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A ressignificação dos usos da escrita: a ação didá-

tico-pedagógica do professor para produção de


textos gêneros diário e conto por alunos da 6ª série
da EJA
Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti1
Anderson Jair Goulart2
Simone Lesnhak3

Resumo: Este estudo topicaliza resultados de uma pesquisa-ação cujo foco


é a ressignificação dos usos da escrita por meio do trabalho com os gêneros
do discurso diário e conto e a ação do professor para a participação dos
estudantes em eventos de letramento diversificados, promotores de novas
práticas de letramento. O público participante do projeto foi uma turma
de estudantes de 6ª. série do Ensino de Jovens e Adultos. O objetivo foi
facultar aos estudantes compreender os significados do ato de escrever
em diferentes eventos de letramento e situações de interação. As análises
foram produzidas à luz dos estudos sobre letramento, com ancoragem em
estudos de Street (1984; 2003), Barton (1994), Barton e Hamilton (2000),
Heath (1982) entre outros estudiosos da área. Além desse quadro teórico,
o trabalho foi desenvolvido sob a perspectiva dialógica da linguagem e dos
gêneros do discurso de Bakhtin (2000; 2002). Observou-se, ao final do
projeto, que os estudantes ressignificaram os usos da escrita, entendendo
seu caráter dinâmico nas esferas e relações sociais.
1
Professora Adjunta do Departamento de Língua e Literatura Vernácula e do Programa de Pós-Gradu-
ação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
2
Pós-graduando em nível de Mestrado do curso de Pós-Graduação em Linguística da Universidade
Federal de Santa Catarina e professor responsável pela aplicação do projeto na turma de 6ª. Série do
EJA. Email: andersonjgoulart@hotmail.com.
3
Pós-graduando em nível de Doutorado do curso de Pós-Graduação em Linguística da Universidade
Federal de Santa Catarina. Email: si.lk@hotmail.com.
Dez. 2011. Recebido em: 25 out 2011.
R. Língua & Literatura Frederico Westphalen v. 13 n. 21 p. 73 - 94 Aprovado em: 07 dez. 2011.
REVISTA LÍNGUA & LITERATURA
Palavras-chave: Escrita. Aprendizagem. Gêneros. Letramento.

Introdução

Na sociedade altamente grafocêntrica em que vivemos, os


usos sociais da escrita se apresentam de forma diferente em razão
dos diferentes acessos a que tem os indivíduos com relação à escrita
e ao uso que dela fazem. Sob a perspectiva dos gêneros do discurso
(BAKHTIN, 2000 [1952/53]), os indivíduos elaboram enunciados
diversificados em razão das atividades que realizam e das quais parti-
cipam no dia a dia, na interação verbal. Dessas atividades, resultam
diferentes textos, que se estabilizam e configuram-se como formas
de tipificação social. Nas interações verbais, os enunciados refletem,
além dos acordos sociais, as experiências e os conhecimentos de cada
indivíduo. Sob a perspectiva do letramento, leitura e escrita compre-
endem um processo que, dentre outras particularidades, busca rela-
cionar o conhecimento trazido por cada indivíduo (conhecimento
prévio) com o conhecimento novo advindo das situações socioco-
municativas dos quais o indivíduo participa. Os processos de leitura
e escrita começariam a desenvolver-se a partir da interação.
A partir dessas perspectivas, o olhar sobre a linguagem, os seus
usos e, principalmente, o ensino e a aprendizagem da leitura e da
escrita requer novas posturas por parte da escola e dos professores. É
fundamental que a escola e o professor sejam sensíveis aos diferentes
usos da linguagem na sociedade e as distintas realidades culturais
que se estabelecem dentro e fora do universo escolar e o que essas
modalidades significam na vida dos diferentes sujeitos.
Este artigo tem como foco a ação didático-pedagógica dos
professores a favor da ressignificação dos usos da escrita por estu-
dantes, por meio da participação desses estudantes em eventos de
letramento diversificados e da produção de gêneros de discurso. Nesse
processo, é basilar a ação do professor para a compreensão de que a
escrita medeia semioticamente relações intersubjetivas de natureza
diversa nas diferentes esferas sociais e permeia as variadas materia-
lizações de comunicação e organização sociais, bem como assume
funções e configurações específicas, dadas as situações de interações
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das quais os indivíduos participam.
O trabalho aqui apresentado foi desenvolvido com jovens e
adultos, estudantes de uma turma de 6ª série da EJA, de uma esco-
la inserida num entorno socioeconômico desprivilegiado, relatando
analiticamente um percurso de coconstrução de caminhos em busca
da atribuição de novos sentidos para usos da escrita. As teorizações
que ancoram a discussão sobre letramento partem de Barton (1994),
Heath (1983), Street (1984), Vigotski (1984), Lahire (1995), en-
tre outros teóricos que tratam sobre o tema, bem como de Bakhtin
(2000, 2002) para a discussão do tema gêneros do discurso.
Organizamos este artigo da seguinte forma: apresentamos pri-
meiramente, em linhas gerais, o conceito de letramento; em seguida,
discutimos brevemente a teoria dos gêneros na perspectiva dialógica.
Posteriormente, apresentamos o projeto desenvolvido no EJA, bem
como a análise dos resultados obtidos.

