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Filipe Boechat
Introdução
Há alguns anos, Lacerda Jr. (2013) traçou um breve histórico de nossa formação social com
o fito de melhor situar o surgimento e o desenvolvimento da psicologia em nosso país e,
particularmente, a emergência e a institucionalização de nossa psicologia crítica. O recuo realizado
pelo autor partia da convicção de que “a descrição do que ocorre em um complexo específico de
ideias e práticas – a psicologia brasileira – deve ser realizada a partir de sua inserção em um
complexo mais amplo: a sociedade capitalista brasileira” (idem, p. 218).
Recorrendo aos trabalhos de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho e
Ruy Mauro Marini, além de outros autores de nossa tradição marxista, Lacerda Jr. recuperou a
história de dependência do capitalismo brasileiro; o processo de modernização hipertardio, marcado
pela conciliação entre frações de nossas classes dominantes; a natureza bonapartista dos regimes
situados entre 1930 e 1964, condição para a garantia do equilíbrio instável de forças opostas; a
histórica exclusão das forças populares dos processos de transformação social, caracterizados por
rearranjos entre frações das classes dominantes e acordos de cúpula, fechados “pelo alto”; o caráter
débil e frágil da burguesia brasileira e a consequente formação de um Estado forte e autoritário,
expressa sob a forma de uma autocracia burguesa, conservadora e contrarrevolucionária (idem, p.
221-222).
Lacerda Jr. concluiu seu panorama do capitalismo dependente brasileiro com o processo de
reacomodação das classes dominantes na derrocada do regime ditatorial e sua unificação em torno
do programa neoliberal, programa este do qual, segundo o autor, permaneceríamos reféns até os
dias atuais, fato que teria implicado na intensificação das desigualdades sociais, na reversão
colonial, na precarização e barbarização dos setores explorados e na ampliação da dependência
cultural (idem, p. 223). Tudo isso para mostrar-nos que a psicologia brasileira nasceu subordinada
às classes dominantes da formação social brasileira e seus correspondentes projetos político-
estratégicos; para mostrar-nos que, “Da mesma forma como a psicologia nos EUA no início do
século XX, na busca por legitimidade social, se associou aos setores dominantes da sociedade norte-
americana, a psicologia brasileira soube rapidamente posicionar-se diante da luta de classes no
Brasil” (idem, p. 219-220).
Todavia, se esses e outros elementos permitiram que Lacerda Jr. indicasse a “miséria
cultural da dependência” (idem, p. 223) como herança da psicologia brasileira, expressa em seu
mimetismo cultural e em sua transparente subserviência aos interesses imediatos das classes sociais
dominantes, por outro lado, permitiram também mostrar que “momentos de rebelião, de desordem e
crises sociais foram fundamentais para o surgimento ou fortalecimento de tendências contrárias às
concepções científicas e artísticas instrumentais à dependência e ao capital” (idem, ibidem).
De fato, como também mostrou o autor, o ascenso do movimento operário, sindical e
popular, no final dos anos de 1970, e o processo de redemocratização, nos anos de 1980, foram
determinantes para a emergência da psicologia crítica brasileira. A expansão do sistema superior de
ensino, induzida pela contrarreforma universitária de 1968 1; a abertura de novos campos de atuação
para os psicólogos, com a redefinição do setor de bem-estar social; o clima ideológico suscitado
pelo processo de redemocratização, tudo isso teria contribuído para dar uma “nova aparência para a
psicologia brasileira” (idem, p. 224), até então marcada pelo conservadorismo, pelo individualismo
e pelo compromisso com as elites e os interesses materiais de nossas classes dominantes.
Ainda segundo o autor, três vetores teriam determinado o desenvolvimento dessa nova
aparência da psicologia brasileira: o engajamento de psicólogos nas lutas por melhores condições
sociais de existência de setores oprimidos e explorados da sociedade brasileira; a chegada ao Brasil
de teorias sociais comprometidas com a revisão das noções tradicionais de poder, ciência,
subjetividade, sociedade etc.; a entrada de psicólogos em novos espaços de atuação e os impactos
da percepção da inadequação de seus referenciais teóricos e práticos (idem, p. 217).
Esse “esboço sobre a história e o desenvolvimento da psicologia crítica no Brasil” (idem, p.
216) permitiu, ainda, que Lacerda Jr. levantasse algumas questões que nos parecem profundamente
pertinentes, sobretudo quando consideramos a atual conjuntura social e política de nosso país. Entre
outras questões não menos importantes, o autor perguntava-nos qual teria sido a efetiva
contribuição dessa nova forma de psicologia para a promoção de processos de insurgência contra a
ordem do capital, para a denúncia e desmistificação da realidade existente e o fomento de processos
emancipatórios.
Alguns anos antes, em apontamentos para uma história da psicologia crítica, Furtado sugeriu
a necessidade de “avaliar a importância da militância em partidos de esquerda ou da própria
influência que um pensamento ou uma teoria revolucionária teria exercido sobre os promotores do
pensamento crítico na Psicologia a partir da década de 60” (2009, p. 248).
Com efeito, conforme nos mostrou Hur, o desenvolvimento da psicologia crítica e a
renovação do perfil profissional do psicólogo, a partir de meados da década de 1980, contou
sobremaneira com a participação de militantes intimamente vinculados a organizações política de
esquerda. Segundo o autor, “O movimento dos psicólogos de esquerda não só atualizou o
1Contrarreforma
prevista no acordo MEC-USAID. Voltaremos sobre esse ponto. De momento, cumpre observar, com
Antunes, que “A expansão da pós-graduação produziu melhorias na qualidade da formação do psicólogo, embora ainda
de forma desigual, pois a articulação entre ensino e pesquisa não se efetivou para todos os cursos, ficando limitada às
instituições que garantiam as condições de trabalho necessárias para a concretização do princípio de indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão” (2012, p. 61-62).
imaginário de transformação social como foi composto por militantes de diversas organizações da
esquerda política”, dentre as quais citava o Partido Comunista Brasileiro, a Ação Popular e a
Convergência Socialista (2009, p. 141).
Discutindo a história da psicologia a partir de suas entidades representativas, sindicatos,
conselhos e demais associações profissionais, Hur chamou nossa atenção para o fato de que a
história da psicologia brasileira costuma centrar-se no âmbito das teorias psicológicas, sintoma
daquilo que Lacerda Jr. (2016) identificou, mais recentemente, como sendo característica do
epistemologismo na psicologia. 2 Por essa razão, Hur recomendava a “construção de uma história da
Psicologia a partir das práticas políticas das entidades representativas da categoria profissional”
(idem, p. 127).
Embora partisse de um referencial estranho e mesmo avesso à tradição marxista, Hur
apontaria alhures que a construção dessa “nova história” (2012, p. 70) seria uma forma “de
refletirmos sobre a organização dos psicólogos, suas práticas políticas e sua relação com a
sociedade e o Estado” (idem, ibidem).
Independentemente dessa diferença entre os referenciais teórico-metodológicos, Hur
levantou questões semelhantes àquelas colocadas por Lacerda Jr.. Referindo-se ao Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo (CRP SP) e o Sindicato de Psicólogos do Estado de São Paulo
(SPESP), e concentrando-se, sobretudo, nas gestões que se consolidaram durante o período da
“abertura política” e da redemocratização, perguntava-nos o autor: “Quais foram os
posicionamentos dessas entidades na história brasileira? Elas tiveram uma prática emancipadora ou
perpetuadora das relações de poder instituídas no país?” (idem, ibidem).
O presente capítulo envereda pelas trilhas abertas por Lacerda Jr. e Hur. Buscamos, assim
como esses autores, caminhar na direção da aproximação da Psicologia ao âmbito político ou, como
diriam os mesmos, do desenvolvimento de uma “psicologia política crítica” (HUR & LACERDA,
2016). Procuramos, especialmente, situar a psicologia e a psicologia crítica brasileiras no quadro
geral dos ciclos históricos que marcaram a vida política nacional, vinculando-lhes às
correspondentes estratégias político-revolucionárias de cada um desses ciclos e aos seus respectivos
aparelhos.
O corpo do texto está organizado da seguinte maneira: primeiramente, apresentamos nossas
premissas, categorias e pressupostos teórico-metodológicos. Em seguida, passamos à descrição e
discussão dos resultados até então encontrados, considerando que se tratam de resultados parciais de
uma pesquisa ainda em curso. Buscamos definir, em linhas gerais, dois ciclos de nossa história
política, suas respectivas estratégias hegemônicas e algumas instituições que, segundo nos parece,
2
Hur levanta a seguinte hipótese para esse fato: “Talvez o desinteresse pela produção acadêmica sobre a história das
entidades políticas dos psicólogos seja um reflexo da própria relação dos psicólogos com suas entidades representativas,
ou mesmo com a própria atuação política” (2009, p. 127).
cumpriram ou têm cumprido o papel de aparelhos privados de hegemonia, articulando, como tais, a
base ou a estrutura social com o conjunto de suas superestruturas. Além disso, discutimos a
funcionalidade da psicologia desenvolvida em cada um desses ciclos históricos para a manutenção
da dominação burguesa no Brasil, dando maior atenção ao ciclo histórico atual, dada sua
importância para a definição dos rumos da psicologia crítica desenvolvida em nosso país. Em
seguida, analisamos um caso particular de relação entre a psicologia e a política, como forma de
procurarmos responder a algumas das questões levantadas tanto por Lacerda Jr. quanto por Hur e
avançarmos a partir dos resultados a que chegou Carvalho (2014) em sua tese sobre a “Escola de
São Paulo de psicologia social”. Por último, nas considerações finais, procuramos formular algumas
perguntas que sirvam de norte para os desenvolvimentos futuros de nossa pesquisa e para todos
aqueles que se sentirem interessados em dar prosseguimento às análises até aqui realizadas.
Antes, portanto, de passarmos à apresentação de nossos resultados parciais, convém
explicitarmos premissas, categorias e pressupostos teórico-metodológicos que empregamos neste
capítulo, não apenas por estarmos convencidos de que não existe a possibilidade de um pensamento
politicamente neutro nas ciências humanas (LÖWY, 1978, 2009; NETTO, 2011), como também por
estarmos cientes de que algumas das expressões que empregamos aqui estão sujeitas a
interpretações as mais diversas.
