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A BUROCRACIA DE RUA E A
RESPONSABILIDADE PÚBLICA
PETER HUPE E MICHAEL COLINA
O conceito de "burocracia de rua" foi cunhado por Michael Lipsky (1980) como o
denominador comum do que viria a ser um tema académico. Desde então, a sua
ênfase na relativa autonomia dos profissionais foi complementada pela percepção
de que estão a trabalhar numa micro-rede de relações, em contextos variados. A
concepção de "governação" acrescenta um aspecto particular a isto: o carácter
multidimensional de um sistema político como uma sequência aninhada de
decisões. A combinação destes pontos de vista lança uma perspectiva diferente
sobre as formas como os burocratas de rua são responsabilizados.
Neste artigo são retirados alguns pressupostos axiomáticos da literatura existente
sobre o tema da burocracia ao nível da rua e sobre a concepção de governação. O
reconhecimento da variedade, e a defesa de uma investigação contextualizada,
resulta numa nova reflexão sobre a questão da responsabilização a nível da rua.
INTRODUÇÃO
Nas discussões convencionais sobre a burocracia ao nível da rua, a
autonomia do pessoal que trabalha na base do governo tem sido vista ou
como colocando um problema de controlo ao 'topo' ou como uma
justificação para formas mais directas de responsabilização perante a 'rua'.
Como tal, essas discussões envolvem versões do debate de cima para baixo
e de baixo para cima na investigação de implementação, que agora parece
altamente datada e normativamente enviesada. Neste artigo, são
exploradas as consequências da governação para a responsabilização a
nível da rua, no contexto do que se chama uma mudança do governo para a
governação. Aceitamos a perspectiva, defendida, entre outros, por Day e
Klein (1987) e por Pollitt (2003), de que a responsabilização dos burocratas
de rua é essencialmente múltipla, em vez de ser praticada apenas em
relações verticais. O objectivo é ligar explicitamente esta perspectiva a
conceptualizações de governação contempo- rárias, identificando ao mesmo
tempo algumas expectativas sobre ligações específicas entre a prestação de
contas, por um lado, e a diversidade de contextos, por outro.
A questão central neste artigo é, dada a natureza da burocracia de rua e
os cenários em que os burocratas de rua fazem o seu trabalho, que formas
assumem as relações em que estes burocratas de rua são responsabilizados?
Há duas sub-perguntas:
1. Qual é a natureza da burocracia ao nível da rua?
2. Quais são as implicações da concepção de governação?
GOVERNAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO
A responsabilidade e a primazia da política
A abordagem tradicional, que define a responsabilização em termos top-
down, deriva do consenso sobre o governo representativo. A isto estão
ligadas, em termos de Stone (2002), as ideias sobre a tomada racional de
decisões como modelo de raciocínio, a metáfora do mercado como modelo
de sociedade, e a concepção de elaboração de políticas vista como um
processo de produção. Juntos, estes elementos formam 'o projecto de
racionalidade' (Stone 2002, p. 7). Abordagens de cima para baixo da
implementação podem ser acrescentadas como uma componente de uma
visão coerente e aceite, mas fundamentalmente normativa, sobre política e
administração - traição e suas relações.
A responsabilidade política implica uma orientação para um topo,
exigindo que os funcionários sejam responsáveis perante ele. Olhando para
a responsabilização de uma perspectiva mais ampla, Meijer e Bovens (2005,
p. 172) observam várias "práticas insti- tuais de prestação de contas". Assim,
definindo "responsabilidade pública", fazem uma distinção entre diferentes
tipos de potenciais relações de responsabilização e conjuntos de normas e
expectativas relacionadas: responsabilidade organizacional,
responsabilidade profissional, responsabilidade política, responsabilidade
jurídica e responsabilidade administrativa (Meijer e Bovens, 2005, pp. 172-3;
ver também Bovens 1998). Adoptando a sua definição, vemos a capacidade
de prestar contas como "uma relação social em que um actor sente a
obrigação de explicar e justificar a sua conduta a um outro actor
significativo" (Bovens 1998, p. 172). No seguimento de Gregory (2003), neste
presente artigo, a prestação de contas é tratada como um fenómeno
empírico, distinguindo-se da responsabilidade com a sua conotação
normativa mais ampla. Nesse caso, é a priori indeterminado e coloca
questões empíricas sobre quem está a praticar a responsabilização perante
quem.
Responsabilidade pública
Declaração 10: dado o carácter multidimensional da governação, tanto o
poder público como a responsabilidade pública são exercidos por vários
actores, em diferentes escalas, algo que também se aplica ao nível da rua.
Na definição de responsabilidade pública acima mencionada, Meijer e
Bovens (2005) fazem a distinção entre um contabilista e um contabilista. O
primeiro pode ser um indivíduo ou uma organização. O contabilista ou
"fórum de responsabilização" pode ser uma pessoa ou uma organização.
Além disso, numa escala de sistema, pode ser um actor institucional.