1 O fenômeno do letramento e as possíveis implicações no ensino


de língua materna na escola

Os estudos sobre letramento têm ganhado extensivo alar-


gamento no Brasil durante os últimos anos, principalmente pelos
olhares de duas importantes estudiosas conhecidas nacionalmente:
Ângela Kleiman (1995) e Magda Soares (1998). Entendido ao longo
dos anos como sinônimo de erudição, o conceito passa por uma am-
pliação significativa, o que implica uma concepção de língua como
interação, contemplando os mais variados usos para os quais a escrita
se presta no cotidiano de sujeitos situados sócio e historicamente.
Tradicionalmente, concede-se à Instituição escolar a respon-
sabilidade pelo acesso ao mundo da escrita. Sob essa perspectiva, a
escola tem o papel de ampliar a aprendizagem e o uso efetivo des-
sa modalidade da língua (SOARES, 2003). A partir da década de
1980, no entanto, eclodem novos pressupostos teóricos referentes à
escrita, tais como os modelos autônomo e ideológico de letramento, pro-
postos por Street (1984) e eventos e práticas de letramento (HEATH,
1982; BARTON, 1994; STREET, 1988), importantes, em nosso
entendimento, para uma compreensão da escrita em uma dimensão
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mais ampla, que não exclusiva ao ambiente escolar.
Ângela Kleiman, em sua obra intitulada Os significados do le-
tramento (1995), compartilha o entendimento do termo como re-
lativo aos diferentes usos sociais da escrita. Tal concepção também
está presente na obra de Soares, Letramento: um tema em três gêneros
(1998), em que a autora menciona o fato de sujeitos analfabetos
fazerem, em alguma medida, uso da língua escrita para se move-
rem na sociedade. Sob essa ótica, sujeitos inseridos numa socieda-
de grafocêntrica são considerados letrados, independentemente de
dominarem ou não o código. O fato é que a escrita é utilizada com
diferentes finalidades e que até mesmo os analfabetos fazem uso do
código de algum modo, o que lhes confere, sob determinados aspec-
tos, mobilidade social. É comum, em muitos casos, pedirem auxílio
de outras pessoas para pegarem um ônibus, bem como decorarem
nomes de estabelecimentos ou avenidas, o que remete a uma cono-
tação antropológica e sociológica do conceito de letramento, uma vez
que observamos os usos da escrita e da leitura advindos de sujeitos
com história e cultura particulares.
As pessoas usam a escrita cotidianamente, buscando atender
a demandas escolares, familiares, bem como àquelas provenientes
das atividades no trabalho e do lazer. É notório, que em alguns en-
tornos, há uma naturalidade de usos mais elaborados e planejados
da escrita, devido às vivências e ao contato permanente dos sujeitos
com situações em que tais usos ganham grande expressividade. Tal
naturalidade não parece ter lugar em todas as esferas sociais em que a
escrita também é utilizada; nelas tal uso busca atender aos propósitos
comuns dos sujeitos ali inseridos, os quais nem sempre demandam
maior planejamento ou elaboração. Desse modo, é consensual que
os usos da escrita não estão restritos à esfera escolar, mas ultrapassam
os diferentes espaços sociais em que as relações humanas se estabe-
lecem.
Kleiman (1995, p. 19) escreve: “[...] podemos definir hoje
letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita,
enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos.” Já Rojo (2009) assinala que
o fenômeno do letramento implica os usos e as práticas sociais da

