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VALLE, Ione Ribeiro.

O renascimento da sociologia britânica da educação: o


interesse pelos saberes escolares. In: Sociologia Da Educação: Currículo E
Saberes Escolares / Ione Ribeiro Valle. 2. Ed. – Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2014.
p. 25 – 41.

Valle, Ione Ribeiro – É Professora Titular do Centro de Ciências da


Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Possui pós-doutorado pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris (2014), doutorado em
Ciências da Educação pela Université René Descartes - Paris V Sorbonne (2001).
Desenvolve estudos e pesquisas na área de Educação e nas subáreas Sociologia e
História da Educação, com foco principalmente nos temas: desigualdades escolares,
democratização da educação, meritocracia, justiça escolar, profissionalização do
magistério, memória docente e socialização profissional.
A sociologia da educação foi assim trazida à sua base conceptual e
diversificou-se, criando campos que carecem mesmo de diversificação
terminológica. Os sociólogos educacionais começaram a se concentrar em questões
que geralmente não eram deles com base principalmente na abordagem
funcionalista. Já não era possível dedicar-se apenas aos inputs e outputs da
escolarização, aos custos e à produtividade do sistema, ou mesmo à relação entre
qualificações e emprego. Como aponta Forquin, essa ciência há muito se limita ao
que foi chamado na Grã-Bretanha “aritmética política”, centrada na ciência da
pesquisa macrossociológica de demógrafos ou economistas, cujo objetivo eram os
problemas de acesso aos estudos e aqueles ligados à mobilidade social6,
submetendo-os a maiores pesquisas ancoradas em verdadeiras “couraças
estatísticas”. (VALLE, 2014, p. 27 - 28).

1.1 UMA NOVA ORIENTAÇÃO SOCIOLÓGICA À EDUCAÇÃO


Assim surgiu na Inglaterra a Nova Sociologia da Educação contrapondo-se à
aritmética política e apoiando-se nas reflexões da sociologia do conhecimento. O
que caracteriza propriamente esta corrente teórica, é antes a rejeição da orientação
funcionalista em geral, estimulada pelas posições antipositivistas e antiabsolutistas
do social, ela se afasta gradativamente da tradição americana e consolida seu
próprio campo científico, por meio da ideia de que o mundo é um “ construção
social” e, consequentemente, tudo que envolve a escolarização torna-se contingente
problemático: a concepção de educação, a noção e seleção do conhecimento, o
valor educacional do conhecimento, a representação do que que deve ou não ser
ensinado.

É no contexto dos anos 60 do século XX, marcado por grandes inovações


pedagógicas, que surge na Inglaterra a sociologia do currículo, também
concebida “como uma Sociologia do Conhecimento Escolar” (MOREIRA;
SILVA, 2002, p. 17). Para Forquin (1984), duas problemáticas motivaram a
reestruturação desse campo teórico, que sustenta desde então toda
tematização sociológica sobre o currículo, no que concerne particularmente
ao tipo de cultura que deve ser veiculada pela escola e à disciplinaridade
(ou integração disciplinar): a primeira tem implicações políticas, a segunda
apresenta um caráter mais epistemológico (VALLE, 2014, p. 30).

Além disso, a questão da meritocracia está no centro da reflexão britânica


sobre a relação entre educação e mudança social, como evidenciado pela polêmica
e irônica obra de Michael Young, The rise of meritocracia, publicada em 1958. Este
livro levanta grandes debates sobre transmissão por herança: se é verdade que o
acesso à educação depende, mais do que antes, da escolarização e dos diplomas,
também é verdade que o sucesso académico cada vez mais depende da origem
social.
Por reivindicações de melhoria da formação científica tecnológica na escola,
reivindicações relativas à extensão dos estudos a extensão do ensino secundário a
alunos de classes sociais e a renovação de conteúdos e métodos de ensino,
questões multiplicam-se no modo de existência do conhecimento na escola e nos
mecanismos sociais de seleção, legitimação e disseminação desse conhecimento.
Segundo Ropé, a nova corrente está voltada para os processos que se desenvolvem
nas escolas e salas de aula, para os conteúdos e saberes incorporados aos
currículos, para as relações sociais que os atores estabelecem em vida cotidiana;
questões de interesse direto dos professores estagiários.

