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PATRICIA SORAYA MUSTAFA ACRISE DO ESTADO SOCIAL E OS IMPACTOS PARA A CLASSE TRABALHADORA Estudo do Estado Social Portugués Projeto Lditorial canal” editora PRAXIS I digdo 2020 Projeto Faitorial Praxis ¢ 110 se RET. Rede de Pstudlos do Trabalho (s edicado a livros na srea Copyright© Projeto Faitaral Praxis; 2020 Coonlenador do Projeto Faitorial Praxis Prat. Dr, Giovanni Alves Consetho Faitorial Nacional Dr. Ariovalde Santos (UPL) Dr André Luis Vizzacearo (UEL) Dr. Brune Chapadeiro (UFTM) Dr Edilson Gractolli (UPU) Dr. Francisco Tis Corsi (UNESP) Dr Giovanni Alves (UNESP) to da Canal 6 Faditora «6 peojcte editorial da werwestudosdotrabalbo org) Mc Trabalho ¢ Lsonomia Politica da Globalizasso. be, José dos Santos Sousa (UERBD) Dr, Marco Aurélio Santana (UERD Dr Mirein Pochmann (ONICAMP) Dr Ricardo Antunes (UNICAMP) Dr, Redherto Leme Batista (UNESPAR) Dr Ricardo Lara (URSC) Dr Renan Araajo (UNESPAR) Dr Gandéncio Fnigotto (UERD Dr, Jose Menelew Neto (UECE) Dra, Vera Navarto Dr Jose Dari Krein (UNICAMP) Dr, Domingos Leite P) ima Filho (UFTPR) Consctho Editorial internacional Dra Ursula Huws (University of London - Reino Unido) De thew Fstanque (Universidade de Coimbra/CES - Portugal) Dr. Enrique de la Garza (UAM- México) Dre, Adrian Sotelo Valencia (UNAM + México) Dr filha César Neffa (CONICET? Argentina) Dra, Claudia Figari (Universidade de Lujan - Argentina) Dra. fide Gjergit (CES - Portugal) Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagio (CIP) (Benitez Catalogagio e Assessoria Editorial) ‘M9R2¢ Mustafa, Patricia Soraya Led, sr do Fatado Soval € 08 impactos para a classe trabalhadora: do Brasil. m a crise estrutural do capitalismo global, a classe dominante bra ileira predominantemente rentista-parasitéria, f opsao pela reagao histérica neofascista visando refundar a Republica brasileira na diregdo de scus interesses de dominagao de classe. Mas 0 temor supremo da classe dominante é com a rebeliao da ial dos novos proletarios de classe média Senzala: a convulsio s € da pobreza extrema (0 que explica 0 reforgo da tendéncia milita- rista no Estado brasileiro). Com as politicas de desmonte da prote- 40 social e a reversao das politicas publicas adotadas nos governos neodesenvolvimentistas, tal tendéncia de crescimento da pobreza e extrema pobreza deve se acentuar ~ ao lado da proletarizagao das camadas médias assalariadas (0 precariado). Como temos salientado, a conjuntura internacional do capita- lismo hegeménico desde o fim da 2®, Guerra Mundial (1945) demar- cou estruturalmente as opgdes de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Com a crise do capitalismo global a partir de 2008, colo- caram-se novas condigées para o desenvolvimento da acumulagao capitalista na periferia que limitam as possibilidades do projeto civi- lizatorio da modernidade brasileira. A superexploracao do trabalho e o poder do Estado oligirquico sio pilares do Poder do capital e, numa situagdo de crise, qualquer tentativa de desmonté-lo é impedida com violéncia. A violéncia da Reforma Trabalhista e a violéncia da Reforma da Previdéncia expdem a reposicao da superexploragao do trabalho necesséria para recuperar a acumulacao do capital ao mesmo tempo que implodem ocial. a civilizacdo brasileira, expondo no Brasil a etapa da barbarie desmonte do mundo do trabalho iniciado com o neolibera- lismo da década de 1990 diz respeito, nao a uma situagao de conjun- civilizagao do trabalho Gao estrutural tura, mas sim, A reorgani por conta da nova dinamica critica de acumulagio capitalista. Podemos finalizar dizendo que diante do desmonte dos rudi- mentos de Estado Social no Brasil, exacerbou-se a nova morfolo gia do trabalho e a nova precariedade salarial, que diz respeito ndo apenas aos locais de trabalho das organizagées privadas e piiblicas, 14 ACRISE 00 ESTADO SOCIALE 05 IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALHADORA mas ao novo perfil do mercado de trabalho, imerso na crise do emprego ¢ da disseminagio do trabalho precario por meio do capi- talismo de plataformas. Ao lado da pobreza extrema da velha informalidade, emerge uma nova pobreza urbana das “classes médias” proletarizadas. Assim, a nova informalidade convive, lado a Jado, com a velha infor- malidade e com a pobreza extrema. Mais uma vez, com consolida- a0 da modernizagao catastréfica no Brasil, temos a reprodugao do arcaico no interior do novo capitalismo flexivel. ‘A modernizagéo conservadora deu lugar catastrofe da modernizacao (ou 0 que podemos denominar de “capitalismo da decomposigao civilizat6ria”). O sentido da exacerbacio da “depen- déncia” do Brasil explicita-se com a refuncionalizagao do “atraso” a partir do salto para o abismo do novo capitalismo brasileiro em sua crise estrutural. Como diria Marx (1978), “Hic Rhodus, hic salta”!? —— 2 *AquiestRodes, salt aqui” Esta frase tira dem das fabulas de Esop Um fanfar- rio gabava-se de ter testemunhas para provar que havia certafeita, executado um notivel salto em Rodes, tendo recebido a seguinte resposta: ‘Para que citar testemunhas se é ver- dade? Aqui est des. Salta gui” Em outraspalavtas: mostra ag mesmo, na praticao ‘que és capaz de fazer! (Marx, 1978). ESTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 15 a INTRODUGAO N™ livro. apresentaremos os. resultados de pesquisa de pos-doutorado, a qual versou sobre as transformagées que foram operadas no Estado Social’ dos paises da Europa do sul, espe mente em Portugal’, no periodo de 2012 a 2015, contexto de crise do capital ¢ de adogio de medidas anticiclicas, chamadas de austeridade’. Es pecificamente, se enfocari o Estado Social por tugués, demonstrando a singularidade de sua formagao, as altera- des no tempo histérico especificado e 0 impacto disso para a classe trabalhadora. Sabe-se através da lite obretudo apés a II Guerra Mundial, como se ura acerca do Estado Social que este tem seu