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ISSN: 2525-8761
RESUMO
Este trabalho analisa as condições que transformaram a cultura ribeirinha em fator de
atratividade para o desenvolvimento do “Turismo de Base Comunitária” (TBC) em
comunidades tradicionais localizadas no rio Arapiuns, oeste do Estado do Pará. A
metodologia envolveu duas etapas: a análise no ambiente virtual sobre a exposição de
roteiros turísticos no Arapiuns; abordagem qualitativa sobre observações coletadas em
campo em dois momentos: agosto de 2016 e janeiro de 2017. O campo é a comunidade
de Anã, eleita como objeto empírico por ser a comunidade tradicional, localizada no
Arapiuns, que mais recebe aporte técnico-financeiro por parte de instituições não
governamentais para fomentar o turismo em seu território e, por este motivo, a que
registra o maior fluxo de visitação. Como resultado, a pesquisa constatou que a cultura
ribeirinha figura como principal fator de atratividade para o turismo no Arapiuns e em
Anã, em função de ter sido produzida pela ONG que agencia o desenvolvimento do TBC
na região, como a provedora de uma experiência “única” e “genuína” no lugar. A
objetificação da cultura ribeirinha no mercado turístico é uma forma de estabelecer a
colonialidade do saber amazônico e de manter a comunidade de Anã em situação de
dependência com a ONG, uma vez que essa comunidade não é instruída a fazer a
autogestão do turismo. Observou-se, ainda, que a forma de exposição midiática da cultura
ribeirinha como atrativo turístico reforça sua condição diante do mundo moderno, de
cultura subalterna, subdesenvolvida e pré-moderna.
ABSTRACT
This paper analyzes the conditions that transformed the riverside culture into an attraction
factor for the development of "Community-Based Tourism" (CBT) in traditional
communities located on the Arapiuns River, west of the State of Pará. The methodology
involved two stages: analysis in the virtual environment on the exposure of tourist routes
in the Arapiuns; qualitative approach on observations collected in the field at two
moments: August 2016 and January 2017. The field is the community of Anã, chosen as
empirical object because it is the traditional community, located in the Arapiuns, which
receives more technical and financial support from non-governmental institutions to
promote tourism in its territory and, for this reason, the one that records the highest flow
of visitors. As a result, the research found that the riverine culture appears as the main
factor of attraction for tourism in Arapiuns and Anã, as a result of being produced by the
NGO that manages the development of CBT in the region, as the provider of a "unique"
and "genuine" experience in the place. The objectification of the riverside culture in the
tourist market is a way of establishing the coloniality of Amazonian knowledge and of
maintaining the Anã community in a situation of dependence on the NGO, since this
community is not instructed to do tourism self-management. It was also observed that the
form of media exposure of the riverside culture as a tourist attraction reinforces its
condition before the modern world, as a subaltern, underdeveloped and pre-modern
culture.
1 INTRODUÇÃO
A palavra Amazônia suscita um mosaico de imagens na memória coletiva, isso
porque evoca a ideia de ser o território com maior biodiversidade do planeta. A
inenarrável diversidade de sua flora e fauna propicia o expressivo acúmulo de saberes
humanos sobre o uso desses recursos, que cumprem desde funções elementares, como
alimentar, curar, ornamentar, até funções prejudiciais à saúde humana, como o preparo
inadequado de determinadas ervas e plantas.
Tais saberes estão pautados na relação homem/natureza, remontam aos
primórdios da presença humana na Amazônia e ainda estão presentes em nossa sociedade
(considerada) “pós-moderna”, porque foram sendo transmitidos por gerações anteriores
como conhecimentos e práticas inseridos em nossas interações socioculturais.
Embora muitos saberes amazônicos já tenham sido alvo de estudos científicos,
eles estão mais comumente enraizados no conhecimento popular não científico, ou seja,
naquele conhecimento que foi construído pela experiência na prática de uso do recurso
natural, portanto, estruturado em uma lógica que está fora da epistemologia da ciência
moderna, a qual somente legitima como verdadeiro o conhecimento produzido por
instrumentos científicos baseados na razão (GUERRERO ARIAS, 2010; RIBEIRO;
ESCOBAR, 2008).
