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O espirito do capitalismo e o papel da critica gicas em relagao ao capitalismo durante os Ultimos trinta anos, mas que nos parece ter um alcance mais amplo do que apenas 0 estudo da situacao francesa recente 1.0 ESP{RITO DO CAPITALISMO. Lima definigo minima do capitalise «Entre as diferentes caracterizacdes do capitalismo (ou, frequentemen- te hoje, dos capitalismos) feitas no iltimo século e meio, escolheremos uma formula minima que enfatiza a exigéncia de acumulagiio ilimitada do ca- pital por meios formalmente pacificos. Trata-se de repor perpetuamente em jogo o capital no circuito econémico com 0 objetivo de extrait lucro, ou seja, aumentar o capital que sera, novamente, reinvestido, sendo esta a princi- pal marca do capitalismo, aquilo que the confere a dinamica e a forca de faneformacao que fascinaram seus observadores, mesmo os mais hosts. (O actimulo do capital nao consiste num amontoamento de riquezas— ou acja, de objetos desejados por seu valor de uso, por sua funcao ostentatoria ou como signos de poder. As formas concretas da riqueza (imobilidria, bens de capital, mercadotias, moeda etc.) nao tém interesse em si e, por sua falta’ Be de liquider, podem até constituir obstéculo ao tinico objetivo que importa realmente: a transformacao permanente do capital, de equipamentos e aqut- sicdes diversas (matérias-primas, componentes, servicos...) em producao, de produgiio em moeda e de moeda em novos investimentos (Heilbroner, 1986). esa digsociacao entre capital e formas materiais de riqueza Ihe confe- re um carater realmente abstrato que vai contribuir para perpetuar a acumu- lacio, Uma vez que 0 enriquecimento é avaliado em termos contabeis, sen- do 0 lucro acumulado num periodo calculado como a diferenga entre dois balancos de duas épocas diferentes’, ndo existe nenhum limite, nenhuma saciedade possivel? como ocorre, ao contratio, quando a riqueza 6 orientada para necessidades de consumo, inclusive o luxo. Certamenie ha outra tazdo para o cardter insacidvel do proceso capita- lista, ressaltada por Heilbroner (1986, pp. 47 ss.). Como o capital ¢ constan- remente reinvestido e s6 pode crescer circulando, a capacidade que o capita- lista tem de recuperar sua aplicagao aumentada pelo lucro esta perpetua- mente ameacada, em especial pelos atos dos outros capitalistas com os quais ele disputa o poder de compra dos consumidores. Essa dinamica cria uma inquietagéo permanente € dé ao capitalista um poderoso motivo de autocon- sotvacdo para continuar infindavelmente o proceso de acumula¢ao. 35 36 O novo espirito do capitalismo A tivalidade entre operadores que procuram obter lucro, porém, nao gera necessariamente um mercado no sentido classic, no qual 0 conflito entre uma multiplicidade de agentes que tomam decisdes descentralizadas tem como desfecho a transacao que faz aparecer um prego de equilibrio. O capitalismo, na definicao minima aqui considerada, deve ser distinguido da autorregulago mercantil baseada em convengoes instituicdes, especial- mente juridicas ¢ estatais, que visam a garantir a igualdade de forcas entre operadores (concorréncia pura e perfeita), a transparéncia, a simetria de in- formacdes, um banco central garantidor de uma taxa de cambio inalteravel para a moeda de crédito etc. Sem ciivida o capitalismo se apoia em transa~ Ges e contratos, mas esses contratos podem dar sustentagao apenas a ar Tanjos diseretos em beneficio das partes ou comportar apenas clausulas ad hoc, sem publicidade nem concorréncia. Na esteira de Fernand Braudel, faremos uma distincdo entre capitalis- mo e economia de mercado. Por um Jado, a economia de mercado constituiu- se “passo a passo” e é anterior ao aparecimento da norma de acumulacao ilimitada do capitalismo (Braudel, 1979, Les Jeux de l'échange [Os jogos das trocas|, p. 263). Por outro lado, a acumulacdo capitalista s6 se dobra & regu- Jaco do mercado quando Ihes sao fechados caminhos mais diretos para 0 Iuaro, de tal modo que o reconhecimento dds poderes benfazejos do mer- cado e a aceitacdo das regras e injung6es das quais depende seu funciona~ mento “harmonioso” (livre-comércio, proibigao de cartéis ¢ monopdlios etc.) podem ser considerados uma forma de autolimitacao do capitalismo’. O