O método para análise, interpretação e explicação das relações de que trataremos neste
capítulo procurou guiar-se pelos pressupostos, pela lógica e pelas categorias provenientes da teoria
social marxiana, teoria social centrada, fundamentalmente, na dialética materialista, na teoria valor-
trabalho e na luta de classe sob a perspectiva da emancipação humana. Situa-se, portanto, nos
quadros da “tradição marxista”, composta, conforme mostrou-nos Netto, por um conjunto de
“vertentes diferenciadas e alternativas de uma já larga tradição teórico-política” (NETTO, 2006, p.
9).
Como nos interessa deslindar os nexos entre estratégias de dominação de classe e os
aparelhos e intelectuais que as põem em marcha, recorreremos a alguns dos conceitos
desenvolvidos pelo marxista sardo Antonio Gramsci. Não porque o identifiquemos como “teórico
das superestruturas”, mas por reconhecermos a importância de boa parte de suas reflexões para uma
compreensão mais nuançada das articulações entre o conjunto das superestruturas e a estrutura
social, assim como para a compreensão dos nexos entre ideologias, intelectuais e a conformação
daquilo que Gramsci chamou de “blocos históricos”. Conforme afirmamos noutra ocasião, a forma
pela qual Gramsci concebeu a participação de aparelhos e intelectuais na conformação e
consolidação de blocos históricos parece-nos elemento decisivo para compreendermos de que
maneira a psicologia participou ou tem participado de estratégias de dominação de classe ao longo
da história da formação social brasileira, independentemente da consciência de seus principais
agentes (BOECHAT, 2017a; 2017b).
Não ignoramos que “Esse súbito interesse pelo autor dos Quaderni del Carcere e redator de
Ordine Nuovo não está [...] isento de segundas intenções e frequentemente se presta a justificar tal
ou qual corrente marxista, ou mesmo a seguir um ‘novo’ teórico que bruscamente vira ‘moda’,
depois de trinta anos de esquecimento (PORTELLI, 1977, p. 13). Também não desconhecemos que
“O que se está fazendo com as ideias de Gramsci exige de nós todos um repúdio frontal: as
universidades norte-americanas e europeias tentam convertê-lo em um representante amorfo do
‘socialismo democrático’” (FERNANDES in AMMANN, 1980, p. 12-13). Mas entendemos que
seria erro crasso descartar suas contribuições ao estudo das formas de dominação burguesa,
sobretudo quando consideramos sua capacidade de articulá-las a uma opção política radical pela
emancipação humana das classes subalternas.
Nesse sentido, estamos de acordo com Fernandes, quando observava que
Nossa pesquisa tem revelado, ainda, a importância de estudarmos “as formações próprias
dos grupos subalternos para reivindicações de caráter restrito e parcial”, e as formações que
afirmam a “autonomia integral” dos grupos subalternos, para além daquela autonomia afirmada
dentro de “velhos quadros” (idem, ibidem). Tudo isso para compreendermos de que maneira se
configura a “estrutura material da ideologia”.
Esse estudo não pode perder de vista que a realidade de uma sociedade de classes jamais é
homogênea. Mesmo porque,
Temos tentado compreender essa heterogeneidade através do estudo da forma como se deu a
assimilação, por parte das classes dominantes, de aparelhos construídos pela classe trabalhadora
brasileira e seus aliados. Partimos, portanto, da premissa de que “As classes dominantes
precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a assimilar
organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe:
a concepção de casta fechada” (idem, p. 279). Mas que, com o desenvolvimento do capitalismo, “A
classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver
toda a sociedade, assimilando-a assim a seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é
transformada: o Estado torna-se ‘educador’” (idem, ibidem).
O exame desse processo supõe uma prévia compreensão de algumas categorias, dentre as
quais destacamos aquelas de “ciclo histórico”, “aparelhos privados de hegemonia”, “estratégia
político-revolucionária” e “psicologia crítica”.
Por ciclo histórico entendemos o arco temporal aberto por transformações econômicas e
políticas de vulto, marcado, sobretudo, pelo acirramento da luta entre as classes sociais e o ascenso
e descenso das classes subalternas. Outra característica consiste no surgimento, assimilação ou
desaparecimento de determinados aparelhos destinados à disputa pela direção moral e intelectual da
sociedade entre suas classes sociais antagônicas. Conforme foi observado,
um termo guarda-chuva que abarca toda proposta que busca criticar a sociedade e a
psicologia [e que] abrange um conjunto de ideias e práticas que buscam contribuir
para algum projeto emancipatório e/ou elaborar novas formas de pensar o
indivíduo, a subjetividade, o sujeito e outras categorias importantes para a
psicologia (2013, p. 217).
Dito isso, resta-nos dizer, uma vez mais, que nossos resultados não têm a pretensão de serem
exaustivos ou definitivos. Desejam, antes, servir para deslindar as contradições imanentes à história
da psicologia brasileira, para que possamos melhor orientar nossos esforços emancipatórios e para
que possamos “compreender a gênese e o movimento como processos constitutivos de nosso objeto
de estudo, a Psicologia no Brasil, com a certeza de que muitos estudos e pesquisas são necessários
para que essa compreensão se aprofunde e se amplie” (ANTUNES, 2012, p. 63).
Resultados e discussão
3
Cumpre assinalar que tais estratégias contém sempre uma determinada teoria do Brasil, isto é, uma leitura da realidade
social brasileira, descrevendo sua estrutura e a dinâmica de sua formação. Como observou Prado Jr., “A teoria da
revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente – mas não
simplisticamente – a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo esse que, na
sua projeção futura, dará cabal resposta às questões pendentes” (1966, p. 15). Conforme assinalou Souza, “Isto, no caso
dos comunistas, torna-se a busca pela apreensão do que há de característico em nosso caminho (não clássico) para o
capitalismo como forma de mapear os passos necessários à construção de um possível caminho (não clássico) para o
socialismo (2013, p. 51, grifos do autor).
acompanhava, nesse sentido, o ascenso do conjunto das classes subalternas suscitado pelas
contradições do processo acelerado de industrialização iniciado após a crise mundial de 1929.
A estratégia democrática e popular, por seu turno, nasceu sob o impacto da derrota da classe
trabalhadora brasileira com o golpe empresarial-militar de 1964, desenvolvendo-se a partir das
necessidades imediatas da luta sindical e, posteriormente, das críticas dirigidas às insuficiências da
estratégia anterior, tanto no que se refere às suas táticas, quanto no que se refere à sua leitura da
realidade social brasileira (IASI, 2017, p. 279-313). Amadurecida ao longo das décadas de 1970 e
de 1980, ela expressava a consciência das forças políticas nascidas da luta contra a carestia, a
precarização das condições de trabalho e a repressão do regime ditatorial.
A estratégia democrática e popular contou com dois grandes aparelhos: o Partido dos
Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Fundado nos primeiros meses de
1980, o PT desenvolveria a crítica da estratégia democrática e nacional numa direção bastante
peculiar, revelando traços de continuidade e descontinuidade decisivos para a definição da nossa
atual conjuntura e seus rebatimento no plano ideológico (IASI, 2012a, 2012b, 2017; MARQUES,
2015; MARTINS et al, 2014).
Vejamos, no item seguinte, quais foram as principais características desses ciclos históricos,
suas estratégias e aparelhos, tendo em mente que nosso interesse consiste em saber em que medida
influíram sobre a história da psicologia e da psicologia crítica brasileiras e, particularmente, de que
forma estiveram a serviço da transformação de nossa realidade nacional e da emancipação do
conjunto de nossas classes subalternas.
O ciclo democrático-nacional situa-se entre os golpes de 1930 e 1964. Este ciclo esteve
marcado pelo ascenso da classe trabalhadora brasileira em virtude das contradições emanadas do
processo de industrialização que se seguiu à crise mundial de 1929 e dos impactos da Segunda
Guerra Mundial na economia e na política brasileiras.
A partir de 1930, o Estado brasileiro viu-se incumbido da tarefa de induzir e acelerar os
processos de industrialização, urbanização e as demais condições para a reprodução ampliada do
capital. O movimento de organização e luta da classe trabalhadora brasileira, sobretudo a partir da
década de 1940, e as exigências impostas pelas economias dos países centrais, em face da crise e da
guerra, impuseram a refuncionalização e o redimensionamento do Estado brasileiro.
As modificações econômicas, políticas e sociais desse período refletiram-se no pensamento
social brasileiro sob a forma de uma ideologia particular: a ideologia do desenvolvimento nacional
(TOLEDO, 1978). No que diz respeito, particularmente, à consciência da classe trabalhadora, essas
transformações contribuíram para a formulação da estratégia democrático-nacional, encampada
pelo PCB (IASI, 2012b, 2017).
O núcleo dessa estratégia consistia na suposição do caráter incompleto do capitalismo
brasileiro. Sendo assim, o fim da exploração da classe trabalhadora brasileira, herança de nosso
passado colonial e escravista, dependeria de uma prévia revolução democrática e nacional. Uma
revolução dessa natureza demandaria uma aliança, por parte da classe trabalhadora, com setores
progressistas da burguesia nacional, supostamente em contradição com os interesses imperialistas e
das oligarquias agrárias, considerados entraves ao desenvolvimento das relações sociais de
produção no Brasil, mantidas em estado “arcaico”, “semifeudal”, “semicolonial” (IASI, 2012b,
2017). Previa-se, portanto, uma etapa democrático-burguesa e, consequentemente, a formação de
uma grande frente nacionalista, como pressuposto para destravar o desenvolvimento do capitalismo
nacional e permitir a organização de um proletariado concentrado e forte, condições materiais
necessárias a uma revolução de caráter socialista. 4
A transposição mecânica e apriorística de uma estratégia político-revolucionária
desenvolvida alhures não tardaria em revelar-se desastrosa. Ao desconsiderar as particularidades de
nossa formação social, a estratégia democrática e nacional conduzia as organizações da classe
trabalhadora a graves erros políticos.
