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Revista Angolana de Sociologia 

9 | 2012
Pobreza e desigualdades sociais
Ensino Superior

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/ras/83
DOI: 10.4000/ras.83
ISSN: 2312-5195

Editora
Sociedade Angolana de Sociologia

Edição impressa
Data de publição: 1 junho 2012
ISSN: 1646-9860
 

Refêrencia eletrónica
Revista Angolana de Sociologia, 9 | 2012, « Pobreza e desigualdades sociais » [Online], posto online no
dia 29 julho 2013, consultado no dia 23 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/ras/83 ;
DOI : https://doi.org/10.4000/ras.83

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© SASO
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SUMÁRIO

Nota do editor
Paulo de Carvalho

Artigos

Noíto: a inscrição da mulher em Rio seco, de Manuel Rui


A voz das margens que conta como é. (do romance Rioseco de Manuel Rui)
Luís Mascarenhas Gaivão

Notas sobre o mundo social do livro: a construção do editor e da edição


Nuno Medeiros

Ensino superior

Evolução e crescimento do ensino superior em Angola


Paulo de Carvalho

Inserção profissional de diplomados da UL e UNL: aprendizagens académicas e competências


profissionais
Arlinda Cabral

Pobreza e desigualdades sociais

Desigualdade social e pobreza: ontem, hoje e (que) amanhã


Cesaltina Abreu

Pobreza em Angola: efeito da guerra, efeitos da paz


Cristina Udelsmann Rodrigues

Modos de vida da pobreza em Angola


Sílvia de Oliveira

PALOP e Timor-Leste: espaço para a qualificação, oportunidade para a coesão social


Luís Capucha

Pobreza em Portugal: retrato de um fenómeno insuspeitadamente extenso


Pedro Perista e Isabel Baptista

Notas de pesquisa

Diário de itinerância: Revisitar Angola em 2009


Jacinto Rodrigues

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Intervenções

Comunidade do bairro da Paz: uma experiência brasileira de combate à pobreza


Ana Cristina Matos e Raymundo Dantas

Livros

Amartya Sen: o autor e algumas das suas obrasCesaltina Abreu

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Nota do editor
Paulo de Carvalho

1 O tema central deste nº 9 da Revista Angolana de Sociologia é marcadamente sociológico –


pobreza e desigualdades sociais. Enquanto as desigualdades sociais são temática
sociológica por excelência, a pobreza tem normalmente abordagem multidisciplinar,
com particular destaque para a Sociologia e a Economia. Uma segunda temática,
relacionada com o tema principal deste número, tem a ver com o ensino superior.
2 Para este número 9 da RAS, recebemos um total de 26 artigos, para além de termos
pedido também artigos a 6 investigadores de gabarito. Nunca tínhamos recebido tantas
propostas como para este número da revista, o que nos obrigou (referees e editor da
revista) a trabalho redobrado.
3 No que respeita ao tema pobreza e desigualdades sociais, trazemos 5 artigos, 1 intervenção
e 1 recensão, num total de 7 textos.
4 A abordagem do tema central inicia com a angolana Cesaltina Abreu que, na esteira de
Alexis de Tocqueville, recorre à história da Humanidade para encontrar as causas
primeiras da pobreza e da indigência. Menciona a “naturalização das necessidades
supérfluas como se de necessidades básicas se tratassem” [p. 95] e a fuga para as
cidades em busca de emprego no sector industrial (que ocasionou o corte abrupto dos
“laços tradicionais de protecção do senhor” [p. 95]). Apresenta a seguir elementos
teóricos a respeito da pobreza e da sua medição (absoluta ou relativa, com destaque
para a medição absoluta defendida pelo Banco Mundial), bem como das medidas de
desigualdade na distribuição do rendimento. A socióloga Cesaltina Abreu escalpeliza
também o índice de desenvolvimento humano, enquanto medida relacionada com as
desigualdades sociais. Não deixa de apresentar uma breve reflexão sobre a possibilidade
de erradicação da pobreza e, por isso, de melhor distribuição do rendimento.
5 O artigo de Cesaltina Abreu é complementado com outros, onde se apresentam dados e
bibliografia a respeito da pobreza em Angola. Cristina Udelsmann Rodrigues apresenta
a relação entre guerra e pobreza e entre pobreza e paz, enfatizando os elevados custos
que os conflitos militares “provocam em termos sociais e económicos, conducentes à
manutenção e ao agravamento da pobreza” [p. 114] e a inconsistência do crescimento
económico em situação de conflito militar. Para ultrapassar a situação de pobreza que

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afecta boa parte dos angolanos, a autora sugere (dentre outras medidas) a adopção de
“programas de combate à pobreza junto das comunidades mais carenciadas” [p. 117], a
garantia da “assistência social aos estratos mais vulneráveis” [p. 117] e a promoção de
“programas articulados de resposta rápida a situações de risco iminente” [p. 118]. 1
6 Depois de apresentar dados sobre a pobreza em Angola, a africanista Sílvia de Oliveira
fala dos modos de vida da pobreza em Angola, que dizem respeito à “forma como as
categorias sociais mais vulneráveis adaptam os meios disponíveis às suas necessidades”,
ou seja, à “forma como se organizam estrategicamente para darem resposta às suas
necessidades, sejam elas biológicas, sociais ou culturais” [p. 127]. A autora identifica e
apresenta cinco modos de vida da pobreza em Angola, nomeadamente os modos de vida
da: destituição, restrição, desafectação, transitoriedade e investimento na mobilidade.
7 Trazemos a seguir exemplos de outros países: os PALOP (Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e S. Tomé e Príncipe, para além de Angola), Timor-Leste e Portugal.
Começamos com um nome incontornável quando se abordam a pobreza e a exclusão
social em países de língua oficial portuguesa, Luís Capucha, que nos traz uma
abordagem a respeito da pobreza nos 6 (POLOP e Timor-Leste). Atribui particular
destaque à formação dos recursos humanos, considerando que “a aposta num modelo
de educação centrado na escola tradicional, cognitivista e selectiva, será a aposta na
reprodução das desigualdades”, de modo que só “com uma escola orientada para o
desenvolvimento de diversas competências, não apenas cognitivas, mas também
atitudinais e profissionais” [p. 141] será possível apostar na competitividade económica
e no desenvolvimento.
8 A finalizar, Pedro Perista e Isabel Baptista trazem a abordagem da pobreza em Portugal,
enquanto condição relacionada com as “condições que têm de ser satisfeitas, ou os
recursos necessários para se ter acesso a um determinado padrão de vida” [p. 155].
Enquanto os dados apresentados pelos sistemas estatísticos de Portugal e da Europa são
estáticos, os autores optam pela apresentação de dados dinâmicos, que permitem ter
uma visão mais real acerca do número de pessoas que passam pela situação de pobreza,
mantendo-se nela ou não. Os dados apresentados apontam para 46% dos portugueses
terem estado em situação de pobreza em pelo menos um dos seis anos do período
1995-2000, o que faz saber que cerca de metade da população desse país se encontrava
então vulnerável à pobreza.
9 Quanto ao ensino superior, Paulo de Carvalho apresenta dados a respeito do crescimento
do ensino superior em Angola, com 4.176 estudantes por altura do final do período
colonial (ano de 1974) e 140.016 estudantes no ano lectivo de 2011. Enquanto o Estado
independente de Angola herdou somente uma universidade estatal, Angola possui hoje
38 instituições de ensino superior, sendo 16 estatais e 22 privadas. A terminar, o autor
enumera os factores que contribuem para a actual baixa qualidade de ensino.
10 Já Arlinda Cabral traz-nos uma reflexão acerca da inserção de profissionais formados
em duas universidades lisboetas, partindo do pressuposto de que “uma das finalidades
principais da universidade consiste em formar diplomados que contribuam para o bem-
estar económico do seu país” [p. 71]. Através da abordagem do modelo de
competências, a autora apresenta os resultados de um estudo feito junto de 1.004
licenciados em duas das maiores universidades lisboetas, concluindo que as
competências mais desenvolvidas na sua formação terão sido o “pensamento crítico”, a
“comunicação oral e escrita” e o “domínio de técnicas e tecnologias”.

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11 Os dois artigos complementares, que abrem o número, são de autoria de Luís Gaivão e
Nuno Medeiros.
12 O historiador Luís Gaivão apresenta uma série de aspectos de natureza antropológica e
sociológica das populações de Angola, com base na análise do romance Rioseco, de
autoria de Manuel Rui (Monteiro). Aborda nomeadamente a presença e o poder da
mulher na família e na economia doméstica em várias regiões de Angola, a interacção
no seio familiar e os problemas vividos no dia-a-dia numa família comum que vive na
Ilha do Mussulo (em Luanda), mas provém do interior de Angola. Manuel Rui “recorre a
uma personagem feminina, … como protagonista nessa longa e pensada travessia de
espaço/tempo angolano, com que pretende traduzir a realidade sociopolítica do país”
[p. 16] e dar conta da forma de transmissão oral dos valores culturais ancestrais. Por
aqui se nota a grande importância da mulher na cultura e na tradição angolanas (e na
cultura e tradição africanas).
13 Por seu turno, Nuno Medeiros aborda a problemática do livro, do editor e da edição
enquanto mundo ligado às artes, sistematizando a articulação do editor com o campo
editorial e a cultura do livro. Editor e editora são tidos como “construtores activos do
panteão cultural” [p. 37]. O autor esclarece que “o editor traça a sua identidade através
da expressão que a inseparabilidade de duas componentes (indústria e artesanato)
obtém nas decisões que vai tomando”, arquitectando assim o “perfil da editorial que
dirige e molda o mercado que está, de vários pontos de vista, sob sua égide” [p. 37].
Vêm depois uma série de outros profissionais que são também enquadrados no
processo de produção do livro, como sejam artesão, mecânicos e outros engenheiros [p.
41], que contribuem para a imagem de cada livro, esta que por sua vez vai exercer
também grande influência no marketing e na venda do produto final.
14 Nas notas de pesquisa, apresentamos um texto de autoria do arquitecto e ecologista
Jacinto Rodrigues, que é um diário de investigação respeitante a uma sua viagem a
Angola (a Luanda, Namibe e Benguela) em 2009. Trata-se de material útil para
profissionais e estudantes da Antropologia e da Sociologia.
15 Um texto que havia sido apresentado como artigo, foi sob proposta dos referees
encaminhado para a secção “Intervenções”. Trata-se da descrição de uma experiência
bastante positiva de combate à pobreza, no Bairro da Paz, na cidade de Salvador da
Bahia (Brasil) – que pode servir de base para intervenções similares em comunidades de
Angola. Os seus autores são a psicóloga Ana Cristina Matos e o filósofo Raymundo
Dantas, ambos funcionários da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
16 A terminar, Cesaltina Abreu traz-nos uma recensão a respeito de três livros do
economista Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia em 1998.
17 Boa leitura.

NOTAS
1. Um exemplo de combate à pobreza, vindo do Brasil, é apresentado nas págs. 187-201.

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Artigos

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Noíto: a inscrição da mulher em Rio


seco, de Manuel Rui
A voz das margens que conta como é. (do romance Rioseco de Manuel
Rui)
Noito: the inscription of a woman from the romance Rioseco - of Manuel Rui:
the voice on the margins that narrates as is.

Luís Mascarenhas Gaivão

NOTA DO EDITOR
Recebido a: 17/Fevereiro /2012,
Enviado para avaliação: 5/Março/2012,
Recepção da apreciação: 6/Mar, 21/Abril/2012,
Recepção de elementos adicionais: 1/Maio/2012,
Recepção da segunda apreciação: 2/Maio/2012,
Aceite para publicação: 3/Maio/2012

NOTA DO AUTOR
Adaptado a partir de trabalho apresentado em Fevereiro de 2012, no seminário
“Conhecimentos, Sustentabilidade e Justiça Cognitiva”, orientado pela Prof. Dra. Maria
Paula Meneses, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra,
Portugal).

1. Introdução
1 O objectivo deste trabalho traduz-se numa tentativa de “colaboração” com o escritor
angolano Manuel Rui em trazer para a superfície do conhecimento geral, através da

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análise duma obra literária, o papel fundacional e vital que a mulher africana (e, no
caso, angolana) detém na organização societária.
2 Através da análise do romance Rioseco observamos, em todo o desenrolar da intriga
ficcional, a primordial importância da personagem Noíto, uma mulher do povo, do
planalto central angolano e que transita, para fugir à guerra, por outras realidades
societárias, acabando na Ilha do Mussulo, em nova inscrição de vida, agora com os
pescadores.
3 A adaptabilidade do género, o real poder da mulher na economia doméstica e também
na esfera da economia pública, na transmissão dos conhecimentos e artes tradicionais
“inexistentes” na consideração e representação do conhecimento eurocêntrico e
abissal, a virtualidade das relações telúricas e/ou religiosas que mantém, sincréticas,
com o maravilhoso e o divino, a capacidade de justiça cognitiva prática e
tremendamente humanizada que exemplifica, a ternura do gesto para os que a rodeiam,
são algumas das características desta mulher angolana.
4 É uma figura retirada das margens, a quem Manuel Rui dá rosto, vida e, sobretudo,
palavra, através do recurso à oratura literária da sua escrita, numa perspectiva de
enunciação, com uma imensa pluralidade de vozes e de enorme qualidade.
5 E Manuel Rui fá-lo, inscrevendo-a no universo literário. Noíto é mulher angolana e é,
pois, mulher africana. Mais, ainda, é a representação ficcionada de Angola.
6 Também o autor se afirma, simultaneamente, um escritor universal.

2. Sobre o autor
7 Manuel Rui, nome incontornável na literatura angolana, iniciou-se ainda em tempo de
estudante de direito em Coimbra, no âmbito poético e nacionalista. No regresso à terra
(logo a seguir ao 25 de Abril de 1974), participou activamente na preparação do pós-
colonialismo, com os olhos postos na construção duma Angola independente,
assumindo cargos políticos de elevada responsabilidade.
8 Com a independência de Angola, doou ao País a letra do hino, elaborou letras de
canções de compromisso ideológico, escreveu muita poesia revolucionária, ao mesmo
tempo que se desmultiplicava em acções de carácter jurídico umas, e outras muitas de
carácter cultural. Foi crítico, ensaísta, cronista, poeta, romancista, conferencista e,
igualmente, escritor para teatro e cinema.
9 Como revolucionário e nacionalista, num período pós-independência, a sua poesia
alicerçou-se no resgate cultural duma identidade nacional que era necessário balizar e
defender, enraizar, em absoluto.
10 Assim, Manuel Rui revela um percurso literário linear: desde os primeiros tempos da
luta ideológica, 11 Poemas em Novembro (de 1976 a 1988) em que “entre a ilusão do real
concreto e o concreto da ilusão ficcional, a ideologia do enraizamento, enquanto modo
de identidade, crava no texto as suas garras”, sendo os elementos fulcrais do
enraizamento “os signos da terra, povo, língua, sangue, raça e da tríade nação-pátria-
Estado” [Laranjeira 1995: 164], Manuel Rui inicia uma evolução no sentido de maior
reflexão e ponderação temáticas, através de novos escritos que, já com a utilização de
processos estilísticos e ficcionais mais elaborados, passam a incluir a ironia e a crítica,
pois “os escritores não criticam os fundamentos da nação, porque os aceitam, mas

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encenam a crítica do fundamentalismo através do humor pícaro, costumbrista, social


ou cultural” [Laranjeira 1995: 165].
11 É o que se pode denotar em Quem me dera ser onda [1982], (inauguração dum espaço de
caracterização crítica do poder, “carnavalesco” e “dialógico”, no sentido de Bakhtin):
“Em resumo, durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo
o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo
particular de existência” [Bakhtin 1996: 7], ou Crónica de um Mujimbo [1991] e assim por
diante, em todas ou quase todas as produções subsequentes, onde a crítica social se
instala de vez, atenta às novas realidades sociopolíticas e culturais que vão emergindo
do decurso dos tempos e da evolução angolana.
12 Doravante, em cada nova obra publicada, comunica-nos, de plurifacetadas formas, aqui
mais realista, ali mais regionalista, e recorrendo aos mais variados processos estilísticos
e à já citada perspectiva da linguagem enunciativa, a poesia e a mágica, e, sobretudo, os
sofrimentos, frustrações e as alegrias que se deparam aos homens e mulheres de uma
nação tão rica de povos e culturas, de fronteiras e, ao mesmo tempo, de tantas
diferenciações sociais e económicas, e de dúvidas políticas, explicitadas pelos
espantosos personagens da sua criação e pelas situações transpostas a partir da
realidade.
13 Neste percurso, o amadurecimento do homem e do escritor caminham a par, assim nos
indicia a análise da sua escrita, onde a seriedade das denúncias sociais, das contradições
políticas dos regimes (primeiro, o do partido único e depois o da democracia liberal) e
das caricaturas dos seus agentes, se cruzam com a descrição da genuinidade cultural
dos populares (agricultores e pescadores preferentemente, mas também cidadãos
anónimos urbanos ou na relevância atribuída às mulheres).
14 A oratura desempenha nas obras do autor o papel de arma denunciadora e de
enraizamento, e também, por essa via, se tratam as questões e os preconceitos culturais
e étnicos herdados do processo histórico, antes e depois da independência.
15 Trata-se de uma literatura onde prevalece a utilização entre as formas e tipos de
interacção verbal em ligação com as condições concretas de espaço/tempo, numa
admiração inquestionável da variedade e natural beleza do país, por onde perpassam
rios, bichos, praias, árvores, espíritos, chuvas, céus de paletas admiráveis, cheiros e
sabores fortes e sensuais, num não mais acabar de sinestesias e, sobretudo, onde se
denotam infindáveis expressões e muitas personificações, de criatividade muito viva e
efeito estético conseguido.
16 Não é tempo para prosseguir numa análise pormenorizada da produção do escritor
Manuel Rui, mas sim de nos debruçarmos, com a devida atenção, ao papel sociológico
de Noíto, a personagem feminina e principal do romance Rioseco, publicado em 1997.

3. Noíto
3.1. Uma biografia angolana ficcionada em mulher

17 Manuel Rui alimenta com a personagem Noíto, todo o enredo de Rioseco, romance
passado durante a guerra civil angolana e que a pretende retratar, bem como à
sociedade da época.

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18 Personagem africana de pensamento e inserção, Noíto nasceu no Longonjo, como se


deduz da resposta dada a uma vendedora de galinhas no mercado da Samba [Rui
1997:35]:
“Que era centro-sulana Longonjo e logo-logo a revisão. A nossa terra como está?
Noíto pormenorizando resumos da guerra. Noticiando mortos e feridos mas dando,
acima de tudo, ênfase na fome e da gente que dela morria.”
19 Acabara de realizar a viagem do Huambo para a Ilha do Mussulo, junto a Luanda,
acompanhando o marido, de nome Zacaria, carpinteiro que ia trabalhar no local.
Fugiram da guerra acesa no planalto. Viagem complicada que só após três meses de idas
semanais ao Lubango lhes permitiram obter os bilhetes para o avião. Subiram a Serra
da Leba. Noíto é viajada da guerra, que a obrigou a deslocações várias e “Eu nasci no
Huambo. Uma terra muito rica onde não faltava nada, antes da guerra. Milho, carne,
tudo. Eu tive bois. Mas conheci outras terras no Moxico, Lunda, Kuando-Kubango,
Huíla, Kunene, muitas terras fora daqui e com gente muito boa como vocês” [Rui 1997:
73], dando resposta às perguntas das mulheres da Ilha.
20 A situação familiar é como segue [Rui 1997: 71-72]:
“O meu falecido marido, pai da minha filha Belita que me deu já três netos, era do
esquadrão Amílcar Cabral”, a saber, uma tropa de elite que venceu os colonos e
ganhou muita fama. “Nome dele Sapalo, andou tantamente em combates todos do
esquadrão, emboscadas, outras lutas, tudo da guerra e até salvou-se de um tiro na
barriga embaixo, mas ficado para sempre a arder no dia do avião vomitar fogo que
nunca ninguém soube mais dele e mais nada.” – E Noíto retomou o choro pela
lembrança do ex-marido, sensibilidade espontânea.
21 Depois, casou com Zacaria, um homem que, embora considerasse teimoso, amava
devotadamente e respeitava, sabendo que a decisão era sua, personalidade vincada, em
pensamento de autonomia [Rui 1997: 82]:
“Quem escolhe a minha vida sou eu. Qual Deus qual destino! Para quê viver quando
os outros é que nos escolhem na vida?”
22 E, agora, os dois acabavam de chegar à Ilha, mudança radical de vida.

3.2. Retrato físico

23 A idade de Noíto só se adivinha por aproximação. Como se viu pelo percurso anterior de
vida, já não era nova, e vestia panos, guardando consigo as suas embambas, única
riqueza, juntamente com o cachimbo que sempre a acompanhava [Rui 1997: 10]:
“A mulher permanecia sentada sobre a trouxa grande em que se descobriam,
debotados, por velhice ou uso, os pálidos vermelho, preto e amarelo do pano… De
contemplada pausa, inspirava o fumo do pequeno cachimbo, tapando e destapando
o fornilho com a mão direita, em ritmo acertado de cada chupaça”.
24 Salienta-se que as cores dos panos gastos e desbotados eram as da bandeira nacional
angolana, símbolo duma nação que se desgastava em guerra e grande sofrimento
humano.
25 Mais elementos físicos: kambuta (de estatura pequena), “a avó não sabe que lhe andam
chamar a kambuta?” [Rui 1997: 142]; faltavam-lhe alguns dentes: “desenhou-se na boca
desdentada de Noíto, um sorriso de vingança por amor e sem mágoa que a outra
percebeu” [Rui 1997: 153]; bebia ruidosamente aquilo que apreciava: “bebeu de
sofreguidão, sonorizando o sabor na garganta” [Rui 1997: 12], e, de aspecto geral, a

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descrição do encontro com o marido na praia revela-nos um corpo franzino [Rui 1997:
115-116]:
“despreocupavam-se as nádegas de Noíto, magras mas tão bem divididas pela linha
do traço. Zacaria, nos seus fazeres de carpinteiro sempre se apaixonou pelo traço. A
linha simulando repartir beleza que é só uma e, sem a qual, não valeria a pena o
suor na plaina ou no serrote. As coxas são mais magras. Assumem a apoteose de
raízes. Beldades enriquecidas pelo dentro chão. (…) seios tabuados quase atingindo
o ventre liso, sem barriga. (…) Esfregou o rosto, os seios flácidos, mas nos olhos de
Zacaria, lindeza do desenho das saliências de amamentar. As pernas e o triângulo da
sua divergência.”

3.3. Retrato psicológico

26 Noíto revela um retrato psicológico esclarecedor.


27 Curiosa, atenta, pensativa e prudente [Rui 1997:11-12]:
“Ela queria absorver tudo e de uma só vez”, “grudava e desgrudava os olhos do mar
e espiolhava para trás, rodando o tronco e a cabeça como que se metendo em
assuntos secretos”, “Sorvia agora o cachimbo apagado, recordando que o marido, de
poupança, ainda devia guardar uma meia caixa de fósforos tão preciosa para
conservar como para não mostrar a ninguém”, “tu sempre foste um aventureiro e
por isso perdi tudo, não te esqueças, casa, bois, e mais embambas que tinha com elas
há muito tempo”.
28 Admiradora da beleza física dos homens [Rui 1997: 161]:
“As costas do pescador, marchavam no sentido do longe, de onde tinham vindo,
beira da praia, um barco, silhueta. Tronco nu e o pano amarrado na cintura. Ela
gostava de ver aqueles homens vestidos assim. Sentia uma qualquer ontológica
ligação dos corpos musculados como ondulação de mar e mais de dentição quase
completa, bem desenhada e alva, da própria maneira de eles andarem, sem pressa,
mas pisando a areia como por obediência ao pé, como se um londove íntimo
existisse entre eles e o mar, bem amarrado o londove, com nós de Deus e as vagas e
as casuarinas e e os coqueiros e as quitetas e os búzios, na mesma festa de sim.”
29 Optimista: “acenou com a mão esquerda para trás a enxotar todas as moscas do
passado. Tanto azar que uma pessoa tem na vida que, um dia, quando chega a sorte vem
tudo de uma vez” [Rui 1997: 15]; generosa: “Por todas as paragens de sua peregrinação,
encontrara sempre alguém de dividir o pouco ou muito”; vaidosa e sensual “sentia o
corpo apetitado para viver. Às vezes uma pessoa passa tanto tempo sem ligar no corpo
que quando a água desliza e o sabão se respira na pele, apetece a limpeza como
afirmação da vida mostrada na cara dos outros” [Rui 1997: 109]; sexuada: “E sentia
mesmo isso. Que Zacaria transbordava dele o seu próprio rio. O rio dela, mulher. Águas
que lhe corriam nas veias mais que o mar e o rio de Zacaria correndo dentro de si.”
[Rui 1997: 116]
30 Noíto repreende o marido quando este não fala verdade – não se deixa dominar, é altiva
e verdadeira, solidária: “Sentia-se na obrigação de ajudar até onde as suas forças
caíssem só de cansaço, nunca de medo, inveja, egoísmo ou fingimento” [Rui 1997: 22],
perspicaz e vidente: “Não ia incomodar o pescador com mais perguntas, porquanto, daí
a pouco, poderia obter todas as respostas nos seus próprios olhos” [Rui 1997: 22].
31 Este retrato psicológico ainda incompleto torna-se, no entanto, suficiente para se
compreender melhor a personalidade de Noíto, muito embora deva vir a ser,

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naturalmente, esclarecido através de outros dados, aportados no desenvolvimento


deste trabalho.

4. O lugar, o tempo, o rosto e a vida da mulher


angolana que veio das margens
4.1. O lugar de inscrição territorial e sociológica: as margens, o
género, a natureza, a tradição

32 Manuel Rui, em Rioseco, abstém-se genericamente do anticolonialismo. É de pós-


colonialismo que se trata.
33 Encontra-se numa fase já um tanto distanciada dos nacionalismos independentistas e
revolucionários e emerge como um escritor que inscreve um universo ficcional que já
está para além das questões iniciais de afirmações identitárias da nação e da pátria
angolana e se dirige, claramente, rumo ao objeto universal literário.
34 A ideia de nacionalismo de Wheeler [2006: 76], de “um ressentimento colectivo contra
os estrangeiros” é aqui substituída por uma reflexão sobre o caminho percorrido por
Angola e pelos angolanos, nos 25 anos após a independência.
35 O mais notável é que recorre a uma personagem feminina, a nossa já conhecida Noíto,
como protagonista nessa longa e pensada travessia de espaço/tempo angolano, com
que pretende traduzir a realidade sociopolítica do país, para reflexão e prazer dos
afortunados leitores e, igualmente, dos estudiosos das ‘histórias de Angola’, desta vez,
do lado do povo.
36 Noíto jamais se esquece das suas raízes, e, provavelmente, o autor tenha tido alguma
influência do modernismo brasileiro (embora Manuel Rui tenha recebido outras mil
influências dos tantos outros mil lugares que frequentou) pois afirma [Vecchi 2008:
163]:
“Tal descoberta das raízes autóctones (que correspondem mais exactamente à
«invenção» – também em termos etimológicos – da angolanidade) já metabolizava
antropofagicamente, na síntese dos próprios objectivos, a lição do Modernismo
brasileiro: oposição aos valores culturais do Ocidente, primazia das expressões
colectivas, nacionalização dos êxitos produzidos pelas correntes estéticas
estrangeiras… valorização do âmago africano mais autêntico e menos reificado (do
ponto de vista do exotismo colonial), ou, como diz Viriato da Cruz: «Tudo deveria
basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.»”
[apud Andrade 1975:6]1
37 Não é este, no entanto, um trabalho de análise literária, mas convém ressaltar a
qualidade invulgar duma escrita muito rica em imaginação, domínio dos recursos
estilísticos, mestria de utilização da linguagem, e onde a oratura é, preferentemente,
um apelo constante das margens para o reconto das histórias, como nos casos de
Guimarães Rosa (Sertão) ou Luandino Vieira (Luuanda): “porque têm as margens como
ponto de inflexão, mas também porque usam a linguagem de suas personagens como
estratégia narrativa que permite a essas margens falarem por si, e nesse sentido,
encerram em suas obras um projeto político de reconhecimento e autonomia daqueles
que em suas obras estão a contar e criar a própria história.” [Lauris 2008: 136]

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38 Noíto é mulher e é natural do interior, provém dum mundo de economia agrícola e de


criação de gado, como vimos. Pertence ao Sul, entendido como realidade duplamente
invisível, sul dum país do sul, periferia da periferia.
39 Santos [2007: 8-9], na sua teoria do pensamento abissal, é de opinião que nessa
cartografia, constitutiva do pensamento moderno, a zona colonial é o universo das
crenças e dos comportamentos incompreensíveis, impossíveis de serem catalogados
como conhecimentos e se situam, por isso, para além do verdadeiro e do falso. Pior,
ainda, são invisíveis e fundamentam o conhecimento científico moderno, o único
aceite.
40 Ora o romance em questão já está, na verdade, para além deste paradigma, uma vez que
Angola já não é território colonial, mas país independente, e que tenta regularizar as
questões e problemas herdados na origem colonial e na independência pós-colonial,
colocando à luz, precisamente, as suas formas peculiares de cultura a tradições. É o que
faz Noíto e os outros personagens de Rioseco.
41 Contrariando a opinião generalizada de que “na sociedade tradicional africana nem
sempre a mulher participa da tomada de decisões” [Andrade 2006: 63], Manuel Rui
apresenta-nos uma mulher que reúne características fortíssimas de africanidade, como
veremos, e que, sendo muito embora originária duma sociedade em convulsão de
guerra, o autor faz subtrair ao silêncio do género e, tornando-a desafiadora, a faz
conduzir as iniciativas pessoais da sua inserção social num meio desconhecido para ela
(a ilha do Mussulo, junto à capital-Luanda), ela que é senhora de um personalidade
forte e genuinamente africana, ainda não-contaminada, sem receios nem
subserviências perante vizinhos ou autoridades.
42 É através duma espontaneidade total, de valores africanos tradicionais, de um
pensamento solar, com a clareza e clarividência de uma “ecologia de saberes” [Santos
2007: 26], que ela enuncia e pratica diversas formas de conhecimentos locais e naturais,
muitos deles não-científicos, que originam o espanto e a admiração daqueles que, mais
próximos dos costumes da cidade, com ela contracenam as aventuras de Rioseco, e que
não compartilham nem a sua sabedoria ancestral, nem um “tempo contemporâneo”,
desfasados por uma noção divergente de tempo, noções trabalhadas por Johannes
Fabian, em The Time and the Other [1983], em que se baseia para nos dizer que “o
principal mecanismo para o estranhamento antropológico não foi o afastamento
espacial, e sim o temporal” ou, dito de outra maneira, “na construção do Outro, a
diferença foi encarada como distância” [Lobão 2002: 189-190].
43 Então, temos uma Noíto profundamente arreigada à sua terra de origem: “Perdoa-me só
mas a gente não pode esquecer o sítio onde nasceu” [Rui 1997: 192], e é precisamente
essa raiz mergulhada na terra bem africana que lhe vai permitir ‘emigrar’, enfrentar
outros meios culturais e étnicos, muito diferentes, no Mussulo e realizar a enunciação
do seu discurso: “A terra é onde a gente quiser ficar e se ela nos receber” [Rui 1997 :
166].
44 E a naturalidade com que, fugindo da guerra com o marido, inicia uma nova vida, junto
dos pescadores, em nada altera a relação com a terra originária do seu pensamento
africano: “Não há terra nenhuma que rejeite uma semente da mão de uma mulher que
sofreu tanto como eu” [Rui 1997: 131].

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45 E, ainda no barco que navegava para a ilha, à medida que ia visionando melhor o espaço
ainda desconhecido, imaginou-o em antecipação, e pensou que se houvesse árvores,
então poderia fazer uma lavra.
46 Trata-se, pois, de registos proprietários, referenciais dum direito ao usufruto
espontâneo (posse) da terra, como um bem comunitário e flexível, ao dispor dos
interessados, como é de uso em África, em oposição a um regime legalista de registo de
propriedade, comum nas sociedades “metropolitanas”.
47 O pluralismo jurídico pode tornar “explícita a vigência, num mesmo espaço, do direito
do Estado colonizador (no caso, pós colonizado) e dos direitos tradicionais” [Lauris
2008: 140], ou “pode ser identificado como facto empírico em outras situações não
relacionadas à dominação colonial, como por exemplo: países com tradição cultural não
europeia que adoptam o direito europeu como instrumento de modernização… num
contexto de revolução, em que o direito tradicional entra em conflito com a nova
legalidade; populações autóctones, nativas ou indígenas que em certos domínios
continuam a seguir os seus costumes em detrimento do direito dominante; sociedades
cuja diferenciação de classe gera uma homogeneidade precária e as contradições
sociais, políticas, culturais e económicas propiciam diferentes expressões jurídicas, o
caso das sociedades capitalistas. Nesse caso, em geral, as contradições podem gerar
espaços segregados com recursos normativos e institucionais próprios.”
48 O processo do discurso e da acção de Noíto rege-se por um conjunto de normas
ancestrais, cuja enunciação nos é apresentada a cada página, tantas vezes na contra-
hegemonia do direito do Estado.
49 Podemos também assinalar que os espaços de desenvolvimento da narrativa são
profusamente perfumados de subtis episódios, que nos levam a fazer o levantamento do
território dos diferentes lugares e tempos em que se inscreve a narrativa de Noíto.
50 Por exemplo, uma das formas de enunciação matricial feminina e angolana é traduzida
pela recorrência inumerável a episódios relativos à culinária e à gastronomia, através
das inúmeras receitas que nos são expostas pela leitura, com ligação aos produtos da
terra, instrumentos utilizados e duração e modos de fazer, donde resultam, acima de
tudo, saborosas descrições que fazem crescer água na boca e cuja degustação é
privilégio dos personagens.
51 A título de exemplo, registamos [Rui 1997: 153]:
“Desenhou-se na boca desdentada de Noíto, um sorriso de vingança por amor e sem
mágoa que a outra percebeu (tinha havido um mal entendido com uma vizinha e
Noíto aproveitara para ‘dar uma lição’). Tirou um bocado de tomate, cebola, quiabo
e caombo. Meteu água de uma bacia à vista. Secou tudo num pano limpo. Encheu
um prato de alumínio com fuba de milho pisada por ela no pilão de casuarina.
Enfeitou a fuba com o tomate, cebola os quiabos e o caombo. Entregou. E depois
encheu de sal o prato que a senhora trouxera.”
52 Manuel Rui aborda, pois, uma referência cultural, tradicionalmente conotada, em
África, com o género feminino, a culinária e gastronomia angolanas.
53 Em muitos dos exemplos citados, a culinária e a gastronomia obedecem a costumes
culturais que, para além de assumirem significados de cortesia, generosidade e bem-
estar, traduzem diferentes regras de mercado, como o da troca directa de produtos
para a confecção de refeições, os presentes de comida já antecipadamente elaboradas,
utilizados como forma de pagamento de serviços, integrando-se no que se pode

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considerar uma forma de “economia familiar” ou “paralela”, tão usual nos estados que
encontram dificuldades na afirmação da sua economia formal.
54 Para que efectivamente se dê entrada a uma “justiça cognitiva” torna-se necessário
encontrar formas alternativas para a descolonização da economia: “Pensar a
descolonização da economia requer necessariamente o reconhecimento de que não há
justiça social global sem justiça cognitiva global. (…) A economia, num sentido
dominante, pode pois ser caracterizada como uma gramática colonial, cujo discurso
produz a exclusão e o apagamento do que não é familiar – embora explorável: as
«outras» práticas sociais e subjetivadas. (…) Importa, pois, ir mais longe e ultrapassar a
situação paradoxal a que se assiste no campo da teorização económica sobre as
alternativas à economia neoliberal: ao mesmo tempo que se amplia – através de
múltiplas iniciativas como a economia solidária, a informal, etc. – uma gramática
quantitativa importante, a condescendência face ao positivismo é marcante.” [Meneses
2009: 232-235]
55 À mulher angolana, ancorada no seu território físico e cultural, empresta Noíto outras
várias características e, particularmente, uma matriz bem assente nas marcas da
natureza.
56 Em algumas passagens, quase se dá uma simbiose – a mulher-chuva: “E a chuva
rebentou em som de dona, só ela mesmo, só patroa do silêncio. Parecia era uma mulher,
toda inclinada e entregue ao corpo do vento”, ou a mulher-mar “O mar todo entregue –
Zacaria a pensar – o mesmo que ontem havia partido tudo, assustado as pessoas, ele
próprio, agora um Xinganje desfingido. Na cabeça de Zacaria, outra vez a ideia de
máscara. O mar parecia uma máscara. «Não é homem. O mar é uma mulher»” [Rui 1997:
224, 369].
57 Esta mulher-mar ou mulher-chuva, ou ainda mulher-terra, são conceptualizações dos
atributos de género da mulher africana, da qual se espera a fecundidade geracional,
como da terra regada pela chuva o germinar da semente ou do mar-chão uma boa safra
de peixe.
58 Mulher, terra, chuva e mar são constituintes da natureza e são sinal de vida e, pois, de
alegria. Por isso a dança habitual na natureza, que se estranha quando se queda parada:
“Não ventava e os coqueiros e casuarinas estavam a aceitar a chuva como que
adormecidos por hábito. Sem se sembar na dança dos troncos nem se cudurarem nas
ramagens” [Rui 1997: 406].
59 Igualmente, Noíto conhece muito bem os rituais de iniciação, quando, em resposta ao
pescador Mateus que lhe falava da festa do Caculo, onde se venera a Kianda [Rui 1997:
276] lhe diz: “Mas olha só: nunca me explicaste na Kianda. Quer dizer, não explicaste
bem. Na minha terra, festa grande é quando os miúdos são circuncizados e as raparigas
aprendem para ficar mulheres”, ao mesmo tempo que se revolta contra os insultos
étnicos dirigidos contra a sua etnia bailundu [Rui 1997: 112]:
“Mais uma vez ela revoltava-se com aquela maneira de insultar. Do mato. Ou
bailundo. Só por ser de uma terra. Sim, ela era do Huambo. O Bailundo também era
uma terra da sua região. E tinha muito orgulho em ser do Huambo. Só que não
compreendia como é que a sua origem pudesse ser ridicularizada sem mais nem
quê. Tudo o que fosse mau e desprezante, aquele Ginga (mulato luandense) que,
pelo escutado, era também da região umbundu, generalizava na expressão
bailundos.”

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60 Temos, pois, os lugares matriciais definidos: do Huambo, terra dos ovimbundu, de que
os bailundos fazem parte e cuja língua é o umbundu, para Luanda, terra dos ambundu e
onde se fala o kimbundu, em tempo de guerra e de desarticulação política e social do
país.

4.2. O tempo da enunciação narrativa pela oratura essencial no


romance. A guerra, a escala social e a colonialidade da nação

61 O tempo da narrativa é, como afirmado antes, a guerra civil, a chamada 3ª guerra de


Angola2.
62 A obra é publicada em 1997, como sabemos, e as considerações são entretecidas na
travessia dos percursos históricos pós-coloniais aí ocorridos.
63 O texto literário está ancorado na oratura popular, como referido, processo utilizado
por Manuel Rui para inscrever a nova literatura de Angola expressa num português
(língua oficial) que alguns classificam de variante angolana.
64 Este fenómeno processual de interferência das línguas nacionais, sobretudo o
kimbundu e o umbundu com o português é explicado por Mingas [2000: 21]: “Com
efeito, devido ao fenómeno de adaptação constante e frequente da estrutura da língua
primeira (ou materna) à da língua segunda (o português), constatam-se diversas
alterações fónicas e morfossintácticas na língua segunda”, e é nesta particular
característica que se insere o português literário de Manuel Rui e se desenrola o texto e
o contexto dos actores do romance.
65 A propósito destes recursos literários, Cardoso [2008: 18] refere: “gostaríamos, no
entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada
para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos
fios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de
fundo da narrativa afro-bantu.”
66 E acrescenta: “o género da literatura oral africana, que atrás definimos como expressão
da forma de olhar o mundo com os olhos criativos da afetividade estética, encantatória.
Mas o fabulário bantu tem outras dimensões culturais. O seu acervo é composto por
pedagogia, através de parábolas que ensinam os membros da comunidade cultural a
pautarem-se por regras codificadas pela sabedoria dos Mais Velhos, a quem incumbe
ensinar a moral da história.” [Cardoso 2008: 22]
67 Partindo do sofrimento real e das considerações a propósito da guerra interminável que
o povo angolano confrontou, antes e depois da independência, é, como dissemos, numa
perspectiva pós-colonial que o tempo se desenvolve.
68 As perspectivas de paz, justiça, equidade social e boa governação que a independência
antecipara, foram substituídas pela guerra, desta vez entre irmãos da mesma nação,
mas de etnias diferenciadas. Nesse âmbito, a utopia duma independência perfeita e
pura distorceu-se numa realidade de intolerância étnica e cultural, de cariz totalitário e
de cooptação política, ou seja, certas características da herança colonial continuaram e
por vezes até se reforçaram no Estado independente.
69 Escreve Quijano [2000: 345]: “Tal como lo conocemos historicamente, a escala societal el
poder es un espacio y una malla de relaciones sociales de explotación/dominación/
conflicto articuladas, basicamente, en función y en torno de la disputa por el control de

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los siguientes ámbitos de existência social: (1) el trabajo y sus productos; (2) en
dependência del anterior, la ‘naturaleza’ y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus
productos y la reproducción de la espécie; (4) la subjectividad y sus productos,
materiales y intersubjetivos, incluído el conocimiento; (5) la autoridadd y sus
instrumentos, de coerción en particular, para asegurar la reproducción de esse patrón
de relaciones sociales y regular sus câmbios.”
70 Quijano é de opinião, no entanto, que o olhar eurocêntrico nos dois últimos séculos, e
até que surgissem as questões de subjectividade e de género neste debate, não
conseguiu ver com clareza todas as questões relacionadas com a configuração do poder,
pois que existia a confrontação entre as duas principais vertentes de ideias: uma,
hegemónica, o liberalismo, e a outra, subalterna, embora contestatária, o materialismo
histórico. No entanto, nem uma nem outra deixaram de ser ‘eurocêntricas” na
produção do conhecimento histórico.
71 Esta colonialidade, que permaneceu para além do pós-independência, impediu a
formação de uma nação plural, dado que o poder foi tomado em exclusivo por um
partido governamental marxista-leninista na altura e excludente, como escreve
Mabeko-Tali [2006: 191]: “Na medida em que o Estado-nação é aquilo que cada elite no
poder entende que deve ser e não uma referência comum adquirida, a identidade étnica
continua a ser o refúgio mais seguro em relação àquilo em que a cidadania cívica ainda
é, na prática, problemática.”
72 O mesmo autor [Mabeko-Tali 2006: 199] refere que o problema principal não é o da
existência de etnias diversificadas, mas o da construção de uma nação não diluente das
diferenças: “Na realidade, a questão fundamental não é a da existência de etnias, nem a
da sua afirmação identitária. A nação pode bem ser constituída sobre estas
multiplicidades culturais, desde que estas identidades particulares, culturais, se
encontrem numa entidade politica comum – a do Estado-nação como entidade
aglutinadora, mas não necessariamente diluente, e cuja construção (em todos os seus
aspectos: económicos, políticos, culturais) produz identidades políticas como estádio de
ultrapassagem das identidades particulares, etnoculturais – mas não provocando
forçosamente o seu desaparecimento.”
73 Podemos, pois, acordar que o discurso colonial se prolongou numa pós-independência
de colonialidade, que não reuniu as condições necessárias a uma boa prática política
pós-colonial, ou seja, na realidade não se deu uma descolonização verdadeira: o
discurso colonial “é um aparato que se apoia no reconhecimento e repúdio de
diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante é a
criação de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos em
termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/
desprazer… O objectivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução… uma forma de
governamentalidade que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina
suas várias esferas de actividade.” [Bhabha 1998: 111]
74 A guerra encontra, pois, uma explicação (não uma justificação) na conturbada pós-
independência, e é dessa guerra, da organização do Estado que se lhe seguiu e das
respectivas condições político-sociais geradas que o romance trata, pela acção de Noíto
e dos outros personagens.

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75 O Estado traduz-se, para as populações da ilha, na figura das autoridades, sempre


ironicamente tratadas, ridicularizadas, porque o poder é desfigurado: “By “banality of
power”, I am not simply referring to the way bureaucratic formalities or arbitrary
rules, implicit or explicit, have been multiplied, nor am I simply concerned with what
has become routine. To be sure, banality implies predictability precisely because it is
made up of repeated daily actions and gestures. Yet, by the “banality of power” I am
also evoking those elements of the obscene, vulgar, and the grotesque that Mikhail
Bakhtin claimed to have located in “non-official” cultures, but witch, in fact, are
intrinsic to all systems of domination and to the means by witch those systems are
confirmed or deconstructed.” [Mbembe 1992: 1-2]
76 O autor [Rui 1997: 387] apresenta-nos, por exemplo, o cabo do mar, pelas suas próprias
palavras: “Eu sou o Cabo do Mar, digna autoridade máxima nesta ilha e representante
de sua excelência o senhor capitão da capitania”, personagem que age numa
desadequação completa da sua missão, como se mujimbava (contava) que também teria
um passado de gatuno (e presente de corrupto), e a quem ninguém prestava muita
atenção.
77 Noíto, por exemplo, não sentia medo dele, como se depreende do pequeno diálogo entre
ambos, sucedido no primeiro encontro, quando o cabo do mar vai ter com ela [Rui 1997:
57]:
“A dona deve ser a mulher do carpinteiro que lhe trouxe o nosso Mateus, não é?”
“Não é o quê? Sabes quem eu sou? A vergonha acabou nesta terra? Chegas na minha
casa, nem bom dia nem nada e começas logo a falar pareces um cipaio do tempo do
colono, é?”
“Bom dia. Desculpa só. Eu sou o Cabo do Mar.”
78 Todas as autoridades são tratadas de modo semelhante, porque elas pertencem a uma
realidade ficcional, um Estado que não cumpre as funções de Estado. As situações estão
invertidas: os polícias marítimos têm medo de Noíto, as autoridades e representantes
da cultura igualmente têm receio dela, e mesmo os calcinhas (luandenses)
endinheirados, lhe têm um respeito atemorizado.
79 Por outro lado, a acção desenrola-se em cenários suburbanos, de economias paralelas,
como se constata pela admiração de Noíto diante dum grande mercado dos arredores
de Luanda [Rui 1997: 34-35], ‘meeting point’ e ‘melting pot’ transcultural:
“até chegarem no tal grande mercado onde se podia tanto comprar como obter as
notícias ou informações mais actualizadas. Bué de burburinho ali nos olhos dela,
perturbados em não conseguirem, de uma só vez, verificar, cocar e alcançar tudo,
porque era uma extensão de pessoas e coisas, umas sobre pequenas bancas de
madeira improvisadas, outras sobre pedaços de pano diverso, ou quindas, ou sacos
de ráfia, ou até mesmo no chão nú. “Olha só amigo!” “Pergunta compadre!” “Tem
esquebra!” “Fala só bem, pai.” E havia de tudo. Mandioca, milho, tomate, couve e
batata. Cebola, muita cebola que dava um caminho comprido só de mulheres que só
vendiam cebola. E bebidas era demais. Vinho, cerveja e muitas outras garrafas todas
enfeitadas e que ela nunca tinha visto. Também deparou com garrafões de capacete.
Há muito tempo se esquecera daquilo. Carne de vaca, de cabrito e de porco…”
80 Noíto repara na presença do género feminino nestas formas de economia paralela, uma
importante fatia da economia do país: “o contraste entre um discurso hegemónico
liberal e práticas económicas cada vez mais heterodoxas permite identificar, de forma
cada vez mais precisa, a presença do questionamento pós-colonial à economia. Esta
perspectiva apela explicitamente a uma história subalterna da economia moderna, à
análise dos problemas resultantes do cruzamento cultural e da natureza das economias

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solidárias (e das socializações que esta possibilita e promove), assumindo, numa


perspectiva de justiça cognitiva, o reforço de outras experiências e reflexões,
subalternizadas e marginalizadas porque impuras ou atrasadas.” [Meneses 2009: 233]
81 Ao mesmo tempo, inteligente e prática, capta os processos de negócio e vai aplicá-los a
si própria e não deixa de se espantar, ainda e mais uma vez, com a repressão das
autoridades “quando menos se augurava, aparecia a polícia e desancava nas mulheres,
banheiras a voar aí nas berridas-porrada apreendendo-lhes as coisas de mercar” [Rui
1997: 35].
82 De modo semelhante, a escola e a educação são retratadas com a crueza da realidade, ou
seja, o professor que falta sistematicamente às aulas e ao dever [Rui 1997: 57], que passa
“a vida a cobrar por isto e por aquilo, dinheiro que os alunos tinham de pedir nos pais”
[Rui 1997: 204], a escola que, como Noíto observara, ficava situada numa pequena
capela abandonada, e como equipamento, tinha “latas de leite vazias e enfileiradas e, no
lugar do altar um quadro negro, na base suportado por pedras que aguentavam a sua
verticalidade e um fedor intenso a urina e fezes” [Rui 1997: 221].
83 Não admira, portanto, o pensamento com que Zacaria, marido de Noíto, se espantava ao
deparar-se com o cabo do mar: “Jamais lhe passara pela cabeça que o estado também
andava ali” [Rui 1997: 59].

4.3. O rosto e vida da mulher angolana – Noíto


4.3.1. Guardiã das tradições

84 É a ‘chamada’ do interior para a ilha que Manuel Rui aproveita para dar voz e proceder
à enunciação narrativa da mulher angolana.
85 Esta mulher angolana, Noíto, é a portadora das tradições orais e das culturas africanas,
como ela própria ensina às raparigas jovens da ilha, de acordo com o atrás mencionado
por Boaventura Cardoso [Rui 1997: 111]:
“Vão, minhas filhas, sempre no caminho que os mais velhos nos ensinaram.
Caminho que vos dê sorte, para não sofrerem o que eu sofri. Gosto muito desta
nossa terra. Quando fizer a minha lavra, semear o milho e ele aguentar o vento e o
mau-olhado, vou assar maçarocas aqui, para vocês comerem. E ainda, se vocês
quiserem, vou-vos ensinar estórias e cantigas bem lindas que aprendi na minha mãe
que ela tinha aprendido na minha avó.”
86 Ela própria procede, igualmente, de acordo com o que diz: “na minha terra falam que
uma pessoa quando quer saber das outras terras, deve primeiro, andar com os miúdos”
e por isso vai ao encontro dos mais novos para sacar informações preciosas [Rui 1997:
186].
87 Prudente, avisa: “Uma pessoa que sabe, não deve mostrar, de uma vez, nos outros, tudo
aquilo que sabe. E os outros, quando descobrem, ficam a saber tudo que a gente sabe.
Perdemos a força.” [Rui 1997: 119]
88 As questões da existência duma vida que se constrói a cada dia são o reverso dum
essencialismo recusado, quando, a propósito, de peixes-voadores, Zacaria os elogia e
comenta, com os olhos postos na mulher “Mesmo de assombração com os voadores,
desarrepiando nesse novo costume de marítimo, fingindo à-vontade, habituado nos
tantos de sempremente andar de um lado para o outro, demandando um lugar de ser”

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[Rui 1997: 19]. Só o ficar num espaço sem discussão de vida, quiçá de medo e náusea da
morte.

4.3.2. Chefe da economia familiar

89 Para além de transmissora de tradições, Noíto encarna, igualmente, a segurança


doméstica, garantindo uma economia familiar que em tudo nela repousa e que é vivida
no dia a dia, sem acumulação: cultiva o terreno, limpa-a casa, cozinha, orienta a recolha
da água doce e a rega, realiza pequenos comércios e artesanatos, socializa com os
vizinhos, e, curiosa, aprende rapidamente como resolver-se nas makas da vida, pensa,
dá opinião, descansa, fuma, dança, convive, presta ensinamentos, fornece cuidados de
medicina tradicional, acredita e exerce feitiços e mantém, para além de tudo isso, um
forte sentimento religioso, estabelecido em bases sincréticas de um cristianismo
primitivo, misturado de vidências e feitiços, xinguilamentos e crenças na Kianda, a
sereia de Luanda. É, igualmente, uma feiticeira que comanda a chuva.
90 “A nossa escrita emerge tanto da linguagem do fantástico … como da linguagem do
maravilhoso. Esta decorre do pensamento bantu-africano inspirado no princípio do
Vitalismo, do Animismo, da Magia, do Totemismo, do Feiticismo. (…) Nas religiões
negro-africanas, que são essencialmente esotéricas, a magia e a religião aparecem
estreitamente interligadas, de tal forma que a magia se opera sempre em ambiente
religioso. No fundo, a magia é uma «religião pragmática», na medida em que é através
dela que o afro-bantu busca «apropriar-se do sagrado». Essa atitude religiosa resulta,
assim, da fusão de elementos aculturados que resultam, por seu turno, do contacto
entre culturas (a europeia e a africana). O sincretismo torna-se, assim, uma componente
fundamental das religiões africanas em geral.” [Cardoso 2008: 22-23]
91 Mas, para além de ser a chefe da economia familiar, o que também pode revestir
carácter maravilhoso, Noíto é ainda a mulher que ama fielmente e muito o marido, que
o admira e o defende, que se impõe e que o critica quando há motivo e que se lhe
oferece com o prazer de autenticidade por se sentir cortejada por um homem forte e
trabalhador, embora nem sempre de confiança.
92 Personagem imbuída de nobreza exemplar, imbatível se não convencida, torna-se
mulher-modelo da cultura e tradição africana-angolana e exprime e vivencia o conceito
alargado de “família” a todos os que lhe provocam sentimentos de confiança e/ou de
simpatia.
93 Relativamente à relação conjugal e sentimento religioso particular, Manuel Rui [1997:
41] diz:
“Uma mulher suporta o que Deus quiser – meditava Noíto – Tenho a barriga cheia.
Desde ontem que ando a comer mais do que a filha de um soba, antigamente. Triste
não estou. E aquela bebida (cachipembe) renasceu-me uma força de continuar junto
do meu marido para sempre, até que Deus nos separe. Quem sabe? Tudo pode correr
bem e acabarmos os nossos dias em paz. Como é que Deus deixou que alguém
inventasse a guerra?”
94 Admira o seu desempenho profissional [Rui 1997: 128]:
“O meu marido é trabalhador. Conserta tudo de carpintaria e faz mesmo novo. Nós
somos do mato, como falam aqui, mas também comemos. E gostamos muito de
trabalhar.”
95 Ou ainda, quando lhe diz:

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“Vamos fumar agora os dois e não vás trabalhar. Porque hoje somos só nós e é
bonito. Amanhã a gente não sabe.” [Rui 1997: 214]
96 Mas também tem o segredo dos remédios nativos, quando o marido quase morre numa
avalanche de areia que quase o soterrara e o havia deixado com o corpo cheio de dores,
quando tentava escavar uma cacimba [Rui 1997: 79]:
“Ainda o fogo não alastrara, aqueceu a extremidade do luíco sobre a chama
devassando o luar. Premiu o madeiro quente, com a força dos dois braços, sobre o
lado direito das costas do marido.
Zacaria gemeu. “É porque te está a fazer bem”. Repetiu a operação três vezes. A
seguir lembrou-se de um dos tijolos velhos que descobrira logo na chegada ali, meio
partido e musgado na solidão. Aqueceu-o também devagarinho. Juntou as mãos do
marido, esticadas e juntinhas às pernas, compressou nas costas do marido o tijolo já
quente, subiu e, com os dois pés, solavancou, Zacaria a gritar. E ela solavancou,
solavancou mais. O marido suava por todos os poros.”
97 Sabia, igualmente, que o muzonguê era remédio santo para a ressaca [Rui 1997: 107] e
outros muitos tratamentos locais.
98 Estamos, pois, diante da enunciação ficcional de manifestações de “outros”
conhecimentos, do “outro lado da linha abissal” e conduzidos por uma mulher – como
refere Boaventura de Sousa Santos, aqueles que assentam na invisibilidade do
conhecimento científico e não são, portanto, distintos como verdadeiros ou falsos.

4.3.3. Pensamento e filosofia de Noíto

99 Noíto, como temos vindo a descobrir, é possuidora de uma personalidade prática, mas
que encarna um pensamento filosófico que igualmente se pode extrair da obra, e
classificar como africano.
100 Do marido ela apreciava o facto de que era um homem simples, prático e que reservava
a cabeça só para “as voltas mais definidoras entre os dois percursos que eram só um, a
vida e a morte, olvidando os meios termos, os marcos de passar” [Rui 1997: 37]. Por
outro lado, considerava que a terra era tão pequena e tão curta como a vida, e dava
razão ao marido [Rui 1997: 75], “parece que o mar sem a água doce que anda nos rios,
que desce do céu, fica triste, mesmo triste. Afinal Zacaria deve ter razão quando pensa
que o princípio de tudo é mesmo os rios e não o mar” [Rui 1997: 274].
101 Como se vê, mar e rios e outros seres naturais são animados por vida própria e revelam
sentimentos.
102 Quanto à noção de tempo e da sua acção nas vicissitudes da história: “Eu só gosto
daquilo que é bom em qualquer tempo, mais nada. Aprendi muito e só não aprendi a
ler” [Rui 1997: 409] (uma referência mais a “outros” conhecimentos) e, de pés assentes
no chão, não se deixa cair em fantasias: “o mundo quando muda as coisas nem pergunta
mais nas pessoas que também andaram a ajudar na mudança” [Rui 1997: 301]; enfim,
prática, tem uma proposta (com algum humor) para a situação por ela vivenciada no
seu país em guerra “Quando a culpa não é só de uma pessoa mas de todas, então aí,
como a gente não quer dividir a culpa, ao menos, é melhor se dividir só na comida em
vez de ficar com a comida toda e dar a culpa aos outros” [Rui 1997: 522].
103 E eis que se aproxima o tema da morte, encarada por Noíto como o fim, indesejável, de
uma vida que apenas merece ser vivida quando realizada e permite a paz da
consciência. Quer um trabalho “para não ficar assim parada só à espera de morrer que
até dá mais trabalho morrer sem fazer nada, só à espera disso sem esquecer um dia só.