Nesse contexto se aplica a ideia sobre colonialidade do saber, que, segundo
Guerrero Arias (2010), é uma forma de tornar invisíveis saberes e culturas produzidos por
outras epistemologias, transformando-os em “curiosidades exóticas”, as quais são
1 Quijano (2005) explica que o termo “moderno sistema-mundo” é um conceito desenvolvido por Immanuel
Wallerstein (1974; 1989) e Hopkins e Wallerstein (1982), que deve ser compreendido no contexto de
surgimento do capitalismo, que segundo ele, foi desde sua gênese, colonial/moderno e eurocentrado.
2 Todas as entrevistas citadas neste trabalho integram a tese de doutoramento da autora.
3 Essa figura foi retirada do material gráfico utilizado para divulgar os roteiros comercializados pela
TURIARTE, recebido por e-mail. Fonte: TURIARTE (turiarteamazonia@gmail.com). [mensagem pessoal].
Mensagem recebida por giselle.tur@hotmail.com em 05 ago. 2016.
4 IMBIRIBA, Aílson. Entrevista I. Entrevista concedida a Giselle Castro de Assis. Santarém/Pará, jan. 2017.
[...] tem vez que vem grupo grande e deixa assim de vinte mil reais, trinta mil,
e esse dinheiro fica todo aqui na comunidade, circula todo aqui, não precisa
assim comprar material de outras comunidades, então esse dinheiro circula
todo aqui na comunidade, e a gente percebe que mudou muito, que hoje em
dia, aqui na comunidade, por exemplo, todo final de semana, se tiver algum
movimento aqui, se tiver venda de bolo, suco, isso aí vende rapidinho aqui na
comunidade porque esse turismo com certeza traz algum recurso pras pessoas
terem dinheiro todo final de semana. Antes não, como meu pai falava, antes
não, era muito difícil, por exemplo, colocasse uma venda aí e vender tudo (sic)
(GODINHO, 2016)6.
5 POMPERMAIER, Davide. Entrevista III. Entrevista concedida a Giselle Castro de Assis. Santarém/Pará,
ago. 2016. 1 arquivo.mp3 (90 min.).
6 GODINHO, Alvair. Entrevista I. Entrevista concedida a Giselle Castro de Assis. Santarém/Pará, ago. 2016.
carregados de simbolismos, que, por sua vez, representam diversos interesses que são
imanentes à condição existencial de um indivíduo em um grupo social (GEERTZ, 1978).
Nessa perspectiva, pressupõe-se que a cultura ribeirinha adquire valor para os
turistas porque estes lançam sobre ela um olhar exótico: ela representa um modo de viver
em harmonia com a natureza que não se identifica com as sociedades globalizadas. Por
isso, ao aludir a um padrão de vida mais sustentável, o rio e a floresta tornam-se símbolos
de uma cultura com a qual se quer ter contato, visto que se almeja ter uma experiência
mais “genuína”.
A interpretação proposta neste trabalho para a teia de significados (GEERTZ,
1978) possíveis para a cultura ribeirinha tem por objetivo compreender o uso dos termos
“genuíno” e “autêntico”, utilizados para estimular experiências turísticas com as
populações tradicionais e com seu modo de vida.
Em pesquisa exploratória realizada em setembro de 2015, no ambiente virtual,
encontrei o slogan “Ecoturismo Comunitário na Amazônia – uma experiência única”7,
utilizada pela ONG Saúde e Alegria para se referir ao contato com comunidades
localizadas no rio Arapiuns, como uma “experiência genuína”, ressaltando o modo
simples de viver em harmonia com a natureza.
Outro slogan que me chamou atenção foi “Vivência Cultural em Alter-do-Chão”8,
utilizado pela agência de turismo Aoka Tours, para convidar o visitante a fazer um roteiro
(no qual a comunidade de Anã estava inclusa) para conhecer um “novo universo” da
“incrível cultura ribeirinha”, no qual ele teria uma “viagem única e cheia de experiências
marcantes”, como “conhecer de perto a cultura ribeirinha da Amazônia”. Ressalta-se que
Alter-do-Chão é uma vila de pescadores que, em função de ter uma boa infraestrutura
turística, é utilizada como base de hospedagem para os turistas que querem conhecer as
comunidades localizadas no rio Arapiuns.
