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PROCESSO Nº 288/11.

1 GBVNG – 2º JUÍZO CRIMINAL


CONCLUSÃO
EM 25/03/2014

1. RELATÓRIO:
O Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum e perante
Tribunal Singular, para aplicação de medida de segurança, nos termos do art. 91º do Código Penal,
de:
MARIA XXXXXX, doméstica, divorciada, nascida a XXXX, na freguesia de São Félix da
Marinha, concelho de Vila Nova de Gaia, filha de XXXXX, residente na Rua XXXX, Vila
Nova de Gaia, titular do BI nº XXXX, emitido em XXXX, pelo Estado Português,
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um facto
ilícito típico de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, nº 1 do
Código Penal, devendo a mesma ser declarada inimputável, nos termos do art. 20º, nº
1 do mesmo diploma legal e, nessa sequência, ser-lhe aplicada uma medida de
segurança, dada a sua manifesta perigosidade e o temor de que venha a cometer, no
futuro, outros factos da mesma espécie.
*
A arguida, notificada nos termos e para os efeitos do art. 315º do CPP, não apresentou
contestação.
*
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Mantém-se válida e regular a instância, e o processo isento de nulidades, excepções ou
questões que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO:
2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
1. No dia 4 de Abril de 2011, cerca das 21 horas e 45 minutos, os militares da GNR dos
Carvalhos, JOSÉ XXXX e ANDRÉ XXXX, no exercício das suas funções e devidamente
uniformizados, deslocaram-se à Rua de São Bento, na freguesia de Pedroso, nesta
cidade, com vista a darem cumprimento a um mandado de condução e internamento
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relativo à arguida MARIA XXXXXX, mandado esse emitido pela delegada de saúde que à
data exercia funções no “ACES” Espinho/Gaia;
2. Aí chegados, o cabo da GNR JOSÉ XXXX abordou a arguida quando a mesma saía do
interior do seu veículo automóvel, informando-a do motivo de tal abordagem;
3. Nesse momento, a arguida voltou a introduzir-se no veículo, fechando a porta do
mesmo;
4. Perante o sucedido, o referido cabo JOSÉ XXXX abriu a porta do veículo e, quando se
preparava para dele a retirar, a arguida desferiu-lhe diversos pontapés em partes
dispersas do corpo, posto o que se deitou sobre os bancos, pegou na faca apreendida nos
autos e com a mesma tentou atingi-lo;
5. Entretanto, o guarda ANDRÉ XXXX abeirou-se do veículo, abriu a porta dianteira direita
do mesmo, agarrou a arguida e empurrou-a para fora;
6. Já no exterior e porque o cabo JOSÉ XXXX não se aproximou de si pelo facto de deter a
referida faca, a arguida aproveitou para se colocar em fuga;
7. Os ofendidos foram no seu encalço e vieram a alcançá-la;
8. Quando se preparavam para a algemar, a arguida tentou ferrar-lhes e desferiu com a faca
três golpes nas costas do guarda ANDRÉ XXXX, atingindo-o nessa parte do corpo com a
lâmina da mesma;
9. Em consequência de tais agressões sofreram:
- o ofendido JOSÉ XXXX lesões, designadamente fenómenos dolorosos na articulação
interfalângica distal do 3º dedo da mão direita, com as alterações atmosféricas, as quais
foram causa directa e necessária de sete dias de doença, sem afectação da capacidade
para o trabalho geral e com afectação da capacidade para o trabalho profissional;
- o ofendido ANDRÉ XXXX lesões, designadamente na ráquis, no dorso, na região
interescapular, três escoriações com crosta cicatricial, a maior das quais com um por
meio centímetro de maiores dimensões, as quais foram causa directa e necessária de dez
dias de doença sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional;
10.Ao agir da forma descrita, a arguida fê-lo com o propósito de, através da violência
física, impedir os referidos agentes de autoridade de praticarem as suas funções de
cumprimento de um mandado de condução e internamento, bem sabendo que os
mesmos eram militares da GNR e que se encontravam no exercício das suas funções;
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11.A arguida foi internada compulsivamente no dia 4 de Abril de 2011, sendo tal
internamento judicialmente confirmado no processo de internamento compulsivo nº
3283/11.7 TBVNG do 4º Juízo Criminal deste Tribunal, no âmbito do qual permaneceu
internada compulsivamente, desde 4 de Abril de 2011 até 5 de Agosto de 2011, data em
que passou a regime ambulatório compulsivo;
12.De acordo com o relatório do exame pericial às suas faculdades mentais realizado nos
presentes autos, apurou-se que a arguida, à data dos factos, padecia de psicose delirante
crónica e que, em razão de tal anomalia psíquica grave, estava, a essa data,
descompensada e incapaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de
acordo com essa avaliação, sendo considerada inimputável, para a prática dos mesmos;
13.O facto de manter actividade delirante produtiva torna-a perigosa, existindo fundado
receio de que a mesma venha a cometer outros factos da mesma natureza dos supra
descritos, sendo clinicamente imprescindível que a mesma receba tratamento
psiquiátrico continuado, se necessário de forma compulsiva;
14.A arguida, a quarta dos sete filhos do casal, descende de uma família de modesta
condição socioeconómica e cultural, sendo que o pai era agricultor e
criador/comerciante de animais, à semelhança de actualmente, e a mãe era doméstica;
15.Não estiveram presentes privações de ordem essencial, ao nível económico, para além
de terem estado presentes práticas educativas assentes na supervisão parental e na
veiculação de regras e valores socialmente aceites;
16.Ao nível familiar e afectivo, o processo de desenvolvimento da arguida e irmãos ficou
irremediavelmente marcado pelo precoce falecimento da progenitora, vitimada por um
acidente de viação quando contava com cerca de trinta e cinco anos de idade;
17.Após, o progenitor contratou uma empregada tendo em vista a gestão doméstica e o
acompanhamento dos menores, no que aquela seria coadjuvada pela irmã mais velha da
arguida, a qual foi levada a abandonar o sistema de ensino com tal objectivo;
18.Volvidos cerca de quatro/cinco anos, o progenitor encetou vivência em comum com a
actual companheira, de quem teve outro descendente;
19.A condução do processo educativo dos menores seria então privilegiadamente assumida
por aquela;

