após abrir a porta do quarto

repentinamente. Ela usava um vestido vermelho de cetim e havia

maquiagem em seu rosto. — Não se meta em confusões. Tem um pouco de

macarrão com queijo na geladeira.

Então, tão subitamente quanto havia surgido, desapareceu.

Para não sucumbir ao tédio, abri um dos livros que havia trazido para

cá. Isso até ouvir uma batida na porta.

Na ponta dos pés, puxei a cortina do meu quarto e espiei pela janela.

Em pé na varanda, estava uma garota que eu tinha visto poucas vezes desde

que havia chegado. Ela morava do outro lado da rua e devia ter, mais ou

menos, a minha idade. A considerei inofensiva.

Confusa, levantei-me e fui para a sala, onde abri a porta.

— Você sempre tá com esses coturnos? — perguntou, sem ao menos

dizer “oi” antes.


Ela tinha um cabelo grande e cacheado, que emoldurava o rosto em

formato de coração. Usava jardineiras e havia uma câmera gigante

pendurava num cordão ao redor de seu pescoço.

— É... — Olhei para meus sapatos, confusa. — Gosto deles.

— Vai ficar aqui até quando? — Ela continuou a conversa

casualmente, como se me conhecesse há anos.

— Até o fim do verão.

— Legal. Já conheceu alguém?

Hesitei. Podia dizer a ela sobre Ian, mas nós não éramos amigos.

— Não.

— Então sou sua nova amiga. Rachel e você?

— Blakely, mas prefiro só Blake.

— Beleza, Blake. Para sua sorte, tenho tudo registrado aqui comigo.

Posso te mostrar como as coisas funcionam. — Ela sinalizou para a câmera.


— Posso entrar?

Pensei por alguns momentos. Provavelmente minha mãe demoraria

bastante para retornar e não havia nenhuma ameaça em Rachel. A guiei


para dentro. Nos sentamos no sofá. Rachel mexeu em sua câmera, depois a

virou para mim.


— Esse é o prefeito. Ele trai a sua esposa toda terça-feira depois que
deixa seu escritório. Ela fica no pilates quase o dia inteiro, então não se dá

conta. Ou se percebe, não parece se incomodar.

Rachel me mostrou a foto de um homem grisalho na casa dos

cinquenta e tantos anos.

— Uau — murmurei, sem reação. — Como você sabe dessas coisas?

— Ah, a minha mãe trabalha num salão de beleza. Às vezes a


acompanho. As informações correm bastante lá. — Rachel não deu tempo

para que eu fizesse algum comentário. — Esse é o filho do prefeito.

Então, congelei. Uma foto de Ian surgiu na tela trincada da câmera.

Meu coração deu uma galopada no peito ao ver seu rosto sério. Ele estava
num parque, não havia percebido que tinha sido fotografado

inesperadamente.

— Ele é filho do primeiro casamento. Vem para cá nos verões.

— E por que ele está sempre com algumas concussões?

— Ah, ele pratica artes marciais. — Rachel ficou em silêncio por

alguns momentos. — Ele é popular aqui.

— Tipo quem?

— Tipo o Justin Bieber.

Arqueei as sobrancelhas.
— É sério. Ele faz muito sucesso entre as garotas. Tipo, você já
olhou para ele, né? Dá para entender o porquê.

É, eu entendia o porquê.

E era esquisito.

Mais tarde, Rachel havia ido embora e minha mãe tinha chego em
casa, mas ela já estava prestes a sair outra vez, pelo visto.

Observei em silêncio enquanto minha mãe amarrava a tira da

sandália de salto alto ao redor do tornozelo. Seu rosto estava coberto com
maquiagem, as pálpebras com um delineado maior que o outro, mas ela não

parecia se importar.

Ela ergueu o rosto em minha direção, e me senti pega no flagra

encarando-a estática no início do corredor. Achei que Jenna fosse me dar


uma bronca ou algo do tipo, mas ela só abanou a mão em minha direção e

disse:

— Pega meu maço de cigarros.

Olhei para o chão. O maço de cigarros estava caído ali há um ou dois


dias. Me curvei para pegá-lo, porque estava próximo dos meus pés. Avancei

em direção à minha mãe, estendendo a caixa retangular amassada em sua


direção.
Ela tirou um isqueiro do sutiã, acendendo um dos cigarros nos

lábios. 

— Quer um? — perguntou, mas, antes que eu pudesse esboçar

qualquer reação, ela pareceu se lembrar de algo importante. — Melhor não,


só depois dos dezesseis. Qual sua idade?

Minha mãe e eu não conversávamos muito e quando trocávamos

mais de duas palavras, ela nunca dizia a coisa certa. Como neste momento.
Que tipo de mãe não sabia a idade da própria filha? Mas não era como se

ela fosse uma mãe convencional, eu sabia que minha mãe era… diferente.

— Eu tenho catorze — murmurei, num muxoxo.

Jenna assentiu, abriu a boca para dizer algo mas então seus olhos

vidraram na porta quando uma buzina soou lá fora.

Minha mãe se levantou, ajeitando a bolsa ao redor do ombro e o


comprimento do vestido nas coxas, que havia subido enquanto ela estava

sentada no sofá.

Inesperadamente, ela esfregou minha cabeça, de um jeito desajeitado


e um tanto abrupto, como se esfregava a cabeça de um cachorro. Aquele foi

o mais próximo de afeto que compartilhamos.

— Volto amanhã. Não cometa erros que nem eu.


Então, saiu pela porta. Curiosa, fui em direção as janelas, puxando

um pouco da cortina até que formasse um vão que me desse uma visão do
que estava acontecendo lá fora.

Já estava bem escuro, então era difícil assimilar as figuras.

Havia um carro estacionado no meio-fio. Um carro preto, que parecia

ser de alguém muito importante. Eu não entendia sobre automóveis, mas


sabia que aquele pertencia à uma das marcas que somente a elite havia

acesso.

Me perguntei por que minha mãe tinha contatos como aquele. Ela

entrou no carro, então partiu. Soltei um suspiro, observando o interior vazio


da casa de minha mãe.

Não havia nada para fazer ali, mas eu já estava habituada com a

solidão nos momentos em que ficava em casa.

Tentei pensar em qualquer coisa que não fosse Ian.


 

A tensão na mesa era palpável.

O silêncio perdurava na sala de jantar há cerca de dez minutos. Elle

parecia desconfortável, assim como John e sua esposa, Hanna. Hanna tinha
cabelo loiro e comprido, assim como Elle, antes de ter que raspá-lo. Ela me

cumprimentou com um sorriso forçado, um sorriso igual ao que o meu pai

barra progenitor havia me dado no hall.

Ele me encarou como se eu fosse um fantasma, com assombro. E eu

sabia o porquê. Eu era um clone de minha mãe.

Saber que, talvez ele se arrependesse, não melhorava as coisas.

Contudo, eu estava aqui apenas por Elle. Ela quem havia sugerido o

jantar, depois do episódio da lanchonete parecia que ela tinha finalmente


baixado os escudos, o que me deixava feliz.

Seus pais concordaram por ela. Eles não pareciam querer estar na
mesa. Eu também não queria estar, então não os culpava. Por mais que me

sentisse mal por querer que tudo acabasse o mais rápido possível, ninguém

podia me condenar. Nenhum deles me queria ali, além de minha irmã.

Aquele era um jantar onde todos os participantes tinham um objetivo

em comum:

Fazer Elle feliz.

Hanna limpou a garganta, fazendo com que eu parasse de encarar as


ervilhas no meu prato obsessivamente.

— Então, Blakely, está fazendo faculdade? — A pergunta repentina

me deixou surpresa, mas mantive o semblante relaxado.

— No momento não, eu estou em dois empregos. Não sobra tempo.

John evitava o contato visual comigo, mas, de relance, podia ver sua
postura rígida na cadeira de mogno cara de sua casa incrivelmente cara.

Tudo aqui gritava dinheiro. Uma das coisas que me incomodavam também.

— Que... interessante.

Engoli uma colher de purê. Hanna desviou o olhar para o prato. Me

perguntei o que se passava em sua cabeça neste momento. Devia estar com
pena. Não do tipo solidária.
— A Blake trabalha numa cafeteria incrível — Elle cortou o silêncio.

Ninguém disse nada, parecia que eu os deixava completamente

deslocados dentro de sua própria casa. Aquilo estava começando a me dar

nos nervos também.

— Você devia ir lá um dia, pai — minha irmã continuou, ingênua.

— Claro — ele murmurou, quase que automaticamente, o tom de voz

baixo.

Nós dois sabíamos que ele nunca apareceria lá. Ele nunca teve

vontade de me conhecer. Nunca fez questão de estar próximo, não era agora

que o interesse repentino iria surgir, após vinte anos.

Elle continuou a falar, inocentemente:

— A gente pode ir lá no sábado, pai. 

Minha irmã mais nova o encarou, esperando em expectativa. Por um

momento, até mesmo eu havia prendido a respiração.

Fixei meus olhos em seu rosto. Meu pai pareceu enrijecer ainda mais.

— Ele tem uma reunião de negócios — a esposa, Hanna, interviu,

antes que ele pudesse responder.

Meu pai ficou em silêncio, mesmo que estivesse evidente que era

uma mentira conveniente.

É claro.
Voltei a respirar normalmente, me sentindo uma tola por uma parte

de mim, mesmo que uma parcela quase inexistente, tivesse pensado que ele

poderia ter mudado. 

Que ele estivesse interessado na minha vida.

Limpei a garganta.

— A comida estava ótima — murmurei, mesmo que meu prato

estivesse inacabado. Eu não sentia apetite nenhum. — Acho que já vou

indo, tenho trabalho mais tarde.

— Sério, Blake? — Elle pareceu murchar. — Ia te mostrar meu

quarto…

— Deixe para outro dia, querida — Hanna voltou a intervir, me

lançando um olhar que eu não soube exatamente como decifrar. — Blakely

tem compromisso.

— Vou te acompanhar até a porta — meu pai resmungou, pondo-se

de pé.

Imitei seu gesto, sentindo um nó na garganta, tinha vontade de dizer a

ele que eu sabia o maldito caminho até a saída, mas não queria deixar o

clima desagradável para Elle.

Me despedi de minha irmã com um abraço, dei um aceno com a mão

para Hanna, por mais que eu tivesse a odiado, e andei silenciosamente até a
porta, ouvindo os passos de John atrás de mim.

— Fico feliz em saber que está bem — a voz de meu pai cortou o ar
inesperadamente, surpreendendo-me.

— Imagino — resmunguei, sem conseguir conter o sarcasmo,

virando-me para encará-lo. 

— Blakely, eu…

— O quê? — perguntei, impaciente.

John pareceu ficar sem palavras. Ou desconfortável. De qualquer

forma, sabe se lá por que razão ele se calou. 

— Tchau — falei, secamente, virando-me e saindo dali.

Antes de ir para o apartamento, passei numa lanchonete que eu

gostava, porque sentia que precisava me recompensar pelo jantar terrível.

Poucos momentos depois, eu já estava no prédio.

— Ai, merda — murmurei, quando tentei encaixar a chave na porta

com as mãos ocupadas.

No braço esquerdo, estava minha bolsa e um copo de café fumegante,

no direito, uma caixa dos melhores donuts que eu já tinha comido.

Quando consegui finalmente abrir a porta do apartamento, adentrei

na sala, jogando a bolsa no sofá e colocando o café sobre a ilha que dividia
a cozinha da sala. Abri a caixa de donuts, e dei uma mordida no que tinha

cobertura de chocolate e nozes, soltando um gemido abafado.

Em meio a minha distração, meus olhos vagaram pela sala, parando

perto da soleira da porta, onde havia uma carta jogada que não estava ali

quando saí para trabalhar. 

Deixei o donuts mordido sobre a bancada de granito e apanhei o

papel. Puxei a aba e meus ombros caíram conforme eu lia o conteúdo. 

Era um aviso do síndico de que o aluguel aumentaria na próxima

semana e era muito dinheiro, dinheiro que eu não tinha. Nervosa, deixei a

carta de lado, voltei a mastigar o donuts, pensando em como iria planejar

uma mudança dentro de apenas sete dias.

O meu celular começou a tocar. Com a mão livre, o puxei do bolso,

pronto para desligá-lo, mas parei quando vi que era Gina.

— Oi — resmunguei.

— Aconteceu alguma coisa? Sua voz tá estranha.

Soltei um suspiro e me repreendi por ter deixado meu mau humor

transparente.

— É, acabei de saber que o aluguel vai aumentar semana que vem.


Bastante dinheiro. — Soltei um riso sem graça. — Mas me conta, por que

ligou?
— Pode ficar comigo por um tempo… — Gina sugeriu.

Mas aquilo não funcionaria, Gina já dividia o apartamento com uma

garota, duvido que ela ficaria feliz com uma terceira presença lá, mesmo

que por alguns dias. Eu não queria ser a pedra no sapato de ninguém.

— Não se preocupa, vou dar um jeito.

Eu havia dado um jeito a minha vida toda.

— Tudo bem, você quem sabe. — Houve uma pausa. — Agora não
me sinto bem para dizer o que iria, é bem superficial.

— Pode falar, Gina. Não tem problema.

— Hum, ok. Sabe o Atticus? Da banda que a gente foi assistir no

bar?

— Sim.

— Estou no apartamento dele nesse momento. A gente transou, ele tá

no banheiro.

Eu ri.

— Meu Deus, você é mesmo terrível. — Lambi um dedo sujo de

chocolate e dei um gole no café. — Foi bom?

— Muito! — Dava para perceber a felicidade através da voz dela. —


Parece que ele vai se mudar e… É isso! Vou perguntar para ele se vai alugar

o lugar. Depois te mando mensagem, beijos.


Então, Gina desligou.

Suspirando, eu terminei de comer e fui para o banheiro, onde tomei

um banho quente e longo. Quando deitei e desbloqueei o celular, havia


algumas mensagens de Gina.

Gina: ele disse que o aluguel é trezentos dólares 

Só isso? Franzi a testa.

Gina: mas tem uma condição, um amigo dele também mora aqui

Gina: vai ter que dividir o lugar, mas tem dois quartos

Gina: se estiver cogitando, me avisa

Um companheiro de apartamento? Pensei por alguns momentos e


pesei os prós e contras. O aluguel estava mais barato do que o daqui, então

poderia poupar ainda mais o meu dinheiro. Os contras, obviamente, eram


falta de privacidade e ter que lidar com um desconhecido. Não poderia fazer

algumas coisas, como andar só de sutiã pela cozinha. Mas era um sacrifício
que eu estava disposta a aceitar, tendo em vista que eu estava sem saída e de
que o amigo de Atticus não fosse um pé no saco.

Digitei uma resposta.

Eu: quando ele sai?

Eu: onde fica o lugar?

O celular bipou alguns segundos depois.


Gina: daqui dois dias

Gina: fica a trinta minutos da cafeteria

Eu: diz para ele que eu tô dentro

Gina: beleza
 

passado

A garota do píer.

Não sabia o que ela exatamente queria. Só sabia que ela gostava de
falar. Falava além da conta. Me contou sobre os cinco gatos que já teve, a

cicatriz no cotovelo que havia arranjado na primeira vez em que tentou

andar de patins sozinha e falava sobre sua avó, por quem dava para ver que

sentia bastante afeição. Devia ser quem tomava conta dela.

Ela praticamente vomitava as palavras. Falava sozinha. Às vezes eu

me perguntava se ela notava minha perplexidade e silêncio. Se isso a


incomodava, ela não demonstrava. Fazia quase três dias que ela não vinha

para cá.
Devia ser porque eu fui babaca com ela da última vez em que

estivemos juntos.

Segurando uma pedra achatada entre os dedos, eu a apertei contra a

palma da mão antes de lançá-la na água. Ela quicou sobre a superfície até

submergir.

Observei o pôr do sol.

Estava silêncio, como costumava ser. Como eu gostava. O silêncio


era bem-vindo, ele fazia com que eu me sentisse relaxado. No entanto, hoje,

senti que parecia errado. Aquilo me incomodou, mas não soube dizer

exatamente por quê. Talvez fosse porque eu não estava com o baixo.

Levantando-me, resolvi caminhar pela cidade. Havia poucas atrações

e pontos turísticos aqui, quase nada. Mas havia o parque de diversões que

iria ser estreado esta noite. Sabia disso porque era tudo o que se falava nos

últimos dias. Numa cidade pequena como essa, qualquer coisa virava

manchete.

O parque estava lotado. Quase dei meia volta, mas então meus olhos

se prenderam em algo. Algo não, alguém.

Observei Blakely perto dos portões. Parecia relutante, não sabia se

entrava ou não. A alguns metros de distância, havia um trio de garotos


arruaceiros a observando. Como se estivessem esperando pelo momento

certo. No entanto, ela continuava lá, alheia e inocente, para não dizer burra.

Atravessei o mar de pessoas, não sabendo por que minhas pernas

estavam indo até ela. Quase como um instinto.

— Não vai entrar? — questionei, quando estava perto o suficiente

para que ela ouvisse a minha voz.

Blakely se virou num solavanco. Seu rosto foi de surpreso para mal-

humorado em um milésimo de segundos ao me fitar.

— Não é da sua conta. — Foi tudo o que respondeu.

Quis rir da expressão em seu rosto. Ela percebeu, porque me lançou

um olhar mais esquisito e acusador ainda. Sabia que ela não havia superado

o que tinha dito para ela no píer da última vez, estava estampado em cada

parte do seu rosto.

— Tem razão — concordei, fazendo uma pausa. — Acho que tem

algodão doce de graça lá dentro.

Os olhos de Blakely iluminaram por um segundo. Então, ela retornou

com a carranca, cruzando os braços sobre o peito e arqueando as

sobrancelhas.

— E daí? Não gosto de algodão doce. É coisa de criança.


— Você tem catorze anos… — Apontei o fato que ela havia me dito

uma vez.

O rubor nas bochechas dela foi satisfatório de ver.

— Sou quase uma mulher adulta.

— Claro — resmunguei.

— Por que você não vai embora? — Ela se virou para mim, os olhos

nublados por um sentimento forte. Raiva.

— Estou entediado. — Dei de ombros. — Além do mais, esse é um

lugar público.

— Você se acha tão descolado, não é? — Blakely rolou os olhos

verdes. — Seu passatempo preferido é ficar sentado por horas num píer.

Sozinho. E, também, se meter em encrencas.

— E? — perguntei, esperando que ela continuasse.

— E que isso não é legal. É bem esquisito, na verdade. — Ela fez

uma pausa, me encarando por um longo momento. Mantive o contato

visual. Blakely desviou as íris para longe, o rubor cor-de-rosa retornando.

— Você é um esquisitão.

O meu riso a surpreendeu tanto que Blakely me encarou como se

uma segunda cabeça tivesse surgido no meu pescoço.


O rosto dela ficou ainda mais vermelho, quase como um tomate.

Blakely baixou a cabeça, deixando com que os cabelos longos e escuros

fizessem uma espécie de cortina entre nós dois. Segurei seu pulso quando

ela fez menção de se distanciar.

Ela ergueu o queixo, me fitando com ressentimento. Os olhos se

arregalaram como se não esperasse a proximidade. Ou que eu fosse segurá-

la.

— Me solta — ela falou, com firmeza, tentando se livrar do meu

aperto.

— Não — devolvi, no mesmo tom de voz, olhando sobre o ombro

apenas para confirmar que os garotos ainda estavam lá. Me voltei para a

garota, o rosto inteiro sério. — Entre no parque.

Enrijecendo com meu tom de voz duro, acrescentei, um pouco mais

suave:

— Por favor.

Blakely ficou bastante relutante por alguns segundos, mas então

cedeu quando a arrastei para dentro. Ao nosso redor, havia diversas

atrações. Havia crianças rindo, casais adolescentes apaixonados e muita

conversa. Aquilo me irritou. Aquela comoção toda, ou felicidade. Sabia que


não tinha nada de errado com aquilo, mas que, na verdade, provavelmente

havia algo de errado em mim e no meu mau humor.

— Você tá odiando, né? — A voz de Blakely me fez encará-la,

também me fez perceber que minha mão ainda estava ao redor de seu pulso,

mas não a soltei, por algum motivo.

Seu rosto inteiro estava com um ar solene de triunfo. Como se

gostasse de ver que algo me incomodava.

— Rá. Você é tão bobo e previsível.

Contive um suspiro no fundo da garganta. Por que ela não podia ficar

quieta por um segundo?

— Faz silêncio, Blakely.

— É Blake — ela corrigiu. — Só Blake. E não me trate como se eu

fosse uma criança irritante.

Queria dizer a ela que eu de fato a achava uma criança irritante, mas

não queria magoá-la outra vez. Não que eu me importasse com seus

sentimentos. Eu não me importava com ela, afinal. Era apenas uma garota

excêntrica de quem eu me despediria daqui algumas semanas, quando o

verão acabasse.

Por que está aqui, então? A questão intrusiva flutuou pela minha

mente, deixando-me ainda mais irritado. Ignorei o pensamento.


Eu era hipócrita.

Blakely bufou, atraindo meu olhar para si. Ela me olhava como

sempre, os olhos nublados por uma névoa de fúria.

— Por que você não me deixa em paz?

Arqueei uma sobrancelha.

— Estou te deixando em paz.

— Não, não está. Me forçou a vir para esse parque e... — Seus olhos

verdes se direcionaram ao seu braço adornado por minha mão. Ela encarou
meus dedos como se fossem sanguessugas presos a sua pele alva. — Tá

agindo esquisito.

Soltei seu pulso.

— Você pode tentar não... — Fiz uma pausa, escolhendo as palavras

com cautela. — Pode tentar ficar um pouco em silêncio?

— Você parece um velho ranzinza. Nem parece que tem dezesseis


anos.

Ignorei o fato de que eu nunca havia dito a minha idade para ela.

— É. Tem razão.

Blakely abriu a boca, mas a fechou. Olhou para os coturnos gastos


com os cadarços desamarrados e depois voltou a me fitar. Repetiu o gesto

de fechar e abrir os lábios. Os pressionou juntos. Olhou para cima, o lado


esquerdo de sua boca tremeu. Era como se estivesse fazendo um enorme
esforço para não falar.

— Diga, Blakely — murmurei, derrotado.

Ela soltou um suspiro, parecendo aliviada.

— O que a gente vai fazer aqui? Só ficar olhando enquanto você


tenta me manter em silêncio porque me acha irritante demais?

— Não. Vem cá.

Não olhei sobre o ombro para me certificar de que ela me seguia,


embora eu devesse ter feito quando me aproximei da montanha russa e

percebi que ela não estava em meu encalço. Voltei pelo caminho. Não me
surpreendi ao ver Blakely em frente à máquina de algodão doce.

Fiquei onde estava, observando-a segurar a massa de açúcar cor-de-

rosa e gigante, parecendo satisfeita.

Um sorriso despontava em seus lábios.

Então ela ergueu os olhos, me viu ali, com o rosto sério e uma das

sobrancelhas arqueadas. Sua expressão fechou. Ela andou até mim, parando
em minha frente. Antes que eu pudesse falar algo, disparou:

— Não diga nada.

— Por quê? Não devia fazer nenhum comentário sobre algodão doce

ser coisa de criança? — Usei suas próprias palavras contra si mesma.


Observei seu rosto corar violentamente.

— É, não devia — Blakely concordou, fazendo uma pausa. —


Vamos na roda gigante?

— Isso vai fazer com que você pare de falar muito?

— Uma frase a cada cinco minutos — ela sugeriu.

— Combinado.
 

Assim que abri a porta do apartamento, deparei-me com Atticus


terminando de fechar a última caixa com suas coisas para a mudança. Tirei

minha jaqueta, jogando-a no sofá.

— Precisa de ajuda? 

Atticus ergueu o rosto em minha direção e negou.

— Terminei agora. — Houve uma pausa. Ele esfregou as mãos, como

se estivesse tirando pó. — Consegui alguém para alugar o meu antigo

quarto. 

Assenti.

Atticus me deixava morar com ele de graça, porque o apartamento

era grande e éramos melhores amigos. Só que com a sua saída, ele havia
decidido que colocaria alguém aqui, em seu lugar. Eu não podia questioná-

lo, visto que tudo isso aqui pertencia a ele.

Além do mais, se eu me organizasse nos próximos meses,

conseguiria ir para um lugar próprio. Mas estando aqui, eu poupava

bastante dinheiro e se o custo era ter que conviver com um estranho

provisoriamente, eu não me importava.

Atticus foi para a cozinha, abriu a geladeira e pegou duas garrafas de

cerveja. Daqui, podia observar sua movimentação por conta da ilha que

dividia a cozinha da sala.

— Pega.

Meu amigo me estendeu uma das garrafas. Dei um gole, sentando-me

no sofá.

— Acho que a garota aparece aqui daqui uns vinte minutos.

A nova informação me fez arquear a sobrancelha esquerda. Olhei

para Atticus de esguelha, parecia muito despreocupado.

— Garota?

— É, garota. — Ele me encarou de volta, com olhar repreendedor. —


Não vai assustá-la, espero que mantenha o pau nas calças.

Eu o ignorei.

— Vou tomar banho. 


Levantando-me do sofá, deixei a garrafa de cerveja quase intocada

sobre a mesinha central. Ultimamente, nem mesmo o álcool havia sido

capaz de me entreter. 

Deixei uma trilha das minhas roupas pelo chão do banheiro, até

entrar no box. Conforme a água gelada caía do chuveiro, espalhando-se por

meu cabelo e minhas costas, minha mente ficou silenciosa por alguns

momentos. 

Após desligar o chuveiro, lembrei que precisava perguntar a Atticus

se o show da banda amanhã tinha sofrido reajuste no horário.

Com uma toalha enrolada ao redor da cintura e os pés descalços, eu

saí do banheiro, deixando pegadas de água atrás de mim.

No entanto, parei de me mover assim que adentrei na sala.

Observei enquanto seus olhos verdes se moviam pela sala, parando

nas portas que davam para a varanda. Blakely trocou o peso de uma perna

para a outra, tirando uma mecha de cabelo do rosto. Como se sentisse

minha presença, ela se virou em minha direção. O choque atravessou sua

expressão. Ela ficou mais pálida que o habitual, parecia que tinha visto um

fantasma.

— Ah, meu Deus — Blakely resmungou, como se estivesse enojada. 

— O que você está fazendo aqui? — questionei, friamente.


Neutralizei meu rosto, por mais que eu estivesse fervilhando por

debaixo da pele.

— Eu vou morar aqui. — Blakely fez uma pausa, engolindo em seco.

— Não me diga que você é o amigo com quem Atticus dividia o

apartamento…

— Você não vai morar aqui. — Usei um tom de voz baixo e

ameaçador.

Blakely, no entanto, não recuou. Com o tempo, ela havia aprendido a


criar armaduras, assim como eu. Ela ergueu o queixo, cruzando os braços

em frente ao peito.

— Não é como se o apartamento fosse seu.

Fiquei em silêncio, sentindo todos os músculos do meu corpo ficarem

rígidos de tensão porque ela tinha a porra de um ponto. O apartamento não


era meu.

 Blakely finalmente pareceu se dar conta de que eu estava apenas de


toalha. Seus olhos vagaram por meu torso completamente nu antes de ela se

virar rapidamente, desviando o olhar e ficando de costas para mim.

— Que primeira impressão boa — Atticus abriu a porta, entrando na

sala. — Precisei atender uma ligação, não imaginei que vocês fossem se

encontrar nesse meio segundo. 


Diante do silêncio, ele continuou:

— Essa é a Blake, não sei se você lembra dela, ela estava naquele bar
que tocamos da última vez. — Fez uma pausa. — Acho que a gente pode

conversar melhor depois que o Ian por uma cueca.

Atticus me lançou um olhar sério, como se dissesse, “vista-se agora”.


No entanto, não me movi.

— Então, você gostou? — Meu amigo se voltou para Blakely,

ignorando minha presença ali.

Ela me olhou sobre o ombro antes de encará-lo e eles fingirem que eu

não estava ali.

— Sim, adorei. Então, posso trazer minhas coisas para cá no final de

semana?

— Claro. Vou deixar as chaves com você…

Não ouvi o restante da conversa, apenas me virei e fui para meu

quarto, coloquei as primeiras peças de roupa que encontrei em meu armário

e depois saí pela porta da frente, ignorando a presença de Atticus e Blakely

na sala. Se eu ficasse mais um momento no apartamento, iria enlouquecer,


então subi na minha moto e dirigi até um dos pub’s que eu gostava de

frequentar e ficava perto de casa.


Meu celular começou a apitar loucamente. Dei uma olhada no visor,

conforme adentrava no estabelecimento.

Atticus: que porra foi essa?

Atticus: pfv não repita isso

Atticus: ela vai te achar um tarado

Minha vontade era de dizer a Atticus que eu não poderia me importar

menos com o que Blakely pensaria de mim.

Olhei de relance para o barman enquanto tomava um assento. Eu

estava cercado de pessoas, mas me sentia completamente sozinho.

— Vodca com tônico, por favor — falei, a voz fria.

O barman acenou com a cabeça e começou a trabalhar. Tomei um

gole da minha bebida e fechei os olhos, tentando me concentrar em tudo

menos no fato de que eu teria que conviver por um tempo com a garota que

havia bagunçado meu mundo há muito tempo.


 

antes

O meu coração palpitava num ritmo que eu não conhecia. As palmas

das minhas mãos suavam quando conferi o meu visual no espelho pela
última vez. 

Eu não tinha muitas roupas que fossem novas, mas aquele vestido era

uma das minhas peças boas que eu havia trazido para Oak Springs.

Esperava que Dylan, um garoto que eu tinha conhecido na orla da praia e o


meu encontro, gostasse. 

Por fim, espirrei o perfume que havia encontrado entre as coisas de


minha mãe no pescoço, onde geralmente diziam ser um ponto estratégico.

Como o habitual, ela não estava em casa.


Então, ouvi as batidas na porta da frente. 

Quando virei a maçaneta, meus olhos encontraram os de Dylan. Eram


castanhos, me lembravam a chocolate derretido. Ele também tinha covinhas

adoráveis.

Covinhas que apareceram quando ele sorriu para mim.

— Blake, você tá linda.

Senti o rosto corar.

— Obrigada. 

— A minha mãe vai levar a gente. — Ele olhou para trás, para o

carro estacionado no meio-fio.

Senti o coração bater mais rápido.

— Legal — murmurei.

Na verdade, não era nada legal. Eu não esperava conhecer a mãe de

Dylan em nosso primeiro encontro, mas não tive escolha a não ser segui-lo

até a porta traseira, já que aquela era a nossa carona.

Para minha sorte, a mãe de Dylan não falava muito. Nós trocamos

algumas palavras até que ela nos deixasse em frente à uma lanchonete bem

frequentada pelos outros adolescentes de Oak Springs. Sempre quis vir

aqui, mas parecia chique demais para mim.


— É meu lugar favorito da cidade — Dylan disse, quebrando o

silêncio.

— Parece bom.

— E é. Tem que experimentar as panquecas de chocolate.

Ele apanhou minha mão timidamente. A palma dele estava suada,

assim como a minha. Foi embaraçoso. Dylan começou a nos guiar pelo

estacionamento até a entrada do lugar.

E então, aconteceu.

Eu o vi.

Ian estava dentro de um carro, estacionado a alguns metros de

distância. Seu braço direito pendia na janela aberta, o cabelo caía sobre sua
testa e ele sustentava um cigarro entre o dedo médio e o indicador.

E o par de olhos azuis me seguia.

Ian tragou. Soprou a fumaça, que espiralou em frente ao seu rosto.

Não esboçou nenhuma reação. Estava sério como o habitual.

Desviei o olhar. Fingi que ele não significava nada, até porque era o

que ele havia feito comigo depois do parque de diversões. Ele não ia mais

até o píer. Eu estava contente conhecendo Dylan nos últimos dias. Ele não
podia estragar isso.
Entramos no estabelecimento, Dylan escolheu uma mesa perto das

janelas que davam para o estacionamento.

— Hum, não podemos nos sentar em outro lugar? — questionei-o.

— Por quê? Os assentos das janelas são os melhores.

— Claro — resmunguei, quando tomamos nossos lugares.

Dylan abriu o cardápio e eu fiz o mesmo, fingindo estar concentrada

lendo as opções quando na verdade estava tentando não ter um colapso.

Provavelmente daqui Ian tinha uma visão privilegiada de nós dois e eu não

queria que meu primeiro encontro tivesse um espectador como ele.

A garçonete chegou.

Dylan me lançou um olhar e sorriu, depois se voltou para a atendente.

— Vou querer panquecas de chocolate com calda extra e um

milkshake de baunilha.

— É, eu também — balbuciei, quando percebi que não fazia a

mínima ideia do que pedir.

A mulher anotou os pedidos, então se retirou.

— Você vai embora quando? — A pergunta de Dylan fez com que eu

focasse o olhar em seu rosto. Ele parecia sério.

— Daqui algumas semanas.

— Pretende voltar?
— Hum, não sei. Provavelmente.

— Bom, ficarei feliz se voltar.

Não tive uma resposta para o que Dylan disse. Um silêncio

constrangedor pairou sobre a mesa.

— Obrigada por me convidar — falei, sendo honesta. — Eu nunca…

O sino tilintou, o que fez com que meu olhar se deslocasse em

direção à porta. Ian cruzou o estabelecimento e eu contive um gemido de

frustração no fundo da garganta.

Sério? Não tinha nenhum outro lugar para onde ele pudesse ir?

Dylan me encarava meio confuso, meio compreensivo. Esperando

que eu terminasse a frase.

— Desculpa. Me dá um segundo, preciso ir no banheiro.

Levantei, segurando minha bolsa tiracolo. Andei em direção a Ian,

que estava sentado numa das banquetas que ficavam próximas ao balcão. 

Ele estava inclinado sobre ele, prestando atenção numa atendente

loira com peitos enormes.

Bati a mão em seu ombro, não me importando se tinha colocado

força demais.

Lentamente, seu rosto girou em minha direção.


Ian arqueou uma das sobrancelhas. Minhas orelhas arderam. Senti o

pescoço aquecer também, assim como a região do busto. Isso acontecia

quando eu sentia raiva.

— Não dá para ir para outro lugar? 

Ele me olhou de cima abaixo sem expressão e se virou para frente

depois de proferir um:

— Não.

Cutuquei seu ombro outra vez. Pareceu um soco, na verdade.

— Escuta só, Ian… — comecei, determinada, o ódio motivando-

me. — Você não...

Então, ele me encarou, fazendo a coragem se esvair. Ian se

aproximou, invadindo completamente o meu espaço pessoal e me olhando

de cima. Se ele fosse alguns centímetros mais para frente, nossos narizes

poderiam roçar um no outro. Ele estava tão próximo que eu podia ver as
estrias em suas íris, além de algumas manchas douradas em meio ao azul,

perto das pupilas.

— Estou escutando — ele disse, num tom calmo e baixo. Sua voz

parecia veludo.

Meu coração começou a galopar violentamente contra as minhas

costelas.
— Sim, Blakely? — Ian, me incentivou a falar outra vez.

Mas as palavras haviam sido roubadas de minha boca. Eu não sabia o

que queria dizer. Havia esquecido tudo, mas então me lembrei porque

estava ali e me afastei, o peito subindo e descendo violentamente.

Sentindo-me derrotada, eu só o lancei um olhar mortal antes de me

virar e dar meia volta.

Assim que desabei no banco acolchoado, Dylan me lançou um olhar

confuso e preocupado.

— Tá tudo bem?

— Sim. O banheiro estava meio cheio.

Abri um sorriso mecânico.

— Tudo bem. — Dylan tirou o cabelo do rosto. — Há algo que eu

queria te dar… — Ele tirou um colar fino do bolso com um pingente de


estrela. — Eu vi outro dia numa loja, achei que combinaria com você.

Ele sorriu. Um sorriso doce.

— Sério? Que lindo — murmurei.

A garçonete chegou com nossos pedidos, nos interrompendo. 

— Aqui estão as panquecas e os milkshakes… — Ela os colocou na


mesa, então acrescentou um terceiro prato com waffles em formato de

coração com três bolas de sorvete.


— Nós não pedimos esse — Dylan disse, o cenho franzido.

— Ah, claro. — A garçonete deu um sorriso constrangido. — Um

rapaz no balcão mandou para que fosse entregue para a senhorita. Ele já
pagou.

A mulher se tirou, então um silêncio constrangedor caiu sobre nós.

Meu queixo caiu.

Ele não podia ter feito aquilo.

— Que estranho — Dylan murmurou, rindo e coçando o pescoço. —


Eu devia ter pensado nisso não um cara aleatório que a viu e a achou bonita.

Respirei finalmente. Dylan levou para o lado simples. Sem perguntas.

— Estranho mesmo — concordei.

Coloquei uma garfada de panquecas na boca para me ocupar e tentar


aliviar um pouco da tensão. Mal tive tempo de dar a próxima mastigada,

porque a garçonete voltou. O desconforto era evidente em seu rosto.

— Desculpe interromper, mas só estou fazendo o meu trabalho. Estes


também são cortesias que enviaram.

Então, ela colocou sobre o tampo da mesa cinco cupcakes variados e

uma fatia de uma torta de morango que eu tinha que admitir que parecia
deliciosa. Fiquei em choque. Olhei para Dylan, que parecia visivelmente

desconfortável.
— Quem está enviando isso para cá? — questionou à atendente.

Droga.

— É o rapaz no balcão. De jaqueta de couro.

Dylan olhou para trás. Para Ian.

Quando seu rosto se voltou para mim, ele engoliu em seco, ficando

pálido.

— Você o conhece? O filho do prefeito?

— Não — menti.

— Bom, de qualquer forma, preciso ir. Desculpe-me, Blake. Nos

vemos outra hora.

Dylan apanhou o casaco que havia tirado em algum ponto do nosso


encontro arruinado e se levantou, saindo pela porta feito um furacão.

Senti o ódio inundar cada célula do meu corpo. Fechei o punho, com
vontade de socar algo. Talvez o rosto do babaca que havia estragado meu

dia. Levantei-me, sem pensar. Pisei duro até Ian, que parecia muito ocupado
enquanto flertava com a garçonete.

— Você é mesmo um idiota — falei, interrompendo-os.

— Blakely... Estou ocupado. — Ian não se dignou a me olhar.

A garçonete dos peitos enormes me fitou com curiosidade.


— É sua irmã mais nova?

Senti meu rosto arder, me voltei para Ian.

— Vai se foder.

As palavras saíram por minha garganta com naturalidade. Eu não


costumava falar palavrões, então me surpreendi. Ian arqueou uma

sobrancelha.

— Está atrapalhando, Blakely.

— Foda-se.

— Nossa, que boca suja. — Ian me encarou com um meio sorriso nos

lábios.

Um sorrisinho torto e presunçoso.

— Você é um filho da...

Estava prestes a acrescentar o próximo palavrão quando a garçonete

que havia atendido eu e a Dylan se aproximou.

— Com licença, posso retirar a mesa? Aqui está a conta.

— Claro — resmunguei, atônita.

Segurei o pedaço de papel, observando-a se distanciar. Então analisei

o valor dos itens, que somavam trinta dólares. Eu não tinha trinta dólares.
Como Dylan havia me convidado, achei que ele fosse pagar. Só que ele

havia fugido antes.


— Qual o problema, anjo? — Ian perguntou, com toda aquela calma

e indiferença que me irritava.

— Não me chama assim!

— Por que não, anjo?

Senti que ia ter um colapso por conta da raiva. Voltei para a mesa. A

garçonete ainda não havia retirado o que havia restado dos pedidos. Enfiei
um dos cupcakes na boca. Então, outro. Sujei os lábios com glacê, mas não

me importei.

Continuei mastigando enquanto pensava em uma estratégia.

— Nossa, você não come há quantos dias? — A voz de Ian me fez

dar um sobressalto no banco.

Atrapalhada, peguei alguns guardanapos e limpei os cantos da boca,


deixando-os com rastros de chocolate.

— Me deixe em paz, Ian — murmurei.

A raiva tinha passado, havia restado apenas a exaustão. Senti o olhar


de Ian sobre mim e ergui o rosto em sua direção. Em sua expressão, não

havia nenhum tipo de emoção.

— Já não se cansou de me humilhar?

Comecei a sentir os olhos se encherem d’água. Antes que desabasse


em sua frente, levantei-me e corri até o banheiro mais próximo. Fiquei
alguns momentos trancada lá. Até que começaram a bater na porta e eu tive
que sair.

Para minha sorte, Ian não estava mais na mesa. Agora, ela era
ocupada por um casal. Ele não parecia estar mais na lanchonete. A

garçonete parou de limpar uma mesa quando me avistou e veio em minha


direção.

Ela ia me cobrar.

Mas eu não tinha dinheiro, então seria presa?

Meu coração acelerou diante da possibilidade. Engoli em seco


quando ela finalmente me alcançou.

Então, sorriu.

— A conta já foi paga pelo seu amigo. Ele também pediu para que

embalasse o resto dos doces para que a senhorita levasse embora. — Pegou
duas sacolas sobre o balcão ao nosso lado que eu não havia reparado e as

estendeu em minha direção. Segurei por reflexo. — Tenha um ótimo dia.

A garçonete se distanciou e eu saí do restaurante, sentindo as

bochechas arderem.

Um sentimento esquisito me inundou. Alívio, talvez?

Parei na soleira do estabelecimento, vendo Ian estacionado no meio

fio com aquele carro caro. Seus olhos me encontraram, como sempre.
Mas, o dei as costas.

Por mais que ele tivesse pago minha conta da lanchonete, ainda havia
arruinado meu encontro, então só tinha compensado um pouco por sua

babaquice. Eu não devia agradecê-lo, muito menos diminuir meu desprezo.

— Entre no carro, Blakely — Ian gritou atrás de mim, quando passei


por ele.

O ignorei, apertando a alça da sacola em meus dedos. Ouvi o motor


do automóvel ligar. Olhei sobre o ombro, Ian começou a me seguir

lentamente. O carro se movia conforme o ritmo dos meus passos.

— Para com isso! —falei, parando e encarando-o através da janela


aberta.

— Só paro se entrar no carro.

— Por que quer que eu entre no seu carro idiota?

— Para ter certeza de que você vai chegar na sua casa inteira. — Seu
rosto estava sério, assim como seu tom de voz. — Se não entrar, vou te
acompanhar até lá, de qualquer forma.

Meu coração bateu mais forte.

— Por que se importa?

Um músculo na mandíbula de Ian se tensionou. Houve um momento


de silêncio antes que ele dissesse:
— Só entra na porcaria do carro, Blakely.

Com aquela frase, continuei traçando meu caminho sozinha em


direção à minha casa. Demorou cerca de trinta minutos para chegar. O céu
já havia escurecido. Ian, como o prometido, tinha vindo em meu encalço,

sua presença constante me dando nos nervos.

— Pode ir embora agora — falei, virando-me para encará-lo, sem


fôlego.

Ian permaneceu dentro do carro, inexpressivo. Seus olhos se fixaram


no meu busto.

— Onde arranjou o colar? 

Coloquei a mão sobre ele instintivamente, como se quisesse protegê-


lo.

— Não é da sua conta.

Ian saiu do carro, bateu a porta com força e avançou em minha


direção. Me senti intimidada, mas não recuei. Ele me olhou de cima, os
olhos azuis pareciam dois blocos de gelo.

— É, acredite. — Seu hálito quente soprou na ponte do meu nariz. —

Não vai ficar com isso.

Franzi o cenho.
Antes que pudesse dizer algo, Ian enrolou os dedos ao redor do colar
fino e puxou com força. O “crac” oco da corrente se partindo pairou no ar.

O pingente voou, rolando no chão, perto de nossos sapatos.

Acertei um soco em seu rosto. Foi quase automático.

Ian esboçou surpresa por um ou dois segundos antes que aquela


frieza irredutível voltasse a esconder suas emoções, como um escudo de
aço. Minha mão doía.

— Eu te odeio! — gritei, empurrando seu peitoral. Ian mal se moveu


um único centímetro. — Queria nunca ter conhecido você.

Num movimento abrupto, Ian colocou a mão na parte de trás de meu


pescoço e me puxou em sua direção.

Nossos lábios colidiram.

Fiquei estática, os olhos abertos. O choque correu pelo meu corpo.


Então, minhas pálpebras cederam. 

Ele me beijou.

Eu o beijei.

Suas mãos moldaram cada lado do meu rosto e eu torci um dos


punhos em sua camiseta, tentando trazê-lo mais para perto. O beijo era

rápido, urgente e necessitado. Meu coração batia de um jeito que nunca


havia batido antes, num ritmo frenético.
Os lábios de Ian funcionavam como veneno em meu sistema,

deixando-me irracional, para não dizer burra. Não conseguia ter forças para
afastá-lo. Me forcei a lembrar do que ele havia feito.

Então, o empurrei, quebrando o beijo bruscamente.

— O que pensa que está fazendo? — murmurei, o peito subindo e


descendo rapidamente.

Os olhos de Ian estavam diferentes. Estavam quentes. 

E, no próximo segundo, tão frios quanto o inverno mais rigoroso.

— Nada — respondeu. — Isso não foi nada, Blakely.

Meu coração torceu no peito. 

—  Que ótimo, porque você beija mal. — Entrei no modo de defesa.