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Preciso esquecer que vou morrer. Uma pessoa quando não trabalha não esquece”, “A
vida é mesmo assim que a gente nem dá conta de conseguir morrer da maneira que a
gente quer por já não poder estar viva.” [Rui 1997: 200].
104 Vem a propósito referir Houtondji [2009: 123 e 125], para quem “a filosofia africana não
devia ser concebida como uma mundivisão implícita partilhada inconscientemente por
todos os africanos. [Numa nota, acrescenta:] É mais produtivo prestar atenção aos
modos e dispositivos concretos através dos quais o conhecimento é transmitido sem
recurso à escrita tal como ela é usada no Ocidente. Por esta razão, devem ser chamadas,
como sugeriu o linguista francês Maurice Houis (1971), civilisations de l’oralité –
civilizações da oralidade.”
105 A “lógica da oralidade” é diferente, no seu funcionamento, da “lógica da escrita” e tem
influência na transmissão do conhecimento produzido.
106 Noutra nota importante, Houtondji [2009: 125] refere: “A etno-filosofia baseava-se,
entre outros pressupostos, na ideia de que, nas sociedades de pequena escala ou
sociedades primitivas, como são chamadas, vigorava uma total unanimidade, com toda
a gente a concordar, por assim dizer, com toda a gente. Além disso, essa pretensa
unanimidade era vista como uma virtude, e o desacordo como algo mau ou perigoso. A
este duplo pressuposto dei o nome de ilusão unânime.”
107 A seguir, Hountondji chama a atenção para a enorme diversidade e pluralismo de
filosofias em África.

4.3.4. Religião. Deus e a Kianda. Sincretismo, feitiços e cristianismo

108 A religiosidade de Noíto revela-nos as características africanas, com algumas


especificidades angolanas, onde se manifestam, imbricadas e emprestadas umas às
outras, híbridas, diversas noções de crenças e práticas, de feitiços e cazumbis, retiradas
dum cristianismo misturado com o culto e a devoção à Kianda, enfim um sincretismo
natural e espontâneo, originado na história de convívio cultural da colonização
portuguesa de tradição católica com as culturas regionais bantu, como ficou explicitado
atrás.
109 Deus aparece-nos quase sempre de forma sincrética, mas de religiosidade intensa:
110 Para começar, Noíto apresenta uma noção clara de Deus: “Deus é muito mais daquilo
que a gente pensa mesmo quando está a rezar. É muito grande” [Rui 1997: 334]. Mas não
demora a que logo, logo, surja já uma religiosidade com outra roupagem. Zacaria, por
exemplo, no episódio referido da cacimba, sofrera um acidente num trabalho que fora
Noíto a solicitar: “Estás vivo mas eu te ia matando. Fui eu que te obriguei a te pagarem
na enxada e na pá. Enxada e pá para te matar. Desta vez são os espíritos maus que estão
comigo. Ou alguém que nos quer mal. Mas te salvaste. Não vamos pensar mais numa
cacimba que deve até estar enfeitiçada” [Rui 1997: 78] – e benzeu-se de católica. Depois,
ajudou o marido a levantar-se, trémulo, apoiando-se nela.
111 É que a noção de Deus é complicada ao entendimento de Noíto. Por isso, “Deus é muito
difícil ou tem kalundús nas coisas dele. Aka! Desculpa, meu Deus. Ainda bem que isto só
ficou um bocado na minha cabeça, já tirei e não falei na boca. Como é que Deus podia
ter kalundús? Só se fosse a Kianda que é mulher. Também não. O rabo dela é de peixe.
Tinham-me dito e eu vi naquela noite de cair o sapalalo. Vi e não disse a ninguém. A

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Kianda também não tem kalundús. Só por ter pensado isso vou-lhe pagar numa
promessa.” [Rui 1997: 390]
112 Como Deus é complicado, resolve rezar à Kianda [Rui 1997: 456]:
“Vou ir com estas tranças até no caminho onde começa a minha conversa com a
Kianda e os meus ouvidos para ficarem a perceber as coisas que faltaram não
conseguir ouvir de Deus.”
113 E, de regresso aos problemas de entendimento de Deus, Noíto sempre fiel ao marido
Zacaria mas simultaneamente apaixonada pelo pescador exemplar Mateus, desabafa
[Rui 1997: 462]:
“Se Zacaria sabe tudo do rio, Mateus sabe tudo do mar. Meu Deus! Meu Deus! Não
tem uma pessoa que saiba tudo de todos tudos? Só tu e a Kianda e por isso é que
falam que eu ando a quê? A amarrar. Isso. Quem pode amarrar no rio é Zacaria.
Quem pode amarrar no mar é Mateus. Deviam deixar uma mulher ter dois maridos.
Um do rio. Outro do mar. Para ela amarrar a chuva. Perdão, meu Deus. Isso era ficar
como tu. Uma mulher como Deus. Nada.”
114 Noíto possui, pois, uma visão sincrética da religião. Nesta, existe o lado africano e
tradicional, bem angolano, relativo ao culto à Kianda, a divindade que habita nas águas
da baía e que circundam Luanda, que protege a vida e os trabalhos dos pescadores e
lhes dá o sustento, e é, igualmente, senhora das águas, justiceira para os faltosos, e que
encontrou a sua origem na barra do Rio Kwanza [Rui 1997: 276]:
“Mateus falava de convicção e respeito naquela sereia. Sua metade, da cintura para
baixo, corpo de peixe e, para cima, outra metade, corpo de mulher. Que, desde
miúdo, ainda os da margem do rio grande, terra de seu pai, trepadores, caçadores
ou camponeses, reivindicavam a foz, no mais de rebentação, fim de rio começo de
mar, como o berço daquela sereia que, posteriormente, passara a instalar-se em
todas as profundezas das águas do azul sem fim, adoptando, também, como seu
território, as terras de Caculo, ali na ilha. E era aí, no Caculo, que a gente do mar
depositava suas oferendas à Kianda, em agradecimento pelos sucessos, para a boa
sorte na arte de fazer o peixe morrer e regressar a terra de remo fácil ou vela
zunida. E que ela não perdoava aos faltosos. Aos que … se esqueciam do
cumprimento. A barona dos mares afundava-lhes as canoas, mesmo sem calemba”.
115 Noíto tem mesmo a coragem de realizar um casamento sincrético [Rui 1997: 280]:
“Se a Kianda acompanha as viagens de mar do mano Mateus, parece que ela
acompanha também os meus passos na areia da vossa terra. Então é porque o
marido dela só pode ser Deus.” – E benzeu-se.”
116 E explica o narrador que esta história tinha tido um outro namoro, anterior [Rui 1997:
331]:
“a sereia rainha do mar e amantizada com ele no testemunho da estrela, do vento
das calembas que faziam pensar que o mar daquelas águas só tinha fim no seu
princípio.”
117 No que diz respeito aos feitiços, Rioseco traduz uma infinidade de referenciais a essas
práticas tão comuns em África: homens com direito de feitiço sobre as árvores, objectos
enterrados por feitiço e que não se devem desenterrar, o marido que é peçonhento
porque casado com uma feiticeira, árvores que tombam por efeito de feitiço, possuir
sangue da Kianda o que transforma a pessoa em feiticeira, falar com os mortos, etc.
118 Um dos mais importantes feitiços é o de amarrar a chuva, particularidade que a Kianda
possui em relação à sua zona de jurisdição.
119 A própria Noíto, a certa altura, passa a ser considerada uma feiticeira e amarradora da
chuva, e as pessoas começam a ter receio dela.

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4.3.5. Considerações sobre o Estado e a sociedade civil desregulada pela guerra

120 Como já ficou mencionado, o país, a administração e a sociedade civil coevos são vistos
por Noíto como enfermando de graves distorções, provocadas pelas consequências da
guerra ininterrupta que assolava Angola, pela corrupção generalizada do poder, a
censura do pensamento divergente e pela fraqueza da sociedade civil, perante tantas
dificuldades.
121 A situação crítica em que se encontravam as populações, radicava na forma como foi
apropriado o poder no pós- independência, pelas elites.
122 A corrupção dos militantes do MPLA e dos muitos que, em geral se deixaram cooptar
pelo poder, pelos inconfessáveis interesses pessoais e económicos, o gradual
crescimento das diferenciações sociais, uma autoridade muito centralizada mas ineficaz
e corrupta, no que respeita à aplicação da lei, as divergências entre etnias e culturas,
por vezes, subtilmente e com ironia fazem (falsamente!) reaparecer a memória do
colonialismo.
123 É o que podemos constatar:
A situação crítica das populações, sobretudo nos centros urbanos e em Luanda, a
capital é deplorável sob qualquer ponto de vista que se observe. Despertara muito a
atenção de Noíto a existência de um mercado nos arredores de Luanda e, ao mesmo
tempo, retém na memória uma descrição da cidade: “retivera sempre a imagem do
mercado, a quitandeira que lhes propusera um rumo fora da confusão da imensa
cidade onde as pessoas se perdiam de medo, solidão e fome” [Rui 1997: 186],
enquanto que, no que se refere ao comportamento dos oportunistas, encontramos
variadas passagens do texto, em que Noíto se depara com comportamentos
verdadeiramente estranhos, que nunca imaginara possíveis: bandidos,
açambarcadores, políticos corruptos, polícias violentos, etc. Relativamente aos
militantes do Partido, assiste a conversas onde se produzem queixas e reclamações:
”vocês os militantes são os que mais mal dizem desta merda. É doentio. Parece que
vivem da desgraça. E, bem vistas as coisas, isso deveriam abordar lá nas vossas
reuniões das células.” [Rui 1997: 97]
Quanto aos dias do início da independência, passados 22 anos, eis o que o narrador
coloca no pensamento de Noíto: “o abandono e morte lá na cidade, onde as pessoas
viviam fogachando tiros e se matando umas às outras só por causa da
independência e disparavam os que queriam ser independentes contra os que
também queriam ser independentes” [Rui 1997: 104], depois degeneradas em
comportamentos abusivos, violência e atropelos, nas cidades e nos campos onde a
apropriação dos bens dos colonos era feita por “bandidos que têm três casas, cinco
carros e viajam bué de avião. Por isso é que este dinheiro novo não vale nada” [Rui
1997: 403], e Noíto conclui: “Cães! Ganharam a independência e perderam a
vergonha.” [Rui 1997: 102]
A ideia que Noíto faz dos ricos é contundente e extensível aos políticos e aos que
cometem ilegalidades: “Porque os ricos, meu Deus, são maus e só eles é que falam.
Só eles é que sabem. Mas eu, em toda a minha vida falei aquilo que senti.” [Rui 1997:
270] Por isso, ela afirma: “Eu não gosto deste estado.” [Rui 1997:188]
124 E tinha razão na sua adversidade ao “pensamento único”: o pluralismo africano e
popular não se situa no unamismo…
125 É que Noíto possui um pensamento equilibrado, uma racionalidade e um tempo longo
que dá para ter um entendimento das coisas em latitude e profundidade: “os colonos
tinham tanta coisa boa e há gente que só aprendeu a maldade para juntar à maldade
que nós já temos dos nossos antigos, Deus que me perdoe que nós também tínhamos

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coisas boas, antigas” [Rui 1997: 210]; uma das coisas boas dos colonos, Noíto considera,
quando se recorda da guerra colonial, consistia na língua portuguesa: “Os camaradas
guerrilheiros vinham de todo o lado. Cada um na sua língua. E entendiam-se. Essa
língua dos tugas, que não é só deles, é nossa, uniu-nos muito. Afinal uma língua não é
de ninguém! A língua é de quem a aprendeu” [Rui 1997: 112] e chega a fazer um elogio
ao fado: “músicas … português do antigamente, bem bonitas, tinha a fala de um
kissange com voz de mulher, triste. Isso, mesmo. No Lubango ouvi um português tocar.
Como eu me lembro!” [Rui 1997: 113]
126 Trata-se do hibridismo transcultural, pela música.

5. Conclusão
127 Noíto é uma personagem retirada ao silêncio das margens.
128 É pela voz dessa mulher que se processa a enunciação e a descrição das margens de
Angola, do planalto sulano, onde ela nasceu e viveu, onde experimentou a paz da
infância e as guerras sucessivas, primeiro a de libertação e, depois, as duas guerras
civis.
129 Era uma terra de paz, o Huambo e rica de toda a natureza, agora feita violência. É aí que
perde o primeiro marido, militar valoroso, na luta anticolonial e é a guerra que lhe
desmembra a estabilidade e a proximidade da família (a filha Belita e os três netos) e é
obrigada a partir, obrigando-a à procura da sobrevivência aqui e ali, por todo o
território da guerra.
130 Como mulher simples e de trabalho, inteligente e arguta, casa com Zacaria, o
carpinteiro e os dois emigram através duma Angola devastada, para a ilha do Mussulo,
junto a Luanda, onde se adaptam a novos costumes, culturas e trabalhos.
131 Nessa viagem, Noíto passa diante de nós, em enunciação e regime de oratura e marca de
português angolanizado, qual câmara de filmar os quadros de uma Angola ferozmente
destruída no corpo e na alma, onde o tecido social rompido pela desarticulação dum
Estado em guerra civil de violência extremada e de oportunismo desenfreado do ‘salve-
se quem puder’, contrasta, em absoluto, com tudo o que sempre ensinara a cultura e as
tradições ancestrais.
132 Ela, Noíto, é a portadora sagrada dessas tradições, das concepções de um tempo e lugar
aconchegados e africanos, duma natureza generosa onde várias ecologias se
desenvolvem: a dos saberes (cultivo agrícola, culinária, medicina, pesca, comércio
informal, …) ecologia de um pensamento directo, justo e prático, apoiado numa ética
definida e simples, na frontalidade e coragem das atitudes, e numa religiosidade
sincrética, viva e vidente, alegre e actuante, com a naturalidade dos contactos habituais
com espíritos, cazumbis e feitiços, que povoam cada dia a sua mentalidade e cultura
africanas, e que não dispensam a reprimenda dos faltosos.
133 Com uma personalidade equilibrada e justa, fundada nas tradições, não faz concessões
que não sejam justificadas e é a transportadora de culturas, a tradutora por excelência
entre as culturas agrícolas do Sul e as piscícolas da costa marítima, entre o passado e o
moderno, entre o local e o universal, conservando sempre o rio subterrâneo da
tradição, fonte da sabedoria africana.

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134 Com Noíto, dá-se em todo este romance uma rotura com a epistemologia eurocêntrica,
abrindo os espaços sem fim das ecologias de outros saberes e dos universos plurais
(pluriversais como lhes chama Boaventura de Sousa Santos) africanos de Angola.
135 Mulher plenamente africana e angolana, Noíto é um exercício de cidadania superior na
realidade dramática de Angola, no seu tempo e a partir das margens. Ela, mulher do sul
do sul do sul (de Angola, do interior e do género) é uma imagem que projeta o sentido
político de Angola, que fala de diversos lugares e ocupa outros tantos.
136 Por isso, Manuel Rui, ao longo do percurso de escritor, questionando constantemente o
presente, corrobora o pensamento de Ana Paula Tavares [2008: 42] e pratica, com a
máxima firmeza, a “coragem da Literatura em adiantar-se à História”.

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NOTAS
1. Mário de Andrade (1975) Antologia Temática da Poesia Africana, vol. I: «Na Noite Grávida de
Punhais», Lisboa: Sá da Costa.
2. As três guerras são: 1961-1974: 1ª guerra: de libertação (envolve três movimentos: MPLA, FNLA
e UNITA, contra o exército colonial português); 1975-1991: 2ª guerra: (envolve os três movimentos
entre si: MPLA, FNLA e UNITA e termina com os acordos de Bicesse entre MPLA e UNITA, sendo
que desapareceu a FNLA); 1992-2002: 3ª guerra (termina com o Memorando do Luena, em 4 de
Abril de 2002).

RESUMOS
Noíto é mulher do sul e das margens. Para fugir à guerra civil de Angola, traz para a ilha do
Mussulo, com a sua oratura e vida, a cultura, as tradições e a ecologia de muitos outros saberes. E
também a sua identidade vincada de mulher africana e angolana. Uma obra da pós-colonialidade,
na enunciação de lugares e tempos de África, que retrata sociologicamente os primeiros 22 anos
de independência do país. E que não deixa de ser, ainda, actual.

Noito is a woman from the south of the margins. To flee from the civil war in Angola, she brings
to the island of Mussulo, with her orality and life, culture, traditions and the ecology of many
other knowledges. It is also about her identity as an African and Angolan woman. A work of post-
coloniality, enunciation of spaces and times of Africa which gives a sociological account of the
first 22 years of independence of Angola. It remains a contemporary work of literature.

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ÍNDICE
Palavras-chave: pós-colonialismo, colonialidade, lugar e tempo de inscrição, oratura, ecologia
de saberes, justiça cognitiva
Keywords: post-colonialism, coloniality, enuncation of spaces and times, orality, ecology of
knowledges, cognitive justice

AUTOR
LUÍS MASCARENHAS GAIVÃO
Historiador, professor e escritor. Mestre em Lusofonia e Relações Internacionais pela
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa, Portugal), Licenciado em Filosofia
e Humanidades pela Universidade Católica (Braga, Portugal). Antigo Adido Cultural de Portugal
em Luanda, Luxemburgo e Bruxelas, antigo formador do Alto Comissariado para a Imigração e
Diálogo Intercultural, antigo assessor do Ministério da Educação. Áreas de investigação:
africanologia, literaturas e culturas africanas, interculturalidade e lusofonia. É autor de: Um
Adido Cultural no Luxemburgo. Episódios de uma diplomacia de prosápia (Lisboa 2011), Coisas e
Sabores de Língua Portuguesa (online 2008) e Estórias de Angola (Lisboa 2006). [e-mail:
lgaivao@sapo.pt]

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Notas sobre o mundo social do livro:


a construção do editor e da edição
Notes on the social world of the book: the construction of the publisher and
publishing

Nuno Medeiros

NOTA DO EDITOR
Recebido a: 24/Fevereiro/2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 2 e 30/Abril/2012
Aceite para publicação: 6/Maio/2012

Figuras do editor
1 Em documento formativo, a UNESCO [1990] acomete ao editor de livros três funções: a
de decidir o que é e não é publicado, a de correr os riscos inerentes às indeterminações
financeiras das suas decisões, a de coordenador, ou maestro, das funções do autor, dos
compositores e do impressor, intervindo ainda directamente na promoção e até na
distribuição. Noutros fóruns ainda, o editor é o destino da convergência de múltiplos
epítetos: homem de negócios, gramático, intelectual, agente publicitário, tutor do
conhecimento e da criação. Não passível de redução dimensional, semelhante ofício
corresponde ao encargo com um empreendimento cujos objectivos e bases, nas
palavras de Stephen Graubard [1963: 3], desafiam qualquer definição imediata. Com
efeito, este actor do universo tipográfico concita na sua apreciação os mais variados
registos, do lírico ao obstétrico. Se pode prefigurar o “operário encantado” que uniu
“definitivamente a sua vida ao nobre e fascinante mundo do papel impresso, com as
suas inerentes seduções e imaginários incontornáveis” [Associação 2000: 7], é também
descrito provocatoriamente como “um conselheiro pré-natal, um juiz da vida ou morte

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de recém-nascidos (até um indutor de abortos), um higienista, um pedagogo, um


alfaiate, um guia” [Escarpit 1958: 59].
2 Apesar das diferenças do quadro discursivo que lhe dá origem (do científico ao
profissional), a profusão de adjectivos, atribuídos ocasionalmente a editores específicos
como antonomásia, sugere uma leitura processual: desde a sua autonomia no dealbar
do século XIX face a outros actores do mundo do livro, o editor dilatou e complexificou
a sua paleta de atribuições, diversificando um perfil cuja tipificação se tornou menos
óbvia. De detentor de conhecimentos técnicos a gestor industrial, de “homem-
orquestra” a “prospector” de talentos [Bassy 1991], de produtor comercial de um bem
cultural a hierarca do intelecto. Progressivamente afastado do arquétipo diletante, o
ofício vai-se organizar profissionalmente e separar atribuições tradicionalmente
aglutinadas num único agente, abrindo portas à consolidação da ideia de casa de edição
e autorizando o declínio da individualidade como referência da actividade. O
movimento de mudança no sector e nos modos como muitos dos seus membros se
tendem a representar continua actualmente a fazer-se sentir. E, contudo, parecem
persistir traços, muitos deles de natureza axiomática, com maior ou menor poder de
determinação das práticas, mas funcionando como eixo de aproximação [Schuwer 1998
e 2002, Medeiros 2009b].
3 A tentativa de empreender uma interpretação social do complexo mundo do livro com
base na sua dimensão especificamente editorial suscita um dos atributos com maior
peso na circunscrição da morfologia profissional, a saber: a dificuldade na delimitação
dos termos “editor” e da correlativa esfera de actividade, a “edição”. O editor edita,
publica, imprime, vende? Problemática interessante porque profícua na exploração que
permite, o novelo polissémico formado pela noção de editor é melhor entendido a
partir do aprofundamento da indagação em torno dessa noção e de outras nela
imbricadas, como a de publicação. Os lexemas editar e publicar, distintos na sua raiz,
foram paulatinamente sofrendo uma amálgama até à actual forma compósita com que
frequentemente são designados. Editar, com proveniência latina em edere, significa
literalmente trazer ao mundo, dar à luz. O étimo parece, portanto, autorizar visões mais
exegéticas traduzidas no registo obstétrico acima referido. Publicar, do termo latino
publicare, remete para a exposição pública e para a ideia da disponibilização aos outros.
A edição adquire sentido na consecução da obra. A publicação concretiza-se na
possibilidade de a tornar acessível ao leitor.
4 A literalidade da raiz latina publicare deixou de significar apenas tornar público.
Incutido no termo estão os vários passos de disponibilizar um texto ao público,
tornando possível o seu conhecimento e reconhecimento sociais, precisamente, e
permitindo que esse público possa abraçar ou rejeitar o texto transformado. Publicar
não pode desligar-se de transformar [Medeiros 2006]. A publicação é já uma
modificação, uma sugestão, a proposta de uma hermenêutica através da promoção de
um ponto de vista leitural. À medida que a tecnologia aumenta a sua influência na
edição, a definição do que é editar torna-se crescentemente difusa. Sob muitos pontos
de vista, tornar público, hoje, é criar um blogue, um sítio na internet ou fotocopiar um
conjunto de palavras apostas numa folha de papel e distribuí-lo.
5 Aglutinados no léxico das línguas novilatinas como o português, o espanhol, o francês
ou o italiano, em que se fundem na amplitude do vocábulo editor, as funções variadas
imbuídas no papel editorial deixam de radicar indistintamente numa mesma figura
quando inscritas na concepção anglo-saxónica. O vocabulário anglo-saxónico reconhece

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a diferenciação de actividade, atribuindo ao publisher o desígnio daquele que produz


materialmente o livro, coordenando as suas fases de elaboração, designando o editor
como aquele a quem compete o estabelecimento da fisionomia e jaez do texto 1. Se os
meios de produção editoriais são pertença do publisher, ao editor cabe mais o encargo de
caçador-recolector do que a propriedade, estabelecendo frequentemente com o
primeiro uma relação de assalariamento. O trabalho de editing é uma das
especializações do cometimento de edição e não tanto, na sua formulação abstracta,
uma metonímia do publisher, de quem se separou no decurso da divisão do trabalho
editorial e a quem presta serviços literários como os prestados pelo director literário ou
de colecção europeu continental. O editor será, nesta acepção, um interveniente activo
na descoberta e triagem de textos passíveis de publicação, imiscuindo-se activamente
no texto seleccionado ou encomendado, propondo alterações de estilo, conteúdo ou
forma. A comparação caricatural com Janus, o deus de dupla face, não é desajustada: o
editor é o rosto do autor junto da editorial e representa a editorial nas interacções com
o autor [Williams 1993]2. Esta imagem adquire contornos de maior nitidez se pensada a
partir da heroicidade adscrita a personagens que moldaram a memória colectiva da
indústria, como Maxwell Perkins3, Pascal Covici ou Saxe Commins, figuras inevitáveis
no universo editorial do modelo norte-americano [Gross 1993, Aronson 1993, Curtis
1993] que cederam lugar a um editing anónimo e escassamente romântico. Em todo o
caso, mesmo o distintivo de editor pode ser menos esclarecedor que indutor de entropia.
Nomenclatura ambígua, a sua congruência é instável na denominação de tarefas e
estatuto, conhecendo ampla variação conforme os sectores de especialização e as
editoriais [Luey 1995].
6 Quanto ao universo (e à tradição) da Europa continental ou da América Latina (ou ainda
os países africanos de línguas novilatinas) a diluição de fronteiras entre editor-
empresário e coordenador editorial4 é, eventualmente, mitigada pela diferenciação
formal e funcional que se estabelece entre o editor e o director de colecção ou director
literário de uma casa editora. A destrinça é, nestes termos, possível. O primeiro
procura, não raro, a reunião de textos num espaço coerente que os valorize enquanto
tal, marcando um determinado território de escolhas e tornando esses textos num
objecto de desejo. O segundo tende a pensar essencialmente numa parte da editora ou
seja, nas colecções que tem a cargo, centrando as suas preocupações, localizadas, nos
autores que dá a publicar e no arranjo da sua conformidade à natureza da ou das séries
que coordena. A separação dos dois actores não é, todavia, absoluta, sobrevindo com
relativa facilidade a mescla de lógicas e a mútua usurpação de espaços; quer quando
ambos aspiram, por exemplo, à implicação de um autor, cuja gradação pode ir da
adesão transitória e casuística ao contrato de exclusividade, passando pela manutenção
da relação com uma editora por via de relações baseadas na afectividade ou através da
partilha electiva de um perfil editorial específico, quer quando uma pessoa concentra as
atribuições de director literário e editor acumuladas com a condição de gerente ou
proprietário.
7 Actor de corpo inteiro no livro, o editor percorre o mosaico de interstícios funcionais e
simbólicos que modelam a casa onde actua e a posição que ocupa no sector perante os
vários co-protagonistas, do leitor ao professor, do impressor ao bibliotecário, do
distribuidor ao livreiro. Pensado e pensando-se como instância de autorização das
obras, os seus cometimentos substanciam-se numa afectividade professada com o plano
da cultura. A enfatuação com os livros e a leitura e com as pessoas que os lêem e
escrevem oferece-se como traço imbuído de um pendor quase metafísico, característico

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do registo vocacional em que o trabalho editorial ainda se exprime nas práticas


discursivas de muitos editores [Medeiros 2009b].
8 Dimensão analítica fundamental, é a vocação que preside ao gesto e ao modo na edição,
conspícuos em requisitos naturalizados pelo editor no exercício da sua actividade. Um
dos requisitos de maior preeminência é o da infalibilidade de julgamento. A ideia
(transposta em doutrina, elevando por vezes a níveis de presciência auto-atribuídas
qualidades vocacionais, quase sobrenaturais5, dos editores quanto às características de
apreciação e de leitura dos momentos e das disposições do consumo do livro) esboroa-
se quando contraposta aos percursos de ascensão, queda e desaparecimento de
editoras, trajecto comum no sector. Do mesmo modo, a decisão editorial não parece ser
inteiramente passível de enquadramento econométrico ou modelar (perante a
incerteza, os editores tendem a dividir as suas opções entre a decisão reactiva e a fuga
para a frente, sendo possível que a primeira derive para a segunda), já que se
materializa num plano de circunstancialismos raramente invariantes, mesmo quando
corresponde à acção do mesmo editor, na mesma editora, no mesmo mercado, com o
mesmo autor, em momentos diversos. Numa parcela ainda relevante da indústria
editorial a tomada de decisões não é normalmente regulada por rotinas burocratizadas
nem estruturada numa sistematicidade de tarefas para as quais haja uma expectativa
pré-definida como replicável. Irredutivelmente individual e não padronizada nos
termos em que se concretiza, a matriz decisional na edição é “altamente
idiossincrática” [Coser 1975: 15]. Esta singularidade leva editores como Donald Lamm
[1997] a recusar que o papel de mediação na edição possa ser pensado com base em
critérios teológicos ou estatísticos, premissas preteridas em detrimento da concepção
de que o carácter atribuível a cada editora se coteja em decisões que reflectem a
intuição, a experiência e o gosto pessoal, sendo nesses termos, terrenos e falíveis, que
se joga o papel de mediador. Enredado no emaranhado paradoxal da actividade
editorial, indústria no plano técnico de reprodução em dimensões de escala diversas e
artesanato pré-fordista no plano do carácter próprio (e quase sempre irrepetível) de
cada livro6, o editor traça a sua identidade através da expressão que a inseparabilidade
destas duas componentes (indústria e artesanato) obtém nas decisões que vai tomando.
Arquitecta, desta forma, o perfil da editorial que dirige e molda o mercado que está, de
vários pontos de vista, sob a sua égide.
9 Publicar um livro é, então, transferi-lo para um território de fabricação do estilo e
reputação do catálogo onde se aloja, mas simultaneamente projectá-lo na construção da
realidade, através da ordem particular que forja em planos como o cultural. Num
contexto de transversalidades que operam a ligação entre esferas e sub-esferas sociais
autónomas, o mundo da edição participa na edificação da heterogeneização hierárquica
das estruturas sociais a que pertence, ao propor um pensamento caucionado, uma
cultura legítima – a par de (ou em alternativa a) outras esferas de definição e
legitimação cultural. O contributo para a concretização e manutenção desta cultura
legítima processa-se e reproduz-se através do conjunto de iniciados e instituições
especializadas com atribuição reconhecida de autoridade para propor – muitas vezes
impor – os esquemas estéticos e os quadros de categorização que funcionam como
padrão classificativo, legíveis no que é publicado, logo autorizado. Os editores e as casas
de edição conjuram neste espaço como construtores activos do panteão cultural.
10 É verdade que a edição e os editores integram um espaço fragmentário, recortado por
áreas difusas ou híbridas, por vezes incoerentes e até antitéticas. Emergem

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permanentemente sectores e agentes na edição que se afirmam com base numa acção
apologética do serviço às franjas tidas como dominadas ou desqualificadas, sob o
patrocínio da edição “popular”, de “divulgação” ou “para todos”. Ao arrepio dos
fundamentos e intenções subjacentes à actividade destes sectores, inexoravelmente
puxada para o interior de um jogo de espelhos cujo ponto de reflexão se faz a partir da
referência letrada e dotada da panóplia de signos e recursos de codificação tornados
norma pelas culturas dominantes, editar começa ou acaba na representação virtual do
acto distintivo de ler como destino, ainda que se materialize intencionalmente como
ultrapassagem, complementação, subversão ou corrupção da edição tomada como
expoente de produção e circulação dos cultos para os cultos segundo modalidades mais
ou menos diversas de erudição. Isto é, se se edita para a decifração como acto leitural,
mesmo se com objectivos de massificação ou de promoção de publicações ligeiras e
expurgadas de inscrição mais intelectualizante, edita-se para uma fruição livresca,
impressão carregada de sentido distintivo e indissociável das ideias de
desenvolvimento, progresso e civilização. Semelhante asserção é passível de
confirmação na defesa comum de que a prática de leitura de livros é, por definição, boa
e deve ser promovida [Medeiros 2010a].
11 A edição de um livro corresponde, portanto, a bem mais do que ao mero exercício de
torná-lo disponível. O processo de o integrar no universo material, ou de o refundir, ou
de compulsar as suas partes constituintes, perspectivado pelos próprios editores como
uma operação de atribuição de mais-valia ao trabalho do autor, é um processo de
prescrição, de concessão de sentido [Chartier 1997, Medeiros 2006 e 2009a]. No quadro
da edição académica e científica, por exemplo, com a publicação está em jogo muito
mais do que a selecção de informação que o editor pretende tornar pública; é da própria
validação do trabalho editado que se trata. É pelo próprio acto de publicar que o editor
lhe exponencia o valor como resultado da diligência intelectual. Através da legitimação
editorial – figura complementar, ocasionalmente conflitual ou supletiva, da
legitimidade oriunda noutras fontes – o autor de obra científica passa a prova de um
dos filtros do reconhecimento, acumulando prestígio que lhe pode franquear a porta da
respeitabilidade entre pares e dilatando os capitais de que pode dispor autonomamente
[Horowitz 1986]. Tanto quanto a aquisição de competências de julgamento e escolha
obedecendo a lógicas específicas, é a relação com o autor, com quem partilha o retorno
do investimento, que retira ao editor a característica de simples instrumento de
transmissão de ideias e informação. Incorporando tais traços, o editor vê-se resgatado
historicamente da fusão com o impressor e o livreiro, figuras que deixam de ser a sua a
partir do século XIX.

A edição como construção


12 A separação funcional, social e semântica entre editor e livreiro, ocorrida a partir de
meados do segundo quartel de oitocentos [Martin, 1988, Chartier & Martin 1990, Allen
1991, Infelise 1997, Mollier 1984, 1999a, 1999b, Finkelstein & McCleery 2005] 7,
classificando o primeiro como especialista estrategicamente posicionado na
coordenação das relações entre todos os que elaboram materialmente o livro, os que
produzem os textos e os que lêem o produto final [Altbach 1995, Coser et al. 1982, Lane
1980, Greco 1997]8, associada à massificação (necessariamente mediada) do objecto
impresso e à necessidade normativa e de fiabilidade suscitadas pela industrialização

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livreira, conduzem à disjunção definitiva entre o livro, objecto editorial de produção, e


o texto, acto laboral de autoria. No livro, instância maior da promulgação pública e
autorizada das ideias que, pela via da publicação, ganham foros de existência
insofismável, projecta-se a relação inextricável entre saberes e estéticas produzidos e o
contexto que possibilita a sua emergência e circulação no espaço social mais vasto.
13 Concebido, desta forma, um dos objectos definidores da edição como processo social de
configuração intelectual das ideias, dá-se corpo à superação paradigmática de uma
espécie de princípio de imaculada concepção, exterior às circunstâncias e assintomático
na difusão, iniciada pelo movimento crítico da história das ideias e do conhecimento
[Mannheim 1955, Scheler 1980, Znaniecki 1940]. Autores como os referidos e outros
combateram desde bem cedo no século XX e em diversos terrenos o que Pierre
Bourdieu veio a rotular de visão interna da obra como texto, na qual “as obras culturais
são concebidas como significações intemporais e formas puras solicitando uma leitura
puramente interna e a-histórica, que exclui toda a referência, tida por ‘redutora’ e
‘grosseira’, a determinações históricas ou funções sociais” [1997: 38]. Ao propor o que
nomeia uma “ciência das obras”, Bourdieu [1991] sustenta a ideia de um espaço dos
possíveis como elemento axial do entendimento do campo da produção cultural e
literária que transcende os agentes singulares e os situa num sistema comum de
coordenadas de referenciação. Ao defender a proposição de criadores textuais com um
grau de autonomia relativa, o autor contesta a doxa institucionalizada tradicionalmente
em domínios como o da universidade, “fundada na absolutização do texto, de uma
literatura ‘pura’” [Bourdieu 1997: 38]. O espaço de construção do conhecimento e da
imaginação é o mesmo do da sua recepção e sucessiva transformação, nele intervindo
uma plêiade de actores e circunstâncias. Combate-se, portanto, o que William Wimsatt e
Monroe Beardsley [1954: 3-18] intitulam falácia intencional, concepção que faz radicar
no autor o sustentáculo totalizante dos significados a extrair de um texto.
14 É, pois, na processualidade cooperativa que se gera o livro, “produto de uma imensa
actividade de alquimia simbólica em que colaboram, com a mesma convicção e ganhos
extremamente desiguais, o conjunto dos agentes cometidos com o campo de produção”
[Bourdieu 1996: 201]. Vem a propósito a contribuição de Howard Becker [1984], na sua
teorização dos mundos da arte. Para este autor [1984: 35], as obras de arte, corolário
material e imaterial do que designa de mundo da arte, essa rede social de laços de
cooperação estabelecida entre os participantes nesse mundo, “não são produtos de
produtores individuais, ‘artistas’ que possuem um dom raro e especial. São, antes,
produtos conjuntos de todas as pessoas que colaboram por via das convenções
características” de um determinado contexto artístico (segundo Becker, um dos vários
mundos da arte) em que as obras ganham forma. O mundo que possibilita a obra de arte
subsiste, então, na actividade dos agentes, não como estrutura ou organização. As
condições sociais que o tornam exequível encontram-se na acção individual
colectivamente consistente.
15 O mundo da edição é um dos mundos da arte, no seu sentido mais analítico,
extravasando-o e nele radicando como universo reticular de colaborações em que a
actividade extra-individual se organiza através do seu conhecimento e participação
conjuntos nos meios convencionados de operação e de concepção produtiva de coisas,
objectos, bens. É a este reduto reticular que se assacam os produtos e realizações pelos
quais o mundo da edição se distingue como sistema social particular. O escritor, em
analogia criativa com o artista, “labora no centro de uma rede de pessoas colaborantes,

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cujo trabalho é essencial ao resultado final” [Becker 1984: 25]. O seu envolvimento,
dependente nos laços de cooperação estabelecidos no ordenamento social coordenado
do livro, determina o tipo de produto textual que o autor pode realizar e o tipo de
publicação a que pode aspirar. A noção que é possível articular da literatura enquanto
género mais enfatizado do livro, decorre do reconhecimento desta interacção sistémica
cooperativa. Por exemplo, ao tratar do romance da época vitoriana em Inglaterra como
género, John Sutherland [1976: 6] assevera que muitas das grandes peças da prosa desse
“período, que aparentam ser o produto solitário do génio criativo, eram … resultado de
colaboração, compromisso ou comissão”. A colaboração entre agentes não é
confundível com convergência de interesses ou harmonia de posições. Contrapondo-se
ao discurso da parceria pacífica, a relação entre autores e editores corresponde em
grande número de casos ao que William Graham Sumner qualificou por “cooperação
antagonística” [2002].
16 Posteriormente à aliança entre autores e editores e da ajuda mútua que se prestaram
(com os autores libertos da subordinação mecenática e os editores posicionados no eixo
da produção de um bem cultural crucial, o livro), foi-se desenvolvendo uma
demarcação de objectivos e uma certa tribulação entre os dois grupos [Coser 1970,
Santos 1988], tensão que nunca terá deixado propriamente de existir, mau grado os
exemplos de sucesso relacional. Multifacetada e rica em subtileza, a interacção entre
editores e autores é essencial para o nascimento do livro. “Imaginado (e imaginando-se)
como sendo um demiurgo, o escritor cria, no entanto, na dependência. Dependência em
relação às regras (do patronato, do mecenato, do mercado), que definem a sua
condição. Dependência, ainda mais importante, em relação às determinações
desconhecidas que fazem parte da obra e que fazem com que ela seja concebível,
comunicável, decifrável” [Chartier 1997: 9]. O livro conhece, portanto, ancoragem
processual nas instituições e articulações do mundo social [Radway 1984]. O espaço
social que produz a obra, nas múltiplas apropriações que sobre ela se operam, obedece,
segundo Roger Chartier, a um ordenamento. Esta ordem do livro é estabelecida na
multiplicidade de relações e operações que preceituam o universo do escrito [Curto
2007], mas também na disposição de intencionalidades que o texto vai procurando
impor ao leitor nos sucessivos quadros em que se inscreva socialmente a leitura. A
ordem do livro designa ainda as modalidades através das quais a materialidade do
objecto impresso interfere na apropriação dos discursos [Chartier 1995, 1996, 1997,
1998, 2001].
17 Consiste esta concepção do objecto impresso e, particularmente, do livro numa
superação da sua produção intelectual enquanto factor unidimensional de construção
do fenómeno do seu engendramento. Opera-se uma demarcação clara das visões
clássicas, estritamente ligadas a uma concepção vincadamente formalista do literário e
longamente hegemónicas, quer no domínio da literatura em si, quer no dos estudos
literários como campo de conhecimento. Se as suas proposições transformavam, por
um lado, a leitura num processo mentalmente indolente, negando ao leitor
competências imaginativas e transgressivas, por outro, alternavam entre a
ambiguidade (reconhecia-se a sua intervenção mas como acto de corrupção) e a recusa
quanto à intervenção de outros actores sociais ligados ao livro com um papel activo na
informação ou conformação das leituras de uma obra ou de um autor. Deve salientar-se,
porém, que anular a ideia de prática de produção textual colaborativa, reduzir a
complexidade do livro impresso e sustentar um estatuto ontológico para o texto,
assimilando-o a um monumento, correspondem a uma perspectiva dos estudos

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literários há longo tempo contestada no interior do próprio campo disciplinar [Ribeiro


& Ramalho 1998-1999, Coelho 1980]. O caminho para a distinção nuclear entre texto e
impresso fica, então, aberto. Redefinindo o seu objecto como “objecto de fronteira”,
fluido e instável, e deslocando a “ênfase da busca hermenêutica do sentido para a
investigação das condições de produção do sentido” [Ribeiro & Ramalho 1998-1999: 75],
os estudos literários passam também a considerar uma separação entre o manuseio da
escrita e o fabrico do livro, ambos dotados de atributos criadores. Daí a asserção
provocatória do bibliógrafo norte-americano R. E. Stoddard [apud Chartier 1988: 126]:
“Façam o que fizerem, os autores não escrevem livros. Os livros não são de modo
nenhum escritos. São manufacturados por escribas e outros artesãos, por mecânicos e
outros engenheiros, e por impressoras e outras máquinas”.
18 A noção de oficina parece ser aqui de aplicação profícua. A oficina como metáfora da
construção do livro a partir do texto remete para as preocupações editoriais,
inseparáveis da adequação do manuscrito ao seu posicionamento virtual num mercado
(das ideias como do dinheiro). O livro como produto oficinal resulta da intervenção
editorial activa, transfiguradora, traduzida pela busca por uma consonância entre a
disposição de leitores e leituras e a intenção idealmente primordial do autor. A decisão
de publicar joga-se no precário equilíbrio de conformar a pretensão autónoma do autor,
o projecto conceptual do editor e a resposta de consumo do leitor (tantas vezes também
comprador) final. É nos interstícios deste processo e do espaço social que o cria que se
constrói e reconstrói o sentido. Reconhece-se a existência de múltiplas formas de
autoridade na materialização do livro, refutando-se a tradição mitificadora do
“príncipe da poesia ou do mago das letras” [Mollier 2000: 268]. Substanciando, na maior
parte das vezes, o acto da escrita como ocupação solitária mas não em isolamento, as
obras saídas do prelo denotam uma produção colaborativa entre autores e editores, ela
mesma uma parcela relevante do processo criativo [Neavill 1975].
19 Deste modo, é a realidade do livro, não do texto, que é construída por agentes como o
editor. O livro como fórum onde se encontram e sintetizam diligências de um mundo
para lá do autor, condensa fisicamente o processo de restituição das ideias autorais em
materialidade. O editor, peça central da divisão social do trabalho da esfera tipográfica,
coordena os procedimentos que permitem a criação de uma entidade nova, o livro, não
confundível com a que proveio do autor, produzindo um meio relativamente ao qual os
outros, os leitores, podem responder. “Um livro pode ser recenseado, premiado, citado,
etc.” [Horowitz 1986: 35]. A multiplicidade de modos com que um livro é comprado,
glosado, percebido, consumido, é afectada nas suas subtilezas pelas decisões e
operações editoriais de transladação da obra em livro. O próprio tipo de público que se
espera vir a tocar não corresponde muitas vezes à audiência desejada ou pensada
inicialmente pelo autor ou por um editor anterior de determinado título. A maneira
como se comodifica e mercantiliza um livro pode transmutar-lhe a índole,
reclassificando-o no espectro taxonómico com que é encarado. Assim se percebe que
Giacomo Leopardi tenha plasmado de forma impressiva em carta ao seu editor, Antonio
Fortunato Stella, o seu desacordo com a pretensão deste relativamente à sua obra
Operette Morali, confessando-lhe a inquietação quanto à inclusão do volume, “de
argumento profundo e de carácter filosófico e metafísico”, na “Biblioteca Amena”, uma
“biblioteca para senhoras” [apud Cadioli 2001: 46], cuja ligeireza, por méritos que
tivesse, seria inaplicável ao seu livro.

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20 O caso do best-seller de Richard Adams, Watership Down, de meados da década de setenta


do século XX, é exemplar do aspecto em foco. Escrito e publicado originalmente no
Reino Unido como literatura para a infância e juventude, recebeu os prémios britânicos
mais importantes para livros infanto-juvenis, com os direitos de publicação para os
Estados Unidos da América a serem adquiridos pelo responsável na Macmillan pelas
edições infanto-juvenis. É no seio da editora norte-americana que se modifica o destino
do livro, quando se decide pela publicação na categoria de literatura para adultos
simultaneamente à inclusão no catálogo infantil, após deliberação que considerou o
título no interesse que poderia despertar nas franjas de público fiéis ao género de
fantasia, cuja inspiração paradigmática seria O Senhor dos Anéis, de Tolkien.
Comercializando o livro de forma diversa dos intentos e procedimentos anteriores,
transfigurou-o enquanto obra. Com isso, a Macmillan alargou a esfera de leitores-
compradores que colocaram Watership Down no segundo lugar dos livros de ficção mais
vendidos nos EUA em 1974 [Neavill 1975: 32]. O exemplo apresentado é demonstrativo
da tese geral segundo a qual o sucesso de um modo de escrita e de um autor, ou a da
ausência de outro, prende-se não apenas (dir-se-ia não tanto) com a índole pessoal de
um agente, nas suas características morais, estéticas, empreendedoras ou mesmo de
sociabilidade, mas também (dir-se-ia sobretudo) com a configuração e sucessivas
reconfigurações operadas através do meio editorial. O elemento autoral, tanto quanto o
editorial, terá que remeter para uma análise que descortine a estruturação de um
domínio social da obra publicada traduzido nas múltiplas redes de actividades
culturais, concebidas pela perene convivência tensa entre comércio e cultura [Brewer
2002].

Nota final: pluralidade, mudança e produção de valor


na edição
21 O actual panorama do livro, realidade em rápida modificação, representará um desafio
à(s) figura(s) do editor como instância de construção social do universo tipográfico
enquanto mundo forjado a partir da acção mediadora, sem, contudo, retirar da edição
esse mesmo cunho de mediação e prescrição. Tal é o caso da mudança tecnológica
relativamente ao objecto e à sua consecução a partir do novo paradigma digital
[Chartier 2007, Darnton 2009]. A actual possibilidade de desmaterialização textual
suporta-se ela própria noutras materialidades objectivadas tecnologicamente que
permitem e organizam a apropriação leitural do texto simultaneamente de modos
diversos e idênticos às leituras que se produzem num ambiente tipográfico. O universo
do livro que se prefigura como o de futuro próximo acabou por não confirmar as teses
da substituição de modelos e suportes, mantendo o impresso forte capacidade de
presença e legitimidade face à emergência do digital [Nunes 2002, Bragança 2005,
Furtado 2000, 2006]. A realidade digital recoloca em questão, é verdade, as dimensões
mediadoras e prescritivas, bem como o papel e estatuto do editor enquanto instância de
interposição leitural e configuração de uma ordem do livro, complexificando-as e
desafiando-as no que possuem de intrinsecamente associado à regulação própria das
formas tipográficas. Mas o desafio não anula, mesmo no plano do imaterial, essas
dimensões, frequentemente actualizadas e importadas do universo material,
observando-se com frequência a transferência de conteúdos para suportes diferentes
através de operações de remediação [Bolter & Grusin 2000, Furtado 2006].

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22 Por outro lado, as transformações que há longos anos se têm verificado na fileira
cultural no sentido da sua crescente conformação à ideia de mercado e aos seus modos
de funcionamento, com particular incidência no mundo do livro, engendraram uma
transição na lógica operativa de um número significativo de editoriais, que se deslocou
de uma economia de produção baseada no autor para uma economia fundada
produtivamente no leitor, visto cada vez mais como consumidor 9. Se esta deslocação é
inquestionavelmente portadora de modificações tanto na edição, enquanto um dos
campos que organizam socialmente o livro, quanto nos editores, enquanto figuras que
se assumem simbolicamente como a sua efígie, as mudanças que anuncia constituem
uma continuidade no percurso de transmutação morfológica em que remanesce a
matriz de mediação nas práticas de elaboração autoral e apropriação leitural de um
texto e nas formas de intervenção nas configurações culturais e tipográficas (nas
vertentes materiais como nas imateriais).
23 Num cenário editorial povoado por um número restrito de conglomerados, em que de
modo apenas aparentemente paradoxal forçam caminho pequenas editoras [Medeiros
2007], que vão surgindo como reduto de especialização e de diversidade textual,
diversifica-se o número de situações em que se molda o editor, personagem ideal-típica
cujo perfil e vocação são, afinal, tão multiplicados quantos os contextos produtivos em
que emerge e se vai fabricando a edição. A actual variedade de modelos produtivos na
edição, nos quais a pluralidade de dimensões jurídicas, técnicas, económicas e
comerciais acompanham os aspectos mais intrinsecamente estéticos e comerciais na
determinação das condições de produção e circulação [Legendre 2007], concorre para o
carácter diverso, fragmentado mesmo, que a edição ostenta, longe das perspectivas que
a tendem a reduzir ao concerto do best-seller e ao império dos géneros e temas de
grande consumo, sejam eles de jaez literário, técnico ou escolar. Capturar e emprestar
sentido empírico a esta heterogeneidade tem inevitavelmente de envolver o
reconhecimento da referida multiplicação de modelos, frequentemente descontínuos
entre si e fortemente enraizados no quadro histórico em que emergem ou se
transfiguram [Darnton 1982, Curto 2007, Medeiros 2010b].
24 O mundo social do livro não corresponde ao mundo do objecto, mas ao das práticas e
dos agentes que o viabilizam enquanto tal10. A afirmação de semelhante truísmo torna-
se, por vezes, necessária para que se não perca de vista uma das características centrais
desse mundo: o de que a edição é um trabalho de produção de valor. O esforço de
materialização de um livro é também o da infusão de benefício simbólico, sem o qual o
objecto físico se perde enquanto objecto de desejo, factor de aval de conteúdos ou
elemento de alarde identitário. Em matéria de livros e de outros produtos culturais, o
fabrico do bem palpável pode estar destituído simbolicamente, se desacompanhado da
produção de valor impalpável do objecto fabricado. A realização de um livro é muito
mais que uma origem primordial; é o resultado editorial e livreiro da sua instituição
social como obra conhecida e reconhecida pelos seus receptores finais. O conhecimento
e reconhecimento radicam na convicção nos seus usufrutuários finais do valor
intrínseco da obra [Johns 1998]. Muito mais do que elemento reduzido à reificação do
texto, o editor produz a crença no valor que este adquire como livro [Bourdieu 1996]. E
esse é, sob vários aspectos, o seu poder simbólico de prescrição: o “de constituir o dado
pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do
mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo” [Bourdieu 1989: 14].
O editor vê-se, então, investido objectivamente de um papel também veiculado

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discursivamente como ideologia do sector: o de descobridor, o de criador do criador;


preenchendo um lugar central enquanto peça charneira no jogo dinâmico entre a
cultura literária, a emergência, desenvolvimento e declínio de géneros, temas e autores,
as transformações do mercado do livro e as mudanças tecnológicas que o próprio
objecto traduz.

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NOTAS
1. Veja-se, por exemplo, a discussão de Alberto Cadioli [2001: 13-18] acerca da destrinça que,
seguindo a tradição anglo-saxónica, se pode fazer na língua italiana entre edizione (editing) e
editoria (publishing).
2. Segundo John Dessauer [1999: 48], “todos os editors são, ou devem ser, mestres em diplomacia,
já que têm que trabalhar e negociar permanentemente com a espécie mais temperamental, o
Homo scrivens”.
3. No caso de Perkins, elevado a paradigma, a actuação do editor sentia-se na textura do livro,
cerzindo o próprio texto no tom e sequência com que ia para o prelo. Thomas Wolfe, romancista

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famoso, entregava-lhe caixas de material esboçado e por refinar, que Perkins cortava, cosia,
compunha e rearranjava até à disposição final com que era publicado. Albert Greco [1997: 113]
refere mesmo um “arquétipo Perkins”.
4. Tradução taxonómica proposta por Jorge Martins [2005]. Nuno Medeiros
5. Stanley Unwin oferece ao leitor do seu livro, A Verdade Acerca da Vida Editorial, logo na primeira
página da introdução, a seguinte afi rmacao: “uma coisa há que é muito mais precisa do que os
conhecimentos; é o critério, e aquilo a que, à falta de melhor termo, chamarei apenas faro, na
escolha dos originais para publicação” [1952: 10].
6. Sobre o paradoxo indústria/artesanato como traço particular da edição como indústria
cultural, vejam-se Paul Hirsch [1972] e François Rouet [2000].
7. No caso português, a disjunção entre editor e livreiro para o conjunto das três dimensões
assinaladas ocorre extensivamente muito mais tarde, já bem dentro do século XX.
8. Para uma aproximação mais testemunhal, formada pelo discurso internalista dos próprios
editores, confiram-se Stanley Unwin [1952] e John Dessauer [1999]. As obras de Unwin e Dessauer,
afastadas cronologicamente, também se separam no posicionamento, com a primeira a cultivar as
compensações intangíveis e a segunda a optar por um enfoque que toma a edição, antes de mais,
como um negócio.
9. A lógica produtiva assente no leitor como desígnio mercantil estruturador da acção editorial
não é nova, o seu peso hegemónico nas práticas e estratégias dos editores tomados globalmente é
que se vem constituindo como dado mais recente, visível há mais tempo em mercados do livro
nos quais se registaram mais precocemente movimentos de concentração, fusão e aglomeração
do sector editorial na fileira industrial de exploração do campo cultural e de entretenimento
[Altbach & Hoshino 1995].
10. De certa forma, esta asserção recupera a ideia de processo sócio-material proposto por
Raymond Williams [1977] acerca da actividade cultural.

RESUMOS
Personagem-filtro, intérprete, mas também interventor, prescrevendo, legitimando e ordenando
o universo tipográfico, o editor surge como figura múltipla e socialmente investida de atributos e
práticas mediadoras na sua relação com o dado textual. Produtor de valor e materialidade, o
editor inscreve o projecto do livro num espaço social colaborativo de trabalho, o campo da
edição. Este artigo procura sistematizar teoricamente alguns tópicos relativos à articulação do
editor com a construção social do campo editorial e a edificação da cultura impressa. Empreender
semelhante exploração é abdicar forçosamente de uma visão linear, unidimensional e
historicamente asséptica do mundo social e cultural do livro, cuja morfologia e suportes
conhecem crescentemente os desafios da desmaterialização.

A sort of filter, and interpreter, whereas also interposer, prescribing, legitimizing and organizing
the typographical universe, the publisher rises as a multiple figure socially invested of mediating
features and practices in her relation with the textual fact. Producer of value-adding, and
materiality, the publisher inscribes the project of the book in a socially collaborative working
space, the publishing field. This article intends to theoretically frame a number of topics
regarding the articulation of the publisher with the social construction of the publishing field
and the fabrication of print culture. To undertake such an approach forcefully means to

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relinquish a perspective that views the social and cultural world of the book (whose morphology
and avatars progressively face the challenges of the dematerialization) as being the result of a
one dimensional, homogenous, and aseptic history.

ÍNDICE
Keywords: publisher, publishing, construction, social world of the book
Palavras-chave: editor, edição, construção, mundo social do livro

AUTOR
NUNO MEDEIROS
Sociólogo. Mestre em Sociologia Histórica pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa e Licenciado em Sociologia pela mesma instituição. Professor
Adjunto na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa e
investigador do CesNova – Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa e da
Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas. A área de pesquisa que mais
tem explorado é a sociologia histórica da edição, do livro e da cultura. É autor do livro Edição e
Editores: o mundo do livro em Portugal, 1940-1970 (Lisboa 2010). [e-mail:
nuno.medeiros@fcsh.unl.pt]

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Ensino superior

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Evolução e crescimento do ensino


superior em Angola
Evolution and growth of higher education in Angola

Paulo de Carvalho

NOTA DO EDITOR
Artigo pedido ao autor|
Recebido a: 12/Maio/2012
Aceite para publicação: 19/Maio/2012

O ensino superior foi implantado em Angola (então colónia portuguesa) somente no ano
de 1962, com a criação dos Estudos Gerais Universitários de Angola. A Igreja Católica
tinha, porém, criado em 1958 o seu Seminário, com estudos superiores em Luanda e no
Huambo1. À criação dos Estudos Gerais Universitários de Angola seguiu-se a criação de
cursos nas cidades de Luanda (medicina, ciências e engenharias), Huambo (agronomia e
veterinária) e Lubango2 (letras, geografia e pedagogia).
Em 1968, os Estudos Gerais Universitários de Angola foram transformados em
Universidade de Luanda, tendo em 1969 sido inaugurado o Hospital Universitário de
Luanda. A Igreja Católica havia, entretanto, criado em 1962 o Instituto Pio XII,
destinado à formação de assistentes sociais.
No período colonial, o acesso ao ensino superior destinava-se somente a quem
integrava as camadas superiores da hierarquia social3, podendo mesmo dizer-se que,
nos primeiros anos de implantação em Angola, era difícil que alguém pertencente às
camadas médias da hierarquia social tivesse acesso ao ensino superior. O local de
nascimento, o local de residência e a posição social determinavam claramente o acesso
a este nível de ensino, que reproduzia para as gerações seguintes a estratificação social
da Angola colonial4.
Com a proclamação da independência política de Angola, em 1975, foi criada a
Universidade de Angola (em 1976), mantendo-se uma única instituição de ensino

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superior de âmbito nacional. No ano de 1985, a Universidade de Angola passou a


designar-se Universidade Agostinho Neto, que se manteve até 2009 como única
instituição estatal de ensino superior no país. Neste ano, a Universidade Agostinho Neto
(UAN) foi “partida” em 7 universidades de âmbito regional, mantendo-se a UAN a
funcionar em Luanda e na província do Bengo, enquanto as faculdades, institutos e
escolas superiores localizados nas demais províncias passaram a ficar afectos às demais
seis novas universidades estatais, a saber:
• Benguela – Universidade Katyavala Bwila (actua nas províncias de Benguela e Kuanza-Sul),
• Cabinda – Universidade 11 de Novembro (Cabinda e Zaire),
• Dundo – Universidade Lueji-a-Nkonde (Luanda-Norte, Lunda-Sul e Malanje),
• Huambo – Universidade José Eduardo dos Santos (Huambo, Bié e Moxico),
• Lubango – Universidade Mandume ya Ndemofayo (Huíla, Cunene, Kuando-Kubango e
Namibe),
• Uíge – Universidade Kimpa Vita (Uíge e Kuanza-Norte).
Neste momento, há registo de 7 universidades, 7 institutos superiores e 2 escolas
superiores estatais (estas últimas, também autónomas)5.
A primeira instituição privada de ensino superior em Angola foi a Universidade Católica
de Angola, criada em 1992 e com funcionamento a partir de 1999. Seguiu-se uma série
de outras instituições privadas de ensino superior, havendo a registar em 2011 a
existência de 10 universidades privadas e 12 institutos superiores privados 6.