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20.O percurso escolar da arguida, iniciado na idade regulamentar, ficou marcado por três
retenções no 1º ano de escolaridade, atribuídas pela própria às dificuldades registadas ao
nível da leitura;
21.Apreciava a actividade escolar, contexto onde nunca apresentou problemas de
comportamento, e concluiu apenas o 4º ano de escolaridade pelo facto de o progenitor
não valorizar a continuidade da actividade em causa;
22.Sensivelmente em 2010, e através do IEFP, frequentou, com êxito, um curso de
formação profissional na área da jardinagem, com a duração de um ano e equivalência
ao 6º ano de escolaridade;
23.Ao nível profissional, começou por exercer actividade na área da tapeçaria (arraiolos),
sem vínculo contratual e ao longo de cerca de dois anos;
24.Em seguida, ingressou numa fábrica de cortiça, enquanto operadora de máquinas, tendo
cumprido dois contratos de trabalho, com a duração de seis meses cada;
25.O abandono da actividade decorreu da alegada saturação experienciada pela arguida;
26.Idênticas razões terão estado na origem do abandono das actividades subsequentes,
enquanto recepcionista de uma firma de colocação de tacos, onde trabalhou durante seis
meses e sem vínculo contratual, e ainda enquanto ajudante de cozinha, num restaurante,
onde terá trabalhado durante cerca de dois anos e com vínculo contratual;
27.Em seguida, passou a exercer actividade enquanto empregada doméstica interna,
actividade que manteve durante cerca de dez anos;
28.Posteriormente, e já casada, trabalhou numa fábrica de cerâmica, como operária e
durante cerca de meio ano;
29.Nos últimos anos, e em regime irregular, tem prestado alguma colaboração a um irmão,
ao nível da comercialização de produtos alimentares, ao domicílio e em diferentes
regiões do país;
30.Após a separação conjugal, e através da Junta de Freguesia de Pedroso, esteve inserida
num Programa Ocupacional, no âmbito do qual exerceu actividade na área das limpezas,
durante um ano;
31.Contraiu matrimónio por volta dos vinte e três anos de idade, união da qual possui um
descendente, de doze anos de idade, o qual, há alguns anos e decorrente da problemática

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de saúde mental da progenitora, foi alvo de acolhimento familiar, situação que se
mantém, sendo que o menor efectua visitas regulares ao pai;
32.A separação conjugal ocorreu volvidos cerca de quatro anos sobre o matrimónio, o qual,
numa fase inicial, ficou alegadamente marcado por episódios de violência doméstica
(verbal e física, infligida sobre a arguida), sendo que o casal residia num apartamento
adquirido pelo mesmo, em Lourosa;
33.Os familiares reconhecem alterações comportamentais à arguida, que tendem a
desvalorizar, somente alguns anos após o matrimónio, com agravamento significativo
após a retirada do seu filho, circunstância que aquela tem vivenciado com bastante
pesar, e que de algum modo tem procurado minimizar através de contactos pontuais que
procura levar a efeito semanalmente, no contexto escolar;
34.Encontra-se em fase de avaliação/ponderação por parte das entidades competentes, a
eventual reaproximação entre mãe e filho;
35.À data dos factos descritos na acusação, a arguida residia na Rua de S. Bento, nº 1354,
Pedroso, Vila Nova de Gaia, correspondente ao domicílio do progenitor, sendo que
aquela habitava sozinha nuns anexos da habitação, alegadamente com razoáveis
condições de habitabilidade, inserida em zona periférica desta cidade e dissociada de
fenómenos particulares de marginalidade;
36.A sua subsistência era totalmente assegurada pelo progenitor, o qual assumia todos os
encargos domésticos, nomeadamente os inerentes ao fornecimento de água e luz, para
além da aquisição de bens alimentares;
37.A arguida era beneficiária da prestação do Rendimento Social de Inserção;
38.Ao nível profissional, encontrava-se inactiva, referindo dedicar-se à supra referida
comercialização de bens alimentares, ao domicílio e em colaboração com o irmão, ou
ainda individualmente e com recurso à sua própria viatura;
39.Segundo alguns familiares, a arguida vivenciava, neste período, particular afectação das
suas capacidades mentais, sem manter qualquer acompanhamento clínico, ao qual não
aderia;
40.O seu quotidiano não comportava qualquer estruturação;

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41.Uma vez determinado o seu internamento compulsivo, este último teve lugar de
04/04/2011 a 05/08/2011, altura em que tal foi substituído por regime ambulatório
compulsivo, após o que reintegrou o agregado familiar do progenitor;
42.Sensivelmente em Setembro de 2011, encetou vivência em comum com o actual
companheiro, com cinquenta e sete anos de idade e divorciado, habitando
exclusivamente com o mesmo, num apartamento adquirido pelo próprio como recurso a
crédito bancário e com localização na periferia desta cidade, em zona próxima da orla
marítima;
43.No meio residencial, a arguida e companheiro mantêm uma inserção descrita como
ajustada, não sendo associados a comportamentos problemáticos;
44.A dinâmica relacional/conjugal é descrita como estável e gratificante;
45.Ao nível económico, a situação do agregado foi descrita como precária, tendo por base
o salário auferido pelo companheiro, no valor mensal de € 432,00, o qual se encontra
parcialmente penhorado, operário numa fábrica têxtil, e a pensão de invalidez atribuída
à arguida, no valor mensal de € 215,09;
46.Actualmente, o quotidiano desta última surge estruturado em função das tarefas
domésticas, para além do convívio com o companheiro e alguns familiares,
nomeadamente com o filho daquele;
47.Os familiares da arguida manifestam-se preocupados com a presente situação jurídico-
penal e totalmente disponíveis para continuarem a prestar suporte à mesma, qualquer
que seja o desfecho do presente processo;
48.Não obstante, e exceptuando o caso da irmã mais velha, entende-se que aquela não tem
cultivado o contacto/convívio com a maioria dos familiares, incluindo o progenitor,
mostrando-se bastante reservada;
49.Ao nível clínico tem vindo a dar continuidade ao acompanhamento psiquiátrico mantido
no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, cumprindo quer com o regime de consultas,
quer com a medicação prescrita, no que tem sido proximamente apoiada/orientada pelo
companheiro, que controla as respectivas tomas, o qual afirma estar disponível para
assim continuar a proceder, de modo a garantir o cumprimento integral do tratamento
por parte da arguida;