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escrita, em contextos valorizados ou não-valorizados, nas mais va-
riadas esferas, tais como família, escola, Igreja, mídias, uma vez que
as práticas de letramento são situadas socioculturalmente (BARTON,
HAMILTON, IVANIC, 2000).
Essa discussão nos remete aos modelos de letramento propos-
tos por Street (1984) na busca de um amadurecimento sobre a im-
portante função do professor de língua materna no que concerne ao
trabalho com leitura e escrita na sala de aula. No modelo autônomo,
a escrita seria tomada em uma perspectiva de imanência, concebida
em sua internalidade, independentemente dos contextos de uso. No
entendimento do autor, esse modelo parte da suposição de que em si
mesmo o letramento produzirá efeitos sobre outras práticas sociais e
cognitivas. Ao que parece, o ensino de leitura na escola tem se apro-
ximado da natureza tecnicista do modelo autônomo, o que muitas
vezes tende a contribuir com o fracasso implicado nesse olhar não
contextualizado.
Ao propor o modelo ideológico de letramento, o autor argumen-
ta que o letramento deve ser definido em termos de práticas sociais
concretas. Reafirma-se, assim, a importância da sensibilidade do
olhar do professor para as diferentes configurações sociais que se ma-
terializam na escola, de modo a possibilitar aos alunos ampliação das
suas práticas de leitura, que devem, supostamente, partir das práticas
já naturalizadas nos diferentes entornos.
A efetivação desse processo requer do professor uma prática
que contemple a realidade vivenciada por seus alunos. Assim, conhe-
cer os eventos de letramento dos quais participam se torna extrema-
mente significativo no processo de ensino e aprendizagem da leitura
e da produção de textos. O conceito de evento de letramento surge em
estudos de Shirley Heath (1982), em que a autora concebe tais even-
tos como qualquer ocasião em que um texto escrito se faz presente,
permeando as interações humanas. Desse modo, podemos conceber
os atos de ler uma bula de remédio, escrever numa interação via MSN,
ler Iracema, como possíveis eventos de letramento frequentes na vida
das pessoas, dependendo do lugar onde vivem, de quem são, dos
objetivos para os quais usam a escrita cotidianamente.
De modo a entender os horizontes sociais e culturais sobre os
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quais os eventos se instituem, Street (1988) propõe o conceito de prá-
ticas de letramento. De acordo com o autor, ao interagirmos por meio
da escrita, trazemos valores, modelos sociais que moldam o evento,
fazendo-o ter significado.
A esse respeito, vale referenciar teorizações de Barton (1994)
respectivas à distinção entre eventos de letramento e práticas de letra-
mento. Segundo o autor, os eventos de letramento seriam atividades
humanas em que a escrita está presente, enquanto as práticas seriam
formas culturais de fazer uso da escrita nesses eventos. Alguns eventos
de letramento compreendem ações da vida diária que envolvem a es-
crita, como a discussão de uma reportagem de jornal em um grupo
de amigos, ou a anotação e a organização das compras do mês. O ato
de um adulto, ancorando-se em obra literária, contar histórias para
uma criança durante a noite também seria exemplo de um evento de
letramento, e, quando isso acontece de forma recorrente, dá conta de
práticas de letramento consolidadas.
A partir do momento que a escola promover a participação
dos alunos nos diferentes eventos de letramento, sejam eles mais efe-
tivamente planejados ou não, à luz de quem são os sujeitos, tanto
quanto a hibridização entre os universos local e global (STREET,
2003), estará concebendo o ensino de leitura e escrita de modo dia-
lógico com as práticas locais advindas do entorno microcultural dos
alunos. Não estamos propondo a sobrevalorização de práticas locais
em detrimento das práticas globais institucionalizadas na macro-
cultura, mas ressaltando a importância de conciliar tais horizontes
a ponto de propiciar a todos os alunos maiores possibilidades de
inserção nas diferentes esferas da atividade humana. Para tanto, en-
tendemos que o trabalho com os mais diversos gêneros discursivos se
faz necessário, de modo ao professor possibilitar ao seu aluno refletir
sobre os diferentes usos da linguagem, dada a esfera de circulação
desses gêneros, o suporte no qual se inscrevem, o conteúdo, o estilo
e os elementos composicionais que permitem ao leitor relacionar-se
constantemente com o autor do texto e construir sentidos de acordo
com as especificidades da situação de interação.