Instituições de ensino superior


Tendo começado com alguns cursos, apenas nas cidades de Luanda e Huambo, o ensino
superior em Angola conta actualmente com mais de uma centena de cursos de
graduação, em instituições de ensino superior que funcionam em 18 cidades de Angola.
Conta ainda com mais de dez cursos de Mestrado e dois cursos de Doutoramento 7.
Angola conta actualmente com 17 universidades (7 estatais e 10 privadas), 19 institutos
superiores (7 estatais e 12 privados) e 2 escolas superiores autónomas (ambas estatais).
A designação, sede e ano de criação de cada uma dessas 38 instituições de ensino
superior constam da tabela 1 (para o caso das 16 estatais) e da tabela 2 (as 22
instituições privadas).
As universidades possuem, como unidades orgânicas, faculdades, institutos superiores e
escolas superiores. A ampliação das instituições de ensino superior está prevista na
legislação em vigor, que estabelece a obrigatoriedade de elaboração de planos de
desenvolvimento institucional que carecem de aprovação por parte da entidade estatal
que superintende o ensino superior em Angola.

Tabela 1 – Instituições estatais de ensino superior em Angola (2011)

Ano de
Designação Sede
criação

Universidade Agostinho Neto (UAN) 1962 Luanda

Universidade Katyavala Bwila (UKB) 2009a Benguela

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Universidade 11 de Novembro (UON) 2009a Cabinda

Universidade Lueji-a-Nkonde (ULN) 2009a Dundo

Universidade José Eduardo dos Santos (UJES) 2009a Huambo

Universidade Mandume ya Ndemofayo (UMN) 2009a Lubango

Universidade Kimpa Vita (UKV) 2009a Uíge

Instituto Superior de Ciências de Educação do Huambo (ISCED do


2009b Huambo
Huambo)

Instituto Superior de Ciências de Educação de Luanda (ISCED de


2009b Luanda
Luanda)

Instituto Superior de Ciências de Educação do Lubango (ISCED do


2009b Lubango
Lubango)

Instituto Superior de Ciências de Educação do Uíge (ISCED do Uíge) 2009 b Uíge

Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Norte 2009 Ndalatando

Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Sul 2009 Sumbe

Instituto Superior de Serviço Social de Luanda 2009 Luanda

Escola Superior Pedagógica do Bengo 2009 Caxito

Escola Superior Pedagógica do Bié 2009 Kuito

a
. Herdou as infra-estruturas e unidades orgânicas da UAN na sua região (com excepção
das mencionadas na presente tabela, abaixo).
b. Funcionava anteriormente no âmbito da Universidade Agostinho Neto.
Fonte: MESCT 2012.

Tabela 2 – Instituições privadas de ensino superior em Angola (2011)*

Ano de
Designação Sede
criação

Universidade Católica de Angola (UCAN) 1992 Luanda

Universidade Jean Piaget de Angola (UJPA) 2001 Luanda

Universidade Lusíada de Angola (ULA) 2002 Luanda

Universidade Independente de Angola (UNIA) 2005 Luanda

Universidade Privada de Angola (UPRA) 2007a Luanda

Universidade de Belas (UNIBELAS) 2007 Luanda

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Universidade Gregório Semedo (UGS) 2007 Luanda

Universidade Metodista de Angola (UMA) 2007 Luanda

Universidade Óscar Ribas (UOR) 2007 Luanda

Universidade Técnica de Angola (UTANGA) 2007 Luanda

Instituto Superior de Ciências Sociais e Relações Internacionais (CIS) 2007 Luanda

Instituto Superior Técnico de Angola (ISTA) 2007 Luanda

Instituto Superior Politécnico de Benguela 2011 Benguela

Instituto Superior Politécnico do Cazenga 2011 Luanda

Instituto Superior Politécnico Gregório Semedo (Lubango) 2011 Lubango

Instituto Superior Politécnico de Humanidades e Tecnologias “Ekuikui


2011 Huambo
II”

Instituto Superior Politécnico Independente 2011 Lubango

Instituto Superior Politécnico Kangonjo 2011 Luanda

Instituto Superior Politécnico Metropolitano 2011 Luanda

Instituto Superior Politécnico Pangeia 2011 Lubango

Instituto Superior Politécnico de Tecnologias 2011 Luanda

Instituto Superior Politécnico da Tundavala 2011 Lubango

* Várias das instituições privadas começaram a funcionar antes da sua criação pelo
Conselho de Ministros.
a. Sucedânea do Instituto Superior Privado de Angola, criado em 2001.
Fonte: MESCT 2012.

Acesso ao ensino superior

Os Estudos Gerais Universitários de Angola, instalados em 1963 em Luanda e Huambo,


possuíam em 1964 um número de 531 estudantes. No final do período colonial, esse
número tinha evoluído para 4.176, com um aumento médio de 22,9% ao ano (ver tabela
3). Com o processo de descolonização, o número de estudantes diminuiu para 1.109 no
ano de 1977, o que equivale a uma diminuição drástica, em 73,4%. Só por aqui se
comprova a tese apresentada acima, segundo a qual o acesso ao ensino superior estava
no período colonial vedado aos angolanos, cuja maioria se enquadrava nas camadas
sociais mais desfavorecidas.
O período que se seguiu à proclamação da independência foi conturbado do ponto de
vista político, económico e social, assinalando-se inclusivamente o início de uma guerra
civil que viria a terminar somente 27 anos depois8. O Estado angolano foi

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disponibilizando recursos insuficientes para o sector da educação, razão pela qual a


maior aposta foi então para o ensino de base (incluindo a alfabetização) e, mais tarde,
para o ensino médio. No período de 1977 a 2002, o número de estudantes do ensino
superior aumentou de 1.109 para 12.566, a um ritmo médio anual de 10,2% 9.
De 2002 a 2011, o número de estudantes a frequentarem cursos de graduação em
instituições de ensino superior em Angola aumentou para 140.016, tal como se pode
observar na tabela 3. Nesse período, o ritmo de crescimento médio do número de
estudantes ao ano foi de 30,7%. Para triplicar o ritmo de crescimento do acesso ao
ensino superior, em relação ao período anterior, contribuíram os seguintes factores:
a. o termo da guerra civil e o consequente aumento do orçamento destinado ao ensino
superior;
b. a expansão do ensino superior para todas as províncias do país – primeiro no quadro da
Universidade Agostinho Neto e a partir de 2009, com a criação de instituições estatais de
ensino superior de âmbito regional;
c. a liberalização do ensino superior, com a promoção da criação de uma rede de instituições
privadas de ensino superior.

Tabela 3 – Estudantes do ensino superior em Angola

Ano Nº de estudantes

1964 531

1965 584

1966 706

1967 989

1968 1.252

1969 1.784

1970 2.369

1971 2.668

1974 4.176

1977 1.109

1997 7.916

1998 8.536

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2001 9.129

2002 12.566

2003 17.866

2004 24.620

2005 32.173

2008 87.196

2009 98.777

2010 107.099

2011 140.016

Fonte: Carvalho et al. 2003, UAN 2006: 13, MESCT 2012.

As tabelas 4 e 5 apresentam a evolução do número de estudantes em cursos de


graduação, em instituições estatais e em instituições privadas de ensino superior, no
período 2009-2011. No que diz respeito às instituições estatais, se em 2008 a
Universidade Agostinho Neto (com sede em Luanda) incluía a totalidade dos estudantes,
em 2009 passou a representar 51,1% dos estudantes em instituições estatais e em 2011
esse valor baixou para somente 30,6%.
Segue-se a Universidade Katyavala Bwila (com sede em Benguela), com 9,0% do total
dos estudantes em instituições estatais de ensino superior. Apesar de ser recente o
ensino superior em Benguela, a verdade é que esta universidade registou um grande
incremento no número de estudantes no período 2009-2011, visto ter passado de
módicos 4,5% dos estudantes do ensino superior estatal em 2009 para cerca da décima
parte (9,0%) em 2011.
Vem em terceiro lugar a Universidade Mandume ya Ndemofayo (com sede no Lubango),
que é uma das mais imponentes em termos de infra-estruturas e possui tradição
académica, já que foi em 1969 que se instalou a Faculdade de Letras no Lubango (com os
cursos de história e filologia românica). Se em 2009 a Universidade Mandume ya
Ndemofayo representava 3,0% dos estudantes do ensino superior estatal, dois anos
depois passou a representar nada módicos 8,0%.
Podemos concluir a análise respeitante à grandeza das instituições estatais de ensino
superior, dizendo que a Universidade Agostinho Neto foi a única instituição estatal de
ensino superior que registou a diminuição no número de estudantes no período
2009-2011 (em 16,9%). Quem mais compensou essa quebra registada nas províncias de
Luanda e Bengo foram a Universidade Mandume ya Ndemofayo (com um incremento da
ordem dos 266,5% no mesmo período), a Universidade Lueji-a-Nkonde (com um
incremento em 230,0%), o Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Sul (com um
aumento em 190,0%) e a Universidade Katyavala Bwila (com um incremento da ordem
dos 180,7%) – ver gráfico 1.

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Tabela 4 – Estudantes em instituições estatais de ensino superior em Angola (2009-2011)

Instituições estatais 2009 2010 2011

Universidade Agostinho Neto 24.712 19.585 20.536

Universidade Katyavala Bwila 2.160 2.772 6.063

Universidade Mandume ya Ndemofayo 1.468 2.191 5.380

Universidade Lueji-a-Nkonde 1.535 2.101 5.066

Universidade José Eduardo dos Santos 2.308 3.203 4.771

ISCED do Lubango 3.594 3.922 4.656

Universidade 11 de Novembro 3.074 2.943 4.207

ISCED do Uíge 2.642 3.152 3.651

ISCED de Luanda 2.356 2.864 2.619

ISCED do Huambo 2.203 1.819 2.532

Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Norte 944 1.544 2.129

Universidade Kimpa Vita 1.769

Escola Superior Pedagógica do Bengo 392 793 1.093

Escola Superior Pedagógica do Bié 663 683 1.052

Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Sul 329 465 954

Instituto Superior de Serviço Social de Luanda 265 705

Total 48.380 48.302 67.183

Fonte: MESCT 2012.

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Gráfico 1

Fonte: Cálculos próprios, com base em MESCT 2012.

No que diz respeito à grandeza das instituições privadas de ensino superior (medida
pelo número de estudantes), a tabela 5 é suficientemente esclarecedora. Lidera a
Universidade Jean Piaget de Angola, que é uma das mais antigas instituições privadas
de ensino superior em Luanda (e no país em geral) e que representa 11,7% do total de
estudantes do ensino superior privado em Angola. Seguem-se a Universidade Técnica
de Angola (9,7%), a Universidade Independente de Angola (9,0%), o Instituto Superior
Técnico de Angola (8,1%) e as Universidades Lusíada de Angola e Gregório Semedo (7,9%
cada uma).
O maior crescimento do número de estudantes no período 2009-2011 foi registado no
Instituto Superior Técnico de Angola – crescimento em 322,5%, tendo passado de um
modesto 12º lugar em 2009 (com apenas 2,8% do total de estudantes neste tipo de
instituição) para o actual 4º lugar. (com os já referidos 8,1%) – ver gráfico 2. Quem
também registou grande crescimento no número de estudantes neste período foi o
Instituto Superior Politécnico Metropolitano, que duplicou o número de estudantes em
apenas dois anos (aumento da ordem dos 121,6%) e representa agora 4,2% do total de
estudantes no ensino superior privado. Um terceiro destaque em relação a esta matéria
diz respeito à Universidade Privada de Angola, que registou a diminuição em 33,9% no
número de estudantes no período 2009-2011.

Tabela 5 – Estudantes em instituições privadas de ensino superior em Angola (2009-2011)

Instituições estatais 2009 2010 2011

Universidade Jean Piaget de Angola 7.323 8.597 8.495

Universidade Técnica de Angola 4.005 5.908 7.044

Universidade Independente de Angola 5.842 5.489 6.561

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Instituto Superior Técnico de Angola 1.390 3.680 5.873

Universidade Lusíada de Angola 5.089 5.586 5.722

Universidade Gregório Semedo 3.845 4.033 5.722

Universidade Óscar Ribas 3.083 3.936 4.942

Universidade Católica de Angola 3.691 3.697 4.524

Universidade de Belas 2.786 2.737 4.414

Instituto Superior de Ciências Sociais e Relações Internacionais 2.448 3.316 3.583

Universidade Privada de Angola 4.871 3.889 3.222

Instituto Superior Politécnico Metropolitano 1.390 2.227 3.080

Universidade Metodista de Angola 1.710 2.496 2.109

Instituto Superior Politécnico Kangonjo 1.658

Instituto Superior Politécnico da Tundavala 872 1.078 1.505

Instituto Superior Politécnico de Benguela 934 987 1.081

Instituto Superior Politécnico do Cazenga 1.118 1.141 1.047

Instituto Superior Politécnico Gregório Semedo - - 991

Instituto Superior Politécnico de Humanidades e Tecnologias "Ekuikui II" - - 750

Instituto Superior Politécnico Independente - - 510

Instituto Superior Politécnico de Tecnologias - - -

Instituto Superior Politécnico Pangeia - - -

Total 50.397 58.797 72.833

Fonte: MESCT 2012.

A terminar, podemos dizer que a Universidade Agostinho Neto se mantém a maior


escola de ensino superior do país. Eis as dez principais instituições de ensino superior
de Angola (tendo em conta a grandeza, medida pelo número de estudantes) – gráfico 3:
• Universidade Agostinho Neto, com 20.536 estudantes no ano de 2011 (14,7% do total)
• Universidade Jean Piaget de Angola, com 8.495 estudantes (6,1%)
• Universidade Técnica de Angola, com 7.044 estudantes (5,0%)
• Universidade Independente de Angola, com 6.561 estudantes (4,7%)
• Universidade Katyavala Bwila, com 6.063 estudantes (4,3%)
• Instituto Superior Técnico de Angola, com 5.873 estudantes (4,2%)
• Universidade Lusíada de Angola, com 5.722 estudantes (4,1%)

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• Universidade Gregório Semedo, com 5.722 estudantes (4,1%)


• Universidade Mandume ya Ndemofayo, com 5.380 estudantes (3,8%)
• Universidade Lueji-a-Nkonde, com 5.066 estudantes (3,6%)

Gráfico 2

Fonte: Cálculos próprios, com base em MESCT 2012.

Gráfico 3

Fonte: MESCT 2012.

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Docentes do ensino superior

No que diz respeito a docentes do ensino superior, os dados disponíveis dizem respeito
ao período 2000-2011, com um interregno em 2006-2007. Tal como se pode verificar na
tabela 6 e no gráfico 4, o número de docentes no ensino superior registou um aumento
em 58,4% no período 2000-2005, enquanto no período 2005-2011 esse aumento foi de
313,8%.
Enquanto até 2005 o ritmo de crescimento do número de docentes do ensino superior
era de 9,6% ao ano, de 2005 a 2011 esse ritmo passou para 26,7%. Isso quer dizer que o
ritmo de crescimento do número de docentes quase triplicou nos dois períodos
analisados. Este facto demonstra a crescente aposta no ensino superior por parte do
governo de Angola, particularmente a partir de 2006 (quatro anos após o término da
guerra civil em Angola) – seja com o aumento do orçamento dedicado ao ensino
superior, seja através da abertura de instituições privadas de ensino superior, que são
consideradas parceiros do Estado em relação a este serviço público.
A tabela 7 apresenta o rácio estudantes/docentes, dando conta do número médio de
estudantes para cada docente do ensino superior. Neste momento, há no ensino
superior em Angola 25,46 estudantes para um docente. Nas instituições estatais este
número é de 24,27 e nas instituições privadas, de 26,67 estudantes por docente.
Uma vez que os dados relativos a docentes não estão diferenciados segundo a categoria
(professores e assistentes), não é possível apresentar rácios em relação a professores
(somente a docentes em geral). Mas podemos adiantar que o número de estudantes por
professor é bastante elevado e o número de estudantes por Doutor será mais elevado
ainda.
A este respeito, as instituições privadas estão globalmente pior que as instituições
estatais: não apenas as privadas possuem um rácio global superior (mais 2,4 estudantes
por docente, como já vimos), como também estão bastante pior em termos de
professores e em termos de Doutores. Além do mais, é preciso considerar que parte dos
docentes das instituições privadas de ensino superior são docentes efectivos em
instituições estatais.

Tabela 6 – Docentes do ensino superior em Angola

Ano Nº de docentes

2000 839

2001 869

2002 988

2003 1.169

2004 1.239

2005 1.329

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57

2008 3.128

2009 3.741

2010 4.652

2011 5.499

Fonte: UAN 2005: 11, UAN 2006: 15, MESCT 2012.

Gráfico 4

Tabela 7 – Rácio estudantes/docentes no ensino superior em Angola (2011)

Ano Rácio

2001 10,505

2002 12,719

2003 15,283

2004 19,871

2005 24,208

2008 27,876

2009 26,404

2010 23,022

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2011 25,462

Fonte: Cálculos próprios, com base em dados das tabelas 3 e 6.

A tabela 8 indica quantos estudantes há neste momento por docente, em cada uma das
36 instituições de ensino superior angolanas de que há disponíveis dados relativos ao
ano de 2011.
No que respeita às 11 instituições de ensino superior com rácio aceitável para as
condições de Angola (abaixo de 20 estudantes por docente), contam-se 5 instituições
estatais e 6 instituições privadas ou, por outro lado, 5 universidades, 5 institutos
superiores e uma escola superior.
Sobre este rácio, temos de chamar à atenção para o facto de os dados disponíveis não
estarem diferenciados por curso e por ano de ensino, que são dois factores que
costumam diferenciar significativamente os rácios10. Mas os dados globais aqui
apresentados servem como um dos indicadores respeitantes à qualidade de ensino.

Tabela 8 – Rácio estudantes/docentes em instituições de ensino superior (2011)

Nº de ordem Instituição Rácio

1 Universidade Metodista de Angola 7,81

2 Universidade José Eduardo dos Santos 11,90

3 Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Sul 13,44

4 Instituto Superior Politécnico do Cazenga 15,40

5 Instituto Superior Politécnico de Benguela 16,38

6 Universidade Privada de Angola 16,61

7 Instituto Superior Politécnico Independente 17,00

8 Escola Superior Pedagógica do Bengo 17,35

9 Universidade Kimpa Vita 17,87

10 Universidade Katyavala Bwila 17,88

11
Instituto Superior Politécnico da Tundavala 17,92

12 ISCED de Luanda 20,30

13 Escola Superior Pedagógica do Bié 20,63

14 Universidade Lueji-a-Nkonde 23,24

15 Universidade Agostinho Neto 23,82

16 Instituto Superior Politécnico Metropolitano 23,88

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17 Instituto Superior Técnico de Angola 24,78

18 Instituto Superior Politécnico de Humanidades e Tecnologias "Ekuikui II" 25,00

19 ISCED do Huambo 25,07

20 Universidade Lusíada de Angola 25,51 a

21 Universidade Católica de Angola 26,00

22 Universidade de Belas 26,75

23 Universidade 11 de Novembro 26,96 b

24 Universidade Óscar Ribas 27,30

25 Universidade Independente de Angola 27,34

26 Universidade Jean Piaget de Angola 29,70

27 Instituto Superior Politécnico Gregório Semedo (Lubango) 30,03

28 Instituto Superior Politécnico do Kuanza-Norte 31,31

29 Universidade Gregório Semedo 32,51

30 Universidade Técnica de Angola 33,07

31 Instituto Superior de Ciências Sociais e Relações Internacionais 33,18

32 ISCED do Lubango 33,26

33 Instituto Superior Politécnico Kangonjo 35,28

34 Universidade Mandume ya Ndemofayo 37,62

35 Instituto Superior de Serviço Social de Luanda 39,17

36 ISCED do Uíge 56,17

a. 2010.
b. 2009.
Fonte: Cálculos próprios, com base em MESCT 2012.

Qualidade do ensino superior em Angola


A terminar e à guisa de conclusão, vamos abordar a qualidade de ensino. Antes, porém,
vamos recordar as principais conclusões a que chegámos até aqui.
Em primeiro lugar, constatou-se ter havido algum atraso na implantação do ensino
superior em Angola, no período colonial – os Estudos Gerais Universitários foram
criados somente no ano de 196211.

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A segunda conclusão aponta para sérias dificuldades de acesso ao ensino superior por
parte da maioria dos poucos que conseguiam terminar o ensino médio nesse período.
Com a proclamação da independência e a descolonização, diminuiu consideravelmente
o número de estudantes do ensino superior, tendo-se mantido por algum tempo as
dificuldades de acesso a este nível de ensino. Já na década de 1980 se incrementou o
acesso ao ensino superior (dentro e fora de Angola), tendo diminuído substancialmente
a relação entre a posição social e o acesso ao ensino superior.
O grande boom no acesso ao ensino superior em Angola ocorreu com o término da
guerra civil (em 2002) e com o incremento da verba orçamental destinada ao ensino
superior. A expansão do ensino superior, pelas diferentes províncias do país, veio
contribuir para o acesso a esse nível de ensino por parte de um número cada vez maior
de jovens.
Neste momento, a pergunta que se impõe é: será que a expansão e o crescimento do
ensino superior em Angola se têm feito acompanhar da preocupação com a qualidade
de ensino?
Não é possível responder peremptoriamente a essa pergunta, porque não está feita
qualquer avaliação a instituições de ensino superior em Angola. A Universidade
Agostinho Neto (que funcionou durante muitos anos como única instituição de ensino
superior) nunca se preocupou com a avaliação ao serviço que prestava. Ultimamente,
tem sido o organismo do Estado encarregue pela execução de políticas públicas no
domínio do ensino superior que vem preparando legislação que vai obrigar as
instituições de ensino superior (estatais e privadas) a submeterem-se a avaliação
externa, depois certamente de vários processos de avaliação interna que venham aí a
ocorrer.
Não havendo elementos quantitativos de avaliação das instituições de ensino superior,
temos de nos limitar à apresentação de elementos que, isoladamente, atestem da
qualidade de ensino.
De um modo geral, tudo indica que a qualidade de ensino seja globalmente baixa, nas
instituições de ensino superior em Angola. Os elementos que contribuem para esta
conclusão são os seguintes:
a. Má qualidade de ensino em níveis inferiores, que conduzem ao acesso ao ensino superior por
parte de estudantes que obtêm avaliações negativas no exame de admissão [cf. Vera Cruz
2008];
b. Tentativa de aplicação de modelos de gestão importados do exterior, sem grande
preocupação com a realidade local12;
c. Quase total ausência de investigação científica, havendo casos individuais que demonstram
que se chega mesmo a ignorar quem pretenda promover a investigação [cf. Silva 2012];
d. Despreocupação com a publicação dos poucos estudos que são feitos nas instituições de
ensino superior;
e. Ausência de aposta na edição de livros e de revistas científicas, havendo a registar muito
poucas excepções a esta regra [vide Silva 2012: 203];
f. Deficiente aposta em bibliotecas e laboratórios, havendo mesmo a assinalar a criação de
faculdades sem haver a preocupação com a criação destas infra-estruturas e sem a aquisição
de meios de trabalho indispensáveis a docentes e estudantes 13;
g. Deficiente aposta na formação e actualização dos docentes 14;
h. Promoção de docentes considerando critérios subjectivos e o tempo de serviço, sem atender
grandemente aos demais critérios objectivos que a legislação vai já fixando 15;

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i. Inadaptação curricular às reais necessidades do mercado de trabalho angolano 16;


j. Promoção de uma cultura da facilidade, que faz com que bom número de estudantes
considere que devem ser admitidos a exame estudantes com zero valores 17, com que se
promova uma “cultura do 10”18 e com que se admitam trabalhos de licenciatura em grupo 19;
k. Promoção impune da fraude académica, podendo aqui mencionar os casos de docentes cujas
aulas consistem em ler um livro em voz alta e de trabalhos de licenciatura sem o mínimo de
rigor metodológico20;
l. Promoção da corrupção, que está organizada e se manifesta das mais variadas formas –
desde a exigência de pagamento para admissão até ao pagamento para elaboração de
trabalhos de licenciatura, passando por pagamento para passagem em várias disciplinas 21;
m. Combate organizado a quem exige rigor e a quem faz investigação científica em instituições
de ensino superior.

Para inversão do actual quadro, de aposta no crescimento sem preocupação com a


qualidade de ensino, é preciso apostar na superação das lacunas acabadas de enumerar.
É preciso, ainda, que as universidades angolanas apostem na contribuição para a
modernização socioeconómica e tecnológica, no fortalecimento da identidade nacional
angolana e na formação de elites [cf. Fischman 2011: 85]. A adopção de uma cultura de
rigor e de promoção da competência resultará benéfica no quadro da mais ampla
promoção do bem-estar e do desenvolvimento socioeconómico de Angola.

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e rupturas na gestão dos recursos humanos docentes na Universidade Agostinho Neto (Luanda), Braga:
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VIDAL, Nuno & Justino P. de ANDRADE (ed.), 2008: Sociedade civil e política em Angola.
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Universidade de Coimbra

NOTAS
1. Então Nova Lisboa.
2. Então Sá da Bandeira.
3. Acerca da estrutura social na Angola colonial, ver Carvalho 1989 e 2011. Ver também Heimer
1973, Silva 1992-1994, Vera Cruz 2005.
4. Se é comum o ensino produzir e reproduzir a estratificação social, pois os mais favorecidos não
apenas têm maior probabilidade de acesso a níveis superiores de instrução, como também saem
melhor preparados dos vários níveis de instrução [cf. Paraskeva 2009 e 2011, Santomé 2010,
Popkevitz 2011], isso torna-se bastante mais visível numa sociedade colonial.
5. Neste momento, a legislação prevê a existência de universidades e academias, bem como
institutos e escolas superiores autónomos das universidades (para além da possibilidade de
criação de faculdades, institutos e escolas superiores em universidades).
6. Estes dados foram facultados pelo Ministério de Ensino Superior, Ciência e Tecnologia de
Angola. O autor agradece ao Sr. Director de Desenvolvimento e Expansão a disponibilização de
dados estatísticos actualizados, que são reproduzidos e analisados neste artigo. Agradece também
a disponibilização de dados complementares por parte do Sr. Director do Gabinete do Secretário
de Estado do Ensino Superior.
7. O presente artigo aborda unicamente cursos de graduação.

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8. Sobre estas matérias, ver por exemplo Meyns 1984, Galli 1987, Schoor 1989, Correia 1991 e
1996, Ferreira 1992, 1993 e 1999, Kajibanga 1996, Anstee 1997, Anjos 1998, Guimarães 1998, Hare
1998, Jorge 1998, Sousa 1998, Carvalho 2002, Carvalho et al. 2006, Vidal & Andrade 2008.
9. Esse crescimento foi inferior durante a 1ª República (até 1991), tendo aumentado um pouco
mais após o início da democratização do sistema político do Estado e da liberalização económica.
Sobre este período, ver Rocha 1997, 2004 e 2011, Queirós 1998, Mateus 2004 e 2007, Carvalho et al.
2006, Rodrigues 2006, Lopes 2007a, 2007b e 2011, Vidal & Andrade 2008, Carvalho 2008, 2010a e
2010b.
10. Os rácios são normalmente superiores em cursos de letras, ciências sociais e humanas e
pedagogias, bem como nos dois primeiros anos de ensino.
11. Por exemplo, a Universidade do Zimbabué foi criada em 1952 e a Universidade de Lovanium
(de que resultaram, mais tarde, a Universidade Nacional do Zaire e a Universidade de Kinshasa)
foi criada em 1954. Mas, em contrapartida, a Universidade da Zâmbia foi criada somente em 1966.
12. Um exemplo é o da insistência na “eleição” de órgãos de gestão das instituições de ensino
superior, que se faz realmente pelos grupos maioritários que existem nessas instituições,
confundindo-se essa actuação com liberdades académicas. Sobre liberdades académicas, ver por
exemplo Kajibanga 1998, Silva 2009.
13. Pode aqui citar-se o caso de uma universidade privada que ministrou durante alguns anos um
curso de arquitectura sem haver preocupação com a aquisição de estiradores…
14. Durante muito tempo, promoveu-se no ensino superior em Angola a ideia segundo a qual a
competência dos docentes estaria aliada à sua formação pedagógica, como se os cursos de
formação pedagógica então promovidos (ao invés de servirem apenas de complemento à
formação de base) pudessem superar as deficiências de formação dos docentes.
15. Durante muitos anos, o aspecto determinante para a promoção era apenas o tempo de serviço
[cf. Silva 2004]. Hoje vão sendo exigidos outros critérios, mas ainda assim continua a haver
promoções que não se baseiam no mérito.
16. Sobre esta matéria, ver por exemplo Santomé 2010, Paraskeva 2011a e 2011b, Pinar 2011,
Popkievitz 2011.
17. Na segunda metade da década de 1990 foi introduzida a obrigatoriedade de 7 valores de
avaliação contínua (semestral ou anual, consoante a dimensão da disciplina) para acesso ao
exame de cada disciplina na Universidade Agostinho Neto, mas há associações de estudantes que
se vêm batendo pela anulação dessa regra (que, hoje, não funciona em todas as instituições de
ensino superior). Há, mesmo, casos de estudantes que reclamam junto das autoridades
académicas por não terem sido admitidos a exame, pois consideram que a avaliação durante todo
o semestre/ano lectivo não deve ser tida em conta para acesso ao exame de cada disciplina.
18. Há docentes que não corrigem provas e se limitam a aprovar os estudantes, atribuindo 10 a 12
valores (num total de 20 valores possíveis). Em casos destes, os estudantes normalmente não
reclamam, pois estão em regra preocupados apenas com a nota para aprovar nas várias
disciplinas.
19. Ainda em 2007, na Universidade Agostinho Neto, se fomentava o princípio da facilidade
através dos trabalhos de licenciatura em grupo. Hoje, várias são as instituições de ensino superior
em Angola que permitem impunemente esta facilidade
20. Num caso e noutro, as direcções e os Conselhos Científicos das instituições nada fazem contra
tal forma de actuação. No segundo caso, chega-se mesmo a promover tal actuação [cf. Carvalho
2012].
21. Há muito que toda a gente sabe que isso se faz, mas regra geral as autoridades académicas não
previnem nem combatem de forma incisiva tal comportamento. Cf. Carvalho 2002: 141-151,
Andrade 1999, Ngonda 1999, Rocha 1999, Sousa 1999.

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RESUMOS
O autor apresenta a evolução do ensino superior em Angola, desde a sua implementação em 1962
até aos dias de hoje, com 140 mil estudantes ao nível de graduação. A rede de instituições de
ensino superior conta neste momento com 17 universidades (10 das quais privadas), 19 institutos
superiores autónomos (sendo 12 privados) e 2 escolas superiores autónomas (ambas estatais). A
pergunta que o autor apresenta é: será que este crescimento se fez acompanhar da
correspondente atenção à qualidade de ensino? A resposta a esta pergunta é negativa, porquanto
existem vários indicadores que apontam para a promoção da mediocridade e a ausência de aposta
em investigação científica, para além da possibilidade de obtenção de diplomas sem a
indispensável competência académica e profissional. Mas o mal provém de níveis inferiores de
ensino.

The author presents the evolution of higher education in Angola, since its implementation in
1962 until the present, with 140,000 students at the graduate level. The network of higher
education institutions counts now 17 universities (10 of which are private), 19 colleges (including
12 private) and two autonomous schools (both state). The question that the author presents is:
how this growth was accompanied by the corresponding attention to the quality of higher
education? The answer to this question is negative, because there are several indicators that
point to the promotion of mediocrity and lack of concern with scientific research, beyond the
possibility of obtaining diplomas without the necessary academic and professional competence.
But the problem comes from lower levels of education.

ÍNDICE
Keywords: higher education, social stratification, quality of education, university in Angola
Palavras-chave: ensino superior, estratificação social, qualidade de ensino, universidade em
Angola

AUTOR
PAULO DE CARVALHO
Sociólogo. Doutor em Sociologia pelo ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa (Lisboa, Portugal) e
Mestre em Sociologia pela Universidade de Varsóvia (Polónia). Professor Titular na Universidade
Agostinho Neto. Foi Reitor da Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola – 2009-2011) e
dirigiu a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola
– 2005-2006). É investigador no CIES do ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa. É autor de
dezenas de pesquisas sociológicas com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas, tendo
como principais áreas de investigação: a exclusão social, a pobreza, a Sociologia Política, os
problemas sociais, as normas de consumo, as relações étnicas, a delinquência e a audiência de
media. É autor, dentre outros, dos livros: A campanha eleitoral de 2008 na imprensa de Luanda
(Luanda 2010); Exclusão Social em Angola. O caso dos deficientes físicos de Luanda (Luanda 2008),
«Até você já não és nada…!» (Luanda 2007), Angola. Quanto Tempo Falta para Amanhã? Reflexões
sobre as crises política, económica e social (Oeiras 2002), Audiência de Media em Luanda (Luanda
2002), Estrangeiros na Polónia. Adaptação, estereótipos e imagens étnicas (Luanda 2002 e
Varsóvia 1990) e Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana (Varsóvia 1989). Foi agraciado

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com o o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na modalidade de investigação em


ciências sociais e humanas (2002). É editor da Revista Angolana de Sociologia. [e-mail:
paulodecarvalho@sociologist.com]

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Inserção profissional de diplomados


da UL e UNL: aprendizagens
académicas e competências
profissionais
Transition to work of graduates: academic learning and key qualifications

Arlinda Cabral

NOTA DO EDITOR
Recebido a: 28/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 4 e 30/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 7/Maio/2012
Recepção da segunda apreciação: 12/Maio/2012
Aceite para publicação: 15/Maio/2012

Introdução
Quando se fala dos processos de inserção profissional dos diplomados do ensino
superior, um ponto que se destaca consiste na relação entre os conhecimentos que os
jovens detêm após finalizarem o seu percurso académico e as necessidades do mercado
de trabalho. Defende-se que a qualidade do conhecimento gerado numa instituição
universitária e a sua disponibilização para a economia é fundamental para a
competitividade nacional. Mas aos que querem começar a trabalhar, são colocadas cada
vez mais exigências: novas aprendizagens, domínio aprofundado de conhecimentos
teóricos, científicos, técnicos e tecnológicos e competências sociais e relacionais
consentâneas com as exigências da sociedade moderna contemporânea.

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A passagem do primado do ter uma habilitação, um certificado, uma qualificação ou


uma carteira profissional foi substituído pelo discurso do ser competente, isto é,
independentemente da base de formação e do grau académico alcançado, cada
indivíduo que pretenda aceder ou permanecer no mercado de trabalho tem de
demonstrar que é competente, através dos seus comportamentos, conhecimentos e
capacidades de resposta satisfatória às situações e aos problemas que possam surgir ao
longo do seu percurso profissional.
O discurso da estabilidade de conhecimentos e da estabilização no campo profissional
deu lugar ao discurso do modelo da competência e da empregabilidade 1, que traduzem
a capacidade de ajustamento do indivíduo às especificidades das diversas situações
profissionais com as quais se pode deparar, ao longo do processo de inserção
profissional e no decurso da sua vida de trabalho. Os discursos sobre as características
do mercado de trabalho no contexto actual, no qual compete aos agentes sociais
adoptar os comportamentos adequados ao “capitalismo flexível” 2, apontam para a
transferência da responsabilidade de ter um trabalho para aquele que procura aceder
ou manter um emprego. Mas o modelo da competência procura ter igualmente
presente as características do mercado de trabalho, da organização do trabalho e do
contexto social, cultural, económico e político no qual se desenvolve a relação entre
empregos e (des)empregados, além de requerer ao indivíduo uma “complexa
conjugação de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, que vão para além da
aplicação de capacidades cognitivas ou do uso de competências funcionais” [Carneiro et
al. 2010: 250].
Segundo Calisto [2009], os debates em torno do emprego e do desemprego aumentam a
discussão em torno de conceitos como empregabilidade, aprendizagem e articulação
entre os sistemas de educação e formação e as necessidades do mercado de trabalho.
Até ao momento, apesar da diminuição da oferta de trabalho e da alegada saturação do
mercado de trabalho para absorver os diplomados do ensino superior, diversos estudos
têm evidenciado que estes mantêm vantagem no processo de inserção profissional, em
termos de acesso e de estabilidade num mais curto período de tempo, quando
comparados com os que não detêm um diploma, constatando-se, por essa via, uma
correlação positiva entre o nível de instrução e a empregabilidade [Freire 2009, N. Alves
2008 e 2010, M. Alves 2010, Chaves 2010]. Contudo, não se pode descurar que “mesmo o
jovem com formação superior que procura o seu primeiro emprego pode encontrar
dificuldades insuperáveis se as suas capacidades não se ajustarem às necessidades dos
empregadores” [Calisto 2009: 17].
Com o presente artigo, inserido no projecto de doutoramento em curso com o apoio da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pretende-se fazer uma breve incursão
teórica e conceptual do conceito competência associado às aprendizagens adquiridas no
ensino superior, na sua acepção de ‘lugar de produção de competências’, assim como
partilhar parte dos dados recolhidos através do inquérito aplicado aos diplomados da
Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Lisboa que terminaram o curso de
licenciatura no ano lectivo 2004/2005, no referente às competências que os diplomados
consideram ter adquirido ou desenvolvido com a frequência do curso de licenciatura.
Os dados foram recolhidos entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2011 pelo CESNOVA –
Centro de Estudos em Sociologia da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do projecto
“Percursos de inserção dos licenciados: relações objectivas e subjectivas com o
trabalho” (PTDC/CS-SOC/104744/2008).

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1. Da universidade para o mercado de trabalho: a


inserção profissional dos diplomados do ensino
superior e o “modelo de competências”
Apesar de nos depararmos com a inexistência de consenso em relação à missão da
universidade, vários autores têm criticado a atribuição à universidade da finalidade
principal de preparação para a inserção no mercado de trabalho, por reduzir as
diferentes dimensões do ensino superior a uma visão mais economicista da educação.
Para Morgado [2001], o ensino superior tem como tarefa produzir profissionais dotados
das capacidades e competências necessárias à sua rápida integração numa determinada
actividade profissional e, em simultâneo, com capacidade cognitiva que permita uma
rápida aquisição de competências promotoras do desenvolvimento e transformações
sociais. Segundo Bergan [2008: 118], uma das finalidades principais da universidade
consiste em formar diplomados que contribuam para o bem-estar económico do seu
país, tendo presente quatro finalidades: “i) Preparação para a empregabilidade
sustentável; ii) preparação para viver como cidadãos activos em sociedades
democráticas; iii) desenvolvimento pessoal; iv) desenvolvimento e manutenção de uma
ampla base de conhecimento avançado”.
De acordo com Silva [2002], as universidades devem ter em conta as oportunidades e as
necessidades de cada contexto e conjuntura, pois, de acordo com a realidade social,
económica e cultural, a formação superior deve assumir características de instituição
capacitadora de recursos humanos qualificados para o mercado de trabalho.
O discurso de adequação das aprendizagens às necessidades do mercado de trabalho
caracteriza os primeiros estudos sobre a inserção profissional dos diplomados do
ensino superior. Mas ainda hoje nos deparamos com esta questão. De acordo com N.
Alves [2008], a investigação sobre esta temática engloba o estudo da relação entre os
conteúdos de ensino e os conteúdos do trabalho.
Os diplomados do ensino superior constituem uma população heterogénea, pois
diferem nas trajectórias e percursos de inserção profissional, de acordo com os recursos
que podem mobilizar e as formações académicas que detêm. Perante o trabalho, os
diplomados podem encontrar quatro situações diferentes, o emprego, o desemprego, a
inactividade e a formação [Labbé & Abhervé 2005]. E atendendo às diferenças que
caracterizam os diplomados, os seus percursos podem ser lineares ou marcados por
períodos de precariedade e ou desemprego.
Quer os diplomados que se encontram inseridos no mercado de trabalho, quer os que
pretendem aceder, deparam-se com exigências de saberes cognitivos, teóricos e
operacionais e conhecimentos científicos e técnicos, que podem ser denominados por
“competências”3.
O conceito de competência não beneficia de uma definição consensual e não se
encontra estabilizado. Contudo, tem sido utilizado por permitir articular a conexão
existente entre o conhecimento, o pensamento e a acção. As competências têm por base
saberes, que podem igualmente ser designados por recursos. Nesta ordem de ideias, a
competência é “uma mais-valia acrescentada aos saberes: a capacidade de a utilizar
para resolver problemas, construir estratégias, tomar decisões, actuar no sentido mais
vasto da expressão” [Perrenoud 2003: 13].

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2. A emergência do “Modelo de competência”: O


trabalho como realização de competências
O “modelo de competência” [Dubar 2006: 97] tem a sua primeira abordagem em 1955,
em França, dando início a uma nova perspectiva do trabalho, que passa a ser entendido
como uma actividade de resolução de problemas, presente na obra de Alain Touraine,
L’evolution du travail ouvrier aux usines Renault. A partir de meados do ano 1980, em
França, a “lógica da competência” desenvolveu-se quase em simultâneo nas
organizações de trabalho e em certos segmentos do sistema educativo e apresentava
como características “a individualização dos saberes, a prática dos saberes através das
‘competências’ e a aplicação dos saberes em relação a cada situação profissional”
[Dubar & Gadea 1999: 97]. O modelo de competência tem, segundo Dubar [2006: 98],
como fundamento o “questionamento de uma concepção mais burocrática da
qualificação, previamente adquirida e sancionada por um diploma, dando direito a uma
contratação, a um nível de classificação (e de salário), que corresponde ao nível do
diploma, e que assegura de seguida a progressão salarial, mais ou menos automática,
pela antiguidade”.
Na década de 1990, assiste-se ao desencadeamento da aplicação do modelo nas
empresas francesas, assim como a sua expansão ao contexto europeu. A par da
implementação de um novo modelo de trabalho, assistem-se a modificações na lógica
da competência, resultado de diferentes factores: (i) emergência da noção de
“empregabilidade”4 [Dubar 2006: 99, Boltanski & Chiapello 2005], devido a mudanças no
mercado de trabalho e ao aumento do desemprego entre os executivos, o que impeliu à
defesa de que cada assalariado passasse a ser responsável pela aquisição e manutenção
das suas próprias competências; (ii) reforço da teoria neo-clássica do capital humano
[Dubar & Gádea 1999], através da qual a formação é concebida como um investimento
individual a rentabilizar, pelo que os indivíduos tornam-se duplamente responsáveis
pelas suas competências, pois compete-lhes adquirirem-nas e caso não as detenham
poderão deparar-se com constrangimentos no mundo do trabalho; (iii) transformações
ocorridas no mundo do trabalho [Boltanski & Chiapello 2005], com incidência no
aumento das taxas de desemprego, presença de desemprego estrutural, intensificação
do ritmo de trabalho, crescimento do trabalho temporário e a tempo parcial,
polarização da estrutura habilitacional da população activa e consequente angústia e
medo de perder o trabalho [Maurin 2007]; (iv) transformações nas organizações do
trabalho [Bellier 2003], que passam a contemplar a polivalência do trabalhador e a
flexibilidade, num contexto pela terciarização5 da economia.
Segundo Dubar [2006], no caso das profissões qualificadas, o diploma continua a ser o
“filtro” para a contratação, o que relativiza a novidade da lógica da competência num
contexto de desemprego e de inflação de diplomas. Assim, o modelo de competência
não visa substituir a lógica das qualificações negociadas colectivamente a partir de
diplomas profissionais pela lógica das competências individualmente adquiridas no
trabalho e reconhecidas pela empresa com base no desempenho, mas dar origem a
mudanças de comportamentos e atitudes profissionais por parte dos (candidatos a)
trabalhadores.
Ainda no presente momento, deparamo-nos com diversas definições do conceito de
competência, atendendo às características socioeconómicas e culturais dos diferentes

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contextos. De uma forma sintetizada, a competência consiste na aptidão individual e


subjectiva para poder utilizar qualificações, saber-fazer e conhecimentos [Lopes &
Suleman 1999] e sendo “a qualificação incorporada no sujeito… pode ser ‘vendida’ ou
‘alugada’, durante um tempo, a uma empresa” [Dubar 2006: 99]. Neste sentido, a
competência supõe “um ser racional e autónomo que gere as suas formações e os seus
períodos de trabalho, segundo uma lógica de maximização de si” [Dubar 2006: 111], que
se traduz em comportamentos: “agir e ou resolver problemas profissionais de forma
satisfatória num contexto particular ao mobilizar diversas capacidades de maneira
integrada” [Bellier 2003: 244].
De um ponto de vista sociológico, a emergência do modelo da competência em
substituição do modelo da qualificação teve lugar no campo da sociologia do trabalho
[Santos 2010: 36], no qual é entendida como “um constructo organizacional,
contingente ao funcionamento da empresa e que procura responder a necessidades de
gestão individualizada de mão-de-obra” [Suleman 2006: 42] e abordada do ponto de
vista da relação do indivíduo com o seu contexto profissional. Segundo Santos [2010], a
ideia de mobilização de saberes em contexto profissional é um dos principais
contributos da sociologia para o estudo das competências.
Segundo Suleman [2001], a competência consiste em conhecimentos e capacidades que
são ou podem ser mobilizados em situações profissionais ou contextos de trabalho
particulares, tendo como essência a mobilização e demonstração de saberes
estruturados e combinados em função de um problema a resolver. A competência
engloba as dimensões teórica, instrumental, social e cognitiva, pelo que é composta por
conhecimentos teóricos, pela capacidade de aplicação prática ou de operacionalização
desses conhecimentos, pela capacidade de cooperar e de se relacionar com os outros e
pela capacidade de combinação de saberes heterogéneos, de forma a se encontrar
soluções e resolver problemas profissionais.
A competência está ligada à acção e é contextual e permite agir e ou resolver problemas
de forma satisfatória num contexto particular, com base na mobilização de diversas
capacidades de maneira integrada. Segundo Figueira e Rainha [2005: 7], o termo
competência é entendido como um conjunto integrado de aptidões e capacidades que
cada indivíduo possui e que o habilita a resolver problemas e a desenvolver actividades
de natureza profissional e pessoal. Na mesma ordem de ideias, a competência conduz a
um desempenho num dado contexto profissional, com base na mobilização de
conhecimentos e da experiência, pelo que pode ser entendida como o “domínio de um
conjunto de capacidades operativas que é necessário mobilizar para a execução (com
bom desempenho) das tarefas que constituem cada profissão” [Cardim & Miranda 2007:
126].
Para Neves [2010], as competências englobam a dimensão do conhecimento, entendido
como o acervo de factos, princípios, teorias e práticas relacionados com um domínio de
estudos ou de actividade profissional, e a dimensão da aptidão, que visa a capacidade de
aplicar o conhecimento e utilizar os recursos adquiridos para concluir tarefas e
solucionar problemas. Esta capacidade pode-se caracterizar por ser cognitiva
(utilização de pensamento lógico, intuitivo e criativo), prática (destreza manual e o
recurso a métodos, materiais, ferramentas e instrumentos) e ser demonstrada por
atitudes e comportamentos (capacidade para desenvolver tarefas e resolver problemas
de maior ou menor grau de complexidade, com diferentes graus de autonomia e
responsabilidade).

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De acordo com Suleman [2001], o conceito de competência-chave surge para responder


aos novos desafios económicos e integra-se numa lógica mais dinâmica de questionar e
acrescentar permanentemente os conhecimentos e capacidades necessárias para
responder às transformações da envolvente socioeconómica, marcada por mudanças
rápidas e contínuas, características de uma economia com base no conhecimento 6.
Nos anos 1980, a noção de “economia baseada no conhecimento” (knowledge-based
economy) emerge com vista a chamar a atenção para o facto de o processo produtivo ser
cada vez mais baseado em actividades intensivas em conhecimento, caracterizando
“uma economia em que a capacidade de aprender é crucial para o sucesso económico
dos indivíduos, das regiões, das organizações e das nações e em que aprender consiste
em desenvolver novas competências e adquirir novas capacidades, para além do acesso
à informação” [Lopes 1998: 15]. O conceito emerge, assim, associado à problemática do
planeamento da educação, tendo em vista facilitar uma coerência dinâmica entre oferta
e procura na relação entre os sistemas de educação e formação e o mercado de
trabalho.
Perante a diversidade de definições e caracterizações, tendo em vista a uniformização
do conceito no espaço europeu, a União Europeia adoptou a designação “competências-
chave”, que podem ser de quatro ordens: (i) técnicas, que consistem na aquisição de
competências no domínio das tecnologias de informação; (ii) metodológicas, referentes
às capacidades cognitivas que possibilitam a comunicação abstracta com recursos
tecnológicos; (iii) sociais, que respeitam à colaboração em equipas, comunicação e
cooperação; (iv) comportamentais, respeitantes a atitudes, comportamentos e valores
[Suleman 2001]. As competências-chave7 caracterizam-se por serem: (i) transversais a
diferentes contextos e profissões; (ii) transferíveis, de forma a garantirem a capacidade
de adaptação e reacção face a situações imprevistas; (iii) adquiridas, através de
conteúdos disciplinares, metodologias de formação adequadas e no âmbito de modelos
de organização qualificantes8; (iv) reinterpretáveis, em função dos contextos, das
profissões e da situação no mercado de trabalho; (iv) adaptativas, dinâmicas e
evolutivas, pois devem ter em conta as condições socioeconómicas.
No que se refere ao contexto europeu, o Conselho e o Parlamento Europeu
apresentaram uma lista de competências-chave que constituem “uma complexa
conjugação de conhecimento, capacidades, atitudes e valores, que vão para além da
aplicação de capacidades cognitivas ou do uso de competências funcionais” [Carneiro et
al. 2010: 250]: (i) comunicação na língua materna; (ii) comunicação em línguas
estrangeiras; (iii) competência matemática e competências básicas em ciência e
tecnologia; (iv) competência digital; (v) aprender a aprender; (vi) competências sociais
e cívicas; (vii) sentido de iniciativa e empreendedorismo; (viii) consciência e expressão
cultural.
No presente artigo, entende-se por competências-chave o “conjunto de conhecimentos
e capacidades que deve ser detido por qualquer indivíduo para entrar ou manter-se no
mercado de trabalho, ou seja, para o exercício qualificado de qualquer profissão, para
enfrentar com sucesso uma situação profissional, para gerir a carreira em contextos
turbulentos, flexíveis e evolutivos, ou para o auto-emprego” [Suleman 2001: 121].

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3. Os diplomados do ensino superior em processo de


inserção profissional e as competências-chave
Atendendo às alterações ocorridas no mercado de trabalho e ao crescente aumento do
número de diplomados do ensino superior, torna-se necessário associar o estudo da
inserção profissional deste grupo à identificação dos estratos profissionais, pois o
acesso a uma profissão consentânea com a formação adquirida pode ter deixado de ser
uma ocorrência linear, dando antes origem a percursos de transitoriedade entre
diferentes situações profissionais.
Os diplomados fazem parte do grupo de técnicos superiores, quer pela tipologia de
intervenção esperada, quer pela formação detida, que pode ser caracterizada pela
execução de trabalhos de apoio técnico ou de planeamento, organização, preparação e
controle do trabalho, com carácter teórico-prático, e com base na adaptação de
orientações gerais às necessidades concretas de execução [Cardim & Miranda 2007].
Mas na actual conjuntura, a entrada dos diplomados do ensino superior no mercado de
trabalho pode ocorrer através de outros estratos profissionais.
Segundo Cardim e Miranda [2007: 180], o exercício qualificado das actividades que
integram cada profissão exige que os profissionais as conheçam e que possuam ou
dominem um conjunto de “capacidades de operação”, designadas por “competências”.
As mudanças no mundo do trabalho deram origem a novas demandas quanto às
competências que os indivíduos devem deter quando pretendem ingressar no mercado
de trabalho. E se, por um lado, é esperado que os diplomados sejam especialistas no seu
domínio profissional, por outro, a natureza dinâmica do mercado de trabalho e a
crescente procura de mobilidade implica um maior grau de flexibilidade e a posse de
um conjunto genérico de competências que assegurem a empregabilidade ao longo de
todo o percurso profissional.
Para um diplomado ser especialista na sua área profissional deve, assim, dominar o
conhecimento científico da área profissional em que se formou, ter pensamento
analítico (capacidade de usar esse conhecimento e domínio para diagnosticar e resolver
problemas complexos relacionados com a sua área de trabalho) e ter capacidade de
liderança e actuar de forma directiva em situações de incerteza. Neste sentido, com a
frequência do curso de licenciatura os diplomados devem desenvolver “a competência
de adaptação constante às mudanças de contexto, por exemplo, aprender rapidamente
novos conhecimentos e habilidades, por serem detentores de um conjunto de
capacidades gerais e multidisciplinares, e a competência para lidar com a mudança”
[Allen & Velden 2007: 12].
De acordo com Calisto [2009: 19], a definição de competência no contexto do ensino
superior depara-se com uma diversidade de propostas9, mas encontra algum consenso
no seu entendimento como capacidade integrada orientada para o desempenho, tendo
em vista a consecução de realizações específicas, com enfoque no desempenho
profissional. A distinção entre “competências recurso”, que são adquiridas no sistema
educativo e servem de suporte às competências profissionais, e as “competências
profissionais específicas” permite ajudar a clarificar o papel das instituições do ensino
superior na produção de competências, “num contexto educativo, a ‘competência’ é a
capacidade geral das pessoas … para desempenharem uma actividade, uma tarefa ou
resolverem um problema que se coloca” [Mulder 2007: 12].

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As aprendizagens efectuadas no ensino superior constituem uma das dimensões da


competência, pois traduzem os conhecimentos, capacidades e habilidades que
permitem um desempenho profissional eficiente [Calisto 2009: 25]. No entanto, se é
certo que o ensino contribui para o desenvolvimento de competências, torna-se
necessário distinguir entre competências mobilizáveis, como os conhecimentos e as
capacidades, e as competências reais no trabalho, que dependem de factores intrínsecos
(motivos) e extrínsecos (contexto de trabalho, condições de trabalho e sistemas de
avaliação).
A preocupação com a necessidade de adaptação dos conhecimentos académicos às
necessidades da sociedade do conhecimento tem levado à emergência, no contexto
europeu, de projectos com enfoque nas competências detidas e requeridas aos
diplomados do ensino superior, nomeadamente: REFLEX – Research Into Employment
and Professional Flexibility, HEGESCO – Higher Education as a Generator of Strategic
Competences e CHEERS – Careers After Higher Education: An European Research Study
[Carneiro et al. 2010]. Tais projectos pretendem contribuir para a análise do papel do
ensino superior na preparação dos diplomados para o mercado de trabalho,
questionando se o ensino superior proporciona uma boa base para se começar a
trabalhar e ter um bom desempenho profissional, com base na análise da opinião dos
diplomados. Assim, pretendem identificar que competências são requeridas aos
diplomados e de que forma as instituições do ensino superior pode contribuir da
melhor maneira para o desenvolvimento deste tipo de competências.
Segundo Pavlin [2009: 17], as competências mais requeridas aos diplomados no
processo de inserção profissional são o “domínio de um campo de conhecimento
específico; competências relacionadas com a aprendizagem, sendo as principais a auto-
aprendizagem e o desenvolvimento de capacidade de aprendizagem contínua;
proficiência pessoal, sendo fundamental a capacidade de trabalhar em equipa e a
capacidade de gestão do tempo; competências de comunicação em língua estrangeira;
competências em tecnologias de informação e comunicação (TIC)”. A categorização
apresentada define três tipos de competências genéricas: (i) competências
instrumentais: capacidades cognitivas, metodológicas, tecnológicas, linguísticas; (ii)
competências interpessoais: capacidades individuais para a interacção social e
cooperação; (iii) competências sistémicas: habilidades e capacidades relacionadas com a
combinação entre compreensão, sensibilidade e conhecimento]. Além das competências
genéricas, é igualmente identificado um outro conjunto de competências específicas ao
grau de licenciado [Carneiro et al. 2010: 268]: domínio da área ou disciplina de
conhecimento; conhecimento de outras áreas ou disciplinas; pensamento analítico;
capacidade para adquirir novo conhecimento de forma rápida; capacidade para
negociar eficazmente; capacidade para trabalhar bem sob pressão; estar atento a novas
oportunidades; capacidade para usar o tempo de forma eficiente; capacidade para
trabalhar de uma forma produtiva com outros; capacidade para mobilizar as
capacidades dos outros; capacidade para tornar claro aos outros as suas opiniões e
propósitos; capacidade para fazer exercer a sua autoridade; capacidade para usar
computadores e Internet; capacidade para contribuir com novas ideias e soluções;
vontade de questionar as suas ideias e as dos outros; capacidade para apresentar
produtos, ideias ou relatórios a uma audiência; capacidade para escrever relatórios,
memorandos ou documentos; capacidade para escrever e falar em língua estrangeira.

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4. Competências adquiridas no ensino superior: A


percepção dos diplomados da Universidade Nova de
Lisboa e da Universidade de Lisboa
A abordagem do modelo de competências parece relevar a importância de se dotar os
diplomados do ensino superior com as condições necessárias para se adaptarem às
alterações que ocorrem no mundo do trabalho, que se caracteriza, do ponto de vista dos
agentes sociais, pelo fim do emprego para toda a vida e pela diminuição da linearidade
das carreiras profissionais. Estas mudanças implicam uma alteração de
comportamentos e atitudes, pois a cada um é exigida uma postura mais activa, em
termos de empregabilidade, auto-formação e manutenção de traços profissionais
distintivos identificáveis pelas entidades empregadoras. Assim, as mudanças no mundo
do trabalho podem afectar a percepção das necessidades de competências mais
valorizadas pelos empregadores, assim como induzir um comportamento diferente dos
diplomados, centrado no desenvolvimento constante e contínuo de competências.
Tendo presente a definição do conceito de competência associado à frequência do curso
de licenciatura, e a sua correspondência a classificações e tipologias apresentadas,
denominamos por competências as capacidades desenvolvidas pelos diplomados, na
medida em que se caracterizam pelos conhecimentos e recursos que os diplomados
detêm no momento de início do percurso de inserção profissional.
A identificação das competências adquiridas com o curso de formação superior pelos
diplomados, cinco anos após o término da licenciatura e com a experiência da vivência
do confronto com o mundo do trabalho, consiste numa forma de procurar conhecer a
avaliação da relação entre as competências adquiridas e desenvolvidas na universidade
e as mais valorizadas e requeridas pelo mercado de trabalho.
No estudo em curso, que tem como objecto os diplomados pela Universidade Nova de
Lisboa e pela Universidade de Lisboa, procurou-se levantar dados sobre a avaliação que
estes diplomados fazem de algumas competências desenvolvidas com a frequência do
curso de licenciatura, no ano lectivo 2004/2005, nomeadamente em relação a: trabalhar
em equipa; negociação; planeamento; liderança; pensamento crítico; comunicação oral
e escrita; tomar decisões; dominar técnicas e tecnologias; comunicação oral e escrita em
língua estrangeira.
A amostra é constituída por 1.004 diplomados de duas das maiores instituições do
ensino superior públicas portuguesas, a Universidade Nova de Lisboa (UNL) e a
Universidade de Lisboa (UL). A maior parte dos inquiridos (90,2%) situa-se entre os 27 e
os 35 anos, com maior incidência na faixa etária dos 28 aos 32 anos (61,5%). Grande
parte da amostra (64,3%) é do sexo feminino, contra 35,7% do sexo masculino. A maioria
(81,4%) dos inquiridos ainda não tem filhos. Os diplomados residem maioritariamente
no concelho de Lisboa (76,69%), seguindo-se a Região Centro (7,77%). No que se refere
ao regime de coabitação, 53,39% vivem com o cônjuge, 20,02% vivem sozinhos e 19%
habitam com os pais ou os sogros. Passados 5 anos após o término da formação, a
grande maioria dos diplomados (87,3%) encontra-se fortemente inserida no mercado de
trabalho, sendo que os restantes se encontram com o estatuto de bolseiro (5,5%),
inactivos (3,7%), desempregados (2,4%) e a estagiarem (1,1%). Os dados foram
recolhidos pelo CESNOVA entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2011. Os diplomados

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encontram-se repartidos pelas áreas de formação constantes do gráfico 1, de acordo


com o International Standard Classification of Education (ISCED).

