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TOMAS MALDONADO DESIGN INDUSTRIAL Um exame rigoroso que procura extirpar as ambiguidades relativas definigao de design industrial e que — nao pretendendo apenas fazer historia — amplia 0 espago de intervengao que situa o design industrial no campo das realizagées estéticas. O ARTE & COMUNICACAO Arte e Comunicagao representam dois conceitos inseparaveis. Deste modo, retinem-se na mesma coleccdo obras que abordam a Estética em geral, asdiferentesartesem particular, osaspectos sociolégicos e politicos da Arte, assim como a Comunicaga&o Social e os meios que ela utiliza. ARTE E COMUNICACAO 10. I. 12, 13, 14, 15, 16. 1. 18, 19. 20. 21 22 23. 24, 25, 26. 21. 28, 29, 30. 31 32, 33, 34, 35; 36, 37. 38 39, 4 2. 43, 45. 47. a8 49, Design e Comunicagdo Visual, Beuno Munari A Reulizagio Cinematogrifica, ‘Terence Mamer Modos de Ver, John Berger Projecto de Semiética, Emilio Garroni Arte e Técnica, Lewis Mumford Novos Ritos, Novos Mitas, Gillo Dorfles Histéria da Arte e Movimentos Sociais, Nicos Hadjinicolan Os Meios Audiovisuais, Marcello Giacomantonio Para uma Critica da Economia Polttica do Signo, Jean Baudrillard A Comunicagao Social, Olivier Burgelin A Dimensao Estética, Herbert Marcuse A Camara Clara, Roland Barthes A Definigdo da Arte, Umberto Eco Teoria Estética, Theodor W, Adorno A Imagem da Cidade, Kevin Lynch Das Coisas Nascem Coisas, Bruno Munati Convite & Miisica, Roland De Candé Educacdo pela Arte, Herbert Read Depois da Arquitectura Moderna, Paolo Portoghesi Teorlas sobre a Cidade, Marcella Delle Domne Arte e Conhecimento, Jacob Bronowski A Miisica, Roland De Candé A Cidade ¢ 0 Arquitecto, Leonardo Benevolo Histdria da Crhica de Arte, Lionello Ventuci A Kleia de Arquitectura, Renato De Pusco Os Miisicos, Roland De Candé Teorias do Cinema, Andrew Tudor O Ultimo Capitulo da Arquitectura Moderna, Leonardo Benevolo 0 Poder da Imagem, René Huyghe A Arquitectura Moderna, Gillo Dorfles Sentido e Destino da Arte ~ I, René Huyghe Sentido e Destino da Arte ~ il, René Huygue A Arte Abstracta, Dora Vallier Ponto, Linha, Plano, Wassily Kandinsky O Cinema Especticulo, ada Curso da Bauhaus, Wassily Kandinsky Imagem, Visio e Imaginagdo, Pierie Franeastel A Vida das Formas, Henri Focillon Elogio da Desarmonia, Gillo Dorfles A Moda da Moda, Gillo Dorfles Impressionismo, Pierre Francastel A date Neobarroca, Omar Calabrese A Arte do Cinema, Rudolf Arnheim |. Enfeitada de Sonhos, Elizabeth Wilson A Coquetterie, ou A Paixdo do Pormenor, Catherine N’diaye Uma Teoria de Parddia, Linda Hutcheon Emotion Pictures, Wim Wenders © Boxe, Joyce Carol Oates Introducao ao Desenho indusirial, Gillo Dorites 50, A Légica das Imagens, Wim Wenders 51. O Nove Mundo das Imagens Electrénicas, Guido e Teresa Aristarco © Poder do Centro, Rudolf Amnbeim Scorsese por Scorsese, David Thompson e Jan Christie 54. A Sociedade de Conswno, Jean Baudrillard 58. Introdugio a Arguitecura, Leonardo Benevolo 56. A Ante Gotica, Wilhelm Worringer 57. A Perspectiva como Forma Simbélica, Enwin Panofsky 58. Do Relo Musical, Eduard Gusdort 59. A Palavra, Georges Gusdort 60, Modos é& Madas, Gillo Dorftes 61. A Troca Simbélica ¢ a Morte Jean Baudrillard 62. A Estética, Denis Huisman 63. A Troca Simbélica e a Morte ~ II, Jean Baudrillard 64. Como se Lé wana Obra de Arte, Omar Calabrese 65. Etica do Construir, Mario Botta 66. Gramdtiea da Criagao, Wassily Kandinsky 67. O Puturo da Pintura, Wassily Kandins 68. Introdugao & Andtise da Imagem, Martine Joly 69. Design Industrial, Tomas Maldonado 70, O Museu Imagindrio, André Malraux 71, A Alegoria do Patriménio, Frangoise Choay 72. A Fotografia, Gabriel Bauret 13. Os Filmes na Gaveua, Michelangelo Antonioni 74, A Amiropologia da Arte, Robert Layton 75, Filosofia das Artes, Gordon Graham 76. Histéria da Fotografia, Pierre-Jean Amat 77. Minima Moralia, Theodor W. Adorno 78, Uma Introducto a Estetica, Dabney Townsend 19, Historia da Arte, Xavier Barral i Altet 80. A Imagem e a Sua Interpretacdo, Martine Joly 81, Experiéncia ¢ Criagito Antstica, Theodor W. Adorno 82. As Origens da Arquitectura L. Benevolo e B. Albrecht 83. Artista e Designer, Bruno Munari 84. Semidtica da Publicidade, Ugo Volli 85. Vocabuldrio de Cinema, ‘Marie-Thérése Journot 86. As Origens da Pés-Modernidade, Perry Anderson 87. A Imagem e as Signos, Mattine Joly 88. A Imvengiio de Moda, Massimo Baidini 89. Ver, Compreender e Analisar as Imagens, Laurent Gervereau 90. Fantasia, Bruno Munari 91. Histéria da Linguagem, Julia Kristeva 92. Brevidrio de Estética, Benedetto Croce 93. A Invengdo da Paisagem, Anne Cauquelin he DESIGN INDUSTRIAL ‘Titulo original: Disegno Industriale: un riesame © Giangiacomo Feltrinelli Editore, 1991 ‘Tradugio: José Francisco Espadeiro Martins Capa: FBA Depésito Legal n® 248043/06 Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogagéo na Publicagao MALDONADO, Tomas, 1922- Design industrial. - Reimp. - (Arte & comunicagio ; 69) ISBN 978-972-44-1331-0 CDU 7.05 Impress ¢ acabamento: PENTAEDRO para EDIGOES 70, LDA. Fevereiro de 2009 ISBN: 978-972-44-1331-0 ISBN da I* edigao: 972-44-1006-4 Direitos reservados para Portugal por Edigdes 70 EDICOES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 — 1° Esq? - 1069-157 Lisboa / Portugal Telefs.; 213190240 — Fax: 213190249 e-mail: geral@edicoes70 pt wwwedicoes70.pt Esta obra est4 protegida pela lei, Nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocdpia e xerocépia, sem prévia autorizagiio do Editor. Qualquer transgressio a lei dos Direitos de Autor seré passfvel de procedimento judicial, TOMAS MALDONADO DESIGN INDUSTRIAL Prefacio da edic&o italiana de 1991 Jihad muito tempo que tinha a intengdo de rever a redacgao deste ensaio, publicado inicialmente como entrada na Enciclopedia del Novecento, da Treccani. A primeira edigdo em forma de livro foi publicada pela Feltrinelli em 1976, com autoriza¢ao do Istituto della Enciclopedia Italiana. No momento em que atingiu a quinta edig&o, pareceu-me ser meu dever proceder a uma revisdo e a uma actualizacaéo. Sem pretender modificar radicalmente o caracter que tinha no inicio, ou seja, o de um texto que devia respeitar a modalidade expositiva e as exigéncias redaccionais préprias de uma entrada de enciclopédia, procurei, em alguns passos, atenua- lo. Aproveitei a ocasiao para suprimir ou modificar algumas opinides que me pareceram, na 6ptica actual, demasiado datadas. Completamente originais, na presente edigao, sao os Ultimos cinco capitulos, nos quais tomo posi¢&io sobre alguns desenvolvimentos mais recentes da disciplinae tento antever o seu papel, num mundo em profunda mutacao. Este ensaio, diga-se de passagem, nao tem a pretensao de ser uma histéria do design industrial. Nas ultimas décadas, tém sido publicados, excelentes trabalhos nesta drea. Os poucos excursos histéricos aqui por mim tentados — os capitulos sobre os “pressupostos histéricos” e sobre a “Bauhaus-Ulm” — servem tao somente de contexto a uma reflexdo mais generalizada sobre o design industrial. 