capitalista, no Ambito da definicaoumhinima de capitalismo que utili- zamos, é, teoricamente, qualquer um que possua um excedente e 0 invista para extrait um lucto que venha a aumentar 0 excedente inicial. O exem- plo tipico disso ¢ 0 acionista que aplica set dinheiro numa empresa e fica A espera de uma remuneracao, mas o investimento nao assume necessaria~ mente essa forma juridica — pensemos, por exemplo, no investimento em Jocagio de iméveis ou na compra de banus do Tesouro © pequeno aplica- dor, 0 poupador que nao quer que seu “dinheito fique parado” mas “dé cria” — como diz a linguagem popular -, pertence, portanto, ao grupo dos capi- talistas tanto quanto os grandes proprietarios, que costumam ser mais fa~ cilmente imaginados com essa designacio. Em sua extensao mais ampla, 0 grupo capitalista retine, pois, o conjunto dos detentores de um patriménio rentavel', grupo que constitui, porém, apenas uma minoria, desde que seja ultrapassado certo limiar de poupanga: embora isso Sela dificil calcular, em vista das estatisticas existentes, pode-se acreditar que ele representa apen’s 30% das familias na Franga, apesar de se tratar de um dos paises mais ricos “Jo mundo". Em escala mundial, essa porcentagem deve ser bem menor -alis- tuiu- aco s das egu- ara o mer- ona- Olios smo’. utili- wista xem- e fica saria- oem slica- cria” capi- is fa~ pla,o r6nio e seja em penas ricos vor. O espirito do capitalismo e 0 papel da critica Neste ensaio, porém, reservaremos prioritariamente a designagao de “capitalistas” aos principais atores responsaveis pela acumulagao e pelo crescimento do capital, aqueles que exercem pressao diretamente sobre as empresas para que estas produzam lucros maximos. Evidentemente, seu timero é muito mais reduzido. Seu grupo é formado nao s6 por grandes acionistas, pessoas fisicas capazes de influir sobre @ marcha dos negécios apenas em virtude de seu peso, mas também por pessoas juridicas (repre- sentadas por alguns individuos influentes ~ dirigentes empresariais de pri- meira plana) que possuem ou controlam, por meio de seus atos, as maiores parcelas do capital mundial (loldings e ‘multinacionais — inclusive bancarias ~ por meio de filiais e participacées, ou fundos de investimento, fundos de pensdo), Sendo eles grandes proprietarios, diretores assalariados de gran- des empresas, administradores de fundos ou grandes acionistas, sua in- duancia sobre 0 proceso capitalista, sobre as praticas emptesariais e sobre as taxas de lucros obtidas é indubitavel, diferentemente dos pequenos in- Nestidores mencionados acima. Mesmo formando uma populacao’ que apresenta grandes desigualdades patrimoniais, mas com uma situagao mé- ha muito favoravel, eles merecem o nome de capitalistas, uma ver que A sumem a responsabilidade de exigir a maximizacao de lucros e repassam essa exigéncia para as pessoas, fisicas ou juridicas, sobre as quais exercem poder de controle. Deixando de lado por ora a questo das injungies sisté- micas que pesam sobre o capitalista, deixando de indagar, em especial, se be diretores de empresa podem deixar de se submeter as regras do capita- Hemo, consideraremos apenas que se submetem, € que seus atos sao em grande parte guiados pela busca de luctos substanciais para seu proprio ca~ pital ou para o capital que Ihes é confiado’. Jambém caracterizaremos o capitalismo pelo trabalho assalariado. Marx, assirn como Weber, poe essa forma de organizagao do trabalho no centro de sua definiggo do capitalismo. Consideraremos 0 trabalho assalariado in- dependentemente das formas juridicas contratuais que ele pode assumir: 0_ que importa ¢ que uma parte da populacao que nao possui capital ou possuii em pequena quantidade, para a qual o sistema nao é naturalmel erentado, extrai tendimentos da venda de sua forca de tr balho (e nao da venda dos produtos de seu trabalho), pois nao dispoe de meios de produ- cdo ¢, pata trabalhar, depende das decisoes daqueles que os possuem (pois, _ te virtude do direito de propriedade, estes tltimos podem recusar-Ihe © uso de tais meios); enfim, que essa parcela Thes cede, no ambito da telacac salarial e em troca de remuneragao, todo o direito de propriedade sobre o re- sultado de seu esforgo, estando certo de que ele reverte totalmente para 0s Gonos