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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

DO SUL DE MINAS GERAIS CAMPUS POUSO ALEGRE


CURSO DE GRADUAÇÃO EM LICENCIATURA EM MATEMÁTICA

ELUANA BERTELI MOKWA


MARIA THAÍS PEREIRA

A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA FORMAÇÃO DO CIDADÃO CRÍTICO

POUSO ALEGRE
2022
ELUANA BERTELI MOKWA
MARIA THAÍS PEREIRA

A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NA FORMAÇÃO DO CIDADÃO CRÍTICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Graduação em Licenciatura em
Matemática do IFSULDEMINAS – Campus Pouso
Alegre, como requisito parcial à obtenção do Título
de Licenciatura em Matemática.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Xavier Duarte.

POUSO ALEGRE
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
IFSULDEMINAS – Campus Pouso Alegre
Biblioteca Paulo Freire

Mokwa, Eluana Berteli.


A educação matemática na formação do cidadão crítico [recurso
eletrônico] / Eluana Berteli Mokwa, Maria Thaís Pereira. -- 2022.
1 arquivo pdf, 30 f.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Xavier Duarte.

Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura) – IFSULDEMINAS -


Campus Pouso Alegre, 2022.

1. Educação matemática. 2. Educação crítica. 3. Cidadania. I. Duarte,


Paulo César Xavier, orientador. II. Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Sul de Minas Gerais (Campus Pouso Alegre). Curso de
Licenciatura em Matemática. III. Título.

Elaborada por Eric Fabiano Esteves – CRB-6_MG-002254


Bibliotecário IFSULDEMINAS – Campus Pouso Alegre
AGRADECIMENTOS
Nossos agradecimentos a todos nossos amigos e familiares que nos
apoiaram em nossa trajetória acadêmica.
Aos professores, pelos ensinamentos e dedicação.
Aos demais profissionais do IFSULDEMINAS- campus Pouso Alegre, por ter
nos proporcionado um ambiente acolhedor e propicio à aprendizagem.
EPÍGRAFE

“Convivendo com outros, na iminência da


possibilidade de ver brotar um ponto de vista que
enriqueça o meu, procuro por modos de ver, os
analiso, os rebato, os sustento. Faço surgir
concepções e considerações integradoras,
refutadoras, conservadoras, etc., a partir de diálogo
que sustento com os que falam sobre coisas que
me deixam perplexos e que, por esse motivo,
tematizo. Recolho informações e as decomponho,
interpreto, analiso, recontextualizando-as. Vou até
o outro para que ele possa me dizer o que sabe, o
que ele me diz descrevendo, exercitando-se no
aparente paradoxo da comunicação.” (GARNICA,
1999, p. 64)
RESUMO

Pretende-se, nesse trabalho de conclusão de curso, explorar as contribuições que a


educação matemática pode trazer ao desenvolvimento do senso crítico no indivíduo,
para que seja possível a educação para a formação do cidadão, isto é, indivíduos que
tenham competência de exercer a cidadania crítica. A partir de análises do contexto
geral da educação matemática percebe-se ainda o seu ensino baseado no paradigma
do exercício, prática que vem sendo cada vez mais questionada por pesquisadores
da educação. Buscou-se, contudo, nesta pesquisa identificar as problemáticas
concernentes à educação matemática fundamentando-se em uma pesquisa
bibliográfica cujo objetivo é responder a seguinte questão: "De que maneira a
educação matemática pode contribuir para o desenvolvimento da cidadania crítica?
Para tal, esse trabalho baseou-se nas publicações de autores da educação crítica e
da educação matemática crítica, em especial Paulo Freire e Ole Skovsmose e em
documentos legais que norteiam o tema. Como resultado da pesquisa constatamos
que a matemática pode ser abordada de uma maneira crítica ao se trabalhar em sala
de aula problemas da realidade com a intenção de fomentar o desenvolvimento do
senso crítico criando oportunidade de diálogo e participação.

Palavras-chave: Educação matemática. Educação crítica. Cidadania.


ABSTRACT

It is intended, in this Final paper, to explore the contributions that mathematics


education can bring to the development of critical sense in the individual, so that
education for the formation of citizens is possible, that is, individuals who have the
competence to exercise critical citizenship. From the analysis of the general context of
mathematics education, it is still possible to perceive its teaching based on the exercise
paradigm, a practice that has been increasingly questioned by education researchers.
However, this research sought to identify the issues concerning mathematics
education based on a bibliographic research whose objective is to answer the following
question: "How can mathematics education contribute to the development of critical
citizenship? This work was based on publications by authors of critical education and
critical mathematics education, especially Paulo Freire and Ole Skovsmose, and on
legal documents that guide the theme. As a result of the research, we found that
mathematics can be approached in a critical way when work in the classroom with
problems of reality with the intention of fostering the development of critical thinking,
creating opportunities for dialogue and participation.

Palavras-chave: Mathematics education. Critical education. Citizenship.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BNCC Base Nacional Comum Curricular


DCNs Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
EMC Educação Matemática Crítica
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
NCMT Concelho Nacional de Professores de Matemática
PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais
PNE Planos Nacionais da Educação
TICs Tecnologias da informação e Comunicação
SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 10
2. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA 13
3 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 16
3.1 Cidadania e Educação Matemática 18
3.2 Educação Matemática Crítica 20
3.3 A Matemática como Instrumento Da Cidadania 22
3.3.1 Modelagem matemática 23
3.3.2 Resolução de problemas 26
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 28
REFERÊNCIAS 29
10

