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Maria Cecilia Londres Fonseca Da _MODERNIZACAO A PARTICIPAGAQ: A POLITICA FEDERAL DE PRESERVACAO NOS ANOS 70 £ BO A reflexio sobre 0 patrim@nio e as politicas de preservagio do ponto de vista do exercicio da ci- dadania é, no momento atual, do maior interesse te6rico € pritico, por varios motivos. Em primeiro lugar, porque nas dltimas déca- das vem ocorsendo — em escala mundial — o de- senvolvimento de uma consciéncia preservacionis- ‘a, impulsionada principalmente pela questo eco- légica, mas que abrange também os bens culeusais. A preservagio de bens naturais e culturais se jus- tifica, hoje, como condigio para a garantia de cer- tos direitos universais do ser humano, que trans- cendem as particularidades nacionais ow locais direito as condigdes materiais e espitituais de so- brevivéncia, 3 qualidade de vida, & meméria, a0 exercicio da livre criagao ¢ fruigzo de bens culeu- rais. Em conseqiéncia do declinio das ideologias nacionalistas, as politicas culturais, mesmo as fe- derais, vém buscando nas nogies de cidadania ¢ de direitos culturais - expressio incorporada a0 texto da Constituigio Federal de 1988 — a base de sua legitimidade Em segundo lugar, porque essa reflexiio propi- cia a recuperagio e a revisio do sentido que orien- tou a elaboracdo da idéia de um pattimdnio cultu- ral nacional. Formulada durante a Revolugio Fran- cesa por intelectuais imbuidos dos ideais iluminis- tas, a nogio de patriménio histOrico e artistico na- cional pressupde a possibilidade da posse publica — material e/ou apenas simbélica — de bens cul- curais, que, em nome do interesse da coletividade, teriam sua intepridade assegurada pelo Estado, No final do século XVIII, a justificariva para a prote- Gio dos bens confiscados & nobreza ¢ ao cleto — ameagados pelos atos de vandalismo perpretados em nome da ideologia revoluciondsia — era base- adla no interesse pedagdgico desses bens para 0 co- nhecimento da formagio da nagio francesa, e como recurso ao reforco do sentimento de pertencimen- toa uma mesma coletividade, que se queria fazer crer com raizes longinquas no passado, Nesse sen~ tido, a selecio © consagracio de um conjunto de bens materiais no certitério nacional vinha confe~ rir “realidade” a essa “comunidade imaginada” que a nagio.! Pode-se dizer, portanto, que a constituigio de patriménios hist6ricos e arcisticos nacionais é uma pratica moderna, calcada em valores laicos — va- lores culturais (de documento histérico ¢ de obra de arte) ¢ de nacionalidade —e na nogio de um es- ago piblico, de codos os cidadaos. Durante o sécutlo XIX, essa prética se estendeu a varios paises da Europa, sendo incorporada de forma diferenciada conforme as concepgoes de arte, de hist6ria, ¢ sobtetudo a cultura politica predo- minantes nos varios paises. Em cermos gerais, pexle-se considera que dois modelos se consolidaram enti: o francés, centralizador, que tem no Estado ¢ no valor de nacionalidade os seus pilates, ¢ 0 anglo- ‘saxo, baseado numa visio humanitéria da cultura, desenvolviclo com forte apoio da sociedad. No século XX, esses modelos foram “exporta- dos” para oucros continentes: 0 francés para a América Latina e as ex-coldnias francesas na Afi ca, ¢ 0 inglés para os Estados Unidos. Novos pro: blemas surgiram, na medida em que as ex-col6ni- as, rornadas Estados nacionais independentes, que- riam construir patriménios representativos de suas culeuras, de origem ndo-européia, 0 que os afasta- ‘va do padrio curopeu, que pressupde um sentido de monumentatidade, e concepsées de valor hist6- ico enraizadas na tri ‘Também no campo das politicas culturais, 2 ques- to dos direitos humanos passou a se centrar no debate entre a universalidade de determinados va- lores ¢ o relativismo cultural? 1.61. GONGALVES, José Reginald, °O jogo da autenticl- dace: na¢80 e patrenénio cultura” In: Ida6togos do patrimd- fo cultural. Fo de Janeiro: SEGIPR-IBPC, 191, pp.63-75, 2. Esea problomatica 6 abordada por CHASTEL, Andi BABELON, Jean-Pierre no artigo "La notion de patrimoine’ Revue dear 49, Pars, 1980. pp. §-22 133 UY 3 ODINOLEIN OINOMIUI¥E 0 visIAa Revista oo Parsimonie Historica © AATisTi¢O NAGiONAL lcipagte a pe Londres Fenvece Da modernieas Mane Ce 154 Essa perspectiva nos leva a pesquisar a pritica das politicas culturais enquanto campo’ para 0 exercicio da cidadania, Ou seja, analisar a relagio entre Estado e sociedade na esfera da vida cultural do mais.a partir de cepresentagies mais ou menos ideoldgicas do que seja uma “identidade nacional”, ‘mas em termos de sua expressio como manifesta- ao de interesses de sujeitos concretos - tanto da- queles gmpos que, de diferentes maneiras, atuam esse campo, quanto daqueles que dele se acham exclufdos. O objetivo deste artigo € analisar como essas ‘quests foram incorporadas, no Brasil, como ques tes de interesse de grupos da sociedade nacional, levando inclusive 2 insticucionalizacio de um politica federal de preservagio, iniciada em 1937.