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Crise, Desespero e Morte

Nara Rela
2010
2 NARA RELA 3

Nara Rela

Crise, Desespero e Morte

1ª edição

São João Del Rei


Edição do Autor
2010
4 NARA RELA 5

À Prof. Ms. Maria José Netto, cujas conversas acerca do feminino


fez surgir, sob sua orientação, o texto “Admiração e Inveja como
formas de desespero em Kierkegaard” e ao Prof. Dr. Paulo Cesar
de Oliveira, sempre aberto às discussões profícuas, pela atenção e
cuidado na orientação dos textos “Uma análise pós-moderna da
crise de 2008” e “Lévinas e a questão da morte: uma abordagem
a partir do curso de 1975 na Sorbonne”.
6 NARA RELA 7

Índice

Admiração e Inveja Como


Formas de Desespero em Kierkergaard .................................................... 9

Uma Análise “Pós-Moderna” da Crise de 2008 ..................................... 27

Lévinas e a Questão da Morte: Uma


Abordagem a Partir do Curso de 1975 na Sorbonne ........................... 45
8 NARA RELA 9

ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM


KIERKERGAARD

Resumo

Kierkegaard transmutou às suas obras todo o conflito, dúvidas, ques-


tionamentos e angústias de sua própria vida. O relacionamento difícil
com o pai, o rompimento do noivado com Regina Olsen e a tendência a
dedicação à vida religiosa, todo esse turbilhão de sentimentos antagôni-
cos levaram-no a buscar respostas e entendimento ao que se passava em
seu íntimo. Inicialmente, estudou a angústia, mas percebeu que o homem
vive algo muito maior, que o leva a morrer enquanto vivo: o desespero.
O resultado de seu estudo do desespero foi a obra “O Desespero Hu-
mano”, onde apresenta suas duas formas: o eu que não quer ser si próprio
e o eu que quer ser si próprio. Na segunda parte da obra, Kierkegaard
aborda brevemente a questão da admiração e da inveja, que são variações
do escândalo, conforme a paixão incutida na admiração. O objetivo do
presente artigo é analisar a relação entre a admiração e o eu que não quer
ser si próprio ou desespero-fraqueza e entre a inveja e o eu que quer ser si
próprio ou desespero-desafio.

Para estudo, foi utilizada a obra “O Desespero Humano”, Porto: Livra-


ria Tavares Martins, 1961.

Palavras-chave: Desespero. Admiração. Inveja.


10 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 11

Abstract O homem é espírito; o espírito é o eu, que, por sua vez, é a relação que
estabelece consigo mesmo, com sua própria interioridade. “O eu não é
Kierkegaard printed in his books all conflicts, doubts, questions and
a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimen-
anguish of his own life. The problematic relationship with his father and
to que ela tem de si própria depois de estabelecida”1. Por outro lado, o
the rupture of his engagement with Regina Olsen, in addition to his re-
homem é a síntese de dois termos: infinito e finito, temporal e eterno,
ligious tendency, all these antagonistic feelings made him search for
liberdade e necessidade. A relação estabelecida entre eles entra como um
answers and knowledge. At beginning, he studied the anguish, but, me-
terceiro, unidade negativa, com a qual cada um dos termos se relaciona
anwhile, he understood that the despair can make the man dead yet in
separadamente. O eu acontece quando a relação se conhece a si própria e
life. The results of his studies are presented on his book “The Human
estabelece um terceiro termo positivo.
Despair”, where in the second part Kierkegaard pointed out his concept
No entanto, a relação que se orienta sobre si própria somente pode ter
for admiration and envy that are scandal variations in accordance with
sido estabelecida por si ou por um outro, o que torna o eu uma relação
the passion within the admiration. The aim of this article is to analyze
não somente consigo mesma, mas com outrem. É destas duas formas de
the relationship between admiration and the self that do no want to be
relação do estabelecimento do eu que Kierkegaard parte para explicar as
himself or “weakness-despair” and the envy and the self that want to be
duas formas de desespero: quando o eu é estabelecido por ele próprio
himself or “challenge-despair”.
e não quer sê-lo e quando o eu é estabelecido por outro e quer ser ele
próprio. “O desespero é a discordância interna duma síntese cuja relação
Key-words: Despair. Admiration. Envy.
diz respeito a si própria”2. Isso significa que o desespero está no homem
e que isto só acontece por se tratar de uma síntese. O desespero se renova
em cada instante da vida, redutível à sua possibilidade. O presente se
transmuta em um passado real, o que faz com que cada instante real do
desespero contenha todo o passado possível como se fosse presente.
1. Introdução
Kierkegaard defende o argumento de que o desespero é uma “doença
O filósofo dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard (1813–1855) foi mortal”, não porque seja um mal que a morte põe um fim e após a qual
ferrenho crítico do sistema hegeliano, alegando que, nele, a ênfase era à nada subsista, mas sim porque a sua tortura está em não poder morrer.
humanidade e não ao indivíduo. Para Kierkegaard, pelo caráter único e
irrepetível do indivíduo, este não pode ser desconsiderado em nenhum Assim, estar mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não

sistema universalizante ou nem mesmo ser confirmado por nenhum con- permite esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a impos-

ceito, fatos que impedem que o mesmo seja absorvido no universal e tor- sibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança na vida; mas

nam imperativo que seja considerado em sua singularidade. quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança na morte. E quando o

Considerado o pai do existencialismo por defender que, mais im- perigo cresce a ponto de a morte se tornar esperança, o desespero é o desesperar e nem

portante do que a busca por uma verdade única, explicadora de todo o sequer poder morrer 3.

universo, é a busca por verdades que respeitem cada indivíduo e que se


adaptem às escolhas que cada um faz para sua vida na montagem de seu
eu. Para ele, somente quando se realiza uma escolha a existência também 1. Desespero Humano, p. 34.
está sendo realizada. 2. Idem, p. 38.
3. Idem, p. 44.
12 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 13

A “doença mortal” é a enfermidade do eu: “eternamente morrer, mor- não é o entendimento do senso comum, que o limita à aparência e não a
rer sem, todavia, morrer, morrer a morte”4. O desespero é, portanto, a uma concepção, acreditando que cada um trás em si a capacidade de se
“doença mortal” do eu, pois morrer a morte significa viver a morte, no de- reconhecer quando em desespero, bastando não crer nele para dele se
sespero o morrer continuamente significa viver. Viver no desespero é um livrar. O que não é percebido é que o fato de não ser desesperado, de não
constante acumular no presente o desespero pretérito, sem que o eu possa ter consciência de o ser é, precisamente, uma forma de desespero. “Mas
ser aniquilado. No desespero o homem desespera de si e quer libertar-se o desespero é uma categoria do espírito, suspensa na eternidade, e um
do seu eu que não deveio. “Porque é justamente aquilo de que, para seu pouco de eternidade entra por consequência na sua dialéctica (sic)“6. Não
desespero, para seu suplício, ele é incapaz, visto que o desesperado lan- estar desesperado pode ser um indício de que o seja. É sob a categoria do
çou fogo àquilo que nele é rafactário sic), indestrutível: o eu”5. espírito que o filósofo trata do desespero e ele é a inconsciência em que os
Desesperar de si próprio, querer libertar-se do eu é, segundo Kierke- homens estão do seu destino espiritual. Mesmo na felicidade o desespero
gaard a primeira forma de desespero. Outra forma é quando o eu deseja está presente, “pois não há lugar mais na predilecção (sic) do desespero
ser ele próprio, ou seja, quando o desesperado quer ser um eu que ele do que o mais íntimo e profundo da felicidade”7.
pensa ser, mas que não é. O desespero surge do constrangimento de ser O senso comum comete um erro ao considerar o desespero uma exce-
este eu que não quer ser e seu suplício é não poder libertar-se de si pró- ção, quando deveria tê-lo como regra. Aquele que admite seu desespero
prio. está mais próximo da cura do que os que não se julgam desesperados e
No início da segunda parte do livro, “Desespero e o pecado”, Kierke- que, na realidade, vivem sem consciência do seu destino espiritual que
gaard aborda brevemente a admiração e a inveja como responsáveis pelo os levam à falsa despreocupação, à falsa satisfação, que é o próprio de-
escândalo, que varia conforme a paixão que o homem põe na admiração. sespero.
O objetivo do presente artigo é analisar a relação entre admiração e inveja O eu é formado de finito e de infinito, uma síntese formada da relação
e o desespero do eu em não querer ser si próprio e em quer sê-lo, dentro consigo própria, o que pressupõe a liberdade. O eu é liberdade, sendo
da ótica kierkegaardiana. O que se questiona é a razão do filósofo apre- esta a dialética das categorias do possível e do necessário. Necessário, em
sentar a admiração como feminina e a inveja como masculina e o fato de Kierkegaard, está relacionado ao animal, que tem uma essência, sendo
terem sido consideradas como formas de desespero. determinado por aquilo que é: máquina guiada pelos instintos. A essência
é o reino da necessidade. Já o indivíduo possui existência, que constitui
Para estudo, foi utilizada a obra “O Desespero Humano”, Porto: Livra- seu modo de ser e implica na possibilidade de escolhas, uma vez que o
ria Tavares Martins, 1961. homem é aquilo que escolhe ser. A possibilidade gera angústia. A angús-
tia é o puro sentimento do possível, quando aquilo que pode acontecer
pode ser muito mais terrível do que a realidade. O possível corresponde
2. O desespero do eu ao futuro e, para a liberdade, o possível é o futuro. Para o tempo, o futuro
é o possível, o que leva a uma relação estreita entre angústia e futuro.
Segundo Kierkegaard, o homem é um desesperado e essa é uma con-
dição inerente a ele, o que torna o desespero universal. No entanto, esse

4. Idem, p. 44. 6. Idem, p. 52.


5. Idem, p. 46. 7. Idem, p. 54.
14 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 15

2.1 O desespero quanto à consciência al e prefere habitar a cave, as categorias do sensual. Estar no erro é o que
se mais teme e é com base nisso que Kierkegaard critica veemente Hegel
O desespero, lembra Kierkegaard, deve ser considerado também sob
(1770-1831), alegando que este construiu um sistema tentando abarcar
a categoria da consciência, conforme o eu tenha ou não consciência de
toda a existência e a história do mundo, mas que ele próprio não viveu o
possuí-lo, pois é ela que dá a sua medida. Quanto mais consciência hou-
que pregou. Na ignorância o homem tem menor consciência de ser espíri-
ver, tanto mais eu haverá, “pois que, quanto mais ela cresce, mais cresce a
to e este desespero que se ignora é a forma mais frequente no mundo.
vontade, e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade. Num homem
O desesperado consciente necessita não apenas saber o que é preci-
sem vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a vontade, maior
samente o desespero, mas também saber sobre si próprio. No entanto,
será nele a consciência de si próprio”8.
há uma grande variabilidade da consciência, não só sobre a natureza do
Kierkegaard analisa o desespero sob dois prismas: o desespero consi-
desespero, mas também sobre o seu próprio estado, no tocante a compre-
derado quanto aos fatores da síntese do eu e quanto à categoria da cons-
ender se é ou não um desespero. Na vida humana há por demais com-
ciência. Para o presente artigo, nos interessa este último.
plexidades entre os extremos do desespero, a sua inconsciência total e a
À medida que o eu evolui e procura a si mesmo, concomitantemente,
sua completa consciência, para que se tenha noção do grau de desespero.
a consciência vai se ampliando. Entretanto, esse progresso trás consigo
Entretanto, como a intensidade do desespero aumenta com a consciência,
também o crescimento da intensidade do desespero. Kierkegaard estabe-
o sujeito pode paulatinamente compreender o seu grau e Kierkegaard in-
lece como grau máximo do desespero o do diabo, no qual há a consciência
troduz a noção de desespero-fraqueza e desespero-desafio para explicar
absoluta e, consequentemente, nenhum atenuante. No outro extremo, o
essa compreensão.
menor grau, está a inocência, sem nenhuma aparência de desespero.
Quando o desespero é ignorado e julga-se feliz, o sujeito está preso à
2.1.1 O “desespero-fraqueza”
sensualidade e a uma alma plenamente corporal, ignorando completa-
mente o espírito, não tendo a menor idéia de ser espírito. Quando aconte- Como desespero-fraqueza é definido aquele que leva o eu a não que-
ce a perda do encantamento das ilusões dos sentidos, surge o desespero rer ser si próprio. O filósofo mostra que tal propositura acontece de duas
sublimado. Kierkegaard faz uma analogia com moradores de uma casa, formas: a primeira no desespero do temporal ou de uma coisa temporal, e
referindo-se àqueles que preferem viver na ignorância. a segunda no desespero quanto ao eterno ou de si próprio.
No desespero do temporal o eu não tem consciência do que seja deses-
Imagine-se uma casa, cada um de cujos andares – cave, rés-do-chão, primeiro an- pero e nem da natureza desesperada do estado em que se encontra. Neste
dar – tivesse uma espécie diferente de moradores, e compare-se a vida com esta casa: caso, para ele, desesperar é subjacente a uma opressão exterior, é simples-
pois não se veria – tristeza ridícula! – que a maior parte da gente preferiria apesar de mente sofrer. É parte integrante do mundo material, vive do imediato, e
tudo a cave! 9 não tem de si mais do que um arremedo de eternidade e, por mais que
deseje e espere, possui um caráter passivo. Como o eu não possui por si
só nenhuma reflexão, somente através de algum fato externo esse eu irre-
O homem não percebe que é uma síntese com uma finalidade espiritu- fletido sente-se desesperar, o que é apenas uma passividade. É um golpe
do destino que aniquila nele a condição de imediatez em que vivia e para
a qual não mais pode regressar. Depois desse primeiro baque, com algum
8. Idem, p. 60.
auxílio exterior (sempre exterior!), o desesperado recobra vida e a retoma
9. Idem, p. 83.
16 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 17

do ponto em que ficara, tão privado do eu como antes e continua viven- pletamente do caminho interior e relega o eu ao mais recôndito do seu
do na pura espontaneidade ou imediatez., imitando os outros, de acordo ser. Fixa nos seus talentos e qualidades como se esses fossem seu eu ver-
com os padrões sociais pré-estabelecidos. “Esse é o desespero do imedia- dadeiro e volta-se à exterioridade, acreditando ter superado o desespero.
to: não se querer ser si próprio, ou, mais abaixo ainda: não se querer se Quanto mais o desespero se impregna de reflexão, menos é visível.
um eu, ou, forma inferior a todas: desejar ser outrem, aspirar a um novo
eu”10. O homem do imediato, ao desesperar, nem sequer tem eu suficiente 2.1.2 O “desespero-desafio”
para sonhar ou desejar ser aquilo que não foi. Deseja, então, ser outrem,
No desespero quanto ao eterno ou de si próprio, o homem se deses-
pois não se conhece a si próprio e, literalmente, só reconhece um eu na sua
pera da sua fraqueza e aspira não ser ele próprio. Kierkegaard conside-
vida exterior. Não percebe a infinita diferença entre o eu e o exterior.
ra esse desespero como um progresso ao anterior, o desespero-fraqueza,
No entanto, caso a situação passada lhe propicie rudimentos de refle-
pois aqui a consciência vai além da consciência da fraqueza e condensa-se
xão sobre si próprio e havendo um certo esforço pessoal, inicia-se um pro-
numa nova consciência: a de sua fraqueza. “O desesperado vê por si só
cesso de retorno ao eu, que percebe a íntima diferença sua para o mundo
que fraqueza é dar tanto valor ao temporal, que fraqueza é desesperar”12
exterior. Porém, esta nova situação propicia momentos de conflito interior
e isso equivale à perda da eternidade e do seu eu. Há crescimento na
que o leva ao desespero-fraqueza, sofrimento passivo do eu, o oposto do
consciência do eu, porque desesperar quanto ao eterno é impossível sem
desespero em que o eu se afirma. Graças à pequena bagagem de reflexão
a idéia do eu, sem o entendimento de que há ou houve nele eternidade.
sobre si próprio tenta defender o eu. Mas a dificuldade com que se depara
Em outras palavras, para se desesperar de si é necessário que se tenha
exige a ruptura com todo o imediato e para isso falta-lhe a suficiente refle-
consciência de se ter um eu.
xão ética, como explica Kierkegaard:
O caminho do desespero parte do desespero do temporal, em segui-
da para o desespero de si próprio quanto à eternidade, depois o desafio
Não tem a menor consciência dum eu que se adquire por uma infinita abstracção
no qual o desesperado, para ser ele próprio, abusa desesperadamente da
(sic) que o liberta da exterioridade, dum eu abstracto (sic) e nu, oposto ao eu vestido do
eternidade inerente ao eu. Exatamente por se servir da eternidade que
imediato, primeira forma do eu infinito e motor desse processo sem fim, no qual o eu
esse desespero se aproxima da verdade. “Esse desespero, que conduz à
assume infinitamente o seu eu real com os seus ganhos e perdas 11.
fé, não existiria sem o auxílio da eternidade; graças a ela, o eu consegue a
coragem de se perder, para de novo se encontrar; pelo contrário; recusa-se
a começar por se perder, e quer ser ele próprio”13.
Desespera e seu desespero consiste em não querer ser ele próprio, o
Nesta categoria, o desespero tem consciência de ser um ato e não pro-
que não significa querer ser um outro, não se divorcia do eu e mantém
vir do exterior, subjugado por um sofrimento passivo sob pressão do am-
relações com ele, fazendo como que raras visitas para verificar possíveis
biente, mas diretamente do eu. “O desespero em que pretendemos ser
mudanças, retornando, porém, ao ponto onde estava: não tinha senão um
nós próprios, exige a consciência dum eu infinito, que no fundo não é
vislumbre do eu e nada mais adquiriu.
senão a mais abstracta (sic) das forças do eu, o mais abstacto (sic) dos seus
Mas se o fato exterior ocorrido não suscitou mudanças, desvia-se com-
possíveis”14. Recusa o eu que lhe coube e quer, desesperadamente, dispor