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O ensino da matemática na educação básica brasileira tem sido foco de


trabalhos acadêmicos, que na tentativa de compreender sua relevância no atual
modelo de sociedade e/ou denunciar suas incongruências, convergem em um ponto:
é preciso repensar, desconstruir, ressignificar práticas de ensino da matemática, que
vem sendo tradicionalmente baseadas na memorização de fórmulas, regras,
definições e na resolução de problemas sem relevância para o desenvolvimento do
senso crítico.
Percebe-se que a educação matemática tem se perpetuado em uma prática de
educação passiva, de modo que é mais valorizado a reprodução de modelos do que
a compreensão conceitual do que é ensinado. Dessa forma, o aluno passivamente
repete o que lhe é ensinado sem, no entanto, se envolver no processo ou se preocupar
em entender os “por quês” de tais ações. Por exemplo, o aluno saber que o produto
de dois números negativos resulta em um número positivo não significa que ele se
apropriou do conceito por traz dessa propriedade da multiplicação, significa apenas
que ele reproduz o que o que o professor faz.
Essa forma mecanizada de ensino tem sido motivo de crítica entre educadores
desde o Séc. XX. Paulo Freire em seu livro “Pedagogia do Oprimido” dedica parte da
obra a denunciar esse tipo ensino, que fica conhecido como “educação bancária”. Esta
acontece quando o professor, como o detentor do conhecimento, transmite-o aos
alunos, por via expositiva, de tal forma que pouco se assimila e pouco se reflete sobre
o que foi “aprendido”. “Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e
depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente,
memorizam e repetem.” (FREIRE, 1987, p.33).
A educação bancária é comumente constatada nas aulas de matemática, já
que é senso comum acreditar que, pelo rigor matemático aliado ao extenso currículo
da disciplina, pouco tempo sobra para contextualizar o conteúdo, trabalhar com a
interdisciplinaridade e buscar dar um sentido para a aprendizagem. Dessa forma, o
ensino fica majoritariamente pautado no paradigma do exercício.
Esses exercícios, geralmente obtidos através do livro didático, se apresentam
na forma de problemas “estéreis”, cuja finalidade é pautada no uso correto do
algoritmo e não na produção do conhecimento, fruto do resultado que aquele
11

problema pretende responder. Ademais, trata-se de problemas já “formatados”, ou


seja, apresenta as variáveis em seu próprio enunciado e só admitem um único
resultado. A consequência disso é um “currículo oculto” que acaba por gerar uma
superficialidade de envolvimento com o saber, não fomenta a reflexão crítica, além de
gerar uma inclinação, nos alunos, a esperar que os problemas “reais” também tenham
respostas binárias.
A partir de 1980, surge na Europa uma tendência em educação matemática na
intenção de fazer-se refletir sobre as incoerências desse saber, denominada
Educação matemática crítica (EMC). Para ela é importante entender qual é o papel
do ensino da matemática para a sociedade. Questões como: “quem se beneficia com
o currículo escolar vigente?”, “Como evitar que a matemática induza o preconceito, a
má utilização dos dados, e a redução do ser humano a números?”, “É possível existir
neutralidade no ensino da matemática?”, são preocupações dessa corrente de
pensamento.
Levando em consideração as relações de poder existentes na sociedade e o
emergente avanço tecnológico, que moldam a forma como entende-se a educação,
busca-se trazer nesse trabalho - a partir da perspectiva da EMC - reflexões que
versem sobre a educação matemática voltada para formação do cidadão crítico e
participativo. Dessa forma, esse trabalho está voltado a seguinte questão norteadora:
De que maneira a educação matemática pode contribuir para o desenvolvimento da
cidadania crítica?
A justificativa para o tema, se fundamenta em dois pontos: o primeiro refere-se
a nossa trajetória formativa, tendo em vista se aproximar das inquietações que nos
impulsionam a compreender os desafios da educação matemática. Entende-se que é
preciso reforçar que objetivo fundamental da educação básica não é o ensino técnico,
nem a preparação para vestibulares, mas a necessidade de se construir uma escola
voltada à formação do cidadão pleno1.
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNs) 1 esse
objetivo está explícito no princípio cívico da educação, no que diz:

Compreender e realizar a educação, entendida como um direito


individual humano e coletivo, implica considerar o seu poder de
habilitar para o exercício de outros direitos, isso é, para potencializar

1
As Diretrizes Curriculares Nacionais- DCNs são normatizações obrigatórias para a Educação
Básica. O seu intuito é orientar o planejamento curricular das instituições de ensino.
12

o ser humano como cidadão pleno, de tal modo que esse se torne apto
para viver e conviver em determinado ambiente, em sua dimensão
planetária. (BRASIL, 2013, p.16).

De forma análoga, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)2, temos que


“O papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das
sociedades amplia-se ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a
necessidade de se construir uma escola voltada para a formação de cidadãos.”
(BRASIL, 1998).
Dessa forma, entende-se que a educação deve buscar construir um ambiente
favorável ao desenvolvimento da autonomia e das competências necessárias ao
indivíduo para que este venha a exercer a cidadania, isto é, a sua participação
consciente, e responsável na sociedade. Por conseguinte, busca-se entender qual a
contribuição da educação matemática a esse fim, sendo assim, destaca- se como
objetivo dessa pesquisa, reconhecer as potencialidades da educação matemática
para o desenvolvimento do senso crítico e da formação do cidadão pleno. Para isso,
pretende-se pontuar o que é a educação matemática crítica e relacionar a educação
matemática e a formação do cidadão crítico.
Adota-se como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, com
abordagem qualitativa, considerando as principais obras que versam sobre educação
crítica e EMC, como as publicações de Paulo Freire e Ole Skovsmose, bem como
trabalhos de teses e dissertações que corroboram com o tema proposto.
Sendo assim, após pontuar a contextualização desta pesquisa, aborda-se no
segundo capítulo os procedimentos metodológicos utilizados, no terceiro capítulo as
bases conceituais e teóricas que orientaram o desenvolvimento do trabalho e por fim,
as considerações finais.