Gráfico 1 – Área de formação dos diplomados da UNL e da UL, de acordo com o ISCED 1997 (%)
(N=1.004)

Fonte: CESNOVA 2011

Independentemente da situação profissional em que se encontram, passados 5 anos


após terem terminado os cursos de licenciatura, os diplomados muito provavelmente já
viram confrontados os seus conhecimentos académicos e aprendizagens com as novas
exigências do mercado de trabalho, em termos de conhecimentos, saberes e
comportamentos no contexto do trabalho.
Das competências anteriormente enunciadas, procurou-se identificar quais as que os
diplomados consideraram que desenvolveram mais com a frequência do curso.
Em termos gerais, os diplomados da UNL e da UL consideram que desenvolveram mais
as competências constantes do gráfico 2.

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Gráfico 2 – Competências mais desenvolvidas, por área de formação (%)

Fig. 2: Identificação das três competências consideradas mais desenvolvidas


(classificadas de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo) com a frequência do curso de
licenciatura com término em 2004/2005, por área de formação, dos diplomados da UNL e da
UL (N=1.004
Fonte: CESNOVA 2011

As competências que os diplomados consideram que mais foram desenvolvidas no curso


de licenciatura são o “Pensamento crítico”, que se encontra fortemente presente em
todas as áreas de formação, e “Dominar técnicas e tecnologias”, que é, no entanto,
apontada pelas áreas de Engenharias, Indústria Transformadora e Construção e Saúde e
Protecção Social. Estas duas áreas, com forte componente prática ao longo da
frequência do curso, visam a formação de especialistas para actividades profissionais
que têm como base o domínio técnico e tecnológico.
Em termos gerais, os diplomados hierarquizam as competências desenvolvidas no
curso, tal como se refere no quadro 1.

Quadro n.º 1 – Hierarquização das competências mais desenvolvidas pelos diplomados do ano
2004/2005 da UNL e da UL (frequência e %)

Competências Frequência Percentagem

1.º Pensamento crítico 749 74,6

2.º Comunicação oral e escrita 691 68,8

3.º Dominar técnicas e tecnologias 526 52,4

4.º Tomar decisões 525 52,3

5.º Planeamento 505 50,3

6.º Trabalhar em equipa 445 44,3

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7.º Liderança 312 31,1

8.º Comunicação oral e escrita numa outra língua 294 29,3

9.º Negociação 243 24,2

Legenda: Diplomados que atribuíram classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–


Muitíssimo (N=1.004).
Fonte: CESNOVA 2011

Apesar de uma preferência geral coincidente entre diferentes áreas de formação,


encontram-se algumas diferenças que merecem ser destacadas. A competência
“Pensamento crítico” é unanimemente considerada como uma das mais desenvolvidas
por todas as áreas. Encontramos maiores diferenças quanto às restantes competências
como mais desenvolvidas.
A “Comunicação Oral e Escrita” é identificada como a segunda competência mais
desenvolvida pelos diplomados em Educação, Artes e Humanidades, Ciências Sociais,
Direito e Comércio e Ciências, Matemática e Informática. Se tal competência parece
traduzir a forte componente de comunicação escrita e oral dos cursos das três áreas
primeiramente indicadas, no caso dos diplomados em Ciências, Matemática e
Informática, tal classificação parece resultar da quantidade destes diplomados que
seguem a vertente de Ensino, tendo em vista a carreira de docência.
Por seu turno, a competência “Dominar técnicas e tecnologias” apresenta uma forte
representatividade junto aos diplomados em Ciências, Matemática e Informática,
Engenharia, Indústria Transformadora e Construção e Saúde e Protecção Social], o que
parece reflectir a aposta académica no acompanhamento dos avanços técnicos e
tecnológicos que são considerados conhecimentos de base para o bom desempenho
profissional nestas áreas de formação.
Já a competência “Tomar decisões” é considerada como uma das mais desenvolvidas
pelos diplomados em Ciências Sociais, Comércio e Direito e em Saúde e Protecção
Social, enquanto a competência de “Planeamento” é apenas identificada pelos
diplomados em Educação e “Trabalho em equipa” pelos diplomados nas áreas de
Engenharia, Indústria Transformadora e Construção.
No que se refere às competências identificadas como menos desenvolvidas com a
frequência do curso de licenciatura, encontram-se maiores semelhanças na avaliação
dos diplomados.
Os diplomados das seis áreas de formação referem que a competência menos
desenvolvida com o curso de licenciatura é “Comunicação oral e escrita em língua
estrangeira”, à excepção dos licenciados em Artes e Humanidades, provavelmente pelo
facto de as línguas fazerem parte integrante dos planos curriculares dos cursos destas
áreas.
A capacidade de “Negociação” é apontada como outra das competências menos
desenvolvidas pelos diplomados, à excepção dos formados nas áreas de Ciências Sociais,
Comércio e Direito.
Além de identificarmos algumas semelhanças na classificação das competências menos
desenvolvidas, os diplomados apresentam diferenças atendendo à área de formação. Os
detentores de diploma das áreas de Educação, Artes e Humanidades e Ciências Sociais,

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Comércio e Direito referem “Trabalhar em equipa” e os detentores de uma habilitação


nas áreas de Ciências, Matemática e Informática, Engenharia, Indústria Transformadora
e Construção e Saúde e Protecção Social referem como menos desenvolvida a
capacidade de “Liderança”.
Os licenciados em Ciências Sociais, Comércio e Direito são os únicos que apontam
“Dominar técnicas e tecnologias” como uma das competências menos desenvolvidas
com a frequência do curso (ver gráfico 3), o que pode apontar para uma forte vertente
teórica no processo de ensino académico.

Gráfico n.º 3 – Competências menos desenvolvidas pelos diplomados em 2004/05, por área de
formação (%)

Legenda: Classificação de 1 a 3, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=1.004).


Fonte: CESNOVA 2011

Os diplomados das seis áreas de formação referem que a competência menos


desenvolvida com o curso de licenciatura é “Comunicação oral e escrita em língua
estrangeira”, à excepção dos licenciados em Artes e Humanidades, provavelmente pelo
facto de as línguas fazerem parte integrante dos planos curriculares dos cursos destas
áreas.
A capacidade de “Negociação” é apontada como outra das competências menos
desenvolvidas pelos diplomados, à excepção dos formados nas áreas de Ciências Sociais,
Comércio e Direito.
Além de identificarmos algumas semelhanças na classificação das competências menos
desenvolvidas, os diplomados apresentam diferenças atendendo à área de formação. Os
detentores de diploma das áreas de Educação, Artes e Humanidades e Ciências Sociais,
Comércio e Direito referem “Trabalhar em equipa” e os detentores de uma habilitação
nas áreas de Ciências, Matemática e Informática, Engenharia, Indústria Transformadora
e Construção e Saúde e Protecção Social referem como menos desenvolvida a
capacidade de “Liderança”.
Os licenciados em Ciências Sociais, Comércio e Direito são os únicos que apontam
“Dominar técnicas e tecnologias” como uma das competências menos desenvolvidas
com a frequência do curso, o que pode apontar para uma forte vertente teórica no
processo de ensino académico.

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A maior aproximação na hierarquização das competências adquiridas entre algumas


áreas de formação chama a atenção para a necessidade de se ter em conta os planos de
estudos destes cursos, assim como os conteúdos curriculares, as metodologias de ensino
e o perfil de saída, associado à profissão para a qual estão a ser formados, na análise das
competências.
Se, por um lado, certos cursos podem depender do “Trabalho em equipa” para a
concretização de resultados, como o trabalho interdisciplinar entre a Arquitectura e a
Engenharia e a Medicina e a Enfermagem, por outro, nas áreas de Ciências Sociais e
Humanas, onde por vezes o trabalho pode passar pela tomada de decisões e a
coordenação de pessoas, os diplomados referem a “Liderança” como uma das
competências menos desenvolvidas.
Deparamo-nos com áreas que se aproximam mais e outras que se distanciam,
parecendo haver maior similitude, em termos gerais, entre as áreas de Educação, Artes
e Humanidades e Ciências Sociais, Comércio e Direito no que se refere às competências
mais desenvolvida (“Pensamento crítico” e “Comunicação oral e escrita”), face às áreas
de Engenharias, Indústria Transformadora e Construção e Saúde e Protecção Social, que
identificam como competências mais desenvolvidas “Dominar técnicas e tecnologias”,
seguida, com pouca diferença, pela competência de “Pensamento crítico”.
Os diplomados da Área de Ciências, Matemática e Informática, aproximam-se dos dois
grupos, pois identificam como competências mais desenvolvidas o “Pensamento
crítico” e “Dominar técnicas e tecnologias”, sem uma diferença significativa na
classificação. Tal resultado, pode apontar para a necessidade de se separar esta área em
subáreas, ou o ramo Científico do ramo Ensino, atendendo às características dos
diferentes cursos que a compõem e que podem, quando agrupados, alterar os
resultados. Para se comparar as áreas de formação, apresenta-se a hierarquização das
competências desenvolvidas com o curso de licenciatura dos diplomados da UNL e da
UL:

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Gráfico 4. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da Área de “Educação”

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=100).


Fonte: CESNOVA 2011

Gráfico 5. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da área de “Artes e Humanidades”

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=215).


Fonte: CESNOVA 2011

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Gráfico 6. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da área de “Ciências Sociais, Comércio e Direito”

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=241).


Fonte: CESNOVA 2011

Gráfico 7. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da área de “Ciências, Matemática e Informática

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=285)


Fonte: CESNOVA 2011

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Gráfico 8. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da área de “Engenharias, Indústria Transformadora e
Construção”

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=35)


Fonte: CESNOVA 2011

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Gráfico 9. Hierarquização das competências mais desenvolvidas com a frequência do curso de


licenciatura dos diplomados da UL e da UNL da área de “Saúde e Protecção Social”

Legenda: Classificação de 8 a 10, na escala: 1–Nada a 10–Muitíssimo (N=128)


Fonte: CESNOVA 2011

Quer no que se refere às competências mais desenvolvidas, quer às menos


desenvolvidas, encontram-se algumas semelhanças na ordenação.
A maioria dos diplomados identificou “Comunicação oral e escrita em língua
estrangeira” como a competencia menos desenvolvida. Tal aspecto chama a atenção
para o facto de os diplomados poderem sentir o domínio de línguas estrangeiras como
uma ferramenta necessária no dia-a-dia profissional e como um aspecto diferenciador
positivo no mercado de trabalho. A capacidade de “Negociação” e de “Trabalho em
equipa” são apontadas como competências menos desenvolvidas, o que chama a
atenção para o facto de o desempenho profissional implicar a interacção social, que
assenta nas competências sociais e comportamentais, defendidas como importantes na
actual sociedade.
5. Breves considerações finais
A inserção profissional é um tema que tem merecido crescente atenção no contexto
europeu, resultado da percepção de alterações na forma como se processa a passagem
da vida escolar para a vida profissional. Se o estudo desta temática associada a jovens
com menores habilitações escolares tem sido abordada na literatura, outras análises
têm sido realizadas tendo como objecto os diplomados do ensino superior. O aumento
da duração das carreiras escolares, do número de diplomados e do número de
estudantes a frequentarem o ensino superior, assim como a diversificação dos públicos
que acedem a este nível de ensino, perante um cenário de crise económica, a que se
associa precariedade, insegurança e incerteza para os que querem aceder ao mercado
de trabalho, têm levado a uma complexificação dos processos de inserção profissional.

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Nas diversas abordagens que se dedicam ao estudo da inserção profissional,


encontramos referência à relação entre os sistemas de educação e formação e o
mercado de trabalho, quer na vertente da procura de uma coerência dinâmica entre
oferta e procura, quer no sentido de dotar os diplomados com as competências
necessárias a uma inserção profissional rápida e pautada pela linearidade e não pela
precariedade.
Os diplomados constituem uma população heterogénea, pois diferem nas trajectórias e
percursos de inserção profissional, de acordo com os recursos que podem mobilizar e as
formações académicas que detêm. Num momento em que se assiste ao aumento do
número de diplomados do ensino superior em Portugal, outros factores, para além da
posse do diploma, têm permitido diferenciar as capacidades e potencialidades do
(candidato a) trabalhador, no momento de entrada no mercado de trabalho.
Apesar de diversos estudos defenderem que os diplomados mantêm vantagem
comparativa no acesso e na estabilização no mercado de trabalho em relação aos que
não detêm um diploma, não se pode descurar que, no actual momento de maior
constrangimento económico, outros factores podem assumir maior preponderância no
processo de inserção profissional. À procura do diploma junta-se, assim, a procura de
profissionais que detenham conhecimentos, capacidades e atitudes consentâneas com a
actual sociedade do conhecimento, isso é, que demonstrem competências técnicas,
tecnológicas, teóricas, sociais e comportamentais ao longo do seu percurso profissional.
Os diplomados da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Lisboa que
terminaram o curso de licenciatura no ano lectivo 2004/2005 identificam como
competências mais desenvolvidas com a frequência académica, em termos gerais,
“Pensamento crítico”, “Comunicação oral e escrita” e “Domínio de técnicas e
tecnologias”. A capacidade de “Tomar decisões” é apontada como uma das
competências mais desenvolvidas por metade das áreas de formação.
A “Comunicação oral e escrita em língua estrangeira” é a competência que os
diplomados identificam como a menos desenvolvida, sendo transversal aos diplomados
de todas as áreas, à excepção dos formados na área de Artes e Humanidades, na qual
depreendemos a presença de línguas estrangeiras nos planos de estudos ao longo do
percurso académico. A capacidade de “Negociação” é a competência menos
desenvolvida indicada em 2.º lugar, sendo identificada por todas as áreas de formação, à
excepção dos diplomados da área de Ciências Sociais, Comércio e Direito, que
identificam “Dominar técnicas e tecnologias”.
Quer o “Trabalho em equipa”, quer a “Liderança”, são em termos gerais apontadas
como competências menos desenvolvidas pelos diplomados. Mas, contrariamente ao
esperado, as áreas de Educação, Artes e Humanidades e Ciências Sociais, Comércio e
Direito apontam “Trabalhar em equipa” como uma das competências menos
desenvolvidas, enquanto os detentores de um diploma nas áreas de Ciências,
Matemática e Informática, Engenharia, Indústria Transformadora e Construção e Saúde
e Protecção Social apontam a falta de capacidade de “Liderança”.
Atendendo à maior semelhança ou diferença entre as diversas áreas de formação
(Educação, Artes e Humanidades, Ciências Sociais, Comércio e Direito, Ciências,
Matemática e Informática, Engenharia, Indústria Transformadora e Construção e Saúde
e Protecção Social), considera-se que o estudo das competências desenvolvidas no
ensino superior aponta para a necessidade de se analisar os resultados tendo em conta

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os planos de estudos, as metodologias de ensino e o perfil de saída da cada curso, para


que se possa proceder a uma análise comparativa entre as áreas de formação.
Cinco anos após o início do processo de inserção profissional dos diplomados da UNL e
da UL, a identificação das competências desenvolvidas no ensino superior foi feita em
comparação com as competências requeridas pelo mercado de trabalho. E como lidam
os diplomados com as competências requeridas e não detidas? Apesar de nos
depararmos com políticas que defendem a obrigação de as entidades empregadoras
facultarem formação anual aos trabalhadores, tais actividades podem ocorrer
maioritariamente nos tempos de não trabalho e suportadas pelos (candidatos a)
trabalhadores. Esta aposta poderá significar que o tempo que resta para além do tempo
do trabalho, por norma dividido pelas outras esferas da vida social (a família, a
participação social, a religião, a política, os tempos livres, os lazeres), contemple o
investimento no desenvolvimento de competências como estratégia de
empregabilidade10.

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NOTAS
1. Segundo Calisto [2009:15], a empregabilidade pode ser entendida como a “disponibilidade
pessoal de capacidades e competências relevantes para os empregadores”.
2. De acordo com Lapa [2006: 30], o ideal-tipo do “espírito do capitalismo flexível” caracteriza-se
por uma mudança de comportamentos do trabalhador, pois a todos é exigido que se tornem
“adaptáveis, flexíveis, abertos à mudança e à aprendizagem de novas competências para
vingarem ou simplesmente sobreviverem no mundo do trabalho”.
3. De acordo com Pacheco [2003: 58], competência significa “capacidade, poder de apreciar ou
resolver dado assunto”, “conjunto de conhecimentos teóricos ou práticos que uma pessoa
domina, de requisitos que preenche e são necessários para um dado fim”, “aptidão para fazer
bem alguma coisa”.
4. Manter-se em estado de competência, de competitividade no mercado (como nos mantemos
em bom estado físico), para se poder ser contratado para uma “missão” precisa e limitada [Dubar
2006: 99]. Segundo Boltanski e Chiapello [2005: 144], “o futuro flutua – os riscos e a incerteza são a
regra”, pelo que cada trabalhador deve procurar criar um fundo de aptidões, o que se designa por
empreendedorismo.
5. Crescimento sustentado no sector dos serviços, com destaque para as actividades de produção
e aplicação de conhecimentos, gestão de patrimónios, prevenção e conservação da saúde,
entretenimento e lazer, comunicações e distribuição [Rodrigues e Félix 2000: 44].
6. Na economia do conhecimento, as ideias, a informação e as formas de conhecimento sustentam
a inovação e o crescimento económico, encontrando-se a grande parte da força de trabalho
envolvida não na produção material ou distribuição de bens materiais, mas na sua concepção,
desenvolvimento, tecnologia, marketing, vendas ou serviços [Giddens 2004].
7. Para consultar o perfil tipo de competências-chave, v. Suleman [2001: 126].
8. A expressão “organização qualificante”, de origem francesa, visa traduzir organizações
(unidades económicas, desde empresas a hospitais, associações sem fins lucrativos e
administrações públicas) em que as situações de trabalho contribuem para o desenvolvimento
das competências dos trabalhadores e para o desenvolvimento da capacidade colectiva de
adaptação ao meio envolvente [Lopes 1998: 15-40].
Arlinda Cabral

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9. Para ver uma definição completa de competência por autores, v. Calisto [2009: 25].
10. Para procurarmos ilustrar esta questão, que faz parte do projecto de doutoramento em curso,
serão aplicadas complementarmente entrevistas em profundidade.

RESUMOS
Falar dos processos de inserção profissional dos diplomados do ensino superior implica abordar a
relação entre as competências que os diplomados detêm após finalizarem o percurso académico e
as necessidades identificadas no mercado de trabalho. Aos que querem começar a trabalhar, é
exigido domínio aprofundado de conhecimentos teóricos, científicos e técnicos e competências
consentâneas com a sociedade contemporânea. Com o presente artigo pretende-se apresentar o
conceito de competência-chave, assim como dados referentes às competências que os diplomados
da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e da Universidade de Lisboa (UL) (duas das maiores
universidades públicas portuguesas) consideram ter desenvolvido com a frequência do curso de
licenciatura, passados cinco anos após terem obtido o diploma do ensino superior.

Studying the processes of transition to work of higher education graduates implies the study of
relationship between the knowledge that graduates hold after finalizing the academic course and
the needs identified in: the labor market. To those who want to start working is required
theoretical, technical and scientific knowledge, and skills consistent with contemporary modern
society. The present article aims to present the sociological concept of key qualification, as well
as data obtained through questionnaires on skills that graduates of two major universities of
Portugal, Universidade Nova de Lisboa e Universidade de Lisboa, consider more and less
developed with the frequency of the first academic degree, five years after graduation.

ÍNDICE
Keywords: employability of graduates, labor market, theoretical and scientific knowledge, key
qualifications
Palavras-chave: inserção profissional de diplomados, mercado de trabalho, conhecimentos
teóricos e científicos, competências profissionais

AUTOR
ARLINDA CABRAL
Socióloga, Mestre em Sociologia (área de Conhecimento, Educação e Sociedade) pela Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Licenciada em Ciências da
Educação. Trabalhou como assistente na Escola Superior de Tecnologias de Saúde de Lisboa e foi
Pró-Reitora para a Graduação, Inovações Pedagógicas e Ensino à Distância da Universidade de
Cabo Verde. [e-mail: arlindacabral@gmail.com]

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Pobreza e desigualdades sociais

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Desigualdade social e pobreza:


ontem, hoje e (que) amanhã
Social Inequality and Poverty: yesterday, today and (what) tomorrow

Cesaltina Abreu

NOTA DO EDITOR
Artigo pedido à autora
Recebido a: 22/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012

1. Um olhar sobre a origem das desigualdades sociais


1 Num ensaio sobre o pauperismo moderno, Memoir on Pauperism (1833), Alexis de
Tocqueville [Tocqueville 1997: 17], afirma: “Quando se cruzam vários países da Europa
fica-se impressionado por um panorama muito extraordinário e aparentemente
inexplicável. Os países que parecem mais pauperizados são os que, na realidade, têm
menos indigentes, e nas sociedades mais admiradas pela sua opulência, uma parte da
população vê-se obrigada a depender de doações dos demais para viver”.
2 Na Inglaterra da época, a par de uma sensação de prosperidade generalizada e visível
nos caminhos, nas casas, nas propriedades agrícolas e pecuárias bem tratadas, enfim,
uma sociedade com mais comodidades do que havia encontrado em qualquer outro
lugar, Tocqueville refere que os registos da paróquia demonstravam que “um sexto dos
habitantes desta sociedade florescente vivem a expensas da caridade pública”
[Tocqueville 1997 17]. Recorrendo ao seu método de análises comparadas, ele comparou
a situação da Inglaterra com outros países europeus, nomeadamente Portugal,
aparentemente mais pobre, mas apresentando uma proporção de indigentes da ordem
de 1 em cada 25 ou 98 pessoas (segundo as diferentes fontes); outras comparações
permitiram-lhe afirmar que “os pobres ingleses parecem quase ricos em comparação

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com os pobres franceses; e os últimos são considerados de igual maneira pelos pobres
espanhóis” e que “os números eram diferentes mas o fenómeno era o mesmo... o
número de pobres em cada um destes países estava em relação inversa com a situação
real dos pobres” [Tocqueville 1997 17].
3 Tocqueville recorre à história para encontrar as origens da desigualdade. Divide a
história em 3 fases: independência selvagem, etapa intermédia e liberdade política e
civil – ou seja, a barbárie e a civilização, com uma fase intermédia, correspondente à
Idade Média, durante a qual se originam (segundo ele) as causas da pobreza e da
indigência,.de acordo com a seguinte evolução:
• Independência selvagem – organização social baseada na solidariedade e auto-satisfação com
a partilha dos bens comuns obtidos da pesca, da recolecção e da agricultura em campos
colectivos. É o mundo das desigualdades naturais; não existem condições de transformação
destas desigualdades naturais em desigualdades de capacidade de apropriação nem
mecanismos de perpetuação destas desigualdades, a propriedade é colectiva e o objectivo é a
sobrevivência. Exemplo: as sociedades índias americanas;
• Etapa intermédia entre a ‘independência selvagem’ e a ‘liberdade política e civil’. Geração do
supérfluo, através de um processo de aproveitamento de capacidades naturais de cultivar a
terra e dela tirar mais do que o necessário para a satisfação das necessidades básicas. É a
transformação da propriedade em fundamento da desigualdade: os fisicamente melhor
dotados e mais habilidosos na arte de cultivar, começam a ter melhores resultados, mais
produção, mais poder e maior capacidade de se apropriarem de mais terra; a necessidade de
retenção desta apropriação no seio da família gera os fundamentos do mecanismo de
reprodução das desigualdades assim nascidas. As relações de dominação que se estabelecem
entre poucos muito fortes e muitos cada vez mais fracos, gera um ambiente favorável à
instalação da tirania dos senhores. É neste período que acontecem as invasões bárbaras e
Tocqueville atribui o seu grande sucesso à divisão social que então caracterizava as
sociedades. Os bárbaros conquistam o governo e também as terras e seus cultivos e produtos:
estão criadas as condições para o estabelecimento da sociedade feudal que corresponde
historicamente à Idade Média.
4 As desigualdades, então um facto, transformam-se em direito; da igualdade primitiva, os
homens retrocedem para um estágio de desigualdade feudal, estabelecida e
reproduzida com base na propriedade, na qual existem apenas duas classes: a dos
senhores proprietários e a dos que trabalham as suas terras – os que têm terras sem as
cultivarem e aqueles que as cultivam sem as possuírem. As relações sociais entre os
senhores e os seus servos, ou vassalos, eram estabelecidas na base de uma reciprocidade
de vantagens: estes cultivavam a terra e prestavam toda a sorte de serviços, enquanto
àqueles cabia alimentar, vestir e garantir a subsistência dos seus dependentes,
incluindo a sua defesa em caso de guerras, calamidades ou catástrofes.
5 O gosto pelo prazer e bem-estar, inerente à natureza humana, vai desempenhando o
seu papel, através da criação de novas necessidades, do corpo e do espírito, que não
encontra resposta cabal nas principais actividades até aí dominantes: a agricultura e a
criação de gado. Nasce a pequena indústria manufactureira que, para responder às
necessidades crescentes da procura, se alastra e movimenta cada vez mais pessoas do
campo para a cidade. Aumenta, portanto, o número de pessoas que corta os laços
tradicionais de protecção do senhor e procura, neste novo mercado, melhores
condições para vender a sua força de trabalho, tornando-se duplamente mais
vulnerável, porque entregue a si próprio e às suas capacidades e, também, porque

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deixou de produzir os meios básicos para a sua subsistência. Não possui qualquer
recurso adicional para enfrentar uma época de crise em que se verifique a redução da
procura por força de trabalho. Para Tocqueville, esta é a causa original e estrutural do
aparecimento da indigência. A esta causa estrutural, acrescenta outra de origem
cultural e que resulta da naturalização das necessidades supérfluas como se de
necessidades básicas se tratassem: o consumo ou o exemplo estimulam o hábito ou a
necessidade de consumir, definindo miséria relativa2 como aquela que decorre da
impossibilidade dos indivíduos satisfazerem as novas necessidades que, não sendo
essenciais no sentido absoluto, são progressivamente incorporadas nos usos e
costumes, tornando-se culturalmente necessárias.
6 Desta análise, decorre a conclusão de que o progresso da civilização implica a produção
permanente de mais e diversificadas necessidades que não podem ser satisfeitas por um
número crescente de pessoas, que nada mais tem como moeda de troca senão a sua
força de trabalho, e se encontra vulnerável aos efeitos das crises cíclicas dos processos
económicos de produção, constituindo-se num grupo-alvo muito susceptível de ter de
recorrer ao apoio da sociedade para poder sobreviver. Os movimentos de expropriação
de terras em posse de pequenos proprietários, colocaram milhares de pessoas na
condição de abandonarem o campo, deixar os seus parcos bens e haveres, e procurar
nas cidades, meios de subsistência. Por não estarem habilitados às actividades
manufactureiras, a maioria enfrentou enormes dificuldades para vender a força de
trabalho, único bem que lhe restava.
7 Como foi anteriormente referido, assim se originou a indigência nas sociedades feudais,
como consequência – ética e socialmente nefasta – inevitável do progresso da
civilização, embora valorize esta como melhoria, crescimento, avanço, progresso das
luzes e prosperidade. Na segunda parte do seu ensaio, Tocqueville analisa os resultados
da aplicação dos princípios da reforma protestante no alívio da pobreza, ressaltando
que esta havia convertido a caridade, até então praticada individualmente, “em assunto
de acção social e não mais uma virtude particular, e se havia transformado de uma
obrigação moral num direito legal” [Tocqueville 1997 25-37]. Analisou cuidadosamente
os efeitos visíveis que a aplicação da Lei dos Pobres provocava, a começar pelo facto de
“ao garantir a todos os pobres os meios de subsistência como um direito legal, a
Inglaterra os eximia da obrigação de trabalhar” [apud Himmelfarb 1988: 177] 3. Apesar
de na sua aplicação estar previsto o exame prévio e individual das causas da pobreza e
reservado o direito de ajuda apenas àqueles que, tendo condições físicas para o fazer,
trabalhassem, a verdade é que não havia condições para dedicar o tempo e o esforço
necessários a este exame individual, e mesmo que os houvesse, não haveria certamente
trabalho suficiente para a sexta parte da população da Inglaterra, em situação de
indigência. Na sua conclusão, comentava as soluções até então existentes para eliminar
a pobreza através da intervenção das políticas públicas de previdência e da caridade da
sociedade, concluindo que ambas são insuficientes e ineficientes, e que é preciso
encontrar mecanismos de prevenção da pobreza, nomeadamente a regulação da
produção e do consumo, para evitar a depressão e a crise, e a promoção da poupança
nas classes trabalhadoras para que pudessem manter-se em épocas de necessidade
[Tocqueville 1997: 38].
8 Adam Smith [apud Himmelfarb 1988: 55-79] considerava que a vida económica da
humanidade se caracterizava por fases distintas e sequenciais, e que a sua evolução se
baseava na psicologia humana em busca, por um lado, de bem-estar e, por outro lado,

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na obtenção desse bem-estar com o menor esforço possível, o que teria originado o
sistema de permuta, fundamento da divisão social do trabalho. A crescente procura por
um maior e mais diversificado leque de bens para satisfazer necessidades sempre
crescentes, estariam na origem dessa evolução. Nas suas obras Teoria dos Sentimentos
Morais e Riqueza das Nações, por diversas vezes expressou preocupação pela situação da
maioria pobre dos trabalhadores ingleses, nomeadamente quando dizia que “o
património de todo o homem é o seu trabalho, já que é o fundamento original de toda a
propriedade, por isso é o mais sagrado e inviolável. O património de um pobre baseia-se
na sua força e na habilidade das suas mãos; por isso, impedi-lo de empregar força e
habilidade da maneira que creia adequada sem prejudicar o seu próximo, é uma
violação clara da propriedade mais sagrada” [apud Himmelfarb 1988: 69]. Defendia
igualmente uma maior justiça social no cálculo dos salários, criticava a inexistência de
um salário mínimo, apoiou a lei que exigia que os patrões pagassem aos seus
trabalhadores os respectivos salários em dinheiro e não em mercadorias, afirmando:
“Sem dúvida, nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz se a maioria dos seus
membros são pobres e miseráveis. Além disso, é justo que os que alimentam, vestem e
dão alojamento a todo o conjunto de pessoas, tenham uma parte do produto do seu
próprio trabalho para que comam, se vistam e vivam toleravelmente bem” [apud
Himmelfarb 1988: 65].
9 Destacando o papel essencial da educação na criação e fortalecimento das capacidades
naturais e na geração de melhores oportunidades, a sua preocupação foi ao ponto de
propor a criação de um sistema de educação provido pelo Estado, a preços simbólicos
para os filhos das famílias mais pobres, com o objectivo de lhes permitir tornarem-se
melhores cidadãos, melhores trabalhadores e melhores seres humanos, participantes
livres e plenos da economia e da sociedade. Defendia um sistema de impostos concebido
para que os valores fossem cobrados em função da capacidade de pagamento e que
apenas artigos de luxo deveriam ser taxados. Para Adam Smith, os pobres tinham os
mesmos valores e paixões das demais classes, desconsiderando qualquer diferença inata
nas capacidades de uns e de outros, o que lhes “permitia trabalhar no sistema de
liberdade natural e beneficiar-se com ele, como qualquer outra pessoa”, sendo o
sentido da responsabilidade moral que defendia em favor dos pobres, o seu direito a
salários altos, a um mais elevado nível de vida e o benefício de qualquer outra
vantagem da economia livre em expansão [apud Himmelfarb 1988: 79].
10 É interessante verificar que, já em 1833, Tocqueville utilizava a noção de pobreza
relativa e de ‘entitulamento’, para além de chamar à atenção para os problemas
resultantes da institucionalização da pobreza como categoria económica e social: por
um lado, a estigmatização social dos pobres – através da sua inscrição nos registos para
apoio, assumiam publicamente a sua menoridade enquanto cidadãos dependentes do
Estado ou de terceiros, a progressiva perda de autoestima e de liberdade, o desestímulo
ao trabalho e à vontade de melhorar as respectivas condições de vida e, por outro lado,
a ineficiência de um sistema administrativo, na aplicação generalizada e sem critérios
específicos das determinações legais de apoio aos pobres.
11 Também Adam Smith, conhecido como o pai da economia moderna, já então mostrava a
sua preocupação com a crescente pobreza na Inglaterra do seu tempo (século XVIII) e
apresentava algumas soluções que permanecem actuais, como o acesso dos pobres à
educação, a necessidade de justiça salarial, a reforma fiscal, e o equacionamento da
relação entre liberdade e progresso social.

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2. Dois séculos depois … a pobreza hoje


Como se vê e se define pobreza

12 Partindo da definição de Amartya Sen [1992: 95], de que a “capacidade de uma pessoa
consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível
para ela”, pode entender-se pobreza como a impossibilidade de uma pessoa, ou grupo
de pessoas, transformar essas capacidades em oportunidades para viverem a vida de
acordo com seus objectivos e vontades, ou ainda, a incapacidade de alcançar o bem-
estar devido à falta de meios económicos e à impossibilidade de converter rendimentos
e recursos escassos em capacidade de funcionar [Sen 1992: 110].
13 Colocada a questão nesta perspectiva, em tempos de globalização dos sistemas
económicos nacionais e regionais, a pobreza é uma categoria que abrange muito mais
pessoas do que aquelas que usualmente são classificadas como pobres, atendendo
unicamente à sua localização numa estrutura social de distribuição de rendimento. À
incapacidade de sustentar as suas necessidades básicas devido ao baixo rendimento,
acrescem, nesta perspectiva, a falta de condições para viver uma vida mais longa, o não
acesso às facilidades de educação e de saúde, a dificuldade em escapar a uma situação
de sub ou mal nutrição crónica, o não acesso a água potável, a energia eléctrica, a
condições de habitabilidade dignas e meio ambiente saudável, o não acesso à cultura e
ao lazer, os quais resultam em desvantagens quase inultrapassáveis para competir no
mercado de trabalho, e que, por sua vez, estão na base da reprodução do círculo vicioso
da pobreza: sem trabalho nem rendimento, não existem condições objectivas nem
subjectivas para acesso à educação e à saúde, mães sub ou malnutridas e pouco
escolarizadas ou analfabetas colocam no mundo mais crianças com desvantagens à
nascença, que irão confrontar-se com os mesmos problemas, muitas vezes agravados,
que os seus progenitores enfrentam e que não terão condições de as alterar em seu
favor.
14 Nesta percepção de pobreza caberão não apenas a maioria da população dos países em
desenvolvimento, nomeadamente na África e na Ásia e em parte da América Latina,
como também grupos de indivíduos em países desenvolvidos, constituindo as chamadas
bolsas de pobreza que, por uma ou várias das razões anteriormente referidas, não
conseguem alcançar os patamares de bem-estar e progresso social que caracterizam as
respectivas sociedades.
15 Segundo Cardoso, E. e Helwege, A. [1990: 105], na revisão dos trabalhos sobre pobreza
na América Latina “a constatação de altos níveis de rendimento na região em relação a
outras áreas em desenvolvimento indica que na raiz do problema está a desigualdade
na distribuição de rendimento”, acrescentando que “o crescimento per se não pode ser
visto como solução primária contra a pobreza na América Latina”, apontando para a
necessidade de se encararem programas dirigidos de combate à pobreza. Para estas
autoras “a pobreza económica é um reflexo da pobreza política, já que os pobres não
têm poder de reivindicação, tendo em vista não possuírem capital nem representação
sindical”, no que se aproximam da abordagem de Sen, acima exposta. Afinal, a
incapacidade de intervenção política resulta da falta de liberdade política e esta é uma
das causas primeiras de prevalência da pobreza em muitos contextos sociais.

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16 Tendo como base o rendimento, Altimir [apud Cardoso & Helwege 1990: 112] definiu
‘pobreza absoluta’ como o rendimento abaixo de um nível consistente com a
subsistência. A dificuldade reside em definir os conceitos básicos desta elaboração
(necessidades e subsistência) e, por conseguinte, que rendimento para garantir que
subsistência, uma vez que estes conceitos têm uma forte componente cultural: o que
pode satisfazer um nível básico de necessidades de um pobre da África subsaariana
pode ser absolutamente insuficiente para um pobre de uma grande cidade dos Estados
Unidos. Por outro lado, é muito difícil quantificar o rendimento necessário para pagar
serviços de educação ou de saúde, da mesma forma que não parece possível considerar
níveis mínimos de rendimento para garantir uma habitabilidade condigna em meio
ambiente são, ou para cobrir as suas necessidades com vestuário e calçado. A pobreza
relativa, comummente definida como a percentagem da população que vive com menos
do rendimento mediano numa dada população, é claramente uma medida de
distribuição de rendimento e, como tal, obviamente insuficiente para abranger as
diversas formas que a pobreza, enquanto privação de capacidades, pode apresentar.
17 A dificuldade em definir pobreza é ressaltada por Paes de Barros [Paes de Barros et al.
1992: 16], ao afirmar que “pobreza é um fenómeno complexo que significa coisas
diferentes para diferentes pessoas”. A relevância do conceito depende basicamente do
nível de vida e da forma como, numa dada sociedade, são atingidas as diversas
necessidades humanas. Embora uma inadequada inserção social, e a ausência de poder
e dependência psicológica, estejam estreitamente associadas a pobreza, a maneira mais
directa para determinar quem é pobre numa dada sociedade é definir uma lista de bens
e serviços básicos necessários para funcionar nessa sociedade e associá-la a um valor
monetário. Esta linha de pobreza é o parâmetro usado para distinguir os pobres dos não
pobres baseada nos seus rendimentos, mas na pesquisa em referência foi considerada
uma análise combinada de linha de pobreza e indicadores sociais, permitindo avaliar a
pobreza em termos de resultados efectivos de qualidade de vida.
18 Para o Banco Mundial [1990: 1], pobreza é privação de rendimento ou, noutra
abordagem, “a incapacidade de atingir um nível de vida mínimo” [Banco 1990: 27],
reconhecendo que relacionadas a esta definição, três questões se colocam: Como medir
o nível de vida? O que se entende por nível de vida mínimo? Como expressar a extensão
da pobreza através de um único índice ou medida? No Relatório sobre o Desenvolvimento
Mundial de 1990, dedicado ao tratamento da pobreza no mundo em desenvolvimento, o
Banco anuncia que o objectivo é medir a pobreza, quantitativa e qualitativamente, e
aprender com os países que conseguiram reduzir significativamente os níveis de
pobreza, terminando com uma pergunta sobre o que seria possível fazer, até ao final do
século XX, caso os governos se mobilizassem para enfrentar este desafio. Numa outra
passagem do Relatório, o Banco reconhece que tem havido uma evolução histórica no
conceito de pobreza, acrescentando “os critérios que definem se alguém é pobre ou não
tendem a reflectir prioridades nacionais específicas e conceitos normativos de bem-
estar e de direitos” [Banco 1990: 28].
19 Existem certamente várias outras obras tratando deste tema, para além das
consultadas, mas segundo Cardoso e Helwege [1990: 106], “os estudos sobre a pobreza
quase inexistem”4. Da exposição resulta evidente a dificuldade prevalecente em definir
um fenómeno com o qual convivemos no dia-a-dia – a pobreza. E esta dificuldade
parece residir na abrangência que a sua conceptualização obriga: identificar situações
de pobreza continua a parecer mais simples e fácil do que caracterizá-la.

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20 Em nossa opinião, a abordagem apresentada e defendida ao longo dos 12 capítulos do


seu livro, por Amartya Sem, é a de maior abrangência, colocando a questão bem na sua
origem, ou seja, na impossibilidade real das pessoas tirarem proveito dos seus
potenciais (para alguns, já de si bastante afectados à nascença por inúmeras
desvantagens acumuladas) para viverem a vida do seu jeito, sem que sejam criadas
condições, pelo estado e pela sociedade, que permitam incluir as liberdades
substantivas na pauta da procura incessante de maior igualdade de condições, de
oportunidades e de resultados.
21 Esta é, também, a posição de Brian Turner [1986: 36], quando analisa os tipos de
igualdade e refere que “programas sociais de discriminação positiva em favor de grupos
desprivilegiados ou em desvantagem (tais como mulheres, crianças ou minorias
étnicas) são concebidos para compensar visíveis desigualdades de condições, para
alcançar uma igualdade significativa de oportunidades que assegure uma igualdade de
resultados”; e ainda quando conclui que “estas formas de igualdade foram associadas
com programas políticos desenhados para redistribuir a riqueza através da reforma
fiscal, bem-estar e outras formas de melhorias sociais”.
22 O conceito de consumo inerente às abordagens da pobreza como disponibilidade ou
ausência de rendimento deve ser alargado para outros tipos de consumo, como acesso a
serviços públicos ou recursos sociais, possibilidade de ter uma vida mais longa e mais
saudável, direito de exercer cidadania activa e participar no processo de tomada de
decisão, oportunidade de acesso à recriação e ao lazer, enfim, à oportunidade de
realizar sonhos.

Quem são e onde estão os pobres?

23 Para o Banco Mundial [1990: 1], é simples dizer quem são e onde se encontram os
pobres: são todos aqueles que “lutam para sobreviver ganhando menos de US$ 370 por
ano”, calculados em aproximadamente 1 bilião de pessoas e encontram-se
principalmente nos países em desenvolvimento, ou seja, países de baixo e médio
rendimento em todos os continentes [Banco 1990: xi]. Contudo, no seu
desenvolvimento, o Relatório aponta para a necessidade de um maior conhecimento
sobre quem são os pobres!
24 Dada a amplitude e a diversidade de situações sob esta designação ‘pobre’, a saída
apresentada parece resultar do pragmatismo de dividir a população de uma
determinada sociedade em duas partes (os pobres e os não pobres), aplicando ao
segundo conjunto uma variedade de análises que permita não apenas criar
subcategorias, mas também melhor identificar os seus integrantes.
25 Da análise da bibliografia consultada resulta claro que esse é o método geralmente
seguido: tomam-se os decis de mais baixo rendimento e seleccionam-se grupos-alvo, os
quais são analisados em função do interesse particular das hipóteses que se pretendem
demonstrar ou das respostas que se pretendem obter. É assim que a maioria dos
trabalhos disponíveis sobre a análise da desigualdade social (portanto, um âmbito bem
mais abrangente porque relativo ao todo social) tratam categorias ou grupos sociais
relativamente a um aspecto, como por exemplo, a regionalização, a ‘raça’, o género,
sectores dentro do mercado de trabalho, etc. Os de carácter mais geral não permitem
uma análise detalhada dos distintos subconjuntos que podem ser encontrados quando
se aborda o contingente dos pobres no mundo.

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26 Com base na bibliografia consultada parece, entretanto, pacífico generalizar que os


pobres, predominantemente:
• Habitam o Hemisfério Sul do nosso planeta, concentrando-se em áreas regionais com
recursos naturais relativamente mais escassos;
• Vivem nas áreas rurais, mais remotas, embora a recente explosão de urbanização e o êxodo
rural para as periferias das grandes cidades, tenha originado ou ampliado o aparecimento de
enormes bolsas de pobreza urbana e peri-urbana;
• São desempregados;
• Constituem a base da pirâmide salarial (quando empregados);
• Encontram-se no sector informal;
• São crianças;
• São mulheres;
• Pertencem a minorias étnicas;
• Não são brancos.
27 No mundo de hoje, pertencer a qualquer dos subconjuntos é sinal de desvantagem à
partida e as possibilidades de sair dessa situação são muito mais limitadas.

Como são os pobres

28 Decompondo o conteúdo de pobreza enquanto privação de capacidades, podem


encontrar-se várias formas quer de privação de capacidades em si (incluindo a privação
de rendimento), quer de privação de posse de bens (materiais e não materiais) que
compõem o todo das necessidades vitais do ser humano.
• Assim, de uma maneira geral, os pobres:
• Constituem famílias grandes;
• Têm uma esperança de vida relativamente mais curta – elevadas taxas de mortalidade e
estados de sub ou mal nutrição crónica;
• Consomem aproximadamente metade do rendimento de que dispõem em alimentação, em
geral insuficiente e inadequada;
• São analfabetos ou semianalfabetos;
• Não dispõem de rendimento;
• Não possuem de outros bens que não a vida;
• Vivem em condições precárias em termos de espaço e qualidade do meio ambiente;
• Não têm geralmente acesso ao crédito;
• São excluídos dos processos de tomada de decisões, não exercendo cabalmente o seu direito
de cidadania;
• Alimentam poucos sonhos e esperanças de exercer um papel decisivo na mudança das suas
vidas.
29 Este conjunto de características encerra em si os mecanismos de reprodução do ciclo da
pobreza: não dispõem de rendimento porque não desenvolveram capacidades para se
habilitarem a melhores e mais remunerados postos de trabalho, e não melhoram as
suas capacidades e habilidades porque não dispõem de rendimentos que lhes assegurem
o acesso aos serviços básicos de educação e saúde, a condições dignas de habitabilidade,
ao recreio e ao lazer, que lhes permitam competir no mercado de trabalho com menos
desvantagens à partida. A exclusão do processo de participação e cidadania influencia
as atitudes e dificulta a mobilização para um melhor aproveitamento das oportunidades
sociais.

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Quantos são os pobres

30 Retomando a definição de pobreza inserida no relatório do Banco Mundial [1990: 27]


como “a incapacidade de atingir um nível de vida mínimo”, resgata-se para a análise
deste ponto, uma das três questões a ela acopladas: Como expressar a extensão da
pobreza através de um único índice ou medida?
31 Esta parece constituir uma das maiores dificuldades na quantificação da ordem de
grandeza deste fenómeno e na compreensão da diversidade de situações que ele pode
abranger. Para a tomada de medidas eficientes e eficazes no combate à pobreza é
imperativo saber quem são, quantos são e onde se encontram os pobres de uma
determinada sociedade.
32 As medidas mais comuns baseiam-se em indicadores económicos de rendimento, outros
combinam indicadores de rendimento e de consumo. São os mais utilizados, apesar de
algumas tentativas para associar indicadores económicos, sociais (como por exemplo: a
expectativa de vida, acesso aos serviços básicos de educação, saúde, água potável,
energia, saneamento básico) e políticos, como por exemplo liberdades individuais,
direitos humanos, etc., de forma a dar uma informação mais realista do estado social de
determinada região ou país.

Medições de pobreza

33 A medida de pobreza mais comummente referida nas estatísticas nacionais é o


percentual da população que se situa abaixo da chamada linha de pobreza (nível de
rendimento abaixo do qual as pessoas são consideradas pobres), variável de país para
país e, dentro deste, variável com o tempo e a conjuntura económica e social. É o
método conhecido como head count e aparece na literatura técnica designado pela letra
H. Na terminologia do Banco Mundial esta medida de pobreza designa-se índice
censitário.
34 Esta linha é estabelecida a um nível específico de rendimento para cada sociedade em
um dado momento. Indivíduos cujos rendimentos estão abaixo do nível da linha de
pobreza, ou cujo nível de consumo é valorizado abaixo da linha de pobreza, são
considerados pobres. Como medida de pobreza é completamente indiferente à variação
de rendimentos abaixo da linha da pobreza, limitando-se a contar o número de pessoas
que se encontram abaixo dessa linha e a calcular a sua percentagem relativamente ao
todo da população.
35 A insuficiência de rendimento, designada pela letra I, mede o rendimento necessário
para elevar todos os pobres acima da linha da pobreza, ou seja, é o rendimento mínimo
necessário para eliminar a pobreza. Esta insuficiência de rendimento, também
conhecida por Deficit de pobreza na terminologia do Banco Mundial, pode ser expressa
em per capita. Este índice de pobreza é completamente insensível ao número de pessoas
envolvidas e apenas retém o diferencial médio de rendimento dos pobres relativamente
à linha da pobreza.
36 Amartya Sen [2000: 103] considera que estas medições são insuficientes, não apenas
para quantificar, mas também para fornecer as informações necessárias à concepção de
uma estratégia adequada de combate à pobreza. A combinação destes dois índices
continua a ser considerada insuficiente por Sen, por não permitir uma adequada base

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de informação para medir a pobreza, uma vez que nenhum deles permite conhecer a
variação de rendimentos entre os pobres. Por esta razão, desenvolveu uma medida de
desigualdade de distribuição de rendimentos entre os pobres, conhecido por coeficiente
de Gini, ou ainda como medida de pobreza de Sen, que se traduz matematicamente pela
seguinte fórmula:
37 P = H. I + (1 – I) G
38 em que P = medição da pobreza segundo H, I e G; H = % de pessoas abaixo da linha de
pobreza; I = Gap de rendimentos; G = Coeficiente de Gini. O coeficiente de Gini varia
entre 0 (representando uma igualdade total) e 1 (representando uma desigualdade
total).
39 Para Paes de Barros, a maneira mais directa de determinar quem é pobre numa dada
sociedade é definir a lista de bens básicos e serviços necessários para funcionar nessa
sociedade e associar-lhes um valor monetário. Para eles esta linha de pobreza é o
parâmetro usado para distinguir os pobres dos não pobres com base nos seus
rendimentos. Esta metodologia permite acomodar aspectos culturais relativos a hábitos
alimentares por exemplo, bem como ter em conta a variabilidade dos preços nas
diversas regiões. Assim, foi calculado o valor da cesta de alimentos ajustada às
preferências de cada região do Brasil, de forma que a combinação perfizesse o valor
ideal de 2 400 calorias/dia, após o que foi calculado o valor dos bens não alimentares a
partir do ratio entre as despesas alimentares e as despesas totais do decil mais baixo
sem deficiências calóricas (o que dá a entender que se procurou calcular o valor de bens
não alimentares para um grupo da população com uma dieta alimentar equilibrada).
Tais padrões de consumo, específicos para cada região abrangida pela pesquisa em
referência, podem ter os seus custos actualizados e as linhas de pobreza assim
calculadas servirem de referência para outros estudos comparativos [Paes de Barros et
al. 1992: 16].
40 Apesar das limitações que o seu uso oferece, qualquer dos métodos acima referidos tem
o seu valor de uso para distintas etapas da avaliação de situações de pobreza e
elaboração de estratégias visando a sua erradicação:
• head count é, apesar da mais generalizada, uma avaliação incompleta, porque baseada
essencialmente na perspectiva do rendimento ou, em alguns casos, do rendimento e da
despesa. Permite ficar com um dado de referência sobre a quantidade de pessoas que
compõe o subconjunto populacional dos pobres e a sua localização. Para que seja um dado de
referência significativo é necessário que o cálculo do rendimento que vai definir a linha de
pobreza (que dividirá os pobres dos não pobres), seja realista e abrangente: permita a
aquisição de bens alimentares e não alimentares de primeira necessidade, atendendo a usos
e costumes da população para a qual é calculada e ao diferencial de preços entre distintas
regiões e períodos de tempo.
• coeficiente de Gini permite uma avaliação mais realista da situação dentro do subconjunto
da população pobre, de maneira a cobrir os intervalos de pobreza resultantes de diferenças
nos recursos e capacidades disponíveis. Mas não deixa de ser uma medida de pobreza com
base no rendimento.
• método de cálculo contemplando a cesta básica e outros bens não alimentares, definidos por
padrões de consumo por regiões e cujos valores podem ser actualizados, pode ser uma
medida mais realista se o sentido de consumo for alargado a serviços essenciais, como
educação, saúde, vestuário, água, energia, saneamento, habitação, transporte, recriação,
para citar os que se evidenciam mais pertinentes. Ficam de fora, contudo, aspectos

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relacionados (por exemplo) com a expectativa de vida, acesso e uso de direitos políticos e
cívicos, acesso a crédito e à terra, e outras categorias de valorização de bem-estar social e
progresso económico a que todos os seres humanos têm direito e que compete aos governos
e à sociedade disponibilizarem.

O índice de desenvolvimento humano (IDH)

41 O índice de desenvolvimento humano foi introduzido pela primeira vez em 1990, como
medida para avaliar, planificar e programar o desenvolvimento humano. O IDH é um
indicador composto, contendo três variáveis5: a esperança de vida, os conhecimentos e
os rendimentos, os quais são combinados, segundo um processo em três etapas, para
calcular um indicador único.
42 A esperança de vida é o único indicador não reajustado. O conhecimento (nível de
instrução) é medido através de duas variáveis de base: a alfabetização dos adultos e o
número médio de anos de estudo. O nível de instrução é quantificado numa base
ponderada, atribuindo um peso de dois terços à alfabetização dos adultos e um terço ao
número médio de anos de estudo. Para os rendimentos é utilizado o PIB (produto
interno bruto) real por habitante.
43 O IDH combina cada um dos indicadores, convertendo-os num índice com um valor
máximo de 1 e um valor mínimo de 0. Por exemplo, a esperança de vida mínima
considerada é de 25 anos e a máxima de 85 anos. Em relação ao rendimento, o IDH
utiliza o PIB per capita baseado na paridade do poder de compra (dólar PPC) para
reflectir não só o rendimento exacto mas também o que esse rendimento pode
comprar. Considerou-se como valor limiar do PIB real médio per capita mundial 5 120
dólares PPC.
44 O IDH é a média aritmética dos três indicadores e traduz-se matematicamente pela
fórmula:
45 IDH = (e + Inst + Ind rend) / 3
46 O princípio fundamental do IDH é baseado na posição do país em relação a uma meta
final, expressa como um valor entre o 0 e 1. Países com IDH<0,5 têm um nível baixo em
desenvolvimento humano, os colocados entre 0,5 e 0,8 um nível médio e IDH>0,8
corresponde a um mais elevado nível de desenvolvimento humano.
47 O IDH foi desenvolvido por uma equipa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) chefiada por Amartya Sen e passou a constituir uma medida
anual do desempenho dos países em termos do desenvolvimento do seu potencial
humano. O índice de desenvolvimento humano apresenta uma variante, designada
Índice Ajustado à Desigualdade por Género (IDG), que utiliza as mesmas variáveis do
IDH ajustadas por sexo e compreende:
• Distribuição da população por sexo (%)
• Distribuição da população economicamente activa por sexo (%)
• Esperança de vida por sexo (anos)
• Taxa de alfabetização de adultos por sexo (%)
• Taxa de escolarização bruta
• Salário por sexo (assume-se que o salário masculino é 1).
48 A grande dificuldade para a produção da informação anual apresentada pelo Relatório de
Desenvolvimento Humano do PNUD (que cada ano selecciona uma dimensão central para

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o desenvolvimento como tema), é a produção de dados fiáveis e em tempo hábil para


permitir o seu tratamento e preparação do relatório e respectivas tabelas. A produção
de dados desagregados por sexo é ainda mais difícil de obter. Por essa razão, o PNUD
tem procurado motivar os países a produzirem o seu próprio relatório anual de
desenvolvimento humano, visando não só a produção e tratamento dos dados, mas
também a realização do exercício em si, o qual, mobilizando um ampla equipa nacional
com assessoria do PNUD, vai alargando a base informativa do estado do
desenvolvimento (ou do atraso) do capital humano da sociedade e fornecendo
elementos e motivos para uma intervenção mais esclarecida da sociedade e do governo.

O índice de participação da população (IPP)

49 O índice de participação da população, similar ao IDH, mede a extensão da participação


da população no desenvolvimento e põe em relevo as mudanças anuais. Mede mais a
capacidade do que a privação e é construído a partir de sub-índices que cobrem as
quatro dimensões do desenvolvimento humano, nomeadamente a saúde, educação,
economia e a participação da sociedade civil. O IPP é calculado como uma média
aritmética dos quatro sub-índices que são:
• Sobrevivência e índice de saúde: Crianças com 12-23 meses imunizadas contra o sarampo
(%); Prevalência do uso do preservativo (%);
• Índice educacional: Crianças e jovens entre os 13 e os 18 anos matriculados (%); Crianças no
pré-escolar (iniciação) (%);
• Índice económico: Força laboral empregue no sector informal (%);
• Índice de participação da sociedade civil: Vendas semanais de jornais por mil pessoas;
registo de associações/sociedades por mil pessoas.

Como tornar mais realista a classificação das sociedades com base


no IDH

50 A introdução do IDH como medida de desenvolvimento humano, incluindo variáveis


como a esperança de vida e o efeito complementar resultante da cálculo dos outros
índices apresentados, permite conhecer melhor uma determinada sociedade e
compreender mais facilmente as causas das desigualdades prevalecentes e do estado de
pobreza em que se encontram porções mais ou menos significativas da sua população 6.
51 A sua utilização permitiu, por exemplo, destituir países que em termos de PIB per capita
se posicionam, nas tabelas classificativas mundiais, no grupo de médio rendimento,
para o grupo de baixo rendimento devido ao baixo índice de IDH que apresenta uma
medida mais aproximada das situações de desigualdade de rendimento neles
existentes7.

