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9 | 2012
Pobreza e desigualdades sociais
Ensino Superior
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/ras/83
DOI: 10.4000/ras.83
ISSN: 2312-5195
Editora
Sociedade Angolana de Sociologia
Edição impressa
Data de publição: 1 junho 2012
ISSN: 1646-9860
Refêrencia eletrónica
Revista Angolana de Sociologia, 9 | 2012, « Pobreza e desigualdades sociais » [Online], posto online no
dia 29 julho 2013, consultado no dia 23 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/ras/83 ;
DOI : https://doi.org/10.4000/ras.83
© SASO
1
SUMÁRIO
Nota do editor
Paulo de Carvalho
Artigos
Ensino superior
Notas de pesquisa
Intervenções
Livros
Nota do editor
Paulo de Carvalho
afecta boa parte dos angolanos, a autora sugere (dentre outras medidas) a adopção de
“programas de combate à pobreza junto das comunidades mais carenciadas” [p. 117], a
garantia da “assistência social aos estratos mais vulneráveis” [p. 117] e a promoção de
“programas articulados de resposta rápida a situações de risco iminente” [p. 118]. 1
6 Depois de apresentar dados sobre a pobreza em Angola, a africanista Sílvia de Oliveira
fala dos modos de vida da pobreza em Angola, que dizem respeito à “forma como as
categorias sociais mais vulneráveis adaptam os meios disponíveis às suas necessidades”,
ou seja, à “forma como se organizam estrategicamente para darem resposta às suas
necessidades, sejam elas biológicas, sociais ou culturais” [p. 127]. A autora identifica e
apresenta cinco modos de vida da pobreza em Angola, nomeadamente os modos de vida
da: destituição, restrição, desafectação, transitoriedade e investimento na mobilidade.
7 Trazemos a seguir exemplos de outros países: os PALOP (Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e S. Tomé e Príncipe, para além de Angola), Timor-Leste e Portugal.
Começamos com um nome incontornável quando se abordam a pobreza e a exclusão
social em países de língua oficial portuguesa, Luís Capucha, que nos traz uma
abordagem a respeito da pobreza nos 6 (POLOP e Timor-Leste). Atribui particular
destaque à formação dos recursos humanos, considerando que “a aposta num modelo
de educação centrado na escola tradicional, cognitivista e selectiva, será a aposta na
reprodução das desigualdades”, de modo que só “com uma escola orientada para o
desenvolvimento de diversas competências, não apenas cognitivas, mas também
atitudinais e profissionais” [p. 141] será possível apostar na competitividade económica
e no desenvolvimento.
8 A finalizar, Pedro Perista e Isabel Baptista trazem a abordagem da pobreza em Portugal,
enquanto condição relacionada com as “condições que têm de ser satisfeitas, ou os
recursos necessários para se ter acesso a um determinado padrão de vida” [p. 155].
Enquanto os dados apresentados pelos sistemas estatísticos de Portugal e da Europa são
estáticos, os autores optam pela apresentação de dados dinâmicos, que permitem ter
uma visão mais real acerca do número de pessoas que passam pela situação de pobreza,
mantendo-se nela ou não. Os dados apresentados apontam para 46% dos portugueses
terem estado em situação de pobreza em pelo menos um dos seis anos do período
1995-2000, o que faz saber que cerca de metade da população desse país se encontrava
então vulnerável à pobreza.
9 Quanto ao ensino superior, Paulo de Carvalho apresenta dados a respeito do crescimento
do ensino superior em Angola, com 4.176 estudantes por altura do final do período
colonial (ano de 1974) e 140.016 estudantes no ano lectivo de 2011. Enquanto o Estado
independente de Angola herdou somente uma universidade estatal, Angola possui hoje
38 instituições de ensino superior, sendo 16 estatais e 22 privadas. A terminar, o autor
enumera os factores que contribuem para a actual baixa qualidade de ensino.
10 Já Arlinda Cabral traz-nos uma reflexão acerca da inserção de profissionais formados
em duas universidades lisboetas, partindo do pressuposto de que “uma das finalidades
principais da universidade consiste em formar diplomados que contribuam para o bem-
estar económico do seu país” [p. 71]. Através da abordagem do modelo de
competências, a autora apresenta os resultados de um estudo feito junto de 1.004
licenciados em duas das maiores universidades lisboetas, concluindo que as
competências mais desenvolvidas na sua formação terão sido o “pensamento crítico”, a
“comunicação oral e escrita” e o “domínio de técnicas e tecnologias”.
11 Os dois artigos complementares, que abrem o número, são de autoria de Luís Gaivão e
Nuno Medeiros.
12 O historiador Luís Gaivão apresenta uma série de aspectos de natureza antropológica e
sociológica das populações de Angola, com base na análise do romance Rioseco, de
autoria de Manuel Rui (Monteiro). Aborda nomeadamente a presença e o poder da
mulher na família e na economia doméstica em várias regiões de Angola, a interacção
no seio familiar e os problemas vividos no dia-a-dia numa família comum que vive na
Ilha do Mussulo (em Luanda), mas provém do interior de Angola. Manuel Rui “recorre a
uma personagem feminina, … como protagonista nessa longa e pensada travessia de
espaço/tempo angolano, com que pretende traduzir a realidade sociopolítica do país”
[p. 16] e dar conta da forma de transmissão oral dos valores culturais ancestrais. Por
aqui se nota a grande importância da mulher na cultura e na tradição angolanas (e na
cultura e tradição africanas).
13 Por seu turno, Nuno Medeiros aborda a problemática do livro, do editor e da edição
enquanto mundo ligado às artes, sistematizando a articulação do editor com o campo
editorial e a cultura do livro. Editor e editora são tidos como “construtores activos do
panteão cultural” [p. 37]. O autor esclarece que “o editor traça a sua identidade através
da expressão que a inseparabilidade de duas componentes (indústria e artesanato)
obtém nas decisões que vai tomando”, arquitectando assim o “perfil da editorial que
dirige e molda o mercado que está, de vários pontos de vista, sob sua égide” [p. 37].
Vêm depois uma série de outros profissionais que são também enquadrados no
processo de produção do livro, como sejam artesão, mecânicos e outros engenheiros [p.
41], que contribuem para a imagem de cada livro, esta que por sua vez vai exercer
também grande influência no marketing e na venda do produto final.
14 Nas notas de pesquisa, apresentamos um texto de autoria do arquitecto e ecologista
Jacinto Rodrigues, que é um diário de investigação respeitante a uma sua viagem a
Angola (a Luanda, Namibe e Benguela) em 2009. Trata-se de material útil para
profissionais e estudantes da Antropologia e da Sociologia.
15 Um texto que havia sido apresentado como artigo, foi sob proposta dos referees
encaminhado para a secção “Intervenções”. Trata-se da descrição de uma experiência
bastante positiva de combate à pobreza, no Bairro da Paz, na cidade de Salvador da
Bahia (Brasil) – que pode servir de base para intervenções similares em comunidades de
Angola. Os seus autores são a psicóloga Ana Cristina Matos e o filósofo Raymundo
Dantas, ambos funcionários da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
16 A terminar, Cesaltina Abreu traz-nos uma recensão a respeito de três livros do
economista Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia em 1998.
17 Boa leitura.
NOTAS
1. Um exemplo de combate à pobreza, vindo do Brasil, é apresentado nas págs. 187-201.
Artigos
NOTA DO EDITOR
Recebido a: 17/Fevereiro /2012,
Enviado para avaliação: 5/Março/2012,
Recepção da apreciação: 6/Mar, 21/Abril/2012,
Recepção de elementos adicionais: 1/Maio/2012,
Recepção da segunda apreciação: 2/Maio/2012,
Aceite para publicação: 3/Maio/2012
NOTA DO AUTOR
Adaptado a partir de trabalho apresentado em Fevereiro de 2012, no seminário
“Conhecimentos, Sustentabilidade e Justiça Cognitiva”, orientado pela Prof. Dra. Maria
Paula Meneses, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra,
Portugal).
1. Introdução
1 O objectivo deste trabalho traduz-se numa tentativa de “colaboração” com o escritor
angolano Manuel Rui em trazer para a superfície do conhecimento geral, através da
análise duma obra literária, o papel fundacional e vital que a mulher africana (e, no
caso, angolana) detém na organização societária.
2 Através da análise do romance Rioseco observamos, em todo o desenrolar da intriga
ficcional, a primordial importância da personagem Noíto, uma mulher do povo, do
planalto central angolano e que transita, para fugir à guerra, por outras realidades
societárias, acabando na Ilha do Mussulo, em nova inscrição de vida, agora com os
pescadores.
3 A adaptabilidade do género, o real poder da mulher na economia doméstica e também
na esfera da economia pública, na transmissão dos conhecimentos e artes tradicionais
“inexistentes” na consideração e representação do conhecimento eurocêntrico e
abissal, a virtualidade das relações telúricas e/ou religiosas que mantém, sincréticas,
com o maravilhoso e o divino, a capacidade de justiça cognitiva prática e
tremendamente humanizada que exemplifica, a ternura do gesto para os que a rodeiam,
são algumas das características desta mulher angolana.
4 É uma figura retirada das margens, a quem Manuel Rui dá rosto, vida e, sobretudo,
palavra, através do recurso à oratura literária da sua escrita, numa perspectiva de
enunciação, com uma imensa pluralidade de vozes e de enorme qualidade.
5 E Manuel Rui fá-lo, inscrevendo-a no universo literário. Noíto é mulher angolana e é,
pois, mulher africana. Mais, ainda, é a representação ficcionada de Angola.
6 Também o autor se afirma, simultaneamente, um escritor universal.
2. Sobre o autor
7 Manuel Rui, nome incontornável na literatura angolana, iniciou-se ainda em tempo de
estudante de direito em Coimbra, no âmbito poético e nacionalista. No regresso à terra
(logo a seguir ao 25 de Abril de 1974), participou activamente na preparação do pós-
colonialismo, com os olhos postos na construção duma Angola independente,
assumindo cargos políticos de elevada responsabilidade.
8 Com a independência de Angola, doou ao País a letra do hino, elaborou letras de
canções de compromisso ideológico, escreveu muita poesia revolucionária, ao mesmo
tempo que se desmultiplicava em acções de carácter jurídico umas, e outras muitas de
carácter cultural. Foi crítico, ensaísta, cronista, poeta, romancista, conferencista e,
igualmente, escritor para teatro e cinema.
9 Como revolucionário e nacionalista, num período pós-independência, a sua poesia
alicerçou-se no resgate cultural duma identidade nacional que era necessário balizar e
defender, enraizar, em absoluto.
10 Assim, Manuel Rui revela um percurso literário linear: desde os primeiros tempos da
luta ideológica, 11 Poemas em Novembro (de 1976 a 1988) em que “entre a ilusão do real
concreto e o concreto da ilusão ficcional, a ideologia do enraizamento, enquanto modo
de identidade, crava no texto as suas garras”, sendo os elementos fulcrais do
enraizamento “os signos da terra, povo, língua, sangue, raça e da tríade nação-pátria-
Estado” [Laranjeira 1995: 164], Manuel Rui inicia uma evolução no sentido de maior
reflexão e ponderação temáticas, através de novos escritos que, já com a utilização de
processos estilísticos e ficcionais mais elaborados, passam a incluir a ironia e a crítica,
pois “os escritores não criticam os fundamentos da nação, porque os aceitam, mas
3. Noíto
3.1. Uma biografia angolana ficcionada em mulher
17 Manuel Rui alimenta com a personagem Noíto, todo o enredo de Rioseco, romance
passado durante a guerra civil angolana e que a pretende retratar, bem como à
sociedade da época.
23 A idade de Noíto só se adivinha por aproximação. Como se viu pelo percurso anterior de
vida, já não era nova, e vestia panos, guardando consigo as suas embambas, única
riqueza, juntamente com o cachimbo que sempre a acompanhava [Rui 1997: 10]:
“A mulher permanecia sentada sobre a trouxa grande em que se descobriam,
debotados, por velhice ou uso, os pálidos vermelho, preto e amarelo do pano… De
contemplada pausa, inspirava o fumo do pequeno cachimbo, tapando e destapando
o fornilho com a mão direita, em ritmo acertado de cada chupaça”.
24 Salienta-se que as cores dos panos gastos e desbotados eram as da bandeira nacional
angolana, símbolo duma nação que se desgastava em guerra e grande sofrimento
humano.
25 Mais elementos físicos: kambuta (de estatura pequena), “a avó não sabe que lhe andam
chamar a kambuta?” [Rui 1997: 142]; faltavam-lhe alguns dentes: “desenhou-se na boca
desdentada de Noíto, um sorriso de vingança por amor e sem mágoa que a outra
percebeu” [Rui 1997: 153]; bebia ruidosamente aquilo que apreciava: “bebeu de
sofreguidão, sonorizando o sabor na garganta” [Rui 1997: 12], e, de aspecto geral, a
descrição do encontro com o marido na praia revela-nos um corpo franzino [Rui 1997:
115-116]:
“despreocupavam-se as nádegas de Noíto, magras mas tão bem divididas pela linha
do traço. Zacaria, nos seus fazeres de carpinteiro sempre se apaixonou pelo traço. A
linha simulando repartir beleza que é só uma e, sem a qual, não valeria a pena o
suor na plaina ou no serrote. As coxas são mais magras. Assumem a apoteose de
raízes. Beldades enriquecidas pelo dentro chão. (…) seios tabuados quase atingindo
o ventre liso, sem barriga. (…) Esfregou o rosto, os seios flácidos, mas nos olhos de
Zacaria, lindeza do desenho das saliências de amamentar. As pernas e o triângulo da
sua divergência.”
45 E, ainda no barco que navegava para a ilha, à medida que ia visionando melhor o espaço
ainda desconhecido, imaginou-o em antecipação, e pensou que se houvesse árvores,
então poderia fazer uma lavra.
46 Trata-se, pois, de registos proprietários, referenciais dum direito ao usufruto
espontâneo (posse) da terra, como um bem comunitário e flexível, ao dispor dos
interessados, como é de uso em África, em oposição a um regime legalista de registo de
propriedade, comum nas sociedades “metropolitanas”.
47 O pluralismo jurídico pode tornar “explícita a vigência, num mesmo espaço, do direito
do Estado colonizador (no caso, pós colonizado) e dos direitos tradicionais” [Lauris
2008: 140], ou “pode ser identificado como facto empírico em outras situações não
relacionadas à dominação colonial, como por exemplo: países com tradição cultural não
europeia que adoptam o direito europeu como instrumento de modernização… num
contexto de revolução, em que o direito tradicional entra em conflito com a nova
legalidade; populações autóctones, nativas ou indígenas que em certos domínios
continuam a seguir os seus costumes em detrimento do direito dominante; sociedades
cuja diferenciação de classe gera uma homogeneidade precária e as contradições
sociais, políticas, culturais e económicas propiciam diferentes expressões jurídicas, o
caso das sociedades capitalistas. Nesse caso, em geral, as contradições podem gerar
espaços segregados com recursos normativos e institucionais próprios.”
48 O processo do discurso e da acção de Noíto rege-se por um conjunto de normas
ancestrais, cuja enunciação nos é apresentada a cada página, tantas vezes na contra-
hegemonia do direito do Estado.
49 Podemos também assinalar que os espaços de desenvolvimento da narrativa são
profusamente perfumados de subtis episódios, que nos levam a fazer o levantamento do
território dos diferentes lugares e tempos em que se inscreve a narrativa de Noíto.
50 Por exemplo, uma das formas de enunciação matricial feminina e angolana é traduzida
pela recorrência inumerável a episódios relativos à culinária e à gastronomia, através
das inúmeras receitas que nos são expostas pela leitura, com ligação aos produtos da
terra, instrumentos utilizados e duração e modos de fazer, donde resultam, acima de
tudo, saborosas descrições que fazem crescer água na boca e cuja degustação é
privilégio dos personagens.
51 A título de exemplo, registamos [Rui 1997: 153]:
“Desenhou-se na boca desdentada de Noíto, um sorriso de vingança por amor e sem
mágoa que a outra percebeu (tinha havido um mal entendido com uma vizinha e
Noíto aproveitara para ‘dar uma lição’). Tirou um bocado de tomate, cebola, quiabo
e caombo. Meteu água de uma bacia à vista. Secou tudo num pano limpo. Encheu
um prato de alumínio com fuba de milho pisada por ela no pilão de casuarina.
Enfeitou a fuba com o tomate, cebola os quiabos e o caombo. Entregou. E depois
encheu de sal o prato que a senhora trouxera.”
52 Manuel Rui aborda, pois, uma referência cultural, tradicionalmente conotada, em
África, com o género feminino, a culinária e gastronomia angolanas.
53 Em muitos dos exemplos citados, a culinária e a gastronomia obedecem a costumes
culturais que, para além de assumirem significados de cortesia, generosidade e bem-
estar, traduzem diferentes regras de mercado, como o da troca directa de produtos
para a confecção de refeições, os presentes de comida já antecipadamente elaboradas,
utilizados como forma de pagamento de serviços, integrando-se no que se pode
considerar uma forma de “economia familiar” ou “paralela”, tão usual nos estados que
encontram dificuldades na afirmação da sua economia formal.
54 Para que efectivamente se dê entrada a uma “justiça cognitiva” torna-se necessário
encontrar formas alternativas para a descolonização da economia: “Pensar a
descolonização da economia requer necessariamente o reconhecimento de que não há
justiça social global sem justiça cognitiva global. (…) A economia, num sentido
dominante, pode pois ser caracterizada como uma gramática colonial, cujo discurso
produz a exclusão e o apagamento do que não é familiar – embora explorável: as
«outras» práticas sociais e subjetivadas. (…) Importa, pois, ir mais longe e ultrapassar a
situação paradoxal a que se assiste no campo da teorização económica sobre as
alternativas à economia neoliberal: ao mesmo tempo que se amplia – através de
múltiplas iniciativas como a economia solidária, a informal, etc. – uma gramática
quantitativa importante, a condescendência face ao positivismo é marcante.” [Meneses
2009: 232-235]
55 À mulher angolana, ancorada no seu território físico e cultural, empresta Noíto outras
várias características e, particularmente, uma matriz bem assente nas marcas da
natureza.
56 Em algumas passagens, quase se dá uma simbiose – a mulher-chuva: “E a chuva
rebentou em som de dona, só ela mesmo, só patroa do silêncio. Parecia era uma mulher,
toda inclinada e entregue ao corpo do vento”, ou a mulher-mar “O mar todo entregue –
Zacaria a pensar – o mesmo que ontem havia partido tudo, assustado as pessoas, ele
próprio, agora um Xinganje desfingido. Na cabeça de Zacaria, outra vez a ideia de
máscara. O mar parecia uma máscara. «Não é homem. O mar é uma mulher»” [Rui 1997:
224, 369].
57 Esta mulher-mar ou mulher-chuva, ou ainda mulher-terra, são conceptualizações dos
atributos de género da mulher africana, da qual se espera a fecundidade geracional,
como da terra regada pela chuva o germinar da semente ou do mar-chão uma boa safra
de peixe.
58 Mulher, terra, chuva e mar são constituintes da natureza e são sinal de vida e, pois, de
alegria. Por isso a dança habitual na natureza, que se estranha quando se queda parada:
“Não ventava e os coqueiros e casuarinas estavam a aceitar a chuva como que
adormecidos por hábito. Sem se sembar na dança dos troncos nem se cudurarem nas
ramagens” [Rui 1997: 406].
59 Igualmente, Noíto conhece muito bem os rituais de iniciação, quando, em resposta ao
pescador Mateus que lhe falava da festa do Caculo, onde se venera a Kianda [Rui 1997:
276] lhe diz: “Mas olha só: nunca me explicaste na Kianda. Quer dizer, não explicaste
bem. Na minha terra, festa grande é quando os miúdos são circuncizados e as raparigas
aprendem para ficar mulheres”, ao mesmo tempo que se revolta contra os insultos
étnicos dirigidos contra a sua etnia bailundu [Rui 1997: 112]:
“Mais uma vez ela revoltava-se com aquela maneira de insultar. Do mato. Ou
bailundo. Só por ser de uma terra. Sim, ela era do Huambo. O Bailundo também era
uma terra da sua região. E tinha muito orgulho em ser do Huambo. Só que não
compreendia como é que a sua origem pudesse ser ridicularizada sem mais nem
quê. Tudo o que fosse mau e desprezante, aquele Ginga (mulato luandense) que,
pelo escutado, era também da região umbundu, generalizava na expressão
bailundos.”
60 Temos, pois, os lugares matriciais definidos: do Huambo, terra dos ovimbundu, de que
os bailundos fazem parte e cuja língua é o umbundu, para Luanda, terra dos ambundu e
onde se fala o kimbundu, em tempo de guerra e de desarticulação política e social do
país.
los siguientes ámbitos de existência social: (1) el trabajo y sus productos; (2) en
dependência del anterior, la ‘naturaleza’ y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus
productos y la reproducción de la espécie; (4) la subjectividad y sus productos,
materiales y intersubjetivos, incluído el conocimiento; (5) la autoridadd y sus
instrumentos, de coerción en particular, para asegurar la reproducción de esse patrón
de relaciones sociales y regular sus câmbios.”
70 Quijano é de opinião, no entanto, que o olhar eurocêntrico nos dois últimos séculos, e
até que surgissem as questões de subjectividade e de género neste debate, não
conseguiu ver com clareza todas as questões relacionadas com a configuração do poder,
pois que existia a confrontação entre as duas principais vertentes de ideias: uma,
hegemónica, o liberalismo, e a outra, subalterna, embora contestatária, o materialismo
histórico. No entanto, nem uma nem outra deixaram de ser ‘eurocêntricas” na
produção do conhecimento histórico.
71 Esta colonialidade, que permaneceu para além do pós-independência, impediu a
formação de uma nação plural, dado que o poder foi tomado em exclusivo por um
partido governamental marxista-leninista na altura e excludente, como escreve
Mabeko-Tali [2006: 191]: “Na medida em que o Estado-nação é aquilo que cada elite no
poder entende que deve ser e não uma referência comum adquirida, a identidade étnica
continua a ser o refúgio mais seguro em relação àquilo em que a cidadania cívica ainda
é, na prática, problemática.”
72 O mesmo autor [Mabeko-Tali 2006: 199] refere que o problema principal não é o da
existência de etnias diversificadas, mas o da construção de uma nação não diluente das
diferenças: “Na realidade, a questão fundamental não é a da existência de etnias, nem a
da sua afirmação identitária. A nação pode bem ser constituída sobre estas
multiplicidades culturais, desde que estas identidades particulares, culturais, se
encontrem numa entidade politica comum – a do Estado-nação como entidade
aglutinadora, mas não necessariamente diluente, e cuja construção (em todos os seus
aspectos: económicos, políticos, culturais) produz identidades políticas como estádio de
ultrapassagem das identidades particulares, etnoculturais – mas não provocando
forçosamente o seu desaparecimento.”
73 Podemos, pois, acordar que o discurso colonial se prolongou numa pós-independência
de colonialidade, que não reuniu as condições necessárias a uma boa prática política
pós-colonial, ou seja, na realidade não se deu uma descolonização verdadeira: o
discurso colonial “é um aparato que se apoia no reconhecimento e repúdio de
diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante é a
criação de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos em
termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/
desprazer… O objectivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução… uma forma de
governamentalidade que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina
suas várias esferas de actividade.” [Bhabha 1998: 111]
74 A guerra encontra, pois, uma explicação (não uma justificação) na conturbada pós-
independência, e é dessa guerra, da organização do Estado que se lhe seguiu e das
respectivas condições político-sociais geradas que o romance trata, pela acção de Noíto
e dos outros personagens.
84 É a ‘chamada’ do interior para a ilha que Manuel Rui aproveita para dar voz e proceder
à enunciação narrativa da mulher angolana.
85 Esta mulher angolana, Noíto, é a portadora das tradições orais e das culturas africanas,
como ela própria ensina às raparigas jovens da ilha, de acordo com o atrás mencionado
por Boaventura Cardoso [Rui 1997: 111]:
“Vão, minhas filhas, sempre no caminho que os mais velhos nos ensinaram.
Caminho que vos dê sorte, para não sofrerem o que eu sofri. Gosto muito desta
nossa terra. Quando fizer a minha lavra, semear o milho e ele aguentar o vento e o
mau-olhado, vou assar maçarocas aqui, para vocês comerem. E ainda, se vocês
quiserem, vou-vos ensinar estórias e cantigas bem lindas que aprendi na minha mãe
que ela tinha aprendido na minha avó.”
86 Ela própria procede, igualmente, de acordo com o que diz: “na minha terra falam que
uma pessoa quando quer saber das outras terras, deve primeiro, andar com os miúdos”
e por isso vai ao encontro dos mais novos para sacar informações preciosas [Rui 1997:
186].
87 Prudente, avisa: “Uma pessoa que sabe, não deve mostrar, de uma vez, nos outros, tudo
aquilo que sabe. E os outros, quando descobrem, ficam a saber tudo que a gente sabe.
Perdemos a força.” [Rui 1997: 119]
88 As questões da existência duma vida que se constrói a cada dia são o reverso dum
essencialismo recusado, quando, a propósito, de peixes-voadores, Zacaria os elogia e
comenta, com os olhos postos na mulher “Mesmo de assombração com os voadores,
desarrepiando nesse novo costume de marítimo, fingindo à-vontade, habituado nos
tantos de sempremente andar de um lado para o outro, demandando um lugar de ser”
[Rui 1997: 19]. Só o ficar num espaço sem discussão de vida, quiçá de medo e náusea da
morte.