2
Os Planos Nacionais de Educação - PNE são uma Coleção de documentos com a finalidade de
nortear a grade curricular das instituições de ensino em âmbito nacional.
13

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A pesquisa científica, de acordo com Gil (2002), é uma investigação minuciosa


e sistemática e que tem como objetivo responder a um problema da sociedade. É
requerida quando não se dispõe de informações suficientes para respondê-lo, ou
quando estas estão disponíveis em estado de desordem de tal modo que não possa
ser adequadamente relacionada a ele.
Dessa forma, durante nossa trajetória acadêmica nos deparamos com alguns
problemas no âmbito da educação matemática que nos impulsionaram a elaborar a
presente monografia, como por exemplo o ensino maçante da Matemática. Problemas
como os mencionados na introdução, colaboraram para que fosse levantada a
seguinte questão norteadora: “como educação matemática pode contribuir para o
desenvolvimento da cidadania crítica?” A partir desse questionamento adotamos os
procedimentos metodológicos que se fizeram necessários à realização dessa
pesquisa quanto à natureza, a abordagem, o procedimento e os objetivos.
A natureza da pesquisa é o que impulsiona o pesquisador; esta é comumente
dividida em “pura” e "aplicada'', sendo a pura denominada também por “básica”. Para
Gerhardt e Silveira (2009, p. 35) a pesquisa de natureza básica “Objetiva gerar
conhecimentos novos, úteis para o avanço da Ciência, sem aplicação prática prevista.
Envolve verdades e interesses universais”. A aplicada, “Objetiva gerar conhecimentos
para aplicação prática, dirigidos à solução de problemas específicos. Envolve
verdades e interesses locais”. Entretanto elas não são mutuamente excludentes pois,
da mesma forma que uma pesquisa “pura” que tem por fim “fazer ciência” pode criar
um conhecimento que tenha aplicação prática imediata, a recíproca também é válida.
Por afinidade assumimos como natureza a básica, pois intencionamos com a pesquisa
enriquecer a base de conhecimento científico sobre o tema.
A abordagem metodológica é de natureza qualitativa, com vistas a produzir
conhecimento crítico-reflexivo acerca do tema, onde os resultados não serão obtidos
através da interpretação de dados mensuráveis em números, mas em análises
subjetivas de fenômenos expressos na sociedade. Isso nos remete a Minayo (2001)
no que diz:
14

a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados,


motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis. Aplicada inicialmente em estudos de Antropologia e
Sociologia, como contraponto à pesquisa quantitativa dominante, tem
alargado seu campo de atuação a áreas como a Psicologia e a
Educação. A pesquisa qualitativa é criticada por seu empirismo, pela
subjetividade e pelo envolvimento emocional do pesquisador
(MINAYO, 2001, p. 14).

Também Minayo(2002), esclarece que:

a diferença entre qualitativo-quantitativo é de natureza. Enquanto


cientistas sociais trabalham com estatística apreendem dos
fenômenos apenas a região "visível, ecológica, morfológica e
concreta", a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos
significados das relações humanas, um lado não perceptível e não
captável em equações, médias e estatísticas (MINAYO, 2002, p.22).

Para a pesquisa qualitativa a fonte de dados é o próprio ambiente natural, e,


portanto, levamos em consideração que existe uma pluralidade de perspectivas e a
realidade não é tida como algo objetivo. Nesse sentido Garnica argumenta que “[...] O
homem torna-se homem afetado pelo que o cerca, vivendo com outros homens e com
outras coisas desse mundo (con-vivendo), compreendendo isso pelo que é afetado e
comunicando suas compreensões, com-partilhando-as.” (BICUDO et al., 1999, p. 63)
Isto posto, pode-se dizer que a pesquisa fundamenta-se em dados
bibliográficos e que vão se somando para que possamos extrair uma conclusão
indutiva - não definitiva - mas que depende das compreensões que temos sobre o
mundo, compreensões estas que não são meramente subjetivas já que são
compreensões compartilhadas, fundamentadas, mas que sofrem algumas influências
culturais, sociais e históricas. Por isso, não temos a intenção de esgotar o assunto,
mas fazer um convite a uma revisitação do tema, compartilhar nossas inquietações
para que outras pessoas possam complementá-las, discuti-las e aprofundá-las
criando um ciclo interminável de investigação.
Quanto ao procedimento adota-se a pesquisa bibliográfica, que como aponta
Gil (2007), “[...]é norteada por materiais já publicados, podendo ser livros e artigos
científicos”. A leitura é um dos fatores imprescindíveis em qualquer pesquisa, pois ela
abre um horizonte de conhecimentos que nos enriquece com dados e informações
valiosas das quais nos debruçamos com o objetivo de obter, analisar e organizar as
15

ideias encontradas que nos auxiliarão em nossa reflexão sobre o problema


investigado.
Pretende-se com esse trabalho proporcionar uma familiarização e, por
conseguinte, contribuir com novas ideias do tema apresentado. Sendo assim segue-
se que o objetivo da pesquisa almejado é de natureza exploratória, pois novamente
segundo Gil,

este tipo de pesquisa tem como objetivo proporcionar maior


familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou
a construir hipóteses. A grande maioria dessas pesquisas envolve: (a)
levantamento bibliográfico; (b) entrevistas com pessoas que tiveram
experiências práticas com o problema pesquisado; e (c) análise de
exemplos que estimulem a compreensão (GIL, 2007, p. 41).

Sendo assim após pontuar os aspectos metodológicos desta pesquisa, passa-


se a destacar aspectos da Educação Matemática.
16

3 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Há muitas discussões no campo acadêmico do que vem a ser a matemática.