aug demonstrard neste livro, e que nos anos de 1970, especialmente a partir da crise econémica iniciada nesta década, este Estado comega a apresentar os primeiros sinais de crise. Contudo, 0 Estado Social na Europa do sul, especificamente em Portugal tem a sua particu- laridade, nao seguindo propriamente e ciclo de génese e crise - 6 que sera abordado ¢ desenvolvido nesta obra, Demonstraremos 3 Desde a queremos densar claro que estamos uiizando a terminologia (a qual aporta uma concepgan) Fstado Social ¢ nao Rstado de Bem-Fstar Social, ua esigragao em ingles Jo. mesma argumentaydo de Boschet (20083 2003) no sentido de que esse Pstado nao aporta bem-estar para toes. tery uma dimensio Weltare State, ¢ Estado Providencta sey social, mas nav de bem estar e providencta p toalos. Uulizaremos as demais terminolo: {pas apenas para ser Tel aus autores que a tatan come Lal 4 Acescolha de Portugal se da devido ao fato da autora ter realizado pos doutorade, com bolsa da CAPES, no Cento de Estudos Soviats da Universulade Catolica Portugues no periodo de 2012 a 2013, Prot, Dr, Francisco Beane. eto cin que Mca esta nvestigaydo, sod tutoria do 5 As medidas de austeridade for cebaselam se, sobreludo, no vorte de despesay publicas, no intuito de controlar o detict pl bic, Estas medias foram levadas a cabo pela troska: Comissay Europets, Banco Central adotadas na Europa a partir da crise econdimica ee 2008 Huropew e Hunde Monetano Internacional (EMD), Es1U00 00 ESTADO SOCIAL PORTUGUES 17 como este Estado atuou na reprodugdo social da classe trabalhadora, e como, a partir das transtormagées no periodo estudado, exerceu (em que medida) ou nao este papel. Assim, € mister compreender 0 momento histérico em que estas questdes se operam, desocultando, desvendando todas as face- upde uma analise que con- e contra- tas imbricadas neste processo. Isto pre! sidere o contexto real, entendendo-o na stia complexidade ditoriedade ¢ capturando as forgas presentes. Muminados por estes pressupostos, foi reall tedrico assentado em pesquisa bibliogrifica (os principais autores serio citados no corpo deste trabalho) e documental (decretos, leis, documentos oficiais, etc., os quais também serio evidenciados no decorrer do texto), e também numa pesquisa empirica que se con- cretizou através de entrevistas com 2 representantes dos dois princi- pais sindicatos portugueses ~ Unido Geral de Trabalhadores (UGT) e a Confederacio Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) - com 3 intelectuais portugueses que possuem estudos no campo de politicas sociais; com 2 representantes da classe trabalhadora, € utentes (usuarios) do Sistema Nacional de Satide (SNS) portugués; € 2 profissionais da drea de Servico Social que trabalham diretamente com 0 sistema de protegio social deste pais, uma profissional numa unidade de satide e a outra com a politica nao contributiva do sis- ado um estudo tema de seguranga social de Portugal. Totalizando, assim, 9 sujeitos de pesquisa, 0s quais os intelectuais e sindicalistas foram identifica- dos e os demais foram tratados por codinomes neste ensaio, men- cionados abaixo: Quadro 1 - Caracterizayio dos sujeitos da pesquisa Sujeito da pesquisa | Caracteristica | Ana Paula Sindicahsta da UGT | Bernardes | Augusto Praga | Sindicalista da CGTP Pedro Adao e Silva | Professor e pesquisador do Instituto Universitario de Lisboa - Escola de Sociologia e Politicas Publicas 18 ACRISE DO ESTADO SOCIAL € 05 IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALHADORA Sujeito da pesquisa | Caracteristica da Escola Nacional de Saude Publica Sakellarides (Universidade Nova de Lisboa); Professor de Politicas ¢ Administracao de Saude na Escola Nacional de Saude Publica (Universidade Nova de Lisboa); Presidente ape Associacao Portuguesa para a Promogao da Saude Pablice, Presidente-cleito da Associacdo Furopeta de Satide Publica Constantino Director de Economia e Gestao Carlos Farinha Professor do Instituto Super | Rodrigues da Universidade de Lisboa e membro da Rede Europeia | Antipobreza (EAPN). | OMS. Anistente social da Associagao de Auxilio Social da Freguesia de Sao Sebastido da Pedreira ME “Assistente social do Centro de Satide dos Olivais. ASA Trabalhadora, utente do SNS. | MAM Trabalhadora aposentada, utente do S Fonte: Elaborado por Patricia Soraya Mustafa Todas as entrevistas foram gravadas, e posteriormente trans- critas e submetidas & anilise criteriosa da pesquisadora. O contetido das entrevistas, que refletem a realidade concreta, suscitam as refle- xées tedricas realizadas neste ensaio, de modo que procurou nao dicotomizar a pesquisa empirica e a pesquisa te6rica, a0 contrario, buscou-se construir as mediagoes necessérias para o entendimento do real concreto. Assim, as entrevistas aparecem em todo 0 texto. Especificamente no primeiro capitulo explicamos, em sua pri- meira parte, 0 contexto histérico de emergéncia do Estado Social, suas bases estruturantes, suas principais caracteristicas e ainda des- velamos que 0s sistemas de protesao so. | efetivados pelos Estados Sociais atuam na reprodugao ampliada do capital (Mandel), pelo fato do Estado Social ser uma formacao estatal do capital (Meszaros). Na segunda parte deste mesmo capitulo, adentramos na experiéncia do Estado Social na Europa do Sul, evidenciando a formagao histérica do mesmo e suas principais caracteristicas, para isso utilizamos autores como Silva (2013); Ferrera (1996, 20¢ errera, Hemerijck, Rhodes (2002). E para finalizar o capitulo, nos debrugamos sobre o ESTUDO D0 ESTADO SOCIAL PORTUGUES 19 =F pais, E as centrais sindicais que podem através da organizayao dos trabalhadores resistir ¢ lutar neste contexto também sio combatidas pelos neoliberais. Mas ainda assim, com diterengas significativas, com contradigdes e problemas entre as duas principais organizago sindicais em Portugal: A CGTP ¢ a UGT, as quais explicitamos neste de resisténcias. Por