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Um prologo para a questao nacional: Borges e o leviata na Argentina dos anos 1970 Umberto {uig Miele Os anos que se seguiram & autoproclamada Revolugdo Libertadora, de 1955, ndo foram tranquilos na Argentina de Jorge Luis Borges. Uma sucesséo de golpes e contragolpes militares geravam instabilidade politica, uma profunda crise econdmica e o crescente esfacelamento do tecido social. A segunda metade da década de 1960 foi particularmente agitada, e a possibilidade do ex presidente Juan Domingo Pern voltar do exilioacirrava 6s animes dividia ainda mais o pais, que em 1906 assiste a mais um golpe de Estado, levando ao poder mais um general, Juan Carlos Ongania, ungido ao cargo maximo da Republica. Sua incumbéncia era instaurar a ordem em uma Argentina convulsionada - reprimir a oposigao € 0s sindicatos, suprimir direitos politicos, censurar a imprensa, intervir nas universidades, restaurar valores conservadores. Seguiram-se anos de violéncia desmedida e agbes dramaticas, que s6 teriam fim com a redemocratizacao de 1983. A deterioracao da situagao politico-social e a repressao do regime militar provocava reacdo armada de grupos oposicionistas. 0 sequestro e depois execugdo do ex-presidente da repuiblica e ex-general Pedro Aramburu, Variaciones Borges 54 » 2022 Unberto fuig ‘tiele realizado em 1970 pelo grupo peronista radical Montoneros, foi a acdo emblemitica daquele perfodo. Poucas semanas antes desse ato espetacular, Borges finaliza uma extensa apresentagao para sua nova obra, acoletanea de contos El informe de Brodie, ficgGes inéditas depois de mais de duas décadas (desde o lancamento de El Aleph, em 1949). No texto que prologa o aguardado libro, “en lo que constituye el prefacio més largo y atipico de todas sus ficciones, (donde) el autor confiesa sus convicciones politicas junto con sus no-conviccianes” (Salinas 7), 0 argentino declara sua filiago politico-partidaria: “mis convicciones en materia politica son harto conocidas; me he afiliado al Partido Conservador”. E confirma: “no soy, ni he sido jamas [...] un escritor comprometido [...] No he disimulado nunca mis opiniones, ni siquiera en los afios arduos, pero no he permitido que interfieran en mi obra literaria” (OC 1021). Dada as inumeras vezes que defendeu a autonomia da arte e sua sempre declarada contrariedade @ ingeréncia de temas politicos na criacdo artistica, essa afirmacio era algo inédito em sua trajet6ria literdria, ¢ trazé-la para o interior da obra, para c para texto literario que ¢ 0 Prdlogo, no deixava de ser surpreendente. Aabordagem explicita do tema politico pode ser vista pela preméncia do contexto de crise, a exigir uma tomada de posicao. Que acontece tanto da forma direta como essa do Prélogo, como também nos contos que se sucedem, dominados pelo passado local, pela historia dos préceres e da Patria. e pela reflexao sobre 0 problematico processo de construcdo do Estado Nacional argentino. 0 embate, fisico ou psiquico, esté presente em suas mais diferentes formas, em todos os contos da coletanea, conferindo unidade tematica e definindo um estilo narrativo “direto e realista”. $0 contos cujos enredos remetem a uma Argentina formativa. as Iutas pela unificagdo nacional, a um pais cindido por guerras infindaveis, uma sociedade convulsionada como aquela dos anos sombrios que precedem a publicagio da obra. A coletanea de El informe de Brodie é publicada em um momento de consagragdo mundial do autor, da chegada da sua obra ao principal mercado editorial, 0 dos Estados Unidos, e do seu papel pubblico cada vez mais relevante. Borges reafirma nesse texto introdutério seu compromisso com 1 Depois das edigdes de Et Aleph, em 2949 € 1951, Borges publicaria “La secta del Fénix” em 1952 e dois contos em 1953,“El fin” e “El Sur”, os trés recolhidos depois em Ficg6es. a autonomia da arte, nao se furta em elaborar a representagéo do quadro nacional, das questées que tomam conta do debate piiblico e cultural naquele periodo. De certa forma, a abordagem que o argentino confere do tema da violéncia nesses contos pode ser tomada como a antecipacdo ficcional das polémicas posicdes que tomaria no futuro préximo, quando passou a defender um estado forte ea apoiar regimes militares. Ambigua e profundamente irénica, a apresentacao da obra é também um primor de dissimulagio e pistas falsas, confundindo realidade e aparéncia, o que diz € 0 que omite. Vamos dividi-la em irés partes nesta andlise. Na primeira, o autor declara sua filiacdo literdria eos principios que regem os contos que apresenta. A seguir, destaca a obra propriamente dita, escolhendo alguns contos para comentar, dando dicas para a leitura. Na conclusio, Borges articula o discurso politico e o discurso sobre o nacional, as questdes de Estado e as questées identitérias. PROLOGO DE UM PROLOGO O respeito conquistado no circuito académico e literdrio mundial e a fama crescente tinha na comemora¢ao dos 70 anos do escritor um grande motivo para celebracéo, Previa, entre outres ages, 0 (re)langamento da sua obra no importante mercado editorial dos Estados Unidos. Uma nova traducéo de El Aleph e a publicacéo da uma autobiografia pela prestigiada revista The New Yorker eram o ponto alto das comemoragdes, ¢ a celebracio seria completada com o langamento dos