do capital’. Uma segunda caracteristica importante do trabalho as- 37 38 O novo espirito do capitalismo salariado é que o trabalhador é teoricamente livre para recusar-se a traba- Ihar nas condicdes propostas pelo capitalista, assim como este tem a liber- dade de nao propor emprego nas condiges demandadas pelo trabalhador, de tal modo que essa relagao, embora desigual no sentido de que o traba- Ihador nao pode sobreviver muito tempo sem trabalhar, distingue-se mul- to do trabalho forcado ou da escravidao e sempre incorpora, por isso, cer- ta parcela de submissio voluntaria. © trabalho assalariado em escala francesa, assim como em escala mundial, nao parou de se desenvolver ao longo de toda a hist6ria do capi- talismo, de tal modo que hoje cle atinge uma porcentagem da populacéo ativa nunca antes atingida®. Por um lado, ele aos poucos substituiu 0 traba- Iho por conta propria, encabecado historicamente pela agricultura’; por ou tro lado, a prépria populacao ativa aumentou muito, devido ao ingresso das mulheres no trabalho assalariado, exercido por elas em ntimero crescente fora do lar”. A necessidade de um espirito para o capitalismo O capitalismo, sob muitos aspectos, é um sistema absurdo: os assalaria- dos perderam a propriedade do resultado de seu trabalho ¢ a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinacao. Quanto aos capitalistas, es~ to presos a um proceso infindavel e insacidvel, totalmente abstrato ¢ dis- sociado da satisfagdio de necessidades de consumo, mesmo que supérfluas. Para esses dois tipos de protagonistas, a insercéio no processo capitalista ca- rece de justificagdes. Ora, a acumulacao capitalista, embora ocorra em graus desiguais con- forme o caminho do lucro pelo qual se enverede (em maior grau, por exem- plo, para auferir beneficios industriais do que para obter lucros mercantis bu financeiros), exige a mobilizagao de um ntimero imenso de pessoas cujas chances de luicro so pequenas (especialmente quarido seu capital de par- tida é mediocre ou inexistente), e para cada uma delas é atribuida uma res~ ponsabilidade infima, em todo caso dificil de avaliar, no processo global de acumulagao, de tal modo que elas nao sao particularmente motivadas a empenhar-se nas praticas capitalistas, quando nao Ihes séo hostis. ‘Algumas pessoas poderio mencionar a motivacao material para a par- ticipacao, mais evidente, alias, para o assalariado que precisa de seu salario para viver do que para o grande proprietario cuja atividade, ultrapassado orto nivel, nao est mais ligada & satisfagao de necessidades pessoais. Mas essa motivagio, por si s6, mostra-se bem pouco estimulante. Os psicdlogos dot raga das pre; des cor cor cer to exi ce fis O espirito do capitalismo e o papel da critica do trabalho tém evidenciado com regularidade a insuficiéncia de remune~- racéio para provocar 0 empenho e agucar 0 entusiasmo no cumprimento das tarefas; 0 salério constitui, no maximo, um motivo para ficar num em- prego, mas nao para empenhat-se. Do mesmo modo, para que seja vencida a hostilidade ou a indiferenga desses atores, a coercao é insuficiente, sobretudo quando 0 empenho exi- gido pressupde adesao ativa, iniciativas e sacrificios livremente assumidos, como aquilo que, cada vez mais, se espera nao 86 dos executivos, mas do conjunto dos assalariados. Assim, a hipétese do “empenho forgado”, cres- cente diante da ameaga da fome e do desemprego, j4 nao nos parece mui- to realista. Pois, embora seja provavel que as fabricas “escravagistas” ainda existentes no mundo nao venham a desaparecer em futuro préximo, pare- ce dificil contar unicamente com essa forma de incentivo ao trabalho, no minimo porque a maioria dos novos modos de obter lucro e das novas pro- fissdes inventadas durante os tltimos trinta anos, que geram hoje uma par- te significativa dos lucros mundiais, enfatizou aquilo que em recursos hu- manos se chama de “envolvimento do pessoal”. A qualidade do compromisso que se pode esperar depende, antes, dos argumentos alegaveis para valorizar nao s6 os beneficios que a participagao nos processos capitalistas pode propiciar individualmente, como também as vantagens coletivas, definidas em termos de bem comum, com que ela contribui para todos. Chamamos de espitito do capitalismo