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Gênero e Sexo: onde há differánce?

Alexandre de Oliveira Fernandes

Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado da Bahia. Mestre em Letras:


Linguagens e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz / UESC.
Doutorando em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ. Professor de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de
Educação Tecnológica da Bahia - IFBA/Porto Seguro. Desenvolve pesquisas nas áreas
de culto aos orixás, mitologia, semiótica, antropologia das religiões, linguística,
literatura, leitura e escrita, currículo, educação, pós-estruturalismo, Michael Foucault e
Jacques Derrida.

Resumo:

O presente ensaio problematiza a suposta oposição gênero/sexo, denunciando categorias


metafísicas, como resultado de relações de poder e dominação. Trata esses pares de
opostos não essencialmente pela diferença, mas pela relação entre condição e
condicionado, com mútua implicação cultural, transferência contínua, vazamento e
fluidez, dando lugar à desconstrução da oposição. A diferença entre “gênero” e “sexo”
não os opõem, antes, sugere a multiplicidade, a heterogeneidade, a pluralidade. Trata-se
de um movimento de resistência à tirania do Um.

Palavras-chave: gênero; sexo; relações de poder

Resumen:

Este ensayo discute la supuesta oposición de género/sexo, denunciando categorías


metafísicas como resultado de las relaciones de poder y dominación. Estos pares de
opuestos no son tratados esencialmente por la diferencia, pero por la relación entre
condición y condicionado, con implicación cultural mutuo, transferencia continua,
llevando a la deconstrucción de la oposición. La diferencia entre "género" y "sexo" no
se opone, además, sugiere la multiplicidad, la heterogeneidad, la pluralidad. Se trata de
un movimiento de resistencia a la tiranía del Uno.

Palabras clave: género; sexo; las relaciones de poder

A mi entender, la tarea de todos estos movimentos consiste em


distinguir entre las normas y convenciones que permitem a la gente
respirar, desear, amar y vivir, y aquellas normas y convenciones que
restringen o coartan las condiciones de vida.
Judith Butler
Identidades lésbicas, gays, travestis, transgêneros, transexuais, dragqueens e
dragkings, do “homem do século XXI”, da mulher solteira e independente, fazem
chacoalhar a heteronormatividade compulsória, abalam o que se entendia anteriormente
por mulheres e homens estáveis, quando em fato, somos diferença:

(...) nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história é diferença das
épocas, nossos eus são a diferença das máscaras. Essa diferença, longe de ser
a origem esquecida e recuperável, é essa dispersão que somos e fazemos
(FOUCAULT, 1997, p.151).