esperados novos contos de El informe de Brodie. Borges passava a circular mundialmente como professor, confer- encista e “convidado especial”. © norte-americano Norman Thomas di Giovanni era o responsével pelas tradug6es da obra, realizadas a quatro mios com o proprio escritor,¢o teria incentivado a escrever material inédito visando aquele mercado. Adolfo Bioy Casares registra 0 contexto do sur- gimento dos contos e 0 desafio que 0 novo livro representava para 0 au- tor que havia perdido quase totalmente a visio, dedicando-se desde entao a poesia, “Que, al hacerlo trabajar en las traducciones, tal vez. le ha dado ganas de escribir cuentos nuevos. Que, si eso es asf, le debe El informe de Brodie y El Congreso” (1377). A separa¢do de Elsa Astete, com quem dizia levar uma vida infeliz, pode ter fornecido estimulo adicional ao escritor, que se refugiava na casa de Bioy Casares e na Biblioteca Nacional com Di Giovanni para traduzir a obra que seria publicada no exterior. Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele El informe de Brodie retine onze contos elaborados ou finalizados espe- cialmente para compor essa obra tardia, Alguns deles, como “La intrusa”, dormiam inconclusos ha décadas. 0 didrio de Bioy Casares indica ainda que a ideia para o enredo de “Guayaquil” surgiu em 1953, e os persona- gens que inspiraram “El duelo” sao citados em 1957. A preocupacao com © novo mercado editorial e com a renovagio do seu puiblico transparece na apresentacao da obra. Borges atenta para o que esta na moda, em ser direto e simples (embora afirme que a simplicidade é algo complexa), em. realizar contos “realistas”, seguindo as convenes do género.’E atencioso com seu leitor, alongando-se na explicacéo dos contos, oferecendo genero- samente chaves - enganosas - ¢ um roteiro de leitura para seu ptiblico. Indica as “musas inspiradoras” (o jovem Kipling, Poe, Shaw, Quevedo, As mil e uma noites..) ¢ até mesmo a origem de alguns relatos, como aquele que dé titulo a coletnea. Afirma que abdicou dos finais imprevistos e das surpresas do barrocy, ¢ fala da inutilidade de algumas discussdes sobre a representa¢ao literdria do nacional. Borges assina o Prélogo em 19 de abril de 1970, uma data que remete diretamente aquele periodo agitado da vida politica argentina. A tomada de posicdo politico-partidaria assumida no texto ocorre nesse contexto € pode ser entendida pela urgéncia e gravidade do momento. Que era agravado pela possibilidade de volta cada vez mais proxima de Perén do exilio (que afinal sé aconteceria em 1973). O pais vivia uma escalada de conflitos politicos que explodiria na luta armada — cerca de so dias depois de concluir e assinar o texto do Prélogo, ocorria o sequestro e execucdo do ex-general e ex-presidente Pedro Atamburu, realizado pelo grupo Montoneros. Poucas semanas depois, um novo golpe derrubaria o general que ocupavaa Presidéncia da Repiiblica Juan Carlos Ongania). A sociedade argentina debatia-se, em pleno século XX, entre governos ditatoriais e uma democracia que ndo conseguia manter-se dentro das regtas democrati- cas. Fausto ¢ Devoto apontam que no periodo de 1955 a 1983, desde a 2 Em entrevista concedida em 1967 para César Ferndndez Moreno, recolhida por Rodriguez Monegal, intitulada muito sugestivamente como “Farto dos labirintos”, Borges aborda os novos projetos que tem em mente, O escritor comenta: “E depois penso escrever alguns contos. Vou ver se fago outros como “La intrusa’, contos de suburbanos” (195). Em El aprendizaje del escrito, faz declaracio idéntica: “ahora estoy abandonando la erudicién, o la falsa erudicion. Ahora intento escribir simple, escribir historias directas” (48). chamada Revolugdo Libertadora (assim também chamada por Borges, que nunca escondeu set apoio aquele movimento militar), que apeou Perén do poder, sucederam-se imimercs governos militares até a definitiva redemocratizacio, em 1983, com algumas poucas interrupgées, um perfodo que consolidow a formacao do “Estado burocratico”, um tipo especifico de Estado autoritario? Quebrada pela repressio e pelo medo, a sociabilidade colapsa (...] A Argentina conhece nos anot 70 uma faléncia do coletive social, @asciste a uma coalescéncia dos grupos e setores sociais ligados 3 violéncia em tomo de dois grandes eixos: um estruturado em torno da violéncia do regime militar, outro, dos alves a serem reprimidos, cada vez com menores possibilidades de ataque e resistencia. (Dellassoppa 81) Assim, entre 0 Prélogo, assinado em Buenos Aires em abril e o lancamento do livro, em agosto daquele ano, o pais atravessava um dos periodos institucionais mais cadticos, com a perda do controle do aparato repressivo. “A violéncia do regime argentino nao tinha, por vocacao e por definicio, nenhum limite. A frase ‘isto nao tem limites’, cunhada expressando a admiracao dos proprios executores” (O'Donnell 81), mostra como a re- pressio agia descontroladamente. A violéncia, a delacao e a perseguicao se disseminaram por todo o tecido social: “o que surpreende é que dentro da propria sociedade surgem focos de repressio secundarios que vibram em consonancia com o autoritarismo do regime” (O'Donnell 81).