Os determinantes da pobreza

52 Como atrás se referiu, nas características dos pobres encontram-se alguns dos
principais determinantes da reprodução do ciclo de pobreza. O relatório do Banco
Mundial [1990: 39], no final do Capítulo II, dedicado ao levantamento do conhecimento
sobre os pobres, refere a propósito: “o presente capítulo ressalta dois factores

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importantíssimos que determinam a pobreza: o acesso a oportunidades de auferir


rendimento e a capacidade de reacção”.
53 Se a erradicação da pobreza depende da resolução positiva destes dois factores, é
preciso entender de que forma eles podem ser resolvidos e a quem compete a iniciativa
da sua resolução. Promover o acesso a oportunidades de auferir rendimento pressupõe
a vontade política de criar ou alargar mecanismos de acesso dos pobres,
universalizando oportunidades que apenas poderão ser criadas caso essa vontade
política se materialize através de uma série de medidas nos domínios político,
económico e social. Para que estas medidas sejam eficientes, é preciso que elas sejam
adequadas à resolução progressiva dos problemas existentes num dado contexto e que a
sua realização corresponda às expectativas dos pobres; isso implica que as suas opiniões
e modos de ver e fazer as coisas sejam tidos em conta.
54 A quem compete criar o ambiente propício para que isto aconteça? Ao poder político,
em primeira mão e, também, à sociedade, a qual pode pressionar o poder político a
encaminhar o tratamento da questão da pobreza numa perspectiva nacional, que a
todos diz respeito porque atinge uma parte significativa da sua população e foi
socialmente gerada. Nas esferas do legislativo e do executivo, encontram-se as
possibilidades legais e reais de enfrentar o problema; caso elas não sejam utilizadas
para esse fim, caberá à sociedade, a partir dos sectores mais esclarecidos e influentes,
intervir no sentido de que o futuro seja salvaguardado e não há futuro quando uma
parte da nação está excluída do processo de desenvolvimento.
55 A capacidade de reacção encontra-se no interior de cada um dos pobres, muitas vezes
esquecida ou adormecida pelos embates da vida e pela desesperança resultante da falta
de perspectivas. Mais uma vez, a figura do ciclo vicioso: não reagem porque não têm
perspectivas e não reagindo, permitem que se postergue o inadiável. Em épocas de
campanha política, todos parecem conhecer muito bem os caminhos para reduzir
desigualdades e promover progresso e bem-estar social numa base de justiça social.
Depois, não são suficientemente fortes os movimentos sociais – inclusivamente dos
pobres – para cobrar daqueles que alcançaram o poder à custa do voto, a realização das
promessas feitas; à expectativa segue-se o desânimo e a falta de capacidade de reagir.
Esta é uma capacidade que pode ser incentivada se houver vontade política.
56 Existem, portanto, dois tipos de determinantes: os endógenos à situação de pobreza, às
características dos pobres, e cujo motor de arranque se encontra no seu próprio seio,
embora possa ser necessário um impulso externo para se por em marcha, e os
exógenos, vistos como um conjunto de características e influências externas aos pobres,
mas que exercem um efeito decisivo na remoção ou na prevalência dos primeiros, para
conduzir à erradicação da pobreza ou, pelo contrário, ao seu agravamento.

3. Que esperanças para a erradicação da pobreza?


57 Demasiadas evidências de fracasso de programas de combate à pobreza pelo mundo
demonstram que todo o trabalho de diagnóstico e intervenção só pode produzir
resultados positivos se os próprios pobres estiverem no centro do processo, ou seja, os
resultados alcançados em sociedades que conseguiram reduzir significativamente os
níveis de pobreza (como, por exemplo, a Noruega no século XX) apontam para a
existência de uma relação positiva entre as alianças sociais e as abordagens

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participativas e a melhoria progressiva e sustentável das condições sociais, económicas


e políticas dos pobres.
58 Estas abordagens, que encontram o seu suporte em estruturas de solidariedade entre
grupos ou classes de indivíduos dentro da sociedade, assumem a necessidade de colocar
os pobres no centro do processo tendente a encontrar os caminhos para a erradicação
da pobreza, partindo do princípio de que ninguém melhor do que eles conhece a
dimensão dos seus problemas e a prioridade que atribuem à aplicação das medidas a
tomar e, ainda, porque agindo assim, são paulatinamente eliminadas as barreiras
socioculturais existentes no relacionamento entre grupos sociais, que dificultam a
aproximação e o diálogo.
59 O olhar de fora de uma determinada situação de pobreza e vaticinar os remédios a
aplicar para a sua cura não resultará, uma vez que dificilmente será capaz de avaliar
devidamente a situação e também porque este tipo de intervenção mantém os mais
directamente interessados na resolução do problema excluídos do processo de tomada
de decisões, não sendo possível criar ou reforçar mecanismos de apropriação que não
apenas garantam o seu êxito e sustentabilidade, como promovam a auto-estima e o
progressivo desenvolvimento de uma cidadania activa por parte destes grupos
socialmente discriminados. Isto significa que, incluindo os programas governamentais,
todas as iniciativas da sociedade tendentes a erradicar a pobreza do seu seio, deverão
ser articuladas para incorporarem os pobres, para quem são direccionados tais
programas e iniciativas, em todas as etapas da sua concepção, aplicação e avaliação.
Para além de aumentar a sua eficiência e eficácia, este procedimento tem ainda a
vantagem de colocar o problema no centro das preocupações da sociedade: não será
mais um problema dos pobres e do governo, para passar a ser uma preocupação que a
todos diz respeito e para cuja superação todos podem, e devem, contribuir.
60 A necessidade de integração de medidas económicas tendentes a criar condições para
um aumento progressivo dos rendimentos dos pobres e a introduzir mecanismos de
redistribuição mais equitativos, surge como resultado da análise de situações em que os
progressos alcançados na melhoria de acesso dos pobres aos serviços básicos de
educação e saúde não foram acompanhados de medidas tendentes a aumentar as
oportunidades de emprego nem a alargar os mercados no sentido de incluir os pobres
como agentes e consumidores ou, ainda, em situações em que tendo havido um
crescimento económico, este não se traduziu na redução da pobreza e das
desigualdades sociais.
61 Nos países em desenvolvimento, onde uma parte significativa da população é pobre, é
fundamental que as políticas públicas tomem a iniciativa de criação de oportunidades
sociais nos domínios da educação, saúde, emprego, redes de segurança social, reforma
agrária, entre outros, materializando a prioridade de desenvolvimento dos recursos
humanos visando a expansão de capacidades humanas e de habilidades profissionais e
melhorias na qualidade de vida, o que terá repercussão imediata no aumento da
produção económica e, por consequência, no crescimento económico [Sen, capítulo V] 8.
A focalização nas políticas sociais e no investimento em capital humano como meio de
combater e erradicar a pobreza numa dada sociedade contrasta com a formulação
habitual, que destaca e prioriza o económico relativamente ao social e visa o
crescimento económico como meio de promover o progresso social.
62 A experiência de alguns países e regiões demonstrou que, na maioria dos casos, o
crescimento económico não tem sido acompanhado de uma redução das desigualdades

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de condições e de oportunidades, que constituem as causas da pobreza; pelo contrário,


como afirma Altimir [1994: 29] “os ajustes para absorver tanto as mudanças exógenas
como as inevitáveis em matéria de disponibilidade e utilização de recursos e as
mudanças estruturais ainda em curso, deixaram na maioria das sociedades latino-
americanas a marca de uma distribuição mais desigual do rendimento e uma maior
incidência da pobreza”. E acrescenta “atendendo às escassas perspectivas de que os
rendimentos primários se tornem menos desiguais, inclusive sob a tutela das políticas
económicas, a melhoria na equidade e, particularmente, a redução da pobreza absoluta
dependem muito mais das políticas sociais e da sua eficácia”.
63 Ainda neste domínio, Pastore e Castro [1983: 123] consideram que “a igualização da
estrutura social é um objectivo cuja consecução exige políticas sociais específicas” – o
que também é defendido pela CEPAL [1997: 175] nas conclusões da Mesa Redonda sobre
gestão macroeconómica e redução da pobreza, ao “reconhecer a necessidade de uma
política social activa, porquanto sem ela, mesmo nas economias mais dinâmicas, não se
produziriam as mudanças que conduzissem a uma melhor distribuição do rendimento
nem se formaria o capital humano requerido para manter o crescimento a longo
prazo”.
64 Referindo que “as discussões de políticas voltadas para os pobres geralmente
concentram-se na interacção de crescimento e pobreza” e citando exemplos de
“governos que procuram aumentar os activos dos pobres adoptando duas medidas – a
redistribuição dos activos existentes (como as terras) e o aumento do investimento em
capital humano dos pobres“, o Banco Mundial [1990: 54-58] defende que, “para garantir
que os pobres contribuam para o crescimento e dele participem, é preciso adoptar
políticas sectoriais e macroeconómicas apropriadas, e medidas que ajudem os pobres a
alcançar novas oportunidades de obter rendimentos”, acrescentado que tais políticas
“estimularão um modelo de crescimento que aumente o uso eficiente dos bens
pertencentes aos pobres e ampliarão o acesso dos pobres à terra, ao crédito, à infra-
estrutura e aos ‘insumos’ produtivos”.
65 Quando se apresentaram as características dos pobres, afirmou-se que nessas mesmas
características se encontram as condições de reprodução do ciclo da pobreza, o que vai
no sentido da afirmação de Cardoso e Helwege [1990: 127] de que “mudar as
características dos pobres permanece sendo a estratégia vencedora, porque remove as
causas da pobreza”. A consulta da bibliografia seleccionada reforça este ponto de vista,
reflectindo a ênfase na procura de soluções que compatibilizem a eliminação da
pobreza com o crescimento económico. Ainda a este propósito, a CEPAL apresenta um
conjunto de contra-argumentos à afirmação que mais educação e mais saúde
representam uma carga que desestabiliza o orçamento do Estado, referindo que, a
médio prazo, estes serviços aumentam a viabilidade do processo de desenvolvimento,
na medida em que “satisfazem de forma directa necessidades concretas que
complementam a mobilidade como fonte de legitimidade social, diminuem a pressão
migratória, mudam o paradigma da reprodução da unidade doméstica rural, baixam a
mortalidade e a natalidade e aumentam uma variedade de novas possibilidades de bem-
estar, educação e mobilidade económica, e facilitam a manutenção de altas taxas de
melhoria na produtividade da sua força laboral” [CEPAL 1989: 59].

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4. Conclusão
66 A participação dos pobres nas distintas etapas de mapeamento e concepção de
estratégias e programas de combate à pobreza permite uma maior compreensão das
múltiplas dimensões e da complexidade que ela comporta; ao falarem das suas vidas,
necessidades e esperanças, os pobres destacam a fome, mas referem-se, com insistência
às dimensões sociais, físicas e psicológicas, à falta de liberdade de escolha e de acção.
Pobreza “é a humilhação do sentimento de ser dependente e forçado a aceitar a rudeza,
os insultos e a indiferença quando procuramos ajuda” [Poverty Group, World Bank] 9.
Nesta perspectiva, pobreza é ausência de voz e de poder, é insegurança e ansiedade.
67 Em Angola, como em outros lugares onde a guerra civil ou situações de crise social
persistem por longos períodos de adversidade e privação, as pessoas não se lamentam
nem protestam com a intensidade que a situação de pobreza dominante prenunciaria e
isso pode ser resultado de alguma perda de motivação e de esperança numa mudança
radical nas circunstâncias [Sen 1992]. Esta constatação, contudo, não subscreve
qualquer alinhamento com a cultura da pobreza, segundo a qual a pobreza prolongada
geraria uma série de atitudes, convicções, valores e práticas culturais, e que essa
cultura da pobreza tenderia a perpetuar-se ao longo do tempo, mesmo se mudassem as
condições estruturais que inicialmente lhe deram origem [Lewis 1966: 127].
68 Embora os elementos da estratégia (investimento em capital humano e melhoria na
distribuição do rendimento) estejam contidos nas conclusões e propostas de solução
dos trabalhos consultados, a sua concretização não se afigura simples nem pacífica,
requerendo mudanças institucionais, políticas, económicas, sociais e culturais, no
âmbito de um processo de reformas no estado e na sociedade, para acomodar uma nova
maneira de encarar a resolução do problema dominante: a desigualdade que gera
pobreza.

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TURNER, Brian, 1986: Equality, Londres: Tavistock

NOTAS
2. Nesta passagem, Tocqueville formula o conceito de ‘pobreza relativa’, tal como ela é entendida
nos dias de hoje.
3. Himmelfarb apresenta um extenso comentário sobre os resultados da aplicação da Lei das
Reformas e da Lei dos Pobres, que, para além de ter provocado a divisão da nação entre ricos e
pobres, dividiu igualmente os pobres em ‘pobres’ e ‘indigentes’.
4. Esta é uma realidade sobre a situação em África, e mais especificamente em Angola, razão pela
qual se recorreu, para este trabalho, a estudos sobre a pobreza na América Latina.

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5. De facto, são três índices parciais (bota do editor).


6. Apesar disso, algumas informações ainda não incluídas em qualquer desses índices, como a
incorporação da auto-produção dos grupos mais pobres e a avaliação da capacidade produtiva da
sociedade e do seu nível de absorção de tecnologia. Estes dados não só permitiriam um
conhecimento mais adequado da real situação dos distintos grupos que compõem as sociedades,
como permitiriam estabelecer comparações mais justas entre países. Não parece fazer muito
sentido, por exemplo, comparar o paraíso turístico das Seychelles com a África do Sul ou com o
Brasil – economias e sociedades mais complexas, com níveis mais elevados de diversidade
económica, tecnológica e científica.
7. Este é o caso específico de Angola, que segundo o PIB per capita situa-se no grupo de países de
médio rendimento, mas segundo o IDH encontra-se entre os países mais pobres de África.
8. Para maior aprofundamento desta abordagem, consultar Sen 2000 (capítulo V).
9. “Voices of the Poor”, Poverty Group - World Bank, March 2000/January 2001.
1. Chambers, Robert (1984), Rural Development: Putting the Last First. Longman Group.

RESUMOS
Em busca de resposta à causa da prevalência da pobreza, o trabalho começa por localizar
historicamente a origem da pobreza enquanto privação de capacidades, em resultado da
transformação de desigualdades naturais em desigualdades de capacidades e oportunidades, e na
sua reprodução até à actualidade, onde uma porção significativa da humanidade – a esquecida do
desenvolvimento1 – se encontra nesta categoria económica, principalmente em África e na Ásia.
As análises e recomendações de quase dois séculos atrás, e as estratégias bem-sucedidas
contemporâneas, evidenciam os ingredientes ausentes nas mal sucedidas: vontade política dos
governos e respaldo no sentido ético e de justiça social, traduzido na inclusão dos pobres em todo
o processo. O problema não é novo, como não são novas as propostas para a sua eliminação; o que
prevaleceu ao longo do tempo é a indiferença e o descaso da parte privilegiada da humanidade
relativamente à desfavorecida.

In search of reply to the cause of the prevalence of the poverty, the work starts for historically
locating the origin of the poverty while privation of capacities, in result of the transformation of
natural inequalities in inequalities of capacities and chances, and in its reproduction until
nowadays, where a significant portion of the humanity - forgotten in development - meets in this
economic category, mainly in Africa and Asia. The analyses and recommendations of almost two
centuries behind, and the well-succeeded strategies contemporaries, evidence the absent
ingredients in the badly-occurred ones: political will of the governments, and endorsement in
the ethical direction and of social justice, translated in the inclusion of the poor in all the
process. The problem is not new, as the proposals for its elimination are not new; what it
prevailed throughout the time is the indifference of the privileged part of the humanity
relatively to the disfavored one.

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ÍNDICE
Keywords: inequality, poverty, freedom, democracy, participation, capacity, functionality
Palavras-chave: desigualdade, pobreza, liberdade, democracia, participação, capacidade,
funcionalidade

AUTOR
CESALTINA ABREU
Socióloga e Engenheira Agrónoma. Licenciada em Agronomia pela Universidade de Angola,
Mestre e Doutora em Sociologia pelo IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (Brasil). Professora Auxiliar na Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola) e Chefe do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da mesma universidade. Membro
fundador e investigadora do A-Ip–Instituto de Pesquisa Económica e Social (Luanda, Angola).
Áreas de investigação: sociedade civil, cidadania e participação, pobreza e desigualdades sociais.
[email: tinaabreu53@yahoo.com.br]

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Pobreza em Angola: efeito da


guerra, efeitos da paz
Poverty in Angola: effect of war, effects of peace

Cristina Udelsmann Rodrigues

NOTA DO EDITOR
Artigo pedido à autora
Recebido a: 20/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012

1. Correlação entre pobreza e paz


1 A publicação, em 2009, de um estudo extensivo sobre as correlações pobreza e paz em
países africanos de língua portuguesa [Rodrigues & Costa 2009], permitiu reconhecer a
abrangência deste tipo de preocupação em termos da análise sociológica e identificar
pistas de pesquisa no contexto africano em geral e no de Angola em particular. Trata-se
de uma correlação raramente questionada nas suas dinâmicas e implicações mútuas
fora da academia, embora seja tida, frequentemente, como o ponto de partida para a
elaboração de estratégias nacionais para desenvolvimento dos países.
2 As perspectivas sobre as correlações entre pobreza e paz e a análise das influências
mútuas são, normalmente, bidireccionais. Especificamente no contexto africano, a paz é
vista como uma condição para a eliminação da pobreza ou, por outro lado, a eliminação
da pobreza constitui uma via para alcançar a paz.
3 O político, em termos gerais, constitui um dos campos privilegiados de procura das
principais razões para explicar a pobreza dos países, seja em termos de como a
estruturação do mesmo produz desigualdade [Bush 2004]; de como as formas de
relações sociais, frequentemente imbricadas nas instituições políticas e nas estruturas
económicas, produzem pobreza [Green & Hulme 2005]; de como as relações

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sociopolíticas entre os diversos actores sociais têm implicações directas na pobreza


[Narayan 2000]; e, por exemplo, especificamente, como os conflitos (políticos) têm
como causas a economia [Collier & Hoeffler 1998].
4 Apresentando brevemente quer as perspectivas que explicam os conflitos pela pobreza
quer vice-versa, há a destacar que o debate não parece ter-se esgotado, mantendo-se
activo e particularmente pertinente na actualidade.
5 Embora de forma menos frequente, a pobreza é indicada como factor de elevada
importância para a ocorrência de conflitos [Bryant & Kappaz 2005: 25]. Vários autores
colocam como causa principal para a ocorrência de conflitos a escassez de recursos (ou
a sua abundância) em determinados contextos e a existência de instituições
disfuncionais [Theisen 2008: 815]; a vulnerabilidade das famílias pobres para participar
em conflitos armados [Justino 2009]; ou a precariedade em termos de segurança
alimentar e nutricional [Pinstrup-Andersen & Shimokawa 2008]. A pobreza tem a
capacidade de causar guerras e conflitos, embora exista ainda um conjunto insuficiente
de pesquisa nesta área [Bryant & Kappaz 2005:25].
6 Embora exista actualmente um conjunto de estudos e análises que colocam a
desigualdade e a exclusão social no centro dos factores que têm implicações para o
conflito e a violência [Bryant & Kappaz 2005], a maioria deles não reconhece a
exclusividade desta relação. Em contraposição, constata-se em alguns casos que a
ocorrência de conflitos tem lugar em regiões menos pobres e onde se concentra uma
população com melhores condições de vida. Nestes últimos inclui-se, por exemplo, a
Libéria [Hegre et al. 2009], reforçando o conjunto de análises que colocam a
“oportunidade” (para o conflito) como um dos principais factores de ocorrência de
conflitos [Collier & Hoeffler 2004], mais plausível do que a privação de recursos.
Contudo, mantém-se clara a possibilidade de determinar a existência de alguns factores
que, em circunstâncias específicas, podem conduzir à guerra em contextos de pobreza:
“eventos catalisadores, redes, acção colectiva local, agitadores, recursos pilháveis,
transferências de grupos da diáspora vingativos” [Bryant & Kappaz 2005: 26].
7 Em relação a ambas as perspectivas (a pobreza causa a guerra e a guerra causa a
pobreza), existe consenso no que toca à sua estreita implicação recíproca. A abordagem
dos conflitos enquanto “desenvolvimento em reverso” coloca em evidência os elevados
custos que estes provocam em termos sociais e económicos, conducentes à manutenção
e ao agravamento da pobreza [Collier 2003]. Os custos económicos normalmente
situam-se ao nível da reorientação dos recursos nacionais para a guerra, da destruição
causada pelos conflitos e da transferência da riqueza para fora do país ou da região
[Collier 2003: 15]. Em termos sociais, os custos estão relacionados objectivamente com
as baixas causadas pelos conflitos e com os deslocados (refugiados e deslocados
internos) que deles resultam. No fundo, a guerra e os conflitos provocam um conjunto
de consequências que contribuem seriamente para a pobreza e explicam, ao mesmo
tempo, por que razão o crescimento económico nestes contextos é inconsistente e em
inúmeros casos entrou em sério declínio desde os anos 1970 [Rodrick 1999].
8 No contexto dos países africanos independentes, sendo os conflitos e guerras a
principal explicação para o não crescimento económico e para o declínio [Rodrick
1999], nem sempre esta relação se afigura como causalidade directa. A evolução dos
sistemas políticos e das situações de guerra ditam, de forma diferenciada, as
possibilidades de crescimento e de desenvolvimento económico mas esta não é a única
explicação para a persistência dos indicadores negativos de pobreza. Se para alguns

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autores a desigualdade económica é altamente importante para explicar os conflitos


civis, há que ter em conta que há diferentes tipos de desigualdade. A desigualdade
‘horizontal’ é causa explicativa para o conflito civil mas a desigualdade ‘vertical’, como
por exemplo a capturada pelo coeficiente de Gini, não constitui uma causa para os
conflitos [Cramer 2003].
9 Análises mais críticas refutam de forma incisiva certas interpretações comummente
aceites, como a associação da pobreza à falta de boa governação [Bernard 2002].
Contudo, apenas uma análise em detalhe e aprofundada permite dar conta da
correlação entre pobreza e conflitos. A distinção entre diferentes formas de competição
pelos recursos (facto associado à desigualdade e à pobreza) permitiu, por exemplo,
identificar que embora as contestações (relativamente ao poder ao aceso a recursos)
tenham um papel central nos conflitos contemporâneos, a ganância e o desejo de
controlar recursos e apropriar rendimentos entram também no cálculo para explicar o
conflito [Murshed 2002, Collier & Hoeffler 2004].
10 Mas desde há vários anos que a reflexão sobre as implicações mútuas entre pobreza e
paz se estende também, como seria de esperar, à inevitável associação de outros
factores a este binómio, como a democracia, os direitos humanos ou o desenvolvimento
social e económico [Solomon & Cilliers 1996]. Um conjunto de questões ligadas à
economia política que limitam o acesso a recursos, por um lado, e um conjunto de
questões ligadas à governação (incluindo a guerra e a violência), por outro, formam o
quadro de combinações possíveis para a existência e perpetuação da pobreza [Bryant &
Kappaz 2005]. No fundo, a perspectiva que melhor dá conta das correlações pobreza e
guerra é, na sua essência, equilibrada e, por isso, adaptável aos diversos contextos: a
guerra retarda o desenvolvimento mas, reciprocamente, o desenvolvimento retarda a
guerra [Collier et al. 2003].
11 Existe, portanto, todo um campo de análise da correlação entre estes termos que, no
fundo, faz ressaltar a extrema importância da contextualização sistemática, ao nível
histórico, social, político, económico, ao qual se deve, incontornavelmente, associar as
perspectivas locais sobre a pobreza e suas causas.
12 A própria definição do conceito de pobreza tem revelado inúmeras dificuldades,
sobretudo relacionadas com a multidimensionalidade do fenómeno. Em alguns casos, e
de forma a ultrapassar estas dificuldades, a opção é o recurso aos dados quantitativos e
à análise estatística – nomeadamente as estatísticas nacionais de diversos tipos – que
têm servido de base à formulação de teorias e explicações [Hegre et al. 2009]. O
predomínio da abordagem monetária na maior parte das descrições e análises da
pobreza [Stewart et al. 2007: 1] é, por essa razão, bastante evidente. Outras vias de
definição da pobreza incluem a abordagem das capacidades, da exclusão social e a
abordagem participativa [Stewart et al. 2007: 2]. A perspectiva monetária centra-se,
sobretudo, na definição da pobreza como uma carência em termos de consumo (ou
rendimento) em relação a uma linha de pobreza. A abordagem das capacidades (na
senda do trabalho de Amartya Sen) foca os aspectos da privação em relação a
determinadas capacidades mínimas ou básicas. A linha da abordagem da pobreza
através da exclusão social refere-se a processos de marginalização e privação,
socialmente definidos. Quanto à abordagem participativa, inscreve-se na ideia que a
pobreza deve ser definida pelos próprios indivíduos e não externamente [Stewart et al.
2007: 24]. Tendo em conta as várias possibilidades de analisar a pobreza dos países, não
seria aqui possível eleger a melhor forma de o fazer em relação ao caso angolano. As

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principais dificuldades prendem-se com a escassez de dados estatísticos variados e de


fontes diversificadas mas também e sobretudo com a ainda incipiente produção de
estudos de tipo qualitativo. Por outro lado, centrando-se este artigo na análise das
correlações entre os conflitos angolanos e a pobreza, utilizam-se como base de trabalho
dados recentes produzidos em Angola bem como as referências existentes de carácter
qualitativo, centrando por isso a discussão mais sobre as implicações recíprocas do que
na disponibilidade e pertinência dos dados existentes. O argumento principal,
formulado a partir do debate acima descrito assenta antes sobre a noção de que a paz
em si não é um factor directo de redução da pobreza. “O fim da guerra salva vidas –
incluindo as dos pobres que são frequentemente as principais vítimas – mas pode não
trazer muita se alguma melhoria às condições de vida” [Addison 2003: 1].

2. O conflito angolano
13 No caso de Angola, as questões da guerra e da paz permaneceram mais duradouramente
no centro da análise da pobreza e do desenvolvimento, aparecendo sistematicamente
nos estudos de carácter social, político e económico, referências às implicações
recíprocas. A análise das consequências da guerra de independência sobre as condições
de vida da população não constituiu uma preocupação ao nível académico – muito pelo
contrário – dado o contexto que se vivia em Angola nos anos 1960 e início dos anos
1970. Com o início da guerra civil e os seus desenvolvimentos, sobretudo nos anos 1990
após as primeiras eleições, várias análises se começaram a debruçar não só sobre os
cenários de crescimento em contexto de paz [Abreu 1989] como sobre a guerra civil em
si e as suas consequências directas e evidentes [Anstee 1997]. Em vários momentos estes
estudos espelharam uma perspectiva optimista sobre os vários finais anunciados da
guerra civil, alguns deles perspectivando inclusive como seria possível aliar a vontade
de paz sentida pela população ao desenvolvimento do país de forma mais eficaz
[Ferreira & Barros 1998].
14 Com o final da guerra em 2002, o enfoque voltou-se claramente para as possibilidades
de a paz gerar prosperidade no país [Grobbelaar, Mills & Sidiropoulos 2003], aliado à
noção cada vez mais clara de que as prioridades nacionais evoluíram de um contexto de
emergência para um contexto de desenvolvimento, com prioridade para o crescimento
com diversificação, combatendo a fome e a miséria e diminuindo a pobreza [Governo
2005, 2009]. Uma visão mais abrangente das várias guerras recentes de Angola, coloca
em destaque a influência de condições internas e externas para o desenvolvimento de
Angola, incluindo o forte direccionamento dos recursos nacionais para o esforço de
guerra durante uma década (1992-2002), indicando, igualmente, a oportunidade que a
paz constitui para uma gestão dos rendimentos nacionais orientada para a melhoria das
condições de vida da população [Ferreira 2006].
15 As consequências da guerra são, contudo, ainda muito claras e pertinentes para a
análise da pobreza e do desenvolvimento angolano na actualidade. “Décadas sucessivas
de conflito militar provocaram em Angola, não apenas perdas substanciais ao nível do
capital físico (equipamentos, infra-estruturas, habitações) e humano, mas também
determinaram efeitos que se combinaram entre si no sentido de uma redução do bem-
estar da generalidade dos angolanos” [Lopes 2009: 63]. A maior parte destes efeitos
estão directamente relacionados com a pobreza e com as condições de vida da
população: deslocações compulsivas, insegurança, insegurança alimentar, má nutrição,

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graves dificuldades no acesso à saúde e educação [Lopes 2009: 73]. A Estratégia de


Combate à Pobreza do governo angolano aponta como principal consequência directa
para a gravidade da pobreza rural a guerra, que limitou o acesso da população às áreas
de cultivo e mercados e que destruiu os recursos dos camponeses; esvaziou o campo de
mão-de-obra e fez afluir milhares de deslocados para as cidades [Governo 2005: 21].
16 As perspectivas geradas pela paz estão, por outro lado, directamente relacionadas com
a recuperação das condições básicas, destruídas pela guerra: “reabilitação do capital
físico, a recuperação da mobilidade territorial em condições de segurança, o reencontro
de membros das famílias, a multiplicação de oportunidades de negócio e de acesso a
bens e serviços” [Lopes 2009: 77]. Por essa razão, todas as áreas de intervenção
prioritária identificadas na Estratégia de Combate à Pobreza – reinserção social,
desminagem, segurança alimentar e desenvolvimento rural, VIH-sida, educação, saúde,
infra-estruturas básicas, emprego e formação profissional, governação e gestão
macroeconómica – fazem referência aos impactos negativos provocados pela guerra,
sobretudo directamente mas também de forma indirecta, estabelecendo estas
condicionantes como ponto de partida para o desenvolvimento futuro.
17 O documento de estratégia nacional relativa ao desenvolvimento de Angola que serve
de orientação para o período em curso (2009-2013) continua a colocar a pobreza no
centro das preocupações nacionais [Governo 2009]. Apontando como objectivo
estratégico o crescimento com diversificação, combatendo a fome e a miséria e
diminuindo a pobreza, não deixa, contudo, de integrar referências (menos
enfaticamente que a Estratégia de 2005) às heranças deixadas pela guerra. No entanto, é
muito clara a preocupação com a pobreza, através da acção em áreas consideradas
cruciais para a sua redução: combate à fome e à miséria, com redução da pobreza;
sustentação do desenvolvimento económico; continuidade da reconstrução nacional;
modernização do sector público; diversificação e modernização da economia;
modernização e fortalecimento do sistema financeiro; aceleração de desenvolvimento
industrial; desenvolvimento rural integrado; capacitação da população;
desenvolvimento da classe empresarial; aumento do emprego e renda; em suma, a
melhoria das condições de vida do povo angolano. Na área da Assistência e Reinserção
Social, definida neste programa (mais directamente ligada à pobreza), o destaque é
dado à promoção da integração social das pessoas carenciadas e em situação de
vulnerabilidade; à promoção de programas de combate à pobreza junto das
comunidades mais carenciadas; garantir a assistência social aos estratos mais
vulneráveis da população; a promoção do desenvolvimento comunitário; livrar o
território nacional do risco das minas, abrindo espaço para as actividades produtivas e
reduzindo a vulnerabilidade social; o apoio a programas de reassentamento para
reintegração social e produtiva; o desenvolvimento de programas comunitários de
combate ao trabalho infantil; a promoção de programas articulados de resposta rápida
a situações de risco iminente.
18 Tendo em conta não só o reconhecimento de diversos efeitos provocados pela guerra
como a priorização do combate à pobreza ao nível nacional, torna-se relevante
perceber que formas assumem os esforços realizados ao nível das políticas e
orientações nacionais como que indicadores revelam as evoluções registadas no país ao
nível da pobreza desde o final da guerra. Esta análise, embora limitada pela
disponibilidade de dados e estudos específicos em que seja ponderado o factor “paz” de
forma isolada, é passível de contribuir para o melhor conhecimento das implicações

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mútuas entre a paz e a pobreza e para o debate ainda em curso no âmbito das ciências
sociais.

3. A paz e a pobreza angolanas


19 No seguimento das análises recentes sobre as implicações da paz na redução da
pobreza, destaca-se a perspectiva de que a recuperação deve ter um objectivo alargado
em termos nacionais [Addison 2003]: deve ser liderada por atores nacionais; está
dependente de um forte investimento privado; a reforma e a transformação são
essenciais para os processos de recuperação. Sem que se verifiquem estes esforços, a
guerra tende a voltar.
20 Com base nos documentos de estratégia e política nacional, acima referidos, a
orientação tomada aborda claramente as questões do desenvolvimento, da
reconstrução e da reforma, constituindo-se, por isso e à partida, como altamente
pertinentes não apenas para o desenvolvimento mas também para a minimização de
factores perturbantes da paz. A partir da análise dos indicadores da evolução da
pobreza, pode afirmar-se que esta é positiva desde o final da guerra, o que pode indiciar
resultados concretos quer ao nível da melhoria das condições de vida em geral quer em
termos da consolidação da paz.
21 A Estratégia de Combate à Pobreza do governo angolano (2005) dava conta de indicadores
de pobreza elevados. O Índice de Pobreza Humana estimado para o ano 2000 – aferido a
partir do IDR (Inquérito de Despesas e Receitas) de 2001 e do MICS (Multiple Indicator
Cluster Survey) de 2001 e baseado na longevidade, educação e padrão de vida digno –
era de 0,41 [Governo 2005: 20]. Com base no IDR, estimava-se que 68% da população
fosse pobre (ou seja, com acesso a menos de 1,7 dólares por dia) e que 28% vivesse em
condições de pobreza extrema (com menos de 0,76 dólares por dia). Embora recorrendo
a uma metodologia diferenciada de cálculo da pobreza, o Inquérito sobre o Bem-Estar
da População [Instituto 2011] dava conta de uma redução bastante acentuada dos níveis
de pobreza no país em 2009. A incidência da pobreza, tida como a população que vivia
abaixo da linha de pobreza nacional, passou a representar 36,6% do total da população
do país.
22 Esta percentagem apresentava, contudo, variações em termos da maior incidência em
meio rural (58,3%), enquanto nos meios urbanos afectava apenas 18,7% da população.
Tendo em conta que a pobreza rural foi considerada, em 2005, como uma das áreas mais
afectadas e de urgente resolução, o facto de o IBEP de 2011 continuar a destacar que o
nível de incidência da pobreza é três vezes superior nas áreas rurais do que nas
urbanas, de certa forma contradiz o optimismo que a redução geral da pobreza em
Angola pode gerar.
23 Contudo, a maior aposta na recuperação e na reconstrução pode não permitir aferir
resultados concretos num intervalo de tempo (desde o final da guerra) três vezes
inferior à duração da guerra. Certos indicadores, de certa forma relacionados ainda com
os efeitos da guerra e com a resiliência mantêm-se elevados. Por exemplo, de acordo
com o IBEP, em 2009 a migração interna em todo o país continuava elevada – 12,6% da
população são migrantes internos. Os trabalhos de desminagem são ainda importantes
e estão longe de estar concluídos, assim como a reconstrução de diversos tipos de infra-
estruturas. Outros indicadores sociais mantêm-se baixos, embora, em algumas áreas, o
IBEP coloque em destaque melhorias sentidas pela população. Na área da educação, 29%

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das crianças angolanas têm de percorrer mais de 2 km diariamente para frequentar a


escola, cerca de 26% das crianças na faixa dos 6-9 anos nunca frequentou a escola; a
taxa líquida de frequência do ensino secundário a nível nacional é de 19%, com valores
mais elevados nas áreas urbanas (30%) e apenas 4% nas áreas rurais; a proporção de
analfabetos em Angola é de ainda 34% a nível nacional, com grande desvantagem para
as mulheres (praticamente metade da população feminina é analfabeta) e para a
população rural (mais de 70% da população). Na área da saúde, nas zonas rurais, apenas
24% da população tem acesso a postos ou centros de saúde públicos num raio até 2 km,
em contraste com uma percentagem de 63% nas zonas urbanas. Em termos de infra-
estruturas – e registando-se também nesta área uma percepção generalizada de que as
condições melhoraram nos últimos anos, continuam a registar-se dificuldades: menos
de metade da população (42%) usa uma fonte apropriada de água para beber; apenas
53% dos agregados tem algum tipo de instalação sanitária em casa; a nível nacional, 88%
dos agregados vivem em habitações inadequadas, sendo a proporção menor nas áreas
urbanas (79%) comparativamente às rurais, onde é praticamente universal a
percentagem de agregados a viver em habitações inadequadas (99%) [Instituto 2011].
24 A clara preocupação com o desenvolvimento e centralidade atribuída ao combate à
pobreza demonstram, contudo, que a paz é actualmente tida um facto fundamental
adquirido, embora não tenham sido esquecidos os efeitos da guerra. No âmbito do
sector da assistência e reinserção social (o qual se concentra sobre as questões da
pobreza no país) estas mudanças são evidentes na passagem de um enfoque na ajuda
alimentar que se estendeu até 2003 para uma abordagem mais focada nos mais
vulneráveis em 2004, culminando, em 2005, na cessação da ajuda humanitária associada
à guerra. As actividades de assistência humanitária realizadas pelo MINARS (Ministério
da Assistência e Reinserção Social) em 2007 e em 2008 foram dedicadas exclusivamente
ao apoio às populações afectadas por calamidades naturais como inundações e secas.
Desde 2008, um dos programas deste ministério ainda inclui populações afectadas pela
guerra (regresso e reassentamento das populações directamente afectadas pelo conflito
armado), sendo que a maioria foca sobretudo no regresso de populações ao país,
subentenda-se como resultado da guerra (repatriamento voluntário e organizado dos
refugiados angolanos; reintegração socioeconómica dos cidadãos angolanos repatriados
nas principais áreas de retorno; assistência ao regresso dos cidadãos angolanos
solicitadores de asilo rejeitados na Europa e outros continentes; de assistência e
integração socioeconómica dos refugiados asilados em Angola). Três dos programas
abrangem populações directamente afectadas pela pobreza e pela vulnerabilidade:
assistência às famílias em situação de vulnerabilidade; programa de apoio às famílias
em situação de pobreza; assistência à pessoa idosa [MINARS 2008].
25 A análise destes documentos e dados, mostra portanto não só que há claro indícios de
que a redução da pobreza coincide com a duração da paz e que a necessidade de focar
no combate à pobreza mais do que à resolução de problemas relacionados com a guerra
se transcreve para as orientações de política socioeconómica. Mostra igualmente que
tanto para os inquiridos pelo IBEP como para as instâncias governamentais, se registam
evoluções no sentido da melhoria das condições de vida da população em Angola mas
que persistem ainda áreas – não necessariamente ligadas ao conflito passado – em que é
necessário actuar.

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Notas finais
26 Tendo em conta na análise estas tendências e mudanças, quer ao nível das políticas e
estratégias, quer a partir dos dados disponíveis sobre a evolução da pobreza, subsiste
todo um campo de análise de correlações bidireccionais em termos da pobreza e da paz
em Angola, passíveis de contribuir para o debate académico. Alguns estudos, sobretudo
na área dos efeitos psicológicos [Ventura 1997], das estratégias e formas de vida das
pessoas fisicamente afectadas pela guerra em Angola [Carvalho 2008] ou sobre os novos
actores do desenvolvimento pós-guerra [Van-Dúnem 2003], juntam-se àqueles que, de
forma mais macro, analisam a situação económica do país à luz das sequelas da guerra
sem, contudo, aprofundarem a discussão sobre as implicações mútuas de ambos os
fenómenos. A uma escala mais próxima das famílias e das comunidades, subsistem
ainda áreas de estudo que, por um lado, possam dar conta dos efeitos que a guerra,
directa ou indirectamente, teve e que ainda possa ter sobre os níveis e condições de
vida actuais. Por outro, que permitam elucidar sobre o peso da guerra no conjunto de
factores que contribuem para a reprodução e para a perpetuação da pobreza.
Finalmente, estudos e análises que ilustrem o papel da paz para a melhoria das
condições de vida e superação da pobreza e, inversamente, que se refiram ao
desenvolvimento como garantia da eliminação dos conflitos.
27 A conclusão principal que se destaca deste quadro é que, embora possa ser estabelecida
uma correlação directa (e quase evidente) entre os fenómenos pobreza e guerra,
existem outros factores que, de forma combinada e em contextos específicos,
concorrem para a manutenção e/ou elevação dos níveis de pobreza. Estas outras
explicações devem, por isso, combinar-se da melhor forma com a perspectiva que
coloca a guerra no centro da análise da pobreza e do desenvolvimento, atribuindo-se
especial importância, mais uma vez, aos contextos e evoluções próprios de cada país. As
guerras têm durações e intensidades diferenciadas, pelo que a análise das suas
consequências deve também ter em conta o conflito prolongado em Angola e a
relativamente recente paz.

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RESUMOS
O artigo analisa as correlações entre pobreza e paz em Angola a partir de uma revisão da
literatura sobre este tema. Tendo em conta a estreita articulação entre pobreza e guerra/paz,
analisam-se os desenvolvimentos registados em Angola nos últimos anos, nomeadamente em
termos do enfoque relativamente ao combate à pobreza espelhados nas estratégias nacionais e
nos dados disponíveis. Pretende-se contribuir não só para a discussão das inter-causalidades
atribuídas a ambos os fenómenos como para a análise das evoluções registadas no país nas
últimas décadas.

The article analyses the correlations between poverty and peace in Angola from the revision of
literature about this subject. Given the close linkages between poverty and war/peace, the
analysis concentrates on the developments in Angola in the last years, namely in terms of the
focus on the fight against poverty reflected in the national strategies and on the available data.
The intention is contributing not only to the discussion of the correlated causes attributed to
both phenomena but also to the analysis of the evolutions in the country in the last decades.

ÍNDICE
Keywords: poverty, peace, development
Palavras-chave: pobreza, paz, desenvolvimento

AUTOR
CRISTINA UDELSMANN RODRIGUES
Antropóloga, Doutora em Estudos Africanos Interdisciplinares pelo ISCTE–Instituto Universitário
de Lisboa. Investigadora no Centro de Estudos Africanos (CEA-IUL) do ISCTE-IUL. Tem trabalhado
sobretudo sobre Angola, em diversas áreas relacionadas com a pobreza, a protecção social e o
desenvolvimento em geral. De entre as suas publicações, destacam-se os livros O Trabalho
Dignifica o Homem: estratégias de famílias em Luanda (2006), Protecção Social, Economia

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Informal e Exclusão Social nos PALOP (2008) e Pobreza e Paz nos PALOP (2010). [e-mail:
cristina.rodrigues@iscte.pt]

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Modos de vida da pobreza em


Angola
Ways of life of poverty in Angola

Sílvia de Oliveira

NOTA DO EDITOR
Recebido a: 28/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 3 e 19/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 7/Maio/2012
Recepção da segunda apreciação: 9/Maio/2012
Aceite para publicação: 12/Maio/2012

Introdução
1 A investigação na área da pobreza requer não só o estudo da distribuição dos
rendimentos, das carências e privações, das suas causas e consequências e da
identificação das categorias sociais mais susceptíveis de serem afectadas por este
fenómeno, mas igualmente das práticas quotidianas que se estabelecem, de forma a
ultrapassar os constrangimentos que enfrentam. É nesse contexto que se insere a
importância da investigação sobre os modos de vida da pobreza.
2 A investigação alargada no domínio da pobreza é recente em Angola. O conflito armado
que assolou o país desde a independência (1975-2002) não permitiu a elaboração
aprofundada de muitos estudos sobre a pobreza. Porém, a dinâmica que caracteriza este
fenómeno e as alterações sociais que diariamente se registam, levam a que os conceitos
aqui apresentados estejam em permanente mutação. Assim, começamos esta
apresentação com uma avaliação e interpretação dos indicadores sociais que
caracterizam a pobreza em Angola, bem como da identificação das categorias sociais

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mais vulneráveis a esse fenómeno. Tendo por base as investigações de Luís Capucha
[2005], segue-se a descrição teórica dos modos de vida da pobreza e sua respectiva
identificação no contexto angolano.

Pobreza em Angola
3 Em 2004, dois anos após o término do conflito armado, o governo angolano elaborou a
sua Estratégia de Combate à Pobreza (ECP) 1, com o objectivo principal de preparar as
medidas para combater esse fenómeno, que, na altura, afectava 68% da população
angolana, dos quais 26% se encontravam em condição de pobreza extrema (equivalente
a até 0,75 dólares por dia) [MINPLAN 2005]. No mesmo documento foram identificados
os seguintes factores como causas da pobreza em Angola: o conflito armado, a pressão
demográfica, a destruição e degradação das infra-estruturas económicas e sociais, o
funcionamento débil dos serviços de educação, saúde e protecção social, a quebra muito
acentuada da oferta interna de produtos fundamentais, a debilidade do quadro
institucional, a desqualificação e desvalorização do capital humano e a ineficácia das
políticas macroeconómicas [MINPLAN 2005].
4 Estes factores, que afectam de forma diferente cada uma das pessoas, levaram à
identificação e caracterização das categorias sociais que em Angola se encontram mais
vulneráveis à pobreza, nomeadamente:
5 a) Pequenos agricultores e camponeses;
6 b) Analfabetos;
7 c) Desempregados;
8 d) Crianças de rua e sem-abrigo;
9 e) Desmobilizados das forças armadas;
10 f) Deslocados de guerra;
11 g) Famílias monoparentais;
12 h) Deficientes físicos [Carvalho 2004]
13 Cada uma das pessoas que se insere numa destas categorias sociais enfrenta situações
de carência, privação e marginalização, condições que posteriormente os conduzem a
uma situação de exclusão social.
14 Num contexto de paz, e visto já não haver necessidade de despender grande parte do
Orçamento Geral do Estado para o sector da defesa1, o governo angolano afirmou assim
a sua intenção em reduzir a pobreza para metade até ao ano de 2015, dando assim
cumprimento ao compromisso assumido para concretização dos Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio (ODM).
15 Desde a aprovação da Estratégia de Combate à Pobreza, têm-se registado progressos na
redução da pobreza em Angola, tendo a sua incidência baixado para 36,6% em 2009 [INE
2010]. No entanto, 58,8% da população rural ainda vive em condições de pobreza, contra
18,5% da população urbana [INE 2010: 13].
16 Apesar dos esforços que têm sido empreendidos, os indicadores sociais para Angola
ainda registam valores preocupantes (quadro nº 1), nomeadamente no sector da saúde,
educação, nutrição e água e saneamento, determinados pelo deficiente acesso aos
serviços sociais básicos.

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Quadro nº 2: Indicadores demográficos para Angola

Indicadores

Taxa de mortalidade infantil 115,7 por mil

Taxa de mortalidade de menores de 5 anos 193,5 por mil

Taxa de mortalidade materna 1.400 por 100 mil

Alfabetização 76%

IDH (2011) 0,486

Taxa de fertilidade 7,2

41,5 anos - mulheres


Esperança média de vida
38,8 anos – homens

Fonte: INE 2010, MINPLAN 2010, MINPLAN 2011.

17 Com uma população estimada em 18,8 milhões de habitantes [MINPLAN 2011], Angola
apresentou em 2011 um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,486, ocupando
148ª posição no mundo [PNUD 2011]. Se tomarmos em comparação os dois anos
anteriores, podemos concluir que tem havido uma regressão no IDH angolano. Para o
ano de 2009 Angola apresentou um IDH de 0,564, ocupando a posição 143ª, com uma
classificação de desenvolvimento humano considerada pelo PNUD “média”. No entanto,
esses valores alteraram-se significativamente no ano de 2010, registando-se uma
quebra para 0,403 e passando a ocupar a 146ª posição entre 169 países do mundo 3.
18 O contexto de paz tem possibilitado a recuperação e o crescimento da economia
angolana, com destaque para o sector não petrolífero que, desde 2005, tem registado
desempenho positivo, nomeadamente nos sectores da construção, agricultura,
indústria e serviços financeiros [MINPLAN 2010: 22]. No entanto, esse crescimento está
longe de corresponder à melhoria das condições de vida da maioria dos angolanos que,
sem qualificação profissional, deslocados das suas zonas de origem, com dificuldades
para conseguirem um emprego estável que lhes permita levar uma vida digna, elabora
estratégias para conseguir sobreviver e ultrapassar os momentos mais difíceis, que se
concretizam em “modos de vida mais ou menos coerentes e solidificados” [Almeida et.
al. 1994: 95]. Os modos de vida da pobreza enquadram-se assim na forma como as
categorias sociais mais vulneráveis adaptam os meios disponíveis às suas necessidades,
isto é, a forma como se organizam estrategicamente para darem resposta às suas
necessidades, sejam elas biológicas, sociais, culturais, etc.

Modos de vida da pobreza


19 O homem é um ser social, que possui uma identidade própria que lhe permite adaptar-
se ao meio que o rodeia, consoante a sua identidade e os mecanismos disponíveis para a
sua realização. Aqueles que se encontram em situação de pobreza constituem os seus

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modos de vida e desenvolvem as suas estratégias que tanto podem levar à perpetuação
da vivência em condições de pobreza, como à superação.
20 Segundo Isabel Guerra [1993: 70] os modos de vida são entendidos como um “conjunto
integrado de práticas articuladas a ‘representações do mundo’ e a ‘imaginários sociais’,
o que exige um conceito aglutinador das lógicas estruturantes das práticas”. Por seu
lado, Luís Capucha [2005: 76] defende que os modos de vida são o “elemento mediador
que articula os recursos e constrangimentos associados à ocupação de uma
determinada posição na estrutura social e o sistema das práticas quotidianas, das
avaliações, das representações, das referências sociais e culturais e das escolhas
estratégicas feitas pelas famílias ou pelos indivíduos no contexto das disponibilidades
desses recursos e das limitações impostas por estes constrangimentos”.
21 Importa portanto saber como é que as pessoas mais pobres organizam os seus modos de
vida, isto é, como essas pessoas aproveitam as oportunidades que surgem e como as
adaptam às suas necessidades. Para tal, é preciso ter atenção à relação que as práticas
quotidianas (de trabalho, de vida familiar, de consumo, de lazer, etc.) estabelecem entre
si e com as diferentes “esferas” do social [cf. Guerra 1993].
22 O conceito de modos de vida comporta quatro dimensões, nomeadamente [Capucha
2005: 214]:
23 a) uma dimensão social – pertença de classe, relação com redes sociais, estruturas
familiares);
24 b) uma dimensão cultural – símbolos e orientações de vida;
25 c) uma dimensão espacial – localizações dos contextos de interacção;
26 d) uma dimensão temporal – trajectos passados ou virtuais.
27 Autores que se têm debruçado sobre o fenómeno da pobreza [Capucha 1992 e 2005,
Almeida et al. 1994] identificaram oito tipos diferentes de modos de vida, baseados na
maneira de ser e de agir como pobres e na configuração do seu espaço, nas relações
familiares e como representam e privilegiam o passado, o presente e o futuro. Estes
modos de vida são: destituição, restrição, transitoriedade, desafectação, dupla
referência, poupança, convivialidade e investimento na mobilidade.
28 No contexto angolano não se verifica a presença dos oito modos de vida identificados
por estes autores para a sociedade portuguesa. Serão apenas analisados aqueles modos
de vida que, em nosso entender, têm aplicabilidade em relação ao objecto de estudo
aqui apresentado, que são: a destituição, a restrição, a transitoriedade, o investimento
na mobilidade e a desafectação.

Destituição

29 O primeiro modo de vida analisado é o da destituição, que se identifica com a miséria e,


por isso, é a “forma extrema de pobreza e exclusão social” [Amaro 2003: 29]. As pessoas
afectadas pela destituição vivem em condições precárias, em casas de materiais
improvisados ou em casas abandonadas. Os membros do agregado familiar são na sua
maioria analfabetos, desempregados (ou com empregos precários), o que faz com que a
vida seja vivida no limiar da sobrevivência.
30 Integram-se neste modo de vida os agregados familiares mais pobres de Angola, onde se
incluem refugiados nas áreas urbanas em resultado da guerra civil. Os bens de consumo

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são fornecidos pela caridade, quer de organizações não governamentais, quer de


particulares. Em muitos casos, a mendicidade apresenta-se como o único recurso de
sobrevivência. As pessoas que integram este modo de vida encontram-se resignadas
face ao presente e não traçam planos para o futuro, limitando-se a viver o dia-a-dia.
Num estudo realizado por Paulo de Carvalho sobre a exclusão social em Angola, o autor
afirma que “a destituição é o modo de vida mais frequente no seio dos deficientes
físicos de Luanda” [2004: 278], não sendo entretanto actualmente o modo de vida mais
representativo dos pobres angolanos.

Restrição

31 Encontram-se no segundo modo de vida, designado de restrição, as pessoas sujeitas a


empregos instáveis, em “luta pela sobrevivência quotidiana” [Fernandes 1991: 37],
como os empregados e operários com fraca qualificação escolar e profissional (que se
reflecte nos baixos rendimentos auferidos), os idosos (na sua maioria sem reformas ou
com reformas abaixo da linha de pobreza), assalariados agrícolas, famílias
monoparentais (sobretudo chefiadas por mulheres) e pessoas deficientes. Este modo de
vida distingue-se da destituição pelo acesso ao mercado de trabalho (sobretudo
informal) e é actualmente o mais representativo no seio dos pobres angolanos.
32 Identificamos este modo de vida particularmente na capital angolana, onde o
investimento público/privado é maior, reflectindo-se no grande contraste entre
algumas bolsas de riqueza e a maioria da população pobre (oriunda sobretudo das
restantes províncias) que habita os bairros periféricos da cidade. Nestes bairros,
caracterizados pela não existência de um projecto urbanístico, a acumulação de lixo nos
espaços circundantes e os esgotos a correrem a céu aberto fazem parte da paisagem. Na
quase totalidade dos casos não possuem luz eléctrica nem água canalizada. As
habitações destes bairros são pequenas, construídas em blocos de cimento e cobertas de
placas de zinco e sempre em permanente estado de construção, constituídas na sua
maioria por dois quartos, uma sala e uma cozinha4. Para além da má qualidade da
habitação, prevalece a falta de conforto. As famílias dormem em esteiras que, na
maioria dos casos, também servem de local para a realização das refeições,
confeccionadas a lenha ou carvão.
33 Apesar disso, habitam nessas residências precárias famílias numerosas, onde o controlo
da natalidade não se verifica, com muitas crianças famintas e doentes. As crianças vão
para a escola, mas poucas progridem além do ensino primário. Cedo começam a ajudar
os pais nas suas actividades económicas informais.
34 A falta de qualificação e emprego empurra estas famílias para o mercado informal, onde
grande parte dos recursos aí auferidos é gasto na alimentação diária, que é constituída
por produtos somente indispensáveis à sobrevivência, que na maioria dos casos não
tem qualidade e nem a constituição calórica mínima aceitável. O passado é negativo, o
presente resignado (embora por vezes ressentido) e o futuro sem perspectivas [Capucha
2005: 231].

Desafectação

35 Integram-se neste modo de vida as categorias sociais que romperam os laços com a
sociedade e adoptaram estilos de vida marginais, causados na sua maioria pelo

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insucesso escolar, desemprego ou emprego precário e mal remunerado e baixa


qualidade de vida, como é o caso dos toxicodependentes, reclusos e ex-reclusos,
crianças de rua e sem-abrigo.
36 Um pouco por todo o país regista-se a presença de crianças de rua e sem-abrigo, cuja
principal actividade consiste na mendicidade e na venda informal como meio de
sustento. Acabam por dormir nas escadas dos prédios e debaixo dos carros que estão
estacionados. Os toxicodependentes e os ex-reclusos encontram refúgio nos meandros
dos bairros peri-urbanos, locais onde o acesso da polícia é limitado.
37 A percepção do tempo é totalmente centrada no quotidiano, já que o passado é para
esquecer e o futuro é de tal forma incerto [Capucha 2005: 230]. Com pouca ou nenhuma
instrução e sem formação profissional, na maioria dos casos deslocados das suas zonas
de origem e integrados em famílias desestruturadas, aqueles que se integram neste
modo de vida tiveram um passado trágico marcado pela guerra, fome e morte. Agora,
vivem um dia de cada vez e não traçam, deste modo, planos para o futuro.

Transitoriedade

38 Tal como o próprio nome indica, enquadram-se no modo de vida da transitoriedade as


pessoas que estão numa fase de transição entre um passado que se revelou próspero e
um presente que encaram com dificuldade. Entre as famílias da transitoriedade podem
encontrar-se as de desempregados, famílias monoparentais, alguns reformados e jovens
à procura do primeiro emprego. Este é precisamente o retrato de Angola, um país onde
53,1% da população trabalha por conta própria [INE 2010: 13], na sua maioria no sector
informal da economia, onde as reformas não estão actualizadas com o nível de vida,
onde os jovens têm imensa dificuldade em encontrar emprego e, sobretudo, onde o
nascimento de crianças em famílias monoparentais é muito comum.
39 As dificuldades que enfrentam no presente condicionam a elaboração de planos para o
futuro. Pode verificar-se uma transição para o investimento na mobilidade e, se for bem
sucedida, conseguem sair da situação em que se encontram. Caso contrário, acabarão
por ser integrados na restrição ou até mesmo na destituição.

Investimento na mobilidade

40 Por último, encontramos o “investimento na mobilidade”, característico dos operários


e empregados com alguma escolaridade (relativamente aos modos de vida anteriores) e
rendimento fixo (embora muito baixo), na sua maioria integrados na função pública.
Constituem categorias que mais têm possibilidade de saída da pobreza dado o
investimento que realizam na mobilidade ascendente, oferecendo aos filhos uma
escolarização o mais prolongada possível, com o objectivo de aquisição de um status
social mais elevado [Fernandes 1991: 37]. Daí que o investimento na educação dos filhos
seja uma prioridade (investimento na segunda geração). Por outro lado, há aqui sempre
a tentativa de poupar algumas modestas economias para investimento em habitação.
41 As famílias que integram este modo de vida vivem em bairros periféricos ou próximos
deles. Um exemplo desta situação é o município do Cazenga, construído no tempo
colonial como bairro de habitação social da cidade de Luanda. Se na altura da sua
construção era um bairro bom e calmo para viver, actualmente, a proximidade com os
bairros degradados torna-o igualmente perigoso de ser frequentado. Ainda assim, a

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maioria das casas sofreu obras não só no interior como também no exterior (muros
altos e pintados, gradeamento, etc.).
42 Apesar do descontentamento com o ambiente do bairro e com a degradação natural das
habitações, a maioria das famílias não tem alternativas para mudar para zonas
habitacionais que apresentem melhores condições. O sector habitacional é muito
incipiente em Angola e os preços das habitações que se vão construindo é muito
elevado. A mobilidade passa pelo investimento na escolarização dos filhos. O passado é
pobre e o presente é tempo de preparação de um futuro melhor [Capucha 2005: 232].
Como o investimento na formação dos filhos se apresenta como prioritário, elaboram
para o efeito diversas estratégias económicas tendo em vista o aumento do rendimento
que permita realizar esse investimento.
43 ***
44 Os modos de vida identificados não são absolutos e apresentam-se em aberto,
acompanhando as dinâmicas sociais, o que significa que podem alterar-se, actualizar-se
ou construírem-se novos modelos, consoante as necessidades. De igual modo, os seus
integrantes podem transitar de um modo de vida para outro, ora progredindo, ora
regredindo, consoante se registem alterações no seu quotidiano. Por exemplo, aqueles
que investem numa actividade geradora de rendimentos, ainda que seja no sector
informal, têm maior probabilidade de sair da destituição para a restrição mas, por
outro lado, aqueles que se resignam ou que não conseguem enfrentar os diversos
constrangimentos rapidamente podem passar da restrição para a destituição ou
desafectação. Aqueles que apostam numa estratégia de escolarização beneficiarão disso
e conseguirão melhor integração profissional que melhorará as suas condições de vida e
os seus hábitos de consumo. Por isso, embora se perspective uma alteração dos modos
de vida, para melhor, podem surgir constrangimentos inesperados que alterem esse
cenário (crise económica, desastres naturais, entre outros).
45 A análise dos modos de vida da pobreza permite-nos não só identificar os grupos sociais
mais vulneráveis à pobreza, como também as estratégias que adoptam para
enfrentarem os diversos constrangimentos com que se deparam. Essas adaptações dos
meios às suas necessidades são muitas vezes baseadas na solidariedade ou entreajuda
que os mais pobres estabelecem entre si e que assentam nas relações de parentesco, que
funcionam como relações de produção, relações políticas ou esquemas ideológicos
[Marie 1976: 158].
46 O aumento galopante da pobreza e a incapacidade por parte das instituições públicas
para dar resposta aos apelos dos mais carenciados intensificaram as redes de
solidariedade, que se mantêm como um dos pontos fortes em Angola. De facto, os
angolanos só conseguiram sobreviver durante anos de turbulência, ao longo dos quais o
apoio do Estado ou de outras instituições foi escasso, porque existiam mecanismos de
ajuda mútua, solidariedade e acção colectiva [Robson & Roque 2001: 3] e é precisamente
nessa solidariedade que assentam as relações quotidianas e se enfrenta o presente.