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2 Os gêneros do discurso como mediadores semióticos da ação
humana nas interações sociais

O tema gêneros tem sido constantemente objeto de estudo


atualmente no Brasil. A partir da publicação das diretrizes nacionais
e estaduais em 1998 - Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs
(1998) e Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) e, conse-
quentemente, das exigências da adoção de uma nova didática do en-
sino de língua em sala de aula, muita curiosidade tem surgido sobre
o tema, como trabalhar a leitura, a escrita, a oralidade e a gramática
sob essa perspectiva.
Quanto à teoria dos gêneros, torna-se imprescindível lembrar-
se de Mikhail Bakhtin (2000 [1952/53]), autor que, segundo Ro-
drigues (2005), apesar de não poder ser considerado o precursor dos
estudos sobre gêneros, é considerado importante problematizador
para tais discussões teóricas e aplicações pedagógicas. A partir de sua
obra, fundam-se duas vertentes, a dos gêneros textuais e dos gêneros
do discurso que, embora com enfoques diferenciados, apontam a ne-
cessidade de o texto ser visto em seu contexto, ligado às atividades
humanas. Gêneros são enunciados, e enunciado é unidade concreta,
viva, real de comunicação verbal, o que significa que, “[...] embora
inerente ao texto, esta unidade só se manifesta em situação social e
na relação com outros textos (numa relação dialógica, em dada esfe-
ra).” (RODRIGUES, 2005, p. 158).
Tendo como base essa premissa, o ensino de língua na escola
toma um rumo diferente do ensino centrado somente nos aspectos
linguísticos, estruturais e gramaticais. Segundo Motta-Roth (2006,
p. 501), “[...] ensinar linguagem se concentra em levar o aluno a de-
senvolver competências analíticas dos contextos de uso da linguagem
de modo a ser capaz de analisar discursos. Nesse sentido, o contexto
passa a ser critério para se escolher o que e como dizer ou escrever”.
O importante para essa abordagem é considerar o contexto social em
que o indivíduo atua e se comunica, pois é nele que se cria, surge a
comunicação humana.
Para a compreensão da perspectiva dialógica da linguagem,
cujo principal representante é Bakhtin, torna-se fundamental um
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estudo sobre várias outras noções correlatas a essa perspectiva (RO-
DRIGUES, 2005). De acordo com Vigotski (1998 [1978], p. 75),
o desenvolvimento humano se dá primeiramente no nível social e
depois no nível individual, isto é, “[...] primeiro, entre pessoas (in-
terpsicológica) e depois no interior [do indivíduo] (intrapsicológi-
ca)”. Para haver desenvolvimento e aprendizagem nas relações in-
tersubjetivas, Vigotski aponta o signo como elemento essencial, pois
ele constitui o elemento mediador no processo de desenvolvimento
e aprendizagem.
Signos, para Vigotski (1998, p. 52), são “[...] estímulos artifi-
ciais, ou autogerados [...]” e qualquer elemento semiótico que sirva
de estímulo a uma ação constitui um signo. A palavra representa o
signo que serve tanto para indicar o objeto como para representá-lo,
como conceito, sendo nesse último caso, um instrumento do pensa-
mento. Além de estímulo e mediador, na perspectiva dos gêneros do
discurso, o signo será concebido como ideológico. De acordo com
Bakhtin/ Voloshinov (2002 [1929], p. 31),
Um produto ideológico faz parte de uma realidade
(natural ou social) como todo corpo físico, instru-
mento de produção ou produto de consumo; mas,
ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma
outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideo-
lógico possui um significado e remete a algo situado
fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ide-
ológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.