1.2 BASIL BERNSTEIN E AS FORMAS DE CONTROLE VEICULADAS NA


ESCOLA
Influenciado pela primeira vez por Basil Bernstein, que procurou interpretar
as mudanças para na sequência de uma mutação dos princípios de integração da
regulação social, evocados por Durkheim, ou seja, para a transição da
“solidariedade mecânica” para “solidariedade orgânica”, a nova perspectiva científica
concentra-se no ensino dos conteúdos e das suas funções, desde que latentes
(VALLE, 2014, p. 32 - 33).
Bernstein (1997a, p. 156) se propõe a discutir as “relações que se
estabelecem entre a configuração das crenças e dos valores morais que
prevalecem no interior da escola, sua organização social e as formas de
integração social que ela coloca em prática”. Ao considerar as mudanças de
orientação em termos do currículo, da pedagogia, das modalidades de
agrupamento em sala de aula e os papéis do professor e do aluno, ele
coloca a transmissão das competências e das formas de sensibilidade no
“centro da ordem instrumental da escola” e, dessa maneira, reafirma a
necessidade de rever as bases do controle social (VALLE, 2014, p. 33).

Segundo Young, o termo currículo designa o que deve ser ensinado e o que
deve ser aprendido no ciclo de estudos escolares. Pode ser usado em um sentido
mais restrito, ao contrário, em um sentido mais amplo (VALLE, 2014, p. 33).

Embora sua teoria tenha sido fortemente criticada pela abstração, pelas
fraquezas ou obscuridades conceituais, pela falta de bases empíricas ou
pelo seu funcionalismo latente, ela se constitui, segundo Forquin (1984),
numa das contribuições teóricas mais profundas e mais originais da
sociologia britânica, pois mostra que um currículo escolar designa menos
um percurso efetivamente seguido que um percurso prescrito por uma
instituição de ensino, num dado momento histórico (VALLE, 2014, p. 35).

1.3 MICHAEL YOUNG E A DIFERENCIAÇÃO HIERÁRQUICA DOS


SABERES
O que motivou, acima de tudo, Michael Young14 – um dos pivôs da
sociologia do currículo baseada numa “opção eclética” ou heterogênea – foi o
caráter consideravelmente limitado e superficial dos programas de estudo de
pesquisa e as formas de avaliação associadas a eles. A importância desse ecletismo
reside na introdução de uma grande diversidade de perspectivas teóricas capazes
de elaborar uma concepção de currículo como “construção social”.

Sem criticar radicalmente os intelectuais que o antecederam, Young julga os


procedimentos metodológicos empregados por esses programas como
insuficientes ou inadaptados à complexidade do campo educacional. Ele os
vê como invenções da sociedade que devem ser analisadas e explicadas
tanto quanto as demais invenções humanas (VALLE, 2014, p. 36).

Partindo de uma perspectiva muito próxima da apresentada por Young


afirma que os currículos podem variar entre os tipos extremos. Por um lado, um
“modelo de casta”, que um determinado tipo de conhecimento e considera
necessário, que outros conhecimentos sejam julgados sem ou de pouco valor. Neste
modelo prevalece um alto grau de estratificação de hierarquia entre o conhecimento,
que atua como elemento por excelência, de controle social sobre o conhecimento os
programas de estudos estão assentados sobre a seleção dos saberes dotados de
um status superior, este conhecimento contribui para a elevação do estatuto dos
alunos dos professores ligados a estes componentes do currículo, destinando-se
àqueles considerados “os mais dotados por outro lado, existe um modelo que
defende um dos saberes, dissociando-os dos valores sociais (VALLE, 2014, p. 37).

Considerando-se que o interesse pela função de conservação e de


transmissão culturais da educação não deve impedir a atenção aos
mecanismos e às expectativas sociais em face da seleção e renovação dos
conteúdos curriculares, Young (1973) coloca a questão dos saberes
escolares no centro de sua construção teórica,16 distinguindo quatro
modalidades principais: 1) os saberes de tipo alfabético, que repousam
sobre uma tradição acadêmica e livresca; 2) os saberes que privilegiam o
individualismo intelectual; 3) os saberes abstratos, que obedecem a uma
lógica de estruturação independente da experiência subjetiva dos
indivíduos; 4) os saberes que se distanciaram da vida e da experiência
cotidiana (VALLE, 2014, p. 38).