* centro da anilise abrangera, porém, apenas as décadas de 70 € 80 — ou melhor, 0 perfodo que vai da saida de Rodrigo Melo Franco de Andrade da diregdo do entio DPHAN, em 1967, & extin- cdo da SPHAN e do seu Conselho Consultivo, em margo de 1990, Nesse perfodo, € possivel distinguir dois mo- mentos. Durante a década de 70, sob a ditaduta militar, as primeiras mudangas significativas em relagio a oriencagio anterior se fizeram em nome de uma modernizagéo: era importante apresentar a pritica de preservacio como compativel (e no como conflitante) com 0 processo de desenvolvi- mento, No final da década de 70, quando teve i cio o periodo de “distensio”, 0 grupo liderado por Alofsio Magalhies, que assumiu em 1979 0 cargo de Diretor do IPHAN — integrado a Secretaria da Culeura do MEC, criada em 1981 — foi buscar na elaboragao das nogoes de“ participagio da comuni- dade” e, posteriormente, jd na fase de redemocra- cizagio, na nogio de “dieeitos culturais”, os recur~ sos pata legitimar uma politica cultural que se que- tia democritica, 3. Uslize neste artigo a nogao de “campo” contorme a deine rere Bourdiau @ri“Cuelquespropiétés des champs In». Ques tions de sociologle, Pars: Minut, 1980, pp. 113-120. +4, S006 0 poriodo om questo vero lvro de Vara Mt, A ‘es teses, ainda inédiias, de Sitvana Rubino, As fachadas da hlatéria: os antecedentes, a criagso e os trabsthos do Ser- Vigo do Patriménio Histérico © artistico Nacional (Disserta (0 de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropolo- lado Insiuto de Fuosofa e Ciencias Humanas da Universi {de Estadual de Campinas, janeiro de 1891) ede Mariza Veloso 1M, Santos 0 tecido do tempo: a idéia de patrimonio cultural ‘no Brasil (1920-1970) (Tese de Doutorado apresentada a0 De: partamento do Antropotogia da Universidade do Basia, 1982). Cabe esclarecer ainda que as reflexées aqui de- senvolvidas tém como centro a pratica politica de- senvolvida em nivel federal — embora, sobretudo a partir de meados dos anos 80, seja indispensével levat em consideragio as propostas de politica cul- tural no nivel dos estados ¢ municipios, muitas das quais tém sido elaboradas com base na nogio de “cidadania cultural”. Pioneira nesse sentido foi a Secretaria Municipal de Cultura de Sio Paulo, na gestao da prefeita Luisa Erundina, entre 1989 1992. UM SERVICO DE INTERESSE PUBLICO No continence latino-americano, 0 Brasil foi pionciro na institucionalizacdo da protecdo aos bens culeurais. Introduzida por alguns incelectu- ais, i4 no inicio do século, essa temética se defron- tava com alguns problemas para poder se efetivar, sobretudo em relacio aos direitos de propriedade. Foi um geupo de intelectuais vinculados a0 movi~ mento modernista que, nos anos 30, terminou por assumir a tarefa de trazer essa temdtica para a es- fera da administracdo pablica. Reconhecida no meio inteleccual como uma questo de interesse nacional — mesmo entre in- telectuais de outras otientagdes que niio 0 moder- nismo— e apoiada no governo federal pelo minis- tro Gustavo Capanema, a proposta de conscrugio de um patriménio histérico e artistico nacional néo era percebida, pela sociedade brasileira de enc ‘como uma necessidade a ser atendida, nem cons- titufa uma demanda apoiada por outros setores que nio as elites culeas, como era 0 caso da educagio, da satide publica, dos direitos crabalhistas, da in- dustrializacéo etc Para 05 pioneiros do SPHAN, uma de suas ta- refas imprescindiveis era, portanto, criar uma cons- cigncia nacional que desse 0 suporte necessario a uma prética que limitava 0 direito de proprieda- de em nome de nogées vagas como “valores culeu~ rais", “documentos da nacionalidade" etc. © problema principal, naquele momento, era, no encanto, desenvolver instruments legais que fossem reconhecidos como eficientes ¢ legitimos para garantir 2 protesio de bens culturais secia- mente ameagados de degradacio e mesmo de de- saparecimento, contra poderosos interesses coneré- rios a essas medidas de protecio. Esses adversarios encontravam-se ranco encre proprietérios de imé= veis antigos, entre vigérios, prefeitos ¢ até mesmo populagdes que viam 0 tombamento como um entrave & modernizagio, como também no meio intelectual, em que os critérios de valoragio ¢ de restauragio utilizados pelo SPHAN iam de encon- tro a0 gosto predominante, fruto de uma culeura “ornamental”, que valorizava mais a aparéncia que a antenticidade, a reeérica que a pesquisa. ‘Tratava-se, portanto, de criar instituigdes su- ficientemente sélidas para dar sustentagdo a um servigo que, para produzir resultados, no podia softer solugio de continuidade. ‘A longo prazo, tinha-se em vista a sociedade nacional, numa visio iluminista de crenga n: portincia da cultura para a formagiio dos cidadéos. A cutto prazo, a estratégia era conseguir apoio no meio intelectual e, sobretudo, junto a classe diri- sente, para criar € consolidar o SPHAN. ‘A nogio de cidadania implicita nos projetos dos incelectuais que compunham a pequena equipe do SPHAN era de que atuavam a servigo do interesse maior da nagao, acima de interesses particulares ou do governo. Se, por um lado, filiavam-se & cendén~ cla da inteleccualidade brasileira de se situar como intérprete ¢ porta-voz de uma sociedade ainda ndo organizada para se assumir como ator, de outro se distinguiam dessa tradigdo na medida em que pro- curavam se distanciar da instrumentalizacio da cultura em favor dz politica —o que entao era re~ alizado sem maiores problemas pelos idestogos do Estado Novo. Distanciavam-se, também, de uma concepgao nacionalisea da culeura brasileira, que buscava a autenticidade na exclusto de tudo 0 que fosse “estrangeiro”, Tratava-se de construir, sem tufanismo nem servilismo a padrdes imporcados, uma ctadigio brasileira — propésico comum as vanguardas modernistas apés 1925 e aos funcions- tios do SPHAN, Um balango desse petiodo, do ponto-de-vista que inreressa aqui, aponta aspectos Canto positivos como negatives, De positivo, ressalta 0 fato de se tet tombado um ntimero consideravel de bens cul- turais, € de se cer criado um “padrio ético” de atu- aco no servigo pablico brasileiro que foi funda- ‘mental no enfrentamento tanto dos interesses par- ticulares quanto das oposigdes politicas & ativida- de do SPHAN, O prestigio de que gozava 0 SPHAN contribuiu para caracterizé-lo, junto & opinio piblica, como uma das poucas instituigées brasileiras em que nao se subordinava o interesse rracional ao interesse do zoverno do momento. Por outro lado, dado 0 carater