Os roteiros divulgados pelos slogans supracitados destacam o contato e a
interação com o modo de vida ribeirinho amazônida como uma experiência singular,
expressa nos termos “única”, “marcante”, “genuína”, a qual permitirá vivenciar um
ambiente “novo”, “incrível”, certamente ofertado pelo saber amazônico, que é
7 O slogan “Ecoturismo Comunitário na Amazônia – uma experiência única” foi visualizado na homepage
oficial da ONG Saúde e Alegria (www.saudeealegria.org.br), no dia 20 de setembro de 2015, quando a
autora estava fazendo pesquisa para a elaboração de seu projeto de doutorado. No entanto, registra-se
que, na data atual, 09 de agosto de 2017, a referida informação não está mais disponível no sítio eletrônico
informado, pois foi inserida na página da Cooperativa de Turismo e Artesanato da Floresta – TURIARTE:
<https://turiarteamazonia.wordpress.com>.
8 Informação coletada na homepage da agência de turismo Aoka Tours. Disponível em:
classificado no mundo moderno como exótico, diferente, místico, e que, por sua vez,
desperta a curiosidade do ser humano.
Contudo, a cultura ribeirinha só exerce encantamento porque os seus signos
produzem sentidos para os visitantes. O valor dessa cultura foi percebido de tal modo por
agentes externos às comunidades tradicionais que eles a transformaram no principal fator
de atratividade para o turismo no Arapiuns, ou seja, em mercadoria no mercado de
viagens.
Esse processo de transformação da cultura em mercadoria por agentes exógenos
enfatiza o caráter não moderno da cultura ribeirinha e impõe uma colonialidade do poder
e do saber que contribui para intensificar a subalternidade do modus vivendi amazônico
diante do moderno sistema-mundo.
Guerreiro Arias (2010, p. 8) ressalta que “com el objetivo de imponer la
colonialidade del poder e del saber existen instituciones y aparatos repressores como el
Estado, los tribunales, los bancos, las organizaciones no gubernamentales (ONG) [...]”.
Num contexto análogo, os processos de dominação se reinventam na América Latina
(MIGNOLO, 2003). Assim, constata-se que as entidades que agenciam o turismo no
Arapiuns representam “novas formas” de colonialidade no território amazônico.
[...] Incapaces de sentir, pensar, decir y hacer por sí mismas, y peor, de poder
construir conocimientos, sino apenas saberes pré-científicos, vistos como
curiosidades exóticas que deben ser estudiadas (GUERRERO ARIAS, 2010,
p. 10, grifo nosso).
Guerrero Arias (2010). Nessa condição, os sujeitos dessa cultura também não são
respeitados como intelectuais, mas são considerados exímios executores de trabalhos
manuais, por isso o artesanato de comunidades tradicionais amazônicas é valorizado no
mercado global de consumo.
Nesse contexto, Guerrero Arias (2010) enfatiza que a colonialidade do saber
instalou uma dicotomia entre duas formas de conceber a realidade: de um lado temos a
eurocêntrica, que engloba os civilizados, desenvolvidos e modernos, e, de outro, as
demais que não se enquadram nas formas e técnicas da ciência moderna, classificadas
como primitivas, subdesenvolvidas e pré-modernas. Sobre essa dicotomia, o autor
apresenta suas variações:
até aquela época, figurava somente como ponto de parada para contemplação da beleza
cênica regional e conhecimento do modo de vida ribeirinho, sem geração de renda para a
população local. Portanto, o ano de 2008 é um marco histórico local, pois, a partir daquele
ano, o turismo começou a ser ordenado em Anã por um agente exógeno à comunidade e
esse fato determinou a configuração das relações criadas pela dinâmica da atividade
turística, com repercussão até os dias atuais.
Conhecer, brevemente, o percurso histórico do turismo em Anã também é
importante para perceber que a exposição midiática que a comunidade teve ao longo desse
tempo é fruto da associação de sua imagem à publicidade de uma ONG que tem forte
inserção na mídia nacional e internacional, em função do longo tempo e da expressiva
atuação no mercado. Aliás, a presença estratégica do PSA em projetos sociais, na região
oeste do Pará, favorece a captação de recursos de parceiros para investimentos no turismo,
como foi o caso da construção da Hospedaria Comunitária de Anã, que, segundo o Sr.