Neste sentido, cabe acolher o gênero como a inscrição cultural de significado


num sexo previamente dado, isento e a-histórico? A oposição entre “masculino” e
“feminino” é atemporal, neutra e universal? O sexo é biológico (apenas) ou tem uma
história? Como tratar estas categorias sem essencializá-las?
Estas questões se contrapõem à ideia de origem absoluta e presença imaculada,
pois apontam para o aparato de produção do significado transcendental, que insiste, por
um lado, em “produzir uma traduzibilidade absolutamente pura, transparente e unívoca”
(DERRIDA, 2001, p. 26) e, por outro lado, em esvaziar a vida e a potência do
pensamento.
A metafisica ocidental é a sistematização dessa ilusão ou desse delírio de
presença, construído sobre a percepção de oposições: masculino e feminino; sexo e
gênero; heterossexual e homossexual; azul é para menino, rosa para menina; meninos
são fortes, meninas são dóceis e gentis; banheiros devem ser separados por sexo, assim
como profissões, roupas, costumes.
Com Jean-Louis Houdebine, questionamos: “que se passa, então, com essas
‘diferenças’ que, efetivamente, não caíram do ceú?” (DERRIDA, 2001, p.88).
Símbolos e significados, sistemas de representação são construídos a partir desse
saber (de diferença sexual, da categoria “gênero”, transformados em dispositivos de
saber e poder) e utilizados para a compreensão das relações entre homens e mulheres.
Desenvolvem técnicas de normatização, correção e educação sexual que, ao invés de ser
o reflexo transparente do “eu”, resultado de uma verdade externa (ou interna), resultam
de produção discursiva de conhecimento sobre o “self” (SCOTT, 1999. p.45). São estes
discursos fortemente reiterados na sociedade, construindo subjetivações coercitivas, as
quais produzem sujeitos coagidos, interditados e constrangidos.
Isto quer dizer que, o sistema de representação dual (menino/menina,
homem/mulher, marido/esposa), gera uma ordem simbólica com uma série de regras
que ordenam, sustentam, convalidam o sentido da realidade e a cultura. Explicam,
portanto, as relações sociais, dão sentido e reconhecimento, numa ordem compulsória,
que exige deferência total à relação entre um sexo, um gênero e um desejo/prática
heteronormativos.
Doravante, para respirar um pouco, retomemos a epígrafe deste texto e com
Judith Butler (2002) propomos que a viabilidade da vida depende do exercício de
autonomia corporal e das condições sociais que possibilitam esta autonomia. Viver e ser
feliz podem estar relacionados à proliferação de prazeres fora do contexto bem marcado
das normas.
Se a metafísica é código de conduta, uma forma de pensar o mundo, uma norma
de reconhecimento pela qual o humano se deixa ver, então, torna-se fundamental a luta
pelo direito de outros exercícios, que potencializem o pensamento e a vida.
A metafísica é capaz de disciplinar o desejo pelo discurso (e o sujeito que não é
mais racional e autônomo como queria o Iluminismo), mas, há espaço para que o desejo
se insurja como um indisciplinado. Isto tem lugar na constante ressignificação da
linguagem como expressão do pensamento em palavras, em gestos e toda sorte de
expressão da atividade psíquica.
Estamos nas malhas das questões da linguagem, do poder e da disputa, na arena
de luta e violência que é a sociedade e a cultura. “Quem está no poder controla a
história” (HUTCHEON, 1991, p. 250). A cultura não é transparente, autossuficiente,
natural, mas espaço de luta, contestação, em que jogos performáticos e dialógicos, jogos
de poder, proporcionam um “fenômeno cultural inter-relacionado de uma forma
complexa com outros fenômenos” (BUTLER, 2002, p. 171). Os objetos da cultura que
tentam se mostrar como transparentes e não inventados, são exatamente aqueles do
delírio da presença, os quais, tentam ocultar as performances de sua invenção.
A luta por direitos pode provocar (e ampliar) normas e convenções que deem a
outras experiências de ser e viver a legitimidade cultural e legal necessária. Vide por
exemplo, os embates sobre outras formas de parentesco, a adoção de crianças por casais
homoafetivos, os direitos do matrimônio a casais gays, o acesso à tecnologia
reprodutiva.
E quando se diz luta por direitos, deve-se pensar também no direito de significar,
ou seja, de constituir e movimentar discursos, de provocar subjetividades, haja vista que
sujeitos são constituídos discursivamente. Ser construído discursivamente implica que
nossas experiências estão atreladas a uma teia de significados compartilhados,
significados culturais nos termos de Clifford Geertz (1989). A experiência,
paradoxalmente, já é uma interpretação do mundo e algo a ser interpretado, é a história
do sujeito (e não do indivíduo) – monumental, estratificada, contraditória, fruto de
repetição e rastro. A linguagem é o local onde essa história é encenada, logo, urge lutar
pelo poder de dizer.
Não ignoramos que todo sonho tem seu contra sonho. A sociedade é uma arena
de luta e embate em todos os aspectos e sentidos. Judith Butler (2002, p. 168)
argumenta que está em curso uma retomada de teorias estruturalistas na França, no
horizonte político contemporâneo. O tabu do incesto está sendo utilizado, no contexto
francês, para justificar um projeto racista e garantir a fantasia da nação universal e
homogênea. Deste modo, sustentaria a pureza cultural francesa, contra as ameaças dos
novos padrões de imigração, o crescente número de relações inter-raciais, a mestiçagem,
a desestruturação de fronteiras.
Noções como família, parentesco, sexo, gênero são mais bem compreendidas
sob rasura, como espaços de movimento de sentido e cena de escritura, em que
interveem toda uma economia sígnica, atravessada pela formação das identidades
nacionais e transnacionais, as cosmologias, as religiões, as hierarquizações em torno da
raça, do gênero, das taxonomias das espécies, dos modos de pensar e se fazer ciência, a
medicina, o judiciário, a tecnologia, as diásporas, a globalização, a economia e a política
global, a saúde, a bioteconologia, a biomedicina. Tais intervenções não podem ser
compreendidas sob a clausura da oposição porque além de excludente e preconceituosa,
demonstra-se falível.
A oposição que tenta aprisionar os corpos mostra-se ineficiente porque o “real” e
o “sexualmente fatual” dão lugar a contravenções. Estamos dizendo com isso que, a
quimera da oposição, seu delírio e ilusão não abarcam a dinâmica da sexualidade.
Impõem ações aos sujeitos (por meio de desejos inventados), as quais nunca se tem
realmente acesso. Pergunta Butler (2003, p.210), “será que isso oferece a possibilidade
de uma repetição que não seja inteiramente cerceada pela injunção de reconsolidar as
identidades naturalizadas?”
Quando há tantas expressões de gênero porque assumir a categoria mulher como
a única que se opõem à categoria homem? Tantas coisas são possíveis com homens e
mulheres para além do “familiar”. A genética, o desenvolvimento tecno-científico
liberam nossa imaginação.
Qual o perigo e a que preço (sociais, afetivos, psíquicos), o mundo está sendo
entendido em termos de entes e essências fixas, definidas com base em diferenças
identificáveis? Não é assim que grupos fundamentalistas tratam categorias, a saber,
infância, família, sexualidade, religião, como um dado-dado associado à natureza e
retirado da ação humana? Não é esta a artimanha da metafísica, capaz de intervir em
diversos domínios da vida social – sustentando tradições –, tratando-os como se fossem
únicos, isentos de histórias, como se fosse possível um significado transcendental e
autorreferente?
Recentemente, Kleber Kruger, professor do curso de ciência da computação da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, defendeu o fim de cursos de “formadores
de bichonas” em sua página no Facebook 1. E sem grandes preocupações agrediu:
“Depois eles tomam uma surra, morre um viado lá no Campus, sai no jornal e pronto!”
Kruger é metonímia de discursos fundamentalistas que incitam à violência com vistas a
convalidar o desejo heterossexual autorreferente, o qual, por definição não se cruza
jamais com nenhum desejo homossexual. Para além deste caso que colocamos aqui em
relevo, importa o estudo de Debora Diniz (2014), “O escândalo da Homofobia: imagens
de vítimas e sobreviventes”, ensaio em que analisa imagens de homofobia em veículos
de notícias no Brasil.
Ora, nenhum signo tem uma existência independente de suas relações com
outros signos. A “origem” é dual. A dualidade é a referência. A origem é produto da
sociedade, da cultura, das relações de poder. Nenhum signo possui tal fixidez que não
seja passível de acréscimos ou comentários. Ele não deve ser lido de modo linear, com
correlações simples e única variável porque está ligado a todo um sistema de
implicações, a uma máquina de produção de sentido. Qualquer movimento de “fazer
leitura” põe a trabalhar todo o sistema.
O signo é "desde já” o resultado de economia de verdade, uma entidade fluida,
que não existe como um sozinho no mundo, mas dá-se a perceber a partir de relações
fluidas e movimentos de diferença. A isto, Jacques Derrida (2001, p. 33) denomina de
différance: “o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do
espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros”.