9 DESIGN INDUSTRIAL Pretendem apenas ser um contributo para uma melhor compreensao do itinerario, em determinados aspectos muito acidentado, que o design industrial teve de percorrer antes ¢ depois de ter conquistado a sua inequivoca identidade. Itinerério que inclui alguns momentos mais afastados no tempo e outros mais préximos de nds. Foi nesta 6ptica que me ocupei também da Escola de Ulm. Nao foi facil. Enquanto protagonista directo daquela experiéncia, nao serei eu, por raz6es Obvias, a pessoa mais indicada para assinalar - como devido afastamento - os seus méritos ou deméritos. No entanto, as poucas paginas que dediquei ao assunto mantiveram-se, com ligeiras correcg6es estilisticas, tal e qual como tinham sido publicadas na Enciclopedia ena primeira edigdo Feltrinelli. Ainda que, devo admiti-lo, algumas das criticas que, por zelo de objectividade, nessa altura adiantei, nao voltaria a fazé-las hoje nos mesmos termos. Seja como for, sobre a Escola de Ulm foram publicados ultimamente numerosos livros e documentos a que 0 leitor pode recorrer, para formar uma opiniao pessoal sobre este assunto. A extensdo da bibliografia, que foi completada e actualizada, justifica-se com o meu propésito de oferecer, em especial aos estudantes, um titil instrumento de trabalho. Janeiro 1991 T.M. DEFINICAO Por design industrial entende-se, normalmente, a concepcao de objectos para fabrico industrial, isto é, por meio de m4quinas, e em série. Esta definigio, todavia, nao é totalmente satisfatéria. Examinando-a com maior rigor, podemos relevar algumas ambiguidades. Por exemplo, ela nao consegue apontar com nitidez a diferenga existente entre a actividade do designer industrial e a actividade ‘tradicionalmente desenvolvida pelo engenheiro. Por outras palavras, nao diz onde comega nem onde acaba o papel projectivo de um e de outro, no desenvolvimento de um produto fabricado industrialmente. Por conseguinte, deixa ‘por esclarecer em que condigdes um engenheiro pode eventualmente desempenhar, como muitas vezes acontece, aactividade de designer industrial e vice-versa. Por outro lado, a definig&o considera, implicitamente, ‘como ponto assente que todos os objectos nao fabricados industrialmente n&o entram no Ambito do design industrial. Deste modo, pretende-se evitar, justamente, a confusao entre design industrial e artesanato, ou, pior ainda, entre design industrial e arte aplicada. Esta distingao teve importancia decisiva na primeira fase de desenvolvimento do design industrial, ¢, como veremos mais adiante, ainda hoje é considerada por alguns. 11 DESIGN INDUSTRIAL Existe uma vasta gama de produtos que, embora pertencendo a um universo discursivo de altissima tecnicidade, so fabricados com meios técnicos bastante tradicionais, ou seja, sem se valerem, ou valendo-se apenas esporadicamente, de maquinaria para a produgdo em série estandardizada. Referimo-nos sobretudo a certos apetrechos que, pela sua extrema complexidade estrutural, pela particular natureza das suas fungdes ou simplesmente pelo elevadissimo custo de produgdo — so fabricados em exemplares tinicos ou em pequena série. Por exemplo, certas maquinas-ferra- menta, certos computadores de grandes dimensGes, certos instrumentos cientfficos muito especializados, certos meios de transporte. O facto de os componentes destes objectos serem fabricados em série nao autoriza que se considere como industrial o processo laborativo do conjunto. > Além disso, nao deve ser esquecido que a prépria nocgéo de série tem vindo, nos tiltimos tempos, a enriquecer-se e a articular-se. Nas fases iniciais da racionalizagao industrial, a economia de uma empresa dependia, em larga medida, da unificagao dos produtos e dos processos produtivos, que assegurava a maior eficiéncia, a reducao dos desperdicios e da imobilizagao de matérias-primas e dos semi-laborados, a simplificagao da montagem e do controlo, o uso mais racional das maquinas e respectivo equipamento. Naquelas condigées, a produgio em série de um nimero elevado de objectos ou de componentes estandardizados era 0 objectivo primario e constitufa 0 elemento caracterizador de todo o processo. Hoje, ao invés, 0 uso muito alargado de maquinas-ferra- mentas sofisticadas € flexiveis (desde as mAquinas operadoras miltiplas de controlo numérico até aos diversos tipos de robés) permite perseguir o mesmo objectivo de economia, sem se submeter aos rigidos vinculos precedentes. Mais explicitamente, é possivel aliar a um tipo de produgéo continua (no qual cada maquina efectua apenas uma operagao), um tipo de produg&o diferenciada. Além disso, é possivel combinar um ciclo de laboragéo monolinear com ciclos de linhas convergentes, divergentes, entrelacadas, de 12 DEFINICAO modo a alternar lotes de produtos diversos e dimensdes n prejudicar a rentabilidade das ; instalac6es consequéncias sobre 0 conceito tradicional de série sio, evidentemente, é6bvias. Tudo isto mostra como é dificil formular uma defini¢&o de design industrial, baseando-se exclusivamente na modalidade do processo laborativo. Uma orientagao formalfstica pretendeu iludir estas dificuldades, oferecendo uma definicdo que pée a tonica apenas na forma exterior do produto. A tarefa do designer industrial diria respeito 4 pretensa aparéncia estética, sem ter em conta a natureza do processo técnico-produtivo. Tal defini¢do mostrou-se relativamente util, quando os produtos pertenciam a area dos bens de consumo do tipo sumptudrio. Para outros bens de consumo, em que o utilizador esta interessado num comportamento operativo que vai além da ruigao meramente formal, a definicdo revelou-se insustentavel. E mais ainda na area dos bens instrumentais. Neste ponto, é forgoso determo-nos na definig&o de design industrial adoptada pelo ICSID ('), em 1961. Também nesta lefinigao — tal como na precedente — se aceitava que o papel ‘© design industrial consistia em projectar a forma do roduto. Existe, no entanto, uma diferenca fundamental, no jue se refere 4 orientag&o anteriormente descrita: 0 design industrial nao era entendido como uma actividade projectiva, que comegou exclusivamente com a ideia apriorfstica sobre © valor estético (ou estético-funcional) da forma ou como ma actividade projectiva, cujas motivac6es se situam antes, fora, do processo constitutivo da prépria forma. Nela se ropunha, pelo contrario, um design industrial orientado para desempenho de uma tarefa no interior deste processo ¢ uja finalidade Ultima é a “realizagao de especialidade écnica” (7). ‘)ICSID ~ International Council of Societies of Industrial Design; esta definigao leguia, em linhas gerais, a que eu apresentei no Congresso ICSID de Veneza, em 961. °) G. Simondon (1958) DESIGN INDUSTRIAL Portanto, segundo esta defini¢io, projectar a forma ' significa coordenar, integrar e articular todos aqueles factores que, de uma maneira ou de outra, participam no processo | constitutivo da forma de um produto. E, mais precisamente, alude-se tanto aos factores relativos a utilizagao, a fruigdo e ao consumo individual ou social do produto (factores funcionais, simbélicos ou culturais) como aos que se relacionam com a sua producao (factores técnico-econd- micos, técnico-construtivos, técnico-sistémicos, técnico- -produtivos e técnico-distributivos). A definig&o, mau grado o seu cardcter genérico, continua valida até agora..No entanto, devemos acrescentar: é valida apenas na condigio de se admitir que a actividade de coordenar, integrar e articular os diversos factores est4 sempre fortemente condicionada pelo modo como a produgao e o consumo de bens se manifestam numa determinada sociedade. Por outras palavras, é necess4rio admitir que 0 design industrial, contrariamente ao que haviam imaginado os seus precursores, nao é uma actividade aut6noma. Embora as suas opgGes projectivas possam parecer livres, e talvez, por vezes 0 sejam, trata-se sempre de opgoes feitas no contexto de um sistema de prioridades preestabelecidas com bastante rigidez. Em tltima andlise, € este sistema de prioridades que regula o design industrial. Nao hé, pois, motivo para espanto se os objectos, para cujo projecto concorre o design industrial, alteram substancialmente a sua fisionomia, conforme, numa determinada estrutura socioeconémica, se prefira privilegiar certos factores, face a outros: por exemplo, os factores técnico-econémicos ou técnico-produtivos, face aos funcionais, ou os factores simbélicos, face aos técnico-cons- trutivos ou técnico-distributivos. Por isso, a definigdo de design industrial, que até agora temos examinado, deveria poder adequar-se aos contextos particulares em que se desenvolve a actividade, albergando — sem que isso diminua a sua validade de conjunto — outras definigdes auxiliares, capazes de reflectir mais fielmente a 14 DEFINICAO real diversidade (e até conflitualidade) de tais contextos. EB evidente, por exemplo, que o