Com essas últimas palavras, eu o dei as costas e entrei em casa feito

um furacão, batendo a porta com força. Corri para o quarto. Não


conseguindo ignorar a inquietude dentro de mim, fui atrás de Dylan.

Na maioria das vezes, ele ficava na orla da praia, com seus amigos,
quando os encontrei, hesitei antes de me aproximar. Ele ainda não tinha me
visto. Dylan ria com dois garotos, a voz dele me atingiu, mesmo de onde eu
estava:

— Entreguei o colar para ela, achei que ia funcionar, mas parece que

o babaca do Ian já tá transando com a garota. Eu não me importaria em


compartilhar, mas vocês sabem qual é a fama do cara, né? Ele é sombrio.

Preferi não arriscar.

Os amigos dele riram outra vez.

— Você tem quantos desses colares, cara? — Um dos garotos


perguntou.

— Comprei um monte deles no centro — Dylan admitiu. — É


bijuteria barata…

Não fiquei para ouvir o resto, apenas voltei para casa, sentindo-me
mais idiota do que nunca.
 

Minhas mãos tremiam enquanto eu observava a porta da frente.


Havia se passado dois dias desde o incidente com Ian. Naquele momento,

eu quis sair correndo e me esconder dele para sempre, mas o ódio em seus
olhos me assustou. E o medo me fez sentir uma garota insegura e patética.

Me fez sentir como se eu tivesse dez anos outra vez.

Então, resolvi entrar em seu jogo. Eu não o daria a vitória. Além do

mais, eu só precisaria ficar ali por um tempo, até que as coisas estivessem
estabilizadas e eu achasse um lugar melhor para mim que não custasse um

rim.

Com o coração batendo fortemente contra as costelas, eu quase

deixei com que o chaveiro caísse no chão ao tentar encaixar a chave na


fechadura. Respirei fundo e finalmente abri a porta.

O interior do apartamento estava vazio, nenhum sinal de vida.

Limpei a garganta.

— Olá?

Silêncio.

Aparentemente, Ian não estava, o que me fez suspirar de alívio.

Jesus, eu estava suando pateticamente. Havia conseguido um rapaz para


trazer as caixas com as minhas coisas para cá numa van. Mandei uma

mensagem para ele, dizendo que podia subir. Foram cem dólares, mas

valeria a pena para não ter que fazer esforço físico.

Meu celular bipou. O tirei do bolso.

Gina: e aí? começou a mudança?

Ergui o rosto quando ouvi os passos de Lowan, o cara das caixas. Ele

surgiu na porta, segurando uma delas.

— Onde coloco?

— Pode deixar por aí. — Sinalizei para o espaço livre perto da porta.

Me voltei para o celular, digitei uma mensagem.

Eu: sim, já tô aqui

Gina: se precisar de ajuda, me chama :)


Eu: não tem muita caixa, não é necessário

Eu: mas obrigada

Depois de algum tempo, todas as caixas estavam empilhadas dentro

do apartamento. Eu não tinha muita coisa, eram mais minhas roupas.

Comecei a abri-las e levá-las até o meu quarto, última porta do corredor. O

cômodo já tinha tudo, armário, cama… Era perfeito.

Quando terminei de me adaptar no meu quarto novo, estava cansada,

mas ainda precisava fazer alguma coisa com as caixas vazias. Levei todas

para fora do prédio, deixando-as numa caçamba de lixo. Voltei para dentro,

havia suor acumulado no meu pescoço e meus cabelos estavam grudando.

Nojento. Peguei minha toalha e fui para o banheiro.

Depois de me despir, abri o chuveiro. Lavei os cabelos e apreciei a

água quente. Estava me secando antes de ir para o quarto quando ouvi a

porta da frente abrir.

Prendi a respiração. Por um momento, havia me esquecido de que eu

tinha um colega de apartamento.

E que ele era ninguém menos que Ian Sweddish.

Apoiei a testa contra a porta e apertei os lábios, contendo um gemido

de frustração.

Ouvi passos, som de voz feminina abafada e me aprumei, em alerta.


 Ah, não.

Ele não podia usar o apartamento como abatedouro, ou será que

podia, já que morava aqui? Bom, mas era questão de senso não transar com

gente perto, só que eu duvidava que Ian ligasse para essas éticas, ainda mais

porque era comigo que ele estava morando agora.

Com pressa, abri a porta e corri até meu quarto, trancando a porta

atrás de mim e me apoiando contra ela.

Sã e salva.

Enquanto vestia meu pijama, ouvia os gemidos da garota ecoarem lá

da sala. Só podia ser brincadeira. Travei as mandíbulas e me joguei na

cama, pegando os fones de ouvido anti ruído e colocando uma playlist

aleatória só para não ter que ouvir o que estava acontecendo lá fora.

Cerca de meia hora depois, tirei um dos fones da orelha. O silêncio


reinava agora. Meu estômago estava roncando, então decidi pedir comida.

Enviei algumas mensagens para Gina enquanto meu jantar não chegava. 

Então, chegou.

Levantando-me, abri a porta. Esperei por algo. Algum murmúrio,

gemido ou sinal de vida. Respirando fundo, reuni coragem para atravessar o

corredor. No entanto, meus pés fincaram no chão quando alcancei a sala.

Meu corpo inteiro ficou estático.


Ian estava sentado no sofá.

E ajoelhada entre suas pernas, havia uma ruiva.

Isso era tudo que eu podia ver, seu longo cabelo ruivo e sua cabeça

indo e vindo conforme ela o chupava. Os olhos de Ian encontraram os

meus. Seu peitoral estava nu. Havia luxúria em seu rosto, mesmo que
estivesse sério. Um brilho de divertimento se apossou de seu olhar.

Me recompus, como se não estivesse constrangida.

Notei que havia expectativa em Ian. Provavelmente ele esperava que

eu gritasse com ele, ou decidisse me mudar, mas tudo que eu fiz foi passar

por eles e sair pela porta, como se não tivesse visto nada. No elevador, eu
comecei a sentir o rubor subir por meu pescoço.

Quando voltei para o apartamento, estava com meu jantar em mãos,

num saco pardo. Abri a porta, preparando-me para outra visão pornográfica,

mas, para minha sorte, Ian e a garota não estavam mais no sofá. No entanto,

eu podia escutá-los no quarto.

— Ai, meu Deus! — a voz feminina exclamou.

Patético. Peguei um prato no armário e comecei a pôr a comida no


prato.

— Jesus Cristo, Ian — as exclamações continuaram ecoando pelo

corredor, me atingindo e me dando nos nervos.


Deus devia estar ultrajado neste momento, pensei. Comecei a comer,

desejando mergulhar minha cabeça na privada para não ter que ouví-los.

Depois de alguns minutos, o barulho cessou. Finalmente. A ruiva apareceu

no corredor um momento depois, o vestido amassado e o batom borrado no

rosto. Seus olhos se arregalaram ao me ver sentada na bancada, mastigando

um pedaço de tomate.

A surpresa em seu rosto foi substituída por desconfiança.

— Você é a namorada? — questionou, me analisando.

— Não — respondi de boca cheia. — Eca.

Ela só me lançou um último olhar antes de sair pela porta, fechando-a

atrás de si. Dei um gole no suco de laranja no mesmo momento em que Ian

apareceu. Ele estava vestindo só uma calça de moletom, os pés descalços

contra o assoalho.

Seu abdômen parecia ser uma escultura de mármore, o corpo de Ian

era semelhante a uma daquelas obras de arte gregas, o que me deixou mais

irritada conforme ele andava até mim. Seu olhar se encontrou com o meu

por alguns segundos antes de eu desviar para longe.

Seus lábios estavam inchados, o cabelo despontava para todos os

lados. Sua imagem gritava "acabei de fazer sexo".


Ian passou por mim e eu enrijeci, sentindo sua presença atrás de mim.

Ouvi enquanto ele enchia um copo de água.

Olhei sobre o ombro. Analisei toda a tinta preta que ocupava toda a

pele à mostra. Ian havia se tornado uma tela preenchida.

Meus olhos desceram instantaneamente, parando nas covinhas no

final das costas. Então rolaram para cima outra vez, parando em uma

tatuagem que havia despertado minha curiosidade. Era um par de olhos

rubros que pareciam me encarar de volta, um deles sangrava.

— Está gostando da visão? — Sua voz preencheu o ambiente.

Me virei para frente depressa, o rosto pegando fogo.

— Eu gostaria de furar meus olhos — respondi, secamente.

Ouvi seu riso baixo e grave atrás de mim. Um arrepio atravessou meu

corpo violentamente.

— Talvez se você repetir isso toda manhã em frente a um espelho,

acredite em suas próprias palavras.

O ignorei, levantando-me e pegando o prato e o copo vazios para


colocá-los na pia. Contornei o corpo grande de Ian, mas esbarrei

propositalmente em seu ombro ao fazer isso. Comecei a esfregar a


porcelana com uma esponja, sentindo seu olhar sobre mim. 

Minha mão quase tremeu enquanto ensaboava o copo.


— Então vai ser assim? — questionei, quebrando o silêncio. — Você
vai trazer garotas para cá e fazer com que eu veja você enfiando o pau

nelas?

Houve um momento de silêncio antes de Ian responder.

— Blakely — ele começou calmamente, o tom de voz frio. — Eu não

poderia me importar menos com você. Se está incomodada, se mude daqui. 

— Você é um mimado egoísta — falei, não conseguindo conter a


raiva e as palavras que escaparam por meus lábios.

Bati o copo limpo com força não intencional contra a bancada da pia.
Comecei a secar minhas mãos. Quando terminei, fiz menção de passar por

Ian, mas ele segurou meu pulso. Seu toque era firme. Travei meus olhos nos
seus, encontrando o gelo intenso.

Engoli em seco.

Ian se curvou até que seus lábios estivessem roçando em um de meus

ouvidos. Um tremor atravessou meu corpo, disparando por minha coluna


até os dedos dos pés. Os curvei. Entrei em estado de alerta.

— Enquanto você morar aqui, farei da sua vida um inferno. — Seu


hálito quente bateu contra a lateral da minha bochecha.

Ian se afastou, a promessa em cada palavra dita estampada no seu

rosto. Observei ele se distanciar, as costas largas no meu campo de visão.


Então eu soube.

Ele não me perdoaria nunca. Ele nunca esqueceria.

Ian iria me destruir.

 
 

antes

Sabia que a essa altura do campeonato, Blakely devia me odiar como

nunca havia odiado ninguém antes, mas era melhor dessa forma.

Eu não merecia o seu amor.

Então me contentaria com o seu desprezo.

Meu olhar vagou pela sala vazia de minha casa, até o armário que

ficava no canto do cômodo, intocado. Através do painel de vidro, dava para


ter um vislumbre do que havia ali.

Garrafas de vinho, uísque e todo tipo de bebida alcoólica imaginável.


Meu pai tinha uma afeição pela coleção, tanto que não deixava ninguém
tocá-la. Nem mesmo ele ousava mexer no armário, só em ocasiões que

considerava especiais, o que era raro.

Ele ficaria furioso se alguém pegasse um de seus uísques caros.

E foi o que eu fiz. Abri o armário idiota, peguei uma das garrafas e

subi para meu quarto.   Tomei o primeiro gole direto do gargalo.


Alguns  flashbacks  estalaram na minha cabeça quase que de maneira

automática.

Blakely me olhando com mágoa. Blakely com os olhos marejados.

Blakely com raiva. 

Então, me lembrei. Ela partiria em breve, daqui a dois dias.

E eu iria para casa semana que vem, tomaríamos rumos diferentes.

Provavelmente nunca nos veríamos de novo. Não pelo menos até


retornarmos para Oak Springs, se é que voltaríamos um dia. Não havia nada

aqui para mim e eu esperava não ser mais obrigado a visitar o meu pai.

Ouvi a porta da frente abrir. Passos pesados pelo carpete. Passos de

Hawk, porque sua esposa andava de um jeito diferente.

— Ian! — ouvi meu pai gritar, lá embaixo. — Você mexeu nas

garrafas?

Não respondi. Esperei que ele viesse até mim. A porta do meu quarto

foi aberta de um jeito abrupto. Meu pai entrou no meu campo de visão.
Estava usando um paletó preto, além de calças e sapatos sociais. Seu olhar

alternou entre meu rosto e a garrafa na minha mão.

Provavelmente notando o escárnio no meu rosto, ele avançou sobre

mim, acertando um gancho de direita no meu maxilar. Deixei a garrafa cair

no chão com o impacto, meu osso estalou e eu senti o gosto metálico e

familiar invadir meu paladar. O gosto de sangue me enjoava, então cuspi no

chão, observando o líquido âmbar formar uma poça aos meus pés, junto aos

estilhaços da garrafa de vidro.

— Não mexa nas minhas coisas, seu moleque insolente.

Não me dignei a respondê-lo.

A campainha tocou. Ele me encarou por um momento antes de se

aprumar e se retirou deixando-me no meio da bagunça.

— Olá, senhor. Ian está? Sou uma amiga.

Ouvir a voz de Blakely fez com que todo meu corpo retesasse. O que

ela pensava que estava fazendo ali? Com o corpo inteiro tensionado, cravei

as unhas na palma da mão, esperando que ela fosse embora.

Eu já respirava com dificuldade por conta da última briga com meu

pai.

Podia sentir o sangue escorrer do meu nariz, para meu lábio superior.
Levantei, espiando pela janela de meu quarto. A voz de meu pai

ecoou da varanda, me alcançando no segundo andar:

— Ele saiu.

Seu tom de voz era seco. Daqui, podia ver sua expressão dura.

Blakely pareceu se encolher. Colocou as mãos dentro dos bolsos do

sobretudo que estava usando e cutucou a grama com a ponta daquele

coturno velho que ela parecia amar.

— O senhor sabe onde ele poderia estar? — Sua voz era tímida e
baixa.

— Não.

— Eu o procurei pela cidade toda e...

— Vá embora da minha casa — Hawk a interrompeu. 

Blakely pareceu ultrajada com as palavras do meu pai. Daqui, pude

ver a forma como seu corpo tensionou. Ela ficou em choque, não conseguiu

se mover.

Então, meu pai cometeu seu primeiro erro.

Ele segurou o pulso fino de Blakely quando ela não esboçou reação e

começou a arrastá-la pelo gramado, até a calçada.

Seu segundo erro. Ele a empurrou, Blakely tropeçou no meio-fio,

caindo de joelhos.
Observei tudo com o coração batendo nos tímpanos. Naquela hora,

eu não sentia mais a dor da surra que havia tomado há alguns momentos

atrás.

Outro tipo de sentimento me possuía. Uma fúria letal.

Saí do meu quarto, descendo os degraus de dois em dois. Assim que


alcancei o hall, encontrei meu pai na varanda, com a correspondência nova

nas mãos, como se fosse uma tarde fatídica.

Ele parou quando me viu. Já eu, continuei avançando até que seu

pescoço estivesse sendo esmagado por minha mão.

Eu nunca tinha revidado antes. Por mais que ele abrisse todas aquelas
feridas em meu corpo, eu conseguia controlar o ódio. Me certifiquei de

enterrá-lo em um lugar profundo e sombrio que ninguém conseguisse

alcançar.

Só que agora eu estava deixando com que meu pai tivesse um

vislumbre do que ele estava alimentando.

— Ian — Hawk chiou, os olhos arregalados e o rosto começando a

ficar vermelho.

Suas mãos tentaram se livrar de meu aperto pateticamente.

Meu pai era um homem forte. Ele era alto, robusto. Só que com o

passar do tempo, tornei-me tão alto quanto ele. E a prática de MMA durante
anos havia me deixado preparado para qualquer situação.

Como essa.

— Ian! — a voz de Blakely atingiu meus ouvidos, mas não a

encarei. 

Eu não podia encará-la.

— Ian, solte-o. Você irá matá-lo.

Os movimentos de meu pai tentando me fazer soltá-lo estavam

ficando cada vez mais lentos. Talvez Blakely estivesse certa. Eu iria matá-

lo. Mas aquilo não me assustou no momento.

— Ian, você não é como ele... — Senti os dedos quentes de Blakely

se enrolarem em meu antebraço. O toque fez com que eu virasse o rosto

para encará-la. — Solte-o.

Seus olhos verdes estavam assustados, e, seus lábios, entreabertos. O

cabelo estava selvagem ao redor do rosto e havia aquela súplica silenciosa

em seu olhar.

— Por favor.

Soltei meu pai. Impotente, ele cambaleou, caindo sobre o chão.

Olhei para Blakely. Ela apanhou minha mão. O calor de sua palma

funcionou como criptonita para a raiva que eu sentia. Aos poucos, ela foi
desaparecendo, até que só restasse a apreensão. Comecei a andar para longe

dali, arrastando-a comigo.

Ela não protestou. Me acompanhou até que estivéssemos no píer.

Apenas nós dois. Me sentei nas placas de madeira, respirando fundo o ar

fresco que batia no meu rosto e agitava meus cabelos. Blakely ocupou o

espaço ao meu lado.

Olhei para ela.

O sol se punha no horizonte, de forma que lançava sobre ela um


banho de luz dourada. Seu rosto estava corado, o verde em seu olhar estava

mais vívido do que nunca. Senti algo mudar em meu interior.

Seus dedos resvalaram meu rosto machucado. Blakely suspirou, a


preocupação em seus olhos fez com que eu me sentisse culpado.

— Ele fez isso com você? — Blake questionou, cautelosa.

— Sim — admiti.

— Ele também fez todas aquelas outras vezes?

Fiquei em silêncio. Os olhos de Blakely se encheram de água.

— Não chore. — Eu capturei a lágrima solitária que rolou por sua

bochecha. Mantive minha mão apoiada contra a lateral de seu rosto.

Eu sentia vontade de beijá-la.

— Por que foi até a minha casa? — questionei.


Seu rosto corou, mas não era vergonha, era constrangimento.

— Porque eu descobri o motivo pelo qual Dylan me convidou para

sair e me deu o colar. — Seus ombros curvaram ao citar o nome do babaca.


Blakely fixou os olhos verdes no horizonte. — Faz sentido agora.

— O quê? — indaguei.

— Que ele tenha sido tão... especial. Na verdade, ele só queria me

enganar.

— Não pense nisso. Não pense nele — falei, fazendo-a me encarar.

Agora, eu sentia raiva de Dylan. Por mais que eu já soubesse como

funcionava seu esquema sujo, não queria que Blakely descobrisse. Mas
sentia raiva de mim também, eu devia ter sido menos babaca com ela.

Talvez se eu tivesse sido honesto desde o começo, poderia ter evitado toda a
situação antes que eles se encontrassem na lanchonete.

Me curvei em sua direção, selando nossos lábios por alguns

momentos.

Quando nos afastamos, Blakely ofegava. Ela olhou ao redor. Seus

olhos pararam na enorme figueira que havia na costa leste. Dava para
caminhar até lá. Eu me levantei, apanhando sua mão.

Blakely me lançou um olhar confuso, mas não hesitou em me

acompanhar até lá. Quando nos aproximamos da árvore, sentamos sob sua
copa, que fornecia uma sombra agradável. Blakely se aninhou em meu
ombro, suspirando.

— Você tem algo afiado? — indagou, chamando minha atenção.

Tirei a chave de casa do bolso, confuso.

— Para quê?

Blakely só a pegou de minha mão, então se colocou de joelhos,


fitando o tronco da árvore. Ela começou a riscá-lo com a ponta, até formar

um “B + I” dentro de um coração irregular. Quando terminou, me devolveu


a chave.

— Nos veremos outra vez? — ela questionou, me olhando com


esperança. — No próximo verão.

— Sim — falei sem hesitar. — Eu vou voltar.

— Prometa — Blakely disse, os olhos verdes esperançosos.

A escuridão caiu sobre o horizonte, projetando suas sombras em nós.

— Eu prometo — murmurei.

E aquele foi o começo do fim.

 
 

Durante a pausa do ensaio da banda, Hunt acendeu um cigarro nos


lábios. A Call 911, nossa banda, tinha três integrantes, incluindo eu. Hunt

era o vocalista, Atticus ocupava o posto de baterista e, eu, o de baixista. 

Ele tragou profundamente, depois soltou a fumaça, estendendo o

cigarro ainda aceso em minha direção.

— Você não tinha parado? — eu questionei, depois de negar.

Hunt deu de ombros.

— Tô parando.

Hunt tinha feito uma promessa estúpida para sua namorada, de que
pararia de fumar, só que ele claramente não parecia muito concentrado em

cumpri-la. Fiquei em silêncio, porque eu não fazia o tipo de amigo paternal.


Se Hunt ou Atticus estivessem a fim de trocar seus rins por cem mil dólares

em um mercado clandestino, eu não os contestaria. Não era da minha conta.

— Como estão as coisas no apartamento? O Atticus me disse que

você está dividindo ele com uma garota.

— Atticus devia cuidar da vida dele — falei num tom de voz alto o
suficiente para que ele pudesse me ouvir, mesmo no fundo do cômodo. Ele

estava conferindo sua bateria.

Atticus apenas me ignorou.

Olhei para Hunt, ele continuava me encarando com expectativa. 

— É suportável — murmurei. 

Eu estava omitindo a parte de que eu achava Blakely o ser humano

mais insuportável da face da terra, ou que a gente tinha uma relação do tipo
cão e gato, ou que nós tínhamos um passado complicado. 

— Você tem andado irritado ultimamente — Hunt continuou, se


metendo aonde não devia. Na última vez que isso aconteceu, a gente quase

brigou. — Tesão reprimido?

Atticus soltou uma risada lá atrás.

— Não. Não faz meu tipo.

Hunt me deu um sorriso torto.

— Sei. 
— Bom, vou embora — murmurei, apanhando minha jaqueta de

couro jogada sobre um dos sofás que ficavam no porão da casa dos pais de

Atticus, que servia como nosso lugar sagrado de ensaio.

— E não esquece, cara. É amanhã — Hunt me lembrou. Ele havia

fundado um clube do livro para a namorada, que era surda e não encontrava

um grupo para se juntar. Eu só ia participar porque ele havia implorado,

quase.

Pelo visto estava difícil encontrar leitores.

— Claro — eu murmurei.

Estava chovendo lá fora, por isso cheguei em casa parcialmente

molhado. Era sexta-feira e eu esperava que Blakely não estivesse em casa,

ter que vê-la e pior, morar com ela, era uma espécie de piada do destino. Na

verdade, era como um purgatório pessoal.

Quando abri a porta do apartamento e encontrei tudo silencioso,

achei que estava livre dela, mas, um segundo depois, ela apareceu na sala.

Estava usando um pijama e parou quando me viu. Eu ainda não tinha

entendido os seus horários, porque não fazia nem uma semana que

estávamos aqui, mas sabia que ela saía para trabalhar no que eu presumi ser
uma lanchonete ou restaurante pelo seu uniforme.
Meus olhos instantaneamente passearam pelo longo par de pernas

visíveis em seu short de algodão.

Ouvi ela bufar, fazendo-me olhar para seu rosto.

— Idiota — ela resmungou, passando por mim, indo até a cozinha.

Blakely abriu o freezer, pegou um pote de sorvete e voltou para a

sala. Ela sentou no sofá, procurando pelo controle, que estava em cima da

mesinha, um pouco longe de onde ela estava sentada. O peguei e sentei na

poltrona, num ângulo adjacente.

Liguei a tevê num canal de esportes.

Senti seu olhar sobre mim.

— Eu ia assistir agora. — Seu tom de voz era extremamente seco,

para não dizer odioso.

— É, você ia — concordei, sem encará-la.

— Você podia ser menos desagradável — Blakely murmurou.

Eu a ignorei, permanecendo em silêncio enquanto assistia a uma

reprise do jogo do Chicago Bulls. No próximo momento, Blakely se enfiou

em minha frente, bloqueando a minha visão da tevê. Seu olhar era mortal,

ela apontou a colher suja de sorvete em minha direção, como se fosse uma

arma.

— Você sabe que tá errado, eu ia assistir primeiro que você.


— Sai da frente, Blakely — avisei, num tom de voz sério.

— Não, não vou sair. Você é um babaca. Tá fazendo de propósito.

— Saia — ordenei outra vez.

— Se não, o quê? — Ela arqueou uma sobrancelha em minha

direção, cruzando os braços sobre o peito e me encarando de um jeito

petulante.

— Senão eu tiro você daí.

Blakely continuou parada, desafiadora. Seu rosto todo estava

começando a ficar vermelho, eu sabia que era por conta da raiva. Me

levantei. Ela recuou um passo para trás instintivamente, único sinal de

hesitação até agora.

— Que foi? Vai me bater? — ela desdenhou.

— Se eu te bater um dia, pode ter certeza que você vai ter implorado

por isso e vai adorar cada segundo, mas, por enquanto, não. Não sou

covarde.

Blakely não teve tempo de reagir porque no próximo segundo, eu a

levantei como se não passasse de um saco de batatas, jogando-a sobre meu

ombro. Um grito escapou por sua garganta. Eu caminhei com ela se

debatendo contra mim até seu quarto, abri a porta e a joguei na cama.
Blakely me encarou descrente, o cabelo agora todo desgrenhado e

caindo sobre seus olhos.

Fechei a porta antes que a colher me atingisse quando ela a

arremessou em minha direção. Ouvi o baque do metal contra a madeira da

porta e caminhei de volta até a poltrona.

Esperei que ela viesse para cá, pronta para travar outra batalha, mas

Blakely só continuou em seu quarto. O pote de sorvete que ela havia

deixado para trás começou a derreter. 


 

Me estiquei no sofá de Hunt, o apartamento estava com um clima


estranho. Eu bati a ponta da minha bota de couro contra a poltrona,

chamando a atenção de Atticus, que a ocupava. Ele me encarou, confuso.

— Tem um cigarro?

— Não, mas duvido que Hunt fosse ficar feliz com você fumando

aqui dentro.

É verdade, mas além disso, havia sua namorada, Evelyn. Ela era uma

daquelas pessoas pragmáticas e certinhas. Não que eu tivesse algo contra

esse tipo, só achava entediante. Olhei sobre o ombro, vendo Hunt e ela na
cozinha, movimentando as mãos.
Eu não entendia nada que estava acontecendo, não sabia a língua de

sinais.

A campainha tocou. Me voltei para frente, entediado. Atticus se

levantou, indo abrir a porta. A garota com quem ele estava dormindo

atravessou a porta e, logo atrás dela, havia uma Blakely desconfiada, com

os braços cruzados em frente ao peito.

Arqueei uma das sobrancelhas.

Só podia ser brincadeira.

Travei as mandíbulas. Não demorou muito para que seu olhar


encontrasse o meu e ela rolasse os olhos, como se não estivesse surpresa. A

gente já estava sendo obrigado a conviver um com o outro, o destino ainda

fazia questão de ficar esfregando-a na porra da minha cara?

O cabelo de Blakely estava solto, como o habitual, ela usava um

suéter que parecia macio e jeans.

Estava rídicula.

— Nossa, que apartamento bonito. — A garota que se chamava Gina

ou Giana disse, sorrindo.

— Sentem-se, fiquem à vontade — Hunt apareceu na sala, ao lado de

Eve. Ele lançou um olhar significativo para Atticus. — Obrigado por ter

trazido mais gente.


Atticus mal se atrevia a olhar para Evelyn, parecia constrangido

demais. Isso se dava ao fato de que eles já haviam ficado no passado, antes

que ela conhecesse Hunt. Eu gostava de observar a interação deles, às

vezes. Era um entretenimento interessante. Quando Hunt soube, quase

arrancou a cabeça de Atticus fora e seu relacionamento com Evelyn

também quase foi por água abaixo, mas eles conseguiram agir como adultos
e passar por cima de tudo, mas ainda havia culpa e ressentimento de um

lado.

Após as apresentações dramáticas, todo mundo começou a escolher


os próprios lugares. 

— Senta comigo, Gina — Atticus disse, após se sentar na poltrona.


Ela sentou sobre suas pernas e enrolou os braços ao redor de seu pescoço.

Blakely ficou com a outra ponta do sofá em que eu estava sentado e

Hunt e Evelyn se sentaram em cadeiras que tinham trazido da cozinha.

— Tá legal, como sabem, esse clube de leitura foi fundado para que

minha namorada, surda, se sentisse incluída. A gente vai começar com


Orgulho e Preconceito, depois podemos fazer votações para as próximas

leituras. — Ao mesmo tempo em que falava, ele sinalizava.

Hunt se levantou, entregando um exemplar do título que havia

acabado de citar para todo mundo.


— Nossa, que atencioso. — Ouvi Blakely murmurar ao meu lado,

aposto que ela não havia se dado conta de que externou um pensamento

sem querer.

Segurei meu livro nas mãos, girando-o ocasionalmente.

— A reunião de hoje é mais uma introdução de como as coisas vão

funcionar. De quinze em quinze dias, vamos nos encontrar e fazer debates

sobre o livro lido. Alguma pergunta?

— Hum, eu tenho — Blakely disse, relutante. — Como vamos fazer


para nos comunicarmos com a Evelyn? Eu sei que ela é surda e…

Hunt sinalizou tudo o que ela disse, então a respondeu, das duas

formas:

— Eu vou ser uma espécie de tradutor, não se preocupe. — Hunt

sorriu, olhando para a namorada.

— Eu consigo fazer leitura labial também — Evelyn disse,

contidamente. Foi a primeira vez que escutei sua voz. 

Após bastante papo furado, Hunt finalmente nos liberou. Atticus e

Gina decidiram ficar. Blakely e eu, coincidentemente, estávamos de saída.

— Você não pode pegar uma carona com ele? — Ouvi Gina

perguntar, do outro lado da sala, enquanto vestia meu casaco.


— Não! Prefiro correr cinquenta quilômetros descalça numa estrada

cheia de parafusos.

Atticus riu.

— Que exagero.

— Vocês não entendem — ela sussurrou, ou pelo menos tentou

sussurrar, já que eu conseguia ouvir tudo. — Eu não o suporto.

— É completamente mútuo — murmurei, entediado.

Um silêncio constrangedor caiu sobre o cômodo. Olhei sobre o

ombro. Atticus me encarava com um misto de curiosidade e

questionamento, já Gina parecia surpresa e Blakely, estava com os olhos

cheios de fúria. Hunt e Evelyn estavam alheios à atmosfera daqui, em um

dos quartos.

— Tá vendo? — Blakely balançou a cabeça. — Não dá para pegar

carona com um espécime desses.

— Eu deixaria você correr sobre parafusos antes de te dar uma

carona. — Usei sua própria frase contra ela.

Blakely parecia um daqueles personagens de desenho animado, com

o rosto vermelho e fumaça saindo das orelhas.

— Meu Deus, vocês são terríveis — Atticus interrompeu a discussão

patética. Ele me lançou um de seus olhares sérios, que eram raros, visto que
Atticus sempre era alguém muito descontraído.

— Não — falei, rangendo entre os dentes.

— Cara, qual é! Vocês tão indo pro mesmo lugar, só queremos unir o

útil ao agradável já que a Gina quer ficar comigo. Cobre essa.

— Não vou com ele — Blakely repetiu.

— Vem, vamos conversar. — Gina se levantou, apanhou a mão de

Blakely e a arrastou em direção ao corredor.

Atticus também andou até mim, tentando barganhar. Ele usou um

tom de voz baixo:

— Cara, por favor, eu tô gostando da Gina, quero passar mais tempo

com ela. Fico te devendo uma. Se Blakely ficar sem carona, ela vai ter que

levá-la. Além do mais, está tarde para que a garota pague um táxi ou algo

do tipo. O mundo é perigoso. Pense sobre isso.

Dava para ouvir sussurros ríspidos vindo do corredor, provavelmente

Gina e Blakely também estavam travando uma batalha entre si.

— Tá — concordei, secamente.

Blakely se despediu de Gina com a cara fechada e acenou com a mão

para Atticus, saindo pela porta. Eu me despedi, seguindo-a para fora. As

portas do elevador abriram no momento em que pisei na soleira. Entramos

nele, a tensão no ar era palpável.


O trajeto até o estacionamento pareceu durar trinta minutos.

Quando saímos, caminhei até minha moto, estacionada numa das

vagas. Ouvi o suspiro de Blakely atrás de mim. Coloquei o capacete,

virando-me e observando-a parada com o cenho franzido que fazia com que

um vínculo se formasse entre suas sobrancelhas.

— Vai ter que levar os livros — falei, entregando o meu para ela,

Blakely o segurou junto ao seu, contra o peito.

— Não tem capacete para mim?

— Não.

— Não vai me oferecer o seu?

— Não — falei, como se fosse óbvio.

— Se eu morrer, espero que você seja acusado de homicídio doloso.

A ignorei, subindo na motocicleta e segurando nas manoplas. Olhei

sobre o ombro, esperando que Blakely montasse atrás de mim. Ela não
segurou ao redor da minha cintura, só apoiou a mão livre na barra de metal

atrás de si.

Liguei a moto e demos um tranco para a frente que fez Blakely soltar

um arquejo em surpresa. Afinal, a carona poderia ser muito divertida.


Acelerando, deixamos o prédio para trás. Fui pela avenida, porque a
velocidade permitida era maior. Era cerca de oito horas da noite, as pistas
estavam parcialmente movimentadas.

Não demorou para que Blakely se agarrasse a mim como se sua vida
dependesse disso, mesmo com os livros.

Dava para sentir seu coração martelando loucamente contra minhas

costas.

Aumentei a velocidade, indo pouco além do permitido e ouvi ela


gritar.

Quando chegamos no prédio em que morávamos, Blakely saltou da


moto antes mesmo que eu pudesse estacioná-la corretamente. Tirei o

capacete, deixando-o sobre o banco. Blakely me encarava com muita raiva,


os cabelos todos bagunçados e o corpo enrijecido.

Então, me surpreendendo, ela me acertou diversas vezes no peitoral

com os livros, usando-os como se fossem armas. Segurei seus pulsos,


fazendo-a parar. Seu olhar se ergueu em minha direção.

— Você é desprezível — ela cuspiu.

Me curvei até que minha testa estivesse apoiada contra a sua.


Observei a forma como seu corpo reagiu a mim e minha proximidade.

— Me diga o quanto me odeia.


— Isso seria impossível, o quanto eu odeio você é imensurável —
Blakely murmurou, os olhos verdes alternando entre meu olhar e minha

boca.

Ficamos naquela posição por mais alguns momentos, até que eu a


soltei.

— Ótimo — foi tudo o que eu disse, passando por ela e indo em

direção a recepção.

Evitei o elevador e fui pelas escadas. Quando cheguei, Blakely já

tinha entrado e eu podia ouvir o barulho do chuveiro ligado. Me sentei no


sofá, com as pernas apoiadas na mesa central após pegar uma garrafa de

cerveja gelada na geladeira. Blakely tinha deixado meu livro na ilha que
dividia a cozinha da sala.

Depois de um tempo, Blakely passou por mim, indo até a porta.

Observei enquanto ela a abria com sua própria chave, com uma bolsa
apoiada no ombro. Presumi que estava indo trabalhar naquele bar em que

nos vimos pela primeira vez em Boston. Seu olhar encontrou o meu por um
momento antes de ela fechar a porta e desaparecer do meu campo de visão,

deixando-me finalmente sozinho.

 
 

antes, dezesseis anos

— Ah, é você — minha mãe murmurou ao abrir a porta da varanda

com o cenho franzido. — Já é verão? — Ela parecia confusa em me ver.

— É — falei, trocando o peso de uma perna para outra, esperando

que ela abrisse espaço para que eu entrasse enquanto segurava uma mala

pesada na mão. Caramba, eu estava cansada da viagem de ônibus. — É bom

te ver também — murmurei, esperando que ela sentisse a pontada de


ressentimento em meu tom de voz.

Mas, se Jenna se sentiu culpada, não demonstrou nada.

Ela passou a mão pelos cabelos finos. Parecia um pouco melhor da

última vez que havíamos nos visto, no último verão.


Minha mãe finalmente saiu do caminho. A sala estava um pouco

ajeitada, mas ainda assim havia sinais de desordem, como duas garrafas de

cervejas vazias e um prato sujo em cima do hack. 

A tevê estava ligada num jogo de futebol americano. Parei quando

tropecei num par de sapatos masculino.

Olhei para minha mãe, um ponto de interrogação devia estar

estampado no meu rosto naquele momento, mas ela só deu de ombros,

pegando uma caneca de café em cima da bancada e dando um gole no que

quer que estivesse lá dentro.

— Tem alguém aqui? — fui cautelosa em perguntar, já que ela

claramente não iria me fornecer informações por livre e espontânea

vontade.

— Ele saiu para comprar mais cerveja. — Foi tudo o que recebi

como resposta.

Esclarecedor.

De qualquer forma, não era da minha conta. Me virei e andei até o

lugar onde eu costumava ficar quando vinha para cá. 

O cômodo estava cheirando a naftalina e as janelas estavam fechadas,

então as abri e soltei um suspiro, olhando ao redor. Havia poeira por todo
lado, se eu fosse ficar aqui, precisaria dar uma limpada no lugar se não

quisesse espirrar a noite inteira. 

No final da tarde, quando eu já tinha me instalado e tomado um

banho, passei pela sala, a caminho da porta.

O homem sentado no sofá, no entanto, era uma novidade.

Ele tinha uma barba espessa que cobria seu maxilar, estava usando

um boné de beisebol e as linhas de expressão denunciavam que já estava na

casa dos quarenta anos. Ele me observou em silêncio por alguns momentos,

então se voltou para a tevê.

Ignorando-o de volta, eu finalmente saí de casa.

Por instinto, eu quis ir até a praia. A única pessoa com quem cheguei

perto de ter criado vínculos, foi com uma garota que morava em frente à

casa de minha mãe, mas ela havia se mudado no último verão, então eu não

conhecia ninguém. 

Ninguém além de Ian.

E Ian não havia vindo para Oak Springs no último verão.

Caminhei até o píer em que costumávamos ficar, na época em que

nos conhecemos. Havia se passado dois anos desde então. Ian não havia

cumprido a sua promessa e eu sentia que havia algo por trás disso. 
Inspirei o ar, sentindo o cheiro salgado do mar, então me sentei nas

placas de madeira.

Estava perdida em meus pensamentos que nem percebi quando o

horizonte escureceu. Também não percebi que estava com frio até olhar

para meus braços e ver que estavam arrepiados.

Me levantei, pronta para dar o fora, quando percebi uma comoção na

praia.

— Me deixa em paz! — uma garota loira gritou, para um cara alto.

— Não, porra. Eu não posso!

— Você me traiu, seu idiota. Claro que você pode me deixar em paz.

Que babaca.

 O babaca parou por um momento, como se a frase tivesse desarmado

todos seus argumentos. A garota loira soltou um suspiro exasperado e alto o

suficiente para que me atingisse, a alguns metros de distância.

— Sério, vai embora. Não quero te ver nunca mais.

— Você não tá falando sério, Olivia.

Então Olivia fez algo que surpreendeu a mim e ao babaca traidor,

chutou areia em seu rosto, deixando-o para trás murmurando palavrões

enquanto tentava tirar os grãos dos olhos. Ela veio em minha direção,

quando finalmente viu que tinha plateia, seu rosto corou.


— Que foi? — perguntou rispidamente para mim, como se sentisse

necessidade de se defender. — Ele mereceu.

— Eu sei. 

Ela relaxou os ombros tensos.

— Você não é daqui, né?

— Está óbvio?

— Sim. — Seus olhos analisaram meu rosto. — Ninguém daqui tem

piercing. Acho que isso é coisa de quem mora em cidade grande.

Toquei na argola de prata no meu nariz.

— É, vim visitar minha mãe. — Dei de ombros.

— Legal. Tá a fim de ir em uma festa hoje? Sei que é esquisito te

chamar porque nós acabamos de nós conhecer, mas…

— Eu topo — a interrompi.

— Olivia. — Ela estendeu a mão em minha direção.

Aceitei o cumprimento.

— Blake.

Eu e Olivia trocamos números de telefone e nos despedimos.

Quando cheguei em casa, estava tudo escuro. Não tinha ninguém,

então depois que troquei de roupa, deixei um post-it dizendo que tinha
saído. Duvidava que minha mãe fosse notar ou se importar, mas grudei o

papel na porta da geladeira.

Olivia estava com um carro estacionado em frente minha casa. Era

um modelo antigo, mas parecia super conservado.

Não demorou muito para chegarmos na festa, que estava acontecendo

numa casa imensa de três andares. A música lá fora reverberava mesmo no

interior do carro. Olivia estacionou no fim da rua, já que o restante dela já

estava toda ocupada.

— Nossa, tá lotado de gente aqui — ela murmurou para ninguém em

especial quando descemos, esfregando os braços desnudos.

O vento frio batia contra nós. Eu tinha que pressionar meu maxilar

para evitar que meus dentes batessem uns contra os outros. O vestido

vermelho era a melhor opção que eu havia trazido, quase deixei ele fora da

mala, porque pensava que não iria ter ocasião para usá-lo. Ele era curto e

deixava todas minhas curvas muito evidentes.

Meus pés estavam habitualmente dentro de coturnos pretos.

Nós adentramos na casa. A sala estava servindo como pista

improvisada, então foi difícil atravessar a multidão sem que pessoas

esbarrassem em nós. Olivia segurou minha mão enquanto nós nos

arrastávamos até a cozinha.


Ela pegou dois copos de cerveja, me entregou um.

— Cerveja aguada — Olivia murmurou, torcendo os lábios.

Dei um gole.

— É, mas acho que é comum nessas festas.

— Preciso ir fazer xixi. Você me espera?

— Claro.

Olivia sumiu na multidão, deixando-me sozinha. Contive um gemido


no fundo da minha garganta e olhei ao redor. O fluxo era menos denso aqui

na cozinha, mas, de qualquer forma, havia bastante gente aglomerada no


cômodo.

Dei outro gole na cerveja horrível, olhando por cima da borda do


copo de plástico, continuando minha análise.

Então eu me engasguei.

Meu coração errou uma batida violentamente, então começou a


galopar contra as minhas costelas.

Ele tinha acabado de entrar na cozinha, não me viu no canto. Ele era

um garoto quando havíamos nos visto pela última vez. Agora, parecia mais
alto, mais forte também. Havia algumas tatuagens espalhadas por seus

braços, que eram novidades. Ian usava apenas uma camiseta branca e jeans
comuns, mas conseguiu atrair a atenção de todos, inclusive a minha.
Ele andou até a tequila sem olhar para ninguém e encheu seu copo
silenciosamente.

As pessoas ficaram mudas de repente, como se a presença de Ian


fosse digna de um momento de contemplação.

Esperei com que ele me visse, esperei com que ele me lançasse um

olhar.

Mas tudo o que ele fez foi se distanciar assim que seu copo estava
cheio.

Toda minha expectativa foi quebrada pateticamente, então minha


mente começou a pensar sobre o fato de ele estar na cidade e não ter me

procurado. Ian sabia onde eu morava, pelo menos costumava saber. Será
que ele esqueceu?

Fui atrás dele, desviando das pessoas.

O perdi de vista. Segui para o corredor que surgiu em minha frente

quando um grupo de garotas abriu espaço.

Meus pés fincaram no chão.

Ian estava beijando uma garota, prensando-a contra a parede. Eu

queria que a cena não tivesse me afetado, mas eu cambaleei um passo para
trás, como se tivesse sido atingida por uma flecha no peito.

Meu coturno acabou amassando um copo de plástico jogado no chão.


O barulho pareceu despertar Ian, mesmo sob a música estrondosa.

Ele se virou.

Nossos olhares se encontraram. Ele não esboçou nenhuma reação,


como surpresa ou algo que dissesse que havia sentido a minha falta. 

Apenas seu olhar, frio.

Engolindo em seco, resolvi enfrentá-lo.

— O que aconteceu? Por que não me procurou?

Ian continuou inexpressivo, mas se aproximou alguns passos, até que


estivesse em minha frente. Senti os joelhos trêmulos.

— Blakely, eu teria te procurado se você fosse importante para mim,


mas você não é. O que quer que você acha que tenha acontecido entre a

gente, foi quando éramos crianças estúpidas. 

Suas palavras foram como centenas de socos no meu estômago.

Senti vontade de vomitar.

Minha linha d’água ficou embaçada e eu me virei, recusando-me a

chorar em sua frente. Subi as escadas até o segundo andar, sem me


preocupar em empurrar as pessoas que estavam em minha frente para

conseguir passagem.

Quando encontrei o banheiro, fechei a porta com força e me escorei


contra ela, o peito subindo e descendo rapidamente.
Não sabia o que havia acontecido com Ian, mas eu sabia de algo. O

Ian que eu havia conhecido, por quem eu havia me apaixonado, tinha ido
embora completamente, sendo substituído por um babaca insensível.
 

Hunt suspirou pela milésima vez no camarim, enquanto eu girava o


anel de prata no meu dedo anelar e, com a mão livre, segurava um copo de

uísque. 

Arqueei uma sobrancelha.

— Que foi? — perguntei. Sua agitação já estava me dando nos

nervos, estava na cara que tinha algo o perturbando.

Ele parou de encarar os próprios sapatos. Estava apoiando os

cotovelos sobre os joelhos, meio debruçado para frente. Seu cenho se

franziu.

— Você não vai entender.

Minhas sobrancelhas subiram ainda mais.


— Por que não? 

— Porque acho que você precisaria ter um coração para isso.

Deixei o uísque de lado, começando a acender um baseado nos meus

lábios.

— É. Você tem razão. Não vou entender — falei.

