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25/01/2023 12:06 Quatro Cinco Um: a revista dos livros - Gilmar de Carvalho, morto por Covid-19, escreveu obras

veu obras experimentais e destacou P…

Literatura brasileira (br/categorias/literatura-brasileira)

Tecer palavras
Gilmar de Carvalho, morto neste ano por Covid-19, escreveu obras
experimentais e destacou a grande arte de Patativa do Assaré

Dellano Rios
(br/autores/dellano-rios) 01jul2021 00h51 (01jul2021 08h11)

O escritor cearense Gilmar de Carvalho Francisco Sousa

Em seu chão, a morte de Gilmar de Carvalho foi seguida de um lamento alto. Estava
em Fortaleza, onde morou a maior parte da vida, quando no dia 17 de abril o corpo
terminou por sucumbir à doença. Contava 71 anos e por três semanas e meia esteve
internado. A Covid-19 havia interrompido os trabalhos de um novo livro e impediu
que outros sobre os quais já falava viessem à luz. Privacidade - Termos

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Gilmar era um intelectual consagrado, que não agia conforme a cartilha. Avesso ao
elogio fácil e à heráldica das glórias passadas, acessível a leitores e pesquisadores, ele
repelia o circuito oficioso dos vaidosos. Aos cinquenta anos, já afamado, viu o ritmo de
escrita e publicação se acelerar. Editou mais do que foi reeditado.

A notícia de sua morte foi seguida de um rumor mais antigo. Traduzia frustração e
indignação. O nome do escritor e sua obra receberam menos atenção do que deveriam
em outras partes do país e além-mar. O escritor não foi o único, e infelizmente não
será o último, a ficar de fora da universalidade do provincianismo alheio. Pesam a
geografia e a desigualdade do país, que também é cultural e de atenção dada às coisas
da cultura. A verdade é que, mesmo no Ceará, seria preciso que se conhecesse o
escritor mais além do sábio de sua aldeia que muitos viram nele. Gilmar foi o autor de
uma obra incomum e de uma literatura que nem sempre foi compreendida. Ele é lido
como um intelectual prolífico, um acadêmico dedicado a seu tempo, o professor
Gilmar de Carvalho da Universidade Federal do Ceará (UFC), disposto a descobrir e
fazer conhecer mais das tradições populares. Essa leitura não é incorreta, mas é
insuficiente.

Estreou como cronista e jornalista cultural ainda nos anos 60. As referências já
antecipavam uma lógica capaz de desvelar um panteão heterogêneo, em que a
diferença não determina exclusões. Clarice Lispector, Rubem Braga, Stanislaw Ponte
Preta. Chegou logo à ficção com Pluralia tantum (1973) e Parabélum (1977). O primeiro,
de narrativas curtas; o segundo, um romance. A crítica, atordoada, ou bateu ou
silenciou. Prosas experimentais, com ecos da contracultura, são livros que enlaçam
extremos. Marginal e erudito, novo e arcaico. O intelectual urbano intuía que as
mesmas contradições, por outras artes alquímicas, se materializavam nas tessituras da
tradição popular. Heranças ibéricas, mouras, do medievo francês, devoradas por
outras, tão antigas quanto elas. Caboclas, indígenas, negras.

Vanguarda
A obra-ponte entre o Gilmar da ficção experimental e o pensador da cultura popular é
Orixás do Ceará, texto para o teatro, encenado em 1974, em que as referências das
neovanguardas ainda vigentes dialogavam com o panteão afro-brasileiro dos terreiros
cearenses, então marginalizados mais agressivamente do que o são hoje. Negro, gay,
autor de uma literatura incômoda, criador de personagens que os bons modos
daqueles tempos de ditadura recomendavam que vivessem, se tanto, às escondidas,
Gilmar incomodou a Censura, foi chamado ao Departamento de Ordem Política e
Social (Dops) e perdeu empregos nos jornais. Viveu como publicitário enquanto
escrevia. É o que os escritores fazem.

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A recepção fria e por vezes hostil à sua ficção o levou a uma incursão sem volta pela
escrita do encontro, em que a tudo é dado o justo nome que possui. Um projeto
literário se iniciava. O que se lê, na fase não ficcional, é uma obra que parece
construir-se como uma rede. Fios se cruzam, se aproximam, se distanciam, lançam-se
uns sobre os outros. Assim como uma peça de renda, o que teceu o autor ao longo de
décadas, livro a livro, cria uma imagem maior, tem formas e um sentido estético. É,
também, arte.