1
Cf. http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/professor-universitario-defende-fim-de-cursos-
formadores-de-bichonas.html.
A diferença é estável e linear, a différance é movimento, não tem limite, nem
espelho, ou seja, não toma a si mesma como seu ponto zero, não há a mesmidade. A
différance é a diferença que toma como referência outra coisa que não a si.
A différance problematiza o delírio da presença porque aponta para o
deslizamento do código linguístico, um movimento performativo dos jogos da
linguagem que possibilita interpretações diversas, levando, inclusive, a uma
desconstrução possível da hierarquia. Assim, neste “jogo”, não se chega à verdade, mas
a substituição de uma interpretação por outra. Isto apaga o mito de uma origem
presente.
Se deslocamos nosso olhar para a estruturalidade da estrutura, se buscamos
“compreender como alguma coisa está construída, o que requer reconstruí-la,
desmancha-se uma edificação” (GABILONDO, 2001, p.171). A metafísica da presença
se desmantela, porque a (suposta) onto-presença remete, inevitavelmente, para outras
presenças. Vê-se, portanto, diferida, adiada, implodida num processo de interpretação
de interpretação. A ontologia é assim, não uma fundação, uma instituição intocável e
sólida, mas uma injunção normativa que, instalada no discurso filosófico, político,
jurídico, amealhada à sociedade e à cultura institui-se como fundamento capaz de
assinar a si mesma.
Aquilo que percebemos (o significante) e o significado que apreendemos (o
significado) não têm relação necessária. A isto, Ferdinand Saussure chamou de
“arbitrariedade do signo”, ou seja, qualquer significante é “vazio” antes de se tornar um
signo. A princípio, qualquer “coisa” poderia ser chamada de qualquer “coisa”.
Por que então, o significado teria de ser percebido a partir de um dado
significante? Ao opor diferenças num sistema de valor fixo e inviolável, a metafísica
leva-nos a pensar o mundo por meio de uma ontoteologia perigosa, rígida e excludente
que guia as relações com o futuro. A forma através da qual lemos o mundo pode nos
contar muito sobre como a análise de algo foi dirigida.
Além de perigosa, a visão diádica é pouco humilde. Não corrobora com o
pressuposto de que a complexidade da existência é tamanha que sempre há uma
dimensão que desconhecemos. Este não saber é condicionante da sexualidade.
Michael Foucault em “A história da sexualidade”, defende que o discurso
unívoco do “sexo” aponta para a regulação e controle social de suas práticas. Isto reduz,
oculta, fixa o sexo artificialmente e determina uma “essência” sexual que deve ser
perseguida pelos sujeitos. Por meio de uma unidade enigmática e incerta, justificam-se
práticas sexuais. Aqueles desejos, sensações e prazeres que não se coadunam com o
discurso unívoco, são tratados como desviantes.
Mas, é possível romper com a metafísica? Jacques Derrida (2001) propõe que
“há” uma transgressão (im)possível, porque, ao agredir, ao tentar transgredir a
metafísica, utilizamo-nos de um código ao qual a metafísica está invariavelmente
ligada. Recorremos a esta herança no afã de detê-la e romper com ela. Ao fazê-lo,
colocamos a metafísica em movimento e voltamos a nos encerrar em seu interior.
Todavia, se não podemos “viver” sem o suporte da metafísica, tampouco,
podemos aceita-la como está, ato contínuo, somos desafiados a movimentá-la, com o
trabalho que se faz de um lado e de outro do limite da metafísica, modificando seu
interior. Assim, certa transgressão tem lugar porque movimenta, esgarça, borra seus
limites. Ao questionar, ao problematizar a metafísica, colocando sob suspeita os pares
de opostos, uma movimentação “transgressiva” acomete a metafísica, marca e afrouxa
seus limites.
Nas palavras de Jacques Derrida (2001, p. 30), o embate com a metafísica deve

