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oe ee ee | OGRSICO DE UM ANID SEXTO. VOLUME DA BIBLIOTECA INFANTIL NTIL TE AS CRIANCAS BIBLIOTECA INFA DEDICADA ESPECIALME DIRIGIDA PELO PROPRIO AUTOR ‘Ti sc acham publicados © est80 di venda os seguintes volumes desta intarossante © utllissima osiepio: 95 MEUS BRINQUEDOS—omelhor © mais encantador fivro para eriangas, que existe em lingua porty; unico no seu genera. Contem inumoras cantigns ars Adgrmocer uO erga; brincadeiras ¢ divertimentos pard todas ag Idides; Jogon le prendas © senteneas; © peas pr Para. sorom represeatadas por mentnos 6 meninis, em ens, nos colegio © em tentrinos particulares: tudo acompanhade Ob Contonas de gravuras uxplicativa : e seretves 49000: TEATRINHO INFAt — esplendlda colegio dé manglogos, disiogos, senans- cotialcas, dramus, eomodins, op versa), Droprins PATS serem. Teprasentadas a e288 Com aconarios, Yestimentas @ exe Paeterigagto . 7 : A 4 DAS CRIANC excelente obra ence mals celebres e moderns autores, destinadas a infanch ‘om éalns, nox colegio’, a baragar. St; 9 CASTIGO BE ‘ escriptor Loilo Tolsto ate o sentimental, Bascado ma maxima christ fee was aoe oictros, obra divina, plodosa @ cheia do virtada..-.s+cesuv.0 CONTOS DAC —cam Meontes. . HISTORIAS ¥ com 80 contes. HISTORIAS NHA—com 50 contes. HISTOR TIN: —com 10 contos. Estes quatro ultimos livros contitm gasea eontes quo todos més ouvimos om peque: ninoe, contadas por nosaas mBis, velhas avainhss, tins, madrinhas, amas, ate. o8¢,, eontos Topularissimos, moraes o piedasos, que sabom as crinnens todas dé todos os palzos, Bho Tarri¢es de fantasia onde hia fadns, lobishomers. genios misteriosos, animans frlantes, Traxas, felticeiros © cucantamentos, mas om lingaagem simples, Ineatinds sampra w Wés do; lem e da virtnde. : “Cada livro férma um groséo volume do §20 a doo pagigas, com milbares de vinhes ; ta88 Eravcras, impressoem papel de boa qualidade, tipo novo © letras de tantasla, ‘enoudemado, ¢ xompre com a mesnis chpa ltografads a eoras. Este aviso torna-£o indisponsavel, divide 4% imitaedos que ae Sclepio para criangas. Assim, pepa-ro xeinpre a Biblioteca Infant io culdado na, capi Dropriss para serem réeitadas S ete. onsinando as crianpas a declamar® 90 deseni- . 42000, — delictoso & moralissimo conto orlginal do grande. ~ — LIVRARIA DO POWO — RuadeS. José, 65.667 ae Seay 4 i _ «Biblioteca Infantil» da Livrania ilo Povo Crstico ov wm Pivso LIVRO PARA CRIANCAS POR Piguciuede Pimentel AUTOR DOS Contos da Carochinha, Historias da Avdsinha, Historias da Baratinka, Os Meus _ Bringuedos, Album das Criancas, Teatrinka Infantil, etc., etc. RIO DEJANEIRO . : ivraria do Povo — QUARESMA & ©. = Livreiros-Edi oe Se Gf —Rua deS. Joss — 65 ¢ 47 Typ, MONTENEGRA — Raa Nova do Ouvidor os 12 6 14 AA AOS. - PEQUENINOS Gusropio EB OLGA _ FILHOS DO SR. £0 LEIFOR Prefaciando este mesmo livrinho diz o prin= cipe Bojidar Kargeorgevitch, que 9 traduziu do russo para o francez: «Q conde Leio Tolstoi, si nao ¢ 6 chefe dal evolucfo neo-crista da literatura, nestes ul timos tempos, € pelo menos um dos seus princi« pacs promotores . O autor de tantas obres primas, cangado um dia deste «mundo », cujos mais intimos recantos analisou, pintou, esquadrinou, retirou-se para Jasnaia Poliana, onde, a principio, pareceu re- ae eee manuaes. ~ Felizmente, porém, veiu~lhe o desejo de con: ribuir para a educacdo das criancas de su ja, para ellas escreveu pequenas lenda: ragoes curtas e simples, das quaes a ‘moral a” historietas