Bakhtin/ Voloshinov (2002 [1929], p. 35) explicam que a


consciência humana “[...] adquire forma e existência nos signos cria-
dos por um grupo organizado no curso das suas relações sociais”; isto
é, “[...] a lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica
da interação semiótica de um grupo social” (BAKHTIN, 2002, p.
35). Todo signo, de acordo com essa concepção, é a materialização
da comunicação entre os indivíduos em interação social.
A palavra é considerada por Bakhtin/ Voloshinov (2002
[1929]) como o fenômeno ideológico por excelência. Sua neutra-
lidade a diferencia dos demais signos, que representam um campo
particular de criação ideológica. A palavra perpassa todos os demais
campos e é o material privilegiado da comunicação na vida humana
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cotidiana. Além disso, ela exprime o discurso interior, a consciência
individual, pois ela é verbalmente constituída – isto é, “[...] toda re-
fração ideológica do ser em processo de formação é acompanhada de
uma refração ideológica verbal” (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 38).
Assim, segundo o autor, é necessário não separar a ideologia da rea-
lidade material do signo; não dissociar o signo das formas concretas
de comunicação social.
Voltando à concepção de signo ideológico e mediador semi-
ótico aqui adotada, Schneuwly (2004) explica que “[...] a ativida-
de [humana] é necessariamente concebida como tripolar: a ação é
mediada por objetos específicos, socialmente elaborados, frutos de
experiências das gerações precedentes, através dos quais se transmi-
tem e se alargam as experiências possíveis”. Sendo assim, relacionan-
do essas concepções, poderíamos dizer que os signos são os objetos
específicos mediadores semióticos da ação humana, resultantes das
relações e comunicação humanas; são instrumentos psicológicos que
servem para a produção das ações e atividades desenvolvidas pelos
indivíduos e só se materializam na interação verbal social.
Assim como a palavra, signo verbal, a língua também é atraves-
sada pela ideologia e reflete o momento sociohistórico no ato de in-
teração verbal. Rodrigues (2005, p. 155) ressalta que, para Bakhtin,
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo
“[...] fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação
[enunciado] ou pelas enunciações [enunciados]” (grifos do autor).
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada
tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação
do locutor com o ouvinte.” (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2002
[1929], p. 113).
Bakhtin (2000 [1952/53], p. 279) afirma que “[...] cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, sendo isso que denominamos gêneros”. O termo enun-
ciado remete a unidades da comunicação verbal, as quais podem ser
orais e escritas, são concretas e únicas, e emanam dos integrantes
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de uma ou outra esfera de atividade humana e na interação verbal
humana. Para além de uma dimensão verbal expressa, caracterizam o
enunciado: a) a alternância de locutores; b) o acabamento do enun-
ciado; c) a expressividade do locutor diante do objeto de seu enun-
ciado.
A primeira característica (a), segundo o autor, se refere à capa-
cidade de o enunciado suscitar uma resposta, pois está em contato
imediato com a realidade, e é ela que possibilita a significação ple-
na. Rodrigues (2005) explica que o enunciado, embora inerente ao
texto, só se manifesta em situação social em dada esfera e na relação
com outros textos, numa relação dialógica.
Quanto à segunda característica, Bakhtin (2000 [1952/53])
indica que a totalidade de um enunciado é determinada por três
fatores: a) o tratamento exaustivo do objeto de sentido: é o limite
da sua significação, dada pelos interlocutores; b) o querer-dizer do
locutor: as fronteiras do enunciado serão determinadas pela com-
binação do intuito discursivo com o objeto de sentido para formar
uma unidade indissolúvel, o que está vinculado à situação concreta
de comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais,
pelos parceiros individuais e seus enunciados anteriores; c) as formas
típicas de estruturação do gênero: todos os nossos enunciados dis-
põem de uma forma padrão relativamente estável de estruturação,
que será recuperada mediante as situações concretas de utilização da
linguagem, isto é, os gêneros do discurso.
A terceira característica do enunciado referente à expressi-
vidade do locutor diante do objeto de seu enunciado é explicada
por Bakhtin (2000 [1952/53]) como relação valorativa dada pelos
interlocutores com o objeto do discurso, determinada pela escolha
dos recursos gramaticais, lexicais e composicionais do enunciado,
definindo, assim, o seu aspecto expressivo. Essa relação não está na
língua e tampouco na realidade objetiva que existe fora de nós, mas
no contato entre a significação linguística e a realidade concreta. Isso
quer dizer que “[...] o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo
têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmos-
fera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apre-
ciações, etc.” (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2002 [1929], p. 112).