12. Idem, p. 110.


10. Idem, p. 97. 13. Idem, p. 118.
11. Idem, p. 100. 14. Idem, p. 119.
18 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 19

de si ou criar a si próprio, fazer do seu eu o eu que ele quer ser e escolher do grego Akrasia, muito utilizado por Platão e, principalmente, por Aris-
o que admitirá no seu eu concreto. É o eu desesperado ativo, que age, tóteles no Livro VII da Ética a Nicômaco, 3, 1147b a 1148b, para designar
experimenta, que vai de encontro a qualquer dificuldade, o que o senso falta de autodomínio, desregramento, excesso. Aristóteles retira de Platão
comum considera a “sua cruz”. Essa recusa do eu pode ser a sua perdição, a consideração de que a acrasia é um estado resultante do domínio que
pois no esforço desesperado para ser ele próprio o eu dissolve-se no seu as paixões e os prazeres relacionados com o corpo exercem no homem e a
contrário, até acabar por deixar de ser um eu. Vive uma mentira. equipara a incontinência.
Quando o eu que desespera é passivo, nega os dados concretos e ime-
diatos do eu, ignora-os como se não fizessem parte dele, mas, contudo, E sucede, assim, que um homem age de maneira incontinente sob a influência (em

sente-se preso a essa sujeição interior e se desespera por não poder ex- um certo sentido) de uma razão e de uma opinião que não é contrária em si mesma,

tirpá-los. Então, por considerar que esse “espinho enterrado na carne” porém apenas acidentalmente à reta razão (pois que o apetite lhe é contrário, mas não

penetra demasiado fundo para poder ser eliminado pela abstração, age o é a opinião)18.

tentando eternamente torná-lo parte de si. Quer ser si mesmo, como é.


“Mas quanto mais consciência há nesse eu passivo, que sofre e quer de-
sesperadamente ser ele próprio tanto mais o desespero se condensa e ten- Ferrater Mora define acrasia como “sem poder, impotência, não tem
de para o demoníaco, do mal eis a frequente origem”15. poder sobre alguma coisa. Especificamente, não tem poder sobre si mes-
mo. É incapaz de dominar-se”19.
Kierkegaard classifica o desespero-fraqueza como feminino, argumen-
3. Relação entre admiração e desespero-fraqueza e entre inveja e tando que “não há na mulher esse aprofundamento subjectivo (sic) do eu,
desespero-desafio nem uma intelectualidade absolutamente dominante”20 (grifo meu). Isso
significa que, na mulher, está inerente a acrasia, uma vez que a falta de
O desespero quanto ao grau de consciência foi definido por Kierke-
uma intelectualidade dominante corresponde à falta de controle das pai-
gaard sob dois aspectos: quando o eu não quer ser si próprio, designa-
xões e da razão necessária para perpetrar seu eu e agir de forma a tomar
do como “desespero-fraqueza” ou quando o eu quer ser si próprio, ou
consciência deste. Em outras palavras, a mulher não tem capacidade de
“desespero-desafio”. Tomando como base a afirmação do filósofo de que
consciência do eu e, consequentemente, de se livrar do desespero através
“a admiração é um abandono de nós próprios penetrado de felicidade, a
da fé em Deus, única forma, segundo Kierkegaard, de isso ocorrer.
inveja uma reivindicação infeliz do eu”16, pretende-se demonstrar, neste
artigo, que a admiração refere-se ao “desespero-fraqueza” e a “inveja ao
Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente
desespero-desafio”.
o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha,
Uma das definições de fraqueza é “tendência para ceder a sugestões
através da sua própria transparência, até ao poder que o criou 21.
ou imposições, falta de firmeza, de resistência, defeito, imperfeição, lado
fraco de um caráter ou de um objeto”17. Portanto, pode significar também
falta de vontade. A todas essas definições cabe o termo acrasia, derivado

15. Idem, p. 125. 18. Ética a Nicômaco, 3, 1147b.


16. Idem, p. 148. 19. Diccionário de Filosofia, vol. 1, p. 48.
17. Dicionário Michaellis Português. 20. Desespero Humano, p. 92, nota 1.
21. Idem, p. 35.
20 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 21

Pelo contrário, a mulher necessita do homem para poder extirpar o escutam o retinir das esporas e a voz do dominador. O observador deve ser um erótico,

desespero, pois para o filósofo, somente este possibilitará a relação dela nenhum traço, nenhum momento pode ser indiferente para ele; mas, por outro lado,

com Deus: “ainda que muitas vezes, na vida, a mulher não tenha relação ele deve também perceber a sua superioridade, que entretanto só usará para auxiliar o

com Deus senão por intermédio do homem”22. fenômeno a se manifestar completamente 26.

Em compensação o seu ser é dedicação, abandono, sem o que não será mulher.

Foi com efeito por causa de todo esse abandono feminino do seu ser que a Nature- O “foeminini generis”, como fenômeno, necessita da superioridade
za, com ternura a armou com um instinto cuja subtileza (sic) ultrapassa a mais lúcida do cavalheiro filósofo para se manifestar, o que se parece com a necessida-
reflexão masculina e a reduz a nada 23. de do homem para que se cumpra a relação feminina com o divino.
À admiração não basta simplesmente comportar um abandono, este
deve ser penetrado de felicidade, conforme definição do filósofo. Mas, de
O excerto acima mostra que a mulher é dedicação e abandono, senão acordo com ele, “não há lugar mais na predilecção (sic) do desespero do
não seria mulher, pois “daí vem que a sua feminilidade só nasce por uma que o mais íntimo e profundo da felicidade”27. Assim, pode-se entender
metamorfose: quando a infinita afetação de virtude se transfigure em fe- que na admiração está inerente o desespero. A admiração é um feliz aban-
minino abandono”24. Mostra, ainda, que ela não possui inteligência racio- donar e um reconhecimento da capacidade superior do outro; abandona-
nal, somente é dotada de instinto, pelo que se relaciona e move no mundo, se admitindo um domínio sobre si, à sua falta de firmeza. Esse abandono
ao contrário do homem, possuidor de “a mais lúcida reflexão masculina”. será feliz e será a afirmação da feminilidade.
Este instinto pode ser considerado acrasia, pois não tem caráter racional,
é “cegueira” mostrando-se como paixão sem fundamento ou explicação. No abandono ela perde o seu eu, e só assim consegue a felicidade, só assim recu-

“Por isso a Natureza se encarregou dela: por instinto, a sua cegueira vê pera o eu, uma mulher feliz, que não se dedica, isto é, que não abandona o seu eu, seja

melhor do que a mais clarividente inteligência, por instinto ela vê para a quem for, não possui a mínima feminilidade 28.

onde inclinar a sua admiração, a quem confiar o seu abandono”25.


O tema do abandono feminino e da afirmação da superioridade mas-
culina aparece também na obra do filósofo que versa sobre o conceito de O filósofo considera como certa a fraqueza da mulher, de forma a afir-
ironia, como mostra o excerto abaixo: mar que ela deve abandonar o seu eu a quem quer que seja; qualquer
um (entenda-se, homem) é mais continente em suas emoções do que a
Ora, se condiz ao fenômeno, que é propriamente foeminini generis (do gênero mulher. Esse abandonar do eu é um precipitar no objeto de seu abandono,
feminino), devido a sua natureza feminina, entregar-se ao mais forte, também se pode objeto que admira e que desespera se o perde, “a mulher, com uma verda-
exigir do cavalheiro filosófico, por uma questão de equidade, a respeitosa decência, a deira feminilidade, se precipita e precipita o seu eu no objecto (sic) do seu
profunda exaltação de um apaixonado (svaermeri), no lugar das quais às vezes só se abandono. Perdendo esse objecto (sic) perde o eu, e ei-lo naquela forma

22. Idem, p. 94, cont. nota 1. 26. Kierkegaard. O conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, Petrópolis, RJ:
23. Idem, p. 94 e 95, cont. nota 1. 1991, pág. 23.
24. Idem, p. 95, cont. nota 1. 27. Desespero Humano, p. 54.
25. Idem. 28. Idem, p. 93, cont. nota 1.
22 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 23

de desespero, em que não queremos ser nós próprios”29. trás a infelicidade diretamente do eu e não de algum meio externo.
O desespero-desafio é aquele em que o eu quer ser si próprio. Há um A inveja, ou a reivindicação infeliz do eu, pode ser entendida como o
lampejo de consciência e o eu reconhece que não gosta de si como é e eu estando infeliz com o que vê de si e reivindica ser aquilo que acredita
deseja ser outro. Aliás, recusa-se a acreditar ser da maneira que sua cons- ser si próprio. Por outro lado, é uma reivindicação infeliz do eu, pois ele
ciência mostra e parte em busca do que acredita ser seu verdadeiro eu. jamais terá sucesso sozinho em buscar ser aquilo que acredita que é. Sua
Mostra uma admiração dissimulada por aquele cujo eu ele queria como empreitada será infeliz, no sentido de que não obterá sucesso sem o au-
seu e dele se aproxima, mas na realidade o que sente é inveja. xílio superior.
O desespero-desafio não é passivo como o desespero-fraqueza, há o
empreendimento da ação, por isso é caracterizado como masculino por Porque admitir uma possibilidade de auxílio, sobretudo por esse absurdo de que

Kierkegaard. O desafio do eu é tornar-se si próprio. a Deus tudo é possível, não! Não! Isso não quer. Nem por nada no mundo procura-lo

em outrem, preferindo, mesmo com todos os tormentos do inferno, ser ele próprio a

Também o homem se dá, e não o fazer será nele m defeito; mas o seu eu não é aban- gritar por socorro35.

dono (fórmula do feminino, substância do seu eu), e é certo que isso não lhe faz falta,

como à mulher, para reaver o seu, pois que já o possui; o homem abandona-se, mas o

seu eu permanece como uma sóbria consciência do abandono (...) 30 Kierkegaard apresenta como a única solução para todo e qualquer de-
sespero, seja ele desespero-fraqueza ou desespero-desafio, o mergulhar
em Deus através da sua própria transparência.
O abandono do eu, no homem, se dá quando ele não aceita o eu que
tem consciência de possuir e empreende ação em busca do eu que acredi- Na relação com Deus, em que desaparece esta diferença entre o homem e a mu-

ta ser o seu próprio. “O homem não se abandona desse modo31; mas por lher, é indiferentemente verdade que o abandono seja o eu, e que se atinja o eu pelo

isso a outra forma de desespero tem a característica masculina: nesta o abandono. Isso tanto vale para um como para o outro (...) 36

desespero quer ser ele próprio”32. O eu quer dispor de si ou criar a si pró-


prio, fazendo do seu eu o eu que quer ser, escolher o que admitirá ou não
no seu eu concreto, “recusando-se a aceitar o seu eu, a ter como seu esse Pena que o filósofo se contradiga algumas páginas adiante, afirmando
eu que lhe coube em sorte, quer, pela forma infinita, que persiste em ser, que “a virilidade é também competência do espírito, ao contrário de femi-
construir ele próprio o seu eu”33. nilidade, síntese inferior”37.
O desespero-desafio é infeliz, pois “tem consciência de ser um acto
(sic) e não provém do exterior como um sofrimento passivo sob a pressão
ambiente, mas diretamente do eu”34. Essa consciência do que não se quer 4. Conclusão

O desespero-fraqueza acontece quando o eu não quer ser si próprio e

29. Idem, p. 94, cont. nota 1.


30. Idem.
31. Como a mulher.
32. Idem. 35. Idem, p. 124.
33. Idem, p. 119. 36. Idem, p. 94.
34. Idem, p. 118. 37. Idem, p. 117.
24 NARA RELA ADMIRAÇÃO E INVEJA COMO FORMAS DE DESESPERO EM KIERKERGAARD 25

se desespera tentando ser algo que pensa que deveria ser. Busca seu ideal o Eu quer “esgotar o prazer de se criar, de se desenvolver, de existir por si mesmo,

imaginário aproximando-se daqueles que julga estarem mais próximos do reclamando as honras do poema”. (DM, p. 116) 39

mesmo e se entrega à admiração, acreditando que esse seria a caminhada


natural rumo à sua idealização. Superestima seus talentos e habilidades,
fixando na exterioridade o foco de medida de seu progresso. Nessa busca de ser si-próprio está imbricada a ação e não a passivi-
dade como no desespero-fraqueza, quando o eu se entrega ao abandono.
O desespero que não quer ser si mesmo – ou desespero-fraqueza – é aquele que Para o filósofo a ação desafiadora é uma característica masculina e a pas-
leva o Eu a almejar uma fuga de si. “É o desespero do imediato: não se quer ser si pró- sividade do abandono uma característica feminina.
prio, ou, menos ainda: não se quer ser um Eu, ou na forma inferior a todas: desejar ser Desta forma, chega-se a conclusão de que tanto o abandono, quanto a
outrem, aspirar a um novo Eu”. (DM p. 93) 38 inveja são formas de desespero, sendo o primeiro passivo e feminino ou
desespero-fraqueza e a segunda ativa e masculina, ou desespero-desa-
fio..
Ao se referir à admiração, Kierkegaard a define como um abandono de
si mesmo perpetrado de felicidade. No desespero-fraqueza, como caráter
feminino do desespero, uma de suas características é o abandono, uma Referências bibliográficas
qualidade exclusivamente feminina. Conclui-se, portanto, que a admira-
ção como abandono penetrado de felicidade, está contida no desespero- ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fon-
fraqueza, cuja forma é feminina, conforme se queria demonstrar. tes, 2003.
Já no “desespero-desafio” o eu tem um grau de reflexão superior ao
“desespero-fraqueza”. Sabe que não vive a realidade de si e se desespe- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, vol. 4. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ra na ânsia por encontrar a si mesmo e sente a angústia da inveja. Para (Os Pensadores)
Kierkegaard, a inveja é uma admiração que se dissimula, quando o admi-
rador sente incapaz de ser feliz cedendo à sua admiração, não bastando FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis: Vozes, 2006.
ser espectador do objeto da admiração, é preciso tomar o seu eu e fazê-lo
seu. Assim, o filósofo define a inveja como uma reivindicação infeliz do HUISMAN, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas. São Paulo: Martins
eu, portanto, uma forma de desespero. Fontes, 2002.

Por sua vez, o desespero de querer ser si mesmo – ou desespero-desafio – é aquele ______________. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes:
em que o Eu se sente soberano, “senhor de sua casa” (DM, p. 115), mas, depois, num 2004.
exame mais acurado, percebe que é “um rei sem reino, que se perde construindo caste-

los no ar e bate-se sempre contra redemoinhos ao vento” (DM, p. 115). Nesse desespero, KIERKEGAARD, Soren. O Desespero Humano. Porto: Livraria Tavares
Martins, 1961.

38. http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=360, acessado em


20/09/2009 39. Idem.
26 NARA RELA 27

MORA, José Ferrater. Diccionario de Filosofia. Madrid: Alianza Edito- UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 2008
rial: 1982.

REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Do Romantis-


mo ao Empiriocriticismo. Volume 5. São Paulo: Paulus, 2005.