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50.A arguida desloca-se quinzenalmente ao referido Centro Hospitalar, no sentido de lhe
ser administrada alguma da medicação prescrita (Haldol);
51.A arguida cumpre, actualmente e no âmbito de outros processos, duas medidas de
suspensão de execução do internamento em estabelecimento de tratamento adequado,
relativamente às quais tem revelado adequados níveis gerais de adesão/colaboração;
52.A arguida vivencia a sua constituição como arguida no presente processo, com
sentimentos de preocupação, ansiedade e receio;
53.Em abstracto, e no que concerne à natureza dos factos subjacentes ao presente processo,
verbaliza juízo de censura sobre a ilicitude dos mesmos, sabendo identificar práticas ou
actos enquadrados naquela tipologia do crime, reconhecendo ainda a existência de
vítimas, bem como os danos provocados nas mesmas;
54.Revela posicionamento crítico perante os factos pelos quais se encontra acusada,
contextualizando os mesmos ao período de desorganização mental inerente, quadro
vivencial que entende vir procurando ultrapassar através do acompanhamento clínico
mantido;
55.O processo de socialização da arguida, com lugar em ambiente familiar descrito como
pautado pela transmissão de valores e normas socialmente ajustadas, parece ter ficado
marcado pelo falecimento precoce da progenitora e por patologia de saúde mental da
arguida, a qual terá estado nomeadamente na origem do respectivo divórcio;
56.Actualmente, e desde o internamento compulsivo de que foi alvo de Abril a Agosto de
2011, a arguida regista maior regularidade ao nível da sua estabilização psiquiátrica,
com acompanhamento e terapêutica medicamentosa adequada ao seu estado clínico e
por parte das estruturas de saúde competentes;
57.A estabilidade registada ao nível familiar, habitacional e social tem contribuído para
maior estabilidade emocional da arguida, o que se afigura como susceptível de
promover a adopção de um comportamento que se deseja socialmente ajustado;
58.Constam do Certificado de Registo Criminal da arguida, junto aos autos, as seguintes
condenações:
 Uma condenação proferida, em 03/10/2007, transitada em julgado em
23/10/2007, no processo comum singular nº 231/06.0 GDVFR do 4º Juízo
Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na pena de 40 dias de
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multa, à taxa diária de € 4,00, pela prática, em 05/11/2005, de um crime de
injúria, a qual foi declarada extinta pelo pagamento por despacho de 14/05/2008;
 Uma condenação proferida, em 12/03/2008, transitada em julgado em
21/02/2012, no processo comum singular nº 19/05.5 GBVFR do 1º Juízo
Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, na pena única de 200 dias
de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em 23/12/2004, de um crime de
ameaça, e, em 11/01/2005, de um crime de ofensa à integridade física simples, a
qual foi declarada extinta pelo pagamento por despacho de 11/07/2013;
 Uma condenação proferida, em 07/11/2012, transitada em julgado em
02/05/2013, no processo comum singular nº 7091/09.7 TAVNG do 4º Juízo
Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na medida de segurança de
internamento pelo período de 2 anos, suspensa na sua execução pelo período de
2 anos, ficando aquela colocada sob a vigilância tutelar dos serviços de
reinserção social, pela prática, em 30/08/2009, de um crime de ameaça agravada;
 Uma condenação proferida, em 03/07/2013, transitada em julgado em
18/09/2013, no processo comum singular nº 556/11.2 PAVNG do 1º Juízo
Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na medida de segurança de
internamento até ao prazo máximo de 3 anos, suspensa na sua execução, sob a
condição de se submeter a tratamento de cura em regime ambulatório apropriado
e de ser colocada sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social, pela
prática, em 22/03/2011, de um crime de ofensa à integridade física simples.
*
2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
1. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4, quando o cabo JOSÉ XXXX se
preparava para retirar a arguida do interior do veículo, aquela agarrou-lhe a mão direita
e torceu-lhe o respectivo pulso;
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 8, quando os militares da GNR se
preparavam para algemar a arguida, esta deu-lhes vários pontapés e murros em partes
dispersas do corpo.
*
2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
8
O Tribunal fundamentou a sua convicção, quanto aos factos constantes da acusação e
considerados como provados, na conjugação dos depoimentos das testemunhas JOSÉ XXXX e
ANDRÉ XXXX – que depuseram de forma pormenorizada, objectiva e coerente entre si e com os
elementos objectivos de prova, razão pela mereceram credibilidade –, com a análise dos
documentos juntos aos autos, designadamente, a fls. 6 (mandado de condução da arguida ao abrigo
da Lei de Saúde Mental), 7 (relatório do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de
Gaia referente ao ofendido ANDRÉ XXXX), 10 (auto de apreensão), 11 a 13 (fotografias), 32 a 34
(documentação clínica referente ao ofendido ANDRÉ XXXX), 50 a 63 (cópia do processo de
internamento compulsivo nº 743/10.0 TBVNG do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila
Nova de Gaia), 67 a 72 (documentação clínica referente ao ofendido JOSÉ XXXX), 73 a 75
(relatório do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia referente ao ofendido
JOSÉ XXXX), 129 (informação clínica referente à arguida), 168 a 181 e 188 a 206 (certidões
extraídas do processo comum singular nº 556/11.2 PAVNG do 1º Juízo Criminal do Tribunal
Judicial de Vila Nova de Gaia), nos relatórios dos exames periciais de fls. 24 a 25, 94 a 96
(referente ao ofendido JOSÉ XXXX), 27 a 28, 37 a 39 (referente ao ofendido ANDRÉ XXXX) e 150 a
152 (relatório de perícia médico-legal de psiquiatria referente à arguida), e nas regras da
normalidade e da experiência comum.
A testemunha JOSÉ XXXX, cabo da GNR, começou por referir que em data que não
consegue precisar, mas que se terá situado em Maio ou Junho de 2011, à noite, estava de patrulha
às ocorrências, acompanhado de dois colegas, entre os quais, o militar ANDRÉ XXXX, devidamente
fardados, e tinha na sua posse um mandado de condução da arguida emitido ao abrigo da Lei de
Saúde Mental, que estava a tentar cumprir há vários dias, mas que ainda não lograra cumprir, uma
vez que aquela se fechava dentro de casa. Esclareceu que naquele dia recebeu a informação de que
a arguida estava a circular ao volante de um automóvel na Nacional 1, tendo-a seguido à distância,
no carro patrulha, até à sua residência, até que a mesma parou o automóvel e saiu do seu interior,
para abrir o portão, momento em que saiu da viatura policial e se aproximou da mesma, pedindo-
lhe para conversarem, altura em que a arguida se meteu novamente dentro do carro, deitando-se de
costas nos bancos da frente. Mais referiu que entrou também na referida viatura para a puxar para
o exterior, altura em que a arguida abriu o porta-luvas e retirou uma faca, com a qual o tentou a
esfaquear no peito, apenas não o tendo conseguido porque se desviou, tendo igualmente lhe
desferido pontapés no corpo. Disse ainda que se viu obrigado a sair do veículo e disse alto, para
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que os colegas ouvissem, que a arguida tinha uma faca na mão (pensa que o colega ANDRÉ XXXX
não terá ouvido), após o que esta saiu também do veículo e tentou fugir, altura em que foi agarrada
pelo militar ANDRÉ XXXX, tendo ele também auxiliado o colega, acabando por a imobilizar, deitar
no chão, onde a algemaram, sendo que durante todo este processo a arguida debateu-se
fisicamente. Mais referiu que, entretanto, viu que o seu colega ANDRÉ XXXX tinha três feridas nas
costas, provocadas pela faca que a arguida tinha tido na sua posse, sendo que ele ficou apenas
aleijado num dedo quando a estava a algemar.
A testemunha ANDRÉ XXXX, militar da GNR, começou por referir que em data que não
consegue precisar, estava de patrulha, juntamente com dois colegas, entre os quais a testemunha
anterior, que era o comandante da referida patrulha, quando receberam a informação de que a
arguida estava a circular ao volante de um automóvel na Nacional 1, sendo certo que tinham um
mandado de condução da mesma, emitido ao abrigo da Lei de Saúde Mental. Mais referiu que a
seguiram, num carro caracterizado, até à porta de sua casa, sita na Rua de São Bento, em Vila
Nova de Gaia, momento em que aquela saiu da viatura para abrir um portão. Esclareceu ainda que
neste momento o seu colega JOSÉ XXXX saiu do carro patrulha e dirigiu-se à arguida, a qual fugiu
imediatamente para dentro do seu carro, tendo-se apercebido de que o cabo JOSÉ XXXX entrou
também na viatura na tentativa de deter a arguida, altura em que viu aquela a desferir-lhe pontapés,
após o que este saiu do veículo. Mais referiu que neste momento ele saiu do carro patrulha, abriu a
porta do passageiro da viatura da arguida e empurrou-a para o exterior, altura em que aquela
começou a fugir, tendo ido no encalço da mesma e a agarrado de frente, altura em que ela
conseguiu ficar com um braço solto (nesse momento não viu a faca, mas supõe que tenha sido
nessa altura que o conseguiu magoar com a mesma), após o que a deitou no chão e com a ajuda
dos colegas a imobilizou e a algemou. Disse ainda que durante este processo a arguida gritou,
esbracejou e tentou mordê-los, na tentativa de evitar ser detida, o que obviamente não conseguiu,
acabando a mesma por ser conduzida ao Hospital de São João. Mais referiu que quando acabaram
de algemar a arguida, os colegas lhe disseram que tinha sangue nas costas, tendo constatado que
tinha três furos pequenos, que foram suturados com três pontos.
As declarações da arguida MARIA XXXX – que se limitou a afirmar que agrediu os guardas
da GNR com uma faca porque estava com a mesma na mão, dado estar a comer uma maça, e por
pensar que os mesmos eram ladrões e a iam assaltar – não mereceram qualquer credibilidade,
porquanto foram contraditórias com os depoimentos das testemunhas JOSÉ XXXX e ANDRÉ XXXX
10
(que mereceram a credibilidade do tribunal pelos motivos acima explanados) e com as regras da
normalidade e da experiência comum (não é credível que a arguida não se tenha apercebido que os
ofendidos eram militares da GNR, uma vez que estavam fardados e faziam-se transportar num
carro patrulha).
*
Considerando que as declarações da arguida e os depoimentos testemunhais se encontram
documentados nos termos legais, o Tribunal dispensa-se de fazer uma análise mais exaustiva
acerca do que foi referido em audiência de julgamento.
*
Após a produção da prova, sobretudo, conjugando os depoimentos das testemunhas JOSÉ
XXXX e ANDRÉ XXXX, com a análise dos documentos juntos aos autos, com os relatórios periciais
(perícias médico-legais e perícia psiquiátrica), o Tribunal ficou convencido, sem qualquer dúvida1,
que no dia 4 de Abril de 2011, cerca das 21 horas e 45 minutos, os militares da GNR dos
Carvalhos, JOSÉ XXXX e ANDRÉ XXXX, no exercício das suas funções e devidamente
uniformizados, deslocaram-se à Rua de São Bento, na freguesia de Pedroso, nesta cidade, com
vista a darem cumprimento a um mandado de condução e internamento relativo à arguida MARIA
XXXXXX – a qual padecia de psicose delirante crónica (e que, em razão de tal anomalia psíquica
grave, estava, a essa data, descompensada e incapaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se
determinar de acordo com essa avaliação, sendo considerada inimputável, para a prática dos
mesmos). Aí chegados, o cabo da GNR JOSÉ XXXX abordou a arguida quando a mesma saía do
interior do seu veículo automóvel, informando-a do motivo de tal abordagem, momento em que a
arguida voltou a introduzir-se no veículo, altura em que quando o referido cabo se preparava para
dele a retirar, a arguida desferiu-lhe diversos pontapés em partes dispersas do corpo, posto o que se
deitou sobre os bancos, pegou na faca apreendida nos autos e com a mesma tentou atingi-lo, após o
que o guarda ANDRÉ XXXX abeirou-se do veículo, abriu a porta dianteira direita do mesmo,