fim, trabalho, estavam atuando em organizagoes neste capitulo, entoamos uma defesa ao Estado Social, ainda que tenhamos convicgdo de que este ¢ uma formagio estatal do capital e como tal, atua em defesa da reprodugio do capital, mas com con- tradigdes evidentes ‘Ao fim deste livro, ficara explicito para o leitor os impactos do dos ataques ao Estado Social portugués para a classe trabalhadora deste pais, sentidos, sobretudo, pela retragio dos direitos sociais € pela mudanga no escopo dos mesmos, mas, também ¢ concomitan temente, pelas transformagées operadas no universo do trabalho, pois, retratagio do Estado na garantia de direitos sociais e desregu- lamentagao do trabalho sao determinados pelo mesmo processo: 0 S01 de restauragao do capital. Por fim, antes de passarmos para o desenvolvimento do texto, propriamente dito, cabe destacar como assistente social que 0 Servico Social tem um papel importante no desvelamento da rea- lidade social, tem um compromisso ético-politico com a classe tra- camente as balhadora e, portanto, nao pode deixar de estudar crit mudancas em curso no que se refere ao papel do Estado na produgio ¢ reprodugao desta classe social. Sendo assim, este compromisso éti- co- politico, que pressupde a adogio do pensamento critico, 0 rigor tedrico, e fundamentalmente 0 olhar acurado para a realidade con- creta, nos impulsionou nesta pesquisa. ‘Ainda que nao se trate da realidade conereta brasileira e tam- pouco da especificidade do Estado no Brasil, hi que se dizer que 0 entendimento da formagio do Estado $ cial classico é fundamental para a compreensio da nossa especificidade; e no campo da politica social, basilar aos assistentes sociais, compreender, acompanhar ¢ desvelar como os Estados sociais se constituem e a crise pela qual os mesmos pass am, bem como o que leva a esta crise € as sas refragdes EsTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 21 podem através da organizagio dos contexto também so combatidas ativas, pais. E as centrais sindicais que abalhadores resistir ¢ lutar neste as ainda assim, com diferengas signif ‘as duas principais organizagoes este t pelos neoliberais. M com contradigdes ¢ problemas entre 4 UGT, as quais explicitamos 1 es de resisténcias. Por fim, tado Social, ainda que -statal do capital sindicais em Portugal: ACGTP & m atuando em organizago trabalho, estav neste capitulo, entoamos uma defesa ao que este € uma formagio 40 do capital, mas com con- tenhamos convicgao de e como tal, atua em defesa da reprodug evidentes. vo fim deste livro, ficard explicito para 0 leitor os impactos do dos ataques ao Estado Social portugués para a classe trabalhadora pela retragao dos direitos sociais € e concomitan- tradi deste pais, sentidos, sobretudo, no escopo dos mesmos, mas, também universo do trabalho, e desregu- ° pela mudang temente, pelas transformagoes operadas no retratagdo do Estado na garantia de direitos so 5 do trabalho sao determinados pelo mesmo process po lamenta de restauragio do capital. Por fim, antes de pas dito, cabe destacar como assistente social que © sarmos para o desenvolvimento do texto, propriamente Servigo Social tem um papel importante no desvelamento da rea- lidade social, tem um compromisso ético-politico com a classe tra- balhadora e, portanto, nao pode deixar de estudar criticamente as mudancas em curso no que se refere ao papel do Estado na produgao 1, Sendo assim, este compromisso éti- ¢ reprodugio desta classe soci co- politico, que pressupde a adogio do pensamento critico, © rigor tedrico, ¢ fundamentalmente 0 olhar acurado para a realidade con- creta, nos impulsionou nesta pesquisa. ‘Ainda que nao se trate da realidade concreta brasileira e tam- do no Brasil, ha que se dizer que 0 pouco da especificidade do Es entendimento da formagao do Estado Social clissico é fundamental para a compreensio da nossa especificidade; e no campo da politica social, basilar aos assistentes sociais, compreender, acompanhar & tados sociais se constituem e a crise pela qual os suas refragdes lar como 0s E! desvel mesmos passam, bem como o que leva a esta crise e as FSTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 24 is. Neste caso, eviden- para a classe trabalhadora sao imprescindiv este processo em um Estado Social especifico que inclusive ciami ado brasileiro no a0 nosso ver tem similitudes com a atuagao do terreno das politicas sociais. Entretanto, isto nao foi objeto de nossa anilise. [ACRISE 00 ESTADO SOCIALE 05 IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALHADORA 2 CAPITULO 1 A CONFORMAGAO DO ESTADO SOCIAL E A ESPECIFICIDADE DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES N capitulo, demonstraremos como 0 Estado, enquanto constituinte da base sociometabélica do capital (MESZAROS, 2015), se manifesta na sua forma de Estado Social, a qual proporcio- nou 0 acesso aos direitos sociais, nao de maneira homogénea, pois este tipo de Estado em cada regiao do globo, em cada pais, assume uma particularidade a partir de componentes histéricos, politicos e econémicos de cada localidade/nagao. Como a pesquisa, que ora se esboga neste livro, tratou-se espe- cificamente de um Estado Social da Europa do Sul, o de Portugal. Nos debrugaremos na anilise deste, evidenciando para os leitores 0 rico, a conjuntura politica e econémica que possibili- momento tou a génese deste tipo de Estado neste pais. E, ainda, demarcaremos as principais caracteristicas do Estado Social portugués, eviden- ciando as suas similitudes com os Estados Sociais da Europa do Sul. Chamamos a atengao do leitor pa 0 fato de que jd neste capi- tulo, como nos subsequentes, se observard a contribuigdo das falas dos sujeitos desta pesquisa no texto, como indicamos na introdugao, permitindo trazer elementos vivazes as reflexdes apresentadas. ESTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 23 Formacées estatais do capital: a experiéncia do Estado Social 0 Estado na sua