RESUMO

O objetivo do presente estudo foi analisar a crise que se manifestou no


segundo semestre de 2008 sob a ótica do que se convencionou conceituar
como “pós-modernismo”. Verificou-se que a adoção da política de neoli-
beralismo pelos governos americano e inglês na década de 70, provocou
a elevação dos níveis de consumo, que influenciou a especulação imobi-
liária e a manipulação de ativos financeiros. Tendo como leitura de base
a obra de Jean-François Lyotard “A Condição Pós-Moderna”, concluiu-se
que um dos fatores da derrocada financeira foi a conveniente legitimação
de uma “realidade” manifestada por certo indivíduo que acaba por ser o
“senhor” da mesma, uma vez que é respeitado como detentor do conheci-
mento e reconhecido como autoridade decisória, principalmente quando
esta realidade serve aos anseios da sociedade.

Palavras-chave: Pós-modernismo. Neoliberalismo. Consumismo.

ABSTRACT

The aim of this study is to analyze the economic crisis of 2008 through
the currently concept of “postmodernism”. It was verified that the adop-
tion of neoliberalism policy by the American and the English govern-
ments at the 70´s increased the consumption level, which had influence in
the real estate speculation and finance manipulation. Having as support
the book of Jean-François Lyotard “Post-Modern Condition”, it was con-
cluded that one of the reasons of the financial crisis was the convenient
legitimacy of a “reality” pointed out by a person that represented an ow-
28 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 29

ner of it, due to the fact that he was respected as an expert on this matter. ciedade como um todo, ou seja, a nação.
It is necessary to consider that this situation was also in accordance with Conforme postulava Adam Smith (1723-1790), economista e filósofo
the social context and expectations of this time. escocês, as ações individuais movidas exclusivamente pelo interesse pró-
prio seriam guiadas infalivelmente por uma “mão invisível” no sentido
Key-words: Postmodernism. Neoliberalism. Consumption. da realização do bem comum. Assim acreditava que a iniciativa privada
deveria agir livremente, com pouca ou nenhuma intervenção governa-
mental. A competição livre entre os diversos fornecedores levaria forçosa-
mente não só à queda do preço das mercadorias, mas também a constan-
tes inovações tecnológicas, no afã de reduzir o custo de produção e vencer
1. Considerações iniciais os competidores.
Com o intuito de combater a onda de revoluções socialistas no século
Com o fim do feudalismo, os servos foram libertados dos liames da
passado, um dos últimos clássicos a recapitular a doutrina liberal foi Lud-
servidão e da terra de onde tiravam seu sustento, o que significava a liber-
vick von Mises (1881-1973) da Escola de Viena. Depois disso, o liberalismo
dade de poder vender sua força de trabalho para os detentores dos meios
ficou em segundo plano ofuscado pela social-democracia, para renascer
de produção, passando de servos a assalariados. Para os proprietários de
no ocaso desta no final do século, travestido como neoliberalismo.
terra, a liberdade consistia em poderem dispor de sua propriedade como
No final do séc. XIX, com a Escola Austríaca, começou a ressurgir o
bem lhes aprouvessem. Dessa forma, a nova organização social baseava-se
que se convencionou definir como neoliberalismo, tendo como um dos
nesse duplo conceito de liberdade: liberdade do trabalho (assalariamento)
expoentes o economista-filósofo Friedrich von Hayek (1899-1992). Em seu
e liberdade no uso da propriedade dos meios de produção-capital.
livro O Caminho da Servidão (1944), Hayek expôs os princípios básicos
Após a revolução burguesa, ocorrida na Inglaterra no período de 1640
de sua teoria, segundo a qual o crescente controle do estado é o caminho
a 1660, as instituições foram sendo adaptadas à nova organização basea-
que leva à completa perda da liberdade e indicou que os trabalhistas, em
da na propriedade e, um conjunto de idéias, foi surgindo para justificar
continuando no poder, levariam a Grã-Bretanha ao mesmo caminho di-
essa nova ordem, como as de John Locke (1632-1704) e a de Adam Smith
rigista que os nazistas haviam impostos à Alemanha. Seus pressupostos
(1723-1790). Assim surgiu o ideário do liberalismo, tendo como pilares a
não são baseados exclusivamente em leis econômicas ou na ciência pura
propriedade e a liberdade.
da economia, mas incorporam em sua argumentação um grande compo-
O Liberalismo pode ser sintetizado como o postulado do livre uso, por
nente político-ideológico.
cada indivíduo ou membro de uma sociedade, de sua propriedade, seja
Uma outra vertente do neoliberalismo surgiu nos Estados Unidos e
ela relativa à força de trabalho ou aos meios de produção. Nesse sentido,
concentrou-se na chamada Escola de Chicago, tendo como expoente o
todos os homens são iguais perante a lei, conforme o ideário burguês,
Prof. Milton Friedman (1912-2006), o qual criticou o New Deal de Roose-
assim como a organização social baseada na propriedade e na liberdade
velt, que respaldou na década de 1930 a intervenção do Estado na econo-
serve ao bem de todos. Isso significa que, não havendo antagonismo en-
mia com o objetivo de tentar reverter a depressão e a crise social que ficou
tre as classes sociais, a ação pode ser orientada simplesmente pela razão.
conhecida como a “crise de 1929”. Friedman e outros economistas defen-
Esse é o cerne da proposição ideológica, que visa a dominação consentida
sores do livre mercado argumentaram que a política intervencionista do
dos trabalhadores através da operação de identificar o interesse da classe
Estado ao invés de recuperar a economia e o bem-estar da sociedade, teria
dominante (a dominação da ordem social vigente) com o interesse da so-
prolongado a depressão econômica e social.
30 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 31

Assim, propulsada pelas alterações sociais, artísticas e filosóficas que nismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a comutação nos anos 50. Toma corpo

se iniciaram a partir da década de 50, a “mão invisível” defendida por com a arte pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como

Adam Smith em 1776, retornou como alternativa vantajosa segundo os crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na

neoliberais aos controles governamentais até então existentes, bem como música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo

às restrições ao livre fluxo de mercadorias, criando assim uma economia o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que nin-

globalmente liberalizada. A esse projeto econômico-político, que foi lide- guém saiba se é decadência ou renascimento cultural.

rado principalmente pelos Estados Unidos e Inglaterra chamou-se neoli-


beralismo globalizante. Estes dois países acreditavam que esse processo
melhor atenderia a seus interesses econômicos no momento turbulento Exatamente por ser um período recheado de turbulências e extre-
que atravessavam (Crotty 2002). Os defensores da globalização neolibe- mamente volátil, o “Pós-modernismo” não tem um fim em si mesmo e é
ral usaram em seu discurso “globalista-liberalizante” a teoria econômica considerado um período de transição. Para onde ou para o que se segue
neoclássica, que reza que, não havendo intervenção econômica governa- ninguém ainda sabe ao certo. O fato é que o “Pós-modernismo” é carac-
mental excessiva, tanto as economias nacionais quanto a economia mun- terístico das sociedades pós-industriais, onde o sujeito é bombardeado de
dial operariam de forma eficiente, conforme os modelos dos mercados informações aleatórias e fragmentadas e recebe estímulos desconexos no
perfeitamente competitivos. Tais argumentos foram aceitos e adotados que tange à moda, ao design, à publicidade e aos meios de informação e
principalmente pelos Estados Unidos e Inglaterra até nossos dias. comunicação como computadores, telefones celulares, satélites e demais
tecnologias.
A era pós-moderna se faz notar: pela invasão do cotidiano com a tec-
nologia eletrônica de massa e individual, ocasionando uma saturação de
2. O “Pós-modernismo” informações, diversões e serviços, em que se lida mais com signos do que
com coisas; na economia, extremamente volátil, em que se trabalha com
O período conhecido como Pós-modernismo, é marcado pelas mudan-
dinheiro virtual e de plástico. A influência da tecnologia é cada vez maior,
ças ocorridas nas ciências, nas artes e na sociedade, que acarretam uma
reduzindo-se ao máximo a presença física do indivíduo. Nota-se na trans-
alteração social e individual, como a realidade baseada em simulacros e
formação do mundo em uma “aldeia global”, em que acontecimentos no
um indivíduo com um sentimento de vazio interior que o leva à uma crise
mais recôndito lugar do planeta podem produzir efeitos significativos nas
existencial, pois a personalização está sendo construída através da aparên-
grandes economias ou políticas; na arquitetura, com construções inusita-
cia e de um narcisismo exacerbado, com a supervalorização da imagem. O
das, na pintura, no cinema, na escultura, valorizando-se o pastiche. Nota-
termo “pós-moderno” é bastante discutível, não sendo uma unanimidade
se na filosofia, na presença do niilismo, do nada, do vazio, da ausência
no meio acadêmico. No entanto, será utilizado neste trabalho para signi-
de valores e de sentido para a vida. “Mortos Deus e os grandes ideais
ficar o conjunto de mudanças por que passa a sociedade contemporânea
do passado, o homem moderno valorizou a Arte, a História, o Desenvol-
que, paradoxalmente, mantém e modifica características próprias da mo-
vimento, a Consciência Social para se salvar. Dando adeus a essas ilu-
dernidade. Conforme define Jair Ferreira dos Santos (1987):
sões, o homem pós-moderno já sabe que não existe Céu sem sentido para
a história, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao
Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes
individualismo” (Santos, 1987); a televisão apresenta os fatos em tempo
e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o moder-
real; a mídia (TV e a imprensa) apresenta os fatos pelo ângulo que mais
32 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 33

lhe convier, dando ao detentor da informação o poder de manipular as Reportagem sobre o filme “A Lenda de Beowulf”, no Jornal Folha de São Paulo,

massas; no culto não mais ao ter, mas ao aparentar, valorizando o simu- Ilustrada, 30/11/2007, pág. E4.

lacro; no desejo não mais do novo, mas do superável, cujo exemplo mais
significativo é o aparelho celular, que se supera rápida e continuamente,
fazendo com que sempre se queira o modelo mais atual. Também se faz O “Pós-modernismo” vive a era digital: a sociedade se digitaliza, o
notar nos textos que não tem mais um significado único, possibilitando mundo todo se digitaliza em forma de painéis nas ruas, na automação
incontáveis interpretações. O texto não pertence mais a quem o escreveu, bancária, no mecanismo dos automóveis, nas televisões digitais, nas vi-
mas a quem o interpreta. Na religião, no culto à prosperidade, através do trines, enfim em tudo que cerca o indivíduo. O objetivo é fazer o máximo
surgimento de diversas Igrejas neopetencostais; na valorização do local, no menor tempo possível e o sujeito acaba sendo forçado a fazer escolhas
da micro-sociedade, do bairro, da igreja; no uso da colagem na pintura, sempre, como o “sim/não” do dígito binário do computador. Digitaliza-
nos vídeo-clips - o próprio cinema representa a colagem de fotos que são dos os signos exigem escolhas rápidas, impulsivas, extremamente favorá-
passadas velozmente; no uso da tecnologia da informática na produção veis ao consumo.
de filmes. Ainda, na celebração do transitório: as peças teatrais são elas O “Pós-modernismo”, apesar da ruptura que promove, ainda necessi-
mesmas transitórias, pois acabam no mesmo dia, além de não permitirem ta das bases modernistas e suas conquistas para se fazer presente, como
que algum erro cometido na apresentação seja refeito; no fim das me- o aço, a fábrica, o automóvel, a arquitetura funcional, a energia elétrica
tanarrativas. O Pós-modernismo prega o desapego a qualquer mito que que, no entanto, foram modificadas, inovadas e traduzidas em lingua-
possa ter caráter dominador e à rejeição a tudo que signifique a legitima- gem pós-moderna. No indivíduo as modificações também ocorreram: o
ção dos grandes discursos. moderno mobilizava as massas para a luta de classes, enquanto o pós-
Desta forma, pode-se perceber a mudança drástica trazida pelo Pós- moderno dedica-se às minorias raciais, sexuais e culturais, atuando no
modernismo e o que isso significou ao indivíduo que no Modernismo microcosmo social. Enquanto o Projeto Iluminista da modernidade pre-
possuía conceitos, definições e verdades para basear seu cotidiano. Já não gava o desenvolvimento material e moral do homem pelo Conhecimento,
há mais o absolutamente certo, tudo é relativo, tudo é possível. O ambien- o “Pós-modernismo” vem de encontro afirmando que Conhecimento não
te Pós-moderno coloca os meios tecnológicos de informação e o simulacro é sinônimo de algo necessariamente bom, pois pode significar o domínio
entre o sujeito e o mundo. O mundo não é informado, mas sim refeito de uns sobre os outros.
à sua maneira, hiper-realizando-o e transformando-o em espetáculo. O
cinema nos dá bons exemplos com os efeitos especiais simulando fatos, O saber pós-moderno não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguça nossa

situações e até pessoas, alterando a idéia de realidade na tela. Os atores sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensu-

têm seus movimentos captados por computador e são reconstruídos por rável. Lyotard (2006).

meio de computação gráfica:

Trata-se, portanto, de um processo de ‘desrealização’, que se reflete nitidamente Segundo E. Mendel (1923-1995) em “Late Capitalism”, Londres: 1975,
na imagem final, ou melhor, uma virtualização da figura original dos atores. Tanto a produção cultural está intimamente ligada à produção de mercadorias,
o processo quanto o resultado deixam claro que está em andamento uma revolução com “uma frenética urgência de produzir novas ondas de bens com apa-
da natureza da imagem do cinema que a distancia da fotografia e a aproxima dos rências cada vez mais novas, em taxas de transferência cada vez maiores”,
videogames. levando a produção cultural a um cenário de conflito social.
34 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 35

Desde a antiguidade, buscou-se explicar o princípio e o fim último de relacionados entre si” (HARVEY, 2007).
tudo para explicar ordenadamente o Universo, a Natureza e o Homem. O
Pós-modernismo, através de sua negação aos chamados grandes valores
ocidentais (Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Su- 3. A crise de 2008
jeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução, Família), choca-se com
A crise econômica que abateu o mundo teve seu início oficial em se-
o Cristianismo e sua fé na salvação, com o Iluminismo e sua crença na
tembro de 2008, com a falência de um dos ícones do capitalismo finan-
tecnociência e no progresso e com o marxismo, com sua aposta numa
ceiro americano: a quebra do banco Lehman Brothers. No entanto, como
sociedade comunista. Nietzsche considerava que o Estado, a Ciência e a
explica o Prof. Paul Singer1 em artigo publicado no jornal Folha de São
Organização social moderna domesticavam o homem, anulando seu ins-
Paulo, seu desenho começou em 2001 quando bancos de investimento
tinto e criatividade.
passaram a oferecer abundantes financiamentos para a compra de mo-
radias, em condições muito favoráveis, o que fez a demanda por imóveis
Para Nietzsche, a própria criação de valores supremos significou niilismo, de-
crescer à frente da quantidade posta à venda. Dessa forma, os preços dos
cadência, pois trocou-se a vida carnal, instintiva, concreta, por modelos ideais ina-
imóveis subiam continuamente, caracterizando a bolha. Em 2006, o nu-
tingíveis (o Belo, o Bom, o Justo). Mas, vendo-se abandonado no universo, o homem
mero de compradores começou a cair, enquanto a quantidade de prédios
ocidental projetou valores supremos, que lhe acalmassem a angústia, lhe justificassem
e casas em construção ainda crescia. A conseqüência lógica trazida pela
a existência. Fim (para garantir um sentido, um happy-end); Unidade (para assegurar
falta de compradores foi a queda dos preços dos imóveis e o estouro da
que o niverso é um todo conhecível pela ciência); e Verdade (para guiar-se pelo ser,
bolha. As famílias que haviam comprado moradias a prazo, cujos valores
pela real natureza das coisas) SANTOS (1987).
caiam abaixo da divida por pagar, suspenderam sua amortização, dando
aos bancos e aos fundos que possuíam esses créditos em carteira prejuízos
totalizando muitos bilhões de dólares. Consequentemente, as instituições
Para derrotar o sistema, Deleuze e Guattari (1984) sugerem promover
financeiras atingidas não tinham mais como cumprir suas obrigações
o anti-Édipo, o esquizofrênico, a pura máquina desejante que o Complexo
com as demais, assim também alcançadas pelo vórtice da inadimplência.
de Édipo, isto é, a família não programou. Ele não segue os padrões esta-
E continua o Prof. Singer:
belecidos e nem se submete a normas e condições. No entanto, em uma
entrevista, Guattari explicou que “ele não é o psicótico que está fora da
O resultado se tornou patente em 2008: as finanças de todas as economias nacio-
realidade, pois liberado em seu desejo, deixando suas energias fluírem e
nais globalizadas foram tomadas pelo pânico. Mesmo os bancos pouco atingidos sus-
se conectarem com outras máquinas desejantes como mais lhe agradar, o
penderam as operações de crédito, com medo de os tomadores ficarem inadimplentes.
esquizofrênico é o modelo para o revolucionário de nossos dias”. Ainda
O crédito se tornou ustraescasso e a crise atingiu empresas não financeiras. A crise au-
em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari apresentam a hipótese de um relacio-
tomobilística, por exemplo, se deveu à queda das vendas, relacionada ao encurtamento
namento entre a esquizofrenia e o capitalismo, concluindo que “a nos-
dos prazos de pagamento dos carros, e a formação de estoques invendáveis deixou a
sa sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira como produz
indústria sem dinheiro para pagar fornecedores e empregados, que haviam construído
o xampu Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os es-
quizofrênicos não são vendáveis”. Devemos entender esquizofrênico, não
em seu sentido estrito, mas como uma forma de fragmentação do sujeito,
uma desordem que cria “um agregado de significantes distintos e não 1. Economista e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
USP.
36 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 37