foram espalhadas hos m’ os, em brochurasinhas modestas, mal i sas, em mado papel, ilustradas com mais olstoi “expendeu a sua. opiniao CO) de mestre e chefe sobre os livros XI publicado, j4 nos valeram a acusacdo de estra- garmos a infancia, incutindo nos cerebros juye- nis a falsa e perniciosa idéa de que os animaes falam, e que ha bruxas, fadas e¢ genios. a Entre outras, langaram-nos essa acusacio os nossos ilustrados colegas Valentim Magalhaes. € Ferreira da Rosa, ambos jornalistas e profes- sores abalisados. Defendemo-nos com o seguinte prefacio de Leao Tolstoi : ee eee « Ragas de viboras, como podeis falar cousas hoas, asendo mios? a boca fala aquillo de quo cata cheio #0 coragio, « © homem bom do bom tesouro tira boas cougns, «mas .o homem m&® do mo tesouro tira mas cowsas. xT « E digo-vos que de toda.a palavra ociosa que fala— «= rem os homens, dario conta della no dia do Jnizo. « Porque pelas tuas palavras eras jnstificado, ¢ pelas 4 tuas palavras seris condenado, » S. Marnug xm. Esta historieta foi feita com o fim de ser util aos leitores. Escreyemol-a segundo a palavra de Cristo = © que nos faz crer que ella ¢ boa e veridica. Muitas pessoas, principalmente as criancas, a0 Jerem uma historia, uma fabula, um conto ou” _ uma lenda, perguntam, antes do mais, si as *cousas que ahi se descrevem sao verdadeiras; e, Mulitas vezes, vendo que o que lém nao podia ter acontecido, dizem que ellas nao passam dé Quem pensa dessa forma nado pensa com acerto. me S36 adquire a verdade quem aprende o eve suceder futuramente, consoante a vo Deus. ise fio é descrevendo uma cousa tal como ell e descreve a verdade. Sar-se, néo quando contam o que os homens fizeram, mas quando apreciam o bem eo mal. O universo reside no mal e nas. tentagdes. Si descreveres o universo tal qual €, em tuas palavras sé havera muitas mentiras e pouca verdade. Ha muitissimos livros nos quaes se fala lite- ralmente do que aconteceu ou podia ter aconte- cido. Esses livros, porém, sdo mentirosos, quando quem os escreveu nao sabe por si mesmo o que €bom ¢ o que é mau. Sucede que nos contos, nas pardbolas, nas fa- bulas ou nas lendas se escrevem cousas maravir ~ thosas que jamais ocorreram; e tacs lendas ou consiste a voritade de Deus. Ha livros, ha muitos e muitos desses rom hoinem vive pelas suas paixdes, se atormenta atormenta os outros, corre perigos, enfrenta ‘necessidade, luta pela astucia com os outros mens, se livra da pobreza, e, finalmente, se 10 objeto do seu amor ¢ se torna ce Th feliz. ‘ porgue um homem vivendo por st “sé. ixGes, por mais formosa ane ‘seja XVIE Eis aqui-uma lenda : Jesus ¢ seus apostolos entraram em casa de um ricago, e o ricaco nao os deixou entrar; entao, entraram em casa de uma viuva, que os recebeu. Ora, Jesus mandou levar um tonel de ouro ao Ticaco, e mandou gue um lobo fosse 4 casa da Viuva comer o seu ultimo bezerro: e, comtudo, @ viuva ficou contente e 0 ricaco ficou triste. A viuva tinha no seu pasado acces caridosas, e o bem que dellas lhe provinha ninguem th’o poderia tirar;:o ricacgo havia guardado na cone sciencia o dissabor pela sua ma agao: e o tonel de ouro |he nao bastava para de sitirar o dis- sabor que a sua ma acao lhe causava. XVII Esta historia € inacreditavel do principio ao fim, pois nada disso aconteceu, nem podia ter (4 acontecido. : Todavia, ella ¢ verdadeira no conjunto,’ pois indica o que sempre deve suceder; em que Con- siste o bem e o mal; ¢ para onde o homem deve inclinar-se afim de cumprir a vontade divinay Tudo quanto se escreve — animaes que falam como gente; tapetes que voam e transportam pessoas; lendas; parabolas; contos— tudo isso) sera verdadeiro, si nos escritos houver a ver= dade do reino dos céas. O proprio Christo falava por parabolas ; ¢ as” parabolas tornaram-se verdades eternas- Unicamente elle acrescentaya: —.Tomai sentido no vosso modo de onyir.