composigao na base material antagonica do capital nao pode fazer outra coisa sendo proteger a ordem sociometabélica estabelecida, defendé-la a todo custo, inde- pendentemente dos perigos para o futuro da sobrevivéncia da humanidade, Essa determinagio representa um obsté- culo do trabalho de uma montanha que nao pode ser igno- rado ao tentar a transformagao positiva tao necessdria de nossas condigdes de existéncia. (MESZAROS, 2015, p. 28). Desde © principio queremos afirmar que compreendemos 0 Estado enquanto componente do sistema do capital, que conforme nos ensina Meszaros (2015) é composto pelo conjunto capital, tra- balho ¢ Estado. Assim, ndo se pode compreender a esfera do Estado sem associa-la 4 sua base sociometabdlica. A materialidade do Estado esta profundamente enraizada na base sociometabilica antagonica sobre a qual todas as formagoes de Estado do capital sao erguidas. Ela é insepa- ravel da materialidade substantiva tanto do capital quando do trabalho. (MESZAROS, 2015, p. 29). O Estado Social corresponde a uma formagao estatal do capital determinada por processos econdmico-politicos e sociais. A génese do mesmo se deu num contexto histérico marcado pela crise econd- mica do capital de 1929*, com suas consequéncias sociais ~ 0 agra- vamento da questo social’, como resposta 4 mobilizagao da classe is 6 Acrise econdmica de 1929, considerada a maior crise econdmica do capitalismo até aquele ‘momento, iniciada no sistema econdmico norte-americano eestendida pelo mundo, coloca de alguma maneira um questionamento aos principios do liberalism, algo poderia estar cerrado; provoca desemprego em massa, ameacando a legitimidade do préprio capitalismo. 7 Ha que se dizer que a questio social, terminologia prépria do século XX, expressa 0 pauperismo tao bem tratado e explictado por Marx em sua obra O Capital Volume 1 Tomo 2 24 ACRISE DO ESTADO SOCIAL E OS IMPACTOS PARA CLASSE TRABALHADORA ela ameaga do comunismo (ndo se pode esquecer da ialista de 1917) e devido as nefastas consequéncias de trabalhadora Revolugao Soc duas grandes Guerras Mundiais. HA que se dizer que: A crise de 1929 evidenciou para os dirigentes mais Idci- dos da burguesia dos paises imperialistas a necessidade de formas de intervengao do Estado na economia capita- lista, Registramos que o Estado burgués sempre interveio na dinamica economica, garantindo as condigdes externas paraa produgio ea acumulagao capitalistas [Ji masa crise de 1929 revelou que novas modalidades interventivas tor- is: favia-se imperativa uma interven¢ao navam-se neces que envolvesse as condicdes gerais da producao e da acu- mulagao. (PAULO NETTO e BRAZ, 2006, p.192-193). Associado a isso, conforme j4 mencionamos havia a ameaca de revolugdes comunistas, deste modo, o liberalismo vé-se obri- gado a “fazer concessdes”, a se reformar, Entretanto, como elucida Meszéros (2015, p. 25, grifos do autor): “O liberalismo nunca poderia defender uma sociedade equitativa, apenas uma “mais equitativa” 0 que sempre significou “muito menos do que equitativa.” Marx ainda no século XIX (no final) ja escrevia a Critica ao Programa de Gotha, na qual denunciava a tentativa de cooptagio da classe trabalhadora na estrutura regulatéria do Estado alemio, obje- tivo deste Programa na época. Sem sucesso, seguiu-se a unificago do movimento operario, a sua ala mais radical com aqueles que jd haviam sido cooptados pelo Estado. Esse curso seguiu-se nao somente na Alemanha, eo Liberalismo reforma-se, incorporando demandas da classe trabalhadora (diga-se J na Alemanha, 7.000.000 de trabalhadores participavam de greves politicas ¢ econd- micas em 1920, De 1918 1921, a média anual de trabalhadores que entraram em greve na Gri Bretanha foi de quase 2 milhies; a greve dos mineitos, em 1921. acarretou a perda de 72,000,000 de dias de trabalho. Houve também grandes greves na Franga, a Italia € nos Fstados Unidos’. (VARGA apud PAULO NETTO e BRAZ, 2006, p. 193) ESTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 25 de passagem, financiadas pela propria riqueza advinda do trabalho), sem contudo ameacar a ordem do capital. autores que discutem esta forma Passemos a analisar alguns “mais equitativa” do Pierson (1991) ao discutir a origem do Welfare State coloca inalar a emergéncia de beral, alguns elementos que contribuem para as politicas sociais - elementos estes que j4 aparecem no final do século XIX e que decorrem da luta dos trabalhadores. O primeiro é 0 sur- gimento de politicas sociais orientadas pela légica do seguro social = proposta de Bismarck’ para Alemanha no final do século XIX. Embora fosse uma proposta de protegdo restrita porque condicio- nada a contribuigio direta prévia, foi um reconhecimento de que © trabalhador devia ser protegido das contingéncias” que nao Ihe permitiam trabalhar. © segundo aspecto que este autor traz é que muda a relagdo do Estado com 0 cidadao, e 0 mesmo aponta quatro aspectos desta mudanga: o Estado passa a incorporar o atendimento as necessidades sociais (ainda que se possa discutir como até que ponto) reivindicadas pelos trabalhadores; ha um reconhecimento legal dos seguros sociais instituidos; os direitos sociais passam a ser reconhecidos como constitutivos da cidadania; e, por ultimo, ha um crescimento do investimento pablico para garantir as politicas sociais - 0 autor mostra que a partir do século XX, os Estados euro- peus garantem em média 3% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em. investimentos sociais. Sobre o seguro social instituido por Bismarck, na Alemanha, nos anos de 1880, ha que se dizer que o mesmo tinha por objetivo © enfrentamento do movimento operario. Sobre isto Vianna (2002, p.4) nos diz: Os propésitos eos efeitos da legislagio social bismarckiana foram, de fato, muito mais politicos do que sociais. Os 9 Meszaros escreve em seu artigo na Revista Margem Esquerda n? 22 de abril de 2014 um teato em que evidencia o papel de Bismarck na derrota da Comuna de Paris 10 Contingéncias estas advindas da intensa exploragdo & que eram submetidos os trabalha- dores nos moldes capitalstas de trabalho. 