— Tá vendo, você não entenderia — Hunt repetiu, parecendo

incomodado com algo. Ele se remexeu na cadeira em que estava sentado,

inquieto. — Porra, eu quero me casar. Sério. Eu quero me casar tipo hoje.

Tipo agora, neste momento.

— Para com isso, tá me assustando — resmunguei.

— Não dá, cara. Eu amo tanto ela que dói. Eu não aguento mais ficar

longe dela, sinto saudades o tempo inteiro…

— Isso é preocupante — observei.

Hunt continuou, absorto nos próprios pensamentos:

— E a gente é vizinho! Aí é que tá. A minha namorada nem mora tão

longe assim de mim e eu me sinto tão vazio…

— Dependência emocional? — sugeri, sendo ignorado.

— …E eu quero me casar o mais rápido possível, mas acho que a

Eve quer fazer as coisas de um jeito mais lento. Acho que ela quer esperar
até a formatura, depois que a gente consiga empregos estáveis e aí, enfim, o

casamento. Só que, pra mim, isso é pura tortura.

Quando seu desabafo acabou, fiquei perplexo. Hunt amava tanto a

noiva dele que me surpreendia, às vezes. O jeito como ele estava

completamente devoto era assustador. Por mais que Evelyn tivesse uma

linha de pensamento completamente racional por querer estabilidade antes

de se casarem, dava para ver que ele estava sofrendo bastante com isso.

Era muito estranho vê-lo apaixonado. Há um tempo atrás ele era um

completo cafajeste. Agora, eu tinha que lidar com essa sua versão “estou

muito, completamente e inteiramente apaixonado”.

— Já falou isso pra ela? Já disse que quer se casar logo? — indaguei.

— Não, ela quase não toca no assunto. E não quero parecer

desesperado.

— Mas você definitivamente tá desesperado — falei, o encarando

com o rosto sério.

— Eu sei! É por isso que não digo nada, fico com medo de assustá-

la.

— Não vai assustá-la se souber dizer. Tenta entrar no assunto aos

poucos. Talvez vocês cheguem num meio-termo que seja bom para os dois. 
Traguei o cigarro enrolado, soprando a fumaça para longe. Hunt

ficou em silêncio por alguns momentos, pensando. Eu praticamente podia

ouvir as engrenagens se movendo em sua cabeça.

— É, tem razão. Vou tentar conversar com ela.

No próximo momento, Atticus invadiu a sala, pondo um fim

definitivo entre minhas conversa com Hunt. Ele disse que pegou um

engarrafamento vindo para cá, por isso o atraso.

Nós fomos para o palco após a passagem de som. O show de hoje à


noite era num lugar relativamente grande e estava cheio. Quando estava no

palco, minha mente ficava em branco, tudo o que importava era o momento

e a música que eu fazia com meu baixo, sincronizando com Ian e Atticus.

Fora do palco, nós podíamos ter alguns desentendimentos, mas,

dentro dele, nós trabalhávamos como um corpo só.

Senti uma descarga elétrica atravessar meu corpo quando as pessoas

começaram a cantar com a gente uma de nossas faixas principais.

Quando acabamos, a parte de trás do meu pescoço estava suada. No

camarim, Atticus me ofereceu uma das garrafas de cerveja gelada que

estava no mini frigobar.

Hunt já tinha ido embora, então éramos só eu e ele.


Dei um gole no líquido amargo, sentindo a sensação refrescante

quase que imediatamente.

— Sabe aquele bar que tocamos em uma das últimas vezes? Com

palco em formato triangular? — Atticus perguntou, de repente

Assenti. Era o bar em que Blakely trabalhava nos finais de semana,


pelo o que eu tinha observado morando com ela.

— Sim, o que tem?

— Vou passar lá. 

Eu suspirei, porque estava de carona.

— Qual é, cara. Só vamos ficar um pouco. Depois, vamos embora.

Não queria ir sozinho.

— Tá — concordei, sem muita empolgação.

Alguns momentos mais tarde, eu e Atticus estávamos nos infiltrando

no bar, que estava completamente abarrotado de universitários. Nós nos

esquivamos até que, por sorte, encontramos uma mesa livre.

Não demorou para que uma dupla de garotas se aproximasse.

Uma delas se sentou ao meu lado e a outra ocupou uma cadeira

próxima de Atticus.

Enquanto eles conversavam, eu lancei um olhar para o bar, que

parecia não estar funcionando. 


— Os atendentes estão circulando hoje — a ruiva ao meu lado falou,

seguindo minha linha de olhar.

No próximo momento, Blakely apareceu no meu campo de visão.

Usando rabo de cavalo, uma blusa curta, saia jeans e meias arrastão,

infelizmente tive que dar o braço a torcer e colocá-la na categoria sexy. 

Ela já parecia irritada, com cabelo grudado no rosto e as bochechas

coradas, então, quando seus olhos se conectaram aos meus, seu mau humor

pareceu triplicar.

Ela rolou os olhos antes de se aproximar, uma bandeja vazia em

mãos.

Seus olhos alternaram entre mim e Atticus com a loira, que agora

estava sentada em seu colo. Ela arqueou uma das sobrancelhas

discretamente. Provavelmente estava pensando na amiga, Gina. 

Blakely limpou a garganta.

— Posso ajudá-los?

Atticus pareceu surpreso ao vê-la.

— Ah, oi, Blake! Não sabia que você tava por aqui. — Sorriu, sem

graça.

Um sorriso que dizia “Droga”.

— Eu trabalho aqui — ela respondeu secamente. — Vão querer algo?


Atticus pediu duas cervejas.

Blakely se voltou para mim, entediada.

— Vodca.

Não me importei em perguntar o que a ruiva ao meu lado queria,

porque eu não estava interessado.

Blakely semicerrou os olhos.

— E sua companhia?

— Ela não é minha companhia.

A ruiva pediu licença, dizendo que ia ao banheiro.

Blakely me encarou com nojo.

— Babaca — murmurou, antes de se retirar.

Os momentos se arrastaram, parecendo uma eternidade, a música alta


ressoando em meus tímpanos irritantemente. Atticus foi para a pista de
dança com a garota, deixando-me sozinho na mesa.

Blakely não tinha vindo até agora com nossos pedidos, talvez pelo

fato de que o ambiente estava cheio.

Arrastando meus olhos pela multidão, eu concentrei meu olhar numa


pequena aglomeração.
No meio da agitação, reconheci Blakely, mesmo que estivesse de
costas para mim. Em sua frente, havia uma morena que parecia fora de si.

Ela fazia movimentos cambaleantes sobre seus saltos. Parecia bêbada.

Não percebi quando Atticus se aproximou, só quando ele disse:

— Parece que sua garota se meteu em confusões.

— Minha garota — ironizei.

— Não vai ajudá-la? — perguntou, quando uma terceira pessoa se


juntou na comoção. Um homem.

— Não é da minha conta — murmurei.

Atticus ficou em silêncio, observando assim como eu e metade das

pessoas presentes no bar. Aquele era o tipo de entretenimento patético que


os divertia. 

— Aposto cem na garçonete! — alguém gritou, sobressaindo a

música.

O homem que parecia conhecer a garota bêbada que estava

procurando por confusões se aproximou de Blakely, chegando perto o


suficiente para que esbarrasse o peitoral nela, fazendo com que ela fosse

para trás, amedrontada.

Porra.

Minha mão direita tremeu.


Involuntariamente, eu avancei na multidão, tirando todo mundo da
minha frente, sem me importar. Ouvi o riso irônico de Atticus atrás de

mim. 

Empurrando o cara com as duas mãos espalmadas em seu peito, eu o


tirei de cima de Blakely. O covarde que me encarasse. Sendo pego

desprevenido, ele cambaleou para trás, quase caindo.

— Qual é a sua? — ele disse para mim, parecendo irritado.

— Só quis descobrir se você teria coragem de enfrentar alguém do

seu tamanho — resmunguei. Fiz uma pausa. — Tem?

Ele me avaliou. Comprimiu os lábios.

— Não quero confusão. Da próxima vez, certifique-se de que a sua

vadia vai trazer os pedidos do jeito certo…

Não me contendo ao impulso, segurei no colarinho de sua camiseta,


aproximando seu rosto do meu, então, disse para que só ele pudesse escutar:

— Você não toca, olha, ou fala com ela, entendeu? Não pelo menos

se quiser manter a porra dos dentes na boca.

Joguei-o sobre uma das mesas, que tombou, fazendo com que

algumas garrafas se estilhaçassem no chão.

A música parou.
No próximo segundo, alguns seguranças se aproximaram, me

escoltando até a saída. Não olhei sobre o ombro enquanto me tiravam de lá.
 

Eu prendia a respiração enquanto fitava as costas largas de Ian, que


estava parado em minha frente, entre mim e o babaca colossal que parecia

prestes a partir para cima de mim. Mesmo através da camiseta de Ian, dava
para ver todos seus músculos rígidos, o que só era mais um indício do quão

tenso ele estava.

O bar, de repente, ficou abafado demais. A música tinha sido

substituída por silêncio e murmúrios. As pessoas começaram a se dispersar


após Ian resmungar algumas palavras para o estranho que não alcançaram

meus ouvidos.

Um momento depois, o gerente surgiu em minha frente e alguns

seguranças também, que cercaram Ian. O gerente deu uma olhada no


estrago ao redor antes de me encarar, as garrafas estilhaçadas no chão, os

cacos de vidro se misturando com o líquido âmbar da cerveja.

Apertei os lábios juntos.

Essa não.

Pelo olhar em seu rosto, as coisas não iriam acabar bem. Sinalizando

para mim em uma ordem velada, comecei a segui-lo pelo estabelecimento

até que estivéssemos num corredor isolado do bar, onde dava para um
espaço de acesso restrito somente de nós, funcionários.

— O que aconteceu? — O gerente, Dean, questionou.

Passei as palmas suadas  em minha saia.

— Tropecei quando fui entregar um dos pedidos — comecei,

honesta. — A cliente para quem eu o entregaria perdeu a cabeça. Seu


namorado surgiu e começou a me intimidar, então Ian interviu…

A sobrancelha de Dean arqueou.

— Ian? O cara que derrubou a mesa?

Comecei a hiperventilar.

— É… Mas não era sua intenção.

— Essa pequena confusão nos causou prejuízos, além de que a

maioria dos clientes foram embora. Ninguém gosta de estar num ambiente

de confusões, Blakely. 
— Entendo — murmurei. — Mas…

Ele me cortou:

— Já que aparentemente você conhece esse Ian, não posso deixar que

continue trabalhando aqui. Nossa imagem é algo importante. Não podemos

correr o risco de mais incidentes como esse. Espero que compreenda.

Sem me deixar protestar outra vez, Dean me deu as costas e saiu do

corredor, deixando-me ali sozinha. 

Derrotada, me escorei na parede, sentindo meus ombros

despencarem.

Quando cheguei em casa, já eram pouco mais de meia noite. Deixei

minha bolsa no sofá. Absorta em meus pensamentos, nem percebi a

presença de Ian na cozinha, só quando me virei.

Meu coração disparou.

Ele estava em pé, apoiado contra a pia e mastigando um sanduíche,


os olhos fixos em mim. Percebendo que eu devia estar patética pelo olhar

que ele me lançava, me aprumei. Endireitando os ombros, eu coloquei uma

das mãos na cintura, encarando-o de volta com um olhar que eu esperava

ser tão intimidador quanto sua presença silenciosa.

Esperei que ele fizesse uma piada, ou qualquer comentário maldoso

habitual, mas me surpreendi quando tudo que recebi foi nada.


Apenas o silêncio ensurdecedor.

Meu estômago roncou, lembrando-me de que eu precisava comer.

Adentrando na cozinha, abri a geladeira. Ian continuava parado no meio do

cômodo feito uma estátua. Estava me dando nos nervos.

Enquanto vasculhava com os olhos nas prateleiras, sentia ele me

observar.

Peguei o pote de pasta de amendoim e geleia de framboesa.

Lancei um olhar feio para Ian antes de colocar os ingredientes na

bancada. Me virei para pegar o pão, mas lembrei-me de que havia o deixado

no armário superior, que estava bem atrás de sua cabeça.

— Dá para chegar para lá? — murmurei. — Preciso pegar algo no

armário.

— Pega — Ian respondeu, indiferente, ele já havia terminado de

comer seu sanduíche, ou seja, sua presença ali era desnecessária e apenas

para me tirar do sério.

O encarei por vários momentos em silêncio.

Me aproximei, ficando na ponta dos pés e esticando o braço por cima

de seu ombro. Estava prestes a alcançar a porta do armário quando meu pé

esquerdo falhou, fazendo-me perder o equilíbrio. 


Tropecei para frente, sendo aparada pelo peitoral largo de Ian

completamente despido. Apoiei uma das mãos contra seu abdômen

instintivamente, tentando me equilibrar, sentindo a pele quente e firme sob

meus dedos.

Engoli em seco.

Meu joelho direito havia guinchado próximo ao meio de suas pernas.

Tentei me afastar, mas não consegui.

Olhando para baixo, vi a confusão que havia acontecido com a fivela

de metal do seu cinto e minha meia-calça quadriculada preferida.

Voltei o rosto para cima, buscando seus olhos.

Estavam sérios, mas Ian arqueou uma sobrancelha.

— Me ajuda a soltar isso — murmurei, irritada.

— Você que se prendeu a mim, dá um jeito de sair.

— Para de ser babaca. — Tentei me desenroscar outra vez, mas ouvi

o som do tecido começar a rasgar e parei. — Sério, eu amo essa meia-calça.

Não dá para resolver isso sozinha sem rasgá-la.

Ian bocejou.

— Que pena.

Havia sarcasmo em seu tom de voz.


— Tudo isso é para ficar perto de mim? — debochei, minha raiva

aumentando a cada segundo que se passava.

— Ficar perto de você? Blakely… Por favor. — Ian começou a rir,

mas não havia humor nenhum em sua risada, tampouco em seu rosto. —

Você me enoja. Além do mais, sua mão parece bastante confortável

repousando no meu abdômen. Acho que você que quer ficar aqui.

Seu olhar foi para baixo, acompanhei-o.

Minha mão ainda estava ali, tirei-a de lá como se o corpo de Ian

estivesse em chamas.

— Não se preocupe, o sentimento é mútuo — falei, o tom de voz

jocoso. — Eu preferiria estar presa a um monte de lixo do que com você.

— É? — Ian questionou, suas mãos grandes inesperadamente

envolvendo cada lado de minha cintura, puxando-me para perto.

Agora, nossos corpos estavam prensados um contra o outro, seu calor


exalando para mim, embaralhando todos meus sentidos.

Senti seu hálito quente na ponta de meu nariz.

Meus olhos me traíram, olhando para cima.

Encontrei o azul intenso, frio, mas quente ao mesmo tempo. Nossas

bocas estavam a apenas um centímetro de distância.

Quis virar o rosto, ir para trás, mas fiquei parada em seus braços.
Ian roçou os lábios nos meus ociosamente. Meus olhos fecharam.

Uma descarga elétrica atravessou meu corpo, bombeando sangue no

meu coração três vezes mais rápido.

Entreabri a boca, sua língua quente acariciou meu lábio inferior.


Soltei um gemido. Ian testou encaixar nossos lábios, então puxou o superior

entre seus dentes.

Ele se afastou, abri as pálpebras.

Nós nos encaramos por três segundos antes que ele dissesse, cortando

o silêncio:

— Hoje não, anjo.

O seu olhar havia escurecido, havia ali muitos sentimentos,


sentimentos que eu não era capaz de identificar, apenas presumir que era

uma batalha de emoções.

— Parece que você não prefere ficar presa a um monte de lixo. —

Uma de suas sobrancelhas arquearam.

Havia um brilho lúdico em seu olhar.

Babaca.

Indo para trás, não me importei quando o barulho do tecido da meia-

calça rasgando pairou no ar. Eu apenas me virei e fui para meu quarto,
sentindo-me um pouco envergonhada.
 

— Não aguento mais — Diamond murmurou, apoiando-se contra a


bancada. — Sério, eu não nasci para isso.

Eu ri do seu drama. Mas talvez ele estivesse certo. Diamond era um


garoto rico, criado num bairro de gente rica e nunca teve que trabalhar na

vida até agora, fora que estudava em Harvard. E ele estava trabalhando em

forma de punição. Fala sério. Que tipo de castigo era esse? 

— Para de chorar. Não combina com você — murmurei, tirando seu

cotovelo da bancada enquanto passava um pano úmido com álcool sobre a

superfície. 

Diamond soltou uma risada de escárnio.


— Claro que combina comigo. Tudo combina comigo. Se eu

colocasse uma lata de lixo na cabeça agora, provavelmente inovaria o

mundo da moda e as pessoas passariam a usar como acessório, só porque

tenho um rosto perfeito.

Queria poder contrariá-lo, mas o rosto de Diamond realmente era

perfeito. Ele tinha cabelo loiro dourado, olhos azuis e pele bronzeada. Era o

tipo de pessoa que chamava muita atenção por ter uma aparência de
Hollywood. 

— Você não é nem um pouco convencido, né? — perguntei, tentando

esconder meu sorriso.

— Não, eu só sou realista. — Deu de ombros. —  Além do mais,

vocês, gatas borralheiras, deviam ir me visitar qualquer dia. — Ele alternou

o olhar entre mim e Gina, que estava alheia no caixa, a alguns metros de

distância.

— Tá bom, garoto rico. Já lavou os pratos?

Diamond bufou.

— Não quero falar sobre pratos. Você se mudou, né?

— Sim — concordei. — Tô mais perto agora.

— Você devia dar uma festa de inauguração.

— Por quê?
— Porque sim. Festas são legais.

Eu arqueei as sobrancelhas.

— Eu não moro sozinha. E, mesmo se morasse, não é meu lance

encher minha casa de gente. Gosto de paz e das coisas em ordem.

— Está morando com quem? — Diamond questionou, meio curioso.

— Não quero falar sobre isso. O cara é um babaca.

Antes que Diamond continuasse com o interrogatório, eu me virei e

saí dali para limpar outras mesas. Quando meu expediente finalmente

acabou, fui para casa. Ao chegar no apartamento, cansada, tive que esfregar
os olhos e conferir a data no celular para confirmar que não estava ficando

louca. O lugar estava cheio de gente, a porta aberta. 

Ian estava dando uma festa e era segunda-feira.

Irritada, sabendo que aquilo tudo só podia ser mais uma de suas

tentativas de me provocar, eu me enfiei no meio da bagunça, atravessando o


mar de gente espalhada pela sala até a cozinha. Tirei minha caneca favorita

da mão de um estranho, lançando-lhe um olhar fulminante. 

Não avistando o idiota por quem eu estava procurando em lugar

nenhum, presumi que ele só podia estar no próprio quarto, mas, antes de ir

para lá, passei no meu e quis morrer quando vi um casal se beijando sobre a

minha cama. Depois de expulsá-los, o ódio me consumia.


Não bati na porta de Ian, só a escancarei.

Ele estava deitado na cama, um cigarro nos lábios enquanto três

garotas dançavam sensualmente em sua frente, quase peladas.

Torci o nariz para o cheiro de fumaça e andei até ele. Parando em sua

frente, tirei o cigarro de seus lábios, jogando-o no chão e amassando-o sob a

minha bota.

Ian me encarou com tédio. Uma das suas sobrancelhas arqueou.

— Irritante — murmurou.

— Sério? Vai dar festas sem me avisar antes e numa segunda-feira?

— questionei, exasperada.

— Irritante — Ian repetiu, calmamente, frisando cada sílaba da

palavra. — Você tá atrapalhando.

— Não estou nem aí, expulsa toda essa gente agora.

— Ou…? — perguntou, desinteressado, enquanto tirava outro cigarro

do bolso. Não dei tempo para que ele o acendesse, arranquei-o de sua mão e

o joguei do outro lado do cômodo. 

— Blakely… — ele avisou, o semblante sério.

— Vão embora — falei, me voltando para as garotas que assistiam

nosso debate como se fosse um espetáculo. Elas me olharam com hesitação.

— Agora! — Perdi a cabeça, aumentando o tom de voz.


As garotas se retiraram, após se vestirem. Ian continuava lá, deitado

em sua cama, muito relaxado, sem camiseta e com as mãos cruzadas atrás

da cabeça. Por mais que seu rosto estivesse sério, dava para ver em seu

olhar que ele estava se divertindo muito por ter conseguido me irritar.

— Acaba com a festa agora, sério — falei, esperando que ele agisse

racionalmente ao menos uma vez.

— Não. — Simplesmente respondeu.

Ficamos nos encarando por vários segundos. Em silêncio, me retirei

do quarto, mascarando toda minha raiva. Entrei em meu quarto e tranquei a

porta, os nervos à flor da pele. Tirei os sapatos e as meias, deitei sobre o

colchão e cobri os olhos com o antebraço.

Não dava para tomar banho, porque tinha gente no banheiro, então

esperei que Ian se cansasse de sua própria idiotice. Ele agia como uma

criança mimada, testando os meus limites e, quando eu surtava, ele se

deleitava. Sua vitória estava no meu descontrole, então eu deixaria que ele

ficasse sem o entretenimento de me ver com raiva.

Mas o teste de paciência durou a semana toda.

A semana inteira Ian deu festas, tirando o meu sono e me fazendo

virar um zumbi por ter que trabalhar sem dormir bem.


Hoje era sexta, eu tinha chegado no trabalho com sono. Se me

olhasse no espelho, aposto que veria olheiras. Aquele era um dos dias em

que eu funcionava no automático.

— Que foi? — Gina questionou, fazendo-me parar por alguns

instantes, estava prestes a levar um dos pedidos, a bandeja já em minhas

mãos e o aroma dos hambúrgueres invadindo meu nariz.

— Como assim que foi? — questionei-a.

— Você tá esquisita hoje. Pausa daqui dez minutos, vamos conversar,

tá?

Assenti, voltando ao trabalho. O tempo passou e eu e Gina nós

encontramos lá fora, na parte de trás da cafeteria. Soltei o rabo de cavalo

que já estava frouxo e arrumei as madeixas de cabelo outra vez, firmes.

Sentia o olhar de minha amiga a cada movimento que eu fazia.

— Você tá silenciosa hoje — Gina disse, com cuidado.

— Tô cansada. 

Não era mentira. Eu estava cansada, mas não era só por isso que meu

humor havia mudado. Soltando um suspiro, eu resolvi ser honesta com

Gina, porque ela não merecia ser enganada.

— Como está com o Atticus? — indaguei, sondando.


— Ah, tá tudo bem. A gente ficou de marcar para se ver essa semana,

mas ele deu uma sumida. — Franziu o cenho. — Por quê?

Nossa, que cara idiota. Ele devia estar bem envergonhado, deu para

perceber no olhar dele no último final de semana, no bar. Só não sabia se

era porque tinha reconhecido que pisou na bola, ou por ter sido pego no

flagra. Eu achava a primeira opção meio improvável.

— Vocês são exclusivos?

— Sim… Bem, mais ou menos. — O semblante de Gina passou para


apreensivo, ela mordeu o lábio inferior. — Você sabe de alguma coisa, não

sabe?

— No meu último turno no bar, antes de ser demitida, eu o vi com


uma garota. Fiquei pensando em como te falar, sei que você tá gostando

dele, mas… — Ergui um ombro, desconfortável. Eu odiava ter esse tipo de


conversa. — Ele é meio babaca.

— Ah. — Foi tudo o que deixou seus lábios.

Os olhos de Gina ficaram tristes de repente. Me sentia mal por ela.

— Quer sair essa semana? — murmurei, tentando mudar a atmosfera.


— O Diamond disse que abriu um bar legal no centro.

— Pode ser, preciso esquecer esse idiota. Vou bloquear ele. Ou


melhor não? Se bloqueá-lo, vai ser uma massagem em seu ego. Ele vai
saber que me senti atingida e pode se vangloriar.

— Não importa o que ele vai sentir, G. Se você for se sentir melhor

assim, bloqueia. Ele quem perdeu.

Ela mastigou o interior da bochecha, depois soltou um suspiro


resignado.

— É, você tem razão — falou, quase num sussurro. — Vou lá pra

dentro, obrigada por ter me dito isso.

— De nada — murmurei.

Diamond abriu a porta pesada de ferro antes que Gina pudesse

alcançá-la. Ela devia estar tão desnorteada que esbarrou no peito dele,
murmurando um pedido de desculpas e sumindo no interior do lugar. Soltei

uma lufada de ar com pesar.

Diamond lançou um olhar questionador para mim.

— O que foi isso? — perguntou, provavelmente percebendo o clima.

Comecei a massagear a parte detrás do meu pescoço.

— Nada, Gina só tá um pouco cansada.

— Sério? Você acha que eu nasci ontem? 

— Se quiser saber, pergunta para ela. Não vou fazer fofoca.

Diamond se escorou contra a porta, cruzando os braços fortes em


frente ao peitoral largo. Até não fazendo nada ele conseguia ser
extremamente atraente. Se alguém tirasse uma foto dele neste momento,
poderia servir como capa de alguma revista.

Ele rolou os olhos azuis.

— Como você é chata, gata borralheira. Eu só tava curioso. 

Arqueei uma sobrancelha.

— Para de me chamar assim. Acha que tem o direito só porque é


rico?

— É exatamente porque eu sou, correção, super rico e vocês, pobres,

que eu falo dessa forma.

Eu ri.

— Nossa, para de ser filhinho de papai. É chato. 

— Não dá. É mais forte que eu.

Mudei de assunto:

— E aquele bar que você falou? Tá de pé?

— Sim, vai inaugurar no sábado, mas você vai trabalhar, né?

— Fui demitida. Eu e Gina queremos ir. Arranja um jeito de colocar


nossos nomes em listas vips ou sei lá. Sei que você consegue.

Eu e Diamond conversamos por mais alguns momentos, então


voltamos para dentro da cafeteria, porque o tempo curto de descanso tinha
terminado. 

Quando o horário de fechar estava próximo, todos funcionários foram


embora e eu fiquei, porque era meu dia de fechar. Comecei a apagar as

luzes quando ouvi o sino tilintar. Olhei sobre o ombro, pronta para dizer que
o expediente já tinha acabado, mas congelei em meu lugar.

Meu coração disparou.

A única pessoa que eu não esperava ver, estava ali, parada em minha

frente. Meu pai parecia desconfortável, sem saber o que fazer. Ele enfiou as
mãos nos bolsos da calça cáqui que estava usando, olhando ao redor.

— Elle tinha razão. É um lugar bem legal.

Engoli em seco, segurando minha jaqueta contra o braço com força.

— O que você tá fazendo aqui? — questionei, minha voz saindo mais


áspera do que eu esperava, no entanto, John não pareceu se abalar.

Era como se ele já esperasse por uma reação dessas, porque só


suspirou.

— Quero conversar. Só isso.

— Preciso ir para casa agora, tô cansada e o próximo ônibus deve

estar prestes a passar.

Peguei minha bolsa, passando a alça por um dos meus ombros.

— Posso te dar uma carona?


— Não, obrigada — murmurei, caminhando até a porta.

Enrijeci quando sua mão se fechou em meu braço, fazendo-me parar.

Olhei para o rosto de meu pai, parecia exausto. Agora toda sua idade
parecia exposta em sua expressão.

— Por favor, Blakely. Não fique na defensiva.

Houve alguns momentos de silêncio, então só assenti. Meu pai me


esperou no carro caro estacionado em frente a lanchonete. Depois que eu

fechei a cafeteria, hesitantemente, entrei em seu automóvel, no lado do


passageiro.

— O que você gosta de ouvir? — Meu pai questionou, ligando o

rádio, passando pelas estações. 

Essa era uma tentativa boa de quebrar o silêncio desconfortável, mas

por mais que ele tivesse intenções boas, eu não consegui baixar a guarda.
Pelo contrário, senti raiva de sua pergunta. 

— Se você não tivesse sumido, saberia — murmurei, fitando a janela

e a paisagem correndo lá fora.

— Você está certa — ele disse, me surpreendendo, depois de alguns


momentos sem dizer nada.

Havíamos parado num semáforo. Senti seus olhos sobre mim e


enrijeci no banco. John continuou a falar:
— Eu errei no passado como seu pai. Errei em deixá-la com sua mãe.
Eu fiz tudo errado, eu reconheço isso, Blakely. Mas agora, quero que você e

eu possamos construir uma boa relação e…

— Isso tudo é por causa da Elle? — o interrompi, finalmente

encarando-o. — Ela pediu para que você viesse aqui?

Meu pai ficou surpreso. 

— Não. Isso não tem nada a ver com a Elle, ela não sabe que estou
aqui. — Houve uma pausa. — Ela vai fazer aniversário dentro de algumas

semanas, o tratamento está indo bem e pensei que chamá-la seria uma boa
ideia. Acho que ela gostaria da sua presença lá. E eu também.

Voltei a olhar para a janela. Meu coração disparou.

— Bom… — comecei, o tom de voz baixo. — Se é aniversário da


Elle, eu vou.

— Perfeito, me ligue quando puder para conversarmos melhor. —

John me entregou um dos cartões profissionais, cartão de uma


concessionária famosa.

Era isso que ele fazia, então? Dono de concessionárias? Era estranho
como ele não sabia nada sobre mim e vice-versa.

Era impessoal demais. Não parecia certo.


Quando chegamos em frente ao prédio, me despedi dele com uma
sensação esquisita. Eu só ainda não havia me decidido se era boa ou ruim.
 

Gina e eu estávamos a caminho do clube de leitura, mas paramos


numa cafeteria antes porque não tínhamos almoçado. Eu pedi uma salada

caesar e café preto. Ela ficou com um sanduíche e suco de laranja. Nos
sentamos numa mesa próxima das janelas.

Gina me fitou com expectativa, os olhos curiosos.

— E aí, como estão as coisas com o Ian?

Eu quase bufei ao seu nome ser citado, mas mastiguei uma garfada
da salada para ter tempo de respondê-la. Não tinha contado a Gina sobre o

nosso quase beijo, mas, acho que era melhor assim. Não sei onde eu estava

com a cabeça, só mostrava o quão fraca e patética eu podia ser quando se

tratava de Ian.
— Como assim as coisas?

— Vocês até que fingem bem se odiar, mas não dá para fingir que
não tem bastante tensão sexual acumulada entre vocês.

— Que tensão sexual? Tudo que eu sinto quando vejo ele é uma

enorme vontade de enforcar seu pescoço.

Ok, não era cem por cento verdade. Eu sentia mesmo vontade de

sufocar Ian com minhas próprias mãos, mas não dava para negar que o meu
corpo me traía toda vez que ele invadia o meu espaço pessoal. Só que eu

não era mais a adolescente idiota que era apaixonada por ele. Até porque

Ian não era mais o mesmo.

Mesmo que fosse sério e difícil no passado, sua frieza não passava de

uma fachada. Ian estava transformado agora.

— Tá legal, não faço mais perguntas, mas um dia vocês dois vão cair

na real e eu vou jogar isso na sua cara — Gina resmungou, mastigando.

Nós mudamos o foco da conversa e logo saímos dali, porque já

estávamos atrasadas. Quando chegamos no apartamento de Hunt, todo

mundo já estava lá, menos Atticus. Gina pareceu ficar aliviada.

Evelyn estava contida num dos cantos do sofá de três lugares e Ian,

na outra ponta. Hunt estava em pé, apoiando um dos ombros contra a


parede, então o que me restava era ficar entre a sua namorada e o babaca do

Ian, já que Gina estava na poltrona.

Mal olhei para ele quando ocupei o lugar, só sorri para Evelyn, que

devolveu o gesto. Ela parecia alguém bem fácil de gostar. Até agora dava

para ver que era calma e amável. O que era meio esquisito, já que seu

namorado era seu oposto, mas eu achava fofo. Enquanto ele gritava "sexo,

drogas e mantenham suas filhas longe", ela parecia receptiva e contida.

— Ok, vamos começar o debate — Hunt falou, sinalizando ao

mesmo tempo. — Todo mundo leu o livro, né? Se não leu, saia do meu

apartamento imediatamente. — Havia diversão no seu rosto, mas, ao

mesmo tempo, não parecia que estava brincando.

Ele levava o clube da leitura a sério. Pelo visto, devia amar muito a

namorada. Gina me disse que eles estavam noivos.

Evelyn começou, dizendo que havia gostado muito do romance entre

o Sr. Darcy e a Elizabeth, também elogiou a transferência de inimigos para

namorados. Hunt e Gina tiveram praticamente a mesma opinião que Eve.


Depois, quando chegou a minha vez e senti os olhares sobre mim, comecei

a falar o que havia achado:

— Eu não gostei tanto da história, a escrita até que é boa, mas é

basicamente um livro em que homens classificam as mulheres com base na


aparência e posição social e vice-versa. O Sr. Darcy mal aparecia na

história, não sei como podemos chamar isso de romance, mas, tudo bem. É

só minha opinião.

— Que superficial — Ian murmurou, cortando o silêncio. — Talvez

os homens classificassem as mulheres com base nisso porque a história se

passava numa época diferente da nossa. 

— Sim, mas não falo apenas dos homens — retruquei, lançando a Ian

um olhar feio. — E eles só ficavam visitando uns aos outros. Era chato!

Ele parecia muito relaxado, encostado contra o sofá e com as pernas

longas estendidas. Ian soltou um riso seco.

— É claro, naquela época não tinha muito o que fazer, né? O que

você esperava que eles fizessem? Se reunissem numa festa e cantassem

Justin Bieber? Que, a propósito, não existia.

Me voltei para frente, ignorando Ian.

— Bem, Orgulho e Preconceito é só sobre casamento e dinheiro.

— É, mas casamento era como uma espécie de provisão financeira,

querendo ou não. Pense nele como uma faculdade ou o trabalho de sucesso

de hoje em dia, talvez você comece a entender.

— Tá, já chega — Hunt nos cortou. — Vocês têm opiniões

diferentes. Acontece. Agora vamos escolher o próximo livro…


 

Terminando de passar o batom vermelho cuidadosamente nos lábios,

me afastei do espelho para dar uma olhada completa em minha aparência. 

Meus cabelos estavam soltos e mais longos, finalizados com secador,

o vestido que eu estava usando também era vermelho, mas de um corte

básico, com decote canoa e batendo na metade das coxas. 

Optei por ele porque Diamond havia dito para não ir tão simples, já

que o ambiente era bem frequentado.

Satisfeita com meu próprio reflexo no espelho, passei a alça da bolsa

ao redor do ombro, girando a maçaneta do quarto.

Meus saltos clicaram pelo corredor. Ao alcançar a sala,

surpreendentemente, avistei Ian. Ele não costumava ficar por aqui nos

sábados, ainda mais à noite. Depois que saímos do clube do livro, ele não

tinha voltado para casa. Devia ter chego quando eu estava no banho.

Estava sentado no sofá, os olhos presos na tevê e o cabelo

bagunçado, além de estar com um baseado pendendo em seus lábios. Torci

o nariz para o cheiro de maconha.


Suas íris se prenderam em mim. Não soube decifrar sua expressão,

mas seus olhos rolaram por cada centímetro do meu corpo, antes que ele

voltasse sua concentração para um jogo de beisebol na tevê.

Depois que saí do apartamento, encontrei Gina lá embaixo,

estacionada em frente ao prédio. Andei até seu carro, puxando a maçaneta e

caindo no banco do passageiro com um baque abafado.

Ela estava linda, usava um vestido azul celeste que combinava com

seu tom de pele negra. Os cabelos enrolados também estavam soltos, longos

e cheios.

Depois de colocar o endereço do lugar no GPS, Gina começou a

dirigir enquanto conversávamos. Ela parecia confiante com si mesma.

— Nossa, faz tempo que não fico ansiosa para sair — ela disse.

— É, eu também, tenho que admitir. Parece que o mimado do

Diamond foi útil.

Nós chegamos ao bar depois de vinte minutos. Diamond mandou

mensagem avisando que estava em frente ao lugar, nos esperando na

entrada. Gina e eu procuramos por ele, mas falhamos ao encontrá-lo.

Mandei uma mensagem.

Eu: cadê vc?

Diamond: tô na frente
Eu: mas tem uma fila enorme aqui

Diamond: apenas vem até a entrada 

Diamond estava parado ao lado do segurança, que nos deixou passar

depois de ele murmurar algo. Adentramos no bar, o interior era enorme,


também era o estabelecimento mais luxuoso que eu já tinha posto os pés.

Nós três paramos numa mesa, deixei minha bolsa sobre o tampo,
puxando uma das cadeiras.

Diamond se sentou à minha esquerda, Gina ficou na direita. 

— Nossa, que lugar bonito — murmurei, sobre a música.

— É legal mesmo — Diamond concordou, mas não parecia

impressionado.

— Deve ser costumeiro pra você — desdenhei.

— É mesmo.

Erguendo a mão no ar, ele chamou atenção de um dos garçons.


Diamond pediu um uísque importado, fiquei com uma dose de vodca. Olhei

para Gina. Ela estava focada em seu celular.

Toquei em seu braço, ela ergueu o rosto, olhou para nós e para o
garçom parado ao nosso lado, compreensão atravessou o seu rosto.

— Martini — murmurou, antes de voltar para a própria atmosfera.


Espiando a tela de seu aparelho, vi que ela estava checando suas
mensagens.

Antes que eu pudesse pensar em um comentário cuidadoso para tirá-


la de sua bolha, Diamond foi mais rápido:

— Para de conferir se tem mensagens do babaca.

As palavras chamaram atenção de Gina, que franziu o cenho,

encarando ele. Ela fechou a cara.

— Não tô checando mensagem de ninguém. Você devia cuidar da sua

vida.

Diamond deu um sorriso torto amargo.

— Tá sim, você fica atualizando a aba das mensagens a cada cinco


minutos e quer saber? É a coisa mais patética que eu já vi.

O rosto de Gina corou, ela me lançou um olhar acusatório.

— Você contou o que aconteceu para o Diamond?

Quase engasguei com meu próprio ar.

— O quê? Não!

— Vou tomar um ar — Gina me interrompeu, levantando-se da

cadeira e se distanciando da mesa, até que foi engolida pelo aglomerado de


pessoas, sumindo do meu campo de visão.

Me virei para Diamond, desacreditada.


— Qual seu problema?

— O meu problema? Eu não fiz nada, só falei a verdade.

— Vocês dois são terríveis — murmurei.

O garçom chegou com as bebidas, deixando elas sobre o tampo,


retirando-se rapidamente. Tomei um gole da vodca, Diamond me encarou,
como se esperasse algo.

— Que foi? — perguntei.

— Você não devia ir atrás dela ou sei lá? 

— Deixa a Gina esfriar a cabeça um pouco. Depois eu procuro por

ela. 

Diamond suspirou asperamente, parecia irritado.

— Se você não tivesse dito aquilo, ela ainda estaria aqui. Não fique

irritado.

— Por que é que vocês têm raiva da verdade? A maioria dos caras é

assim, falando com propriedade. O que a maioria de nós busca é sexo.


Vocês colocam muita expectativa na gente.

— Tá dizendo que a gente tem culpa por vocês se atraírem por

qualquer coisa que tenha um par de peitos?

— Não. Tô só dizendo que vocês são ingênuas. O cara que a Gina


tava saindo era músico. O que ela esperava?
— Como você sabe? — Arqueei as sobrancelhas.

— Ouvi ela falando com ele no telefone outro dia, na cafeteria —


admitiu. — Ela disse algo sobre vê-lo em um dos shows, mas parece que

ele disse que estava cansado. Depois que vi vocês duas conversando, liguei
os pontos e presumi o previsível, que ele tinha pisado na bola. Estou

errado?

— Não tá — resmunguei. — Mas graças a seu nariz intrometido,


Gina tá uma fera comigo. Espero que ela acredite em mim.

Diamond terminou de beber o uísque e se levantou da mesa, dizendo

que ia para a pista de dança.  Me ergui da cadeira também, disposta a ir


atrás de Gina. Foi difícil encontrá-la, levou vários momentos, mas a achei

perto do bar, solitária, girando um canudo dentro de um copo com bebida.


Como estava alheia, ela nem percebia o olhar dos caras ao seu redor,
sondando-a.

Passando por algumas pessoas, tomei um assento ao seu lado. Ela

nem percebeu a minha presença. Devia estar perdida nos próprios


pensamentos.

— Gina — chamei, atraindo sua atenção para meu rosto.

— Oi — murmurou, desanimada, voltando-se para frente e fitando

um ponto fixo qualquer.


Havia bastante mágoa em seu olhar.

— Eu não contei para Diamond, ele é esperto. Ele sabia que você

tava saindo com o Atticus, disse que ouviu uma ligação de vocês.

— Tudo bem, eu acredito em você. Só que… Ele tá certo, né? Isso


tudo é patético. Eu sou patética. Como eu pude acreditar que, sei lá, o

Atticus iria querer algo sério comigo?

Toquei em seu ombro, fazendo-a me olhar.

— Gina, você é uma pessoa incrível, não devia se sentir insegura por

causa de um babaca. Ele quem perdeu.

— Eu sei, mas eu não consigo me livrar dessa sensação. — Gina

soltou outro suspiro pesaroso, depois ajeitou os ombros. — Não quero


continuar pensando nele. Vamos para a pista de dança?

Assenti. Nós dançamos juntas, depois encontramos Diamond. A

diversão durou até quase às duas da manhã, quando fomos embora. Meus
pés estavam doloridos quando cheguei em casa, eu também me sentia meio

zonza pelos drinks que havia tomado, então quando tropecei no caminho de
entrar em casa, não me surpreendi. 

Bati os joelhos no chão. Levou alguns momentos para que eu

conseguisse me levantar. Droga de saltos altos.


— Ai, merda — murmurei, tateando cegamente na parede, até que
encontrasse o interruptor.

A luz surgiu num estalo.

Meu coração disparou quando avistei Ian parado na entrada da sala.


Seu rosto estava sério, mas seus olhos pareciam meio sonolentos, ele estava

usando só uma bermuda, o peitoral nu e os cabelos desgrenhados.

— Quer me assustar? — perguntei, fechando a porta atrás de mim e


sentando-me no sofá.

Olhei para baixo. Havia um corte no joelho esquerdo e um filete de


sangue escorria pela minha perna.

— Você quem chegou fazendo barulho. Só vim conferir — Ian disse,

secamente.

— Que pena que acordei você — falei, ironicamente, me pondo de


pé. Meus pés cambalearam um pouco. — Isso é pra você aprender que…

Perdendo o equilíbrio, eu quase fui de encontro ao chão, mas Ian me


segurou antes que eu me espatifasse sobre o assoalho outra vez. Ele me

ergueu, mas continuei escorada contra seu peitoral nu. De tão próximos que
estávamos, eu podia ver pingos dourados nos seus olhos. 

— Por quê? — murmurei um de meus pensamentos. — Por que

todos os babacas são bonitos?


Ian me sentou outra vez no sofá.

— O que houve com o joelho? 

Até tentando se preocupar ele parecia irritado.

— Caí quando entrei.

— É claro — resmungou, sarcástico. — Você é um desastre.

Ian se afastou, indo até a cozinha.

Me remexi no sofá, virando-me para encará-lo. Como se sentisse meu

olhar em suas costas, ele disse:

— Fica aí, não levanta.

Depois de revirar alguns armários, ele voltou para a sala com uma

caixinha de prontos-socorros. Ian se ajoelhou em minha frente, tirando um


dos meus saltos. O toque de sua palma contra meu tornozelo enviou

arrepios por meu tronco. Prendi a respiração por alguns momentos.

Com um pano úmido, ele limpou a camada de sangue seco sobre


minha pele. Depois fez um curativo com um pedaço de esparadrapo e fita.

Durante todo o processo, manteve uma expressão séria de concentração que


o deixava mais atraente do que o habitual.

— Pronto — disse, o olhar erguendo para meu rosto. — Agora vai


dormir, Blakely.
— Por que fez isso? — questionei, quando ele se pôs de pé, prestes a
ir embora.

— Você está bêbada. — Foi tudo o que ele disse.

Houve uma pausa enorme.

Ian começou a se virar, mas eu o chamei outra vez. Seu corpo parou,
ele olhou sobre o ombro.

— O que significa essa tatuagem no meio das suas costas? —


Finalmente tive coragem para perguntar, porque ela parecia ter um

significado pessoal.

Os olhos com padrões de íris diferentes e lágrimas de sangue.

Ele piscou, sendo pego de surpresa. Parecia não esperar uma


pergunta como essa, então seu olhar escureceu subitamente. O Ian que se
importou por alguns momentos havia partido. Agora restava apenas aquela
versão dele que eu desprezava, a versão fria e indiferente.

Um calafrio correu pela minha espinha.

— É um olho que reflete o coração. 

Essas foram as únicas palavras que ele me disse. Uma explicação


breve.

Então, Ian voltou para seu quarto, deixando-me sozinha.


Lavei o rosto antes de me deitar, recobrando um pouco dos meus
sentidos. Antes de pegar no sono, pesquisei no Google o significado da

tatuagem de Ian.

Olhos que refletem o coração.

Depois de alguns momentos de pesquisa, descobri o que a tatuagem


de Ian, em específico, significava. O desenho do padrão dentro dos orbes da
tatuagem significava trauma a partir da morte de uma pessoa muito
próxima.
 

Ian estava no chuveiro há cerca de vinte minutos. Embora a gente


morasse juntos, nos primeiros dias, não tive empecilhos para tomar banhos

antes de ir para a lanchonete. Mas, agora, estava tendo um grande


problema.