¥ duzindo este prefacio que ahi fica, todo 0 conto, achamos conveniente supri- ‘os trechos, transcendentalmente filoso- pouco ao alcance das pessoas as quaes 0 ho é destinado, e procurémos adaptal-o | quanto nos foi possivel, ao nosso meio t mudando tambem os nomes dos per “modo a ndo oferecer a menor difi ea ta explicacdo para evitar os comenta ICOLAU era um Ss pobre sapateiro AS que morava com & sua mulher e fithos na cabana que um lavra- dor Ihe cedéra por esmola, porque elle n&o possuia nem casa, nem terras, nem quaesquér oulros bens z A familia vivia do produto da pe- ~ quenijg sapataria ; mas como 08 ge- fleros estavam caros ¢ a obra se vendia 22 ° BASED DE UM ANJO aa SAC ACRAA SsSleI228 barato,o dinhciro apurado servia apenas para a pobre gente nao morrer de fome. Para se abrigarem do frio, ¢ durante a noite, 0 sapateiro e Catarina, sua esposa, 36 tinham uma coberta, assim mesmo muito yelha, usada, toda em farrapos. Jahavia dois anos que tencionavam com- prar fazenda. afim de se fazer uma nova. Para isso. conseguiram ajuntar algum di- — aheirinho: e devendo varios freguezes 0 pa- eamento de sapatos encomendados, Nicolau resolveu ir compral-a. Uma manha, ao romper do dia, escuro ainda, tendo vistidoaroupa melhor e mais agasalhada que tinha. cortou um pau no mato, para servir de bengala, ¢ poz-se a ca- mipho. Ia pensando na sua vida, e¢ fazendo as conlas do que compraria com 0 —pouso dinheiro que levava ¢ 0 que deveria receber. 0 CASTIGO DE UM ANJO POTS INIO22 Chegando ao povoado, dirigin-se a todos 0s seus devedores, casa por casa. Nao conseguiu, porém, ‘cobrar um unico Vintem siquér, porque diversos freguezes nao estavam nesse dia, e outros alegavam grandes . transtornos e necessidades, declarando que nao podiam pagar daquella vez. Nicolau lembrou-se de comprar a credito a fazenda que precisava, mas o dono da loja “Negou-se a vender fiado. fim vista de tantas contrariedades, o infeliz Sapateiro resolyeu voltar, ja que the era ime possivel realisar qualquér negocio. Para disfarear o aborrecimento, entrara numa vendae bebéra um copo de cachaca. Por isso sentia-se quente, um pouco ani- mado, gosando interiormente de um certe bem-estar, nao obstante o inlenso frio que fazia. Retin 1G0 DE UM ANJO ' De volla, Nicolau seguia pela estrada, — _apoiando-se no pio, a pensar na sua exis~ tencia atribulada, e sobretudo no aborreei mento de Catarina quando o visse chegar sem as compras, Ta anoitecendo pouco e pouco. De subito, na curva do caminho, junto d _ tmma pequena capela que ali havia, o sapale avistou um vulto deitado — branco, mui _branco, alvo como a neve — nao podendo porém, distinguir o que poderia ser. Seria um animal? um bebado caido? um pessoa doente que nao pudesse mais andar? ummalfeitor, esperando alguem para matal e roubal-o? um liomem assassinado ? Nicolau comecou a pensar em tudo isso ao passo que conlinuava a caminhar. Passou adiante, sem fazer caso. mas ret cedeu logo apds. : pert 0 CASTIGO DE UM ANJO Sar 1 SoosaaemoncaoncosHaaeconemeTeceeSsee eee Tinha bom coracio. Lembrou-se que podia ser um infeliz, en- fermo ou moribundo, necessitando