26 ACRISE DO ESTADO SOCIAL € 05 IMPACTOS PARA A CLASSE TRABALHADORA problemas de maior urgéncia para os assalariados alemaes, naguela oportunidade (inspegao das condigies de traba- Iho, regulamentagio da jornada de trabalho, fis dos contratos de trabalho), nao foram tocados, Bismarck compartilhava com os liberais (€ com os empresérios) a alizagao firme opiniao de que qualquer interferéncia nos negécios privados seria nociva ao sistema. Mas, reprimindo rei dicages mais vigorosas, por um lado, e, por outro, ofere- cendo concessoes em termos de politica social, infringiu ‘uma derrota a0 movimento sindical e consolidou o recém- -unificado Reich. in- © foco desta proposta de seguro social era o trabalho assala- riado, desta maneira, Vianna (2002, p.5) coloca: [..]apolitica social ganha papel pré-ativo no sistema: asse- gura direitos sociais aos que dele participam, hierarquiza o universo dos merecedores de tais direitos segundo as suas, (dele) conveniéncias,e prové mecanismos de controle sobre os que dele se afastam. Estas protoformas de politicas sociais na Alemanha busca- vam, sobretudo, prevenir um novo 1848, ¢, com isso o Estado passa a assumir um outro papel, uma vez que a Revolugdo de 1848 evi- dencia que a dominacao de classe nao poderia mais passar apenas pela coergao, assim, o Estado assume o papel de estabelecer a coesio social, 0 consenso"', ¢ isso se da, também, via garantia de direitos sociais para a classe trabalhadora. n “£ com Gramsci que iio ser estudados os processos consensuais de diregio © de ddominagao, Ele ressaltou a complexidade das fungSes do Fstado, O Estado com sua forga legitimada, o Exército, a Policia, a Admnnistrayao Publica, os Tribunais et, drgios depo sitirios da fungdo de coergio. Esta é uma face A outta face &a extensio do Estado, que cle chamou de Sociedade Civil, num sentido diferente de Marx. A Sociedade Civil seria 0 “mbito em que se moveriam as instituigoes destinadas a obter o consenso das outras clas: ses sociais que foxmam com a classe dominante aquele bloco historico, que da estabilidade a formacao social, Aqui entram a Igreja, os Partidos Politicos, os Sindicatos, ay Escolas, ‘obviamente a Universidade, a Imprensa (hoje se incluiriam o rédio ¢ a televisio, com sta tremenda forga de comunicagéo), a Alta Cultura, o Senso Comum — a chamada sabe- doria popular, com os proverbios, o folclore etc. Este seria o terreno onde se formariam ESTUDO DO ESTADO socIAL PORTUGUES 27 O Estado Social substitui a ideia de eguro social pela de segu- ridade social”, As doutrinas que orientaram a constituigio dos Estados Sociais foram as de Keynes!" ¢ de Beveridge (economista britanico), Para Mishra (1995), 0 keynesianismo foi o componente econdmico do Welfare State ¢ 0 Plano Beveridge 6 componente constitut- social. Estas doutrinas, segundo Pereira, (2010, p. 3) * ". Este, ram 0 suporte tedrico do pacto keynesiano {..] foi firmado como uma alternativa capitalista ao capi- talismo liberal classico |... porque 0s liberais, que desde © século XIX estavam no poder, nio foram capazes de gerar emprego e bem-estar social para todos, principal mente apés a grande depressio econdmica dos anos trinta. (PEREIRA, 2010, p. 3). Cabe dizer que 0 Plano Beveridge, ao contrario do bismarc- kiano, propde um sistema de protegao social em que os direitos so a as conscignclas que aceitariam a ordem vigente. Mas, aceitaydo, aqui, ndo significa sub- missao passiva e resignagao ou ilusio de uma ordem ideal. Uma classe subalterna pode aceitar determinada ordem social, mesmo vendo-a injusta, Porém, ao considerd-la eterna, impossivel de maar, aguirea contianga de que poderé melhorar sua posigao, conquistar ‘la da o seu consenso, sua adesio ¢ apoio existéncia dessa ordem relormas, Nesse sentido, social, E a isto que Gramsci chama de hegemonia de wma classe dirigente. Uma classe & hegemnica, & diigente, a medida em que consegue obter 0 consenso das classes subal ternas, na medida em que supera a visio corporativa, em que ndo pensa apenas nos seus .imediatos e consegue interpretar 0s interesses das outras classes sob 0 entoque posigdo de supremacia, Se a classe dominante consegue fazé-lo, ‘uma visio corporativa, a interesses imediats, interesse do seu dominio, da sua ‘obtém o consenso, Se ela se restringir entao perde o consenso” (GORENDER, 1988; p 12 Boschetti (2003a) nos auxilia no estudo do campo da seguridade social, Segundo esta au tora. a seguridade social distingue-se de welfte sate ¢Fstado Providéncia (terminologia unhada pelos lranceses), mas ¢ elemento consittivoe fundante deste tupo de Estado € ‘hace sua abrangencia; ademas seguridade social nto deve ser eontundidae ner Himita daao seguro social, este & compe juntamen came de asistencia médica eauxiliosasistencias;¢, por fim alerta que para se entender a seguridade vocial¢prevso suplantar a anlisesfragmentadas parca das politias que ‘com ao menos outros tipos de programas, compoem este sistema, 13 *Preacupado em compreender a crise de 1929, e em encontrar respostas para ela, John Maynard Keynes (1883-1946), em seu elissico livra Teoria geral do emprego, do juroe da mmoeda, publicado em 1936, defendeu aintervengao estatal com vista areaivar a prod ao.” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 83) 28 AcaIsE D0 £5STADD SOCIALE 05 IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALHADORA universais, voltados a todos os cidadaos de maneira incondicional, ou, submetidos aos testes de meios, sendo que o Estado deve asse- gurar minimos sociais a todos que se encontrem “em condigdes de " Para financiar estas medidas, os recursos advém de io da contribuigio direta dos empregados e empregado- m participar do financiamento), a necessidade impostose r res (ainda que estes também possa tal. Sao pressupostos fundamentais do modelo gestio é publica, esta beveridgiano a unificagao institucional e a uniformizagao dos bene- ficios. (Marshall, 1967; Behring; Boschetti, 2007). O modelo econémico keynesiano, [..] se caracterizou por um crescimento auto-sustentado, custos reduzidos, altas taxas de lucro para o capital e pleno emprego, contribuindo para: a formagao de um consenso positivo e generalizado sobre o keynesianismo ea constru- ‘gio de um sistema de seguridade social abrangente e inclu- dente (diferente do inaugurado na Alemanha, no século XIX, pelo chanceler conservador Otto Von Bismarck, que excluia quem nao estivesse inserido no mercado de traba- tho). (PEREIRA, 2010, p. 10) Netto e Braz (2006, p. 204-205) nos chamam a atencdo para o fato de que, [..] a intervengéo estatal desonera o capital de boa parte dos onus da preservagao da forca de trabalho, financiados agora pelos tributos recolhidos da massa da populagao — financiamento que assegura a prestagao de uma série de servicos piblicos (educagio, transporte, satide, habitagdo, tc) Mandel, em suas obras de 1982 ¢ de 1990, fala que o sistema de protesao social vai possibilita rar produgao ampliada do capital, na medida em que os direitos sociais se universalizam em forma de ser- vigos e/ou prestagdes sociais ¢ garantem uma melhora nas condigdes de vida, alguma redugio das desigualdade: mento do fundo piblico. dciais e compartilha- ESTUDO D0 ESTADO SOCIAL PORTUGUES 29 0 socidlogo brasileiro Francisco de Oliveira (1988, p.8) mostra que o fundo publico “[..] passou a ser © pressuposto do financia- mento da acumulagao de capital, de um lado, e, de outro, do finan- ciamento da reprodugao da forga de trabalho, atingindo globalmente E com o aumento toda a populacao por meio dos gastos socia 0 que se observa & um aumento do que das despesas publicas totai denomina “salirio indireto” comparado ao “salario direto”. Assim, @ Ihador se da via saldrio direto e indireto, ambos reprodugao do traba nutridos da riqueza gerada pelo trabalho. Com a implementagio das ideias keynesianas, que garan- tem além do crescimento econdmico a produgio e reproducao da classe trabalhadora, via politica de pleno emprego € direitos sociais (financiados pelo salirio indireto), 0 capitalismo vive o perfodo que se denominou “anos dourados*”, possibilitando a consolidacao do Estado Social James O'Connor no livro US: 1977, vai dizer: : A crise Fiscal do Estado de [..] 0 Estado capitalista tem de tentar desempenhar duas funcBes basicas e muitas vezes contraditorias: acumulagao ¢ legitimacio |... Isto quer dizer que o Estado deve ten- tar manter, ou criar, as condigdes em que se faca possivel uma lucrativa acumulagao de capital. Entretanto, o Estado também deve manter ou criar condigdes de harmonia social. Um Estado capitalista que empregue abertamente sua forga de coagao para ajudar uma classe a acumular capital 3 custa de outras classes perde sua legitimidade e, portanto, abala a base de suas lealdades e apoios. Porém, um Fstado que ignore a necessidade de as ro proces: de acumulacio de capital arrisca-se a secar a fonte de seu 14 “Aparentemente o talorismo-fordismo e 0 keynesianismo,feitos um para outro, con- solidariam o ‘capitalismo democratico’ a produgao em larga escala encontraria um mer cado em expansio infinita ea intervenyao reguladora do Estado haveria de controlar as crises. Anunciava-se um capitalismo sem contradighes, apenas contlitivo ~ mas no {quadro de contlitos que seriam resolvidos & base do consenso, capa de ser construi ddo mediante os mecanismos da democracia representativa.” (PAULO NETTO e BRAZ, 2007, p. 212. 30 ACRISE DO ESTADO SOCIAL FOS IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALHADORA cidade de producao de excedentes recadados deste excedente (€ (Q’ CONNOR, 1977, p. 19). proprio poder, & capa econémicos € 0s impostos ar de outras formas de capital” fungdes que Ihes jal: com 0 que social, a fim tor o Estado tem duas ntes tipos de gasto soc ‘Assim para este a sdo proprias, que exige difere! chama de capital social, subdivididos em investimento balhadores ¢ para rebaixar 0s alho, e as despesas social de acumulagao. E todas do capital, sobre- de aumentar a produtividade dos tral a forga de trab: custos da reprodugao d; gastos para lidar com os efeitos do processo as despesas estatais respondem as necessidade tudo do setor monopolista. do setor monopolista tem Sido a expansio do setorestatal {1 o efeito geral do cres- vimento do setor monopolista tem sido o crescimento do o crescimento dos setores monopolist € 7, p. 40). ‘A causa geral do cresciment' setor estatal.[..] estatal s4o um dinico processo. (O’ CONNOR, 19) ‘Assim, pode-se dizer que 0 setor monopolista socializa os custos da producao. © orgamento estatal pode ser visto como um mecanismo complexo que redistribui rendas para trds ¢ a frente, no seio da classe trabalhadora - tudo para manter a harmo- nia politico-social, expandir a produtividade e acelerar a acumulacao e a lucratividade no setor monopolista. (O° CONNOR, 1977, p. 167). J4 numa concepgio marshalliana, os direitos econémicos € sociais se constituem como um prolongamento, natural dos direitos civis, O Estado Social corresponde a uma reformulagio do contrato social. O movimento de génese do Estado Social, portanto, para nvallon Marshall (1967), e também na mesma perspectiva para Ros (1998) e Ewald (1986) “E um movimento natural que supde a evolu- a do campo dos direitos: de direitos civis a politicos, is. (ARRETCHE, 1995, p. 22). ga0 progressi de politicos a so ESTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 31. de-se indagar: Quais s4o os principios fun- cial? Quais os elementos que o caracterizam? Mishra (1995), os fundamentos do Welfare everidge: a) responsabili- vida dos cidadaos nomia de ponsabi- (como Neste momento, po damentais do Estado S De acordo com State sto 0s mesmos apontados no Plano B dade do Estado na