Conclusão
47 O conflito armado e as suas consequências directas e indirectas são apontados como as
causas principais para o elevado índice de pobreza que caracteriza a população
angolana. O processo de destruição em que este país esteve envolvido foi demasiado

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longo e abrangente. Para além das infra-estruturas físicas foram igualmente destruídos
os modos de vida, culturas e identidades, resultando daí uma sociedade fragmentada e
dividida.
48 O fim do conflito armado tem possibilitado maior investigação sobre a pobreza e uma
melhor definição das estratégias a elaborar para a sua erradicação, bem como analisar
os modos de vida das categorias sociais mais vulneráveis às condições de pobreza.
Desde modo, a investigação sobre os modos de vida permitiu-nos identificar, à data,
cinco modos de vida da pobreza em Angola: restrição, destituição, transitoriedade,
investimento na mobilidade e desafectação.
49 O modo de vida da restrição, caracterizado pela precariedade e instabilidade no
emprego distingue-se da destituição (nível de vida nos limites da sobrevivência) pelo
acesso ao mercado de trabalho. A transitoriedade é característica dos desempregados,
famílias monoparentais, alguns reformados e jovens à procura do primeiro emprego. Os
poucos que conseguem criar alguma estabilidade investem tudo o que têm na educação
dos filhos, para que esta segunda geração saia da condição de pobreza. Esse
investimento na mobilidade social é feito por alguns operários e empregados com
alguma escolaridade e rendimento fixo. O último modo de vida identificado é o da
desafectação, que é característico de toxicodependentes, reclusos e ex-reclusos,
crianças de rua e sem-abrigo – categorias sociais que romperam os laços com a
sociedade.
50 A mutabilidade que caracteriza o fenómeno da pobreza também se traduz nestes modos
de vida, o que faz com que a passagem de um modo de vida para outro seja uma
constante, quer para melhor, quer para pior. Importa pois aprofundar os estudos sobre
a pobreza e os modos de vida da pobreza em Angola, de modo a perceber-se como as
categorias sociais mais desfavorecidas se adaptam aos diversos constrangimentos
quotidianos e como reconfiguram os seus espaços.

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VINYALS, Luís, 2002: O financiamento público dos sectores sociais em Angola, Cascais: Principia

NOTAS
1. Entre 1997 e 2002, o Orçamento Geral do Estado apenas despendeu 20 a 30% das despesas para
o sector social, no qual se insere a educação, saúde, habitação, assistência social e cultura. Em
1999, 56% das despesas executadas foram destinadas ao sector de defesa e ordem pública [Vinyals
2002: 26].
2. Resolução nº 9/04, de 4 de Junho de 2004.
3. Tendo em conta o contexto de globalização que caracteriza as sociedades actuais, o PNUD
decidiu alterar a sua fórmula de cálculo a partir do ano de 2010, nas dimensões de educação,
saúde e rendimento, mantendo contudo a sua essência, daí que se registem as diferenças nos
indicadores de IDH indicadas. Essa alteração da fórmula de cálculo foi apontada pelos
governantes angolanos como a razão principal para a descida acentuada do IDH de 2009 para
2010 e, posteriormente, em 2011.
4. Normalmente, a latrina ou casa de banho é exterior, porque é partilhada pelas habitações da
“rua” ou do bairro.
Sílvia de Oliveira

RESUMOS
O contexto de paz que actualmente se vive em Angola tem permitido mais estudos e investigações
sobre a pobreza que caracteriza este país e que afecta grande parte da sua população, bem como a

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compreensão sobre o modo como as categorias sociais mais vulneráveis à pobreza enfrentam o
seu quotidiano. É nesse contexto que se insere e adquire importância a noção de modo de vida da
pobreza.

The context of peace that currently occurs in Angola has allowed more studies and research on
poverty that characterizes that country which affects the great majority of Angolans, as well as
an understanding of how social groups most vulnerable to poverty faces its everyday life. It is in
this context that the notion of way of life of poverty takes particular importance.

ÍNDICE
Keywords: poverty, ways of life, Angola
Palavras-chave: pobreza, modos de vida, Angola

AUTOR
SÍLVIA DE OLIVEIRA
Linguista e Mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa. É
investigadora no Centro de Estudos Africanos do ISCTE-I.U.L. As suas áreas de investigação são a
economia informal, a educação e a integração social. No nº 8 da Revista Angolana de Sociologia,
publicou “Dinâmicas educativas da juventude angolana”. [e-mail: slviadeoliveira9@gmail.com]

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PALOP e Timor-Leste: espaço para a


qualificação, oportunidade para a
coesão social
PALOP and East Timor: space for qualification, opportunity for social cohesion

Luís Capucha

NOTA DO EDITOR
Artigo pedido ao autor
Recebido a: 19/Abril/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012

Introdução: Pobreza, crescimento e qualificações.


Equacionando os problemas e as soluções
1 A literatura sociológica e económica dominante sobre o tema da pobreza tem tido
subjacente a questão do contraste entre os pobres e os restantes cidadãos nas
sociedades desenvolvidas. De facto, desde os trabalhos de Rowntree [1951] sobre a
situação de pobreza absoluta da classe trabalhadora inglesa 1, passando pelos de Peter
Townsend [1979], centrados no tópico da desigualdade e da pobreza relativa e, mais
recentemente, pelos de Room [1993], Paugan [1991] ou Castel [1995], focalizados em
conotações diferentes da noção de exclusão social, até ao mais recente desenvolvimento
de índices multidimensionais de pobreza [Cheli & Lemmi, 1995], para citar apenas
alguns dos autores mais divulgados, o contexto de referência são invariavelmente as
sociedades capitalistas desenvolvidas. A questão de fundo, abordada por diferentes vias
pelos diversos autores, é a da iniquidade presente na existência de pessoas, famílias e
grupos a viver em condições indignas em sociedades pautadas pela afluência da maioria
da população.

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2 É certo que Oscar Lewis [1961] ofereceu uma outra perspectiva de análise com os seus
estudos sobre a “cultura da pobreza” na América Latina, enquanto Hogart [1957] a
estudava na Europa. Mas os seus trabalhos não tiveram muito mais influência do que na
produção de autores como Brigitte Brébant [1984] em países desenvolvidos.
3 No entanto, o problema da pobreza está hoje colocado como um dos mais graves que é
preciso enfrentar à escala global. Amartya Sen [1981] é um dos responsáveis pela
chamada de atenção para o modo como o problema se coloca nas sociedades em
desenvolvimento. Das várias problemáticas de maior importância abordadas pelo autor,
gostaríamos de salientar duas. A primeira relaciona-se com a natureza global das
sociedades e das economias contemporâneas e dos seus problemas. Na verdade, o
problema da pobreza é de todo o mundo e é nessa perspectiva que se torna necessário
situá-lo. Do seu contributo resultou por exemplo a adopção pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelos seus relatórios sobre o desenvolvimento
humano, de um único indicador de pobreza, em vez dos dois que continha até
recentemente, um de natureza relativa para os países mais desenvolvidos e outro de
natureza absoluta para os restantes países do mundo. Era aliás o único indicador em
que tal dicotomia existia, algo difícil de aceitar num momento em que todos convivem
numa mesma “aldeia global”.
4 A segunda é a mais importante para os fins do presente artigo. Amartya Sem [1999,
2010] mostrou como desenvolvimento, liberdade e justiça social têm de andar juntos e
se promovem por um lado com modelos de crescimento económico e de regulação
política mais abertos à oferta de oportunidades e, por outro lado, com o investimento
nas capacidades das pessoas. Tem vindo assim a trazer o debate para a agenda das
políticas públicas, nomeadamente as que se associam ao desenvolvimento humano e ao
potencial de participação económica, política e social de todas as pessoas.
5 Entretanto, outros autores [Crouch 2004, Dorling 2009, Lansley 2011] têm vindo a
mostrar como a extraordinária concentração da riqueza que se tem verificado nas
últimas décadas e o aumento das desigualdades a ela associado, num quadro de
dominação do capitalismo mundial pelo capital financeiro e especulativo sobre os
interesses dos restantes sectores económicos e, sobretudo, sobre os naturais anseios das
populações, acaba por produzir o duplo efeito de reprodução das mais graves injustiças
sociais (a redução da taxa de pobreza a nível mundial devido ao elevado crescimento de
grandes economias em forte expansão é concomitante com o crescimento das
desigualdades) e, paradoxalmente, de ineficiência económica, pelo menos a prazo.
6 Oportunidades e capacidades são, então, marcos de orientação dupla das políticas
destinadas a promover o desenvolvimento económico sustentado, por um lado, e a
justiça social e o combate à pobreza, por outro lado [Capucha 2005]. No presente artigo,
mais do que discorrer sobre o problema da pobreza, os seus contornos e a sua evolução,
abordam-se as políticas de capacitação das pessoas como instrumentos de combate à
pobreza. O espaço de referência são os países africanos de língua oficial portuguesa
(PALOP) e Timor-Leste (TL). Assim, começando-se numa perspectiva mais analítica por
apresentar de forma muito resumida a situação dos PALOP e TL face a indicadores de
base como o Índice de Desenvolvimento Humano, a escolaridade, o investimento em
educação e a incidência da pobreza, parte-se depois para o campo das políticas públicas
de qualificação, enquanto instrumentos de desenvolvimento e coesão social.
7 A teoria subjacente é a de que há uma relação entre o crescimento económico e a
pobreza, que não é linear. Tudo indica que não há redução da pobreza sem crescimento

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económico. Mas este não é condição suficiente. Pode haver um “lado escuro” do
crescimento. A questão da repartição das oportunidades e das capacidades é
determinante. Normalmente salientam-se a este propósito a repartição operada pelas
políticas fiscais e de segurança social [Blalock Jr. 1991, Esping-Andersen et al. 2002]. Mas
os modelos de crescimento (por exemplo, uma especialização mais ou menos favorável
à criação de empregos) podem igualmente ser determinantes. Trata-se de uma forma
mais estrutural de distribuição das oportunidades. O mesmo se passa com o acesso às
qualificações, neste caso decisiva no plano da distribuição das capacidades. Sem se lhe
reduzir, a capacitação implica a qualificação. É neste ponto que nos centraremos.
8 É pertinente uma análise do conjunto formado pelos PALOP e TL como espaço analítico
no domínio das qualificações? Julgamos que sim.
9 O primeiro argumento a favor dessa abordagem decorre da própria vontade dos países
em causa, que aceitaram cooperar no desenvolvimento de um Projecto de Apoio ao
Sector da Formação Profissional, da qualificação e do emprego apoiado pelo Fundo
Europeu para o Desenvolvimento.
10 Depois, os PALOP e TL, pesem embora as suas diferenças institucionais, a diversidade
das condições que possuem e os estados não coincidentes de maturação dos seus
sistemas de qualificação dos recursos humanos, possuem afinidades que facilitam a
cooperação entre si, no sentido da aprendizagem mútua e da definição de referenciais
comuns e de orientações partilhadas no sector da formação profissional e da educação.
11 Com uma história recente parcialmente partilhada e uma língua oficial comum, os
PALOP e TL são ainda países nos quais a circulação de trabalhadores – num contexto em
que muitas vezes a mobilidade é o primeiro sinal de desenvolvimento – tem condições
particularmente favoráveis.
12 Uma abordagem comum é, por tudo isto, pertinente. O artigo propõe-se apresentar um
modelo de referência para o desenvolvimento de sistemas nacionais de qualificações
que possa promover a cooperação como instrumento de desenvolvimento e de
promoção da coesão social. Tanto mais quanto na economia global o conhecimento for
o motor do crescimento e da criação de riqueza [Alexander & Kumaran 1992, UNESCO
1996], e igualmente quanto mais a educação e a formação se constituem como recursos
para a justiça social e o combate à pobreza [Capucha 2010].

Educação, pobreza e desenvolvimento nos PALOP e


em Timor-Leste
13 Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio [PNUD 2009], em cuja construção
participaram os PALOP, salientam o papel determinante que a promoção do emprego, o
trabalho digno e a qualificação dos recursos humanos desempenham no processo de
desenvolvimento, no crescimento económico, na coesão social e na luta contra a
pobreza. A exploração de recursos naturais ou a mera industrialização com base na
utilização intensiva de força de trabalho pouco ou nada qualificada e muito diminuta
face à dimensão das populações (remetidas na sua maioria para economias de
subsistência), está na origem de transferências de recursos largamente desfavoráveis
para os países em desenvolvimento. Daí que se falasse de pobreza nos países
desenvolvidos (onde os pobres representavam os perdedores do desenvolvimento), e de

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“países pobres” para classificar amplas regiões do planeta, perdedoras da era colonial,
da revolução industrial e agora da sociedade da informação.
14 A nova economia do conhecimento, da liberalização dos mercados à escala global, da
comunicação como suporte da afirmação de novos protagonistas (como as empresas
globais) e da perda de poder de outros (como os sindicatos e os movimentos dos
trabalhadores), são exemplos de fenómenos que se associam à concentração da riqueza
e à explosão das desigualdades a nível mundial [Crouch 2004], e também dentro dos
países menos desenvolvidos, pondo em risco a coesão social, o progresso no sentido da
democracia e a governabilidade.
15 As novas estratégias de investimento e de organização da produção na economia do
conhecimento têm vindo a permitir o crescimento económico em várias regiões do
planeta, mas têm deixado outras ainda mais para trás. A par de uma melhoria média
das condições de vida da população mundial, assiste-se ao aprofundamento das
desigualdades entre pobres e ricos [UNPD, 2011]. A capacidade de cada país se
modernizar económica e socialmente e de combater a pobreza, aparece claramente
associada à qualificação dos recursos humanos e ao esforço realizado no campo das
políticas de educação e formação [Capucha 2010], como mostram claramente os
resultados de países como a China, Singapura ou Coreia [OCDE 2011]. Tudo indica que a
educação e a qualificação não serão condições suficientes para a coesão social e que a
distribuição equitativa das oportunidades e do produto passa por compromissos
políticos mais amplos e profundos. Mas são seguramente condições indispensáveis,
porque são a chave da produtividade do trabalho, da participação dos cidadãos e da
justiça social.
16 Segundo os indicadores disponíveis, o conjunto dos PALOP e TL apresentam sérias
desvantagens, no quadro mundial. O Relatório do PNUD2 indica que o índice de
desenvolvimento humano tem melhorado nos últimos anos em todos os países
considerados, mas encontra-se muito distante dos países mais desenvolvidos (na
Noruega o valor era de 0,943 e em Portugal 0.809, segundo o relatório de 2011), embora
os PALOP e TL se comecem a destacar dos mais atrasados (por exemplo, 0,286 na
República Popular do Congo). As diferenças entre os países são também relevantes, com
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, países mais pequenos e que foram poupados à
guerra depois da independência, a destacar-se dos restantes, ao passo que Moçambique
e Guiné-Bissau se quedam com indicadores mais desfavoráveis (tabela 1).

Tabela 1: Índice de Desenvolvimento Humano 3

Ano Angola Cabo Verde Guiné-Bissau Moçambique São Tomé e Príncipe Timor-Leste

2005 0.445 0.543 0.340 0.285 0.483 0.448

2006 0.459 0.555 0.344 0.290 0.489 0.464

2007 0.471 0.560 0.345 0.299 0.496 0.487

2008 0.476 0.563 0.346 0.304 0.496 0.505

2009 0.481 0.564 0.348 0.312 0.503 0.487

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2010 0.482 0.566 0.351 0.317 0.506 0.491

2011 0.486 0.568 0.353 0.322 0.509 0.495

Fonte: PNUD 2011.

17 Sendo a escolaridade uma parte do índice, traduzindo o reconhecimento pela ONU de


que a frequência da escola constitui um elemento central para o desenvolvimento, a
mesma tendência se verifica nesse parâmetro, embora de forma menos marcada quanto
às diferenças entre os PALOP e TL. Ainda assim, os melhores resultados encontram-se
em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, ficando Angola e Timor-Leste muito próximos.
Os indicadores menos favoráveis voltam a encontrar-se em Guiné-Bissau e em
Moçambique (ver tabela 2).
18 Estes desempenhos contrastam, uma vez mais, com os países mais desenvolvidos, nos
quais o número médio de anos de escolaridade é de 11,3 anos. 4 Os PALOP e TL ficam
longe, com 4,4 em Angola, 4,2 em São Tomé e Príncipe, 3,5 em Cabo Verde, 2,8 em
Timor-Leste, 2,3 na Guiné-Bissau e apenas 1,2 em Moçambique. Já a expectativa de
escolarização para os jovens é de 15,9 anos nos países de desenvolvimento muito alto 5, o
que compara com 11,6 em Cabo Verde, 11,2 em Timor-Leste, 10,8 em São Tomé e
Príncipe, 9,2 em Angola e em Moçambique e 9,1 na Guiné-Bissau.
19 Podemos desde já retirar uma conclusão: quando comparados com os países mais
desenvolvidos do mundo, os PALOP e TL não apenas apresentam uma situação muito
mais desfavorável quanto à escolaridade da sua população, como os progressos
registados, sendo inequívocos, não se processam porém a um ritmo suficiente para
superar o atraso, dado que a escolarização das gerações jovens cresce mais nos países
que já se apresentam com vantagem.
20 Esta realidade só poderá mudar com um esforço maior do que o que actualmente se
verifica. De facto, sempre segundo o PNUD [UNPD 2011] a Noruega gasta 9,7% do seu
PIB em educação (11,3% em Portugal), contra 3,9% em Cabo Verde 6, 4,6% em Angola,
5,7% em Moçambique, 6,1% na Guiné-Bissau e 7,1% em São Tomé e Príncipe. Timor-
Leste destaca-se com 12,3%.

Tabela 2: Índice de Educação

Angola Cabo Verde Guiné-Bissau Moçambique São Tome e Príncipe Timor-Leste

2000 0.326 0.411 … 0.152 0.421 0.369

2005 0.397 0.416 0.296 0.198 0.438 0.371

2006 0.409 0.431 0.302 0.204 0.437 0.371

2007 0.422 0.427 0.302 0.214 0.443 0.371

2008 0.422 0.428 0.302 0.217 0.438 0.371

2009 0.422 0.425 0.302 0.219 0.452 0.371

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2010 0.422 0.425 0.302 0.222 0.452 0.371

2011 0.422 0.425 0.302 0.222 0.452 0.371

Fonte: UNPD 2011.

21 Para terminar esta breve abordagem aos principais indicadores do triângulo formado
pelo desenvolvimento humano, a educação e a pobreza, falta referir que praticamente
não encontramos nos países de desenvolvimento muito alto e alto pessoas a viver com
menos de 1,25 US dólares por dia, enquanto a proporção de pessoas que vivem abaixo
dessa linha de rendimentos é, ainda segundo o PNUD, de 21,0% em Cabo Verde, 28,6%
em São Tomé e Príncipe, 37,4% em Timor-Leste, 48,8% na Guiné-Bissau, 54,3% em
Angola e 60,0% em Moçambique.
22 Tudo indica pois que a relação entre pobreza, educação e desenvolvimento é real e que
essa relação distingue os PALOP e TL dos países mais desenvolvidos, ao mesmo tempo
que os começa a destacar dos que estão a ficar para trás.

Para uma política comum nos PALOP e Timor-Leste na


área da qualificação dos recursos humanos
23 Os PALOP e TL não existem isolados. Existem num mundo e numa economia globais que
mudam muito rapidamente [Fitoussi & Rosanvallon 1996]. Novas potências mundiais
emergiram. Algumas delas (como a China) entraram em forte relação com África e com
Timor-Leste. O Brasil, por seu lado, é outra potência em plena afirmação, alargando o
espaço de cooperação potencial no campo da lusofonia. A velocidade destas mudanças
não tem qualquer precedente e atingiu patamares que se julgariam utópicos apenas há
alguns anos atrás.
24 Nos tempos que correm, quando o conhecimento constitui o principal motor do
crescimento económico e da coesão social, tanto as pessoas como as nações que não se
qualificarem correm o risco de falhar as oportunidades geradas pelas novas realidades
[African 2011], ao mesmo tempo que se tornam mais vulneráveis aos riscos que elas
comportam, quer em termos de desigualdades no mercado [Stiglitz 2010, Sennet 2006],
quer num plano mais geral [Beck 1992].
25 Por estas razões, os países que aspiram ao desenvolvimento e à promoção da justiça
social necessitam de cuidar especialmente dos seus sistemas de qualificação. Na
verdade, dado o modo como hoje se organizam as relações económicas e sociais a nível
mundial, o atraso não significa apenas ficar para trás, pode significar, e quase sempre
significa, ficar de fora das dinâmicas do desenvolvimento e da modernização.
26 Não ficar de fora implica evitar três equívocos. O primeiro é o de pensar que todo o
esforço se deve concentrar na alfabetização e na escolarização básica dos jovens. As
potências do norte do sistema mundial e os países emergentes estão há muito focados
na produção de inovação e conhecimento, pelo que não deixarão de investir no
conhecimento, como aliás vimos atrás. Por isso os países menos desenvolvidos devem
procurar soluções que lhes permitam um avanço mais rápido para os níveis de
qualificação média e superior, que abranjam toda a população [Association 2008].

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27 O segundo equívoco consiste em pensar que a promoção da qualificação com vista à


obtenção de competitividade económica se pode resumir ao tradicional conceito de
formação profissional. Não basta preparar trabalhadores actualizando os saberes
técnicos através de actividades maioritariamente de curta duração, como era missão
prioritária da formação profissional mais tradicional, é preciso que a qualificação se
oriente pelo princípio da aprendizagem ao longo da vida [European Commission 2010].
28 Em terceiro lugar, a aposta num modelo de educação centrado na escola tradicional,
cognitivista e selectiva, será a aposta na reprodução das desigualdades [Bourdieu &
Passeron s.d.]. Ora, é o contrário que se pretende e isso só se consegue com uma escola
orientada para o desenvolvimento de diversas competências, não apenas cognitivas,
mas também atitudinais e profissionais (que combine o saber, com o saber-ser e o
saber-fazer). Só essa escola será capaz de abranger todos e produzir as qualificações
necessárias [Kearns et al. 1999, Wallenborn 2009, Atchoarena & Delluc 2001].
29 Em síntese, uma reforma consistente implica uma abordagem que tenha como pano de
fundo a noção compreensiva de “sistemas nacionais de qualificação”. O
desenvolvimento desses sistemas exige que os diversos promotores dos actuais
subsistemas de educação, formação e emprego trabalhem segundo referenciais comuns,
de forma coordenada nos objectivos e na acção. É também por via desses referenciais
que a cooperação internacional entre os PALOP e TL pode ter viabilidade. Quais os
contornos típicos de um tal modelo é a questão a que nos dedicaremos de seguida.

Modelo de referência para os Sistemas Nacionais de


Qualificações7
30 O Sistema Nacional de Qualificações (SNQ) é formado pelo conjunto de actores
institucionais e individuais que operam na área da qualificação de recursos humanos,
pelas regras que os regulam e pelos recursos de que dispõem. Esses actores
desempenham diferentes funções, desde o nível da decisão política até ao nível da
prestação de serviços no terreno, passando por níveis de gestão, de planeamento e de
coordenação intermédia e regional. Conhecer e intervir no SNQ de qualquer país ou
conjunto de países passa, assim, por começar por identificar esses actores, conhecer as
suas funções bem como o modo como se articulam e relacionam entre si. Implica
também determinar os recursos, nomeadamente financeiros, logísticos e humanos que
operam nas instituições aos diversos níveis, avaliando o seu potencial e limitações.
31 A missão de um SNQ é o desenvolvimento das competências da população e o
accionamento de mecanismos que permitam colocar essas competências ao serviço da
sociedade e da economia. As competências são de diferentes tipos e incluem, pelo
menos (i) saberes conceptuais e básicos, nomeadamente no domínio da leitura, da fala e
da escrita na língua oficial e em línguas estrangeiras, do cálculo matemático, do
conhecimento do meio físico e social, da sensibilidade estética e do domínio das
tecnologias de informação e comunicação; (ii) aptidões técnico-profissionais,
consistentes na capacidade de pôr em prática aquilo que se sabe, isto é, o saber-fazer
que acrescenta valor ao saber. As competências profissionais, pelas diversas
implicações que têm nas oportunidades de vida das pessoas e na competitividade das
empresas e das economias, ganham relevo particular; (iii) as atitudes perante a vida, as
outras pessoas e as instituições, a autoconfiança e a capacidade de empreender, inovar

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e arriscar de forma calculada. A construção de um SNQ implica pois a passagem de um


paradigma dicotómico (saber/saber-fazer) tradicionalmente utilizado nos sistemas de
educação e formação, para um sistema baseado nos três tipos de competências e
centrado nos resultados da aprendizagem: o que se sabe, como se é e o que se sabe
fazer, independentemente do contexto em que se aprendeu [Conselho 2011].
32 Os três diferentes tipos de competências são organizados por níveis de complexidade,
formando escalas de qualificação válidas para o ensino e a formação. O produto dessa
organização são quadros de qualificações que, trabalhados de forma articulada entre
diferentes países, dão origem a Quadros Nacionais de Qualificações (QNQ) alinhados por
referências comuns [Comissão 2009], facilitando a cooperação em matéria de recursos
humanos.
33 Se as competências promovidas pelos SNQ são de diferentes tipos, e se umas não podem
ser pensadas independentemente das outras, então o cumprimento da missão envolve a
mobilização dos contributos de diferentes sectores, com destaque para a educação, a
formação profissional, o emprego e a economia. O desenvolvimento dos sistemas de
qualificação implica assim a existência de mecanismos institucionais reais de
articulação entre os diferentes sectores.
34 Os objectivos de um SNQ são múltiplos. A linha condutora é a melhoria das
qualificações escolares e profissionais da população, a qual constitui um valor em si
mesmo. Subsidiariamente, o SNQ prossegue outros objectivos de grande relevo, como
sejam o de contribuir para o desenvolvimento económico, promover a qualificação do
emprego, facilitar a mobilidade de trabalhadores e de estudantes e cultivar a cidadania
e as capacidades de participação social e cívica das pessoas.
35 Um SNQ eficiente e eficaz terá de obedecer a alguns princípios que assegurem, por um
lado, a equidade e, por outro lado, a qualidade das aprendizagens que promove e
reconhece. Pela sua relevância estratégica, destacamos aqui alguns desses princípios:

36 A universalidade: o sistema deve ser inclusivo e conter as medidas necessárias para
permitir o acesso de todos à qualificação, entendida como um direito e também um
dever. Um sistema de massas, capaz de abranger os diversos grupos da população, é um
sistema dotado de respostas diversificadas, nomeadamente quanto às modalidades de
educação e formação, de jovens e de adultos. Só a diversidade permite construir
respostas ajustadas às pessoas, às suas condições, às suas ambições e às suas
necessidades.

37 A proximidade: os serviços de educação, de formação e de emprego são, por definição,
serviços de proximidade, cuja eficiência depende da facilidade de acesso. Este critério é
tanto mais relevante quanto menores forem os recursos das populações. De resto, é ele
que permite concretizar na prática o princípio da universalidade.

38 A qualidade: um SNQ deve assegurar a equidade no acesso, mas também a qualidade das
aprendizagens. Pode-se argumentar que a quantidade é a primeira e a mais importante
dimensão da qualidade. Um sistema ou uma política só para alguns não tem qualidade.
Mas é preciso assegurar que o esforço de formação e de educação resulta em aquisições
efectivas de competências orientadas para as necessidades das pessoas e também do
mercado de trabalho. O rigor dos mecanismos de certificação – também eles diversos e
desenhados de modo coerente em relação ao tipo e nível de qualificação obtida – é o
principal garante da qualidade, e também da credibilidade dos sistemas.

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39 Como corolário do que acaba de ser dito, é importante que todas as aquisições de
competências, realizadas quer em contextos formais, quer não formais, quer ainda
informais, possam ser reconhecidas, avaliadas e certificadas [CEDEFOP 2009, Howley &
Ducheman 2010].
40 A certificação pode ser de tipo escolar, de tipo profissional ou, na modalidade mais rica
dos modernos SNQ, dupla certificação (escolar e profissional). Quer isto dizer que se
valorizam as medidas que conduzam à aquisição simultânea de diplomas escolares e ao
exercício de uma profissão. Acções que esqueçam qualquer destes domínios acabam por
se tornar ineficientes e frequentemente pouco atractivas.
41 Por fim, as certificações podem ser parciais – o que corresponde à aquisição de apenas
uma parte minoritária das competências necessárias para concluir um determinado
nível de qualificação – ou totais, quando se atingem valores aceitáveis para a conclusão
de um nível completo.

42 O Planeamento e a avaliação: um SNQ capaz de responder às exigências correntes de
desenvolvimento e de competitividade tem de se dotar de mecanismos de planeamento,
quer do lado da oferta (de modo a adequá-la à procura por parte dos cidadãos, por
vezes promovendo acções de mobilização dessa procura), quer do lado da procura de
mão-de-obra qualificada por parte do mercado de trabalho. O planeamento, tanto
quanto possível, permite o estabelecimento de metas que tendem a focalizar os
sistemas e as instituições não nas rotinas e procedimentos rituais, mas mais nos
resultados alcançados e na sua utilidade.
43 A outra face do planeamento é a avaliação. Só um sistema que se dota de instrumentos
de avaliação interna e externa do seu processo e desempenho será capaz de
acompanhar e de se adaptar às mudanças que ocorrem no seu exterior e às que ele
próprio produz.
44 Estes princípios são a base dos quadros legislativos que regulam os SNQ. É porém
preciso ter presente que uma situação não se muda por decreto e que a distância entre
as normas, os planos e as realidades pode ser grande (esse é aliás um problema nos
PALOP e TL). Um SNQ é muito mais do que um edifício normativo. Mas também não o
dispensa.
45 No caso das qualificações, refira-se, desde logo, a Lei que define a missão, os objectivos
e a organização do SNQ, incluindo os seus principais componentes: educação pré-
escolar, básica e secundária, geral e profissional, educação e formação de adultos nas
suas diversas modalidades, formação contínua, educação/formação pós-secundária e
educação de nível superior.
46 Um segundo instrumento é o Quadro Nacional de Qualificações (QNQ) que define os
tipos e os níveis de saberes comuns a todos os sectores ligados à qualificação de
recursos humanos, desde a educação até à formação contínua. A sua abordagem centra-
se nos resultados da aprendizagem (competências), incluindo a que se realiza em
contextos não formais e informais. O QNQ facilita a certificação de competências e a
transparência dos sistemas de certificação, quer quando se comparam modalidades e
vias de ensino e formação num determinado país, quer quando comparamos países
diferentes. Neste sentido, é também um facilitador da mobilidade;
47 O SNQ integra ainda um Catálogo Nacional das Profissões, ou instrumento equiparado, que
regule a formação de dupla certificação. O Catálogo descreve as competências
associadas a cada perfil profissional, define os percursos de acesso às profissões e os

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níveis de qualificação exigidos, os conteúdos técnico-profissionais de cada profissão e


as condições em que ela é exercida. Os percursos de qualificação organizam-se por
módulos cumulativos que se utilizam na educação/formação inicial de jovens e adultos
e na formação contínua. Para que a regulação da formação e do acesso às profissões seja
eficaz, a inscrição das acções de educação e formação nos perfis do Catálogo é condição
necessária para a atribuição de financiamento público. Assim, o Catálogo funciona
como instrumento de regulação de todas as ofertas de cariz profissionalizante no
sistema de ensino e no sistema de formação profissional. Além disso, o Catálogo tem um
efeito externo sobre a regulamentação do acesso a certas profissões. No limite, o acesso
a essas profissões pode ser precedido apenas da conclusão de uma formação dele
constante, eliminando assim peias burocráticas e interesses instalados em certos
sectores, que rigidificam o mercado de trabalho.
48 Para cumprir com eficácia estas funções, os perfis profissionais e os perfis de formação
que integram o Catálogo devem estar permanentemente actualizados face à realidade
do mercado de trabalho. O método mais comum para conseguir esse objectivo é o da
constituição de “Conselhos Sectoriais” que integrem as entidades reguladoras dos
sectores económicos, os parceiros sociais, especialistas em cada um dos sectores,
empresas e operadores de educação/formação, os quais aprovam os perfis e as
alterações de que possam ser objecto. A actualização do catálogo beneficia muito da
existência de mecanismos abertos de consulta, através dos quais qualquer entidade
pode sugerir a inclusão de um novo perfil, a alteração de um outro ou a supressão de
um terceiro, compete aos Conselhos Sectoriais analisar e aprovar as propostas. A
circulação de trabalhadores entre um grupo de países como os PALOP e TL implica a
existência de catálogos nacionais de profissões com uma estrutura partilhada e perfis
homólogos e comparáveis, de modo a reconhecer com facilidade as habilitações
profissionais adquiridas no país de origem por parte do país de acolhimento
49 Os SNQ não visam apenas a educação e formação iniciais, mas a aprendizagem ao longo
da vida. Para que ela seja uma realidade é indispensável, em quarto lugar, a existência
de uma rede de oferta de acções de educação e formação formal, mas também a
montagem de um sistema de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências
(RVCC) adquiridas em contextos não formais e informais. Este implica a existência de
Referenciais de Competências-Chave. Trata-se de guiões organizados por áreas de
competências transversais em relação aos diversos domínios científicos e profissionais,
e constituem uma espécie de guiões sobre o que cada cidadão deve saber ou aprender
para atingir determinado nível de qualificação. Note-se que a reflexão necessária à
demonstração da posse das competências constantes nos referenciais é, em si mesma,
um mecanismo de aprendizagem [Aníbal 2011]. Naturalmente, é possível estabelecer
equivalências, a partir do QNQ, entre as competências dos referenciais e outros
instrumentos reguladores dos processos de ensino/aprendizagem, como os programas
escolares, embora o modo como os saberes se organizam e o tipo de mecanismos de
validação e/ou avaliação de conhecimentos sejam diferenciados. A construção dos
referenciais é um dos elementos mais sensíveis de todo o processo de construção de um
SNQ, porque é necessário combinar abrangência, rigor, qualidade e elasticidade, para se
adaptarem a múltiplos processos de aprendizagem formal, informal e não-formal.
50 As entidades promotoras de qualificações, incluindo escolas, empresas, associações,
ONGs e centros de formação profissional trabalham num campo bastante mais
complexo e difícil do que a educação e a formação tradicional. A qualidade mínima deve

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ser assegurada, quer por razões de eficácia (fazer mesmo o que é preciso ser feito), quer
de credibilidade (demonstrar que se utilizam metodologias e pedagogias diversas, mas
de valor equivalente). O que conta de facto é o rigor na aplicação das regras de cada
tipo de abordagem. Por isso, as entidades formadoras e certificadoras devem ser
sujeitas a processos de acreditação por parte de uma entidade pública com poderes e
competências para tal, e devem ser objecto permanente de controlo de qualidade das
suas actividades. A acreditação deve também ser condição necessária para a obtenção
de financiamento.
51 À medida que um SNQ se expande e abrange mais pessoas, nomeadamente quando se
diversificam as modalidades de educação e formação de jovens e de adultos, os Serviços
de Orientação ao longo da vida tornam-se uma peça-chave no sistema. Esses serviços são
instrumentos de divulgação da oferta, de apoio nas escolhas e de encaminhamento das
pessoas para as soluções que mais se ajustem ao seu perfil específico e que melhores
possibilidades ofereçam de satisfazer em simultâneo as ambições dos cidadãos e as
necessidades das empresas.
52 A existência e desenvolvimento de instrumentos estatísticos de seguimento e de
serviços de planeamento é um factor de qualidade nos SNQ, introduzindo racionalidade
nos procedimentos, rigor nas escolhas e permitindo o estabelecimento de metas e
objectivos operacionais orientadores da acção de todos os agentes. Esses instrumentos
são ainda facilitadores de processos de descentralização que geralmente reforçam a
capacidade operacional do sistema. Para aprender com o trabalho feito no sentido de o
melhorar, é de toda a utilidade o estabelecimento de contratos para a avaliação externa
das diferentes medidas que integram o SNQ e os operadores devem ser estimulados
para a adopção de procedimentos sistemáticos de planeamento e de autoavaliação.

Conclusão: os PALOP e TL estão no trilho. É preciso


ambição e elevar os patamares
53 Se aceitarmos que o desenvolvimento de sistemas compreensivos e eficazes de
qualificação dos PALOP e TL vai para além das fronteiras da “tradicional” formação
profissional e da “tradicional” educação, então podemos também aceitar o modelo atrás
sumariado como um guião de orientação dos processos de mudança, ou, se assim
quisermos chamar, um horizonte pelo qual os países podem orientar-se nos seus
processos de reforma e na definição das prioridades para a cooperação.
54 O reconhecimento da diversidade de pontos de partida dos diferentes PALOP e TL é um
ponto de partida. O segundo passo consiste em aceitar que é preciso operar rupturas. O
valor da cooperação PALOP e TL, neste domínio, é que tais rupturas podem ser operadas
num sentido convergente, valorizando e disseminando as boas práticas existentes. Dito
de outro modo, e em síntese, a mudança exige vontade de mudar (isto é, prescindir
daquilo que existe uma vez criadas as condições para ter algo melhor) e a cooperação
exige vontade de cooperar. Todos os PALOP e TL afirmaram uma vontade inequívoca de
prosseguir nessa via de reforma e cooperação.
55 De facto, os PALOP e TL têm vindo a realizar um esforço significativo para a
modernização dos seus sistemas de educação e formação, orientando-os para a
qualificação, num sentido mais genérico do que apenas os saberes escolares ou as
técnicas associadas ao exercício de uma profissão num determinado local de trabalho.

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56 Na maior parte dos casos verifica-se uma preocupação com a definição de sectores
económicos que deverão beneficiar prioritariamente desse esforço. A agricultura é um
sector comum a todos os países, tal como a educação e formação. São Tomé e Príncipe
refere também as pescas, a construção civil, o petróleo (tal como Angola) e a hotelaria,
turismo e restauração. Este sector é também salientado por Timor-Leste, Cabo Verde,
Moçambique e Angola. A energia, a gestão, serviços financeiros, contabilidade,
transportes e comunicações, bem como áreas profissionais manuais especializadas
(mecânica, electricidade, serralharia, carpintaria, mecatrónica, construção civil)
aparecem também referidos explicitamente em Angola, Cabo Verde, Moçambique e
Timor-Leste. As TIC são referidas nalguns dos documentos programáticos destes países.
57 Esta identificação de sectores é relevante para focalizar a educação e formação (tanto
mais quanto são escassos os recursos), mas não pode servir para fechar o sistema a
outras actividades económicas, que podem surgir como oportunidades a qualquer
momento ou por iniciativa de agentes diversos.
58 As necessidades de qualificação de mão-de-obra levaram muitos países a encetar
reformas dos sistemas de educação e de formação. Por exemplo, entre outras
iniciativas, Angola possui uma “Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de
Educação 2001-2015” e o Programa “Angola Alfabetizada, Angola Desenvolvida”
dirigido a adultos; Cabo Verde desenvolveu um “Plano Estratégico de Formação
Profissional 2006-2010” e tem em curso o “Programa Nacional de Educação, Formação
Profissional e Emprego” e ainda um “Programa de Educação e Formação Técnica e
Profissional”; em Moçambique está em curso a reforma do currículo do ensino
profissional conduzida por uma “Comissão Interministerial para a Reforma da Educação
Profissional”; Timor-Leste coloca a educação e a formação no centro do “Plano
Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030”; São Tomé e Príncipe também possui a sua
“Estratégia para a Educação e Formação 2007-2017”. Apenas para a Guiné não foi
possível encontrar um documento orientador do mesmo tipo.
59 Todos estes programas dão grande relevo à educação profissional. Porém, as ambições
maiores ainda se situam aquém, nos níveis mais básicos. A educação vocacional tende a
ter nível secundário, o mínimo considerado indispensável para a vida e o trabalho na
sociedade do conhecimento [OECD 2011]. Em geral é promovida por entidades públicas
e privadas segregadas em relação aos cursos gerais. Isso não favorece a valorização da
educação vocacional (estudos realizados em Moçambique assinalam mesmo que a
educação profissional é vista como uma opção “de segunda”). Assim, se são apenas uma
minoria os jovens no ensino secundário, os que frequentam o ensino profissional não
são mais do que 2,9% em Cabo Verde, 1,8% na Guiné (ano de 2006), 5,2% em
Moçambique, 1,6% em São Tomé e Príncipe e 5,6% em Timor-Leste. Apenas em Angola a
proporção dos alunos do secundário que estão em cursos profissionais é de 42,7%,
segundo o Institute for Statistics da UNESCO (dados de 2010).
60 Ora, o ensino profissional, dada a relação entre teoria e prática, a proximidade e
acompanhamento dos alunos pelos professores e monitores, os métodos de trabalho, as
maiores cargas de esforço, não apenas pode ser mais atractivo para os jovens, como é
mais útil para eles (os estudos de Moçambique revelam elevadas taxas de
empregabilidade) e para as empresas e, acima de tudo, é a modalidade que assegura
melhores aprendizagens e que tem maior potencial para a massificação da educação.
Elevar os desempenhos dos sistemas, aumentar drasticamente a oferta e vencer a
separação entre a educação de tipo “liceal” e de tipo profissional são, assim, condições

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fundamentais para o sucesso dos planos de desenvolvimento da educação e da


qualificação e de combate à pobreza [Wallenborn 2009].
61 Angola, Cabo Verde, Moçambique e Timor-Leste têm trabalhado para a criação e
implementação de sistemas nacionais de reconhecimento de competências (no caso de
Moçambique referem-se apenas as profissionais) adquiridas em contextos não formais e
informais. Em todos os seis países existem na lei e no terreno respostas para o ensino
recorrente de adultos, nalguns casos ligado à formação profissional e ao
desenvolvimento comunitário. Porém, a ambição vai pouco para além da alfabetização
e dos níveis mais básicos de educação, o que não permite supor que a recuperação do
“stock” de qualificações seja possível com a urgência ditada pelas dinâmicas da
competitividade global. Tanto mais quanto o número de pessoas abrangidas é em todos
os casos muito reduzido, se exceptuarmos algumas acções ao nível mínimo da
alfabetização.
62 Têm-se também verificado progressos significativos na modernização dos sistemas de
formação profissional. Mas a articulação entre a formação e a educação, dando corpo ao
conceito de “dupla certificação”, apenas aparece como um objectivo, e não tanto como
uma realidade, nalguns países como Angola, Cabo Verde e Timor-Leste. Prevalece de
facto uma separação entre sistemas.
63 Ora, um Sistema Nacional de Qualificações, assente no conceito da dupla certificação,
deve promover a coordenação e equivalência entre todos os segmentos da oferta, para
jovens e para adultos. Deve igualmente ajudar a desenvolver os Catálogos 8 Nacionais de
Qualificações que regulem a educação e a formação profissional.
64 Certos instrumentos específicos como a formação a distância, o uso das TIC na educação
e formação ou a orientação vocacional são matérias que estão equacionadas na maioria
dos países, sem porém terem ainda plena implementação no terreno. De resto, isso
deve-se à incontornável verificação do facto, que atravessa todos os processos de
reforma, de que os recursos humanos bem preparados são muito escassos, a rede de
escolas e centros de formação pouco densa e de capacidade inferior à necessidade e,
subjacente a tudo isto, que os recursos financeiros são muito limitados e precisam de
um reforço significativo.
65 Tal não impede, porém, que os PALOP e TL aprendam com os melhores exemplos uns
dos outros, que se orientem pelos casos em que há maior desenvolvimento normativo e
institucional (nomeadamente em Angola, Cabo Verde e Timor-Leste), e cooperem na
construção de instrumentos que criem um espaço comum de qualificação, tirando
partido das razões que, como vimos atrás, justificam uma acção concertada. Essa acção
poderia conduzir no curto prazo:
• À criação de um Quadro Comum de Qualificações;
• Ao desenvolvimento de Referenciais de Competências-chave comuns para a educação de
adultos;
• À harmonização de leis de mobilidade no espaço dos PALOP e TL que removam as barreiras
existentes;
• À criação de mecanismos comuns de certificação de entidades formadoras;
• À definição de regras comuns de reconhecimento de competências e certificados/cadernetas
de competências;
• À criação de um programa comum de formação de dirigentes e de formadores a desenvolver
em cada um dos PALOP e em TL;

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• À criação de um programa de formação de empresários, grupo estratégico quer no plano da


sua função directa, quer na facilitação do acesso dos trabalhadores à ALV, quer ainda no
apoio ao esforço de qualificação de jovens e adultos.
66 A questão dos recursos terá de assumir aqui um papel crucial, no sentido de não
estabelecer metas irrealizáveis e de não aprofundar os desfasamentos existentes entre
quadros normativos e práticas no terreno. Mas o processo não pode ser invertido: fazer
em função dos recursos existentes, em vez de definir objectivos e acordar metas para a
cooperação, procurando depois mobilizar os recursos necessários para a respectiva
concretização.
67 Caminhar juntos é a melhor maneira para seguir em frente. Afirmar um espaço de
desenvolvimento que tenha a qualificação dos recursos humanos como vector
organizador da cooperação, do desenvolvimento e da coesão social é, tem de ser, um
horizonte alcançável.

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NOTAS
1. Não sendo objectivo deste trabalho realizar uma revisão compreensiva da literatura sobre o
tema da pobreza, não se mencionam aqui os trabalhos pioneiros que precederam o trabalho

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seminal de Rowntree, nem dos vários que lhe sucederam, como por exemplo Ravaillon [1998],
Atkinson [1998], Foster [1984] e muitos outros.
2. Por vezes argumenta-se contra a fiabilidade dos indicadores do PNUD. Deve porém notar-se,
em primeiro lugar, que qualquer indicador é uma imagem mais ou menos próxima da realidade, e
não a própria realidade; em segundo lugar, que qualquer indicador comparativo internacional, e
por maioria de razão, os da dimensão do PNUD, são construídos com base nas informações
disponíveis nos diversos países, dos quais a sua qualidade depende; em terceiro lugar, a
comparabilidade ao longo de séries anuais longas fornece indicações preciosas,
independentemente do rigor de um dado singular relativo a este ou aquele país, pelo que este
tipo de indicadores possui toda a pertinência e utilidade analítica.
3. O Índice de Desenvolvimento Humano é construído a partir de três dimensões (esperança de
vida saudável, conhecimento e padrões de vida decentes) desdobradas num indicador para o
primeiro parâmetro (esperança de vida à nascença), dois para o conhecimento (média de anos de
escolaridade e expectativa de escolarização) e um para o terceiro (PIB per capita).
4. Nos países de desenvolvimento alto o valor é de 8,5 anos, nos de desenvolvimento médio de 6,3
anos e nos de desenvolvimento baixo é de 4,2 anos.
5. Os valores para os países de desenvolvimento alto, médio e baixo são respectivamente 13,6,
11,2 e 8,3.
6. Dados locais indicam que o orçamento para a educação em 2011 é de 13,2% (20,5% do
orçamento de funcionamento e 4,7% do investimento).
7. Neste capítulo o autor baseia-se, acima de tudo, na sua experiência como Presidente da
Agência Nacional para a Qualificação em Portugal e coordenador da Iniciativa Novas
Oportunidades, cargos que exerceu entre Setembro de 2008 e Agosto de 2011.
8. A designação pode variar. O mesmo tipo de instrumento, o qual permite a acumulação de
créditos para a qualificação, por exemplo em Moçambique chama-se Quadro Nacional de
Qualificações Profissionais e, em Timor-Leste, chama-se Padrões de Qualificações Nacionais.

RESUMOS
A pobreza é um dos principais problemas com que se defrontam as sociedades contemporâneas.
Num quadro de globalização marcado pela acentuação das desigualdades sociais e de
concentração da riqueza, o combate à pobreza passa por um lado pela criação de oportunidades,
fruto do crescimento sustentado e rico em emprego e de políticas de redistribuição, e por outro
lado pela capacitação das pessoas. É nesta questão que o artigo se centra, apresentando um
modelo para o desenvolvimento de sistemas nacionais de qualificação nos PALOP e em Timor-
Leste que promova as competências das pessoas, condição necessária do crescimento económico,
da democracia política e da coesão social. Procura-se por fim, de forma genérica, assinalar os
progressos em curso face ao desenvolvimento desses sistemas, bem como os aspectos mais
críticos, como contributo para a cooperação na área da educação e da formação.

Poverty is one of the main problems faced by contemporary societies. In a context of


globalization marked by increased social inequalities and concentration of wealth, the fight
against poverty implies on the one hand the creation of opportunities, due to the sustained
economic growth with more and better jobs, together with sound redistribution policies, and on
the other hand empowering people. It is this issue that the paper focuses, presenting a model for

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the development of national qualification systems in PALOP and Timor-Leste to promote people’s
qualification, a necessary condition for economic growth, political democracy and social
cohesion. Finally the progress being made in relation to the development of these systems is
emphasized, and the most critical aspects area pointed out as a contribution to cooperation in
education and training.

ÍNDICE
Keywords: poverty, qualifications, skills, cooperation
Palavras-chave: pobreza, qualificações, competências, cooperação

AUTOR
LUÍS CAPUCHA
Sociólogo, Doutor em Sociologia. Professor no ISCTE–IUL (desde 1987) e investigador no Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE. Foi Director Geral de Planeamento do
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, coordenador do Plano Nacional de Emprego,
Director Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação e Presidente
da Agência Nacional para a Qualificação. Tem como principais áreas de interesse (i) as políticas
públicas de luta contra a pobreza, de educação e formação, de acção social e de emprego, (ii) as
culturas populares e (iii) as metodologias de planeamento e avaliação. Participou e coordenou
acima de 70 projectos de pesquisa, de avaliação e de intervenção social. É autor de mais de 130
publicações em Portugal, Reino Unido, França, Áustria, Itália, Espanha e Brasil. É autor de
Desafios da pobreza (Oeiras, 2005) e co-autor de: Welfare and Everyday Life (Lisboa, 2009),
Institutions and Politics (Lisboa, 2009), Portrait of Portugal (Lisboa, 2007), Quotidiano e qualidade
de vida (Oeiras, 2007) e Exclusão social: factores e tipos de pobreza em Portugal (Oeiras, 1992). [e-
mail: luis.capucha@iscte.pt]

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Pobreza em Portugal: retrato de um


fenómeno insuspeitadamente
extenso
Poverty in Portugal: portrayal of an unsuspectedly extensive phenomena

Pedro Perista e Isabel Baptista

NOTA DO EDITOR
Recebido a: 23/Fevereiro /2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 2 e 7/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 8/Maio/2012
Aceite para publicação: 14/Maio/2012

Pobreza: da pluralidade de perspectivas à clarificação


de um conceito
1 À medida que a percepção da privação aumenta na Europa e no Mundo, aumenta a
visibilidade social do fenómeno, bem como o conjunto de pronunciamentos e
comentários sobre a pobreza. Para o cidadão comum, o significado de pobreza parece,
porém, cada vez menos claro, pelo que urge reflectir sobre a questão basilar quanto ao
que o termo efectivamente significa.
2 A forma corrente de identificar uma pessoa pobre ou uma pessoa socialmente excluída
consiste em avaliar as suas condições de vida objectivas. É esta a expressão mais visível
do problema. Esta poderá não constituir o aspecto mais grave da situação, mas
sobressai por ser, de modo geral, o aspecto mais directamente observável da pobreza. A
alimentação, o modo de vestir, as condições habitacionais, o estado de saúde, etc.
denunciam a condição da maior parte das pessoas pobres e excluídas.

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3 Indiscutivelmente, essas carências materiais constituem, em si mesmas, um problema a


resolver. Todavia, a pobreza é uma realidade bem mais ampla e complexa do que um
conjunto de carências materiais permite perceber. Os seus efeitos atingem o ser
humano como um todo: nos seus sentimentos e afectos, no exercício da inteligência e
da vontade, nos hábitos e comportamentos, na relação com os outros, na incerteza
quanto ao dia de amanhã ou até da próxima refeição, no exercício da cidadania, no
cumprimento dos seus deveres e no gozo dos seus direitos.
4 Mas não será a noção de pobreza, antes do mais, uma construção social? Neste caso, a
distinção entre o pobre e o não-pobre não assentará em critérios normativos, mas na
percepção que cada sociedade tem da pobreza. A legitimidade para a definição de
pobreza residirá, então, apenas na sociedade [Mack & Lansley 1985, Veit-Wilson 1987].
Uma versão mais “fina” deste conceito coloca a definição da pobreza na mão das
próprias pessoas pobres. É consultando os que efectivamente experimentam a pobreza,
diz-se, que ficaremos a saber em que consiste a pobreza e como distinguir o pobre do
não-pobre.
5 A complexidade do fenómeno explica a diversidade de perspectivas em que o mesmo
pode e tem vindo a ser definido. Cada definição privilegia os aspectos que mais
relevantes parecem ou mais directamente interessam ao autor. Por isso, na maior parte
dos casos, não serão definições alternativas, mas complementares. Tomadas no seu
conjunto, permitem traçar um quadro menos incompleto do fenómeno, mesmo quando
considerado na sua expressão individual.
6 A pobreza pode ser identificada pelo seu lado mais visível, o das necessidades materiais.
Neste caso, o problema consiste em escolher as necessidades materiais que interessa
considerar, definindo como pobreza a situação em que essas necessidades ficam por
satisfazer. Para outros, a pobreza consiste numa situação existencial para a qual
concorrem não só necessidades materiais, mas também elementos de ordem
psicológica, social, cultural, espiritual, etc., que, em conjunto, geram uma condição
existencial que afecta os mais diversos aspectos da vida e da personalidade, bem como a
relação da pessoa pobre com os outros e com a sociedade em geral.
7 Uma outra perspectiva, inspirada no pensamento de Amartya Sen [1999], atribui
fundamental importância a dois conceitos que são devidos a esse autor: a habilitação
(entitlement) que permite o acesso; e a capacidade para que a pessoa possa funcionar e
buscar o tipo de felicidade que tem razões para preferir. Esta perspectiva não ignora o
papel das necessidades básicas (materiais e imateriais), mas tem a preocupação de
verificar em que medida o modo como as mesmas (necessidades) são escolhidas e
satisfeitas conferem à pessoa as capacidades que precisa para funcionar. Aqui, a
satisfação das necessidades humanas básicas, se bem que indispensável, deixa de
constituir o objectivo final, e assume carácter de meio para que o indivíduo adquira
aquelas capacidades. Além do mais, esta perspectiva tem a vantagem de retirar a
reflexão e o debate do nível dos meios para satisfazer as necessidades (frequentemente
identificados com as próprias necessidades) e de tornar possível definir um conjunto de
necessidades universais, como adiante veremos.
8 Não se trata, porém, de uma perspectiva oposta àquelas que privilegiam as
necessidades básicas, sejam estas materiais ou imateriais. O que a distingue é a atenção
particular dada à forma e ao modo como a opção pelas necessidades em causa e a sua
satisfação permitem ou não aos indivíduos dispor das capacidades de que necessitam
para funcionar.

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9 À indispensabilidade da análise da satisfação das necessidades humanas básicas junta-


se a análise dos meios que permitem aos indivíduos a aquisição das capacidades para
funcionar e que incluem as anteriores. Por outras palavras, a satisfação das
necessidades passa a ser entendida como meio e não como objectivo final.
10 A categoria que define a pobreza por referência à necessidade material pode limitar-se
à falta de alguns bens ou serviços que são considerados como essenciais: alimentação,
energia, habitação, etc. Trata-se de uma situação de privação de bens ou serviços
necessários. A mesma perspectiva de análise pode ser mais abrangente e preocupar-se,
não tanto com carências em determinados domínios como com uma condição geral de
carência em vários aspectos e de modo persistente ao longo de certo período de tempo.
A ênfase é posta na persistência em que a pessoa se encontra na situação de privação
múltipla e na dificuldade que tem em sair dessa condição.
11 É, porém, claro que, na maioria das vezes, a pobreza é definida com referência a níveis e
condições de vida. Seja qual for o conceito adoptado para defini-la (absoluto, relativo ou
subjectivo), a pobreza preocupa-se com as condições que têm de ser satisfeitas, ou os
recursos necessários, para se ter acesso a um determinado padrão de vida. Por outro
lado, isto implica que se assume a existência de um limiar, abaixo do qual se estará face
a uma situação de pobreza [Townsend 1987, Machado et al. 2007, Bruto da Costa et al.
2008].
12 Do ponto de vista conceptual, este é pois o principal factor de distinção entre a pobreza
e um outro conceito, o de desigualdade, que se trata sobretudo de um conceito
comparativo entre duas situações [Rodrigues et al. 2011].
13 Do ponto de vista teórico, encontramo-nos perante duas noções distintas. A
desigualdade interessa-se pelo modo como um dado volume de recursos é distribuído
pelas unidades de análise (pessoas, famílias, agregados, etc.) e não com o modo como as
parcelas que cabem a cada unidade se traduzem em níveis de vida e estilos de vida.
14 Assim, do ponto de vista teórico (situação em que todos são igualmente pobres) podem
existir situações de altos níveis de desigualdade sem pobreza, bem como desigualdade
mínima coexistindo com pobreza máxima [Banco 1990]. O primeiro caso ocorre quando
os mais ricos estão muito acima da linha de pobreza e os pior situados estão pouco
acima dessa linha. O segundo é o caso de uma distribuição em que os pobres estão
pouco abaixo da linha de pobreza e os não-pobres pouco acima da mesma linha.
15 No contexto deste artigo, a pobreza é definida como uma situação de privação por falta
de recursos. Esta definição, aparentemente simples, tem implicações importantes. Em
primeiro lugar, implica a existência de dois problemas interrelacionados mas distintos:
a privação e a falta de recursos [cf. Ferreira 1997, Capucha 2005, Rodrigues 2007, Bruto
da Costa et al. 2008, Instituto 2010].
16 De facto, uma situação de privação que não seja devida à falta de recursos não deve, no
nosso entender, ser considerada como pobreza. Consequentemente o tipo de resposta
de que precisa tem a ver com o uso adequado dos recursos das pessoas. Determinadas
situações de sobreendividamento; situações decorrentes de comportamentos auto-
destrutivos como a toxicodependência ou de situações relacionadas com questões de
natureza psiquiátrica enquadram-se nesta categoria.
17 A segunda implicação daquela definição é a de que a solução para o problema da
pobreza requer a resolução de dois problemas: a privação e a falta de recursos.