Analisando as continuidades e as rupturas entre a estratégia democrática e nacional a
estratégia democrática e popular a partir dos trabalhos de Caio Padro Jr. e Florestan Fernandes, Iasi
(2012b, 2017) mostrou-nos que, entre as insuficiências dessa estratégia, constavam uma leitura
equivocada da composição e da natureza das classes dominantes brasileiras, que levava à suposição
da existência de uma burguesia nacional em contradição com o latifúndio e o imperialismo, e uma
igualmente equivocada interpretação do fenômeno do imperialismo, que levava a compreendê-lo
como entrave ao desenvolvimento das relações capitalistas. A fusão do capital bancário com o
4A
estratégia era chancelada pela Internacional Comunista (IC). Tendo como pano de fundo a ascensão do fascismo e a
avaliação da necessidade e da viabilidade do “socialismo num só país”, em seu VI Congresso a IC passava ao primeiro
plano de suas preocupações a contradição entre as nações e o imperialismo. Consequentemente, a organização fundada
para organizar e dirigir a classe trabalhadora em âmbito internacional acabava subordinando a contradição existente
entre capital e trabalho à disputa entre nações, ao mesmo tempo em que orientava as organizações da classe
trabalhadora dos países geopolitica e economicamente periféricos a contribuir para o desenvolvimento local do
capitalismo (IASI, 2011, 2012b).
capital industrial e o papel da exportação de capitais (LENIN, 2012) no desenvolvimento das
relações sociais de produção capitalistas no Brasil eram ocultadas por uma interpretação do
imperialismo à maneira de Kautsky, que o via como uma “tendência de toda nação capitalista
industrial a submeter ou anexar, cada vez mais, regiões agrárias mais extensas, qualquer que seja a
origem étnica de seus habitantes” (KAUTSKY apud IASI, 2012b).
A contrarrevolução expressa pelo golpe empresarial-militar de 1964 foi a prova histórica da
insuficiência dessa estratégia. Para Prado Jr., “as graves distorções observadas na interpretação da
realidade política, econômica e social brasileira contribuíram para os erros que vinham sendo
cometidos desde longa data na ação política da esquerda, e que levaram afinal ao desastre de 1° de
abril.” (1966, p. 23) A forma autocrática assumida pelo poder burguês no Brasil (FERNANDES,
1976) mostrou o caráter estruturalmente dependente do capitalismo brasileiro e a inviabilidade de
uma revolução de caráter democrático-burguesa de tipo clássico, revelando a natureza compósita da
burguesia nativa 5 e a inexistência de uma burguesia progressista, democrática, nacionalista, anti-
latifundiária e anti-imperialista, interessada, enquanto tal, em romper com os laços de submissão e
dependência ao imperialismo (IASI, 2012b, 2017; MARQUES, 2015; MARTINS et al., 2014;
FIGUEIREDO, 2014).
As soluções propostas por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes não nos interessam de
momento, embora elas permitam antever elementos que irão compor a estratégia democrática e
popular (IASI, 2011, 2012a, 2012b, 2017; MARQUES, 2015; MARTINS et al., 2014;
FIGUEIREDO, 2014). Interessa-nos, agora, observar de que maneira o ciclo democrático-nacional
promoveu a criação de diversos aparelhos, alguns dos quais repercutiram profundamente sobre a
história de nossa psicologia.
Vejamos. Referindo-se ao período anterior a 1930, Antunes assinalaria que,
5Caio
Prado Jr. dirá que “a rápida ascensão dessa burguesia formou uma classe que, apesar de representar distintos
setores e atividades econômicas, se fundia em interesses comuns, sendo, portanto, altamente coesa” (MARTINS et al.,
2014). Fernandes, noutra chave interpretativa, concluirá algo semelhante ao apontar o “padrão de civilização burguesa”
assumido por alguns setores da aristocracia rural brasileira, conformando uma espécie de “congière social” (IASI,
2012b).
avançando sob o conjunto da “sociedade civil”. Realizava, portanto, outro movimento característico
das sociedades capitalistas, igualmente diagnosticado pelo marxista sardo: a “estatização da
sociedade civil” (PORTELLI, 1977). Como parte orgânica desse Estado indutor, surgiam aparelhos
privados de hegemonia com o papel de consolidação do bloco histórico nacional-
desenvolvimentista. Com o aprofundamento das contradições imanentes ao processo de
industrialização capitalista, das quais o aparecimento das ligas camponesas dava testemunho
(AMMANN, 1980), o Estado brasileiro procava legitimar-se através de uma malha de intelectuais
orgânicos, quadros que passavam a compor uma elite promotora e indutora do desenvolvimento
nacional. Tratava-se, portanto, daquele movimento em que a sociedade política encarrega-se da
formação de seus “funcionários”. Como anotou Gramsci,
Em outros termos, a coerção buscava revestir-se de consenso (LIGUORI & VOZA, 2017, p.
261-264). E ela o fazia por intermédio da criação de instituições de âmbito nacional, tanto públicas
quanto privadas. Elas seriam operadas, fundamentalmente, por membros da pequena-burguesia ou
das “camadas médias”, que viriam a conformar uma elite sob direção moral e intelectual do novo
bloco de classe dominante.
Dentre as instituições que determinaram o curso da história da psicologia brasileira,
destacamos aqui o Instituto Nacional de Pedagogia (Inep) 6 o Instituto de Seleção e Orientação
Profissional (ISOP) e o Instituto Superior de Estudos brasileiros (ISEB).
O Inep, criado meses antes do golpe que instituiria o “Estado Novo”, era um órgão
formalmente público. Ao Instituto competia, entre outras funções, o desenvolvimento da psicologia
aplicada à educação e à orientação e seleção profissionais, tendo papel destacado na difusão da
pedagogia escolanovista. Segundo Antunes, “a Psicologia aplicada à educação e a psicologia
aplicada às relações de trabalho constituem-se ambas em campos diversos, porém voltados, pelo
menos em última instância, para objetivos comuns, num mesmo contexto histórico” (2017, p. 110). 7
6O
Instituto Nacional de Pedagogia transformou-se em Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) pelo decreto-
lei n°. 580, de 30 de julho de 1938, tendo Lourenço Filho como seu primeiro diretor-geral. Em 1972, o Inep passou a
chamar-se Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, em homenagem àquele que foi seu diretor-
geral de 1952 a 1964. O Inep é hoje responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Para mais informações
sobre os antecedentes do Inep, cf. Dicionário histórico de instituições de psicologia no Brasil, organizado por Ana
Maria Jacó-Vilela (2011, p. 375-376).
7Antunes ainda assinalaria que, “Em primeiro lugar, a busca da organização científica do processo produtivo na
indústria equipara-se à busca de uma pedagogia científica para a escola; em segundo lugar, um dos mais destacados
educadores escolanovistas e destes o mais preocupado com a Psicologia, Lourenço Filho, foi um dos mais importantes
contribuidores para o movimento que gerou a aplicação da Psicologia ao trabalho.” (2017, p. 110) Para mais
Esses objetivos comuns consistiam na formação da força de trabalho adequada às novas condições
de produção da vida social e ao desenvolvimento nacional.
O ISOP, por sua vez, criado em 1947 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV, criada em 1944),
era formalmente privado. 8 De acordo com Antunes;
O ISEB, por seu turno, criado em 1955 e extinto com o golpe de abril de 1964, aglutinou
intelectuais à direita e à esquerda do espectro político: Roberto Campos, Hélio Jaguaribe, Cândido
Mendes, Guerreiro Ramos, Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré... Coube ao Instituto a formulação
da ideologia do desenvolvimento nacional (TOLEDO, 1978), ideologia que definiria a forma
assumida pela psicologia brasileira no período. Entre os intelectuais influenciados pelas
formulações isebianas que definiram o curso da história da psicologia, destaca-se a figura do
educador Paulo Freire10.
informações e obras de referência sobre o papel de Lourenço Filho na história da psicologia brasileira, cf. Dicionário
biográfico da psicologia no Brasil, organizado por Regina Helena de Freitas Campos (2001, p. 209-211).
8Para mais informações sobre a história do ISOP, de sua criação, em 1947, à sua extinção, em 1990, cf. Dicionário
1949. Extinto em 1968, passou a chamar-se Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada e, posteriormente, Arquivos
Brasileiros de Psicologia (JACÓ-VILELA, 2011, p. 350; PORTUGAL, 2009).
10A importância de Paulo Freire na estratégia democrática e nacional e sua dívida para com o ISEB foram evidenciadas
por Paiva, em Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista (1980). Convém assinalar sua igual importância para o
Como mostrou Antunes, referindo-se ao processo de autonomização da psicologia,
foi nesse período que a Psicologia, respondendo a demandas impostas pelo modelo
desenvolvimentista de economia e de uma política de intervenção do Estado no
processo produtivo, se estabelece como ciência reconhecida e se consolidam as
modalidades de atuação prática que, pode-se dizer, gestaram as condições para sua
consolidação como ciência e profissão, sendo essa última a que se oficializaria a
partir da Lei nº 4119 (2012, p. 57-58, grifo nosso).
Vimos, no entanto, que tanto setores à esquerda quanto à direita do espectro político
estiveram engajados na promoção do desenvolvimento nacional. Por parte da esquerda, a
modernização capitalista era encarada como etapa necessária para a revolução socialista. Isso nos
parece elemento importante para a crítica de um dualismo presente na historiografia da psicologia
brasileira que conduz a avaliar quase toda a psicologia anterior à década de 1970 como sendo
conservadora porque dedicada ao desenvolvimento do capitalismo. Opõe-se, no mais das vezes
ciclo democrático-popular e sua estratégia, como se depreende do destaque conferido à sua pedagogia para o
desenvolvimento da democracia e da consciência cidadã (GASPARELLO, 2002).
moralmente, uma psicologia conservadora a uma psicologia progressista. Mas, apesar dos
equívocos da estratégia democrático-nacional terem revelado o caráter politicamente conservador
das intenções mais progressistas, não devemos ignorar que alguns psicólogos do período
compreendiam o desenvolvimento como parte de uma estratégia político-revolucionária.
Conforme procuraremos demonstrar, se por um lado, nem toda psicologia politicamente
comprometida com o desenvolvimento do capitalismo é necessariamente conservadora do ponto de
vista moral (uma vez que a tal desenvolvimento pode ser compreendido dentro de uma estratégia
que visa, em última instância, a superação do capitalismo), assim também nem toda psicologia
moralmente comprometida com a superação do capitalismo é necessariamente progressista do ponto
de vista político (uma vez que, contrariamente aos seus propósitos, pode ser funcional à reprodução
da dominação e da hegemonia burguesas e, portanto, à sua supremacia).
Mas, retornemos à nossa argumentação. Mostrávamos, a partir de Antunes e Freitas, que,
entre as décadas de 1930 e 1960, a psicologia brasileira esteve sob o signo do desenvolvimentismo.
(ANTUNES, 2012, 2017; FREITAS, 1996). Freitas, em particular, apontava que “o Brasil atravessa
a década de 50, assistindo, em diversos locais, cidades e estados, a realização de vários trabalhos,
junto aos setores mais desfavorecidos da população, quase todos com fortes elementos
assistencialistas e paternalistas” (idem, ibidem, grifos nossos). Apontava, ainda, que esses trabalhos
“atendiam aos interesses das elites econômicas do país, cujos profissionais, em sua maioria
provenientes das ciências humanas e sociais, ocupavam nesses projetos funções estratégicas
destinadas à prestação de serviços básicos à população” (idem, p. 56-57, grifos nossos).