Galileu Galilei a descreveu como a “linguagem do universo”, de forma análoga, há
quem a considere como sendo uma invenção propriamente humana e que busca
explicar o mundo fenomenológico. Independentemente da posição filosófica que
assumamos, sabemos que a matemática faz parte do desenvolvimento humano desde
os tempos pré-históricos e hoje representa a essência do que é chamado pensamento
moderno.
O conhecimento matemático tem se passado de geração em geração por meio
da educação matemática, sendo ela institucionalizada ou não. A transmissão formal
desse conhecimento se dá através das instituições de ensino e a informal é adquirida
no quotidiano, na mídia, na cultura etc. Na escola, o aluno tem a possibilidade de
aprender conceitos da matemática elementar de forma didática, metódica, estruturada
(currículo), por profissionais capacitados e com grau de complexidade por faixa etária.
No Brasil, começou-se a falar em Educação Matemática a partir de 1910,
posteriormente ao movimento internacional sobre o tema, que culminou em várias
propostas de reforma do ensino desse campo de conhecimento. Nessa época houve
calorosos debates públicos sobre os rumos da educação matemática no país e
resultaram em algumas reformas no ensino, dentre elas podemos citar: a criação da
disciplina de matemática como a unificação das disciplinas de álgebra, aritmética e
geometria que antes eram ensinadas separadamente; os debates sobre a formação
de professores e a distinção entre o ofício do matemático e do docente. (VALENTE,
2005, p.89)
Nos anos que se seguem, a fim de nortear e padronizar a Educação no país,
temos alguns marcos históricos no sistema político educacional que influenciaram o
campo da educação matemática, dentre esses documentos destaca-se a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 3 n°
4.024/1961, posteriormente reformulada pelas leis nº 5.692/1971, durante o regime
militar, e a nº 9.394/1996, vigente até hoje; A Constituição Federal 4 de 1988, que
assegurou a universalização do ensino básico; os Parâmetros Curriculares Nacionais-

3
Lei que estabelece as diretrizes e bases para a Educação Nacional no Brasil.
4
A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, é a Lei maior que rege todo
o ordenamento jurídico brasileiro hoje.
17

5
(PCN’s) de 1997/1998; os Planos Nacionais de Educação (PNE) ; e mais
recentemente a Base comum curricular (BNCC)6 de 2017.
A constituição Federal de 1988 assegurou a educação como um direito de
todos e declarou que a ela compete promover “[...] o pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL,
1988, p. 109) para isso ela reconhece a necessidade de se fixar alguns conteúdos
mínimos de maneira a assegurar tal intenção, de modo que temos hoje, no que tange
a educação matemática, um componente curricular obrigatório em todo o ensino
básico, que compreende o ensino fundamental obrigatório (9 anos) e o ensino médio
(3 anos). Isso denota a importância dessa área do conhecimento para o
desenvolvimento da nação.
Em resposta à Constituição Federal, a LDB-96 surgiu com o propósito de
esquematizar e disciplinar a educação escolar, anunciando a necessidade de uma
“Base nacional comum curricular” que veio a ser promulgada 21 anos depois, em 2017.
Este documento normativo tem por objetivo explicar as competências e habilidades
que devem ser desenvolvidas ao longo de toda a Educação Básica de forma
estruturada por etapa da escolaridade.
Apesar de todas essas intervenções no que concerne as políticas educacionais
no país, os índices escolares não refletiram proporcionalmente um aumento da
qualidade da educação. A pesquisadora em educação Maria do Carmo Martins,
sugere que esses projetos educacionais não são consistentes pois estão relacionados
a interesses partidários e à gestão governamental vigente, ou seja, não são contínuos
nem progressivos em prol das reais necessidades do sistema educacional. (MARTINS,
2014, p.37-50).

5
O Plano Nacional de Educação -PNE determina diretrizes, metas e estratégias para a política
educacional no período de 2014 a 2024.
6
A Base Nacional Comum Curricular -BNCC é um documento de caráter normativo que define o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver
ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.
18

3.1 Cidadania e Educação Matemática

A noção de cidadão é plural e está em constante revisão. A origem do termo


remonta à Grécia antiga sendo consequência do surgimento da democracia, onde tal
condição era restrita a classe dominante da época: aos homens livres atenienses.
Com o passar do tempo e após muitas pressões e reivindicações populares, outros
grupos passaram a ser reconhecidos como cidadãos. No entanto, a natureza histórica
do termo sempre se deu dentro dos limites de Estado-nação.
No Brasil, de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil -
1988, cidadão é a pessoa física, nacional (nata ou naturalizada), no pleno exercício
dos direitos civis, políticos e sociais, isto é, dotada dos direitos e garantias
fundamentais, tais como: o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade
perante a lei, e direitos políticos como participar no destino da sociedade, votar e ser
votado. (BRASIL, 1988).
A cidadania, simplificadamente, é o conjunto dos direitos e deveres civis e
políticos e sociais de um indivíduo na sociedade (CARVALHO, 2012, p.9). Exercer a
cidadania de forma ativa e consciente na sociedade é imprescindível para a efetivação
da democracia e para tal, a fim de que possamos ter plenas condições de tomar boas
decisões precisamos desenvolver o “senso crítico”, que conforme Vera Chueiri
significa: “Ser crítico é internalizar o sentido de crise não só teórica, mas praticamente
e, assim, a democracia deve ser enfrentada como algo que se constitui na e com a
crise e empreende um permanente julgar ou decidir ou discernir.” (CHUEIRI, 2015).
Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental no desenvolvimento dessa
competência, como ressalta Marques:

O espaço escolar representa um ambiente extremamente significativo


de socialização, sensibilização e formação da cidadania, promovendo
a disseminação do conhecimento idealizando a formação de cidadãos
críticos e atuantes sobre os desafios contemporâneos, seja este local,
regional ou global, visto que o espaço escolar tem como função social
de possibilitar que os alunos desenvolvam suas habilidades e
competências fundamentais que garantirão sua autonomia e
capacidade decisórias futuras. (BUSQUETS 1988 apud MARQUES;
FRAGUAS, 2021, p. 2, grifo nosso).