manutengao das condigdes de através de um conjunto de medidas ~ regulagao da eco ‘ar alto nivel de empregos Tes] servigos sociais universais a garantia de mercado no intuito de assegur: lidade publica com a garantia de habitacao, assisténcia médica, ete.) como também cervigos sociais pessoais; b) universalidade dos servigos socials: 3 garantia de uma rede de servigos de assisténcia social. Ainda que estes tragos possam constituir-se como referéncia, vale dizer que nao ha um “tipo ideal” de Estado Social. Este se efetivou de diferentes maneiras nos diferentes paises - 0 que se pode afirmar é que este foi possivel num determinado momento histérico particular, conforme ja se demonstrou aqui; que é um Estado que tem um papel fandamental na regulagao das relacdes sociais e econdmicas, ¢, que ha algumas caracteristicas comuns que unem uma experiéncia de Estado Social (de um pais) a outra (de outro(s) pais(es)). O que se percebe, ainda, é que as andlises do Estado Social comumente utilizam como referencia os modelos bismarckianos e beveridgianos para caracteri- zagao dos mesmos. E,a percepcao de similitudes e diferencas inspirou algumas tipologias de Estado Social, que, por sua vez, tendem a esta- belecer padrdes de protegio social. Vianna (1991) chama a atencao para o “viés endogenista” que tem marcado as tendéncias de classificagio do Welfare State ~ 0 que ignifica dizer que as “tipologias” do Estado Social se respaldam em elementos internos do mesmo, como exemplo, o “[..] financiamento, 0 acesso a beneficios ¢ servicos, a extensio da populagio coberta, 0 valor das prestagdes [..]” (p. 136) [A primeira tipologia clissica elaborada é a de Titmuss (1974), que classifica os Estados de Bem-Estar Social a partir de trés mode- Jos: welfare residual ~ caracterizado por politicas seletivas; welfare meritocratico ~ particularista - corporativo e clientelista; e welfare institucional-redistributivo - caracterizado por uma_ politica 32 ACRISE DO ESTADO SOCIAL E OS IMPACTOS PARA CLASSE TRABALMADORA substancialmente universalista ¢ igualitéria, mais ou menos tempe- rada pela politica seletiva. Esping-Andersen (1999) nos seus estudos de distintos Estados de Bem-Estar Social curopeus, os diferencia a partir do peso entre mercado ¢ Estado, ou seja, pelo grau de desmercantilizagao/alcance das politicas sociais. Neste sentido, propae trés modelos de Estado de Bem-Estar Social: 0 Liberal (Residual) - as ages do Estado se direcio- ham as pessoas que necessitam; o Conservador (Corporativo) ~ “La ‘gen su mezcla de segmentacion esencia del régimen conservador ra de estatus y familiarismo”. (p. 111); ¢ 0 social-demoerata - “Ademas del universalismo, el Estado del bienestar socialdemécrata esta espe- cialmente comprometido con una cobertura de riesgos global y unos niveles de subsidio generosos, asi como con el igualitarismo” (p.107) Em que se pese 0 esforco destes estudiosos em propor “tipo- logias” que permitam vislumbrar e entender os diferentes tipos de Estado de Bem-Estar Social, Vianna (1991, p.138) alerta para: Os problemas que aparecem em ambas as tipologias, rela- 10 de cionados com a mencionada endogenia do enfoque, duas ordens: 1) aidealizagao de um tipo perfeito de Welfare State que se auto-explica (redistributivo em si) e 2) o estrei tamento do componente politico incorporado anélise (visto prioritariamente pelo lado da demanda, como mobi- lizacao de poder para alavancar a democratizagio social do capitalismo via sistema e welfare) Estas tipologias colocam o que Vianna (1991) considera mais do que um tipo ideal na perspectiva weberiana, um “tipo per- feito” de Welfare, baseado num ideal de justiga - aquele que é mais redistributivo. ‘Acerca disto, Offe (apud Vianna, 1991) coloca que os Estados de Bem-Estar Social mais desenvolvidos se encontram em socieda- des altamente homogéneas. Da o exemplo da Suécia. ‘A énfase nos componentes internos do Welfare State leva, por um lado, a idealizagio do modelo soc mocrata, valorizado (e desejado) por sua int ESTUDO DO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 33 redistributividade, omitindo-se que boa parte de seu sucesso deve ser creditada a uma prévia homogeneiza- go da estrutura sécio-econdmica. Por outro, essa énfase subestima o papel desempenhado pela politica na diferen- 40 de sistemas. (Vianna, 1991, p. 142). Ha que se considerar que a Suécia teve 44 anos (1932-1976) de lideranga social-democrata, que o Estado Social foi garantido tanto por politicas econémicas quanto sociais, que desde 1913 j4 assegura uma pensdo universal e obrigatéria para pessoas idosas, portanto, ~ € um conjunto de elementos que vai possibilitar a consolidagao de um Estado Social de cunho m, universalizado e distributivo. Diferentemente do que ocorre na Europa do sul, conforme demonstraremos a seguir. Formagées estatais do capital: a experiéncia do Estado Social da Europa do Sul Os Estados Sociais da Europa do sul em geral caracterizam-se: Lu] por Estados Sociais relativamente recentes e pouco desenvolvidos, baseados em esquemas de prote¢ao social anteriores criados pela Igreja Catdlica e/ou por regimes autoritérios. Caracterizam-se igualmente por combinarem fortes compromissos politicos em materia social (por exem- plo, por terem Constituigdes que obrigam a concretizagao de direitos sociais), sistemas politicos clientelares (nos quais se incluem partidos, sindicatos, ordens protissionais ¢ outros grupos de interesse) e um aparelho de Estado relativamente fraco e vulnerével[..] (SILVA, 2013, p.30) Os paises da Europa do Sul - Portugal, Espanha, Itilia e Grécia'? - nao desenvolveram seus Estados Sociais pela via clissica, 15 Eimportante dizer que quando falamos em Europa do sul nio estamos apenas designando ‘uma localizacao geografica, mas, sobretudo, processos politico-economicos e sociais que aproximam estes paises, nao sem diferengas. 