os carros encalhados nos pátios”. SINGER, Paulo “As políticas keynesianas à prova” in trial consome serviços, os quais não exigem fábricas com linha de monta-
Jornal Folha de São Paulo de 19/03/2009, pág. A3. gem, mas sim um eficiente e eficaz sistema de informação. A conclusão a
que se chega é que o Conhecimento nas sociedades pós-industriais objeti-
va a aceleração e o aumento da produção, apresentando como justificativa
Processos como esses atingem paulatinamente todas as atividades a melhoria da vida do indivíduo, mas escondendo a verdadeira intenção:
econômicas, que tendem a parar se nada for feito. Por essa razão, em uma o aumento do consumo. Esta é a grande narrativa do Conhecimento. Os
economia globalizada como a atual, a crise iniciada nos Estados Unidos hábitos e as atitudes de consumo sofrem transformações e são manipu-
atingiu todo o mundo, pois além da queda no comércio exportador/im- lados pelo capitalismo, que produz desejos e estimula sensibilidades in-
portador, muitos países possuem títulos de empresas e do governo ame- dividuais, criando forças que emanam do consumo da massa: a moda,
ricano. Tal situação obrigou os dirigentes das nações a se reunirem em a pop arte, a televisão. Conforme explica P. Bordieu em “Distinction: a
caráter de extrema urgência e se renderem à filosofia econômica de John social critique of the judment of taste”, Londres:1984, há a criação do cha-
Maynard Keynes2, que consiste essencialmente em ações do setor publico mado “capital simbólico”, que significa o acúmulo de bens de consumo
em substituição ao setor privado paralisado pelo pânico. Os bancos pú- suntuosos que atestam o gosto e a distinção de quem os possui. De acordo
blicos salvam tanto bancos privados em crise, oferecendo-lhes o crédito com Harvey (2007), a procura de meios de comunicar distinções sociais
que eles se negam mutuamente, como empresas não financeiras em crise. através da aquisição de todo o tipo de símbolos há muito é uma faceta
Conforme expôs Keynes em seu livro “Teoria Geral do Emprego, Juros e central da vida urbana. Há um fascínio pelo embelezamento, pela orna-
Dinheiro” de 1936, portanto logo após a Grande Depressão (crise de 29), mentação e pela decoração como códigos e símbolos de distinção social.
em momentos de desemprego alto, os governos deveriam expandir a de- A conseqüência disso é o surgimento do chamado “neo-individualismo
manda por meio de gastos públicos bancados por déficits orçamentários. pós-moderno”, onde o sujeito vive o culto à sua auto-imagem e busca a
Em seguida, em momentos de desemprego baixo, os governos deveriam satisfação imediata de seus desejos com vistas a aumentar o seu “capital
amortizar as dívidas contraídas. simbólico”.
O que se vê no momento atual é não mais a “mão invisível” atuando, A experiência do indivíduo é reduzida a uma série de presentes puros
mas sim os governos das nações ricas e em desenvolvimento agindo pro- e não relacionados no tempo e a imagem e a aparência são vividos de
curando oferecer um rumo à economia e corrigindo possíveis distorções. uma forma intensa e imaterial, mesmo não tendo nenhuma coerência com
a realidade. Há uma incapacidade de unificar o passado, o presente e o
futuro na própria experiência biográfica do sujeito, bem como uma preo-
4. Considerações finais cupação com as aparências superficiais mais do que com as raízes.
Há um culto à imagem. As grandes corporações e os líderes intelectu-
O epicentro da crise foi a maior economia neoliberal do mundo: os
ais e políticos valorizam uma imagem estável, como significação de auto-
Estados Unidos, onde a onda pós-moderna encontrou solo fértil para se
ridade e poder. Assim a imagem vai além do simples reconhecimento de
desenvolver.
uma marca, como signos altamente positivos: respeitabilidade, qualidade,
A sociedade industrial produziu bens materiais, enquanto a pós-indus-
prestígio, confiabilidade, inovação, etc. Há uma competição no mercado
pela construção de imagens e o sujeito não fica imune.
Ao adquirir um bem, o sujeito não o faz movido somente pela quali-
2. Economista inglês autor da teoria de que o Estado deveria ser o regulador do sistema dade ou necessidade, mas sim pelo “capital simbólico” embutido, ou seja,
econômico.
38 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 39

a mensagem que esse bem vai significar. Na medida em que a identidade tancializado”, ou seja, um amor desmedido pela própria imagem, porém
depende cada vez mais da imagem, os seus fabricantes detêm o poder com um grande sentimento de vazio e falta de identidade. A vida é facili-
de moldar também identidades políticas. Conforme explica o sociólogo tada ao máximo propiciando um hedonismo consumista, cultuando seu
francês Jean Baudrillard, as mensagens são criadas visando à “espetacu- ego. Seus valores são trocados por modismos e o sujeito acaba ele mesmo
larização” da vida, à simulação do real e à sedução do sujeito. Deve ser virando um signo e se sentindo o simulacro de algo que ele já nem sabe o
considerado o papel do simulacro no pós-modernismo. Conforme define que é. No mundo pós-moderno o sujeito tem grande dificuldade em sen-
David Harvey, “por simulacro designa-se um estado de réplica tão pró- tir e representar o mundo em que vive e a entender a si mesmo neste con-
xima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase im- texto. Cria seu mundo possível e acaba por perder sua identidade, pois
possível de ser percebida”. Assim, pode-se ter uma mesa de jacarandá, não sabe mais se definir. Ele é o que pensa, é o que pensa que o mundo
sem jacarandá, um concerto de piano, sem piano. A pós-modernidade pensa dele ou apenas um simulacro de algo que ele ainda não pensa?
motiva e controla basicamente pela sedução e seduzir significa encantar Foi buscando sua identidade que os consumidores pós-modernos em-
artificialmente. “O cotidiano hoje é o espaço para o envio de mensagens barcaram em uma fé jovial no futuro e na confiança nas instituições eco-
encantatórias destinadas a fisgar o desejo e a fantasia, mediante a pro- nômicas. Buscando serem reconhecidos pelo símbolo da prosperidade e
messa da personalização exclusiva” (SANTOS, 1987). Não basta ter o ar- sucesso, hipotecaram sucessivamente seus imóveis não pelo valor real,
tigo desejado, ele precisa ser personalizado, significando que é exclusivo mas pelo valor ilusório, utilizando o excedente não para investimento,
daquele indivíduo. É desta forma que o sujeito busca encontrar-se e se mas para saciar sua sede de consumo de símbolos. Os símbolos são sub-
individuar diante do mundo voltado ao aparentar. É o novo egoísta do jetivos, valorados conforme o valor que lhes é atribuído pela sociedade,
pós-modernismo. não são bens palpáveis e não exprimem, portanto, seu valor real. Por ou-
tro lado, as empresas de crédito imobiliário, tomadas por um otimismo
Pragmatismo, cinismo. Preocupações a curto prazo. Vida privada e lazer indivi- exagerado e ilusório do ganho fácil no mercado aquecido, confiantes em
dual. Sem religião, apolítico, amoral, naturista. Na pós-modernidade, o narcisismo balanços e prognósticos dúbios, ofereceram empréstimos sem a devida
coincide com a deserção do indivíduo cidadão, que não mais adere aos mitos e ideais garantia. Assim, quando houve a queda na demanda por imóveis e o con-
de sua sociedade”. Jornal Le Monde, Paris, 22/04/1984. seqüente excedente de ofertas, os preços começaram a cair vertiginosa-
mente, retomando aos patamares reais. O resultado foi que os tomadores
dos empréstimos sucessivos não puderam honrar seus compromissos e os
No ocidente, o sujeito humano, em oposição ao objeto, era até há pouco o senhor bancos e financeiras ficaram com “títulos podres” (empréstimos sem ga-
absoluto do conhecimento racional, da liberdade, da criação. Há décadas, no entanto, rantia real) e com a retomada de imóveis a preço de mercado abaixo das
as Ciências Humanas vieram borrar essa imagem ao descobrir seus condicionamentos hipotecas. Em outras palavras, ficaram com um rombo em suas carteiras
e limites. A psicanálise revelou-o escravo do seu inconsciente irracional. O marxismo e prejuízos para os investidores em seus títulos, muitos deles em outros
deu-o como escravo da sua classe social e um átomo insignificante da massa. E a lin- países.
güística disse que seu pensamento criador era na verdade escravo das palavras. Falou O que mais chamou a atenção nesta derrocada geral, foi a ilusão aco-
–se até da ‘morte do sujeito’. (SANTOS, 1987) metida em empresas tradicionais e pessoas experientes e de renome, que
acreditaram no que quiseram acreditar, esquecendo dos sinais óbvios e a
cautela. Assim ocorreu, por exemplo, com bancos americanos e interna-
No ambiente pós-moderno o sujeito vive um “narcisismo dessubs- cionais, investidores tradicionais, artistas, empresários que confiaram no
40 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 41

Fundo Madoff operado pelo fundador da Nasdaq3, Bernard Madoff. Este sua legitimação, mesmo que os dados sejam tendenciosos. A explicação
fundo era uma espécie de pirâmide de investimentos que pagava lucros para isso está no próprio serviço prestado ao fortalecimento do poder do
exageradamente irreais. O que levou tantos experts a investir neste fundo Estado e das empresas, “um momento na circulação do capital”, confor-
foi o desejo do lucro rápido no mercado artificialmente aquecido, bem me argumenta Lyotard: “no discurso dos financiadores de hoje, a única
como a confiança na autoridade representada por Madoff. O resultado foi disputa confiável é o poder”. Por esta razão, continua, “a hierarquia es-
um prejuízo de mais de 50 bilhões de dólares e seu criador, antes respei- peculativa dos conhecimentos dá lugar a uma rede imanente e, por assim
tado e adorado como guru em investimentos, foi preso e execrado pela dizer, ‘rasa’, de investigações cujas respectivas fronteiras não cessam de
sociedade. O que Madoff fez foi oferecer o que o consumidor queria: pros- se deslocar”. Assim, um discurso é legitimado pelo sujeito investido pela
peridade, lucro fácil, consumir seus símbolos. Como isso foi possível? sociedade como autoridade, de acordo com Lyotard: “Nesta perspectiva,
Quem nos dá uma pista é Lyotard em sua obra “A condição Pós-Mo- o verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de enunciados re-
derna” (2006): colhidos e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe
a legitimidade”. Portanto, conclui-se que, o que se chamou de “Fraude
(...) o traço surpreendente do saber pós-moderno é a imanência a si mesmo, mas Madoff” foi um misto de disponibilização de informações manipuladas,
explicita, do discurso sobre as regras que o legitimam. O que pode passar ao final do não conferidas pelos bancos e investidores em virtude da autoridade in-
século XIX por perda de legitimidade e decadência no ‘pragmatismo’ filosófico ou no vestida em quem as disponibilizou, acrescida da possibilidade da satis-
positivo lógico não foi senão um episódio, por meio do qual o saber ergueu-se pela fação imediata dos desejos de uma sociedade ávida por tornar real em si
inclusão no discurso filosófico do discurso sobre a validação de enunciados com valor mesma os símbolos por ela erigidos.
como leis”. LYTOARD, Jean-François, A condição Pós-Moderna, pág. 100. Histórias como essas surgiram e desapareceram em rápida sucessão
nos últimos anos. Primeiro foi a bolha da internet e as histórias sobre jo-
vens milionários, os “yuppies”, que despertavam inveja em todos. Ela
Lyotard, nesta mesma obra, explica que um fato pode legitimar uma estourou em 2000, mas foi logo substituída por uma nova, envolvendo
“realidade” manifestada pelo individuo que acaba por ser o “senhor” pessoas que lucravam ao comprar e revender imóveis com esperteza, con-
da mesma, uma vez que é respeitado como detentor do conhecimento forme explica o artigo do Prof. Robert Shiller4, publicado no jornal “Finan-
e reconhecido como autoridade decisória. Explica que “a eficácia de um cial Times” e reproduzido no jornal “Folha de São Paulo” de 15 de março
enunciado (...) aumenta na proporção das informações de que se dispõem de 2009, página B9:
relativas ao seu referente. Assim, o crescimento do poder e sua autolegi-
timação passam atualmente pela produção, a memorização, a acessibili- Essa mania foi produto não apenas de uma história sobre pessoas, mas de uma

dade e a operacionalidade das informações”. Isso significa que a dispo- história sobre a forma como a economia funcionava. Era parte de uma história em que

nibilização de informações e a autoridade de quem as transmite trás a todos os investimentos em hipotecas securitizadas eram seguros, pois tanta gente in-

teligente estava envolvida. Todas aquelas pessoas invejáveis estavam adquirindo esse

tipo de ativo e certamente os estavam verificando, portanto nós não precisaríamos

fazê-los. Bastava acompanha-los.


3. O NASDAQ (National Association of Securities Dealers Automated Quotations) é uma
Bolsa de valores eletrônica, constituída por um conjunto de corretores conectados por
um sistema informático. Esta bolsa listava mais de 5.000 ações de diferentes empresas no
ano de 2000), em sua maioria de pequena e média capitalização. Caracteriza-se por com-
preender as empresas de alta tecnologia em eletrônica, informática, telecomunicações, 4. Robert Shiller é professor da Universidade de Yale e co-fundador e economista chefe da
biotecnologia, etc. Macro Markets.
42 NARA RELA UMA ANÁLISE “PÓS-MODERNA” DA CRISE DE 20008 43

As pessoas se deixaram envolver e iludir pela crença da prosperidade níveis ideais, a valoração dos indivíduos e nações não estar baseada em
e, principalmente pelos seus símbolos. Poderiam aparentar ter alcança- simulacros de poder, a preocupação com a redução das desigualdades
do o sucesso que almejavam e que tanto a mídia apregoava através dos sociais, a sustentabilidade sob básicas harmônicas do trinômio produção-
símbolos agora factíveis de serem adquiridos: poderiam vestir as roupas consumo-meio-ambiente, dentre tantas outras. Caso contrário, no futuro,
caras usadas pelos seus ícones do showbusiness e parecerem-se com eles, quando se pensar que a crise atual chegou ao fim, na realidade se estará
ostentar carros tão grandes quanto seus desejos, freqüentarem lugares da preparando o caminho para que outra se instale, cujo estrago pode ser
moda, viajar aos destino-símbolo das pessoas prósperas, enfim consumir irreversível.
desmesuradamente e aparentar o que desejavam ser e não o que eram
na realidade, como se essa situação fosse perdurar indefinidamente. Sua
identidade como indivíduo estava calcada no ter, no aparentar, em simu- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
lacros. É ainda o Prof. Shiller que explica ao falar de um dos problemas
não previstos na teoria clássica padrão (liberalismo) que remonta a Adam CROTTY, James, Trading State-Led Prosperity for Market-Led Stagna-
Smith em sua obra A Riqueza das Nações de 1776: tion: From the Golden Age to Global Neoliberalism. In G. Dymski and
D. Isenberg, eds., Seeking Shelter on the Pacific Rim: Financial Globa-
O que essa teoria negligencia é que existem momentos nos quais as pessoas con- lization, Social Change, and the Housing Market (Armonk, NY: M.E.
fiam demais. E tampouco leva em conta que, se puder fazê-lo com lucro, o capitalismo Sharpe, Inc., 2002, pp. 21-41.
não produzirá apenas o que as pessoas realmente querem, mas o que elas pensam que

querem. (...) se puderem fazê-lo com lucro, também produzirá aquilo que as pessoas HARVEY, David. Condição Pós-moderna. 16ª. Edição. São Paulo: Edições
consideram equivocadamente querer. SHILLER, Robert. “O fracasso em controlar o es- Loyola, 2007.
pírito animal” in Jornal Folha de São Paulo, Caderno Dinheiro, página B9, 15/03/2009.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. 9ª. edição. Rio de