* Inserido na vida politica, referéncia na vida cultural, um dos mais ativos debatedores dos destinos e do ser argentino, respaldado pela fama e respeito no circuito critico-literdrio mundial, Borges se arrisca a levar 5 “Talvec u wpeuy iis problendtivo €inais original doy regianes nilitares Woy ates 11970 encontra-se nas relagGes entre Estado e sociedade. Tais relagGes foram marcadas por um movimento simulténeo de privatizagao do Estado, tendo em vista os grandes interesses dominantes [...] constituindo-se assim em um regime de perfil burocratico- majoritério” (Fausto e Devoto 395). 4 Hannah Arendt constata a “intromisséo macica da violéncia criminosa na politica” na segunda metade do século XX, uma vez que as priticas da Segunda Guerra Mundial ~ comp o assassinato indiscriminado de civis, a tortura, © genocidio ~ sdo reproduzidas nos anos seguintes nas intimeras guerras que acontecem ao longo do mundo. O impasse é reforcado pelo sentimento de impoténcia: os anos 1960 e 1970 assistem a um pprocesso de glorficaco da violencia, que para a pensadora alema se deve a “uma séria frustracdo da faculdade de agir no mundo moderno” (53), 0 que levaria a justificaggo da violéncia como atitude politica, como era o caso dos atentados terroristas dos anos 1970. 183 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele suas opinides para a apresentagdo da sua nova obra: “Mis convicciones en materia politica son harto conocidas” (OC 1021), em uma atitude cada ver mais frequente em declaragées publicas e entrevistas. Utiliza entao 0 Prélogo como texto ensaistico especulativo, argumentativo e opinativo, dando prosseguimento a uma discussio que jé havia colocado em artigos como “Nuestras imposibilidades” (1931) e “Nuestro pobre individualismo” (1946), ou ainda em “El escritor argentino y la tradicién” s Textos onde é central o debate entre coma deve se dar a relagio entre Estado ¢ in esuas injungoes para além do campo politico, como por exemplo na defesa da autonomia da arte, Uma afirmacao nesta primeira parte do Prdlogo liga esse aqueles textos: “creo que con el tiempo mereceremos que no haya gobiernos” (OC 1021), repetindo o que ja havia expressado em 1946, a defesa de “un severo minimo de gobierno” contra o principal problema do nosso tempo, “la gradual intromisién del estado” (OC 663). Assim, ao Tongo de quatro décadas, tempo que separa “Nuestras imposibilidades” do Prélogo a El informe de Brodie, o tema da constru¢io do nacional como uma questo de Estado, e da relacdo deste com seus cidadios, no desaparece das preocupagées do escritor. Apenas muda de registro e agora invade 0 ficcional de forma no mais dissimulada e desreferenciada como nos contos de Ficciones e El Aleph (é em desacordo a essa abordagem que os contos de Brodie sao diretos e “realistas”). HA outra atitude do autor, anotada por Beatriz Sarlo, que reforga a intencéo comentativa do autor e seu texto sobre o contexto local. Em agosto de 1970, “a revista Los Libros publicou ‘El otro duelo’, de Borges. A nota editorial dizia: No dia 24 de agosto Jorge Luis Borges completa 71 anos. Coincidindo com a data, sera publicado pela Emecé um novo livro de contos” (9). A suirpresa inicial fica por conta de tima revista de asstmido posicionamento politico a esquerda ter dedicado a capa daquele ntimero para um escritor de posigdes assumidamente conservadoras e provocadoramente ‘duo, 5 _Balderston, ao analisar o manuscrito intitulado “Viejo habito argentino” - que daria origem a “Nuestro pobre individualismo” eo manuscrito que daria a conferéncia (depois transcrita em texto) “El escritor argentino y la tradiciGn” ~ identifica semelhangas no ‘método compositivo e nas preocupagdes politicas e de representaco literéria com alguns textos fiecionais do perfodo ~0s contos “El fin’ (de Ficgdes)e “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” e “La espera” (de EI Aleph). Ambos apontam para o mesmo método compositivo (notas, citagbes,referéncias) e a criteriosa escolha das palavras e suas variantes, também como esses textos esto contaminados pelo clima politico da época. anti esquerdistas e anti peronistas. “Depois de muitos anos, Borges escolhia como antecipacao a El informe de Brodie essa histéria barbara, e mais uma ver afrontava seus leitores com a narra¢éo didfana de um acontecimento brutal e remoto” (9). “El otro duelo” narra o conflito que acontece no final do século XIX entre dois gatichos, inimigos histéricos, que se en- frentam em uma das muitas guerras sul americanas daquele periodo. Para a critica argentina, a decisio de publicar o conto remete diretamente ao conturbade mamenta vivido pela Argentina, mesma enxerganda apenas uma “proximidade casual entre as duas datas” (9). A excegao do conto na trajetéria e na obra do autor - pela sua crueldade, relatada de forma direta e crua ~ pode ser equiparada a excepcionalidade daqueles tempos, marca- dos pela “hipérbole da crueldade” (11). Em “El otto duelo”, Borges elabora ¢ explicita 0 conceito de “contos realistas” que aplica a seus contos. Por um lado, os personagens Manuel Cardoso e¢ Carmen Silveira sao siluados € referenciados - sabemos pelo narrador que sio da Provincia de Cerro Largo, que foram recrutados € lutaram em uma das batalhas da Revolugéo de Aparicio, guerra civil que dividiu o Uruguai no final do século XIX. A a¢do ocorre entre o inverno de 1870 e o outono de 1871, perfodo que remete & Revolucio das Langas, a tiltima batalha realizada pela cavalaria com