1
Como se refere no Acórdão do STJ de 08/11/2007, no processo nº 11080031645, «a prova, mais do que uma
demonstração racional é um esforço de razoabilidade: no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do
investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente
situados num qualquer presente, procuram reconstruir algo que se passou antes e que não é reprodutível. Donde que
não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a
chamada dúvida razoável. (…) Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo
que exigir o impossível (…). A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva,
uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção
do tribunal.», disponível in www.dgsi.jstj.
11
agarrou a arguida e empurrou-a para fora do mesmo. Já no exterior a arguida aproveitou para se
colocar em fuga, tendo os militares ido no seu encalço e acabado por a agarrar, sendo que quando
se preparavam para a algemar, a arguida tentou ferrar-lhes e desferiu com a faca três golpes nas
costas do guarda ANDRÉ XXXX, atingindo-o nessa parte do corpo com a lâmina da mesma. E ainda
que a arguida agiu com o propósito de, através da violência física, impedir os referidos agentes de
autoridade de praticarem as suas funções de cumprimento de um mandado de condução e
internamento, bem sabendo que os mesmos eram militares da GNR e que se encontravam no
exercício das suas funções.
*
No que concerne às condições clínicas, sociais e económicas actuais da arguida, o Tribunal
assentou a sua convicção nas suas declarações e no relatório social elaborado pela DGRS junto a
fls. 246 a 251 dos autos.
Quanto aos factos referidos no ponto 58, os mesmos resultam do Certificado de Registo
Criminal da arguida, junto a fls. 239 a 245 dos autos.
*
Quanto à matéria constante do ponto 2.2., o Tribunal decidiu dessa forma em virtude de em
relação aos mesmos não ter sido produzida prova (designadamente, porque as testemunhas JOSÉ
ALEXANDRE RODRIGUES DOS SANTOS ATAÍDE e ANDRÉ FILIPE BASTOS RODRIGUES, não os
referiram).
*
2.4. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA:
2.4.1. ENQUADRAMENTO JURIDICO-PENAL:
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Vem a arguida MARIA XXXXXX acusada de factos que objectivamente considerados
constituem a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º,
nº 1 do Código Penal.
Preceitua o art. 347º, no seu nº 1, que: «Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou
ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de
segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger
a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com
pena de prisão até cinco anos».