a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo. ‘Atualmente, ele esta passando por uma grande crise, manifestada pela perplexidade e pelo ceticismo social crescente, de tal modo que a salva- guarda do processo de acumulagio, ameagado pelo estrangulamento de suas justificagdes numa argumentacdo minima em termos de submissdo neces- sdria as leis da economia, supde a formacao de um novo conjunto ideolé- gico mais mobilizador. Isso vale pelo menos para os paises desenvolvidos que, situados no centro do processo de acumulagao, esperam continuar sendo os principais fornecedores de pessoal qualificado, cujo envolvimen- to positivo necessario. O capitalismo precisa ter condides de dar a essas pessoas a garantia de uma seguranga minima em verdadeiros santuarios — onde é possivel viver, formar familia, criar filhos etc. -, tais como os bairros residenciais dos centros econdmicos do hemisfério norte, vitrines do suces- so do capitalismo para os adventicios das regides periféricas e, por isso mesmo, elemento crucial na mobilizagdo ideolégica mundial de todas as forcas produtivas. Em Max Weber, 0 “espitito do capitalismo”" remete ao conjunto dos mo- tivos éticos que, embora estranhos em sua finalidade & légica capitalista, 40 O novo espirito do capitalismo inspiram os empresarios em suas acdes favordveis & acumulacao do capi- tal. Em vista do cardter singular e até transgressivo dos modos de compor- tamento exigidos pelo capitalismo em relacao as formas de vida constata- das na maioria das sociedades humanas”, ele foi levado a defender a ideia de que a emergéncia do capitalismo supusera a instauragéo de uma nova relagao moral entre os homens e scu trabalho, determinada por uma voca- cao, de tal forma que cada um, independentemente de seu interesse e de suas qualidades intrinsecas, pudesse dedicar-se a ele com firmeza e regu- laridade. Segundo M. Weber, foi com a Reforma que se impés a crenca de que o dever é cumprido em primeiro lugar pelo exercicio de um oficio no mundo, nas atividades temporais, em oposicéo a vida religiosa fora do mun- do, privilegiada pelo éthos catdlico. Essa nova concepgaio, na aurora do ca- pitalismo, teria possibilitado esquivar-se 4 questo das finalidades do es- forgo no trabalho (enriquecimento sem fim) e assim superar 0 problema do empenho proposto pelas novas praticas econémicas. A concep¢ao do tra- balho como Beruf — vocacao religiosa que exige cumprimento ~ servia de ponto de apoio normativo para os comerciantes e os empreendedores do capitalismo nascente, dando-lhes boas raz6es ~ “motivagao psicolégica”, como diz M. Weber (1964, p. 108) — para entregar-se Sem descanso e cons- cienciosamente a sua tarefa, para empreender a racionalizacao implacdvel de seus negécios, indissociavelmente ligada a busca de um lucto maximo, para perseguirem o ganho, sinal de sucesso no cumprimento da vocacao". Ela também lhes servia porque os operérios compenetrados da mesma ideia mostravam-se déceis, trabalhadores incansdveis e — convencidos de que o homem deve cumprir seu dever onde quer que a providéncia 0 tenha co- locado ~ nao procuravam questionar a situacao que se Ihes oferecia Deixaremos de lado a importante controvérsia pés-weberiana, essencialmen- te relativa a questao da influéncia efetiva do protestantismo sobre o desen- volvimento do capitalismo e, de modo mais geral, das crencas religiosas so- bre as praticas econdmicas, para considerarmos, da posigo weberiana, sobre- tudo a ideia de que as pessoas precisam de poderosas:razées morais para aliar-se ao capitalism". Albert Hirschman (1980) reformula a indagagao weberiana (“como uma atividade no maximo tolerada pela moral péde transformar-se em vo- cacao no sentido de Benjamin Franklin”) da seguinte maneira: “Como ex- plicar que, em determinado momento da época moderna, se tenha chega- do a considerar honrosas atividades lucrativas como 0 comércio e o banco, ao passo que tinham sido reprovadas e amaldicoadas durante séculos, por nelas se ver a encarnagao da cupidez, do amor ao ganho e da avareza?” (p. 13). Mas, em vez de recorrer a méveis psicoldgicos ¢ & busca, por novas elites, de un vo ae sé& tifi Hi co tiv go hu de co qu ele as se br es pc qu ta ta to co te ta: Fr pe so ju cic de pe ur ci ric O espirito do capitatismo e 0 