1.4 MICHAEL YOUNG E A CONSTRUÇÃO DE MODELOS


CURRICULARES

Num texto que apresenta uma grande densidade teórica, Young (2001, p.
29-34) insiste em oferecer uma nova abordagem sociológica ao currículo,
visando superar a especialização estreita que ainda predomina na estrutura
do ensino secundário inglês. Ele se propõe a construir uma espécie de via
alternativa à divisão entre conteúdos gerais e conteúdos profissionalizantes,
e desenha um modelo que abrange conceitos ao mesmo tempo formais e
heurísticos. Inspirando-se nos tipos-ideais de Weber, ele define três
modelos curriculares – distintos, mas ligados entre si –, que representam
certas tendências.17 Entre elas não há descontinuidades, nem polaridades
ou entidades descritas empiricamente (VALLE, 2014, p. 38).

1.4.1  OS PROGRAMAS DE ESTUDOS FECHADOS OU UNIFICADOS


A ideia desse modelo, tem por referência um ponto de partida à elaboração
de uma alternativa à dicotomia relacionados a estudos gerais e também os estudos
para profissionalização. A insistência para uma relação à polarização na união
desses programas não facilita a elucidação dos possíveis mecanismos de
intercâmbio entre eles.

1.4.2 OS PROGRAMAS DE ESTUDOS CENTRADOS NO PASSADO E


AQUELES ORIENTADOS PARA O FUTURO
Estes programas visam transmitir conhecimentos já desenvolvidos no caso
da formação profissional, uma competência alicerçada na experiência prática. Ora,
um currículo centrado nesses conhecimentos não é recomendável em função da
rapidez com que estes se tornam obsoletos. Assim, o conhecimento e o saber-fazer
não devem ser como se fossem imutáveis, mas como base para a criação de novos
conhecimentos a fim de desenvolver práticas inovadoras. O desafio consiste,
portanto, em conceber um “currículo do futuro”.

1.4.3 A ESPECIALIZAÇÃO “INSULAR” E A ESPECIALIZAÇÃO


“INTEGRATIVA”
A distinção nos tipos de especialização tende a motivar as análises
sociológicas do currículo. Essa distinção não se restringe ao âmbito da organização
escolar, mas refere-se sobretudo às mudanças estruturais e à divisão do trabalho.
Este modelo remete à questão da organização do saber, que não pode mais
desconsiderar as ligações entre o currículo e o campo econômico (VALLE, 2014, p.
39).

Young (2001) considera fundamental estabelecer uma ligação entre o


princípio de “especialização integrativa” e a ideia de “currículo do futuro”, por
entender que é necessário enfrentar a separação, cada vez maior, entre
saber escolar e saber adquirido no quadro do trabalho. Ele distingue dois
tipos de saberes: o primeiro é um saber tácito, contextualizado, que se
aprende na prática e caracteriza a aprendizagem profissional; o segundo é
um saber codificado, fruto da correlação entre as disciplinas que compõem
a educação geral e as instituições produtoras de novos saberes,
particularmente as universidades. A aproximação desses saberes impele a
sociologia do currículo a se tornar ao mesmo tempo mais prática (a fim de
estreitar as relações entre os saberes disciplinares e os problemas
concretos) e mais teórica (para mostrar como e até que ponto a articulação
entre teoria e prática se realiza nos diferentes espaços de produção do
conhecimento) (VALLE, 2014, p. 40).

A sociologia do currículo na Grã-Bretanha continua interessada na relação


entre organização escolar e distribuição de poder. No entanto, é necessário passar
de uma reflexão centrada no currículo em geral para os programas curriculares, em
particular ligados aos estudos pós-obrigatórios, onde se se observe mais claramente
a relação seleção conteúdo e a distribuição desigual dos escolares. Tendo em vista
a complexidade atual do campo científico, não se pode ignorar a necessidade de
uma certa estratificação dos saberes. Assim, a principal questão para os sociólogos
do currículo é a forma, extensão e justificação da estratificação dos conteúdos
curriculares, ou mais exatamente, as ligações entre as formas de especialização, a
estratificação do conhecimento e o social.
Nota-se uma forte influência do interacionismo nas análises e nas propostas
de sociólogos que buscam romper com os pressupostos dogmáticos da cultura
acadêmica e apreender o conhecimento, os conteúdos e os critérios do julgamento
mobilizado pela escola, “construções sociais”, de interações e interpretações
negociadas entre situados em diferentes posições e, normalmente, detentores de
posições divergentes.

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