Meu palpite era que ele havia estudado meus horários e feito

propositalmente para me irritar, porque ele sempre estava dormindo quando

eu saía, ou pelo menos eu pensava que sim.

De qualquer forma, era incomum que ele tomasse banho,

convenientemente, no horário em que eu precisava tomar.

Bati o punho fechado contra a porta com força.


— Sai daí logo, idiota. Quer acabar com a água do planeta? — falei

alto o suficiente para que ele escutasse.

Como resposta, recebi o nada, apenas o silêncio e o ecoar da água do

chuveiro do outro lado da porta.

Suspirando, eu esfreguei meus olhos. Geralmente eu ficava grogue de


sono quando acordava, os banhos que me despertavam.  

Um momento depois, a água do chuveiro parou. Ian abriu a porta, a


cortina de vapor quente bateu contra meu corpo, assim como o aroma de

frutas vermelhas, que eu sabia que pertencia ao meu sabonete líquido

pessoal que deixei na bancada do banheiro. 

Meu olhar se conectou ao seu. Ian parecia muito relaxado, como

sempre. O rosto estava sério e as íris, indiferentes.

Havia apenas uma toalha enrolada ao redor de sua cintura e eu me

forcei a manter meu olhar acima de seu pescoço, porque todo o resto era

proibido.

Travei as mandíbulas.

— Sério? Vai usar meu sabonete? — perguntei.

— Vou, se você deixá-los por aí. Aliás, também gostei do shampoo

de pêssego…
Ele se aproximou, gotículas de água rolando de seus cabelos para seu

rosto. Seus cílios estavam molhados, de forma que ficavam mais longos e

davam destaque aos olhos azuis, que pareciam tão penetrantes que me

deram nos nervos. 

Recuei para trás, ele avançou.

Recuei mais, até que minhas costas bateram contra a parede.

Ele se aproximou.

Menos de um palmo de distância nos separava agora.

— Dá pra sentir o cheiro? — Ian murmurou, a voz grave me dando


calafrios, conforme ele se curvava em minha direção, apoiando as mãos em

cada lado da minha cabeça, formando uma  espécie de jaula com os braços

e me prendendo entre seu corpo firme e a parede.

O cheiro do shampoo exalou até meu nariz. 

— Você é a pessoa mais desprezível que eu conheço — resmunguei.

—  E você é a mais megera — ele devolveu o insulto.

— Eu te odeio — falei, meu olhar alternando entre seus olhos e sua

boca.

— Eu te odeio mais.

Houve um momento de silêncio antes que eu o empurrasse, tirando-o

do meu caminho. Passando por ele, eu adentrei no banheiro, batendo a porta


com força atrás de mim. Depois que tomei banho, tirei todas as coisas que o

babaca do Ian pudesse usar de lá, deixando-as em meu quarto.

Me preparei para a cafeteria. Coloquei o uniforme branco, penteei o

cabelo e até passei um pouco de perfume. No metrô, eu quase peguei no

sono, mas resisti ao impulso de fechar os olhos e simplesmente dormir em

um dos bancos.

Quando cheguei na lanchonete, o clima entre Gina e Diamond estava

estranho. Eles lançavam olhares esquisitos um para o outro, às vezes

bufavam quando se aproximavam não intencionalmente e fechavam a cara.

Fiquei observando tudo em silêncio, até que quando tive um tempo,

me aproximei de Gina, no caixa.

— Que foi? — perguntei para minha amiga. 

Ela rolou os olhos, cruzando os braços sobre o peito.

— Não aguento mais esse idiota mimado — murmurou. — Sério, ele

é insuportável. 

— O que houve? 

— No bar! — ela disse, como se eu fosse burra, se referindo ao que

tinha acontecido no bar. — Não lembra de como ele agiu? Enfiando o nariz

onde ninguém o chamou. 

Dei um sorriso forçado.


— Achei que vocês já tivessem resolvido suas desavenças.

Gina rolou os olhos pela milésima vez. Parecia muito mal-humorada,


como se alguém tivesse acabado de pisar em seu sapato pela vigésima vez

no dia. Nós voltamos ao trabalho. Durante a pausa, fui falar com Diamond.

Como o habitual, ele estava fumando um cigarro na parte detrás da


cafeteria.

— Gina tá brava com você — falei, observando-o.

Ele ergueu um dos ombros, indiferente.

— Que pena. — Ironia escorria por seu tom de voz.

— Vocês parecem duas crianças.

— Já disse, Blake. Só sou honesto. Ela que parece uma criança por

não gostar da realidade. 

Bufei, tirando uma mecha de cabelo que caía sobre meus olhos.

Tentar fazer com que eles se entendessem era uma tarefa impossível,

aparentemente. Nenhum deles estava sendo racional. Também, Diamond e

Gina nunca foram amigos. Acho que eles sempre se suportaram. Apenas

isso.

— Como tá a faculdade? — perguntei, mudando de assunto.

Diamond tragou. Soltou a fumaça entre os lábios, que dissolveu

como torvelinho em direção ao céu.


— É entediante. Só tô cursando administração porque meus pais

querem. Se pudesse, faria outra coisa.

— Que droga, já tentou falar isso para eles?

Diamond suspirou frustradamente.

— Você não entende, Blake. Não é como se fosse uma opção minha.

Eles planejaram cada passo da minha vida desde quando eu era um

embrião. Nesta época, meus pais já tinham feito uma poupança para mim e
planejado em que escolas eu estudaria até Harvard.  — Ele sorriu

amargamente. — E aqui estou eu, agindo sempre como a porra de um robô.

Aquela foi a primeira vez que Diamond deixou de sustentar a fachada

de perfeição. A aparência perfeita, o status perfeito, a família rica e —

quase — perfeita.

— Um dia você devia se rebelar — sugeri, não sabendo muito bem o

que dizer. Eu não tinha família, fui criada por minha vó, que estava morta,

convivi com minha mãe apenas por três ou quatro verões e meu pai…?

Quase um fantasma.

— Um dia — ele concordou. — Por enquanto, posso gastar o

dinheiro deles, né? — Arqueou a sobrancelha cor de areia, de um jeito

travesso.

Eu soltei uma risadinha.


— Touché.

Depois do expediente naquele dia, eu estava cansada. Quando

cheguei em casa, tirei os sapatos, indo até a cozinha e procurando pelo

pedaço de torta de limão que eu tinha deixado na geladeira mais cedo,

comprado em uma das melhores confeitarias de Boston.

— Ah, não — murmurei, quando fechei a porta da geladeira e vi o

papel em que a torta estava embrulhada jogada propositalmente sobre a

bancada, para que eu visse.

Marchando até o quarto de Ian, escancarei a porta, que bateu contra a

parede, fazendo com que um baque alto pairasse no ar.

Meus olhos vasculharam pelo quarto, parando até encontrá-lo.

E lá estava ele, sentado em sua cama, o peitoral cheio de tatuagens

nu, o resto do corpo escondido embaixo do cobertor, o rosto corado, o braço


direito se movendo, uma das mãos enfiadas dentro da cueca…

Se masturbando.

— Ai, meu Deus! — falei, me virando para a parede oposta, sentindo

o rosto começar a pegar fogo.

— Pode olhar, não me importo — falou, o tom de voz baixo e rouco.

Por que é que Ian tinha que ser tão… Ian? Tentando parar de projetar

a imagem de Ian se masturbando em minha cabeça, forcei-me a lembrar


porque eu estava ali. Não poder encará-lo naquele momento me deixou com
mais raiva ainda.

Ignorei o que ele tinha dito.

— Sério, da próxima vez que você mexer nas minhas coisas eu irei
estrangulá-lo com minhas próprias mãos.

— Nossa, que ameaçadora — murmurou, claramente sendo irônico.

— Blakely, eu tô prestes a gozar. Dá para sair do meu quarto?

Abri a boca e a fechei, tentando pensar numa resposta boa, mas eu

tinha que sair dali já que as circunstâncias não eram favoráveis. Com raiva,
voltei para a cozinha, então comecei a etiquetar cada um dos itens na

geladeira e nos armários que eu tinha comprado com o meu nome. Não
queria que ele pegasse nada que fosse meu.

No meio do processo, Ian apareceu na cozinha. Ficou me encarando

com um olhar de tédio, os braços fortes cruzados em frente ao peitoral. Ao


me lembrar da cena que se desenrolou no seu quarto, senti o rosto corar. Me

voltei para frente.

— Que patético — murmurou.

Olhei para ele sobre o ombro, enquanto grudava uma etiqueta na

caixa do meu cereal predileto.

— Você que é patético, seu babaca desprezível — retruquei.


— É? — debochou. — Sabe que isso não vai me impedir de pegar
suas coisas, né?

Senti as orelhas arderem.

— Não tô brincando, Ian. Não mexa nas minhas coisas. Fique fora do

meu caminho e eu vou ficar fora do seu, tá? É bem simples. — Suspirei. —
Você complica as coisas.

— Você vai ficar fora do meu caminho? — ele perguntou, dando um


passo em minha direção. Enrijeci com sua menção de se aproximar. — Você

se enfiou na porra do meu caminho, Blakely. Você se jogou nele.

Franzi o cenho. Ian continuou:

— Você tem que ir embora daqui.

— Eu vou, não se preocupe. Tudo que menos quero é continuar


vivendo sob o mesmo teto que o cara mais insuportável do planeta terra. E,
acredite, assim que eu tiver o dinheiro necessário e achar o lugar ideal, vou

me mandar. Você vai piscar e eu vou estar fora, o mais longe possível!

— Ótimo — ele disse, secamente. — Mas, por enquanto, você está


aqui. E sua presença me irrita. O mínimo que posso fazer é retribuir. Você

não vai ter paz, Blakely.

Cerrei os punhos, começando a sentir raiva como nunca tinha sentido

antes. 
— É esse o jogo que vamos jogar, então? — perguntei, desafiando-o.

Ian arqueou uma sobrancelha.

— Não pode querer jogar sabendo que vai perder.

Eu quis socar seu rosto naquele momento, até a prepotência deixá-lo.

— Ok, então vamos ver. — Foi tudo o que respondi, controlando


minha respiração e minhas emoções.

Aquele era um terreno novo para mim, por mais que eu achasse a
presença de Ian desagradável, eu nunca havia feito nada para que ele se

sentisse desconfortável aqui no apartamento, ao contrário dele, que estava


sempre tentando me irritar. Tudo que eu fiz até agora foi resistir.

Ele não disse nada, ficou em silêncio. A tensão entre nós dois era

gritante. Ian, silenciosamente, deixou a cozinha.

Era hora de tirá-lo do sério, também.


 

antes

Não era justo alimentar as falsas esperanças de Blakely depois de

tanto tempo. Dava para ver que ela havia criado expectativas sobre nosso
reencontro.

Eu havia vindo morar com meu pai no começo do ano, quando minha

mãe morreu. Não era o que eu queria, nem ele. Mas eu faria dezoito anos

dentro de três semanas e estaria oficialmente livre. Blakely e eu não nos


veríamos mais depois disso, porque eu iria embora para sempre e seria fim

do verão para ela.

Acendi o cigarro em meus lábios, já era noite eu estava no píer,

observando a lua solitária no céu limpo.


Estava acontecendo uma fogueira a alguns metros daqui. O riso das

pessoas me atingiam, junto ao burburinho de conversa distante. A noite

estava bonita, de um jeito triste. Pelo menos para mim. Era um dos dias em

que eu sentia meu peito vazio.

De que a saudade era insuportável.

Minha mãe odiava cigarros, eu me sentia mal por ter um em meus

lábios no momento, mas era uma das poucas coisas que me deixavam

entorpecido ultimamente. Eu me lembrava como se tivesse sido ontem de

uma das nossas últimas conversas.

— Não se mexa — pedi, para minha mãe, quando ela tentou se

levantar da cama.

A enfermeira tinha acabado de sair de nossa casa. Ela devia voltar em

alguns minutos. Eu tentei impedir minha mãe, mas ela me chispou com um

aceno brusco de mão e um olhar feio.

— Ian, eu não estou morta ainda.

Suas palavras foram dolorosas, porque era como se ela tivesse

aceitado o seu destino. 

Observei minha mãe caminhar até a janela com o banco recém-

instalado. Minha mãe adorava ficar perto da janela, porque ela dizia que era

de onde vinham suas inspirações para os livros que ela gostava de escrever
antes de sua insuficiência cardíaca evoluir para um estágio grave. Ela já

tinha publicado cerca de sete livros, alguns deles haviam feito sucesso

considerável. O suficiente para termos uma casa de dois andares num bairro

de classe média.

Apesar de ter feito um implante de desfibrilador cardíaco, o caso de

minha mãe era realmente preocupante, por isso ela estava na fila de espera

de um coração novo.

E havia milhares de pessoas em sua frente.

— Obrigada pelo banco — minha mãe agradeceu, ao se sentar nele.

Não era um dos melhores, mas eu juntei dinheiro trabalhando o verão

inteiro para comprá-lo. Um dos motivos de eu não ter conseguido voltar

para Oak Springs.

— Qual o nome dela? — a pergunta de minha mãe me fez encará-la

com surpresa.

— De quem?

— Da garota que você está pensando.

— Não estou pensando em ninguém — menti, cruzando os braços

em frente ao peito.

— Diga — ela insistiu, o tom de voz firme.


— É Blakely, mãe. — Rolei os olhos, andando até a cômoda e

fingindo observar um de nossos porta retratos.

Na foto, minha mãe me segurava em seus braços, quando eu ainda

era bebê, e sorria alegremente para a câmera. Por mais que minha mãe

estivesse fisicamente frágil e fraca, ela ainda era uma das pessoas mais

fortes que eu conhecia e continuava cheia de personalidade.

Às vezes, eu me perguntava como ela conseguia.

Como ela conseguia ser quem era mesmo estando morrendo?

— Deixe-me adivinhar, ela é seu oposto — minha mãe deduziu,

acertando em cheio e atraindo meu olhar para si. Ela bateu o dedo indicador

contra o queixo, pensativa.  — Deve falar além da conta, deve te irritar um

pouco por isso porque você parece um monge necessitado por silêncio e…

— Já chega, mãe — eu a interrompi, não gostando por ela ter


conseguido descrever a Blakely com suas deduções inteligentes que

pareciam mais um poder paranormal.

— Foi em Oak Springs?

— A gente pode não falar sobre mim? Que tal falar sobre seu

medicamento, acho que já tá na hora…

Comecei a abrir a garrafa de água que estava na cômoda, junto com

um dos comprimidos já separados. A pontualidade era crucial.


— Ian! — minha mãe esbravejou. — Quero saber de tudo.

— É, foi em Oak Springs. 

Andei até ela, oferecendo a água e o remédio. Minha mãe ingeriu

rapidamente, então voltou com o questionamento, para meu aborrecimento.

— O que aconteceu?

— Ela foi embora, só vai para lá nos verões, como eu.

— Você devia visitá-la, o verão ainda não acabou.

— Eu não vou te deixar aqui. Também não quero olhar para o

maldito do Hawk.

— Olha a boca — minha mãe repreendeu.

Eu não queria lidar com Hawk, ainda mais porque da última vez que

nos vimos ele quase chamou a polícia por eu ter o enforcado. Fui embora

um dia depois que Blakely partiu, e nossa relação ficou mais complicada do

que já era. Era uma surpresa que ele não tivesse cortado o dinheiro do

tratamento de minha mãe.

— Apesar de tudo, ele é seu pai — a mulher sentada em minha frente

me lembrou, com um semblante sério.

Eu não queria discutir sobre ele e para mudar o foco sem que minha

mãe percebesse, falei de Blakely.

— Ela tem olhos bonitos. Verdes.


— E o cabelo?

— Castanho escuro, quase preto.

Minha mãe começou a anotar as informações em seu bloco de ideias.

Um vinco profundo se formou entre minhas sobrancelhas.

— O que você está fazendo?

— Criando a aparência física da minha próxima personagem.

— Tá de brincadeira…

Ela não me respondeu.

— E o personagem principal? — murmurei, com sarcasmo. — Vai

dizer que ele tem um e oitenta, cabelo castanho e olhos azuis?

— Sim.

— Você tá me descrevendo, então. Eu não lembro de ter autorizado

isso. Deve existir algum código de violação.

— Eu te pari, não preciso de autorização.

Ela tinha um ponto.

Um ponto muito bom.

Soltei um gemido de frustração.

— Você vai escrever um livro sobre mim e a garota?

— Se você me contar os detalhes, talvez.


— Não vou te contar os detalhes.

— Isso é o que a gente vai ver. — Minha mãe piscou em minha

direção.

No fim, eu contei tudo para ela, porque não havia nada que eu não
faria pela minha mãe. Se eu pudesse, eu doaria o meu coração para ela, eu

moveria montanhas e atravessaria o inferno para salvá-la da doença. Mas eu

não podia. E era essa sensação de imponência, de sentir que eu iria perdê-la

que me fazia ter medo.

Porque com sua partida, levaria com ela a melhor parte de mim.

Foi o que tinha acontecido.

Eu olhei para o lado no momento em que Blakely se juntou à roda de


pessoas.

Estava usando um vestido branco e acompanhada de uma garota que


eu não conhecia. Seu cabelo escuro estava solto, caindo sobre seus ombros
em cascatas. Não demorou muito para que um cara se aproximasse dela,

afinal, estava bonita.

Blakely me deixou vidrado.

Eu acompanhei seus movimentos com os olhos. Vi quando o estranho


tirou o cabelo do rosto dela, a ofereceu uma garrafa de cerveja e também
observei quando eles se levantaram das cadeiras dispostas na areia, se
afastando de todo mundo.

Levantando-me, e jogando o cigarro fora, eu comecei a acompanhá-


los pela orla, mantendo uma distância segura.

Eu parei quando eles alcançaram um lugar oculto próximo a rochas.

Geralmente era para cá que alguns pescadores vinham quando a maré


estava favorável. Eles se beijaram. Senti meu coração bater de um jeito

errado. 

Um jeito esquisito.

Estranhamente doloroso.

Enfiei as mãos no bolso, e dei meia-volta, pronto para sair dali,

quando ouvi Blakely dizer "para".

Achei que estivesse ouvindo coisas, mas me virei e captei o momento


em que Blakely lutava para tirar as mãos do cara que se infiltraram por

baixo do seu vestido. Ele não parou.

Tropecei para a areia, correndo até ela como se a minha vida

dependesse disso. Quando o alcancei, eu o arranquei de perto de Blakely e


acertei um gancho de direita em seu queixo. Ouvi o estalo do osso sendo

deslocado, os nós dos meus dedos arderam, Blakely soltou um som em


surpresa.
Olhei para ela. Seu corpo tremia.

Apanhei sua mão, deixando o babaca para trás, por mais que eu
quisesse acabar com ele, minha prioridade era Blakely.

— Está machucada? — perguntei, meus olhos vasculhando por seu

corpo.

Eu estava pronto para dar meia volta se ele tivesse causado danos

físicos.

— Não — Blakely murmurou.

— Ótimo. Vou chamar a polícia.

Nós ficamos ali até que uma viatura chegasse pela orla. Explicamos o
que aconteceu, eles levaram o idiota e o silêncio desconfortável caiu sobre

nós. Começamos a avançar lentamente pela areia.

— De onde você surgiu? — Blakely perguntou, meio hesitante.

— Estava perto e te ouvi — murmurei, mentindo. Não podia admitir

que estava seguindo-a.

— Obrigada — Blakely resmungou.

Não respondi, o silêncio constrangedor retornou. Muita coisa tinha

mudado e, ao mesmo tempo, parecia que não. Blakely parou de andar e eu


parei também, olhando-a. Sob a luz do luar, ela ficava ainda mais bonita.

Havia muitas perguntas não ditas em seu rosto.


— Ian… Por quê? — Blakely indagou, os olhos mais tristes e bonitos

que eu já havia visto.

Seus lábios tremiam.

Me distanciei dela quando percebi que tínhamos nos aproximado

muito. Cada membro do meu corpo doeu ao fazer isso.

Doeu ainda mais ao ver a dor em suas íris.

Era por isso que eu não a merecia. 

— Sinto muito.

Blakely balançou a cabeça, os olhos ficando brilhantes. Foi a

primeira vez que ela me olhou com algo parecido com ódio. Algo que
ultrapassava raiva. Um olhar que não combinava com seu rosto bonito e

angelical.

— Eu te odeio, Ian — Blakely disse de forma quase inaudível, mas


era como se o vento tivesse arrastado as palavras até mim, sussurrando-as
em meu ouvido.

Eu te odeio.

Três palavras. Três golpes em meu peito.

Mas eu sabia que merecia.

Então, ela correu em direção a fogueira, para longe de mim. O tempo


virou de repente, como uma cena de filme patético. A chuva começou a
desabar sobre minha cabeça, molhando minhas roupas. Eu só fiquei parado,

enquanto a dor me engolia.

Era sete de julho, o dia em que eu percebi que amava Blakely. Mas
também foi o dia em que eu entendi que eu nunca poderia fazê-la feliz.

 
 

— Aqui que você mora? — Elle questionou, adentrando em meu


apartamento.

Ela olhou ao redor, estava usando um lenço na cabeça raspada hoje.


Combinava com ela. Seus olhos castanhos percorreram a sala, numa análise

minuciosa. Eu não achava que ela estava julgando, minha irmã só era uma

pessoa bem observadora, do tipo que decorava os detalhes.

— É, sim — falei, espiando ao redor e torcendo para que Ian não

estivesse, era domingo à tarde.

Não ouvindo nenhum ruído no interior, suspirei em alívio. Seria

embaraçoso se ele agisse feito um babaca na frente da minha irmã mais

nova. 
— Legal, eu gostei — Elle murmurou, andando até o sofá e se

sentando. — Você divide o apartamento, né?

— Sim.

— Onde está ele, ou ela? — perguntou, parecendo curiosa.

— É uma boa pergunta. E ele não tá aqui — resmunguei, indo até a

cozinha e abrindo a geladeira. — Quer um pouco de água?

— Quero.

Houve uma pausa antes que Elle voltasse a falar:

— Vocês se dão bem? Ele é bonito? Alto ou baixo?

 — Não vamos falar do meu companheiro de apartamento. — Eu me

voltei para a sala após encher o copo de água. O entreguei para Elle. Ela me

encarou com curiosidade. — Vamos falar de você.

Elle bocejou, recostando-se contra o estofado e segurando o copo

entre as mãos.

— Não tem muito o que falar sobre mim.

— Aposto que tem. Me diz, tem alguém que você goste? —

questionei.

Vi o jeito como o canto de seu lábio inferior mexeu antes que Elle

negasse com a cabeça e desviasse o olhar, bebendo a água. Esperei que ela

terminasse de engolir para sondá-la.


— Você mentiu. Eu percebi.

— Como? — perguntou, me encarando. Depois, percebendo que

tinha se denunciado, ela apertou as pálpebras, dizendo um “droga”

baixinho.

Eu ri, depois cutuquei meu joelho no seu, sentando-se ao seu lado.

— Me conta, vai. Por favor.

— Só se você me der detalhes sobre seu companheiro de

apartamento.

Suspirei.

— Ok. 

Elle limpou a garganta antes de começar a falar:

— É, tem alguém, mas a gente nunca se falou, ele só aparece

algumas vezes lá no hospital que eu vou fazer quimioterapia. — Minha

irmã começou a brincar com as pulseiras no pulso. — Ele não está doente,

como eu. Ele vai visitar alguém. Às vezes ele até dorme lá nos bancos, é

bem fofo.

— Você já falou com ele?

— É claro que não! — minha irmã disse, como se a ideia fosse

absurda.

— Por que não?


— Porque eu estou careca e pálida. Não dá para flertar assim.

As palavras de Elle me atingiram, porque eu nunca havia pensado em

como o câncer realmente a abalava. Pelo visto, sua autoconfiança também

era afetada…

— Você é linda, Elle, sempre foi. Continua linda do jeito que está —

falei, esperando que ela sentisse honestidade em minha voz.

— Obrigada — murmurou, limpando a garganta. — Agora conta

sobre o cara que mora aqui.

— Droga, pensei que você já tinha esquecido…

No próximo momento, o rangido da porta sendo aberta pairou no

ambiente. Ian adentrou no apartamento, os cabelos despontados para todos

os lados, usando uma jaqueta de couro, jeans e coturnos desamarrados. 

Seus olhos azuis impessoais varreram a sala, parando em mim e na

minha irmã por alguns momentos. 

Ele tirou a jaqueta, deixando-a pendurada no antebraço, então

caminhou até a cozinha após dizer:

— Lenço maneiro.

Elle corou, me olhando com surpresa. Eu fitei as costas de Ian

enquanto ele pegava o galão de leite que eu havia comprado e bebia direto

do gargalo.
Me deu vontade de gritar com ele, mas eu não queria fazer uma cena

na frente da minha irmã.

— Ele é lindo — Elle sussurrou, ou pelo menos tentou, havia sido o

sussurro mais alto que eu já tinha escutado.

Olhei sobre o ombro. Ian estava encostado contra a bancada, bebendo


o meu leite. Ele me lançou uma piscadela pelas costas de Elle. Segurei a

vontade de rolar os olhos.

— Ele é comum — eu disse, “baixo”.

Ian veio até a sala, ele encarou minha irmã.

— Você me acha comum? — perguntou casualmente, o rosto sério.

Elle analisou seu rosto, depois o corpo, então, chegou à conclusão

óbvia:

— Não — ela disse, parecendo meio envergonhada pela atenção que

estava recebendo.

O babaca estava conquistando a minha irmã mais nova. Senti uma

pontada de ciúmes, por mais ridículo que fosse.

— Vamos dar uma volta, Elle? — murmurei, já me pondo de pé.

— Quer ouvir algumas das minhas músicas? — Ian questionou para

minha irmã, como se eu não estivesse ali.

— Não, ela não quer.


— Não me lembro de ter te citado — Ian retrucou.

— Você tem que parar de ser intrometido, não tem que se meter com

a minha irmã!

— Não sei como ela pode ser irmã de um ser tão desprezível como

você, Blakely. Além de que a Elle é bonita e você é só… — Ian me olhou

dos pés a cabeça, parecendo analisar e somar os pontos da minha aparência

em sua cabeça, conforme seus critérios. — Você até que dá para o gasto —

murmurou, em tom de conclusão.

— A Elle é linda mesmo — eu disse, com raiva. — Mas você nunca

reclamou da minha aparência enquanto estava com a língua na minha boca,

seu verme…

— Olha a boca… — Ian censurou, lembrando-me de que minha irmã

estava ali, com a gente.

Me calei, lançando a ela um olhar de desculpas, mas Eleonor parecia

bem entretida, para falar a verdade.

— Vocês dois são engraçados — Elle resmungou, parecendo se

divertir.

Elle se desculpou com Ian por não poder escutar suas músicas

naquele momento, porque iria passar a tarde comigo. Vitoriosa, eu mostrei


o dedo do meio para ele antes de fechar a porta e guiar minha irmã mais

nova até o elevador.

Nós fomos para uma sorveteria, depois passamos numa loja de itens

para decoração. Elle e eu compramos um porta-retratos fofo para

colocarmos uma foto nossa depois que a imprimíssemos. 

Depois, a levei de metrô até a estação mais próxima de sua casa. De

lá, chamei um táxi. Eu a deixei em frente ao condomínio, quando ela me

perguntou se eu queria entrar, falei que tinha compromisso, mas, na verdade


eu só não me sentia confortável.

Eu não sentia que pertencia a essa parte de sua vida.

Eu era como uma peça a mais no quebra-cabeça da vida luxuosa e


com pais estáveis que Elle tinha.

Nós nos despedimos e eu voltei para casa.

Quando cheguei no apartamento, me lembrei da academia que tinha


no prédio que eu queria testar. Coloquei uma roupa confortável e desci as

escadas até lá.

Não me surpreendi quando vi Ian erguendo dois halteres. 

Além da gente aqui embaixo, havia algumas mulheres na casa dos


quarenta anos que corriam nas esteiras, lançando olhares furtivos para Ian,
que mal parecia se dar conta.
Fala sério. Era ridículo a forma como ele se tornava a atração
principal de qualquer ambiente que estava. 

Mal-humorada, eu caminhei até o lado oposto que Ian estava e


comecei a me exercitar. No meio das repetições, percebia o olhar de soslaio

de Ian.

Ele se aproximou lentamente, os braços torneados expostos na regata


em que ele usava, junto com todas as tatuagens. Acho que eu nunca tinha

visto ele tão bonito antes. Isso porque estava todo suado, com cabelo
grudado em sua testa.

— Vai lesionar o joelho assim — falou, com desdém, colocando as

mãos na cintura enquanto me fitava.

Parei, olhando para ele com raiva.

— Que foi? Virou professor de repente?

— Não, só tô avisando. Você tá projetando o joelho muito para frente

e, para ser bem honesto, você é horrível.

Senti o rosto esquentar. Eu nunca havia ido para academia ou feito

exercícios de maneira regular. Tudo que eu estava tentando fazer era da


época que eu tinha quinze anos e usava a academia do ginásio em minha

cidade natal, a instrutora de lá era péssima.

— Vai me ensinar ou só vai ser um grande babaca? — murmurei.


— Volte para a posição — ele disse, sério.

Eu apoiei o pé deitado no banco atrás de mim, pondo espaço entre a


outra perna que estava de pé e me esforçando para manter equilíbrio.

— Faz o movimento — Ian voltou a instruir.

Eu levei o joelho dobrado em direção ao chão.

— Lembre-se, essa só é a perna de apoio — resmungou. —


Mantenha o tronco inclinado, desta forma. — Sua mão pousou na base de

minha coluna, guiando-me. Senti um calor esquisito se espalhar por meu


corpo. Quase prendi a respiração. — Agora faz.

Repeti o movimento.

— É, melhorou.

Então Ian se distanciou, como se não me conhecesse. Minha mente


quase deu um giro. Nossa dinâmica estava diferente nos últimos tempos.

Nós nos odiávamos, mas tinha os momentos em que não parecia que nos
odiávamos tanto.

Na verdade, era mais como se Ian se esquecesse de ser um idiota total


por alguns segundos.

Depois de uns trinta minutos, eu voltei para o apartamento, Ian tinha

subido cerca de dez minutos atrás.

O chuveiro estava ligado.


Preparei um sanduíche para mim enquanto esperava que ele saísse do

banheiro. Eu estava suada e queria desesperadamente tomar um banho.

De repente, começou a chover lá fora.

Fiquei próxima das portas da varanda, observando o horizonte escuro

e as gotas de água batendo contra o vidro.

De repente, houve um estalo. Todas as luzes do apartamento


desligaram. Murmurando um palavrão, liguei a lanterna do meu celular,

ainda mastigando o sanduíche.

O chuveiro parou, mas não ouvi nenhum barulho de Ian.

Comecei a me sentir esquisita.

Um fato humilhante sobre mim: eu odiava o escuro e filmes de terror.

Deixando o sanduíche sobre a bancada, eu avancei sobre o corredor,

o silêncio total me dando nos nervos. A porta do banheiro estava


entreaberta, mas não vinha nenhum som de lá.

— Ian? — chamei, começando a suar.

Empurrei a porta devagar, que soltou um rangido longo e agonizante.

Então algo puxou meu cabelo. Eu tropecei para trás, batendo as


costas contra a parede e soltando um grito. Quando Ian surgiu em minha

frente, vestindo apenas uma bermuda e com o peitoral ainda úmido, eu


ofegava.
— Babaca infantil — eu murmurei, tentando controlar as batidas do

meu coração.

Ian me encarou com seriedade, mas havia um brilho lúdico em seu


olhar, quase imperceptível sob a meia luz da minha lanterna do celular.

— Pelo visto, você ainda tem medo de escuro.

Me surpreendia que ele se lembrasse.

Em silêncio, eu passei por ele, esbarrando em seu ombro


propositalmente e me trancando em meu quarto.

Seria uma noite longa.


 

Levou quase uma semana inteira para eu me decidir sobre o presente


de aniversário que eu entregaria a Elle e, mesmo hoje, no dia da festa, eu

não me sentia tão confiante sobre a minha escolha. Segurando a caixa


retangular em minhas mãos, eu pressionei meus lábios juntos enquanto

fitava a casa enorme em minha frente.

Eu nunca me acostumaria com o tamanho dela.

Minha irmã surgiu na porta da frente um momento depois. Ela estava

bonita, usava um vestido verde e argolas. Eu a abracei, pressionando-a

firmemente contra meu peito. Era boa a sensação de tê-la em meus braços,
quando não a soltei, Elle soltou um riso que foi abafado contra minha blusa.

— Feliz aniversário — falei.


— Parece que alguém tá carente — murmurou.

Franzi o cenho, talvez eu estivesse mesmo.

— Cala boca, deixa eu abraçar minha irmãzinha. 

— A irmãzinha tá ficando sem ar.

Eu soltei Elle. Nós nos afastamos um pouco, então mostrei meu


presente à ela, estendendo-o em sua frente. Ela sorriu, segurando a caixa

turquesa com fita de cetim vermelha.

— Não precisava.

— Eu jamais me perdoaria se não trouxesse um presente.

Elle rolou os olhos.

— Você é boba. Vem, entra. Todo mundo já tá lá atrás. — Ela me deu

espaço, deixando meu presente junto de uma pilha de presentes que havia

no hall.

Achei que a festa de aniversário de Elle seria apenas para uma

quantidade restrita de pessoas, mas me enganei quando saímos para a

enorme área que ficava atrás da mansão. 

Havia mesas espalhadas por todo jardim, gente conversando e

comendo. Cozinheiros se moviam com confiança em frente às

churrasqueiras e alguns garçons levavam copos vazios e serviam bebidas.

Parecia um pequeno evento.


Nós nos movemos até uma mesa em que estava meu pai, sua esposa

Hanna e duas outras mulheres que eu não conhecia.

— A Blake chegou, pai — Elle disse, animada, tocando o braço de

John.

Ele parou a conversa, lançando um olhar em nossa direção. Seus

olhos se iluminaram com algum tipo de satisfação ao me avistarem ali.

— Que bom que veio, Blakely. Sentem-se.

Eu sorri educadamente para Hanna e as outras duas mulheres que

pareciam suas sósias. Uma era mais velha, que presumi ser sua mãe e, a

outra, parecia ser dois ou três anos mais nova. Todas igualmente loiras, com

sorrisos falsos — estes, por sua vez, direcionados a mim.

Após as apresentações, descobri que a senhora realmente era mãe de

Hanna. Já a outra, apenas sua irmã.

— Quer comer? — Elle perguntou para mim, mordiscando um

canapé. 

— Por enquanto não, obrigada.

A conversa na mesa era entediante, eles estavam falando sobre

negócios. Depois de alguns momentos, pedi licença para ir até o banheiro,

mas ao adentrar na casa, percebi que não sabia onde o banheiro ficava e que

devia ter perguntado.


Subi as escadas até o andar de cima. O interior todo do lugar estava

silencioso. Andei pelo corredor extenso, abrindo a primeira e segunda porta.

Nenhuma delas era a correta. Ao abrir a terceira, parei, fitando o quarto


enorme. 

A luz do dia se infiltrava pelas janelas, o que permitia que eu visse

tudo com clareza. Meus olhos passearam pelos detalhes até pararem no

quadro que ocupava quase toda a parede. Era uma fotografia de Hanna

quando estava grávida de Elle.

Ela sorria para câmera, com aquele ar de solenidade.

Prestes a fechar a porta, me sobressaltei quando me virei, deparando-

me com o mesmo rosto do quadro, só que um pouco mais envelhecido

agora.

Hanna me encarava com as sobrancelhas arqueadas.

— Posso ajudá-la, querida? — falou educadamente, mas não passou

despercebido por mim seu tom de voz jocoso.

— Estava procurando pelo banheiro…

— Última porta à esquerda.

Hanna sorriu.

Devolvi a ela um sorriso igualmente forçado.


Após usar o banheiro, lavei as mãos e desci as escadas. Voltei para a

festa. Antes de retornar para a mesa em que Elle estava, coloquei alguns

aperitivos num prato. Perto de mim, vi a irmã de Hanna, Ophelia, ela

segurava uma taça de vinho branco enquanto conversava com duas

mulheres.

— Ela não tem mais tempo para nada. Só vive no hospital… —

Ophelia disse, o tom de voz baixo, mas me atingindo. 

Arqueei uma sobrancelha.

— Uma pena que a Hanna tenha praticamente parado a vida dela —

uma segunda voz disse.

— E tudo por causa de um câncer…. — a terceira língua maldosa

acrescentou. — É um infortúnio. 

— Fiquei pesarosa quando Elle raspou a cabeça. Poderia facilmente

ser confundida com um garoto. Isso é desagradável. Ela era tão linda…

Passando por Ophelia, eu fiz questão de esbarrar meu ombro no seu,

fingindo me desequilibrar e jogando alguns petiscos em seu vestido que

parecia ter custado caro. 

Eu a encarei com falso horror. Seus olhos se arregalaram. Parecia que

ela queria me bater com o prato, mas o sentimento era mútuo. Eu poderia

socá-la na frente de todas essas pessoas.


— Ai, me desculpa — murmurei, uma falsa decepção no meu tom de

voz. 

Observei com satisfação a mancha que não fazia parte da estampa.

— Tudo bem. — Ophelia limpou a garganta, tentando sorrir. — Não

era um dos meus favoritos.

Ela riu falsamente, eu a acompanhei.

— Que bom, esse não combinava muito com você — falei

despreocupadamente, me retirando.

Sabia que eu havia a deixado sem reação e que agora ela

provavelmente devia estar amaldiçoando até minha quarta geração junto

com suas amigas. Elle se animou quando viu que eu estava me


aproximando da mesa. Deixei o prato vazio sobre o tampo de madeira,

sorrindo em sua direção.

— Quer abrir meu presente? Queria ver sua reação.

Elle concordou. Nós fomos até a casa. Ela pegou meu presente no

hall, depois se sentou no sofá na sala, me sentei próxima à ela. Minha irmã

rapidamente se livrou do laço, abrindo a tampa da caixa. Ela parou por

alguns momentos, fitando o meu presente em silêncio.

— Você  lembra? — perguntou, parecendo surpresa.


Elle tirou de dentro da caixa um cisne de cristal. Lembro uma vez,

anos atrás, quando passamos em frente uma loja e ela viu um desses,

ficando encantada, mas era caro demais. 

Procurei o cisne na internet inteira, até encontrá-lo. Foi difícil, mas

valeu a pena. O brilho em seu olhar neste momento fez com que valesse a

pena.

— Sim, me lembro.

Elle me abraçou por alguns momentos.

— Obrigada, eu amei.

— Fico feliz que tenha gostado.

Elle guardou o cisne cuidadosamente de volta à caixa, porque era um


objeto delicado.

Nós voltamos para a festa. Paramos quando vimos a movimentação


repentina ao redor da mesa em que Hanna e John estavam sentados. Ela

levantou quando me viu se aproximando, apontando um dedo para mim.

— Foi você, não foi? — Ela elevou o tom de voz, atraindo mais
olhares para si. — Você roubou o colar.

— O quê? — resmunguei, franzindo o cenho e enrijecendo.

Agora a festa toda havia parado. Todos os convidados prestavam


atenção em mim e Hanna, alternando os olhares entre nós duas.
— O colar sumiu e você tinha ido até o quarto. Onde está, Blakely?
Aquele colar era muito importante para a nossa família. Foi passado de

geração para geração. 

— Eu não sei do que você está falando. Não peguei colar nenhum.

Entrei no quarto acidentalmente enquanto procurava pelo banheiro…

— É claro! — Hanna riu. — Que conveniente.

Eu olhei para Elle, ela parecia pálida. Meu pai estava igualmente
constrangido. Ele se levantou, tocando no ombro de Hanna e murmurando

algo em seu ouvido. Então, ele andou até mim, deixando Hanna para trás,
bufando.

— Podemos conversar por um momento? Em particular?

— Claro — resmunguei, travando as mandíbulas.

Nós andamos até a lateral da casa, onde os convidados não podiam


nos ver ou ouvir. Meu pai, diferente de Hanna, estava evitando o

espetáculo.

John parecia exausto. Ele ajeitou os óculos no rosto antes que

dissesse, cuidadosamente:

— Blakely, eu entendo que você pode estar enfrentando alguns


problemas financeiros, mas pegar um colar não vai mudar muita coisa. Ele

tem um valor sentimental para a família de Hanna. Nós podemos conversar.


Te ajudo no que precisar e você o devolve. Vamos esquecer deste pequeno
incidente.

Senti meu rosto esquentar. Respirei fundo.

— Eu não peguei porcaria de colar nenhum. Se você tivesse se

preocupado em me conhecer, saberia que eu jamais faria algo do tipo. É por


isso que eu me mantenho em dois empregos. Para conseguir minhas

próprias coisas sem trapacear. — Fiz uma pausa, tomando uma respiração
longa. — Eu nunca pedi dinheiro a você.

Um silêncio constrangedor se seguiu.

Meu pai ficou sem palavras. Parecia não saber o que dizer, ou fazer.

— Diz para Elle que precisei ir embora — murmurei.

Fui embora depressa, sentindo uma súbita onda de choro me atingir


repentinamente. Fazia tempo desde a última vez que me lembrei de ter
chorado, ainda mais por frustração. Eu desejava que Hanna achasse o

maldito colar e o engolisse.

Cheguei em casa resmungando, abrindo a porta abruptamente.

— É claro, a pobre Blakely roubaria o colar idiota que custou

milhares de doláres — murmurei, girando a maçaneta e virando-me para


fechar a porta. — Pobre Blakely, precisa de ajuda para se sustentar…
Bati a porta com força, chutando meus sapatos para longe

violentamente.

Então me virei, deparando-me com Ian. 

Ele estava sentado na poltrona, uma garrafa de cerveja nas mãos e as

sobrancelhas arqueadas enquanto me observava, esquecendo-se do que quer


que estivesse assistindo na tevê.

Soltei um suspiro abruptamente, sentindo o rosto corar.

— Você tá bem? — questionou, com calma. — Sabe, posso te


recomendar uma clínica psiquiátrica  boa. Eles vão cuidar bem de você lá.

— Vai pro inferno — atirei de volta, jogando-me no sofá.

— Já tô. Tenho que te ver todo dia, teria outra definição melhor do

inferno do que essa?

Eu ri, inesperadamente. Ian me encarou como se eu tivesse


definitivamente ficado louca. Talvez eu estivesse mesmo. 

— Eu poderia dizer exatamente essas mesmas palavras para você,


Ian. Não existe nada mais terrível do que viver sob o mesmo teto que você.

Você é como o Diabo.

— Se eu sou como o Diabo e aqui é o inferno, isso te torna uma


espécie de demônio — ele observou, sério.

— Ou uma das almas condenadas — resmunguei.


Não sabia porque eu estava ali, conversando com a pessoa com quem

eu menos queria conversar, sobre um assunto completamente improvável.


Talvez Ian também precisasse ir até uma clínica psiquiátrica. Olhei para

tevê. Estava passando um jogo de futebol americano. Eu não gostava muito


de esportes.

Pegando meu celular, mandei uma mensagem para Elle.

Eu: desculpa ir embora assim

Eu: n peguei o colar da sua mãe, espero q acredite em mim

Eu: me sinto culpada por estragar seu aniversário

Eu: pfv, me perdoa

Esperei por alguns momentos. Ela não me respondeu. Mordi o lábio

inferior novamente, pensando que Elle pudesse estar chateada comigo e me


achando uma traidora neste momento, que tinha roubado a porcaria de um

colar e estragado completamente sua festa de aniversário. Ou seguindo uma


linha de raciocínio mais coerente, talvez Elle só estivesse longe do celular

neste momento e ocupada com outras questões.

Como o fato de sua festa de aniversário ter se tornado um episódio de


um reality show ruim.

Suspirando, fui para meu quarto, afundando-me na minha cama.

Não tinha como minha vida ficar pior.


Eu achava.  
 

Assim que atravessei as portas do estúdio de tatuagem, fui recebido


por uma rajada de ar gélido vindo do ar-condicionado. Jenni estava na

recepção, como o habitual. Ela acenou ao me ver.

— Ele tá lá atrás — falou.

— Obrigado — respondi.

Jimmy estava no seu escritório, com os pés em cima da mesa

enquanto fumava um cachimbo. O estúdio era bem estruturado, ficava

numa das avenidas mais famosas de Boston. Como a porta estava aberta, eu

só adentrei no lugar, jogando-me em uma das poltronas.

Ele não parecia surpreso em me ver ali.

— Faz um tempo que você não aparece.


— Quatro semanas — especifiquei. 

— É bastante tempo — acrescentou. Sua barba estava mais longa do


que eu me lembrava, cobrindo seu maxilar. — Como tem ido?

— Bem — fui vago.

Jimmy era o mais próximo de uma figura paterna que eu havia

conhecido, ele e minha mãe namoraram por algum tempo, antes de ela ficar

doente, ele sempre foi ótimo comigo. Quando ele soube que ela morreu, foi
até o enterro, parecia realmente arrasado.

Nós conversamos um pouco, ele me convenceu de ir até seu estúdio


de tatuagem um tempo depois.

Desde então, nós temos criado um vínculo. Ele era alguém que eu

admirava e respeitava, não era à toa que ele tinha um negócio muito bem
sucedido. Jimmy sabia como atrair as pessoas. Ele fisgava, o que gostava de

chamar, almas perdidas.