papel da critica um meio de garantir a sua salvagio pessoal, A. Hirschman menciona moti- vos que teriam, em primeiro lugar, afetado a esfera politica antes de tocar a economia. As atividades lucrativas teriam sido valorizadas pelas elites, no século XVII, devido as vantagens sociopoliticas que delas eram esperadas. Na interpretacao de A. Hirschman, 0 pensamento laico do Tuminismo jus- tifica as atividades lucrativas como um bem comum para a sociedade. A. Hirschman mostra também como a emergéncia de praticas em harmonia com 0 desenvolvimento do capitalismo foi interpretada como algo compa- tivel com o abrandamento dos costumes e 0 aperfeigoamento do modo de governo. Em vista da incapacidade da moral religiosa para coibir as paixdes humanas, da impoténcia da razdo para governar os homens e da dificuldade de submeter as paixdes por meio da pura repressao, restava a solugaéo que consistia em utilizar uma paixdo para compensar as outras. Assim, 0 lucro, que até entaio encabecava a ordem das desordens, obteve o privilégio de ser eleito paixdo inofensiva sobre a qual passou a recair 0 encargo de subjugar as paixGes ofensivas". : Os trabalhos de Weber insistiam na necessidade de o capitalismo apre- sentar razdes individuais, ao passo que os de Hirschman langam luzem so- bre as justificagdes em termos de bem comum. Quanto a nés, retomamos essas duas dimensées, inserindo 0 termo justificagéo numa acepgao. que possibilite abarcar ao mesmo tempo as justificacdes individuais (aquilo em que uma pessoa encontra motivos para empenhar-se na empresa capitalis- ta) © as justificagdes gerais (em que sentido 0 empenho na empresa capi- talista serve ao bem comum). ‘A questo das justificacdes morais do capitalismo nao é pertinente his- toricamente apenas para esclarecer suas origens ou, em nossos dias, para compreender melhor as modalidades de conversao ao capitalismo por par- te dos povos da periferia (paises em desenvolvimento e ex-paises socialis- tas). Ela também é de extrema importancia nos paises ocidentais como a Franca, cuja populacao se encontra integrada, em grau nunca igualado no passado, ao cosmos capitalista, De fato, as injungdes sistémicas que pesam sobre os atores nao bastam, por si sés, para suscitar 0 seu empenho". A in- jungdo deve ser interiorizada e justificada, e esse, alias, foi o papel que a so- ciologia tradicionalmente atribuiu a socializagao e as ideologias. Participan- do da reprodugao da ordem social, elas t¢m como efeito permitir que as pessoas nao achem insuportdvel o seu universo cotidiano, 0 que constitui uma das condigées para que um mundo seja duradouro. Se o capitalismo nao s6 sobreviveu — contrariando os prognésticos que regularmente anun- ciaram sua derrocada —, como também nao parou de ampliar o seu impé- rio, foi porque pode apoiar-se em certo ntimero de representagdes ~ capa- 41 42 O novo espirito do capitalismo ' zes de guiar a acao ~ e de justificagées compartilhadas, que o apresentam como ordem aceitavel e até desejavel, a tinica possivel, ou a melhor das or- dens possiveis. Essas justificagdes devem basear-se em argumentos sufi- cientemente robustos para serem aceitos como pacificos por um ntimero bastante grande de pessoas, de tal modo que seja possivel conter ou supe- rar o desespero ou 0 niilismo que a ordem capitalista também néo para de inspirar, nao s6 aos que sao por ela oprimidos, mas também, as vezes, aos que tém a incumbéncia de manté-la e de transmitir seus valores por meio da educagao. O espitito do capitalismo é justamente o conjunto de crengas associa- das & ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa or- dem, legitimando os modos de acao ¢ as disposic&es coerentes com ela. Es- sas justificacdes, sejam elas gerais ou praticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justica, dao respaldo ao cumpri- mento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, 4 adesdo a um estilo de vida, em sentido favoravel & ordem capitalista. Nesse caso, pode-se falar de ideologia dominante, contanto que se renuncie a ver nela apenas um subterfiigio dos dominadores para garantir 0 consentimento dos dominados e que se reconhega que a maioria dos participantes no pro- cesso, tanto os fortes como os fracos, apoia-se nos mesmos esquemas para representar 