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18 Embora a privação constitua, em si mesma, um problema que reclama solução, não é


verdadeiro que a resolução da situação de privação, por si só, resolva uma situação de
pobreza, na medida em que fica por resolver a falta de recursos. Aliás, a maior parte das
formas de resolver a privação não tem impacto sobre a falta de recursos. Mesmo
medidas politicamente direccionadas para o combate à pobreza, como o rendimento
social de inserção, implicam uma situação de dependência de meios extraordinários de
rendimento.
19 Deste ponto de vista, o problema da falta de recursos (logo, a superação da situação de
pobreza) só fica resolvido quando a pessoa os obtém de uma das fontes que a sociedade
considera como fonte normal.
20 Apesar de, como referido, a pobreza se definir sobretudo com referência a níveis e
condições de vida, é evidente que a pobreza é, de facto, um fenómeno
multidimensional. Essa é, aliás, uma das principais dificuldades em medi-la. A situação
de falta de recursos, pela qual ela primariamente se define, está inevitavelmente ligada
à consequente privação e exclusão, numa ampla gama de aspectos fundamentais da
existência: condições de vida, poder, participação social, cidadania, etc.
21 Ao não estarem satisfeitas as suas necessidades humanas básicas, a pessoa em situação
de pobreza tem, certamente, enfraquecida ou mesmo em situação de ruptura, a sua
relação com diversos outros sistemas sociais, tais como o mercado de bens e serviços, o
sistema de saúde, o sistema educativo, a participação política, laços sociais com amigos
e com a comunidade local, etc. [Bruto da Costa 1998]. Quanto mais profunda for a
privação, tanto maior será o número de sistemas sociais envolvidos e mais profundo o
estado de exclusão social.
22 Como foi expresso por Labbens [1969], “um homem pobre não é um homem rico com
menos dinheiro; ele é outro homem”. As diferenças entre um e outro não se relacionam
apenas com o rendimento, também dizem respeito à educação, relações sociais, em
suma a todos os domínios da vida social: ser rico e ser pobre são dois estilos de vida.
23 Conclui-se, assim, que a pobreza representa uma forma de exclusão social, ou seja, que
não existe pobreza sem exclusão social. Segue-se aqui a ideia de Townsend [1979], ao
apresentar a exclusão como uma característica da pobreza, na medida em que o que
está em causa é a exclusão “de padrões de vida, costumes e actividades correntes”.
24 O contrário, porém, não é válido. Com efeito, existem formas de exclusão social que não
implicam pobreza. Um bom exemplo desta última situação respeita aos idosos, que são
excluídos apenas por serem idosos, ou a situação de determinadas minorias étnicas ou
culturais.

Exclusão social: conceito diferenciado e


complementar
25 Quando falamos em exclusão associamos-lhe a designação de social, ou seja, falamos de
exclusão da sociedade. O referencial é a sociedade. Mas o que é a sociedade? A
sociedade (seja local, nacional, regional ou global) é constituída por um conjunto de
sistemas sociais, alguns dos quais poderão ser considerados como básicos ou essenciais.
26 Embora a amplitude de tal conjunto de sistemas possa depender dos conceitos
utilizados, nomeadamente do de cidadania, é comum considerar-se cinco sistemas

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sociais básicos: social ou das sociabilidades; económico; institucional; espacial;


simbólico [Bruto da Costa 1998, Bruto da Costa et al. 2008].
27 O domínio social é caracterizado pelo conjunto de sistemas (grupos, comunidades e
redes sociais) onde se inclui o indivíduo, desde o nível mais micro, como a família ou a
vizinhança, passando por um nível meso, como o local de trabalho ou uma associação,
até um nível macro como a comunidade local ou política.
28 Neste nível inclui-se, ainda, o mercado de trabalho, não na sua acepção de gerador de
rendimento que se encontra integrada no domínio económico, mas enquanto local e
factor de socialização e inserção social [cf. Bruto da Costa 1998; Diogo 2007].
29 O domínio económico inclui, pois, os mecanismos geradores de recursos, mas também o
mercado de bens e serviços. O acesso a este último é condição quase imprescindível
para que, nas economias de mercado, os indivíduos possam dispor dos suportes
essenciais à sua vida quotidiana.
30 Nos mecanismos geradores de recursos, por sua vez, incluem-se, quer o mercado de
trabalho, através dos salários, quer o sistema de segurança social, nomeadamente pelas
pensões, quer ainda os activos financeiros. A importância destes, designadamente do
primeiro, é também, por demais evidente. Em sociedades organizadas em torno do
trabalho e da produção, aquele que não trabalha ou que não tem meios para ganhar
dignamente a sua vida dificilmente se entende e é entendido enquanto cidadão. Neste
sentido, como bem coloca Schnapper [1998], a dignidade da condição material do
indivíduo é fundamental à sua dignidade enquanto cidadão.
31 No caso dos sistemas geradores de rendimento, a solidez da relação depende da
existência e do nível e regularidade dos salários, das pensões e do rendimento do
capital, daí podendo decorrer situações de insuficiência de recursos (pobreza), de
deficiente distribuição dos rendimentos (desigualdade) ou de perda de autonomia
financeira (sobreendividamento).
32 Dentro do sistema económico, importa não esquecer a importância do mercado de bens
e serviços, a cujo acesso depende, entre outros factores, a disponibilidade de recursos
financeiros que permitam às pessoas e às famílias adquirirem os bens e serviços de que
necessitam ou têm razões para adquirir.
33 Neste sentido, a impossibilidade de, por insuficiência de recursos, não ser possível
satisfazer essas necessidades (alimentação, vestuário, transportes, habitação, educação,
lazer, informação, …) configura não apenas uma forma de privação, mas também um
factor de exclusão da sociedade. O acesso aos sistemas geradores de rendimento (pelo
menos, a um deles) e ao mercado de bens e serviços representa, pois, outro factor de
inclusão social.
34 Um terceiro domínio em que se agrupam os sistemas sociais básicos é o institucional.
Este domínio abrange dois tipos de sistema. Por um lado, inclui as instituições mais
relacionadas com direitos civis e políticos, ligadas, por exemplo, à participação política,
e o sistema burocrático.
35 Por outro lado, inclui os sistemas prestadores de serviços que funcionam mais na alçada
do Estado central, e portanto, pelo menos do ponto de vista teórico, mais protegidos em
relação aos mecanismos da economia de mercado, tendo em vista facilitar o seu acesso
a todos os indivíduos, independentemente dos meios de que disponham. Tal é o caso
dos sistemas educativo, de saúde, de justiça e, em alguns casos, da habitação.

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36 Outros sistemas, nomeadamente o emprego, a habitação, os serviços de apoio social, a


justiça, a cultura e lazer, a informação e o conhecimento têm fundamental importância
para o exercício da cidadania e para a inclusão na sociedade. O acesso à informação e ao
conhecimento, por exemplo, é crescentemente reconhecido como um dos factores mais
decisivos de inclusão/exclusão nas sociedades modernas.
37 Neste relacionamento entre os indivíduos e os diferentes sistemas institucionais
procura-se perceber em que medida existe efectivo acesso a estes domínios, no sentido
da existência (ou não) de obstáculos que, para além dos financeiros (acima abordados)
impeçam (ou facilitem) a inclusão das pessoas nestes subsistemas.
38 No caso concreto do emprego, por exemplo, não se trata já da questão dos níveis de
salários que deverão assegurar rendimentos susceptíveis de permitir um
funcionamento social autónomo, mas de outras características – que não estão
desligadas naturalmente da questão económica – mas que privilegiam um enfoque nas
formas de acesso e de concretização do emprego (inserção laboral precoce, insegurança
laboral, condições de trabalho precárias, desemprego, etc.).
39 É, portanto, algo que escapa ao alcance da economia informal, ainda largamente
presente na sociedade portuguesa e que, noutros locais, é, além do mais, usado como
uma forma de sobrevivência quando outras actividades económicas são afectadas pela
guerra [Rodrigues & Costa 2009].
40 Um quarto domínio é o territorial, que atinge não apenas as pessoas e as famílias, mas
também as áreas geográficas onde vivem. Trata-se de formas de exclusão que se
manifestam a diferentes níveis territoriais, quer a um nível mais local (é o caso dos
bairros de lata ou degradados, que se encontram excluídos, também enquanto espaços
dos centros urbanos a que pertencem), ou abrangendo regiões mais vastas –
nomeadamente certas áreas rurais que se vêem excluídas do território nacional, ou,
ainda, de dados países que são excluídos do espaço global [cf. Ascher 1998, Pereira et al.
2000, Instituto 2005]. Isto quer dizer que, nestes casos, a inclusão das pessoas e famílias
requer, além do mais, que o espaço onde vivem também seja integrado (incluído) no
espaço que o rodeia.
41 O domínio das referências simbólicas é o quinto conjunto agregador de sistemas sociais
básicos, que se prende fundamentalmente com a dimensão subjectiva da exclusão. Ou
seja, assume-se que a inclusão exige não apenas condições objectivas de integração, mas
também o reconhecimento subjectivo de se estar incluído.
42 Este domínio abrange o sistema social que diz respeito às referências identitárias, e à
construção das memórias individuais e colectivas e que constituem um patamar
fundamental de inclusão na sociedade. Este domínio engloba um primeiro sistema
relativo ao reconhecimento social do sujeito enquanto factor de inclusão social e que se
concretiza não apenas ao nível individual (auto-conceito, auto-imagem), mas também
ao nível colectivo (enquanto membro de uma família, de um grupo profissional, de um
grupo de vizinhança,..) Um segundo sistema essencial para a consolidação de condições
subjectivas que ligam os indivíduos à sociedade é sem dúvida o da apropriação da
memória individual e colectiva. A construção de identidades inclusivas exige que cada
um de nós possa construir um sistema de referências que se vai construindo ao longo
da nossa trajectória de vida e que tem início ainda antes dela. Essa capacidade de
apropriação da memória individual e colectiva embora retrospectivamente marcada
tem um sentido prospectivo essencial à construção do futuro. A ruptura com essas

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memórias, a sua negação ou a fuga que decorre de uma intolerabilidade de se apropriar


das mesmas são sinais claros de trajectórias de exclusão.
43 Deve-se, porém, notar que, quer os sistemas sociais básicos considerados, quer os
domínios em que foram agrupados são interdependentes entre si, sobrepondo-se,
mesmo, em alguns casos. A falta de recursos, no mínimo, dificultará o acesso ao
mercado de bens e serviços, bem como provocará maiores dificuldades no acesso aos
sistemas prestadores de serviços, mesmo aos que estão total ou parcialmente
protegidos.
44 Se essa situação de falta de recursos (ligada ao domínio económico) se ficar a dever a
uma situação de desemprego, por exemplo, as implicações poder-se-ão estender
também ao domínio social, afectando as relações sociais do indivíduo; ao domínio das
referências, através das perdas ao nível da identidade social; e ao domínio territorial,
podendo implicar porventura a mudança para uma área ‘excluída’; para além das
referidas dificuldades no domínio institucional.
45 Da mesma forma, há que realçar que não se pode estabelecer relações causais directas
entre o acesso dos indivíduos a estes sistemas e a sua integração ao nível dos
respectivos domínios. Neste, como noutros campos, dever-se-á privilegiar uma
perspectiva holista.
46 Para além do mais, não se trata somente da questão de ter ou não ter acesso aos
sistemas, mas também do grau desse acesso, o que configura graus maiores ou menores
de integração e, concomitantemente, graus maiores ou menores de exclusão.
47 Assim, a exclusão pode ser considerada como um processo, que vai de formas mais
superficiais de exclusão para formas e graus mais profundos e abrangentes de exclusão.
A forma extrema corresponderá à situação de ruptura com todos os sistemas sociais
básicos, situação extrema que é mais facilmente associada, por exemplo, à situação das
pessoas sem-abrigo, no sentido estrito das pessoas sem-tecto (categorias 1 e 1 da
tipologia europeia de pessoas sem-abrigo e exclusão habitacional – ETHOS) [Edgar 2009,
Amore et al. 2011].
48 Da mesma forma, o grau de integração nos diferentes sistemas e domínios pode variar,
pelo que o indivíduo pode estar integrado a uns níveis e excluído a outros. A uma boa
ou razoável integração em termos económicos pode não corresponder uma equivalente
integração ao nível institucional. E se a integração no domínio social pode ser
apercebida pelos sujeitos como positiva, tal não é contraditório com a verificação de
uma exclusão ao nível territorial.

A definição de uma linha de pobreza


49 Estabelecidos (ainda que de forma sucinta) alguns pressupostos acerca da pobreza e da
exclusão social, importa agora equacionar um conjunto de resultados que permitem
estabelecer uma imagem mais quantificada e concreta sobre a prevalência efectiva de
situações de pobreza na sociedade portuguesa. Mas, antes disso, é necessário explicitar
qual a definição de pobreza por detrás de tais dados.
50 Um primeiro passo essencial passa, obviamente, pela definição de uma linha de
pobreza, de carácter monetário. A partir da definição dessa linha torna-se possível
considerar que os indivíduos com rendimentos abaixo daquele que define a linha se
encontram em situação de pobreza.

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51 Assume-se, por isso, também que a designação utilizada pelo Eurostat para os casos
situados abaixo daquela linha de pobreza como se tratando de pessoas “em risco de
pobreza” não é correcta. Com efeito, estão nessa situação as pessoas e agregados cujo
rendimento equivalente é inferior ao limiar definido. Ora, esse grupo abrange pessoas e
famílias cujos rendimentos tomam valores que vão desde zero (rendimento nulo) ao
nível da linha de pobreza (ou imediatamente inferior).
52 Por outras palavras, se designarmos por lp o limiar escolhido, as pessoas consideradas
“em risco de pobreza” são todas as que têm rendimentos equivalentes inferiores a lp,
isto é todas as que têm rendimentos equivalentes que podem ir de 0 (zero) a lp. Ora, no
caso do rendimento zero, não se trata de risco de pobreza, mas de pobreza declarada,
acontecendo o mesmo com rendimentos positivos de valor inferior a lp1, sendo lp1 < lp.
Daí que não tenha sentido considerar que toda a população com rendimentos inferiores
a lp esteja “em risco de pobreza”. Esta será, em rigor, apenas a que figura entre lp1 e lp.
53 Uma outra questão metodológica que os estudos da pobreza colocam e tem de ser
resolvido é a da escolha da escala de equivalência. Também aqui não existe solução que
se possa considerar como a melhor ou universalmente aceite.
54 A escala da OCDE considera as economias de escala e distingue os adultos das crianças.
Os respectivos ponderadores são de 1 para o primeiro adulto, 0,7 para cada um dos
restantes adultos da família, e 0,5 para cada criança. Mais recentemente, surgiu a escala
da OCDE modificada, a qual mantém, como a anterior, o ponderador 2 para o primeiro
adulto, mas atribui 0,5 a cada um dos restantes adultos, e 0,3 a cada criança.
55 A soma dos ponderadores que correspondem a um dado agregado dá a dimensão do
agregado expresso em adultos equivalentes. Dividindo o rendimento total do agregado
pelo número de adultos equivalentes, obtemos o rendimento equivalente do agregado.
56 Tomando para exemplo um agregado composto por um casal com três filhos (crianças),
a dimensão seria de 5 quando expressa em número de pessoas, e de 2,4 quando expressa
em adultos equivalentes, pela escala da OCDE modificada (1 + 0,5 + 3 x 0,3 = 2,4). Se o
rendimento mensal desse agregado fosse de 2.400 euros, o valor do rendimento por
adulto equivalente seria de 1.000 euros e o rendimento per capita de 480 euros [cf.
Albuquerque et al. 2006, Bruto da Costa et al. 2008, Instituto 2010].
57 Tendo o estudo que deu origem ao presente artigo um objectivo assumido de
comparabilidade, optou-se, para a definição da linha de pobreza, o método
correntemente utilizado pelo Eurostat para delimitar as pessoas e agregados “em risco
de pobreza”. Isto é, a linha de pobreza foi colocada a 60% do rendimento mediano 1
equivalente, utilizando-se a escala de equivalência da OCDE modificada. A população
situada abaixo do limiar criado foi considerada como pobre.
58 Esta definição tem a vantagem de ser de fácil aplicação, além de permitir comparações
com outros países da União Europeia. Subjacente a essa opção está também a convicção
de que, seja qual for o método utilizado para estimar a linha de pobreza, o seu valor
deve servir, sobretudo, de referência, de indicação de uma ordem de grandeza, uma vez
que a margem de erro é sempre considerável e só pode ser avaliada de forma mais
exacta com recurso a outros indicadores.

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Da análise das dinâmicas à estrutura da pobreza na


sociedade portuguesa
59 Os sistemas estatísticos português e europeu habituaram-nos já, nos últimos anos, à
disponibilização de dados acerca da pobreza. Apesar do hiato sistematicamente
existente e que faz com que os dados mais recentes distem cerca de dois anos
relativamente ao momento em que são disponibilizados, são dados que vão dando conta
da proporção de população que, de acordo com o critério definido pelo Eurostat (ver
acima), é considerada em cada ano como estando em situação de pobreza.
60 Tais dados são, contudo, de natureza eminentemente estática, dado conta da situação
instantânea em cada ano a que a inquirição diz respeito. O que se apresenta de seguida
são dados de natureza dinâmica acerca da pobreza, ou seja, utilizando dados
provenientes de diferentes vagas do Painel dos Agregados Domésticos Privados da
União Europeia, aplicado a nível europeu até 2001, tendo entretanto sido substituído
pelo Inquérito às Condições de Vida e Rendimento.
61 São dados, pois, que permitem caracterizar o fenómeno da pobreza em Portugal de
forma longitudinal (entre 1995 e 2000), permitindo aferir resultados que não são
possíveis de obter com a análise de apenas um ano ou efectuada ano a ano.
62 Uma primeira verificação que ressalta da análise do Painel é a de que, durante o
período de seis anos analisado (1995-2000), 46% das pessoas e 47% dos agregados
passaram pela pobreza, em pelo menos um dos seis anos. Quer isto dizer que cerca de
metade das famílias portuguesas vivem numa situação vulnerável à pobreza, mais grave
do que apenas uma situação de risco, uma vez que passaram de facto pela pobreza em
pelo menos um ano.
63 No outro extremo, mantiveram-se persistentemente na pobreza, durante todo o
período de seis anos, aproximadamente 6,5% dos indivíduos. Por outras palavras,
dentre os indivíduos que foram pobres em pelo menos um ano, 14,6% permaneceram na
pobreza durante todo o período de seis anos.
64 O que os dados de natureza dinâmica nos revelam é que a pobreza em Portugal é mais
extensa do que reflectem as taxas instantâneas referidas a um dado ano, e que têm
rondado os 20%, situando-se o último valor disponível, de acordo com os dados de 2009,
nos 18% dos indivíduos. Parece claro que, enquanto problema social e do ponto de vista
das políticas, é essa a verdadeira dimensão da pobreza em Portugal.
65 Esta perspectiva engloba não apenas as pessoas que se encontram persistentemente –
por vezes ao longo de toda a sua vida – numa situação de pobreza mas também pessoas
cuja situação, embora melhor, é de extrema vulnerabilidade. Incluirá, igualmente, todo
um conjunto de pessoas que, habitualmente, se posicionam acima da linha de pobreza
mas que, perante determinados condicionalismos acabam por se situar, em dado
momento, abaixo dessa mesma linha.
66 Em termos territoriais, a população pobre ou em risco de pobreza está distribuída pelo
território português de modo relativamente uniforme. O Painel agrupa as localidades
em três grupos, consoante a densidade populacional – baixa, intermédia e elevada.
Verifica-se que cada grupo de localidades abarca cerca de um terço dos pobres. Esta
situação é claramente diversa da que se observava nos princípios dos anos noventa,

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altura em que, por razões demográficas, a pobreza era, quantitativamente, um


fenómeno sobretudo rural2.
67 Todavia, a vulnerabilidade à pobreza é francamente maior nas áreas de baixa densidade
populacional, onde abrange mais de 60% da população, verificando-se que a incidência
da pobreza diminui à medida que a densidade populacional aumenta. Embora abranja
ainda mais de metade da população residente em áreas de densidade intermédia, a
incidência nas áreas de densidade elevada desce para um pouco mais de 1/3 da
população.
68 A distribuição geográfica é analisada também numa outra classificação, que distingue
zonas rurais dos centros urbanos. Nesta classificação, a taxa de urbanização resulta
ligeiramente superior (na ordem dos 57%3), mas a classe designada por “zona rural ou
aldeia” abrange mais de metade (54%) da pobreza no país, claramente superior à
percentagem que corresponde ao que, na classificação anterior, se designa por
localidade de “baixa densidade populacional”.
69 Por outro lado, a incidência da pobreza mantém-se mais alta nas zonas rurais e aldeias
(aproximadamente 58%), situando-se próximo dos 38% nos centros urbanos, pequenos,
médios ou grandes (gráfico 1).

Gráfico 1 – Distribuição e Incidência da pobreza, segundo o tipo de localidade

70 A relevância da distinção entre a pobreza urbana e a pobreza rural varia de país para
país, consoante a taxa de urbanização e o desenvolvimento das chamadas zonas rurais.
Por outro lado, o aparecimento das áreas semi-urbanas e a noção de áreas
metropolitanas introduziram um factor de complexidade na análise deste tipo de
questões. Parece, no entanto, que no caso português, aquela distinção continua a fazer
algum sentido se admitirmos que a pobreza rural continua a contar com formas de
solidariedade informais, que atenuam a dureza das condições de vida 4.
71 Não deve confundir-se a solidariedade informal com realidades como as de auto-
produção (em pequenas hortas, por exemplo), ou de habitação própria sem encargos,
que é corrente serem apontadas para significar que a pobreza rural não é tão séria
quanto os números podem indicar.
72 Importa, por isso, sublinhar que esses rendimentos e despesas em espécie são
devidamente quantificados e valorizados no cálculo do valor total dos rendimentos (e
despesas). Esses rendimentos são tidos em conta ao proceder à identificação dos pobres.
73 Note-se, porém, que mesmo na hipótese de a solidariedade informal existir e contribuir
para atenuar o sofrimento dos pobres rurais, tal situação não deixa de ser atentatória
da dignidade dos pobres. Estas considerações podem, porventura, contribuir para se
realçar o facto de que, em princípio, o pobre urbano está mais sujeito à exclusão social
do que o pobre que viva em zona rural.
74 Não é de estranhar, portanto, que seja nas zonas escassamente povoadas que o contacto
com familiares e amigos seja mais frequente, quase diário, quando comparado com as
zonas densamente povoadas ou com as zonas intermédias.
75 Uma questão que importa, neste ponto, salientar é que a conceptualização da pobreza
de forma dinâmica, como foi acima explicitada, não altera de forma decisiva a
composição da população pobre quando esta é analisada através de uma análise estática

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tradicional. De facto, os grupos mais vulneráveis à pobreza mantêm-se [cf. Bruto da


Costa et al. 1985, Almeida et al. 1992].
76 Entre estes está a população idosa que, à elevada vulnerabilidade à pobreza, associa
uma elevada distribuição. Ou seja, do conjunto de população definida como pobre, uma
parte substancial é composta por população idosa.
77 Esta situação encontra eco no facto de, segundo o Eurobarómetro de Fevereiro de 2010
(dedicado às percepções dos europeus acerca da pobreza e da exclusão social 5), quase
60% dos portugueses identificaram este grupo como particularmente vulnerável.
78 O mesmo não acontece, no entanto, relativamente às crianças. A sua notória pouca
visibilidade faz com que apenas 9% das pessoas as refiram como um grupo
particularmente vulnerável, situação que contrasta em absoluto com os dados que
consolidam as crianças como um dos principais grupos em situação de pobreza.
79 Não sendo titulares de rendimento as crianças não podem, em sentido estrito, ser
consideradas pobres na sua acepção de privação por falta de recursos. A sua situação
face à pobreza deriva, pois, tal como outros elementos não titulares de rendimento, da
sua integração num agregado, para o qual é estabelecido um determinado valor de
rendimento, ainda que esse possa ser igual a zero.
80 Adicionalmente, pressupõe-se que cada um dos elementos desse agregado usufrui de
uma proporção igual desses recursos totais, depois de ponderados pela escala de
equivalência. A pobreza infantil, enquanto temática autónoma, tem merecido, aliás,
destaque particular da comunidade científica [cf. Bastos et al. 2008, 2011], pelo que não
entraremos em detalhe neste ponto.
81 A população desempregada, por seu turno, é identificada por duas em cada três pessoas
auscultadas no âmbito do Eurobarómetro. Deve, porém, ser realçado que apesar de,
inegavelmente, se tratar de uma situação de grande vulnerabilidade, apenas cerca de
5% da população pobre é composta por população desempregada.
82 Para além do carácter insuspeitadamente extenso que o fenómeno da pobreza assume
em Portugal, um outro ponto essencial que importa salientar é que mais de metade
(54%) dos agregados pobres em pelo menos um ano esteve em situação de pobreza
durante três ou mais anos, e 72% dos agregados experimentaram essa situação durante
pelo menos dois anos.
83 Perante valores de tal ordem não restam dúvidas de que grande parte da pobreza
registada, mais do que uma situação pontual, aponta antes para uma pobreza de
carácter persistente. Dito de outra forma, a pobreza em Portugal, mais do que uma
realidade conjuntural ou marginal da sociedade portuguesa, assume antes
características de um problema social estrutural e extenso.
84 Aliás, cerca de uma em cada quinze pessoas residentes no país mantiveram-se em
situação de pobreza ao longo dos seis anos considerados. Este é um valor que, se
traduzido para a expressão numérica da população do país remete para um
quantitativo de cerca de 650 mil pessoas persistentemente em situação de pobreza.
Pessoas cuja existência, muitas vezes desde o nascimento, é caracterizada pela pobreza
que, por sua vez, e amiúde caracterizou já também a vida dos seus pais e avós 6.
85 Do quadro descrito decorre um ponto fundamental: políticas sociais de combate à
pobreza apoiadas na fotografia que, em cada ano, seja possível tirar relativamente à
situação do país correm o risco de não conseguir equacionar e enquadrar aspectos

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fulcrais da problemática que apenas uma análise longitudinal e dinâmica permitem


reconhecer.
86 Como vimos, os valores em torno dos 18% de pobres em cada ano incluem situações
diversas relativamente às quais as abordagens devem também ser diferenciadas. Por
outro lado, dificilmente as políticas preconizadas para um cenário de 18% de pobres
dificilmente serão as mesmas num cenário em que a pobreza caracterize quase metade
da população.
87 Da mesma forma, se não forem equacionadas de forma mais ampla e integrada, verão a
sua eficácia certamente diminuída no que respeita àqueles/as cuja situação de pobreza
não é passageira nem decorrente de um qualquer acontecimento excepcional nas suas
vidas – e que representam, grosso modo, cerca de uma em cada três das pessoas que, em
cada ano, são classificadas como pobres.
88 No contexto de quaisquer políticas sociais que sejam implementadas, é claro que as
políticas redistributivas são indispensáveis para o combate à pobreza [Ferreira &
Rodrigues 2002, Pereirinha 2008]. Com efeito, cerca de dois em cada cinco agregados
alguma vez pobres durante o período de seis anos considerado, têm as pensões como
principal fonte de rendimento, ao que acrescem outros agregados dependentes de
benefícios sociais.
89 Verifica-se, no entanto, que mais de metade dos agregados alguma vez pobres tem
como principal fonte o rendimento de trabalho. Embora as medidas redistributivas
sejam necessárias para que estes agregados possam vencer a privação, a resolução
destas situações de pobreza implica a operacionalização de medidas que ajudem as
pessoas a tornar-se auto-suficientes em matéria de recursos.
90 Por contrariar uma convicção frequentemente veiculada nos meios de comunicação
social, salienta-se, antes do mais, o peso relativamente pequeno dos desempregados no
conjunto dos pobres e sobretudo por comparação com os empregados (sejam por conta
de outrem ou por conta própria).
91 Não se quer com isso subestimar a gravidade das situações de desemprego, sobretudo
em momentos como o actual, em que a taxa de desemprego se situa já em torno dos
14%7. Estas são situações de privação do rendimento normal e, adicionalmente, formas
de exclusão social, mesmo quando se não traduzam em pobreza. A gravidade é,
naturalmente, maior quando à exclusão se junta a falta dos recursos necessários à
satisfação das necessidades humanas básicas. O que se pretende aqui realçar é o facto
de que, entre os grandes grupos que constituem a população pobre, não figuram os
desempregados.
92 Trata-se, aqui, não de redistribuição mas de repartição primária do rendimento. Isto
tem a implicação importante de situar o combate a pobreza não apenas no âmbito da
política social mas também no âmbito da política económica em sentido lato. Esta é
uma constatação que ultrapassa, aliás, fronteiras. Como assinala Alves da Rocha (2008),
relativamente a Angola, “as estruturas de mercado reproduzem os defeitos dos
mecanismos de remuneração dos factores – em função da sua dotação relativa – no
momento em que se opera a distribuição do rendimento”.
93 É sabido que o combate à precariedade do emprego (quer no que se refere à
instabilidade, quer quanto ao baixo nível dos salários) requer, além do mais, o
crescimento da produtividade geral da economia e do trabalho em particular. Constata-
se que cerca de 70% dos representantes dos agregados pobres em pelo menos um dos

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anos considerados e que eram trabalhadores por conta de outrem tinham um contrato
sem termo. Também se verificou que tinham, maioritariamente, trabalho a tempo
inteiro. Daqui decorre que a precariedade se situará, em grande medida, ao nível dos
salários.
94 É, igualmente, sabido que a elevação dos salários é tarefa complexa, que exige tempo e
o envolvimento decidido de três tipos de actores: os trabalhadores, incluindo os
sindicatos; os empresários (pelo muito de que deles dependem as medidas destinadas a
aumentar a produtividade8); e o Estado. O que há a fazer neste domínio está
sobejamente identificado. Resta reconhecer que se trata de uma alavanca fundamental
do progresso do país, e agir em conformidade. Trata-se de um domínio em que não é
possível fazer demais para se ser eficaz e antecipar, quanto possível, a obtenção dos
resultados.
95 Uma outra alavanca fundamental e relativamente ao qual não é possível fazer demais é
a educação. Há uma forte relação entre o nível de escolaridade atingido pelos pobres e a
idade em que começaram a trabalhar, sendo que aquele nível é tanto mais baixo quanto
mais cedo as pessoas entraram na vida de trabalho.
96 Este é, sem dúvida, um dos ciclos viciosos da pobreza: o pobre tem baixo nível de
educação por ser pobre e é pobre por ter níveis baixos de escolaridade. Por outro lado,
outro ciclo que, a partir daqui, se reproduz é o que conduz os portadores de baixos
níveis de educação a situações profissionais menos favoráveis. Daqui decorre, em
grande medida, que a pobreza persista não só ao longo de toda a vida de uma pessoa,
mas também que se verifique uma transmissão inter-geracional [Rodrigues 2007; Alves
2009].
97 Apesar da evolução em termos educativos que, apesar de tudo, se vai registando, o facto
de esta derivar de pontos de partida extremamente baixos – em muitos casos, do
analfabetismo – faz com que a sua expressão tenha de ser francamente relativizada
[Bruto da Costa et al. 2008), sobretudo se a isso se juntar a própria evolução societal e
das exigências a ela associadas.
98 O sistema educativo adquire, pois, uma importância fundamental. No entanto, para que
esta importância seja consequente, torna-se essencial assegurar às crianças pobres não
só o indispensável acesso ao sistema escolar – onde se pode incluir os apoios à família –
mas também condições para o seu sucesso, ao qual corresponda uma efectiva aquisição
de conhecimento e de aptidões.
99 Uma última questão a assinalar prende-se com o facto de mais de metade dos
portugueses continuar a colocar as causas da pobreza no país em factores como a sorte,
a inevitabilidade, o fatalismo, ou faltas imputáveis aos pobres, como a preguiça ou a
falta de força de vontade. Da mesma forma, 44% tende a acreditar que “a desigualdade
de rendimento é necessária para o desenvolvimento económico”.
100 Os resultados do Eurobarómetro dedicado às percepções dos europeus acerca da
pobreza e da exclusão social já citado mostram, ainda, por exemplo, que menos de uma
em cada cinco pessoas relaciona a pobreza com a ausência dos “necessários níveis de
educação, formação ou competências”, tantas quantas as que colocam a
responsabilidade nas pessoas por “viverem acima das suas possibilidades”.
Adicionalmente, apenas 13% identifica as pessoas com baixos níveis de educação,
formação ou competências como um grupo particularmente vulnerável à pobreza.

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Notas conclusivas
101 A compreensão dos fenómenos da pobreza e da exclusão social exige, como vimos, a
clarificação de um conjunto de conceitos cruciais que nos permitem interpretar a
realidade social à luz de determinadas “opções” teóricas.
102 Procurou-se, na segunda parte deste artigo, apresentar um conjunto de resultados
concretos que, pensamos, constituem matéria-prima fundamental para uma reflexão
séria sobre a pobreza e a exclusão social.
103 Estes resultados mostram que a pobreza não é uma realidade marginal ou passageira da
sociedade portuguesa, antes assume características de um problema social extenso e
resistente.
104 Daqui decorre que uma política de combate à pobreza que se apoie apenas nas
características da pobreza num determinado ano corre o risco de não entrar em linha
de conta com aspectos fundamentais do problema, que só uma análise dinâmica
permite identificar.
105 Da mesma forma, a resolução da pobreza requer medidas que ajudem as pessoas a
tornar-se auto-suficientes em matéria de recursos, como mostra bem o facto de mais de
metade dos agregados alguma vez pobres terem como principal fonte o rendimento de
trabalho. Trata-se, aqui de repartição primária do rendimento, fundamentalmente do
âmbito da política económica, em sentido lato.
106 No entanto, também as políticas redistributivas são indispensáveis para o combate à
pobreza, como fica comprovado pelo facto de cerca de 40% dos agregados alguma vez
pobres terem as pensões ou outros benefícios sociais como principal fonte de
rendimento.
107 Pese embora o conhecimento que estes dados vão produzindo, verifica-se que a
percepção da pobreza pela sociedade portuguesa revela uma compreensão “pré-
científica” das causas da pobreza pela maioria das pessoas, na medida em que a atribui
a factores tais como a sorte, a inevitabilidade, o fatalismo, ou faltas imputáveis aos
pobres.
108 Sabendo-se que uma acção eficaz contra a pobreza, sobretudo pelas mudanças sociais
que implica, requer a aceitação, ou pelo menos o consentimento, da sociedade, conclui-
se que, a par do que se faça em matéria de projectos, programas, planos e políticas, é
necessária uma ampla campanha de esclarecimento e de promoção da justiça social e de
solidariedade.

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NOTAS
1. Recorde-se que, no final da década de 1980, eram consideradas como rurais as localidades com
população inferior a 10.000 habitantes.
2. O rendimento mediano é aquele que divide uma distribuição exactamente ao meio, o que
equivale a dizer que metade dos
3. Este valor resulta da soma dos pesos demográficos das “cidades pequenas e médias” e das
“cidades maiores”.
4. Este tipo de afirmações tem sido contestado com o argumento de que a solidariedade informal
que existia no país já se não verifica. Ver nomeadamente, Karin Wall et al. 2001.
5. Special Eurobarometer 321/72.1.
6. Situação que já o primeiro estudo sobre a problemática da pobreza em Portugal relevava
(Bruto da Costa et al. 1985).
7. De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego (INE) relativos ao 4º trimestre de 2011.
8. Veja-se, a este propósito, os resultados de um estudo levado a cabo pela multinacional
McKinsey, segundo o qual Portugal ocupava o antepenúltimo lugar em termos de qualidade de
gestão das empresas nacionais, o que, em muito, “ajuda a justificar a fraca competitividade da
economia nacional e as dificuldades de crescimento verificadas nos últimos anos”. Ver Diário
Económico, 16/07/2007, citado em http://diariodigital.sapo.pt/dinheiro_digital7news.asp?
section_id=3&id_news=83727.

RESUMOS
O presente artigo sistematiza algumas das principais conclusões da publicação “Um olhar sobre a
pobreza: vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo”, de que os autores deste
artigo partilham a autoria. O texto encontra-se estruturado em três partes principais. Na
primeira procura-se clarificar o conceito de pobreza e a sua relação com outros conceitos
relevantes, alargando-se a discussão, na segunda parte, ao conceito de exclusão social. Na
terceira parte, sistematiza-se um conjunto de conclusões relativamente ao carácter extenso e à

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estrutura da pobreza na sociedade portuguesa, tendo por base a análise dinâmica de seis vagas do
Painel dos Agregados Domésticos Privados da União Europeia.

This article systematises some of the main conclusions of the book “Um olhar sobre a pobreza:
vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo”, of which the authors of the
article share authorship. The text is structured into three main parts. The first aims at clarifying
the concept of poverty and its connection with other relevant concepts. The second part widens
this discussion to the concept of social exclusion. The third part draws a set of conclusions
regarding the extension and the structure of poverty in the Portuguese society, based on the
dynamic analysis of six waves of the European Community Household Panel.

ÍNDICE
Keywords: poverty, social exclusion, structure, longitudinal analysis
Palavras-chave: pobreza, exclusão social, estrutura, análise longitudinal

AUTORES
PEDRO PERISTA
Sociólogo, Mestre em Cidade, Território e Requalificação pelo ISCTE–Instituto Universitário de
Lisboa. Investigador no CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, desde 1996. Tem
participado em projectos de investigação na área da Pobreza e da Exclusão Social. Integra a
coordenação da secção de Pobreza, Exclusão Social e Políticas Sociais da Associação Portuguesa
de Sociologia e a Rede Europeia de Peritos/as no domínio da Avaliação do Fundo Social Europeu.
É co-autor de Habitat e minorias. O que pode a promoção pública da habitação? (Lisboa 2011) e
Um Olhar sobre a Pobreza. Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo (Lisboa
2008). [e-mail: pedro.perista@cesis.org]

ISABEL BAPTISTA
Antropóloga, com Licenciatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa. Mestre em Sociologia Urbana pela Universidade Técnica de Lisboa. Investigadora no
CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, desde 1993. Tem participado e coordenado
projectos de investigação na área da Pobreza e da Exclusão Social, com particular enfoque nos
fenómenos de exclusão social extrema. Integra a equipa editorial do Observatório Europeu sobre
os Sem-Abrigo da FEANTSA e é membro da Rede de Peritos Independentes para a Inclusão Social
da Comissão Europeia. É co-autora de Habitat e minorias. O que pode a promoção pública da
habitação? (Lisboa 2011) e Um Olhar sobre a Pobreza. Vulnerabilidade e exclusão social no
Portugal contemporâneo (Lisboa 2008). [e-mail: isabel.baptista@cesis.org]

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Notas de pesquisa

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Diário de itinerância: Revisitar


Angola em 2009
Jacinto Rodrigues

NOTA DO EDITOR
Artigo recebido a: 9/Fevereiro/2012
Envio para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da avaliação: 3 e 4/Abril/2012
Aceite para publicação: 3/Maio/2012

Um diário de itinerância é um diário de investigação. Trata-se de um processo de


escrita usada especialmente em antropologia. Aí se regista, sem ser necessariamente de
um modo cronológico, o processo numa perspectiva transversal, que reflecte a
itinerância de alguém que vive situações contraditórias. É assim uma trajectória não
concluída, é uma errância, como diz René Barbier.
Revela pensamentos, sentimentos e desejos.
Trata-se de descrever recordações e vivências do aqui e agora sem haver ainda uma
teorização definitiva.
Este diário de itinerância que aqui se descreve é parte duma viagem de investigação a
Angola, no quadro do CEAUP – Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto,
realizada em Julho e Agosto de 2009.
Com o Dr. Samuel Aço, atravessámos a cidade de Luanda durante a hora de ponta.
Apercebemo-nos dum trânsito infernal. Fomos ao bairro do Cazenga buscar uma
máquina rudimentar para o fabrico de bloco de terra compacto (BTC).
O Dr. Samuel Aço preparava o material e os instrumentos de trabalho para a realização
do Seminário de Construção em Terra do Centro de Estudos do Deserto, no Namibe, a
realizar de 27 a 30 de Julho de 2009.
O bairro do Cazenga denuncia uma situação epidémica larvar: esgotos ao ar livre, pneus
velhos boiando em águas residuais podres que se estendiam por todo o bairro…

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Reflectimos sobre a cidade de Luanda:


- Tráfego;
- Saneamento;
- Caotização na construção.
Prosseguimos com a nossa observação sobre a cidade e os musseques.
Morar em Luanda custa “os olhos da cara”, como refere um jornalista. São várias as
reportagens que descrevem a situação gravosa do trânsito e do alojamento em Luanda.
Podemos referir o Jornal de Angola1, quando escreve sobre os preços exorbitantes das
rendas, a gravidade da questão do trânsito e a questão do saneamento.
O drama do trânsito em Luanda é que todos os meses o parque automóvel cresce
desmesuradamente. O fluxo automobilístico provoca engarrafamentos monstruosos,
paralisando o tráfego. O custo social deste trânsito caótico é incalculável e há poluição
de gases, poeiras e partículas tóxicas propaladas pelos escapes rotos e sem filtros de
viaturas velhas.
A humidificação do cacimbo deste Agosto vai densificando toda a poluição que paira
sobre Luanda e esta nuvem tóxica torna-se numa espécie de capacete cuja ameaça é
cada vez mais permanente, pois aumentam diariamente as alergias e doenças
respiratórias.
Na Baixa, ninguém arranja lugar para estacionar. Os carros são obrigados a dar voltas e
mais voltas, para poderem finalmente encontrar lugar. Na verdade, muitas coisas
faltam nesta cidade para que o trânsito possa fluir e se minimizem os perigos da
poluição.
Não há parques na periferia que possam reter o fluxo que entra na cidade. Não há bons
nem suficientes transportes públicos. Não existem passeios nas ruas para que as
pessoas possam circular a pé.
Não existem árvores suficientes para ajudarem a despoluir a atmosfera da cidade. O ar
condicionado dos edifícios aumenta esta poluição doentia. Não há tectos verdes, apenas
parabólicas que povoam os telhados por toda a parte.
O roncar dos motores, o fumo dos escapes e os buzinões irrompem a toda a hora. Só os
meninos de rua e alguns jovens desempregados ocupam alguns lugares de
estacionamento, improvisando aparentes descarregamentos em sítios estratégicos para
clientes habituais. Arranjam os lugares e lavam as viaturas. E tomam conta dos veículos,
a troco de 1.200 kwanzas, na Baixa de Luanda.
Retomámos a observação da cidade e começámos a tirar algumas conclusões para um
diagnóstico urbano: a estrutura viária está espartilhada entre um tráfego que cresce
galopantemente e um casco urbano já inadaptado ao movimento e às actividades
actuais.
Por isso, a cidade cresce em altura. O crescimento frenético da urbe vai-se consolidando
todos os dias numa indescritível concentração. Os quase 5 ou 6 milhões de habitantes
(segundo alguns prognósticos) já não cabem na cidade. 2
Estendem-se tentáculos para Luanda Sul, onde a urbe desponta em prédios mais ou
menos luxuosos. Outro tentáculo avança a Norte para os lados de Viana. Mas uma outra
Luanda pobre vai-se estendendo como uma mancha de óleo.
É o mundo dos musseques. É o fenómeno urbano que reflecte uma ferida de um
crescimento socialmente acelerado, mas que a morfologia topológica tem dificuldade

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em acompanhar. Só uma visão geopolítica do território pode debelar tal contradição. Só


um plano profiláctico e estratégico pode resolver este alastramento constante de
milhares de barracas, de lixeiras e insalubres poças de água onde escorrem “esgotos”
ou valas a céu aberto, que trazem doença e morte.
Face a este flagelo epidémico, o governo quer fazer face com um programa nacional de
habitação através do plano para um milhão de casas em Angola. Mas como?
Para que se possa assistir a uma real transformação, a armadura urbana do território
tem de se equilibrar. Outros centros urbanos deverão tornar-se atractivos para a
população que procurou refúgio na capital, durante a guerra que assolou Angola.
Como explicitei na comunicação que fiz recentemente na ADRA, o futuro alojamento
deveria centrar-se numa visão ecológica e numa participação das populações para uma
cidadania consciente.
Ao percorrer esta Luanda de hoje, recordo a Luanda de ontem, da minha infância.
Luanda era ainda, nos anos 1940, uma pequena cidade.
Recordo depois a Luanda dos finais da minha adolescência, com um surto de
modernidade que começava a fazer sentir-se. Lembro ainda a Luanda do pós-
independência, na rápida viagem que fiz em finais de 1976.
Depois ainda, nos fragmentos da minha memória, vejo imagens múltiplas em que as
alterações, as rupturas e os desastres da guerra vieram ferir o território mutilado das
cidades e do campo.
Resumindo as metamorfoses morfológicas de Luanda, podemos dizer que o casco antigo
se moldou, nos anos 1940 e 1950, à escassa actividade produtiva. A cidade colonial
cresceu entre a baixa da Mutamba, a Avenida Salvador Correia e o eixo da Alameda
Afonso Henriques. O lugar altaneiro e militar da antiga fortaleza S. Miguel deslocou-se
para o aparelho administrativo colonial, na parte da Cidade Alta, onde se ergueu o
Palácio. O panóptico colonial modernizava-se lentamente. Nesses anos 1940, ainda me
lembro das Portas do Mar, onde os “gasolinas” levavam e traziam passageiros para os
paquetes estacionados no mar, pois a estrutura portuária estava ainda por construir.
Quando eu era criança, a ilha de Luanda era uma língua de areia coberta de coqueiros,
palmeiras e casuarinas. A vegetação cobria com um manto verde o raro casario, de
casas pequenas, que pontuava o território até à Ilha do Cabo.
Depois, nos anos 1960, a cidade cresceu. A estrutura portuária permitia agora que os
vapores atracassem. O aeroporto modernizara-se e a rede viária respondia a novos
desafios da produção do café, do sisal e dos diamantes. Começavam a surgir, no casco
urbano, as construções de estilo moderno. Porém, os saneamentos, as habitações e a
rede viária não respondiam senão a 500 mil pessoas.
Nos anos seguintes, a metamorfose da cidade iria ritmar-se à economia de guerra e do
petróleo, tornando-se um estaleiro da cidade actual.
Esta cidade de cimento armado não está ainda capaz de responder às alterações sociais,
culturais e económicas que se vivem hoje.
Revejo-me nesta retrospectiva marcada pela observação participante. O caminho que
percorro agora, em 2009, é o caminho desta minha memória intermitente, de estadias
sincopadas da minha infância, adolescência e idade adulta. Esta viagem, de agora, tenta
religar as visões parcelares da minha vivência, dentro e fora, desta terra onde nasci. O
referencial diacrónico obriga-me a objectivar a relação entre o observador e o objecto

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de investigação, mostrando através de um olhar reflexivo, toda a problemática da


história desta cidade.
Revisitámos o Museu Nacional de Antropologia, em Luanda.
Dei particular atenção à exposição temporária.
Trata-se duma exposição sobre o património da zona do Namibe, da Huíla e do Kunene,
que representam regiões dos povos pastores – os Nyaneka Khumi, Helelo e Huvambo.
Algumas dezenas de objectos funcionais e fotografias mostram instrumentos tais como
os “heholos” (baldes), os “ohupa” (cabaças para transformar o leite em iogurte) e os
funis.
Tento compreender o salto enorme entre os povos pastoris e a situação urbano-
industrial. Reflicto sobre a ruptura gigantesca entre povos vernaculares e a chamada
globalização.
De madrugada, partimos em direcção a Benguela.
Visitamos algumas praias de Benguela – Caota, Caotinha, Praia Azul, Baía Farta, Praia da
Macaca.
Alojámo-nos em frente à “Universidade de Benguela”.
Fiz uma conferência sobre “O Desenvolvimento Ecologicamente Sustentável e a
Paisagem Urbana” no anfiteatro da “Universidade de Benguela” 3. Abertura pelo Reitor,
Professor Doutor Francisco Santos e apresentação pelo Professor Doutor Francisco
Soares.
A palestra centrou-se essencialmente na reflexão sobre 3 cidades:
1. A cidade simbiótica de Kalundborg, em que, através de uma articulação sistémica, se
criaram sinergias que melhoraram o nível de vida das populações e aumentou a
produção local;
2. A cidade de Freiburg que, graças à energia solar e outras energias alternativas,
pretende vir a tornar-se sustentável e até mesmo, de energia positiva. Através da
reconversão de desempregados de aeronáutica, a Câmara Municipal desta cidade alemã
criou novos postos de trabalho em torno da actividade produtiva de protótipos de
energias renováveis, nomeadamente painéis termosolares e fotovoltaicos.
3. A cidade de Curitiba que, graças ao desenvolvimento da cidadania nas múltiplas
vertentes, favoreceu a reciclagem de lixos em nutrientes, a melhoria dos transportes e a
renovabilidade energética.
Articulando necessidades e aspirações, a Câmara Municipal favoreceu uma maior
consciência ecológica e o aumento de participação na gestão da pólis.
Visita com o Reitor da “Universidade de Benguela” à Fundação da Sociedade Projectos
Educativos de Angola, na praia da Caotinha.
Primeira reflexão para um diagnóstico da situação e proposta de trabalho futuro.
Podem-se referir sete pontos necessários para a melhoria da Caotinha:
1º A implantação de energias renováveis, especialmente da energia solar e eólica.
2º Organização de elementos agroecológicos que permitam uma maior sustentabilidade
para a Fundação e para a própria aldeia.
3º Vedações orgânicas com taludes ecológicos que permitam espaços separados das
várias funções territoriais, respondendo simultaneamente à criação de ambientes úteis
do ponto de vista alimentar e medicinal e agradáveis do ponto de vista paisagístico.

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4º Criação dum sistema que permita a filtragem para a obtenção de água potável, um
sistema de bio-depuração de águas residuais e equipamento solar capaz de dessalinizar
a água do mar.
5
º Criação dum forno solar multifuncional, capaz de responder a actividades produtivas
através da energia solar (panificação e cerâmica, nomeadamente cozedura de tijolos,
produção de cal, etc.).
A Fundação e a “Universidade de Benguela” poderiam ter um papel decisivo na criação
de uma rede de agentes de mudança do paradigma fóssil para as energias alternativas e
o ecodesenvolvimento, tal como defendi e propus na conferência que fiz, aí na
“Universidade de Benguela”.
6
º Ecotecnologias de construção, melhorando as habitações das sanzalas.
7
º Criação de uma estrutura sanitária de chuveiros aquecidos solarmente, bem assim
como um conjunto de sanitas secas, que permitem o aproveitamento dos dejectos
humanos aos quais se podem juntar ainda algas para adubagem das terras. A
compostagem pode ser enriquecida com os excrementos dos animais e o uso de
minhoqueiros, ou seja, estruturas organizadas com minhocas para a produção de
húmus.
Seguimos de Benguela para o deserto do Namibe, com o Dr. Samuel Aço, Director do
Centro de Estudos do Deserto, na sua carrinha. O Dr. Samuel Aço é professor de
Antropologia na Universidade Agostinho Neto e convidara-me para ser membro
fundador do referido centro (CE.DO – Centro de Estudos do Deserto). Só agora, passados
quase dois anos, estava a partilhar com ele esta extraordinária aventura de me deslocar
ao deserto do Namibe, onde o CE.DO está sediado. Ele vinha de Luanda e trazia alguns
jovens estudantes (Gamboa, Uíme e Carlos). Dois deles seguiram de autocarro para o
Namibe e a Gamboa veio na carrinha connosco.
Fomos ao Lubango. Vimos a antiga cidade de Sá da Bandeira com as colinas,
antigamente cobertas de árvores e hoje pejadas de musseques, galopando encosta
acima até ao Cristo-Rei. Depois, descemos a Serra da Leba em direcção ao Namibe.
Já ao fim do dia, chegámos a Njambasana, junto ao rio Kuroka, em pleno oásis.
Antes do workshop começar, a 27 de Julho, fomos visitar a cidade de Namibe.
Conheci o ex-vice-governador, Inácio João Tavares, conhecedor profundo da cidade e da
sua história e fui ver o colorido dos panos e os cheiros das várias especiarias no
Mercado do Namibe.
No passeio pela cidade pude ver a multiplicidade de prédios reconstruídos, edifícios
“Art-Déco” na marginal e o passeio ibérico (espécie de passeio público do séc. XIX-XX),
eixo de lazer da população da ex-Moçâmedes, actual Namibe.
Esta cidade merece um estudo urbanístico que revele a sua história colonial e a
miscigenação das populações.
Voltámos a Njambasana, Kuroka. Explorámos o território, observando Welvitschias,
Salvadoras Pérsicas, dunas fósseis, pedras roliças, cristais, etc.
Esta área do vale do Kuroka situa-se numa região de clima seco desértico, muito quente.
Como diz Castanheira Dinis, “a média de precipitação anual é inferior a 100mm e todos
os meses do ano se podem considerar secos … Trata-se duma região com características
do Plistocénico e do Kalahari Superior”4.

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Interessará estudar cuidadosamente as mudanças climáticas operadas nesta região. O


interesse local e internacional deste estudo parece-me relevante e poderá constituir um
objectivo da maior importância para o CE.DO (Centro de Estudos do Deserto)
A palavra “Kurocas”, como refere o Padre Carlos Estermann, “é um vocábulo que define
mais a geografia do que a etnia. São vários os povos que coexistem ao longo do rio
Kuroka: Hubas ou Chimbas, Cuanhocas, Cuepes e Quimbares são alguns dos grupos
étnicos que habitam a zona.” 5
O Padre Carlos Estermann refere que os habitantes do Vale do Kuroka têm sido objecto
de observação e estudo desde longa data. O primeiro cronista dos povos do rio Kuroka
foi Duarte Pacheco Pereira que, no livro Esmeralda de Situ Orbis, descreve as
populações entre a “mangua das areas” (Porto Alexandre, actual Tômbwa) e a “angra
das aldeias” (Baía de Moçâmedes, actual Namibe).
Também na história geral das guerras angolanas, A. de Oliveira Cadornega descreve
estes povos dispersos, que se cruzam ao longo dos tempos. Estabeleceram migrações
com miscigenações sucessivas. Em Setembro de 1770, o sertanejo João Pilarte da Silva
fornece inúmeras informações etnográficas: indumentária, armamento, material usado
na construção e hábitos alimentares.
Recentemente, Ruy Duarte de Carvalho, no seu livro Vou lá visitar pastores6, dá-nos
conta de que os Mukubais casaram com os Quimbares e, por seu turno, os Himbas, em
migrações mais recentes, foram complexificando relações de povos sedentários e
nómadas, agricultores e pastores, articulando complexas relações, afinal tão antigas e
simbólicas como aquelas que são descritas na Bíblia, entre Caim e Abel.
Os Mukubais, pastores, são independentes e avessos ao trabalho agrícola. A mobilidade
faz com que se metamorfoseiem facilmente em guerreiros e caçadores. Por sua vez os
Quimbares, sedentários, agricultores e comerciantes, possibilitam a ritmação entre
processos de conflitualidade e negociação.
Todos estes dados devem ser comparados com a realidade actual para um estudo
diacrónico das populações. As variações demográficas podem revelar movimentos de
“refugiados climáticos” que assinalem, eventualmente, as incidências ecológicas
resultantes das variações climáticas nesta região africana. Este facto, a verificar-se,
aumentará a importância do estudo do deserto assim como a criação de formas de
combate à desertificação.
Assim, a plantação de espécies autóctones, o controlo das águas e a protecção e
disseminação de oásis nessa região deviam constituir preocupação política da maior
importância.
Na minha viagem a Marrocos com Pierre Rabhi, em Maio de 20057, à aldeia de Karmet
Ben Salem, pude aprender que o modo flexível e sistémico dos processos de
regeneração da vida no deserto fazem-se melhor graças à criação de pequenos oásis e
acções pontuais, do que através de grandes meios como as muralhas verdes, em que a
desertificação mais facilmente “cavalga”.
Enquanto a carrinha parecia desengonçar-se sobre o estradão de areia com lombadas,
qual tábua de lavar roupa, o Samuel Aço falou-me dum paleontólogo francês que visitou
recentemente a região. Para esse paleontólogo, a origem do homem não estava em
Olduwai, como escrevera Lickey. Era no Vale do Kuroka que este cientista pretendia ter
encontrado fósseis que atestavam ali, o lugar da génese dos antepassados humanos. A

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confirmar-se esta teoria, a região do Kuroka poderá vir a ser um ponto de atracção para
uma comunidade científica mais vasta (ecologistas, paleontólogos, botânicos, etc.).
A vegetação no Kuroka rareia. Aquela região, vulgarmente conhecida como o deserto de
Moçâmedes, guarda raras espécies de acácias: acácia melífera, acácia gossweileri, etc.
Porém outros arbustos pontuam a faixa arbustivada, como a Boscia Microphila, a
Macrua Angolensis, Aximénia Americana e a Salvadora Pérsica. 8
Durante o percurso parámos o jipe diante dum destes arbustos de folha muito verde, a
Salvadora Pérsica, que se apresenta com espessos tufos arredondados, que sobressaem
na secura da paisagem. Avistámos ainda a famosa e estranha Welvitschia Mirabilis na
planura desértica do Vale do Kuroka. Vimo-la entre a área das pedras vermelhas e do
magnífico oásis do Arco do Carvalhão quando, mais tarde, visitámos o Tômbwa (ex-
Porto Alexandre).
O estudo desta região árida é do maior interesse, como já dissemos, para a criação de
meios ecológicos capazes de inverter a marcha da desertificação.
Em conversa com o Dr. Samuel Aço, referi a importância de se proceder, nesta região,
ao repovoamento das seguintes plantas, sempre que isso fosse possível: Odysseia
Paucinervis, Sporobolus Spicatus e sobretudo a Acanthosicyus Hórrida.
Estas plantas fixam as areias, impedindo os ventos de as deslocarem graças às suas
raízes profundas e dispersas. Já há muitos anos, como referiu L. A. Grandvaux Barbosa 9
conseguiram-se fixar algumas dunas, junto à cidade do Tômbwa (ex-Porto Alexandre)
utilizando também a Casuarina Equisetipholia, impedindo as areias de invadirem a
referida cidade piscatória.
No Brasil, quando visitei o TIBÁ (dirigido pelo Arquitecto Johan van Lengen), dei-me
conta que, embora numa situação climática diferente, se utilizava para a fixação de
terras uma planta denominada Vetiver, “Chrysopogon Zizanioides L.”, conhecida ainda
por capim limão ou capim de cheiro.
Não muito longe do vale do Kuroka, apercebi-me do uso da erva príncipe (chá de
caxinde) como planta medicinal. Essa planta, para além das propriedades medicinais, é
também um excelente repelente de mosquitos e possui raízes que fixam o solo.
Finalmente, chegámos à comuna do Kuroka, onde ficámos alojados.
Pelas manhãs comíamos na casa do Samuel Aço e da Teresa uma papa de farinha de
milho fermentado – mate, ou seja, o mingau brasileiro. Esta farinha de milho seca ao sol
em cima de lajes de pedra, fermenta ao longo de 4 ou 5 dias. Misturada com leite ou
água dá um creme branco.
Na casa do Samuel Aço estavam alojados a arquitecta Cristina Salvador, a antropóloga
Cristina Rodrigues e o fotógrafo Jorge Coelho. Na nossa casa ficaram o engenheiro Luís
Pedroso e a arquitecta Leonilde Fialho.
Chegaram depois mais participantes: o arquitecto Maurício Ganduglia, a Dra. Fátima
Viegas, a D. Emília Almeida, o Arquitecto Artur Lima e o Arquitecto paisagista Luís
Mata.
Começámos o seminário sobre a construção em terra, que foi bastante participado e
com um nível que satisfez todos os intervenientes.
A minha intervenção centrou-se particularmente em torno da importância do Centro
de Estudos do Deserto (CE.DO) como iniciativa de estudo e investigação da problemática
da desertificação e das alterações climáticas.