design industrial nao pode ser 0 mesmo numa sociedade altamente industrializada ou num pais em vias de desenvolvimento. A exigéncia de uma maior flexibilidade e funcionalidade da definigao de design industrial deriva do pressuposto de que existe, ou deveria existir, em todo o contexto socioecondémico, uma forma peculiar de enfrentar o problema da “forma da mercadoria” (*). Tal como, apesar das aparéncias, as modalidades de actuagéo desse processo nao Sao as mesmas nas diferentes estruturas econémicas, assim também, pelo menos em teoria, as formas conferidas as mercadorias nado deveriam ser as mesmas. Dizemos “pelo menos em teoria”, porque na pratica as coisas apresentam- se de modo bem menos claro. __ Note-se, por exemplo, que os factores mais caracteristicos de uma determinada ordem socioeconémica nao se fazem sentir da mesma maneira e, por assim dizer, com a mesma intensidade em todos os objectos; e isto pela simples razdo de que nem todos os objectos apresentam 0 mesmo grau de ‘complexidade. Preferir, suponhamos, o factor simbdlico ao {6cnico-construtivo pode ser irrelevante no caso de objectos de baixa complexidade, como seja um talher, mas, pelo contrario, seria muito relevante no caso de um objecto de elevada complexidade, como um automével. Dir-se-d que esta afirmacao é discutivel, visto que objectos de elevada complexidade e pertencentes a diversas estruturas socioeconémicas apresentam frequentemente a mesma fisionomia. O argumento, a primeira vista, pode parecer pertinente; j4 o € menos, se 0 examinarmos num periodo (©) 0 problema da génese da “forma-mercadoria’ e 0 da génese da “mercadoria- _-forma”, com os seus condicionamentos recfprocos, foram abordados no passado por muitos estudiosos, embora os resultados nao tenham sido de todo convincentes. Vejam-se, a propésito, G.Paulsson (1948); W.F.Haug (1971); J.Baudrillard (1972b ); L. Wolf (1972); G.Selle (1973); G.Bonsiepe (1974,1975a); ‘T.Maldonado (1974, pp.55-66). 15 DESIGN INDUSTRIAL hist6rico mais vasto. Nao devemos esquecer que a maior parte das tipologias dos objectos de médiae elevada complexidade (e, portanto, a sua fisionomia) foi fixada durante a revolugao industrial, como resposta explicita a exigéncias muito concretas no desenvolvimento da economia capitalista do século XIX. Tudo quanto até agora se disse tinha a finalidade de mostrar os numerosos entrelagamentos e pontos de contacto conceptuais, que est&o na base do design industrial. S6 se admitirmos a vastidao do leque de implicag6es do design industrial, nos sera possfvel captar toda a sua real importancia. No entanto, para compreender até ao fundo 0 fendmeno do design industrial, ocorrem ainda ulteriores esclarecimentos. Como todas as actividades projectivas que, de uma maneira ou de outra, intervém na relacao produgao-consumo, 0 design industrial actua como uma auténtica forga produtiva, E ainda mais: é uma forga produtiva que contribui para a organizagao (e, portanto, para a socializagao) das outras forcas produtivas, com as quais entra em contacto. Diferentemente, porém, do que sempre tem acontecido com 0 artesanato, o design industrial nao se comporta na nossa sociedade como parte integrante do processo laborativo. Idealizaciio e execuciio, nesta 6ptica, seriam duas coisas distintas, chamadas a executar duas tarefas diversas. De facto, até agora tem-se agravado a distancia entre a idealizago e a execugio (*), entre projecto e trabalho, mas nada nos impede hoje de imaginar um futuro, em que tal distancia possa ser drasticamente reduzida. Por outras palavras: um futuro em que, como veremos, 0 papel do projecto poderia mudar, no interesse de uma maior participagio criativa dos trabalhadores. Esta modificagao, porém, deixaria intacta a tarefa do design industrial, que continuaria a ser, apesar destas novas condigdes, substancialmente 0 mesmo: a tarefa de mediar ( FBologna (1972) DEFINICAO dialecticamente entre necessidades e objectos, entre produgao e consumo. Habitualmente, o designer, imerso na rotina da sua profisso, nao consegue intuir a efectiva incidéncia social da sua actividade. E isto que dimana claramente da concepeao, tao difundida, de um design industrial, entendido como intervengao absolutamente isolada, nada mais do que “prestagao”, do que “servico prestado a indtistria” (*). Nao nos parece supérfluo recordar aqui que, em todas as sociedades, existe um ponto nevrélgico, em que ocorre 0 processo de produgio e reprodugio material, isto é, um ponto em que, segundo as exigéncias das relagées de produgao, _ Siio pouco a pouco sancionadas as correspondéncias entre “estado de necessidade” e “objecto de necessidade”(°), entre a necessidade e 0 necessario. O design industrial, enquanto fendémeno que se situa precisamente nesse ponto nevralgico, emerge como um “fendmeno social total” (7). O mesmo é dizer que ele pertence Aquela categoria de fendémenos que nao podem ser analisados isoladamente, mas sempre em telacdio com outros fendmenos, com os quais constituem um tinico tecido conectivo. A esta mesma categoria pertence a técnica, intimamente ligada ao design industrial. O idealismo tinha encerrado a écnica no ghetto da produgao estrutural, tinha feito dela um endmeno estranho, e até adverso, ao mundo da produgao upra-estrutural. Mas a verdade é outra: a técnica esta resente, quer na execugdo dos “produtos estruturais” (configuragdes objectivas de todos os tipos), quer na dos ‘produtos supra-estruturais” (configuragdes simbdlicas de odos os tipos). © “preconceite comente, due ope 08 nodutos estruturais aos suj aturais, Os produtos € da maquina) aos da cabeca, esta definitivamente superado, partir do momento em que todos os produtos do trabalho jumano so entendidos como artefactos. ) Veja-se neste volume o capitulo «Design industrial e o discurso da qualidade». ®) P.-H. Chombart de Lauwe (1970 ) ) M. Mauss (1923-1924) DESIGN INDUSTRIAL. DEFINICAO E este o pressuposto que se encontra na base do conceito moderno de cultura material (*), difundido sobretudo pelos antropdlogos ¢ pelos arquedélogos, mas também pelos historiadores. Em ultima andlise, trata-se da concepgao, hoje geralmente aceite, segundo a qual os produtos da actividade técnica humana devem ser sempre considerados feitos de “vida material”, ou melhor: de cultura (ou civilizagao) material. Ideia que Braudel definiu assim: “A vida material siio os homens € as coisas, as coisas e os homens (°).” Devemos, no entanto, admitir que esta concep¢iio s6 muito recentemente € que comecou a usufruir do consenso geral. Na realidade, os produtos da técnica — de qualquer tipo de técnica—estiveram durante séculos sujeitos 4 mais pertinaz discriminagao, alargada — talvez de maneira ainda mais incisiva— aos homens que se ocupavam quer da sua invengio e projegao, quer da sua efectiva produgao, Ha quem defenda que a raiz hist6rica desta discriminagao deve ser procurada na Antiguidade, e, mais concretamente, na sociedade esclavagista grega, com 0 seu desprezo pelo trabalho manual e mecAnico, considerados de natureza infamante: trabalhos de escravos, como, de facto, eram ('°). Perguntar como se ultrapassou esta secular discriminagao significa, na pratica, individualizar os passos hist6ricos que tornaram possivel 0 advento do design industrial. Em primeiro lugar, torna-se necessdrio determo-nos naquela que é geral- mente considerada a historia do modern design. A rigor, trata- se ndo de uma histéria, mas sim de miltiplas histérias (''). (*) Cfr. 0 capitulo «A Moderna Cultura Material», in T. Maldonado (1987). (°) FBraudel (1967) (°) P-M. Schuhl (1938). A tese de Schuhl foi, pelo menos em parte, contestada por outros estudiosos, que recusam uniformizar toda a cultura da Grécia no desprezo pela técnica. A apoiar a sua interpretagdo, apontam as diferencas existentes, por exemple, entre os Pré-Socraticos ¢ Platao. E exemplar neste sentido oensaio de R. Mondolfo (1982). (") G.A.Platz (1927); H.Read (1934); L.Mumford (1934); N. Pevsner (1936); W.C.Behrendt (1937); J.M.Richards (1940); S.Giedion (1941 e 1948); R:Banham (1960) 18 Pois bem, um estudo atento permite-nos colher em todas elas um elemento comum: o esforgo para demonstrar como, ao longo deste tiltimo século, o debate sobre a relagdo arte- técnica (ou arte-industria) incidiu sobre a evolugéo da arquitectura moderna e como esta evolucao, por seu lado, condicionou aquele debate. Se bem que a histéria do modern design, privilegiando muitas vezes a arquitectura, nao possa ser considerada uma verdadeira histéria do design industrial, nao restam duvidas de que as mais recorrentes matrizes interpretativas, relacionadas com as origens do design industrial, foram criadas no seu interior. Referimo-nos aquelas matrizes segundo as quais 0 design industrial nao seria mais do que a emanagao directa de uma correlagdo de influéncias reciprocas, entre certas ideias estéticas defendidas por algumas personalidades de excepgao (a famosa directriz que, partindo de Ruskin e Morris, passa por van de Velde e chega a Gropius) e certas inovagGes tecnoldgicas (a nao menos famosa directriz que enfatiza a importancia de alguns materiais novos, de alguns novos recursos energéticos e alguns novos dispositivos mecanicos). Pensou-se, assim, encontrar na historia do modern design, exactamente na medida em que ele intentava tornar-se mediador entre a arte ¢ a técnica, uma explicagao do modo como se chegou historicamente a superar 0 preconceito ideolégico contra a técnica, ou seja, do modo como se chegou a “mechanization of the world picture” ('*). O que s6 em parte é verdadeiro. A matriz interpretativa que, nesta hist6ria, liga certas ideias a certas inovagGes esté ainda cheia de lacunas: os factos raramente sao apresentados na sua dependéncia de outros factos, e, menos ainda, na dependéncia daqueles que exprimem directamente 0 procedimento concreto da sociedade. Dito por outras palavras, no se tem suficientemente em conta a dependéncia das ideias e das (®) E.J.Dijksterhuis (1961). [Em inglés no original.] 19 DESIGN INDUSTRIAL inovagdes daquilo que constitui o principal agente dinamizador: a contradicdo, para utilizar a f6rmula marxista classica, entre o desenvolvimento das forgas produtivas e as | relacdes sociais da produgao. | Com estes reparos, nao se pretende invalidar na totalidade a historia do modern design, mas sublinhar o seu caracter incompleto. De resto, importa nao esquecer que este caracter incompleto se refere nao 86 aos aspectos socioecondmicos, mas também ao proprio modo como sao apresentadas as ideias estéticas e as inovagées tecnolégicas. Uma histéria que rejeita indagar os bastidores dos factos, acaba sempre por privilegiar alguns, deixando outros na penumbra e outros ainda em completa escuridao. Isto, no entanto, nao significa como poderia fazer pensar a adesio a um grosseiro determinismo econémico — que a tentativa de colmatar a primeira lacuna possa automaticamente conduzir-nos a colmatar também a segunda. Numa historia do design industrial, pelo menos como nés a entendemos, dever-se-a actuar “ao mesmo tempo” em duas vertentes, procurando assim, por um lado, aprofundar os factos jd conhecidos, por outro, descobrir factos novos. O nosso propésito é, pois, demonstrar, ainda que de mancira necessariamente esquematica, como a moderna consciéncia social e cultural da técnica ea do design industrial constituem o resultado de um mesmo desenvolvimento e, acima de tudo, como esse desenvolvimento esteve sempre fortemente condicionado pelo procedimento concreto da sociedade. Neste caso, pelo desenvolvimento do modo de producio capitalista. Esta abordagem serd ilustrada por uma resenha de diversos factores, conhecidos e menos conhecidos, que contribuiram para a formagao dessa consciéncia social e cultural, remontando também aqueles que, apesar de muito afastados no tempo, podem ajudar a compreender melhor o tema exposto. Alguns sero resumidamente apontados, outros, pelo contrario, serao tratados de maneira mais prolixa e aprofundada. 20 OS PRESSUPOSTOS HISTORICOS DO DESIGN INDUSTRIAL A partir do século X VIL, comega a proliferar uma literatura em que as maquinas sdo apresentadas como instrumentos apazes de garantir aos homens a felicidade na Terra e, as ezes, também fora da Terra. Descrevem-se sociedades e idades ideais, existentes no passado ou previstas para o uturo, onde a maquina é factor de optimizagao no elacionamento entre os homens e, por vezes, entre os homens a Natureza. O sonho — retrospectivo ou prospectivo — de ‘a vida melhor é aqui um sonho de artefactos. A construgéo 6pica aparece saturada de tecnicidade imaginaria. A Nova lantida (1624), de F. Bacon (1561-1626), pode talvez ser nsiderada o primeiro grande documento deste género ('%). papel de intervengao destas obras tem sido frequentemente inalado pelos historiadores e pelos estudiosos da utopia. Naturalmente, as utopias cientificas ¢ técnicas sao a resso directa ou indirecta da grande revolugao intelectual ciada no século XV, continuada no século XVI e conso- ada no século XVII. Entre os expoentes mais importantes, Na mesma época, podem assinalar-se também as obras de J. Wilkins (1638), jodwin (1638) e C. de Bergerac (1656). Mais tarde, aparecem as obras de Mercier (1772), N.-E. Restif de la Bretonne (1781), Ch.F.M.Fourier (1822 e ) e E,Cabet (1842). DESIGN INDUSTRIAL encontram-se em primeiro plano Galileu Galilei (1564- 1642) e F, Bacon, mas também, antes destes, homens como L.B. Alberti (1404-1472), Piero della Francesca (1416-1492) Leonardo da Vinci (1452-1519), J.L. Vives (1492-1540), G. Agricola (1494-1555), W.Gilbert (1544-1603). Este esquadrio de pensadores, cientistas, arquitectos e artistas abre caminho ao superamento da tradicional oposi¢ao entre o saber pratico e o saber teérico, entre o saber técnico ¢ 0 saber cientifico, A cultura organicista, que se contenta com a aproximacdo, comeca a ser substituida pela cultura instru- mental, que cultiva o gosto, e até o fervor, pela exactidao ('*), De nao menor importancia se revestem aqui Os autématos, de que se encontram exemplos em numerosos periodos da historia ('°). Mas os que mais particularmente nos interessam foram criados no século XVIII por F. von Knaus, J. de Vaucanson, W. von Kempelen, P. ¢ H.-L.Jaquet-Droz, D.Roentgen e P.Kintzing. Trata-se de aut6matos com feigdes antropomérficas e zoomérficas, altamente mecanizados, destinados habitualmente as festas de Corte, Oferecendo uma verso frivola e divertida da maquina, estas realizacdes contribuem para superar a imagem, bastante difundida na €poca, da maquina como objecto aterrorizador. A técnica imita 0 comportamento da natureza: o ente técnico aparece camuflado de ser vivo. Emerge, desta forma, a suspeita, mais tarde certeza, de que existe uma correspondéncia isomérfica entre natureza e artificio. Porque, se a natureza é “artificigvel” e o artificio “naturalizavel”, entao cai Por terra o mito do abismo intransponivel entre o que é feito pela Natureza e o que € feito pelo homem ('®), A observacao da Natureza torna- -se um factor fecundante da técnica e, ao mesmo tempo, a (*) W.E.Houghton (1957); PRossi (1962); J.D.Bernal (1972). (') Recordem-se os autématos idealizados por Héron de Alexandria (séc. II d.C.), Alberto Magno (séc. XII), Villard de Honnecourt (séc. XIII), Giovanni Fontana (séc.X VI), Athanasius Kircher e Gaspar Schott (séc. XVID). ('°) FReuleaux (1877); G.Dorfles (1968 a): S.D.Moscovici (1972) 22} OS PRESSUPOSTOS HISTORICOS DO DESIGN INDUSTRIAL, observacao da técnica ajuda a compreender melhor a Natureza. Mas ha mais: associando a maquina & figura humana, como acontece com os autématos antropomérficos, favorece- -se a tendéncia para considerar a maquina como modelo dos seres vivos, tendéncia que mais tarde J.O. de la Mettrie (1709- -1751) levard até as Gltimas consequéncias, com a teoria de L’Homme machine (1747). O tema seré retomado, com matizes diversos, por C.A.Helvétius (1715-1771), por P.