“Vamos fumar agora os dois e não vás trabalhar. Porque hoje somos só nós e é
bonito. Amanhã a gente não sabe.” [Rui 1997: 214]
96 Mas também tem o segredo dos remédios nativos, quando o marido quase morre numa
avalanche de areia que quase o soterrara e o havia deixado com o corpo cheio de dores,
quando tentava escavar uma cacimba [Rui 1997: 79]:
“Ainda o fogo não alastrara, aqueceu a extremidade do luíco sobre a chama
devassando o luar. Premiu o madeiro quente, com a força dos dois braços, sobre o
lado direito das costas do marido.
Zacaria gemeu. “É porque te está a fazer bem”. Repetiu a operação três vezes. A
seguir lembrou-se de um dos tijolos velhos que descobrira logo na chegada ali, meio
partido e musgado na solidão. Aqueceu-o também devagarinho. Juntou as mãos do
marido, esticadas e juntinhas às pernas, compressou nas costas do marido o tijolo já
quente, subiu e, com os dois pés, solavancou, Zacaria a gritar. E ela solavancou,
solavancou mais. O marido suava por todos os poros.”
97 Sabia, igualmente, que o muzonguê era remédio santo para a ressaca [Rui 1997: 107] e
outros muitos tratamentos locais.
98 Estamos, pois, diante da enunciação ficcional de manifestações de “outros”
conhecimentos, do “outro lado da linha abissal” e conduzidos por uma mulher – como
refere Boaventura de Sousa Santos, aqueles que assentam na invisibilidade do
conhecimento científico e não são, portanto, distintos como verdadeiros ou falsos.
99 Noíto, como temos vindo a descobrir, é possuidora de uma personalidade prática, mas
que encarna um pensamento filosófico que igualmente se pode extrair da obra, e
classificar como africano.
100 Do marido ela apreciava o facto de que era um homem simples, prático e que reservava
a cabeça só para “as voltas mais definidoras entre os dois percursos que eram só um, a
vida e a morte, olvidando os meios termos, os marcos de passar” [Rui 1997: 37]. Por
outro lado, considerava que a terra era tão pequena e tão curta como a vida, e dava
razão ao marido [Rui 1997: 75], “parece que o mar sem a água doce que anda nos rios,
que desce do céu, fica triste, mesmo triste. Afinal Zacaria deve ter razão quando pensa
que o princípio de tudo é mesmo os rios e não o mar” [Rui 1997: 274].
101 Como se vê, mar e rios e outros seres naturais são animados por vida própria e revelam
sentimentos.
102 Quanto à noção de tempo e da sua acção nas vicissitudes da história: “Eu só gosto
daquilo que é bom em qualquer tempo, mais nada. Aprendi muito e só não aprendi a
ler” [Rui 1997: 409] (uma referência mais a “outros” conhecimentos) e, de pés assentes
no chão, não se deixa cair em fantasias: “o mundo quando muda as coisas nem pergunta
mais nas pessoas que também andaram a ajudar na mudança” [Rui 1997: 301]; enfim,
prática, tem uma proposta (com algum humor) para a situação por ela vivenciada no
seu país em guerra “Quando a culpa não é só de uma pessoa mas de todas, então aí,
como a gente não quer dividir a culpa, ao menos, é melhor se dividir só na comida em
vez de ficar com a comida toda e dar a culpa aos outros” [Rui 1997: 522].
103 E eis que se aproxima o tema da morte, encarada por Noíto como o fim, indesejável, de
uma vida que apenas merece ser vivida quando realizada e permite a paz da
consciência. Quer um trabalho “para não ficar assim parada só à espera de morrer que
até dá mais trabalho morrer sem fazer nada, só à espera disso sem esquecer um dia só.
Preciso esquecer que vou morrer. Uma pessoa quando não trabalha não esquece”, “A
vida é mesmo assim que a gente nem dá conta de conseguir morrer da maneira que a
gente quer por já não poder estar viva.” [Rui 1997: 200].
104 Vem a propósito referir Houtondji [2009: 123 e 125], para quem “a filosofia africana não
devia ser concebida como uma mundivisão implícita partilhada inconscientemente por
todos os africanos. [Numa nota, acrescenta:] É mais produtivo prestar atenção aos
modos e dispositivos concretos através dos quais o conhecimento é transmitido sem
recurso à escrita tal como ela é usada no Ocidente. Por esta razão, devem ser chamadas,
como sugeriu o linguista francês Maurice Houis (1971), civilisations de l’oralité –
civilizações da oralidade.”
105 A “lógica da oralidade” é diferente, no seu funcionamento, da “lógica da escrita” e tem
influência na transmissão do conhecimento produzido.
106 Noutra nota importante, Houtondji [2009: 125] refere: “A etno-filosofia baseava-se,
entre outros pressupostos, na ideia de que, nas sociedades de pequena escala ou
sociedades primitivas, como são chamadas, vigorava uma total unanimidade, com toda
a gente a concordar, por assim dizer, com toda a gente. Além disso, essa pretensa
unanimidade era vista como uma virtude, e o desacordo como algo mau ou perigoso. A
este duplo pressuposto dei o nome de ilusão unânime.”
107 A seguir, Hountondji chama a atenção para a enorme diversidade e pluralismo de
filosofias em África.
Kianda também não tem kalundús. Só por ter pensado isso vou-lhe pagar numa
promessa.” [Rui 1997: 390]
112 Como Deus é complicado, resolve rezar à Kianda [Rui 1997: 456]:
“Vou ir com estas tranças até no caminho onde começa a minha conversa com a
Kianda e os meus ouvidos para ficarem a perceber as coisas que faltaram não
conseguir ouvir de Deus.”
113 E, de regresso aos problemas de entendimento de Deus, Noíto sempre fiel ao marido
Zacaria mas simultaneamente apaixonada pelo pescador exemplar Mateus, desabafa
[Rui 1997: 462]:
“Se Zacaria sabe tudo do rio, Mateus sabe tudo do mar. Meu Deus! Meu Deus! Não
tem uma pessoa que saiba tudo de todos tudos? Só tu e a Kianda e por isso é que
falam que eu ando a quê? A amarrar. Isso. Quem pode amarrar no rio é Zacaria.
Quem pode amarrar no mar é Mateus. Deviam deixar uma mulher ter dois maridos.
Um do rio. Outro do mar. Para ela amarrar a chuva. Perdão, meu Deus. Isso era ficar
como tu. Uma mulher como Deus. Nada.”
114 Noíto possui, pois, uma visão sincrética da religião. Nesta, existe o lado africano e
tradicional, bem angolano, relativo ao culto à Kianda, a divindade que habita nas águas
da baía e que circundam Luanda, que protege a vida e os trabalhos dos pescadores e
lhes dá o sustento, e é, igualmente, senhora das águas, justiceira para os faltosos, e que
encontrou a sua origem na barra do Rio Kwanza [Rui 1997: 276]:
“Mateus falava de convicção e respeito naquela sereia. Sua metade, da cintura para
baixo, corpo de peixe e, para cima, outra metade, corpo de mulher. Que, desde
miúdo, ainda os da margem do rio grande, terra de seu pai, trepadores, caçadores
ou camponeses, reivindicavam a foz, no mais de rebentação, fim de rio começo de
mar, como o berço daquela sereia que, posteriormente, passara a instalar-se em
todas as profundezas das águas do azul sem fim, adoptando, também, como seu
território, as terras de Caculo, ali na ilha. E era aí, no Caculo, que a gente do mar
depositava suas oferendas à Kianda, em agradecimento pelos sucessos, para a boa
sorte na arte de fazer o peixe morrer e regressar a terra de remo fácil ou vela
zunida. E que ela não perdoava aos faltosos. Aos que … se esqueciam do
cumprimento. A barona dos mares afundava-lhes as canoas, mesmo sem calemba”.
115 Noíto tem mesmo a coragem de realizar um casamento sincrético [Rui 1997: 280]:
“Se a Kianda acompanha as viagens de mar do mano Mateus, parece que ela
acompanha também os meus passos na areia da vossa terra. Então é porque o
marido dela só pode ser Deus.” – E benzeu-se.”
116 E explica o narrador que esta história tinha tido um outro namoro, anterior [Rui 1997:
331]:
“a sereia rainha do mar e amantizada com ele no testemunho da estrela, do vento
das calembas que faziam pensar que o mar daquelas águas só tinha fim no seu
princípio.”
117 No que diz respeito aos feitiços, Rioseco traduz uma infinidade de referenciais a essas
práticas tão comuns em África: homens com direito de feitiço sobre as árvores, objectos
enterrados por feitiço e que não se devem desenterrar, o marido que é peçonhento
porque casado com uma feiticeira, árvores que tombam por efeito de feitiço, possuir
sangue da Kianda o que transforma a pessoa em feiticeira, falar com os mortos, etc.
118 Um dos mais importantes feitiços é o de amarrar a chuva, particularidade que a Kianda
possui em relação à sua zona de jurisdição.
119 A própria Noíto, a certa altura, passa a ser considerada uma feiticeira e amarradora da
chuva, e as pessoas começam a ter receio dela.
120 Como já ficou mencionado, o país, a administração e a sociedade civil coevos são vistos
por Noíto como enfermando de graves distorções, provocadas pelas consequências da
guerra ininterrupta que assolava Angola, pela corrupção generalizada do poder, a
censura do pensamento divergente e pela fraqueza da sociedade civil, perante tantas
dificuldades.
121 A situação crítica em que se encontravam as populações, radicava na forma como foi
apropriado o poder no pós- independência, pelas elites.
122 A corrupção dos militantes do MPLA e dos muitos que, em geral se deixaram cooptar
pelo poder, pelos inconfessáveis interesses pessoais e económicos, o gradual
crescimento das diferenciações sociais, uma autoridade muito centralizada mas ineficaz
e corrupta, no que respeita à aplicação da lei, as divergências entre etnias e culturas,
por vezes, subtilmente e com ironia fazem (falsamente!) reaparecer a memória do
colonialismo.
123 É o que podemos constatar:
A situação crítica das populações, sobretudo nos centros urbanos e em Luanda, a
capital é deplorável sob qualquer ponto de vista que se observe. Despertara muito a
atenção de Noíto a existência de um mercado nos arredores de Luanda e, ao mesmo
tempo, retém na memória uma descrição da cidade: “retivera sempre a imagem do
mercado, a quitandeira que lhes propusera um rumo fora da confusão da imensa
cidade onde as pessoas se perdiam de medo, solidão e fome” [Rui 1997: 186],
enquanto que, no que se refere ao comportamento dos oportunistas, encontramos
variadas passagens do texto, em que Noíto se depara com comportamentos
verdadeiramente estranhos, que nunca imaginara possíveis: bandidos,
açambarcadores, políticos corruptos, polícias violentos, etc. Relativamente aos
militantes do Partido, assiste a conversas onde se produzem queixas e reclamações:
”vocês os militantes são os que mais mal dizem desta merda. É doentio. Parece que
vivem da desgraça. E, bem vistas as coisas, isso deveriam abordar lá nas vossas
reuniões das células.” [Rui 1997: 97]
Quanto aos dias do início da independência, passados 22 anos, eis o que o narrador
coloca no pensamento de Noíto: “o abandono e morte lá na cidade, onde as pessoas
viviam fogachando tiros e se matando umas às outras só por causa da
independência e disparavam os que queriam ser independentes contra os que
também queriam ser independentes” [Rui 1997: 104], depois degeneradas em
comportamentos abusivos, violência e atropelos, nas cidades e nos campos onde a
apropriação dos bens dos colonos era feita por “bandidos que têm três casas, cinco
carros e viajam bué de avião. Por isso é que este dinheiro novo não vale nada” [Rui
1997: 403], e Noíto conclui: “Cães! Ganharam a independência e perderam a
vergonha.” [Rui 1997: 102]
A ideia que Noíto faz dos ricos é contundente e extensível aos políticos e aos que
cometem ilegalidades: “Porque os ricos, meu Deus, são maus e só eles é que falam.
Só eles é que sabem. Mas eu, em toda a minha vida falei aquilo que senti.” [Rui 1997:
270] Por isso, ela afirma: “Eu não gosto deste estado.” [Rui 1997:188]
124 E tinha razão na sua adversidade ao “pensamento único”: o pluralismo africano e
popular não se situa no unamismo…
125 É que Noíto possui um pensamento equilibrado, uma racionalidade e um tempo longo
que dá para ter um entendimento das coisas em latitude e profundidade: “os colonos
tinham tanta coisa boa e há gente que só aprendeu a maldade para juntar à maldade
que nós já temos dos nossos antigos, Deus que me perdoe que nós também tínhamos
coisas boas, antigas” [Rui 1997: 210]; uma das coisas boas dos colonos, Noíto considera,
quando se recorda da guerra colonial, consistia na língua portuguesa: “Os camaradas
guerrilheiros vinham de todo o lado. Cada um na sua língua. E entendiam-se. Essa
língua dos tugas, que não é só deles, é nossa, uniu-nos muito. Afinal uma língua não é
de ninguém! A língua é de quem a aprendeu” [Rui 1997: 112] e chega a fazer um elogio
ao fado: “músicas … português do antigamente, bem bonitas, tinha a fala de um
kissange com voz de mulher, triste. Isso, mesmo. No Lubango ouvi um português tocar.
Como eu me lembro!” [Rui 1997: 113]
126 Trata-se do hibridismo transcultural, pela música.
5. Conclusão
127 Noíto é uma personagem retirada ao silêncio das margens.
128 É pela voz dessa mulher que se processa a enunciação e a descrição das margens de
Angola, do planalto sulano, onde ela nasceu e viveu, onde experimentou a paz da
infância e as guerras sucessivas, primeiro a de libertação e, depois, as duas guerras
civis.
129 Era uma terra de paz, o Huambo e rica de toda a natureza, agora feita violência. É aí que
perde o primeiro marido, militar valoroso, na luta anticolonial e é a guerra que lhe
desmembra a estabilidade e a proximidade da família (a filha Belita e os três netos) e é
obrigada a partir, obrigando-a à procura da sobrevivência aqui e ali, por todo o
território da guerra.
130 Como mulher simples e de trabalho, inteligente e arguta, casa com Zacaria, o
carpinteiro e os dois emigram através duma Angola devastada, para a ilha do Mussulo,
junto a Luanda, onde se adaptam a novos costumes, culturas e trabalhos.
131 Nessa viagem, Noíto passa diante de nós, em enunciação e regime de oratura e marca de
português angolanizado, qual câmara de filmar os quadros de uma Angola ferozmente
destruída no corpo e na alma, onde o tecido social rompido pela desarticulação dum
Estado em guerra civil de violência extremada e de oportunismo desenfreado do ‘salve-
se quem puder’, contrasta, em absoluto, com tudo o que sempre ensinara a cultura e as
tradições ancestrais.
132 Ela, Noíto, é a portadora sagrada dessas tradições, das concepções de um tempo e lugar
aconchegados e africanos, duma natureza generosa onde várias ecologias se
desenvolvem: a dos saberes (cultivo agrícola, culinária, medicina, pesca, comércio
informal, …) ecologia de um pensamento directo, justo e prático, apoiado numa ética
definida e simples, na frontalidade e coragem das atitudes, e numa religiosidade
sincrética, viva e vidente, alegre e actuante, com a naturalidade dos contactos habituais
com espíritos, cazumbis e feitiços, que povoam cada dia a sua mentalidade e cultura
africanas, e que não dispensam a reprimenda dos faltosos.
133 Com uma personalidade equilibrada e justa, fundada nas tradições, não faz concessões
que não sejam justificadas e é a transportadora de culturas, a tradutora por excelência
entre as culturas agrícolas do Sul e as piscícolas da costa marítima, entre o passado e o
moderno, entre o local e o universal, conservando sempre o rio subterrâneo da
tradição, fonte da sabedoria africana.
134 Com Noíto, dá-se em todo este romance uma rotura com a epistemologia eurocêntrica,
abrindo os espaços sem fim das ecologias de outros saberes e dos universos plurais
(pluriversais como lhes chama Boaventura de Sousa Santos) africanos de Angola.
135 Mulher plenamente africana e angolana, Noíto é um exercício de cidadania superior na
realidade dramática de Angola, no seu tempo e a partir das margens. Ela, mulher do sul
do sul do sul (de Angola, do interior e do género) é uma imagem que projeta o sentido
político de Angola, que fala de diversos lugares e ocupa outros tantos.
136 Por isso, Manuel Rui, ao longo do percurso de escritor, questionando constantemente o
presente, corrobora o pensamento de Ana Paula Tavares [2008: 42] e pratica, com a
máxima firmeza, a “coragem da Literatura em adiantar-se à História”.
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NOTAS
1. Mário de Andrade (1975) Antologia Temática da Poesia Africana, vol. I: «Na Noite Grávida de
Punhais», Lisboa: Sá da Costa.
2. As três guerras são: 1961-1974: 1ª guerra: de libertação (envolve três movimentos: MPLA, FNLA
e UNITA, contra o exército colonial português); 1975-1991: 2ª guerra: (envolve os três movimentos
entre si: MPLA, FNLA e UNITA e termina com os acordos de Bicesse entre MPLA e UNITA, sendo
que desapareceu a FNLA); 1992-2002: 3ª guerra (termina com o Memorando do Luena, em 4 de
Abril de 2002).
RESUMOS
Noíto é mulher do sul e das margens. Para fugir à guerra civil de Angola, traz para a ilha do
Mussulo, com a sua oratura e vida, a cultura, as tradições e a ecologia de muitos outros saberes. E
também a sua identidade vincada de mulher africana e angolana. Uma obra da pós-colonialidade,
na enunciação de lugares e tempos de África, que retrata sociologicamente os primeiros 22 anos
de independência do país. E que não deixa de ser, ainda, actual.
Noito is a woman from the south of the margins. To flee from the civil war in Angola, she brings
to the island of Mussulo, with her orality and life, culture, traditions and the ecology of many
other knowledges. It is also about her identity as an African and Angolan woman. A work of post-
coloniality, enunciation of spaces and times of Africa which gives a sociological account of the
first 22 years of independence of Angola. It remains a contemporary work of literature.
ÍNDICE
Palavras-chave: pós-colonialismo, colonialidade, lugar e tempo de inscrição, oratura, ecologia
de saberes, justiça cognitiva
Keywords: post-colonialism, coloniality, enuncation of spaces and times, orality, ecology of
knowledges, cognitive justice
AUTOR
LUÍS MASCARENHAS GAIVÃO
Historiador, professor e escritor. Mestre em Lusofonia e Relações Internacionais pela
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa, Portugal), Licenciado em Filosofia
e Humanidades pela Universidade Católica (Braga, Portugal). Antigo Adido Cultural de Portugal
em Luanda, Luxemburgo e Bruxelas, antigo formador do Alto Comissariado para a Imigração e
Diálogo Intercultural, antigo assessor do Ministério da Educação. Áreas de investigação:
africanologia, literaturas e culturas africanas, interculturalidade e lusofonia. É autor de: Um
Adido Cultural no Luxemburgo. Episódios de uma diplomacia de prosápia (Lisboa 2011), Coisas e
Sabores de Língua Portuguesa (online 2008) e Estórias de Angola (Lisboa 2006). [e-mail:
lgaivao@sapo.pt]
Nuno Medeiros
NOTA DO EDITOR
Recebido a: 24/Fevereiro/2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 2 e 30/Abril/2012
Aceite para publicação: 6/Maio/2012
Figuras do editor
1 Em documento formativo, a UNESCO [1990] acomete ao editor de livros três funções: a
de decidir o que é e não é publicado, a de correr os riscos inerentes às indeterminações
financeiras das suas decisões, a de coordenador, ou maestro, das funções do autor, dos
compositores e do impressor, intervindo ainda directamente na promoção e até na
distribuição. Noutros fóruns ainda, o editor é o destino da convergência de múltiplos
epítetos: homem de negócios, gramático, intelectual, agente publicitário, tutor do
conhecimento e da criação. Não passível de redução dimensional, semelhante ofício
corresponde ao encargo com um empreendimento cujos objectivos e bases, nas
palavras de Stephen Graubard [1963: 3], desafiam qualquer definição imediata. Com
efeito, este actor do universo tipográfico concita na sua apreciação os mais variados
registos, do lírico ao obstétrico. Se pode prefigurar o “operário encantado” que uniu
“definitivamente a sua vida ao nobre e fascinante mundo do papel impresso, com as
suas inerentes seduções e imaginários incontornáveis” [Associação 2000: 7], é também
descrito provocatoriamente como “um conselheiro pré-natal, um juiz da vida ou morte
permanentemente sectores e agentes na edição que se afirmam com base numa acção
apologética do serviço às franjas tidas como dominadas ou desqualificadas, sob o
patrocínio da edição “popular”, de “divulgação” ou “para todos”. Ao arrepio dos
fundamentos e intenções subjacentes à actividade destes sectores, inexoravelmente
puxada para o interior de um jogo de espelhos cujo ponto de reflexão se faz a partir da
referência letrada e dotada da panóplia de signos e recursos de codificação tornados
norma pelas culturas dominantes, editar começa ou acaba na representação virtual do
acto distintivo de ler como destino, ainda que se materialize intencionalmente como
ultrapassagem, complementação, subversão ou corrupção da edição tomada como
expoente de produção e circulação dos cultos para os cultos segundo modalidades mais
ou menos diversas de erudição. Isto é, se se edita para a decifração como acto leitural,
mesmo se com objectivos de massificação ou de promoção de publicações ligeiras e
expurgadas de inscrição mais intelectualizante, edita-se para uma fruição livresca,
impressão carregada de sentido distintivo e indissociável das ideias de
desenvolvimento, progresso e civilização. Semelhante asserção é passível de
confirmação na defesa comum de que a prática de leitura de livros é, por definição, boa
e deve ser promovida [Medeiros 2010a].
11 A edição de um livro corresponde, portanto, a bem mais do que ao mero exercício de
torná-lo disponível. O processo de o integrar no universo material, ou de o refundir, ou
de compulsar as suas partes constituintes, perspectivado pelos próprios editores como
uma operação de atribuição de mais-valia ao trabalho do autor, é um processo de
prescrição, de concessão de sentido [Chartier 1997, Medeiros 2006 e 2009a]. No quadro
da edição académica e científica, por exemplo, com a publicação está em jogo muito
mais do que a selecção de informação que o editor pretende tornar pública; é da própria
validação do trabalho editado que se trata. É pelo próprio acto de publicar que o editor
lhe exponencia o valor como resultado da diligência intelectual. Através da legitimação
editorial – figura complementar, ocasionalmente conflitual ou supletiva, da
legitimidade oriunda noutras fontes – o autor de obra científica passa a prova de um
dos filtros do reconhecimento, acumulando prestígio que lhe pode franquear a porta da
respeitabilidade entre pares e dilatando os capitais de que pode dispor autonomamente
[Horowitz 1986]. Tanto quanto a aquisição de competências de julgamento e escolha
obedecendo a lógicas específicas, é a relação com o autor, com quem partilha o retorno
do investimento, que retira ao editor a característica de simples instrumento de
transmissão de ideias e informação. Incorporando tais traços, o editor vê-se resgatado
historicamente da fusão com o impressor e o livreiro, figuras que deixam de ser a sua a
partir do século XIX.
cujo trabalho é essencial ao resultado final” [Becker 1984: 25]. O seu envolvimento,
dependente nos laços de cooperação estabelecidos no ordenamento social coordenado
do livro, determina o tipo de produto textual que o autor pode realizar e o tipo de
publicação a que pode aspirar. A noção que é possível articular da literatura enquanto
género mais enfatizado do livro, decorre do reconhecimento desta interacção sistémica
cooperativa. Por exemplo, ao tratar do romance da época vitoriana em Inglaterra como
género, John Sutherland [1976: 6] assevera que muitas das grandes peças da prosa desse
“período, que aparentam ser o produto solitário do génio criativo, eram … resultado de
colaboração, compromisso ou comissão”. A colaboração entre agentes não é
confundível com convergência de interesses ou harmonia de posições. Contrapondo-se
ao discurso da parceria pacífica, a relação entre autores e editores corresponde em
grande número de casos ao que William Graham Sumner qualificou por “cooperação
antagonística” [2002].
16 Posteriormente à aliança entre autores e editores e da ajuda mútua que se prestaram
(com os autores libertos da subordinação mecenática e os editores posicionados no eixo
da produção de um bem cultural crucial, o livro), foi-se desenvolvendo uma
demarcação de objectivos e uma certa tribulação entre os dois grupos [Coser 1970,
Santos 1988], tensão que nunca terá deixado propriamente de existir, mau grado os
exemplos de sucesso relacional. Multifacetada e rica em subtileza, a interacção entre
editores e autores é essencial para o nascimento do livro. “Imaginado (e imaginando-se)
como sendo um demiurgo, o escritor cria, no entanto, na dependência. Dependência em
relação às regras (do patronato, do mecenato, do mercado), que definem a sua
condição. Dependência, ainda mais importante, em relação às determinações
desconhecidas que fazem parte da obra e que fazem com que ela seja concebível,
comunicável, decifrável” [Chartier 1997: 9]. O livro conhece, portanto, ancoragem
processual nas instituições e articulações do mundo social [Radway 1984]. O espaço
social que produz a obra, nas múltiplas apropriações que sobre ela se operam, obedece,
segundo Roger Chartier, a um ordenamento. Esta ordem do livro é estabelecida na
multiplicidade de relações e operações que preceituam o universo do escrito [Curto
2007], mas também na disposição de intencionalidades que o texto vai procurando
impor ao leitor nos sucessivos quadros em que se inscreva socialmente a leitura. A
ordem do livro designa ainda as modalidades através das quais a materialidade do
objecto impresso interfere na apropriação dos discursos [Chartier 1995, 1996, 1997,
1998, 2001].