armas brancas (a sangrenta batalha final ea degola dos vencidos indicam que o autor teve neste contfito ocorrido entre 1870-1871 inspiracdo para o relato). Porém, as varias camadas narrativas que o autor nos apresenta e as diferentes fontes do ocorrido desestabilizam as referéncias histéricas. As fontes nao so confiaveis, os acontecimentos perderam-se no passado, e 0 autor deixa clara que nao é fidedigno aos fatos ~ “en mi recuerdo se confunden ahora la larga crénica” (OC 1058) - para. em seguiida. reafirmar a incerteza - “:Cémo recuperar. al cabo de un siglo, la oscura historia de dos hombres”, Adiante, continua: “ya no sé si los hechos que narraré son efectos o causas” (1059), avisando que “ahora traslado sin mayor fe, ya que cl olvido y la memoria son inventivos” (1058). S40 muitos avisos alertando o incauto leitor que os 6 No cokiquio que manteve com o tradutor Norman Thomas Di Giovanni, em 1972, 0 escritor reafirma sua intengao de contar uma histéria implacdvel. “Yo la imaginé como una trama cruel, y la transformé en una broma para hacerla ain més cruel. Inventé algu- nos personajes que contaran la historia de manera cémica para hacerla mas dura y mas despiadada” (El aprendizaje 42) 185 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele fatos hist6ricos sao apenas o ponto de partida, ¢ a inventividade é o que move a narrativa. Borges estabelece esse jogo com seu leitor desde o Prélogo, com palavras ~ e até datas ~ parecidas: “He situado mis cuentos un poco lejos, ya en el tiempo, ya en el espacio. La imaginacién puede obrar asi con més libertad. {Quién, en mil novecientos setenta, recordara con precisién lo que fueron, a fines del siglo anterior, los arrabales de Palermo o de Lomas?” (1021). Fetratégia narrativa que se repete na maiaria das relatos de FI informe de Brodie, e surge jé na primeira linha do primeiro conto: “Dicen (Io cual es improbable)” (1025). $40 na sua maioria relatos que se originam de outro relato, geralmente oral, como aquele que acontece no velério de “La intrusa” ou pelas palavras do livreiro de “El indigno”, Est4 também no acaso que dispara o relato do narrador de “Juan Murafa’: “El azar me enfrent6, poco depois, con Emilio Trépani” (1044), antigo colega que conta ao narrador uma versdo fantastica (em um livro de contos realistas...) de armas que ganham vida (como acontece também em “El encuentro”). Em “Historia de Rosendo Juérez”, é 0 protagonista de uma hist6ria ficcional do préprio Borges quem procura o autor para contar a histéria “verdadeira”. Essa dubiedade atravessa El informe de Brodie, do Prdlogo ao ultimo conto. So narrativas breves e realistas, mas de um real que se esfumaga 8 vista do leitor. © desreferenciamento continua operando a maquina literdria do escritor, agora com outro registro eestratégia narrativa, OS CONTOS ‘A segunda parte do Prélogo é dedicadaa apresentar a obra em si, por meio de alguns contos destacados pelo autcr, os tais contos “diretos e realistas”. Porém, antes mesmo de afirmar que observam “todas las convenciones del género” (1022) ora em voga,o auter jé apresenta uma excegao: 0 conto que da titulo ao livro, declaradamente inspirado na quarta viagem de Gulliver, uma obra ficcional do século XVIII. 0 conto anterior, “E] Evan- gelio segtin Marcos”, apontado como o melhor da coletanea, foi sugerido pelo sonho de um personagem inventado, mas sua historia alterada pelo autor - “temo haberla maleado con los cambios que mi imaginacién © mi raz6n juzgaron convenientes” (1022). Afinal, “la literatura no es otra cosa que un suefio dirigido”. Pouco antes, o autor afirma que dois dos re- Iatos tem uma chave fantéstica, e se permite brincar com o leitor: “no di cudles”, Essa répida apresentagao - ¢ os destaques que elege - mais confundem que esclarecem esse leitor. E omitem o protagonista princi- pal dos relatos: a violéncia, tanto a brutal e fisica (estocadas a faca, degolas, assassinatos, traigao, feminicidio e até mesmo uma crucificagao) como a cultural - nenhum dos relatos é mais impactante que o contado pelo missionério David Brodie sobre sua convivéncia com os primitivos Mich ou Yahoos. Ou o desfecho da leitura do Evangelho. 0 conflito violento engancha tematicamente as onze narrativas. Mesma quando se refere aos contos que possuem a mesma chave magica - 0 autor provavelmente sereferea “Juan Muraiia” e “El encuentro” -,0 fantastico é dado por armas que adquirem vida prépria, comandam o destino dos personagens ¢ levam 4 morte ~ uma morte que se repete ciclicamente e que traga suas vidas. “Las armas, no los hombres, pelearon” (1043), alerta o narrador de “El encuentro”. Os homens séo instrumentos das armas e do conflito: “Las dos sabjan pelear -no sus instrumentos, los hombres” (1043), da mesma forma que o valentao Juan Murafia reencarna e se confunde com a arma ~ “la daga era Murafia, era el muerto que ella seguia adorando” (1047). ‘Mesmo nos contos onde a violéncia nao ¢ fisica, os enredos so marcados pela disputa entre seus personagens. Em “El duelo”, o conflito entre duas artistas plisticas jd é antecipado pelo titulo. “Guayaquil” narra o embate entre dois historiadores que disputam o privilégio de decifrar documentos histéricos. E “La sefiora mayor”, relato em tons autobiograficos e que também acaba em morte. remete mais uma vez as guerras da histéria