transformar os conceitos, desloca-los, volta-los contra seus pressupostos, re-


inscrevê-los em outras cadeias, modificar pouco a pouco o terreno de
trabalho e produzir, assim, novas configurações; não na ruptura decisiva, na
unicidade de um ‘corte epistemológico’, como se diz hoje, com frequência.

Não há o “corte epistemológico” em definitivo, mas movimentar as estruturas


sociais, questionar a metafísica e seus pressupostos como não sendo condição sine qua
non para a cultura, viabiliza o acolhimento de outras narrativas culturais, as quais,
podem dar suporte a outras formas de ser e existir, bem como transformar (e ser
transformada por) saberes como o jurídico e a psicanálise.
Questionado por Elisabeth Roudinesco, acerca de os casais homossexuais
buscarem ser tão “normais” quanto os casais tradicionais, a ponto de imitá-los de
maneira caricatural, o que ela chama de desejo de normalidade frente as discriminações
e os discursos de exclusão, interpõe Jacques Derrida (2004, p. 50):

Será que um casal de homens homossexuais propõe ou impõe dois pais


masculinos para seu filho? Não estou certo disso. Será que um casal de
mulheres homossexuais engendra duas mães? Será que não existem sempre,
em todas essas situações, “no nosso mundo”, um pai e uma mãe, o pai e a
mãe? Incluindo até avós, tias e tios, todo tipo de alternâncias e substitutos,
como sempre, entre os amigos etc? Para além de qualquer interpretação
jurídica, pergunto-me sobretudo como (e se) o modelo familiar, referência
bastante estável e fundadora para a teoria psicanalítica, poderá, ao se
transformar, transformar a psicanálise.