17 Consiste esta concepção do objecto impresso e, particularmente, do livro numa
superação da sua produção intelectual enquanto factor unidimensional de construção
do fenómeno do seu engendramento. Opera-se uma demarcação clara das visões
clássicas, estritamente ligadas a uma concepção vincadamente formalista do literário e
longamente hegemónicas, quer no domínio da literatura em si, quer no dos estudos
literários como campo de conhecimento. Se as suas proposições transformavam, por
um lado, a leitura num processo mentalmente indolente, negando ao leitor
competências imaginativas e transgressivas, por outro, alternavam entre a
ambiguidade (reconhecia-se a sua intervenção mas como acto de corrupção) e a recusa
quanto à intervenção de outros actores sociais ligados ao livro com um papel activo na
informação ou conformação das leituras de uma obra ou de um autor. Deve salientar-se,
porém, que anular a ideia de prática de produção textual colaborativa, reduzir a
complexidade do livro impresso e sustentar um estatuto ontológico para o texto,
assimilando-o a um monumento, correspondem a uma perspectiva dos estudos
22 Por outro lado, as transformações que há longos anos se têm verificado na fileira
cultural no sentido da sua crescente conformação à ideia de mercado e aos seus modos
de funcionamento, com particular incidência no mundo do livro, engendraram uma
transição na lógica operativa de um número significativo de editoriais, que se deslocou
de uma economia de produção baseada no autor para uma economia fundada
produtivamente no leitor, visto cada vez mais como consumidor 9. Se esta deslocação é
inquestionavelmente portadora de modificações tanto na edição, enquanto um dos
campos que organizam socialmente o livro, quanto nos editores, enquanto figuras que
se assumem simbolicamente como a sua efígie, as mudanças que anuncia constituem
uma continuidade no percurso de transmutação morfológica em que remanesce a
matriz de mediação nas práticas de elaboração autoral e apropriação leitural de um
texto e nas formas de intervenção nas configurações culturais e tipográficas (nas
vertentes materiais como nas imateriais).
23 Num cenário editorial povoado por um número restrito de conglomerados, em que de
modo apenas aparentemente paradoxal forçam caminho pequenas editoras [Medeiros
2007], que vão surgindo como reduto de especialização e de diversidade textual,
diversifica-se o número de situações em que se molda o editor, personagem ideal-típica
cujo perfil e vocação são, afinal, tão multiplicados quantos os contextos produtivos em
que emerge e se vai fabricando a edição. A actual variedade de modelos produtivos na
edição, nos quais a pluralidade de dimensões jurídicas, técnicas, económicas e
comerciais acompanham os aspectos mais intrinsecamente estéticos e comerciais na
determinação das condições de produção e circulação [Legendre 2007], concorre para o
carácter diverso, fragmentado mesmo, que a edição ostenta, longe das perspectivas que
a tendem a reduzir ao concerto do best-seller e ao império dos géneros e temas de
grande consumo, sejam eles de jaez literário, técnico ou escolar. Capturar e emprestar
sentido empírico a esta heterogeneidade tem inevitavelmente de envolver o
reconhecimento da referida multiplicação de modelos, frequentemente descontínuos
entre si e fortemente enraizados no quadro histórico em que emergem ou se
transfiguram [Darnton 1982, Curto 2007, Medeiros 2010b].
24 O mundo social do livro não corresponde ao mundo do objecto, mas ao das práticas e
dos agentes que o viabilizam enquanto tal10. A afirmação de semelhante truísmo torna-
se, por vezes, necessária para que se não perca de vista uma das características centrais
desse mundo: o de que a edição é um trabalho de produção de valor. O esforço de
materialização de um livro é também o da infusão de benefício simbólico, sem o qual o
objecto físico se perde enquanto objecto de desejo, factor de aval de conteúdos ou
elemento de alarde identitário. Em matéria de livros e de outros produtos culturais, o
fabrico do bem palpável pode estar destituído simbolicamente, se desacompanhado da
produção de valor impalpável do objecto fabricado. A realização de um livro é muito
mais que uma origem primordial; é o resultado editorial e livreiro da sua instituição
social como obra conhecida e reconhecida pelos seus receptores finais. O conhecimento
e reconhecimento radicam na convicção nos seus usufrutuários finais do valor
intrínseco da obra [Johns 1998]. Muito mais do que elemento reduzido à reificação do
texto, o editor produz a crença no valor que este adquire como livro [Bourdieu 1996]. E
esse é, sob vários aspectos, o seu poder simbólico de prescrição: o “de constituir o dado
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do
mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo” [Bourdieu 1989: 14].
O editor vê-se, então, investido objectivamente de um papel também veiculado
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NOTAS
1. Veja-se, por exemplo, a discussão de Alberto Cadioli [2001: 13-18] acerca da destrinça que,
seguindo a tradição anglo-saxónica, se pode fazer na língua italiana entre edizione (editing) e
editoria (publishing).
2. Segundo John Dessauer [1999: 48], “todos os editors são, ou devem ser, mestres em diplomacia,
já que têm que trabalhar e negociar permanentemente com a espécie mais temperamental, o
Homo scrivens”.
3. No caso de Perkins, elevado a paradigma, a actuação do editor sentia-se na textura do livro,
cerzindo o próprio texto no tom e sequência com que ia para o prelo. Thomas Wolfe, romancista
famoso, entregava-lhe caixas de material esboçado e por refinar, que Perkins cortava, cosia,
compunha e rearranjava até à disposição final com que era publicado. Albert Greco [1997: 113]
refere mesmo um “arquétipo Perkins”.
4. Tradução taxonómica proposta por Jorge Martins [2005]. Nuno Medeiros
5. Stanley Unwin oferece ao leitor do seu livro, A Verdade Acerca da Vida Editorial, logo na primeira
página da introdução, a seguinte afi rmacao: “uma coisa há que é muito mais precisa do que os
conhecimentos; é o critério, e aquilo a que, à falta de melhor termo, chamarei apenas faro, na
escolha dos originais para publicação” [1952: 10].
6. Sobre o paradoxo indústria/artesanato como traço particular da edição como indústria
cultural, vejam-se Paul Hirsch [1972] e François Rouet [2000].
7. No caso português, a disjunção entre editor e livreiro para o conjunto das três dimensões
assinaladas ocorre extensivamente muito mais tarde, já bem dentro do século XX.
8. Para uma aproximação mais testemunhal, formada pelo discurso internalista dos próprios
editores, confiram-se Stanley Unwin [1952] e John Dessauer [1999]. As obras de Unwin e Dessauer,
afastadas cronologicamente, também se separam no posicionamento, com a primeira a cultivar as
compensações intangíveis e a segunda a optar por um enfoque que toma a edição, antes de mais,
como um negócio.
9. A lógica produtiva assente no leitor como desígnio mercantil estruturador da acção editorial
não é nova, o seu peso hegemónico nas práticas e estratégias dos editores tomados globalmente é
que se vem constituindo como dado mais recente, visível há mais tempo em mercados do livro
nos quais se registaram mais precocemente movimentos de concentração, fusão e aglomeração
do sector editorial na fileira industrial de exploração do campo cultural e de entretenimento
[Altbach & Hoshino 1995].
10. De certa forma, esta asserção recupera a ideia de processo sócio-material proposto por
Raymond Williams [1977] acerca da actividade cultural.
RESUMOS
Personagem-filtro, intérprete, mas também interventor, prescrevendo, legitimando e ordenando
o universo tipográfico, o editor surge como figura múltipla e socialmente investida de atributos e
práticas mediadoras na sua relação com o dado textual. Produtor de valor e materialidade, o
editor inscreve o projecto do livro num espaço social colaborativo de trabalho, o campo da
edição. Este artigo procura sistematizar teoricamente alguns tópicos relativos à articulação do
editor com a construção social do campo editorial e a edificação da cultura impressa. Empreender
semelhante exploração é abdicar forçosamente de uma visão linear, unidimensional e
historicamente asséptica do mundo social e cultural do livro, cuja morfologia e suportes
conhecem crescentemente os desafios da desmaterialização.
A sort of filter, and interpreter, whereas also interposer, prescribing, legitimizing and organizing
the typographical universe, the publisher rises as a multiple figure socially invested of mediating
features and practices in her relation with the textual fact. Producer of value-adding, and
materiality, the publisher inscribes the project of the book in a socially collaborative working
space, the publishing field. This article intends to theoretically frame a number of topics
regarding the articulation of the publisher with the social construction of the publishing field
and the fabrication of print culture. To undertake such an approach forcefully means to
relinquish a perspective that views the social and cultural world of the book (whose morphology
and avatars progressively face the challenges of the dematerialization) as being the result of a
one dimensional, homogenous, and aseptic history.
ÍNDICE
Keywords: publisher, publishing, construction, social world of the book
Palavras-chave: editor, edição, construção, mundo social do livro
AUTOR
NUNO MEDEIROS
Sociólogo. Mestre em Sociologia Histórica pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa e Licenciado em Sociologia pela mesma instituição. Professor
Adjunto na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa e
investigador do CesNova – Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa e da
Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas. A área de pesquisa que mais
tem explorado é a sociologia histórica da edição, do livro e da cultura. É autor do livro Edição e
Editores: o mundo do livro em Portugal, 1940-1970 (Lisboa 2010). [e-mail:
nuno.medeiros@fcsh.unl.pt]
Ensino superior
Paulo de Carvalho
NOTA DO EDITOR
Artigo pedido ao autor|
Recebido a: 12/Maio/2012
Aceite para publicação: 19/Maio/2012
O ensino superior foi implantado em Angola (então colónia portuguesa) somente no ano
de 1962, com a criação dos Estudos Gerais Universitários de Angola. A Igreja Católica
tinha, porém, criado em 1958 o seu Seminário, com estudos superiores em Luanda e no
Huambo1. À criação dos Estudos Gerais Universitários de Angola seguiu-se a criação de
cursos nas cidades de Luanda (medicina, ciências e engenharias), Huambo (agronomia e
veterinária) e Lubango2 (letras, geografia e pedagogia).
Em 1968, os Estudos Gerais Universitários de Angola foram transformados em
Universidade de Luanda, tendo em 1969 sido inaugurado o Hospital Universitário de
Luanda. A Igreja Católica havia, entretanto, criado em 1962 o Instituto Pio XII,
destinado à formação de assistentes sociais.
No período colonial, o acesso ao ensino superior destinava-se somente a quem
integrava as camadas superiores da hierarquia social3, podendo mesmo dizer-se que,
nos primeiros anos de implantação em Angola, era difícil que alguém pertencente às
camadas médias da hierarquia social tivesse acesso ao ensino superior. O local de
nascimento, o local de residência e a posição social determinavam claramente o acesso
a este nível de ensino, que reproduzia para as gerações seguintes a estratificação social
da Angola colonial4.
Com a proclamação da independência política de Angola, em 1975, foi criada a
Universidade de Angola (em 1976), mantendo-se uma única instituição de ensino
Ano de
Designação Sede
criação
a
. Herdou as infra-estruturas e unidades orgânicas da UAN na sua região (com excepção
das mencionadas na presente tabela, abaixo).
b. Funcionava anteriormente no âmbito da Universidade Agostinho Neto.
Fonte: MESCT 2012.
Ano de
Designação Sede
criação
* Várias das instituições privadas começaram a funcionar antes da sua criação pelo
Conselho de Ministros.
a. Sucedânea do Instituto Superior Privado de Angola, criado em 2001.
Fonte: MESCT 2012.
Ano Nº de estudantes
1964 531
1965 584
1966 706
1967 989
1968 1.252
1969 1.784
1970 2.369
1971 2.668
1974 4.176
1977 1.109
1997 7.916
1998 8.536
2001 9.129
2002 12.566
2003 17.866
2004 24.620
2005 32.173
2008 87.196
2009 98.777
2010 107.099
2011 140.016
Gráfico 1
No que diz respeito à grandeza das instituições privadas de ensino superior (medida
pelo número de estudantes), a tabela 5 é suficientemente esclarecedora. Lidera a
Universidade Jean Piaget de Angola, que é uma das mais antigas instituições privadas
de ensino superior em Luanda (e no país em geral) e que representa 11,7% do total de
estudantes do ensino superior privado em Angola. Seguem-se a Universidade Técnica
de Angola (9,7%), a Universidade Independente de Angola (9,0%), o Instituto Superior
Técnico de Angola (8,1%) e as Universidades Lusíada de Angola e Gregório Semedo (7,9%
cada uma).
O maior crescimento do número de estudantes no período 2009-2011 foi registado no
Instituto Superior Técnico de Angola – crescimento em 322,5%, tendo passado de um
modesto 12º lugar em 2009 (com apenas 2,8% do total de estudantes neste tipo de
instituição) para o actual 4º lugar. (com os já referidos 8,1%) – ver gráfico 2. Quem
também registou grande crescimento no número de estudantes neste período foi o
Instituto Superior Politécnico Metropolitano, que duplicou o número de estudantes em
apenas dois anos (aumento da ordem dos 121,6%) e representa agora 4,2% do total de
estudantes no ensino superior privado. Um terceiro destaque em relação a esta matéria
diz respeito à Universidade Privada de Angola, que registou a diminuição em 33,9% no
número de estudantes no período 2009-2011.
Gráfico 2
Gráfico 3
No que diz respeito a docentes do ensino superior, os dados disponíveis dizem respeito
ao período 2000-2011, com um interregno em 2006-2007. Tal como se pode verificar na
tabela 6 e no gráfico 4, o número de docentes no ensino superior registou um aumento
em 58,4% no período 2000-2005, enquanto no período 2005-2011 esse aumento foi de
313,8%.
Enquanto até 2005 o ritmo de crescimento do número de docentes do ensino superior
era de 9,6% ao ano, de 2005 a 2011 esse ritmo passou para 26,7%. Isso quer dizer que o
ritmo de crescimento do número de docentes quase triplicou nos dois períodos
analisados. Este facto demonstra a crescente aposta no ensino superior por parte do
governo de Angola, particularmente a partir de 2006 (quatro anos após o término da
guerra civil em Angola) – seja com o aumento do orçamento dedicado ao ensino
superior, seja através da abertura de instituições privadas de ensino superior, que são
consideradas parceiros do Estado em relação a este serviço público.
A tabela 7 apresenta o rácio estudantes/docentes, dando conta do número médio de
estudantes para cada docente do ensino superior. Neste momento, há no ensino
superior em Angola 25,46 estudantes para um docente. Nas instituições estatais este
número é de 24,27 e nas instituições privadas, de 26,67 estudantes por docente.
Uma vez que os dados relativos a docentes não estão diferenciados segundo a categoria
(professores e assistentes), não é possível apresentar rácios em relação a professores
(somente a docentes em geral). Mas podemos adiantar que o número de estudantes por
professor é bastante elevado e o número de estudantes por Doutor será mais elevado
ainda.
A este respeito, as instituições privadas estão globalmente pior que as instituições
estatais: não apenas as privadas possuem um rácio global superior (mais 2,4 estudantes
por docente, como já vimos), como também estão bastante pior em termos de
professores e em termos de Doutores. Além do mais, é preciso considerar que parte dos
docentes das instituições privadas de ensino superior são docentes efectivos em
instituições estatais.
Ano Nº de docentes
2000 839
2001 869
2002 988
2003 1.169
2004 1.239
2005 1.329
2008 3.128
2009 3.741
2010 4.652
2011 5.499
Gráfico 4
Ano Rácio
2001 10,505
2002 12,719
2003 15,283
2004 19,871
2005 24,208
2008 27,876
2009 26,404
2010 23,022
2011 25,462
A tabela 8 indica quantos estudantes há neste momento por docente, em cada uma das
36 instituições de ensino superior angolanas de que há disponíveis dados relativos ao
ano de 2011.
No que respeita às 11 instituições de ensino superior com rácio aceitável para as
condições de Angola (abaixo de 20 estudantes por docente), contam-se 5 instituições
estatais e 6 instituições privadas ou, por outro lado, 5 universidades, 5 institutos
superiores e uma escola superior.
Sobre este rácio, temos de chamar à atenção para o facto de os dados disponíveis não
estarem diferenciados por curso e por ano de ensino, que são dois factores que
costumam diferenciar significativamente os rácios10. Mas os dados globais aqui
apresentados servem como um dos indicadores respeitantes à qualidade de ensino.
11
Instituto Superior Politécnico da Tundavala 17,92
a. 2010.
b. 2009.
Fonte: Cálculos próprios, com base em MESCT 2012.
A segunda conclusão aponta para sérias dificuldades de acesso ao ensino superior por
parte da maioria dos poucos que conseguiam terminar o ensino médio nesse período.
Com a proclamação da independência e a descolonização, diminuiu consideravelmente
o número de estudantes do ensino superior, tendo-se mantido por algum tempo as
dificuldades de acesso a este nível de ensino. Já na década de 1980 se incrementou o
acesso ao ensino superior (dentro e fora de Angola), tendo diminuído substancialmente
a relação entre a posição social e o acesso ao ensino superior.
O grande boom no acesso ao ensino superior em Angola ocorreu com o término da
guerra civil (em 2002) e com o incremento da verba orçamental destinada ao ensino
superior. A expansão do ensino superior, pelas diferentes províncias do país, veio
contribuir para o acesso a esse nível de ensino por parte de um número cada vez maior
de jovens.
Neste momento, a pergunta que se impõe é: será que a expansão e o crescimento do
ensino superior em Angola se têm feito acompanhar da preocupação com a qualidade
de ensino?
Não é possível responder peremptoriamente a essa pergunta, porque não está feita
qualquer avaliação a instituições de ensino superior em Angola. A Universidade
Agostinho Neto (que funcionou durante muitos anos como única instituição de ensino
superior) nunca se preocupou com a avaliação ao serviço que prestava. Ultimamente,
tem sido o organismo do Estado encarregue pela execução de políticas públicas no
domínio do ensino superior que vem preparando legislação que vai obrigar as
instituições de ensino superior (estatais e privadas) a submeterem-se a avaliação
externa, depois certamente de vários processos de avaliação interna que venham aí a
ocorrer.
Não havendo elementos quantitativos de avaliação das instituições de ensino superior,
temos de nos limitar à apresentação de elementos que, isoladamente, atestem da
qualidade de ensino.
De um modo geral, tudo indica que a qualidade de ensino seja globalmente baixa, nas
instituições de ensino superior em Angola. Os elementos que contribuem para esta
conclusão são os seguintes:
a. Má qualidade de ensino em níveis inferiores, que conduzem ao acesso ao ensino superior por
parte de estudantes que obtêm avaliações negativas no exame de admissão [cf. Vera Cruz
2008];
b. Tentativa de aplicação de modelos de gestão importados do exterior, sem grande
preocupação com a realidade local12;
c. Quase total ausência de investigação científica, havendo casos individuais que demonstram
que se chega mesmo a ignorar quem pretenda promover a investigação [cf. Silva 2012];
d. Despreocupação com a publicação dos poucos estudos que são feitos nas instituições de
ensino superior;
e. Ausência de aposta na edição de livros e de revistas científicas, havendo a registar muito
poucas excepções a esta regra [vide Silva 2012: 203];
f. Deficiente aposta em bibliotecas e laboratórios, havendo mesmo a assinalar a criação de
faculdades sem haver a preocupação com a criação destas infra-estruturas e sem a aquisição
de meios de trabalho indispensáveis a docentes e estudantes 13;
g. Deficiente aposta na formação e actualização dos docentes 14;
h. Promoção de docentes considerando critérios subjectivos e o tempo de serviço, sem atender
grandemente aos demais critérios objectivos que a legislação vai já fixando 15;
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NOTAS
1. Então Nova Lisboa.
2. Então Sá da Bandeira.
3. Acerca da estrutura social na Angola colonial, ver Carvalho 1989 e 2011. Ver também Heimer
1973, Silva 1992-1994, Vera Cruz 2005.
4. Se é comum o ensino produzir e reproduzir a estratificação social, pois os mais favorecidos não
apenas têm maior probabilidade de acesso a níveis superiores de instrução, como também saem
melhor preparados dos vários níveis de instrução [cf. Paraskeva 2009 e 2011, Santomé 2010,
Popkevitz 2011], isso torna-se bastante mais visível numa sociedade colonial.
5. Neste momento, a legislação prevê a existência de universidades e academias, bem como
institutos e escolas superiores autónomos das universidades (para além da possibilidade de
criação de faculdades, institutos e escolas superiores em universidades).
6. Estes dados foram facultados pelo Ministério de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia de
Angola. O autor agradece ao Sr. Director de Desenvolvimento e Expansão a disponibilização de
dados estatísticos actualizados, que são reproduzidos e analisados neste artigo. Agradece também
a disponibilização de dados complementares por parte do Sr. Director do Gabinete do Secretário
de Estado do Ensino Superior.
7. O presente artigo aborda unicamente cursos de graduação.
8. Sobre estas matérias, ver por exemplo Meyns 1984, Galli 1987, Schoor 1989, Correia 1991 e
1996, Ferreira 1992, 1993 e 1999, Kajibanga 1996, Anstee 1997, Anjos 1998, Guimarães 1998, Hare
1998, Jorge 1998, Sousa 1998, Carvalho 2002, Carvalho et al. 2006, Vidal & Andrade 2008.
9. Esse crescimento foi inferior durante a 1ª República (até 1991), tendo aumentado um pouco
mais após o início da democratização do sistema político do Estado e da liberalização económica.
Sobre este período, ver Rocha 1997, 2004 e 2011, Queirós 1998, Mateus 2004 e 2007, Carvalho et al.
2006, Rodrigues 2006, Lopes 2007a, 2007b e 2011, Vidal & Andrade 2008, Carvalho 2008, 2010a e
2010b.
10. Os rácios são normalmente superiores em cursos de letras, ciências sociais e humanas e
pedagogias, bem como nos dois primeiros anos de ensino.
11. Por exemplo, a Universidade do Zimbabué foi criada em 1952 e a Universidade de Lovanium
(de que resultaram, mais tarde, a Universidade Nacional do Zaire e a Universidade de Kinshasa)
foi criada em 1954. Mas, em contrapartida, a Universidade da Zâmbia foi criada somente em 1966.
12. Um exemplo é o da insistência na “eleição” de órgãos de gestão das instituições de ensino
superior, que se faz realmente pelos grupos maioritários que existem nessas instituições,
confundindo-se essa actuação com liberdades académicas. Sobre liberdades académicas, ver por
exemplo Kajibanga 1998, Silva 2009.
13. Pode aqui citar-se o caso de uma universidade privada que ministrou durante alguns anos um
curso de arquitectura sem haver preocupação com a aquisição de estiradores…
14. Durante muito tempo, promoveu-se no ensino superior em Angola a ideia segundo a qual a
competência dos docentes estaria aliada à sua formação pedagógica, como se os cursos de
formação pedagógica então promovidos (ao invés de servirem apenas de complemento à
formação de base) pudessem superar as deficiências de formação dos docentes.
15. Durante muitos anos, o aspecto determinante para a promoção era apenas o tempo de serviço
[cf. Silva 2004]. Hoje vão sendo exigidos outros critérios, mas ainda assim continua a haver
promoções que não se baseiam no mérito.
16. Sobre esta matéria, ver por exemplo Santomé 2010, Paraskeva 2011a e 2011b, Pinar 2011,
Popkievitz 2011.
17. Na segunda metade da década de 1990 foi introduzida a obrigatoriedade de 7 valores de
avaliação contínua (semestral ou anual, consoante a dimensão da disciplina) para acesso ao
exame de cada disciplina na Universidade Agostinho Neto, mas há associações de estudantes que
se vêm batendo pela anulação dessa regra (que, hoje, não funciona em todas as instituições de
ensino superior). Há, mesmo, casos de estudantes que reclamam junto das autoridades
académicas por não terem sido admitidos a exame, pois consideram que a avaliação durante todo
o semestre/ano lectivo não deve ser tida em conta para acesso ao exame de cada disciplina.
18. Há docentes que não corrigem provas e se limitam a aprovar os estudantes, atribuindo 10 a 12
valores (num total de 20 valores possíveis). Em casos destes, os estudantes normalmente não
reclamam, pois estão em regra preocupados apenas com a nota para aprovar nas várias
disciplinas.
19. Ainda em 2007, na Universidade Agostinho Neto, se fomentava o princípio da facilidade
através dos trabalhos de licenciatura em grupo. Hoje, várias são as instituições de ensino superior
em Angola que permitem impunemente esta facilidade
20. Num caso e noutro, as direcções e os Conselhos Científicos das instituições nada fazem contra
tal forma de actuação. No segundo caso, chega-se mesmo a promover tal actuação [cf. Carvalho
2012].
21. Há muito que toda a gente sabe que isso se faz, mas regra geral as autoridades académicas não
previnem nem combatem de forma incisiva tal comportamento. Cf. Carvalho 2002: 141-151,
Andrade 1999, Ngonda 1999, Rocha 1999, Sousa 1999.