Apesar de nascermos cidadãos, ou seja, dotados de direitos e deveres - vida,


saúde, educação, moradia, trabalho – exercer a cidadania também envolve
desenvolver um pensamento político e participar ativamente nas organizações
19

coletivas da sociedade civil, para garantir que o Estado sirva ao povo e não o contrário.
Portanto a cidadania não diz respeito a seguir cegamente ordens, mas buscar a
garantia da efetivação dos preceitos democráticos e éticos.
Para tornarmos aptos à participação cidadã, ao mercado de trabalho e ao pleno
desenvolvimento pessoal, o Estado oferece a educação básica como forma de inserir
o indivíduo na vida social, conforme o art. 205 expresso na Constituição:

a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).

Para a que a educação possa servir efetivamente ao desenvolvimento da


cidadania crítica, é preciso que os indivíduos possuam, entre outras competências
desenvolvidas ao longo da trajetória escolar, o domínio básico da matemática, em
outras palavras, a “alfabetização matemática”, para que possam ler, interpretar e
buscar a melhor resolução frente aos desafios contemporâneos. Entretanto, nem
sempre a educação matemática é transmitida visando potencializar o aluno através
do saber matemático, nesse caso ela não passa de mais um instrumento
domesticador. Essa condição é retratada nas obras de Paulo Freire, como apontado
no trecho:

e porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles


entra, já são seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda
e adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados para a concepção
“bancária”, tanto mais "educados”, porque adequados ao mundo.
(FREIRE, 1974, p. 36, destaque do autor).

O principal ponto a ser analisado nessa monografia é se é possível contribuir


para uma educação matemática que vise a levar os alunos a desenvolverem
autonomia, condutas éticas e críticas enquanto cidadãos. Para isso, dialogamos com
educação matemática crítica, uma nova tendência em educação matemática que tem
ganhado notoriedade nos últimos anos por conta da sua visão socio-crítica e
humanista do processo educativo.
20

3.2 Educação Matemática Crítica

A Educação Crítica é uma teoria que trouxe como foco de debate expor o modo
como as relações de poder existentes na sociedade interferem na estrutura
organizacional e curricular das escolas, que presume-se como neutra e objetiva.
Inspirada nela surge a partir da década de 1970 a Educação Matemática Crítica - EMC,
seu foco é trazer inquietações da Educação crítica para a área da educação
matemática, já que esta quase não tem espaço dentro das análises feitas no campo
da Educação crítica.
A EMC trata de questões inerentes ao campo da educação matemática que
dizem respeito ao currículo e sua intencionalidade; a tendenciosidade nas pesquisas
em educação matemática; a matemática na era tecnológica, bem como os problemas
sociais, éticos e políticos, decorrentes da educação matemática que afligem a
sociedade. (SKOVSMOSE, 2014, p. 11).
Ole Skovsmose, percursor da EMC no Brasil, intensifica as relações da
educação matemática com a Pedagogia Crítica e as ideias de Paulo Freire. A partir
de perspectivas fenomenológicas, filosofias e marxistas ele aborda a EMC não como
um ramo especial da educação matemática ou metodologia específica, mas em
termos de algumas preocupações emergentes da natureza crítica da educação
matemática. (SKOVSMOSE, 2014, p. 73).
Para este autor, a educação matemática é indefinida; isso porque ela pode
servir a diversos fins a depender de como é apresentada, por exemplo, para
potencialização em nível pessoal como garantia de um bom retorno financeiro; para
desenvolvimento do senso crítico de forma de apontar as contradições sociais; para a
capacitação da força trabalho; para formação científica; etc. Logo, há diferentes
projetos de sociedade a depender de como encaminha-se o ensino de matemática
nas instituições de educação.
Sabe-se que a vida moderna, cada vez mais, nos exige uma gama de
habilidades que requer um pensamento lógico-crítico, como: a retórica, a reflexão e a
abstração; a interpretação da realidade; buscar, organizar, tratar e analisar
informações; ser consciente de que o conhecimento não é algo terminado, mas que
está em constante construção etc.
21

Concordamos com Skovsmose que considera que o objetivo da educação da


matemática no ensino básico não é só desenvolver as habilidades dos conteúdos
matemáticos, mas também, a capacidade crítica e a condição de diálogo entre
assuntos que permeiam a sociedade e suas tecnologias, preocupando-se com a
formação do cidadão crítico (PIZZOLATTO; PONTAROLO BERNARTT, 2020, P. 304).
Para a EMC é preciso um olhar integral para os educandos levando em conta
a condição a qual estão submetidos, tal como: a cultura, a classe socioeconômica, os
aspectos políticos, bem como seus foregrounds 7 e backgrounds 8 , pois essas
informações têm relação direta com as aspirações e oportunidades das quais estes
irão dispor. Assim, é possível analisar suas intencionalidades e motivações, descobrir
do que gostam e procurar fazer uma aproximação do conhecimento matemático com
algo significativo para eles. Um exemplo, é dado por Pais (2001, p. 27) onde ele relata
um problema retirado de um livro didático, envolvendo preço de apartamentos de luxo
localizados em uma famosa avenida de São Paulo. As referências sociais desse
problema são aplicáveis ao conjunto de todas as classes sociais da educação pública
brasileira? Qual pode ser o significado educacional, para um aluno que mora na favela,
de conhecer preços de residências luxuosas, sem o exercício de uma posição crítica?
Nesse sentido, a EMC vai muito além de professores que sabem desenvolve-
se na fronteira da matemática, de sua filosofia e de sua história. É preciso atentar-se
em ensinar através da ética e da reflexão crítica ou corre-se o risco de que esse
conhecimento se traduza em discriminação, hipocrisia e opressão. Para ilustrar essa
tendencia é possível citar um exemplo, que Skovsmose apresenta em seu livro “Um
convite à Educação matemática crítica”, de um problema matemático usado na Itália
pouco antes da segunda guerra mundial:

Cuidar de um louco custa ao Estado 4 marcos por dia. Cuidar de um


aleijado, 4,5 marcos. De um epiléptico, 3,5 marcos. A média é de 4
marcos por dia, e o número de pacientes é de 300.000. Quanto seria
economizado caso esses indivíduos fossem eliminados?
(SKOVSMOSE, 2014, p. 16)

Esse é apenas um exemplo, mas ilustra o problema em questão: o ensino da


matemática não deve ser destituído de reflexão crítica pois dessa forma estará sujeito

7 O foreground de um indivíduo refere-se às oportunidades que as condições sociais, políticas,


econômicas e culturais proporcionam a ele. (SKOVSMOSE, 2014)
8
Background é o conjunto das experiências prévias.
22

a transmitir visões equivocadas de ordem social e política que estão profundamente


arraigadas na sociedade.
Autores marxistas da Teoria Crítica da educação, como Pierre Bourdieu e Louis
Althusser argumentam que a escola é um aparelho de reprodução e alienação “Por
envolver toda a população, fundamentalmente por um tempo prolongado, a escola era
um aparelho ideológico principal. As pessoas das classes subalternas eram
direcionadas, por meio da ideologia presente na escola, à submissão e à obediência.”
(Althusser apud SILVA, T., 2015, p. 31). Enquanto Skovsmose, apesar de permear
ideais marxistas, é mais conservador e prefere tratar de questões inerentes à
democracia.

3.3 A Matemática como Instrumento Da Cidadania

O ensino tradicional da matemática traz consigo uma carga prática que pouco
se adequa a sociedade atual, pois foi pensada antes do desenvolvimento e ampla
circulação dos computadores, e do advento da internet. Isto é, a maior parte do
processamento e aplicação dos algoritmos eram feitos manualmente. Além disso, o
professor não dispunha de muitos materiais que dessem apoio à prática pedagógica,
dessa forma o ensino se dava baseado na resolução massiva de exercícios.
Com o advento da tecnologia computacional, tivemos uma mudança drástica
na sociedade, passamos a delegar a parte “maçante” da resolução de problemas às
máquinas. Dessa forma tivemos um grande avanço científico, já que a mente humana
nunca foi tão rápida e precisa comparado ao desempenho computacional. Dessa
forma podemos agora poupar grande parte da energia que antes eram gasta com
cálculos e canalizá-la para outras partes das resolução de problemas, como a parte
criativa, por exemplo.
Pode-se notar que atualmente em praticamente qualquer campo de atuação
profissional utilizamos dos recursos digitais para tratar dados quantitativos, nesse
sentido, caberia dizer que vale mais a pena a formação de pessoas aptas a operarem
esses recursos digitais e entender para que serve cada um, do que forçar o aluno a
decorar inúmeras fórmulas que ele não saberá aplicar na realidade. Um exemplo disso
é o aluno que aprende que a operar com polinômios, mas não sabe como aplicar esse
23

conhecimento em alguma coisa concreta, dessa forma o aproveitamento do


conhecimento é pequeno.
Diante das mudanças consequentes do grande avanço tecnológico, as
instituições escolares vêm sendo instigadas a repensar seu papel frente a essas
transformações. O mundo moderno, cada vez mais complexo pelo volume de
informações as quais nos deparamos diariamente requer outras habilidades:
capacidade de lidar com a volatidade de informações, articulação de saberes,
pensamento crítico, inovação, domínio das ferramentas tecnológicas, conscientização
ambiental, empreendedorismo, responsabilidade social, participação cidadã etc.
Levando em consideração as demandas atuais na educação surgiram então as
tendências em ensino da matemática, que são elas: Etnomatemática, Modelagem
Matemática, Resolução de Problemas, História no Ensino da Matemática, Leitura e
Escrita na Matemática, Educação Matemática Crítica e uso de TICs (tecnologias da
informação e comunicação). (SILVA, C., 2004, p. 3).
Essas tendências corroboram com uma possibilidade de educação matemática
pensada às reais demandas que a sociedade impõe aos seus cidadãos. Pretendemos
abordar duas delas – modelagem matemática e resolução de problemas - e mostrar
como elas contribuem para o desenvolvimento da cidadania.

3.3.1 Modelagem matemática

No processo da educação matemática é importante ilustrar para os alunos no


que a matemática pode ser útil. Trazer a modelagem matemática como uma forma de
dar a oportunidade de os alunos interagirem com a matéria sem o uso de problemas
já formatados, é uma maneira de incentivar os alunos a se tornarem mais autônomos
e a se sentirem responsáveis pelo processo de aprendizagem.
Quando se fala de modelagem matemática é necessário mencionar a distinção
da modelagem feita por modeladores profissionais e a modelagem matemática feita
em sala de aula. No caso da modelagem na educação matemática, no Brasil, ela
geralmente está ligada a noção de trabalho em projetos, onde os alunos, em grupos,
trabalham em cima de um tema com a supervisão do professor.
Para Barbosa (2001) a modelagem matemática pode se resumir em “[...] um
ambiente de aprendizagem no qual os alunos são convidados a indagar e/ou
24

investigar, por meio da matemática, situações oriundas de outras áreas da realidade.”