Janeiro José Olympio, 2006.
Enfim, diante dos argumentos e ponderações acima expostos, ve-
rifica-se que a crise econômica objeto deste estudo é uma conseqüência SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. Brasiliense: 1987
“pós-moderna” de um período de transição para uma nova acomodação
econômico-social, levando-se em consideração o sujeito em busca de um SINGER, Paul. “As políticas keynesianas à prova” in Jornal Folha de São
significado para si mesmo. Paulo, página A3, 19/03/2009.
Neste cenário, o que se pergunta é o que virá depois. Surgirá um novo
regime econômico, uma alternativa ao capitalismo? Não se imagina pos- ZAJDSZNAJDER, Luciano. Travessia do Pós-moderno. Nos tempos do
sível uma “alternativa melhor que o capitalismo, pois nenhum outro li- vale-tudo. Rio de Janeiro: Gryphus, 1992.
bera tanto as energias produtivas da sociedade nem o supera na geração
de renda, emprego e bem estar”, como costuma afirmar o economista ZYGMUNT, Bauman. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro:
e ex-ministro da fazenda do Governo Sarney, Maílson da Nóbrega. No Jorge Zahar Editor, 1998.
entanto, o que se espera é que da amarga experiência dessa nova crise
possam ser tiradas profícuas lições, tais como a redução do consumo a
44 NARA RELA 45

LÉVINAS E A QUESTÃO DA MORTE: UMA ABORDAGEM


A PARTIR DO CURSO DE 1975 NA SORBONNE

1. Introdução

No ultimo ano de seu ensino regular na Sorbonne (1975-1976), Emma-


nuel Levinás (1906-1995) ministrou dois cursos suplementares iniciados
nas férias de verão daquele ano, semanalmente, que se estenderam até
maio de 1976: o matutino versava sobre a morte e o tempo e vespertino
sobre Deus e a ontoteologia, os quais foram compilados no livro “Deus, a
morte e o tempo”1. No curso sobre a morte e o tempo, que é objeto de estu-
do nesta Monografia, o filósofo lituano apresentou seu contra-argumento
à ontologia de Martin Heidegger (1889-1976) de se entender o tempo a
partir da morte. O objetivo de Lévinas foi apresentar sua abordagem da
morte na relação desta com o tempo e a história e mostrar a ética de res-
ponsabilidade com o Outro, a partir da questão da morte. Nesta emprei-
tada, o filósofo utiliza-se de conceitos de Henri Bergson (1859-1941) e de
Ernst Bloch (1885-1977), além de empreender uma crítica à ontologia de
Heidegger apresentada em “Ser e Tempo”, ao propor se pensar a morte
a partir do tempo e não deste a partir daquela como defende o filósofo
alemão. O que se pretende apresentar, neste estudo, é a forma levinasiana
de se entender a morte a partir do tempo e demonstrar porque o filósofo
optou pela inversão à proposta ontológica de Heidegger.
Logo no início da primeira aula, Levinás esclarece tratar-se de um cur-
so sobre o tempo e sua duração (durée), já uma influência do pensamento
de Bergson e explica as razões da escolha da palavra duração:

1. Deus, a Morte e o Tempo. LÉVINAS, Emmanuel. Almedina, Coimbra: 2003.


46 NARA RELA lévinas e a questão da morte 47

a. para indicar que não se coloca a questão “o que é o tempo?”, pois não parece colocar exatamente a morte no tempo, a recusa de tratar tempo e morte por

esta considera o tempo como ser. Este mesmo motivo foi alegado relação com o ser não reserva, no entanto, a facilidade do recurso à vida eterna 6.

por Heidegger antes mesmo de Ser e Tempo em uma conferência de


1924 intitulada “O conceito de tempo”2.
O recorte do presente estudo são as páginas 35 a 132 da obra “Deus,
b. o tempo é a própria paciência, o que significa que não existe qual-
a morte e o tempo”, editada como compilação dos cursos de Lévinas na
quer ação na passividade do tempo.
Sorbonne.
c. a palavra duração evita a idéia de fluxo e escoamento para se medir
o tempo e a confusão entre o que se escoa no tempo e o próprio tem-
po. Levinás não considera o tempo medido como autêntico. 2. Conceitos fundamentais de Lévinas

d. é um termo que quer deixar ao tempo o seu modo próprio. Para o desenvolvimento do problema proposto, são fundamentais os
conceitos do filósofo acerca do tempo e história, do infinito e da ética, os
Levinás esclarece, ainda, que a morte é um ponto de onde o tempo quais serão apresentados a seguir, sempre se levando em consideração a
retira toda a sua paciência, “esta espera que se recusa à sua intenciona- temática da morte.
lidade de espera – paciência como ênfase da passividade”3. E estabelece
que a orientação do curso será a morte como paciência do tempo. 2.1 Tempo e História

Levinás considera a história do ponto de vista escatológico7, o que sig-


O tempo seria assim o brilhar do mais do Infinito no menos – aquilo a que Des-
nifica dizer que qualquer visão da história que pressuponha progresso
cartes chamava a idéia do Infinito. O tempo equivaleria assim ao modo de “ser” do
está modelada por uma percepção errônea do tempo. Segundo ele, pen-
Infinito. Esse modo é modo de suportar o Infinito – é paciência4.
sadores como Kant, Husserl e Heidegger possuíam a idéia errada de que
a consciência histórica é determinada pela consciência do tempo de um
eu autônomo8. Para Lévinas o próprio tempo e não o seu conceito é resul-
No entanto, aponta que esta investigação da morte na perspectiva do
tado de um relacionamento face a face e não resultado de um eu isolado e
tempo refere-se ao tempo não pensado como horizonte do ser, da essência
auto-suficiente9. Com isso, levanta uma crítica contra o conceito de tempo
(essance)5 do ser, não significa uma filosofia do Sein zum Tode (ser-para-
como função da existência individual e argumenta que a nossa maneira
a-morte) de Martin Heidegger (1889-1976):
de vivenciar o mundo de objetos e eventos modela nossa percepção de
tempo, principalmente os compromissos sociais básicos do relacionamen-
Mas se o Sein zum Tode, colocado como equivalente do ser em relação com o nada,
to face a face. Para explicar tal afirmação, Lévinas apresenta três modali-
dades de tempo10:

2. HADDOCK-LOBO, Rafael. Da Existência ao Infinito. Ensaios sobre Emmanuel Lévinas,


pág. 75. 6. Idem, pág. 36.
3. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 35. 7. Escatológico entendida como a antecipação de um momento salvador e final.
4. Idem, pág. 130. 8. HUTCHENS, B.C. Compreender Lévinas, pág 97.
5. Essance com “a” como sentido verbal da palavra ser: a efetuação do ser, o Sein distinto 9. Idem.
do Seiendes. 10. Idem, pág. 98.
48 NARA RELA lévinas e a questão da morte 49

2.1.1 Sincronia irrecuperável, como explica Hutchens13:

A sincronia se dá quando um único eu luta para ter poder sobre o


Não há qualquer analogia entre uma experiência de tempo total e qualquer expe-
tempo lembrando o passado, percebendo o presente e predizendo o fu-
riência subjetiva do tempo em virtude de uma incongruência entre o passado sincrô-
turo não só em sua própria experiência, mas pela extensão de todas as
nico e as limitações de uma memória ligadas a um evento que a mente vivenciou. A
possibilidades temporais da história. Para Lévinas o tempo e a história
memória de um evento é impossível a menos que o que experimentamos tenha sido
não podem ser dominados pelo conhecimento do relacionamento entre
um evento em um presente “passado”.
memórias objetivas e subjetivas. Apesar de ser consciente das limitações
de suas lembranças, o eu faz uma analogia com a história pessoal e trata
o tempo “objetivo” e a história como compostos de passados fáceis de
Mesmo que se presuma que o tempo da experiência subjetiva e a cons-
serem lembrados, como explica Hutchens11:
ciência dela sejam proporcionais ao tempo medido, ainda assim perma-
necem subjetivos, uma vez que não se pode lembrar de eventos não vi-
A mente, habitando o presente, espera que um evento futuro ocorra na consciên-
venciados, daí se mostrar falsa a dominação da sincronia do tempo pela
cia do presente, seguido por outro evento desse tipo. O evento futuro instantaneamen-
consciência histórica. Passam pelo presente do eu passados que não fo-
te foge para o passado e torna-se ou um objeto de memória retentiva como um evento
ram vivenciados por ele e que, portanto, não fazem parte de seu passado
singular ou um objeto da memória que recorda.
lembrado, mas nos quais a consciência histórica se baseia. Lévinas refuta
a idéia de que o tempo histórico seja um tempo que poderia ser lembrado
se tivessem sido vivenciados certos eventos temporais nos “presentes”
O eu faz uma analogia entre o tempo experimental e a própria totalida-
passados. Para ele a imemorabilidade é fruto da impossibilidade da dis-
de do tempo, fazendo com que este seja “a experiência da totalidade dos
persão do tempo juntar-se no presente. A consciência histórica está ciente
eventos temporais de um ponto de vantagem de uma mente onisciente”12.
de um Outro, de um evento que pode ter relação com o sujeito, mas que
Portanto, há uma sintetização do passado, presente e futuro do ponto de
este não pode saber nada em virtude de sua imemorabilidade.
vantagem da sincronia presente do eu.
O eu em sua visão “egológica” do tempo é auto-suficiente como dono
sincrônico deste, relembrando eventos do passado, percebendo o presen-
2.1.2 Diacronia
te e fazendo previsões sobre o futuro, ciente de que a duração significa a
A diacronia acontece quando a entrada da outra pessoa introduz um sucessão temporal e presumir que possui uma noção objetiva do tempo
passado e um futuro que o eu não pode lembrar ou predizer. Não se pode baseada em calendários e relógios. Em outras palavras, para o eu hiposta-
esperar a ocorrência de todos os eventos futuros e nem tampouco lembrar siante14 o tempo é aquilo que ele pensa que o tempo é. Com o surgimento
todos os eventos passados que ocorreram em algum passado “presente”. frente ao eu da face do Outro o tempo sincrônico do eu é perturbado, pois
Isso significa que a expectativa é apenas um evento no presente, não o não é apenas um evento temporal que possa ser predito; é evento futuro
controle de um futuro. Para Lévinas há um passado “tão passado” que é que não pode ser captado e é na relação com a face que o eu tem contato

13. Ibidem, pág. 99.


11. Compreender Lévinas, pág. 98.
14. Na filosofia platônica, hipóstase significa os princípios da pessoa, da inteligência e da
12. Idem, pág. 99.
alma.
50 NARA RELA lévinas e a questão da morte 51

com o futuro. Dessa forma, o eu é confrontado com a exigência de respon- dade de sua participação, um tempo pelo qual é responsável, mas no qual
sabilidade evocada por essa face que questiona a dominação do tempo não figura de forma alguma. E a memória do Outro que o eu não pode
por parte do eu. Além de abrir o futuro ao eu, a face trás consigo um pas- compartilhar invoca um numero indefinido de outras memórias que o eu
sado do qual o eu não pode se lembrar. O “eu dominador” é confrontado tampouco pode compartilhar:
com uma segunda consciência do tempo, desproporcional à sua própria
consciência do tempo. No momento em que o eu percebe a diacronia, há O anacronismo é a temporalidade fragmentada da infinita responsabilidade. Não

uma recusa de se juntar os dois tempos em um tempo único e objetivo. O há nenhum princípio sincrônico pelo qual o eu possa dominar o tempo porque ele

tempo da face é o Outro do tempo do eu. O eu não pode predizer o signi- vivencia muitas facetas de tempo divergentes em seus relacionamentos com muitas

ficado da face e nem ter uma expectativa de sua exigência de responsabi- outras pessoas16.

lidade. “A temporalidade insular do eu é interrompida pelo surgimento


imprevisível da outra pessoa vinda do futuro e o passado imemorável
que ela trás consigo”15. Lévinas considera um exercício de arrogância a racionalidade temática
de se elencar eventos passados, registrar seus detalhes e fazer conjecturas
2.1.3 Anacronismo sobre as aparentes causas históricas. Isto porque por maior preciosismo
lingüístico que se use em relatar os eventos, jamais poderá ser registrada
O anacronismo leva em consideração o relacionamento face a face,
pela memória histórica a forma como esses eventos foram vivenciados
quando não estão somente o eu e o Outro, mas também os outros do Ou-
por aqueles que o vivenciaram, o que está definitivamente perdido para a
tro, os mortos, os distantes e especialmente os não-nascidos ainda. A rela-
posteridade. Apofanticamente17, a significância expressiva da experiência
ção do Outro com seus outros tem maior relevância com os não nascidos
do evento vivenciado por quem já morreu ressoa no futuro, mas não pode
das gerações futuras e os falecidos das gerações passadas do que com o eu
ser ouvida no presente. Em outras palavras, o conjunto das memórias sin-
que o Outro está se relacionando face a face. O seu passado imemorável
crônicas dos mortos é impossível para expressar o indizível. Pode-se dar
(sincronicamente imemorável) e agora indeterminado pela memória, foi
sentido à história, mas não se pode lembrar o significado dado por aque-
possuído por aqueles que agora estão mortos. Isso significa que o surgi-
les que deram forma à história.
mento do Outro no relacionamento face a face não se refere somente ao
eu e ao Outro em seus tempos, mas envolve também uma série de rela-
2.1 Ética
cionamentos temporais, o tempo de outros que ainda não nasceram ou já
faleceram. Ao responder ao Outro, o eu responde através deste a todos Levinás é considerado o filósofo do “outro” e por essa razão é critica-
os outros “passados” que “passaram por ele” exigindo responsabilidade. do por uns e elogiado por outros18. Como participante de um mundo em
Ao tempo que não tem qualquer princípio ou origem Lévinas designa de transformação, viveu e sofreu as conseqüências da intolerância do regime
Anacronismo, envolvendo a temporalidade do Outro, a imprevisibilida-
de da geração futura e a imemorabilidade das experiências dos mortos.
A presença do Outro sugere ao eu o futuro, mas também a impossibili- 16. Ibidem, pág. 104.
17. Apofântico, apophantikós, na lógica aristotélica, relativo aos enunciados verbais possí-
veis de serem falsos ou verdadeiros.
18. Alain Baudiou considera o pensamento de Lévinas como “uma refeição de cachorro”.
Os psicoterapeutas John Heaton, Suzanne Barnard e George Kunz consideram que a
alteridade Levinasiana tem uma semelhança com as teorias psicológicas voltadas para
15. Ibidem, pág. 103. o outro.
52 NARA RELA lévinas e a questão da morte 53

segregacionista do nazismo. Por isso se entende que todo seu pensamento A ética da responsabilidade significa que o sujeito está inserido em
seja voltado à alteridade, principalmente por achar que a filosofia ociden- uma teia de arranjos sociais que não foram escolhidos, mas que não po-
tal é tendenciosa por reduzir tudo o que é fortuito, estranho e enigmático dem ser ignorados. No entanto, apesar desse “enredamento”, o sujeito
a condições de inteligibilidade. Para ele, o Ocidente nega tudo o que é exercita a liberdade na forma como reage às responsabilidades que o
imprevisível e não pode ser ordenado; é preciso que tudo seja conhecido, mundo das relações sociais requer, ou seja, a liberdade individual é vi-
compreendido, sintetizado, analisado, utilizado e deve ser descartado o venciada em resposta às exigências da existência humana, principalmente
que não pode ser captado pela mente racionalista. Da mesma forma, as nas relações com o outro. É nessas relações que se descobre a liberdade
diversas facetas do indivíduo são negadas e reduzidas a uma multidão individual, quando o eu assume a responsabilidade para com o bem-es-
sem faces convivendo de forma anônima19. tar dos demais. A face de uma pessoa evoca uma responsabilidade para
Foi dentro dessa visão que Lévinas elaborou o que chamou de “ética aquela pessoa de forma irrecusável. A face exige razões e, ao mesmo tem-
da ética”, ou seja, algo como o estudo da maneira pela qual o estranho, po, torna a racionalidade possível.
o inexplicável e o imprevisível moldam a condição humana apesar das
exigências racionalistas20. Para Lévinas, o eu fica divido em uma luta in- O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é obrigação que nenhuma

solúvel entre o “Mesmo”, que se esforça para totalizar tudo sob a ótica “interioridade” permite evitar. Discurso que obriga a entrar no discurso, começo do

racionalista, e a ordem do “Outro”, ficando desconhecidas as partes vitais discurso que o racionalismo exige com seus votos, “força” que convence mesmo “as

da existência humana. A infinidade sempre resiste à totalidade e o Outro pessoas que não querem ouvir” (Platão, República 327b) e fundamenta assim a verda-

sempre “inunda” o Mesmo, pois por mais que se conheça ele resiste ou deira universalidade da razão23.