restrito do que cent se podia de chamae de “opinio piblica” no Brasil, ¢ dadas também as objecaes de carter cul- cural que vinham do meio intelectual, ja aponta- das, o trabalho do SPHAN havia alcangado, no fi- nal dos anos 60, pouca visibilidade social, além de, desde 0s anos 50, com a industrializagio ¢ a dilu- so dos valores do desenvolvimento e da modern 2za¢fo, fica mais aguda a distancia encre o que en- tifo era apresentado como os interesses da nag expressos em termos de metas econémicas — e os valores culturais que o SPHAN se propunha a pre- secvar Por UMA POLITICA DE PRESERVACAO DEMOCRATICA: CONQUISTAS E LIMITES Acconjuntura apresentada acima fazia com que, jé nos anos 60, a atuacio do SPHAN fosse considerada como inadequada aos novos tempos, Para a adminis- tragio federal, era preciso compatibilizar a gestio dos bens culturais aos imperativos do desenvolvimento econdmico, ¢ integrar 0 Brasil nos novos pardmecros ternacionais de preservacio de bens culturais defi- niidos por organismos como a UNESCO. Para os setores criticos di intelectualidade bras leica, que nos anos 60 viviam momentos de efeeves céncia cultural que eraziam a cena da produgio art tica e do debate intelectual as complexas relagées en- tre cultura e politica, e, que, no meio académico, dle- senvolyiam andlises sofisticadas sobre as questées can- lentes da “realidade brasileira", atuacio do SPHAN, na meclidls em que se apresentava como uma ativil de eminentemente técnica, portanto a margem des- sas questées, era vista como elitista, pouco represen= tariva da pluralidace cultural beasileiea, ¢ alienada em relagio aos problemas fandamentais do desenvolvi- mento nacional. Mas se esses incelectuais nao viam na atividade de preservagio de bens culturais um recurso para a mo~ bilizagao da sociedade no sentido de suas preocupa- Ges, para 0 regime militar, passada a fase mais dura dia reptessio, o campo da cultura comesou a ser obje~ to de atengiio especial, canco como recurso ideolégico para a legitimacio de um projeto nacional, quanto como meio para reorganizar a esfera cultural, criando instituigdes financiadoras da produgio culeural (Em- brafilme, Funarte) produzindo um discurso em que a nogio de seguranga nacional foi praticamente abo- lida em nome de conceitos como “pluralidade cultu- ral” ¢ “desenvolvimento cultural”.” 5. Rotro.me a0 documento Politica Nacional de Cultura, e975, opsedpyiaed ¢ opsexusapous eq asesuey ssepuoy eepi229 sH0— 155 TWWOIDWN O21LSHHY 3 ODINOLSIN OINOMINIYd 08 visiAay Revista oo ParmimOmio HMisténtcs € Antistice NacioNAt 156 pacio. iaagho A pa a Morte Ce Em cermos préticos, foram tomadas algumas iniciativas para adequar a politica federal aos no- vos tempos, Ainda na década de 60, 0 entio DPHAN recorreu a colaboracio da UNESCO, ¢, no inicio da déeada de 70, foram realizados dois encontros de governadores, um em Brasilia ¢ ou- 20 em Salvador, visando, entre outras coisas, a descentealizar a gest2o do patriménio cultural na- cional. Em 1973 foi criado junto a Seplan 0 Pro- grama das Cidades Historicas (PCH), visando a rentabilizar a preservasio e a restaucacio dos bens patrimoniais, tanto em termos econdmicos quan- 0 sociais, sobrecudo em regides carentes. Essa perspectiva modernizadora foi também a ‘que inspirow a criagio, em 1975, do Centco Naci- ‘onal de Referéncia Culcural (CNRO), que procu- rou estender a revisio critica do trabalho sobre 0 patriménio cultural ao campo conccitual. A dife- renga do SPHAN “heréico” dos anos 30-40, que centrou sua atuagio na salvaglo dos remanescentes da.arce colonial, o CNRC se voltava para o referen- ciamento da cultura "viva", sobretudo daquela enraizada no fazet popular, como forma de cornar mais “nacional” e mais “plural” a representagio da cultura brasileira. Mas, em continuidade & tendén- cia da intelectualidade brasileica j4 teferida — e, credite-se, também 4 impossibilidade de atuar diretamente junto 3 sociedade — parcia-se do pres- suposto de que cabia aos intelecthais a carefa de produzie o conhecimento ¢ a valorizagio dessa cultuca, (O trabalho realizado pelo CNRC (incegrado, « partir de 1979, & Fundagdo Nacional Pré-Memé- ria) representou, sem duivida, um passo importance no sentido de ampliar a nogdo de patriménio cul- tural no Brasil, e, menos perceptivelmente — por- «que era um trabalho feico “nas bordas” da inscirui- io oficial — de aproximar-se das demandas de se- Cores até entio marginalizados das politicas cultu- rais (indigenas, negros, populages urais e da pe- riferia urbana etc.). Fssa dimensio do trabalho ins- ieucional — ou seja, o reconhecimenco do “povo” nfo apenas como objeto de estudo efou de uma atuagio politica, mas também como co-autor — se manifestou inicialmence no discurso €, em certa medida, na psivica institucional, como a preocu- pagio com a “devolugio” dos resultados dos eraba- Thos para as comunidades. Somente a partir dos anos 80 essa preocupacao foi craduzida no discur- 6. MINISTERIO DA EDUCAGAO & CULTURA. Diretrizet para operacionalizagae da politica cultural do MEC. Bras 1981, p11 0 oficial como necessidade de “efeciva participa- io da comunidade nas decisées e no trato dos pro- blemas afetos & produgio ¢ a preservagio cultural” $ A recepgio desse discurso — mais que da pri tica a que se referia, esta pouco conhecida — péde ser avaliada por ocasido da elaboragio da nova Constituigéo Federal, promulgada em 1988, com os artigos 215 ¢ 216 que teazem a sua marca. Ou- tra conquista em termos de exercicio da cidadania foi aexcensio a qualquer cidadio do direito de pro- por ago popular visando a “anular ato lesivo a0 pa~ triménio piiblico ou de entidade de que o Estado participe, & moralidade administrativa, 20 meio ambiente e ao patciménio histérico ¢ cultural”. (Att, So, LXXIIL) A incorporacio de conceitos ¢ principios a uma pritica discursiva tem, sem ciivida, grande impor- tincia, tanto em termos simbélicos — na medida ‘em que contribui para modificar uma representa~ ‘lo social — quanco em cermos politicos — no sentido de confetir visibilidade a novas questées € 4 novos Sujeitos sociais. Convercidos em direitos, esses principios se tornam instrumentos para 0 cexercicio da cidadania, Mas um peocesso de crans- formagio social é bem mais amplo ¢ complexo, € pressupde nao apenas condigdes estruturais propi~ ccias quanto mudangas no jogo dos acores. Se nfo so conhecidos, reconhecidos ¢ exercidos eferiva- mente pela populagio, direitos assegurados por leis reduzem-se a "direitos fracos”, mera declaragdo de incengdes. ‘Nesse sentido, acredito que o campo privilegi- ado para uma andlise da tematica da cidadania na politica federal de preservacio seja o campo de sua précica especifica — ou seja, os tombamentos. O EXERCICIO DA CIDADANIA NA PRATICA DE TOMBAMENTOS ‘Quando assumiu a dicegio do IPHAN em 1979, ‘uma das primeiras iniciatvas de Aloisio Magalhaes foi instaurar a prética de consulea as comunidades das cidades histéricas. Foram realizados semindtios em Ouro Preto, Cachoeira, Diamantina, Sio Luis etc. Embora se possa questionar a representatividade dos «que falavar em nome dessas comunidlacles — & me ida em que se vivia um tempo hostil as manifesta~ «es democracicas — esse tipo de iniciativa pelo me- hos tezia para a esfera publica dessas cidades a ques- tio da preservagio de seu pacriménio cultural. (Na vigéncia da Secretaria da Cultura do MEC foi desenvolvido o projeto “Interagio entre « edu- cago basica ¢ 0s diferentes contextos culturais exis- ences no pais", que se propunha a apoiar e acom- panhar projetos propostos por grupos organiza- Bes da sociedade, calcado nos pressupostos da plu- talidade culeural e da eficécia da gestio descentra- lizada ¢ participativa. Tratava-se de aproximar os processos educativos do contexto cultural dos alt= ‘nos, visando nfo apenas aprimorar a dinémica da aprendizagem como também a conferir eseatuto de “cultura” as experiéncias que 0 aluno trazia para a escola. ‘Mas creio que & na anilise da pritica de com- bamentos que se tem mais elementos para poder avalia 0 exercicio da cidadania na politica federal de patrimdnio, pois, no Brasil, este € 0 processo constitucivo por exceléncia do patriménio histérico eartistico nacional.” A resteuracio ¢ a conservagio de monumentos — areas técnicas por definigo — niio se prestariam tio bem a essa carefa quanto 0 ‘ito mesmo de consagragio do valor culcutal de um bem que consticui o tombamento. Pesquisar a sis- tematica dos processos de rombamento, a origem as motivagdes da demanda, ¢ aprender os critéri- os de valoracio e de selegio que t@m presidido as comadas de decisio, conscituem, a meu ver, recur- sos viéveis e frutiferos para se avaliar em que me- dida a politica federal de preservagio se comnou, nas sileimas décedas — ¢ como era a proposta do dis- curso oficial -— efetivamente mais democratica Embora cenha ficado decidido ja na primeira reuniao do Conselho Consultivo do SPHAN, rea~ lizada em 1938, que qualquer pessoa poderia en- trar com um pedido de rombamento, de faro essa iniciativa, na grande maioria dos casos, partia qua- se que exclusivamente de funcionstios da insticui- lo, A instdincia que devia representar a sociedade, junto ao SPHAN, era exatamente aquele Conselho, composto por pessoas de alta qualificacao intelec- tual ¢ teconhecida probidade — escolhidos pesso- almente pelo presidente da Repablica — ¢ pelos diretores dos grandes museus nacionais. Durante varias décadas, apenas jam a Conselho os pedidos de tombamentos voluntirios ¢ os casos em que era apresentada impugnagio. E, na esmagadora mai oria dos casos, a decisao dos conselheiros rat va as indicagdes contidas nos pareceres técnicos produzidos pelo SPHAN. A partir dos anos 70 varios fatores contribu ram para mudar esse cendrio: 0 agravamento dos conflitos com a especulagio imobilidria, 0 que te- sultava no apenas em impugnag6es como em pres- ses de toda ordem; a apresentagio de propostas de tombamento de bens inusitados — vindas, mui- tas delas, de instituigdes recém-criadas, como 0 CINRC — que traziam novos problemas a serem enfrentados pelos técnicos do SPHAN a propria ampliagio do conceito de patriménio, tendéncia verificada também em nivel internacional, que, dentro da instituicio, representou a introdugio dos “Novos Programas”, assim como mudangas nas concepsdes de valor histérico e de valor artistico, so alguns desses fatores que ocorreram interna- _mente no campo da politica federal de patriménio. A consideracio do conjunto de processos aber 0s nas décadas de 70 ¢ 80* indica que o sinal mais visfvel de uma mudanga em relagio as décadas an- teriores, no sentido do envolvimento da socieda- de brasileira com # questio do patriménio, € um aumento considerdvel no mimero de processos abertos a pedido de pessoas, grupos ou instieuigées externos ao IPEIAN. Nao s6 proprietatios de imé- veis, como também prefeicuras, Assembléias Legis- lativas, € até mesmo grupos que se expressam acra- vyés de absixo-assinados entram com pedidos de tombamento federal. Outro trago significativo éa diversidade de bens que fo apresentados para com- bamento. Ao lado de igrejas, casas, pabécios ¢ man- ses figuram iniimeras consteugdes mais recentes € ligadss & vida moderna: & industrializagao (fabri- cas, vilas operérias); a0 comércio (mercados); aos meios de transporte (estagées ferrovisrias ¢ até fer rovias, instalagoes portudrias ¢ de aviacio, locomo- tivas, bondes, embarcagies, avides, pontes, farsis); a0 abastecimento (caixas dgyeua, acudes, pocos de petrdleo); a0 