- H.d’Holbach (1723-1789) e por muitos expoentes do materialismo mecanicista. Bem entendido, tudo nao passa de uma primeira batalha contra o dualismo ("). Mais tarde, as coisas vo revelar-se mais complexas e o desenvolvimento do materialismo reconhecerd a necessidade de completar Vhomme machine com l’homme sensible ('°). cl Mesmo nas representagGes visuais das maquinas nos séculos XVI-XVIII, sentia-se a necessidade de ambientar as figuras num contexto culturalmente familiar. Em geral, a finalidade dessas imagens era essencialmente didactica: tratava-se de explicar o funcionamento, a instalagdo e a utilizagao de mecanismos técnicos de uma indtstria ainda nos seus alvores. Embora nao passassem de “instrugdes para uso”, as maquinas eram apresentadas nao isoladamente, em abstracto — como acontece hoje — mas integradas num ambiente, ou seja, num “cendrio” apropriado, transformando- -se numa personagem, num actor da acgao tepresentada; em suma, um sujeito tao merecedor de cuidados artisticos’ como qualquer outro. A maquina entrava assim, subrepti- ciamente, na arte (!°). Dado o seu cardcter cenografico, estas representagdes eram chamadas teatros da maquina. Entre as obras precursoras dos teatros da maquina, devemos citar os (7) G.Preti (1955); A. Vartanian (1960). ('8) S.Moravia (1974), ('9) M.Le Bot (1973). 23 DESIGN INDUSTRIAL. OS PRESSUPOSTOS HISTORICOS DO DESIGN INDUSTRIAL primeiros grandes manuais técnicos, como 0 De re metallica (1556), de G.Agricola e Le diverse e artificiose machine (1558), de A.Ramelli. Directamente na tradigao figurativa dos teatros da maquina e dos manuais técnicos, situam-se também os doze volumes do Recueil de planches sur les sciences, les arts libéraux et les arts mécaniques, da Enciclopédia (1751-1772) de D’Alembert e Diderot. No texto introdutivo a uma reedigao italiana, R.Barthes escreve: “A Enciclopédia, em particular nas suas estampas, pratica aquilo que poderiamos de algum modo chamar uma filosofia do objecto; por outras palavras, reflecte sobre a sua existéncia, nao o pée em relévo, tenta defini-lo; o plano tecnolégico obrigava a descrever objectos, certamente; mas, separando as imagens do texto, a Enciclopédia empenhava-se numa iconografia autonoma do objecto, cujo vigor hoje saboreamos na totalidade, porque [...} n&o olhamos para aquelas ilustragdes com a finalidade exclusiva de aprendizagem” (”). Uma nova abordagem filoséfica, relacionada com os objectos técnicos e os artefactos em geral, comega, pois, a abrir caminho. Entre os contributos deste Ambito, apontam- se os dos assim chamados protofuncionalistas. A ideia de que a beleza de um objecto depende da sua utilidade e eficiéncia, isto é, da sua adequagio a fungao a que se destina, comegou a ter os seus apoiantes mais ardorosos na Inglaterra. Entre eles, G.Berkeley (1685-1753), W.Hogarth (1697-1764), D.Hume (1711-1776), FHutchson (1694-1746) e A.Alison (1792-1867). Na Italia, a tomada de posicdo mais clara, no sentido de uma abordagem funcionalista, é a de C.Lodoli (1690-1761); em Franga, a de C.-N. Ledoux (1736-1806). Uma achega decisiva para o funcionalismo veio da Alemanha e teve origem, em especial, nas reflexdes de I. Kant (1724-1804), G.E.Lessing (1729-1781), J.W.Goethe (1749-1832) e, sobretudo, do arquitecto e urbanista F. (®) R.Barthes (1970, p.18) Weinbrenner (1766-1826). Este tiltimo, na terceira parte do seu Architektonisches Leherbuch (1819), escreve: “a beleza reside na harmonia total entre forma e fungao.” Outro aspecto importante do livro de Weinbrenner é a tentativa de examinar os problemas da relagdo forma-fungao em arquitectura, baseando-se em exemplos de objectos de uso (7). Mas 0 que modificou o modo de ver e de interpretar 0 universo dos objectos técnicos foi a descoberta do caracter sistémico da relagao necessidade-trabalho-consumo, gracas aA. Smith (1723-1790), D.Ricardo (1772-1823), G. W. F. Hegel (1770-1831) e K.Marx (1818-1883). Apercebem-se de que os manufactos mecanicos nao sao, como por vezes se tinha julgado, uma irrupgao histérica arbitréria, mas sim o resultado de um complexo tecido de interacgdes socioeconémicas. A.Smith, na peugada de A.Ferguson (1723- -1816), intuiu-o com grande perspicacia, quando explica a origem das inveng6es técnicas:“Todos podem dar-se conta de quanto o trabalho é facilitado pelo uso de maquinas apropriadas [...]. Limitar-me-ei a observar que a invengao de todas as maquinas, que tanto facilitam e reduzem o sforgo, parece dever-se, na origem, a divisio do trabalho” ?). Voltamos a encontrar esta ideia em Ricardo; ela reaparece ais tarde em J.Stuart Mill (1806-1873) e vai desembocar inalmente em Marx. E 0 itinerario que vai da generalidade bstracta até a especificidade concreta. Na economia politica lassica, a ligagdo causal entre maquina e relagdes de roducao mal tinha ainda sido intufda, Em Marx, pelo ontrario, encontramo-nos frente a uma importante tomada le consciéncia (7). No entanto, esquece-se muitas vezes, ou pelo menos nao sublinha suficientemente, que a eficdcia da concepcao de arx se alargou com a intervencdo de Hegel. O pensamento ) Sobre o contributo dos protofuncionalistas, cfr. E.R.De Zurko (1957). ) A.Smith (1973, p.114) ') K. Axelos (1961); A.De Palma (1971). 25 DESIGN INDUSTRIAL OS PRESSUPOSTOS HISTORICOS DO DESIGN INDUSTRIAL, de Marx acerca da relac&o necessidade-trabalho-consumo emerge fortemente condicionado pela reelaboragao hegeliana do pensamento de Smith e de Ricardo sobre 0 assunto (*). Segundo Hegel, o homem, enquanto ser carenciado, é forgado auma relacio pratica com a Natureza exterior; confrontado com ela, tem necessariamente de agir, para a moldar e para a tornar menos agreste. Para atingir tal objectivo, o homem faz intervir instrumentos, ou seja, objectos capazes de submeter outros objectos que lhe sdo adversos. O ponto de vista de Marx sobre o papel das maquinas na sociedade capitalista esta amplamente ilustrado no memoravel capitulo «Mdquinas e grande indistria» do primeiro volume de O Capital (1867), onde a “maquinaria” € analisada como “meio de exploracdo da forga-trabalho”. Nada, no entanto, seria mais errado do que atribuir a Marx uma espécie de luddismo, uma atitude de condenag4o global face 4 maquina. Como se sabe, Marx foi um critico apaixonado da fungao alienante da maquina na sociedade capitalista, mas nada autoriza a fazer dele um outro Rousseau, um inimigo visceral do “artificio”. Para Marx, o processo de humanizagao é insepardvel do processo de artificializagio da natureza: o homem torna-se homem, por meio a produg&o de uma natureza humanizada, ou seja, artificializada. A construgdo ea utilizagao de um equipamento extracorporeo (apetrechos, armas, alojamento, vestudrio) fizeram do homem “a mais adaptavel de todas as criaturas”. No pensamento de Marx, todavia, a técnica nao possui apenas um valor retrospectivo, mas também um valor prospectivo, O advento da sociedade sem classes n&o assinalaria 0 “fim dos tempos tecnolégicos”, mas 0 inicio de tempos tecnolégicos essencialmente diferentes dos actuais. A técnica perderia a sua fungao alienante e acabaria por tornar-se um factor de reconciliagaio entre o homem, a realidade e os outros homens. (4) S.Veca (1975). A par do aperfeigoamento de teorias filoséficas sobre a méquina e sobre o seu papel no confronto entre o homem e a sociedade, algumas iniciativas promocionais e legislativas sancionaram, no decurso do século XIX, a passagem da fase artesanal 4 produc¢4o industrial. Em 1851, 0 principe Alberto de Inglaterra, inspirando-se na Gewerbe Ausstellung de Berlim, de 1844, promove a Great hibition de Londres (em que participam 14.000 expositores seis milh6es de visitantes), a que se seguirao numerosas ‘outras exposigdes, em muitas cidades do mundo (**). A esta xposicao tem sido sempre atribuido um papel relevante em ‘odas as historias do design industrial até agora escritas. Nao pelo “belo design” dos objectos ai expostos, mas sim — como