de so- corro. Aproximou-se do yullo. I iene dees sem roupa alga: pancada ou ferimentos. Quando Nicolau se achegou delle Trapaz, reanimou-se de repente e ” tou a si. O sapateiro lirou a japona ¢ os sapalos, & yesliu o moco, com toda a paciencia, empre# ni rate ma, nao se via o menor sinal dé eed oe eT gando o maior cuidado possivel, porque elle parecia entorpecida pelo frio, _ Tendo acabado disse-lhe : — « Vem comigo, camarada. Poderas por caso andar sésinho ? O joven olhou ternamente para o outro, as nao poude falar. ; Todavia poz-se de pé, embora com dif. uldade, ¢ comecou a caminhar, conseguindo epois mover-se com desembaraco. “Seguiram os dois, lado a Jado, pelo cami- ho. ¢ Nicolau entabolou conversa : — « Donde és tu. camarada? » — « Nao sou d’aqui.» ’ «Isso sei eu. porque conhego toda a ite ca da terra. Como foi que caiste perto capela ? » « Nao posso dizel-o.» — « Provavelmente algumas pessoas ram mal.» — « Ninguem me fez mal. Deus casti- gou-me,» p. — « KE’ verdade: tudo vem de Deus. Bae trelanto, fosse como fosse, necessilas Ir para qualquér parte. Para onde vais ?» — « Nao tenho destino. Qualquér logar é-me indiferente. » © sapateiro admirou-se com aquella res posta o desconhecido nao tinha o ar de um” homem mao, ¢ sua voz era suave. Comtudo, nao insisliu, ¢ continuou: — «Entao, vem para minha casa. Abi reslabelecer-te-as.» E nada mais disse, seguindo viagem a0) lado do moco, a refletir nos sucessos daque dia. Saira de casa para receber dinheiro e fag compras, ¢ vollava com as maos abanand trazendo ainda por cima um hospede, 1 pobre, que nem siquér estava vestido. 530 i © CASIIGO DE UM ANJO Casoue soos S: SQtocS Tacs sacs eeecGcaseay: Que nao diria Catarina, ao yél-os chegar ? Mas, contemplando o extranhu, lembrou- ‘se do olbar que lhe lancara na capela, e senlin 0 coragao pulsar dentro do peito. ATARINA perce- 2 # beu de longe que ® 0 marido havia bebido. Ao avistal-o, com as maos vasias, sem japona e sapatos, em compania do mancebo, pensou: — « Nicolau bebeu todo o di- nheiro | que recebeu, em algum (6, botequim, com este vagabundo que oe acompanha | » O sapateiro notou logo que a mulher ficdra de mau humor, mas fingiu que nao com- preendéra, " Socegou no mesmo instante. On 0 CASTIGO DE UM ANJO. Voltou-se para o joven : — « Senta-te ahi neste banco, camarada, emquanto 0 janlar nao vem.» O desconhecido sentou-se cabisbaixo, sem dizer palavra, sem nem siquér erguer os olhos. Enlao Catarina zangou-se. nao podendo mais conter a sua indignacao, Debalde o esposo explicou-lhe que nao fi- zéra as compras por nao haver recebido di- nheiro. Quiz contar-lhe de que modo encontrara ocompanheiro, porém ella nao deixou, m= terrompendo-o, a falar, a resmungar, a de- sesperar-se. Durante aleum tempo levou assim, a arre- liar-se com o marido: Tendo, entretanto, olhado para o rapa, O CASTIGO ae UM bese o) eases O sapateiro poude narrar, éntao, em que condicoes achara o desconhecido; e querendo Calarina zangar-se de novo, elle perguntou- lhe : — « Nao crés em Deus, mulher ?» Ouvindo aquela pergunta, Catarina olhou Segunda vez para o desconhecido. Acalmou-se detodo : o seu coracao bateu: deixou de resmungar, e foi por a comida na mesa. Nicolan ¢ seu hospede sentaram-se e prin= cipiaram a comer. A velha sorria-se e vendo-os ; jantar, sen- tiu-se (ocada de arrependimento, comecando a ter compaixao do desgracado moco. Elle, por sua vez, até entao pensativo. cabisbaixo, triste, como que opresso por uma grande aflicao moral, alegrou-se, e