As histórias e fábulas ocidentais que nos contam de como Deus criou Adão e
Eva ou a que nos reporta ao mito de Édipo, com suas visões heterossexistas, servem de
referência a um garoto que tenha sido adotado por pais homoafetivos? Servem a um
garoto que em dado momento de sua vida se perceba gay? Servem a uma menina cujos
pais recorreram à inseminação artificial? Não seria mais produtiva uma visão de mundo
que refletisse narrativas não fixas, que se modificam e se interrompem ao longo do
tempo, resultado de lutas (invenção) culturais?
Há, em curso, o deslocamento do modelo familiar estável, o que implica o
desmonte da abordagem psicanalítica que sustentou a metafísica até o momento. Isto
cabe para o aparato jurídico, antropológico, médico etc. O contrário disso – não
acompanhar as mudanças em curso –, transformaria, qualquer ciência em uma
deontologia, em que, forçosamente, seus praticantes seriam censores, promotores
(talvez não da ciência, mas da moral, da religião, dos bons costumes).
Apoiada em pares de opostos hierárquicos, imbricadas a relações desiguais de
poder, a metafísica leva à caricatura do segundo termo, esconde a trama violenta ali
engendrada, passando tal relação por bondosa e natural. Esta pureza originária,
contestada por pensadores como Jacques Derrida, Joan Scott e Judith Butler, é cindida,
fragmentada, diferida, porque infectada pelo que se segue dela.
A origem (dos sexos!) tem uma história, sendo ela também originada, forjada,
inventada, construída, em parte, como uma cadeia infinita de relações. Isto nos
possibilita uma estrutura e um movimento que não se deixam mais pensar a partir da
oposição presença/ausência.
O sonho de pureza ignora sistematicamente contribuições de estudos referentes à
polissemia, à polifonia e à disseminação. Ora, é possível que um texto seja homogêneo?
Não depois de Babel como o mito da tradução, a relação que se dá entre a vida de um
texto, sua sobrevivência, sua não-sobrevivência na tradução. É possível um sujeito
soberano e responsável capaz da interpretação perfeita? Não depois de Sigmund Freud e
o inconsciente – com seu texto (do inconsciente) permeado de rastros e diferenças que
combinam força e sentido, um texto que não está em lugar algum, cujos arquivos são
“desde já” transcrições (DERRIDA, 2001). Não depois dos estudos da forma narrativa,
do intertexto, das estratégias de representação, da “microfísica do poder” e da
“genealogia” foucaultiana – que desloca nosso olhar da história das coisas para a
história dos discursos, ou seja, ao invés de historiar os fatos e dizer quais são os válidos
e os não válidos, importa descrever como os fatos (resultados de jogos de força política
e relações de poder) legitimam uma forma de explicar o mundo.
Se a origem do “signo-dado” é significada em textos, em sistemas de
representação, em economia da verdade, signos fazem-se necessários. A “economia da
verdade”, é movimento (por vezes irônico) que tenta apagar a trama que envolve a
produção de sentido. Mas, não se consegue apagar. A supressão torna-se
sobreimpressão. Apagando, aparece. Apagando, tudo acontece. Deixa rastros, rastros de
supressão, decalque materializado que irrompe. Não é este o caso do recalcado? Não é
este o pesadelo do discurso único, parasitado como Sísifo, ad aeternun, por aquilo que
se esforça em manter reprimido?
O sentido é, em fato, diferido e não uma verdade. Diferido porque o sistema de
diferença exige que para que haja sentido, para que um elemento “funcione”, é
necessário remetê-lo a outro elemento, numa economia de rastros. Estes rastros, quando
apagados, encobertos, ignorados, são a verdade (suspostamente!). A verdade é a
economia de rastros que não se deixa ver. A verdade só se dá numa faxina delirante e
violenta contra os rastros.
Signos arrastam consigo contextos, histórias, apartes, futuros, intrigas,
concordâncias e dissenções. Nenhum signo está ileso aos signos a seu redor. Para que
funcione (como num “fiat lux”) há o movimento de um cadeia infinita de significantes
que lhe deixa marcas, desde a origem (inventada). Estas marcas são rastros que
denunciam o caráter performativo dos signos, os processos que lhe deram existência.
O pleno só “existe” na relação com a alteridade e, logo, deixa de ser pleno. O
“eu” não existe sozinho senão na relação com o Outro. É na relação com o outro que a
identidade é forjada, por isso, impossível de ser fixa e estanque senão fluida e plástica.
Para que produza sentido o (suposto) pleno-presente, deve se relacionar com outra coisa
que não ele mesmo – o sujeito idêntico a si não existe –, guardando em si a cena desse
contato, as marcas do elemento passado e deixando-se molhar pelas marcas da sua
relação com o elemento futuro (DERRIDA, 1991, p. 55).
O gênero não é, portanto, um conceito neutro porque tem uma história, tem uma
assinatura, uma contra-assinatura, um copyright2, um lugar, um tempo, uma língua, uma
traduzibilidade. É produto e produtor de ideologias, como a ideologia patriarcal e o