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Essas três características diferenciam o enunciado de uma
unidade linguística tal como uma oração, uma estrutura textual abs-
trata. Os textos são os objetos materiais à disposição dos indivíduos
para observação, análise, mas o fato é que eles só constituem enun-
ciados quando o sentido lhes é dado por uma situação de interação
verbal.
Os enunciados serão as manifestações dos indivíduos na situa-
ção de comunicação, sendo que, no gênero, segundo Bakhtin (2000
[1952/53], p. 312), “[...] a palavra comporta certa expressão típica.
Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da co-
municação verbal e, portanto, a certos pontos de contato típicos
entre as significações da palavra e a realidade concreta”. Os gêne-
ros para Bakhtin, segundo Rodrigues (2005), serão uma tipificação
social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades)
comuns, que se constituíram historicamente nas atividades huma-
nas, em uma situação de interação relativamente estável reconhecida
pelos falantes.
Para Rojo (2005, p. 197), “[...] as relações entre os parceiros
da enunciação não se dão num vácuo social. São estruturadas e de-
terminadas pelas formas de organização e de distribuição dos luga-
res sociais nas diferentes instituições e situações sociais de produção
dos discursos”; isto é, Rodrigues (2005) explica que a perspectiva
dialógica toma os gêneros enquanto dispositivos cuja constituição e
funcionamento só poderão ser apreendidos nas situações de intera-
ção social. A cada nova situação de interação, os gêneros vão sendo
tomados para o uso e se estabilizando, e, se a estabilidade não acon-
tece, isso se dá pelo caráter de processo, pelos horizontes axiológicos
em jogo no momento do uso do gênero.
De acordo com essa perspectiva, o texto passa a ser constru-
ído a cada situação de interação humana, levando-se em conta os
contextos sociais, históricos e culturais envolvidos nos enunciados.
Em razão de o ponto de partida ser a situação de interação, todo
texto é relativamente estável e deve ser analisado como processo em
constante mutação. Como signo ideológico, reflete um determinado
momento social e histórico, assim como servirá aos propósitos dos
seus usuários para perpetuar ou colocar em xeque certa formação
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ideológica. A palavra adquirirá a forma que a sociedade desejar, re-
fletindo as suas regras, a sua organização, bem como o entendimento
que os indivíduos têm dos signos, manifestado por meio dos seus
discursos. Essa compreensão, como já vimos, será influenciada pelo
conjunto de conhecimentos e valorações trazidos pelos participantes
da comunicação. Sendo assim, as teorias do letramento e dos gêneros
do discurso são importantes perspectivas que, quando tomadas em
suas possíveis implicações pedagógicas, apontam para um olhar di-
ferenciado do professor e da escola para o estudo, análise, leitura e
produção de textos.

3 A escrita nos gêneros diário e conto como partida para


ampliação das práticas de letramento de alunos de uma 6ª série
da EJA.