lazer € aos meios de comunicagao (ci- nemas, estidios de futebol, estiidios de ridio, es- tagdes relegniéficas); a educagio, a ciéncia € & me- dicina (observatétios astrondmicos, institutos de pesquisa, hospicais, farmiécias, escolas ¢ faculdades), Se a inclasio desses tipos de bens no universo do patrimnio indica uma ampliago do que se considera bem cultural digno de protegao — am- pliacdo que sc deve, em grande parte, a mudangas nos estudos histéricos — mais significativos, em termos simbélicos € ideol6gicos, s20 0s pedidos de tombamento de bens representativos das correntes migratdrias (alema, italiana, japonesa), das etnias indigenas ¢ afro-brasileiras, da expansio das fron teiras para o oeste e para 0 norte, de outras religi- 7. Ranilgn da pratica de tombameonto nas décadas de 70 1 80 inciuitanto.08 processos que resultaram ern tombamento quanto 08 arquivados @ 08 ainda om estudo, 8. No poriodo em questio (1 de aneio de 1970 2 14 de argo de 1980) foram aberlos 481 processos de tonbamanto ly saenuog s2epaey 9 ped y 08 187 TwHolovn 0ots|JUy 2 eDHMGLEIN oiNQRININE o8 wsiKY Revista po PaTMMONIG HisTORICO E ARTIsTiCO Nacional 158 parte. rnizagio i parti z é Moris Ce es que ndo a catélica, ¢ da cultura popular, Hit inclusive © pedido de tombamento de um bem imaterial, um “fazer”, ainda que materializado numa edificagdo e em equipamentos, como ocor- reu no tombamento da fabrica de vinho de caju Tito Silva, em Jodo Pessoa, A diversificago de bens indicades para integear ‘© patriménio histérico ¢ artistico nacional pode ser interpretada, juntamente com a participagio mai- ‘or da sociedacle nos pedidos de tombamento, como uum indfcio de que o patrimdnio estava sendo en- to considerado pela sociedade brasileira, mesmo que de maneira ainda bastante limitada, como campo para @ afirmacio de novas identidades co- letivas, que se valiam dos bens culeurais como te- feréncias materiais ¢ simbélicas, Ao lado do inte~ resse do Estado de circunscrever um universo de bens culrurais que atestassem a “existéncia” da nagio, surgiam novas motivacdes, por parte de srupos sociais diversos, que erigiam o exercicio da preservagio de “lugares da meméria” em dircito, Encretanco, a ampliagio do espectro de bens apresentados para tombamento implicou proble- mas novos nas comadas de decisdo quanto ao que tombar, pois, como os prdprios técnicos da SPHAN ceconheciam, a instituigio — que se mu- niciara com canto rigor para fundamentar a prote- io de bens do perfodo colonial e do Império — nao estava preparada para selecionar e para proce- ger “coisas” estranhas a0 universo dos patriméni- 0, € que haviam servido, inclusive, de contrapon- to para a valoragiio dos bens pacrimoniais. Dada a proximidade temporal do perfodo em questo, é ainda dificil aprender as tendéncias do- minantes, on fazer um balango de avancos € resis- téncias, de continuidades e rupeuras. Por esse motivo, prefiro me debrucar sobre a apresentacao de alguns casos que me parecem exemplares, den- tro dos ambitos mais criticos, na medida em que 9. Opadide de tombamanto do "Conjunto arquiteténico da Avenida Rio Branco’, Flo de Janeiro, Ri, foi eneaminhado pelo Instituto des Arquitiog do Brasil e pelo Ciube de Engenharia, incluis nove edicagbes: Jockey Club, Derby Club, Palacio Monroo, Clube Naval, Tbuna! de Justiga, Bibfoteca Nacional, Escola Nacional de Bolas-Ates, Teatro Municipal a Assomblei Legislatva. Apanas os quatro uttimas bens foram tombados. 10. Refeo-me ao process0 de tombamenta da “grea do Bom Jesus dos Martie”, am cite, PE. cue anciamento fo oD)et0 de ‘rande polemics, mas queterninoU destukta, © 0 gracesso aru vvado, aso somnanta oooreu na década ce 40, quando da aber ‘ura da avenida Geto Vargas, na cltade 6 Rio 8 Janeiro, oque ‘motivo a desttuizéo da igreja da Sao Padio dos Clongos, 11. € 0 caso des precessos de tombamanto dos “Coniun- tos arquitatdnicos @ Avonisa Nazareth” e & “Avenida Govern: indicam, no seu encaminhamento, as manifestagées de méltiplos atores, tanto internos & instituigéo quanto externos a ela, ¢ uma elaboragio, em ter- mos de uma pricica politica, do que seriam “dire! tos culeurais” ALGUNS CASOS EXEMPLARES (© PATRIMONIO EOIFICADO URBANO ‘Os debates em rorno da preservagio de monu- ‘mentos ou conjuntos nos grandes centros urbanos se tornam, nesse periodo, ainda mais intensos, em conseqiiéncia nfo apenas da acelerada valorizagio do solo nessas regides, como da consciéncia de que € possivel — € mesmo necessario — que a comu- nidade participe da decisio sobre os projetos para a cidade, Nas cidades histéricas, de menor porte, ‘ocorrem também tensdes que mobilizam seus ha- birantes. Nos processos de tombamento, € possivel per- ceber debates em como de imimeros aspectos des- ‘sa questo: quanto a manutengio ou nio de derer- minados valores hist6ricos em fungio de sua valo- rizagio ou no como obras de arte, discussio que se deu basicamente no meio especializado mas que, especificamente em relagio ao Palacio Monroe, mobilizou opinio publica através da imprensa’; quanto & importincia de se preservar um monu- mento mesmo em prejuizo de uma modificagao no tracado das vias de acesso, para facilitar 0 trinsi¢o na cidade"; quanco a0 tombamento de iméveis para assegurar o entorao de um monumento'!; quanto & preservagio de valores culturais pedida por grupos da comunidade que se organizam nes- se sentido, e que encontram forte resisténcia dos proprietérios.”” ‘A complexidade da preservagio de sitios urba- ‘nos ji havia sido magistralmence analisada por Rodrigo Melo Franco de Andrade, em cexto de dor Jos6 Matcher, em Golde, PA ¢ da “Area Cental da Praga XV @ imediagSes", no Rio do Janoio, Ru 12, Como nos processos de tombamento das “Casas Praga Coronel Pedro Osorio nos. 2, § 087 em Polotas, AS: da "Casa Modemisia’, em Sa0 Paulo, SP; do Hotel Copacabana Palace’, no Ria de Janeiro, fd: © do “Conjunto ar rbanistico de Anidnio Prado", RS. Nesse ultimo caso, quando {60 pecsdo de iombamenia, eo pela Diretovia Regional da SPHAN, (08 moradores so orgarizaram para se manfestar corsa o tombe. ‘mento. Apanas aps um trabalho do esclarecmonto da SPHAN unto aos bares da cidade, aprosorvacao de conju ureano ‘pass0u a ser acota e mesmo delendida por elas. 18. Cf ANDRADE, Roatige Melo Franco de, ‘Conservagao 40 conjuntos urbanas". tn: -. Rodrigo @ © SPHAN. Rio de Ja noire: MinCiSPHANIFNPM, 1987, pp. 81-80. 