(BARBOSA, 2001, p.6). Dessa forma, ela alia um problema real, a interdisciplinaridade
com a investigação matemática, criando um ambiente estimulante, vivo, significativo
além de propiciar a socialização durante as aulas.
Quando a escolha do problema com referência à realidade, submetido a
modelagem parte de uma escolha em conjunto com os alunos, facilita a motivação
que estes terão no projeto desenvolvido, pois dessa maneira eles passam a exercer
um papel ativo na busca pelo conhecimento além de poder lidar com temas dos seus
próprios interesses. Barbosa (2001) salienta a importância de se partir do contexto
sociocultural dos alunos “O ambiente de aprendizagem que o professor organiza pode
apenas colocar o convite. O envolvimento dos alunos ocorre na medida em que seus
interesses se encontram com esse.” ( BARBOSA, 2001, p. 6).
Essa escolha de trabalhar com temas que sejam também do interesse dos
alunos não contradiz a importância de se trabalhar com o pensamento científico; a
modelagem possibilita que o professor aborde assuntos que de outra forma os alunos
não teriam contato, nas aulas tradicionais – que geralmente abordam problemas com
referência à matemática pura e a semirrealidade. Ampliar os horizontes de visão de
mundo é dar, aos alunos, novas lentes quer sobre a matemática e os fatos
investigados, quer sobre a realidade social que os cerca.
Para Skovsmose (1990) a modelagem matemática oferece três tipos diferentes
de conhecimento: o matemático, o tecnológico e o reflexivo. Na modelagem, o
conhecimento matemático é visto como uma forma de se introduzir novos conceitos,
enquanto o conhecimento tecnológico refere-se à como construir e montar um modelo
matemático, o conhecimento reflexivo intenciona discutir a natureza dos modelos e os
critérios utilizados em sua construção, aplicação e avaliação. (SKOVSMOSE 1990
apud BARBOSA ano, p. 4).
Cada um desses tipos de conhecimento complementa o outro no que tange a
formação completa do indivíduo. Outro objetivo mencionado por Borba e Hermino
(2010), é iniciar a vida do aluno como pesquisador, mostrando como se fazer uma
pesquisa, o que proporcionará ao aluno um maior discernimento e capacidade criar
modelos, estruturar informações e ir até a dimensão do conhecimento reflexivo, ou
seja, replicar esses processos futuramente em outras oportunidades.
25

Um exemplo de trabalho de campo centrado na modelagem matemática, foi o


trabalho conduzido por Skovsmose, na Dinamarca, denominado “Auxílio familiar em
uma microssociedade” e está retratado em seu livro “educação matemática crítica: a
questão da democracia”. Nele, era proposto, aos alunos, que criassem, por meio de
descrições, uma microssociedade e com base nela os estudantes teriam a tarefa de
distribuir uma certa quantia de dinheiro do governo como um benefício às famílias que
tivessem filhos, aplicando um algoritmo que levassem em considerações aspectos
socioeconômicos daquelas famílias.
Nesse trabalho de modelagem, os alunos, separados em grupos, tiveram que
descrever aspectos de uma família fictícia, como: a estrutura, o cotidiano - e tudo que
eles achassem importante mencionar - dessas famílias, posteriormente, eles
passariam a analisá-las para ver se seria possível extrair alguns dados como:
quantidade de filhos, renda familiar, estrutura – se era uma família com pai e mãe ou
só mãe, ou só pai, quantos filhos, quem da família trabalhava fora, entre outras dados
descritivos. Os estudantes tiveram de discutir os padrões segundo os quais queriam
distribuir uma quantia fixa de dinheiro: 240.000 Coroas dinamarquesa -Dkr. (Mais
detalhes sobre esse trabalho é encontrado na obra supracitada).
Essa modelagem proporcionou a possibilidade daqueles alunos participarem
de discussões sobre as condições e as consequências do ato da governar, ao deixar
que eles decidissem quais critérios seriam ou não utilizados na distribuição da renda,
fomentou o debate sobre desigualdade e justiça social. Apesar de ter bastante
matemática no processo da modelagem, eles não deixaram de explorar o
conhecimento reflexivo, isto é, um ensino que se preocupa com o desenvolvimento do
senso crítico e da cidadania.
Percebe-se que as atividades de modelagem matemática apresentam uma
oportunidade de explorar os papeis que a matemática desenvolve na sociedade
moderna. Portanto, a modelagem matemática dentro da sala de aula não deve ser
considerada como “fim”, mas como meio, pois é uma das possibilidades de
metodologias que possui a qualidade de despertar algum nível de crítica, que é o
combustível para a cidadania.
26