0 funcionamento, as vantagens e as seéividdes da ordem na qual esto mergulhados”. Se, na tradic¢ao weberiana, pusermos no cerne de nossas andlises as ideologias nas quais se baseia o capitalismo, daremos & nogo de espirito do capitalismo um uso discrepante em relacdo a Sétis usos canénicos. Isto porque, em Weber, a nogdo de espirito tem lugar numa andlise dos “tipos de condutas racionais praticas’, das “incitacdes praticas 4 ago” que, cons- titutivos de um novo éthos, possibilitaram a ruptura com as praticas tradi- cionais, a generalizagao da disposicao para o calculismo, a suspensao das condenagies morais ao lucro e a arrancada do processo de acumulagao ili- mitada. Como nao temos a ambicdo de explicar a génese do capitalismo, mas de compreender em que condigdes ele pode ainda hoje angariar os atores necessarios 4 formagao dos lucros, nossa dtica sera diferente. Deixa- remos de lado os posicionamentos perante o mundo necessérios & parti pao no capitalismo como cosmos ~ adequacio meios-fins, racionalidade pratica, aptidao para o cdlculo, autonomizagao das atividades econdmicas, relacdo instrumental com a natureza etc., bem como as justificagdes mais gerais do capitalismo, principalmente produzidas pela ciéncia econdmica, que mencionaremos adiante. Estas dizem respeito hoje — pelo menos entre 0s atores empresariais no mundo ocidental ~ 4s competéncias comuns que, nada en as paso at é bi ol ve ta ec cc la: O espirito do capitalismo e o papel da critica em harmonia com injungées institucionais que se impdem de algum modo de fora para dentro, sio constantemente reproduzidas por meio dos pro- cessos de socializac&o familiares e escolares. Constituem a base ideolégica a partir da qual se podem observar variagées histéricas, ainda que nao se possa excluir a possibilidade de que a transformacao do espirito do capita- lismo implique as vezes a metamorfose de alguns de seus aspectos mais duradouros. Nosso propésito é 0 estudo das variacoes observadas, e niio a des- crigo exaustiva de todos os constituintes do espirito do capitalismo. Isso nos le- vard a separar a categoria espirito do capitalismo dos contetidos substan- ciais, em termos de éthos, que estao ligados a ela em Weber, para traté-la como uma forma que pode ser preenchida de maneiras diversas em dife- rentes momentos da evolugo dos modos de organizacaio das empresas ¢ dos processos de obtengao de lucro capitalista. Poderemos assim procurar integrar num mesmo Ambito diversas expressdes histéricas do espirito do capitalismo e formular indagagdes sobre sua mudanga. Enfatizaremos 0. modo como deve ser tracada uma exist@ncia em harmonia com as exigén- ~ cias da acumulagao, para que grande ntimero de atores considere que vale a pena vivé-la. No entanto, ao longo desse percurso histérico, permaneceremos fiéis ao método do tipo ideal weberiano, sistematizando e ressaltando 0 que nos parece especifico de uma época em oposicao as épocas precedentes, dan- do mais importancia as variagdes que as constancias, mas sem ignorar as caracteristicas mais estaveis do capitalismo. Assim, a persisténcia do capitalismo, como modo de coordenacao dos atos e como mundo vivenciado, nao pode ser entendida sem a considera- géo das ideologias que, justificando-o ¢ conferindo-Ihe sentido, contri- buem para suscitar a boa vontade daqueles sobre os quais ele repousa, para obter seu engajamento, inclusive quando — como ocorre nos paises desen- volvidos — a ordem na qual eles estao inseridos parece basear-se quase to- talmente em dispositivos que lhe sao congruentes. De que é feito o esptrito do capitalismo Em se tratando de alinhar razées para pleitear em favor do capitalis- mo, logo se apresenta um candidato: nada mais, nada menos que a ciéncia econémica. Acaso nao foi na ciéncia econémica e, em particular, em suas correntes dominantes ~ classicas ¢ neoclassicas — que os responsdveis pe- las instituigdes do capitalismo foram buscar justificagdes, a partir da pri- meira metade do século XIX até nossos dias? A forca dos argumentos que 43 44 O novo espirito do capitalismo nela encontravam decorria precisamente do fato de que estes se apresen- tavam como nao ideolégicos e nao diretamente ditados por motivos mo- rais, ainda que incorporassem a referéncia a resultados finais