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Não vim destruir a Lei1

Daniel Salomão Silva

A análise da famosa frase de Jesus que dá título a este ensaio traz grandes
esclarecimentos sobre a vivência da essência das Leis de Deus. Mas afinal, de que lei Jesus
falava?
Ao observarmos nossas mais simples necessidades físicas, percebemos a ação de
determinadas leis biológicas. Ao admirarmos a beleza do crescimento das plantas e a perfeição
no movimento dos astros, fica clara a presença de certas regras regendo cada processo. Até
mesmo em nosso comportamento moral e social existem leis ligando causas e consequências de
nossos atos. O entendimento de cada lei é o objetivo das ciências, filosofias e religiões de todos
os tempos da nossa história e o Espiritismo tem um grande papel nesta tarefa, começando por
afirmar que todas essas leis têm sua origem primária em Deus 2. Compreender as Leis Divinas
que regem o mundo material é uma questão de bem-estar, mas entender as que regem o mundo
moral é uma questão de felicidade, conforme nos alertam os Espíritos 3.
Então, se estamos tratando de felicidade, buscada incessantemente por toda a
humanidade, torna-se essencial conhecer essas leis, procurá-las, encontrar sua fonte. Kardec,
então, pergunta aos Espíritos onde estão escritas as Leis de Deus, recebendo a surpreendente
resposta: na consciência4. Mas, se estão na consciência, já as conhecemos e, se já as
conhecemos, por que têm que nos ser frequentemente reveladas? E, em complemento à questão
anterior, os Espíritos nos alertam que o homem esquecera e desprezara estas leis, logo precisa
delas ser relembrado5! Com este fim, grandes missionários encarnam e delineiam em todas as
épocas e povos o caminho a ser trilhado para a felicidade 6.
Um desses grandes missionários enviados à Terra foi Moisés. Mais que um libertador de
um povo escravizado, este grande médium foi instrumento do início da libertação espiritual de
toda a humanidade, ainda a vagar pelo deserto de orgulho e egoísmo. Recebeu dos Espíritos
superiores orientações de valor eterno para o homem, em meio a um conjunto de normas civis
de caráter temporário, adaptadas à época. A lei que Jesus não veio destruir é a essência divina
da lei de Moisés, imutável7. O decálogo, repositório desta essência, já traz em seus enunciados
ideias da unicidade e transcendência do Criador, da importância da reflexão religiosa e do amor
ao próximo.
Profetas e líderes hebreus continuaram a defender esta mensagem, muitas vezes
acrescentando-lhe beleza e esclarecimento, outras vezes distorcendo e priorizando seu caráter
transitório em vez de seu sentido maior, não impedindo, porém, sua propagação. Os homens,
mesmo ainda mergulhados na matéria, amadureceram, e a vinda do Cristo, o maior dos
reveladores, marca o início da maioridade espiritual da Humanidade 8.
Jesus, cumprindo as profecias que o apontavam como o Cristo e contrariando os que
esperavam um rei nos moldes terrestres, inicia sua tarefa em meio aos humildes pescadores e
pastores, fala de amor aos excluídos, mas não esquece os cultos e poderosos da Terra. Sua
mensagem é para todos. Ele não viera para os sãos, mas para os doentes 9, que somos todos nós
ainda com arestas a aparar. Com sua postura madura incomoda os radicais, sendo muitas vezes
acusado de pregar contra a lei de Moisés, mas é respondendo a uma dessas acusações que
afirma não ter vindo destruir a Lei nem os profetas, e sim cumpri-los 1.
Como um indefectível cumpridor é um dos modos como Jesus age perante a lei de
Moisés. Allan Kardec alerta-nos que na lei moisaica há duas partes distintas: a lei de Deus,
promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés 1. O Cristo cumpre
perfeitamente a primeira parte, amando a Deus em cada ato, dedicando sua vida à divulgação de
uma profunda religiosidade, jamais tratando a religião de forma vã, honrando sua família
material e sobretudo a espiritual, e, enfim, agindo diante do próximo com amor jamais visto.
Porém, quanto à lei civil decretada por Moisés, o Mestre atua como um reformador10.
Este conjunto de regras, muitas vezes contraditórias, normatizava formas de se vestir e de se
alimentar, recomendava posturas degradantes diante da mulher ou violentas para com todos,
como a pena de Talião, mas também estabelecia normas necessárias à organização de uma
comunidade primitiva7. Esta lei teve seu tempo. Em um momento emblemático, Jesus cura um
doente em pleno sábado diante de líderes religiosos judeus 11, impressionando-os, incrivelmente,
não pela ação sublime, mas pela transgressão de uma interpretação literal e imatura da lei
moisaica. Mais marcante ainda é a postura de Jesus diante da mulher acusada de adultério
arrastada violentamente à sua presença 12. Os acusadores alegavam que a lei de Moisés