RESUMOS
O autor apresenta a evolução do ensino superior em Angola, desde a sua implementação em 1962
até aos dias de hoje, com 140 mil estudantes ao nível de graduação. A rede de instituições de
ensino superior conta neste momento com 17 universidades (10 das quais privadas), 19 institutos
superiores autónomos (sendo 12 privados) e 2 escolas superiores autónomas (ambas estatais). A
pergunta que o autor apresenta é: será que este crescimento se fez acompanhar da
correspondente atenção à qualidade de ensino? A resposta a esta pergunta é negativa, porquanto
existem vários indicadores que apontam para a promoção da mediocridade e a ausência de aposta
em investigação científica, para além da possibilidade de obtenção de diplomas sem a
indispensável competência académica e profissional. Mas o mal provém de níveis inferiores de
ensino.
The author presents the evolution of higher education in Angola, since its implementation in
1962 until the present, with 140,000 students at the graduate level. The network of higher
education institutions counts now 17 universities (10 of which are private), 19 colleges (including
12 private) and two autonomous schools (both state). The question that the author presents is:
how this growth was accompanied by the corresponding attention to the quality of higher
education? The answer to this question is negative, because there are several indicators that
point to the promotion of mediocrity and lack of concern with scientific research, beyond the
possibility of obtaining diplomas without the necessary academic and professional competence.
But the problem comes from lower levels of education.
ÍNDICE
Keywords: higher education, social stratification, quality of education, university in Angola
Palavras-chave: ensino superior, estratificação social, qualidade de ensino, universidade em
Angola
AUTOR
PAULO DE CARVALHO
Sociólogo. Doutor em Sociologia pelo ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa (Lisboa, Portugal) e
Mestre em Sociologia pela Universidade de Varsóvia (Polónia). Professor Titular na Universidade
Agostinho Neto. Foi Reitor da Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola – 2009-2011) e
dirigiu a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola
– 2005-2006). É investigador no CIES do ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa. É autor de
dezenas de pesquisas sociológicas com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas, tendo
como principais áreas de investigação: a exclusão social, a pobreza, a Sociologia Política, os
problemas sociais, as normas de consumo, as relações étnicas, a delinquência e a audiência de
media. É autor, dentre outros, dos livros: A campanha eleitoral de 2008 na imprensa de Luanda
(Luanda 2010); Exclusão Social em Angola. O caso dos deficientes físicos de Luanda (Luanda 2008),
«Até você já não és nada…!» (Luanda 2007), Angola. Quanto Tempo Falta para Amanhã? Reflexões
sobre as crises política, económica e social (Oeiras 2002), Audiência de Media em Luanda (Luanda
2002), Estrangeiros na Polónia. Adaptação, estereótipos e imagens étnicas (Luanda 2002 e
Varsóvia 1990) e Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana (Varsóvia 1989). Foi agraciado
Arlinda Cabral
NOTA DO EDITOR
Recebido a: 28/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 4 e 30/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 7/Maio/2012
Recepção da segunda apreciação: 12/Maio/2012
Aceite para publicação: 15/Maio/2012
Introdução
Quando se fala dos processos de inserção profissional dos diplomados do ensino
superior, um ponto que se destaca consiste na relação entre os conhecimentos que os
jovens detêm após finalizarem o seu percurso académico e as necessidades do mercado
de trabalho. Defende-se que a qualidade do conhecimento gerado numa instituição
universitária e a sua disponibilização para a economia é fundamental para a
competitividade nacional. Mas aos que querem começar a trabalhar, são colocadas cada
vez mais exigências: novas aprendizagens, domínio aprofundado de conhecimentos
teóricos, científicos, técnicos e tecnológicos e competências sociais e relacionais
consentâneas com as exigências da sociedade moderna contemporânea.
Gráfico 1 – Área de formação dos diplomados da UNL e da UL, de acordo com o ISCED 1997 (%)
(N=1.004)
Quadro n.º 1 – Hierarquização das competências mais desenvolvidas pelos diplomados do ano
2004/2005 da UNL e da UL (frequência e %)
Gráfico n.º 3 – Competências menos desenvolvidas pelos diplomados em 2004/05, por área de
formação (%)
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NOTAS
1. Segundo Calisto [2009:15], a empregabilidade pode ser entendida como a “disponibilidade
pessoal de capacidades e competências relevantes para os empregadores”.
2. De acordo com Lapa [2006: 30], o ideal-tipo do “espírito do capitalismo flexível” caracteriza-se
por uma mudança de comportamentos do trabalhador, pois a todos é exigido que se tornem
“adaptáveis, flexíveis, abertos à mudança e à aprendizagem de novas competências para
vingarem ou simplesmente sobreviverem no mundo do trabalho”.
3. De acordo com Pacheco [2003: 58], competência significa “capacidade, poder de apreciar ou
resolver dado assunto”, “conjunto de conhecimentos teóricos ou práticos que uma pessoa
domina, de requisitos que preenche e são necessários para um dado fim”, “aptidão para fazer
bem alguma coisa”.
4. Manter-se em estado de competência, de competitividade no mercado (como nos mantemos
em bom estado físico), para se poder ser contratado para uma “missão” precisa e limitada [Dubar
2006: 99]. Segundo Boltanski e Chiapello [2005: 144], “o futuro flutua – os riscos e a incerteza são a
regra”, pelo que cada trabalhador deve procurar criar um fundo de aptidões, o que se designa por
empreendedorismo.
5. Crescimento sustentado no sector dos serviços, com destaque para as actividades de produção
e aplicação de conhecimentos, gestão de patrimónios, prevenção e conservação da saúde,
entretenimento e lazer, comunicações e distribuição [Rodrigues e Félix 2000: 44].
6. Na economia do conhecimento, as ideias, a informação e as formas de conhecimento sustentam
a inovação e o crescimento económico, encontrando-se a grande parte da força de trabalho
envolvida não na produção material ou distribuição de bens materiais, mas na sua concepção,
desenvolvimento, tecnologia, marketing, vendas ou serviços [Giddens 2004].
7. Para consultar o perfil tipo de competências-chave, v. Suleman [2001: 126].
8. A expressão “organização qualificante”, de origem francesa, visa traduzir organizações
(unidades económicas, desde empresas a hospitais, associações sem fins lucrativos e
administrações públicas) em que as situações de trabalho contribuem para o desenvolvimento
das competências dos trabalhadores e para o desenvolvimento da capacidade colectiva de
adaptação ao meio envolvente [Lopes 1998: 15-40].
Arlinda Cabral
9. Para ver uma definição completa de competência por autores, v. Calisto [2009: 25].
10. Para procurarmos ilustrar esta questão, que faz parte do projecto de doutoramento em curso,
serão aplicadas complementarmente entrevistas em profundidade.
RESUMOS
Falar dos processos de inserção profissional dos diplomados do ensino superior implica abordar a
relação entre as competências que os diplomados detêm após finalizarem o percurso académico e
as necessidades identificadas no mercado de trabalho. Aos que querem começar a trabalhar, é
exigido domínio aprofundado de conhecimentos teóricos, científicos e técnicos e competências
consentâneas com a sociedade contemporânea. Com o presente artigo pretende-se apresentar o
conceito de competência-chave, assim como dados referentes às competências que os diplomados
da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e da Universidade de Lisboa (UL) (duas das maiores
universidades públicas portuguesas) consideram ter desenvolvido com a frequência do curso de
licenciatura, passados cinco anos após terem obtido o diploma do ensino superior.
Studying the processes of transition to work of higher education graduates implies the study of
relationship between the knowledge that graduates hold after finalizing the academic course and
the needs identified in: the labor market. To those who want to start working is required
theoretical, technical and scientific knowledge, and skills consistent with contemporary modern
society. The present article aims to present the sociological concept of key qualification, as well
as data obtained through questionnaires on skills that graduates of two major universities of
Portugal, Universidade Nova de Lisboa e Universidade de Lisboa, consider more and less
developed with the frequency of the first academic degree, five years after graduation.
ÍNDICE
Keywords: employability of graduates, labor market, theoretical and scientific knowledge, key
qualifications
Palavras-chave: inserção profissional de diplomados, mercado de trabalho, conhecimentos
teóricos e científicos, competências profissionais
AUTOR
ARLINDA CABRAL
Socióloga, Mestre em Sociologia (área de Conhecimento, Educação e Sociedade) pela Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Licenciada em Ciências da
Educação. Trabalhou como assistente na Escola Superior de Tecnologias de Saúde de Lisboa e foi
Pró-Reitora para a Graduação, Inovações Pedagógicas e Ensino à Distância da Universidade de
Cabo Verde. [e-mail: arlindacabral@gmail.com]
Cesaltina Abreu
NOTA DO EDITOR
Artigo pedido à autora
Recebido a: 22/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012
com os pobres franceses; e os últimos são considerados de igual maneira pelos pobres
espanhóis” e que “os números eram diferentes mas o fenómeno era o mesmo... o
número de pobres em cada um destes países estava em relação inversa com a situação
real dos pobres” [Tocqueville 1997 17].
3 Tocqueville recorre à história para encontrar as origens da desigualdade. Divide a
história em 3 fases: independência selvagem, etapa intermédia e liberdade política e
civil – ou seja, a barbárie e a civilização, com uma fase intermédia, correspondente à
Idade Média, durante a qual se originam (segundo ele) as causas da pobreza e da
indigência,.de acordo com a seguinte evolução:
• Independência selvagem – organização social baseada na solidariedade e auto-satisfação com
a partilha dos bens comuns obtidos da pesca, da recolecção e da agricultura em campos
colectivos. É o mundo das desigualdades naturais; não existem condições de transformação
destas desigualdades naturais em desigualdades de capacidade de apropriação nem
mecanismos de perpetuação destas desigualdades, a propriedade é colectiva e o objectivo é a
sobrevivência. Exemplo: as sociedades índias americanas;
• Etapa intermédia entre a ‘independência selvagem’ e a ‘liberdade política e civil’. Geração do
supérfluo, através de um processo de aproveitamento de capacidades naturais de cultivar a
terra e dela tirar mais do que o necessário para a satisfação das necessidades básicas. É a
transformação da propriedade em fundamento da desigualdade: os fisicamente melhor
dotados e mais habilidosos na arte de cultivar, começam a ter melhores resultados, mais
produção, mais poder e maior capacidade de se apropriarem de mais terra; a necessidade de
retenção desta apropriação no seio da família gera os fundamentos do mecanismo de
reprodução das desigualdades assim nascidas. As relações de dominação que se estabelecem
entre poucos muito fortes e muitos cada vez mais fracos, gera um ambiente favorável à
instalação da tirania dos senhores. É neste período que acontecem as invasões bárbaras e
Tocqueville atribui o seu grande sucesso à divisão social que então caracterizava as
sociedades. Os bárbaros conquistam o governo e também as terras e seus cultivos e produtos:
estão criadas as condições para o estabelecimento da sociedade feudal que corresponde
historicamente à Idade Média.
4 As desigualdades, então um facto, transformam-se em direito; da igualdade primitiva, os
homens retrocedem para um estágio de desigualdade feudal, estabelecida e
reproduzida com base na propriedade, na qual existem apenas duas classes: a dos
senhores proprietários e a dos que trabalham as suas terras – os que têm terras sem as
cultivarem e aqueles que as cultivam sem as possuírem. As relações sociais entre os
senhores e os seus servos, ou vassalos, eram estabelecidas na base de uma reciprocidade
de vantagens: estes cultivavam a terra e prestavam toda a sorte de serviços, enquanto
àqueles cabia alimentar, vestir e garantir a subsistência dos seus dependentes,
incluindo a sua defesa em caso de guerras, calamidades ou catástrofes.
5 O gosto pelo prazer e bem-estar, inerente à natureza humana, vai desempenhando o
seu papel, através da criação de novas necessidades, do corpo e do espírito, que não
encontra resposta cabal nas principais actividades até aí dominantes: a agricultura e a
criação de gado. Nasce a pequena indústria manufactureira que, para responder às
necessidades crescentes da procura, se alastra e movimenta cada vez mais pessoas do
campo para a cidade. Aumenta, portanto, o número de pessoas que corta os laços
tradicionais de protecção do senhor e procura, neste novo mercado, melhores
condições para vender a sua força de trabalho, tornando-se duplamente mais
vulnerável, porque entregue a si próprio e às suas capacidades e, também, porque
deixou de produzir os meios básicos para a sua subsistência. Não possui qualquer
recurso adicional para enfrentar uma época de crise em que se verifique a redução da
procura por força de trabalho. Para Tocqueville, esta é a causa original e estrutural do
aparecimento da indigência. A esta causa estrutural, acrescenta outra de origem
cultural e que resulta da naturalização das necessidades supérfluas como se de
necessidades básicas se tratassem: o consumo ou o exemplo estimulam o hábito ou a
necessidade de consumir, definindo miséria relativa2 como aquela que decorre da
impossibilidade dos indivíduos satisfazerem as novas necessidades que, não sendo
essenciais no sentido absoluto, são progressivamente incorporadas nos usos e
costumes, tornando-se culturalmente necessárias.
6 Desta análise, decorre a conclusão de que o progresso da civilização implica a produção
permanente de mais e diversificadas necessidades que não podem ser satisfeitas por um
número crescente de pessoas, que nada mais tem como moeda de troca senão a sua
força de trabalho, e se encontra vulnerável aos efeitos das crises cíclicas dos processos
económicos de produção, constituindo-se num grupo-alvo muito susceptível de ter de
recorrer ao apoio da sociedade para poder sobreviver. Os movimentos de expropriação
de terras em posse de pequenos proprietários, colocaram milhares de pessoas na
condição de abandonarem o campo, deixar os seus parcos bens e haveres, e procurar
nas cidades, meios de subsistência. Por não estarem habilitados às actividades
manufactureiras, a maioria enfrentou enormes dificuldades para vender a força de
trabalho, único bem que lhe restava.
7 Como foi anteriormente referido, assim se originou a indigência nas sociedades feudais,
como consequência – ética e socialmente nefasta – inevitável do progresso da
civilização, embora valorize esta como melhoria, crescimento, avanço, progresso das
luzes e prosperidade. Na segunda parte do seu ensaio, Tocqueville analisa os resultados
da aplicação dos princípios da reforma protestante no alívio da pobreza, ressaltando
que esta havia convertido a caridade, até então praticada individualmente, “em assunto
de acção social e não mais uma virtude particular, e se havia transformado de uma
obrigação moral num direito legal” [Tocqueville 1997 25-37]. Analisou cuidadosamente
os efeitos visíveis que a aplicação da Lei dos Pobres provocava, a começar pelo facto de
“ao garantir a todos os pobres os meios de subsistência como um direito legal, a
Inglaterra os eximia da obrigação de trabalhar” [apud Himmelfarb 1988: 177] 3. Apesar
de na sua aplicação estar previsto o exame prévio e individual das causas da pobreza e
reservado o direito de ajuda apenas àqueles que, tendo condições físicas para o fazer,
trabalhassem, a verdade é que não havia condições para dedicar o tempo e o esforço
necessários a este exame individual, e mesmo que os houvesse, não haveria certamente
trabalho suficiente para a sexta parte da população da Inglaterra, em situação de
indigência. Na sua conclusão, comentava as soluções até então existentes para eliminar
a pobreza através da intervenção das políticas públicas de previdência e da caridade da
sociedade, concluindo que ambas são insuficientes e ineficientes, e que é preciso
encontrar mecanismos de prevenção da pobreza, nomeadamente a regulação da
produção e do consumo, para evitar a depressão e a crise, e a promoção da poupança
nas classes trabalhadoras para que pudessem manter-se em épocas de necessidade
[Tocqueville 1997: 38].
8 Adam Smith [apud Himmelfarb 1988: 55-79] considerava que a vida económica da
humanidade se caracterizava por fases distintas e sequenciais, e que a sua evolução se
baseava na psicologia humana em busca, por um lado, de bem-estar e, por outro lado,
na obtenção desse bem-estar com o menor esforço possível, o que teria originado o
sistema de permuta, fundamento da divisão social do trabalho. A crescente procura por
um maior e mais diversificado leque de bens para satisfazer necessidades sempre
crescentes, estariam na origem dessa evolução. Nas suas obras Teoria dos Sentimentos
Morais e Riqueza das Nações, por diversas vezes expressou preocupação pela situação da
maioria pobre dos trabalhadores ingleses, nomeadamente quando dizia que “o
património de todo o homem é o seu trabalho, já que é o fundamento original de toda a
propriedade, por isso é o mais sagrado e inviolável. O património de um pobre baseia-se
na sua força e na habilidade das suas mãos; por isso, impedi-lo de empregar força e
habilidade da maneira que creia adequada sem prejudicar o seu próximo, é uma
violação clara da propriedade mais sagrada” [apud Himmelfarb 1988: 69]. Defendia
igualmente uma maior justiça social no cálculo dos salários, criticava a inexistência de
um salário mínimo, apoiou a lei que exigia que os patrões pagassem aos seus
trabalhadores os respectivos salários em dinheiro e não em mercadorias, afirmando:
“Sem dúvida, nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz se a maioria dos seus
membros são pobres e miseráveis. Além disso, é justo que os que alimentam, vestem e
dão alojamento a todo o conjunto de pessoas, tenham uma parte do produto do seu
próprio trabalho para que comam, se vistam e vivam toleravelmente bem” [apud
Himmelfarb 1988: 65].
9 Destacando o papel essencial da educação na criação e fortalecimento das capacidades
naturais e na geração de melhores oportunidades, a sua preocupação foi ao ponto de
propor a criação de um sistema de educação provido pelo Estado, a preços simbólicos
para os filhos das famílias mais pobres, com o objectivo de lhes permitir tornarem-se
melhores cidadãos, melhores trabalhadores e melhores seres humanos, participantes
livres e plenos da economia e da sociedade. Defendia um sistema de impostos concebido
para que os valores fossem cobrados em função da capacidade de pagamento e que
apenas artigos de luxo deveriam ser taxados. Para Adam Smith, os pobres tinham os
mesmos valores e paixões das demais classes, desconsiderando qualquer diferença inata
nas capacidades de uns e de outros, o que lhes “permitia trabalhar no sistema de
liberdade natural e beneficiar-se com ele, como qualquer outra pessoa”, sendo o
sentido da responsabilidade moral que defendia em favor dos pobres, o seu direito a
salários altos, a um mais elevado nível de vida e o benefício de qualquer outra
vantagem da economia livre em expansão [apud Himmelfarb 1988: 79].
10 É interessante verificar que, já em 1833, Tocqueville utilizava a noção de pobreza
relativa e de ‘entitulamento’, para além de chamar à atenção para os problemas
resultantes da institucionalização da pobreza como categoria económica e social: por
um lado, a estigmatização social dos pobres – através da sua inscrição nos registos para
apoio, assumiam publicamente a sua menoridade enquanto cidadãos dependentes do
Estado ou de terceiros, a progressiva perda de autoestima e de liberdade, o desestímulo
ao trabalho e à vontade de melhorar as respectivas condições de vida e, por outro lado,
a ineficiência de um sistema administrativo, na aplicação generalizada e sem critérios
específicos das determinações legais de apoio aos pobres.
11 Também Adam Smith, conhecido como o pai da economia moderna, já então mostrava a
sua preocupação com a crescente pobreza na Inglaterra do seu tempo (século XVIII) e
apresentava algumas soluções que permanecem actuais, como o acesso dos pobres à
educação, a necessidade de justiça salarial, a reforma fiscal, e o equacionamento da
relação entre liberdade e progresso social.
12 Partindo da definição de Amartya Sen [1992: 95], de que a “capacidade de uma pessoa
consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível
para ela”, pode entender-se pobreza como a impossibilidade de uma pessoa, ou grupo
de pessoas, transformar essas capacidades em oportunidades para viverem a vida de
acordo com seus objectivos e vontades, ou ainda, a incapacidade de alcançar o bem-
estar devido à falta de meios económicos e à impossibilidade de converter rendimentos
e recursos escassos em capacidade de funcionar [Sen 1992: 110].
13 Colocada a questão nesta perspectiva, em tempos de globalização dos sistemas
económicos nacionais e regionais, a pobreza é uma categoria que abrange muito mais
pessoas do que aquelas que usualmente são classificadas como pobres, atendendo
unicamente à sua localização numa estrutura social de distribuição de rendimento. À
incapacidade de sustentar as suas necessidades básicas devido ao baixo rendimento,
acrescem, nesta perspectiva, a falta de condições para viver uma vida mais longa, o não
acesso às facilidades de educação e de saúde, a dificuldade em escapar a uma situação
de sub ou mal nutrição crónica, o não acesso a água potável, a energia eléctrica, a
condições de habitabilidade dignas e meio ambiente saudável, o não acesso à cultura e
ao lazer, os quais resultam em desvantagens quase inultrapassáveis para competir no
mercado de trabalho, e que, por sua vez, estão na base da reprodução do círculo vicioso
da pobreza: sem trabalho nem rendimento, não existem condições objectivas nem
subjectivas para acesso à educação e à saúde, mães sub ou malnutridas e pouco
escolarizadas ou analfabetas colocam no mundo mais crianças com desvantagens à
nascença, que irão confrontar-se com os mesmos problemas, muitas vezes agravados,
que os seus progenitores enfrentam e que não terão condições de as alterar em seu
favor.
14 Nesta percepção de pobreza caberão não apenas a maioria da população dos países em
desenvolvimento, nomeadamente na África e na Ásia e em parte da América Latina,
como também grupos de indivíduos em países desenvolvidos, constituindo as chamadas
bolsas de pobreza que, por uma ou várias das razões anteriormente referidas, não
conseguem alcançar os patamares de bem-estar e progresso social que caracterizam as
respectivas sociedades.
15 Segundo Cardoso, E. e Helwege, A. [1990: 105], na revisão dos trabalhos sobre pobreza
na América Latina “a constatação de altos níveis de rendimento na região em relação a
outras áreas em desenvolvimento indica que na raiz do problema está a desigualdade
na distribuição de rendimento”, acrescentando que “o crescimento per se não pode ser
visto como solução primária contra a pobreza na América Latina”, apontando para a
necessidade de se encararem programas dirigidos de combate à pobreza. Para estas
autoras “a pobreza económica é um reflexo da pobreza política, já que os pobres não
têm poder de reivindicação, tendo em vista não possuírem capital nem representação
sindical”, no que se aproximam da abordagem de Sen, acima exposta. Afinal, a
incapacidade de intervenção política resulta da falta de liberdade política e esta é uma
das causas primeiras de prevalência da pobreza em muitos contextos sociais.
16 Tendo como base o rendimento, Altimir [apud Cardoso & Helwege 1990: 112] definiu
‘pobreza absoluta’ como o rendimento abaixo de um nível consistente com a
subsistência. A dificuldade reside em definir os conceitos básicos desta elaboração
(necessidades e subsistência) e, por conseguinte, que rendimento para garantir que
subsistência, uma vez que estes conceitos têm uma forte componente cultural: o que
pode satisfazer um nível básico de necessidades de um pobre da África subsaariana
pode ser absolutamente insuficiente para um pobre de uma grande cidade dos Estados
Unidos. Por outro lado, é muito difícil quantificar o rendimento necessário para pagar
serviços de educação ou de saúde, da mesma forma que não parece possível considerar
níveis mínimos de rendimento para garantir uma habitabilidade condigna em meio
ambiente são, ou para cobrir as suas necessidades com vestuário e calçado. A pobreza
relativa, comummente definida como a percentagem da população que vive com menos
do rendimento mediano numa dada população, é claramente uma medida de
distribuição de rendimento e, como tal, obviamente insuficiente para abranger as
diversas formas que a pobreza, enquanto privação de capacidades, pode apresentar.
17 A dificuldade em definir pobreza é ressaltada por Paes de Barros [Paes de Barros et al.
1992: 16], ao afirmar que “pobreza é um fenómeno complexo que significa coisas
diferentes para diferentes pessoas”. A relevância do conceito depende basicamente do
nível de vida e da forma como, numa dada sociedade, são atingidas as diversas
necessidades humanas. Embora uma inadequada inserção social, e a ausência de poder
e dependência psicológica, estejam estreitamente associadas a pobreza, a maneira mais
directa para determinar quem é pobre numa dada sociedade é definir uma lista de bens
e serviços básicos necessários para funcionar nessa sociedade e associá-la a um valor
monetário. Esta linha de pobreza é o parâmetro usado para distinguir os pobres dos não
pobres baseada nos seus rendimentos, mas na pesquisa em referência foi considerada
uma análise combinada de linha de pobreza e indicadores sociais, permitindo avaliar a
pobreza em termos de resultados efectivos de qualidade de vida.
18 Para o Banco Mundial [1990: 1], pobreza é privação de rendimento ou, noutra
abordagem, “a incapacidade de atingir um nível de vida mínimo” [Banco 1990: 27],
reconhecendo que relacionadas a esta definição, três questões se colocam: Como medir
o nível de vida? O que se entende por nível de vida mínimo? Como expressar a extensão
da pobreza através de um único índice ou medida? No Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial de 1990, dedicado ao tratamento da pobreza no mundo em desenvolvimento, o
Banco anuncia que o objectivo é medir a pobreza, quantitativa e qualitativamente, e
aprender com os países que conseguiram reduzir significativamente os níveis de
pobreza, terminando com uma pergunta sobre o que seria possível fazer, até ao final do
século XX, caso os governos se mobilizassem para enfrentar este desafio. Numa outra
passagem do Relatório, o Banco reconhece que tem havido uma evolução histórica no
conceito de pobreza, acrescentando “os critérios que definem se alguém é pobre ou não
tendem a reflectir prioridades nacionais específicas e conceitos normativos de bem-
estar e de direitos” [Banco 1990: 28].