argentina. Borges teve essa historia muito proxima, seja pelos ancestrais sempre lembrados, nas discussdes sobre os destinos nacionais ou como matéria propriamente literdria. presente na poesia ou em contos de gatichos compadritos, que vao ganhando protagonismo na sua velhice. Sao historias locais, da mesma forma que o espaco das orillas,da pampa, os duelos a faca por honra, as lutas c batalhas, como as que povoam os contos de Elinforme de Brodie, formam um mosaico e séo o registro de uma literatura que, em liltima instancia, tenta enunciar a identidade nacional. Nesses contos, 0 autor entra na histéria, se apresenta ele mesmo como historiador, embaralha o relato historiogréfico eo narrativo-literdrio, Se apresenta de forma quase exata os acontecimentos reais e hist6ricos, ele, no entanto, os incorpora 4 ficgao, aos enredos, como fatos extemnos que so aproveitados para iluminar 187 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele (os impasses, contradic6es e dramas dos personagens, Em El informe de Brodie, oescritor abusa desses recursos estilisticos e trabalha de diferentes maneiras com a distancia entre o narrador e o leitor, entre o real e o ficticio. Usa 0 mesmo procedimento narrativo para tratar fatos histéricos e meméria de fatos e relatos, que se transformam em materiais inventivos paraaelaboragao dessas narrativas, seja em relacdo a algum detalhe circunstancial ou até mesmo para 0 argumento principal do conto. “Usa a meméria para reter ligdes ¢ ensinamentos para o tempo presente, anacronicamente atribi a uma época algo que pertence a outra” (Gorlier 70), exorciza o presente pedindo a ajuda nas experiéncias passadas, na histéria de antepassados nacionais, nos mitos identitérios, nas guerras e combates que fundaram anagio. ‘Ao se aproximar da ultima etapa da sua obra, o argentino retoma alguns temas que estiveram em segundo plano na obra ficcional, revé algumas posigGes adoladas av longo da vida (como a critica ao seu periodo “martinferrista”), reescreve alguns relatos (como o de Rosendo Juarez), edita e reedita a obra (como acontece com as Obras completas, de 1974, quando intervém com a incluséo e exclusdo de textos). Ao revisar a historia de Rosendo Judrez em El informe de Brodie, é a tevisio desse estilo que faz, depurando sua narrativa. Os contos breves que compée a coletanea sao, portanto, a realizacdo dessa nova proposta estética - “ahora estoy abandonando la erudicién, o la falsa erudicion. Ahora intento escribir simple. intento escribir historias diretas” (El aprendizaje 48).repetindo em 19710 desejo manifesto no Prélogo: He renunciado a las sorpresas de un estilo barroco; también, alas que quiere deparar un final imprevisto. He preferido, en suma, la preparacién de una cexpectativa o la de un asombro. Durante muchos afios cref que me seria dado alcanzar una buena pagina mediante variaciones y novedades; ahora, cumplidos los setenta, creo haber encontrado mi voz. (0C 1026) Borges diz, “en las lindes de la vejez”, ter encontrado sua voz nesses textos, cruentos, quando concede a voz narrativa ao outro, a fonte primaria ou secundaria dos relatos, aos detalhes complementares que enriquecem a narrativa fornecidos por personagens secundarios como Laderecha (0 capataz, “que tenfa bigotes de tigre”, OC 1058). E aqui que pode ser melhor localizado 0 “realismo” com que o escritor dz ter escrito seus contos tardios. ‘Avoz despojada, sem barroquismos, o relato direto, sem labirintos. A voz, do outro registrada, tornada perene, pela escritura do autor, um autor jé consagrado, que pode abrir mao da sua voz e deixar o personagem falar. A revisdo da obra criolla do autor, que acontece principalmente a partir dos anos 1950, softe o impacto direto do embate contra o nacionalismo peronista eas questdes que suscitava. Piglia firma que a figura que se oculta nestes contos “realistas”, é exatamente o realismo, a figuracao de um elemento que esta diretamente ligado ao desenrolar dos fatos, da historia, da vida dos personagens. EPILOGO O autor que apresenta a nova obra dedica os tiltimos pardgrafos do Prélogo a discussio sobre aspectos da representacio literdria do nacional, preocupacao presente desde seus primeiros escritos e que nesses anos 1970 estava mais. viva que nunca nos debates entre os intelectuais argentinos. Da mesma forma que a declaracio de filiacdo partidaria e de ceticismo politico sao trazidos para o interior da nova obra,a critica ao nacionalismo ganha igual destaque na referéncia a0 lunfardo e acs “escrupulosos” do idioma, Borges afirma sarcasticamente que discutir esse tema, querer transformé-lo em um canone literério e critério de argentinidad, seria uma perda de tempo, uma bobagem, citando Roberto Arlt ~ “me he criado en Villa Luro, entre gente pobre y malevos, y realmente, no he tenido tiempo de estudiar esas cosas” (OC 1022). 