denunciaram também alguns observadores ¢ jornais da €poca pelo seu atroz mau gosto. Por outras palavras, a Great xhibition foi importante na medida em que contribuiu para hos tornar conscientes da degradaciio estética dos objectos, naquele preciso momento histérico (76). Esta opiniao € valida quando referida a algumas classes de objectos presentes na Great Exhibition; nao o é, pelo contrario, quando se consideram outros sectores — como 0 dedicado 4s maquinas, aos instrumentos técnicos e aos méveis estandardizados — onde apareceram expostos objectos que representam um momento muito significativo no desen- volvimento do design industrial. Por exemplo, o instrumento ) Em 1855, realiza-se a segunda exposigdo mundial em Paris, com 20.000 lexpositores ¢ cinco milhdes de visitantes; depois, de novo Londres, em 1862, om 29.000 expositores e seis milhdes de visitantes; em 1867, Paris, com nove milhoes de visitantes; em 1873, Viena, com sete milhdes. Seguem-se, a poucos anos de distancia, as exposigdes de Filadélfia (1876), Paris (1878), Sydney (1879), Melbourne (1881), ainda Paris (1889), Chicago (1893), outra vez Paris (1900), gor uma crescente participagao do publico: por exemplo, a exposicao de Paris, 1889, registou 28 milhdes de presencas e a de Chicago, em 1893, quase id@ntico nimero. (0, G.Semper (1852); JRuskin (1854); H.Read (1934); Ph.Johnson (1934); N.Pevsner (1936); W.C.Behrendt (1937); S.Giedion (1941 e 1948); G.Dorfles (1963a); F.Bologna (1972). DESIGN INDUSTRIAL. musical do Francés A. Sax, a locomotiva de T.R.Crampton, as maquinas agricolas, os instrumentos cirtirgicos, os telescopios, as armas ¢ 0 mobilidrio escolar (”"). No campo da legislaco, finalmente, assinalam-se iniciativas que tiveram uma influéncia directa sobre a fisionomia dos objectos técnicos e contribuiram para modificar a tarefa do design industrial. Nos ultimos vinte anos do século XIX, surge, em diversos paises, a obrigatoriedade de tapar com uma cobertura as engrenagens das mAquinas-ferramentas, para evitar acidentes laborais. So publicadas as primeiras leis para uma regulamentacdo da higiene e da seguranga no trabalho: na Austria, entre 1883 € 1885; na Alemanha, em 1891; na Inglaterra, entre 1891 e 1895; e na Franca, em 1893 (78). Desta maneira, a configuracgao formal esconde a configuragao técnica do objecto, estabelecendo assim uma dicotomia que nao vai limitar-se ao campo das maquinas-ferramentas. Ela ira tornar- -se até a caracteristica dominante de quase toda a tipologia dos objectos da civilizag&o industrial, determinando 0 nascimento da “carrogaria”, o invélucro acrescentado, visto, muitas vezes, como uma forma sem nenhuma (ou com muito pouca) relagado com o contetido. () G.Semper (1852); E.Crispolti (1958); H-Lindinger (1961); B.Frateili (1969); H.Schaefer ( 1970 ); A.Ferebee (1970); T.Maldonado (1974, pp.55-66 e 135- -147), (8) H.Lindinger (1961). O CONTRIBUTO DA VANGUARDA HISTORICA Durante 0 século XIX, era frequente escritores ¢ artistas assumirem uma posi¢ao critica, por vezes até de nitida tejeicao, relativamente 4 maquina. Os casos mais conhecidos sao os de E.A.Poe (1809-1849), Ch.Dickens (1812-1870), J.Ruskin (1819-1900), H.Melville (1819-1891), Ch. Baudelaire (1821-1867), W.Morris (1834-1896), S.Butler (1835-1902) e E.Zola (1840-1902). A rdpida difusaio da locomotiva, ocorrida na Inglaterra entre 1830 e 1850, altera radicalmente 0 panorama visual da sociedade vitoriana. E nao apenas 0 panorama visual: a linguagem literaria, e até a quotidiana, aparecem saturadas de metaforas mecanicas de todos os tipos, a que habitualmente se recorre para descrigdes de coloragdo negativa ou depreciativa. A natureza, tio celebrada pelos romanticos, aparece agora ameagada por um engenho — a locomotiva — frequentemente definido como maléfico. Pela primeira vez, 0 homem vitoriano verifica, estupefacto, a irrupgao—a seus olhos ultrajante — do mecAnico no organico (”’). Esta primeira reaccdo encontra-se em toda a parte onde a locomotiva faga sentir a sua presenga, tanto () L.Mumford (1934), F.D.Klingender (1968); H.L.Sussman (1968). 29 DESIGN INDUSTRIAL na paisagem citadina, como na paisagem rural. Em La béte humaine (1890), por exemplo, Zola descreve uma locomotiva, a “Lison”, como sendo a personificacao da violéncia auto-destrutiva da humanidade. Um dos primeiros poetas a olhar para a locomotiva com olhos diferentes é W.Whitman (1819-1892), em To a locomotive in winter. Vé nela o “type of modern /emblem of motion and power / pulse of the continent’ (*) e, onde outros nada mais viam sendo fealdade, ele vé uma beleza nova e exaltada: “O seu corpo cilindrico, latées dourados e agos cor da prata / As suas macigas barras laterais, bielas paralelas, girando ritmicamente nos seus flancos / O seu palpitar, o seu rugido regular, ora vigoroso, ora enfraquecido na distancia, /A sua luz dianteira, saliente, fixada na fronte, / Os seus penachos de vapor longos e pdlidos, flutuantes, tingidos de delicada ptrpura / As nuvens densas e negras expelidas pela chaminé / A sua ossatura soldada, as suas molas e vdlvulas, o trémulo relampejar das suas rodas / A fila de carruagens atras, obedientes, felizes por segui-la / Através da tempestade ou do bom tempo, ora rdpida, ora lenta, mas sempre a avancar” (*°). O tema da locomotiva sera retomado, nas primeiras duas décadas do nosso século, nos mesmos termos apologéticos, se bem que agora se lhe juntem novas personagens: o automével, o aeroplano, o transatlantico. Desta vez, porém, 0 que se exalta nao é s6 0 objecto técnico, mas também os homens que o inventam, que o constroem, o produzem, o utilizam. Em resumo: “le peuple habile de machines”, como diz Apollinaire (1880-1918). E esta precisamente a originalidade dos futuristas, comparados com aqueles que, no século XIX, seguindo mais ou menos as pegadas de Whitman, amavam as mdquinas por si mesmas, ou apenas (*) Em inglés no texto: «Simbolo do moderno/ emblema do movimento e forga/ pulsar do continente». [N. do E.] ) W.Whitman (1973, p.471) O CONTRIBUTO DA VANGUARDA HISTORICA. como simbolo — “emblema”, tinha dito 0 poeta — de uma vaga promessa. Referimo-nos, por exemplo, a R.Kipling (1865-1936) e a E. Verhaeren (1855-1916). Os futuristas propdem uma mudanga global no quotidiano do homem, nao apenas na parte relativa a arte ou A fruigado da arte. O que lhes interessa € 0 homem que, em contacto com a maquina, se modifica ou esta para se modificar, até ao Amago, por assim dizer. No manifesto futurista de 1909, ET Marinetti (1876-1944) escreve: “‘Queremos enaltecer 0 homem que segura o volante, cuja barra ideal atravessa a Terra, também ela langada em corrida no circuito da sua 6rbita”. Abre caminho, deste modo, uma estética da velocidade. No mesmo manifesto, encontra-se ainda a ditirambica e j4 famosa afirmagdo: “Declaramos que a magnificéncia do mundo se enriqueceu com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um automével de corrida, com o seu capd adornado de grossos tubos, semelhantes a serpentes de halito explosivo [...]. Um automével a rugir, que parece correr sob a metralha, é mais belo do que a Vitoria de Samotracia”. Alguns anos mais tarde, M.Duchamp (1887-1968) e F.Picabia (1879-1953), simultaneamente, produzem um discurso sobre a maquina, parcialmente diferente. Duchamp e Picabia — que, neste ponto, seguem o pensamento de Villiers de I’Isle Adam (1838-1889), J.K.Huysmans (1848-1907), A Jarry (1873-1907) e R.Roussel (1877-1933) — esforgam- -se por demonstrar a carga poética da fusio entre o mec4nico © o organico. Em certo sentido, retoma-se a tematica dos aut6matos do século XVIII: a mediagdo entre a natureza e o artificio. Procura-se um hibridismo dos comportamentos “biotdpico” e “tecnotépico” (3'). Mas, desta vez, a chave € 0 humor negro. Através de subtis operagdes de sinonimia verbal e visual, conseguem fantasiar sobre a mAquina, atribuindo- DESIGN INDUSTRIAL, -lhe uma presumivel fisionomia voluptuosa. Mais: uma fruigo voluptuosa. E esta a tentativa de Duchamp, em La mariée mise a nit par ses célibataires, méme (1915-1923) e de toda a série dos Tableaux et dessins méchaniques (1915- -1920) de Picabia. No manifesto inaugural da revista L’esprit nouveau (1920), dirigida por P. Dermée, com a estreita colaboracdo de Ch. E. Jeanneret (Le Corbusier) (1887-1965) e A. Ozenfant (1886-1966), descobrimos a tendéncia para incluir a tematica da “estética mecanica”, como é chamada, no contexto mais vasto da relacio arte-produgao: “Ninguém nega hoje a estética que tem origem na indtistria moderna. Cada vez mais, as construcées industriais, as mdquinas se definem nas proporg6es, nos jogos de volumes e dos materiais, de tal modo que muitas delas sao verdadeiras obras de arte, porque implicam o nimero, ou seja, a ordem [...]