12
O bem jurídico é a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do
exterior da administração pública, ou seja, pretende-se evitar que não-funcionários ponham
entraves à livre execução das intenções estaduais, tornando-as ineficazes2. Só mediatamente se
protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade
individual funcional.
São seus elementos constitutivos: a) o emprego de actos de violência ou ameaça grave; b)
contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança; c) com a
finalidade de se opor à prática de acto relativo ao exercício das suas funções ou para constranger à
prática de acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres3.
No que ao sujeito activo diz respeito, trata-se de um crime comum (o agente que comete o
crime pode ser qualquer pessoa), sendo que sujeito passivo há-de ser funcionário ou membro das
Forças Armadas, militarizadas ou de segurança. Aqui existe equiparação entre a resistência
coactiva exercida sobre um elemento da força pública em funções e a que é oposta a um
funcionário civil ou agente administrativo em idênticas circunstâncias, uma vez que todos
procuram levar à prática uma intenção estadual e deparam com entraves postos pelos destinatários
dessas acções.
Os meios utilizados são a violência ou ameaça grave e devem ser, no essencial, definidos
nos mesmos termos em que o são no âmbito do crime de coacção.
Em termos genéricos, podemos dizer que se entende por violência todo o acto de força ou
hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas
ou de segurança, e existe ameaça grave em todos os casos em que a acção afecte a segurança e
tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado
pretendido.

2
Neste sentido, cf. Acórdão do STJ de 28/04/1999, proferido no processo nº 1426/98, em que se afirma «Da própria
inserção sistemática do art. 347º do CP, conjugada com o seu teor, resulta que o bem jurídico que a lei especialmente
quis proteger com a incriminação que contém, é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade, manifestada
na liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança,
punindo, para o efeito, quem empregue violência ou ameaça grave contra este, para se opor a que ele pratique acto
relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo a esse exercício, mas
contrário aos seus deveres», publicado na CJ/STJ, Ano VII, Tomo II – 1999, p. 196.
3
Sobre os elementos do crime podem ver-se os acórdãos do STJ de 31/01/1990, proc. nº 40379; de 31/01/1990, proc.
nº 40450, publicado no BMJ nº 393, p. 340; de 10/10/1990, proc. nº 41118; de 10/10/1990, proc. nº 41927; de
30/02/1993, proc. nº 43280; de 10/11/1989, proc. nº 40267; de 18/07/1984, BMJ nº 339, p. 276 e de 11/10/1994, proc.
nº 46721.
13
A violência tanto pode ser física como psicológica, importando apenas que tenha a
virtualidade suficiente para intimidar o visado e limitá-lo no exercício da sua liberdade pessoal.
Por isso, para que a violência se tenha por verificada, não é necessário que exista lesão ou contacto
físico com o ofendido. O que importa é que ela se revele de tal forma que se possa dizer que
atingiu a liberdade de determinação do visado, o que implica que seja exercida de modo sério e
com a intensidade necessária para intimidar. Neste contexto, o critério de avaliação do grau de
violência/ameaça relevante para se considerar preenchido o tipo em causa há-de assentar na
idoneidade dessa violência/ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário, sendo
natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito
passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando o visado é um militar ou um agente das
forças de segurança.
Efectivamente, há-de considerar-se que os destinatários da coacção possuem, nalgumas das
hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar
pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão
comum. Membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de
atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa
considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afectar a
liberdade física ou moral de acção de um homem comum. Assim, será natural, como acima se
referiu, que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito
passivo for um mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar um militar,
ou seja, nalgumas hipóteses hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do
coagido ou ameaçado mas talvez sobretudo as suas sobre-capacidades4.
Em suma, a violência ou ameaça devem surgir como pré-ordenadas e idóneas, nos termos
expostos, como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade,
devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo-individual, tendo sempre em
conta as específicas circunstâncias de cada caso, sem esquecer que o tipo de crime em causa não
exige que o agente impeça, de facto, o exercício do acto de função pública que estiver em causa5.