Jenni era uma delas. Eu era. Reed também.

Reed apareceu na sala no mesmo momento em que ocupou um

espaço nos meus pensamentos.

Reed era apenas um garoto de dezessete anos, quando eu olhava para

ele, às vezes via um pouco de mim. Ele sentou na cadeira vaga ao meu lado,

parecia cansado. Me perguntei aonde ele devia ter se metido.


— Tô exausto pra caralho — resmungou, coçando os olhos, depois

bocejou, olhando para mim com confusão. — Nossa, nem tinha te visto aí.

— É, tô aqui.

— Você sumiu.

— Foi só um tempo.

— Mas sumiu — Reed me contrariou outra vez. — Vai tatuar?

— Não, mas tava pensando em um piercing. — Olhei para a

sobrancelha de Reed, havia uma nova perfuração ali. Acho que ele era o

único adolescente que eu conhecia que já tinha oito tatuagens, cinco


piercings e um metro e noventa.

— Coloca no pau. — Deu de ombros. — As garotas se amarram.

Arqueei as sobrancelhas.

— Você perfurou o pau?

— Sim — respondeu, como se fosse óbvio. — Doeu para caralho,

mas ficou legal.

— Reed, dá um tempo para gente. Quero conversar com Ian —

Jimmy interviu em nossa conversa, fazendo-me encará-lo com uma das

sobrancelhas arqueadas.

Reed soltou um suspiro, assentiu e se retirou, fechando a porta atrás

de si. Quando éramos somente eu e Jimmy, ele me lançou um daqueles


olhares que costumavam vir antes de algum assunto sério.

— Tem algo te incomodando.

Não era uma pergunta.

— Talvez — respondi.

— Abra o jogo, Ian. Você veio até aqui por algum motivo.

— Só estava pensando em ir até a casa antiga de minha mãe — falei,

começando a estalar meus próprios dedos. — Queria pegar algumas coisas

— admiti.

— Você nunca foi para lá depois que…

Antes que ele completasse com a palavra dolorida que começava com

"m", eu o interrompi:

— É. Eu nunca tive coragem.

Falar aquilo em voz alta era um tanto estranho. Porra, eu adorava


aquela casa. Só que fazia quatro anos que eu não ousava pôr os meus pés lá

e preferia assim, de alguma forma. Sabia que no momento em que eu

estivesse lá, seria como reviver cada momento que passei com minha mãe.

Ou seja, uma onda de emoções e sentimentos que eu não queria ter

que enfrentar.

— Quer que eu vá com você? — Jimmy questionou,

cuidadosamente.
— Seria bom. — Foi tudo o que disse.

Nós conversamos por mais alguns momentos, até que eu fui embora.
No apartamento, Blakely estava passando aspirador de pó pelo assoalho.

Estava de fones, absorta em sua própria bolha enquanto cantarolava  uma

música que eu não conhecia.

Ela estava usando um shorts um pouco mais curto que o normal, que

exibia o par de pernas longas e torneadas. Seu cabelo estava preso num

coque meio desmanchado e ela estava descalça. 

Ela virou um pouco, permitindo-me dar uma olhada na tatuagem de

dragão em sua panturrilha esquerda. O animal se enrolava até quase o

joelho. Era uma arte bonita, eu tinha que admitir. 

Me aproximei, tirando um dos fones da sua orelha. Blakely se virou

num solavanco, assustada. Seus olhos verdes me analisaram. Ela parecia um

pouco ultrajada. Depois, a surpresa foi só substituída pela cara fechada que

ela costumava fazer quando me via.

— Que foi? — questionou, secamente.

— Só ia avisar que vou ficar aqui na sala e não quero ser incomodado

com o barulho do aspirador. Vou assistir tevê.

Blakely ficou em silêncio por alguns momentos, então ela começou a

rir como se eu tivesse acabado de contar para ela a piada mais engraçada
que já tinha ouvido na vida. Continuei com o rosto sério.

— Você só pode estar de brincadeira — ela resmungou, travando as

mandíbulas.

— Não tô. Você está vendo algum sorriso no meu rosto?

Ela piscou. Não respondeu.

Sentei no sofá, esticando as pernas no caminho de Blakely. Ela ficou

em pé, me encarando como se tivesse brotado uma segunda cabeça no meu

tronco. Pude jurar que seu olho esquerdo tremeu.

Ligando a tevê, eu fiz um gesto com a mão para que ela saísse da

minha frente.

Seu pescoço inteiro ficou vermelho.

Raiva.

Blakely largou o aspirador, se virando e sumindo no corredor.

Estranhando a facilidade com que ela tinha cedido, esperei até que ela

retornasse enquanto passava pelos canais na tevê e tentava achar algo

minimamente interessante.

Quando Blakely voltou, não tive tempo para reagir. Ela estava

segurando um balde. Balde com bastante água fria, que ela jogou em cima

de mim, encharcando-me da cabeça aos pés. Fechei os olhos por alguns

momentos, sentindo a água rolar por meu rosto.


Abri as pálpebras, encarando-a.

— Ops.

Foi tudo o que ela disse. Havia satisfação em seu rosto.

Satisfação que foi sendo substituída por preocupação conforme ela

me observava ali, ainda sentado no sofá sem se mover, com o rosto

inexpressivo.

Me levantei, avançando em sua direção.

Blakely tentou fugir, mas eu a segurei pelos braços, arrastando-a


comigo até o banheiro. Ela começou a se debater. Quando estávamos os

dois dentro do box, ela começou a dizer:

— Não, não, não. Escovei o cabelo ontem…

Ela não teve tempo para continuar reclamando, porque jatos fortes de

água fria despencaram sobre nossas cabeças. Blakely me encarou


boquiaberta, como se não acreditasse no que eu tinha acabado de fazer. 

Sua camiseta molhou, ficando transparente e contornando seus seios

pesados através do tecido, também expondo seus mamilos.


Involuntariamente, senti uma onda de calor subir pelo meu pau. 

Blakely acompanhou meu olhar. Seu rosto foi preenchido por horror
quando se deu conta de que estava exposta. Ao contrário do que eu achei
que fosse fazer, ela não se cobriu. Ela sorriu ao provavelmente se dar conta
do olhar em meu rosto.

— Bom, já que estou aqui, vou tomar outro banho… — Blakely


disse, começando a tirar sua camiseta.

Meu corpo todo enrijeceu.

Seus seios apareceram no meu campo de visão, os mamilos num tom

de vermelho-amarronzado. 

Meu pau se contraiu dolorosa e involuntariamente.

Ela estava muito perto de mim, me olhando com aqueles olhos

verdes perversos.

Me encostei contra a parede atrás de mim. Blakely olhou para minha


virilha, onde uma ereção gloriosa era visível mesmo através do tecido da

calça jeans.

— Parece que alguém está animado — resmungou, satisfeita.

Blakely começou despreocupadamente a tirar os shorts. Ela o chutou

para longe quando alcançou os tornozelos, ficando apenas de calcinha. 

Depois, abriu um frasco de sabonete cheiroso. Acho que era


morango. Ela jogou o líquido cor de rosa sobre os seios, que deslizou entre

eles, deixando um rastro até o cós de sua calcinha. Blakely começou a lavar
os peitos bem devagar, mantendo os olhos em mim.
Travando as mandíbulas, achei que pudesse ter uma ejaculação nas
calças, o que seria humilhante.

Mas talvez esse fosse seu objetivo, afinal.

Me humilhar.

— Blakely… — avisei.

— O quê? — perguntou, inocentemente, como se não estivesse quase


pelada em minha frente.

Foda-se.

Enfiando a mão dentro da minha cueca, tirei meu pau de lá dentro,

massageando a cabeça. Blakely observou, engolindo em seco. Ela alternou


o olhar entre meu rosto e o movimento de minha mão.

 Aumentei a intensidade, pressionando minha palma com mais força,


mais rápido.

— Ai, meu Deus — Blakely murmurou. — Por que isso é tão

atraente?

Então, Blakely começou a se tocar também. Ela deslizou a mão

timidamente até sua calcinha, mexendo os dedos através do tecido. Seus


lábios se entreabriram e ela soltou uma lufada de ar, seguida por um gemido

baixo.

Porra.
Quase gozei, mas contive, porque queria observá-la mais.

Suas pálpebras quase se fecharam de desejo, Blakely continuou


movendo a mão, ofegante enquanto me encarava. Até que seus joelhos

falharam e ela apoiou a mão livre na parede, alcançando o orgasmo e


mordendo o lábio inferior com força.

Fui atingido pela onda avassaladora um momento depois.

Gozando, eu quase vi estrelas. Fazia tempo que não tinha um

orgasmo tão forte quanto esse. Meu abdômen inteiro contraiu. Minha
respiração estava pesada. Blakely me encarou por alguns momentos antes

de sair do chuveiro e se trancar em seu quarto.

Então, naquele momento, eu percebi uma coisa.

Desejar Blakely era meu ponto fraco.

E causaria a minha ruína.


 

No ensaio, minha performance estava péssima. Eu sabia disso porque


Hunt e Atticus pareciam estar se esforçando para não me mandarem para

casa e arranjarem outro baixista para que me substituísse. Ao trocar um dos


acordes, Hunt murmurou:

— Tá legal, que porra tá acontecendo?

Ele parou de dedilhar a guitarra, me encarando com expectativa e

praticamente com um ponto de interrogação no meio do rosto.

— Não sei — fui quase honesto.

Minha explicação fugaz não pareceu satisfazer nenhum dos meus

amigos. Atticus se retirou, aproveitando a deixa para usar o banheiro. Hunt

balançou a cabeça.
— Não dá desse jeito — falou, largando a guitarra e se jogando na

poltrona. — Olha, eu sou seu amigo, mas se não tiver uma explicação boa

para sua distração, precisa mantê-la fora daqui.

Eu anuí um suspiro, começando a me irritar ainda mais.

Era culpa dela.

Eu sabia.

Maldição, como eu sabia.

Blakely havia ocupado uma parcela maior da minha mente do que

devia ocupar. Na verdade, ela devia estar fora da porra dos meus

pensamentos por completo. Mas, agora, ela estava num espaço tão grande

que fazia com que eu me desconcentrasse.

A música era um lugar que nada e nem ninguém podia atingir, e lá


estava Blakely, fazendo-me pensar no seu rosto enquanto ela gozava, ou no

formato do seu corpo. Era o suficiente para que eu errasse os acordes que

nunca tinha errado, de músicas que eu tinha criado e também para que meu

pau começasse a se animar em minhas calças.

— Nossa — Hunt soltou, chamando minha atenção. — É a garota

que tá morando com você, não é?

Não respondi, comecei a acender um cigarro.

Ele riu.
— Que previsível. 

— Você devia cuidar da sua vida — sugeri, arqueando uma

sobrancelha.

— Tô cuidando da minha banda, que faz parte da minha vida. —

Hunt me deu uma piscadela.

Quando Atticus voltou, retomamos o ensaio e eu me esforcei para

manter Blakely longe de minha cabeça. Assim que terminamos, fui para o

estúdio de Jimmy. Eu passava muito tempo fora de casa agora, para evitá-la

o máximo que dava para evitar alguém com quem você dividia o mesmo

teto.

Reed estava na recepção assim que atravessei a porta, conversando

com Jenni.

— Não vou deixar você ver a tatuagem no meu peito — ela

murmurou, o rosto muito entediado enquanto mascava chiclete.

— Por quê? — Reed contestou. — Você acha que eu nunca vi peitos

antes? 

— Porque não, você ainda é uma criança e eu não mostraria meus

peitos para você. 

— Não sou criança. Tenho dezessete.


— Ela tem razão, você ainda é uma criança — eu falei, cessando a

conversa e aproximando-me deles. — E aí, Jenni. O Jimmy tá por aqui?

— Ele deu uma saída, mas já deve voltar — falou, abrindo um

pequeno sorriso em minha direção. — Resolveu fazer alguma coisa?

— Não, só ia conversar mesmo. — Olhei para Reed. Ele me encarava

com atenção. — Você não devia estar na escola?

— Hoje não teve aula. — Deu de ombros. — Ian, diz para Jenni que

eu preciso de um piercing novo. Ela não quer me deixar furar.

Eu observei seu rosto. Já havia o piercing na sobrancelha, o das

orelhas, um alargador. O que podia estar faltando?

— Onde? — indaguei. 

— No mamilo.

Houve uma pausa.

— Por quê? — perguntei, com cuidado.

— Como assim, por quê?

— Por quê? — repeti. — Por que um piercing no mamilo? 

— Sabe quem usava um piercing no mamilo? O Lenny Kravitz.

— Você não é o Lenny Kravitz.

— Não mesmo — Jenni murmurou.


No próximo momento, o ronco inconfundível da moto do Jimmy

cruzou o ar, atraindo nossa atenção e cessando a conversa. Eu olhei sobre o

ombro, observando através do painel de vidro enquanto ele descia da

motocicleta prateada e adentrava no estúdio.

— O que é isso? Um motim? Fazia tempo que não via vocês três

reunidos… — Jimmy disse em forma de saudação. 

Percebi quando as pessoas que estavam na recepção pararam um

momento para observá-lo. Jimmy era alguém que chamava atenção, apesar

de já estar na casa dos cinquenta anos. Ele usava um colete de couro com o

brasão do moto clube que fazia parte e os braços fortes colecionavam

dezenas de tatuagens, algumas coloridas.

Ele também era alto, parecia intimidante. Mas a verdade era que ele

tinha um coração mole. Havia me impedido de mergulhar completamente

na escuridão do luto; tirado Jenni da boate em que trabalhava quando era

apenas uma adolescente e não tinha o que comer; e resgatado o Reed do lar

negligente em que era espancado.

Nós quatro conversamos por alguns momentos, até que tivemos que

sair da recepção para que Jenni continuasse seu trabalho. Reed foi para a

sala dos piercings, eu e Jimmy seguimos para seu escritório.


— Tá pronto? — me perguntou, oferecendo-me uma garrafa de

cerveja do frigobar que ficava no cômodo.

— Não — falei, sabendo que ele estava se referindo sobre ir até a

casa antiga da minha mãe. Segurei a garrafa, que estava gelada contra

minha palma.

— Tudo bem. — Foi tudo o que ele disse, compreensivo, sem me

pressionar.

Era uma das razões de eu respeitá-lo tanto.

Passar o resto do dia no estúdio de Jimmy fez bem para mim.

Quando cheguei em casa, pouco depois das dez, esperava que Blakely já

estivesse dormindo. Enquanto eu procurava algo para comer na geladeira,

vendo suas etiquetas ridículas na maioria das coisas, ouvi sua voz ecoar

pelo corredor:

— Sério, eu preciso me mudar o mais rápido possível. 

Houve uma pausa. Presumi que ela estava falando com alguém no

telefone.

— Não, não aconteceu nada — ela continuou a falar, a voz meio

abafada e distante. — Só não dá mais. Eu gosto da minha privacidade e de

ficar sozinha. Só que agora tá bem mais difícil porque fui demitida. Preciso

de um emprego novo.
Pelo visto, não era só eu que aparentemente estava ficando fora dos

limites. Isso era bom. Se ela estava em minha mente, era justo que eu

estivesse na sua também.

 
 

Enquanto fitava a tela do meu celular, com os dedos pairando sobre o


teclado e prestes a digitar outra mensagem para Elle, pensei que, talvez, ela

estivesse chateada comigo. Afinal, indiretamente, eu tinha acabado com sua


festa de aniversário.

Contive um suspiro no fundo da garganta. Já tinham se passado dias

e ela não tinha respondido minhas mensagens. Enviar mais uma talvez fosse

uma ideia ruim. E que droga, eu nem tinha roubado a porcaria do colar!
Bufando, enfiei o celular no bolso traseiro da minha calça quando ouvi

passos se aproximarem.

— Que foi? — Gina indagou, passando por mim enquanto ajeitava o

uniforme.
— Fui na festa da minha irmã no final de semana e um colar caro

sumiu. Acham que fui eu que peguei, até o babaca do meu — fiz aspas com

os dedos — pai.

— Nossa, que coisa horrível de presumirem. Ainda mais sem provas.

Suspirei alto.

— Pois é! — concordei, indignada. — Mas eu sou a filha pobretona,

né? A garçonete desesperada — zombei, começando a limpar o balcão,


passando o pano com mais força que o necessário sobre a superfície.

Quando terminei, estava tudo brilhando.

— Você tem que se acalmar. Você sabe que não roubou, então fica

em paz — minha amiga disse, num tom de voz cuidadoso.

— Odeio ser acusada injustamente, odeio mais ainda que a minha


irmã tenha se afastado de mim por isso. — Fiz uma pausa, respirando

profundamente. — Mas deixa para lá, você tá certa, eu preciso me

controlar. Sou inocente.

— Isso aí, agora vamos voltar ao trabalho — Gina sentenciou,

começando a amarrar o próprio cabelo.

Quando cheguei em casa, após o turno no café, estava exausta, nem

tinha tirado o uniforme. Tinha creme branco de rosquinhas no meu

colarinho. 
Girei a maçaneta do apartamento, bocejando. Fazia um tempo desde

que eu não via Ian, era como se ele tivesse se transformado num fantasma.

Evitava sair nos mesmos horários que eu e passar muito tempo aqui, além

de que ele passou a evitar os conflitos, não mexia mais em minhas coisas e

respeitava quando eu queria assistir a algum programa na tevê.

Eu sabia que ele estava me evitando porque nós tínhamos nos

masturbado na frente um do outro. Quando eu lembrava disso, meu rosto

corava por instinto. 

Havia papéis espalhados por todo o sofá e carpete, algumas partituras

de música também e três lápis sobre a mesinha central, além de um baixo

preto. O instrumento estava jogado ali, no meio de toda aquela bagunça.

Arqueando uma sobrancelha, olhei ao redor. Não havia nenhum sinal

de Ian.

Adentrando no apartamento, eu caminhei até a zona criativa que Ian

tinha instalado ali, pegando uma das folhas.

Não contendo a curiosidade, comecei a ler as palavras escritas com

uma letra que parecia um garrancho.

Viciado, estava no topo da folha.

Garota, você me deixou viciado


No beijo que ainda não demos

Na transa que não tivemos

Nos lençóis que ainda não bagunçamos

Eu estou viciado

Por favor, me ajude a sair dessa

Você na minha cabeça, porra, nada me interessa

Queria poder tirá-la do meu sistema

Mas estou preso nessa incerteza

Abaixo dessas linhas, não havia mais nada, apenas rabiscos e

sugestões de palavras e encaixes. Meu coração já batia forte, quando ergui o

olhar e me deparei com Ian me encarando no corredor, ele quase saiu pela

minha boca.

Ele estava usando apenas a calça moletom habitual, o peitoral nu e os

cabelos bagunçados. Seus olhos pareciam cansados, mas estavam sérios.

— Que enxerida — falou, quebrando o silêncio.

— É. — Dei um passo para trás, largando a folha como se estivesse

em chamas. Ela deslizou pelo ar até pousar no chão com a leveza de uma
pluma, parando perto dos pés de Ian. — Não devia deixar suas coisas

jogadas por aqui.

— Não deixei, só fui ao banheiro. Você quem está sempre se

metendo aonde não deve.

Eu soltei uma risada fraca, sentindo-me cansada.

— Não quero discutir, tá bom? Continue a trabalhar na sua música.

— Fiz menção de atravessar o corredor, mas Ian me parou, segurando meu

braço.

O toque dele pareceu incendiar.

Ele me puxou, empurrando-me contra a parede.

Agora, eu estava cercada por seus braços. Sua cabeça pendia sobre o

meu rosto, o nariz quase roçando no meu.

— Não dá para trabalhar na porcaria da música, Blakely — ele disse,

praticamente soprando as palavras contra meus lábios.

Engoli em seco, mantendo os olhos nos seus.

— Por quê?

Ele me ignorou.

— É sua culpa — Ian murmurou. — Se não tivesse essa boca linda e

terrível… Se não tivesse essa maldita boca, eu não estaria enlouquecendo.


Então, ele capturou o meu lábio inferior entre os dentes, puxando-o

com força enquanto mantinha os olhos nos meus, que, por sua vez, estavam

levemente arregalados.

Uma onda de calor disparou por meu interior.

Eu o empurrei.

Ian se afastou, encostando contra a outra parede. Parecia sem fôlego.

Parecia estar se contendo muito para não…

Me beijar.

Mas foi o olhar em seu rosto. O maldito olhar em seu rosto que me

fez cortar a distância entre nós e grudar meus lábios nos seus abruptamente.

Nossas bocas travaram uma batalha.

Corri minhas mãos em seus cabelos, gemendo quando ele pressionou

o corpo contra o meu, fazendo-me sentir sua ereção. 

Ian deslizou as mãos por minhas costas, até encontrarem minha

bunda. Ele fincou os dedos ali, numa tentativa de nos aproximar ainda mais,

como se fosse possível.

Beijá-lo era como ir do Céu ao Inferno e do Inferno ao Céu em

segundos. Era como respirar e prender a respiração, também era como


esquecer de todos os problemas e lembrar de que ele era o maior deles.
Então, no próximo momento, nos separamos, completamente sem

fôlego.

Fitamos um ao outro.

O silêncio que seguiu foi sepulcral.

Ian lambeu os lábios inchados, então, me deu as costas, voltando para

a sala. Sem dizer uma palavra, também fui para meu quarto.

E me tranquei nele pelo restante da noite.

 
 

Na sexta, fizemos uma reunião da banda, Hunt aproveitou para dizer


que o clube do livro tinha se encerrado, porque ele queria que acontecesse

só entre ele e a namorada e que iria avisar o resto dos participantes por
mensagem. Não contestei, mas achei engraçado. Depois, ele começou a

dizer sobre o e-mail que tínhamos recebido de uma gravadora importante.

Foi nesse momento em que todos nós começamos a suar.

Agora, estávamos os três empoleirados numa poltrona, eu e Atticus


tentando espiar sobre o ombro de Hunt que ocupava o assento, nos

apoiando nos braços acolchoados do móvel.

— Chega para lá — Hunt resmungou, dando uma cotovelada em

Atticus, que estava muito próximo dele.


— Deixa eu ver — falei, tentando alcançar a tela do notebook aberto

no colo de Hunt. 

A tela exibia o e-mail, mas as letras eram pequenas demais.

— Se acalmem, porra — Hunt falou, irritado, parecia tão nervoso

quanto nós. — Vou ler em voz alta, beleza?

Um pequeno silêncio se seguiu antes que Hunt limpasse a garganta e

começasse a ler o e-mail.

Nós estivemos analisando o último álbum da Call 911 e gostaríamos

de convidá-los para visitarem a gravadora. Quem sabe vocês não são as


próximas estrelas de Hollywood? 

— Porra — Atticus murmurou.

— Caralho — Hunt, desta vez.

— Inferno — completei, descrente.

Nós três nos encaramos, trocando olhares surpresos.

— Onde fica a sede da gravadora? — questionei, ansioso.

— Em Hollywood! — Atticus respondeu.

— Nós vamos pra Hollywood — Hunt falou, inacreditado. — Eu

amo vocês, caras. Sério. Eu amo vocês. Por favor, abraço grupal.

Deixei com que ele passasse o braço ao redor dos meus ombros,

puxando-me para perto. Ele fez o mesmo com Atticus. Quando nos
separamos, abrimos garrafas de cerveja. Hunt propôs um brinde.

— À banda, porra! — falou, parecendo feliz.

Nós brindamos.

Era engraçado pensar que nós formamos a banda porque éramos


adolescentes no ensino médio querendo ser notados de alguma forma. Era

engraçado como nós três havíamos encaixado como peças de quebra-

cabeça. Como eu havia encontrado neles os irmãos que meus pais nunca

puderem me dar, os irmãos que eu nunca tinha sonhado, porque sempre

achei que eu devia ser sozinho.

Depois da reunião, decidi passar no estúdio de Jimmy. Se antes eu já

não estava a fim de passar meu tempo no apartamento, após o beijo com

Blakely, eu mal punha os pés lá, às vezes nem para dormir.

Mesmo sabendo que isso talvez me tornasse uma espécie de covarde,

não dava para simplesmente encará-la.

Porque, porra, eu queria mais do que tinha experimentado.

E eu não poderia dar a Blakely esta vitória.

Ela nem precisava mais jogar. Ela nunca precisou. Blakely tinha

construído escudos que nem mesmo eu fui capaz de penetrar. Agora, ela

tinha descoberto minha fraqueza.

Minha fraqueza, nada mais era que a própria Blakely.


E isso me irritava.

Empurrando a porta de vidro do estúdio, eu adentrei na recepção. Já

era noite, mesmo assim o lugar continuava funcionando a todo vapor,

lotado de clientes. 

Mal consegui dar oi para Jenni no balcão, porque estava atolada.

Indo até o escritório de Jimmy como o habitual, encontrei-o sentado

em sua mesa, mexendo numa papelada.

Seu olhar se ergueu de toda aquela bagunça, que parecia importante,

espalhada sobre sua mesa do escritório, e tirou os óculos de leitura do rosto.

Eu achava isso engraçado, toda vez que Reed, Jenni ou eu

pegávamos Jimmy lendo com os óculos, ele os guardava, como se nós não

pudéssemos ver ele de um jeito que o deixasse menos “fodão”.

— Acho que vou tatuar — falei, em forma de saudações, sentando-

me em sua frente.

Jimmy arqueou uma das sobrancelhas, mas não parecia tão surpreso.

Afinal, meu corpo era como uma tela preenchida de tinta. 

— Já sabe o que quer tatuar?

— Não — admiti. — Mas queria algo relacionado a minha mãe.

Jimmy bocejou, parecia cansado.

— Eu fiz uma tatuagem para sua mãe — ele disse.


— É, eu sei. Você já me contou essa história muitas vezes.

Jimmy sempre me dizia que nunca havia encontrado ninguém como a


minha mãe, que ela havia sido sua alma gêmea. Por isso, ele tatuou o rosto

dela no corpo de uma sereia. A tatuagem ficava em suas costas, então não

dava para ver a não ser que ele tirasse a camiseta, mas ele já tinha me

mostrado algumas vezes. 

— Acha que dá pra criar algo? — murmurei.

— Sim, não costumo mais fazer artes ou tatuagens, mas você é uma

exceção. Vamos pensar em algo.

Jimmy era tatuador no passado, mas, com o tempo, ele preferiu


apenas ficar atrás da administração do estúdio. Mas, de qualquer forma, ele

continuava sendo o melhor tatuador que eu já tinha conhecido. Sua arte era

única.

Nós conversamos por mais alguns momentos, até que Jimmy entrou

num assunto cauteloso:

— Estou preocupado com Reed — admitiu.

— Por quê? — indaguei, surpreso.

— Ele tá num caminho sombrio, Ian. Eu tenho medo. É o mesmo

caminho pelo que você passou.


Eu sabia que com isso, Jimmy estava se referindo a época mais

turbulenta da minha vida. Aos meus dezoito anos, após perder minha mãe e

Blakely, de alguma forma, eu me afundei em algumas drogas e álcool, me

distanciei da banda também. Se não fosse os puxões de orelha de Jimmy

para me pôr de volta aos trilhos, eu não sei onde eu teria parado, mas

definitivamente não seria na posição em que estou agora.

— Ele não tá aqui, né? Cadê ele?

— Não sei. Ele anda esquisito ultimamente. Acho que está com más

companhias.

Jimmy suspirou, parecendo exausto. Pela primeira vez, eu realmente

vi a idade o abater. Linhas de expressão marcando o rosto, postura

desajeitada. Eu nunca tinha parado para pensar no quanto ele tinha que

trabalhar. Sendo para deixar o estúdio funcionando, ou para que um de nós

três não saíssemos do trilho. Jimmy gostava de tirar o peso das costas de

todo mundo, mas quem é que fazia isso por ele?

— Deixa o Reed comigo — eu resmunguei. — Não se preocupe mais

com ele, você já fez tudo o que pôde. 

Jimmy arqueou uma sobrancelha.

— Tem certeza?

— É, eu vou colocá-lo na linha. É uma promessa.


Eu era a pessoa mais adequada para conversar com Reed. Me despedi

de Jimmy, porque não queria atrapalhá-lo mais.

Antes de subir na minha moto e ir para casa, mandei algumas

mensagens para Reed.

Eu: tá por onde?

Eu: aparece no meu apartamento qualquer dia

Eu: assistir o próximo jogo dos Lakers

O apartamento estava silencioso quando cheguei, mas as luzes da


cozinha estavam acesas.

Blakely estava de fone, em frente ao fogão, observando a panqueca

que estava cozinhando na frigideira como se fosse a coisa mais interessante


do mundo.

Eu devia me afastar, mas fiz o contrário. Me apoiei na ilha que


dividia a sala da cozinha, esperando que ela me notasse.

Não demorou muito. Blakely sempre sentia meu olhar. Em qualquer

ambiente, em qualquer circunstância.

Ela se virou. Não pareceu surpresa.

Seu cabelo estava preso num coque, estava usando uma regata meio

transparente e shorts de algodão com estampa de patos amarelos.


Ela tirou um dos fones, gesticulando com uma espátula de plástico
quando disse:

— Claro que você tá aí. — Não havia nenhum ânimo em sua voz.

Blakely parecia exausta. 

— Você tá péssima — falei.

— É, eu sei, obrigada. Saber sua opinião sobre mim é sempre


relevante. — Ela esfregou os olhos com o punho livre, bocejando. —
Graças a você, fui demitida do meu emprego, então passei as últimas duas

noites sem dormir procurando por outro.

— Graças a mim? — repeti, ironicamente.

Blakely rolou os olhos, apontando a espátula ameaçadoramente em


minha direção.

— É, você, babaca.

— Está dizendo que eu devia ter deixado aquele cara por as mãos em
você?

Ela levantou um dos ombros.

— Quem se importa? A questão é que se você não tivesse ido para

cima dele, eu não teria sido culpada.

— Eu defenderia qualquer mulher numa situação dessas. Não se sinta

especial, Blakely.
— Até parece que você é um cavalheiro. Você faz de tudo para me
deixar desconfortável. Não aja como se fosse o mocinho, você tá bem longe

disso.

Ela tinha um ponto.

— Sou cavalheiro quando quero ser. — Dei de ombros, começando a


sentir cheiro de queimado. — E você definitivamente não leva jeito para a

cozinha.

Blakely murmurou um “merda” ao se virar, desligando o fogão. Ela

virou a frigideira sobre um prato. A panqueca caiu sobre ele, a massa


queimada em algumas partes. 

— Vai comer isso? — perguntei, quando ela começou a tirar as partes

queimadas, esquartejando a panqueca. 

— Vou, tô cansada e não vou cozinhar mais nada — Blakeky

resmungou, irritada. Ela começou a comer os pedaços que foram


milagrosamente “salvos”.

— Que decadência — falei, observando-a mastigar.

Blakely semicerrou os olhos em minha direção.

— O que deu em você? Tá carente? Quer conversar do nada?

Eu ri, sem humor.


— Acredite, Blakely, você seria a última pessoa no mundo que eu

procuraria para conversar.

— Então vai embora — ela disse, simplesmente. — Me deixa

sozinha.

— Tô confortável aqui.

Blakely me ignorou, passando por mim segurando o prato e indo para


a sala. Me virei. Ela se sentou no sofá, ligando a tevê num programa de

culinária.

Fiquei parado, observando-a assistir como se meu corpo tivesse

parado de funcionar.

Quando lembrei minha mente de ser racional, eu saí dali, indo para o
banheiro. Depois que tomei banho, eu fui para meu quarto. Peguei os

rascunhos das músicas que estava escrevendo e mandei fotos no grupo da


banda.

Eu: não tão prontas, mas é o q tenho até agr

Recebi uma resposta um minuto depois.

Atticus: eu adoro suas letras

Atticus: sério, cara

Atticus: parabéns 

Hunt: é vdd
Hunt: vc é o melhor compositor

Hunt: talvez por isso a gente vai p Hollywood 

Digitei a última mensagem antes de ir dormir.

Eu: Hollywood é de nós todos

 
 

Domingo pela manhã quando acordei e fui até a cozinha preparar


algo para comer, achei que estivesse ficando louca quando vi um

adolescente desconhecido sentado no meu sofá. Ele era o garoto mais


excêntrico que eu já tinha visto na minha vida.

Tinha algumas tatuagens no braço, cabelo raspado nas laterais,

piercing na sobrancelha e um par deles nas orelhas, também tinha pernas

compridas que estavam descansando na mesinha de centro. Ele não parecia


se importar que suas botas sujas estivessem ali em cima.

Ele me encarou.

Eu o encarei de volta.

Olhei ao redor, nenhum sinal de Ian.


— Você não pode ser um ladrão, ou não estaria aí sentado, né? —

perguntei, piscando, sem saber como reagir.

— Quem sabe? Eu posso ser um ladrão ousado. — Deu de ombros.

— Tá legal, quem é você?

Seus olhos estavam fixos no meu corpo quando ele respondeu:

— Você tem pernas bonitas.

Um segundo depois, ele levou a garrafa de cerveja que eu não tinha


notado em suas mãos até os lábios. Parecia que ele estava muito à vontade.

Semicerrei os olhos em sua direção. 

— Você tem idade para beber isso? — falei, acusadoramente.

A porta foi aberta no mesmo segundo em que a pergunta deixou

meus lábios. Ian entrou no apartamento com uma sacola nas mãos. Ele

andou até o estranho no sofá e tirou a garrafa de cerveja das mãos dele,

lançando um olhar sério em sua direção.

— Falei para não mexer em nada, Reed. Você não tem idade para

álcool. — Ian deu a sacola para ele. Parecia estar cheia de batatas chips.

Então ele se sentou no sofá também, ligando a tevê e ignorando minha


presença.

Reed cutucou Ian com o cotovelo, olhando para mim.

— Você não vai me apresentar para sua amiga?


— Não. — Foi tudo o que Ian respondeu.

— Por quê? — Reed o encarou, parecendo confuso.

Eu rolei os olhos, andando até a cozinha. Enquanto pegava ovos na

geladeira para preparar café da manhã, ainda pude ouvir a conversa deles

atrás de mim.

— Porque não.

— Você é egoísta pra caralho — Reed resmungou. 

Ian o ignorou completamente. Quando terminei de fritar os ovos,

peguei algumas torradas e comecei a comer na bancada, vendo o jogo de


basquete que passava na tevê que os meninos estavam assistindo. Depois

que terminei, lavei meu prato e fui para meu quarto.

Jogando-me na cama, eu peguei meu celular, conferindo algumas

mensagens.

Diamond: tá a fim de sair?

Diamond: sério, preciso de companhia hj

Diamond: pfv, gata borralheira

Comecei a digitar uma resposta.

Eu: quer ir pra onde?

Eu: e da próxima vez que me chamar assim, vou te bloquear


Suas respostas chegaram quase que imediatamente.

Diamond: qualquer lugar

Diamond: vc não conseguiria me bloquear

Nós conversamos mais um pouco e passei meu endereço para

Diamond, que iria me buscar. Tomei banho, coloquei uma calça jeans e uma

blusa curta, nada muito extravagante e estava terminando de secar o cabelo

molhado quando Diamond chegou. Falei para ele subir. Quando ouvi

algumas batidas na porta, me apressei, indo até lá, mas Ian tinha sido mais
rápido que eu.

O clima na sala parecia estranho.

Ian segurava a porta aberta, mas não saiu do caminho de Diamond

para que ele entrasse.

Eu o empurrei, ganhando espaço.

— Oi, D. Entra — falei, maneando a cabeça em direção ao interior

do apartamento.

Diamond passou por mim e acenou em direção a Reed com a cabeça,

que estava tão vidrado no jogo que nem se deu conta. Nós andamos até meu

quarto. Fechei a porta e liguei o secador outra vez.

O barulho preencheu o ar.

— Parece que o cara que abriu a porta gosta de você.


Franzi o cenho, olhando para Diamond, que estava deitado em minha

cama, a cabeça apoiada na mão. Podia entrar para o catálogo de suas poses

de supermodelo.

— Ele não gosta de mim. — Eu ri, diante da possibilidade absurda.

— Vai por mim, ele gosta de você ou quer te comer. Uma das opções.
Ele tava com bastante ciúme quando disse que você falou que eu podia

entrar. Você viu, Blake. O cara nem se moveu.

— Porque ele é um babaca — justifiquei, como se fosse óbvio.

— Pode ser, mas ele também sente algo por você. 

O ignorei.

— Já decidiu onde vamos?

— Tô a fim de comer frutos do mar. Tem um restaurante legal aqui

perto.

— É por sua conta, né? — perguntei. — Você convidou, você quem

paga.

— Por um momento eu me esqueci de que você era pobre. —

Diamond suspirou. — É, mas eu pago.

Terminei o cabelo, Diamond e eu passamos pela sala e saímos, sendo

ignorados por Reed e Ian, que estavam assistindo o jogo na tevê. O almoço

com Diamond foi bom. Recebi uma ligação enquanto comia, de um homem
me chamando para uma entrevista ainda hoje. Eu não discuti, apenas anotei

o endereço que ele me passou.

Eu não sabia para qual função eu estaria sendo entrevistada, tinha

deixado meu currículo em mais de trinta estabelecimentos nessa semana,

além dos que tinha enviado pela internet. Não importava muito, também.

Eu só precisava de outro emprego.

Diamond me deixou lá com seu carro super caro e eu o agradeci

imensamente.

Li a placa pendurada na fachada. JM Tattoo Ink. O lugar era bonito,

tinha três andares e era bem estruturado. Atravessando a porta no lugar, fui

direto para a recepcionista. A mulher atrás do balcão ergueu os olhos do

computador para mim.

— Oi, eu tô aqui pra uma entrevista — falei, esperando que o homem

do telefonema não tivesse voltado atrás.

Os olhos dela se iluminaram.

— Ah, ótimo! Só espera um segundo, já te levo até lá.

Agradeci, sentando-me numa das poltronas enormes dispostas na

recepção. Havia uma máquina de refrigerantes gratuitos no canto da sala,

além de uma mesa com petiscos para os clientes. Esse era, de longe, o

melhor estúdio que eu já tinha posto os pés. Se eu conseguisse um emprego


aqui, seria o máximo, ainda mais porque tinha uma estação de metrô no

final da rua.

A mulher na recepção me chamou um momento mais tarde.

Ela me guiou pelo estúdio, que tinha diversas salas, com diversos
tatuadores trabalhando em clientes, nós subimos uma escada, então

entramos num corredor silencioso, sem o zunido da máquina. Ela disse que

era na última porta e eu assenti, nervosa.

Eu tentei ajeitar o cabelo, me amaldiçoando mentalmente pela


escolha da blusa curta. Talvez fosse inapropriado para uma entrevista.

Girei a maçaneta, abrindo a porta.

Havia um homem cheio de tatuagens sentado atrás de uma mesa,


imponente.

Tudo nele era intimidante, o rosto, a tinta preta espalhada pelo corpo,
o cachimbo que ele estava fumando.

— Sente-se — disse. — Me chamo Jimmy, sou dono do estúdio. 

Eu fechei a porta atrás de mim, sentando-me na poltrona disposta no


cômodo, que parecia um escritório moderno.

— Blakely — falei, ajeitando a postura. — É um prazer conhecer o


senhor…
— Deixe as formalidades de lado — ele me cortou, surpreendendo-
me. — Você está contratada.

Me calei, surpresa demais para esboçar qualquer reação.

Jimmy soltou uma risada alta que me assustou. Ele trocou o


cachimbo de lado em sua boca, após soltar fumaça.

— Admito, eu não gosto das partes burocráticas — Jimmy começou

a dizer. — Prefiro ser objetivo. Quando você pode começar?

— Quando o senhor quiser. — Não hesitei em respondê-lo.

— Que maravilha. Pode começar agora mesmo. Eu só preciso de

alguém que organize toda a papelada para mim aqui do escritório. Faça
pastas em ordem alfabética e toda essa chatice. Tudo bem para você,

Blakely?

Assenti, atônita.

— Claro. Só isso?

— Ah, e às vezes, vou pedir para que você busque o almoço, ou o

jantar… 

— Sem problemas, senhor.

Jimmy começou a me explicar como ele queria que eu organizasse os


papéis, de que jeito, onde deixá-los, na ordem certa… Depois, ele se

levantou e me deixou em seu escritório sozinha, saindo pela porta. Comecei


a fazer o trabalho demorou uns quarenta minutos para terminar, não tinha
muita coisa. 

Olhei ao redor, sem saber o que fazer. Jimmy ainda não tinha

retornado.

A porta abriu, de repente.

A garota da recepção apareceu, sorrindo para mim.

— Me chamo Jenni, a propósito. Já terminou?

— Blakely, mas pode chamar só de Blake. — Eu sorri de volta. — Já

terminei.

— Ótimo, vem cá. Você gosta de piercings, né? — questionou,


direcionando um olhar para a argola no meu nariz.

Assenti, seguindo-a pelo corredor. Nós entramos numa sala cheia de


piercings.

— Aqui a gente faz as perfurações — Jenni disse, tirando uma mecha

de cabelo do rosto.

— Que legal, você também trabalha aqui?

— Às vezes. Cansei de furar as pessoas, agora tô dando um tempo lá

na recepção. Só que quando vem algum amigo aqui, eu coloco as mãos na


massa outra vez.
— Entendi. Nossa, eu queria muito um piercing no peito — admiti

minha vontade oculta. — Só que tenho medo.

— É, dói bastante o processo de cicatrização, sabe? Às vezes enrosca

na blusa, é um terror…

Jenni e eu conversamos por mais alguns momentos, então fomos até


a recepção. Havia um cara a substituindo. Quando o estúdio fechou, pouco

depois das onze horas, eu consegui voltar para casa no metrô, depois só tive
que pegar um ônibus para chegar no prédio.

Eu estava cansada, mas havia valido a pena.

O apartamento estava vazio quando eu cheguei.

Suspirando, eu fui para meu quarto, sentindo o cansaço me abater.

Ian não dormiu em casa naquela noite.


 

Segunda-feira pela manhã, recebi uma ligação de Elle. Como estava


no meio do meu expediente na cafeteria, pedi para que Gina me cobrisse já

que o caixa estava livre. 

Andando até os fundos da cafeteria com pressa, eu atendi ao

telefonema.

— Oi — a voz de Elle preencheu meus ouvidos.

— Oi. — Soltei um suspiro. — Fiquei esperando que você me


retornasse.

— Me desculpa, Blake — ela sussurrou, parecendo envergonhada. —


Depois da festa de aniversário, mamãe ficou uma fera e ela disse todas
aquelas coisas horríveis sobre você… Mas eu não acredito nela. Eu sei que

você não pegou o colar.

— Obrigada por acreditar em mim, Elle. É muito importante.

— Tô tentando convencer o papai também, mas ele está bastante

relutante. Sei que, no fundo, ele também sabe que você não roubou o colar.

Como Elle não estava em minha frente, rolei os olhos. É claro que

John ficaria do lado de sua esposa. Era conveniente.

— Tudo bem, Elle. Depois a gente se fala, tá? Tô trabalhando agora,

preciso voltar.

Após nos despedirmos, desliguei a chamada, enfiando o celular no

bolso traseiro. Quando retornei para o interior da cafeteria, me sentia

estranhamente mais leve. Devia ser o peso de achar que Elle talvez pudesse
não querer mais falar comigo saindo das costas. 

Quando o turno no café acabou, eu fui até o metrô. Mas, ao invés de

ir para casa, eu estava indo para o estúdio de tatuagem.

Assim que atravessei as portas do lugar, cumprimentei Jenni.

— Oi! — falei, sorrindo, enquanto tirava a jaqueta, porque aqui


dentro estava bem aquecido.

— E aí, Blake. O Jimmy saiu, mas disse que você podia entrar no
escritório. — Jenni deslizou a chave pelo balcão e eu fiquei relutante. Por
que é que ele parecia depositar tanta confiança em mim?

Bom, eu não iria questionar, afinal, precisava mesmo desse emprego.

Indo até o escritório, eu abri a porta, adentrando no lugar. A mesa

estava cheia de papéis. Deixei meu casaco apoiado numa das poltronas e

comecei o trabalho. Havia o triplo das pilhas que tinha ontem.

Jimmy chegou em algum momento. Parei por um instante.

— Jenni disse que você falou que eu podia entrar. Espero que não

tenha nenhum problema.

— Tudo certo — ele disse, sentando-se numa das poltronas em


minha frente.

Comecei a ficar nervosa, porque Jimmy tinha um olhar apreensivo no


rosto. Ele acendeu o cachimbo, percebi que aquela talvez fosse sua marca

registrada. Será que ele tinha decidido me demitir tão rápido?

— Então, Blakely, qual sua história de vida? 

A pergunta me surpreendeu. Eu olhei para ele por um momento.

Nenhum chefe antes tinha se interessado em saber sobre minha vida


pessoal.

— Fui criada pela minha avó, morava com ela em Nova Jersey. Me
mudei pra Boston tem pouco tempo, por causa da minha irmã. Ela tem
câncer. Queria ficar por perto — murmurei, mantendo os olhos nos papéis

enquanto os separava na ordem correta.

— Sem pais? — Jimmy questionou cautelosamente.

— É, sem pais. Minha mãe é meio alcoólatra, ela não foi adequada

para minha criação. Minha avó materna assumiu o papel. Meu pai

desapareceu, mas agora eu vejo ele às vezes por causa da minha irmã.