globalmente conformes com um ideal de justica para os melhores e de bem-estar para a maioria. O desenvolvimento da ciéncia econémica, quer se trate da eco- nomia classica ou do marxismo, contribuiu — conforme mostrou L. Dumont (1977) ~ para erigir uma representacdo do mundo que era radicalmente nova em relagao ao pensamento tradicional e marcava “a separacao radical entre os aspectos econémicos do tecido social e sua construgéo em domi- nio auténomo” (p. 15). Essa concepgao permite dar corpo a crenga de que a economia constitui uma esfera auténoma, independente da ideologia e da moral, e que obedece a leis positivas, deixando-se de lado 0 fato de que mesmo essa conviccao ja era produto de um trabalho ideolégico, e que ela s6 pudera constituir-se incorporando ~ e depois encobrindo com o discurso cientifico — justificagdes segundo as quais as leis positivas da economia es- tao a servicgo do bem comum”. Especialmente a concepgao de que a busca do interesse individual ser- ve ao interesse geral foi objeto de um enorme trabalho, incessantemente retomado e aprofundado ao longo de toda a histéria da economia classica. Essa dissociagao entre moral e economia e a incorporagao 4 economia (no bojo desse processo) de uma moral consequencialista”, bageada no célcu- lo das utilidades, propiciaram caucdo moral as atividades econémicas pelo unico fato de serem lucrativas”. Se nos for permitido um resumo rapido, mas capaz de explicitar um pouco melhor o desentolar da historia das teo- rias econémicas que nos interessa aqui, pode-se dizer quéia incorporacao do utilitarismo a economia possibilitou considerar como ponto pacifico que “tudo o que é benéfico ao individuo é benéfico a sociedade. Por analogia, tudo o que engendra um lucro (portanto, serve para 0 capitalismo) tambem serve para a sociedade” (Heilbroner, 1985, p. 95). Nessa perspectiva, s6 0 crescimento das riquezas, seja qual for o seu beneficiario, é considerado cri- tério do bem comum”. Em seus usos cotidianos e nos discursos ptiblicos dos principais atores responsaveis pela exegese dos atos econdmicos — di- tigentes empresariais, politicos, jornalistas etc. — essa cartilha possibilita as- sociar, de maneira ao mesmo tempo estrita e suficientemente vaga, lucro individual (ou local) e beneficio global, para evitar a exigéncia de justifica- 40 das aces que concorrem para a acumulagdo. Ela considera ponto pa- cifico que 0 custo moral especifico (entregar-se a paixao do ganho), mas di- ficilmente quantificdvel, da instauragdo em uma sociedade aquisitiva (custo que ainda preocupava Adam Smith) é amplamente contrabalancado pelas vantagens quantificaveis (bens materiais, satide...) da acumulagao. Também O espirito do capitalism e 0 papel da. critica possibilita afirmar que 0 crescimento global de riquezas, seja qual for seu beneficidrio, é um critério de bem comum, conforme reflete cotidianamente ¢ fato de se mensurar a satide das empresas de determinado pais pela sua taxa de lucro, seu nivel de atividade e de crescimento como critério de me- dida do bem-estar social”. Esse imenso trabalho social realizado para ins~ taurar o progresso material individual como URN se Nao o - ctitério do bem-estar social permitiu que o capitalise conquistasse uma legitimida- de sem precedentes, pois assim se tornavam legitimos ao mesmo tempo seus propdsitos € seus médbeis. Os trabalhos da ciéncia econdmica também possibilitam afirmar que, entre duas organizacoes econdmicas diferentes orientadas para o bem-es- tar material, a organizagao capitalista ¢ a mals eficaz. A liberdade de em- preender e a propriedade privada dos meios de producao introduzem no sistema a concorréncia ou UM risco de concorréncia. Ora, esta, a partir do mo- mento em que existe, mesmo sem precisar ser pura ¢ perfeita, é 0 meio mais seguro para que os clientes sejam beneficiados pelo melhor servico a0 Me vor custo. Por isso, ermbora orientados para @ acumulacao do capital, 08 ca~ pitalistas se sentem obrigados a satisfazer 0S consumidores para atingit seus fins. 6 assim que, Por extensio, a empresa privada concorrencial con- finua sendo considerada mais eficaz eficiente do que a organizacao no jucrativa (mas isso tem o prego nao mencionado de transformar o amante* 7% de arte, 0 cidadao, o estudante, a