. Nem os artistas, nem os industriais se dao suficientemente conta disso: é na producao geral que se encontra 0 estilo de uma €poca, e nao, como por vezes se julga, em alguma rara produgio, feita com finalidade decorativa, simples acréscimos supérfluos a uma estrutura que, s6 por si, deu vida aos estilos [...]. O aeroplano e a limusina sdo criagées puras, que caracterizam, de forma clara, 0 espirito, o estilo da nossa época”. Durante toda a sua vida, Le Corbusier ira manter-se fiel, no essencial, ao contetido deste manifesto. Olhara sempre para a maquina e para a industria em fungao do “lirismo dos tempos modernos”. Voltamos a deparar com o emblema de Whitman, mas também com um grande desejo de “modificagaéo global do quotidiano”, muito semelhante ao dos futuristas. Esse desejo, porém, em Le Corbusier, manifesta-se através de uma técnica da obra de arte, ou seja, através de uma modificagao da arte. Até hoje, diz ele em sintese, tem sido apenas da Natureza (ou da Natureza transfigurada pela arte) que temos tirado os nossos modelos; agora, vamos procurd-los também e principalmente na técnica. Por outras palavras, agora podemos inspirar-nos nas mdaquinas. Mas esta afirmagao tem de ser entendida num Be: O CONTRIBUTO DA VANGUARDA HISTORICA. sentido bastante restrito: para Le Corbusier, inspirar-se nas mdaquinas significa, muitas vezes, fazer com que certas propriedades formais das maquinas se tornem propriedades formais das obras de arquitectura, de pintura ou de escultura. Os futuristas italianos, que, teoricamente, tinham proclamado a possibilidade de uma mudanga global do quotidiano sem recorrer 4 arte, antes, rejeitando-a, tinham assumido, na realidade, uma posigéo muito semelhante 4 que viria a ser adoptada mais tarde por Le Corbusier. Sera tarefa dos futuristas russos levar até as tiltimas consequéncias a tese da modificagao global, que os futuristas italianos tinham deixado no papel. Em V.Maiakovski (1893- -1930), encontramos novamente o emblema de Whitman: “Com um ramalhete branco / de rosas de rios / corre a locomotiva / voa [...)’C?). Mas nele, como em outros futuristas russos, existe ainda um aspecto ulterior: a “revolucao cultural” (a “modificagao global do quotidiano”, dos futuristas italianos) nao acontece substituindo a uma mimese naturalista uma mimese técnica, mas sim fazendo confluir a criatividade artistica na produgao socialista. Em Ultima andlise, isto significa uma diluigdo da arte como acto aut6nomo, “puro”. E, ainda, a volatilizacao da ideia burguesa de “obra de arte”, ou seja, daqueles pequenos e grandes monumentos consagradores da hegemonia cultural de uma classe. “A nés” diz Maiakovski , “nao nos interessa o templo morto da arte, onde apodrecem as obras inertes, mas a fabrica viva do espfrito humano.” (*) Nos anos de 1921 e 1922, explode no interior do “Vchutemas” (Ateliers técnico-artisticos superiores do Estado) e do “Inchuk” (Instituto de Cultura Artistica), um conflito aberto entre os paladinos da arte pura, os da arte aplicada e os da arte produtivista. Esta ultima tendéncia, que, pelo (°) V.Maiakovski (1926). () V.Maiakovski (1918, p. 308). DESIGN INDUSTRIAL radicalismo das suas propostas, era considerada entao a pedra de escandalo, tinha comegado a desenhar-se j4 nos anos de 1918 € 1919, sobretudo por obra dos colaboradores da revista “Iskusstvo Kommuny” (Arte da Comuna). Seguindo o seu acidentado percurso, muitos estudiosos (4) reconheceram a efectiva originalidade do pensamento dos homens que propiciavam a arte produtivista. Entre estes, encontrava-se Maiakovski, O. Brik (1888-1945), A.Gan (1893-1939) e B.LArvatov (1896-1940). De acordo com o que sabemos, Brik foi o primeiro a introduzir neste 4mbito a nogado de cultura material: “Fabricas, estabelecimentos, laboratérios” — escrevia Brik emA drenagem da arte —“esperam a vinda dos artistas, que devem oferecer modelos de objectos novos, nunca vistos anteriormente. Os operdrios est&o cansados de fazer e refazer sempre 0s mesmos objectos, imbuidos de espirito burgués. Queremos objectos novos [...]. Ha que organizar imedia- tamente institutos de cultura material, para dar aos artistas a oportunidade de se prepararem para criar novos objectos de uso quotidiano, destinados ao proletariado, para elaborar a tipologia destes objectos, destas futuras obras de arte”(*). Neste texto, publicado originalmente em “Iskusstvo Kommuny”, Brik tem a surpreendente intuigaio de que a tipologia dos objectos herdada do capitalismo pode e deve ser radicalmente modificada. Considera impensdvel a revolucao da vida quotidiana sem a revolug&o da cultura material; apesar de, estranhamente, continuar a falar dos novos produtos em termos de “obras de arte’, Ainda mais radical, pelo menos neste ponto, é a posigao de Gan: “Morte Aarte. Ela nasceu naturalmente / naturalmente se desenvolveu / naturalmente est4 prestes a desaparecer. / Os marxistas (4) C.Gray (1962); V, De Feo (1963); S.Bojko (1967 e 1975); E.Semenova (1967); A.Abramova (1968); G.Kraiski (1968); V.Markov (1968); V.Quilici (1969); A.M Ripellino (1976). 5) O.Brik (1968, p.174-175). O CONTRIBUTO DA VANGUARDA HISTORICA devem preocupar-se em explicar cientificamente a morte da arte e formular os novos fendmenos do trabalho artistico, no novo ambiente histérico do nosso tempo”(*). Mas © ambicioso programa (ou melhor, projecto) de “revolugdo cultural”, tal como o tinham concebido homens como Maiakovski, Brik, Gan e Arvatov, nao teve correspondéncia na realidade. Em tltima andlise, foi esta a mais dura e humilhante derrota da vanguarda russa — e ndo s6 russa. Embora os historiadores ainda nao estejam de acordo sobre os motivos deste malogro, todavia, as teorias _ entao formuladas mostram-se particularmente tteis face aos problemas que hoje temos de enfrentar, Referimo-nos sobretudo Aqueles que se ligam com a crise da cultura material da nossa sociedade, ultimamente agudizada pela _ crise ambiental. (*) A. Gan (1969, p. 225). O DEBATE SOBRE A RELACAO PRODUTIVIDADE-PRODUTO Nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial, mais precisamente entre 1907 e 1914, o problema da produtividade industrial é enfrentado na Alemanha em termos de racionalizagio e de tipificacéo dos objectos destinados A produgio em série. Recorde-se que nos Estados Unidos, esses mesmos anos, o enquadramento era profundamente diferente. A produtividade industrial era considerada um problema que tinha a ver com a totalidade do processo produtivo, entendido como um sistema de relagdes causais entre a organizagio cientifica do trabalho em fabrica e a configuragao formal do produto. H.Ford (1863-1947), por exemplo, estuda a linha de montagem em fungdo do modelo “T” e vice-versa. Na Alemanha, naquela primeira fase, verifica-se uma abordagem sistematica do processo de produgao, aracterizada principalmente pela tendéncia para isolar o problema da “forma” do produto. Esta atitude explica por que motivo o debate da racionalizagao e da tipificagao surgia na Alemanha, em primeiro lugar, como um debate sobre o aspecto exterior dos objectos de uso e, em particular, sobre a influéncia dos estilos decorativos, entaéo em moda no que se refere