rompe os perímetros do conhecido21. E é explorando esses aspectos que


o princípio último da ética, a responsabilidade, pode ser articulado. A
responsabilidade é a responsabilidade pelo Outro, por aquilo que não é A responsabilidade pode ser entendida por três significados24: a) res-
um feito do sujeito e que nem sequer lhe importa, pois o que realmente ponsabilidade como uma reação ao outro de uma forma indeclinável; b)
importa é enfrentado pelo sujeito como face. responsabilidade como uma reação a partir de nós mesmos à outra pessoa
e sua exigência e c) responsabilidade como uma reação para o outro no
Para Lévinas a responsabilidade é primordial porque podemos descobrir nossa sentido de nos substituirmos pela outra pessoa em suas responsabilida-
liberdade para nós mesmos só se as responsabilidades exigirem isso de nós. Não pode- des.
ríamos ser livres a não ser que as responsabilidades nos dessem oportunidades para Vale ressaltar que para Lévinas a outra pessoa é “absolutamente ou-
o sermos e não poderíamos ser responsáveis se não tivéssemos a agência volitiva livre tra” somente em relação ao eu e ao que o eu presume que ela seja, mas não
para desempenhar a responsabilidade. A liberdade pode ser necessária para a ética, é “absolutamente outra” em relação a tudo. Somente Deus é o “Absoluta-
mas uma ética da ética só é satisfeita quando a condição anterior de responsabilidade mente Outro” em relação a absolutamente tudo25.
foi explorada e reconhecida22. Mas essa relação do eu com o Outro o faz responsável também por si
mesmo, pois o olhar exigente do Outro mostra que o eu não é um agen-

19. Compreender Lévinas, pág. 30.


20. Idem, pág. 32. 23. Lévinas, Totalidade de Infinito, pág. 195.
21. Idem, pág. 33. 24. Compreender Lévinas, pág. 35.
22. Ibidem, pág. 35. 25. Idem, pág. 37.
54 NARA RELA lévinas e a questão da morte 55

te livre e autônomo, mas sim fragmentado e que precisa se controlar e cial genuína. Esta leva à compreensão de que um poder-ser próprio da presença reside

descobrir os meios que lhe permitirão livremente se autogovernar, já que no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade

ninguém pode substituir o eu em sua própria responsabilidade. existenciária tende para uma determinação existenciária no ser-para-a-morte28.

Por outro lado, no relacionamento face a face o eu é passivo e respon-


de à exigência que lhe é apresentada sem ser capaz de agir de forma dife-
rente. Essa passividade é reativa em sua reação ao Outro, mas não ativo Segundo Heidegger, a temporalidade constitui o fundamento ontoló-
de forma autônoma e auto-suficiente. Responder ao Outro e por ele signi- gico originário da existencialidade da presença e constrói a “contagem do
fica que estamos conscientemente sensíveis à sua exigência e para Lévinas tempo”, da qual nasce o conceito tradicional do tempo29.
a exposição consciente do eu à face é uma experiência radical, ou seja, O filósofo sustenta que na essência da constituição da presença está
pré-filosófica como, por exemplo, a ansiedade sobre a falta de limites da uma inconclusão e a não-totalidade representa uma pendência no poder
existência, o medo do evento da morte e a insônia. Estas são experiências - ser. Mas ao alcançar esta totalidade o ser já não é, pois retirar-lhe o que
nas quais o eu não está no controle de si mesmo e sim afligido por algum há de pendente significa aniquilar o seu ser. Em outras palavras, o ser é
estado existencial singular. Essas experiências são “sempre-já” uma parte total quando já não é mais, quando deixa de ser um ser – para – a morte e
daquilo que o eu é no relacionamento face a face26. encontra seu fim.
No entanto, para Heidegger, o que fica após o movimento de passa-
3. O tempo pensado a partir da morte gem da presença é o ser simplesmente dado de significância maior do que
algo material, destituído de vida, no qual encontra-se algo não vivo. Ele
Conforme já mencionado anteriormente, ao apresentar seu argumento
o analisa por um lado por uma abordagem histórica, pois na homenagem
de pensar a morte a partir do tempo, é inevitável que Lévinas empreenda
do culto juntam-se a ele os que ficaram para trás, e por uma abordagem
uma crítica à ontologia de Heidegger. Vamos entender a razão disso.
biológica, pois o morto ainda “fala” ao ser autopsiado.
Heidegger define a existência como poder-ser, mas um poder-ser pró-
Heidegger se pergunta e investiga se há a possibilidade de se experen-
prio que determina a essência da presença, cujo ser, por sua vez, é deter-
ciar a morte através da morte do outro. Conclui que esse ser-com o morto
minado pela existência. Assim, a presença enquanto existir pode ainda
não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do finado, pois os que ficam ex-
não ser alguma coisa, está em devir. No entanto, como explica Heidegger
perimentam um sentimento de perda e não a perda ontológica “sofrida”
“o ente cuja essência é constituída pela existência, resiste, de modo es-
por quem morre.
sencial, à sua possível apreensão como ente total”27. Se a interpretação
No recorte de Ser e Tempo escolhido para o presente estudo, o filósofo
do ser deve ser originária, deve trazer à tona o ser da presença em sua
apresenta três teses sobre a morte30: 1) enquanto a presença é, pertence-lhe
totalidade. Enquanto presença é inerente a ela a situação de pendência,
um ainda - não, que ela será – o constantemente pendente; 2) o chegar-ao-
algo ainda para ser e a esse pendente pertence o próprio “fim”. O “fim”
fim do ente que cada vez ainda não está no fim (a superação ontológica
do ser-no-mundo é a morte.
do que está pendente) possui o caráter de não-ser-mais-presença e 3) o
chegar-ao-fim encerra em si um modo de ser absolutamente insubstituí-
Assim como a morte, esse fenômeno da presença exige uma interpretação existen-

28. Idem, 234c, pág. 307.


26. Ibidem, pág. 41. 29. Ibidem, 235, pág. 307.
27. Ser e Tempo, 233d, pág. 305. 30. As teses são resumidas em [242], pág. 316.
56 NARA RELA lévinas e a questão da morte 57

vel para cada presença singular. a morte é a possibilidade de poder não mais ser presença. Desta forma,
Somente na morte a “não-totalidade” da presença terá seu fim. Ao ain- a morte é a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presen-
da–não da presença Heidegger denominou como pendência, por ser algo ça e também a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. “O
que “pertence” ao ente, mas ainda lhe falta. “Estar pendente, significa, ser-para-o-fim torna-se, fenomenalmente, mais claro como ser-para-essa-
portanto: o que é co-pertinente ainda não está ajuntado”31. possibilidade privilegiada da presença”34.
Entretanto, do ponto de vista ontológico, as partes a serem juntadas A presença já está lançada nessa possibilidade sem nenhum saber ex-
não estão à mão e “o ente em que alguma coisa ainda está pendente tem plícito ou teórico de que se ache entregue à sua morte e que a morte per-
o modo de ser do que está à mão. Chamaremos de soma a junção ou a tença ao ser-no-mundo. Através da angústia, a condição de estar-lançada
disjunção nela fundada”32. A presença não é o que se juntou ao preencher se desvela e essa angústia com a morte é com o poder ser mais próprio,
o seu ainda-não, bem como não é quando ainda não é mais, pois a presen- irremissível e insuperável. “Existência, facticidade, decadência caracteri-
ça existe no modo em que o seu ainda-não lhe pertence. zam o ser-para-o-fim, constituindo, pois, o conceito existencial da morte.
Heidegger levanta uma outra questão: em que sentido a morte deve No tocante à sua possibilidade ontológica, o morrer funda-se na cura”35.
ser concebida como findar da presença? Lembra que findar não signifi- Cura designa, ontologicamente, a totalidade do todo estrutural da pre-
ca completar-se, mas sim terminar. Isso significa que o findar enquanto sença.
acabar não inclui em si a completude, pois o que se completa atinge seu O ser-para-a-morte inserido na cotidianidade está sujeito ao que Hei-
acabamento. Um outro sentido para findar é desaparecer que, contudo, degger chamou de “falatório”, ou seja, a interpretação pública expressa
modifica-se segundo o modo de ser de um ente. Relativo ao fim da pre- na falação, que por sua vez revela de que modo a presença interpreta para
sença, a morte não se caracteriza por nenhum desses modos de findar, si o seu ser-para-a-morte. A morte na cotidianidade trata-se de um aconte-
pois esta nem se completa, nem simplesmente desaparece, nem acaba e cimento conhecido, mas que sempre está no ainda-não e não constitui-se
nem pode estar disponível à mão. uma ameaça iminente. É uma ocorrência que, embora atinja a presença,
não pertence a ninguém e por isso faz com que ela se perca no impessoal
Da mesma forma que a presença, enquanto é, constantemente já é o seu ainda-não, que, por sua vez, encobre para si o ser-para-a-morte mais próprio. A co-
ela também já é sempre o seu fim. O findar implicado na morte não significa o ser e tidianidade faz um esforço para consolar e convencer quem está à beira
estar-no-fim da presença, mas o seu ser-para-o-fim. A morte é um modo de ser que a da morte que é possível escapar dela, buscando tranqüilizar a respeito da
presença assume no momento em que é, “Para morrer basta estar vivo” 33. morte. Na verdade essa tranquilização vale tanto para quem esta à morte,
como para quem consola.

Partindo do princípio de que, existencialmente, estar-no-fim significa Tentação, tranquilização e alienação caracterizam, porém, o modo de ser da deca-

ser-para-o-fim, Heidegger considera que para a presença o fim é impen- dência. Decadente, o ser-para-a-morte cotidiano é uma insistente fuga dele mesmo. O

dente, ou seja, a morte é algo impendente, iminente, por ser uma possi- ser-para-o-fim possui o modo de um escape dele mesmo, que disvirtua, vela e compre-

bilidade ontológica que a presença tem de assumir, o que significa que ende impropriamente36.

31. Ibidem, pág. 317. 34. Ibidem, pág. 326.


32. Ibdem, pág. 317. 35. Ibidem, pág. 327.
33. Ibidem, pág. 320. 36. Ibidem, pág. 330.
58 NARA RELA lévinas e a questão da morte 59

A característica de ser-para-o-fim fica velada porque se transforma a A possibilidade mais própria é irremissível é insuperável e o antecipar
morte num caso da morte dos outros. No entanto, a própria fuga da mor- libera a presença para a insuperabilidade, permitindo-lhe compreender e
te atesta que o próprio impessoal está se determinando como ser-para- escolher as possibilidades fáticas que se antepõem às insuperáveis. Per-
a-morte. Heidegger explica que “também na cotidianidade mediana, o mite um poder de ação que evita o enrijecimento da existência, mesmo
que está em jogo na presença é este poder-ser mais próprio, irremissível ciente de que as ações tem um caráter finito.
e insuperável, conquanto seja apenas no modo de ocupação de uma in- A possibilidade mais própria, irremissível e insuperável é certa. O an-
diferença imperturbável frente à possibilidade mais extrema de sua exis- tecipar possibilita à presença possibilitar a si mesma como o poder-ser
tência” 37. mais próprio de si. O ter-por-verdadeira a morte é estar certo de ser-no-
Assim, a morte é transferida para “algum dia mais tarde” e encoberta mundo.
a sua característica de ser possível a todo instante; há a certeza da morte A possibilidade mais própria, irremissível, insuperável e certa é, no
e a indeterminação do seu quando. Heidegger delimita o pleno conceito tocante à certeza, indeterminada40. A morte é certa, porém indeterminada
ontológico existencial da morte como: “enquanto fim da presença, a mor- quanto ao seu acontecimento. Ao antecipar-se a presença abre-se à im-
te é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeter- possibilidade da indeterminação de quando a absoluta impossibilidade
minada e insuperável da presença”38. O escapar da morte na decadência e da existência tornar-se-á possível. Ao antecipar para a morte certa, mas
na cotidianidade é um ser-para-a-morte impróprio. indeterminada, a presença abre-se para uma ameaça onde “a angústia
A morte se relaciona como possibilidade para o ser-para-a-possibili- é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta
dade, enquanto ser-para-a-morte, e quanto mais se compreende e desvela e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da
essa possibilidade, tanto mais a compreensão penetra na possibilidade presença”41. Na angústia, a presença está frente ao nada da possível im-
como a possibilidade da impossibilidade da existência. possibilidade de sua existência e o ser-para-a-morte é, essencialmente, an-
O antecipar já está no modo do ser do ente e ser-para-a-morte é an- gústia. Heidegger resume a caracterização de ser que, existencialmente,
tecipar seu poder-ser e, com isso, a presença abre-se para si à possibili- se projeta para a morte em sentido próprio da seguinte forma:
dade mais extrema. A antecipação é a possibilidade de compreender seu
poder-ser mais próprio, o existir de modo mais próprio. Considerando-se O antecipar desvela para a presença a perdição no impessoalmente-si-mesmo e,

a morte como a possibilidade mais própria da presença, ao antecipar-se embora não sustentada primariamente na preocupação das ocupações, a coloca diante

esta pode desgarrar-se do impessoal, da cotidianidade. Entretanto, essa da possibilidade de ser ela própria: mas isso na liberdade para a morte que, apaixona-

possibilidade mais própria é irremissível e a antecipação permite à pre- da, fática, certa de si mesma e desembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia42.

sença entender que o poder-ser só pode ser assumido por ela mesma e
propicia a sua singularização. Em outras palavras, a presença só pode ser
propriamente ela mesma quando ela mesma dá a si essa possibilidade. O filósofo argumenta, ainda, que o antecipar-se a presença tornou visí-
“O antecipar da possibilidade irremissível obriga o ente que assim anteci- vel a possibilidade ontológica de um ser-para-a-morte em sentido próprio
pa a possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para e existenciário.
si mesmo”39.

37. Ibidem, pág. 331. 40. Ser e Tempo, pág. 342.


38. Ibidem, pág. 335. 41. Ibidem, pág 343.
39. Ibidem, pág. 341. 42. Ibidem.
60 NARA RELA lévinas e a questão da morte 61

4. A morte pensada a partir do tempo ção com o infinito, que é visto como o Outro, o Diferente não-indiferente.
O tempo está ao mesmo tempo no Mesmo e fora dele. É o tempo no Mes-
A morte não está calcada na experiência, pois não é possível um saber
mo (no do outro-no-mesmo, autre-dans-le-même), relativo à sua própria
partindo da morte do outro ou mesmo da minha própria. O que se sabe da
duração e, de forma sincrônica, o tempo Outro, infinito, sem que o Mes-
morte do outro é um saber aparente de um processo de imobilização de
mo jamais possa compreendê-lo ou englobá-lo.
um corpo que não é mais capaz de se expressar. Não há saber dessa rela-
Conforme já mencionado na Introdução, a morte é o ponto onde o
ção ex-cepcional43, que não é ver o ser como em Platão e nem visar o nada
tempo retira toda a sua paciência, cuja espera recusa à intencionalidade
como em Heidegger. Desta forma, a interpretação da morte não pode ser
de espera: a morte como paciência do tempo, paciência como ênfase da
baseada na intencionalidade, uma vez que não há a experiência.
passividade46.
Para Lévinas, a relação com a morte tem um caráter puramente emo-
cional, um movimento, uma inquietude no desconhecido. Trata-se de
Se a paciência tem um sentido enquanto obrigação inevitável, tal sentido torna-se
uma afectividade44 sem intencionalidade, que surge com a proximidade
suficiência e instituição se não existir por baixo uma suspeita de não-sentido. É preciso
da morte, emoção com uma questão que não comporta em si os elementos
que haja na egoidade do Eu (Moi) o risco no não-sentido, de uma loucura. Se um tal
de resposta e abriga uma relação profunda com o infinito que é o tempo.
risco não existir, a paciência tem um estatuto, perde a passividade47.
A relação de proximidade - eu posso ser o próximo - acarreta a minha
responsabilidade como sobrevivente.
No caso da minha morte a relação é o não-saber sobre o próprio mor-
O não-sentido é justamente a deferência para com a morte que não é
rer, o que não significa ausência da relação. Para explicar esta relação,
sentido, que não é situável, que é não-saber.
Lévinas introduz o conceito de Transfert para o que se nomeia “morte”:
Lévinas reconhece, a contragosto, sua dívida para com Heidegger em
sua análise da relação do ser com a morte, que parte do existencial hei-
Transfert que não é uma mecânica, antes pertence à intriga ou intricação do Eu-
deggeriano de ser-para-a-morte. No entanto, reconhece a necessidade de
mesmo, e vem cortar o fio da minha própria duração, ou dar um nó neste fio, como se
vasculhar o solo pré-ontológico e fazer uma filosofia pré-heideggeriana,
o tempo de duração do eu nunca mais acabasse45.
“para aquém” de Heidegger. Para isso, dedica uma aula do seu curso na
Sorbonne ao pensamento de Henri Bergson (1859-1941).
Seguindo de certo modo Kant, Bergson via o tempo como fenômeno
A acuidade desta transferência depende do significado que a morte do
subjetivo, pois o pensamento humano se exerce sobre uma matéria pre-
outro exerce no Eu, bem como no contexto para o qual a morte é transfe-
viamente dispersa na relação tempo-espaço. No entanto, a “coisa em si”
rida. Assim, o Transfert pertence à identificação do Eu.
não é acessada nessa relação e, para atingi-la, faz-se necessária “uma fa-
culdade intuitiva que não possuímos”. Á “coisa em si” os diversos filóso-
Para Lévinas a duração (durée) do tempo está implicada na sua rela-

46. No contexto estudado, tempo não é pensado como horizonte do ser, da essance ou
43. Ex-cepção: apreender e colocar fora de série. como fluxo que se escoa no tempo, mas como o tempo em seu modo próprio, em sua
44. Afecção: modificação no estado moral ou psíquico produzida por causas externas, geran- passividade e paciência (paciência e demora do tempo). Paciência é onde a passividade é
do ora sentimento agradável, ora penível. Dicionário Michaellis Português. enfatizada, morte como paciência do tempo.
45. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 45. 47. Idem, pág. 46.
62 NARA RELA lévinas e a questão da morte 63

fos deram um nome: Substância em Espinosa, Eu em Fichte, Absoluto em zar todas as resistências e franquear muitos obstáculos, talvez mesmo a morte (grifo da

Schelling, Idéia em Hegel, etc., onde tudo afinal significa o Ser ou Deus. bacharelanda)51.