olhando para Catarina sorriu. : Simon (ASEL.SZ Sones {3b 4/ dole 34 0 CASTIGO DE UM ANJO enereneseae> SStBeotassuGe= Terminadd o jantar, a mulher do sapateiro poz-se a interrogar o hospede : ~ — « Quem és tu? Donde vens ?» — « Nao sou d’aqui.» — « Porque motivo estavas deilado no caminho ?» — « Nao me é permilido dizel-o. » — « Quem foi que te despojou do que finhas? » —«Ninguem. Toi Deus quemme castigoum, — Catarina levanton-se, apanhou uma camisay que estava remendando, e umas caleas que encontrou, e deu tudo ao desconhecida. 44 era tarde e foram deitar-se. 2% ELA manha cedo, quando to- ¢ dos acordaram, Nicolau fei ter com o seu companheiro da ves~ S pera : — « QOuve, camarada: para que possas sustentar-te ¢ vestir-te, é preciso que trabalhes. Que sabes fazer ?» —« Nada,» respondeu o rapaz. f Q sapateito admirou-se, mas pro- seguiu : : ~— « Nao importa. Com um pouco de boay Youlade agente pide aprender tudo.» 36 0 CASTIGO DE UM ANIO Sere eeoeceseconocs sonnaeaeaeseBceecesea! * —« Os homens (aban, eu traba- lharei.» : * — « Como te chamas ? » — « Micael.» ‘ — « Bem, Micael, nao queres dizer cous: alguma a teu respeilo. Nada tenho com isso Mas, como -¢ necessario que ganhes o qu comer, ensinar-te-ei a trabalhar.» : —'‘« Aprenderei. Mostra-me como 8 faz.» : e Nicolau ensinou Micael, que aprendia coi extraordinania facilidade, executando im diatamente tudo quanto via fazer. _ Tornou-se em pouco tempo excelente ol cial de sapaleiro, como si sua profissio ( yesse sido sempre aquelas Sentava-se a trabalhar todo o santo di -comia pouco ; quasi nada conversava se distrahja, olhando para fora; e, quand finha servigo, deixava-se ficar n hanquinho, silencioso, quieto, com os olhos erguidos para 0 ceu. Uma unica vez viram-n'o sorrir: foi ma noite em que chegou, quando Catarina lhe serviu de comer. “ na por semana, 2 um ano se pas- fe. SE soul . Micael continuava a viver na choupana de Nicolau, sem nunca deixar de trabalhar. fs Adquirira extraordinaria repu- = taco por,aquelés arredores, e a sua * fama de bom operario corria de boca ~ em boca, imensamente elogiado por toda a gente. : E era tamanha a ‘sua nomeada, que de miuilas leguas em torno vinham freguezes = por “isso a sapataria de Nicolau cada vez prosperava mais. _Chegara 0 inverno. 0 sapaleiro e Micael estavam um dia a ¥ irabalhar, quando, em frente 4 miseravel ~ cazinha em que residiam, parou luxuosa ‘earruagem puxada por uma parelha de grandes ¢ formosos cavalos. ae lacaio saltou da boléa ao chao,e abriu “Desceu ap carro um fidalgo ricamen' fido, que entrou na choupana com rrogante e soberbo. Galarina, ao avistar o visitante, apress U em escancarar a porta, deparempar, The dar livre,passagem. Nicolan levantou-se da sua tripeca, € respeilo, olhando com admiracao para o- fi- dalgo. Jamais vira uma crialura assim. Na sua casa, onde todos eram magros, fracos, raquilicos, aquele homem parecia vir de outro mundo muito diferente, Era um homenzarrao alto, gordo, corado, forte como um touro, parecendo vender saude. O fidalgo sentou-se, e perguntou ; — « Qual é ahi o mestre sapateiro 7» Nicolau aproximou-se : — « Sou eu, meu senhor, um criado de- VOX.» O freguez chamou o lacaio : — « Ola, rapaz! mostra este couro. » O criado chegou-se para o sapateiro, € desenrolou um embrulho que trazia debaixo do braco. : We aera =. « Estas vendo este couro?» inlerro- gou o fidalgo. «Sabes de que qualidade ¢ ?» — « De excelente qualidade», respondeu Nicolau. - . —« De excelente qualidade