poder desigual legado a mulheres e homens: homem/marido, mulher/esposa.
2
Sobre os direitos da cópia, vale conferir Jacques Derrida, Limited Inc. (1991).
Estuda-lo implica questionar não só como o sexo é exercido em sociedade, mas
como as relações que travamos com o desejo e as normas sociais constituem sujeitos
aceitos e não aceitos, sujeitos de valor e depreciados, sujeitos acolhidos e monstros,
sujeitos da norma e abjetos. Define-se, ato contínuo, quem é humano e quem não o é,
quais sexualidades são permitidas e quais devem ser patologizadas.
Ao longo da vida, por meio de sistemas de interdição, coação e repetição de atos,
gestos e signos, corpos masculinos e femininos são produzidos, num exercício de
gênero intencional, um gesto performativo que produz sentidos necessários à identidade
corporal.
Sabe-se que a atribuição da feminilidade aos corpos (femininos) não é uma
propriedade natural, mas, resultado de múltiplas relações sociais que, a depender da
época, dos limites geopolíticos e das interdições culturais sofre mutações.
Ainda na barriga da mãe, logo que o ultrassom determine um pênis ou vagina –
portanto, “é um menino”, “é uma menina” –, o desejo deverá corresponder,
compulsoriamente, a atração pelo sexo oposto. E se olhássemos para este determinismo
biológico com ceticismo? E se perguntássemos em que “lugar” está a biologia e sua
determinação incondicional dos papéis sexuais dos sujeitos? Tem lugar a biologia em
um vácuo? Pode ela sustentar uma identidade fixa?
Se a identidade fosse fixa, os sujeitos teriam atitudes constantes e sempre
verificáveis, quando o que ocorre é um câmbio social. Pensar a identidade como
flutuante permite que sujeitos heterossexuais possam se mobilizar na luta contra a
homofobia, por exemplo. Se fixa fosse sua identidade, isto seria improvável.
Conceber a ideia do que é ser “pai” na contemporaneidade, borra o sentido fixo
que se pretende para esta palavra. Quem é o pai quando uma família é gerida pela
mulher? Quem é o pai quando uma criança é resultado da doação de esperma? Os
amantes furtivos e ocasionais são o pai de uma criança que jamais verão? Como
defender uma noção fixa de parentesco quando esta está condicionada às inovações da
biotecnologia, às questões das relações mercantis e comércio de crianças?
Contrariar a simplicidade da oposição, retardar a resposta (negativa ou
afirmativa), esquivar-se de uma definição essencialista de gênero e sexo, abre à
imprevisível liberdade. Dá-nos uma chance de mirar horizontes impensáveis para além
da armadilha do binarismo.
Gustavo Benevides, estudante de 21 anos, foi expulso de casa porque assumiu
relacionamento com a transgênero Bruna Marx3. Bruna Marx é servidora pública,
provavelmente será aposentada de modo compulsório, porque fora diagnosticada como
sujeito com transtorno de gênero, e não aceita fazer uma operação para mudança de
sexo. Gustavo Benevides não se sente gay e vive com Bruna. Marcela Ohio, Miss
Internacional Queen, namora Felipe Ávila. Marcela Ohio diz que Felipe prefere relações
com mulheres e não é gay. Declara Ohio que durante as relações sexuais com Felipe
este lhe faz sexo oral e ela tem orgasmos normalmente 4. Em entrevista, pergunta Marília
Gabriela a Marcela Ohio: “Você goza pelo pênis. Quando você tirar isso, como será o
prazer?” Para Ohio, “quando eu operar vai ser uma nova vida. Vou ter de descobrir
novos prazeres, onde sinto tesão”. Laerte Coutinho, cartunista, veste-se de mulher desde
2009, usa brincos e pinta suas unhas, e diz não se enquadrar em nenhuma categoria de
gênero: “É, eu não sou completamente heterossexual.5” Léo Moreira Sá nasceu e foi
chamado Lourdes Helena. Baterista de banda punk feminista, hoje é ator e iluminador
teatral. Ativista transexual, faz parte da diretoria da Associação Brasileira de Homens
Trans. Foi casado durante dez anos com a travesti Gabriela Bionda. Casaram-se no civil
e não no religioso porque não tiveram a permissão da igreja. Na mesma vertente de
Laerte, afirma Léo Moreira Sá: “não sou homem nem mulher. Não acredito em gênero.
Por que vou deixar de ser uma mulher que nunca fui, para ser um homem que nunca
serei?”6. Léa T, transexual desde 2012, diz conhecer várias outras transexuais que
mesmo tendo feito a cirurgia prosseguem com uma subjetividade transgênero 7. Ryland,
filho de Jeff e Hillary Whittington tem aparecido nos sites de notíciais como a menina
que disse aos pais, aos cinco anos de idade: “Sou menino”. Segundo os pais, Ryland
nasceu com um problema auditivo grave e com um ano de idade precisou ser submetido
a um implante coclear. Ryland deixou seus pais confusos porque foi criado em um
espaço decorado e pensando para meninas, seu quarto tinha este tipo de decoração e era
sempre vestido como garota. Assim que aprende algumas palavras, declara de modo
peremptório: “Sou menino”. Preocupados com os altos índices de suicídios envolvendo
pessoas que não se identificam com o gênero dado, decidiram cortar os cabelos do filho,
comprar roupas novas, redecorar seu quarto. Trata-se de uma menina que se tornou