É por considerar ser o homem incapaz de entender esse Ser, que Bergson
se dedica ao existente, onde acredita dever a filosofia se preocupar. Em
outras palavras, Bergson se concentra na experiência interior do ser hu- No entanto, o élan vital não é a última significação do tempo da dura-
mano, ou seja, à vida48. ção bergsoniana e é onde o pensamento de Lévinas vai encontrar uma das
Bergson concebe a consciência como memória de conservação e acu- suas fundamentações: a duração vem do fato do homem poder lançar um
mulação do tempo passado no tempo presente. Isso significa dizer que apelo à interioridade do outro homem. “Tal é o papel do santo, do herói
esta noção de consciência promove a destemporalização do tempo, pois para-além da matéria, herói e santo que levam a uma religião aberta onde
o passado está presente no agora e o futuro é antecipado. E é exatamente a morte não tem mais sentido”52.
esta antecipação do futuro que nos convoca à tomada de decisões e à ação No seu curso de verão relativo a morte pensada a partir do tempo,
contínua. apresenta também o pensamento utópico de Ernst Bloch (1885-1977), no
qual é o futuro como a essência da temporalidade, onde o tempo seria o
Para Bergson, o tempo linear é espacialização do tempo em vista da acção (sic) so- cumprimento, a atualização do inacabado, o por-vir. Nele Lévinas desco-
bre a matéria, que é obra da inteligência. O tempo originário chama-se duração, devir bre a esperança e traça com ela um caminho ético para o ser humano.
em que cada instante carrega todo o passado e está prenhe de todo o porvir. A duração Para Bloch o mundo na história (ou seria a história do mundo?) ainda
é vivida através de uma descida em si. Cada instante está ai, nada é definitivo, porque está inacabado, o ser ainda não é. O fim é utopia e a práxis é possível “não
cada instante refaz o passado49. pelo fim da história, mas pela esperança utópica deste fim”53, ou seja, há
um constante labor, um eterno a-fazer na reconstrução do mundo. Sua
filosofia é utópica porque é teoria do ente que ainda não tem lugar na
Em Bergson, a morte é característica da matéria, da inteligência e da realidade e também uma ontologia do “U-Topos”, do mundo inacabado,
ação e significa a degradação da energia e está no que Heidegger chama incompleto. A utopia ilumina a zona de obscuridade em que vivem o pre-
de Vorhandenheit50. Argumenta que a vida é duração, élan vital e é preciso sente e o eu humano, levando-o a esse obrar esperançoso na construção
pensar conjuntamente duração, élan vital e liberdade criadora, o que colo- do Heimat, de um lar (terra prometida?), mesmo que este esteja sempre
ca o homem em um modo de não-ser-para-a-morte. por-vir. A esperança é necessária à história e está inserida na cultura,
que é um momento do ser que foge à condenação do inacabado. Nela há
Todos os vivos se tocam e todos cedem ao mesmo formidável impulso. O animal uma antecipação, pois “estamos no mundo como se o mundo estivesse
encontra seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga na animalidade e a humani- acabado. Esta esperança não significa a necessidade do que se produzirá:
dade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada é utopia”54.
um de nós, na nossa frente e atrás de nós, numa carga contagiante, capaz de pulveri- Em Bloch o tempo é visto de maneira diferente daquela que dele tira o

51. BERGSON, Henri. Evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pág. 293.
48. Da Existência ao infinito, pág. 94. 52. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 77.
49. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 77. 53. Idem, pág. 115.
50. “ser-simplesmente-dado” relativo a coisas. Dicionário Heidegger. 54. Idem, pág. 115.
64 NARA RELA lévinas e a questão da morte 65

sentido da morte entendida como fim do ser, pois é no labor onde há o en- partir da morte é o que Lévinas apreende do utopismo de Bloch, partindo
fraquecimento da morte como vista pela ontologia, pois a morte é vencida do sentido da melancolia de uma obra falhada (emoção que acolhe a mor-
a cada nova obra. Por outro lado, a utopia “curto-circuita” o tempo, pois te). Por outro lado, ter como embasamento o sentido ético provocado pela
o tempo como esperança da utopia não é mais o tempo pensado a partir questão que a morte levanta na proximidade do próximo e que chama à
da morte. Na utopia está o êxtase primeiro e não mais na morte; o próprio responsabilidade por sua morte. Partir do assassínio como sugerindo o
sentido do tempo está no porvir. O filósofo lituano explica que em Bloch sentido completo da morte, uma vez que o rosto de Outrem, na abertura
“não é a morte que abre o porvir autêntico, é pelo contrário no porvir proporcionada pela morte, expressa o mandamento “não matarás”.
autêntico que a morte deve ser compreendida”55. Em outras palavras, o
porvir da utopia enquanto esperança de se realizar o que ainda não é. Reencontramos assim os traços já sugeridos na fenomenologia da morte. O fim

A angústia da morte para Bloch vem do não-acabamento, de se morrer que se inscreve na morte e a questão para além de toda a modalidade dóxica, questão

sem acabar o seu próprio ser, que é sentido neste próprio mundo inacaba- original, sem posição de questão, sem tese, questão pura que se levanta, questão como

do. Em qualquer vida há o fracasso e a melancolia é o modo de se manter puro levantamento da questão. Será que podemos procurar o sentido da morte a partir

no ser inacabado. do tempo? Não se mostrará ele na diacronia do tempo entendido como relação com o

outro? Poderemos nós entender o tempo como relação com o outro em vez de ver nele

Melancolia que não deriva da angustia. Pelo contrário, seria antes a angústia da a relação com o fim58?

morte a modalidade desta melancolia do inacabamento (que não é ferida de amor-

próprio). O medo de morrer é o medo de deixar uma obra inacabada e, portanto, de

não ter vivido56. Para a filosofia, conforme entende Lévinas, a identidade é identidade
do Mesmo, a inteligibilidade e a estabilidade têm conformação dada pelo
Mesmo, que engloba o Outro e o assimila. Pensa-se a identidade do idên-
Bloch exorta a procura do porvir verdadeiro não apenas por diverti- tico e do não-idêntico dentro da racionalidade do Mesmo. Assim, tudo o
mento, mas nos momentos privilegiados de obscuridade do sujeito quan- que é não coincidente consigo mesmo e está ainda em devir é considerado
do este é perpassado por um clarão vindo do porvir utópico, definido pelo como puramente subjetivo e o temporal, o que devém, desafina com a
filósofo alemão como “espanto”. Este espanto não está ligado à qüididade razão. Como solução, o intelectualismo resume o próprio devir temporal
do que motiva o espanto, mas a certo momento que não precisa necessa- à estabilidade e à realização do que é presente a si, do que veio a termo59.
riamente ter forte significação, “mas também no modo como uma folha Dessa forma, “o termo seria presente vivo, estabilidade capaz de se apre-
é agitada pelo vento, na beleza de uma melodia, no rosto de uma jovem, sentar e de se representar, de se manter inteira numa presença, de nela
num sorriso de criança, numa palavra”57. O espanto, assim, é questão e ser agarrada”60. O tempo é, então, fracionado em instantes, em átomos
resposta, esperança de um Dasein em que o Da seja plenamente realizado idênticos e “puros onde” e “puros quando”, extensão do nascimento à
e não do simples Dass-sein. morte (extenuação). Lévinas atribui a isso a confusão feita entre o tempo
Pensar a morte a partir do tempo e não como em Heidegger, o tempo a

58. Idem, pág. 122.


55. Idem, pág. 116. 59. Termo = qualquer objeto ou coisa a que um discurso se refira. Nesse sentido, é sinônimo
56. Idem. de objeto ou coisa. Dicionário de Filosofia, Abbagnano.
57. Idem, pág. 117. 60. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 123.
66 NARA RELA lévinas e a questão da morte 67

e o ser que dura no tempo. identifica-se interiormente sem se tematizar, identifica-se como eu.
O tempo é entendido como fluido, no qual os instantes passam como
se fossem coisas, num fluir onde há retenção, permanecendo na memó- Fenômenos como a procura e o devir que, por não poderem ser qua-
ria ou há protensão, a duração na consciência. O devir se constitui em lificados, não significam ausência, mas impossibilidade de qualificação
pontos idênticos e não é colocada em questão a categoria do Mesmo que e de coincidência com algo ou formar com nada um presente. “Presen-
comanda estas descrições. O Outro permanece como um outro mesmo, te algum teria capacidades à medida deste inqualificável diferente do
idêntico a si-mesmo e discernível no exterior pelo seu lugar nessa cir- termo, diferente do conteúdo. Porque infinito, este inqualificável seria
cunstância. “A compreensão do tempo residiria na relação existente entre inassumível”64. Todos os fenômenos temporais e o próprio tempo são
um termo idêntico a si mesmo e a presença”61. Qualquer alteração sofrida analisados por aquilo que lhes falta, o que é assumido como defeito. Mas
pelo idêntico teria a sua identidade reencontrada pela co-presença atra- Lévinas sugere que, esse vazio, esse inacabamento, poderia ser pensado
vés dos processos de retenção e protensão, o que significa dizer, que o como um passo para-além do conteúdo, como o relacionamento com o
idêntico seria novamente enquadrado na categoria pelo qual é reconheci- infinito que nunca chega a termo.
do e sua diferença ou alteração não seria considerada. Essa sincronia dos O infinito é impensável dentro da relação de sincronicidade, o que,
termos garante a estabilidade do instante, levando o tempo e o real a um porém, não exclui a sua investigação, o que significa que sua ausência
confundir-se. “não é pura ausência”. Lévinas argumenta que não seria a não-relação
com o diferente, mas a relação com o singular, “relação de diferença na
A inquietude, o não-repouso do tempo apaziguam-se nesta análise. A possibilida- não-indiferença”65.
de da representação e da co-presença é a possibilidade da presença que é a possibilida-

de do termo numa ordem (começo ou fim), é assim a possibilidade da própria noção de Haveria que pensar o tempo como a própria relação com o Infinito. A procura

original ou de último, do termo não reenviando senão para ele mesmo. Racionalidade ou a questão não seria deficiência de uma qualquer possessão, mas imediatamente

do repouso, da positividade, isto é, do ser62. relação com o para-além da possessão, com o inapreensível no qual o pensamento se

despedaçaria”66.

Uma vez que é a não mobilidade que permite ao tempo o rompimento


da identidade do mesmo, Lévinas levanta a questão da possibilidade de Para o filósofo, a inquietude do tempo como despertar está no questio-
se compreender o tempo sem estar preso à imagem do fluxo. Responde namento do eu pelo outro, enquanto apelo à responsabilidade, que leva
com outra questão: “Não significarão o não-repouso ou a inquietude do o sujeito consciente a se libertar dele mesmo pela transcendência. E é jus-
tempo antes de toda a terminologia ou recurso a termos que não apelam tamente essa perturbação provocada pelo Outro que põe em questão a
a nenhuma imagem de rio ou de escoamento, uma inquietude do Mes- identidade onde se define a essência do ser e define o que Lévinas chama
mo pelo Outro que nada pede ao discernível e ao qualitativo?”63. Essa de temporalidade: “essa fissão do Mesmo pelo insustentável Outro no
inquietude não se identifica ou é indiscernível a qualquer qualidade, mas coração do eu-mesmo, no qual a inquietude perturba o coração em re-

61. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 123. 64. Idem, pág. 125.
62. Idem, pág. 124. 65. Idem.
63. Idem. 66. Idem.
68 NARA RELA lévinas e a questão da morte 69

pouso sem ser reduzida a uma qualquer intelecção dos termos”67. Infinito modo diferente de Heidegger, ou seja, de se pensar a morte não como o
no finito. fim e aniquilação do ser. Para entender as críticas de Lévinas é necessário
Lévinas nos convida a pensar de maneira ética esse dilaceramento transitar sobre a ontologia existencialista do pensamento heideggeriano.
do Mesmo pelo Outro, quando a identidade interior torna impossível se Nos parágrafos 1 a 44 de Ser e Tempo, Heidegger apresenta sua on-
manter em repouso. Para ele, o tempo é mais do que a corrente dos conte- tologia fundamental que incide sobre a significação verbal do ser, onde
údos de consciência, mas sim a versão do Mesmo para o Outro que, pela apresenta a distinção entre ser e o ente (aquilo que se pode mostrar, tema-
ação de uma intriga múltipla, responde por outrem meu próximo. Isso tizar, o nome, o substantivo). O verbo ser é compreendido pré-ontologi-
acarreta uma responsabilidade incessível, cuja urgência “me identifica in- camente, sem muito entendimento, mas passível de muitas questões, as
substituível e único”68. quais só podem ser feitas pelo homem, que é aquele que interroga sobre
Lévinas pondera que tudo o que recebemos e apreendemos nos parece o seu ser. Essa questão é essencial, uma vez que o atributo essencial do
um “saber de segunda mão”, pois nos chega da experiência e da observa- homem consiste em ser. Uma tal interrogação é entregar-se ao seu modo
ção dos outros homens, de seu comportamento de moribundos, de mor- de ser, é ter-de-ser, mas não um confundir-se com o ser.
tais conhecedores da morte e, ao mesmo tempo, esquecidos dela. Esqueci-
mento esse trazido pelo sentimento de aniquilação como caráter negativo O modo como o homem é, como conduz o seu ofício de ser, a sua marcha de ser, é

da morte. “A morte aparece como a passagem do ser ao já-não-ser, enten- o seu ser no sentido verbal do termo, o qual consiste precisamente num interrogar-se

dido como resultado de uma operação lógica: negação”69. No entanto, o sobre o sentido do verbo ser. Uma tal interrogação não é uma representação – é antes

evento da morte excede o seu sentido aparente, como se a aniquilação entregar-se ao seu andamento de ser, é ter-de-ser (avoir-à-être): não um confundir-se

pudesse introduzir um sentido que não se limita ao nada. “A morte é ao com o ser, que é preciso compreender, mas aperceber as suas possibilidades72.

mesmo tempo cura e impotência; ambiguidade que indica talvez uma ou-
tra dimensão de sentido que aquela na qual a morte é pensada através da
alternativa ser/não-ser. Ambiguidade: enigma”70. Em Ser e Tempo, o cará- Portanto, o ofício próprio do homem é compreender o ser e sua signifi-
ter ambíguo da morte está no fato de que, embora atinja a presença, não cação e, para isso, é preciso que exista uma distância entre o seu ser e o ser
pertence propriamente a ninguém e essa ambiguidade “leva a presença a que ele apreende: o homem torna-se, assim, uma ek-sistência. Isso significa
perder-se no impessoal, no tocante a um poder ser mais privilegiado, que que, descrever essa existência, é descrever a humanidade do homem a
pertence ao seu ser mais próprio”71. partir de sua existência, de seu Dasein, ou seja, descrever a interrogação
Para Levinás, o intelectualismo pensa a morte como experiência do do homem sobre o ser.
nada no tempo e o propósito deste filósofo é buscar outras dimensões e O modo de ter o ser ao seu encargo não é um trabalho intelectual, mas
sentidos, quer seja para o sentido do tempo, quer seja para o sentido da toda a concretude do homem, por isso o homem também é Da, aí. O Da é
morte. Fica claro que ele busca uma alternativa de se pensar a morte de sua maneira de estar-aí no mundo, que é questionar sobre o ser. O ser-aí é
ser no mundo junto às coisas das quais é preciso cuidar, daí o cuidado, daí
os existenciais. Esses últimos carregam a fórmula “estar já desde sempre
adiante de si enquanto ser no mundo”, onde está implícita a temporali-
67. Idem, pág. 126.
68. Idem.
69. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 37.
70. Idem, pág. 1.
71. Ser e Tempo, pág. 329. 72. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 49.
70 NARA RELA lévinas e a questão da morte 71

dade: “já desde sempre”, “adiante”, “junto de”. Para Lévinas “existe uma No Dasein tal como ele é, qualquer coisa falta, qualquer coisa está ainda em falta,

preocupação em encontrar um tempo original que não é mais definido de uma falta que pertence ao próprio ser, e uma tal falta é a morte. É, pois, através de

como rio que corre”73, ou seja, uma maneira de se referir ao tempo dife- uma certa relação com a morte que o tempo será possível, tempo por relação ao qual se

rentemente daquele que o mede. Heidegger, dessa forma, vai deduzir o coloca a questão da possibilidade do todo76.

tempo mensurável a partir do tempo original.