Referindo-se a uma multiplicidade de intervenientes, Behn (2001, Capítulo
11) alarga esta dupla distinção ao mesmo tempo que fala de uma
"responsabilização de 360 graus pelo desempenho". Assim, poder-se-ia
supor que em cada escala pode ser observada uma pluralidade de actores,
todos os quais podem funcionar, de facto, num grau que variará
empiricamente, tanto como contabilistas como contabilistas.
Baseando a nossa abordagem na análise de Meijer e Bovens (2005) das
formas de responsabilização pública, sugerimos: (1) o princípio fundador; e
(2) a na- tureza das relações entre contabilistas e contabilistas como
dimensões para uma tipologia (ver quadro 1). A primeira pode ser uma
jurisdição, peritagem ou cidadania autorizada e legítima; a natureza da
segunda pode ser vertical, horizontal ou mista. Os conjuntos coerentes de
valores sobre estes parâmetros podem ser vistos como tipos de
responsabilidade pública, rotulados, respectivamente, como
"responsabilidade pública - administrativa", "responsabilidade profissional"
e "responsabilidade participativa - administrativa".
Responsabilidade público-administrativa
Ligado à responsabilidade perante os órgãos políticos da democracia
representativa - a responsabilidade legal é a responsabilidade legal. Em
particular, estas duas formas de prestação de contas têm em comum a sua
orientação vertical. Na prática, a responsabilidade política e jurídica pode
estar em conflito - mesmo para os burocratas de rua que se podem ver a si
próprios como primeiro vinculados pela lei e segundo limitados
hierarquicamente. Embora a exploração desta questão esteja para além do
âmbito deste artigo, este aspecto tem de ser notado como uma possível
*Nota: a fonte do termo é A.J. Meijer e M.A.P. Bovens. 2005. 'Public Accountability in the
Information Age', em V.J.J.M. Bekkers e V.F.M. Homburg (eds), The Information Ecology of E-
Government.
**Nota: pares dentro da profissão e profissões relacionadas.
Bouckaert 2000). Na verdade, estas abordagens podem ser vistas como uma
variante de gestão da tradicional responsabilidade política de cima para
baixo. Os indicadores de desempenho e instrumentos similares de Nova
Gestão Pública destinam-se a funcionar como formas alternativas de
responsabilização dos funcionários públicos em agências e organizações
públicas similares (Flynn 1991).
No contexto de uma democracia liberal e do Estado de direito, estas três
formas de responsabilização - política, jurídica e "Nova Gerência Pública" -
partilham uma orientação vertical, enquanto a sua base comum é uma
jurisdição autorizada e legítima. Por conseguinte, propomos o termo
"responsabilidade público-administrativa" como um termo definidor
comum.
Responsabilidade profissional
Para além da responsabilidade para com o topo político-administrativo, os
burocratas de rua são frequentemente responsabilizados pelos seus pares.
Como indicado acima, os pares praticam a auto-gestão colectiva em várias
escalas. Alguns autores argumentam que esta abordagem preserva o
domínio tradicional de certas pró-fissões: por exemplo, quando os
processos de revisão têm apenas um carácter interno (Achterhuis 1980;
Harrison e Pollitt 1994; Freidson 2001). De facto, nem todas as profissões -
ou melhor, semiprofissões (Etzioni 1969) - são tão institucionalizadas como
as médicas.
Administração Pública Vol. 85, No. 2, 2007 (279-299)
© 2007 Os Autores. Compilação da revista © 2007 Blackwell Publishing
A BUROCRACIA DE RUA E A R E S P O N S A B I L I D A D E
PÚBLICA
Responsabilidade participativa
A terceira fonte de formas de responsabilização dos burocratas de rua é a
cidadania participativa. Esta é vista cada vez mais como uma alternativa
importante ao modelo de cidadania incorporado na democracia
representativa (ver Taylor 2003). No seu último capítulo, Lipsky (1980)
defende formas de avaliação do trabalho dos burocratas de rua com base no
cliente. Apesar da maturidade va- e dos diferentes graus de
institucionalização, estes fenómenos têm em comum o facto de poderem ser
vistos como formas de ac-tabilidade pública organizada horizontalmente:
são criados poderes compensatórios.
Pollitt (2003, p. 94) observa uma realidade empírica em que os gestores
públicos trabalham em ambientes caracterizados por uma multiplicidade
de contabilistas e de contáveis. No entanto, a situação que a Pollitt observa
para o gestor, sendo todas as outras coisas iguais, também pode ser
assumida para o profissional que está a supervisionar. As três fontes
alternativas de prestação de contas acima distinguidas estão localizadas
tanto na escala da profissão como sistema como na da organização única.
Para além destas fontes, o que acontece "ao nível da rua", ou seja, na
interacção interindividual, é importante. Nos contactos individuais que
clientes e colaboradores têm com burocratas de rua, os últimos
responsabilizam os primeiros, mas também se pode assumir o oposto. Os
clientes e colaboradores também se dirigem aos burocratas de rua: pelas
nomeações e acordos que fazem em conjunto e pelos resultados
substantivos dos mesmos.