19 Existem certamente várias outras obras tratando deste tema, para além das
consultadas, mas segundo Cardoso e Helwege [1990: 106], “os estudos sobre a pobreza
quase inexistem”4. Da exposição resulta evidente a dificuldade prevalecente em definir
um fenómeno com o qual convivemos no dia-a-dia – a pobreza. E esta dificuldade
parece residir na abrangência que a sua conceptualização obriga: identificar situações
de pobreza continua a parecer mais simples e fácil do que caracterizá-la.
23 Para o Banco Mundial [1990: 1], é simples dizer quem são e onde se encontram os
pobres: são todos aqueles que “lutam para sobreviver ganhando menos de US$ 370 por
ano”, calculados em aproximadamente 1 bilião de pessoas e encontram-se
principalmente nos países em desenvolvimento, ou seja, países de baixo e médio
rendimento em todos os continentes [Banco 1990: xi]. Contudo, no seu
desenvolvimento, o Relatório aponta para a necessidade de um maior conhecimento
sobre quem são os pobres!
24 Dada a amplitude e a diversidade de situações sob esta designação ‘pobre’, a saída
apresentada parece resultar do pragmatismo de dividir a população de uma
determinada sociedade em duas partes (os pobres e os não pobres), aplicando ao
segundo conjunto uma variedade de análises que permita não apenas criar
subcategorias, mas também melhor identificar os seus integrantes.
25 Da análise da bibliografia consultada resulta claro que esse é o método geralmente
seguido: tomam-se os decis de mais baixo rendimento e seleccionam-se grupos-alvo, os
quais são analisados em função do interesse particular das hipóteses que se pretendem
demonstrar ou das respostas que se pretendem obter. É assim que a maioria dos
trabalhos disponíveis sobre a análise da desigualdade social (portanto, um âmbito bem
mais abrangente porque relativo ao todo social) tratam categorias ou grupos sociais
relativamente a um aspecto, como por exemplo, a regionalização, a ‘raça’, o género,
sectores dentro do mercado de trabalho, etc. Os de carácter mais geral não permitem
uma análise detalhada dos distintos subconjuntos que podem ser encontrados quando
se aborda o contingente dos pobres no mundo.
Medições de pobreza
de informação para medir a pobreza, uma vez que nenhum deles permite conhecer a
variação de rendimentos entre os pobres. Por esta razão, desenvolveu uma medida de
desigualdade de distribuição de rendimentos entre os pobres, conhecido por coeficiente
de Gini, ou ainda como medida de pobreza de Sen, que se traduz matematicamente pela
seguinte fórmula:
37 P = H. I + (1 – I) G
38 em que P = medição da pobreza segundo H, I e G; H = % de pessoas abaixo da linha de
pobreza; I = Gap de rendimentos; G = Coeficiente de Gini. O coeficiente de Gini varia
entre 0 (representando uma igualdade total) e 1 (representando uma desigualdade
total).
39 Para Paes de Barros, a maneira mais directa de determinar quem é pobre numa dada
sociedade é definir a lista de bens básicos e serviços necessários para funcionar nessa
sociedade e associar-lhes um valor monetário. Para eles esta linha de pobreza é o
parâmetro usado para distinguir os pobres dos não pobres com base nos seus
rendimentos. Esta metodologia permite acomodar aspectos culturais relativos a hábitos
alimentares por exemplo, bem como ter em conta a variabilidade dos preços nas
diversas regiões. Assim, foi calculado o valor da cesta de alimentos ajustada às
preferências de cada região do Brasil, de forma que a combinação perfizesse o valor
ideal de 2 400 calorias/dia, após o que foi calculado o valor dos bens não alimentares a
partir do ratio entre as despesas alimentares e as despesas totais do decil mais baixo
sem deficiências calóricas (o que dá a entender que se procurou calcular o valor de bens
não alimentares para um grupo da população com uma dieta alimentar equilibrada).
Tais padrões de consumo, específicos para cada região abrangida pela pesquisa em
referência, podem ter os seus custos actualizados e as linhas de pobreza assim
calculadas servirem de referência para outros estudos comparativos [Paes de Barros et
al. 1992: 16].
40 Apesar das limitações que o seu uso oferece, qualquer dos métodos acima referidos tem
o seu valor de uso para distintas etapas da avaliação de situações de pobreza e
elaboração de estratégias visando a sua erradicação:
• head count é, apesar da mais generalizada, uma avaliação incompleta, porque baseada
essencialmente na perspectiva do rendimento ou, em alguns casos, do rendimento e da
despesa. Permite ficar com um dado de referência sobre a quantidade de pessoas que
compõe o subconjunto populacional dos pobres e a sua localização. Para que seja um dado de
referência significativo é necessário que o cálculo do rendimento que vai definir a linha de
pobreza (que dividirá os pobres dos não pobres), seja realista e abrangente: permita a
aquisição de bens alimentares e não alimentares de primeira necessidade, atendendo a usos
e costumes da população para a qual é calculada e ao diferencial de preços entre distintas
regiões e períodos de tempo.
• coeficiente de Gini permite uma avaliação mais realista da situação dentro do subconjunto
da população pobre, de maneira a cobrir os intervalos de pobreza resultantes de diferenças
nos recursos e capacidades disponíveis. Mas não deixa de ser uma medida de pobreza com
base no rendimento.
• método de cálculo contemplando a cesta básica e outros bens não alimentares, definidos por
padrões de consumo por regiões e cujos valores podem ser actualizados, pode ser uma
medida mais realista se o sentido de consumo for alargado a serviços essenciais, como
educação, saúde, vestuário, água, energia, saneamento, habitação, transporte, recriação,
para citar os que se evidenciam mais pertinentes. Ficam de fora, contudo, aspectos
relacionados (por exemplo) com a expectativa de vida, acesso e uso de direitos políticos e
cívicos, acesso a crédito e à terra, e outras categorias de valorização de bem-estar social e
progresso económico a que todos os seres humanos têm direito e que compete aos governos
e à sociedade disponibilizarem.
41 O índice de desenvolvimento humano foi introduzido pela primeira vez em 1990, como
medida para avaliar, planificar e programar o desenvolvimento humano. O IDH é um
indicador composto, contendo três variáveis5: a esperança de vida, os conhecimentos e
os rendimentos, os quais são combinados, segundo um processo em três etapas, para
calcular um indicador único.
42 A esperança de vida é o único indicador não reajustado. O conhecimento (nível de
instrução) é medido através de duas variáveis de base: a alfabetização dos adultos e o
número médio de anos de estudo. O nível de instrução é quantificado numa base
ponderada, atribuindo um peso de dois terços à alfabetização dos adultos e um terço ao
número médio de anos de estudo. Para os rendimentos é utilizado o PIB (produto
interno bruto) real por habitante.
43 O IDH combina cada um dos indicadores, convertendo-os num índice com um valor
máximo de 1 e um valor mínimo de 0. Por exemplo, a esperança de vida mínima
considerada é de 25 anos e a máxima de 85 anos. Em relação ao rendimento, o IDH
utiliza o PIB per capita baseado na paridade do poder de compra (dólar PPC) para
reflectir não só o rendimento exacto mas também o que esse rendimento pode
comprar. Considerou-se como valor limiar do PIB real médio per capita mundial 5 120
dólares PPC.
44 O IDH é a média aritmética dos três indicadores e traduz-se matematicamente pela
fórmula:
45 IDH = (e + Inst + Ind rend) / 3
46 O princípio fundamental do IDH é baseado na posição do país em relação a uma meta
final, expressa como um valor entre o 0 e 1. Países com IDH<0,5 têm um nível baixo em
desenvolvimento humano, os colocados entre 0,5 e 0,8 um nível médio e IDH>0,8
corresponde a um mais elevado nível de desenvolvimento humano.
47 O IDH foi desenvolvido por uma equipa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) chefiada por Amartya Sen e passou a constituir uma medida
anual do desempenho dos países em termos do desenvolvimento do seu potencial
humano. O índice de desenvolvimento humano apresenta uma variante, designada
Índice Ajustado à Desigualdade por Género (IDG), que utiliza as mesmas variáveis do
IDH ajustadas por sexo e compreende:
• Distribuição da população por sexo (%)
• Distribuição da população economicamente activa por sexo (%)
• Esperança de vida por sexo (anos)
• Taxa de alfabetização de adultos por sexo (%)
• Taxa de escolarização bruta
• Salário por sexo (assume-se que o salário masculino é 1).
48 A grande dificuldade para a produção da informação anual apresentada pelo Relatório de
Desenvolvimento Humano do PNUD (que cada ano selecciona uma dimensão central para
Os determinantes da pobreza
52 Como atrás se referiu, nas características dos pobres encontram-se alguns dos
principais determinantes da reprodução do ciclo de pobreza. O relatório do Banco
Mundial [1990: 39], no final do Capítulo II, dedicado ao levantamento do conhecimento
sobre os pobres, refere a propósito: “o presente capítulo ressalta dois factores
4. Conclusão
66 A participação dos pobres nas distintas etapas de mapeamento e concepção de
estratégias e programas de combate à pobreza permite uma maior compreensão das
múltiplas dimensões e da complexidade que ela comporta; ao falarem das suas vidas,
necessidades e esperanças, os pobres destacam a fome, mas referem-se, com insistência
às dimensões sociais, físicas e psicológicas, à falta de liberdade de escolha e de acção.
Pobreza “é a humilhação do sentimento de ser dependente e forçado a aceitar a rudeza,
os insultos e a indiferença quando procuramos ajuda” [Poverty Group, World Bank] 9.
Nesta perspectiva, pobreza é ausência de voz e de poder, é insegurança e ansiedade.
67 Em Angola, como em outros lugares onde a guerra civil ou situações de crise social
persistem por longos períodos de adversidade e privação, as pessoas não se lamentam
nem protestam com a intensidade que a situação de pobreza dominante prenunciaria e
isso pode ser resultado de alguma perda de motivação e de esperança numa mudança
radical nas circunstâncias [Sen 1992]. Esta constatação, contudo, não subscreve
qualquer alinhamento com a cultura da pobreza, segundo a qual a pobreza prolongada
geraria uma série de atitudes, convicções, valores e práticas culturais, e que essa
cultura da pobreza tenderia a perpetuar-se ao longo do tempo, mesmo se mudassem as
condições estruturais que inicialmente lhe deram origem [Lewis 1966: 127].
68 Embora os elementos da estratégia (investimento em capital humano e melhoria na
distribuição do rendimento) estejam contidos nas conclusões e propostas de solução
dos trabalhos consultados, a sua concretização não se afigura simples nem pacífica,
requerendo mudanças institucionais, políticas, económicas, sociais e culturais, no
âmbito de um processo de reformas no estado e na sociedade, para acomodar uma nova
maneira de encarar a resolução do problema dominante: a desigualdade que gera
pobreza.
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TOCQUEVILLE, Alexis de, 1997 (1833): Memoir on Pauperism, Civitas. Rediscovered Riches
NOTAS
2. Nesta passagem, Tocqueville formula o conceito de ‘pobreza relativa’, tal como ela é entendida
nos dias de hoje.
3. Himmelfarb apresenta um extenso comentário sobre os resultados da aplicação da Lei das
Reformas e da Lei dos Pobres, que, para além de ter provocado a divisão da nação entre ricos e
pobres, dividiu igualmente os pobres em ‘pobres’ e ‘indigentes’.
4. Esta é uma realidade sobre a situação em África, e mais especificamente em Angola, razão pela
qual se recorreu, para este trabalho, a estudos sobre a pobreza na América Latina.
RESUMOS
Em busca de resposta à causa da prevalência da pobreza, o trabalho começa por localizar
historicamente a origem da pobreza enquanto privação de capacidades, em resultado da
transformação de desigualdades naturais em desigualdades de capacidades e oportunidades, e na
sua reprodução até à actualidade, onde uma porção significativa da humanidade – a esquecida do
desenvolvimento1 – se encontra nesta categoria económica, principalmente em África e na Ásia.
As análises e recomendações de quase dois séculos atrás, e as estratégias bem-sucedidas
contemporâneas, evidenciam os ingredientes ausentes nas mal sucedidas: vontade política dos
governos e respaldo no sentido ético e de justiça social, traduzido na inclusão dos pobres em todo
o processo. O problema não é novo, como não são novas as propostas para a sua eliminação; o que
prevaleceu ao longo do tempo é a indiferença e o descaso da parte privilegiada da humanidade
relativamente à desfavorecida.
In search of reply to the cause of the prevalence of the poverty, the work starts for historically
locating the origin of the poverty while privation of capacities, in result of the transformation of
natural inequalities in inequalities of capacities and chances, and in its reproduction until
nowadays, where a significant portion of the humanity - forgotten in development - meets in this
economic category, mainly in Africa and Asia. The analyses and recommendations of almost two
centuries behind, and the well-succeeded strategies contemporaries, evidence the absent
ingredients in the badly-occurred ones: political will of the governments, and endorsement in
the ethical direction and of social justice, translated in the inclusion of the poor in all the
process. The problem is not new, as the proposals for its elimination are not new; what it
prevailed throughout the time is the indifference of the privileged part of the humanity
relatively to the disfavored one.
ÍNDICE
Keywords: inequality, poverty, freedom, democracy, participation, capacity, functionality
Palavras-chave: desigualdade, pobreza, liberdade, democracia, participação, capacidade,
funcionalidade
AUTOR
CESALTINA ABREU
Socióloga e Engenheira Agrónoma. Licenciada em Agronomia pela Universidade de Angola,
Mestre e Doutora em Sociologia pelo IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (Brasil). Professora Auxiliar na Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola) e Chefe do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da mesma universidade. Membro
fundador e investigadora do A-Ip–Instituto de Pesquisa Económica e Social (Luanda, Angola).
Áreas de investigação: sociedade civil, cidadania e participação, pobreza e desigualdades sociais.
[email: tinaabreu53@yahoo.com.br]
NOTA DO EDITOR
Artigo pedido à autora
Recebido a: 20/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012
2. O conflito angolano
13 No caso de Angola, as questões da guerra e da paz permaneceram mais duradouramente
no centro da análise da pobreza e do desenvolvimento, aparecendo sistematicamente
nos estudos de carácter social, político e económico, referências às implicações
recíprocas. A análise das consequências da guerra de independência sobre as condições
de vida da população não constituiu uma preocupação ao nível académico – muito pelo
contrário – dado o contexto que se vivia em Angola nos anos 1960 e início dos anos
1970. Com o início da guerra civil e os seus desenvolvimentos, sobretudo nos anos 1990
após as primeiras eleições, várias análises se começaram a debruçar não só sobre os
cenários de crescimento em contexto de paz [Abreu 1989] como sobre a guerra civil em
si e as suas consequências directas e evidentes [Anstee 1997]. Em vários momentos estes
estudos espelharam uma perspectiva optimista sobre os vários finais anunciados da
guerra civil, alguns deles perspectivando inclusive como seria possível aliar a vontade
de paz sentida pela população ao desenvolvimento do país de forma mais eficaz
[Ferreira & Barros 1998].
14 Com o final da guerra em 2002, o enfoque voltou-se claramente para as possibilidades
de a paz gerar prosperidade no país [Grobbelaar, Mills & Sidiropoulos 2003], aliado à
noção cada vez mais clara de que as prioridades nacionais evoluíram de um contexto de
emergência para um contexto de desenvolvimento, com prioridade para o crescimento
com diversificação, combatendo a fome e a miséria e diminuindo a pobreza [Governo
2005, 2009]. Uma visão mais abrangente das várias guerras recentes de Angola, coloca
em destaque a influência de condições internas e externas para o desenvolvimento de
Angola, incluindo o forte direccionamento dos recursos nacionais para o esforço de
guerra durante uma década (1992-2002), indicando, igualmente, a oportunidade que a
paz constitui para uma gestão dos rendimentos nacionais orientada para a melhoria das
condições de vida da população [Ferreira 2006].
15 As consequências da guerra são, contudo, ainda muito claras e pertinentes para a
análise da pobreza e do desenvolvimento angolano na actualidade. “Décadas sucessivas
de conflito militar provocaram em Angola, não apenas perdas substanciais ao nível do
capital físico (equipamentos, infra-estruturas, habitações) e humano, mas também
determinaram efeitos que se combinaram entre si no sentido de uma redução do bem-
estar da generalidade dos angolanos” [Lopes 2009: 63]. A maior parte destes efeitos
estão directamente relacionados com a pobreza e com as condições de vida da
população: deslocações compulsivas, insegurança, insegurança alimentar, má nutrição,
mútuas entre a paz e a pobreza e para o debate ainda em curso no âmbito das ciências
sociais.
Notas finais
26 Tendo em conta na análise estas tendências e mudanças, quer ao nível das políticas e
estratégias, quer a partir dos dados disponíveis sobre a evolução da pobreza, subsiste
todo um campo de análise de correlações bidireccionais em termos da pobreza e da paz
em Angola, passíveis de contribuir para o debate académico. Alguns estudos, sobretudo
na área dos efeitos psicológicos [Ventura 1997], das estratégias e formas de vida das
pessoas fisicamente afectadas pela guerra em Angola [Carvalho 2008] ou sobre os novos
actores do desenvolvimento pós-guerra [Van-Dúnem 2003], juntam-se àqueles que, de
forma mais macro, analisam a situação económica do país à luz das sequelas da guerra
sem, contudo, aprofundarem a discussão sobre as implicações mútuas de ambos os
fenómenos. A uma escala mais próxima das famílias e das comunidades, subsistem
ainda áreas de estudo que, por um lado, possam dar conta dos efeitos que a guerra,
directa ou indirectamente, teve e que ainda possa ter sobre os níveis e condições de
vida actuais. Por outro, que permitam elucidar sobre o peso da guerra no conjunto de
factores que contribuem para a reprodução e para a perpetuação da pobreza.
Finalmente, estudos e análises que ilustrem o papel da paz para a melhoria das
condições de vida e superação da pobreza e, inversamente, que se refiram ao
desenvolvimento como garantia da eliminação dos conflitos.
27 A conclusão principal que se destaca deste quadro é que, embora possa ser estabelecida
uma correlação directa (e quase evidente) entre os fenómenos pobreza e guerra,
existem outros factores que, de forma combinada e em contextos específicos,
concorrem para a manutenção e/ou elevação dos níveis de pobreza. Estas outras
explicações devem, por isso, combinar-se da melhor forma com a perspectiva que
coloca a guerra no centro da análise da pobreza e do desenvolvimento, atribuindo-se
especial importância, mais uma vez, aos contextos e evoluções próprios de cada país. As
guerras têm durações e intensidades diferenciadas, pelo que a análise das suas
consequências deve também ter em conta o conflito prolongado em Angola e a
relativamente recente paz.
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VENTURA, Margarida, 1997: O Stress Pós-traumático e suas Sequelas nos Adolescentes do Sul de Angola,
Braga: Universidade do Minho (Tese de Doutoramento em Psicologia)
RESUMOS
O artigo analisa as correlações entre pobreza e paz em Angola a partir de uma revisão da
literatura sobre este tema. Tendo em conta a estreita articulação entre pobreza e guerra/paz,
analisam-se os desenvolvimentos registados em Angola nos últimos anos, nomeadamente em
termos do enfoque relativamente ao combate à pobreza espelhados nas estratégias nacionais e
nos dados disponíveis. Pretende-se contribuir não só para a discussão das inter-causalidades
atribuídas a ambos os fenómenos como para a análise das evoluções registadas no país nas
últimas décadas.
The article analyses the correlations between poverty and peace in Angola from the revision of
literature about this subject. Given the close linkages between poverty and war/peace, the
analysis concentrates on the developments in Angola in the last years, namely in terms of the
focus on the fight against poverty reflected in the national strategies and on the available data.
The intention is contributing not only to the discussion of the correlated causes attributed to
both phenomena but also to the analysis of the evolutions in the country in the last decades.
ÍNDICE
Keywords: poverty, peace, development
Palavras-chave: pobreza, paz, desenvolvimento
AUTOR
CRISTINA UDELSMANN RODRIGUES
Antropóloga, Doutora em Estudos Africanos Interdisciplinares pelo ISCTE–Instituto Universitário
de Lisboa. Investigadora no Centro de Estudos Africanos (CEA-IUL) do ISCTE-IUL. Tem trabalhado
sobretudo sobre Angola, em diversas áreas relacionadas com a pobreza, a protecção social e o
desenvolvimento em geral. De entre as suas publicações, destacam-se os livros O Trabalho
Dignifica o Homem: estratégias de famílias em Luanda (2006), Protecção Social, Economia
Informal e Exclusão Social nos PALOP (2008) e Pobreza e Paz nos PALOP (2010). [e-mail:
cristina.rodrigues@iscte.pt]
Sílvia de Oliveira
NOTA DO EDITOR
Recebido a: 28/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 3 e 19/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 7/Maio/2012
Recepção da segunda apreciação: 9/Maio/2012
Aceite para publicação: 12/Maio/2012
Introdução
1 A investigação na área da pobreza requer não só o estudo da distribuição dos
rendimentos, das carências e privações, das suas causas e consequências e da
identificação das categorias sociais mais susceptíveis de serem afectadas por este
fenómeno, mas igualmente das práticas quotidianas que se estabelecem, de forma a
ultrapassar os constrangimentos que enfrentam. É nesse contexto que se insere a
importância da investigação sobre os modos de vida da pobreza.
2 A investigação alargada no domínio da pobreza é recente em Angola. O conflito armado
que assolou o país desde a independência (1975-2002) não permitiu a elaboração
aprofundada de muitos estudos sobre a pobreza. Porém, a dinâmica que caracteriza este
fenómeno e as alterações sociais que diariamente se registam, levam a que os conceitos
aqui apresentados estejam em permanente mutação. Assim, começamos esta
apresentação com uma avaliação e interpretação dos indicadores sociais que
caracterizam a pobreza em Angola, bem como da identificação das categorias sociais
mais vulneráveis a esse fenómeno. Tendo por base as investigações de Luís Capucha
[2005], segue-se a descrição teórica dos modos de vida da pobreza e sua respectiva
identificação no contexto angolano.
Pobreza em Angola
3 Em 2004, dois anos após o término do conflito armado, o governo angolano elaborou a
sua Estratégia de Combate à Pobreza (ECP) 1, com o objectivo principal de preparar as
medidas para combater esse fenómeno, que, na altura, afectava 68% da população
angolana, dos quais 26% se encontravam em condição de pobreza extrema (equivalente
a até 0,75 dólares por dia) [MINPLAN 2005]. No mesmo documento foram identificados
os seguintes factores como causas da pobreza em Angola: o conflito armado, a pressão
demográfica, a destruição e degradação das infra-estruturas económicas e sociais, o
funcionamento débil dos serviços de educação, saúde e protecção social, a quebra muito
acentuada da oferta interna de produtos fundamentais, a debilidade do quadro
institucional, a desqualificação e desvalorização do capital humano e a ineficácia das
políticas macroeconómicas [MINPLAN 2005].
4 Estes factores, que afectam de forma diferente cada uma das pessoas, levaram à
identificação e caracterização das categorias sociais que em Angola se encontram mais
vulneráveis à pobreza, nomeadamente:
5 a) Pequenos agricultores e camponeses;
6 b) Analfabetos;
7 c) Desempregados;
8 d) Crianças de rua e sem-abrigo;
9 e) Desmobilizados das forças armadas;
10 f) Deslocados de guerra;
11 g) Famílias monoparentais;
12 h) Deficientes físicos [Carvalho 2004]
13 Cada uma das pessoas que se insere numa destas categorias sociais enfrenta situações
de carência, privação e marginalização, condições que posteriormente os conduzem a
uma situação de exclusão social.
14 Num contexto de paz, e visto já não haver necessidade de despender grande parte do
Orçamento Geral do Estado para o sector da defesa1, o governo angolano afirmou assim
a sua intenção em reduzir a pobreza para metade até ao ano de 2015, dando assim
cumprimento ao compromisso assumido para concretização dos Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio (ODM).
15 Desde a aprovação da Estratégia de Combate à Pobreza, têm-se registado progressos na
redução da pobreza em Angola, tendo a sua incidência baixado para 36,6% em 2009 [INE
2010]. No entanto, 58,8% da população rural ainda vive em condições de pobreza, contra
18,5% da população urbana [INE 2010: 13].
16 Apesar dos esforços que têm sido empreendidos, os indicadores sociais para Angola
ainda registam valores preocupantes (quadro nº 1), nomeadamente no sector da saúde,
educação, nutrição e água e saneamento, determinados pelo deficiente acesso aos
serviços sociais básicos.
Indicadores
Alfabetização 76%
17 Com uma população estimada em 18,8 milhões de habitantes [MINPLAN 2011], Angola
apresentou em 2011 um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,486, ocupando
148ª posição no mundo [PNUD 2011]. Se tomarmos em comparação os dois anos
anteriores, podemos concluir que tem havido uma regressão no IDH angolano. Para o
ano de 2009 Angola apresentou um IDH de 0,564, ocupando a posição 143ª, com uma
classificação de desenvolvimento humano considerada pelo PNUD “média”. No entanto,
esses valores alteraram-se significativamente no ano de 2010, registando-se uma
quebra para 0,403 e passando a ocupar a 146ª posição entre 169 países do mundo 3.