Não temos muito a acrescentar à interpretação de Freitas, com exceção de uma observação.
Ao identificar os interesses das classes dominantes brasileiras aos interesses das “elites
econômicas” e seus “profissionais” (idem, ibidem), opondo setores sociais “mais favorecidos” a
“setores sociais menos favorecidos” (idem, ibidem), Freitas parece-nos sugerir que as classes
dominantes brasileiras necessariamente identificam-se com seus funcionários, compartilhando de
sua origem e situação econômico-social. Parece-nos, portanto, que Freitas não vislumbrava a
possibilidade de que as classes dominantes brasileiras pudessem vir a realizar seus projetos político-
ideológicos e defender seus interesses materiais por meio da cooptação de funcionários colhidos no
campo de outros setores sociais, como, por exemplo, os “setores sociais menos favorecidos”, para
além das camadas médias ou intermediárias.
Conforme nos mostrou Fernandes, a solução encontrada pelas classes dominantes para
barrar o ascenso da classe trabalhadora brasileira, no que se configurou como o desfecho do ciclo
democrático-nacional, consistiu num golpe e na consolidação de uma autocracia (FERNANDES,
1976, p. 297). Para Fernandes, a revolução burguesa no Brasil, diferentemente das revoluções
burguesas clássicas, não contou com o apoio expressivo das grandes massas populares. Antes,
impondo-se “pelo alto”, prescindindo da aliança com os “de baixo”, a burguesia e seus aliados
lograram impor seu domínio de classe com o seguinte ônus: a conformação de um bloco de classes
diminuto e sem legitimidade social.
Como veremos, será essa a principal questão que as classes dominantes brasileiras buscarão
resolver no período histórico imediatamente seguinte: a questão da legitimidade de seu domínio ou,
em termos gramscianos, a questão de sua hegemonia.
Segundo Iasi (2017), a solução para essa questão passou pela consolidação daquilo que
Florestan Fernandes previra como um dos desfechos, embora improvável, para a autocracia
burguesa: uma democracia de cooptação.
11Iasi
(2009), tratando do fenômeno de fusão da classe trabalhadora no ano de 1979, assim resumiu o ascenso grevista:
“Em 1978, começam as primeiras greves na Mercedes, na Ford e, depois, no dia 12 de maio, na Saab-Scânia. Em 1979,
já eram mais de três milhões de trabalhadores em greve em 15 estados brasileiros, entre metalúrgicos em São Paulo e no
Rio, cortadores de cana no nordeste, petroleiros, trabalhadores da construção civil, funcionários públicos (em 1979,
houve mais de 400 greves no funcionalismo público) e muitos outros” (2009, p. 5).
A estratégia desse ciclo nutriu-se da crítica ao etapismo da estratégia democrática e
nacional. Seu ponto nodal consistia em negar, a princípio, qualquer aliança com a burguesia,
colocando abertamente a questão do socialismo (IASI, 2011, 2012a, 2012b, 2017). Supunha -se que
o movimento articulado, sob direção da classe trabalhadora, de ampliação de direitos e de
participação política mediante a pressão dos movimentos sociais e da ocupação dos espaços no
Estado – sintetizado na metáfora da pinça (GUIMARÃES, 1990) – levaria ao conflito com os
interesses de nossas classes dominantes, histórica e estruturalmente inflexíveis (FERNANDES,
1976). “É desse choque que emergiria a necessidade do socialismo” (MARTINS et al., 2014, p.
360).
No entanto, sob o impacto da dissolução do bloco socialista e a queda do muro de Berlim
(NETTO, 2007), das derrotas do movimento sindical (MENEGUELLO, 1989), das transformações
impostas pela “reestruturação capitalista” (TUMOLO, 2002) e das disputas internas ao PT
(COELHO NETO, 2005), essa estratégia sofreu uma “inflexão conservadora” (IASI, 2012b).
Conforme Iasi observou, noutra ocasião,
A dinâmica dos ciclos da luta de classes não é determinada apenas pelas condições
estruturais de uma época revolucionária. As classes encontram-se imersas em
vetores conjunturais, em uma correlação de forças, bebem de uma herança política e
cultural, de maneira que sua própria ação conduz a desdobramentos que, nas
palavras de Engels, constituem um conjunto de ações e reações recíprocas que
levam a um ou outro desfecho, bem distinto daquele que se esperava (2009, p. 17-
18).
Dessa inflexão e seus impactos sobre os principais aparelhos criados pela classe
trabalhadora brasileira, trataremos na sequência do texto. Nesse momento, cumpre lembrar que,
ainda sob a vigência do regime ditatorial, com a crise mundial do início dos anos de 1970, a
economia brasileira entrou em recessão. As altas inflacionárias e o arrocho salarial impunham duras
condições de vida à classe trabalhadora. O “milagre econômico” chegava ao seu fim, sem que o
bolo fosse repartido. Essa situação minava as bases de sustentação do regime ditatorial e exigia uma
nova forma para a manutenção do domínio burguês, uma vez que a dominação burguesa no Brasil
encontrava dificuldades para manter-se sob a forma autocrática. Enquanto a alta cúpula do regime
militar dividia-se entre o recrudescimento do regime e a “abertura lenta, gradual e segura”, e a
grande burguesia monopolista debatia-se entre a repressão ao movimento sindical e a negociação
(IASI, 2009, p. 16), as classes subalternas brasileiras, dirigidas pela classe operária, gestavam, no
seio da sociedade civil, novos aparelhos.
Segundo Carvalho, cujo trabalho analisaremos mais adiante, quando tratarmos do
desenvolvimento da psicologia crítica no ciclo democrático-popular,
a forma-ditadura do Estado burguês não mais se sustentava economicamente; no
terreno da luta de classes, onde se decidem, ao fim das contas, os problemas de
economia, já estavam constituídos dois dos principais instrumentos de organização e
luta da classe trabalhadora brasileira no período: a CUT e o PT (2014, p. 91).
A CUT é outra das principais expressões do ciclo democrático-popular. Criada em 1983, ela
deu forma institucional ao “novo sindicalismo”, vindo a tornar-se a maior central sindical do país e
o principal instrumento de organização e luta da classe trabalhadora brasileira.
Pela importância da CUT enquanto instrumento de organização e luta da classe trabalhadora
brasileira no ciclo democrático e popular e pela centralidade desse aparelho na análise de caso que
faremos na seção seguinte, conceda o leitor que façamos um exame mais demorado de seu
desenvolvimento.
No livro Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação
capitalista, Tumolo (2002) desvelou os momentos do movimento que levou a política de formação
da maior central sindical do país a transformar-se de uma formação política classista e
anticapitalista numa mescla de formação instrumental e qualificação profissional.
Segundo o autor, esse movimento de capitulação correspondia à reorientação estratégica da
Central, como resposta política às transformações do mundo do trabalho e às derrotas do
movimento sindical que se acumularam ao longo dos anos de 1980 (idem, p. 102-106).
Como resultado desse movimento, a CUT acabaria por sucumbir às exigências imediatas
postas pela sociabilidade do capital, abandonando paulatinamente uma perspectiva classista e
anticapitalista, substituindo-a pela ideia do “sindicato cidadão”. O principal instrumento de
organização e luta da classe trabalhadora brasileira transformava-se, não sem divergências e
contradições internas, em elemento de cooptação e apassivamento.
Assim Tumolo resumiu as fases do desenvolvimento da Central:
A CUT decide pela implementação de uma política de formação profissional para “permitir
ao trabalhador desempregado voltar a trabalhar de forma digna” (idem, p. 192-195, grifos do
autor). A requalificação profissional passa, então, a ser concebida como tarefa dos próprios
trabalhadores e de sua central sindical, “um serviço de fundamental importância [...] para os
atingidos por desemprego decorrente de alguma modernização tecnológica” (idem, p. 195).
Como destacou Tumolo, nota-se que nessa formulação “há um vínculo direto e imediato
entre desemprego e qualificação profissional ou requalificação profissional, ou seja, essas últimas
são vistas como soluções para o desemprego, razão pela qual passam a ter uma importância
fundamental” (idem, ibidem).
Mas onde estaria o grande problema desse movimento? Ora, como nosso autor resume bem,
“não existe nenhuma comprovação empírica, a não ser localizada e conjuntural, de que a uma maior
e melhor qualificação da força de trabalho corresponda um incremento nas oportunidades totais de
emprego e, pode-se dizer também, de outras alternativas de renda” (idem, p. 197).
O fato é que a busca por respostas imediatas para o desemprego deu lugar às “políticas
alternativas”, que marcariam a inflexão conservadora realizada pela Central.
Uma das políticas alternativas mais expressivas consistiu na criação do Programa Integrar.
Segundo Maria Nilde Mascellani, principal formuladora do projeto pedagógico do Programa,
publicado sob a forma do livro Uma pedagogia para o trabalhador: o ensino vocacional como base
para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores desempregados
(Programa Integrar CNM/CUT),
Em meados de 1998, foi publicada, pela CUT [...] uma brochura do projeto
Formação Integral denominada “Trabalho e educação num mundo de mudanças” -
Caderno de apoio às atividades de Formação do Programa Nacional de Formação e
Capacitação de Conselheiros (TUMOLO, 2002, p. 200).
De acordo com Tumolo, as ideias ali expostas assemelhavam-se a “uma espécie de mistura
de aspectos de um projeto ‘nacional-social-democrata’ com elementos próximos de uma proposta
de socialismo utópico” (idem, p. 208), e que “a análise da realidade ali desenvolvida [...] só poderia
resultar em estratégias ilusórias e sedutoras” (idem, p. 211, grifos nossos). Além disso, segundo o
autor, todos os textos norteadores do Programa desprezavam a análise do modo de produção
capitalista em sua totalidade e processualidade históricas, resumindo-se todos, sem exceção, à
Vemos, assim, que o Programa Integrar, longe de ser uma política exclusiva da CUT,
contava com o apoio de organismos internacionais multilaterais, o que nos leva a crer que o
Programa fazia parte de um projeto político-estratégico de muito maior envergadura. Ao que nos
parece, ao promover a difusão de ideias e valores altermundistas no seio de um dos mais
importantes aparelhos de organização e luta da classe trabalhadora brasileira, colocando a
negociação, o diálogo, a solidariedade e a participação como legítimos sucedâneos da luta de
classes em nosso país, o Programa Integrar participava de uma estratégia política de âmbito
mundial, subordinando-se às diretrizes das tais “frentes móveis de ação internacional” examinadas
por Fontes (2010), entidades sob direção das classes dominantes do capital-imperialismo que
adquirem “relativa autonomia de atuação, embora ancoradas em seus Estados de origem”,
“abertamente sustentadas por generosas doações empresariais (e, em alguns casos, também
governamentais), mas sem vínculos diretos”, podendo “expressar interesses comuns de setores
diversificados” (idem, p. 174).