34 ACRISE D0 ESTADO SOCIAL E OS IMPACTOS PARAA CLASSE TRABALMADORA nos anos 40 do século XX. Como apontou Silva (2013), sao Estados considerados, para 0 caso europeu, mais tardios, cujas raizes trazem marcas" da protegao social levada a cabo pela Igreja Catélica, muito presente nesta parte da Europa, cujo papel da familia na protecio social também é relevante, ¢ cuja conquista dos direitos sociais - em Portugal, por exemplo ~ esta associada ao processo de democratiza- 80 do pais, pds periodo ditatorial Silva (2002) nos diz que do final dos anos de 1920 até meados dos anos de 1970, ainda que com nuances diferentes, estes paises passaram por regimes autoritdrios de extrema direita, o que impe- diu o desenvolvimento de instituigdes liberais democraticas e 0 cor- porativismo se torna o principio organizador dessas sociedades. Ha diferengas de abordagens em relacao 4 natureza do Estado Social da Europa do sul. Uma primeira afirma que estes si uma versao menos desenvolvida do Estado Social corporativo (Esping- Andersen, 1999). E uma segunda versio “[...] que defende que ha um conjunto de caracteristicas que dificultam uma incorporagao linear destes paises naquele modelo (Ferrera, 1996). Todos os paises da Europa do sul dispdem de provisdes de tipo bismarckiana baseados no estatuto ocupacional, 0 que os asseme- tha aos Estados Sociais de tipo corporativos, cujo objetivo central de suas politicas sociais é a manutengdo de formas preexistentes de solidariedade e a manutengao da coesdo social, ainda que o percen- tual do PIB gasto por estes paises em protecio social seja menor. 16 Odesenvolvimento das politics sociais ocorreu através de uma fusio entre Estado e Igreia Catélica na garantia de protegao social ESTUDO pO ESTADO SOCIAL PORTUGUES 35 a van | Estraténlasde Modelo de sos socials panier welfare Paises associados es cena [Austria Discriminatério ; ow protesae Belgica, das mulheres | precoce de Corporative }sepunde Fheargos sociars. | de trabalho com amao-de-o- | Aumento da Inducan da saida mercado Continental oestatuto profissional [Holanda [Iraetevados | produtividade Proteydo social | Luxemburg | Excesso de peso | Prestagiies sociais dlos tuncions das slespesas com | de devemprego e de Hos publicas pensires reforma antecipada elevada Diticuldade elevadas fem responder a niveis elevados de L desemprego Anglo: Prestagdes [Reino Unido |Armadithas de | Desregulacao do saxonico ou | sujeitasa Irlanda pobreza mercado de trabalho Liberal condigio de ‘Aumento da desi- | Flexibilidade recursos gualdade sociale | salarial, redugao do Importancia da pobreza valor dos salarios do setor Trabalhadores | mais baixos privado nas pouco qualifi- | Brosio do valor das pensies cadose baixos | prestagoes Importancia saldrios Redugao de progra- das despesas ‘mas sociais privadas com satide Escandinavo | Acesso Reino Unido |Dificuldades de | Expansio dos ou universal | Irlanda financiamento _ | servigos sociais, com Social Prestayoes Dificuldades de | criagao de emprego democritico | igualitérias manutensio de | piiblico Servigos de niveis elevados | Expansdo da parti apoio as fami- de qualidade do | cipagéo feminina no lias desmerca servigo piblico | mercado de trabalho dorizadas Limites do Expansdo do traba- emprego no setor [Iho em part-time publico Desenvolvimento de Erosio do ideal | medidas ativas de ristico | insergao mo mercado subjacente de trabalho Fonte: l:laborado por Joao Paulo da Fonseca Domingos", baseado em SI (2002). Em que pese que as tipologias apresentem semelhangas e diver- géncias entre Estados Sociais configurados nos diferentes paises, elas apresentam limitagdes para explicar as especificidades de cada 17 Joao Paulo da Fonseca Domingos colaborou como bolsista PIBICICNPg na pesquisa, atra- vés de claboragbes de alguns grficos, pesquisa documental transcrigdo das entrevista. 36 ARISE 00 ESTADO SOCIAL E 05 IMPACTOS PARA A CLASSE TRABALHADORA um dos paises que fazem parte de um determinado modelo e ainda esto condi jonadas aos critérios utilizados na analise que possibili tam a composigio do agrupamento. Ainda que com historias diferentes, os pontos de convergeneia n dos sistemas de protegio social dos paises da Europa do sul pode ser resumidos em: nestes paises os sistemas de protegio social sito mistos, ou seia, por um lado contemplam beneticios pecunidrios de satide nacio apresentam sistemas d tipo bismarckiano, por out nais de cariter universal, seguindo a k6gica beveridgiana, ainda que estes estivessem sendo ameagados no periodo pos crise de 2008 (FERRER A; HEMERUCK: RHODES, 2002), Outra caracteristica importante nos cial destes paises é o lugar istemas de protesio s (0 Estados que colocam a familia que a familia ocupa nos mesmos, no centro da protegao social de seus membros, chamado por Esping, Andersen (1999) de “familiarista’, 0 que significa que as familias ‘0 social de seus devem assumir um papel preponderante na prote: componentes. Também, segundo Ferrera, Hemerijek e Rhodes (2002), a seguranga social oferecida pelos estados da Europa do sul € so se relaciona com a historia destes paises, incipiente, obviamente i € seus contextos socioeconémicos. Nas palavras de Ferrera (1999, p. 460), referenciando alguns estudiosos, os Estados So: ais dos paises da Europa do Sul caracte- rizam-se pel [..] relativo subdesenvolvimento do Estado social e a dis- crepiincia entre as medidas prometidas (¢ por vezes até legisladas) © as realmente levadas pritica (Leibtried, 1992; Gough, 1996); a importincia e elasticidade da fami- lia como uma espécie de carteira de compensagao pata 0 bem-estar dos seus membros — com implicagdes impor- tantes em termos de género (Castles, 1995; Moreno, 1996. e 1997; Saraceno, 1994; ‘Trifiletti, 1999); uma cultura social imbuida de um tipo especitico de solidariedade muito influenciado pela doutrina social da Igreia (Castles, 1994: Van Kersbergen, 1995). EsTUDO Do ESTADO SOCIAL PORTUGUES 37

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