18 O contexto de paz tem possibilitado a recuperação e o crescimento da economia
angolana, com destaque para o sector não petrolífero que, desde 2005, tem registado
desempenho positivo, nomeadamente nos sectores da construção, agricultura,
indústria e serviços financeiros [MINPLAN 2010: 22]. No entanto, esse crescimento está
longe de corresponder à melhoria das condições de vida da maioria dos angolanos que,
sem qualificação profissional, deslocados das suas zonas de origem, com dificuldades
para conseguirem um emprego estável que lhes permita levar uma vida digna, elabora
estratégias para conseguir sobreviver e ultrapassar os momentos mais difíceis, que se
concretizam em “modos de vida mais ou menos coerentes e solidificados” [Almeida et.
al. 1994: 95]. Os modos de vida da pobreza enquadram-se assim na forma como as
categorias sociais mais vulneráveis adaptam os meios disponíveis às suas necessidades,
isto é, a forma como se organizam estrategicamente para darem resposta às suas
necessidades, sejam elas biológicas, sociais, culturais, etc.
modos de vida e desenvolvem as suas estratégias que tanto podem levar à perpetuação
da vivência em condições de pobreza, como à superação.
20 Segundo Isabel Guerra [1993: 70] os modos de vida são entendidos como um “conjunto
integrado de práticas articuladas a ‘representações do mundo’ e a ‘imaginários sociais’,
o que exige um conceito aglutinador das lógicas estruturantes das práticas”. Por seu
lado, Luís Capucha [2005: 76] defende que os modos de vida são o “elemento mediador
que articula os recursos e constrangimentos associados à ocupação de uma
determinada posição na estrutura social e o sistema das práticas quotidianas, das
avaliações, das representações, das referências sociais e culturais e das escolhas
estratégicas feitas pelas famílias ou pelos indivíduos no contexto das disponibilidades
desses recursos e das limitações impostas por estes constrangimentos”.
21 Importa portanto saber como é que as pessoas mais pobres organizam os seus modos de
vida, isto é, como essas pessoas aproveitam as oportunidades que surgem e como as
adaptam às suas necessidades. Para tal, é preciso ter atenção à relação que as práticas
quotidianas (de trabalho, de vida familiar, de consumo, de lazer, etc.) estabelecem entre
si e com as diferentes “esferas” do social [cf. Guerra 1993].
22 O conceito de modos de vida comporta quatro dimensões, nomeadamente [Capucha
2005: 214]:
23 a) uma dimensão social – pertença de classe, relação com redes sociais, estruturas
familiares);
24 b) uma dimensão cultural – símbolos e orientações de vida;
25 c) uma dimensão espacial – localizações dos contextos de interacção;
26 d) uma dimensão temporal – trajectos passados ou virtuais.
27 Autores que se têm debruçado sobre o fenómeno da pobreza [Capucha 1992 e 2005,
Almeida et al. 1994] identificaram oito tipos diferentes de modos de vida, baseados na
maneira de ser e de agir como pobres e na configuração do seu espaço, nas relações
familiares e como representam e privilegiam o passado, o presente e o futuro. Estes
modos de vida são: destituição, restrição, transitoriedade, desafectação, dupla
referência, poupança, convivialidade e investimento na mobilidade.
28 No contexto angolano não se verifica a presença dos oito modos de vida identificados
por estes autores para a sociedade portuguesa. Serão apenas analisados aqueles modos
de vida que, em nosso entender, têm aplicabilidade em relação ao objecto de estudo
aqui apresentado, que são: a destituição, a restrição, a transitoriedade, o investimento
na mobilidade e a desafectação.
Destituição
Restrição
Desafectação
35 Integram-se neste modo de vida as categorias sociais que romperam os laços com a
sociedade e adoptaram estilos de vida marginais, causados na sua maioria pelo
Transitoriedade
Investimento na mobilidade
maioria das casas sofreu obras não só no interior como também no exterior (muros
altos e pintados, gradeamento, etc.).
42 Apesar do descontentamento com o ambiente do bairro e com a degradação natural das
habitações, a maioria das famílias não tem alternativas para mudar para zonas
habitacionais que apresentem melhores condições. O sector habitacional é muito
incipiente em Angola e os preços das habitações que se vão construindo é muito
elevado. A mobilidade passa pelo investimento na escolarização dos filhos. O passado é
pobre e o presente é tempo de preparação de um futuro melhor [Capucha 2005: 232].
Como o investimento na formação dos filhos se apresenta como prioritário, elaboram
para o efeito diversas estratégias económicas tendo em vista o aumento do rendimento
que permita realizar esse investimento.
43 ***
44 Os modos de vida identificados não são absolutos e apresentam-se em aberto,
acompanhando as dinâmicas sociais, o que significa que podem alterar-se, actualizar-se
ou construírem-se novos modelos, consoante as necessidades. De igual modo, os seus
integrantes podem transitar de um modo de vida para outro, ora progredindo, ora
regredindo, consoante se registem alterações no seu quotidiano. Por exemplo, aqueles
que investem numa actividade geradora de rendimentos, ainda que seja no sector
informal, têm maior probabilidade de sair da destituição para a restrição mas, por
outro lado, aqueles que se resignam ou que não conseguem enfrentar os diversos
constrangimentos rapidamente podem passar da restrição para a destituição ou
desafectação. Aqueles que apostam numa estratégia de escolarização beneficiarão disso
e conseguirão melhor integração profissional que melhorará as suas condições de vida e
os seus hábitos de consumo. Por isso, embora se perspective uma alteração dos modos
de vida, para melhor, podem surgir constrangimentos inesperados que alterem esse
cenário (crise económica, desastres naturais, entre outros).
45 A análise dos modos de vida da pobreza permite-nos não só identificar os grupos sociais
mais vulneráveis à pobreza, como também as estratégias que adoptam para
enfrentarem os diversos constrangimentos com que se deparam. Essas adaptações dos
meios às suas necessidades são muitas vezes baseadas na solidariedade ou entreajuda
que os mais pobres estabelecem entre si e que assentam nas relações de parentesco, que
funcionam como relações de produção, relações políticas ou esquemas ideológicos
[Marie 1976: 158].
46 O aumento galopante da pobreza e a incapacidade por parte das instituições públicas
para dar resposta aos apelos dos mais carenciados intensificaram as redes de
solidariedade, que se mantêm como um dos pontos fortes em Angola. De facto, os
angolanos só conseguiram sobreviver durante anos de turbulência, ao longo dos quais o
apoio do Estado ou de outras instituições foi escasso, porque existiam mecanismos de
ajuda mútua, solidariedade e acção colectiva [Robson & Roque 2001: 3] e é precisamente
nessa solidariedade que assentam as relações quotidianas e se enfrenta o presente.
Conclusão
47 O conflito armado e as suas consequências directas e indirectas são apontados como as
causas principais para o elevado índice de pobreza que caracteriza a população
angolana. O processo de destruição em que este país esteve envolvido foi demasiado
longo e abrangente. Para além das infra-estruturas físicas foram igualmente destruídos
os modos de vida, culturas e identidades, resultando daí uma sociedade fragmentada e
dividida.
48 O fim do conflito armado tem possibilitado maior investigação sobre a pobreza e uma
melhor definição das estratégias a elaborar para a sua erradicação, bem como analisar
os modos de vida das categorias sociais mais vulneráveis às condições de pobreza.
Desde modo, a investigação sobre os modos de vida permitiu-nos identificar, à data,
cinco modos de vida da pobreza em Angola: restrição, destituição, transitoriedade,
investimento na mobilidade e desafectação.
49 O modo de vida da restrição, caracterizado pela precariedade e instabilidade no
emprego distingue-se da destituição (nível de vida nos limites da sobrevivência) pelo
acesso ao mercado de trabalho. A transitoriedade é característica dos desempregados,
famílias monoparentais, alguns reformados e jovens à procura do primeiro emprego. Os
poucos que conseguem criar alguma estabilidade investem tudo o que têm na educação
dos filhos, para que esta segunda geração saia da condição de pobreza. Esse
investimento na mobilidade social é feito por alguns operários e empregados com
alguma escolaridade e rendimento fixo. O último modo de vida identificado é o da
desafectação, que é característico de toxicodependentes, reclusos e ex-reclusos,
crianças de rua e sem-abrigo – categorias sociais que romperam os laços com a
sociedade.
50 A mutabilidade que caracteriza o fenómeno da pobreza também se traduz nestes modos
de vida, o que faz com que a passagem de um modo de vida para outro seja uma
constante, quer para melhor, quer para pior. Importa pois aprofundar os estudos sobre
a pobreza e os modos de vida da pobreza em Angola, de modo a perceber-se como as
categorias sociais mais desfavorecidas se adaptam aos diversos constrangimentos
quotidianos e como reconfiguram os seus espaços.
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NOTAS
1. Entre 1997 e 2002, o Orçamento Geral do Estado apenas despendeu 20 a 30% das despesas para
o sector social, no qual se insere a educação, saúde, habitação, assistência social e cultura. Em
1999, 56% das despesas executadas foram destinadas ao sector de defesa e ordem pública [Vinyals
2002: 26].
2. Resolução nº 9/04, de 4 de Junho de 2004.
3. Tendo em conta o contexto de globalização que caracteriza as sociedades actuais, o PNUD
decidiu alterar a sua fórmula de cálculo a partir do ano de 2010, nas dimensões de educação,
saúde e rendimento, mantendo contudo a sua essência, daí que se registem as diferenças nos
indicadores de IDH indicadas. Essa alteração da fórmula de cálculo foi apontada pelos
governantes angolanos como a razão principal para a descida acentuada do IDH de 2009 para
2010 e, posteriormente, em 2011.
4. Normalmente, a latrina ou casa de banho é exterior, porque é partilhada pelas habitações da
“rua” ou do bairro.
Sílvia de Oliveira
RESUMOS
O contexto de paz que actualmente se vive em Angola tem permitido mais estudos e investigações
sobre a pobreza que caracteriza este país e que afecta grande parte da sua população, bem como a
compreensão sobre o modo como as categorias sociais mais vulneráveis à pobreza enfrentam o
seu quotidiano. É nesse contexto que se insere e adquire importância a noção de modo de vida da
pobreza.
The context of peace that currently occurs in Angola has allowed more studies and research on
poverty that characterizes that country which affects the great majority of Angolans, as well as
an understanding of how social groups most vulnerable to poverty faces its everyday life. It is in
this context that the notion of way of life of poverty takes particular importance.
ÍNDICE
Keywords: poverty, ways of life, Angola
Palavras-chave: pobreza, modos de vida, Angola
AUTOR
SÍLVIA DE OLIVEIRA
Linguista e Mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa. É
investigadora no Centro de Estudos Africanos do ISCTE-I.U.L. As suas áreas de investigação são a
economia informal, a educação e a integração social. No nº 8 da Revista Angolana de Sociologia,
publicou “Dinâmicas educativas da juventude angolana”. [e-mail: slviadeoliveira9@gmail.com]
Luís Capucha
NOTA DO EDITOR
Artigo pedido ao autor
Recebido a: 19/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012
2 É certo que Oscar Lewis [1961] ofereceu uma outra perspectiva de análise com os seus
estudos sobre a “cultura da pobreza” na América Latina, enquanto Hogart [1957] a
estudava na Europa. Mas os seus trabalhos não tiveram muito mais influência do que na
produção de autores como Brigitte Brébant [1984] em países desenvolvidos.
3 No entanto, o problema da pobreza está hoje colocado como um dos mais graves que é
preciso enfrentar à escala global. Amartya Sen [1981] é um dos responsáveis pela
chamada de atenção para o modo como o problema se coloca nas sociedades em
desenvolvimento. Das várias problemáticas de maior importância abordadas pelo autor,
gostaríamos de salientar duas. A primeira relaciona-se com a natureza global das
sociedades e das economias contemporâneas e dos seus problemas. Na verdade, o
problema da pobreza é de todo o mundo e é nessa perspectiva que se torna necessário
situá-lo. Do seu contributo resultou por exemplo a adopção pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelos seus relatórios sobre o desenvolvimento
humano, de um único indicador de pobreza, em vez dos dois que continha até
recentemente, um de natureza relativa para os países mais desenvolvidos e outro de
natureza absoluta para os restantes países do mundo. Era aliás o único indicador em
que tal dicotomia existia, algo difícil de aceitar num momento em que todos convivem
numa mesma “aldeia global”.
4 A segunda é a mais importante para os fins do presente artigo. Amartya Sem [1999,
2010] mostrou como desenvolvimento, liberdade e justiça social têm de andar juntos e
se promovem por um lado com modelos de crescimento económico e de regulação
política mais abertos à oferta de oportunidades e, por outro lado, com o investimento
nas capacidades das pessoas. Tem vindo assim a trazer o debate para a agenda das
políticas públicas, nomeadamente as que se associam ao desenvolvimento humano e ao
potencial de participação económica, política e social de todas as pessoas.
5 Entretanto, outros autores [Crouch 2004, Dorling 2009, Lansley 2011] têm vindo a
mostrar como a extraordinária concentração da riqueza que se tem verificado nas
últimas décadas e o aumento das desigualdades a ela associado, num quadro de
dominação do capitalismo mundial pelo capital financeiro e especulativo sobre os
interesses dos restantes sectores económicos e, sobretudo, sobre os naturais anseios das
populações, acaba por produzir o duplo efeito de reprodução das mais graves injustiças
sociais (a redução da taxa de pobreza a nível mundial devido ao elevado crescimento de
grandes economias em forte expansão é concomitante com o crescimento das
desigualdades) e, paradoxalmente, de ineficiência económica, pelo menos a prazo.
6 Oportunidades e capacidades são, então, marcos de orientação dupla das políticas
destinadas a promover o desenvolvimento económico sustentado, por um lado, e a
justiça social e o combate à pobreza, por outro lado [Capucha 2005]. No presente artigo,
mais do que discorrer sobre o problema da pobreza, os seus contornos e a sua evolução,
abordam-se as políticas de capacitação das pessoas como instrumentos de combate à
pobreza. O espaço de referência são os países africanos de língua oficial portuguesa
(PALOP) e Timor-Leste (TL). Assim, começando-se numa perspectiva mais analítica por
apresentar de forma muito resumida a situação dos PALOP e TL face a indicadores de
base como o Índice de Desenvolvimento Humano, a escolaridade, o investimento em
educação e a incidência da pobreza, parte-se depois para o campo das políticas públicas
de qualificação, enquanto instrumentos de desenvolvimento e coesão social.
7 A teoria subjacente é a de que há uma relação entre o crescimento económico e a
pobreza, que não é linear. Tudo indica que não há redução da pobreza sem crescimento
económico. Mas este não é condição suficiente. Pode haver um “lado escuro” do
crescimento. A questão da repartição das oportunidades e das capacidades é
determinante. Normalmente salientam-se a este propósito a repartição operada pelas
políticas fiscais e de segurança social [Blalock Jr. 1991, Esping-Andersen et al. 2002]. Mas
os modelos de crescimento (por exemplo, uma especialização mais ou menos favorável
à criação de empregos) podem igualmente ser determinantes. Trata-se de uma forma
mais estrutural de distribuição das oportunidades. O mesmo se passa com o acesso às
qualificações, neste caso decisiva no plano da distribuição das capacidades. Sem se lhe
reduzir, a capacitação implica a qualificação. É neste ponto que nos centraremos.
8 É pertinente uma análise do conjunto formado pelos PALOP e TL como espaço analítico
no domínio das qualificações? Julgamos que sim.
9 O primeiro argumento a favor dessa abordagem decorre da própria vontade dos países
em causa, que aceitaram cooperar no desenvolvimento de um Projecto de Apoio ao
Sector da Formação Profissional, da qualificação e do emprego apoiado pelo Fundo
Europeu para o Desenvolvimento.
10 Depois, os PALOP e TL, pesem embora as suas diferenças institucionais, a diversidade
das condições que possuem e os estados não coincidentes de maturação dos seus
sistemas de qualificação dos recursos humanos, possuem afinidades que facilitam a
cooperação entre si, no sentido da aprendizagem mútua e da definição de referenciais
comuns e de orientações partilhadas no sector da formação profissional e da educação.
11 Com uma história recente parcialmente partilhada e uma língua oficial comum, os
PALOP e TL são ainda países nos quais a circulação de trabalhadores – num contexto em
que muitas vezes a mobilidade é o primeiro sinal de desenvolvimento – tem condições
particularmente favoráveis.
12 Uma abordagem comum é, por tudo isto, pertinente. O artigo propõe-se apresentar um
modelo de referência para o desenvolvimento de sistemas nacionais de qualificações
que possa promover a cooperação como instrumento de desenvolvimento e de
promoção da coesão social. Tanto mais quanto na economia global o conhecimento for
o motor do crescimento e da criação de riqueza [Alexander & Kumaran 1992, UNESCO
1996], e igualmente quanto mais a educação e a formação se constituem como recursos
para a justiça social e o combate à pobreza [Capucha 2010].
“países pobres” para classificar amplas regiões do planeta, perdedoras da era colonial,
da revolução industrial e agora da sociedade da informação.
14 A nova economia do conhecimento, da liberalização dos mercados à escala global, da
comunicação como suporte da afirmação de novos protagonistas (como as empresas
globais) e da perda de poder de outros (como os sindicatos e os movimentos dos
trabalhadores), são exemplos de fenómenos que se associam à concentração da riqueza
e à explosão das desigualdades a nível mundial [Crouch 2004], e também dentro dos
países menos desenvolvidos, pondo em risco a coesão social, o progresso no sentido da
democracia e a governabilidade.
15 As novas estratégias de investimento e de organização da produção na economia do
conhecimento têm vindo a permitir o crescimento económico em várias regiões do
planeta, mas têm deixado outras ainda mais para trás. A par de uma melhoria média
das condições de vida da população mundial, assiste-se ao aprofundamento das
desigualdades entre pobres e ricos [UNPD, 2011]. A capacidade de cada país se
modernizar económica e socialmente e de combater a pobreza, aparece claramente
associada à qualificação dos recursos humanos e ao esforço realizado no campo das
políticas de educação e formação [Capucha 2010], como mostram claramente os
resultados de países como a China, Singapura ou Coreia [OCDE 2011]. Tudo indica que a
educação e a qualificação não serão condições suficientes para a coesão social e que a
distribuição equitativa das oportunidades e do produto passa por compromissos
políticos mais amplos e profundos. Mas são seguramente condições indispensáveis,
porque são a chave da produtividade do trabalho, da participação dos cidadãos e da
justiça social.
16 Segundo os indicadores disponíveis, o conjunto dos PALOP e TL apresentam sérias
desvantagens, no quadro mundial. O Relatório do PNUD2 indica que o índice de
desenvolvimento humano tem melhorado nos últimos anos em todos os países
considerados, mas encontra-se muito distante dos países mais desenvolvidos (na
Noruega o valor era de 0,943 e em Portugal 0.809, segundo o relatório de 2011), embora
os PALOP e TL se comecem a destacar dos mais atrasados (por exemplo, 0,286 na
República Popular do Congo). As diferenças entre os países são também relevantes, com
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, países mais pequenos e que foram poupados à
guerra depois da independência, a destacar-se dos restantes, ao passo que Moçambique
e Guiné-Bissau se quedam com indicadores mais desfavoráveis (tabela 1).
Ano Angola Cabo Verde Guiné-Bissau Moçambique São Tomé e Príncipe Timor-Leste
21 Para terminar esta breve abordagem aos principais indicadores do triângulo formado
pelo desenvolvimento humano, a educação e a pobreza, falta referir que praticamente
não encontramos nos países de desenvolvimento muito alto e alto pessoas a viver com
menos de 1,25 US dólares por dia, enquanto a proporção de pessoas que vivem abaixo
dessa linha de rendimentos é, ainda segundo o PNUD, de 21,0% em Cabo Verde, 28,6%
em São Tomé e Príncipe, 37,4% em Timor-Leste, 48,8% na Guiné-Bissau, 54,3% em
Angola e 60,0% em Moçambique.
22 Tudo indica pois que a relação entre pobreza, educação e desenvolvimento é real e que
essa relação distingue os PALOP e TL dos países mais desenvolvidos, ao mesmo tempo
que os começa a destacar dos que estão a ficar para trás.
39 Como corolário do que acaba de ser dito, é importante que todas as aquisições de
competências, realizadas quer em contextos formais, quer não formais, quer ainda
informais, possam ser reconhecidas, avaliadas e certificadas [CEDEFOP 2009, Howley &
Ducheman 2010].
40 A certificação pode ser de tipo escolar, de tipo profissional ou, na modalidade mais rica
dos modernos SNQ, dupla certificação (escolar e profissional). Quer isto dizer que se
valorizam as medidas que conduzam à aquisição simultânea de diplomas escolares e ao
exercício de uma profissão. Acções que esqueçam qualquer destes domínios acabam por
se tornar ineficientes e frequentemente pouco atractivas.
41 Por fim, as certificações podem ser parciais – o que corresponde à aquisição de apenas
uma parte minoritária das competências necessárias para concluir um determinado
nível de qualificação – ou totais, quando se atingem valores aceitáveis para a conclusão
de um nível completo.
•
42 O Planeamento e a avaliação: um SNQ capaz de responder às exigências correntes de
desenvolvimento e de competitividade tem de se dotar de mecanismos de planeamento,
quer do lado da oferta (de modo a adequá-la à procura por parte dos cidadãos, por
vezes promovendo acções de mobilização dessa procura), quer do lado da procura de
mão-de-obra qualificada por parte do mercado de trabalho. O planeamento, tanto
quanto possível, permite o estabelecimento de metas que tendem a focalizar os
sistemas e as instituições não nas rotinas e procedimentos rituais, mas mais nos
resultados alcançados e na sua utilidade.
43 A outra face do planeamento é a avaliação. Só um sistema que se dota de instrumentos
de avaliação interna e externa do seu processo e desempenho será capaz de
acompanhar e de se adaptar às mudanças que ocorrem no seu exterior e às que ele
próprio produz.
44 Estes princípios são a base dos quadros legislativos que regulam os SNQ. É porém
preciso ter presente que uma situação não se muda por decreto e que a distância entre
as normas, os planos e as realidades pode ser grande (esse é aliás um problema nos
PALOP e TL). Um SNQ é muito mais do que um edifício normativo. Mas também não o
dispensa.
45 No caso das qualificações, refira-se, desde logo, a Lei que define a missão, os objectivos
e a organização do SNQ, incluindo os seus principais componentes: educação pré-
escolar, básica e secundária, geral e profissional, educação e formação de adultos nas
suas diversas modalidades, formação contínua, educação/formação pós-secundária e
educação de nível superior.
46 Um segundo instrumento é o Quadro Nacional de Qualificações (QNQ) que define os
tipos e os níveis de saberes comuns a todos os sectores ligados à qualificação de
recursos humanos, desde a educação até à formação contínua. A sua abordagem centra-
se nos resultados da aprendizagem (competências), incluindo a que se realiza em
contextos não formais e informais. O QNQ facilita a certificação de competências e a
transparência dos sistemas de certificação, quer quando se comparam modalidades e
vias de ensino e formação num determinado país, quer quando comparamos países
diferentes. Neste sentido, é também um facilitador da mobilidade;
47 O SNQ integra ainda um Catálogo Nacional das Profissões, ou instrumento equiparado, que
regule a formação de dupla certificação. O Catálogo descreve as competências
associadas a cada perfil profissional, define os percursos de acesso às profissões e os
ser assegurada, quer por razões de eficácia (fazer mesmo o que é preciso ser feito), quer
de credibilidade (demonstrar que se utilizam metodologias e pedagogias diversas, mas
de valor equivalente). O que conta de facto é o rigor na aplicação das regras de cada
tipo de abordagem. Por isso, as entidades formadoras e certificadoras devem ser
sujeitas a processos de acreditação por parte de uma entidade pública com poderes e
competências para tal, e devem ser objecto permanente de controlo de qualidade das
suas actividades. A acreditação deve também ser condição necessária para a obtenção
de financiamento.
51 À medida que um SNQ se expande e abrange mais pessoas, nomeadamente quando se
diversificam as modalidades de educação e formação de jovens e de adultos, os Serviços
de Orientação ao longo da vida tornam-se uma peça-chave no sistema. Esses serviços são
instrumentos de divulgação da oferta, de apoio nas escolhas e de encaminhamento das
pessoas para as soluções que mais se ajustem ao seu perfil específico e que melhores
possibilidades ofereçam de satisfazer em simultâneo as ambições dos cidadãos e as
necessidades das empresas.
52 A existência e desenvolvimento de instrumentos estatísticos de seguimento e de
serviços de planeamento é um factor de qualidade nos SNQ, introduzindo racionalidade
nos procedimentos, rigor nas escolhas e permitindo o estabelecimento de metas e
objectivos operacionais orientadores da acção de todos os agentes. Esses instrumentos
são ainda facilitadores de processos de descentralização que geralmente reforçam a
capacidade operacional do sistema. Para aprender com o trabalho feito no sentido de o
melhorar, é de toda a utilidade o estabelecimento de contratos para a avaliação externa
das diferentes medidas que integram o SNQ e os operadores devem ser estimulados
para a adopção de procedimentos sistemáticos de planeamento e de autoavaliação.
56 Na maior parte dos casos verifica-se uma preocupação com a definição de sectores
económicos que deverão beneficiar prioritariamente desse esforço. A agricultura é um
sector comum a todos os países, tal como a educação e formação. São Tomé e Príncipe
refere também as pescas, a construção civil, o petróleo (tal como Angola) e a hotelaria,
turismo e restauração. Este sector é também salientado por Timor-Leste, Cabo Verde,
Moçambique e Angola. A energia, a gestão, serviços financeiros, contabilidade,
transportes e comunicações, bem como áreas profissionais manuais especializadas
(mecânica, electricidade, serralharia, carpintaria, mecatrónica, construção civil)
aparecem também referidos explicitamente em Angola, Cabo Verde, Moçambique e
Timor-Leste. As TIC são referidas nalguns dos documentos programáticos destes países.