so, estu- pido?! Wica sabendo que é o melhor coure que ha no mundo inteiro, como nunca visle, nem mesmo em sonhos! » — « Acredito, meu senhor,» disse Ni- ae eolau com toda a humildade. «Nunca ima- é ginei que houvesse couro desta qualidade. * = « Bem,» continuou o poderoso senhor, «ouve com atencao o que te vou dizer. Quero que me facas um par de botinas tao bem feitas, que durem um ano, nao se desco- sendo, nem ficando acalcanhadas. Si padéres fazel-as, muito bem; do contrario, nao estragues 9 couro’ Mas, olha li: si as botas se descoserem ou alcacanharem antes de um ano, meter-te-ci nacadeia. » 43 O CASTIGO Di 4 E582 SeeacecaaclocqcecaoseS: Nicolau estava aterrado, nao sabia: qué responder. Consultou Micael, em voz baixa, sidevia OU nao aceitar aincumbencia, ¢ 0 oficial disse que sim. Nessa ocasiao 0 fidalgo fez reparo no mago _ ® pergunton quem era. —«E’ meu companheiro de oficio,» réspondeu o mestre sapateiro. —«Pois toma cuidado quando fores eoser as botinas. Ola que devem dutar um ano.» Micael, porém, nao lhe prestava atengio. * Parecia olhar para alguma cousa invisivel, que se achasse por traz do freguez. Contem- plava fixamente... contemplava... De subito, o seurosto ficou'radiante, como i que iluminado. i __ ¥ sorriu. . 44 @ GASTIGO DE UM ANJO ee = = — «Eh! pateta! «disse o fidalgo.» Por: que estis com os dentes 4 mostrae nao ouves o quete digo? Quando ficarao prontas as hotinas ? » —« Ficarto prontas no dia em que forem precisas. » © fidalgo levantou-se, saiu da choupana e subiu para o carro, que partiv a galope. ~ Quando desapareceu, Nicolau disse: — « Eis ahi um homemtheio de vida e : saude. Ha de nos enlerrar a (odos...» — « Como nao sera assim, com a vida que ha de levar! Com uma pessoa destas, —~ nem mesmo a Morte pode! » disse Catarina. NTAO Nicolau disse a Mie y cael : — «Vamos trabalhar, rapaz. Queira Deus que esta obra nao nos dé, incomodos, O fidalgo é um homem zangado e tem muila imporlancia. Pode fazer-nos algum mal.» Micael obedeceu. Apanhando @ couro, estendeu-o sobre a mesa, ¢ pegou na faca para cortal-o. 4 46 O CASTIGO DE UM ANJO Catarina, que estava habituada a’vér o : marido fazer toda a especie de caleado, for assistir ao trabalho do hospede. Assim que o oficial comecou a talhar o couro, ficou admiradissima. porque nao era daquela forma que o esposo costumava principiar. Entretanto, nao fez a mais ligeira obser- yacao, porque sabia que 0 moco era habilis- simo, talvez julgando que as botinas para os . fidalgos nao fossem feitas como as das outras pessoas. Micael trabalhou alé a hora de jantar, tendo feito, em vez de um par de hotinas. " duas meias de couro. Quando Nicolau viu o trabalho, Poe as mélos ha cabeca, e exclamou : —« Como foi, Micael, que le enganaste desta forma? Ha um ano que vives com- wosco, ¢ nunca nos déste o menor motivo de queixa. Que heide fazer agora, para que 0 fidalgo nao se zangue? Onde encontrar couro " ‘dessa qualidade? » Mal acabou elle de falar, batevam 4 porta. Era o lacaio, quetinha vindo pela manha, em compania do fidalgo. —« Minha ama mandou dizer que nao precisa’ mais fazer as botinas.» —« Porque?» interrogou o sapateir espantado. ; /— « Porque meu amo morreu. Saiu daqui- ivo @ sao, como todos viram, e ao chegara ¢asa estava morto, Foi preciso que o liras- mos do carro, ja hirto e frio. Por isso minha ama mandou encomendar, em ves das hoti- as, um parde meias de couro, para enterrar com ellaso fidalgo.» (*) : “() Na Russia ¢ costume eriterrar os mortos com moins de