3
Cf. http://oglobo.globo.com/rio/bairros/a-vida-fora-do-armario-10674054.
4
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=ie539Oyid78
5
CAROS AMIGOS, São Paulo: Editora Casa Amarela, ano VII, n. 84, março 2004.
6
Cf. Entrevista para Programa de Marília Grabriela: https://www.youtube.com/watch?v=SYSecegZi_0.
7
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=POxl8OqesG4
menino aos cinco anos de idade8. Os jogadores Cristiano Ronaldo e David Beckham
costumeiramente tem sua sexualidade questionada porque cuidam do corpo,
sobrancelhas, se depilam, pintam as unhas e não se furtam a usar roupas ditas femininas
ou flor no cabelo.
Estas formas de exercer a complexidade da vida (e inclusive o fascínio que
despertam: não são sucessos midiáticos, guardadas as proporções, Laerte, Marcela Ohio,
Léa T, Cristiano Ronaldo e David Beckhan?), desafiam o pressuposto humanista do eu
unificado e de uma consciência permanente. Injetam por meio da subversão problemas
para a subjetividade coerente, contestando os privilégios da ideologia dominante.
O que ocorre efetivamente quando um sujeito não se sente dragqueen porque
não se veste de mulher para fazer performances, tampouco não é transexual porque não
tem interesse em submeter-se à cirurgia de mudança de sexo e nem está insatisfeito com
seu corpo biológico? Até onde vão as nomenclaturas e seu enquadramento? É possível o
pós-gênero? É possível o sujeito sem gênero? É possível a indecidibilidade?
Estas questões corroem a noção de originalidade e a autoridade da presença
porque demonstram que todas as práticas sociais são culturalmente fundadas,
manietadas por um texto ideológico, contraditório e político, que sustenta as suas
próprias condições de produção e de sentido.
A identidade, numa perspectiva desconstrucionista, se existe, não se nomeia,
resiste à análise, permanece sempre por analisar, é dividida, multiplicada, conjugada,
fragmentada, partilhada desde sempre. Importa como tarefa fundamental situar
estratégias subversivas (promovidas dentro da construção que pensa poder enclausurar
corpos em sua totalidade), afirmar possibilidades de intervenção, contestando
identidades bem marcadas.
Neste aspecto, o corpo hermafrodita, o desbunde dos transformistas, a paródia
das dragqueens (que trabalham dentro e fora dos contextos “permitidos” cuja ironia e
intertextualidade solapam o discurso da unicidade), a presença do transgênero nas
baladas, o corpo transexual denunciam e refutam categorias e estratégias de regulação.
Este movimento contraria o pensamento metafísico, a injunção normativa, todo
o delírio da oposição e seu interesse em estabilizar definitivamente a identidade de
gênero. Acolhe em hospitalidade absoluta um devir outro, um nada-querer-dizer sobre