4
CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Dirigido
por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 341
5
Cf. Acórdão do TRP de 22/02/2006, proferido no processo nº 0515856, em cujo sumário se lê: «No crime de coacção
e resistência a funcionário pretende-se tutelar o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade, manifestada na
liberdade de actuação dos seus agentes (autonomia funcional do Estado). Trata-se, assim, de um crime de perigo, em
14
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades
(directo, necessário ou eventual). O agente, tendo conhecimento de todos os elementos (descritivos
e normativos) que constituem o crime de resistência e coacção sobre funcionário e supra indicados
– ou seja, de que o acto praticado, comportamento violência/ameaça grave, é dirigido contra
funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para que este haja ou
deixe de agir, nos termos acima descritos –, e sabendo que a sua conduta é proibida por lei, mesmo
assim actua com a intenção de realizar o facto que preenche o tipo de crime em evidência ou
simplesmente o representa como consequência necessária ou possível daquela conduta,
conformando-se, neste último caso, com a realização do facto típico.
Refira-se, por último, que o crime de coacção deve ser enquadrado pela figura do direito de
resistência, consagrado no art. 21º da Constituição da República Portuguesa, resultando excluída
da proibição a legitimidade da oposição ou do constrangimento.
Vistos os elementos típicos do crime de resistência e coacção sobre funcionário, tendo em
conta a matéria de facto provada, mesmo considerando que os ofendidos são militares da GNR e
que possuem especiais qualidades para suportar pressões, temos que concluir que a arguida com a
sua conduta preencheu, em autoria material, os elementos objectivos de que depende a prática do
ilícito em apreço. Senão vejamos: «No dia 4 de Abril de 2011, cerca das 21 horas e 45 minutos, os
militares da GNR dos Carvalhos, JOSÉ XXXX e ANDRÉ XXXX, no exercício das suas funções e devidamente
uniformizados, deslocaram-se à Rua de São Bento, na freguesia de Pedroso, nesta cidade, com vista a
darem cumprimento a um mandado de condução e internamento relativo à arguida MARIA XXXXXX,
mandado esse emitido pela delegada de saúde que à data exercia funções no “ACES” Espinho/Gaia; Aí
chegados, o cabo da GNR JOSÉ XXXX abordou a arguida quando a mesma saía do interior do seu veículo
automóvel, informando-a do motivo de tal abordagem; Nesse momento, a arguida voltou a introduzir-se no
veículo, fechando a porta do mesmo; Perante o sucedido, o referido cabo abriu a porta do veículo e,
quando se preparava para dele a retirar, a arguida desferiu-lhe diversos pontapés em partes dispersas do
corpo, posto o que se deitou sobre os bancos, pegou na faca apreendida nos autos e com a mesma tentou
atingi-lo; Entretanto, o guarda ANDRÉ XXXX abeirou-se do veículo, abriu a porta dianteira direita do
mesmo, agarrou a arguida e empurrou-a para fora; Já no exterior e porque o cabo JOSÉ XXXX não se
aproximou de si pelo facto de deter a referida faca, a arguida aproveitou para se colocar em fuga; Os

que não é necessária a efectiva lesão do bem jurídico que lhes está subjacente, mas apenas a possibilidade ou a
probabilidade da correspondente conduta típica vir a afectar os interesses protegidos», disponível in www.dgsi.pt.

15
ofendidos foram no seu encalço e vieram a alcançá-la; Quando se preparavam para a algemar, a arguida
tentou ferrar-lhes e desferiu com a faca vários golpes nas costas do guarda ANDRÉ XXXX, atingindo-o
nessa parte do corpo com a lâmina da mesma; Ao agir da forma descrita, a arguida fê-lo com o propósito
de, através da violência física, impedir os referidos agentes de autoridade de praticarem as suas funções de
cumprimento de um mandado de condução e internamento, bem sabendo que os mesmos eram militares da
GNR e que se encontravam no exercício das suas funções» – o emprego de actos de violência contra
dois militares da GNR com a finalidade de se opor à prática de acto relativo ao exercício das suas
funções.
Pelo exposto, conclui-se ter a arguida MARIA XXXXXX com o seu comportamento
preenchido os elementos objectivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p.
pelo art. 347º, nº 1 do Código Penal.
Entretanto, entrou em vigor a Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, que introduziu alterações
ao nº 1 do art. 347º do Código Penal, mas apenas quanto à pena, mantendo inalteráveis os
elementos objectivos (e subjectivos) do ilícito.
*
Sucede, porém, que no momento da prática do ilícito a arguida MARIA XXXXXX encontrava-
se privada, por força da anomalia psíquica de que padece – psicose delirante crónica – de avaliar a
ilicitude dos factos descritos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Por isso, e nas palavras de EDUARDO CORREIA, não é «possível a censura ao agente por não ter
agido de outra maneira»6.
Consequentemente impõe-se julgar a arguida inimputável, por anomalia psíquica, nos termos
do art. 20º do Código Penal.
Importa, agora, analisar e ponderar da necessidade de sujeitar a arguida a uma medida de
segurança.
Como se refere no preâmbulo da proposta de lei n.º 221/I «a declaração de inimputabilidade
exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de se lhe aplicar uma pena. Mas pode suceder que o
agente de um crime, declarado inimputável, revele um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de
defender-se prevenindo o risco da prática de futuros crimes»7.

6
In Direito Criminal, com a colaboração de FIGUEIREDO DIAS, I, reimpressão, Coimbra, Almedina, 1971, p. 331.
7
MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado, 13ª edição, Coimbra, 1999, p. 340.
16
Assim, não obstante o Código Penal ter adoptado uma “concepção monista ético retributiva
das reacções criminais” (relativas aos inimputáveis) – continuou a prever medidas de segurança
reservada a inimputáveis8.
Dispõe o n.º 1 do art. 91º do Código Penal, que: «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e
for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento
de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto
praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».
Como ensinava CAVALEIRO FERREIRA9, no teor deste preceito distinguem-se o fundamento
da aplicação da medida de segurança, que é a anomalia mental criminógena, propensa à prática de
factos típicos graves, do pressuposto da aplicação da medida de segurança, o qual consiste na
prática de facto típico grave. A perigosidade deve ser denunciada pela prática anterior de um facto
que – se cometido por um imputável – seria um crime grave
Os requisitos necessários à aplicação da medida de segurança são: 1º – A prática de um
facto descrito num tipo legal de crime; 2º – Que o agente seja incapaz de culpabilidade, isto é que
seja inimputável e 3º – Que exista perigosidade, deve ocorrer uma prognose desfavorável pelo
fundado receio da prática de novos factos anti-jurídicos graves ou relevantes.
Como referem LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS10 «a medida de segurança é post-delitual, só
depois de haver cometido um facto típico penalmente relevante é que o inimputável pode ser sujeito ao
internamento». É que «... somente a prática de uma acção criminosa evidencia a sua efectiva capacidade de
delinquência, sem a qual o juízo de periculosidade arrisca-se a não ser mais que precária hipótese ou
simples conjectura»11.
Ora, no caso vertente é inequívoca a prática pela arguida de factos descritos num tipo legal
de crime, o crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, nº 1 do Código
Penal.
Mas, não basta qualquer facto típico criminalmente previsto para desencadear a aplicação
da medida. Só aqueles factos que revestem certa gravidade têm essa potencialidade. Isso mesmo se