A dinamicidade das interações humanas permite o diálogo en-


tre conhecimentos que trazemos de nossas experiências anteriores
e novos conhecimentos a que acessamos a partir do convívio com
outras pessoas. Esses diálogos ocorrem entre sujeitos situados em um
tempo e em um espaço específicos, por meio dos mais variados gêne-
ros discursivos, o que tende a resultar na ampliação dos conhecimen-
tos sistematizados em nossa memória e na compreensão dos usos da
escrita pela sociedade. Tal compreensão nos permite entender que
as práticas de leitura e escrita de que participamos no meio em que
vivemos influenciam nossas práticas individuais de usos da escrita.
É notável, conforme sugere Kleiman (1995), o papel da escola no
que respeita à ampliação dos conhecimentos dos sujeitos, no que
se refere à construção de significados dos materiais escritos. Desse
modo e com base em Heath (1982), entendemos ser necessário que
as práticas escolares dialoguem com as mais variadas realidades, a fim
de não privilegiar apenas representações de mundo de grupos sociais
específicos.
Nesse sentido, o nosso trabalho partiu da busca de conhecer
o universo de leitura e escrita de uma turma de 6ª série - inserida na
modalidade “Educação de Jovens e Adultos – EJA”, de um entorno
desprivilegiado socioeconomicamente. Partimos da hipótese de que
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A ressignificação dos usos da escrita: a ação didático-pedagógica do professor para produção de
textos gêneros diário e conto por alunos da 6ª série da EJA
conhecer os sujeitos inseridos na pesquisa, bem como os usos da
escrita que se fazem frequentes em suas vidas, nos permitiria, por
meio de teorizações sobre letramento e gêneros do discurso, empre-
ender uma ação mais consequente no trabalho com a produção de
texto em sala de aula.
A escrita e a leitura pareciam distantes das atividades diárias
presentes na vida de muitos deles. Tal afastamento, em nosso enten-
dimento, parece ter se consolidado, diante da sobrevalorização da
escrita, no que se refere ao domínio da norma padrão em situações
específicas de interação, para as quais muitos deles não conseguiam
atribuir significação, uma vez que o uso dessa modalidade da língua
se apresentava muito distante das suas práticas cotidianas.
Com base nas nossas observações, levantamos os seguintes
questionamentos: Qual lugar a escrita ocupa na vida desses alunos?
Quais ressignificações o professor pode coconstruir com esses alunos olham
para escrita, a partir do contato com novos eventos de letramento e com
novos gêneros discursivos?
Para responder a esses questionamentos, desenvolvemos um
trabalho com os estudantes, cujo objetivo central voltou-se à amplia-
ção das suas práticas de letramento, uma vez que entendemos ser esse
um dos papéis centrais da escola, estabelecendo relações dialógicas
entre o leitor e sua escritura. Estamos cientes de que os gêneros do
discurso podem funcionar como norteadores desse processo, no qual
nossa grande responsabilidade é facultar a nossos alunos o contato
com práticas de uso da linguagem nas diferentes situações interativas
das quais participamos. Assim, optamos por sugerir o trabalho com
a escrita de uma forma bastante prazerosa, desvinculada da preo-
cupação massiva com a norma padrão escrita que caracterizava os
alunos, não desmerecendo sua importância, mas admitindo que a
escrita perpassa outros usos que não só o inscrito na variedade de
prestígio, que será escolhida pelo locutor de acordo com elementos
presentes na situação de interação na qual o seu texto se inscreve. O
ato de escrever, nessa situação, conferiria ao aluno o papel de autor,
transformando-se de acordo com suas intenções e com o seu “querer
dizer”.
É evidente que as práticas da leitura tendem a apresentar con-
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figurações bastante distintas no dia a dia dos indivíduos. Ao que
parece, eventos de letramento específicos tendem a ganhar diferentes
valorações nas diferentes esferas sociais – incluindo a escola, o lazer,
a família, a religião, dentre outros espaços em que a escrita institui
relações sociais. Buscamos, desse modo, apresentar a leitura e a prá-
tica da escrita como um processo relacionado aos usos da escrita em
contextos concretos e às atividades humanas, na busca de contribuir
substantivamente no que se refere à inserção efetiva em diferentes
espaços sociais.
O presente estudo se caracterizou como pesquisa-ação, dado
o caráter dialógico e intervencionista entre o pesquisador e o objeto
de análise. De acordo com André (2008, p. 31), a pesquisa-ação
parte de um problema definido pelo grupo, utiliza instrumentos e
técnicas de pesquisa que possam delinear esse problema, além de
preocupar-se em apontar mudanças no objeto da pesquisa, com o
intuito de propiciar ao público ao qual a pesquisa se endereça “[...]
um aprendizado de pesquisa da própria realidade para conhecê-la
melhor [...], transformando-a”. Nesse sentido, o processo de ge-
ração de dados implicou o delineamento de etapas determinantes
de uma pesquisa-ação: fase exploratória, formulação do problema,
construção de hipóteses, seleção da amostra, interpretação e análise
dos dados. Quanto ao trabalho em sala de aula, com os estudantes,
desenvolvemos baseados na sequência didática proposta por Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004): apresentação da situação, produção
inicial, módulos e produção final.
Na apresentação da situação, iniciamos o trabalho com a dis-
cussão sobre o gênero diário, estabelecendo uma reflexão conjunta
(professor e estudantes) acerca do que escrevemos cotidianamente,
para que serve a escrita e em que podemos aperfeiçoar nossas ha-
bilidades em relação a ela. Os estudantes mencionaram diários, do
que decorreu a seguinte pergunta: O que entendemos que seja um
diário? Alguns alunos disseram que “[...] é um caderno que as meni-
nas utilizam para escrever sobre seus amores”. Outros responderam
que é “[...] um caderno pessoal em que você registra o que quiser”,
ficando claro tratar-se de um evento de letramento não-constituinte
de suas práticas cotidianas. A situação nos permitiu apresentar aos