determinava o apedrejamento e perguntaram a Jesus qual seria a postura indicada. Recomendar
a apedrejamento era negar a lei de amor. Negá-lo era dar motivos claros à própria prisão. O
Mestre então, sabendo da presença da Lei de Deus na consciência de cada um deles 4, convida-os
à autoanálise: aquele que estiver sem pecado que atire a primeira pedra. Ninguém atirou...
Jesus não deixa de enriquecer a bela mensagem judaica. Age também como um
ampliador desta revelação, desenvolvendo-a, dando-lhe o sentido verdadeiro e adaptando-a ao
grau de adiantamento dos homens10. Ao comentar, por exemplo, o mandamento não matarás13,
ensina que a cólera, a ofensa ou o descaso para com o próximo já são motivos para nos
tornarmos réus de juízo, obviamente, de nossa própria consciência. Sobre o mandamento não
cometerás adultério13, alerta que o erro em pensamento já é algo a ser combatido, mesmo antes
de se tornar ação. Enfim, cumprindo, reformando e ampliando, Jesus nos deixa em ideias e atos
o resumo de toda a Lei Divina: amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o
pensamento, e ao próximo como a si mesmo14.
Mas o Cristo não disse tudo. Não o pôde, pois não o compreenderíamos naquele
momento15. Prometeu, por amor, enviar-nos um outro consolador. Decidiu remeter àqueles, que
no futuro distorceriam e esqueceriam parcialmente sua mensagem, o Espírito de Verdade, que
ensinaria mais coisas, lembraria o que desprezamos e permaneceria conosco até o fim dos
tempos16. Sua promessa cumpriu-se.
No século XIX, manifestações mediúnicas, já conhecidas da humanidade, intensificam-
se, inicialmente em efeitos físicos, como movimentações de objetos e pancadas, mas
rapidamente em efeitos inteligentes de grande profundidade. Cabe ao grande professor Rivail,
de competência e moralidade comprovadas, a nobre tarefa de codificação da Doutrina Espírita.
Retirar de eventos aparentemente pueris uma filosofia espetacular, defender em uma época de
forte materialismo conceitos espiritualistas, dedicar anos de uma vida essencialmente produtiva
ao Consolador Prometido pelo próprio Cristo não é tarefa para qualquer espírito. E Allan
Kardec assume esta missão. Não de fundação de uma religião tradicional, com hierarquias e
dogmas inquestionáveis17, mas de revivência da única religião fundada por Jesus: a Religião do
Amor, essência das Leis Divinas. Convida-nos não ao combate às religiões tradicionais, mas
sim a uma análise da interpretação dada aos ensinamentos cristãos, tão distorcidos.
A grande contribuição do Espiritismo para o progresso da humanidade está em destruir o
materialismo18, conscientizar os homens da existência de um Deus Criador e Supremo, da
imortalidade da alma, da possibilidade de comunicação com aqueles que nunca estiveram
mortos, da reencarnação como única explicação coerente da Justiça Divina, regida pela lei de
causa e efeito.
Allan Kardec, ao iniciar o Evangelho segundo o Espiritismo com a análise desta
declaração de Jesus1, título do primeiro capítulo, mostra a inquestionável preocupação de Deus
com suas criaturas, jamais deixadas de lado mas, de acordo com sua maturidade derivada do
esforço, presenteadas com revelações de grandes Espíritos 6. O Espiritismo representa mais um
passo no infinito caminho para o conhecimento de todas as coisas e nada ensina em contrário
ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda
gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem cumprir, nos tempos preditos, o que o
Cristo anunciou e preparar a realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que
preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de
Deus na Terra19.
1. Mt, 5:17 e 18.
2. O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 76a edição, FEB, q. 1.
3. _________, q. 614.
4. _________, q. 621.
5. _________, q. 621, “a”.
6. _________, q. 622.
7. O Evangelho segundo Espiritismo, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 112 a edição,
FEB, cap. 1, item 2.
8. A Caminho da Luz, de Emmanuel, psicografado por Chico Xavier, 22a edição, cap. 12.
9. Mc, 2:17.
10. O Evangelho segundo Espiritismo, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 112 a edição,
FEB, cap. 1, item 3.
11. Mt, 12:10 a 14; Mc, 3:1 a 6; Lc, 14:1 a 6 e Jo, 5:6 a 10.
12. Jo, 8:1 a 11.
13. Mt, 5:21 a 48.
14. Mt, 22: 36 a 39.
15. O Evangelho segundo Espiritismo, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 112 a edição,
FEB, cap. 1, item 4.
16. Jo, 14: 16 a 18 e 26; Jo, 15: 26.
17. Revista Espírita, dez/1868, O Espiritismo é uma religião?
18. O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 76a edição, FEB, q. 799.
19. O Evangelho segundo Espiritismo, de Allan Kardec, tradução de Guillon Ribeiro, 112 a edição,
FEB, cap. 1, item 7

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