— Sua avó parece uma mulher boa.

— Ela era mesmo — concordei, sentindo uma pontada no coração.

Eu sentia bastante saudades da minha avó.

— Sinto muito — Jimmy disse, entendendo que ela havia partido

para uma melhor. — Mas que bom que você chegou até aqui, Blakely. Ela

te criou muito bem. 

Eu assenti.

— É verdade.

O silêncio seguiu. Jimmy saiu do cômodo um momento depois.

Quando terminei a papelada, minhas costas doíam e minha barriga roncava

um pouco. 

Fui para a recepção. Jenni e Jimmy estavam conversando quando me

aproximei. Disse pra ele que já tinha terminado e ele me entregou um saco

pardo, com uma salada caesar embrulhada. 


Me sentei numa das poltronas da recepção para comer. 

Jenni se aproximou, mascava um chiclete azul. Fazia bolhas a todo


instante e as explodia.

— Quer furar? Já vamos fechar.

— O quê? — murmurei, franzindo o cenho enquanto mastigava.

— O piercing que você queria, ainda quer? A gente pode fazer daqui

a pouco, quando fecharmos.

Pensei por alguns momentos, mas acabei cedendo.

— Beleza, pode ser.

Quando cheguei em casa, uma hora depois, com o mamilo direito

dolorido e as costas doendo, eu me sentia uma espécie de morta-viva. Abri

a porta, fechando-a com o pé e me apoiando contra ela.

Ian estava na cozinha, procurando algo no armário. Ele se virou ao

ouvir o barulho. 

— Ah, é você — murmurou, desinteressado.

— Quem mais seria? 

— Não sei. Talvez pudesse ser um fantasma. Eu ficaria mais feliz em


ver um fantasma do que você.

Rolei os olhos.
— Aposto que sim.

Fui para a cozinha também, buscando uma caneca para colocar café.

Me estiquei para alcançar o armário superior. Ian a pegou com facilidade,

mas não me entregou.

— Que foi? — resmunguei, ultrajada.

— Você está muito na defensiva, não acha, Blakely?

— Problema meu. Me dá a porcaria da caneca. Sério, tô cansada, Ian.

Não me provoca agora.

— Você tem algo que eu quero, Blakely — ele falou, deixando a

caneca sobre a pia, se aproximando e ficando muito, muito perto.

Perigosamente perto.

Minha mente entrou em estado de alerta.

— O que você tá fazendo? — perguntei quase num sussurro,

enquanto ele me cercava completamente. 

Apoiei as costas contra a lateral fria da geladeira, erguendo o queixo

para encará-lo melhor.

— O que parece que eu estou fazendo para você? — murmurou,

contra meu nariz.

Ele estava tão próximo que eu podia enxergar algumas sardas na

ponte de seu nariz. O nariz irritantemente bonito.


— Invadindo meu espaço pessoal — respondi.

— Exatamente. Como eu disse, você tem algo que eu quero.

— E o que você quer?

— Você. Seu corpo. Você inteira. Da cabeça aos pés. 

Eu prendi a respiração, Ian continuou:

— Deus sabe o quanto eu tenho você na minha cabeça. Se você

soubesse a quantidade de vezes em que imaginei você gozando na minha

boca ficaria surpresa, anjo.

Anjo. Estremeci.

Meu coração começou a galopar loucamente contra as minhas

costelas.

Ian me beijou.

E eu deixei.

Deixei que ele beijasse, porque eu não podia ir contra a atração que

eu sentia por ele. Era como se um campo magnético me levasse até ele. Era
difícil sair, difícil resistir. Então eu cedia.

Me beijando, ele deslizou uma das mãos entre nós, até que estivesse

dentro de minha calça jeans, após baixar o zíper.

Seus dedos acariciaram minha intimidade. Eu podia sentir o quão

embaraçosamente molhada eu estava. Gemendo, eu quebrei o beijo.


Os olhos de Ian haviam escurecido. 

Ele se ajoelhou.

Então começou a tirar uma das minhas pernas da calça, depois a


outra. Tudo muito cautelosamente. Numa calma que fazia meu coração
palpitar de expectativa, junto com meu corpo.

Quando enfim deslizou a calcinha pelos meus tornozelos, apoiei uma

das mãos na borda da pia com força, até que os nós dos meus dedos
estivessem esbranquiçados.

Ian beijou lá embaixo delicadamente. Foi o suficiente para que meus


joelhos quase cedessem.

— Calma, anjo. Mal começamos — ele murmurou, levantando os

olhos azuis para meu rosto. 

Aqueles olhos azuis irritantes e prepotentes.

Meus lábios estavam entreabertos, enfiei uma das mãos em seus


cabelos, puxando-os.

— Me chupa logo — ordenei.

Ele não contestou, só continuou me lambendo. Então, enfiou um


dedo em mim. Passando a mão livre na parte de trás do meu joelho, ele

jogou uma das minhas pernas sobre seu ombro. Agora, ele podia acessar lá
embaixo com mais facilidade.
Sua língua tocou meu clítoris e eu quase rolei os olhos.

— Isso! Continua aí — falei, sentindo o corpo inteiro começar a


incendiar.

Ian chupou meu clitóris com força enquanto me masturbava com o

próprio dedo. A onda do orgasmo me bateu de um jeito avassalador. Eu


gemi, sentido meu corpo derreter. 

Ele se levantou, os lábios brilhando. Ele os lambeu. Depois chupou


os dois dedos que estavam dentro de mim e eu quase tive um segundo

orgasmo, porque a cena toda foi sexy demais para ser ignorada.

— Você é deliciosa, Blakely. Simplesmente deliciosa, para minha


falta de sorte — murmurou a última parte.

Minha respiração continuava irregular, assim como as batidas do meu


coração.

— E você? Não vai fazer nada quanto a isso? — perguntei, sentindo-

me idiota, apontando para sua ereção.

— Hoje não — respondeu simplesmente. — Mas esteja preparada,


Blakely. Quando chegar este momento, você vai se sentir muito dolorida

pelos próximos dias.

Suas palavras pairavam no ar, como promessas.

Então Ian simplesmente se virou e sumiu no corredor.


 

antes

O sol estava a pino no final de semana, o que fez com que Olivia e eu

fôssemos até a praia. Nós estávamos sentadas num lençol que ela havia
trazido de sua casa, enquanto segurávamos Coca Colas de cereja. 

Havia um grupo de vôlei em nossa frente, muitos adolescentes

reunidos e música tocando de um rádio. Parecia o verão perfeito, até seria,

se Ian não agisse feito um babaca. Fazia uma semana desde o incidente na
praia, desde então nós não tínhamos nos visto mais.

Eu ajeitei os óculos de sol no rosto, dando um gole na bebida que


estava começando a ficar quente contra a minha palma.
— Aquele loiro é até que bonitinho — Olivia murmurou, olhando

para o rapaz de bermuda azul, disperso na partida de vôlei.

Ele tinha um abdômen legal.

— É mesmo — concordei. — Vai falar com ele?

— Talvez. — Sopesou por alguns momentos. — Eles que deveriam

vir até mim.

Eu ri.

— Às vezes, nós devemos tomar iniciativa.

— É verdade, vou lá então. Já volto.

Olivia se levantou, então se distanciou. Eu abri o livro que tinha

trazido para cá, resolvendo retomar a leitura. Ergui o olhar por um segundo,

analisando o fluxo ao meu redor.

Tudo continuava igual, exceto que Olivia conversava com o loiro e

um labrador que estava na praia, correndo livremente entre a margem do

mar e a areia. Me apoiando em um dos meus cotovelos, me questionei onde

estava seu dono. 

Me voltei para o livro.

Li algumas páginas antes de ser atingida. O labrador pulou em cima

de mim, derrubando o livro de minhas mãos e os óculos do meu rosto, além

de bagunçar meu cabelo. Soltei um grito, esperando que ele fosse me atacar,
com as duas patas apoiadas sobre meu peito e o focinho próximo do meu

nariz, mas ele só começou a lamber meu rosto.

— Pegasus. — A voz grave ecoou, fazendo o labrador arquear as

orelhas em alerta e virar o rosto em direção ao comando.

Ele saiu de cima de mim, libertando-me de todo seu peso.

Eu ofeguei, sentando-me e corando ao reparar que algumas pessoas

me olhavam. Meu olhar se conectou com o dono do cachorro.

Os olhos azuis familiares me encararam de volta.

— É claro — resmunguei, ironicamente. Agora, meu rosto ardia de


raiva.  — Você devia controlar o seu cavalo.

Pegasus estava ao lado de Ian, em pé a alguns metrôs de distância de


onde eu estava sentada.

Comecei a ajeitar meu cabelo.

— Ele é inofensivo — Ian retrucou.

Ele estava com o peitoral nu, algumas tatuagens à mostra e um

abdômen invejável. Desviei o olhar quando percebi que estava encarando

demais. Recolhi o livro que havia afundado na areia.

— Não é. Olha o que aconteceu com meu livro! — Ergui-o no ar, a

capa estava amassada, algumas folhas também.


— Blakely, acho que seu peito tá pra fora do biquíni — Ian disse

seriamente, me ignorando.

Olhei para baixo, ficando horrorizada ao ver que um de meus

mamilos estava oitenta por cento exposto. Ajeitei o sutiã, me cobrindo.

Ian me encarava com as sobrancelhas arqueadas. Ele limpou a

garganta.

— Sinto muito pelo seu livro.

— Sente nada.

Peguei os óculos furiosamente, colocando-os de volta no rosto.

— Tá calor, né? — Ian questionou, caindo ao meu lado no lençol. 

Pegasus parou em minha frente, a língua para fora, respiração

ofegante e bastante baba.

Olhei para Ian, com a cara fechada.

— O que é que você quer? Dá para parar de encher o saco?

— Não sei o que quero, para ser honesto. Mas no momento, eu quero
ficar aqui, sentado ao seu lado.

Eu ri, mas sem humor.

— Você é um babaca, não pode fingir que está a fim e no outro

momento decidir que não está mais.


— É verdade — ele concordou, me surpreendendo. — Não sou bom

para você, Blakely.

Nós estávamos tão próximos que seu ombro roçou no meu,

desconcentrando-me por um momento e enviando uma onda de calor por

meu interior.

— Se eu tenho razão, por que é que você está aqui fingindo que tá

tudo bem entre nós dois? — indaguei, travando as mandíbulas.

— Porque eu sou egoísta — Ian simplesmente respondeu.

— Pode enfiar o egoísmo no rabo — retruquei.

Ian ficou em silêncio por alguns momentos, os olhos azuis

perscrutando meu rosto. Pude jurar que um dos cantos dos seus lábios se

ergueram sutilmente para cima.

— Ok.

— Ok? — repeti, descentre. — Isso é tudo que você tem a dizer?

Ian assentiu.

— Sim, você está brava comigo por minha culpa. Eu não vou tentar

ser inocente, porque não sou. Então tudo que eu vou fazer é apenas aceitar

sua raiva, porque eu mereço. Pode falar o que quiser, Blakely.

Eu respirei forte, então comecei:


— Você me deixou esperando o verão passado. Você me deixou de

coração partido! Sério, eu nunca poderei te perdoar por isso. E também, por

não ter me procurado quando voltou para cá, isso eu jamais poderei perdoar

mesmo. Tudo isso sem explicação, sua hostilidade repentina, tudo! Essas

coisas me fazem te odiar com cada pedaço de mim. Mas, o que me faz te

odiar ainda mais é o fato de que você quebra cada barreira minha, mesmo

depois de tudo… Deus, isso é tão injusto. É tão injusto que eu não consiga

te odiar verdadeiramente…

Meu tom de voz foi perdendo a força, as palavras começaram a

morrer e um nó se formou em minha garganta. 

Ian me observava com um sentimento que eu não conseguia decifrar.

— Eu não vim no verão passado porque minha mãe estava doente.

Ela morreu no início desse ano — admitiu, o tom de voz baixo. — Blakely,

eu te amo, mas, para ser honesto, eu não vejo um futuro… parece que a

minha mãe levou todos meus sonhos, desejos e minha alma com ela. Até a

música. Eu gostava muito de música.  — Ele olhou para frente, escondendo

a dor em seu semblante. — Não me vejo sendo um namorado para você, ou

seguindo uma carreira. Quando penso no futuro, tudo que vejo é um enorme

vazio. Um vazio deixado por ela, a única pessoa que eu tinha.

De repente, fiquei sem palavras. Meu coração se apertou por Ian. Ele

continuou, diante do meu silêncio:


— É por isso, Blakely. Por isso que eu não posso ficar com você.

Você é o tipo de garota que vai ter uma família bonita, que vai ter filhos, um

emprego legal… Você é uma garota para o futuro. Eu só vivo no momento.

Não tenho esse tipo de ambição. Não vou poder te dar o que você merece.

— Você está pensando muito a frente… — resmunguei.

Ian balançou a cabeça, ainda olhando em direção ao mar.

— Não, Blakely, não estou. Estou sendo realista. Se a gente ficar

junto agora, você vai começar a pensar no futuro. Eu não posso te dar isso.

Comprimi os lábios em linha reta. Talvez Ian estivesse mesmo certo,


afinal. Será que em algum momento eu me pegaria pensando como seria um

bebê nosso daqui alguns anos? Era triste que ele estivesse quase desistindo
de si depois da morte de sua mãe, eles deviam ser muito próximos. Ian era

jovem, estava experimentando o luto de alguém que significava o seu


mundo e não estava sabendo como lidar com isso.

Me perguntei o que eu faria se minha vó, a única pessoa que eu tinha,


partisse. Só de pensar, meu coração apertou.

— Eu sinto muito pela sua perda, Ian — sussurrei as palavras, sendo

honesta. 

— Obrigado — resmungou, finalmente me olhando. — Espero que


possa me perdoar um dia.
— Tudo bem — falei. — Entendo que você esteja tão… sem
esperança.

Ian começou a se levantar, tirando areia de sua bermuda.

— A gente se vê por aí, Blakely.

Então, se distanciou, com Pegasus ao seu lado e deixando um buraco


no meu coração.

 
 

antes

As tardes em Oak Springs eram sempre solitárias, pelo menos para

mim. Eu gostava de ficar no píer, porque o píer me trazia lembranças boas.


De alguma forma, observar o pôr do sol me lembrava da minha mãe.

Levantando, caminhei pela praia, pisando em cima de um disco de

plástico enterrado na areia. Pegasus gostaria dele. O labrador pertencia à

vizinha, mas ela deixava que eu passeasse com ele, porque não tinha muito
tempo para isso. Como eu gostava de cachorros, não era um incômodo.

Ele havia gostado de Blakely. Foi irônico ter se atirado nela, mas,
mentalmente, eu o agradeci por isso, porque foi uma desculpa para se

aproximar.
Eu parei quando vi Blakely sob a figueira. Estava ficando escuro,

mas eu pude vê-la. Aquela árvore significava alguma coisa. Pelo menos

para mim. No dia em que nos despedimos, lembro que Blakely a marcou

com nossas iniciais.

Não contendo o impulso, me aproximei.

Ela estava com os olhos fechados, o cabelo trançado e fones nos

ouvidos. Blakely parecia tão vulnerável que me preocupou ela estar aqui

sozinha.

Como se pudesse sentir minha presença, seus pálpebras levantaram,

expondo os olhos verdes expressivos.

Ela pareceu ficar surpresa, tirou os fones do ouvido.

— Se teletransportou para cá? — Blakely questionou, arqueando as


sobrancelhas.

— Estava no píer — esclareci. 

— Que foi? — murmurou, parecendo chateada. 

— Nada. — Eu me sentei ao seu lado, sentindo seu ombro enrijecer.

— Você devia ir embora — sugeriu.

— Por quê? — Fechei os olhos, sentindo o vento bater contra meu

rosto e respirando profundamente enquanto o calor do corpo de Blakely


emanava para o meu, além de que seu shampoo de frutas alcançava meu

nariz.

— A gente já conversou sobre isso.

— Conversamos? — Me fiz de desentendido.

— É, a gente conversou. E também…

— Blakely — a interrompi. — Cala a boca. Só um pouco.

Ela ficou em silêncio, mas antes soltou um suspiro áspero.

Finalmente.

Silêncio.

Desde a morte de minha mãe, eu nunca havia conseguido

experimentar um momento como esse. Um momento em que eu me sentisse

em paz. Um momento que minha mente não ficava enlouquecida,

disparando dezenas de pensamentos por segundo.

— Posso falar agora? — A voz de Blakely voltou a preencher os

meus ouvidos, depois de longos momentos.

— Não — respondi, continuando de olhos fechados.

— Foda-se, Ian. Você não manda em mim.

— Se continuar falando, vou achar outro jeito de calar essa boca.


Minhas palavras surtiram exatamente o efeito que eu queria:

deixaram Blakely sem palavras.

Achei que tinha conseguido silenciá-la, mas ela voltou a dizer:

— Eu entendi o que você tentou fazer. Só tá blefando para que eu

fique quieta.

Abri os olhos, encarando-a, Blakely já me observava. Eu me

aproximei, ficando a apenas alguns centímetros de distância. 

— Acha que eu estou blefando? — indaguei seriamente.

— Sim. Você não seria capaz — sussurrou.

— Eu seria capaz — devolvi, no mesmo tom de voz. — Mas você

me odiaria.

Encostei minha testa na sua, continuando com meu olhar preso ao

seu. Tirei uma mecha de cabelo que caía sobre sua visão e o coloquei atrás

de sua orelha. Blakely estremeceu, as pálpebras quase cedendo com o

contato fugaz.

— É verdade, eu te odiaria — soprou contra meus lábios.

Eu me afastei, então perguntei a ela, de repente:

— Qual seu maior sonho?

Blakely fez uma careta.


— Não sei. Ter um futuro estável. Um emprego legal. Filhos… Uma

família.

— E o seu maior medo?

— Tenho medo de escuro — admitiu. — Não gosto do escuro.

— Previsível.

Ela me ignorou.

— E qual o seu maior medo, já que não tem sonhos? — ela

desdenhou, mas parecia meio triste.

Suspirei.

— Meu medo é me perder no lugar onde estou. Sabe, o luto? Meu

mundo está cinza.

— Então você tem que encontrar pessoas que tornem seu mundo

colorido.

— O que quer dizer com isso?

Ela bufou.

— O amor, seu idiota. O amor é que deixa tudo colorido. Sua mãe o

amava. Você a amava. Ela se foi. É por isso que você está preso no mundo
cinza, porque o que conhecia do amor, se partiu. Agora, você tem que achar

uma forma de voltar a colorir tudo.


Eu pensei em alguns momentos em suas palavras, absorvendo-as,

então suspirei, ficando em silêncio. E se eu nunca conseguisse voltar à

enxergar as coisas desta forma? Não externei meu pensamento, no entanto.

Tirei  uma das pulseiras do braço de Blakely. Era delicada, tinha um

“B” nela.

— Vou ficar com isso — falei.

— Não! Essa é importante. — Blakely a tomou de minhas mãos.

— Trinta segundos.

— O quê? — questionou, me olhando com o cenho franzido, como

se eu tivesse ficado louco.

Eu relaxei contra o tronco da árvore, colocando as mãos atrás da

cabeça.

— Trinta segundos. É o tempo que dou para você correr bem longe

daqui com essa pulseira e ganhar vantagem antes que eu te alcance.

— Para com isso. — Blakely começou a se levantar. — Sério, Ian,

para de ser infantil…

— Um… — exclamei, alto.

Blakely bufou.

— Não vou te dar a pulseira.


— Então corre, porque eu vou pegá-la. — Houve uma pausa. Nos

encaramos em silêncio. — Passaram dez segundos agora.

Blakely recuou um passo para trás, me levantei.

— Quinze. Dezesseis. Dezessete…

Blakely começou a se afastar, andando de costas, com os olhos

presos em mim.

— Vinte e sete — falei alto, para que ela ouvisse de onde estava.

Vinte e oito.

Então Blakely começou a correr.

Vinte e nove.

Trinta.

Disparei atrás dela. Blakely foi em direção a parte oculta da praia,


para trás de algumas rochas. Havia uma espécie de escada lá, que dava para

o píer, mas eu a alcancei antes que pudesse começar a subir o primeiro


degrau, levantando-a do chão. 

Blakely gritou ao ser jogada sobre meu ombro feito um saco de

batatas.

— Me larga!

— Não.
— Sério, me solta.

Eu comecei a ir em direção ao mar. Blakely se desesperou, se

debatendo. Seu joelho atingiu minhas costelas e eu ofeguei por um


momento antes de estalar um tapa violento em sua bunda. 

Blakely começou a me chamar pelos piores xingamentos.

Eu finalmente a coloquei no chão, jogando-a na areia e prendendo

suas mãos em cima de sua cabeça, tomando cuidado para não esmagá-la
embaixo de mim. Sua respiração estava irregular. Peguei a pulseira,

colocando-a  dentro do meu bolso.

A soltei.

Nos encaramos.

Blakely colocou as mãos na parte de trás de meu pescoço, puxando

meu rosto em direção ao seu. Sua língua tocou meus lábios, fazendo-me
abri-los.

Ela me beijou e eu retribuí.

Suas mãos escorregaram por minhas costas. Ela me puxou contra ela,
fazendo-me pressionar minha ereção contra si.

Blakely gemeu. Eu me afastei para encará-la. A noite já tinha recaído

sobre nós. Ao longe, só dava para ouvir o barulho das ondas quebrando.
— Faz sexo comigo — pediu, me olhando de uma forma que só ela
olhava.

— Não — neguei, fechando meu punho sobre a areia.

— Por que não?

— Porque não.

— Aposto que você já transou com muitas garotas antes. Qual é o


problema?

— O problema é que você não é que nem elas. Você tem sentimentos

por mim.

— E o que tem a ver? — Blakely franziu o cenho.

— Não — repeti, me afastando. — Não dá.

— Você é ridículo, Ian. Você age como se transar comigo fosse um

absurdo. Que foi? Eu não te excito o suficiente?

Eu ri amargamente.

— Meu pau tá duro que nem pedra. Você sentiu. Esse não é o

problema. O problema é que eu não posso ser egoísta a esse ponto com
você.

Blakely engoliu em seco. Dava para ver a frustração no rosto dela.

— Eu tô pedindo! Qual o problema? Não é questão de ser egoísta. Se


você se importasse mesmo com isso, você me deixaria em paz. Mas você
não faz isso, então não vem com essa merda outra vez.

Eu fiquei em silêncio por alguns momentos, a encarando.

— Você tem razão — murmurei. — Eu vou te deixar em paz.

— Ótimo — falou exasperada, virando-se e indo embora.

Observei enquanto Blakely se distanciava pisando duro, sentindo o


vazio voltar a me engolir.

Fui para casa, se é que podia chamar aquilo de casa.

Assim que atravessei a porta, parei ao ver meu pai na sala, sentado na
sua poltrona. Ele já não me intimidava como antes. Ele mal falava comigo,

na verdade, desde que começamos a morar juntos.

Ele não era mais casado, também não era mais prefeito, só
administrava uma mecânica e saía a maioria das noites. Havia dias em que

eu não o via. Eu achava melhor assim, porque nós nunca tínhamos tido uma
relação boa.

Ele estava com o habitual copo de uísque na mão, sentado em frente


à lareira acesa. Não estava frio para isso, então franzi o cenho, mas

continuei em silêncio.

Fiz menção de subir as escadas até meu quarto, mas sua voz me fez
parar:

— Sua mãe era a mulher mais bonita que eu já conheci.


A frase me surpreendeu, porque meu pai nunca falava comigo, muito

menos sobre a minha mãe.

O encarei.

Seu semblante estava sério, mas havia algo diferente em sua


expressão.

Algo parecido com dor.

— É uma pena que ela tenha ido. É uma pena que eu tenha deixado-a
escapar. — Fez uma pausa, olhando para mim. — Sabe, Ian, eu sempre

soube que ela era demais para mim. Sempre soube que eu não a merecia. Eu
a traí uma vez. Nós tivemos uma discussão e eu quis me vingar. Foi o dia

em que ela me deixou — admitiu.

Eu congelei, apreensivo. Senti raiva.

— Você nunca foi digno dela — falei, não me contendo.

Ele me ignorou.

— Você tinha uns três anos na época. Não discutimos sobre sua
guarda, era certo que ela ficasse com você. Eu nunca soube como ser um

pai. Eu não queria ter filhos. — Seu rosto estava sério. — Já sua mãe, era
apaixonada por crianças. 

Houve uma pausa, Hawk continuou:


— Havia muitos motivos pelos quais não demos certo. Minha
aversão pela paternidade. Meu problema com o álcool… Eu entendia e

aceitava que sua mãe tivesse me deixado. Mas, se tem algo que eu nunca
entendi, foi o câncer. Sua mãe era boa. Era uma mulher excepcional. Ela
não merecia o câncer. Eu sempre pensei nisso. Eu merecia estar no lugar

dela. Pessoas como sua mãe morrem, pessoas como eu provavelmente vão
viver até os oitenta anos…

Eu quis concordar com ele, mas as palavras ficaram presas em minha

garganta.

— Acho que ela nunca te disse, mas sua mãe sempre soube que ia
morrer. No dia em que ela descobriu o câncer, também descobriu o restante

do tempo que tinha aqui. O tratamento era apenas para que te tranquilizasse.
Eu cavaria minas de ouro, encontraria o mais puro dos tesouros para arcar

com os gastos do hospital. Eu fiz o necessário para que ela tivesse todos os
remédios, mas não era a solução, não tinha dinheiro no mundo que a

comprasse.

Eu cerrei os punhos discretamente.

— Por que está me falando tudo isso? — indaguei, não entendendo

aonde ele realmente queria chegar.

— Não sei — admitiu.


Em silêncio, subi para meu quarto.
 

— Você não é assim — Reed resmungou, quando eu o encurralei


atrás do estúdio de tatuagem. Nós estávamos numa rua sem saída, era cedo

e estava meio frio.

— Assim como? — questionei-o.

— Você não faz do tipo paternal.

— É, você tem razão, eu não faço mesmo. Mas isso… — Eu apontei

para as concussões em seu rosto. — Isso não é para você, Reed. O que

aconteceu?

Jimmy tinha me ligado assim que acordou, dizendo que Reed tinha

aparecido no estúdio todo estropiado, sem querer contar o que tinha


acontecido. Não pensei duas vezes em subir na minha moto e vir confrontá-

lo. Alguém tinha que lutar por ele agora, se não seria tarde demais depois.

— Nada, só fui encurralado por uns manés. Acho que eles me

confundiram — murmurou, evitando olhar para meu rosto.

— No que você se meteu? Não vou contar para o Jimmy. Fala a


verdade.

Reed suspirou abruptamente, as mandíbulas travando e os olhos


escurecendo.

— Estou numa gangue — admitiu. — Agora tenho rivais…

Fiquei em silêncio por alguns momentos, sem saber o que dizer. Eu

já esperava que Reed estivesse em um caminho perigoso, mas não imaginei

que pudesse ser algo como gangues. 

— É isso o que você quer? — perguntei, sério e cautelosamente. —

Quer chegar aqui todo machucado e deixar o Jimmy morrendo de

preocupação com você? Nós dois sabemos que ele não merece essa merda.

O silêncio que seguiu foi de pura tensão. Reed travou as mandíbulas,

os olhos escurecendo.

— Eu sei — ele murmurou. — Mas você não entende.

— O que não entendo?


—  Que não é tão simples. Eu preciso estar na gangue, pelo menos

por enquanto.

— Por quê?

— Porque preciso de dinheiro.

— E o que tem a ver?

— A gente ganha dinheiro em alguns rachas — admitiu, o tom de


voz baixo.

— Quanto você precisa? — perguntei. — Saia da gangue e vamos

resolver isso. 

— Eu não vou aceitar seu dinheiro.

— Você vai e não vamos mais discutir sobre isso.

Reed e eu entramos no estúdio, conversei com Jenni e Jimmy sobre a

gravadora que eu e a banda estávamos indo visitar. Eles ficaram bastante

empolgados por mim. Depois, voltei para casa e comecei a arrumar as

coisas que ia levar numa mochila. 

Blakely já tinha saído, então não nos encontramos. Deixei um post-it

na geladeira.

Depois, encontrei Hunt e Atticus no aeroporto.

A viagem até Hollywood foi agonizante e lenta. Teve um pouco de

turbulência no voo, o que deixou Atticus enjoado, por isso, quando


chegamos lá, tivemos que passar numa farmácia para comprar um remédio

que o estabilizasse.

Depois, nos instalamos num hotel que ficava perto da gravadora.

— Hollywood, enfim — Hunt disse, se jogando em uma das camas

do quarto.

Abri o frigobar, pegando três garrafas de cerveja gelada. Entreguei

uma para Atticus, outra para Hunt, abri a terceira com os dentes, dando um

gole.

— Será que vamos assinar um contrato? — Atticus perguntou,

parecia ansioso.

— Claro! — Hunt interviu. — Eles chamaram a gente para cá. Por

que Diabos nos enviariam um e-mail daqueles e nos chamariam para cá se

não fosse para assinar um contrato? 

— É verdade — eu concordei. — Tudo indica que vamos assinar um

contrato.

— Ainda não consigo acreditar — Atticus resmungou, os olhos

perdidos em algum ponto do quarto. — Parece muito bom para ser verdade.

Antes de irmos para a gravadora, nós passamos num restaurante para

comer. Depois, fomos direto para lá. Ficava quinze minutos de táxi. Quando
encaramos a fachada de vidro imensa do lugar, olhamos um para o outro.

No hall, esbarramos em alguns cantores famosos. 

A mulher na recepção acenou para nós.

— Ah, são vocês! — ela disse, parecendo contente por estarmos ali.

Começou a discar num telefone, depois o apoiou contra a orelha. — Eles


estão aqui. — Pausa. — É, vou mandar eles subirem.

Nós três ficamos em silêncio, porque não esperávamos por aquilo.

Parecia que tudo já estava planejado para a nossa chegada.

A mulher nos guiou pelo prédio enorme, até o elevador. Nós

passamos por uma fonte imensa no meio da gravadora. Tudo aqui gritava
dinheiro.

O elevador nos levou até o último andar. A reunião foi o que

esperávamos, no fim. Por mais que ainda fosse meio difícil de acreditar,

nossa banda, a Call 911, tinha conseguido contrato com uma das gravadoras

mais relevantes do mundo.

Nós resolvemos comemorar em uma boate.

Atticus se afastou da cabine em que sentamos, indo atrás de


mulheres. Hunt e eu continuamos lá.

— Saúde — ele murmurou, depois que batemos nossas garrafas de

cerveja.
— E aí, resolveu as coisas do seu casamento? — questionei, sobre a

música.

— Não. Tô criando coragem para falar.

— Só diz logo.

No próximo momento, duas morenas se aproximaram. Hunt

dispensou sem nem mesmo encará-las. Eu só balancei a cabeça

negativamente. Hunt arqueou as sobrancelhas.

— Você dispensando mulher? Essa é nova.

Graças a Blakely, meu amigo lá embaixo não queria reagir mais a

nenhum outro corpo feminino.

— Acontece. Não tô a fim.

— Deixa eu adivinhar, tem a ver com a Blakely — presumiu,

acertando em cheio.

Será que estava tão óbvio?

— Tanto faz — resmunguei. — Não quero falar de mulher.

— Que pena. Eu poderia passar horas falando da minha noiva. Não

sei se você aguentaria.

— Eu não aguentaria — garanti a ele. — Já sei que vocês se amam e

tudo mais. Não precisa de mais detalhes.


— Eu não só amo a Eve, ela é minha alma gêmea. Eu faria tudo por

ela.

— Já entendi. Vamos beber.

— Claro, mas só um pouco, tenho que ligar de vídeo para minha


namorada barra noiva barra alma gêmea quando terminar aqui.

Eu ri um pouco.

— Ok.

Eu estava ansioso para retornar para Boston.

Afinal, tinha assuntos inacabados para resolver.


 

Ian tinha deixado um post-it para mim, o que, tinha que admitir, me
surpreendeu muito. Nele, só estava escrito que ia viajar por dois ou três dias

e que voltaria para terminar o que tínhamos começado.

Meu corpo formigou em expectativa.

Corpo traidor.

Amassei o papel na minha mão, jogando-o na lixeira da cozinha.

Tinha acabado de chegar do turno da cafeteria. Como tinha sido liberada


mais cedo, resolvi aproveitar para passar em casa e tomar um banho antes

de ir até o estúdio. 

Trabalhar lá estava sendo incrível para mim. Eu gostava de Jimmy.

Acho que nunca gostei de um chefe meu antes. Talvez devesse ser pelo fato
de que nenhum deles antes me tratou como se eu realmente fosse um ser

humano, não só uma empregada que estava ali para cumprir ordens.

No metrô, recebi algumas mensagens de Jenni.

Jenni: passa no restaurante que fica do lado da estação antes

Jenni: Jimmy pediu p vc trazer jantar pra gente 

Jenni: :)

Como o instruído, comprei o jantar antes de entrar no estúdio. Deixei


as sacolas na recepção com ela e segui para o escritório. Jimmy não estava

lá, talvez estivesse em outro lugar, afinal, o estúdio era imenso. Comecei o

trabalho, arrumando a mesa dele.

Havia um quadro sobre ela que sempre me chamava atenção.

Na foto, havia um garoto de mais ou menos cinco anos de idade,

cabelos castanhos dourados e uma versão mais jovem de Jimmy que posava

ao seu lado. Eles sorriam para a câmera. Pareciam felizes.

Me perguntei se aquele era o filho de Jimmy. Ele não usava aliança,

também nunca comentou sobre sua vida pessoal comigo.

Quando terminei, fui para a recepção. Eu gostava bastante de ficar lá,

mesmo após meu expediente ter terminado. Conversar com Jenni era bom.

— E aí, como tá o piercing? — perguntou, sorrindo, quando me

aproximei.
— Acho que está cicatrizando bem, mas você tinha razão quando

disse que enroscava nas coisas. Dói para cacete.

Jenni riu da careta que eu fiz.

— É, dói mesmo. Mas vale a pena, eu acho.

No sábado, recebi uma ligação do meu pai, o que, definitivamente,

era inesperado. O número desconhecido tinha me ligado três vezes

seguidas. Na quarta, resolvi atender e me arrependi no mesmo instante em

que escutei sua voz.

— Blakely, podemos conversar? Estou aqui fora.

Eu pisquei algumas vezes, demorando para entender que seu "aqui

fora" significava que ele estava lá embaixo, esperando-me estacionado em

frente ao meu prédio. Murmurei para que ele esperasse um segundo e

coloquei um casaco antes de descer, porque estava frio.

John estava parado contra a porta de seu carro. Só que não era o carro

que havia me dado uma carona da última vez. Era um modelo menos caro,
porém, ainda assim, parecia zerado e longe da minha realidade.
— Blakely, me desculpe — ele começou parecendo envergonhado.

— Eu devia ter acreditado em você sobre o colar…

— Deixa eu adivinhar, vocês encontraram? — perguntei, num tom

sarcástico.

— Sim, Hanna tinha se precipitado. O colar estava em casa. Só que

num lugar diferente. 

Eu quis rir.

É claro.

Fiquei em silêncio, esperando. Parecia que ele tinha algo mais a

dizer.

— Queria te dar um presente, para me desculpar. — John limpou a

garganta, apontando com o polegar sobre o ombro em direção ao carro. —

É um modelo novo. Acho que um carro te ajudaria. 

Eu arregalei um pouco os olhos.

— Você tá me dando um carro? — perguntei, para me certificar de

que não havia entendido errado ou de que estava imaginando coisas em

minha cabeça.

— Sim. — John começou a coçar a barba por fazer, parecendo

desconfortável.

Eu alternei meu olhar entre ele e o automóvel.


Era lindo, claro. E me ajudaria bastante, obviamente. Meu sonho era

ter um carro para que não precisasse ficar andando de transporte público.

Meu orgulho, no entanto, me fez balançar a cabeça negativamente.

— Não, não posso aceitar.

John franziu o cenho.

— Por quê?

— Porque isso é demais. E porque não é assim que as coisas

funcionam. Você duvidou de mim. Se não tivessem achado o colar, eu ainda

seria a responsável pelo sumiço dele. Você não pode me acusar de roubo e

me dar um carro para compensar.

— Como disse, Hanna se precipitou em ter presumido que foi você…

— John suspirou, parecendo envelhecer trinta anos em um minuto. — Eu

concordo que fiz mal em ter sido conveniente nessa situação. Me arrependo,

Blakely. Por tudo.

Não parecia que ele estava falando só do colar.

Engoli em seco. Meus olhos começaram a ficar marejados.

— Você não sabe o que eu passei. Eu tive que começar a trabalhar

desde os meus dezesseis anos, porque minha avó já estava muito velha para

isso. E quando ela ficou doente, eu praticamente abandonei a escola para ter

que trabalhar o dobro e conseguir remédios para ela. Nunca pedi nada para
você. Nunca fui atrás de você, porque eu sabia que se você estivesse

preocupado comigo, teria ido atrás de mim… E aí minha avó morreu, foi

horrível… — Parei de falar, percebendo que estava virando um emaranhado

de emoções na frente de John. 

Seus ombros despencaram.

— Sinto muito. Sei que não posso apagar todos esses anos. Sei que

não fui um pai para você, mas eu estou tentando, Blakely. Eu me arrependo.

— Mas é tarde demais. Eu não quero ter nada a ver com você. Não

quero seu carro. Seu dinheiro. Nada. Só vamos manter contato por causa de

Elle. Fico feliz que você a ame e a trate como uma filha de verdade.

John ficou em silêncio.

Nós nos encaramos por alguns momentos.

A tensão no ar era palpável.

Tanto ressentimento. Tanta mágoa.

Suspirei, cansada.

— Tchau, John.

Foi tudo o que disse antes de me virar e voltar para casa.


 

Nós voltamos para Boston no domingo e, durante o voo, uma


memória do passado se apossou em minha mente, após eu ler uma matéria

sobre um garoto que tinha sido resgatado de abusos físicos de seu pai. Sua
esposa o encobria. A história tinha tantas semelhanças com a minha que foi

quase inevitável não me lembrar de um dia turbulento de minha

adolescência.

 — Pare.

 A voz de Lea cortou o ar, surpreendendo-me. Geralmente, ela não se


importava. Ou pelo menos não interferia. O braço de meu pai parou no ar.

Seu punho ficou a apenas sete centímetros do meu nariz.


 — É o suficiente, Hawk.

  É tudo o que ela diz. É o suficiente. Quase tenho vontade de rir,


porque a sua intervenção era patética. Meu rosto latejava do primeiro soco,

na têmpora. Era cômico que meu pai fosse prefeito desta cidade. Como ele

conseguia sustentar uma fachada de quem se importava com a segurança

dos outros, quando ele mesmo arriscava a segurança de seu próprio filho?

  O peito de meu pai subia e descia num ritmo frenético. Ele me

encarou uma última vez, com aquele misto de decepção e algo parecido

com nojo antes de se virar. 

Ele parou por um momento.  

— Olhe o que você me faz fazer. 

Sempre as mesmas palavras. Havia um tipo de ressentimento em sua


voz, por mais que eu duvidasse que fosse por minha causa. Hawk, na

verdade, se ressentia por ter que machucar os nós de seus dedos. Como ele

explicaria aquilo, caso perguntassem? 

— Se te questionarem, diga que são as aulas de MMA. 

— Claro — murmurei, com ironia. 

 Então, ele finalmente se foi, seguido por Lea, sua nova esposa. Eles

estavam casados há cerca de um ano. Lea já havia visto as partes sombrias

de meu pai. Eu não sabia por que ela ainda se submetia a isso, ainda mais
sabendo que ele tinha outras mulheres. Mas provavelmente estava ligado

ao fato de que ela morava numa casa imensa agora, com jardim e piscina,

além de que a cidade inteira a respeitava.

 Respirando com dificuldade, caminhei até o espelho do banheiro.

 A imagem refletida nele me fez cerrar as mandíbulas.

 Meu supercílio estava aberto outra vez. Meu lábio inferior, rasgado.

 Segurei a borda da pia com força, vendo o sangue esvair-se dos nós

dos meus dedos, deixando-os esbranquiçados.

 Sentindo raiva, eu saí de casa. Fui em direção ao lugar que sempre


ia quando não conseguia pensar direito. Àquela altura do campeonato, o

píer havia se tornado o meu lugar. Ao sentar-se sobre as placas de madeira,

o vento batendo no rosto e observando o sol afundando no horizonte, soltei

um suspiro.

 — Ian? — a voz atingiu meus tímpanos.

A voz aguda e irritante de Blake.

 Não respondi, mas era difícil fazê-la desaparecer. Ouvi seus passos
até mim.

  — Sabia que a dona da cafeteria da esquina é bem legal? Ela me


deu esses donuts... 

 — Blakely — a cortei. Ela parou de falar na hora. — Vá embora.


 Ao contrário do que eu esperava, minha voz não havia saído forte.

Na verdade, não passava de um resmungo patético.

  Blake se ajoelhou ao meu lado. Ela me encarou. O choque tomou

conta de sua expressão. Seus olhos verdes se arregalaram.

 — Meu deus, o que aconteceu com você?  

Quis mandá-la calar a boca e não fazer mais perguntas. Quis dizer a

ela que era uma idiota por tentar se aproximar de mim. Que devia me

esquecer. Mas eu não consegui. Apenas fiquei parado observando seus


cabelos se agitarem com o vento, os lábios sujos de açúcar dos donuts e as

bochechas coradas com um tom de rosa perolado. 

Então eu me dei conta de algo naquele momento. 

Eu não conseguia mais detestá-la. 

— Nada — murmurei, virando-me para frente. 

— Quem fez isso com você? Você devia ir até a polícia.  

— Você é tão inocente. — Deixei o pensamento escapar por minha

boca.

Então, a cena se diluiu em minha cabeça quando eu a afastei para

longe, espiralando feito fumaça. 


Quando cheguei em casa, a luz da cozinha estava acesa, a tevê ligada.

Tirei minha jaqueta de couro, colocando-a no apanhador que ficava preso

na parede ao lado da porta.

Chutei meus sapatos para longe.

Blakely apareceu no corredor, com o olhar baixo, preso num livro.


Havia fones em suas orelhas. Parecia muito dispersa. Observei-a passar por

mim como se eu fosse invisível, indo até a cozinha. Ela parou em frente a

bancada da pia. Deixou o livro aberto no granito e começou a encher uma

caneca de café.

Me aproximei, puxando seus fones. Como eram sem fios, os joguei

sobre o granito. Blakely se virou, assustada, depois resmungou pelos fones.

Eu a ergui pela cintura, colocando-a sentada na borda da pia, posicionando-

me entre suas pernas.

Seus olhos verdes se prenderam nos meus.

Nós não dissemos nada. Nem precisava também. Eu avancei,

fechando minha boca sobre a sua. O beijo começou lento, depois, foi

ficando urgente e necessitado. Minhas mãos deslizaram por suas coxas

desnudas. Ouvi Blakely ofegar contra meus lábios, o que enviou uma

corrente de estímulo diretamente para meu pau.


Quebrando o beijo para tirar sua blusa, eu parei por um momento

quando vi o piercing em um de seus mamilos. Não estava ali da última vez

em que eu tinha visto seus peitos. Devia ter posto recentemente. Coloquei

ele na boca com delicadeza. 

Blakely gemeu enquanto minha língua brincava com o pedaço de

metal.

Testei chupar com mais força.

Ela choramingou.

— Dói assim? — murmurei, contra sua pele quente e sensível.

— Dói um pouco, mas é bom — admitiu.

Comecei a massageá-la lá embaixo por cima dos shorts em que

usava, enquanto dava atenção para seu outro mamilo, mordiscando-o.

Blakely praticamente se contorceu. 

 — Me leva pro seu quarto — pediu.

Eu não a contrariei. Levei Blakely para meu quarto, carregando-a nos

braços enquanto nós nos beijávamos. Deitei-a na cama, ficando por cima.

Seus peitos macios se pressionaram contra mim. Tirei minha camiseta para

senti-los sem nada entre nós, então deixei uma trilha de beijos até o fim de
sua barriga.
Blakely se precipitou, tirando o shorts de algodão e sua calcinha.

Agora, ela estava completamente nua.

Eu me afastei um pouco, para ver a imagem dela em meu colchão.

Queria gravá-la na memória.

Quando voltei a me aproximar, comecei a chupá-la. Eu poderia

passar horas só chupando Blakely e ouvindo seus gemidos suaves, que eram

como música para meus ouvidos. Ela se contorceu embaixo de mim,

levantando os quadris.

Precisei segurá-los contra a cama.

Quando ela parecia próxima do orgasmo, eu parei.

Comecei a tirar o resto da minha roupa e procurar pela camisinha na


cômoda. Quando encontrei, disse para Blakely:

— Vira.

Ela se apoiou nos joelhos, ficando de quatro. A visão quase me fez

gozar.

Eu penetrei Blakely por trás lentamente, até que cobrisse suas costas
com meu peitoral. Ela apoiou o rosto contra o colchão, gemendo alto

quando eu estava completamente dentro dela.

Então, comecei as investidas, travando as mandíbulas.


Não contendo o impulso, eu dei um tapa em sua bunda, fazendo o
estalo pairar no ar.

— Ai, meu Deus — ela murmurou. — Outro.

Repeti o movimento, desta vez, com um pouco mais de força.