Davide Pompermaier, foi viabilizada por meio de recursos de um parceiro alemão
(POMPERMAIER, 2016)11.
Pelo exposto, fica evidente que, à medida que a ONG foi criando as condições
para o desenvolvimento do turismo em Anã, estabeleceram-se relações de dominação e
dependência, pois a comunidade passou a enxergar a ONG como a grande provedora de
recursos financeiros até então inexistentes no ambiente local, como nos informa a Sra.
Maria Odila Godinho, presidente da TURIARTE:
11 POMPERMAIER, Davide. Entrevista III. Entrevista concedida a Giselle Castro de Assis. Santarém/Pará,
ago. 2016. 1 arquivo.mp3 (90 min.).
12 GODINHO, Maria Odila. Entrevista II. Entrevista concedida a Giselle Castro de Assis. Santarém/Pará,
aumento na produção dos insumos locais. A consequência desse processo foi o aumento
de postos de trabalho (treze para dezessete na criação de peixe) e a elevação da renda, o
que foi traduzido como “alegria” pela liderança local.
No entanto, embora sejam evidentes os efeitos positivos do turismo para o
aumento da renda local, cabe ressaltar que a comunidade de Anã não possui autonomia
na gestão do turismo em seu território, visto que todas as atividades turísticas são
idealizadas e controladas pela ONG, especialmente as estratégias de distribuição no
mercado consumidor.
Essa relação de dominação, representativa da colonialidade do poder, é justificada
pela ONG por outra relação de subjugação, que é a colonialidade do ser, haja vista que os
atores locais são percebidos pelo agente exógeno como incapazes de gerir a atividade
turística, conforme explicado por Pompermaier:
Anã não cresce mais ainda porque não dá conta, porque você tem trabalhadores
rurais, extrativistas, que tem outras atividades que se viram tocando também
isso. Quando o ritmo de movimento aumenta, eles entram um pouco em pânico
(POMPERMAIER, 2016).
O esforço teórico de Mignolo (2003) é nos fazer perceber que a razão subalterna
é o caminho epistêmico para reorientar a localização geopolítica do conhecimento, e nos
conduzir pela difícil tarefa da decolonialidade, que, segundo Walsh (2009), é uma ação
que está além da descolonização.
Walsh (2009) esclarece que a descolonização propunha a superação e
emancipação do controle político e econômico imposto pela “conquista” da América; já
a decolonialidade é uma ação mais complexa, que não se restringe à tarefa de superar a
matriz de poder estabelecida no processo de construção do sistema mundial
colonial/moderno, mas representa uma proposta mais contundente de intervenção nas
estruturas de poder e relações políticas, econômicas, sociais, dentre outras, de tal modo
que nos permita enxergar outras formas e práticas de agir, ser, pensar e viver no mundo.
Nesse contexto, a autora enfatiza que essas outras concepções de perceber a
realidade podem se constituir em bases para questionarmos e enfrentarmos os modelos
modernos, capitalistas, ocidentais e alienantes nos quais estamos imersos.
A ação reflexiva e questionadora ofertada pela perspectiva decolonial, analisada
por Walsh (2009, p. 234), é a postura que deve nos conduzir a criar “nuevas estructuras,
condiciones, relaciones y experiências, incluyendo la de nuevos lugares de pensamento”
em que se retomem dois sentimentos negados pela colonialidade, mencionados por
Guerrero Arias (2010): a humanidade e a dignidade.
Portanto, é pelo horizonte decolonial que as comunidades ribeirinhas do Arapiuns
devem efetuar rupturas com as colonialidades do poder, do saber e do ser que subjugam
sua cultura e a transformam em mero fator de atratividade para o turismo.
É pelo horizonte decolonial que os “povos da floresta” devem oferecer novas
experiências turísticas que permitam ao visitante “curioso” enxergar a “humanidade e a
dignidade” de pessoas, tradições e saberes desqualificados e invisibilizados por práticas
e condutas opressoras, tão características de um mundo dito “moderno”.
É também pelo viés decolonial que as populações tradicionais que se propõem a
desenvolver atividades turísticas em seus territórios devem estabelecer relações entre
visitantes e “nativos”, pautadas no respeito e interesse pelo outro e pela sua alteridade.
REFERÊNCIAS
SAHLINS, M. Ilhas de história. Trad. Barbara Sette. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.