8
MANUEL LOPES ROCHA, «Algumas considerações sobre o sistema monista das reacções criminais» in Para uma
Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, p. 33; CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições do Direito Penal – Parte Geral,
Lisboa, 1989, vol. II, p. 60.
9
In ob. cit., p. 213.
10
In Código Penal Anotado, 3ª edição., vol. I, Rei dos Livros, p. 1021.
11
In ob. e loc. cit.
17
depreende da parte final do n.º 1 do citado artigo 91º do Código Penal, que manda atender à
“gravidade do facto praticado”.
Não diz a lei o que são factos graves pelo que cabe à doutrina e jurisprudência a elaboração
de um critério neste domínio. Mas, o legislador dá-nos uma indicação indirecta através do n.º 2
daquele preceito quando refere crimes contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis
com pena superior a cinco anos. Por isso, pequenos furtos, pequenas infracções de natureza sexual,
leves ofensas corporais não podem fundamentar a aplicação de medida de segurança por mais que
se evidencie ou se prognostique que o agente vai cometer novos factos delituosos12.
A este propósito, FIGUEIREDO DIAS depois de consignar que o que deve em concreto,
entender-se por tais requisitos é problema de resolução extremamente difícil e depois de rejeitar,
por injustificado, o critério segundo o qual a natureza e a gravidade do facto praticado
justificariam a aplicação de uma medida de segurança de internamento, precisamente naqueles
caso em que, se se tratasse de uma pena, deveria ser aplicada uma pena de prisão vai um pouco
mais longe e mais fundo quando assinala: «Uma solução politico-criminalmente correcta do problema
posto parece lograr-se quando se atenta em que, enquanto o critério da natureza do facto assume uma
dimensão caracterizadamente abstracta, já o critério da gravidade – à falta de uma tarificação legal – só em
concreto se tornará passível de determinação. Perante estas condicionantes, cremos que com razoável
exactidão se poderá traçar o quadro seguinte. A natureza (abstracta) do facto excluirá a aplicação de uma
medida de segurança de internamento sempre que se trate de bagatelas penais, ou mesmo de crimes que
integrem o conceito criminológico da pequena criminalidade. E isto ainda mesmo quando se possa afirmar
que, apesar daquela natureza pouco significativa do facto, ele é sintoma de uma perigosidade relevante, pois
ainda aqui se deve manter fidelidade à ideia de que o papel do facto é constitutivo e não meramente
sintomático. Para além do limiar da pequena criminalidade tudo deverá ser função já não da natureza do
facto, mas da sua concreta gravidade, devendo o juiz para o efeito tomar em atenção todos aqueles factores
que relevam para a medida da pena pela via da prevenção (e não obviamente pela da culpa, da qual não
pode falar-se aqui)»13.
No caso concreto temos que a arguida praticou factos que integram a materialidade do
crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, nº 1 do Código Penal, ou

12
Cf. Código Penal, Notas de Trabalho e Legislação Complementar pelos Magistrados do Ministério Público do
Distrito Judicial do Porto, 1983, p. 123.
13
Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993,
p. 468-469, §738.
18
seja, de um crime cuja moldura penal abstracta é de pena de prisão até cinco anos. São, por isso,
graves e relevantes os factos relativos ao crime praticado.
Por outro lado, resulta dos autos que a agente é inimputável, como o era quando praticou os
factos.
Todavia, para que tenha lugar a aplicação daquela medida não basta que o agente seja
inimputável no momento da prática do facto típico, é ainda necessário que essa inimputabilidade
se mantenha no momento da aplicação da medida como claramente resulta da parte final do n.º 1
do artigo 91º do Código Penal, que manda atender ao juízo de perigosidade à anomalia psíquica.
Nos presentes autos a verificação deste requisito não sofre qualquer contestação.
A arguida é inimputável relativamente ao crime praticado e, por outro lado, essa
inimputabilidade mantém-se por força da anomalia psíquica de que padece (sofre de psicose
delirante crónica).
Finalmente cumpre aferir da perigosidade, pois que enquanto a pena continua a ter como
fundamento a culpa, a medida de segurança assenta exclusivamente na perigosidade. Para que o
inimputável possa e deva ser internado é necessário que ele seja perigoso.
O delinquente perigoso «significa, como com precisão o ensinou a escola positiva, que o
delinquente é um tal de quem se espera a prática de graves factos criminalmente ilícitos»14.
No mesmo sentido se pronuncia CAVALEIRO FERREIRA ao referir que toda a anomalia
mental acarreta o perigo de desmandos no comportamento daquele que a sofre mas nem todos os
dementes são de considerar criminalmente perigosos. «Deve tratar-se de dementes que, em razão de
doença mental sejam propensos a grave criminalidade agressiva contra as pessoas quando esta propensão se
tenha revelado em um facto grave»15.
Para que o inimputável seja declarado perigoso e consequentemente sujeito a uma medida
de segurança é, pois, necessário «ocorrer uma prognose desfavorável, uma acentuada possibilidade de
que o agente volte a praticar factos típicos, derivada de consideração conjunta da anomalia psíquica, da
natureza e gravidade do facto típico praticado»16, sendo ainda necessário que o fundado receio de
cometimento de outros factos típicos se refira a factos típicos graves ou relevantes não sendo
motivo suficiente factos pouco graves.