Essa hipótese, no entanto, não a exploraremos aqui, seja porque isso nos levaria longe de
nossos modestos propósitos, seja porque sua comprovação demanda o aprofundamento de nossa
pesquisa. Importante, agora, é sublinharmos que, mais do que expressão ou reflexo passivo do
movimento de inflexão conservadora da CUT e das principais objetivações do ciclo histórico
democrático e popular, o Programa Integrar parece-nos haver contribuído ativamente para a retirar
do horizonte político-estratégico da classe trabalhadora brasileira aquelas alternativas amparadas no
socialismo revolucionário, comprometido, como tal, com a superação do modo de produção
capitalista pela via da luta de classes e na perspectiva da emancipação humana.
Acontece que, além do PT e da CUT, muitos outros aparelhos participaram da consolidação
do ciclo democrático-popular. Alguns desses aparelhos foram criados pela própria classe
trabalhadora brasileira, em luta contra a autocracia burguesa. Outros aparelhos, por sua vez, criados
em circunstâncias diversas, passaram a compor o arco de alianças do PT e da CUT. Não temos,
obviamente, a pretensão de examiná-los todos. Gostaríamos apenas de mostrar de que maneira um
desses aparelhos, criado por aliados da classe trabalhadora, repercutiu sobre a história da psicologia
brasileira, dando lugar ao desenvolvimento de uma psicologia declaradamente comprometida com a
superação do mimetismo cultural e a subserviência aos interesses imediatos das classes
historicamente dominantes da formação social brasileira.
Esses resultados vão ao encontro da tese de Lacerda Jr. (2010), que mostrou de que maneira
o aparecimento de perspectivas críticas em psicologia esteve historicamente determinado pela
dinâmica da luta de classes, pelo ascenso da classe trabalhadora e por diversos movimentos
insurgentes contra as expressões mais imediatas do modo de produção capitalista.
Após mostrar que “O processo de desenvolvimento histórico da psicologia, enquanto ciência
independente, é incompreensível sem uma análise dos caminhos trilhados pela humanidade desde o
advento das revoluções burguesas” (idem, p. 40), o autor mostrou-nos como o marxismo, enquanto
teoria social comprometida com a superação do modo de produção capitalista, desempenhou papel
de destaque no processo de desenvolvimento da psicologia crítica. Segundo Lacerda Jr., “É com a
penetração do marxismo na psicologia que foram desenvolvidas as mais importantes críticas à
psicologia que ampliaram os horizontes da ciência e este processo encontrou, nas ofensivas
históricas do proletariado, sua força fundamental” (idem, p. 172).
O autor ainda indicou “a íntima associação entre, de um lado, a crítica marxista da
psicologia e, de outro, as tentativas de construir alternativas históricas ao capitalismo” (idem,
ibidem), mostrando haver uma relação concreta entre a história da psicologia e as experiências
revolucionárias encampadas pela classe trabalhadora. De acordo com Lacerda Jr.,
Indicador disto é que boa parte das limitações das críticas marxistas à psicologia
encontram, em última análise, sua raiz nas limitações das revoluções do século
passado. [...] na mesma medida em que as ofensivas proletárias foram cada vez mais
esmagadas ou marcadas por deformações resultantes de revoluções passadas, as
“alternativas” à psicologia tornaram-se cada vez menos “alternativas”; cada vez
mais próximas do pensamento moderno decadente e, portanto, voltaram a ter na
apologética sua força fundamental (idem, ibidem).
Essa íntima associação examinada por pelo autor entre a crítica marxista da psicologia e o
movimento de ascenso e descenso das ofensivas proletárias é do maior interesse para o exame do
movimento que apresentaremos na sequência do texto. Ela nos permite ver como o ciclo
democrático-popular entrelaça-se com o história da psicologia brasileira, a partir do exame do
surgimento de uma variante bastante peculiar de psicologia crítica: a assim chamada psicologia
sócio-histórica ou “Escola de São Paulo de psicologia social” (CARVALHO, 2014).
Vejamos. Em sua tese de doutorado A Escola de São Paulo de Psicologia Social: uma
análise histórica do seu desenvolvimento desde o materialismo histórico-dialético, incontornável a
quem se interesse pelo desenvolvimento da psicologia crítica brasileira, Carvalho (2014)
apresentou-nos em detalhes o surgimento e o desenvolvimento dessa variante da psicologia crítica
coetânea à abertura do ciclo democrático-popular.
Segundo o autor, por psicologia social da Escola de São Paulo devemos entender aquela
variante brasileira de psicologia que nasceu da crítica à psicologia social cognitiva, de matriz norte-
americana, hegemônica na década de 1950. Desenvolvida nas dependências do Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social (PEPG-PSO) da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) sob os impactos da ditadura empresarial-militar e da “crise da psicologia”
(idem, p. 64-101), seu corpus define-se pelo conjunto de reflexões teórico-metodológicas e de
pesquisas empírico-analíticas efetuadas pelo grupo de estudantes capitaneado por Silvia Lane
(1933-2006), sem prejuízo da diversidade das posições teóricas e dos engajamentos políticos de
seus membros. Afinal, como sublinhou Carvalho, “Tais autores e suas obras estão em relação de
unidade, mas não de identidade: entre eles, há apropriações e aprofundamentos muito diversos do
método histórico-dialético. A Escola de São Paulo é – como qualquer outra escola de pensamento –
uma unidade no diverso” (idem, p. 117).
O autor assim resumiu as quatro (principais) fontes da psicologia social da Escola de São
Paulo: “a) obras clássicas e contemporâneas do marxismo; b) as principais referências da Psicologia
Social Cognitiva; c) os autores de referência europeus da ‘Crise da Psicologia’ e, d) a leitura dos
autores soviéticos” (idem, p. 144).
Conforme nos mostrou Carvalho, essa redefinição da psicologia social prestava-se
declaradamente à transformação da realidade social brasileira na perspectiva da emancipação
humana.
Ainda segundo Bock, “Os psicólogos começavam a assumir lutas ao lado dos trabalhadores,
participando na reconstrução do movimento sindical e na construção da CUT” (idem, p. 81-88). A
psicologia assumia uma posição de classe. “Em 28 de agosto de 1983, com a presença e
participação do Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo, é fundada a CUT – Central Única
dos Trabalhadores. Em outubro desse mesmo ano, o Sindicato decide, em Assembleia, pela sua
filiação à Central.” (idem, ibidem)
Desde então, psicólogos que fizeram parte desse grupo têm participado da construção do
consenso em torno dos conceitos e valores do ciclo democrático-popular. Um exemplo é a própria
Ana Mercês Maria Bock, psicóloga formada nas dependências da PUC-SP, ex-aluna e ex-
orientanda de Silvia Lane e hoje professora titular dessa Universidade. Bock foi presidente do
Conselho Federal de Psicologia por três gestões e atualmente é presidente do Instituto Silvia Lane -
Psicologia e Compromisso Social. Na apresentação à 6ª edição do livro Psicologia Sócio-histórica:
uma perspectiva crítica em Psicologia, publicada em 2015, comentando algumas das mudanças na
realidade social brasileira desde a primeira edição do livro, em 2001, Bock dizia que
Outro psicólogo formado nas dependências da PUC-SP que se envolveu diretamente com a
construção e consolidação do ciclo democrático-popular e seus aparelhos foi Pedro Pontual. Pontual
foi diretor do Departamento de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República
do governo Dilma Roussef. Em entrevista para o CRP SP, em 2001, Pontual era apresentado como
“Psicólogo e educador, discípulo de Paulo Freire e atual secretário de Participação e Cidadania da
Prefeitura de Santo André, SP”, com “uma trajetória extensa e marcada pelo compromisso social”
(PONTUAL, n. p.). Na entrevista, ao ser questionado sobre o que é fazer política, Pontual
respondeu o seguinte:
Fazer política hoje é, para mim, colocar o instrumental profissional que construí,
como psicólogo e educador, a serviço do “empoderamento” das pessoas, como
indivíduos e como coletividade. Para quê? Primeiro para ampliar, aprofundar e
alargar os estreitos limites de nossa democracia. Um país não pode se contentar com
o direito de votar nos seus representantes. Isso é importante, uma conquista
fundamental, mas democracia é muito mais: significa cidadãos participando das
decisões que afetam seu cotidiano, como atores-protagonistas do espaço público. Há
muito que se caminhar nesse sentido. Construir esse espaço público, essa esfera
pública supõe construir cidadãos ativos, individual e coletivamente. Para mim, fazer
política hoje é apostar nisso (idem, n. p.).
Na entrevista, víamos que Pontual fez parte daquele grupo de estudantes que participou das
primeiras experiências inovadoras da psicologia da PUC-SP. Disse Pontual:
A entrevista ainda nos informava que Pontual integrou a equipe do Instituto Cajamar
(INCA), nada mais, nada menos que a primeira escola de formação da CUT (TUMOLO, 2002, p.
159 e ss.) 12, e que “acompanhou Paulo Freire na implantação do Projeto do Mova – Movimento de
Alfabetização de Jovens e Adultos – durante o governo de Luíza Erundina na Prefeitura de SP”
(PONTUAL, n. p.).
Mas deixemos Bock e Pontual para outra ocasião. Concentremos nossa atenção na produção
teórica e nas práticas de outro psicólogo da Escola de São Paulo, cuja relação com o PUC-SP, o
PEPG-PSO, a psicologia sócio-histórica e o ciclo democrático-popular, suas estratégias e seus
aparelhos, parece-nos fora de qualquer suspeita. Tomemos, como objeto de nossa análise, a teoria e
a prática do psicólogo, professor e pesquisador Odair Furtado, aquele mesmo que nos sugeriu
“avaliar a importância da militância em partidos de esquerda ou da própria influência que um
pensamento ou uma teoria revolucionária teria exercido sobre os promotores do pensamento crítico
na Psicologia a partir da década de 60” (FURTADO, 2009, p. 248).