0 lunfardo também seria uma “broma literdria inventada por saineteros y compositores de tango”, ignorado pelos moradores dos arrabaldes e relevante apenas para aqueles “escrupulosos que ejercen la policfa de las pequefias distracciones” (OC 1022). Cabe anotar que de todos os imimeros escritores citados neste Prdlogo ~ Kipling, Kafka, James, Esopo, Poe, o poeta do poema de Maldon, Croussac, Swift, Mallarmé, Joyce, Quevedo, Shaw -,¢ que formam um mosaico vasto dos seus precursores, Roberto Arlt € 0 tinico escritor argentino contemporineo a Borges citado, o que es- tabelece um didlogo atualizado com os temas e questdes levantadas no texto (Hormiga Negra e Martin Fierro, personagens ficcionais do século XIX, entram no texto e reforcam essa ligacao entre passado e presente). Broma, perda de tempo, artificio de escritores poetas urbanos, so definig6es crticas semelhantes &s que esto no ensaio “La poesia gauchesca’, quando o escritor investiga e inventaria a historia desse género tinico, e tenta fazet 0 seu recorte particular e identificar o que é relevante na Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele producio poética do género, enquantc questiona a mitificacdo do gaticho. ‘A exaltacao desse personagem e do seu ambiente, sua transformacao em critério definidor e generalizante da “verdadeira” literatura argentina, s40 ctiticadas pelo escritor, que apontaa contradigéo sobre a condiggo urbana de quem escreveu sobre o gaticho e seu habitat, aproveitando para estabelecer um dos principios estéticos que norteiam sua obra: “el arte, siempre, opta por lo individual, lo concreto; el arte no es platénico” (OC 180). Podemos ver ainda autro eco deste ensaia na Prélogo: referéncia ao cavalo “parejero de color overo rosado”, verso do poema gauchesco Fausto, de Estanislao del Campo. A definicao causou polémica com os “escrupulosos do idioma” pelo uso de “overo rosado”, um tipo de cavalo raro na lida do campo. Para Borges,a questo ¢ indcua, uma vez que o verso segue, “misteriosamente”, agtadando. Ao retomar o exemplo em 1970, escritor mostra que aquelas questdes polémicas e que dividiam os debates culturais desde pelo menos a comemoragao do Centenario da Independéncia, em 1910, continuavam problematicas muitas décadas depois. Em “La poesia gauchesca”, Borges discorre ainda sobre Martin Fierro, personagem do poema de José Hernéndez, chamando atengio para que, “de todos los héroes de esa poesia, Fierro es el mas individual, el que menos tesponde a una tradicién” (OC 180). Fierto seria a expressao literaria da arte que nao deve buscar as generalizagdes nem os denominadores comuns, que “opta por lo individual, lo concreto”. 0 concreto é a histéria pessoal, o sentimento.a entonacao de Martin Fierro. nao sua transformacao em mito nacional. Assim, no final do Prélogo, o gaticho de Hernandez, surge para reforgar a autonomia da arte e da representagao literaria e criticar indireta- mente 0 uso politico do personagem. O mesmo se aplica ans usos do idioma. O escritar é irdnico ao falar dos “dicionarios de argentinismos” e do canone maior, 0 Diciondrio de la Real Academia. “Cada lenguaje es una tradicién, cada palabra, un simbolo compartido; es baladi lo que un innovador es capaz de alterar” (OC 1022). O que se discute aqui é a construgio de“un discurso que poetice la nacién” (Blanco 28) e, a0 mesmo tempo, que contribua para organizar o Estado nacional a partir de uma ancora cultural comum, assim como uma historia e uma lingua oficial, inventando uma prosdpia que desse identidade aos habitantes daquelas terras longinguas. Blanco sugere que ja em 1928 (em 0 idioma dos argentinos), Borges propée que o idioma oficial seja 0 nao escrito, aquele que nos fala como uma amizade conversada (36). Essa declaragao de principios jé prediz toda a etapa tardia do escritor, quando diz ter encontrado a voz nos contos plenos de referéncias & diccdo, a entonacdo, a0 modo de dizer dos seus conterraneos. A busca no passado para preencher o presente e preparar a estrada poética em dire¢ao ao futuro esta baseada agora na recusa ao lun- farda e também ane ditames dos cénones da lingua. A questa da idioma assume entdo um cardter politico: a escolha das palavras e do recorte que serd validado pela lingua “oficial” também determina a forma de represen- tar o nacional, de quem o faz e de quem ¢ o representado. A recusa dos “argentinismos” ou dos dizeres e trejeitos de personagens como o gaticho é também uma forma de nao representar essa cultura popular e procurar uma forma expressiva que nao fique limitada a emular certas express6es. Por issu, os contus diretos € “realistas” de El informe de Brodie podem ser encarados também como a defesa - e a praxis - de que pode se dizer 0 nacional com uma linguagem sem maneirismos e ou folclorismos. ‘Ao escolher encerrar seu Prélogo jogando ironias criticas aos defensores da “cor local” e da fidelidade aos dicionarios; aqueles que querem policiar = ou seja, delimitar, recortar, excluir e eleger - 0s usos da linguagem, 0 escri- tor, dispde-se a aconselhar e recomendar o oficio que téo bem conhece. E aproveita para disparar contra os defensores da literatura como cépia do real. Borges retorna entao aquela parte da sua obra ficcional destinada 4 Argentina, aos seus antepassados, a0 heroismo e a valentia que teriam fundado a nacio, aquele espaco fronteirico, onde cidade, periferia e deserto se confundem. ai que transcorre enredos como “La intrusa”, “El encuentro” “Fl otra duel”, que retarnam ao passada e a uum espaco indefinidn, j4 visitado pelo escritor em contos como “Hombre de la esquina rosada”, “Historia del guerrero y de la cautiva”, “El fin”, “El Sur”. Nao mais para dar contornos a identitarios, nem construir uma identidade ou inventar os fantasmas que povoariam o imaginario nacional, mas agora para tentar entender e explicar os impasses atuais e a permanéncia dessa histéria entreverada, violenta e conflitiva, Se nas ficgSes anteriores os referenciais eram difusos e muitas vezes irteais, e suas elabora¢des implicavam uma série infinita de dtividas e 191 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele resolugdes parciais,’ em Bl informe de Brodie as agbes sao categéricas € definitivas, inescapaveis como o fim trégico dos personagens que habitam. 