as exigéncias da produtividade (*”). ("’) T.Maldonado (1979). DESIGN INDUSTRIAL Em 1907, H. Muthesius (1861-1927) pronuncia, na Escola Superior de Comércio de Berlim, a sua famosa conferéncia sobre o tema Die Bedeutung des Kunstgewerbes (A Impor- tancia da Arte Aplicada), que constitui uma durissima tomada de posig&o a este respeito. Efectivamente, no decurso daqueles anos, a Kunstgewerbe alema observava ainda as aberrantes modalidades formais dos estilos decorativos, herdados da tradigdo de gosto da época vitoriana: 0 neo- -egipcio, 0 neogrego, 0 neogético, o neo-renascentista, 0 neochinés. “Sucedneos e imitagdes festejam o seu prdprio triunfo”, verificava Muthesius sarcasticamente. Como foi possivel que a sociedade guilherminiana tivesse permanecido aferrada obstinadamente a esta tradi¢fio de gosto? Segundo Muthesius, a explicagao deveria procurar-se no “comportamento pretencioso do parvenu’’, pertencente a determinada categoria social, a dos “burgueses bem instalados”, dominados pela obsessio de “dar nas vistas”. Desta maneira, retomavam, provavelmente sem nunca disso terem ouvido falar, o tema de The Theory of the Leisure Class (1899), de T. Veblen (1857-1929): a publicitagiio da riqueza, mediante a aquisicio ostensiva de objectos dispendiosos, aquilo a que Veblen chamava a conspicuous consumption. Notemos, pois, que em Muthesius, tal como em Veblen, os objectos dispendiosos sao vistos a uma nova luz: como agentes da dindmica classista da sociedade. Mas 0 verdadeiro grande mérito de Muthesius € o de ter ultrapassado uma interpretagdo sociocultural destes objectos, isto é, de ter examinado também as suas implicagdes econdmico-produ- tivas. “Com o trabalho que eles exigem” — observa, na mesma conferéncia de 1907 —“‘a matéria prima nao é utilizada como deveria ser, ¢, portanto, acima de tudo, desperdiga-se um colossal patriménio nacional em matéria-prima, ¢ ainda se tem um trabalho acrescido inttil.” Um ano mais tarde, A. Loos (1870-1933) vai utilizar um argumento andlogo para negar legitimidade a todo e qualquer objecto provido de ornamentos: “O ornamento é forga-trabalho desperdigada, e, portanto, satide desprezada. Sempre assim foi. Hoje, 38 O DEBATE SOBRE A RELACAO PRODUTIVIDADE-PRODUTO. porém, isso significa também material desperdigado e, em definitivo, capital desperdigado” (38). Acconferéncia de Muthesius em Berlim provocou, como era de esperar, uma durissima reacgao por parte de muitos industriais e artistas, que defendiam exactamente 0 tipo da Kunstgewerbe denunciado por Muthesius. No entanto, muitos outros houve que tomaram partido por ele. Por exemplo, o industrial P.Bruckman, o representante da Dresdner Werkstitten, W.Dohrn, 0 escritor e critico J.A.Lux. Atitudes muito semelhantes 4 de Muthesius foram assumidas pelos arquitectos e artistas P.Behrens (1863-1940), R.Riemerschmid (1868-1957), J.Olbrich (1867-1908), J.Hoffmann (1870-1956), Th.Fischer (1862-1938), F.Schumacher (1869-1947), W.Kreis (1873-1955). A formagao de uma equipa deste tipo ira contribuir para _ 9 nascimento, em Munique, em Outubro de 1907, da Deutscher Werkbund (3°): uma nova associagao, cuja finalidade consiste, de acordo com o que esta declarado nos seus estatutos, em “nobilitar o trabalho industrial (profissional ou artesanal), em colaboracdo com a arte, a industria e o artesanato, através da instrugao, da propaganda e de uma firme e rigida tomada de posicao, face as questdes relacionadas”. Todavia, a Werkbund nao teré a rigidez que a adesao inicial 4s ideias de Muthesius poderia ter levado a inferir. Efectivamente, nao poucos dos seus membros consideravam errado pér globalmente em causa 0 ornamento. O problema, diziam, ndo é tanto rejeitar o ornamento, quanto substituir o “imoral” dos estilos tradicionais pelo “moral” do estilo moderno. Era este o ponto de vista jA defendido por H. van le Velde (1863-1957), em 1901, no seu livro Die Renaissance im Modern Kunstgewerbe. Na defesa do ornamento — ou, ) A.Loos (1908), ) PBruckmann (1932); Th. Heuss (1958); H.Eckstein (1958); S, Miller (1974). 39 DESIGN INDUSTRIAL pelo menos, da do ornamento considerado moral e encontrava-se, de forma embriondria, a posi¢ao que o préprio van de Velde, em aberto contraste com Muthesius, iria adoptar no Congresso da Werkbund, em 1914, em Coldnia. Nessa ocasido, em nome da “liberdade criativa do artista”, van de Velde recusard a tese de Muthesius sobre a racionalizagao e a tipificagao, que, em ultima andlise, acabava por denunciar, mais uma vez, toda e qualquer forma estilistica supérflua, fosse ela de cunho moral ou imoral (*°). Nao devemos esquecer que, jé um ano antes (1913), no seu artigo Werkbund und Handel, o politico liberal de esquerda F.Naumann (1860-1919) tinha sublinhado o perigo inerente a rejeigdo de qualquer norma que procure disciplinar a dinamica produtiva: “A mudanga” — escrevia — “pode sempre trazer algo de artistico. Mas ha que fazé-la na medida certa, pois, de contrério, para o homem e para a mulher de poucas posses, produzir-se-4o sempre apenas bens de troca. Face a uma orientagao que demasiado facilmente deu espago a variagdes, a Werkbund deve favorecer uma s6lida durabilidade e deve envolver também o comerciante, convidando-o a prestar 0 seu contributo”(*"). O conflito entre “duracdo” e “mudanga” sera recorrente no desenvolvimento da Werkbund. Ira ainda reaparecer, por exemplo, quarenta anos mais tarde, no convénio da Werkbund sui¢a (*”). De qualquer maneira, estaria errado quem quisesse ver neste debate apenas uma querelle d’artistes, um conflito entre os sequazes da “ordem’’ e os da “aventura”, entre os sequazes da “norma” e os da “‘liberdade”. Em suma, entre classicos e romanticos. Conscientemente ou no, os seus protagonistas tinham aflorado o problema fundamental do capitalismo moderno: deve a producao industrial apostar na disciplina ou na turbuléncia do mercado? Deve orientar-se para uma (®) T.Maldonado (1974, pp.135-147). (') ENaumann (1913, p.11). () M.Bill (1954). O DEBATE SOBRE A RELAGAO PRODUTIVIDADE-PRODUTO estratégia de aprofundamento controlado ou de expansao incontrolada? Para uma estratégia de poucos ou de muitos modelos dos produtos? (“°) Embora a posigdo de Muthesius fosse mais esbatida do que habitualmente se supée (“), ela corresponde no essencial a primeira alternativa. A posig&o de van de Velde, pelo contrario, aproxima-se mais da segunda, e isto, € necessdrio dizé-lo, nao porque ele tenha tido uma explicita preferéncia por uma determinada estratégia da produgao capitalista — 0 que, pelo contrario, acontecia com Muthesius — mas porque apresentava sempre um comportamento de recusa polémica, face a qualquer proposta de intervengdo normativa sobre a forma dos objectos. No entanto, isto é verdade s6 no que se refere ao van de Velde das Gegen-Leitséitze, de 1914, e nao no que se refere ao van de Velde de Das Neue: weshalb immer Neues?, de 1929. Devemos recordar, neste ponto, que a caracteristica distintiva do capitalismo alemio (e europeu, em geral), nos primeiros vinte e cinco anos deste século, foi o seu avanco errante, oscilante, pendular, entre uma alternativa e outra. Pelo menos em parte, este fendémeno explica-se pelo facto de que, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos, nem uma nem outra das alternativas foi alguma vez tratada em termos econémicos, mas sempre inserida num discurso vagamente “cultural”. Em suma: um discurso em que os problemas do “reino da Indiistria” eram sempre enfrentados como problemas do “reino do Espirito”. Assim, os contrastes entre as duas alternativas resultavam suavizados e os Tespectivos papéis, no fim de contas, tornavam-se intercambidveis. O que resulta evidente quando se examina, por exemplo, 0 itinerdrio percorrido pela corrente de pensamento que, na Europa, deu o seu apoio & primeira das (") R.Villiger (1957); S.Tintori (1964); M.Tafuri (1973), (") J.Posener (1964 ¢ 1975). 41

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