14
Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Volume II, A.A.F.D.L., Lisboa, 1966, p.
265.
15
In ob. cit., p. 41.
16
SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, ob. cit., p. 465.
19
Por último, deve acentuar-se, e dessa mesma preocupação faz eco PEDRO POLÓNIO17, que
para aceitarmos a perigosidade dum agente deve haver uma franca probabilidade de novos actos
criminosos e uma relação estreita entre o delito e a probabilidade da sua repetição. Não basta, pois,
o perigo potencial, imprevisível que todos os actos tresloucados possam criar.
Ora, a este respeito a perícia efectuada é peremptória: «a arguida, à data dos factos, padecia de
psicose delirante crónica e que, em razão de tal anomalia psíquica grave, estava, a essa data,
descompensada e incapaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa
avaliação, sendo assim considerada inimputável, para a prática dos mesmos», pelo que é inimputável.
E conforme também resulta da mesma perícia existe perigosidade por parte da arguida.
Por outras palavras, «o facto de manter actividade delirante produtiva torna-a perigosa, existindo
fundado receio de que a mesma venha a cometer outros factos da mesma natureza dos supra descritos,
sendo clinicamente imprescindível que a mesma receba tratamento psiquiátrico continuado, se necessário
de forma compulsiva».
Existe, assim, fundado receio de que a arguida venha a cometer outros factos típicos
graves.
Estão, pois, verificados os pressupostos exigidos pelo referenciado art. 91º do Código
Penal.
*
Nos termos do n.º 2 do art. 92º do Código Penal «o internamento não pode exceder o limite
máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável», referindo-se pois à pena
abstracta. No caso em apreço a moldura penal aplicável ao tipo de crime cometido pela arguida é
de prisão de um mês a cinco anos.
E, porque não se verifica a situação prevista pelo art. 91º, n.º 2 do Código Penal, não há
que fixar o limite mínimo da medida de segurança de internamento aplicada, mas apenas o limite
máximo correspondente ao máximo da pena abstractamente aplicável – 5 (cinco) anos.
*
Nos termos do nº 1 do art. 98º do Código Penal «o tribunal que ordenar o internamento
determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão
se alcance a finalidade da medida».

17
In Psiquiatria Forense, Lisboa, 1975, p. 144.
20
Estamos, pois, perante «uma verdadeira medida de substituição (...) com uma intenção político -
criminal em tudo análoga à que (...) preside às penas de substituição: a da luta até aos limites do
comunitariamente suportável, contra a privação da liberdade, conforme é de resto imposto nesta matéria
pelo princípio da subsidiariedade»18.
É pressuposto da suspensão da execução que o tribunal emita um juízo de prognose
favorável à suspensão da execução da medida.
Segundo o disposto no art. 98º, nº 1 in fine isso sucederá desde que seja razoavelmente de
esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.
Por outras palavras, o verdadeiro fundamento da suspensão consiste na convicção do
tribunal da existência, no caso, de circunstâncias especiais que dão fundamento razoável à
esperança de que a finalidade da medida – a prevenção da perigosidade – ainda possa ser
alcançada em liberdade.
Nos casos previstos no nº 2 do art. 91º do Código Penal, a suspensão só pode ter lugar
verificadas as condições aí enunciadas, isto é, se a libertação se revelar compatível com a defesa
da ordem jurídica e da paz social – nº 2 do citado art. 98º.
Ora, considerando o teor do relatório social junto a fls. 246 a 251 e descrito na matéria de
facto provada, com realce para os factos constantes dos pontos 49, 50, 56 e 57, entende-se que a
suspensão da execução da medida de segurança se mostra adequada a alcançar a finalidade da
mesma.
Nos termos do nº 3 do art. 98º do Código Penal, a decisão de suspensão impõe ao agente
regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no art. 52º, necessárias à prevenção da
perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios
apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.
Sendo ainda o agente colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social
assente num plano de readaptação social a elaborar pelos serviços de reinserção social, nos termos
do disposto pelos arts. 53º e 54º do Código Penal – cf. art. 98º, nº 5 do mesmo diploma legal.
Tudo devidamente ponderado entende o tribunal dever suspender a execução da medida de
internamento com a duração máxima de 5 (cinco) anos imposta à arguida MARIA XXXXXX, pelo
período de 5 (cinco) anos, sujeita às seguintes regras de conduta:

18
FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., § 820, p. 581.

21
- submeter-se aos tratamentos médicos e medicamentosos, necessários e adequados à
anomalia psíquica de que padece – psicose delirante crónica;
- acompanhamento tutelar dos serviços da DGRS;
Tudo nos termos dos arts. 98º, nºs 1, 3 e 4 e 52º, nº 2, al. c), ambos do Código Penal, e na
crença de que a arguida, sujeita aos necessários tratamentos médicos e medicamentosos e sob
acompanhamento da DGRS, adopte uma conduta normal, não violadora das proibições penais,
sendo que a sua libertação se revela neste momento compatível com a defesa da ordem jurídica e
da paz social.
*
3. DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal julga procedente, por provada, a acusação, em função do que
decide:
1. Julgar provada a prática pela arguida MARIA XXXXXX da materialidade de
factos integradores de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p.
pelo art. 347º, nº 1 do Código Penal;
2. Declarar a arguida MARIA XXXXXX inimputável em razão de anomalia psíquica,
ao abrigo do disposto no art. 20º, nº 1 do Código Penal, relativamente aos factos
referidos em 1;
3. Declarar a perigosidade da arguida MARIA XXXXXX, por haver razões para
recear a prática de outros factos da mesma natureza e gravidade, nos termos do
art. 91º, nº 1 do Código Penal;
4. Determinar a aplicação à arguida MARIA XXXXXX de medida de segurança de
internamento em estabelecimento de tratamento adequado pelo período máximo
não superior a 5 (cinco) anos, sem prejuízo do disposto na parte final do nº 2 do
art. 92º e do preceituado no nº 1 do art. 93º, ambos do Código Penal;
5. Nos termos do art. 98º do Código Penal, suspender a execução do internamento
por um período de 5 (cinco) anos, sob as condições de a arguida MARIA XXXXXX:
- se submeter aos tratamentos médicos e medicamentosos, necessários e adequados
à anomalia psíquica de que padece – psicose delirante crónica;
- se submeter acompanhamento tutelar dos serviços da DGRS;

22
6. Determinar, nos termos do preceituado no nº 5 do citado art. 98º, que a arguida
MARIA XXXXXX seja colocada sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção
social.
*
Sem custas por não serem devidas – art. 376º, nº 3 do Código de Processo Penal.
*
Nos termos do art. 109º, nºs 1 e 3 do Código Penal, declara perdida a favor do Estado e
determina a, oportuna, destruição da faca apreendida à ordem destes autos.
*
Remeta cópia certificada à DGRS, solicitando a elaboração de plano de reinserção social
acompanhado de relatório detalhado do acompanhamento (art. 98º, nº 4 e 53º e 54º do Código
Penal), devendo ainda ser remetidos relatórios trimestrais do acompanhamento ou sempre que
aquela Direcção o entender necessário.
*
Remeta Boletins ao Registo Criminal.
*
Lida vai a presente sentença ser depositada na secretaria deste tribunal (arts. 372º, nº 5 e
373º, nº 2 do CPP).
Vila Nova de Gaia, 25-03-2014

23

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