08 contos. A degola dos dois gatichos de “El otro duelo” é um desfecho previsto para aquele conflito que se projeto no tempo e no espaco até os dias atuais. 0 descarte do corpo de Juliana Burgos pelo mais velho dos irmaos Nielsen, o destino cruel do médico Baltasar Espinosa que lé a Biblia, o acerto de contas operado pela vitiva de Juan Murafia, a queima de arquivas da policia em “Rl indigna”: nao ha diividas ou indefinigdes, apenas o destino latino-americano que se repete. © LEVIATA CONTRA A VIOLENCIA © estado de conflito permanente, geralmente associado a omissio ou distanciamento do Estado, ou entao ao desvirtuamento das suas atribuigbes, esta presente (ou ausente) na maioria dos contos de EI informe de Brodie. Domina o espa¢o, dita o ritmo da narrativa,comanda a vida dos personagens e determina seus destinos, como os punhais que se enfrentam pelas maos de Duncan e Uriarte, ou a arma que ganha vida pelas maos da vitiva de Juan Murafia. O enfrentamento e 0 conflito estao, neste Borges do entar- decer, no centro da questéo nacional. A crise profunda que a Argentina atravessa esta impressa na trajetéria dos personagens, que sdo em si violentos, ou que mesmo quando nao o s4o,acabam tragados poratitudes ¢ pela solugao violenta das disputas. Os contos retratam uma situagao de guerra de todos contra todos, de uma sociedade regredindo a um estado de natureza e conflito permanente. As safdas heroicas, via lutas € duelos, cocupam o lugar desse Estado ausente na manutengio da ordem e na execucao da justica. Uma situa¢do que tem seu equivalente na regressio cultural vivida pelos Gutre, que perdem a escrita, a leitura e a capacidade de distinguir entre verdade e ficgdo. Contra esse estado pre social, Borges preconiza um Estado forte e militar, hegeménico politicamente e detentor do monopélio do uso da violéncia, como poderiam ser os regimes militares que receberiam seu apoio ostensivo poucos anos depois do langamento da obra. Propée uma saida politica hobbesiana ~ a defesa do Estado Leviata. 7. “Borges es un escritor queno solo tiene dudas, sino que tiene dudas dentro de dudas”, afirma Balderston (E! método 109), para quem 0 escritor argentino pratica uma estética da fragmentagao, na qual predominam as “variantes com vacilagoes”. © apoio aos governos fortes e a solugao radical do conflito que divide a sociedade argentina encontra sua representacao literéria na execucao cruel dos dois gatichos de “El otro duelo”, o conto escolhido para antecipar a obra e dialogar com o momento. Inimigos histéricos - como a divisio histérica entre federalistas e unitarios, ou peronistas e anti peronistas -, Manoel Cardoso e Carmen Silveira séo degolados pelo comandante militar do grupo vencedor da batalha, que impée sua vitéria de maneira categérica, executando evemplarmente os derrotadas 0 fildsofo inglés Thomas Hobbes escreveu sua principal obra no con- texto conturbado e conflituoso da Revolucio Inglesa e da guerra civil que dividia 0 pais. No Leviatd, o pensador se propéea fazer um discurso sobre © Estado, procurando uma resposta racional para a questo basica dé a ciéncia politica que ele ajudou a fundar: como tornar as sociedades pacificas ea vida sobre a terra prazerosa e feliz? Nesse tratado, Hobbes formulou a concepgao moderna do Estado, represenlado por um soberano que se justi- fica pela rentincia consciente dos homens aos seus direitos e sua cessio a um poder maior que, amparado na razdo, vai se responsabilizar pela se- guranca, pelo auto conservacao e pelo progresso da sociedade, resultando no estabelecimento de um contrate ou pacto social. caos instaurado pelo conflito inglés do século XVII e as mortes que se seguiram, os prejuizos econémicos e sociais, a anarquia da guerra civil vivida naquele periodo, justificariam e legitimariam a rentincia dos direitos individuais a favor de uma pessoa abstrata. o Estado, Borges refere-se a Hobbes ¢ & sua filosofia em varios momentos da obra, em especial nos dois ensaios filoséficos onde discute o paradoxo de Aquiles - “La perpetuia carrera de Aquiles y la tortuga” e “Avatares de la tortuga”, Destaca alguns aspectos do pensamento do inglés que pracuram dar carter légica ans aspectos politicos da convivéncia social, aplicandoa eles o método matematico ou cientifico.No entanto, o pensamento politico que deu os contornos do Estado Moderno nao é nominado, mas pode ser identificado nos enredos de El informe de Brodie, na omissao e auséncia do poder estatal que nao regula as relagdes sociais nem garante a justica e a paz dos seus personagens. Se a defesa e a fillaggo a0 individualismo spenceriano é uma constante nos artigos, en- trevistas e textos ensafsticos de Borges - esta, por exemplo, em “Nuestro pobre individualismo” e reaparece de forma autobiogréfica no conto “El Evangelio segiin Marcos” (“Su padre, que era