57 Esta identificação de sectores é relevante para focalizar a educação e formação (tanto
mais quanto são escassos os recursos), mas não pode servir para fechar o sistema a
outras actividades económicas, que podem surgir como oportunidades a qualquer
momento ou por iniciativa de agentes diversos.
58 As necessidades de qualificação de mão-de-obra levaram muitos países a encetar
reformas dos sistemas de educação e de formação. Por exemplo, entre outras
iniciativas, Angola possui uma “Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de
Educação 2001-2015” e o Programa “Angola Alfabetizada, Angola Desenvolvida”
dirigido a adultos; Cabo Verde desenvolveu um “Plano Estratégico de Formação
Profissional 2006-2010” e tem em curso o “Programa Nacional de Educação, Formação
Profissional e Emprego” e ainda um “Programa de Educação e Formação Técnica e
Profissional”; em Moçambique está em curso a reforma do currículo do ensino
profissional conduzida por uma “Comissão Interministerial para a Reforma da Educação
Profissional”; Timor-Leste coloca a educação e a formação no centro do “Plano
Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030”; São Tomé e Príncipe também possui a sua
“Estratégia para a Educação e Formação 2007-2017”. Apenas para a Guiné não foi
possível encontrar um documento orientador do mesmo tipo.
59 Todos estes programas dão grande relevo à educação profissional. Porém, as ambições
maiores ainda se situam aquém, nos níveis mais básicos. A educação vocacional tende a
ter nível secundário, o mínimo considerado indispensável para a vida e o trabalho na
sociedade do conhecimento [OECD 2011]. Em geral é promovida por entidades públicas
e privadas segregadas em relação aos cursos gerais. Isso não favorece a valorização da
educação vocacional (estudos realizados em Moçambique assinalam mesmo que a
educação profissional é vista como uma opção “de segunda”). Assim, se são apenas uma
minoria os jovens no ensino secundário, os que frequentam o ensino profissional não
são mais do que 2,9% em Cabo Verde, 1,8% na Guiné (ano de 2006), 5,2% em
Moçambique, 1,6% em São Tomé e Príncipe e 5,6% em Timor-Leste. Apenas em Angola a
proporção dos alunos do secundário que estão em cursos profissionais é de 42,7%,
segundo o Institute for Statistics da UNESCO (dados de 2010).
60 Ora, o ensino profissional, dada a relação entre teoria e prática, a proximidade e
acompanhamento dos alunos pelos professores e monitores, os métodos de trabalho, as
maiores cargas de esforço, não apenas pode ser mais atractivo para os jovens, como é
mais útil para eles (os estudos de Moçambique revelam elevadas taxas de
empregabilidade) e para as empresas e, acima de tudo, é a modalidade que assegura
melhores aprendizagens e que tem maior potencial para a massificação da educação.
Elevar os desempenhos dos sistemas, aumentar drasticamente a oferta e vencer a
separação entre a educação de tipo “liceal” e de tipo profissional são, assim, condições
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NOTAS
1. Não sendo objectivo deste trabalho realizar uma revisão compreensiva da literatura sobre o
tema da pobreza, não se mencionam aqui os trabalhos pioneiros que precederam o trabalho
seminal de Rowntree, nem dos vários que lhe sucederam, como por exemplo Ravaillon [1998],
Atkinson [1998], Foster [1984] e muitos outros.
2. Por vezes argumenta-se contra a fiabilidade dos indicadores do PNUD. Deve porém notar-se,
em primeiro lugar, que qualquer indicador é uma imagem mais ou menos próxima da realidade, e
não a própria realidade; em segundo lugar, que qualquer indicador comparativo internacional, e
por maioria de razão, os da dimensão do PNUD, são construídos com base nas informações
disponíveis nos diversos países, dos quais a sua qualidade depende; em terceiro lugar, a
comparabilidade ao longo de séries anuais longas fornece indicações preciosas,
independentemente do rigor de um dado singular relativo a este ou aquele país, pelo que este
tipo de indicadores possui toda a pertinência e utilidade analítica.
3. O Índice de Desenvolvimento Humano é construído a partir de três dimensões (esperança de
vida saudável, conhecimento e padrões de vida decentes) desdobradas num indicador para o
primeiro parâmetro (esperança de vida à nascença), dois para o conhecimento (média de anos de
escolaridade e expectativa de escolarização) e um para o terceiro (PIB per capita).
4. Nos países de desenvolvimento alto o valor é de 8,5 anos, nos de desenvolvimento médio de 6,3
anos e nos de desenvolvimento baixo é de 4,2 anos.
5. Os valores para os países de desenvolvimento alto, médio e baixo são respectivamente 13,6,
11,2 e 8,3.
6. Dados locais indicam que o orçamento para a educação em 2011 é de 13,2% (20,5% do
orçamento de funcionamento e 4,7% do investimento).
7. Neste capítulo o autor baseia-se, acima de tudo, na sua experiência como Presidente da
Agência Nacional para a Qualificação em Portugal e coordenador da Iniciativa Novas
Oportunidades, cargos que exerceu entre Setembro de 2008 e Agosto de 2011.
8. A designação pode variar. O mesmo tipo de instrumento, o qual permite a acumulação de
créditos para a qualificação, por exemplo em Moçambique chama-se Quadro Nacional de
Qualificações Profissionais e, em Timor-Leste, chama-se Padrões de Qualificações Nacionais.
RESUMOS
A pobreza é um dos principais problemas com que se defrontam as sociedades contemporâneas.
Num quadro de globalização marcado pela acentuação das desigualdades sociais e de
concentração da riqueza, o combate à pobreza passa por um lado pela criação de oportunidades,
fruto do crescimento sustentado e rico em emprego e de políticas de redistribuição, e por outro
lado pela capacitação das pessoas. É nesta questão que o artigo se centra, apresentando um
modelo para o desenvolvimento de sistemas nacionais de qualificação nos PALOP e em Timor-
Leste que promova as competências das pessoas, condição necessária do crescimento económico,
da democracia política e da coesão social. Procura-se por fim, de forma genérica, assinalar os
progressos em curso face ao desenvolvimento desses sistemas, bem como os aspectos mais
críticos, como contributo para a cooperação na área da educação e da formação.
the development of national qualification systems in PALOP and Timor-Leste to promote people’s
qualification, a necessary condition for economic growth, political democracy and social
cohesion. Finally the progress being made in relation to the development of these systems is
emphasized, and the most critical aspects area pointed out as a contribution to cooperation in
education and training.
ÍNDICE
Keywords: poverty, qualifications, skills, cooperation
Palavras-chave: pobreza, qualificações, competências, cooperação
AUTOR
LUÍS CAPUCHA
Sociólogo, Doutor em Sociologia. Professor no ISCTE–IUL (desde 1987) e investigador no Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE. Foi Director Geral de Planeamento do
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, coordenador do Plano Nacional de Emprego,
Director Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação e Presidente
da Agência Nacional para a Qualificação. Tem como principais áreas de interesse (i) as políticas
públicas de luta contra a pobreza, de educação e formação, de acção social e de emprego, (ii) as
culturas populares e (iii) as metodologias de planeamento e avaliação. Participou e coordenou
acima de 70 projectos de pesquisa, de avaliação e de intervenção social. É autor de mais de 130
publicações em Portugal, Reino Unido, França, Áustria, Itália, Espanha e Brasil. É autor de
Desafios da pobreza (Oeiras, 2005) e co-autor de: Welfare and Everyday Life (Lisboa, 2009),
Institutions and Politics (Lisboa, 2009), Portrait of Portugal (Lisboa, 2007), Quotidiano e qualidade
de vida (Oeiras, 2007) e Exclusão social: factores e tipos de pobreza em Portugal (Oeiras, 1992). [e-
mail: luis.capucha@iscte.pt]
NOTA DO EDITOR
Recebido a: 23/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 2 e 7/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 8/Maio/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012
51 Assume-se, por isso, também que a designação utilizada pelo Eurostat para os casos
situados abaixo daquela linha de pobreza como se tratando de pessoas “em risco de
pobreza” não é correcta. Com efeito, estão nessa situação as pessoas e agregados cujo
rendimento equivalente é inferior ao limiar definido. Ora, esse grupo abrange pessoas e
famílias cujos rendimentos tomam valores que vão desde zero (rendimento nulo) ao
nível da linha de pobreza (ou imediatamente inferior).
52 Por outras palavras, se designarmos por lp o limiar escolhido, as pessoas consideradas
“em risco de pobreza” são todas as que têm rendimentos equivalentes inferiores a lp,
isto é todas as que têm rendimentos equivalentes que podem ir de 0 (zero) a lp. Ora, no
caso do rendimento zero, não se trata de risco de pobreza, mas de pobreza declarada,
acontecendo o mesmo com rendimentos positivos de valor inferior a lp1, sendo lp1 < lp.
Daí que não tenha sentido considerar que toda a população com rendimentos inferiores
a lp esteja “em risco de pobreza”. Esta será, em rigor, apenas a que figura entre lp1 e lp.
53 Uma outra questão metodológica que os estudos da pobreza colocam e tem de ser
resolvido é a da escolha da escala de equivalência. Também aqui não existe solução que
se possa considerar como a melhor ou universalmente aceite.
54 A escala da OCDE considera as economias de escala e distingue os adultos das crianças.
Os respectivos ponderadores são de 1 para o primeiro adulto, 0,7 para cada um dos
restantes adultos da família, e 0,5 para cada criança. Mais recentemente, surgiu a escala
da OCDE modificada, a qual mantém, como a anterior, o ponderador 2 para o primeiro
adulto, mas atribui 0,5 a cada um dos restantes adultos, e 0,3 a cada criança.
55 A soma dos ponderadores que correspondem a um dado agregado dá a dimensão do
agregado expresso em adultos equivalentes. Dividindo o rendimento total do agregado
pelo número de adultos equivalentes, obtemos o rendimento equivalente do agregado.
56 Tomando para exemplo um agregado composto por um casal com três filhos (crianças),
a dimensão seria de 5 quando expressa em número de pessoas, e de 2,4 quando expressa
em adultos equivalentes, pela escala da OCDE modificada (1 + 0,5 + 3 x 0,3 = 2,4). Se o
rendimento mensal desse agregado fosse de 2.400 euros, o valor do rendimento por
adulto equivalente seria de 1.000 euros e o rendimento per capita de 480 euros [cf.
Albuquerque et al. 2006, Bruto da Costa et al. 2008, Instituto 2010].
57 Tendo o estudo que deu origem ao presente artigo um objectivo assumido de
comparabilidade, optou-se, para a definição da linha de pobreza, o método
correntemente utilizado pelo Eurostat para delimitar as pessoas e agregados “em risco
de pobreza”. Isto é, a linha de pobreza foi colocada a 60% do rendimento mediano 1
equivalente, utilizando-se a escala de equivalência da OCDE modificada. A população
situada abaixo do limiar criado foi considerada como pobre.
58 Esta definição tem a vantagem de ser de fácil aplicação, além de permitir comparações
com outros países da União Europeia. Subjacente a essa opção está também a convicção
de que, seja qual for o método utilizado para estimar a linha de pobreza, o seu valor
deve servir, sobretudo, de referência, de indicação de uma ordem de grandeza, uma vez
que a margem de erro é sempre considerável e só pode ser avaliada de forma mais
exacta com recurso a outros indicadores.
70 A relevância da distinção entre a pobreza urbana e a pobreza rural varia de país para
país, consoante a taxa de urbanização e o desenvolvimento das chamadas zonas rurais.
Por outro lado, o aparecimento das áreas semi-urbanas e a noção de áreas
metropolitanas introduziram um factor de complexidade na análise deste tipo de
questões. Parece, no entanto, que no caso português, aquela distinção continua a fazer
algum sentido se admitirmos que a pobreza rural continua a contar com formas de
solidariedade informais, que atenuam a dureza das condições de vida 4.
71 Não deve confundir-se a solidariedade informal com realidades como as de auto-
produção (em pequenas hortas, por exemplo), ou de habitação própria sem encargos,
que é corrente serem apontadas para significar que a pobreza rural não é tão séria
quanto os números podem indicar.
72 Importa, por isso, sublinhar que esses rendimentos e despesas em espécie são
devidamente quantificados e valorizados no cálculo do valor total dos rendimentos (e
despesas). Esses rendimentos são tidos em conta ao proceder à identificação dos pobres.
73 Note-se, porém, que mesmo na hipótese de a solidariedade informal existir e contribuir
para atenuar o sofrimento dos pobres rurais, tal situação não deixa de ser atentatória
da dignidade dos pobres. Estas considerações podem, porventura, contribuir para se
realçar o facto de que, em princípio, o pobre urbano está mais sujeito à exclusão social
do que o pobre que viva em zona rural.
74 Não é de estranhar, portanto, que seja nas zonas escassamente povoadas que o contacto
com familiares e amigos seja mais frequente, quase diário, quando comparado com as
zonas densamente povoadas ou com as zonas intermédias.
75 Uma questão que importa, neste ponto, salientar é que a conceptualização da pobreza
de forma dinâmica, como foi acima explicitada, não altera de forma decisiva a
composição da população pobre quando esta é analisada através de uma análise estática
anos considerados e que eram trabalhadores por conta de outrem tinham um contrato
sem termo. Também se verificou que tinham, maioritariamente, trabalho a tempo
inteiro. Daqui decorre que a precariedade se situará, em grande medida, ao nível dos
salários.
94 É, igualmente, sabido que a elevação dos salários é tarefa complexa, que exige tempo e
o envolvimento decidido de três tipos de actores: os trabalhadores, incluindo os
sindicatos; os empresários (pelo muito de que deles dependem as medidas destinadas a
aumentar a produtividade8); e o Estado. O que há a fazer neste domínio está
sobejamente identificado. Resta reconhecer que se trata de uma alavanca fundamental
do progresso do país, e agir em conformidade. Trata-se de um domínio em que não é
possível fazer demais para se ser eficaz e antecipar, quanto possível, a obtenção dos
resultados.
95 Uma outra alavanca fundamental e relativamente ao qual não é possível fazer demais é
a educação. Há uma forte relação entre o nível de escolaridade atingido pelos pobres e a
idade em que começaram a trabalhar, sendo que aquele nível é tanto mais baixo quanto
mais cedo as pessoas entraram na vida de trabalho.
96 Este é, sem dúvida, um dos ciclos viciosos da pobreza: o pobre tem baixo nível de
educação por ser pobre e é pobre por ter níveis baixos de escolaridade. Por outro lado,
outro ciclo que, a partir daqui, se reproduz é o que conduz os portadores de baixos
níveis de educação a situações profissionais menos favoráveis. Daqui decorre, em
grande medida, que a pobreza persista não só ao longo de toda a vida de uma pessoa,
mas também que se verifique uma transmissão inter-geracional [Rodrigues 2007; Alves
2009].
97 Apesar da evolução em termos educativos que, apesar de tudo, se vai registando, o facto
de esta derivar de pontos de partida extremamente baixos – em muitos casos, do
analfabetismo – faz com que a sua expressão tenha de ser francamente relativizada
[Bruto da Costa et al. 2008), sobretudo se a isso se juntar a própria evolução societal e
das exigências a ela associadas.
98 O sistema educativo adquire, pois, uma importância fundamental. No entanto, para que
esta importância seja consequente, torna-se essencial assegurar às crianças pobres não
só o indispensável acesso ao sistema escolar – onde se pode incluir os apoios à família –
mas também condições para o seu sucesso, ao qual corresponda uma efectiva aquisição
de conhecimento e de aptidões.
99 Uma última questão a assinalar prende-se com o facto de mais de metade dos
portugueses continuar a colocar as causas da pobreza no país em factores como a sorte,
a inevitabilidade, o fatalismo, ou faltas imputáveis aos pobres, como a preguiça ou a
falta de força de vontade. Da mesma forma, 44% tende a acreditar que “a desigualdade
de rendimento é necessária para o desenvolvimento económico”.
100 Os resultados do Eurobarómetro dedicado às percepções dos europeus acerca da
pobreza e da exclusão social já citado mostram, ainda, por exemplo, que menos de uma
em cada cinco pessoas relaciona a pobreza com a ausência dos “necessários níveis de
educação, formação ou competências”, tantas quantas as que colocam a
responsabilidade nas pessoas por “viverem acima das suas possibilidades”.
Adicionalmente, apenas 13% identifica as pessoas com baixos níveis de educação,
formação ou competências como um grupo particularmente vulnerável à pobreza.
Notas conclusivas
101 A compreensão dos fenómenos da pobreza e da exclusão social exige, como vimos, a
clarificação de um conjunto de conceitos cruciais que nos permitem interpretar a
realidade social à luz de determinadas “opções” teóricas.
102 Procurou-se, na segunda parte deste artigo, apresentar um conjunto de resultados
concretos que, pensamos, constituem matéria-prima fundamental para uma reflexão
séria sobre a pobreza e a exclusão social.
103 Estes resultados mostram que a pobreza não é uma realidade marginal ou passageira da
sociedade portuguesa, antes assume características de um problema social extenso e
resistente.
104 Daqui decorre que uma política de combate à pobreza que se apoie apenas nas
características da pobreza num determinado ano corre o risco de não entrar em linha
de conta com aspectos fundamentais do problema, que só uma análise dinâmica
permite identificar.
105 Da mesma forma, a resolução da pobreza requer medidas que ajudem as pessoas a
tornar-se auto-suficientes em matéria de recursos, como mostra bem o facto de mais de
metade dos agregados alguma vez pobres terem como principal fonte o rendimento de
trabalho. Trata-se, aqui de repartição primária do rendimento, fundamentalmente do
âmbito da política económica, em sentido lato.
106 No entanto, também as políticas redistributivas são indispensáveis para o combate à
pobreza, como fica comprovado pelo facto de cerca de 40% dos agregados alguma vez
pobres terem as pensões ou outros benefícios sociais como principal fonte de
rendimento.
107 Pese embora o conhecimento que estes dados vão produzindo, verifica-se que a
percepção da pobreza pela sociedade portuguesa revela uma compreensão “pré-
científica” das causas da pobreza pela maioria das pessoas, na medida em que a atribui
a factores tais como a sorte, a inevitabilidade, o fatalismo, ou faltas imputáveis aos
pobres.
108 Sabendo-se que uma acção eficaz contra a pobreza, sobretudo pelas mudanças sociais
que implica, requer a aceitação, ou pelo menos o consentimento, da sociedade, conclui-
se que, a par do que se faça em matéria de projectos, programas, planos e políticas, é
necessária uma ampla campanha de esclarecimento e de promoção da justiça social e de
solidariedade.
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NOTAS
1. Recorde-se que, no final da década de 1980, eram consideradas como rurais as localidades com
população inferior a 10.000 habitantes.
2. O rendimento mediano é aquele que divide uma distribuição exactamente ao meio, o que
equivale a dizer que metade dos
3. Este valor resulta da soma dos pesos demográficos das “cidades pequenas e médias” e das
“cidades maiores”.
4. Este tipo de afirmações tem sido contestado com o argumento de que a solidariedade informal
que existia no país já se não verifica. Ver nomeadamente, Karin Wall et al. 2001.
5. Special Eurobarometer 321/72.1.
6. Situação que já o primeiro estudo sobre a problemática da pobreza em Portugal relevava
(Bruto da Costa et al. 1985).
7. De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego (INE) relativos ao 4º trimestre de 2011.
8. Veja-se, a este propósito, os resultados de um estudo levado a cabo pela multinacional
McKinsey, segundo o qual Portugal ocupava o antepenúltimo lugar em termos de qualidade de
gestão das empresas nacionais, o que, em muito, “ajuda a justificar a fraca competitividade da
economia nacional e as dificuldades de crescimento verificadas nos últimos anos”. Ver Diário
Económico, 16/07/2007, citado em http://diariodigital.sapo.pt/dinheiro_digital7news.asp?
section_id=3&id_news=83727.
RESUMOS
O presente artigo sistematiza algumas das principais conclusões da publicação “Um olhar sobre a
pobreza: vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo”, de que os autores deste
artigo partilham a autoria. O texto encontra-se estruturado em três partes principais. Na
primeira procura-se clarificar o conceito de pobreza e a sua relação com outros conceitos
relevantes, alargando-se a discussão, na segunda parte, ao conceito de exclusão social. Na
terceira parte, sistematiza-se um conjunto de conclusões relativamente ao carácter extenso e à
estrutura da pobreza na sociedade portuguesa, tendo por base a análise dinâmica de seis vagas do
Painel dos Agregados Domésticos Privados da União Europeia.
This article systematises some of the main conclusions of the book “Um olhar sobre a pobreza:
vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo”, of which the authors of the
article share authorship. The text is structured into three main parts. The first aims at clarifying
the concept of poverty and its connection with other relevant concepts. The second part widens
this discussion to the concept of social exclusion. The third part draws a set of conclusions
regarding the extension and the structure of poverty in the Portuguese society, based on the
dynamic analysis of six waves of the European Community Household Panel.
ÍNDICE
Keywords: poverty, social exclusion, structure, longitudinal analysis
Palavras-chave: pobreza, exclusão social, estrutura, análise longitudinal
AUTORES
PEDRO PERISTA
Sociólogo, Mestre em Cidade, Território e Requalificação pelo ISCTE–Instituto Universitário de
Lisboa. Investigador no CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, desde 1996. Tem
participado em projectos de investigação na área da Pobreza e da Exclusão Social. Integra a
coordenação da secção de Pobreza, Exclusão Social e Políticas Sociais da Associação Portuguesa
de Sociologia e a Rede Europeia de Peritos/as no domínio da Avaliação do Fundo Social Europeu.
É co-autor de Habitat e minorias. O que pode a promoção pública da habitação? (Lisboa 2011) e
Um Olhar sobre a Pobreza. Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo (Lisboa
2008). [e-mail: pedro.perista@cesis.org]
ISABEL BAPTISTA
Antropóloga, com Licenciatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa. Mestre em Sociologia Urbana pela Universidade Técnica de Lisboa. Investigadora no
CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, desde 1993. Tem participado e coordenado
projectos de investigação na área da Pobreza e da Exclusão Social, com particular enfoque nos
fenómenos de exclusão social extrema. Integra a equipa editorial do Observatório Europeu sobre
os Sem-Abrigo da FEANTSA e é membro da Rede de Peritos Independentes para a Inclusão Social
da Comissão Europeia. É co-autora de Habitat e minorias. O que pode a promoção pública da
habitação? (Lisboa 2011) e Um Olhar sobre a Pobreza. Vulnerabilidade e exclusão social no
Portugal contemporâneo (Lisboa 2008). [e-mail: isabel.baptista@cesis.org]
Notas de pesquisa
NOTA DO EDITOR
Artigo recebido a: 9/Fevereiro/2012
Envio para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da avaliação: 3 e 4/Abril/2012
Aceite para publicação: 3/Maio/2012
4º Criação dum sistema que permita a filtragem para a obtenção de água potável, um
sistema de bio-depuração de águas residuais e equipamento solar capaz de dessalinizar
a água do mar.
5
º Criação dum forno solar multifuncional, capaz de responder a actividades produtivas
através da energia solar (panificação e cerâmica, nomeadamente cozedura de tijolos,
produção de cal, etc.).
A Fundação e a “Universidade de Benguela” poderiam ter um papel decisivo na criação
de uma rede de agentes de mudança do paradigma fóssil para as energias alternativas e
o ecodesenvolvimento, tal como defendi e propus na conferência que fiz, aí na
“Universidade de Benguela”.
6
º Ecotecnologias de construção, melhorando as habitações das sanzalas.
7
º Criação de uma estrutura sanitária de chuveiros aquecidos solarmente, bem assim
como um conjunto de sanitas secas, que permitem o aproveitamento dos dejectos
humanos aos quais se podem juntar ainda algas para adubagem das terras. A
compostagem pode ser enriquecida com os excrementos dos animais e o uso de
minhoqueiros, ou seja, estruturas organizadas com minhocas para a produção de
húmus.
Seguimos de Benguela para o deserto do Namibe, com o Dr. Samuel Aço, Director do
Centro de Estudos do Deserto, na sua carrinha. O Dr. Samuel Aço é professor de
Antropologia na Universidade Agostinho Neto e convidara-me para ser membro
fundador do referido centro (CE.DO – Centro de Estudos do Deserto). Só agora, passados
quase dois anos, estava a partilhar com ele esta extraordinária aventura de me deslocar
ao deserto do Namibe, onde o CE.DO está sediado. Ele vinha de Luanda e trazia alguns
jovens estudantes (Gamboa, Uíme e Carlos). Dois deles seguiram de autocarro para o
Namibe e a Gamboa veio na carrinha connosco.
Fomos ao Lubango. Vimos a antiga cidade de Sá da Bandeira com as colinas,
antigamente cobertas de árvores e hoje pejadas de musseques, galopando encosta
acima até ao Cristo-Rei. Depois, descemos a Serra da Leba em direcção ao Namibe.
Já ao fim do dia, chegámos a Njambasana, junto ao rio Kuroka, em pleno oásis.
Antes do workshop começar, a 27 de Julho, fomos visitar a cidade de Namibe.
Conheci o ex-vice-governador, Inácio João Tavares, conhecedor profundo da cidade e da
sua história e fui ver o colorido dos panos e os cheiros das várias especiarias no
Mercado do Namibe.
No passeio pela cidade pude ver a multiplicidade de prédios reconstruídos, edifícios
“Art-Déco” na marginal e o passeio ibérico (espécie de passeio público do séc. XIX-XX),
eixo de lazer da população da ex-Moçâmedes, actual Namibe.
Esta cidade merece um estudo urbanístico que revele a sua história colonial e a
miscigenação das populações.