rena, vex de botinas. O CASTIGO DE UM ANIJO Micael embrulhou as meias que ja havia aprontado ¢ o resto do couro, e entregou tudo ao criado. ; VII sf ECORRERAM mais cinco mM, Uns. Ja havia seis que Micael eslava em casa de Nicolau, e durante esse tempo seguia a mesma vida de sempre: fa- lava pouco ; trabalhava muito ; :® nunca sahia, nem mesmo chegava & 4 janela ou olhava para fora, So duas veses havia sorrido: quando Catarina lhe deu de comer, na noite em que chegou; e a segunda quando o fi- 4 y a0 0 CASTICO DE UM ANJO dalgo foi encomendar as botinas que the deviam durar um ano. Um dia a familia do sapateiro estava Te a unida na unica sala da choupana. \e Elle e o oficial trabalhavam. Catarina” “arrumava a casa e cuidava do almoco. As erianeas brincavam. ‘ De repente uma dellas exclamou: —« La vem uma fregueza com duas fi Thiphas : uma ¢ coxa.» Quyindo a crianca falar, Micael, qué “jamais olhava para fora, deixou o trabalho, ~ foi para.a janela. Debrucou-se munto e fieoy a veras menmas que se aproximavam em companhia de uma senhora. Eptraram. - Amulther vinha encomendar sapatinbos para as criangas, € 0 oficial tomou a medid Nao cessava de conteniplal-as, : : o CASTIGO DE UM ANJO eeccoses: Na verdade as menininhas cram’ lindissi- mas, ¢ eslavam veslidas com aceio, one “foi que esta ficou Pitan Nastall ascites « Nao senhor: foi a mae della.» « Entao nao sao suas filhas? » « Nao sao.» VII ie, my <2 mulher conton a historia das duas criancinhas, i Eram orfas e tinham seis 2. anos de idade. O pai, rachador de lenha, morréra esmagado por uma ar- yore, no mesmo dia em que ellas haviam nascido. Dois dias depois morria a mae. me As duas gemeasinhas ficaram sds no tiando, porque os pais eram pobres, @ nao tinham parentes. STISO DE UM ANIO Ebessorssa7s- SESS GLasde eS Gaara Quando se soube que a infeliz havia fale- ido, os camponezes foram a casa da morta. Ahi encontraram as recem-naseidas.a cho- tar de fome, por cima do cadaver. Uma tdellas estava com a perninha parlida, porque a mae, ao expirar, caira sobre ella. Uma mulher, chamada Maria, tomou conta das pequeninas orfas, porque tinha apenas : uum filho que ainda mamava, ~ Esse filhinho morreu tio ano seguinte ; ‘eella ficou sosinha com as gemeas, que. iralava e queria com amor de mae. “Deus recompensou-a e ao marido: tudo prosperou em casa, e todos viveram felizes:. ~ Quando Maria acabou de contar t a historia Gatsrina disse suspirando : y —« Vise bem que o proverbio nao “mente: Vave-se sem pire semimde, mas nia se vive sent Deus |.» Ce _ UL CRUE \ ICAELergueu-se, =! entao, da tripeca, largou a obra que 2—~ tinha em maos, despiu o avental, ¢ inclinando-se diante de Nicolau e Catarima %) falou : * 5, — «Meus amigos, perdoem-me, yo é g (og porque Deus tambem ja me perdoou. » E 0 sapateiro ¢ sua mulher viram oe? uma grande luz que se irradiava de Micael. Baixaram a cabeca ¢ o mestre disse : 58 0 CASTIGO DE UM: ANJO Glcesoe9 se so 2229242979 222858 2828595329, — « Eu bem sabia, Micael, que nao eras un homem como nos. Nunca te fiz pergunta alguma. e nada quero saber. Desejo apenas qué me respondas uma cousa: Porque raza | Viveste em nossa casa esses seis anos, sem- pre tristonho e pensativo. e apenas sorriste tres vezes: — a pyimeira, quando minha mulher te deu de comer — a segunda, quando o fidalgo encomendou o par dé bo- tinas que deviam durar um ano —a terceira, 7 finalmente, ha pouco, quando a dregueza -shegou com as duas filhinhas? » —« Eu sd me alegrei.» respondeu Me cael, «depois que Deus me perdoou. Sorri tres vezes, porque me era preciso ouvir tres palavras de Deus, e foi nessas ocasioes que. a8 OUVi.» —« Dige-me. Micael,» proseguiu Nico- Jau, «porque foi que Deus te castigou ?» 