librepensador, como todos 193 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele los sefiores de su época, lo habia instruido en la doctrina de Herbert Spencer”, OC 1068) - os termos da conceituagéo do Estado feitas por ‘Thomas Hobbes e sua comparacao do momento argentino como homem vivendo em estado de natureza,’ est presente nesses textos de 1970. Ela fundamenta as ficgbes e fornece os argumentos para 0 posicionamento futuro do escritor. © Borges dos anos 1920, que apoiou 0 governo de Hipélito Yrigoyen uma visio liberal cléssica, e que a partir da queda daquele governa apro- funda sua mirada liberal em diregio a defesa cada vez mais intransigente da concepcio spenceriana do individualismo anti estatal, ao chegar nos anos 41970 inclina-se para uma opeao conservadora e desacreditada dos destinos nacionais a partir da sua leitura do contexto politico-ideolégico que pediria a instalaggo de um Estado hegeménico baseado na forga. A imposigéo da ordem ea eliminagao do adversério (no caso, 0 adversério peronista) é sua resposta ao conlexlo politico da Argentina daqueles anos, ameagada por ‘uma nova guerra civil, como a que dividiu o pais entre unitarios e feder- alistas. Nos contos de El informe de Brodie, o escritor flagra as origens desses conflitos voltando ao passado formativo e enxerga no duelo sempre latente entre seus personagens a repeticio de uma luta fratricida que remonta a Conquista eas lutas pela unificacéo nacional, Para o autor que defendia “un severo minimo de gobierno”, tomna-se premente a imposicao da paz e da ordem pela intervencdo estatal. Ha um nitido sentimento de derrota e 0 ce- ticismo domina o autor nesta altura da vida. que transparece no Prélogo: “la yaavanzada edad me ha ensefiado la resignacién de ser Borges” (OC 1022) Os contos de B! informe de Brodie podem ser considerados mais um mo- mento da obra do escritor em que as questées estéticas e as politicas se entrelacam ¢ no qual Rarges se torna tim escritar engajado de forma menos dissimulada. Ao explorar ficcionalmente os conffitos que originaram e ainda dividem a nagéo, ao trazer 0 tema para o centro da sua obra tardia, o autor cexpée as suas proprias contradigSes ¢ uma escritura apoiada no conflito, Optando por uma safda radical através da violéncia exttemada, reveladora de uma sociedade fraturada e que sé resolve seus impasses pela violéncia, 8 Segundo o filésofo inglés, no estado de natureza “nao existe nenhum freio & concor- réncia e nenhum processo civilizador do confito. No estado de natureza vigora uma pre- disposicéo multilateral para a violéncia e os concorrentes tornam-se necessariamente inimigos” (Kersting 75). Borges contradiz seu discurso liberal, opta pelo retorno a um passado arcaico, pré-capitalista e oligarquico. Para uma sociedade desorganizada ¢ em estado de guerra, hé que refazer 0 contrato 4 maneira de Hobbes e implantar um Estado Leviata, que, sob dominio do medo e o monopélio da violéncia, imponha-se sobrea sociedade que, um século depois, continua dividida e vivendo préxima ao estaco de natureza. Ao tentar integrar e equa- cionar essa dupla heranca, Borges explicita as bases sobre as quais se constréi 2 ua visio de munda politica, aideolagia que tensiona sua escritura [EJsta forma ideoldgica no debe ser confundida con las opiniones politicas de Borges. Las determina, pero contradictoriamente, y mientras estas opiniones cambian y Borges pasa del yrigoyenismo a cierta forma nativa del fascismo, los elementos basicos de esa construccién se mantienen y se los encuentra a lo largo de toda su produccin, Fundada en el pasado de sangre y enlaestirpe,en el origen y ene cultoa los mayores, esta ideologia refleja,antes ue nada, las contradicciones de su insercin en la sociedad. Transcribe en un lenguaje espectico un contenido social particular y a la ver expresa una oposicién central entre conciencia de clase y situacién social. Piglia 6) Rorges entao nunca “excluye los contrarios, sino que los mantiene y losintegra como elementos constitutivos de su escritura” (Piglia 6). Os contos de 1970 representam a ultima inflexdo da obra ficcional do argentino e é antecipada na apresentagao do novo livro. Os contos “realistas” e diretos so 0 oposto dos contos “fantasticos” e “labirinticos” das ficcSes anteriores. Eles compdem aquela que seria a época mais violenta da litera- tura do autor, que vai de £1 informe de Brodie, “pasa por los poemas épico- patrioteros de La rasa profiunda, hasta el prologo de La moneda de hierro, con la tristemente célebre frase: ‘Me sé del todo indigno de opinar en materia politica, pero tal vez me sea perdonado aftadir que descreo de la democracia, ese curioso abuso de la estadistica’” (Gamerro 314). £0 periodo que antecede o apoio aos governos militares e que vai até 1976, fase mais dura da ditadura militar e da hist6ria recente da Argentina. Gamerro assinala que, a partir de entdo, Borges revé seu posicionamento e em 1985, no livro Los conjurados, néo hd mais a celebragao da violéncia, da barbarie ou do culto a coragem. Umberto {uiz Miele Universidade Federal do Parana 195 Borges ¢ 0 leviaté na Argentina dos anos 1970 Unberto fuig ‘tiele OBRAS CITADAS Arendt, Hanna. Da violéncia. Edicao digital, 2004. www.sabotagem.revolt. org. Balderston, Daniel. 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