3.3.2 Resolução de problemas

A universalização da educação veio em consequência da revolução industrial,


onde precisava-se que a população tivesse acesso a conhecimentos básicos de forma
a atender os requisitos necessários a mão de obra da época. Surge então o que
conhecemos hoje por educação tradicional, aquela que tem sido responsável por
formar pessoas aptas ao mercado de trabalho, mas que é insuficiente quanto a
formação integral do indivíduo. Tal modelo de educação perpetuou-se baseado na
resolução massiva de exercícios.
A partir do final dos anos 70, a Resolução de Problemas ganhou espaço no
ensino da matemática, no mundo todo. E em 1980 é editada, nos EUA, uma
publicação do Conselho Nacional de professores de Matemática (NCMT),
recomendando que a resolução de problemas passasse ser o foco da matemática
escolar para os anos 80. Segundo Onuchic, esse documento também enfatizava, além
dos aspectos cognitivos, a compreensão de aspectos sociais, antropológicos e
linguísticos. (BICUDO et al.,1999, p. 205).
Apesar do “sucesso” alcançado na popularização da Resolução de Problemas,
houve uma falta de concordância em relação ao significado de “resolução de
problemas ser o foco da matemática escolar”. (BICUDO et al., 1999, p. 206) Algumas
dessas diferenças de interpretações foram apresentadas por Scroeder & Lester (1989,
p.31-4, apud BICUDO et al., 1999, p. 206) sendo três mais comuns: ensinar sobre
Resolução de Problemas, ensinar a resolver problemas e ensinar matemática através
da Resolução de Problemas.
Ensinar sobre Resolução de Problemas é quando o professor ensina a resolver
problemas a partir de algum método, como o de Polya por exemplo. Esse método é
dividido em quatro etapas: Compreender o problema; encontrar a relação entre os
dados e a incógnita; executar o plano de resolução e verificar o resultado. (POLYA,
1995, p. 8). Geralmente esse conhecimento é transmitido implicitamente quando o
professor mostra para os alunos como resolver o problema.
Ensinar a resolver problemas é quando o professor depois de ter dado a aula
expositiva apresenta problemas que podem ser resolvidos com o conteúdo abordado.
A crítica que temos a esse método é que muitas vezes os problemas matemáticos
apresentados são utilizados apenas como um meio para extração de dados, dessa
27

forma perdem seu poder de fazer o aluno refletir e desenvolver processos de


pensamento crítico. Essa interpretação equivocada em relação a proposta de
implementar a metodologia de resolução de problemas, é retratada no PCN, no
seguinte parágrafo: “Assim, por exemplo, a abordagem de conceitos, ideias e métodos
sob a perspectiva de resolução de problemas - ainda bastante desconhecida da
grande maioria - quando é incorporada, aparece como um item isolado, desenvolvido
paralelamente como aplicação da aprendizagem, a partir de listagens de problemas
cuja resolução depende basicamente da escolha de técnicas ou formas de resolução
memorizadas pelos alunos”. (BRASIL, 1998, p. 22)
Ensinar matemática através da resolução de problemas é trazer o problema
como uma forma de inserção novos conteúdos. Nesse caso a matemática não fica
subordinada ao problema matemático, mas é a partir dele que será conduzido o
processo de construção do conhecimento. Partindo de uma situação específica para
a generalização, assim os problemas apresentados ajudam na formação do conceito
antes mesmo deste ser apresentado em linguagem formal.
Um dos objetivos do PNC no ensino fundamental II em relação à educação
matemática, é que o aluno seja capaz de “questionar a realidade formulando-se
problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a
criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos
e verificando sua adequação.” (BRASIL, 1998, p. 8). Nesse sentido, os problemas
matemáticos devem se valer da realidade como fonte inesgotável de situações-
problemas que devem ser trazidos para a sala de aula, através da transposição
didática.
Assim como Paulo Freire desenvolveu a noção de alfabetização para além das
capacidades de leitura e escrita, a EMC sugere que a alfabetização matemática
funciona similarmente ao papel da alfabetização descrito por Paulo Freire, que vai
além do processo mecânico de juntar sílabas, mas que compreende uma capacidade
de “ler” o mundo. Nesse sentido, a educação matemática compreende o domínio do
conhecimento matemático que possibilita, além da inserção do indivíduo no mundo de
trabalho, uma ampliação do ferramental para sua melhoria de vida por meio da
emancipação social e cultural, e por conseguinte, a participação na transformação da
sociedade.
28

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos levantamentos feitos durante a pesquisa, pode-se notar que,


embora os documentos normativos legais que regem a educação no país preconizem
que a educação deva ser um trabalho em conjunto com a sociedade, pensado na
preparação do aluno para que este possa tomar seu lugar de direito dentro de uma
sociedade democrática, ainda é um desafio trazer essas mudanças para a prática.
Propiciar a competência matemática nos alunos – a matemacia - é garantir
bases para o efetivo exercício da cidadania. Através do levantamento da pesquisa
bibliográfica, concluímos que a educação matemática esta intrinsicamente
relacionada a formação dos processos cognitivos de tomada de decisão, portanto é
preciso que os professores estejam atentos para não passar uma visão deturpada do
conhecimento e favorecer com isso visões equivocadas de ordem social e política.
A pesquisa aponta que para promover as potencialidades da educação
matemática para o desenvolvimento do senso crítico e da formação do cidadão pleno
há rupturas a serem feitas com o sistema tradicional e desatualizado de ensino,
enquanto estreitar laços com as novas tendências em educação matemática, é o
caminho mais indicado para prevalecer uma educação que vise criar espaço para o
diálogo e experimentação, deixando emergir nos educandos a participação e o senso
crítico.
Contudo, autores consultados não advogam um currículo baseado somente em
projetos, mas concordam que a educação matemática deve abranger todas as
instâncias: o conhecimento puro, o aplicado e o reflexivo. Para tal é preciso transitar
nos diferentes ambientes de aprendizagem, desde o método expositivo, a exploração
por meio da investigação, a modelagem matemática, as situações-problemas etc.
Os principais pontos levantados que contribuem para potencializar os alunos
através da educação matemática: situações-problema motivador; propostas que
despertem criatividade e a experimentação; abordar problemas de relevância social,
ambiente de aprendizagem democrático; e fomentar o diálogo e a participação.
Finalizando, não intenciona-se com esse trabalho tratar de todos os aspectos
que permeiam o tema, pois é um campo demasiadamente vasto de conhecimento,
apresentamos, contudo, um recorte no que tange a proposta de se pensar a educação
matemática para a formação crítica.
29

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