crianga em relacao a seus professores, 0 beneficidtio da ajuda social... em consumidor), ea privatizagao e a mercan- tilizagdo maxima de todos os servigos mostram-se como as melhores solu- ces do ponto de vista social, pois veduzem desperdicio de recursos & obrigam a antecipar-se as expectativas dos clientes”. ‘aos topicos da utilidade, do bem-estar global e do progresso, mobili- zaveis de modo quase imutavel ha dois séculos, a justificagao em termos de vrcdcia ser igual na oferta bens ¢ servigos € preciso acrescentar, evidente- mente, a referencia aos poderes libertadores do capitalismo e a liberdade politica como efeito colateral da Iiberdade econdmica. Os tipos de argumen- to apresentados aqui fazem imencdo a libertacdo constituida pelo sistem salarial em comparacao com a servidao, a0 esP.aso de liberdade permitido pela propriedade privada ou mesmo ao fato de que, na época moderna, nunca existiram liberdades politicas, a nao ser de modo episddico, em ne- wnhum pafs franca e fundamentalmente anticapitalista, ainda que nem to- dos os paises capitalistas as conhegam*. videntemente, seria pouco realista N40 incluir no espirito do capita- tismo seus trés pilares justificativos fandamentais: progress material, efi- cacia e eficiéncia na satisfacao das necessidades, modo de organizagao so- 45 46 O novo espirito do capitalismo cial favoravel ao exercicio das liberdades econémicas e compativel com re- gimes politicos liberais. Mas, precisamente, por terem cardter muito genérico e serem estaveis no tempo, essas razdes™ nao nos parecem suficientes para engajar as pes~ soas comuns nas circunstancias concretas da vida, particularmente da vida no trabalho, tampouco para lhes dar recursos argumentativos que lhes per- mitam enfrentar as dentincias concretas ou as criticas que possam ser-Ihes pessoalmente enderecadas. Nao se pode afirmar que este ou aquele assala- riado se alegre realmente com o fato de que seu trabalho sirva para aumentar © PIB da nagao, possibilite a melhoria do bem-estar dos consumidores ou faca parte de um sistema que da espaco indubitavel a liberdade de em- preender, vender e comprar; isto porque, no minimo, ele a muito custo es- tabelece relagdes entre esses beneficios gerais e as condicdes de vida e tra- balho, dele e dos que lhe sao préximos. A nio ser que ele tenha enriquecido diretamente titando partido das possibilidades da livre empresa ~ 0 que s6 6 reservado a uma minoria - ou que, gracas ao trabalho livremente escolhi- do, tenha alcancado uma posicao financeira suficiente para aproveitar ple- namente as possibilidades de consumo oferecidas pelo capitalismo, faltam muitas mediacdes para que a proposta de engajamento passa alimentar sua imaginac4o” e encarnar-se nos feitos e atos da vida cotidiana. Em relagao aquilo que — parafraseando M. Weber ~ poderfamos chamar de capitalismo de catedra, que do alto repisa o dogma liberal, as expressdes do espirito do capitalismo que nos interessam aqui devem.ser incorporadas em descricdes suficientemente ricas e detalhadas, bem como comportar um ntimero suficiente de pontos de apoio para sensibilizar, como se diz, aque- les aos quais elas se dirigem, ou seja, pata ao mesmo tempo ir ao encontro de sua experiéncia moral da vida cotidiana e Ihes propor modelos de aco que eles possam adotar. Veremos como 0 discurso da gestéo empresarial, que pretende ser ao mesmo tempo formal e hist6rico, global e situado, mistu- rando preceitos gerais e exemplos paradigmaticos, constitui hoje a forma por exceléncia na qual 0 espitito do capitalismo é incorporadg e oferecido como algo que deve ser compartilhado. Esse discurso é dirigido prioritariamente aos executivos, cuja adesao ao capitalismo é especialmente indispensdvel para o funcionamento das em- presas e para a formacdo do lucro, mas cujo engajamento, em vista do alto nivel exigido, nao pode ser obtido pela coercao pura e simples; eles, menos submetidos as necessidades do que os operarios, podem opor resisténcia passiva, engajar-se com restrigdes e até minar a ordem capitalista critican- do-a de seu interior. Também existe 0 risco de que os filhos da burguesia, que constituem o viveiro quase natural de recrutamento desses quadros, deser-

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