Voltámos a Njambasana, Kuroka. Explorámos o território, observando Welvitschias,
Salvadoras Pérsicas, dunas fósseis, pedras roliças, cristais, etc.
Esta área do vale do Kuroka situa-se numa região de clima seco desértico, muito quente.
Como diz Castanheira Dinis, “a média de precipitação anual é inferior a 100mm e todos
os meses do ano se podem considerar secos … Trata-se duma região com características
do Plistocénico e do Kalahari Superior”4.
confirmar-se esta teoria, a região do Kuroka poderá vir a ser um ponto de atracção para
uma comunidade científica mais vasta (ecologistas, paleontólogos, botânicos, etc.).
A vegetação no Kuroka rareia. Aquela região, vulgarmente conhecida como o deserto de
Moçâmedes, guarda raras espécies de acácias: acácia melífera, acácia gossweileri, etc.
Porém outros arbustos pontuam a faixa arbustivada, como a Boscia Microphila, a
Macrua Angolensis, Aximénia Americana e a Salvadora Pérsica. 8
Durante o percurso parámos o jipe diante dum destes arbustos de folha muito verde, a
Salvadora Pérsica, que se apresenta com espessos tufos arredondados, que sobressaem
na secura da paisagem. Avistámos ainda a famosa e estranha Welvitschia Mirabilis na
planura desértica do Vale do Kuroka. Vimo-la entre a área das pedras vermelhas e do
magnífico oásis do Arco do Carvalhão quando, mais tarde, visitámos o Tômbwa (ex-
Porto Alexandre).
O estudo desta região árida é do maior interesse, como já dissemos, para a criação de
meios ecológicos capazes de inverter a marcha da desertificação.
Em conversa com o Dr. Samuel Aço, referi a importância de se proceder, nesta região,
ao repovoamento das seguintes plantas, sempre que isso fosse possível: Odysseia
Paucinervis, Sporobolus Spicatus e sobretudo a Acanthosicyus Hórrida.
Estas plantas fixam as areias, impedindo os ventos de as deslocarem graças às suas
raízes profundas e dispersas. Já há muitos anos, como referiu L. A. Grandvaux Barbosa 9
conseguiram-se fixar algumas dunas, junto à cidade do Tômbwa (ex-Porto Alexandre)
utilizando também a Casuarina Equisetipholia, impedindo as areias de invadirem a
referida cidade piscatória.
No Brasil, quando visitei o TIBÁ (dirigido pelo Arquitecto Johan van Lengen), dei-me
conta que, embora numa situação climática diferente, se utilizava para a fixação de
terras uma planta denominada Vetiver, “Chrysopogon Zizanioides L.”, conhecida ainda
por capim limão ou capim de cheiro.
Não muito longe do vale do Kuroka, apercebi-me do uso da erva príncipe (chá de
caxinde) como planta medicinal. Essa planta, para além das propriedades medicinais, é
também um excelente repelente de mosquitos e possui raízes que fixam o solo.
Finalmente, chegámos à comuna do Kuroka, onde ficámos alojados.
Pelas manhãs comíamos na casa do Samuel Aço e da Teresa uma papa de farinha de
milho fermentado – mate, ou seja, o mingau brasileiro. Esta farinha de milho seca ao sol
em cima de lajes de pedra, fermenta ao longo de 4 ou 5 dias. Misturada com leite ou
água dá um creme branco.
Na casa do Samuel Aço estavam alojados a arquitecta Cristina Salvador, a antropóloga
Cristina Rodrigues e o fotógrafo Jorge Coelho. Na nossa casa ficaram o engenheiro Luís
Pedroso e a arquitecta Leonilde Fialho.
Chegaram depois mais participantes: o arquitecto Maurício Ganduglia, a Dra. Fátima
Viegas, a D. Emília Almeida, o Arquitecto Artur Lima e o Arquitecto paisagista Luís
Mata.
Começámos o seminário sobre a construção em terra, que foi bastante participado e
com um nível que satisfez todos os intervenientes.
A minha intervenção centrou-se particularmente em torno da importância do Centro
de Estudos do Deserto (CE.DO) como iniciativa de estudo e investigação da problemática
da desertificação e das alterações climáticas.
A abertura ecológica permite entender que as práticas xamânicas estão ligadas a uma
abordagem sistémica do homem e da natureza. Esta perspectiva é particularmente
interessante para a emergência do novo paradigma que põe em causa, do meu ponto de
vista, a arrogância reducionista da visão da sociedade moderna.
A questão essencial persiste: estas práticas constituem uma psiquiatria social do
oprimido e, portanto, são uma resposta possível e positiva, ou constituem um processo
de alienação e submissão que agrava a situação dos excluídos?
De manhã dirigimo-nos a casa da Dra. Fátima Viegas e conversámos sobre a experiência
vivida aquando da visita à igreja do Profeta Enoque e também sobre as perspectivas do
trabalho a efectuar no campo social, recorrendo a aspectos ligados às terapêuticas da
sociedade tradicional. Registámos este encontro em vídeo e, tal como vamos fazer em
relação ao vídeo feito na visita à Igreja do Profeta Enoque, vamos dá-lo a conhecer ao
Doutor Pierre-Yves Albrecht, no sentido de alargar esta investigação para uma reflexão
teórica sobre o xamanismo e em especial o xamanismo africano, procurando uma
compreensão fenomenológica de modo a poder avaliar o saber tradicional em relação
aos outros saberes tecnocientíficos. Pretende-se ultrapassar os preconceitos
ocidentalocráticos sobre a terapia utilizada nas sociedades vernaculares.
Procura-se a cosmovisão duma antropologia reflexiva. Pretende-se abandonar a
arrogância reducionista da visão dominante, em detrimento das achegas da
etnomedicina.
A resposta a estas questões poderá ser possível se se entrosarem saberes vernaculares,
etnopsiquiatria e conhecimentos académicos, numa reflexão epistemológica de fundo.
NOTAS
1. Jornal de Angola, 6 Agosto 2009, “O drama do estacionamento na Baixa de Luanda”.
2. Hoje, os prognósticos apontam normalmente para Luanda um número de habitantes a variar
entre 7 e 8 milhões de habitantes. Há, entretanto, quem arrisque 9 milhões de habitantes. [Nota
do editor].
3. Trata-se da então designada “Universidade de Benguela”, instituição privada que funcionava
ainda sem autorização governamental. Já com autorização, designa-se hoje Instituto Superior
Politécnico de Benguela. [Nota do editor]
4. A. Castanheira Dinis Características Mesológicas de Angola, Nova Lisboa, 1973.
5. P. Carlos Estermann Etnografia do Sudoeste de Angola, Mem. Série Antropo. Etnol., nº 4 (vol. I) 2ª
edição, 1960.
6. Ruy Duarte de Carvalho Vou lá Visitar Pastores, Ed. Cotovia, Lisboa, 1999.
7. Jacinto Rodrigues Sociedade e Território. Desenvolvimento ecologicamente sustentado, Profedições,
Porto, Março 2006.
8. Idem.
9. L. A. Grandvaux Barbosa Carta Fito-geográfica de Angola, Luanda, 1970.
10. P. Carlos Estermann, op. cit.
11. Vide http://jornaldeangola.sapo.ao/14/22/
centro_de_estudos_do_deserto_melhora_casas_no_kuroca. [Nota do editor].
12. Jornal de Angola, “Centro de Estudos do Deserto melhora casas no Kuroka”, 18 de Agosto de
2009, pág. 5.
Jacinto Rodrigues
13. Vide nota anterior.
AUTOR
JACINTO RODRIGUES
Arquitecto, urbanista e ecologista, é ainda filósofo e historiador de arte. Professor Catedrático
Jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (Portugal) e investigador no
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP). Estudou na Université de Paris-
Sorbonne, École Pratique des Hautes Études, Université de Paris VIII, Université de Rennes 2,
Universidade do Porto e Universidade Nova de Lisboa. É autor de estudos antropológicos e
culturais, bem como de exposições e documentários. Em Angola, os seus mais recentes estudos
dizem respeito a questões ecológicas e ao Deserto do Namibe. É autor, dentre outros, dos livros:
Sociedade e Território. Desenvolvimento Ecologicamente Sustentado (2006), Conspiração Solar do
Padre Himalaya (1999), Arte, Natureza e Cidade (1993), Ecodesenvolvimento, Arte, Urbanismo e
Arquitectura (1993), Álvaro Siza, Obra e Método (1992), A Bauhaus e o Ensino Artístico (1989),
Ecologia (1982), Utopia, Espaço & Sociedade (1979), Perspectivas sobre a Comuna e a 1ª
Internacional em Portugal (1976), Urbanismo, uma prática social e política (1976), Urbanisme et
Révolution (1973). [e-mail: jacintorodrigues@sapo.pt]
Intervenções
NOTE DE L’ÉDITEUR
Artigo recebido a: 14/Fevereiro/2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 22 e 23/Março e 19/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 15/Junho/2012
Introdução
1 A finalidade deste artigo é compartilhar a experiência de uma comunidade do estado da
Bahia (Brasil) que, apoiada pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, vem
desenvolvendo estratégias de combate à pobreza e à desigualdade social, através da
educação.
2 A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, primeira instituição filantrópica do estado da
Bahia (Brasil), foi fundada por Tomé de Souza, primeiro Governador-geral do Brasil, na
mesma ocasião em que fundava a própria Cidade do Salvador – em 1549. Nascida
juntamente com a sua cidade-sede, desde então tem funcionado ininterruptamente.
3 Segundo Costa [2000], essa Irmandade adoptou o compromisso (estatuto) da Santa Casa
de Lisboa, tendo como missão a prática das 14 obras de misericórdia: sete espirituais e
sete corporais. As obras corporais são: tratar os doentes; resgatar os cativos e visitar os
presos; vestir os nus; dar de comer aos famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os
pobres e os peregrinos; e sepultar os mortos. Quanto às obras espirituais, são: ensinar
os ignorantes; dar bons conselhos; punir os faltosos com compreensão; consolar os
Directrizes e conceitos
7 No ano de 2001, a Santa Casa realizou uma profunda avaliação do seu itinerário
histórico na área da assistência social e, a partir dessa análise, redefiniu o seu rumo
nesse sector, estabelecendo novas directrizes para a sua actuação, assim estabelecidas:
a. Os serviços a serem prestados à população carente devem ser instalados nas próprias
comunidades onde as populações residem;
b. Os recursos devem ser direccionados para uma única comunidade onde persiste o risco
social grave, de modo que se possam acompanhar os resultados alcançados;
c. O processo de desenvolvimento integral da comunidade deve partir de uma educação
transformadora e libertadora, em que a consciência da própria dignidade mova as pessoas,
no sentido de buscarem os instrumentos para o seu próprio desenvolvimento pessoal e da
comunidade;
d. As acções devem ser iniciadas através da criação de Centros de Educação Infantil onde se
possam acolher, em tempo integral, crianças entre 1 e 6 anos, de forma a permitir a maior
participação de pais e responsáveis no processo educativo e, ao mesmo tempo, libertando as
mães para a actividade laboral e educacional durante o dia;
e. Esta participação dos pais/responsáveis deve acontecer através de trabalhos voluntários no
âmbito da escola e em reuniões periódicas, em que se trabalharia com os pais questões de
educação, cidadania e empreendedorismo.
Essas acções buscam uma inserção na comunidade, capaz de animá-la e orientá-la tecnicamente, no sentido de que a comunidade
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oriente os seus destinos com as suas próprias forças. Extinguia-se, a partir de então, toda a possibilidade de assistencialismo que,
porventura, tivesse sido praticado no passado da instituição, desenhando-se uma nova maneira de ver e de trabalhar com as
populações que necessitam de sassistência. Boff [1999: 140-141] expressa assim essa postura:
14 Na época, essa ocupação foi chamada “Invasão das Malvinas”. A ocupação não foi
pacífica: a comunidade foi muitas vezes intimidada e reprimida por acção policial
através do derrube de cercas e barracos, na tentativa de barrar a expansão da ocupação.
15 Apesar dos esforços públicos, a ocupação resistiu e muitos dos desalojados retornaram
ou mantiveram o seu antigo espaço, apoiados e reforçados por novos ocupantes, que
não paravam de chegar. O poder público não conseguiu barrar o processo contínuo de
ocupação.
16 A partir de 1986, desenvolve-se a luta comunitária pelo direito à moradia, que culmina
com a implantação do programa de regularização fundiária pela administração
municipal (1989), através da outorga da Concessão do Direito Real de Uso (CDRU),
viabilizada pelo acordo de modificação da estrutura fundiária da gleba realizado entre a
Prefeitura Municipal de Salvador e os herdeiros do antigo foreiro.
17 Em 2001, foram registados 13.289 domicílios, dos quais 99,76% possuíam utilização
permanente, ou seja, as pessoas que ocupavam o imóvel residiam no local.
18 A população actual do bairro é estimada em 50.306 pessoas que habitam em domicílios
de diversas tipologias construtivas, desde casebres com piso de terra batida até casas
construídas em tijolo sem reboque. Hoje o bairro tem as suas ruas principais asfaltadas
e conta com serviços de água e energia eléctrica.
19 A infra-estrutura local pode ser considerada regular, uma vez que se trata de um
assentamento informal. Os dados revelam que 63,23 % das casas não possuem rede de
esgotos, sendo que grande parte dos resíduos é jogada num rio que divide o bairro.
20 Do total de moradores do bairro, 51,80% são do sexo feminino e 48,20% do sexo
masculino. Trata-se de uma população jovem, com 43,24% na faixa etária de 0 a 19 anos,
36,22% na faixa de 20 a 39 anos e 20,54% acima dos 40 anos.
21 Os chefes-de-família são 65,73% do sexo masculino e 34,27% do sexo feminino.
Apresentam rendimentos variados, estando a maior concentração naqueles que
recebem entre 0,5 e 2 salários mínimos, que representam 43,93% do total.
22 O Bairro da Paz, que é um dos maiores bairros de Salvador, com população
maioritariamente composta por jovens, crianças e adolescentes, possui o seguinte perfil
e características:
• alto índice de desemprego;
• 70% dos adultos sem vínculo formal de trabalho;
• baixo índice de escolaridade;
• baixo grau de formação profissional;
• condições de moradia precárias;
• quadro de desnutrição infantil;
• famílias numerosas;
• conflitos familiares;
• alto índice de alcoolismo;
• insuficiência de equipamentos comunitários;
• alto índice de violência.
Educação infantil
23 Para efectivar este seu projecto, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia criou um órgão
específico, denominado Departamento de Acção Social.
24 Iniciado o trabalho de radicação na comunidade em 2000, o bairro foi objecto de
levantamento e aproximação com as organizações populares existentes, principalmente
o Conselho de Moradores – órgão representativo da comunidade, cujos membros são
eleitos periodicamente pelos moradores.
25 A Fundação Dom Avelar, que é uma fundação pertencente à arquidiocese de Salvador da
Bahia no Brasil, comunicou que possuía três prédios escolares vazios que tinham
encerrado os seus serviços, por falta de recursos. Aceitou entregar à Santa Casa os
prédios em regime de aluguer, o que permitiu iniciar com 3 Centros de Educação
Infantil, que atendiam 300 crianças e respectivas famílias, assim denominados: CEIs
Santo Antônio, Cristo Redentor e Coração de Maria.
26 Os Centros de Educação Infantil (CEIs) têm o objectivo de resgatar e sistematizar a
qualidade do atendimento integral, estando voltados para crianças de famílias de mais
baixa renda, sendo a tónica do trabalho as actividades de estímulo físico e afectivo,
proporcionando as condições objectivas e subjectivas para o desenvolvimento de uma
personalidade saudável e produtiva. Através do acolhimento às crianças, as mães
disporiam do tempo necessário para obter emprego e renda e para participarem de um
processo global de educação comunitária.
27 Com cinco refeições diárias, organizadas por nutricionistas, as crianças vencem o
obstáculo da fome, obtendo um desenvolvimento fisiológico (e, especialmente,
cerebral) normal.
28 Segundo a Lei de Directrizes e Bases da Educação Nacional (título V capítulo II, seção II,
art.29), “a educação infantil é considerada a primeira etapa da educação básica, tendo
como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus
aspectos físicos, psicológico, intelectual e social, complementando a acção da família e
da comunidade.”
29 A selecção das crianças a serem atendidas nos centros obedece a uma inscrição inicial,
seguida de visita domiciliar, quando se preenche um formulário com os dados
socioeconómicos e culturais da família. Posteriormente, são seleccionadas as 300
famílias a acolher, a partir do critério de maior gravidade de risco social.
30 Os pais comprometem-se a oferecer trabalho voluntário por, pelo menos, um dia inteiro
ao mês no Centro de Educação que acolhe o seu filho, além de participarem
mensalmente das reuniões de pais e mestres. O não cumprimento destas obrigações
conduz à perda da matrícula da criança.
31 Durante os dias de trabalho voluntário, os pais exercem todas as funções de apoio:
cuidados com crianças, limpeza, cozinha, etc. Em cada serviço, os pais são orientados a
fazê-lo da maneira melhor e mais económica, a partir das necessidades das crianças.
32 Nas reuniões, aprofunda-se o trabalho com aulas (psicologia da criança, nutrição
saudável e económica, planeamento familiar, legislação social e da mulher, etc.) e
debates (cidadania e vida comunitária, participação social, democracia, economia,
emprego e renda), tudo em linguagem adequada ao universo vocabular e social dos
grupos.
33 No ano de 2004, recursos obtidos pela Fundação Dom Avelar permitiram a construção
de mais um prédio escolar, que também foi alugado e passou a funcionar, em 2005, com
o nome de CEI São Geraldo, aumentando para quatro o número de Centros de Educação
Infantil e ampliando para mais 100 famílias assistidas.
34 Em 2006, através da doação de um terreno, foi construído mais um Centro de Educação,
com recursos doados pela empresa Bahiagás – Companhia de Gás da Bahia, que é
responsável pela distribuição de gás natural canalizado em toda o estado da Bahia. O
novo CEI Nossa Senhora da Misericórdia, inaugurado em 2007, dispõe de um espaço
suplementar, onde é possível realizar reuniões, oficinas e todas as demais actividades
com os pais, atendendo vários grupos simultaneamente. Aí também foi colocado um
gabinete de Psicologia para atendimento. A partir dessa altura, passou-se a atender,
então, um total de 500 famílias.
35 Em 2009, iniciou o funcionamento de mais um Centro de Educação Infantil, o São
Francisco de Assis, construído com doações diversas. Considerando, entretanto, as
precárias condições de funcionamento do CEI Cristo Redentor, e tendo sido recebido
por doação o terreno vizinho, foi decidido fechar aquele CEI e transferir todos os alunos
e os trabalhos com adultos para o CEI recém-inaugurado.
36 O CEI Cristo Redentor foi totalmente derrubado e reerguido em novo projecto, com
recursos obtidos entre os próprios membros da Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, passando a funcionar em Setembro de 2011. Considerando
algumas outras adaptações realizadas nos outros CEIs nesse período, chegou-se, então,
à situação actual, com atendimento de um total de 655 famílias no Bairro. Conforme a
tabela abaixo, já foram atendidas desde o início do projecto, em 2002, 4.625 crianças e
suas famílias.
Santo António 100 100 100 100 100 100 100 100 100 110 1.010
Fechada para
Cristo Redentor 100 100 100 100 100 100 100 110 810
reforma
Coração de Maria 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 1.000
São Geraldo 100 100 100 100 100 100 105 705
Nª Sra. da
Não existia 100 100 100 100 115 515
Misericórdia
São Francisco de
Não existia 100 100 115 315
Assis
Total 4.355
Avaliação nutricional
37 A partir de 2006, começou a ser realizada a avaliação nutricional (ou antropométrica)
nos CEIs, com o objectivo de verificar o crescimento e as proporções das crianças,
visando atitudes de intervenção. A partir dos resultados obtidos, os menus foram
adaptados à necessidade dos grupos, sendo implantadas dietas específicas para os casos
de sobrepeso, risco de nutrição ou restrições alimentares, além de possibilitar o
acompanhamento individualizado das crianças.
Indicadores de qualidade
38 Em 2010, todos os CEIs do Bairro da Paz foram avaliados a partir dos Indicadores da
Qualidade na Educação Infantil, instrumento proposto pelo Ministério de Educação e
Cultura que permite a autoavaliação da qualidade das instituições de educação infantil,
por meio de um processo participativo e aberto a toda a comunidade.
39 Nos seminários realizados em cada um dos 5 CEIs do Bairro da Paz, todos os
empregados, representantes dos pais e da comunidade avaliam 7 dimensões, traduzidas
em indicadores considerados essenciais para o bom desempenho de um espaço
pedagógico voltado para a faixa etária de 0 a 5 anos. As dimensões são: Planeamento
Institucional; Multiplicidade de Experiências e Linguagem; Interacções; Promoção da
Saúde; Espaços, Materiais e Mobiliários; Formação e Condições de Trabalho dos
Profissionais; Cooperação e Troca com as famílias na Rede de Protecção Social.
40 A partir dos resultados obtidos, considerou-se que os CEIs da Santa Casa atendem
completa ou parcialmente a 97% dos indicadores avaliados e não atendem a 3% deles. As
dimensões que dizem respeito à prática pedagógica “Multiplicidade de Experiências e
Linguagens” e “Interacções” foram as que receberam maior percentual de aprovação
dos avaliadores, com respectivamente 90% e 92% dos indicadores (atende
completamente). Já a dimensão “Espaços, Materiais e Mobiliários” foi considerada o
aspecto que precisa de maior atenção, com 80% dos indicadores (atende parcialmente) e
13% (a cor vermelha – não atende).
41 A avaliação da qualidade consolidou-se como uma excelente ferramenta para a
melhoria dos serviços prestados pelos CEIs, pois permite a participação ampla dos
envolvidos no processo educacional, levando a uma efectiva reflexão sobre a prática
pelas equipas técnicas.
57 Segundo Bastos [2006], apesar da grande diversidade que marca os usos do conceito de
qualificação, podemos sintetizá-los em três concepções que assumem nuances
específicas em trabalhos de diferentes autores. Têm a qualificação como:
a. conjunto de características das rotinas de trabalho, expressas empiricamente como tempo
de aprendizagem no trabalho ou por capacidades adquiríveis por treinamento – deste modo,
qualificação do posto de trabalho e do trabalho equivalem-se;
b. decorrência do grau de autonomia do trabalhador e, por isso mesmo, oposta ao controlo da
gerência;
c. construção social, complexa, contraditória e multideterminada.
Considerações finais
72 Actualmente, em parceria com a Universidade Federal da Bahia, estrutura-se uma
avaliação de resultados do trabalho social realizado pela Santa Casa de Misericórdia da
Bahia na comunidade do Bairro da Paz, com vista à tomada de decisão para melhoria
dos projectos e investimento social.
73 Pesquisas que ampliem o foco do presente trabalho e investiguem o impacte deste
programa para a comunidade do Bairro da Paz são importantes para a comunidade.
Parece essencial avaliar de modo articulado, com a participação dos próprios
beneficiários da comunidade, o impacte deste programa para a vida das crianças,
adolescentes e famílias do bairro.
74 O grande desafio trazido pela avaliação de impacte é isolar variáveis e atribuir causa e
efeito das mudanças ocorridas a partir da intervenção do programa, ou seja, uma
avaliação de impacte tem como premissa: mapear mudanças sustentadas nas vidas das
pessoas, provocadas por determinada intervenção. Neste caso, o impacte refere-se não
BIBLIOGRAPHIE
BAPTISTA, Myrian, 1979: Desenvolvimento de Comunidade: estudo da integração do planejamento do desenvolvimento de comunidade no planejamento do
BASTOS, A., 2006: “Trabalho e qualificação: questões conceituais e desafios postos pelo cenário de reestruturação produtiva”, in: Jauro BORGES-
ANDRADE; Gardénia ABBAD; Luciana MOURÃO (org.). Treinamento, Desenvolvimento e Educação em Organizações e Trabalho: fundamentos para a Gestão de
BOFF, Leonardo, 1999: “Saber cuidar”, In: L. Boff Ética do humano: compaixão pela terra, Petrópolis: Vozes, pp. 140-141
GOVERNO Federal do Brasil,, 1996: LDB. Lei de Diretrizes e bases. Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996, Brasília: Governo Federal do Brasil
COSTA, Paulo, 2000: Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Salvador: Contexto & Arte Editorial
DRUCK, Graça, 2001: “Qualificação, empregabilidade e competência: mitos versus realidade”, in: Álvaro Gomes (org.) O Trabalho no Século XXI, São
Paulo: Anita
FREIRE, Paulo, 1987: Pedagogia do oprimido, 25ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra
MACHADO, L., 1992: “Mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora”, in: Trabalho e Educação, Campinas, São Paulo. Papirus, pp. 9 -24
AUTEURS
ANA CRISTINA MATOS
Pedagoga e Psicóloga. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do
Voluntariado da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. [e-mail: anacristina@scmba.com.br]
RAYMUNDO DANTAS
Filósofo. Mestre em Administração de Empresas pela Universidade de Extremadura (Espanha).
Superintendente da Ação Social da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. [e-mail:
rdantas@scmba.com.br]
Livros
REFERÊNCIA
Amartya Sen, 1999, Development as Freedom, Oxford: Oxford University Press
Amartya Sen, 1992, Inequality Reexamined, Cambridge: Harvard University Press
Amartya Sen, 1981, Poverty and Famines. An essay on entitlement and deprivation, Oxford:
Clarendon Press