Parágrafos curtos, frases bem urdidas e palavras escolhidas: tudo conferia à escrita de
Gilmar um tom a ecoar as vozes e as formas de narrar que por meio dela se faziam
ouvir. Ele soube reconhecer a riqueza dos saberes que escapam das pedagogias doutas.
 

A obra que deixou não é tímida e o faz ser comparado


a Mário de Andrade e Câmara Cascudo 

Gilmar tomou gosto pela estrada e pelos encontros que ela prometia já nos anos 70.
Adentrou o Ceará e outros estados do Nordeste. As andanças se intensificaram em seu
período como professor  da UFC (1984-2010). Foi assim que viu a grande arte em
criadores como o poeta Patativa do Assaré, o mestre coureiro Espedito Seleiro, a
rainha dos vaqueiros Dina e mais de uma centena de rabequeiros.

A obra que assim deixou não é tímida e, com justiça, o faz ser comparado a Mário de
Andrade e Câmara Cascudo. Há, contudo, bordados de sua escrita que vão além desse
escritor que buscava experiências e encontros, sempre a planejar novas viagens e
livros de tudo o que trazia delas.

Em Madeira matriz (1998), livro sobre a xilogravura, feito de sua tese na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), experimenta com ideias e formatos.
Parte da tradição e aprende com ela. Sabe que a cultura que não se move é artefato de
museu, de um conceito de museu também já superado. A tradição vive quando se
transforma. Mudar não é prerrogativa das vanguardas urbanas, das artes letradas e
institucionalizadas. “É como se fosse um único texto que a gente escreve a vida inteira
a partir de angulações, de ênfases”, comparou Gilmar em uma entrevista sobre sua
obra.

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Leia também: Diante dos óbitos causados pela pandemia de Covid-19, poemas de João Cabral
problematizam a separação entre vida e morte
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura-brasileira/e-o-cemiterio)

Quando adoeceu, do hospital escreveu bilhetes, e-mails e mensagens em aplicativos:


“Estou cumprindo o protocolo contra a Covid. Bom atendimento, povo atencioso.
Espero logo estar de volta ao convívio dos amigos”.  

A vida dos santos, sabia Gilmar, o estudioso de Padre Cícero, é contada a partir de seu
desfecho. Encontram-se sinais, anunciações e significações onde antes só havia a
confusão da vida ordinária. É difícil não ler, em sua última incursão pela escrita e pela
edição, pequenos acenos de Gilmar para a vida e da vida para Gilmar.

Habituado a trabalhar em vários livros simultaneamente, o escritor elegera um único


projeto a que se dedicar durante o isolamento na pandemia. O tema foi aquele ao qual
retornou mais vezes: a literatura de cordel. Consultou 60 mil folhetos para remontar
as histórias dos cordelistas e desse gênero poético no Ceará desde suas origens, no
século 19, até o presente.

Leia também: Carlos Sussekind levou a literatura ao limite em ‘Armadilha para Lamartine’
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/critica-cultural/o-genio-da-delicadeza)

Originalmente o livro se chamaria Poéticas da voz: aboios, benditos, cantoria, cordel,


emboladas, loas, saraus, torém, trovas e chegou a ter mais de seiscentas páginas. A versão
final contava 336. O título reescrito parece querer dar conta de um trabalho definitivo,
como um ponto-final. Se chamará apenas Cordel. Para fechá-lo, Gilmar esperava
conseguir duas capas de folhetos pertencentes a acervos de instituições. A morte
chegou antes.

Cordel ainda chegará aos leitores, por dedicação de amigos do escritor. As capas dos
folhetos que ele procurava não foram localizadas. A ausência marcará o livro. Será o
testemunho de uma obra interrompida, não fossem o acaso da pandemia e o descaso
genocida que a catalisou.

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Leia também: Há uma arte tão difícil quanto a de perder: a de sobreviver às perdas
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/critica-cultural/perder-um-amigo)

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Cultural.


Veja todo o conteúdo da edição #47 (br/current_new/47)

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