Blakely soltou o ar de forma espalhafatosa. Comecei a estimular seu

clitóris. Suas pernas começaram a tremer. Blakely se desfez embaixo de


mim, ofegante.

Eu saí de dentro dela.

Blakely me encarou confusa por cima do ombro.

Tirei a camisinha, jogando-a no chão.

Rocei meu pau livre em sua bunda.

Blakely se animou.

— Posso? — perguntei, fazendo uma oração silenciosa ao mesmo

tempo para que ela aceitasse.

— Sim.

Comecei a penetrá-la, mas em outro lugar.

Blakely gemeu, olhando nos meus olhos, sobre o ombro.

— Porra — eu resmunguei, sentindo meu abdômen começar a

contrair. — Cacete…
Comecei a soltar uma enxurrada de palavrões conforme recuava e
empurrava os quadris para frente. Não demorou muito para que eu gozasse,

tremendo sobre ela e apoiando-me nos braços para não esmagá-la com meu
peso.

Nós gozamos por mais quatro ou cinco vezes. Não soube dizer ao

certo. Mas, quando terminamos, éramos apenas um emaranhado de braços e


pernas e bastante suor.

Então teve a última vez, no chuveiro.

Blakey tinha acabado de me proporcionar o melhor sexo de toda


minha vida. E aquilo era um problema.

Ela não disse nada quando terminamos pela última vez, eu também

não. Ela só foi para seu quarto e fechou a porta. O silêncio reinou no
apartamento.

Eu não devia ter cruzado a linha, mas, porra, foi quase impossível.

Não pensando muito, resolvi sair e ir até o estúdio de Jimmy com


minha moto. Como sempre, o lugar estava muito movimentado. Fui até seu

escritório, Jenni não estava na recepção, mas sim um cara que a substituía
de vez em quando. 

— Quero tatuar — falei para Jimmy, em forma de saudação.

Ele estava sentado atrás de sua mesa, imponente como sempre.


Sua sobrancelha direita arqueou em minha direção.

— O que quer tatuar desta vez?

— Aquela tatuagem que falamos, sobre minha mãe.

— Ah — murmurou. — Ok. Já decidiu quando quer ir até sua casa


antiga?

— Ainda não.

— Que tal amanhã? — Jimmy sugeriu, arqueando uma das


sobrancelhas.

Concordei, porque não fazia mais sentido adiar aquele momento. 

Estava na hora de enfrentar o que me perturbava.


 

Eu não tinha dormido em casa, fiquei com Jimmy em seu


apartamento. Era um lugar confortável, nada muito luxuoso, por mais que

ele pudesse bancar. Só que era grande. Pela manhã, saímos em seu Mustang
até a casa de minha mãe, que ficava cerca de uma hora e meia dali.

Quando Jimmy estacionou o carro em frente a propriedade de dois

andares, eu engoli em seco. A pintura azul estava desbotada e as cercas


brancas, meio caídas. Parecia abandonada. Porque estava. Eu tinha deixado

a casa chegar a este ponto.

Me perguntei o que minha mãe pensaria.

Olhei para o andar de cima, para a janela em que minha mãe gostava

de olhar.
Quase pude imaginá-la ali, sentada, observando o jardim.

— Ela adorava essa casa — Jimmy murmurou, com certa melancolia


no tom de voz.

Nós descemos.

Andando até a porta da frente, eu tirei a chave debaixo do tapete. Já

estava empoeirada. Jimmy arqueou uma sobrancelha.

— Sério que deixou a chave aqui?

Dei de ombros. Eu não queria perder a chave e, por mais que fosse

idiota deixá-la aqui, na época não consegui pensar em outro lugar. Meu

coração disparou em meu peito assim que a girei na fechadura, abrindo a

porta, que reproduziu um rangido esganiçado, daqueles irritantes.

Eu e Jimmy entramos na sala. Estava como me lembrava: um sofá, a


mesinha de centro. No lugar da tevê, uma estante de livros, porque minha

mãe dizia que telas fritavam nossos cérebros. Ela odiava muita tecnologia.

Me lembrei do que me disse uma vez, que se pudesse, um dia, ela

compraria uma casa minúscula numa colina, longe de toda a barulheira da

cidade, com um jardim imenso e a paz que ela precisaria para escrever

alguns livros.

Só que ela tinha morrido antes de que seu desejo pudesse ser

concretizado. Antes de escrever o livro sobre mim e Blakely, também.


Jimmy andou até alguns quadros que estavam pendurados na parede.

A casa estava cheia de pó, com um cheiro antigo, então experimentei abrir

as cortinas.

Subi as escadas. Alguns degraus rangiam ao receber meu peso. A

cada passo que eu dava aqui dentro, flashes de memórias invadiam minha

cabeça. A maioria delas eram bem-vindas, só que faziam com que eu me

sentisse esquisito.

Indo até o quarto de minha mãe, eu abri a porta cuidadosamente.

A janela estava fechada, mas como não haviam cortinas, a luz

iluminava o lugar.

Olhei para sua cama desfeita. Senti um aperto no peito.

Estar ali era reconfortante ao mesmo tempo em que me sentia

sufocado.

Depois de pegar algumas caixas, Jimmy e eu voltamos para o quarto

e eu tranquei a casa, após fechar as janelas.

— O que vai fazer com a casa? — Jimmy questionou

cuidadosamente, dando partida no Mustang.

— Não sei. — Limpei a garganta, observando a casa sumir no

horizonte conforme nos distanciávamos. — Acho que vou vendê-la.


Jimmy ficou em silêncio. Eu gostava do silêncio, mas desejava saber

o que ele estava pensando. O caminho de volta para Boston pareceu mais

longo, porque o trânsito estava mais movimentado. Quando cheguei em


casa, levei as duas caixas para meu quarto, mas não mexi nelas.

Ouvi a porta da frente abrir e os passos característicos de Blakely

soarem no corredor. Depois, o som da porta do quarto se abrindo e

fechando.

Fui para a cozinha, em busca de algo para comer.

Tirei da geladeira o pote de picles com a etiqueta de Blakely e peguei

um saco de pão no armário.

Comecei a fazer o lanche quando ela chegou.

Primeiro, ficou parada alguns momentos na sala, me observando na

bancada. Quando finalmente pareceu criar coragem, entrou na cozinha,


dizendo:

— Esses picles são meus. Você devia comprar sua própria comida.

Aquelas haviam sido suas primeiras palavras para mim desde que

tínhamos transado feito coelhos. Por mais que meu corpo a desejasse, eu

não queria qualquer outra coisa de Blakely além disso. Olhei para ela.

— Estou com fome.


Foi tudo o que respondi. Ela continuou me fitando, com um olhar

enigmático. Eu não sabia decifrar os sentimentos através de seus olhos, mas

era algo entre desconfiança e dúvida. 

Blakely ficou em silêncio.

Estava pondo as barreiras para baixo.

Completamente desarmada.

Ela encheu um copo de água na pia. Fiquei ouvindo sua

movimentação, de costas para ela. Senti seu olhar praticamente perfurar a

parte de trás da minha cabeça.

— E agora? — ela questionou, o tom de voz quase inexistente.

Eu senti meus músculos se tensionando, ficando rígidos sob minha

jaqueta. Terminei de comer, mastigando com calma o último pedaço do

sanduíche.

Me virei, limpando minhas mãos num pano. O joguei na bancada.

Blakely me observava em expectativa, tentando manter o rosto neutro

de emoções.

— E agora, o quê? 

Ela respirou fundo.

— Nós transamos — apontou o fato, como se eu não soubesse.

— É, eu sei. Eu estava lá.


O sarcasmo em minha voz a envenenou. Blakely enrijeceu. 

— Isso é tudo? — perguntou, a voz ríspida e os olhos sombrios. —

Sexo é mesmo algo simples para você.

— Não tem porque complicar, Blakely — falei, suavemente.

— Você devia ter pensado nisso antes de enfiar o pau em mim —

murmurou. — Mas tudo bem, já entendi como as coisas funcionam com Ian

Sweddish. Entendi há muito tempo atrás. Você sempre foi desse jeito.
Egoísta.

— Não aja como se fosse santa. Você não é.

Blakely soltou um riso frio, sem humor.

— Comparando a você, qualquer um se torna um celibatário. 

— A última lembrança que tenho de você não é exatamente de

castidade.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre você — ela murmurou,

amargamente.

Eu ri, sentindo a raiva me consumir.

— Transar com você foi um erro, Blakely — falei, em tom de voz

baixo, observando sua expressão impenetrável vacilar por um momento.

Sem esperar por uma resposta, eu saí de casa, fechando a porta com

força.
Fui para o estúdio de Jimmy, o único lugar em que eu me sentia bem

ultimamente. Quando cheguei lá, Jenni pareceu perceber que tinha algo de

errado comigo, mas eu não quis conversar. Fui para o escritório de Jimmy e

pedi para que ele tatuasse a parte de trás do meu pescoço com um par de

asas e o ano em que minha mãe morreu.

Eu não me importei com a dor.

Ela amenizava a dor real, a que não era física.

Eu poderia dizer o mesmo sobre você, a frase que Blakely disse


depois que falei sobre a última de lembrança que eu tinha dela não ser de

castidade ficou flutuando em minha cabeça, diversas vezes.

Como ela podia agir como se não tivesse sido cruel?

Eu me lembrava.

Como se fosse ontem.

 
21 de setembro de 2014

Aquele era um dia comum. Eu estava numa festa com Olivia, a

última do verão, antes que eu me despedisse e voltasse até Nova Jersey e


deixasse Oak Springs para trás. Eu não pretendia voltar para cá. No

momento, ela dançava na pista com um cara. Eu não queria incomodar,

então estava na minha.

Havia um copo de cerveja nas minhas mãos, mas já estava quente,


porque eu não estava a fim de beber. A música ecoava por todo o lugar

dentro da casa em que a festa estava acontecendo.

De onde eu estava, pude perceber quando Ian atravessou a porta.


Ele passou por mim no corredor, seu olhar se conectando ao meu por

uma fração de segundos antes que o desviasse para longe.

Quase amassei o copo de plástico na minha mão.

Lembrei da última vez em que estivemos juntos. De quando eu disse

para que ele me deixasse em paz, alguns dias atrás.

Era isso o que ele estava fazendo.

Tornando-me invisível. Irrelevante.

Eu sabia que era melhor assim, mas, me sentia incomodada.

Como podia ser tão fácil para ele?


 

Passar por Blakely foi uma das coisas mais difíceis que eu já havia
feito. Ainda mais depois de tudo.

Eu não queria mais brincar com seus sentimentos. Não queria ter que

magoá-la mais. Nunca havia desejado em toda minha vida alguém como eu
a desejava. Eu queria estar com ela na maior parte do tempo. Porque ela
fazia ficar suportável.

Ela amenizava a dor, até que ela fosse embora.

Blakely me fazia querer ter coisas. Ela me fazia querer ser alguém,
para poder dar a ela tudo o que ela merecia.

Foi quando eu percebi que a amava.

Porque mesmo que tudo que eu conseguisse enxergar fosse o

presente, o momento, quando estava com ela, era eu quem me pegava

pensando no futuro. Era eu que a imaginava cuidando de um jardim, numa

casa grande e branca, que pertenceria a nós dois.

Era eu quem imaginava um bebê com seus olhos.

Eu quem era o covarde.


Eu quem estava fugindo, porque os sentimentos me assustavam.

Amar para mim havia se tornado perda.

Quanto mais pessoas eu amasse, então mais me preocuparia em

perdê-las.

Eu não suportaria perder outra pessoa que eu amava.

Isso me destruiria.

A festa era uma forma de me entorpecer. A música. As pessoas. As

bebidas. Tudo muito raso. Tudo volátil.

Enchi um copo de cerveja, entornando-o. Não demorou muito para

que uma garota se aproximasse e começasse a falar comigo. Ela até que era

bonita, mas não como Blakely.

O ruim de gostar dela, era que Blakely tinha se tornado uma espécie
de referência para mim. Mesmo que eu não quisesse, minha mente sempre

comparava todas as garotas com ela. E nenhuma nunca conseguia chegar

aos seus pés.


 

Meu coração afundou um pouco no peito enquanto eu o observava.


Agora, Ian conversava com uma garota.

Ela era bonita, tinha um corpo incrível, cabelos loiros...

Talvez ele resolvesse transar com ela.

Era mais bonita que eu. A loira se aproximou dele. Prendi a


respiração. Eles ficaram perto, muito perto, até que ela o beijou.

Eu praticamente pude ouvir o “crac” do meu coração.

Com os olhos cheios de água, eu saí dali o mais rápido possível, não
suportando ver a cena.
 

— Você não tá a fim, né? — A garota loira questionou, ao se afastar


depois do beijo.

Não havia sido um beijo, na verdade, ela só encostou a boca na

minha, me pegando de surpresa. Olhei para onde Blakely estava quando


cheguei, mas não a encontrei.

— É, não estou — resolvi ser honesto.

— Entendo. Tem a ver com alguém?

— Sim — admiti. — Não sou bom para ela.

A loira arqueou as sobrancelhas.

— Mas ela pensa dessa forma?

Fiz uma pausa.

— Não, mas com certeza tá muito chateada por minha causa.

A desconhecida rolou os olhos.

— Vocês, homens, são todos idiotas. Querem decidir por nós o que é

melhor ou não. Se ela tá a fim e você também, apenas sejam felizes. Não
tem por que ficar complicando as coisas.

Eu franzi o cenho, pensativo.

— Mas você não acha assustador? — indaguei.

— O quê?

— O amor. Você não acha que isso é estar vulnerável demais? Que é
só mais uma pessoa que você tem possibilidade de perder?

— Não, não acho. Pra mim, o amor é o sentimento mais nobre que
existe. O amor cura. O amor é confortável. E, sobre perdas, todos nós

estamos nos despedindo o tempo todo, né? Amanhã, você vai estar mais

perto do dia da sua morte. Eu também. Todo mundo. Tudo isso é

passageiro. Percas são inevitáveis. Você vai ser a perca de alguém, um dia.

— Você tem razão — admiti, sentindo o coração bater mais forte. —


Tenho que ir agora.

Me afastando, comecei a procurar por Blakely.

Eu tinha que consertar as coisas.


 

Ian estava certo. O amor era perigoso. Amor significava perder.

Terminei de me recompor no banheiro. Ouvi alguém bater na porta.


Talvez eu tivesse passado muito tempo aqui dentro. Quando saí, havia uma

pequena fila de pessoas aguardando por sua vez.

Voltando para o andar debaixo, eu vi quando Ian começou a se

aproximar.

Então eu beijei o primeiro cara que apareceu em minha frente,

satisfeita quando ele me beijou de volta.


 

Eu observei enquanto Blakely beijava outro cara bem em minha


frente, sentindo raiva. Quando o beijo quebrou, ela segurou na mão dele,

olhando para mim sobre o ombro enquanto o levava até o andar de cima,

através das escadas.


 

Escolhi um dos quartos, deixando a porta propositalmente


entreaberta.

Enquanto eu beijava o garoto que eu não sabia o nome, só conseguia

pensar em Ian. Queria que ele se sentisse da mesma forma que eu me sentia.
Queria que ele se machucasse tanto quanto eu.

Eu queria quebrar o seu coração.


 
 
Eu a segui, porque ainda tinha algo a dizer.

Mas, quando cheguei lá, congelei.

Blakely começava a tirar o vestido que estava usando, dava para ver

através da porta entreaberta. Seu olhar encontrou o meu por um momento,


enquanto o estranho beijava seu pescoço.

Não havia nenhum tipo de sentimento ali. Apenas o vazio.

Uma versão sua que eu nunca tinha visto. Uma que eu não gostava.

Então, antes de continuar com o espetáculo, Blakely se afastou do

estranho por um momento para fechar a porta em meu rosto. Mas antes, ela
disse, friamente:

— Você tem razão, Ian. Tudo o que importa é o momento. Pensar em


um futuro com alguém como você seria perca de tempo. Eu gostaria de

estar morta no lugar de sua mãe agora, para nunca mais ter que ver você.

Ou saber sobre você. — Fez uma pausa. — Você me enoja.

Cinza. Cinza. Cinza.


Era tudo o que eu enxergava quando deixei a festa.

 
 

As palavras de Ian foram afiadas como faca, cortando fundo. O que


havia dito sobre transar comigo ser um erro me deixou mal-humorada a

semana inteira. Gina estava tentando me sondar há algum tempo, mas eu


não dizia nada para ela, porque a humilhação que eu sentia era maior.

Como eu fui capaz de me entregar assim, depois de tudo?

Sentindo asco de mim mesma, eu jurei que jamais cederia a Ian outra

vez. 

Ele já tinha machucado meu coração o suficiente quando éramos

adolescentes.

— Nossa, o que deu nela? — Diamond perguntou para Gina,

enquanto me observavam limpar uma mesa furiosamente.


A minha raiva até tinha feito eles darem uma trégua de sua própria

guerra particular.

— Gostaria de saber — Gina murmurou.

Ian não estava dormindo em casa já fazia uma semana. Era como se

estivesse me evitando e achei ótimo, porque não queria ver seu rosto de
babaca. Comecei a procurar outro lugar para me mudar, porque eu não

queria mais ter que vê-lo nunca mais.

No turno do estúdio, pela noite, Jenni parecia estranha.

— Jimmy tá em reunião. Seria bom se você esperasse.

Devolvi seu sorriso mecânico.

— Tudo bem, só vou ao banheiro, tá?

Ela assentiu, parecia meio dispersa.

Indo para o banheiro, que ficava no mesmo corredor em que o

escritório de Jimmy, eu fiz minhas necessidades, lavei as mãos na pia e as

sequei com papel toalha. Saindo para o corredor, acabei esbarrando em

algo.

Algo não, alguém.

O momento aconteceu em câmera lenta.

Meus olhos encontraram os dele e meu corpo retesou. Ian também

pareceu congelar ao me ver, mas não parecia surpreso. 


Eu me afastei dele depressa, como se tivesse uma doença contagiosa

e de alto risco de morte. 

— O que você tá fazendo aqui? — murmurei, confusa.

Por que é que ele tinha saído do escritório de Jimmy? Achei que o

lugar fosse meio confidencial.

Ian riu, sem humor.

— Não é da sua conta.

Travei as mandíbulas.

— Você é um porco. Devia dar o fora daqui.

Ele ficou em silêncio. Nós nos encaramos por momentos que

pareceram eternidades, até que Jimmy surgiu em sua porta, nos olhando

com um misto de apreensão e reconhecimento. Ian e ele trocaram um olhar.

Um olhar… íntimo?  Como se compartilhassem um segredo.

— Vocês se conhecem? — indaguei.

— Ian me deu seu número algumas semanas atrás, disse que você

estava precisando de emprego — ele disse, parecendo meio constrangido.

Eu olhei para Ian, incrédula.

— Por que fez isso?

— Quero que você vá embora o mais rápido possível. Isso não vai

acontecer se você não tiver dinheiro, né? — murmurou secamente, antes de


me dar as costas e simplesmente ir embora.

Jimmy sinalizou para que eu entrasse em seu escritório.

Entrei, mas me sentia estranha agora por saber que ele e Ian, de

alguma forma, eram próximos. E, também, porque ele tinha mantido

segredo. Droga, até a Jenni parecia saber! Por isso estava toda esquisita na

recepção, como se estivesse prevendo que um possível encontro com Ian

seria desastroso.

— Sente-se, Blake — Jimmy resmungou, após tomar o assento de


sua cadeira, acendendo o habitual charuto. Acho que não consegui disfarçar

minha decepção, porque continuou: — Peço desculpas por Ian. 

— Você não é pai dele para pedir desculpas por ele. Não precisa fazer

isso. Além do mais, ele não é mais uma criança, sabe o que faz.

Houve uma pausa.

— Você tem razão — Jimmy concordou, me surpreendendo. — Não

sou pai do Ian, mas sou uma das poucas pessoas que o conhecem. Ele é um
bom rapaz. Sou suspeito em falar, porque o amo, mas acho que você sabe.

Eu pisquei.

— Ian, um bom rapaz? — murmurei, sentindo o cansaço dos últimos

dias me abater, fazendo-me curvar os ombros. Sentia-me como se tivesse


envelhecido cinco anos em um minuto. — Ele costumava ser. Quando

éramos crianças.

— Ele nunca me disse sobre o passado de vocês…

— Acho que não tem porque contar. Não foi relevante para ele. —

Cerrei o punho em cima da minha perna esquerda.

— Besteira. Você foi importante, Blakely. — Jimmy soltou a fumaça

antes de continuar. — Eu namorei a mãe de Ian por um tempo — admitiu.

— Aquela mulher era a mais extraordinária que já conheci — falou, com ar

de nostalgia.

As informações novas me surpreenderam.

Olhei para o quadro na mesa de Jimmy. O garoto na foto era Ian, por

isso eu o achava estranhamente familiar algumas vezes. Anuí um suspiro. 

— Ela terminou comigo quando descobriu que estava doente —

Jimmy continuou falando, com sua voz grave e profunda. — Foi a primeira

vez que partiram meu coração. Mas aquilo não me fez amá-la menos, nem

com que eu me afastasse. Sempre que eu podia, visitava a ela e a Ian. Em

uma das visitas, ele me disse sobre você. Tinha acabado de voltar de suas

férias de verão.

— O que ele disse? — perguntei, engolindo em seco.


— Que tinha conhecido uma garota com nome esquisito. Uma garota

chamada Blakely.

Bufei.

— E o que mais?

Jimmy riu.

— Só disse que você era tagarela, que tinha olhos verdes bonitos. Ele

ficou obcecado por essa cor, verde. E, nos próximos verões, ele não

precisou dizer nada, porque eu notava que havia algo diferente nele. Que

algo tinha mudado. Que você tinha acontecido. Quando Ian pediu para que

eu a contratasse, não contestei, porque confio nele. É como o filho que não

tive. Então você chegou, o nome, os olhos verdes… Liguei as peças.

Eu sentia muitas emoções naquele momento. Não dava para definir o

que estava acontecendo dentro de mim. Eu só sabia de uma coisa:

— Ele não é mais o mesmo, Jimmy. Esse Ian que nós conhecíamos…
Ele partiu há muito tempo.

— É verdade — concordou, com pesar. — Uma parte de Ian se foi

quando sua mãe morreu, mas eu acredito que você possa resgatá-la.

— Por que acredita nisso?

— Porque ele a ama.

Eu ri. Ri mesmo, para valer, porque só podia ser piada.


— Ian não me ama, isso eu te garanto.

Jimmy ficou em silêncio, com seus olhos que indicavam sabedoria,

então se levantou para comprar o jantar. Eu comecei a organizar os papéis,

minha mente estava confusa, girando. Eu iria sair do apartamento o mais

rápido que conseguisse. O mais rápido que pudesse. Não queria mais ter

que lidar com Ian, com o que ele me fazia sentir e, sobretudo, com o que

não fazia.

A porta abriu num rompante. Achei que fosse Jimmy, mas me


surpreendi ao ver Reed, o adolescente excêntrico que Ian levou até nosso

apartamento outro dia.

Franzi o cenho.

— Você… — eu disse, acusadoramente.

— Que drama — Reed resmungou. — Me falaram que Jimmy tinha


te contratado, mas não acreditei.

— Por quê?

— Você é a vizinha gostosa do Ian.

— Não sou vizinha do Ian, a gente mora junto. E você devia buscar

garotas de sua idade.

Reed bufou, cruzando os braços sobre o peito.


— Você é o quê? Uns dois anos mais velha que eu? Sabe que isso
não é nada, né? Além do mais, idade é apenas um número irrelevante.

Eu ri.

— Não importa. Não vai rolar.

— Não sabe o que tá perdendo…

— É, acho que não. Quero continuar assim.

Jenni surgiu atrás de Reed, empurrando-o para o lado e fazendo-o

resmungar. A cena toda foi icônica porque Reed era quase do tamanho da
porta, já Jenni tinha cerca de um metro e cinquenta. Ela colocou uma sacola

na mesa.

— Seu jantar.

— Obrigada. — Fiz uma pausa, alternando o olhar entre ela e Reed.


— Vocês todos se conhecem?

— Sim, por causa de Jimmy. Ele gosta de chamar Reed, Ian e eu de


suas almas perdidas. — Rolou os olhos, com um sorrisinho nos lábios. 

— Não imaginei que vocês conhecessem o babaca do Ian. Ele é tão

diferente de todo mundo…

Jenni ficou em silêncio por alguns momentos. Reed disse:

— Ian é legal. Gosto dele. Talvez ele só não seja tão legal com você.

Franzi o cenho. Jenni levantou um dos ombros.


— Bem, de qualquer forma, não me importo. — Fiz uma pausa. —
Ele não vai mais me ver.
 

Era véspera de Natal, o céu estava nublado e tinha bastante vento nas
ruas, o que me fez fechar o zíper de minha jaqueta até o pescoço. Talvez

começasse a nevar. Subi no elevador até o apartamento de Hunt. Bati em


sua porta, que foi aberta um minuto depois.

Hunt estava com o rosto coberto por argila, o cabelo preso com um
prendedor colorido e sem camiseta. Eu arqueei uma das sobrancelhas.

— Não se explique. Não quero saber — murmurei.

— Tô fazendo skincare com a Eve — esclareceu, dando um passo

para o lado para que eu entrasse em seu apartamento.

O cheiro aqui dentro estava bom. Parecia que Hunt estava assando

frango.
— Vai ficar por aqui? — perguntei, olhando ao redor, nenhum sinal

de sua noiva. Talvez estivesse no quarto.

— Sim, tava pensando em visitar minha família só que minhas mães

foram viajar. Quase fomos para casa do pai de Eve, mas ele também está

fora. E você?

— Vou só ver Jimmy e o pessoal.

— Ele parou de fazer tatuagem, né? Qualquer dia apareço lá.

— É, mas ele abre exceções.

— Maravilha. — Fez uma pausa. — Espera um segundo, vou buscar

o caderno.

Hunt tinha ficado com o caderno de criação de letras da banda, então

tive que vir e buscá-lo porque pretendia fazer alguns ajustes mais tarde.
Esperei até que ele voltasse, um momento depois. Ele perguntou se eu

queria ficar para almoçar, mas neguei, porque já tinha para onde ir.

Com o caderno sob o braço, fui embora, direto para o apartamento de

Jimmy.

As ruas estavam bastante movimentadas com o feriado. Peguei um


pequeno engarrafamento antes de chegar em seu prédio.

Assim que entrei em sua casa, murmurei um "Feliz Natal". 


Reed e Jenni estavam sentados na sala, no sofá, rindo enquanto

falavam sobre alguma coisa. Eu desabei na poltrona, em frente a eles. Eles

me encararam.

— Demorou — Jenni disse.

— Passei na casa de um amigo, estava um pouco de trânsito,

também.

— Qual amigo? O gigante ou o de cabeça raspada?

Eu achava engraçado quando Reed chamava Hunt de gigante, mas se

tinha alguém mais alto que ele, era Hunt. Reed tinha um e noventa. Hunt

devia ter um e noventa e três, por aí. Eu tinha um e oitenta e sete. Era alto,

mas, do mesmo jeito, eles me superavam.

— Hunt — falei. 

— Ele vai casar, né? — Jenni murmurou, meio decepcionada.

Ela tinha uma queda por Hunt, era mais uma paixão platônica. Jimmy
veio para sala, entregou uma garrafa de cerveja para mim e Jenni. Quando

chegou em Reed, o entregou uma lata de Coca-Cola, o que o fez resmungar.

Depois, voltou para cozinha para ver o ensopado que estava fazendo para

gente.

— É, vai casar. E desiste, porque é para valer. Ele faria tanta coisa

pela noiva dele que até me assusta.


Nós começamos a conversar sobre outras coisas. A maioria era

trivial. Na hora em que a comida estava pronta, Jimmy nos chamou para a

mesa e fez uma oração antes de começarmos a comer. Ele levava jeito para
cozinha, não foi nenhuma surpresa quando nós três repetimos.

O céu escureceu, Jenni foi embora. Reed ia passar a noite e eu decidi

ir para casa, porque já tinha dormido no apartamento de Jimmy por um

tempo.

Fazia tempo que eu não via Blakely. Me preparei para encontrá-la,

mas, assim que atravessei a porta, tudo estava escuro e silencioso.

Acendi a luz.

Uma corrente gélida atravessou a sala, me atingindo. Eu senti uma

sensação esquisita.

Sensação de que algo estava errado.

Talvez fosse algo da minha cabeça.

Fui até a cozinha, abrindo a geladeira. Não havia mais nada de

Blakely nas prateleiras. As embalagens com as etiquetas com seu nome

tinham sumido. 

Franzi o cenho, fechando a geladeira.

Fui para o banheiro, acendi a luz, meus olhos vasculharam sobre a

bancada instantaneamente. A escova de dente de Blakely tinha


desaparecido, assim como alguns outros de seus itens que ela deixava por

aí, como batom vermelho e o frasco de vidro do perfume feminino.

Enfim, abri a porta de seu quarto, porque sabia que não ia encontrá-

la.

A cama estava feita e as portas dos armários abertas, estava tudo


vazio.

Suas coisas tinham desaparecido, assim como ela.

Que ótimo. Ela finalmente tinha ido embora. Eu fui para a cozinha,

tirando uma garrafa de uísque de um dos armários superiores, enchendo um

copo com o líquido âmbar.

Eu devia comemorar, mas só havia a falsa sensação de vitória e meu

orgulho. Meus olhos foram atraídos para um papel sobre a bancada que eu

não tinha percebido. A letra que preenchia a folha era caprichada. Comecei

a ler, deixando o uísque de lado.

Não que você se importe, mas fui embora, consegui outro lugar para

ficar. Não vou mais trabalhar para Jimmy também, não se preocupe, você

nunca mais irá me ver, ou me encontrar outra vez, isso posso te garantir.

Você é a pessoa mais egoísta que já conheci. Estive disposta a deixar

o passado de lado. Acha que eu queria morar com você? Que estava

jogando? Eu não tive opção. Não tenho pais. Minha avó morreu. Tudo o
que tenho é a mim mesma, eu me mantive em pé até agora, por isso

trabalho o dobro. 

Morar aí era conveniente, já que o aluguel do meu apartamento

antigo aumentou tanto que não podia mais pagá-lo. Tive que sair de lá. Eu

não estive aí para irritá-lo, Ian. Foi sobrevivência. 

Se a vida fosse como eu quisesse, eu nunca teria te encontrado em

Boston. Nunca teria cruzado meu caminho com o seu, talvez até mesmo na

adolescência. Não sei em qual momento você passou a me desprezar, mas,

se foi pelo último verão na adolescência, você é um grande hipócrita.

Acha que não vi o momento em que você beijou aquela garota?

Mesmo naquela época, entendi que o problema com você não era não

conseguir enxergar o futuro e estar preso ao momento. O problema era que

você não queria ser de alguém, você não queria ser meu. Você podia ter

dito, ao invés de criar outros discursos convenientes e brincar com meus

sentimentos… Sempre me culpando por reagir às suas ações.

É por isso que eu te odeio, Ian.

Você alimentou falsas esperanças no passado.

Fez isso outra vez, agora. No presente.

Parabéns, você me atingiu.

Você ganhou.
— B.

Se eu tinha ganhado, por que é que eu me sentia tão derrotado, como

se tivessem enfiado uma flecha no meio do meu peito?

Peguei o número de Gina com Atticus. Liguei para ela, que atendeu
no segundo toque.

— Quem é? — perguntou, do outro lado da linha.

— Onde ela está?

Houve uma pausa.

— Ian?

— É. A Blakely tá aí?

— Por que quer saber? — Parecia desconfiada.

Comecei a me irritar.

— Vai responder a droga da pergunta ou não?

— Ela tá. Achei que estivesse feliz que ela finalmente foi embora.

— O endereço.

— O quê? Não vou passar o endereço. Ela não quer te ver, seu

babaca.

— Preciso falar com ela. Pela última vez. Não se preocupe, não
planejo enforcá-la — falei, com sarcasmo. — Mas o que tenho a dizer é
importante. Muito. 

Eu e Gina ficamos debatendo no telefone por vários minutos, até que

ela acabou se cansando e me enviando o endereço através de mensagem. Os


jornais estavam emitindo sinais de alerta de tempestade, mas eu não me

importei. Subi na minha moto e dirigi cuidadosamente até o lugar, porque


as ruas estavam começando a serem tomadas por uma geada.

Cerca de vinte minutos depois, quando cheguei, bastante neve caía do

céu e cobria as ruas. Eu estava tremendo de frio, tinha saído só com uma
camiseta de mangas longas. Devia ter pego um casaco.

Gina morava num prédio de um andar espremido entre outros prédios

de um andar. Comecei a bater na porta. 

Blakely desceu um momento depois, parecia furiosa. O rosto inteiro

estava vermelho. Ela estava usando um moletom gigante com estampa de


ursinho, o cabelo solto, emoldurando o rosto bonito. 

— O que você tá fazendo aqui? Se vai dizer que levei algo seu ou

algo do tipo, não peguei nada. Deixei as chaves que Atticus me deu
penduradas ao lado da porta, nos cabides.

— Eu não vim aqui porque minhas coisas desapareceram —

comecei, com calma. — Vim para levá-la de volta.

Blakely me encarou por alguns momentos.


Então começou a rir, como se eu tivesse acabado de contá-la a piada
mais engraçada que já tinha ouvido na vida.

— Por que está rindo? — questionei, franzindo o cenho.

— Porque você bateu a cabeça numa pedra se acha que vou voltar

com você. Para quê? Voltar a ser seu utensílio pessoal de tortura?

Eu travei as mandíbulas.

— Eu admito, é vazio sem você. Porra, como é vazio. Tá feliz agora?

Se não, eu danço pelado no meio dessa neve só para te convencer, mas, por
favor, volta. Volta para casa.

Blakely ficou em silêncio outra vez, percebendo que eu falava sério.

Muito sério.

Ela engoliu em seco.

— O que deu em você? — perguntou, num tom de voz baixo. — Por


que quer que eu volte? Só porque está se sentindo meio sozinho agora? 

— Você não percebe, sua burra estúpida? Não percebe porque não
quero que você vá para lugar nenhum?

Ela congelou em meus braços quando a abracei repentinamente,

segurando-a com força contra meu peito. Segurando como se nunca pudesse
deixá-la ir. E eu não podia.

Diante de seu silêncio, continuei:


— Eu te amo, inferno! Eu te amo desde o primeiro momento em que

pus meus olhos em você. Desde que você apareceu na minha frente quando
éramos crianças, com aquelas botas de plástico horrorosas, vomitando

cinquenta palavras por segundo.

Admitir aquilo em voz alta pareceu surpreender Blakely, porque ela

se afastou para me fitar.

— Ah, meu Deus. Por que parece que você está falando a verdade?

— Porque estou — falei. — Eu li a sua carta. Blakely, eu não beijei


ninguém naquela festa. Me pegaram desprevenido. Não sabia que você

tinha visto, se tivesse ficado, teria visto que eu me afastei. Eu queria me


declarar para você naquela festa… Queria falar sobre o nosso futuro.

— Nosso futuro? — ela repetiu as palavras, me olhando com aqueles


olhos verdes lindos.

— É. Eu queria um futuro com você. — Fiz uma pausa. — Quero —

me corrigi.

Dava para ver que ela estava na defensiva.

— E como eu posso confiar em você? Como posso saber que não é

uma das suas piadas?

Eu alimentei aquela desconfiança. Só me restava lidar com ela. E eu


lidaria, até que Blakely enfim se sentisse segura em relação aos meus
sentimentos.

— Diga o que tenho que fazer e eu faço. Qualquer coisa.

Ela arqueou uma das sobrancelhas, pareceu pensar.

— Vai fazer tudo que eu quiser por uma semana, ok?

— Tudo o que você quiser — concordei.

— Você tá congelando — ela murmurou, meio sorrindo, meio


preocupada.

Eu tinha me esquecido desse detalhe. Agora eu sentia o frio gelando

os meus ossos.

— Vem, vamos entrar. Espero que Gina e a colega de quarto dela não

se importem.

Eu também.
 

Assim que Ian e eu atravessamos a porta do apartamento que Gina


dividia com uma universitária chamada Haile, ela alternou o olhar entre

mim e ele, parecendo surpresa. Eu bati as pantufas que estava usando no


tapete antes de entrar, para me livrar de um pouco do gelo que havia

acumulado nelas.

— Por que é que tem um deus grego atrás de você? — Haile

questionou, sem parar de encarar Ian fixamente.

Ela mal havia falado comigo nos últimos dois dias, enquanto estive

aqui. Aquela foi a maior frase que ela disse para mim. Haile estava apoiada
contra a bancada da cozinha, com um pote de sorvete nas mãos. Qual é.

Quem tomava sorvete no inverno? 


Me virei para Ian.

— Diga a ela quem você é. Não, melhor, diga a ela a quem você
pertence — ordenei.

Estava na hora de testá-lo, para ver se realmente ia fazer tudo o que

eu queria.

— Eu pertenço a Blakely — ele murmurou, olhando seriamente para

Haile.

Uma satisfação se encheu em meu interior. Aquilo poderia ser muito

divertido, afinal. Haile foi para o próprio quarto. Gina apareceu na sala um
momento depois. Ela arqueou as sobrancelhas. Não parecia surpresa por ver

Ian ali.

— Parece que deu certo. 

Eu não tinha pensado até agora em como Ian havia me encontrado.

Gina só me disse que ele estava lá embaixo e que eu devia descer para

dispensá-lo antes que ele congelasse até a morte. Agora fazia sentido. Ele

devia ter dado um jeito de falar com minha amiga.

Semicerrei os olhos para ela.

— Foi você — disse, acusadoramente.

— Sim. — Deu de ombros, concordando. — Fui eu. Quem mais


seria?
A sua honestidade brutal me fez soltar uma risadinha. Eu não

conseguia ficar com raiva por conta disso. Levei Ian até o banheiro, fechei a

porta e liguei o secador. Comecei a secar seu cabelo silenciosamente,

porque havia muita neve derretida nele. Os fios estavam todos úmidos.

Quando terminei, estávamos perto. Tão perto que sentia sua

respiração batendo contra meu rosto. 

— Posso beijá-la? — perguntou, já roçando os lábios nos meus.

— Não.

— Por quê? 

— Porque não. Vai ter que esperar os sete dias acabarem para isso.

Dava para ver a reprovação no rosto dele, mas Ian ficou em silêncio,
pondo um pouco de distância entre nós. Senti falta do calor que seu corpo

emanava quase que imediatamente e quis puxá-lo para perto outra vez e

beijá-lo, infringindo minhas próprias regras. Mas eu não podia. Não dava. 

Eu queria que as coisas entre nós fossem feitas do jeito certo. Queria

conseguir acreditar realmente que ele me queria.

Com a tempestade de neve agravada, Ian e eu dormimos juntos na

sala, no sofá. Foi bem difícil porque o sofá não era tão espaçoso e Ian era

muito grande. As pernas dele ficaram para fora, foi engraçado. Nós
dormimos quase que fundidos um no outro. Meu rosto descansava contra

seu peitoral.

Pela manhã, voltei com Ian para o apartamento em sua moto.

Provavelmente pegaria minhas coisas com a Gina até o fim da próxima

semana. Não estava a fim de fazer outra mudança em um curto espaço de

tempo de três dias. Era cansativo.

— É Natal — Ian disse, depois que fechou a porta.

— E daí? — resmunguei, andando até as portas de vidro que davam


para a varanda, que estava quase inundada de neve. Olhei para a cidade de

cima. As ruas estavam todas congestionadas com gelo.

— Geralmente passo os Natais com o Jimmy — admitiu.

— Natal não é grande coisa para pessoas como eu, que não tem

família para comemorar.

Ian ficou em silêncio. Ele sumiu no corredor um momento depois.

Voltou com uma caixa nas mãos. A caixa estava toda empoeirada, era de
madeira, parecia ser bem antiga. Ele sentou no sofá. Sinalizou para que eu

me aproximasse.

— Essa caixa era da minha mãe — admitiu, num tom de voz baixo,

quase inexistente. — Tem coisas dela aqui dentro.


Sentando-me ao seu lado, o encarei com apreensão. Ian nunca tinha

me contado nada sobre a sua mãe, mesmo quando éramos adolescentes.

Senti meu coração bater mais forte quando vi o que estava em seu pulso

direito. Era a pulseira que minha avó tinha me dado. Era de prata, havia a

inicial do meu nome nela. Lembro-me que Ian tinha roubado de mim na

adolescência, não imaginei que tinha guardado-a consigo.

— Você ficou com ela — sussurrei, sentindo os olhos se enchendo

d'água.

— Claro. Era importante para você.

— Não vai me oferecer de volta?

— Não. Quero ficar com ela.

Ele abriu a caixa, tirou de lá dentro um colar fino e delicado, com

pingente de coração gravado com um "I" no centro. Era simples e lindo.

— Este era da minha mãe. Ela gostava de usar. Se quiser, pode ficar

com ele em troca de sua pulseira.

— Tem certeza? — Mordi o lábio inferior.

— Sim.

Concordei. Ian me ajudou a colocá-la. Fiquei passando os dedos pela

corrente, de alguma forma, era reconfortante. Eu sentia que devia proteger


aquele colar com minha vida. Era da mãe de Ian, devia ser importante para

eles dois.

— Minha mãe — Ian disse, após vasculhar na caixa e achar uma

fotografia.

A mãe de Ian era simplesmente deslumbrante. Tinha cabelos loiros,

pele pálida e olhos azuis gelo. Ela tinha uma beleza fria. Na foto, dava um

sorriso polido, usava um vestido longo e cor-de-rosa. 

— Ela era muito bonita — falei, impressionada, ainda observando a

fotografia.

Ela e Ian tinham os mesmos olhos, narizes e bocas. A única diferença

era o tom de cabelo.

— Era — Ian concordou. 

Depois, me entregou uma foto em que eles dois estavam juntos. Ian

ainda era um bebê em seu colo e estava distraído, com um chocalho nas
mãos. Um sorriso enorme tomava conta dos lábios da mãe de Ian enquanto

ela pressionava o rosto contra o dele. 

— Ela te amava muito. Dá para ver.

— É verdade. 

Ian estava lacônico, não que normalmente ele costumasse falar

bastante, mas dava para ver a atmosfera de melancolia que estava tomando
conta dele. Ele começou a guardar as coisas novamente. Se levantou com a

caixa em mãos e foi levá-la de volta para seu quarto.

— Quer assistir alguma coisa? — perguntei, quando ele voltou para a

sala.

Ian assentiu, sentando-se ao meu lado. Ele parecia pensativo,

disperso.

Subi em cima dele repentinamente, sentando-me em seu colo. Ian me

olhou com atenção. Havia um quê de dúvida em seu olhar.

— Não que eu esteja reclamando, mas o que você tá fazendo?

— Nada, só quero que veja a cicatrização do piercing…

Comecei a tirar meu suéter. Depois, deslizei as alças do sutiã pelos


ombros. Ian observava meus movimentos com atenção, como se não

pudesse perder nenhum deles. Quando meus seios estavam livres, ele fixou
o olhar no piercing. Senti sua ereção.

— Está cicatrizando bem, não acha?

— É, eu acho. Muito bem — ele concordou, sem desviar o olhar.

Ian começou a tocar meus seios, com calma. Suas palmas não os

cobriam por completo. Seus olhos escureceram.

— Você é perfeita, Blakely.


— Você nunca me chamou só de Blake — eu disse, me dando conta
daquilo.

— Gosto do seu nome inteiro, de como ele soa. Mas posso chamá-la
assim, se quiser.

— Tenta.

— Blake — Ian disse, fazendo com que alguns arrepios se

espalhassem por meu tronco.

Estava prestes a beijar Ian quando meu celular começou a vibrar no

bolso traseiro. Eu atendi quando li o nome de Elle no visor. Apoiei o


aparelho contra a orelha.

— Feliz Natal! — minha irmã me saudou.

— Feliz Natal, Elle — falei, sorrindo um pouco, mesmo que ela não

pudesse me ver. — Como está?

— Bem. Queria saber se você tá afim de vir jantar aqui mais tarde.
Papai disse que estava tudo bem convidá-la.

Quase perguntei sobre sua mãe, mas me contive. Já estava óbvio o


que ela achava sobre mim e minha presença. Ian colocou um de meus

mamilos na boca. Girou a língua sobre o piercing. Eu entreabri os lábios


num gemido mudo e olhei para ele com os olhos meio arregalados.
Enfiei a mão livre nos seus cabelos para afastá-lo, mas acabei o
puxando mais para perto.

— Blake, tá ouvindo? — Elle questionou, fazendo-me voltar a

prestar atenção.

Ian me encarava com um brilho lúdico no olhar.

Ele sugou com mais força.

— Jantar? Hum, claro. Por que não? — balbuciei, sem pensar, focada

apenas no prazer que estava sentindo.

— Ótimo! Te vejo mais tarde.

Elle desligou. Ian tirou meu mamilo da boca, num estalo molhado.
Eu repassei a ligação com Elle na mente e gemi quando percebi o que tinha

feito.

— Que foi? — Ian perguntou, tirando um pouco de cabelo que tinha

caído sobre minha visão com a ponta dos dedos.

— Vou ter que ir num jantar na casa do meu pai, por minha irmã.
Não gosto de vê-lo. Nem ele, nem a esposa. A mulher me odeia. — Fiz uma
pausa. — Você vai comigo? Na verdade, você não tem escolha, lembra?