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De importância internacional, este objectivo científico torna-se também da maior


relevância para o interesse local, pois pode servir como antena de formação a vários
níveis (sanitário, educativo, construtivo) para as populações da região.
A tecnologia da terra (tema central do seminário) constituiu uma proposta do maior
interesse numa região em que se devem privilegiar materiais naturais, ecotecnologias
apropriáveis e possibilidade de participar num projecto ecologicamente sustentável nas
aldeias do deserto.
Com efeito, as construções de terra, além das características ecológicas e de
apropriação tecnológica fácil, constituem já, historicamente, uma realidade local. As
populações do vale do Kuroka não constroem casas rectangulares com cobertura de 2
águas, como já observara Carlos Estermann. A característica da cubata dos povos
criadores de gado desta região, sejam eles Kuanhocas ou Chimbas, é terem uma forma
intermédia entre a “cubata cupulada dos Hereros da Damaralândia e a casa cónica dos
Kuvales.”10
Confirmámos também que as casas são muitas vezes rebocadas exterior e interiormente
com uma mistura de terra e bosta de boi. Sob o ponto de vista territorial, estes povos
fazem uma distinção entre o espaço destinado à casa de habitação e à área envolvente.
Esta característica africana, que se denomina “django”, articula a área do convívio
externo (o quintal) e a área onde existe o fogo propriamente dito. O entendimento
deste fogo passa para a noção do espaço convivial de toda a aldeia.
Durante a estadia na comuna do Kuroka e graças ao amigo Conrado António
Republicano, visitei o extraordinário oásis do deserto, Arco do Carvalhão. A paisagem
paradisíaca, o encanto vegetal e a lagoa coberta de nenúfares potencializam um lugar
excepcional para a investigação e para um eventual centro cultural e terapêutico.
O nosso amigo mostrou-me a periferia do Tômbwa, onde escorrem águas sobre a areia.
Alguns lençóis freáticos, de água doce, afloram aqui e acolá. Por detrás dos viveiros
florestais, as Casuarinas formam uma muralha verde e as várzeas tornaram-se hortas e
pomares.
O meu amigo alertou-me para os problemas ecológicos resultantes dos furos abertos
por alguns horticultores, que provocaram o aparecimento de água salgada nos terrenos
de cultivo. É que na precária e frágil relação entre os lençóis freáticos de água doce e a
penetração osmótica da água salgada, nesta zona árida do litoral sul de Angola,
rompem-se facilmente equilíbrios ecosistémicos quando se forçam processos
produtivos que não levam em conta os equilíbrios locais dos ecosistemas.
Reflecti sobre a necessidade de uma prática agroecológica e agroflorestal nesta zona.
Apreciei a reconstrução da pequena cidade do Tômbwa e desfrutei da baía desta
localidade piscatória.
Depois da cerimónia oficial com a presença do Vice-governador do Namibe, em que me
foi dada a palavra para defender, mais uma vez, a importância internacional e local do
CE.DO (Centro de Estudos do Deserto), falei da problemática das alterações climáticas e
da desertificação naquela região e no planeta. Fui também entrevistado para a TPA
(Televisão Pública de Angola) e para o Jornal de Angola, cuja publicação saiu a 18 de
Agosto de 200911.
Para além da implantação dos edifícios em terra, defendi na entrevista que Njambasana
deveria ter árvores, hortas e água para a sua sustentabilidade: “Nós temos que ver se
primeiro criamos condições com viabilidade. Condições de vida vegetativa que permita

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a sustentabilidade a esta população que aqui habita. (…) Njambasana é um oásis de


enorme riqueza pela abundância da água. Se gerida de uma maneira adequada,
colocando uma vegetação necessária para a sua bioregeneração, nós podemos criar aqui
um ecosistema capaz ou pelo menos mais capaz de responder às necessidades da
população (…). O objectivo é alargar os pequenos oásis de maneira a mudar a própria
higrometria. Para além do interesse local em transformar-se num centro exemplar e
educativo, mostrando às populações soluções técnicas, pedagógicas e sanitárias
(soluções eco-sustentáveis) o CE.DO tem uma importância para toda a humanidade (…).
Estamos aqui a fazer uma investigação em relação à desertificação, às mudanças
climáticas, enfim, tudo o que o planeta está a sofrer na sua crise ecológica.” 12
Durante a estadia em Njambasana e ao longo dos trabalhos de reflexão que fizemos com
os participantes no seminário, referi a importância do super-adobe como tecnologia
(talvez a mais simples) para aplicar no deserto pois parece-me relevante a não
utilização de água, neste processo, uma vez que a terra é ensacada. As casas podem ser
encostadas ao solo e semi-enterradas, aproveitando assim uma maior inércia térmica.
Os sacos podem ser reutilizados a partir dos sacos de fuba que se vendem no comércio
ou podem ser feitos a partir de fibras vegetais existentes em Angola, como por exemplo
o sisal ou cânhamo.
Também defendemos a plantação de Nime (planta para uso medicinal e repelente de
mosquitos) e de Moringa Oleífera (árvore prodigiosa pelas qualidades nutritivas e
medicinais das folhas e do fruto), bem assim como o uso das sementes na purificação da
água e na biodepuração de águas residuais.
Nos contactos com o Dr. Samuel Aço e nos debates e conferências que realizei no
Seminário e workshop sobre “A Arquitectura de Terra, Uma Aposta para o
Desenvolvimento de Angola”, referi a importância de desenvolver o uso das energias
renováveis. Interessa particularmente que seja generalizada a energia solar. Vejo com o
maior interesse o uso de forninhos solares (fogões domésticos) onde as populações
podem preparar as refeições sem recorrerem à desflorestação e queima de lenha. Com
esta medida simples podia-se evitar a destruição de milhares de hectares de floresta,
evitando o aumento da desertificação e a consequente alteração climática.
Os fornos solares, de tipo industrial e com multifunções, poderiam ser implantados
junto de povoações mais densas, de maneira a constituírem pólos de produção
(panificação, metalurgia, cerâmica, motor a vapor, etc.) desenvolvendo pequenas
indústrias artesanais com o uso de energias renováveis e ecotecnologias simples.
Existem já protótipos destas mini-indústrias solares que, com o uso dum espelho
parabólico, permitem construir fornos cujas temperaturas podem ir até cerca de 1.400
graus Celsius. Um destes fornos está já em funcionamento como fábrica artesanal,
cozendo peças de cerâmica e funcionando também para cozer pão. Este forno permite
assim, variações de temperatura para usos diversos (panificação, cerâmica, metalurgia,
etc.)
Partida de avião para Luanda.
No Jornal de Angola saiu um artigo sobre o Congresso de Njambasana, no deserto do
Namibe e o CE.DO13.
Fui assistir à conferência sobre o octagésimo aniversário de Mário Pinto de Andrade,
realizada na Universidade Lusíada de Angola (em Luanda), com intervenção de Vicente

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Pinto de Andrade, professor na Universidade Católica e do etnólogo cubano Carlos


Moore Wedderburno.
Ressalto a intervenção de Carlos Moore pela importância que deu ao pensamento de
Mário Pinto de Andrade, explicitado no livro As Origens do Nacionalismo Africano, onde
defendia a criação dos Estados Unidos do Continente Africano, tendo mesmo uma visão
abrangente do Estado Universal Africano, incluindo a diáspora dos africanos espalhados
por outros continentes.
Carlos Moore desenvolveu ainda algumas ideias do Pan-africanismo, mostrando a sua
actualidade na importância da emancipação africana através de uma articulação do
conjunto dos países africanos para “Um Outro Mundo Melhor é Possível”, tal como
defende o movimento altero-mundialista.
O antigo secretário da OUA, Carlos Moore, referiu as questões do esgotamento do
petróleo e a necessidade de lançar perspectivas para um ecodesenvolvimento.
Depois do almoço, eram 15h quando entrámos no carro da Dra. Fátima Viegas em
direcção ao Bairro Rocha Pinto, para participar numa investigação sobre a problemática
da saúde e religião.
O bairro Rocha Pinto é um bairro com casas degradadas e muito lixo amontoado.
Ao aproximarmo-nos da Igreja Profética Vencedora no Mundo, dirigida pelo Profeta
Enoque (ou seja, Jorge Lino Kambundo), passámos por um grande mercado ao longo da
rua, com quitandeiras sentadas vendendo fruta, bolachas e baldes de plástico.
Vínhamos com a Dra. Fátima Viegas, socióloga e Directora dos assuntos religiosos junto
do governo.
Tínhamos encontro marcado. Quando chegámos ao local onde se vai erigir a igreja que
está em obras, já estavam à nossa espera alguns membros dessa comunidade religiosa,
descalços e vestidos de branco. Sustentavam insígnias amarelas e azuis e exibiam
alguns bastões de madeira.
Receberam-nos amavelmente no pátio da igreja em construção. Ouviam-se os cânticos
dirigidos por um pastor. Eram vozes de mulheres sentadas por baixo duma arcada que
suportava o terraço e entoavam cânticos religiosos africanos.
Fomos para um pequeno escritório enquanto aguardávamos ser recebidos pelo profeta
Enoque. A Dra. Fátima Viegas, já conhecida na igreja, recebeu as boas-vindas. Nós fomos
apresentados como estudiosos da Universidade e após as saudações protocolares sobre
a nossa bem-vinda e auspiciosa visita, começámos a nossa conversa espontaneamente.
Procurámos esclarecer alguns problemas relacionados com a espiritualidade africana,
antes mesmo de avançarmos com as questões das terapias espirituais propostas pela
Igreja Profética Vencedora no Mundo.
Como tínhamos compulsado alguns materiais teóricos sobre a espiritualidade bantu,
quisemos certificar-nos, junto de Lino Kambundo, qual era a postura da sua igreja em
relação às 3 grandes funções mágicas tradicionais: adivinho, curandeiro e feiticeiro.
O profeta assumiu-se de imediato como adivinho, imbuído desde os 23 anos pelo
espírito do Anjo Enoque, mostrando assim o seu distanciamento ao curandeirismo
tradicional e, em particular, a ruptura total com a feitiçaria.
Durante a viagem até à igreja e mesmo durante a conversa, procurava olhar para o meu
próprio olhar. Pretendia, enquanto observador participante, desenvencilhar-me dos
estereótipos dos paradigmas religiosos que conhecíamos. O objectivo da nossa

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entrevista era eliminar evidências epistémicas, resultantes duma formatação


hermenêutica, em que culturalmente vivemos. Desejávamos pois a obtenção da
informação fenomenológica e participar, evitando um estrangeirismo excessivamente
distante, procurando a universalidade e a singularidade, a vivência e a teorização
aberta mas equidistante às duas grandes superstições a que está sujeito o investigador
da sociologia das religiões: o racionalismo e o irracionalismo ideológico.
Fomos tendo, então, uma compreensão reflexiva sobre esta igreja e o seu profeta. Lino
Kambundo procurava dar sentido à energia cósmica e à força positiva “nyambe”.
O discurso do profeta articulava-se em considerações geoestratégicas e até políticas,
que não se afastavam de qualquer discurso académico ou similar. Porém, de vez em
quando, um discurso imaginal aparecia nos seus relatos. Falou do jacaré que calçava
botas e falava com as mulheres, junto do rio Cunene, atacando-as de seguida. Falou
ainda dum soba mau, do Kuanza-Sul, que todas as manhãs fazia sair répteis e ratos,
impedindo as pessoas de se passearem nas ruas da aldeia entre as 7h e as 15h. Também
nos fez relatos de crianças que voavam.
O profeta Enoque, nesse seu relato, não “facilitava” a nossa decifração intelectualista,
pois ficámos sempre sem saber se relatava cenas objectivas ou projecções subjectivas
dos doentes que ele socorria. Mas isso tornava-se também na riqueza da sua “achega
imaginal”.
Esta narrativa fenomenológica obrigava-nos a uma constante abertura e
distanciamento, que se tornaram ainda mais evidentes diante da prática terapêutica a
que assistimos na sala contígua, também forrada de azulejos brancos. A imposição de
mãos no corpo dos pacientes, ao mesmo tempo que, com uma voz mântrica e quase
autoritária, o “dr. massagista” expulsava as energias negativas que os pacientes
possuíam.
Lino Kambundo recebeu-nos amavelmente, com hospitalidade africana. Numa conversa
de charme falou-nos mesmo de um projecto para uma casa grande, com camaratas e
quartos para jovens e mais velhos, integrado numa quinta com sustentabilidade para
todos os hóspedes e doentes. Escolas e ateliers ajudavam à formação e capacitação
profissional. Jardins e piscinas permitiriam actividade criativa e de lazer.
O problema da sociologia religiosa em África, mesmo para quem se pretenda incluir
numa posição de espiritualismo laico, não pode deixar de observar, para além do
operativismo imediatista deste tipo de terapias, a problemática perigosa que pode
surgir em seitas que prometem milagres repentinos e que se alimentam de ilusões
miríficas, muitas vezes assentes nos factores objectivos da fome real e da miséria
quotidiana do sofrimento.
Contudo, um trabalho reflexivo sobre o xamanismo e em especial o xamanismo
africano, necessita duma compreensão fenomenológica (um olhar por dentro) de modo
a poder avaliar epistemologicamente o saber tradicional, ao mesmo nível dos outros
saberes. Caso contrário, as leituras habituais sobre esta temática curativa restringem-se
apenas ao olhar “ocidentalocrático” que faz apreciações reducionistas, tais como
considerar tais práticas xamânicas como simples expressões de “sociedades primitivas”
e baseadas em “conceitos supersticiosos” ultrapassados.
Só um olhar reflexivo poderá então apreciar, sem preconceitos, o valor do xamanismo
como contribuição para uma cosmovisão mais alargada da antropologia humana.

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A abertura ecológica permite entender que as práticas xamânicas estão ligadas a uma
abordagem sistémica do homem e da natureza. Esta perspectiva é particularmente
interessante para a emergência do novo paradigma que põe em causa, do meu ponto de
vista, a arrogância reducionista da visão da sociedade moderna.
A questão essencial persiste: estas práticas constituem uma psiquiatria social do
oprimido e, portanto, são uma resposta possível e positiva, ou constituem um processo
de alienação e submissão que agrava a situação dos excluídos?
De manhã dirigimo-nos a casa da Dra. Fátima Viegas e conversámos sobre a experiência
vivida aquando da visita à igreja do Profeta Enoque e também sobre as perspectivas do
trabalho a efectuar no campo social, recorrendo a aspectos ligados às terapêuticas da
sociedade tradicional. Registámos este encontro em vídeo e, tal como vamos fazer em
relação ao vídeo feito na visita à Igreja do Profeta Enoque, vamos dá-lo a conhecer ao
Doutor Pierre-Yves Albrecht, no sentido de alargar esta investigação para uma reflexão
teórica sobre o xamanismo e em especial o xamanismo africano, procurando uma
compreensão fenomenológica de modo a poder avaliar o saber tradicional em relação
aos outros saberes tecnocientíficos. Pretende-se ultrapassar os preconceitos
ocidentalocráticos sobre a terapia utilizada nas sociedades vernaculares.
Procura-se a cosmovisão duma antropologia reflexiva. Pretende-se abandonar a
arrogância reducionista da visão dominante, em detrimento das achegas da
etnomedicina.
A resposta a estas questões poderá ser possível se se entrosarem saberes vernaculares,
etnopsiquiatria e conhecimentos académicos, numa reflexão epistemológica de fundo.

NOTAS
1. Jornal de Angola, 6 Agosto 2009, “O drama do estacionamento na Baixa de Luanda”.
2. Hoje, os prognósticos apontam normalmente para Luanda um número de habitantes a variar
entre 7 e 8 milhões de habitantes. Há, entretanto, quem arrisque 9 milhões de habitantes. [Nota
do editor].
3. Trata-se da então designada “Universidade de Benguela”, instituição privada que funcionava
ainda sem autorização governamental. Já com autorização, designa-se hoje Instituto Superior
Politécnico de Benguela. [Nota do editor]
4. A. Castanheira Dinis Características Mesológicas de Angola, Nova Lisboa, 1973.
5. P. Carlos Estermann Etnografia do Sudoeste de Angola, Mem. Série Antropo. Etnol., nº 4 (vol. I) 2ª
edição, 1960.
6. Ruy Duarte de Carvalho Vou lá Visitar Pastores, Ed. Cotovia, Lisboa, 1999.
7. Jacinto Rodrigues Sociedade e Território. Desenvolvimento ecologicamente sustentado, Profedições,
Porto, Março 2006.
8. Idem.
9. L. A. Grandvaux Barbosa Carta Fito-geográfica de Angola, Luanda, 1970.
10. P. Carlos Estermann, op. cit.
11. Vide http://jornaldeangola.sapo.ao/14/22/
centro_de_estudos_do_deserto_melhora_casas_no_kuroca. [Nota do editor].

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12. Jornal de Angola, “Centro de Estudos do Deserto melhora casas no Kuroka”, 18 de Agosto de
2009, pág. 5.
Jacinto Rodrigues
13. Vide nota anterior.

AUTOR
JACINTO RODRIGUES
Arquitecto, urbanista e ecologista, é ainda filósofo e historiador de arte. Professor Catedrático
Jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (Portugal) e investigador no
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP). Estudou na Université de Paris-
Sorbonne, École Pratique des Hautes Études, Université de Paris VIII, Université de Rennes 2,
Universidade do Porto e Universidade Nova de Lisboa. É autor de estudos antropológicos e
culturais, bem como de exposições e documentários. Em Angola, os seus mais recentes estudos
dizem respeito a questões ecológicas e ao Deserto do Namibe. É autor, dentre outros, dos livros:
Sociedade e Território. Desenvolvimento Ecologicamente Sustentado (2006), Conspiração Solar do
Padre Himalaya (1999), Arte, Natureza e Cidade (1993), Ecodesenvolvimento, Arte, Urbanismo e
Arquitectura (1993), Álvaro Siza, Obra e Método (1992), A Bauhaus e o Ensino Artístico (1989),
Ecologia (1982), Utopia, Espaço & Sociedade (1979), Perspectivas sobre a Comuna e a 1ª
Internacional em Portugal (1976), Urbanismo, uma prática social e política (1976), Urbanisme et
Révolution (1973). [e-mail: jacintorodrigues@sapo.pt]

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Intervenções

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Comunidade do bairro da Paz: uma


experiência brasileira de combate à
pobreza
Ana Cristina Matos et Raymundo Dantas

NOTE DE L’ÉDITEUR
Artigo recebido a: 14/Fevereiro/2012
Enviado para avaliação: 5/Março/2012
Recepção da apreciação: 22 e 23/Março e 19/Abril/2012
Recepção de elementos adicionais: 15/Junho/2012

Introdução
1 A finalidade deste artigo é compartilhar a experiência de uma comunidade do estado da
Bahia (Brasil) que, apoiada pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, vem
desenvolvendo estratégias de combate à pobreza e à desigualdade social, através da
educação.
2 A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, primeira instituição filantrópica do estado da
Bahia (Brasil), foi fundada por Tomé de Souza, primeiro Governador-geral do Brasil, na
mesma ocasião em que fundava a própria Cidade do Salvador – em 1549. Nascida
juntamente com a sua cidade-sede, desde então tem funcionado ininterruptamente.
3 Segundo Costa [2000], essa Irmandade adoptou o compromisso (estatuto) da Santa Casa
de Lisboa, tendo como missão a prática das 14 obras de misericórdia: sete espirituais e
sete corporais. As obras corporais são: tratar os doentes; resgatar os cativos e visitar os
presos; vestir os nus; dar de comer aos famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os
pobres e os peregrinos; e sepultar os mortos. Quanto às obras espirituais, são: ensinar
os ignorantes; dar bons conselhos; punir os faltosos com compreensão; consolar os

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infelizes; perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; e orar a


Deus pelos vivos e sepultar os mortos.
4 A sua história começa com o primeiro hospital, denominado Hospital da Cidade ou
Hospital da Caridade. A partir de então, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia foi
ampliando e aperfeiçoando as suas acções, de modo a atender aos seus objectivos de
misericórdia, contextualizando a sua missão. Deste modo, além do atendimento médico
hospitalar, a Santa Casa dedicou-se também a uma extensa obra de assistência social à
população da Cidade do Salvador, que chegou até aos nossos tempos. Com o
crescimento da cidade, inúmeras obras sociais foram criadas, como o atendimento aos
presos, aos órfãos, às mulheres e a mendigos, o estabelecimento de cemitérios, etc.
Essas obras foram surgindo e encerrando, conforme as necessidades emergentes dos
diversos contextos.
5 Hoje, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia é dirigida pela Irmandade da Misericórdia,
composta por mais de seiscentos membros, que supervisionam através dos seus órgãos
gestores um conjunto de cerca de 5 mil funcionários das mais diversas áreas, a saber:
Hospitais, Cemitério, Museu, Centro de Memória, Escolas Técnicas, Cerimonial, além de
Centros de Educação Infantil, Grupo de Protagonismo Juvenil, Centro de Qualificação
Profissional e Desenvolvimento Comunitário.
6 Apesar das diversas acções desenvolvidas pela instituição na área da educação, saúde e
cultura, este relato de experiência faz um recorte das actividades efectuadas pelo seu
Departamento de Acção Social no domínio da inclusão social e combate à pobreza.

Directrizes e conceitos
7 No ano de 2001, a Santa Casa realizou uma profunda avaliação do seu itinerário
histórico na área da assistência social e, a partir dessa análise, redefiniu o seu rumo
nesse sector, estabelecendo novas directrizes para a sua actuação, assim estabelecidas:
a. Os serviços a serem prestados à população carente devem ser instalados nas próprias
comunidades onde as populações residem;
b. Os recursos devem ser direccionados para uma única comunidade onde persiste o risco
social grave, de modo que se possam acompanhar os resultados alcançados;
c. O processo de desenvolvimento integral da comunidade deve partir de uma educação
transformadora e libertadora, em que a consciência da própria dignidade mova as pessoas,
no sentido de buscarem os instrumentos para o seu próprio desenvolvimento pessoal e da
comunidade;
d. As acções devem ser iniciadas através da criação de Centros de Educação Infantil onde se
possam acolher, em tempo integral, crianças entre 1 e 6 anos, de forma a permitir a maior
participação de pais e responsáveis no processo educativo e, ao mesmo tempo, libertando as
mães para a actividade laboral e educacional durante o dia;
e. Esta participação dos pais/responsáveis deve acontecer através de trabalhos voluntários no
âmbito da escola e em reuniões periódicas, em que se trabalharia com os pais questões de
educação, cidadania e empreendedorismo.
Essas acções buscam uma inserção na comunidade, capaz de animá-la e orientá-la tecnicamente, no sentido de que a comunidade
8
oriente os seus destinos com as suas próprias forças. Extinguia-se, a partir de então, toda a possibilidade de assistencialismo que,

porventura, tivesse sido praticado no passado da instituição, desenhando-se uma nova maneira de ver e de trabalhar com as

populações que necessitam de sassistência. Boff [1999: 140-141] expressa assim essa postura:

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Como tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A resposta a esta pergunta


divide, de cima a baixo, as políticas públicas, as tradições humanísticas, as religiões
e as igrejas cristãs.
Cresce mais e mais a convicção de que as estratégias meramente assistencialistas e
paternalistas não resolvem como nunca resolveram os problemas dos pobres e dos
excluídos. Antes perpetuam-nos, pois os mantêm na condição de dependentes e de
esmoleres, humilhando-os pelo não reconhecimento da sua força de transformação
da sociedade.
A libertação dos oprimidos deverá provir deles mesmos, na medida em que se
consciencializam da injustiça da sua situação, se organizam entre si e começam com
práticas que visam transformar estruturalmente as relações sociais iníquas.
A opção pelos pobres contra a sua pobreza e a favor da sua vida e liberdade
constituiu e ainda constitui a marca registada dos grupos sociais e das igrejas que se
puseram à escuta do grito dos empobrecidos que podem ser tanto os trabalhadores
explorados, os indígenas e negros discriminados, quanto as mulheres oprimidas e as
minorias marginalizadas, como os portadores do vírus da sida ou de qualquer outra
deficiência. Não são poucos aqueles que não sendo oprimidos se fizeram aliados dos
oprimidos, para junto com eles e na perspectiva deles empenhar-se por
transformações sociais profundas.
9 A educação defendida por essa proposta de intervenção como meio capaz de promover
mudanças, conforme definido por Paulo Freire, diz respeito a uma educação
libertadora, em que o sujeito através da comunhão atinge a emancipação. Segundo
Paulo Freire [1987], ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens
libertam-se em comunhão. Tal noção refere-se portanto à educação que, através da
reflexão, produz no homem o engajamento necessário para criar e recriar uma
sociedade mais justa e humanitária, através do trabalho em rede – neste caso,
especificamente, numa comunidade.
10 Segundo Nisbet [apud Baptista1979: 45], comunidade significa algo que “excede à mera
comunidade local, abarcando todas as formas de relação caracterizadas por um alto
grau de intimidade pessoal, profundidade emocional, compromisso moral, coesão
social, e continuidade no tempo, características estas das organizações sociais
anteriores ás formas capitalistas de produção.
11 Durkheim [apud Baptista 1979] conclui que a distinção entre a sociedade e a
comunidade é real e que a estabilidade institucional da sociedade deveria fundamentar-
se na continuidade das relações comunais, a partir da consciência colectiva, da
autoridade moral e do espírito solidário, como resposta aos problemas sociais. Para
Durkheim, a sociedade não é senão a comunidade tomada no seu sentido mais amplo.
12 É a partir do conceito de comunidade que a Santa Casa de Misericórdia da Bahia define
como prioridade desenvolver acções sociais, prioritariamente no Bairro da Paz.

Perfil da comunidade do Bairro da Paz


13 A partir da década de 80 do século passado, com o agravamento da crise económica e o
início do processo de redemocratização do país, as populações mais carentes de
Salvador, cansadas da segregação espacial urbana que, gradativa e historicamente, as
havia deslocado para as áreas periféricas, decidiram ocupar colectivamente um espaço
entre a Av. Luiz Vianna (Paralela) e a orla marítima.

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14 Na época, essa ocupação foi chamada “Invasão das Malvinas”. A ocupação não foi
pacífica: a comunidade foi muitas vezes intimidada e reprimida por acção policial
através do derrube de cercas e barracos, na tentativa de barrar a expansão da ocupação.
15 Apesar dos esforços públicos, a ocupação resistiu e muitos dos desalojados retornaram
ou mantiveram o seu antigo espaço, apoiados e reforçados por novos ocupantes, que
não paravam de chegar. O poder público não conseguiu barrar o processo contínuo de
ocupação.
16 A partir de 1986, desenvolve-se a luta comunitária pelo direito à moradia, que culmina
com a implantação do programa de regularização fundiária pela administração
municipal (1989), através da outorga da Concessão do Direito Real de Uso (CDRU),
viabilizada pelo acordo de modificação da estrutura fundiária da gleba realizado entre a
Prefeitura Municipal de Salvador e os herdeiros do antigo foreiro.
17 Em 2001, foram registados 13.289 domicílios, dos quais 99,76% possuíam utilização
permanente, ou seja, as pessoas que ocupavam o imóvel residiam no local.
18 A população actual do bairro é estimada em 50.306 pessoas que habitam em domicílios
de diversas tipologias construtivas, desde casebres com piso de terra batida até casas
construídas em tijolo sem reboque. Hoje o bairro tem as suas ruas principais asfaltadas
e conta com serviços de água e energia eléctrica.
19 A infra-estrutura local pode ser considerada regular, uma vez que se trata de um
assentamento informal. Os dados revelam que 63,23 % das casas não possuem rede de
esgotos, sendo que grande parte dos resíduos é jogada num rio que divide o bairro.
20 Do total de moradores do bairro, 51,80% são do sexo feminino e 48,20% do sexo
masculino. Trata-se de uma população jovem, com 43,24% na faixa etária de 0 a 19 anos,
36,22% na faixa de 20 a 39 anos e 20,54% acima dos 40 anos.
21 Os chefes-de-família são 65,73% do sexo masculino e 34,27% do sexo feminino.
Apresentam rendimentos variados, estando a maior concentração naqueles que
recebem entre 0,5 e 2 salários mínimos, que representam 43,93% do total.
22 O Bairro da Paz, que é um dos maiores bairros de Salvador, com população
maioritariamente composta por jovens, crianças e adolescentes, possui o seguinte perfil
e características:
• alto índice de desemprego;
• 70% dos adultos sem vínculo formal de trabalho;
• baixo índice de escolaridade;
• baixo grau de formação profissional;
• condições de moradia precárias;
• quadro de desnutrição infantil;
• famílias numerosas;
• conflitos familiares;
• alto índice de alcoolismo;
• insuficiência de equipamentos comunitários;
• alto índice de violência.

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Educação infantil
23 Para efectivar este seu projecto, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia criou um órgão
específico, denominado Departamento de Acção Social.
24 Iniciado o trabalho de radicação na comunidade em 2000, o bairro foi objecto de
levantamento e aproximação com as organizações populares existentes, principalmente
o Conselho de Moradores – órgão representativo da comunidade, cujos membros são
eleitos periodicamente pelos moradores.
25 A Fundação Dom Avelar, que é uma fundação pertencente à arquidiocese de Salvador da
Bahia no Brasil, comunicou que possuía três prédios escolares vazios que tinham
encerrado os seus serviços, por falta de recursos. Aceitou entregar à Santa Casa os
prédios em regime de aluguer, o que permitiu iniciar com 3 Centros de Educação
Infantil, que atendiam 300 crianças e respectivas famílias, assim denominados: CEIs
Santo Antônio, Cristo Redentor e Coração de Maria.
26 Os Centros de Educação Infantil (CEIs) têm o objectivo de resgatar e sistematizar a
qualidade do atendimento integral, estando voltados para crianças de famílias de mais
baixa renda, sendo a tónica do trabalho as actividades de estímulo físico e afectivo,
proporcionando as condições objectivas e subjectivas para o desenvolvimento de uma
personalidade saudável e produtiva. Através do acolhimento às crianças, as mães
disporiam do tempo necessário para obter emprego e renda e para participarem de um
processo global de educação comunitária.
27 Com cinco refeições diárias, organizadas por nutricionistas, as crianças vencem o
obstáculo da fome, obtendo um desenvolvimento fisiológico (e, especialmente,
cerebral) normal.
28 Segundo a Lei de Directrizes e Bases da Educação Nacional (título V capítulo II, seção II,
art.29), “a educação infantil é considerada a primeira etapa da educação básica, tendo
como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus
aspectos físicos, psicológico, intelectual e social, complementando a acção da família e
da comunidade.”
29 A selecção das crianças a serem atendidas nos centros obedece a uma inscrição inicial,
seguida de visita domiciliar, quando se preenche um formulário com os dados
socioeconómicos e culturais da família. Posteriormente, são seleccionadas as 300
famílias a acolher, a partir do critério de maior gravidade de risco social.
30 Os pais comprometem-se a oferecer trabalho voluntário por, pelo menos, um dia inteiro
ao mês no Centro de Educação que acolhe o seu filho, além de participarem
mensalmente das reuniões de pais e mestres. O não cumprimento destas obrigações
conduz à perda da matrícula da criança.
31 Durante os dias de trabalho voluntário, os pais exercem todas as funções de apoio:
cuidados com crianças, limpeza, cozinha, etc. Em cada serviço, os pais são orientados a
fazê-lo da maneira melhor e mais económica, a partir das necessidades das crianças.
32 Nas reuniões, aprofunda-se o trabalho com aulas (psicologia da criança, nutrição
saudável e económica, planeamento familiar, legislação social e da mulher, etc.) e
debates (cidadania e vida comunitária, participação social, democracia, economia,
emprego e renda), tudo em linguagem adequada ao universo vocabular e social dos
grupos.

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33 No ano de 2004, recursos obtidos pela Fundação Dom Avelar permitiram a construção
de mais um prédio escolar, que também foi alugado e passou a funcionar, em 2005, com
o nome de CEI São Geraldo, aumentando para quatro o número de Centros de Educação
Infantil e ampliando para mais 100 famílias assistidas.
34 Em 2006, através da doação de um terreno, foi construído mais um Centro de Educação,
com recursos doados pela empresa Bahiagás – Companhia de Gás da Bahia, que é
responsável pela distribuição de gás natural canalizado em toda o estado da Bahia. O
novo CEI Nossa Senhora da Misericórdia, inaugurado em 2007, dispõe de um espaço
suplementar, onde é possível realizar reuniões, oficinas e todas as demais actividades
com os pais, atendendo vários grupos simultaneamente. Aí também foi colocado um
gabinete de Psicologia para atendimento. A partir dessa altura, passou-se a atender,
então, um total de 500 famílias.
35 Em 2009, iniciou o funcionamento de mais um Centro de Educação Infantil, o São
Francisco de Assis, construído com doações diversas. Considerando, entretanto, as
precárias condições de funcionamento do CEI Cristo Redentor, e tendo sido recebido
por doação o terreno vizinho, foi decidido fechar aquele CEI e transferir todos os alunos
e os trabalhos com adultos para o CEI recém-inaugurado.
36 O CEI Cristo Redentor foi totalmente derrubado e reerguido em novo projecto, com
recursos obtidos entre os próprios membros da Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, passando a funcionar em Setembro de 2011. Considerando
algumas outras adaptações realizadas nos outros CEIs nesse período, chegou-se, então,
à situação actual, com atendimento de um total de 655 famílias no Bairro. Conforme a
tabela abaixo, já foram atendidas desde o início do projecto, em 2002, 4.625 crianças e
suas famílias.

Fluxo de atendimentos de crianças nos CEIs por ano

Nº de crianças por ano


CEI
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total

Santo António 100 100 100 100 100 100 100 100 100 110 1.010

Fechada para
Cristo Redentor 100 100 100 100 100 100 100 110 810
reforma

Coração de Maria 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 1.000

São Geraldo 100 100 100 100 100 100 105 705

Nª Sra. da
Não existia 100 100 100 100 115 515
Misericórdia

São Francisco de
Não existia 100 100 115 315
Assis

Total 4.355

Fonte: Relatório Santa Casa de Misericórdia (2011).

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Avaliação nutricional
37 A partir de 2006, começou a ser realizada a avaliação nutricional (ou antropométrica)
nos CEIs, com o objectivo de verificar o crescimento e as proporções das crianças,
visando atitudes de intervenção. A partir dos resultados obtidos, os menus foram
adaptados à necessidade dos grupos, sendo implantadas dietas específicas para os casos
de sobrepeso, risco de nutrição ou restrições alimentares, além de possibilitar o
acompanhamento individualizado das crianças.

Indicadores de qualidade
38 Em 2010, todos os CEIs do Bairro da Paz foram avaliados a partir dos Indicadores da
Qualidade na Educação Infantil, instrumento proposto pelo Ministério de Educação e
Cultura que permite a autoavaliação da qualidade das instituições de educação infantil,
por meio de um processo participativo e aberto a toda a comunidade.
39 Nos seminários realizados em cada um dos 5 CEIs do Bairro da Paz, todos os
empregados, representantes dos pais e da comunidade avaliam 7 dimensões, traduzidas
em indicadores considerados essenciais para o bom desempenho de um espaço
pedagógico voltado para a faixa etária de 0 a 5 anos. As dimensões são: Planeamento
Institucional; Multiplicidade de Experiências e Linguagem; Interacções; Promoção da
Saúde; Espaços, Materiais e Mobiliários; Formação e Condições de Trabalho dos
Profissionais; Cooperação e Troca com as famílias na Rede de Protecção Social.
40 A partir dos resultados obtidos, considerou-se que os CEIs da Santa Casa atendem
completa ou parcialmente a 97% dos indicadores avaliados e não atendem a 3% deles. As
dimensões que dizem respeito à prática pedagógica “Multiplicidade de Experiências e
Linguagens” e “Interacções” foram as que receberam maior percentual de aprovação
dos avaliadores, com respectivamente 90% e 92% dos indicadores (atende
completamente). Já a dimensão “Espaços, Materiais e Mobiliários” foi considerada o
aspecto que precisa de maior atenção, com 80% dos indicadores (atende parcialmente) e
13% (a cor vermelha – não atende).
41 A avaliação da qualidade consolidou-se como uma excelente ferramenta para a
melhoria dos serviços prestados pelos CEIs, pois permite a participação ampla dos
envolvidos no processo educacional, levando a uma efectiva reflexão sobre a prática
pelas equipas técnicas.

Trabalho com jovens e adultos


42 O engajamento progressivo dos pais, desde os primeiros tempos, foi permitindo a
abertura de novos espaços, tais como as oficinas de artesanato para as mães
desempregadas, visando o aumento da renda familiar. Mas também, no capítulo
familiar, houve necessidade de outras intervenções, pontuais, para enfrentar problemas
de violência doméstica, relacionamento entre vizinhos, disputas de “posses”, etc.
43 Essas novas situações, pelo volume que representavam, levaram à criação de um
“Balcão de Justiça e Cidadania”, em 2007. Liderado por um advogado, auxiliado por
quatro estudantes de Direito, estabeleceu-se o Balcão num espaço alugado, obtendo-se

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um Convénio com a Universidade Unyanna, que paga os honorários do advogado e a


bolsa dos estagiários, seus alunos. Do Convénio participa também o Tribunal de Justiça
do Estado, que se compromete a atender, directa e rapidamente, os casos que sejam
enviados pelo Balcão.
44 Essa pequena estrutura jurídica veio a tornar-se um grande instrumento de pacificação
e entendimento na comunidade, caracterizando-se pela resolução, em conciliação, da
quase totalidade das disputas. Até ao presente, são raríssimas as contendas que se
transformam em processo judicial. De 2007 até ao final de 2011, já tinham sido
atendidos 7.100 casos de disputa.
45 Outra acção que se tornou necessária foi a inclusão digital da comunidade, sem o que
estaria sempre crescendo o desnível de qualificação em relação às populações de maior
poder aquisitivo, aumentando as dificuldades de emprego. No mesmo ano, foi criada a
Escola de Informática e Cidadania (EIC), que passou a oferecer qualificação profissional
e capacitação em liderança social a jovens e adultos. A EIC foi instalada num espaço
cedido pelo Conselho de Moradores da comunidade, com o know-how do CDI – Comité
para o Desenvolvimento da Informática. A formação vai dos conceitos básicos de
informática até à administração de redes, manutenção de computadores e web-design.
A EIC passou também a exigir de cada turma de formandos o estabelecimento de algum
trabalho social que viesse a fortalecer a comunidade. Daí surgiram alguns serviços
permanentes, que ainda persistem até ao presente, como o Curso de Preparação de
Jovens para a Universidade e a Biblioteca Comunitária, entre outros. A EIC também se
transformou num centro de prestação de serviços de informática, aberto às
necessidades de toda a comunidade. Desde 2007, já formou 1.236 profissionais, sendo
hoje um dos mais importantes geradores de emprego no Bairro da Paz.
46 Outra demanda surgida foi o trabalho com idosos (que são presença importante na
comunidade), seja pela guarda ou auxílio no cuidado dos netos, seja pela própria
participação financeira na manutenção da família. Um bom número das famílias com
que se trabalha, pela instabilidade da renda dos seus membros e por ocorrência de
desemprego, depende directamente da receita de aposentadoria dos seus idosos,
transferindo para estes uma forte parcela de poder e autoridade. Era pois necessário
incluí-los na abordagem comunitária.
47 Um problema social grave era também apresentado pelo ócio da juventude, situação
ideal para a proliferação das drogas e para o tráfico, problemas já instalados na
comunidade. Tornou-se prioritário um trabalho de desenvolvimento do protagonismo
juvenil, que atraísse os adolescentes para outros ideais e outras conquistas, oferecendo-
lhes formação com fortes valores éticos e consciência cidadã. Havia necessidade de
enfrentar este desafio.
48 A dispersão geográfica abarca várias subcomunidades dentro da imensa área do Bairro,
mas ao mesmo tempo dificulta a concentração de serviços e a economia de escala. Os
Centros de Educação Infantil são todos bem distribuídos e cada qual tem seus próprios
grupos de trabalho, reunindo-se em grandes acções, como Feiras de Saúde, encontros
de pais, passeatas, etc. Mas a Escola de Informática e Cidadania tinha instalações
precárias, sem possibilidade de fazer crescer o seu atendimento. O mesmo acontecia
com o Balcão de Justiça e Cidadania. Os trabalhos com idosos e jovens funcionavam no
pavimento superior do Centro de Educação Infantil de Nª Sra. da Misericórdia. A
população tinha que conhecer diferentes endereços para onde se dirigir. Era necessário,
então, unificar toda essa outra área de serviços não infantis.

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49 Oportunidade única surgiu quando o Centro Comunitário, que pertencia à Fundação


Dom Avelar e estava cedido a um órgão público, foi por este devolvido e a Fundação o
alugou à Santa Casa de Misericórdia. O prédio está localizado no ponto mais central de
toda a comunidade, porém estava muito degradado. Após uma grande reforma,
instalou-se neste espaço o AVANÇAR – Centro de Referência para o Desenvolvimento
Comunitário.
50 Para esse novo prédio, foram levados de imediato a EIC, a Biblioteca Comunitária e o
Balcão de Cidadania e Justiça. Um Centro de Gastronomia foi montado através de
convénio com a Associação de Bares e Restaurantes (ABRASEL), com a finalidade de
qualificar cozinheiros, auxiliares de cozinha e garçons, mantendo um banco de dados
que alimenta a contratação de novos empregados para as casas de restauração
associadas (restaurantes, bares e similares). Associou-se, desse modo, a qualificação
profissional ao emprego. Desde 2009, já foram formados 901 profissionais de
gastronomia.
51 Foram montados também, com recursos do Instituto Afrânio Affonso Ferreira (IAAF),
uma oficina de corte e costura e um laboratório de estética, para formar costureiros,
cabeleireiros, manicures e pedicures. Estes últimos, com a facilidade de se
estabelecerem no próprio bairro, prestam serviços individuais em sua própria casa ou
no domicílio do cliente. Foram também orientados para o registo de Empreendedores
Individuais, previsto pela legislação brasileira, de modo a tornarem-se prestadores
autónomos de serviços. Desde 2010, foram formados 135 profissionais de corte e costura
e 135 profissionais de estética.
52 Além desses cursos regulares, são promovidos outros cursos conforme a procura na
comunidade. Na área de carpintaria para construção civil, por exemplo, já foi formada a
primeira turma com 40 pessoas; bem como em desenho e computação gráfica, com 82
pessoas.
53 O Grupo de Protagonismo Juvenil foi instalado no AVANÇAR onde, além dos encontros
semanais de debates, já foram constituídos um grupo de dança e outro de teatro. Agora,
em 2012, vão também fazer parte da grande orquestra da juventude do Estado da Bahia
– a NEOJIBÁ, para a qual contribuirão com parte do coro e toda a orquestra de sopro da
Sinfónica. Cerca de 180 jovens participam deste programa.
54 No decorrer de 2012, está prevista a instalação do Espaço Coca-Cola, onde esta indústria
vai formar demonstradores, repositores e auxiliares de logística para as suas indústrias
e supermercados.
55 Segundo Bastos [2006: 29], “a qualificação vincula de forma bastante directa os
desenvolvimentos tecnológicos ao conjunto de habilidades e conhecimentos para lidar
com os mesmos. Há, portanto, a qualificação do trabalho (o seu conteúdo) e uma
qualificação do trabalhador (o domínio de saberes necessários para executar o
trabalho)”.
56 Já Manfredi [1998] afirma que a questão da qualificação pode ser vista segundo dois
eixos, a saber:
a. A qualificação como preparação para o mercado de trabalho, envolvendo um processo de
formação profissional, um percurso escolar e de experiência que permite a inserção e
manutenção no mercado.
b. A qualificação como processo de desqualificação–qualificação que resulta da relação social
entre capital e trabalho. A essas duas vertentes, a autora acrescenta a corrente de estudos da

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sociologia francesa, que produziu importantes pesquisas sobre a qualificação em situações


concretas de trabalho.

57 Segundo Bastos [2006], apesar da grande diversidade que marca os usos do conceito de
qualificação, podemos sintetizá-los em três concepções que assumem nuances
específicas em trabalhos de diferentes autores. Têm a qualificação como:
a. conjunto de características das rotinas de trabalho, expressas empiricamente como tempo
de aprendizagem no trabalho ou por capacidades adquiríveis por treinamento – deste modo,
qualificação do posto de trabalho e do trabalho equivalem-se;
b. decorrência do grau de autonomia do trabalhador e, por isso mesmo, oposta ao controlo da
gerência;
c. construção social, complexa, contraditória e multideterminada.

Captação de recursos e voluntariado


58 O Departamento de Captação de Recursos foi estruturado em 2006, com a finalidade de
profissionalizar e sistematizar as acções de captação de recursos financeiros e materiais
em prol da acção social da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
59 A captação de recursos dá-se através de pessoa física, pessoa jurídica e governo
(federal, estadual ou municipal), respondendo às demandas financeiras e materiais dos
CEIs e também adequando as demandas às ofertas dos doadores ou parceiros.
60 A Santa Casa de Misericórdia conta com diversos parceiros, nomeadamente:
a. Fundação Dom Avelar – contrato de aluguer para ocupação dos espaços dos CEIs Coração de
Maria, Cristo Redentor, São Geraldo e Santo António no Bairro da Paz;
b. Bahiagás – Convénio para manutenção do CEI de Nª Senhora de Misericórdia;
c. Associação de Creches e Pré-escolas da Região Metropolitana de Salvador (ACREDITE),
Projeto Integrarte – artes plásticas;
d. Hospital Santa Izabel – exames laboratoriais das crianças dos CEIs;
e. Programa Mesa Brasil – doação de alimentos;
f. Programa Prato Amigo – doação de alimentos;
g. Secretaria de Cultura – Convénio de repasse do CEI Juracy Magalhães;
h. Posto de Saúde do Bairro da Paz – atendimento pediátrico e odontológico das crianças dos
CEIs;
i. Sindicato das Empresas de Transporte de Salvador – cedência de autocarros para passeios
com as crianças;
j. Consulado do Japão – recursos para compra de equipamento e mobiliário para o CEI Cristo
Redentor, inaugurado em Setembro de 2011;
k. Instituto Afrânio Affonso Ferreira (IAFF) – recursos para montagem da Oficina de Beleza e do
Laboratório de Corte e Costura;
l. Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) – fornece instrutores para os cursos;
m. Associação Viva e Deixe Viver – actua na formação de leitores;
n. Universidade Federal da Bahia – projectos de música para a comunidade;
o. Canal de TV Futura – projecto de capacitação em saúde preventiva para a Comunidade;
p. Faculdade Tecnologia das Ciências (FTC) – atendimento médico na comunidade e educação
para prevenção de doenças;
q. Associação de Bares e Restaurantes (ABRASEL) – promove qualificação profissional.

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61 A Coordenação de Voluntariado, criada em 2005, tem importante papel em fomentar a


cultura do voluntariado na Santa Casa de Misericórdia, através de projectos e acções
individuais em prol da sua causa social.
62 Em média, recebe 99 voluntários brasileiros e estrangeiros por ano, para actuarem nos
seguintes Programas Sociais:
63 (a) Atendimento pediátrico – atendimento médico para crianças dos CEIs;
64 (b) Música – promoção de concertos musicais para a comunidade;
65 (c) Projecto Inovando com a Arte – capacitação para mães dos alunos dos CEIs na área
de artesanato;
66 (d) Campanha de arrecadação de enxovais para gestantes;
67 (e) Formação de agentes de leituras, através da formação de contadores de histórias da
Associação Viva e Deixe Viver;
68 (f) Projecto de inclusão social que, através de um canal de televisão fechado (o Canal
Futura), oferece capacitação para professores na área de inclusão de portadores de
deficiência;
69 (g) Projecto de intervenção de saúde na comunidade, em parceria com a Faculdade FTC,
através de terapia de idosos, ginástica laboral e palestras de prevenção em saúde.
70 A profissionalização do trabalho voluntário é tema discutido a partir da década de 1990.
Um dos instrumentos de nível mundial desta discussão foi a “Declaração Universal do
Voluntariado”, aprovada pela Association for Volunteer Effort (IAVE) em conferência
realizada na cidade de Paris, em 1990, inspirada na Declaração Universal dos Direitos
Humanos [1948] e na Convenção dos Direitos da Criança [1989].
71 Quanto à legislação do trabalho voluntário no Brasil, esta acção só foi regulamentada no
Brasil em 1998, pela Lei n0. 9.608/98. De acordo com esta lei, independentemente do
motivo que leva uma pessoa ao serviço, para ser caracterizado como voluntário, o
trabalho deve ocorrer por vontade própria, sem remuneração, prestado por um
indivíduo isoladamente e para uma organização sem fins lucrativos, com objectivos
públicos.

Considerações finais
72 Actualmente, em parceria com a Universidade Federal da Bahia, estrutura-se uma
avaliação de resultados do trabalho social realizado pela Santa Casa de Misericórdia da
Bahia na comunidade do Bairro da Paz, com vista à tomada de decisão para melhoria
dos projectos e investimento social.
73 Pesquisas que ampliem o foco do presente trabalho e investiguem o impacte deste
programa para a comunidade do Bairro da Paz são importantes para a comunidade.
Parece essencial avaliar de modo articulado, com a participação dos próprios
beneficiários da comunidade, o impacte deste programa para a vida das crianças,
adolescentes e famílias do bairro.
74 O grande desafio trazido pela avaliação de impacte é isolar variáveis e atribuir causa e
efeito das mudanças ocorridas a partir da intervenção do programa, ou seja, uma
avaliação de impacte tem como premissa: mapear mudanças sustentadas nas vidas das
pessoas, provocadas por determinada intervenção. Neste caso, o impacte refere-se não

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a quaisquer resultados ou efeitos imediatos de um programa, mas a qualquer mudança


duradoura e sustentada que tenha ocorrido.
75 De maneira geral, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia compartilha experiências de
intervenção educacional e, pela sua importância, merece estudos e pesquisas na área,
tanto pelo modelo apresentado, quanto pelo perfil da comunidade.

BIBLIOGRAPHIE
BAPTISTA, Myrian, 1979: Desenvolvimento de Comunidade: estudo da integração do planejamento do desenvolvimento de comunidade no planejamento do

desenvolvimento global, 3ª edição, São Paulo: Cortez & Moraes

BASTOS, A., 2006: “Trabalho e qualificação: questões conceituais e desafios postos pelo cenário de reestruturação produtiva”, in: Jauro BORGES-

ANDRADE; Gardénia ABBAD; Luciana MOURÃO (org.). Treinamento, Desenvolvimento e Educação em Organizações e Trabalho: fundamentos para a Gestão de

Pessoas, Porto Alegre: Artmed, pp. 23- 39

BOFF, Leonardo, 1999: “Saber cuidar”, In: L. Boff Ética do humano: compaixão pela terra, Petrópolis: Vozes, pp. 140-141

GOVERNO Federal do Brasil,, 1996: LDB. Lei de Diretrizes e bases. Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996, Brasília: Governo Federal do Brasil

COSTA, Paulo, 2000: Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Salvador: Contexto & Arte Editorial

DRUCK, Graça, 2001: “Qualificação, empregabilidade e competência: mitos versus realidade”, in: Álvaro Gomes (org.) O Trabalho no Século XXI, São

Paulo: Anita

FREIRE, Paulo, 1987: Pedagogia do oprimido, 25ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra

MACHADO, L., 1992: “Mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora”, in: Trabalho e Educação, Campinas, São Paulo. Papirus, pp. 9 -24

MANFREDI, Sílvia, 1998: “Trabalho, qualificação e competência profissional: das dimensões


conceituais e políticas”, Educ. Soc., vol.19, nº 64

AUTEURS
ANA CRISTINA MATOS
Pedagoga e Psicóloga. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do
Voluntariado da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. [e-mail: anacristina@scmba.com.br]

RAYMUNDO DANTAS
Filósofo. Mestre em Administração de Empresas pela Universidade de Extremadura (Espanha).
Superintendente da Ação Social da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. [e-mail:
rdantas@scmba.com.br]

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Livros

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Amartya Sen: o autor e algumas das


suas obrasCesaltina Abreu

REFERÊNCIA
Amartya Sen, 1999, Development as Freedom, Oxford: Oxford University Press
Amartya Sen, 1992, Inequality Reexamined, Cambridge: Harvard University Press
Amartya Sen, 1981, Poverty and Famines. An essay on entitlement and deprivation, Oxford:
Clarendon Press

1 Amartya Kumar Sen nasceu na Índia, em 1933. É professor do Trinity College da


Universidade de Cambridge na Inglaterra.
2 Amartya Sen é uma referência em teoria da escolha social e em economia do bem-estar,
tendo demonstrado ao longo da sua vasta obra uma profunda preocupação com a
pobreza, a fome, a justiça, a desigualdade social, a ética e o desenvolvimento, o que lhe
valeu a atribuição do Prémio Nobel de Economia em 1998. A originalidade do seu
pensamento traduz-se na tentativa de enfatizar todos os componentes sociais e
políticos do desenvolvimento, sem negar a importância do mercado na criação de
riqueza, propondo uma análise integrada das esferas económica, social e política, o que
permite uma abordagem mais ampla do que a centrada no mero crescimento do
produto e do rendimento. Outro dos elementos centrais do pensamento de Sen é o valor
absoluto da democracia, incorporado na sua definição de desenvolvimento, entendido
como um processo de expansão das liberdades políticas, facilidades económicas,
oportunidades sociais, garantia de transparência e segurança e protecção.
3 A sua crítica aos fundamentos da economia do bem-estar dirige-se ao que considera
uma concepção inadequada da natureza dos males sociais, como a pobreza – sendo o
bem-estar social resultado do bem-estar individual, ele propõe que os economistas
produzam uma definição de bem-estar individual e das formas da sua agregação. Na sua
perspectiva, a ineficiência do mercado (enquanto mecanismo de resolução dos
problemas sociais) reside no facto de que ele opera num mundo de muitas instituições,
precisa de democracia, de uma estrutura legal justa, de oportunidades sociais e
equitativas de educação, saúde, entre outras; daí a necessidade da busca de um

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equilíbrio entre forças de mercado e instituições sociais através da acção política e


social (políticas públicas), sem asfixiar a livre iniciativa do mercado.
4 Destacam-se na sua obra alguns livros, entre os quais, Pobreza e Fomes. Um ensaio sobre
entitulamento1 e privação, publicado em 1981, onde procurou demonstrar que as fomes
em massa verificadas em diversos países africanos e asiáticos no decurso do século XX
não resultaram da falta de comida, mas antes de reduções bruscas nos rendimentos
relativos de sectores da população, que passaram a não poder pagar pela comida de que
necessitavam. Por outro lado, esta incapacidade em obter os alimentos de que se
necessita está associada à ausência de status social e de representação política.
Defendendo o seu argumento, Sen afirma não ter havido jamais fome colectiva em
sociedades totalmente democráticas, porque nestes contextos a pressão das oposições e
o papel da imprensa, típicos das democracias, provocam uma reacção imediata dos
governos em situações de calamidades naturais.
5 Num outro livro, Desigualdade Reexaminada, publicado em 1992, Sen desenvolve uma
abordagem metodológica geral para lidar com as questões mais pertinentes da
desigualdade e explora particularmente as formas de análise dos arranjos sociais,
confrontando a ideia de ‘igualdade’ com dois tipos distintos de diversidade: a
heterogeneidade básica dos seres humanos e a multiplicidade de variáveis
relativamente às quais a igualdade pode ser avaliada. Enfatizando a pergunta ‘igualdade
de quê?’ e relacionando-a com a diversidade humana, ele argumenta que as demandas
de igualdade devem ser vistas no contexto de outras demandas, especialmente as
relacionadas com objectivos agregadores e eficiência geral, uma vez que, quando a
igualdade é analisada isoladamente de outras questões, a sua avaliação tende a ser
distorcida ou sobrecarregada. A sua proposta consiste numa forma de responder à
pergunta formulada no início do livro em relação a diversos temas desenvolvidos em 9
capítulos, sugerindo as diversas implicações desse tipo de resposta, não apenas do
ponto de vista teórico, mas de grande importância prática na formulação das políticas
económicas e sociais.
6 Em 1999, Sen publicou o livro Desenvolvimento como Liberdade, no qual a análise
integrada das esferas económica, social e política concorre para uma concepção de
desenvolvimento como processo de expansão das liberdades individuais. O autor inicia
a sua abordagem considerando que, no mundo moderno, velhos problemas como a
fome e toda a sorte de privações (incluindo das liberdades fundamentais dos indivíduos,
nomeadamente das mulheres) se encontram lado a lado com os novos problemas
resultantes das alterações económicas e sociais, vividas diferentemente por países ricos
e países pobres. Para ele, apesar da generalização do regime democrático e
participativo, como modelo de organização política dominante nos dias de hoje, de a
questão dos direitos humanos constar da pauta dos pronunciamentos dos mais diversos
actores sociais, das facilidades de comunicação e dos meios de troca existentes e do
aumento da esperança de vida, muitos são ainda os problemas que os processos de
desenvolvimento enfrentam e que terão de resolver – o que, na sua perspectiva, passa
pela eliminação das privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades
das pessoas de exercerem a sua condição de agentes.
7 Segundo Sen, é importante o reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade
individual e da força das influências sociais sobre o grau e o alcance da liberdade
individual. Para combater os problemas que enfrentamos, temos de considerar a
liberdade individual um comprometimento social, como forma de ampliar

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oportunidades sociais, políticas e económicas que permitam alcançar tal objectivo.


Neste sentido, a expansão da liberdade é vista como o principal fim e o principal meio
do desenvolvimento.

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