Lévinas esclarece74 que o Dasein deixa-se descrever no cuidado de for-
ma temporal, a partir de suas relações e através de três estruturas: ser- A não-totalidade do Dasein é constituída pelo seu ainda-não, “a pre-
adiante-de-si (projeto); desde-sempre-no-mundo (facticidade) e ser no mundo sença, enquanto ela é, já é o seu ainda-não”77, tal como a maturidade para
enquanto ser-junto-de (ser junto das coisas, junto do que se encontra no o fruto. No entanto, a morte não significa a maturidade e, ao morrer, o
interior do mundo). O tempo fica implícito no “projeto” como futuro; no Dasein não esgotou todas as suas possibilidades, como o fruto ao ama-
“desde sempre já” como passado e no “junto de” como presente. A analí- durecer. Ao morrer as possibilidades do Dasein lhe são retiradas, o que
tica do Dasein apresenta o curso da aventura do ser, na qual o ser se joga significa que acabar não é realizar-se, pois a morte não espera que isso
e corre riscos. aconteça. Para o Dasein, o fim não é o final de um ser, mas o modo de assu-
mir o fim no seu próprio fim. “A morte é um modo de ser que a presença
O ser dá-se aqui numa generosidade extrema, numa gratuitidade (sic), num de- assume no momento em que é”78. Portanto, a morte não deve ser pensada
sinteressamento extremos. Observar-se-à que existem muitas virtudes cristãs no ser como um futuro não cumprido, mas sim a partir do ter-de-ser da existên-
“pré-socrático” (generosidade, pudor, humildade, etc.) e que Heidegger quer ensinar cia que se deve apreender o para-a-morte que é o Dasein. Ter de ser é ter
que tais estruturas ou tais virtudes têm uma raiz no próprio ser. A única questão é a de morrer. “A morte é um modo de ser, e é a partir deste modo de ser que
seguinte: não pressuporão estas significações éticas o humano no sentido de (o que é) surge o ainda-não”79. Para o Dasein morrer é estar à beira do fim a todo o
ruptura do ser?75 instante de seu ser, mas a morte não é um momento, mas uma maneira de
ser, da qual o Dasein se encarrega a partir do momento em que é: ter de ser
é também ter de morrer. E é a partir desse ter-de-ser, que é também “ter de
O ser-ai está inserido na cotidianidade, na banalidade da sucessão dos morrer”, que a morte e o tempo devem ser originariamente pensados. O
dias e das noites, no trabalho, nas ocupações e distrações. Em Ser e Tempo Dasein, à medida que é sempre um ainda-não é também sempre o seu fim
Heidegger, em seu estudo, parte da vida quotidiana, desta existência não e a energia que existe nele, que é o seu próprio poder de ser, é também o
própria, embora advinda do propriamente meu. Essa cotidianidade não seu poder para o seu fim.
possibilita ao Dasein compreender a estrutura do projeto, do adiante-de- O tempo é o porvir do ser-para-a-morte, é a iminência da morte. Hei-
si, que o descreve como tarefa de ser, como possibilidade. Dessa forma, na degger pensa a relação com a morte a partir da estrutura do “cuidado”
cotidianidade, a unidade do eu só é atingida quando termina o tempo de do ente que é a ter de ser o seu ser: como ser-projetado; facticidade (desde
cada um, a totalidade só é alcançada quando já não se é mais. sempre já no mundo) e ser junto das coisas (que faz com que o mundo

76. Idem, pág. 56.


73. Idem, pág. 52. 77. Ser e Tempo, pág. 319.
74. Idem, pág. 54. 78. Idem, pág. 320.
75. Idem, pág. 55. 79. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 65.
72 NARA RELA lévinas e a questão da morte 73

seja esquecido), os quais estão contidos no ser-para-a-morte. “O Dasein na existência humana que dá forma à construção do tempo do eu, quando
sua ipseidade implicada na propriedade (mienneté), não é possível como o eu se projeta na direção de sua morte na tentativa de dominar o tempo
mortal. Uma pessoa imortal é contraditória nos termos”80. A morte não é anterior àquele evento. Em Lévinas, ao contrário de Heidegger, a morte
um acabar de uma duração, mas uma possibilidade sempre aberta, mais não é algo para o qual o ser se projeta, se dirige.
própria, mais exclusiva, mais isolante, extrema e inultrapassável: apenas
o Eu morre, só o Eu é mortal. E essa possibilidade não é ocasional, mas A minha morte vem num instante sobre o qual, sob nenhuma forma posso exercer

sim algo ao qual o Dasein está desde sempre adstrito, sem que tenha disso o meu poder. Não embato num obstáculo que nesse choque pelo menos eu toco e que,

uma consciência expressa. Este passado que já é passado é revelado pela ao superá-lo ou ao suportá-lo, integro na minha vida e cuja alteridade suspendo. A

“angústia”. “A angústia é angústia da morte por um ser que é precisamen- morte é uma ameaça que se aproxima de mim como um mistério; o seu segredo de-

te ser-para-a-morte. O poder-ser está em perigo de morte, mas o poder-ser termina-a – ela aproxima-se sem poder ser assumida, de maneira que o tempo que me

é precisamente o que ameaça”81. No entanto, esta emoção não é o medo de separa da minha morte, ao mesmo tempo diminui e não deixa de diminuir, comporta

a vida acabar, mas sim o fato do Dasein caminhar em direção ao fim: ele como que um último intervalo que a minha consciência não pode transpor e em que de

tem de ser, mas também tem de morrer, está aí a facticidade. algum modo se dará um salto da morte até mim83.

Heidegger fala também sobre a decadência, que é a ignorância da


morte, caracterizada pela cotidianidade e pela modalidade da fuga vivi-
da pelo ser-para-a-morte, que acaba por atestar a angústia. Ele sabe que, Em Lévinas o ser não se aniquila, mas se perpetua. A duração não é
à medida que existe, também morre, por isso foge da certeza mais certa mais medida a partir de seu nascimento e morte, mas do fato de o homem
perdendo-se nas coisas e interpretando-se a partir destas. Esta fuga é, na poder lançar um apelo à interioridade do outro homem. Não se trata de
verdade, o verdadeiro reconhecimento da morte, que é a possibilidade um drama do ser enquanto ser, pois o ter-de-ser não esgota o sentido da
mais certa e que possibilita toda a possibilidade. duração. Lévinas mostra que o pensamento de Heidegger é exatamente
A morte é fenômeno do fim e, ao mesmo tempo, o fim do fenômeno. o oposto.
É o retorno do ser em si, o oposto da fenomenologia. Lévinas pergunta-se
se se deve pensar a morte como o fim da manifestação, como questão sem Para Heidegger, pelo contrário o ser é ofício, é Sache. A maneira como o ser é em

fundamento, como aniquilação. Para Heidegger a morte é pensada a par- relação ao seu próprio nada é o si-mesmo. O “ter de” do ter-de-ser (à-être) é compreen-

tir da minha morte. Se ser é ter-de-ser, ser é ser-para-a-morte e ser-adiante- dido a partir do seu ser. O questionamento é uma modalidade de sua gesta de ser84.

de-si é ser para a morte. Assim é como o homem é pensado na sua tota-
lidade: em sua relação com a morte. Há uma prioridade da relação com
o porvir como relação com uma possibilidade e não com uma realidade. Em Heidegger, o tempo deve a sua originalidade como temporaliza-
A morte não é o instante, mas o reportar ao possível enquanto possível. ção, a partir do porvir, à finitude da existência humana, centrada no ser. A
“É pela morte que há tempo e Dasein”82. A morte é um evento absoluto da mais autêntica modalidade do humano é a iminência do nada, o ser-para-
a-morte é o mais próprio do homem. E tudo quanto é esquecimento da

80. Idem, pág. 68.


81. Idem, pág. 70. 83. Totalidade e Infinito, pág. 232.
82. Idem, pág. 75. 84. Deus, a Morte e o Tempo, pág. 77.
74 NARA RELA lévinas e a questão da morte 75

morte é inautêntico ou impróprio e a fuga da morte na cotidianidade leva não-ser-para-a-morte. Em Bergson a duração torna-se vida inter-humana,
a um retorno a ela pela certeza contida na motivação do fugir. podendo o homem lançar um chamado à interioridade de outro homem.
O filósofo chama a atenção para o Outro-no-Mesmo como categoria Lévinas retira de Bloch a forma de pensar o sentido da morte de um
primeira, pensando o no diferentemente de uma presença. O no não sig- modo a exceder a sua significação. Enquanto em Heidegger o evento do
nifica uma assimilação, uma vez que o Outro não é um outro Mesmo. ser é o evento último, em Bloch o evento de ser está subordinado a um
O Mesmo vive uma situação de inquietude instigada pelo Outro que é evento no qual o homem encontra seu lar através da realização do mun-
esperado. O Mesmo, contendo mais do que o que pode conter, é o Desejo, do. Em seu pensamento também há a angústia, mas essa se daria na me-
a procura a paciência e a delonga do tempo. Essa inquietude é resultado lancolia de uma obra inacabada. Concorda Lévinas que o tempo pensado
da visão do Mesmo da morte no rosto do outro, que levanta a questão a partir da morte, como em Heidegger, coloca o evento da morte como
da alteridade: a responsabilidade pela morte do outro, cuja passagem ao privilegiado em relação a este, que é pensado em função da morte singu-
plano ético é o que constitui a resposta a esta questão. lar, da visão privilegiada do Dasein sobre todas as outras. “No ser-para-
a-morte, a presença relaciona-se com ela mesma enquanto um poder-ser
A versão do Mesmo para o Infinito que não é, nem visada, nem visão, é a questão, privilegiado”87. É a epopéia do ser caminhando rumo à sua aniquilação,
questão que é também resposta, mas de modo algum diálogo da alma consigo mesma. ao seu nada, ao já-não-ser-mais, cuja duração é definida por sua própria
Questão, prece – não será ela anterior ao diálogo? A questão comporta a resposta como mortalidade. A morte vem, é certo, mas não se sabe quando. A emoção ge-
responsabilidade ética, como fuga impossível85. rada por esta situação de pendência é a angustia referente ao fato de que
a presença, como ser lançado, existe para seu fim, uma vez que retirar-lhe
o que há de pendente significa aniquilar o seu ser.
5. Considerações finais As razões que levaram Lévinas a escolher a filosofia de Bloch em de-
trimento à ontologia de Heidegger são: o ser-para-a-morte não constituir
Em seus cursos na Sorbonne durante o ano universitário 1975-1976,
a única possibilidade ao homem de alcançar sua identidade, liberando-o
Lévinas nos convida a pensar o tempo independentemente da morte, as-
da preocupação única consigo mesmo; a subordinação do ser e do mundo
sim como pensar a morte em função do tempo, sem ver nela o próprio
à ordem ética, à ordem humana, ao acabamento; e a maneira como Blo-
projeto do tempo ou mesmo por relação com o nada saído da simples ne-
ch retira do tempo a idéia do nada, ligando-o ao acabamento utópico e
gação do ser. Para ele, o tempo deve ser procurado não no nada da morte,
afastando-o de qualquer idéia de aniquilamento. Tudo isso se constituiu
mas em “uma camada do psiquismo mais profundo do que a consciência,
um terreno fértil para as idéias éticas de Lévinas voltada para o Outro,
do tipo de um evento no qual se rompe o evento”86. É o sentido de uma
para uma ética da alteridade.
deferência para com o infinito ou o Outro.
Em Heidegger o ser é pensado de forma singular e privilegiada e o
Bergson foi a fagulha inicial para Lévinas abandonar o solo da ontolo-
ser-com-o-outro como uma relação secundária e inevitável, uma vez que
gia heideggeriana. Sua filosofia promoveu o afastamento da idéia da na-
o Dasein é lançado no mundo, e ser-com-os-outros é estar inserido na
dificação e da noção de que a morte se identificaria com o nada, uma vez
mundanidade e falatório, cujo fim é a decadência. Somente sofrendo a an-
que o homem, ao contrário do que afirmava Heidegger, seria um modo de
gústia do nada que o ser deixa a decadência e leva uma vida autêntica. O

85. Idem, pág. 131.


86. Idem, pág. 128. 87. Ser e o Tempo, pág. 328.
76 NARA RELA lévinas e a questão da morte 77

ser de Heidegger é sofrido, angustiado, caminhando rumo à morte. Até, HADDOCK-LOBO, Rafael. Da Existência ao Infinito: ensaios sobre Em-
então, é pendente e não é seu todo, uma vez que atinge sua completude manuel Lévinas. Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio; São Paulo: Loyola, 2006.
com a morte, o que significa dizer que o ser só é quando não é mais.
Servindo-se do pensamento de Bergson e Bloch, Lévinas como que HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
promove um deslocamento da ontologia, não mais centrada egoistica- Editora Universitária São Francisco, 2008.
mente no ser privilegiado de Heidegger. Não se trata do ser único, mas
do ser plural, compassivo, que não se acaba com a morte, mas se perpe- HUTCHENS, B. C. Compreender Lévinas. Petrópolis: Vozes, 2007.
tua. De Bergson retira a idéia de que somente o visível morre, de que há
uma vida inter-humana que se prolonga ao se abrir para a interioridade INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
do Outro. Bloch perpetua a vida do ser através das obras que ficam. Em Ed., 2002.
Heidegger o ser lançado faz a si mesmo no caminhar para a morte e em
Bloch o ser faz o mundo. O ser de Heidegger é sofrimento e passividade LÉVINAS, Emmanuel. Deus, a Morte e o Tempo. Coimbra: Almedina,
e seu futuro é o nada, enquanto que o de Bloch é ativo e participa da 2003.
construção do mundo que partilha através de suas obras, as quais o fazem
transcender a morte. _________________ . Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis:
Lévinas reúne o pensamento de Bergson e Bloch e os supera ao intro- Vozes, 2005.
duzir o “amor forte como a morte”, que não se trata de uma força que
pode repudiar a morte inscrita no ser, pois a angústia não está no meu _________________ . Totalidade e Infinito. 3ª. Edição. Biblioteca de Filo-
não-ser, mas no do amado ou no outro, mais amado do que o meu ser. sofia Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 2008.
Para ele, o amor é o fato da morte do outro me afetar mais do que a minha
e constitui-se o impulso para deslocar a filosofia para fora do eixo ontoló- _________________ . Da Existência ao Existente. Coleção Travessia do Sé-
gico. É o meu acolhimento de outrem e não a angústia da morte que me culo. Campinas: Papirus, 1998.
espera que é a referência à morte. Ele conclui: encontramos a morte no
rosto de outrem. STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da in-
terrogação Heideggeriana. Coleção Ensaios – política e filosofia. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2001.
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COSTA, Márcio Luiz. Lévinas: uma Introdução. Petrópolis: Vozes: 2000.

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2004.
78 NARA RELA 79
80 NARA RELA

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