— Eu iria de qualquer forma. — Ian deu de ombros. — E eles não

podem ser tão ruins. Você só deve estar exagerando.

Eu ri ironicamente.
— É. Você vai descobrir.
 

— É, você não estava exagerando — Ian murmurou perto do meu


rosto, só para que eu o ouvisse.

Nós tínhamos acabado de chegar na casa de meu pai. Elle tinha nos
recebido alegremente na porta, surpresa ao ver Ian comigo. Não expliquei

nada para ela, porque nem eu sabia o que estava acontecendo entre a gente

ainda.  Depois disso, Hanna apareceu, com seu sorriso falso, mas não foi

capaz de disfarçar o olhar de desprezo que lançou para mim e Ian.

Eu quis rir, mas não de felicidade.

A sala de jantar estava parcialmente cheia, o que me deu vontade de

pegar a mão de Ian e sair correndo em direção à porta, arrastando-o comigo


para longe de todos aqueles rostos esnobes que compunham a família de

Hanna. 

Todos eles pareciam ter os mesmos rostos. As mulheres eram loiras e

elegantes. Os homens eram loiros também. Haviam dois deles. Os dois

vestiam ternos. Pelo amor de Deus, era só Natal, por que tanta formalidade?

Acho que Ian e eu éramos os únicos que não nos encaixávamos naquele

cenário, com nossas calças jeans.

— Feliz Natal — eu disse, num muxoxo, tentando sorrir enquanto

tomava um assento.

Devia ter comprado um presente para Elle, mas não pensei que a

veria hoje.

Ian ocupou uma cadeira ao meu lado. Sua expressão era séria, ele não

parecia intimidado com nenhum dos olhares que recebia. Suas tatuagens ali

o tornavam uma espécie de atração de um show bizarro. Pelo menos para

aquele tipo de gente. Estava estampado em seus rostos o que eles pensavam

da tinta preta que cobria toda sua pele à mostra.

— Que bom que veio, Blakely — John disse. Parecia honesto, pelo

menos. Mas não importava muito.

Eu dei outro de meus sorrisos forçados.


Um momento depois, o jantar iniciou. Ian e eu comemos

silenciosamente, ouvindo enquanto alguma conversa superficial se

desenrolava ao nosso redor. 

Hanna olhava para Ian ocasionalmente. Não era nenhum olhar

hospitaleiro, muito pelo contrário. Comecei a suar, porque sabia o que ela

estava prestes a fazer.

Ela iria sondá-lo na frente de todos.

Era aquilo que ela fazia, deixava as pessoas desconfortáveis. Fiz uma

oração silenciosa para que ela ficasse quieta e que não passasse de um

pressentimento idiota meu, mas teve um momento em que todos estavam

conversando, então ela limpou a garganta, atraindo olhares para si, com as

íris fixas em mim e Ian.

O cômodo ficou em silêncio.

— Ian, não é? — Hanna começou, quase me fazendo engasgar com

meu próprio ar.

Ele se limitou a um manear de cabeça, assentindo.

— Como você e a Blakely se conheceram? De fato, formam um belo

casal. — A ironia em seu tom de voz me fez sentir raiva.

— Férias de verão. 

A resposta evasiva de Ian não pareceu satisfazê-la.


Felizmente, antes que ela pudesse continuar com suas perguntas

torturantes, Elle começou a falar sobre como a quimioterapia estava indo

bem, voltando todo o foco para si. Eu quase suspirei de alívio. Assim que
terminamos de comer, eu me levantei, inventando desculpas e me

despedindo de todo mundo. 

Quando Ian e eu estávamos prestes a cruzar a porta, no entanto, Elle

nos alcançou.

— Já vão? — ela perguntou, parecendo decepcionada.

— É, tá ficando tarde Elle, e daqui a pouco deve começar a nevar

outra vez. É melhor irmos agora.

Elle murchou.

— Que pena. Mas entendo. — Fez uma pausa. — Sinto muito por

minha mãe. Ela não é assim.

Era triste que Elle se sentisse na necessidade de se desculpar por sua

mãe, uma mulher adulta.

A abracei, antes de eu e Ian partirmos. 

Quando chegamos no apartamento, Ian começou a olhar para o

celular com o cenho franzido. Soltando um suspiro, ele começou a digitar

algo, depois jogou o aparelho no sofá. Fiquei o observando da cozinha,

enquanto preparava chá.


Ele olhou para mim. Não pareceu surpreso ao ver que eu já o

encarava.

— Hunt e a namorada vão vir para cá. A luz do prédio acabou e o

aquecedor parou. Tudo bem para você?

— Claro. — Dei de ombros. — Sem problemas. Acha que eles vão


querer chá?

— Não sei.

— Vou fazer o dobro.

Acrescentei mais água na chaleira, observando enquanto ela fervia.

Não demorou muito para que eles chegassem. Cerca de trinta minutos

depois, estavam na sala, Ian os recebendo. Aproveitei para colocar alguns

biscoitos no forno.

— Oi! — falei para Eve, esperando que ela pudesse ler meus lábios.

Ela fez um movimento com a mão ao mesmo tempo em que disse:

— Tudo bem?

— Sim, vem cá na cozinha. Fiz chá.

— Chá? — ela repetiu, parecendo precisar de uma confirmação.

Eu assenti.

Acenei para Hunt sobre o ombro enquanto eu e Eve deixávamos ele e

Ian para trás. Eu comecei a pôr o chá em duas canecas. Entreguei uma delas
para Evelyn. Ela agradeceu, começando a bebericá-lo.

Evelyn parecia uma boneca de porcelana. Ela tinha uma pele

impecável e muito branca, cabelo preto e liso, franja e era delicada. Seus

olhos tinham uma dobra epicântica. Se não era leste-asiática, devia ter

descendência.

— Está ótimo — ela disse, depois de beber um gole. A voz dela era

doce e suave, parecia bastante tímida.

— Que bom que gostou — falei com calma, para que ela conseguisse

fazer a leitura labial. — Sinto falta do clube de leitura — admiti.

Ela riu, o rosto corando um pouco.

— O Hunt é meio obcecado de amor por mim, ele disse que nós
devíamos ter mais tempo a sós. Por isso o clube se restringiu a nós dois.

Mas eu gostava do jeito que era.

Eu ri também.

— Achei que vocês morassem juntos.

— A gente mora.

Minha risada aumentou. Eve me acompanhou.

Hunt surgiu por trás de Evelyn, abraçando-a e apoiando o queixo no

topo de sua cabeça. Eles dois eram muito bonitos, formavam um casal que

chamava atenção. Os olhos de Hunt estavam fixos em mim e me senti meio


intimidada porque, depois de Ian, ele era o cara mais bonito que eu já tinha

visto. 

— Sobre o que você tá falando com minha noiva?

— Sua obsessão por ela.

Evelyn estava alheia ao que Hunt falava. 

— Tá, mas você já deu uma olhada nela? É impossível não ficar

obcecado.

— A gente já entendeu, Hunt — Ian disse, entrando na cozinha. —


Irei pegá-la emprestada. — Ele tirou a caneca de minhas mãos, então me

arrastou para o corredor, em direção ao seu quarto.

Antes que eu pudesse começar a questioná-lo sobre o que estava


fazendo, Ian me prensou contra a porta ao fechá-la, fazendo-me sentir sua

ereção.

— O que está fazendo? — perguntei, ofegando.

— Deu vontade de te chupar. Lembrei da cara que você faz quando

goza — ele disse, como se estivesse anunciando a previsão do tempo.

Senti o calor crescer em meu interior. Minhas calças foram parar no

chão, assim como minha calcinha. Ele começou me lamber ali mesmo,
contra a porta, uma de minhas pernas jogadas sobre seu ombro. Eu abafava

os gemidos com minha mão, enquanto enterrava a outra em seus cabelos.


Quando sua boca quente e úmida tocou meu clitóris, meus olhos
quase deram uma volta por meu crânio.

Não demorou muito para que eu tremesse, mordendo os lábios com


força para evitar fazer barulho. O orgasmo tinha sido avassalador.

— Linda, linda, linda — Ian resmungou, quando tinha levantado,

passando o polegar contra minha boca, fazendo com que arrepios


descessem por meu tronco.

Ele começou a desabotoar a calça. Puxou o pau para fora da cueca,

roçando a glande na minha abertura. Comecei a ansiar por ele outra vez.

Enlaçando as pernas ao redor de sua cintura, Ian me ergueu o

suficiente para que me penetrasse, minhas costas apoiadas contra a porta.


Ele começou a se impulsionar dentro de mim, segurando no posterior de

minhas coxas. 

A porta começou a estremecer, fazendo barulho.

— Ah, meu Deus — eu resmunguei, quando ele aumentou a


intensidade, me penetrando com mais força.

Ian engoliu meus gemidos quando gozei pela segunda vez. Ele deu
mais algumas estocadas antes de tremer, soltando um suspiro brusco contra

meu pescoço. Ian enterrou o pescoço ali, permanecendo dentro de mim por
alguns momentos.
— Gozei em você — ele disse, erguendo o rosto para me encarar. —
Vou comprar uma pílula.

— Não precisa, tomo anticoncepcional.

— Por que não disse antes?

— Não tínhamos conversado sobre isso. — Dei de ombros. —


Camisinha sempre é bom.

— Eu tô limpo. Não faria nada do tipo sem avisá-la.

— Eu também. E confio em você.

Ian finalmente me soltou. Meu rosto começou a arder por todo

barulho que nós tínhamos feito aqui. Provavelmente Hunt tinha escutado
tudo. Depois que me limpei no banheiro, fui para a sala. Hunt me lançou

um olhar engraçado.

— Cadê o Ian?

— Está no banheiro.

Olhei para Eve, encaixada sob o braço de Hunt. Ela estava


cochilando. Ele voltou o olhar para a tevê, um programa de culinária estava

passando.

— Entendo.

Eu bufei, me jogando na poltrona.


Não demorou muito para que Ian se juntasse a nós. O cabelo dele

estava todo bagunçado. A imagem dele era de "acabei de ter um orgasmo".


Me perguntei se eu também estava me parecendo com algo do tipo.

— Podem ir para o quarto, se quiserem — Ian disse para Hunt. —


Fica no fim do corredor. Última porta.

Hunt carregou Eve em seus braços, murmurando um "boa noite" e

sumindo no corredor. Agora, éramos só Ian e eu na sala.

— Vem, você vai ficar no meu quarto. Comigo — ele disse, um olhar
presunçoso no rosto.

Um olhar que dizia que seria uma noite longa.

 
 

— Não digam nada — resmunguei, assim que cheguei no ensaio da


banda.

Hunt e Atticus olharam para mim, tentando conter as risadas. Acabou


que eles não conseguiram. Eu sentei no sofá, começando a afinar meu

baixo. Eu estava usando uma camiseta que Blakely tinha feito para mim. É
claro que continha uma foto dela dentro de um coração imenso.

Eu faria qualquer coisa para que ela acreditasse em mim quando eu


dizia que a amava. Essa era uma de suas provas.

— E vocês me julgavam por ser obcecado pela Eve — Hunt


murmurou, após parar de rir.
— Espero nunca me apaixonar, se isso significa me tornar patético

que nem vocês dois — Atticus disse, parecendo preocupado.

Nós começamos a ensaiar. Amanhã faríamos o último show do ano,

também seria o último show antes que lançássemos o próximo álbum com a

gravadora. Quando terminamos, ao invés de ir para casa, fui ao estúdio do

Jimmy, porque Blakely estava trabalhando lá e queria vê-la.

Era estranho como agora eu sentia necessidade de que ela estivesse

sempre por perto.

Jenni não estava na recepção, então passei direto, indo em direção ao

escritório. Para minha sorte, Blakely estava sozinha lá dentro, o que foi

perfeito para que eu a puxasse para perto e a desse um beijo desesperado,

cheio de mãos e língua. Quando minha mão tocou seu peito sob a blusa,

Blakely me afastou, ofegante e com os lábios inchados.

— Não pode fazer isso aqui. Tô trabalhando, se não percebeu.

— É, não percebi, você tá muito gostosa. Isso foi tudo que pude

reparar.

Ela soltou um risinho.

— Meu cabelo tá todo bagunçado, essa calça jeans deve ter um ano e

tô usando um suéter. — Blakely arqueou uma sobrancelha, voltando a fazer

o que estava fazendo antes de eu chegar.


— E daí?

— E daí que isso não é sexy.

— É muito sexy para mim — falei, sério.

— Você deve estar muito apaixonado — ela retrucou.

— Isso também — concordei, tirando minha jaqueta de couro e

deixando-a pendurada no encosto da poltrona.

Blakely começou a rir.

— Você ainda está vestindo essa camiseta?

— Sim — respondi, indiferente. — Não deveria?

— Na verdade, você está certo. Deveria fazer tudo que eu peço.

— Estou ao seu dispor.

— Quem sabe uma tatuagem? — ela desdenhou.

No próximo segundo, a porta foi aberta. Jimmy entrou, com sacos


pardos. O cheiro que vinha deles era bom.

— Trouxe o jantar — disse, alternando o olhar entre mim e Blakely,

parecendo surpreso ao ver a camiseta que eu estava usando. — O que eu


perdi?

— Ian se declarou, finalmente — Blakely disse, parecendo muito


contente.
Minha missão era aquela. Que ela ficasse muito feliz. Vê-la daquela

forma me dava uma sensação de dever cumprido.

Jimmy riu.

— Ótimo. Sabia que ia acontecer uma hora ou outra. Querem um

sanduíche?

Neguei. Blakely aceitou. Disse para Blakely que esperaria que ela

terminasse na recepção, porque não queria distraí-la. Jimmy foi comigo.

Jenni estava lá quando chegamos. Após comentários engraçadinhos sobre


minha camiseta, perguntei para Jimmy se ele podia me tatuar.

Ele pareceu surpreso.

— Espero que não seja nada complexo.

— Não é — concordei. — É simples, na verdade.

Jimmy acabou cedendo. Nós fomos até uma sala de tatuagem livre e

ele começou a preparar as coisas. Disse para ele minha ideia e ele pareceu

ficar bem perplexo, mas não me contrariou. Trinta minutos depois, com

uma arte nova no corpo e uma parte do abdômen dolorida, nós terminamos.

Demorou uma hora para que Blakely acabasse o que estava fazendo.

Nós fomos para casa e fiquei ansioso para mostrá-la minha nova

tatuagem.
Na sala, nós começamos a nos beijar. No sofá, Blakely tirou minha

camiseta, aí ela congelou, observando minha pele sensível e vermelha,

recém tatuada.

— Não acredito que você fez mesmo isso. Eu estava brincando!

— O que achou?

— Loucura — ela resmungou, sem desviar o olhar de lá.

— E o que mais?

— Fofo. Eu amei.

O que eu havia tatuado em mim era uma árvore, a árvore que

representava a figueira de Oak Springs. E, no centro de seu tronco, havia

um coração. Dentro do coração, nossas iniciais. Era uma memória do que

tínhamos feito lá. Achei que ela gostaria.

Blakely ainda parecia muito descrente.

— Por que fez isso?

— Porque eu te amo, já disse. Eu quero que você acredite nisso

quando eu digo, Blakely. E se eu tiver que usar uma camiseta por dia com

fotos diferentes suas estampadas nelas, eu vou fazer isso. Ou se o que te

convencer forem tatuagens, ótimo. Eu vou fazer as malditas tatuagens. Só

não quero que você tenha dúvidas quanto ao que eu sinto por você. Isso é

algo que não pode acontecer. É a última coisa que eu desejaria.


Os olhos de Blakely começaram a se encher de lágrimas.

Aquela garota era meu escudo, minha armadura. Eu só conseguia me

sentir forte outra vez ao lado dela. 

Ela afastava a escuridão.

Ela me dava esperanças.

Ela podia me dar um futuro.

— Eu também te amo, Ian. 

— Obrigado por me encontrar naquele píer, anjo — murmurei,

tirando uma mecha de cabelo de seu rosto. 

Eu não sabia na época, mas ela estava me salvando.

Blakely me abraçou e eu continuei agradecendo a ela por ser quem

era. Por tudo.

 
 

— Não levanta. Fica aqui — Blakely pediu, tentando me puxar de


volta para o colchão, suas mãos se arrastando por meu peitoral nu.

— Eu preciso me encontrar com o Reed, anjo — resmunguei, quase


cedendo aos seus encantos.

Blakely não me soltou, começou a beijar o meu pescoço, descendo e

descendo, até que meu pau estivesse em sua boca, minha mão enterrada em

seus cabelos e meu coração disparado. Quando terminei, tremi, contendo


palavrões no fundo da minha garganta.

Blakely tentou subir em cima de mim mas eu me desvencilhei com


agilidade, ouvindo seu risinho atrás de mim enquanto ia até o banheiro.
Faltavam apenas dois dias para o ano novo. Minha mente praticamente

girou quando pensei nisso. 

Saindo do chuveiro enrolado apenas numa toalha, eu adentrei no

quarto. Blakely estava nua em minha cama, deitada de bruços. A visão

deixou meu pau animado, mas foquei na tarefa de me vestir. Ela ficou lá,

me olhando, a cabeça apoiada na mão.

— Onde é que você vai mesmo?

— Vou ver o Reed. Ele está no hospital.

— Por quê? Aconteceu alguma coisa com ele? 

— Não, parece que foi visitar a mãe.

— Ela está doente?

— Pelo visto, sim.

— Que droga. Espero que ela fique bem. — Blakely bocejou um

pouco. — Vou dormir, já que você não me deixou fazer isso ontem à noite.

Eu ri baixo.

— Você gostou.

— Você tem um ponto — concordou.

Eu me despedi dela de longe, porque não arriscaria me aproximar

com ela nua sobre minha cama, era mais tentação do que eu poderia resistir.

Eu não era forte o suficiente. Acenando para Blakely com a mão, ela
começou a rir, provavelmente percebendo o que eu estava fazendo, mas não

disse nada.

Quando cheguei no hospital que Reed tinha me passado o endereço,

o encontrei imediatamente na recepção, porque não se via todo dia por aí

um garoto de dezessete anos com uma tatuagem de dragão no pescoço.

— E aí — Reed me cumprimentou. — Sabe que não precisa fazer

isso, né? — murmurou, parecendo meio emburrado.

Havia olheiras sob seus olhos, parecia bem cansado. 

Eu o ignorei.

— Não dormiu hoje?

— Não. Fiquei aqui. A minha mãe teve uma noite ruim… Ela foi
para a ala emergencial.

Reed tentava parecer descolado e durão para todo mundo, mas neste

momento, dava para ver o quanto estava sofrendo. Sua mãe estava doente,
era por isso que ele tinha entrado na gangue, para conseguir mantê-la num

hospital bom o suficiente para seu tratamento. Só que ele não devia carregar

um fardo desses aos dezessete anos, era por isso que eu assumiria sua

dívida.

Reed podia simplesmente ter pedido para Jimmy, ele não hesitaria

antes de arcar com todas as despesas. Mas Jimmy já tinha feito muito, então
o entendia por não ter contado.

— É caro — Reed alertou, enquanto nos dirigíamos para o balcão na

recepção.

— Não tem problema.

— Tem certeza?

— Sim. Mês que vem, tudo o que você vai ouvir falar vai ser sobre

minha banda. Espere.

— Ah, é. Você assinou com aquela gravadora super famosa, né?

Tinha esquecido.

— Sim. A gente lança o álbum novo mês que vem.

— Legal.

Eu assinei alguns papéis, passei meu cartão de crédito e pronto, Reed

não tinha mais que lidar com as contas do hospital de sua mãe, nem

continuar em uma gangue. 

— Tem um dólar? — Reed perguntou, apontando para a máquina de

refrigerante.

Tirei a nota do bolso, entregando-o.

Reed se afastou no mesmo momento em que avistei a irmã de

Blakely, Elle, e o pai delas vindo do corredor oposto. Ele apertava o ombro
dela de maneira confortante, então foi em direção ao balcão da recepção,

não me notando.

Elle permaneceu no começo do corredor. Seu olhar se direcionou

para Reed. Ela pareceu ficar nervosa. Seus olhos se arregalaram um pouco e

ela hesitou em avançar e ser vista.

Andei até ela.

— Oi, Elle, tá tudo bem?

Ela se assustou, dando um pequeno sobressalto, mas depois sorriu.

— Oi! O que você tá fazendo aqui?

— Vim acompanhar um amigo. Você faz seu tratamento aqui?

— Sim. A Blake veio? — Ela vasculhou os olhos ao redor, parecendo

ficar meio decepcionada quando não a encontrou.

— Não.

— Que pena.

No próximo segundo, John se juntou a nós, parecendo surpreso em

me ver. Nós só havíamos nos encontrado no jantar de Natal e Blakely nem

tinha me apresentado oficialmente, até porque nosso relacionamento estava

meio que sem rótulos, algo que eu pretendia mudar em breve.

Estendi a mão em sua direção, ele a apertou.


— Querida, espere no carro, já vou. — John entregou as chaves para

Elle, que se despediu e se distanciou.

Eu esperei.

— Você é namorado da Blakely? — ele questionou, após limpar a

garganta, parecia meio desconfortável.

— Sim.

— Eu e ela não temos uma relação muito boa… Errei bastante no

passado com ela. Ela não me quer por perto e sei que é culpa minha, mas…

— Ele suspirou, os ombros caindo um pouco. Parecia um homem abatido.

— Apenas cuide bem dela, ok? Me prometa. Ela não tem ninguém.

— Eu prometo. Eu amo a sua filha com todo meu coração, ela é uma
mulher incrível.

Ele sorriu um pouco.

— Imagino que sim. Bom, até mais. Pelo visto, Blakely está em boas

mãos. Isso me conforta.

No caminho de volta para casa, deixei Reed no estúdio e passei numa

lanchonete depois de receber mensagem de Blakely dizendo que estava

faminta.

Quando cheguei em casa com as sacolas na mão, ela surgiu no

corredor, atravessando a sala em minha direção, como se estivesse


farejando o ar.

Ela pegou o almoço de minha mão enquanto eu a devorava com os

olhos. Blakely estava vestindo só calcinha e uma das minhas camisetas

amarrada, de forma que dava para ver um pedaço da sua barriga.

— Você podia colocar uma roupa, o que acha? — perguntei,

começando a ficar excitado.

— Não dá. Eu me sinto livre assim.

— A Elle estava lá no hospital — murmurei, tentando me concentrar

em outra coisa.

Blakely começou a comer um dos sanduíches, me olhando.

— Sério? Devia ter ido.

— Sério. — Deixei de fora a parte em que seu pai me encurralou.

Blakely terminou o sanduíche, virando-se para lavar as mãos. Eu me

aproximei por trás, enfiando minhas mãos sob a camiseta e apalpando seus
seios. Eles não cabiam na palma da minha mão, isso me enlouquecia.

Comecei a massageá-los.

Blakely soltou algo parecido com um ronronado, deixando a cabeça

cair para trás.

— Isso tá muito bom — ela murmurou. 


Dei um beijo em sua nuca, satisfeito com os arrepios que se
espalharam naquela região. Me afastei, ignorando seu protesto.

— Por que tá se afastando? — perguntou, quando me sentei no sofá e


comecei a ligar a tevê, deixando-a para trás.

Ouvi seus passos. Blakely parou entre mim e a tevê, bloqueando

minha visão.

Ela colocou as mãos na cintura, me olhando com um olhar confuso.

— Que foi? Virou celibatário?

— Sim.

Me concentrei num ponto sobre seu ombro para não ter que olhar

para seu corpo.

Blakely começou a tirar a camiseta. Agora, estava apenas de


calcinha.

Continuei a ignorando de propósito, só para ver até que ponto ela ia


para ter o que queria. Blakely soltou um murmúrio indignado, então ela

subiu em mim, praticamente esfregando os peitos no meu rosto.

Não me contendo, eu abocanhei seu mamilo, sugando o piercing com


força dentro da minha boca, mordendo seu seio em seguida.

Blakely gemeu, algo parecido com dor.

— Desgraçado — ela resmungou, começando a se mexer sobre mim.


Minha ereção estava quase explodindo para fora das minhas calças.

Blakely desabotoou minha jeans, então me montou até a base,


mantendo as mãos para trás, apoiadas em meu joelho.

Mantive minhas mãos longe em sua cintura, observando-a me

cavalgar. Os olhos verdes estavam cintilando, os lábios de um rosa pálido


estavam entreabertos e o rosto levemente corado.

Porra, aquilo era o paraíso.

Eu gozei muito rápido, primeiro que ela. Um momento depois,


Blakely também se desfez sobre mim.

— Te amo, anjo — resmunguei, dando um beijo casto em seus


lábios.

Blakely pareceu derreter sobre mim. Ela sorriu, depois apoiou a


cabeça no meu ombro.

— Te amo, Ian — falou, por fim, com a voz abafada.


 

— Oi, Blake! — Elle me abraçou, e eu retribuí o gesto.

Ela tinha vindo até a cafeteria para me ver. Aquele era o último dia

de trabalho antes do recesso do ano novo. 

— A gente tava passando aqui perto e perguntei se podia dar um oi

— Elle olhou para trás, através das janelas, para o carro de luxo que a
esperava estacionado no meio-fio.

— Fico feliz que tenha aparecido — falei, honesta. — Você vai


passar o ano novo por aqui?

— Por causa do tratamento, sim — murmurou, parecendo meio


decepcionada. Elle pensou por alguns momentos. — Ele estava lá ontem.

No hospital.
— Ele quem?

— O garoto que eu… Você sabe. — Suas bochechas começaram a


ficar coradas.

— Você falou com ele?

Elle rolou os olhos, como se a ideia fosse absurda.

— Claro que não!

— Você é boba.

Ela me ignorou. O carro lá fora buzinou, indicando que nosso tempo

tinha acabado. Mas minha pausa na cafeteria também tinha chegado ao fim.

— Preciso ir. Até mais, Blake. 

— Até. Te amo.

Observei-a se afastar e entrar no carro. Gina parecia meio para baixo

hoje, mas não queria me dizer o que estava acontecendo. Era difícil ajudá-la

desta maneira. Esperei até o horário do almoço. Ela estava comendo um

sanduíche na cozinha quando eu a encurralei.

— Já chega. Vai me contar o que tá acontecendo agora. E nem tenta

fugir — falei, determinada.

Ela bufou.

— Agora não. Tô comendo.


Eu semicerrei os olhos, esperando. Ela suspirou, largando o

sanduíche na bancada e jogando as mãos para cima, como se desistisse.

— Tá legal. Acontece que foi um fracasso, Blake. Tudo foi um

fracasso — murmurou, parecendo triste.

— Do que tá falando?

— Da publicação do meu livro.

Ah, era isso. Gina comentou algumas vezes que tinha fechado

contrato com uma editora pequena. Ela estava feliz. Até porque seu sonho

era ser uma grande escritora, um dia.

— Ninguém comprou meus exemplares. — Fez uma careta. —

Exceto pela minha mãe. E outros três desconhecidos.

— Você nem me disse nada sobre as vendas — resmunguei,

chateada. — Eu quero um.

— É claro que eu não disse. Não queria te decepcionar também com


meu fracasso.

— Para com isso. Você vai conseguir mais compradores.

— Sobraram cerca de quinhentos exemplares! Essa era a meta da

editora para a estréia. — Ela riu amargamente. — Acho que eles esperaram
muito de mim. Por um momento eu acreditei também, mas deixa para lá. É

besteira. Com o tempo, quem sabe?


Eu suspirei, não sabendo o que dizer exatamente para confortá-la,

então só apertei um de seus ombros.

Nós nos dispersamos quando o horário do almoço acabou. Em algum

momento do dia, Gina precisou atender uma ligação. Quando ela voltou,

estava toda saltitante. Fui até ela, perguntando o que tinha acontecido.

— Eu vendi! Todos os exemplares!

— Sério? Que incrível!

— A editora acabou de me ligar e dizer que alguém comprou todos

eles no site. — Franziu o cenho. — Estranho, né? Mas não importa. 

— Fico feliz, você merece — falei, com honestidade.

No fim do expediente, Gina foi embora, toda alegre e satisfeita. Eu

comecei a organizar as cadeiras e preparar o estabelecimento para fechá-lo,

confusa por não ver Diamond. Ele devia estar me ajudando. Esgueirando-

me até os fundos da cafeteria, o encontrei apoiado contra a fachada gasta de

tijolos, bebendo algo que eu presumia ser álcool em um cantil de metal.

— Oi, gata borralheira — murmurou, os cabelos loiros caindo de um

jeito desgrenhado sobre os olhos muito azuis.

Arqueei as sobrancelhas.

— Você tem que me ajudar a fechar hoje, esqueceu?

— Não esqueci. Só não tô a fim.


Eu ri. Pelo menos ele era honesto.

— Sério, D. Me ajuda.

— Já vou.

Eu comecei a entrar na cafeteria, mas parei quando algo estalou em

minha mente. Lembrei-me de que ele estava na cozinha quando Gina

desabafou, meio imperceptível, lavando pratos lá nos fundos. Dei meia-

volta, encarando Diamond outra vez.

— Foi você, não foi?

— O quê? — murmurou, parecendo confuso.

— Você comprou os livros da Gina — falei, acusadoramente.

Diamond respirou fundo. Então, ele riu. Mas não era nenhum tipo de

risada alegre. Era triste.

Naquele momento, ele parecia um anjo caído.

— É, fui eu. Pronto. Você descobriu o meu segundo maior segredo

sujo. — Um sorriso torto começou a delinear seus lábios.

— E qual é o primeiro? — perguntei, desconfiada.

— Estar apaixonado por alguém de classe baixa.

Eu ri, mas não estava nem um pouco surpresa. Eu já suspeitava que

Diamond pudesse estar cultivando sentimentos por Gina, mas sabia que ela

preferia beijar um cacto a ele.


— Como se isso importasse — falei.

— É, não importa. Mas, qual é, ela nem liga para mim.

— Isso atinge seu ego de garoto rico?

— Muito — respondeu, sério. — Se não meu dinheiro, a aparência

sempre conquistou todas as mulheres que eu queria. Já a Gina… Ela não

liga para nada disso. 

— E isso não é algo bom? Isso mostra que ela não liga para o

superficial. Que ela gosta das pessoas por quem são, não pelo o que

possuem.

Ele fez careta.

— Então quer dizer que eu sou uma pessoa horrível?

— Mais ou menos.

Diamond suspirou.

— Que confortante. Obrigado, Blakely. Você é uma grande amiga.

— De nada e sempre que precisar. — Eu ri, tirando o cabelo do rosto.

— Mas, falando sério, isso que você fez foi incrível. Talvez se você

contasse para ela…

— Não — ele me interrompeu. — E você também não vai dizer

nada.

Eu ergui as mãos em rendição.


— Tudo bem. 

Nós não dissemos mais nada, só entramos na cafeteria. Diamond e eu

terminamos de colocar as coisas em ordem, então fomos embora. Hoje, ele

estava de carro, então me deixou em meu prédio. Jimmy não precisava que

eu fosse para o estúdio até que o ano novo passasse. Assim que atravessei a

porta do apartamento, Ian me puxou para perto, parecia que estava

esperando ao lado da porta.

— De quem era aquele carro? — perguntou, sério.

— Está com ciúmes? — Eu ri, apoiando as mãos em seus braços.

— Responda.

— Era do meu amigo, aquele que veio aqui outro dia.

— O que parece o Ken?

— Sim. Mas não precisa ter ciúmes, ele tá apaixonado por outra
pessoa.

— Não tô com ciúmes, só cuidando do que é meu.

Eu arqueei as sobrancelhas.

— Que possessivo.

— Cuidadoso — corrigiu-me, me levantando em seus braços como


se eu pesasse menos do que uma pena.
Eu comecei a rir enquanto Ian me carregava até seu quarto. Ele me
jogou sobre sua cama. Eu ainda estava rindo quando ele começou a tirar sua

camiseta e depois se juntou a mim no colchão, me beijando


fervorosamente. 

Tentei ficar por cima dele, mas Ian me manteve embaixo de si.

— Sou todo seu. Você pode ter domínio sobre meu coração, pode até
colocar uma coleira em mim enquanto estivermos na rua, se quiser. Mas

aqui... — Ele balançou a cabeça negativamente, se referindo à cama. — Eu


sempre vou segurar suas rédeas, Blakely. Aqui, você é minha para eu fazer

o que bem entender. Alguma objeção?

— Não, senhor — falei, num tom divertido.

Então voltamos ao que estávamos fazendo. Quando acabamos,

éramos um emaranhado de braços e pernas.

Enquanto nos recuperávamos, Ian começou a falar:

— Sabe, eu nunca esqueço das suas botas cor-de-rosa.

— Por que você lembra disso?

— Porque foi a primeira coisa que eu reparei em você. Antes de você

se aproximar, você estava lá, catando conchas, com aquelas botas de


plástico esquisitas.

— Não eram tão ruins — murmurei.


— Eram muito ruins.

— Não eram. Eu adorava aquelas botas.

— Eram péssimas.

— Não.

— Sim.

— Cala a boca — falei, na defensiva.

— Tá bom — Ian concordou, casualmente.

Eu soltei um risinho.

— Que obediente.

— Sim. Posso falar agora?

— Pode.

— Obrigado. — Fez uma pausa. — Eu nunca pedi desculpas por ter

sido um babaca quando você chegou aqui. Me arrependo de ter perdido


tanto tempo. Eu devia ter te sequestrado em Oak Springs e ter te mantido

para sempre lá, comigo.

Eu me virei para encará-lo. Seus olhos azuis estavam muito sérios.

— Também não queria ter perdido todo esse tempo, eu também devo

desculpas pelo o que te disse no último verão. — Fiquei em silêncio por


alguns momentos. — Ian, como você se vê daqui a dez anos?
Ele fechou os olhos, respirando profundamente.

— Não sei. Não tenho certeza do futuro. Só de nós. Então tudo que
vejo quando fecho os olhos e penso no futuro, é você.
 
três semanas depois

— Ah, aí está você — Brooke diz, sinalizando para mim, ela

segurava uma prancheta e usava um crachá no peito.

— Um momento — murmurei, terminando de entornar o copo com


uísque.

— Entrar no palco bêbado não é exatamente adequado — ela disse,


meio séria, mas dava para ver o brilho divertido no olhar.

Brooke era quem cuidava das coisas da Call 911, depois que

assinamos com a gravadora. Ela era um tanto pragmática.

— É apenas coragem líquida.

Ela riu.

— Você tem um minuto.

Respirei fundo e a segui pelo corredor de acesso até estar na lateral

do palco. Hunt e Atticus já estavam aqui, eles pareciam tão nervosos quanto

eu. Aquele era o nosso primeiro show grande. Realmente grande. Porra, eu

estava suando. 

No momento certo, nós três subimos no palco. Aí que aconteceu.

Boom. As pessoas enlouqueceram. Meu coração disparou. Havia cerca de

vinte mil pessoas ali, pessoas que gostavam da nossa banda. A Call 911 foi
um tiro certeiro para a gravadora. Três jovens com rostos bonitos e músicas

promissoras. O sucesso veio em uma bandeja.

Tocamos as faixas mais famosas primeiro, as que tinham dominado

as rádios. A plateia cantou junto. Continuei movendo os dedos sobre as

cordas do meu baixo, acompanhando a guitarra de Hunt no refrão. A voz

dele ecoava pelo ambiente, a todo vapor.

O show durou uma hora e meia, depois fomos para o camarim.

— Meu Deus — Hunt murmurou, os cabelos úmidos e bagunçados,

ele estava sem camiseta. — Foi incrível.

— Foi mesmo — concordei. — Nunca me senti assim antes. Tão…

— Vivo — Atticus completou.

Brooke entrou no camarim um momento depois, dizendo que

tínhamos que programar uma turnê o mais rápido possível, porque

estávamos sendo requisitados em outros estados também. O show havia

sido em Boston, onde a banda já tinha fãs antes da gravadora chegar até

nós.

— Vou embora — murmurei, ansioso para contar tudo para ela. —

Depois nos encontramos.

Me despedindo de todo mundo, eu saí pelos fundos, sendo

surpreendido com alguns fotógrafos. Flashes dispararam em minha direção.


Eu subi na moto, então dei partida.

Blakely estava trabalhando, então ao invés de ir para o apartamento,

eu fui para a lanchonete. Os últimos dias com ela foram ótimos. Nós

estávamos oficialmente em um relacionamento e eu a amava mais do que

achei que pudesse amar alguém um dia.

Ela estava limpando um balcão quando cheguei.

Ela mal teve tempo para erguer os olhos quando a puxei para um

beijo. Blakely pareceu derreter contra meu peito.

Quando nos afastamos, ela parecia ofegante.

— Nossa — murmurou, surpresa. — Já acabou o show? — Ela

murchou um pouco. — Queria ter ido. Como foi?

Blakely não tinha conseguido ir para o show porque o seu chefe não

tinha permitido que ela tirasse o dia de folga, mesmo tentando negociar

muito. Nós dois ficamos tristes por isso.

— Foi incrível, anjo. Tinham tantas pessoas lá… Parecia um sonho.

Blakely parecia contente enquanto eu contava para ela os detalhes.

Ela continuava fazendo seu trabalho e eu falando. Foi conveniente. 

— Vocês merecem o sucesso — ela disse, por fim, se referindo à

banda. — As músicas são incríveis e…


Ela não conseguiu terminar a frase porque no próximo segundo uma

garota ao nosso lado soltou um gritinho ao me ver, depois pediu um

autógrafo e disse que tinha ido ao show. Aí, inesperadamente, ela se atirou

em meus braços e tentou me beijar.


 

Observar a garota loira se jogando em cima de Ian tinha acabado com


o resto do meu humor. Eu estava acompanhando o show pelo celular,

através de uma live da gravadora no Instagram. Os comentários lá eram de

milhares de garotas dizendo que queriam beijá-lo, ou comentando sobre o


quanto ele era lindo.

Aquilo me irritava, eu tinha que admitir.

Eu não sentia ciúmes, geralmente. Mas Ian tinha se tornado uma

super estrela do dia para a noite e toda aquela mudança estava me


confundindo. Era como se eu não me encaixasse mais em seu mundo.

Ian afastou a fã com gentileza, mas minha vontade era de expulsá-la

da lanchonete e proibi-la de voltar aqui. Só que eu não podia fazer isso. Até

porque agora isso aconteceria com frequência, certo? Garotas lindas e loiras
se jogariam em cima dele… E eu seria forçada a assistir, impotente.

Como agora.

Meus braços estavam caídos ao lado do meu corpo.

Eu respirei fundo, aprumando a postura de derrota.


Mas a sensação continuava lá, dentro de mim.

Me corroendo lentamente.

Ian conversou com a garota por alguns momentos, eles tiraram

algumas fotos juntos e ela finalmente foi embora. Não sem antes deixar seu

número de telefone com ele, é claro. Gina iria fechar hoje, então eu fui
embora com Ian em sua moto.

Ao entrarmos em casa, murmurei que precisava de um banho.

E eu realmente precisava.

Abrindo meu celular, vi a notificação de um post novo da gravadora

no Instagram.

Cliquei em cima.

A atriz de Hollywood Farrah Gazleya já comprou ingresso para o

próximo show da Call 911. O que está esperando para adquirir o seu?

Além de que a queridinha dos telões nos confessou que teve uma queda
pelo baixista, Ian Sweddish…

Eu senti algo torcer em meu estômago. Parei de ler, jogando o celular

sobre a bancada do banheiro. Um momento depois, ouvi batidas na porta.

Eu abri, respirando fundo.

— O que tá acontecendo? — Ian questionou, o rosto inteiro sério, os

olhos meio preocupados.


— Nada, só tô cansada.

— Eu não acredito em você. Fala a verdade, Blakely. O que foi?

Eu sorri forçadamente, tentando passar tranquilidade. Aquele era um

momento importante para ele, sua carreira e a banda. Eu não queria ser uma

pedra em seu sapato.

— É sério. Não aconteceu nada.

— Tá legal. Vou ficar parado aqui até que você resolva ser honesta e

me diga qual a porra do problema para que eu possa consertá-lo.

Eu comecei a me despir, não me importando com seu olhar e não


dizendo nada. Eu não queria ser alguém mesquinha. Entrei no box, ligando

o chuveiro. Os jatos de água começaram a me atingir. Comecei a lavar os

cabelos.

Ian continuava lá, apoiado no batente da porta.

Suspirei.

— Fiquei com ciúmes — admiti, o tom de voz baixo, quase

inexistente.

Ele pareceu surpreso.

— De quem? A garota da cafeteria?

— É, também. De tudo, Ian. Do nada você tá sendo notado pela

mídia inteira, todo mundo está falando sobre você e a banda. E tem muitas
garotas atrás de você. Garotas mais bonitas e interessantes do que eu. Você

vai se inserir nesse mundo de glamour, com cantores e cantoras famosas e

atrizes de Hollywood. — Pressionei os lábios. — Onde é que eu me encaixo


nisso? — sussurrei. — Você vai se tornar um baixista famoso. Eu vou

continuar sendo a garçonete que usa um avental branco com ketchup.

Ian travou as mandíbulas.

— Não se menospreze — ele murmurou, parecendo irritado.

— Tá vendo! Eu não queria dizer nada, porque não queria incomodar


você. Agora, você está com raiva de mim…

Ian tirou os sapatos, então entrou no chuveiro, com suas roupas e

tudo.

Ele segurou meu rosto entre suas mãos, fazendo-me encará-lo nos

olhos enquanto a água o encharcava.

— Eu não estou com raiva de você. Estou com raiva pelo o que você

está pensando. Entenda, Blakely, eu estou aqui porque eu te amo. E não tem
nada nesse mundo que vá mudar o que eu sinto por você. Nem a banda,

nem as garotas, nem nada! Porque nada disso chega aos pés de você.

Nenhuma dessas garotas chegam aos seus pés. Para mim, só você existe. Eu

não vou deixar que nada disso atrapalhe o meu relacionamento com você.

E, se você quiser, eu saio da banda neste exato momento. Porque se isso vai
fazer com que você acabe se afastando de mim, eu posso abrir mão dela

neste segundo.

— Não! Você está louco? Como pode cogitar sair da banda? É seu

sonho.

— O meu sonho é você, porra! Eu te amo. Uma vez você me disse


que o amor era como enxergar tudo colorido, lembra? Você lembra disso?

— perguntou, parecendo desesperado.

Eu assenti. Como poderia me esquecer?

— Então por que é que você quer deixar meu mundo cinza? Você

espera que eu viva sem você? Você espera que eu tenha uma vida sem cor?

Meu coração pareceu se comprimir em meu peito.

— Não — eu murmurei.

— Então prometa que nunca mais vai cogitar que não se encaixa na

minha vida outra vez. Você é a peça mais fundamental dela. Eu jamais vou

mentir para você.

Havia tanto amor em seus olhos. Tanto amor que toda a minha

incerteza se dissipou.

— Ok. Eu prometo.

Então Ian me beijou, reafirmando a todo momento o quanto me

amava. Ele começou a me seguir pela casa, dizendo todas as vezes em que
ele se apaixonou por mim e todas as vezes em que ele me amou um pouco

mais. 

— O que você quer fazer? — Ian perguntou, de repente, quando

estávamos os dois sentados no sofá, assistindo a um filme.

— Como assim?

— O que você quer fazer, Blake? Quais são seus planos? Não vai

precisar mais pagar aluguel, porque eu farei isso.

Eu pisquei, porque nunca tinha pensado naquilo. Eu estava juntando

dinheiro, mas para quê? Eu queria um carro, mas além disso... O que mais

faltava?

Eu não tinha completado o ensino médio porque tinha que trabalhar.


Não pensava em faculdade porque também tinha que trabalhar. Mas, agora,

eu sentia que minha vida estava começando a entrar nos eixos.

— Acho que vou terminar meus estudos — murmurei. — E, depois,


fazer faculdade.

— Faça isso. Quero que você tenha tudo o que quiser, Blakely. Eu

não me importo de dividir meu dinheiro com você. Vou apoiá-la no que for

necessário.

Naquele momento, eu senti muito amor por Ian. Mais do que eu

poderia explicar ou achei que fosse sentir um dia.


E era assim que deveria ser. Sempre.
 

Bom, essa é, sem sombra de dúvidas, uma das partes mais deliciosas

de se escrever em um livro. Eu não achei que fosse escrever outra obra em


2022. Na verdade, para ser honesta, não achei que fosse escrever nunca

mais. Talvez daqui cinco anos?

Mas aí vieram o Ian e Blakely e eles me ensinaram muito. Também

me ensinaram que desistir do que gostamos de fazer não é uma opção,


porque eles não aceitaram que eu deixasse a história deles de lado e eu não

consegui ficar em paz enquanto não terminasse de escrever até a última


folha.

Esse processo de escrita foi o mais solitário que tive, o que tornou

tudo mais difícil, mas, de alguma forma, eu consegui chegar até o final.

Esse é o último livro da série Heartbreakers, que são os meus maiores

sucessos como escritora.

Esses livros mudaram a minha vida. Vocês, leitores, mudaram a


minha vida. Eu sou grata a todo mundo que tirou um tempo para ler esse

livro. Obrigada, obrigada, obrigada mesmo. De verdade.

Por fim, também gostaria de agradecer a Deus, por sempre ter me


fornecido inspiração, força e perseverança.
Com amor,

Lovely.

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