Odair Furtado, presidente do Conselho Federal de Psicologia entre 2001 e 2004, é autor
destacado da psicologia sócio-histórica no que se refere às relações de trabalho. Formado pela PUC-
12De
acordo com Mascellani, no Instituto Cajamar foram realizadas as primeira etapas da capacitação pedagógica dos
professores e instrutores do Programa Integrar. (2010, p. 186)
SP, foi aluno de mestrado de Silvia Lane, tendo defendido a dissertação intiludada O Consumo via
TV de operários em São Paulo (1992).
Conforme consta em seu currículo Lattes 13, Furtado possui doutorado em Psicologia pela
PUC-SP, é professor do PEPG-PSO e do curso de graduação em psicologia da Faculdade de
Ciências Humanas e da Saúde. Filiado ao Departamento de Psicologia Social desde 1983, coordena
o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho e Ação Social (NUTAS) do PEPG-PSO e lidera o
grupo de pesquisa Trabalho e Ação Social, cadastrado no CNPq.
Os projetos de pesquisa e extensão registrados em seu currículo atestam a dimensão de seu
compromisso social. Da mesma maneira, os artigos, livros e capítulos de livros onde versa sobre
temas tão variados quanto consciência, subjetividade, psicologia sócio-histórica, reestruturação
produtiva, saúde mental, formação profissional, economia solidária, espaço público, qualificação,
participação, trabalho, ambientalismo, desemprego, entre tantos outros.
Evidentemente, não temos a intenção de analisar aqui toda sua enorme produção, resultado
do engajamento teórico e prático do autor por mais de trinta anos com a psicologia. Antes,
concentraremos nossa atenção em alguns documentos que nos parecem dar conta de sua
participação numa experiência que expressa de forma paradigmática, segundo nossa compreensão
atual, as formas pelas quais determinada variante da psicologia crítica brasileira contribuiu, no
último ciclo histórico e no atual estágio do capitalismo brasileiro, para a consolidação da hegemonia
burguesa no Brasil.
Vejamos. No caderno de resumos da XXIX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade
Brasileira de Psicologia (SBP) 14, os resumos da mesa-redonda Psicologia Social e do trabalho – a
alternativa popular15 traziam-nos um texto intitulado A qualificação profissional e a organização
dos trabalhadores: o caso do Programa Integrar da CNM/CUT. Num pequeno resumo, de
pouquíssimas linhas, Odair Furtado dizia-nos o seguinte:
Como “participante dessa experiência” (idem, p. 28), Furtado prometia-nos, ainda, “um
balanço da gestão sindical, como alternativa de gestão organizacional” (idem, ibidem), “a análise do
13Disponível
em http://lattes.cnpq.br/8136642011049373.
14Evento realizado entre os dias 28 e 31 de outubro de 1999 no lnstituto de Psicologia e Fonoaudiologia da PUC -
Campinas (SP).
15
A mesa-redonda contava ainda com a participação de Peter Spink, da FGV/SP, e Leny Sato, da USP, com resumos
intitulados, respectivamente, "Gestão popular - reconfigurando a gestão na perspectiva da psicologia coletiva" e "O
processo social de construção de cooperativas" (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA, 1999, p. 27-28).
significado e o sentido pessoal da experiência para o trabalhador desempregado que vem
participando do curso de Ensino Fundamental do Programa Integrar” (idem, ibidem) e afirmava que
a nova política da Central mostrava que “Os sindicatos devem se preparar para a nova etapa de
reestruturação produtiva e antecipar as consequências do efeito dessa reestruturação para o campo
dos trabalhadores” (idem, ibidem, grifos nossos).
Não encontramos, até o presente momento, registros da fala de Furtado em que pudéssemos
conferir o balanço e a análise prometidos. No entanto, no artigo Psicologia e compromisso social -
base epistemológica de uma psicologia crítica, resultado de uma conferência proferida no I
Congresso Paranaense de Psicologia Social – Práticas e perspectivas da Psicologia Social no final
do Século16, Furtado fez-nos o favor de retomar o relato de sua experência, como forma de
apresentar o que viria a ser, segundo sua compreensão, uma psicologia crítica, social e
politicamente comprometida. Vejamos, pois, o que nos conta nosso autor. Permita, o leitor, que o
deixemos falar à vontade.
Psicologia e compromisso social - base epistemológica de uma psicologia crítica começava
por uma pergunta em forma de provocação. Após recuperar um acontecimento conjuntural e afirmar
que “Conhecemos muito bem o argumento da neutralidade da ciência e já sabemos de seus efeitos”
(2000, p. 128), Furtado perguntava-nos o seguinte: “No campo da psicologia social,
particularmente, qual o grau de independência da produção científica da inevitável contaminação
ideológica?” (idem, ibidem)
Depois, após contemporizar com Louise Lhullier, Leôncio Camino e Salvador Sandoval,
que o autor definia como pesquisadores do comportamento político, Furtado passava a polemizar
com José Leon Crochik, a quem o autor atribuía o pessismo da Escola de Frankfurt. Dizia Furtado:
pode-se notar que o autor está apoiado na visão pessimista da Escola de Frankfurt a
respeito da (im)possibilidade da construção de uma alternativa ao capitalismo dentro
do próprio capitalismo. Somente com este comentário podemos abrir uma grande
polêmica sobre os caminhos das gerações que sucederam a Adorno e Horkheirmer.
Habermas em A Teoria da ação comunicativa, (1994) discute exatamente a
possibilidade da construção de alternativa através do “entendimento” (idem, p. 129).
16Evento
realizado na cidade de Londrina (PR) entre os dias 4 e 6 de novembro de 1999 e promovido pela ABRAPSO –
Núcleo de Londrina. O artigo fora publicado em dezembro do ano seguinte (2000).
negação do capitalismo faz parte de uma dinâmica dialética que está presente no
próprio desenvolvimento e superação do modo de produção (idem, ibidem).
A teoria do partido operário como direção das massas formulada por Lenin no início
do século, a despeito das críticas que sofre atualmente, é a única teoria da
organização revolucionária que temos até hoje. Mesmo toda a discussão em torno
das alternativas que surgiram nos últimos tempos como a FARC na Colômbia, os
verdes na Alemanha, Zapatistas no México ou o PT no Brasil, tem como referência a
teoria leninista de organização (mesmo quando se trata de negá-la) (idem, ibidem).
Após inventariar o que considerava serem os poucos modelos revolucionários até então
existentes – o modelo da “revolução de massas”, da Rússia; da “organização de um exército
revolucionário”, na China; do modelo “foquista”, em Cuba; da “experiência em curso na Colômbia”
(idem, ibidem) – e concluir pelo fracasso de todos os movimentos revolucionários do período da
guerra fria, Furtado observava que,
Ao mesmo tempo, novas táticas foram sendo construídas pelo movimento popular
ou pelas vanguardas políticas. É o caso das lutas no campo do feminismo pela
igualdade de direitos, a organização dos homossexuais, lutas ecológicas, lutas por
direitos do cidadão (como é o caso dos consumidores), a constituição de
organizações que lutam por direitos humanos, a luta pela terra como ocorre com o
Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil etc. (idem, ibidem)
Depois de fazer uma rápida incursão pela vida e pela obra de Martín-Baró e aproximar a
perspectiva do autor àquela de Paulo Freire, Furtado concluía que a tarefa do psicólogo
politicamente comprometido, segundo Martín-Baró, seria “buscar a (re)constituição da identidade
social do trabalhador” (idem, p. 222), a “conscientização do trabalhador explorado e alienado de
sua condição social” (idem, ibidem), uma “ação social no sentido de transformar ou construir uma
verdade política e social” (idem, ibidem), baseada na pesquisa científica “crítica aos campos
científicos que apresentam uma tendência a-histórica, individualista e universalista” (idem, ibidem).
Em seguida, Furtado dizia que “Martín-Baró não teve oportunidade de viver os tempos
atuais e a nova ordem mundial dominada pela política neoliberal que, traduzida, representa a
hegemonia do projeto pós-capitalista depois da queda do muro de Berlim” (idem, p. 223, grifos
nossos). Nosso autor concluía pela semelhança entre os projetos de Martín-Baró, Paulo Freire e
Silvia Lane, e passava a expor algumas possibilidades, segundo seu entendimento, de atuação
“comprometida politicamente” (idem, p. 225).
Trazendo à baila Habermas, Ricoeur e Gramsci 17, aparentemente como exemplos de autores
importantes para a compreensão da “nova ordem mundial”, assim dizia nosso autor:
Inscrevendo-se na vertente aberta por Ignácio Martín-Baró, Silvia Lane, Maritza Montero e
Fernando González Rey, Furtado sugeria que a psicologia crítica resgatasse Gramsci, uma vez que
sua obra “representa um marco no campo do compromisso dos intelectuais, que ele denomina como
intelectuais orgânicos, que fazem aliança com as classes trabalhadoras, camponesas e populares.”
(idem, ibidem)
Na sequência, ao comentar o trabalho de iniciação científica de uma de suas alunas sobre a
militância nos “novos movimentos sociais”, Furtado dizia-nos que a “nova conjuntura econômica” e
a “reordenação do Estado (política do Estado mínimo)”, a “presença cada vez maior do 3° setor” e
“a abertura do mercado profissional” seriam fatores de profissionalização da intervenção social do
psicólogo (idem, ibidem).
Logo em seguida, nosso autor retomava o relato de sua experiência junto ao Programa
Integrar. Dizia Furtado:
17
De cuja ausência na psicologia o autor lamentava-se. Mais tarde, ao tratar do estado atual da psicologia crítica,
Furtado retornaria a lamentar a ausência de Gramsci na psicologia: “Temos também hoje a releitura de Georg Lukács e
de Antonio Gramsci. O primeiro usado muitas vezes como exemplo de submissão ao stalinismo e o segundo como pré-
mentor do eurocomunismo. Mas a potência de Lukács tem sido retomada como forma de discussão do sujeito – sobre a
consciência de classe e a ontologia do ser social. E o segundo vem sendo muito usado, particularmente no campo da
educação. Curioso pensar que fora Adorno e Horkheimer, nunca ouvimos falar dos outros autores na Psicologia.
Curioso porque a educação, a economia, as ciências sociais não prescindem desses autores para exercitar o pensamento
crítico. Por que a Psicologia não precisa deles? Acho que temos aqui um sinal!” (2009, p. 244)
para a política neoliberal do Governo Brasileiro (2003, p. 226, grifos nossos).