Na nossa interpretação, a responsabilidade múltipla envolve ver os
trabalhadores individuais como funcionando dentro de uma teia
institucional complexa. Na escala dos contactos interindividuais, da
organização e da inter-acção inter-organizacional, e do sistema, os
burocratas de rua estão a ser responsabilizados, por definição, de formas
mistas. Os actores públicos desempenham simultaneamente os papéis de
contabilistas e de contabilistas. Dada a variedade de fontes de capacidade
de prestação de contas, os únicos actores públicos, gestores, bem como os
burocratas de rua, ver-se-ão confrontados com múltiplas exigências de
comportamento responsável. Particularmente na escala do indivíduo, os
diferentes valores implícitos e imperativos de acção decorrentes destas
diferentes fontes podem produzir tensões e serão muitas vezes
contraditórios, colocando dilemas inescapáveis para estes funcionários
(Behn 2001). Na raiz disto está o facto de que as relações de poder serão
frequentemente assimétricas.
2
2007 Os Autores. Compilação da revista
*Nota: a fonte do termo é A.O. Hirschman. 1970. Exit, Voice and Loyalty.
A BUROCRACIA DE RUA E A R E S P O N S A B I L I D A D E
PÚBLICA
Contudo, como os argumentos das declarações 7 e 8, acima, sugeriram, as
actividades de que estamos a falar são múltiplas e susceptíveis de serem
integradas em disposições organizacionais complexas. Por conseguinte, as
propostas sobre as escolhas de ac- countability podem não ser tão simples
como as acima delineadas. Para manter o exemplo do ensino, diferentes
aspectos de uma mesma actividade geral podem envolver diferentes
responsabilidades. As questões relativas à utilização de recursos podem
envolver a responsabilidade hierárquica - cal, a responsabilidade horizontal
do currículo, e aspectos de comportamento directo na sala de aula, a
responsabilidade perante os pais e as crianças. Isto só reforça o ponto geral
sobre a prevenção de fórmulas simples em relação à responsabilização dos
burocratas a nível da rua.
CONCLUSÕES
Neste artigo não temos defendido o reforço ou enfraquecimento de
qualquer forma particular de responsabilização. Em vez disso,
identificámos os pressupostos axiomáticos implicitamente formulados
naquilo que, desde o clássico de Lipsky, tem vindo a ser - um tema
académico próprio. Depois disto, fizemos o mesmo para a concepção de
governação. Confrontámos então os dois conjuntos de suposições. O nosso
objectivo foi especificar as características dos contextos em que os
burocratas de rua fazem o seu trabalho e clarificar as consequências dessas
características para a forma como os profissionais do serviço público são
responsabilizados.
Duas ideias que Hill e Hupe (2002) exploraram no seu livro Implementing
Public Policy e em artigos subsequentes, foram trazidas em jogo para a
análise da questão da responsabilização a nível das ruas. A primeira ideia é
que as decisões que determinam a acção na política pública estão aninhadas
num sistema institucional multi-dimensional. Um sistema político envolve
"uma sequência aninhada de decisões - sobre estrutura, financiamento e
sobre a gestão - dos resultados - pelas quais diferentes actores podem ser
responsáveis, talvez de formas diferentes" (Hill 2005, pp. 277-8). Estas
decisões de aninhamento, por sua vez, estabelecem contextos (quase)
institucionais uns para os outros. A dinâmica das relações entre as camadas
que um processo político encontra ao longo de uma linha vertical envolve
uma sucessão de lutas pelo controlo da acção. Esta acção pode, quer
agrupada como 'níveis de acção' ou como 'fases', assumir várias formas.
No contexto da governação, "o nível da rua" precisa de ser concebido
como uma camada - administrativamente formal ou não - onde a
governação pode ser multiplataforma. A governação de e por burocratas a
nível de rua é praticada numa variedade de situações de acção, enquanto
que os burocratas a nível de rua são responsabilizados em várias relações:
de baixo para cima e de cima para baixo, mas também 'de lado'.
A segunda noção aqui elaborada é que existem formas alternativas de
capacidade contabilística. Estas podem ser vistas como mais ou menos
RECONHECIMENTO
Em projectos anteriores, os autores concentraram-se na noção de burocratas
individuais a nível de rua, tal como está embutida numa "teia" múltipla de
relações. Desde Hill e Hupe (2002), foi necessário ligar o seu pensamento
sobre a burocracia ao nível da rua com as noções de governação
desenvolvidas nesse livro. Embora não tenham trazido para a fase de
publicação os projectos anteriores, os autores gostariam de reconhecer aqui
os colegas que lhes deram as suas opiniões. Por ordem alfabética, estes são
John Clarke, Bob Hudson, Michael Lipsky, Arthur Ringeling, Ignace
Snellen, Gary Wamsley e Dik Wolfson.
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