8
Cf. http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2014/05/30/menina-se-torna-garoto-aos-
cinco-anos-de-idade.htm#fotoNav=11
identidades sexuais e seus deslocamentos constantes. Tenta, tende e aporeticamente,
detém-se no ponto de esgotamento do querer-dizer.
O pensamento binário está carcomido porque, em sua lógica excludente, não
auxilia à compreensão daquilo que escapa, do errante e da incerteza. Que alto preço,
psíquico e social, não se paga ao circunscrever corpos normatizados dentro de narrativas
heterossexuais?
Tais narrativas devem ser questionadas, pois, o processo de ser e estar no
mundo, a relação complexa que travamos com o Outro, não é diádica apenas. Se assim o
fosse, o “eu” permaneceria no centro do desejo do Outro, numa vertente puramente
narcisista da relação. Mas, se aceitamos que o desejo não é algo simples de traçar, se
compreendemos que o desejo não segue normas rígidas, cartesianas e matemáticas,
corre-se à agonia do deslizamento e do indecidível.
O indecidível é uma espécie de travesti, uma referência irredutível. Está lá e cá,
dentro e fora, sorrateiro ri, ironicamente nega-se a dar respostas simples porque sabe
que, por meio de uma consciência semiótica todos os signos mudam de sentido ao longo
do tempo e do processo de tradução. A legibilidade é, portanto, feita de rastros que se
tornam legíveis na e sobre a linguagem. Por que então a nostalgia e a atração pelo
consenso e o axioma seguro (e empoeirado) de coisas antigas, fixas e estanques? A
différance de gênero e sexo passa pelo indecidível, pelo amor ao inacessível, pela
alteridade e a hospitalidade infinita, um importante alerta contra a sedimentação dos
discursos, da linguagem que utilizamos e das armadilhas que se nos armam.

Referências bibliográficas

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