Pois é precisamente a ideia da vigência de uma “nova ordem” que vem imediatamente na
sequência do texto. Apoiado sobre as transformações da economia e da política brasileiras, Furtado
admitia a existência de uma “nova realidade” social, cuja repercussão sobre a consciência do
trabalhador caberia ao psicólogo investigar. Com naturalidade, nosso autor deduzia a necessidade
de adequar a prática da Central às exigências dessa “nova realidade” e suas correspondentes novas
experiências. Eis aí o sentido, para Furtado, do Programa Integrar. Dizia nosso autor:
18Mascellani
reforçou a centralidade do conceito. Segundo a autora, “A área de Reestruturação Produtiva foi
considerada o core curriculum. Como tal, ela deveria relacionar seu conteúdo com os das demais áreas, na sequência,
de modo diferenciado, conforme se tratasse deste ou daquele conteúdo. [...] O core curriculum situado nas questões de
Reestruturação Produtiva forneceu conceitos norteadores [...], por exemplo: automação, globalização, flexibilização,
competitividade etc.” (2010, p. 191-192).
Nosso autor apresentava-nos, ainda, alguns resultados da experiência, dando a entender que
o Programa Integrar mostrava alcançar os objetivos previamente estabelecidos. Assim nos dizia
Furtado:
Furtado aproveitava a ocasião para reafirmar seu compromisso social, deixando bem claro
que não se tratava de superar o histórico elitismo da psicologia a partir de uma clara posição de
classe, mas a partir de um compromisso com toda a sociedade. No melhor estilo conciliador,
situando-se ao centro no rigue da luta de classes, dizia Furtado:
Furtando-se da tarefa de definir qual seria essa psicologia que, sob o capitalismo, poderia
ausentar-se de uma determinada posição de classe, assim concluía nosso autor:
Abre-se aqui uma discussão sobre que psicologia é essa que teria um caráter geral
que atendesse a toda a população. Não sei a resposta. Ela está para ser construída a
19No
texto, o autor afirma expressamente evitar o termo “consciência de classe” (idem, p. 227).
partir das próprias condições materiais em que o fenômeno psicológico é construído.
Por isso temos discutido a necessidade da construção de uma psicologia latino-
americana. Uma psicologia que responda concretamente ao campo de nossa
subjetividade (idem, ibidem, grifos nossos).
Até o momento, assim poderíamos resumir o percurso realizado por nosso autor: após uma
rápida referência à teoria da ação comunicativa de Habermas como forma de superação do
pessimismo frankfurtiano e seu embargo à possibilidade de construção de alternativas ao
capitalismo dentro do próprio capitalismo (mas recusando o campo dos reformistas e dos pós-
modernos), e de uma igualmente rápida menção à obra de Gramsci e de sua importância para uma
psicologia crítica, Furtado traçou considerações sobre os fracassos revolucionários durante a guerra
fria. A partir daí, propôs que levássemos em consideração as novas táticas e formas de luta dos
assim chamados “novos movimentos sociais”, dentre os quais o autor incluía o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Comentando a experiência junto ao Programa Integrar,
nosso autor sugeria-nos que o mesmo representava uma alternativa, na medida em que permitiria
adequar a CUT às experiências de outra ordem vividas pelos trabalhadores metalúrgicos,
consequência da vigência de uma nova ordem social, marcada, fundamentalmente, pela
reestruturação produtiva. Essa readequação implicaria a construção de uma nova psicologia,
comprometida não apenas com uma classe social, mas com toda a sociedade, uma psicologia de
caráter geral que estivesse disponível para toda a população e que respondesse às demandas de
nossa subjetividade.
O relato da experiência foi retomado por Furtado em Psicologia e relações de trabalho: em
busca de uma leitura crítica e uma atuação compromissada, capítulo de livro organizado por Ana
Mercês Bahia Bock e intitulado A perspectiva sócio histórica na formação em psicologia (2003). A
natureza do texto (capítulo) e a distância de Psicologia e relações de trabalho… em relação à
experiência do autor fazia-nos crer que se tratava do resultado de uma reflexão mais aprofundada.
Escrito, provavelmente, sob a comoção da vitória eleitoral do PT, o texto de fato revelava outros
aspectos da participação de nosso autor no Programa Integrar que nos parecem importante destacar.
Em Psicologia e relações de trabalho: em busca de uma leitura crítica e uma atuação
compromissada, víamos, uma vez mais, que no cerne de toda essa experiência encontrava-se o
conceito de “reestruturação produtiva”. Segundo as palavras de Furtado, "o centro dessa discussão é
a reestruturação produtiva, porque se trata do pólo crítico desse processo" (FURTADO, 2003, p.
229-230).
“Reestruturação produtiva, precarização do mercado de trabalho e subjetividade” (idem, p.
227), eis a tríade em torno da qual se estruturava a teoria e a prática política e socialmente
comprometida de nosso autor.
Furtado fazia uma avaliação geral da situação nacional, focalizando as áreas afetadas pela
“reestruturação produtiva”. Segundo nosso autor, “Nestas regiões encontraremos o desemprego
tecnológico e, ao mesmo tempo, trabalhadores sem a qualificação necessária para ocupar postos de
trabalho na indústria reestruturada tecnologicamente” (idem, p. 228). “Para complicar um pouco
mais este cenário, as cidades de grande porte no Brasil apresentam a tendência de caminhar para o
campo dos serviços” (idem, ibidem).
por que falar em relações de trabalho e não em psicologia organizacional como tem
sido mencionado atualmente, ou psicologia industrial, como já foi conhecida a
matéria quando foi introduzida no Brasil, por volta de 1929, ou, ainda, psicologia e
recursos humanos? A resposta é simples, porque está na hora de construirmos um
referencial, no campo da psicologia, para trabalharmos do ponto de vista do
trabalhador (idem, p. 213).
Noutros momentos, Furtado mostrava não haver contradição alguma, uma vez que não se
tratava de assumir uma posição de classe, mas apenas de incluir o ponto de vista do trabalhador.
Mesmo porque, segundo sua avaliação, a própria ideia da classes sociais parecia “superficial e
simplista”. Assim se exprimia Furtado:
Não se trata, portanto, de uma mera divisão classista na qual uns optam pelo
capital e outros pelo trabalho. A questão tem outro enfoque, menos superficial e
simplista. Estamos procurando resgatar uma lacuna, eventualmente explorada, mas
não de forma sistemática. Trata-se da elaboração de pensamento crítico que procure
enfocar as relações de trabalho do ponto de vista do trabalhador (p. 215, grifos
nossos).
Para Furtado, essa posição supraclassista (ou anticlassista) encontrava na realidade seu
fundamento. Segundo seu ponto de vista, a “nova realidade” do trabalho, impactada pelas novas
tecnologias da informática e da robótica, estaria superando essa “superficial e simplista” divisão da
realidade social em classes sociais antagônicas. Afinal, para o nosso autor,
Ao que nos parece, enquanto com a mão direita Furtado acenava para a inclusão e a
participação social, com a outra ia acenando para a “pedagogia do aprender a aprender” e as teses
sobre a “sociedade de conhecimento”, aquela mesma em que a educação volta-se para “a formação,
nos indivíduos, da disposição para uma constante e inefatigável adaptação à sociedade regida pelo
capital (DUARTE, 2008, p. 11). Daí, talvez, o porquê da insistência de nosso autor na
qualificação/requalificação da classe trabalhadora como alternativa ao desemprego e às políticas de
Estado mínimo do governo brasileiro. Afinal, segundo Furtado,
Essa nova dinâmica produtiva exige um trabalhador mais preparado e mais crítico
em relação às tarefas que desempenha. Exige-se do trabalhador uma formação para
o trabalho mais flexível e capacidade de adaptação às mudanças de tarefas (2003, p.
215).
Furtado dava-nos um exemplo dessa “nova realidade” do mundo do trabalho, onde a luta de
classes passaria ao segundo plano nas relações entre “empresários” e “empregados” (idem, p. 215).
Um exemplo dessa posição foi dado pela Rhodia do Brasil, quando organizou o
seminário Empregabilidade e educação: novos caminhos para o mundo do trabalho.
Para este seminário convidaram antropólogos, educadores, sociólogos, psicólogos,
economistas, cientistas políticos, representantes do mundo do trabalho como
organizações sindicais, centros formativos dos trabalhadores, Dieese etc. A maior
parte dos convidados falava do ponto de vista do campo do trabalho e não do campo
do capital. Comentavam experiências, sobre formação do trabalhador, realizadas
pela Rhodia no Brasil e outras experiências realizadas na França, Holanda e Estados
Unidos que foram consideradas experiências de ponta na formação de trabalhadores
(idem, p. 215-216).
A conclusão impunha-se ao autor com comovente naturalidade, por fidelidade aos seus
irrevogáveis princípios neomarxistas. Segundo lhe parecia, todas essas mudanças no mundo do
trabalho exigiam mudanças no mundo das ideias, cabendo à psicologia crítica a sensibilidade para a
compreensão desse processo. Dizia nosso autor, mostrando uma vez mais sua convicção quanto ao
fato de vivenciar uma nova ordem social:
Aliás, quanto a esse respeito, convém observar de passagem que a referência ao complexo
categorial marxista permanece uma constante na obra de Furtado, desde seus primeiros trabalhos.
Mesmo porque, como nos mostrou Carvalho, a incorporação das teses do neomarxismo não implica,
antes supõe, a permanência da referência ao complexo categorial de Marx, embora mutilado e
completamente desfigurado, subtraído de suas determinações histórico-concretas. Como nos
lembrou o autor, remetendo-nos a uma observação feita por Mézáros,
cumprimentando Marx com a mão esquerda e dando-lhe um tapinha nas costas que
simultaneamente o relegava à era irrevogavelmente passada do “capitalismo liberal”,
Habermas procedeu, em nome da “atualização” do marxismo, à eliminação de todos
os princípios fundamentais de Marx (MÉSZÁROS apud CARVALHO, 2014, p.
209-210).
Não construir estratégias subjetivas para enfrentar a crise quer dizer que [os
trabalhadores] não conseguem desvelar o campo ideológico, que encobrem as
relações de trabalho e que individualizam a origem do problema, que é função da
crise econômica e da reestruturação produtiva. O sentido pessoal do sujeito fica
preso a um campo de significados que está reificado pela própria alienação do
trabalho, transformado em mercadoria (idem, p. 235, grifos nossos).