1967," onde reconhecia a necessidade de partici- pagdo dos drgdos locais ¢ da populagio no dimen- sionamento e na busca de solugées para esses pro- blemas. Mas, sem diivida, o espago urbano das grandes cidades, por seu cardter dinamico, pela diversidade e concentragéo de pessoas envolvidas, € por se constituir em uma “caixa de ressoniincia” para o resto do pais, constitui um Jocus privileg do para a difusio © a consolidacio das nogées de cidadania cultural e de diretos culturais como valores. © PATRIMONIO NATURAL A década de 70 e, sobrecudo a de 80, assist ram a emergéncia de uma consciéncia preserva onista voltada para 0 meio ambiente. Esse movi- mento no tem suas rafzes na a¢do do Estado — como ocorreu com os bens cuteurais durante a Revolugio Francesa — mas junto’ comunidade ci- entifica, sendo difundido por organizagées niio- governamencais enquanto defesa da qualidade de vida ¢ até da sobrevivencia da humanidade. E, ra- pidamente, 0 direito a preservagio do meio ambi- ente tornou-se um tépico imporcante nas agendas politicas nacionais e incernacionais. Embora alea- mente politizado, esse campo de debate niio se dei- xou prender aos parametros ideolégicos vigentes. A preservacio da natureza como patriménio ja figurava no art. 1 do decreto-lei n 25, de 30 de no- vembro de 1937. O que se queria proteger, no en- tanto, eram valores paisagisticos, como “sitios ¢ paisayens que importe conservar e proteger pela feisio notével com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indtistria humana’. ‘Tratava-se, portanto, de bens naturais apreciados fundamentalmente de um ponto-de-vista estético. proceso de tombamento dos morros do Rio de Janeito,'' aberto a pedido de um geupo de in- telectuais e artistas moradores da cidade, foi mo- tivado pela ameaca de conserugio, no topo do Pio de Acticar, de uma estagao de bondes nova, bem maior que a jé existente, e de um restaurante. Esse faco chamou a atengio para as alceragies que a ocu- Pacio desordenada dos principais morros do Rio estava provocando na silhuera to caracteristica da cidade, além dos problemas de desmaramento daf decorrentes, Anos mais tarde, em 1980, 2 mobili- zagio dos moradores do Jardim Botnico em or- ‘no da figueira da rua Faro — que foi posteriormen- te rombada pelo municipio— veio comprovar a se- dimentacio de uma consciéncia preservacionista junto & populagao do Rio. Apesar da criagio de Srgios e legislagio espe- cificos para a protesio do meio ambiente, chama a arengio na relagio de processos abertos nesse peri- odo o ntimero de pedicos de combamento de bens naturais (cerca de vinte), 0 que evidencia que 0 tombamento ainda é 0 instrumento mais conheci- do como recurso para protecdo de bens em geral tanto quanto a feigio estécica dos bens naturais também um valor imporcante a ser preservado. © PATRIMONIO CULTURAL NAO-CONSAGRADO A expressio “patriménio culeural nio-consa- grado” surgiu nesse periodo para designar aqueles bens culturais que, até entio, no integravam 0 ‘universo do patriménio hist6rico e artistico naci- onal. Quando muito, nele figuravam como bens de valor etnogréfico, Tratava-se das produgdes dos “excluidos” da hist6ria oficial: indigenas, negros, populagdes rurais, imigrantes etc. Para as funcio- nirios do SPHAN, essa exclusio se justificava pelo faco de nao haver, no Brasil, testemunhos materi« ais significativos da cultura desses grupos sociais, «por estarem esses bens, em geral, imersos em uma dindmica de uso que inviabilizava o combamenco. ‘A partir dos anos 60, com 0 movimento dos ne- gros norte-americanos pelos direitos civis, € com as lutas de descolonizagio na Africa, a afirmagio dos direitos das minorias alcangou também o cam- po das politicas culeurais No Brasil, 0s movimentos politicos e culeurais dos anos 60 se centravam na combate ao imperia- lismo norte-americano de uma forma genérica, sem particularizar a situagio de grupos étnicos ou mi- noritérios em geral. A sociedade brasileira era, entio, representada ¢ analisada primordialmente a partir de sua estracificagio em classes sociais. Nas instituigdes de politica cultural, indigenas, negros © camponeses eram vistos a partir de uma perspec tiva folclorizance, enquanco produrores de uma cultura popular que devia ser preservada do mes- mo modo que as pegas de um museu. Apenas no final dos anos 70 comecaram a se manifesta “vo- zes" que falavam em nome de outras categorias sociais (etnias, génetos etc.) e que combariam tanto © autoritarismo de direita como o de esquerda."” ‘Nesse particular, pode-se dizer que a atuagio do CNRC, soba diregio de Aloisio Magalhies, foi fundamental. Um dos primeiros projetos do cen- 14. 