2 CASTIGO DE =% Deus castigou-me por eu the ter Pdesobedecido. (fu era um Anjo do Cen, @ Senhor mandou-me busear a Alma de uma tnulher. Voci para a Terra, ¢ vi-a enferma, Seitada nacama, com duas filhinhas naseidas S dias antes. A mae, vendo-meé. com- preendeu quea suahora erachegada. Entao, liu, rogou, suplicou. que esperasse algun ppo mais, ao menos emquanto amamen~ a as pobres crialurinhas que iam ficar ao amparo. Narrou-me a sua historid—a ma que Maria acabou de contar. Tive ‘da infeliz mae. Voltei para junto de que me ordenou : Vai, traze a Alma mulher, e aprende tres cousas ; o que no coracéo dos homens; 0 que nao jos homens; 0 gue faz vrver ( . Quando as souberes, regressa a 2 hospedado, o sapateiro e sua <3) mulher choravam de alegria. 0 anjo proseguiu : . + — « Caindo sobre a Terra fui A parar junto da capela onde Ni- = colau me encontrou. Quando elle me <. } vestiue me trouxe em sua companhia; quando Catarina me den de comer, ouvia ' primeira palavra divina. O que ha no co- 62 ! 0 CASTIGO DE UM ANIO GacarSsooroehes oo SSScose Sse Sac oa racao dos homens éo amor... No dia em que 0 fidalgo, sao, forte, aparentemente® “cheio de vida, veiu encomendar as bo- tinas que deviam durar um. ano, em quatilo falava, vi por traz delle meu cama: wade. 6 Anjo da Morte, ¢ ouvi a segund: palavradivina. 0 que ndo é dado aos homens é saber © que thes é necessario para “seu corpo... Ao vér as orlasinhas, que julgde abandonadas, enlregues aos cuidados e cari nhos maternos dé uma extranha, ouvia t eeira. palavra divina. O que faz ovcer homens € Deus...» i i Fo Anjo apareceu na choupana sob) n sua forma celestial, com as azas brancas d byadas, fulgentes de lua diving. / Nicolau e Catarina ajoclharam-se, ¢ Micaal yoou para o Céu. QUARESMA & C.—Livreixoe.-Bditores BIBLIOTECA INFANTIL~ DEDICADA ESPECIALMENTE AS CRIANGAS¢ DIRIGIDA BELO PROPRIO AUTOR JA so acham publicadoy © exiig A vouda os soguintes voluinos desta intoresuan! © wtilisaima colegio OS MEUS BINOUERDOS—omolhor 6 mals vencantador llvro para enanguaiée que existe em lingua portaguesa, unjeo aie sou genera. Contem fiumeras. cant Pata adormecer no bergo; briucadeirasedlveriimentos: para todas aS idudes; jogos do prendas o sentongas; © pecas proprias “para serem regresouiadas por moninas 6 Mmeninis, em casa, nos colegio, ¢ em toairintas parteulares: tado acompaubade de% ‘centenas de gravaras explicativas. TEATRINHO INFANTIL — eapledilids ehlegio da monologus, dial ron somicas, dramas, comertias, operctas, etc. tem prosa p versol, proprias pars tore tipeneaade-s¢ desyotas eom scenarios, vestimentas 6 ca ALBUM DAS CRHIANCAS— excelente obra encerranda multlasitnas Boeslas dog mais colebres ¢ modern autores, destinsdas 4 Infancia, proprias para serem recttadag em atlas, nos tologios, em teatros, ete easinaodo a8 ertangas x declamar.@ 46 devonge baragar, tee 48000, O CASTICO DE UM AnJO. delicioso @ morstissima, conto original do grandee: escripior Lda Tolatoleomoyonts © seutlmental,bacetse ua gansta eheisth steer fir Fos ns cos outros, Obra diving, pledosa ¢ cheia de virtada 33000 CONTOS DA CAROCHIN AA gain Gl cdmtasee.-sunes ves $8000 HISTORIAS DO ARCO DA VELHA—oom 00 contos 43000 HISTORIAS DA AVOSINHA—com 50 vontos. A000. 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