Sempre “em busca de alternativas” (idem, p. 235), Furtado mostrava haver chegado à
economia solidária, aquela mesmo que, segundo Singer, permitiria, “ao cabo de alguns anos, dar a
muitos que esperam em vão um novo emprego a oportunidade de se reintegrar à produção por conta
própria, individual ou coletivamente” (apud TUMOLO, 2002, p. 204). De acordo com nosso autor,
A uma teoria em psicologia social não basta compreender o mundo, é preciso estar
compromissada com a sua transformação. Temos buscado esse compromisso através
de nossa prática cotidiana, e com relação ao mundo do trabalho temos buscado duas
saídas básicas de compromisso social. A primeira está relacionada com o campo da
Economia Solidária e a constituição de cooperativas populares (FURTADO, 2003,
p. 235).
Para nosso autor, vivendo sob a “nova ordem” do assim chamado capitalismo tardio,
“produtor de uma complexidade social que exige uma maior sofisticação da intervenção política”
(2000, p 225),
A constituição de coorperativas populares permitiria a elaboração de redes de
cooperativas que, ao mesmo tempo que passam a representar uma alternativa de
renda, passam a representar também uma nova forma de sociabilidade que leva em
consideração a solidariedade. No limite, as redes transformariam o próprio campo
social, transformando a sociedade (FURTADO, 2003, p. 236, grifos nossos).
Furtado concluía seu capítulo apresentando-nos, ao lado das cooperativas baseadas em laços
de solidariedade, o diálogo e o esclarecimento como partes dessa inovadora solução para o
desemprego e seus impactos sobre a classe trabalhadora brasileira, uma vez que os mesmos
permitiriam, ao fim e ao cabo, a “retomada da inserção do sujeito no cotidiano” (item, p. 237, grifos
nossos). Dizia-nos nosso autor:
Façamos, agora, um resumo do percurso realizado por nosso autor: Furtado retomou a
centralidade do conceito de "reestruturação produtiva" para a compreensão da suposta "nova
ordem" ou "nova realidade" social do capitalismo tardio ou da hegemonia do projeto neoliberal do
capitalismo do pós-guerra fria. Entre as marcas dessa nova ordem mundial estariam o desemprego
tecnológico, a falta de qualificação dos trabalhadores, o crescimento do setor de serviços, a
modernização das empresas... Um novo capitalismo parecia demandar ao autor uma nova
psicologia. Uma vez que Furtado mantinha-se, aparentemente, convicto de seus princípios
marxistas, materialistas e dialéticos, um novo capitalismo demandava uma nova psicologia marxista
ou, o que parecia dar no mesmo, uma psicologia... neomarxista. Importava, para nosso autor, que
essa psicologia não fosse individualista, conservadora e elitista, mas sócio-histórica, progressista e...
"populista", ou melhor, que ela estivesse disponível para toda a população. Em tempos de
interlocução entre o capital e o trabalho, promovida, segundo Furtado, pelas novas tecnologias e
pela nova atitude empresarial, nosso autor recomendava o diálogo e o esclarecimento. A
qualificação/requalificação e, em último caso, a busca de novas fontes de renda, através de redes de
solidariedade e cooperativas populares, seriam os corolários de novas estratégias subjetivas
construídas pelos trabalhadores em face de um mundo em mudanças. Essas e outras ideias fariam
parte da contribuição daquilo que Furtado entendia ser os “intelectuais orgânicos”, orgânicos,
aparentemente, pelo fato de colocarem-se a serviço das classes subalternas.
De tudo quanto disse nosso autor, destacamos três pontos que nos parecem bastante
problemáticos: a saber, sua opção pelos conceitos de “reestruturação produtiva” e “neoliberalismo”
para explicar as transformações pela quais passavam a economia e a política brasileiras, apoiada
sobre a convicção de que a “nova ordem mundial” daria lugar a uma nova relação entre capital e
trabalho, marcada pela maior interlocução entre ambos; as propostas de qualificação/requalificação
profissional e de economia solidária como alternativas ao desemprego e como processos
socialmente emancipatórios; a concepção de Furtado sobre a função dos intelectuais orgânicos junto
às classes subalternas e a proposta de uma nova psicologia adequada aos novos tempos, colada à
realidade social e às demandas imediatas e cotidianas de nossa subjetividade.
Vimos que, para Furtado, o conceito-chave para a compreensão dessa “nova ordem mundial
dominada pela política neoliberal” (2000, p. 225) era o conceito de “reestruturação produtiva”
(1999, p. 28; 2003, p. 227, 229-230, 232-233, 235). Como nos mostrou Tumolo, a partir de extensa
pesquisa bibliográfica realizada entre 1995 e 1999 (período em que se iniciava a Programa
Integrar), a unanimidade em torno do reconhecimento das transformações pelas quais passavam os
processos e as relações de produção no Brasil não eram garantia de sua compreensão, servindo,
antes, de motivo para a formulação de “estratégias ilusórias e sedutoras” (2002, p. 211). Dizia
Tumolo, à época:
Na atualidade, parece haver uma grande unanimidade: o mundo passa por profundas
e avassaladoras transformações. Se tal constatação é empiricamente verificável –
somos todos atingidos cotidianamente pelos efeitos dessas mudanças –, a
compreensão desse fenômeno em seus elementos essenciais e, mais do que isso, a
apreensão da dinamicidade desses elementos é uma tarefa nada fácil e, a bem da
verdade, ainda incipiente. (idem, ibidem)
20A funcionalidade da ideologia da qualificação profissional para a reprodução do status quo foi evidenciada por
Lacerda Jr. e Guzzo na discussão que fizeram sobre as tensões e contradições da experiência cotidiana. A partir da
análise da história de vida de uma trabalhadora envolvida em processos de luta por moradia, concluíam os autores:
“María apunta para la capacitación individual como un medio de garantizar la supervivencia en la realidad. Para ella
conseguir un salario mejor depende de la profesión y esta depende de experiencias de empleos anteriores o de estudios.
Ella cree que la garantía de una buena educación permitirá a sus hijos una vida mejor porque así podrán enfrentar el
mercado. De esta forma no es el orden social el que delimita el campo de posibilidades de realización del individuo sino
la capacitación del mismo. Al decir que una buena educación garantiza una vida mejor ella constata el hecho de que los
sectores más elitistas de la sociedad son los “más calificados”. Lo que ocurre el la apropriación de un aspecto aparente
de la realidad: los que tuvieron “éxito”, tuvieron una “buena educación” y esto fundamenta la noción de que la
educación es una vía para garantizar el “éxito”. Todavía, lo que María no percibe es que los privilegiados son los que
definem lo que es una buena educación y las condiciones de accesso a ella” (2012, p. 144).
pedagógica que se assenta sobre a noção de cidadania e de inclusão social. (FURTADO, 2000, p.
226-227, grifos nossos).
Quanto à interpretação dada para o papel dos intelectuais orgânicos, os problemas não nos
parecem menores. Pois o papel dos intelectuais em aliança com as classes subalternas não deve
significar a deferência acrítica aos seus interesses, ideias, valores e temores imediatos. Não se trata
de colocar-se a serviço das classes subalternas, mas de colocar-se a serviço da emancipação da
classes subalternas, o que implica, como vimos, mais do que um simples compromisso “social” ou
“ético-político” 21, uma estratégia político-revolucionária. Mesmo porque, ser psicólogo implica,
necessariamente, ser sujeito ou objeto de alguma estratégia política. Como observou Gramsci,
“Numa determinada sociedade, ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entendam
organização e partido num sentido amplo, e não formal” (2011, p. 272). Nesse sentido, estamos
novamente de acordo com Fernandes, quando o sociólogo paulista observava que “Ser ‘intelectual
orgânico das classes trabalhadoras’ é uma opção política. Mas, não se pode fazer essa opção e ficar
numa ‘prática teórica’ crítica ou rebelde que se compõe com a reprodução da ordem burguesa e com
o Estado capitalista.” (in AMMANN, 1980, p. 13)
Considerações finais
21Conforme
sintetizou Carvalho, resumindo antigas considerações de Sawaia, “O compromisso político não pode
assumir a forma de populismo, ou seja, não pode simplesmente ser o carimbo das ações e valores populares como se os
explorados fossem em si e para-si já portadores da verdade histórica. O respeito ao saber popular não deve excusar-se
de enxergar neste mesmo saber popular um veículo de ideologia também condicionado pelas determinações gerais da
exploração” (2014, p. 127).
contribuindo para a consolidação de uma posição contrária aos interesses imediatos daqueles que
envidaram esforços para sua construção. (IASI, 2012a, 2012b, 2017; TUMOLO, 2002)
Temos procuramos, portanto, dar continuidade aos resultados da pesquisa de Carvalho
(2014), que chegou à seguinte conclusão, após exame de algumas das formulações de Lane, Ciampa
e Sawaia:
Nossa pesquisa tem investigado de que maneira esse transformismo deita raízes nas
modificações pelas quais passaram a economia e a política brasileiras.
Temos também examinado de que maneira essa metamorfose articula-se com as lutas
travadas pelo conjunto de nossas classes subalternas, com suas derrotas e vitórias, avanços e recuos,
alianças e litígios. De modo geral, vínhamos interpretando todo esse processo como mero reflexo,
no pensamento psicológico brasileiro, da superfície dessas modificações, base empírica donde
retirava sua eficácia ideológica e sua força persuasiva. No entanto, os resultados a que chegamos até
o presente momento têm revelado que esse processo de metamorfose ultrapassa em muito o estatuto
de mero reflexo passivo. Conforme procuramos evidenciar, essa transformação também contribuiu
ativamente para reforçar as mesmas modificações da qual foi expressão, orientando psicólogos na
direção da consolidação do referido ciclo.
A história do desenvolvimento da psicologia crítica brasileira, quando considerada sob esse
prisma, tem conduzido nossa pesquisa às seguintes perguntas: qual teria sido o papel da psicologia
crítica brasileira na formação do grande consenso em torno da limitação da participação aos quadros
da institucionalidade burguesa? Não teria ela, sobretudo ao avançar sobre as políticas públicas,
servido à consolidação do ciclo democrático-popular e, consequentemente, à revelia de toda boa
intenção, contribuído para o apassivamento da classe trabalhadora?
Temos trabalhado para a compreensão desse processo histórico, procurando conhecê-lo na
riqueza de suas mediações e de seus condicionantes sociomateriais. Sempre, é claro, na perspectiva
de contribuir para o projeto de construção de uma sociedade livre das opressões e da exploração.
Interessados que somos pelo fenômeno da ideologia, da alienação e seus congêneres
(fetichismo, reificação etc.), e dado nosso engajamento em processos de educação popular e
formação política, temos dedicado nossa pesquisa à compreensão desse movimento de inflexão,
onde a psicologia comunica-se diretamente com o conjunto das lutas da classe trabalhadora
brasileira. Mesmo porque, como observou Patto,
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