0s morros do Rio de Janeiro haviam sido tombados em 1990, mas genericamente, sem especiticayes. Em 1973 foram tombados indiviayaimente sete morres: P8a.do Agucar, Garco- ‘ado, Urca, Babilinio, Gaves, Oois ImBas # Gara ae Ca, 15. Ci, Perea, Caos Alberio Messeder & Holanda, Haoisa ‘usr de. Patras ideokipcas. Sao Paulo, Brasiiense, 1980. pupa enon ar eq eresuey seeps edyoised ¢ osdeequss TWHOIOWN eolLeILNY 4 O2IuOLbIN OMQMINg OF vasinay Revisth 00 PATRIMONIG HIsTORICO © AaTiaTiC® NacioNAL Marie Cecitia Londres Fonseca Da modernizagao 3 participasée 70 foi a “Indexacio e microfilmagem da documen- cagioem depésito no Museu do Indio”, que tinha, entre outros objetivos, cornar acessiveis documen- os impostantes para que as eribos indigenas pu~ dessem argumentar no processo de demarcagio de No final dos anos 70 foi criada na Fundacio Nacional Pré-Meméria a area Ernias ¢ Sociedade Nacional, responsével pelo tombamento, em 1982, dos primeiros testernunhos da cultura afto-brasi- leira: 0 Terreito da Casa Branca, em Salvador — Bahia, ¢ a Serea da Barriga, em Uniio dos Palma- res — Alagoas Esses combamentos, mas sobrecudo o primei- +o, foram os casos mais polémicos do perfodo, ¢ re- almence representam um marco na histéria da po- \ivica federal de preservacto no Brasil Resultado de uma mobilizagio conjunta de movimentos negros, intelectuais e politicos, esses rombamentos nio tinham como alvo principal 4 protegio desses hens em si mesmos, mas sobret- do a repercussio simbélica e politica da sua inclu- sfo no patriménio cultural nacional. Outro aspec~ co importance dessa lura era a reivindicagdo de que cesses bens fossem inscritos por seu valor hist6rico (endo apenas etnogritfico), de testemunhos da pre- senga do negro na conscrugio de uma civilizagio brasileira © tombamento da Casa Branca, sobretudo, provocou intensos debates junto aos setores técni- cos da SPHAN, a medida que se julgava que esse bem, por suas caracteristicas e devido ao uso a que se propunha, nao apresencava os requisitos neces- sirios para o tombamento. Prevaleceram, no entan- (0, 08 argumentos politicos, €, em sessio memors- vel do Conselho Consultivo da SPHAN, realizada ‘em Salvador, com 2 presenca de representantes dos ‘grupos interessados no combamento e com farca cobertura da imprensa, 0 rerreito foi rombado por estreita margem de voros (teés votos a favor, um voto contra, duas abstengies ¢ um pedido de adi- amento), fato inusitado na histéria do Conselho. A luta dos grupos organizados em favor do re- conhecimenco da cultura negra continuou na Constituinte, ¢ resultou em mengio especial n0 artigo 216. E de se supor que o interesse em aruar politicamence no campo culcural por parte desses grupos — a diferenca dos grupos indigenas, que na casio nio chegaram a marcar presenca na Sub- comissio de Educacio, Cultura e Esporte — expli- ca-se pela sua condiglo de “despossuidos” de bens materiais (sobretudo de terras) tanto como escra- vos quanto, apés a Abolicio, como “homens li- vies”. Se a repatacio material desses danos é tema extremamente complexo (como se pode perceber ‘0s debates sobre a questiio das indenizacbes), mais importante se torna a reparagio simbdlica. Também apenas nas duas Gltimas décadas pas- sou-se a dar atengdo a bens represencacivos das vé- tias corrences de imigrantes que, desde 0 século pasado, vém introduzindo aqui sua cultura. Fo- ram apresentados pedidos de tombamento de tes- temunhos da presenga alema (Casa Presser, Escola Rural ¢ Casa do Professor, Monumento ao Imi- grante); italiana (Orleans, SC, Antdnio Prado, RS); japonesa (Casario do Ché, Bairro Jipovura), polonesa (Parque Memorial da Imigeagao Polo- esa), etc Jéa cultura popular tem sido, cradicionalmen- te, objeto de estudos de etndgrafos ¢ folcloristas Suas produgies mais significativas so cecolhidas aos museus de etnografia e folclore, ¢ apresencadas como cestemunhos de um tempo imemorial, mar- cado pelo ritmo dos fendmenos naturais. Normal- mente as pecas sio selecionados em fungio de sua “autenticidade”, materializagio de um modelo de comunidade anterior 2 contatos com 0 mundo ‘moderno. ‘Com 0 conceito de “tradigées méveis”, Mario de Andrade chamava a atengio para 0 caréter vivo e dindmico dessas manifestagdes, que ele conside- rava antes objeto de estudo que reliquias a serem guardadas em museus. Desenvolvendo & visio de Miio, disse Alofsio Magalhies sobre o artesanato: (ou) 0 artesanato é um momento de uma trajetiria, endo uma casa estética. A politica paternalista de di- ser que ocartesanato deve permanecer como tal é uma po- Iitica ervada: euliuralmente €impasitiva porque nés, de sem nivel cultural. que apreciames aquele objeto pelas suas caractertsticas, gestariamos gue ele ficasse ali. (u.} 0 camino, a men ver, néo é est; 0 caminbo € identificar isso, ver 0 nivel de complexidade em que estd, qual & 0 desenbo do prisimo passo ¢ dar o esténuto para que ele «esse passe." Para os técnicos do SPHAN, @ protecao de bens da culcura popular era incompativel com oesratuco do tombamento, visto que esses bens estao inseri- dos em uma dinamica de uso, € expressam valores de outra ordem que no as concepgdes cultas de histOria e de arte. Poderiam, quando muito, ser proregidos por seu valor etnogrifico. Foi sobrecu- 16. MAGALHAES, Aloisi. E Triunfo? Rio de Janeiro: Nova Frontelr Brasilia, FNPM, 1985, p.170. ouio Hisromico © Aanistico Naciowab 162 nvvse De mad oem contraposigdo a essa visio que s¢ orientou 0 trabalho desenvolvido pelo CNRC e, posterior- mente, pela Fundagio Nacional Pré-Meméria. Nese sentido, 2 ago inscicucional cinha um. objetivo politico em sentido amplo, pois visava a incluir manifestacdes desses grupos sociais nio apenas na pattiménio historico e artistico nacional, como também em ourtas esferas da vida social, ‘organizadas a partir da cultura valotizada pelas ‘classes mais favorecidas e que detinkam 0 contro- le dos instrumentos de poder. Nessa linha, foram desenvolvidos programas sobretudo na area da ‘educacio,"" mas também da sade," da tecnologia etc.” O argumento usadlo na defesa desses progra- mas - contra uma visio puramente museol6gica, de proteger reliquias anacrOnicas - era de que nessas manifestagdes se poderia encontrar indicadores para um desenvolvimento harmonioso.”” Na década de 80, com a luta pela anistia € pe- Jas direcas-jé em andamento, visava-se, com essas iniciativas, chamar a atencao para os direitos des se5 grupos até entio marginalizados das politicas culturais. Questio, portanto, de cidadania. Em termos de tombamentos, porém, foram ce- lacivamente poucos os bens combados nessa pers- pectiva: Colegao de ex-votos do Santuario de Bom Jesus do Macozinhos (Congonhas do Campo, MG); ‘0 Santudtio do Monte Santo (BA); 0 Presépio do Pipiripau (MG) ¢ 0 Conjunto habicacional Aveni- da Modelo (Rio de Janeizo, RD). Conciusdes Fazendo um balango das transformagdes que € possivel perceber no perio em aniilise, cabe as~ Sinalar como as mais significativas em cermos de ‘uma democratizagio da politica federal de preser- vyagdo: a ampliagio da nogo de patriménio culeu- ral; a maior participagao da sociedade nos pedidos 17. Alam do projeto “interac entre a educarto basica & Cs cilerentes contexts euitrais do pais’, ja ctado, lero ou- {ra iniiativa da FMPM: 0 curso para professores de histona da rede oficial do Distrito Federal sobre a Hisléria do Brasil da perspectiva da cultura ato-braslera. 18, Retio-me a proeloe sobre mecicina popula. 19, No programa "Tecnelogias patrimoriais" da FNPM fo- ram desenvolvidas pesquisas sobre a tecelagem manual no Triangulo mineieo a labricacdo de lxeras com pneus usados @ 25 indistias familiares de migrates, entre outros, 20. C1 MAGALHAES, Aloisio. “Bens culluals:Instrumenta para um desenvoluenento harmonioso." i: -. Op. cit pp. 47-62. de tombamento; as mudancas na composigio € nas atribuigdes do Conselho Consultivo" ¢ a diversi- ficagio nos quadros cécnicos da insti¢wigio.”* Por outro lado, algumas dificuldades, limives © pontos de estrangulamento persistem: os proces- sos decisérios continuam centralizados, ¢ pratica- mente restritos as areas técnicas; é ainda muico morose o processo de julgamento dos pedidlos «le tombamento, o que resulta em um nimero muito ‘grande de processos que ficam anos e mesmo dé- cadas sem resolugio; 0 combamento ainda é prati- camente o Gnico instrumento para a preservacio, apesar do que é proposto no art, 216 da Conscicui- do Federal. Além disso, embora tenha ocorrido uma descentralizacio em fungio da criagio de 6 gos estaduais e municipais de preservagio — que, inclusive, dispem de mecanismos mais dgeis para © incentivo a culeura — 0 lugar e o papel da politica federal de preservacio ainda ndo foi reelaborado face 4 essa nova realidade institucional e politica Na anilise da trajecéria da politica federal de preservagio no Brasil nos anos 70-80 € preciso le- var em consideragio as diferencas de conjuntura tanco entre essas duas décadas quanto em relagio 440s anos 30-40, quando foi criado o SPHAN. Na~ quele periodo, o objetive de se ctiat uma institui- ‘do cultural s6lida, aucénoma face a pressies pol ticas, a servigo do intetesse da nagio mas distance do nacionalismo xendfobo, era uma utopia, pois carecia do apoio de grupos sociais que pucessem dar sustencagao a esse projeto. Na pricica, era pre- cciso buscar complexas solucdes de compromisso, © que obviamence tinha também seu prego. Apest das aparéncias, a situagio nos anos 70 nfo era tio diferente, pois também se vivia um _governo auroritério, sem que, nesse interrezno, se rivessem consolidado mudangas na cultura pol ca do pais. A cfetividade da idéia de “direitos culturais’ pressupde a vigéncia de outros direitos (no s6 d 21, No Santutrio de Monta Santo let ealizade 0 flme de Glauber Rocha Deus @ 0 dlabo na terra do s 22. A pari de malo do 1992 quando o Contelno Consul tiv fo raconduzido - passaram a integid-o representantes do Instituto de Arqutetos do Brasil (AB), do stato Brasileiro do Meto-Ambiante (Ibama) o do International Counci! on Monu: iments and Sites (Ieomnos}. © nimero de personatidades nome- aadas aumentou para teze, 28, Aluelmenteintegram os quadros tecnicos do IPHAN um rumero expressive de musedlogos, historiadores, arquedtogos. CGanistas sociais, educadoras alc 24. Arantes, Antonio Augusto, Preservagao como pat tea Social, Rovsta de Muscologia 1(1), 1989, 99.12.16. reitos politicos, os de primeira geragio, como os direicos econémicos e sociais, de segunda peracio) € a consciéncia da cicadania como valor. Sua im- plementagio depende, porcanto, de uma cultura politica democratica ‘A autonomia de que gozava 0 SPHAN duran- te 0 Estado Novo foi uma faca de dois umes embora essa estraréia tena contribufdo para con- solidar um padrao ético no trato dos bens cultu- rais, tenha assegurado uma inusitada continuida- de no servigo pablico brasileiro, e, concretamen- ce, tenha possibilitado salvar da destruigio ¢ da rujna centenas de monumentos cujo desapareci- mento teria constituido perda irreparavel, por ou- (10 lado levou a instituigio a se caracterizar como rea exclusivamente técnica, que se restringia pra- cicamente a uma visdo arquitetdnica do monumen- t0, o que veio provocar, sobretudo a partir dos anos 60, reagies a0 que se considerava encio 0 carsver licisea da atuagio do érgio. Creio que, no momento acual, a investigasio quanto a relagio, no Brasil, encre pactiménio cultu- ral e cidacania, passa pela verificagio de como se apro- priaram dessa tematica — a do patrim@nio — dife- rentes movimentos da sociedade,"' que se manifestam acravés de uma pluralidade de vozes, organizadas a partir de recortes bastante diferenciados: etnias, gé- eros, crengas etc. Além das distingdes jé conecidas ‘entre classes sociais, ¢ entre os niveis local, regional e nacional. Independentemente do cariter ideolégico ‘que possm assumis essas nova “ielentidades”, €atra- vés delas que se definem, acualmente, novos atores so-

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