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A ressignificação dos usos da escrita: a ação didático-pedagógica do professor para produção de
textos gêneros diário e conto por alunos da 6ª série da EJA
alunos a finalidade da escrita em um diário, bem como ampliar seus
horizontes diante da sua configuração. Nesse caso, exploramos o gê-
nero numa análise fundamentada pela noção de gêneros do discurso
de Bakhtin (2000 [1952/53]).
Pensando na escrita e na leitura desde o início como atividades
sinônimas de emancipação e fruição, empreendemos tal discussão
tentando desconstruir a ideia de diário como algo exclusivo ao uni-
verso feminino, respectivo a um evento de letramento que talvez va-
lesse a pena ser experienciado. Para isso, partilhamos vários modelos
de diário, com o intuito de construir novas representações, agora
vinculando sua configuração ao prazer e à liberdade de expressão.
Decidimos, então, experimentar a produção de diários como a
vivência de um evento de letramento não-comum ao nosso cotidiano.
Notamos com as discussões, que os alunos precisavam desconstruir
o medo e a falta de sentidos diante do ato de escrever, o que justifica
termos proposto a eles o contato com o diário, dada a configuração
desse gênero diante do que os alunos já demonstravam conhecer.
Priorizamos, nesse processo, o contato com um gênero que pudesse
facultar a esses alunos autonomia para se tornarem autores diante de
uma escrita livre e provida de significação.
Entender, portanto, a realidade cultural desses jovens e adul-
tos foi determinante para iniciar o estudo. A convivência diária com
os alunos contribuiu para que pudéssemos conhecer os eventos de
letramento (BARTON, 1994), e os gêneros discursivos (BAKHTIN,
2000 [1952/53]) predominantes naquela realidade específica, para
planejar o trabalho de coconstruir um processo de ressignificação/
ampliação das práticas de letramento desses mesmos sujeitos (KLEI-
MAN, 1995).
Considerando teorizações sobre práticas e eventos de letramento
(BARTON, 1994; STREET, 1988, 2003; HAMILTON, 2000), e
gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000 [1952/53]), propusemos um
trabalho de produção de diários, a fim de experienciar um contato
com a escrita em que a preocupação não se pautasse nas regras e ex-
ceções da gramática normativa, mas no prazer que o ato de escrever
pode propiciar, resgatando a lingua(gem) como um acontecimento
social e dialógico, inerente ao processo de interação.
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Sem dúvida, tendo presente o pensamento bakhtiniano, um
professor pode motivar ou não uma turma em se tratando das inte-
rações que se estabelecem entre seus alunos e as diferentes vozes que
são incorporadas no momento em que se dá o início do processo
de leitura e escrita; cabe-lhe grande parte da iniciativa no processo
de deflagramento do aprendizado, visando à formação de leitores
proficientes, os quais respondem ativamente aos diferentes questio-
namentos advindos de um leitor que interage com a escrita e com o
seu público leitor, afastando as inseguranças que impossibilitam essa
construção. Isso, no âmbito de uma pesquisa-ação, significa empre-
ender a coconstrução de caminhos em busca de mudanças pretendi-
das (ANDRÉ, 2008).
Em se tratando de novos domínios da escrita, para que o pro-
fessor assuma esse papel, é imprescindível que o texto seja trazido
ao centro da aula concebido em sua função social; para que ele seja
dobrado, torcido, amado ou odiado, para que os alunos sintam a
maneira como as palavras podem tocá-los, gerando sentidos, crian-
do singularidades, sempre no âmbito da interação com o outro, da
finalidade social a que se presta o uso da escrita; ou seja, importa
participar do evento de letramento, mesmo que na situação inevita-
velmente reproduzida em classe, na artificialidade constitutiva que
caracteriza a ação escolar e da qual trata Halté (2008 [1998]). Assim
desenvolvemos módulos de exploração do gênero, observando a sua
composição, estilo e conteúdo, bem como explorando aspectos lin-
guísticos, retóricos, etc.
Quando os alunos se viram íntimos de seus diários, decidimos,
conjuntamente, que seria interessante a escolha de um tema presente
em seus escritos para que produzíssemos um conto. Nesta nova fase,
partilhamos em aula a leitura de dois contos de autores da literatura
brasileira que poderiam ser escolhidos por eles, de modo a conhecer
a funcionalidade desse novo gênero, sua composição, passando pelo
tema, pela linguagem utilizada, aos recursos expressivos utilizados
pelo autor no diálogo com seus interlocutores, o que nos permitiu
mostrar aos alunos que a escrita é marcada por certas regularidades
advindas de todo processo de produção. Assim como o diário, o con-
to também se mostrou como um gênero não presente no dia a dia

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A ressignificação dos usos da escrita: a ação didático-pedagógica do professor para produção de
textos gêneros diário e conto por alunos da 6ª série da EJA
dos alunos, o que fortaleceu nossa ação em propiciar o contato deles
com esse novo evento de letramento, buscando a ampliação/ressigni-
ficação dos usos da escrita e da leitura em suas vidas.
A transição do gênero diário para o conto teve como princi-
pal objetivo levar os alunos à reflexão em torno da função da escri-
ta nos diferentes textos que nos vemos a produzir, resgatando todo
contexto de produção em que o texto ganha materialidade. Assim,
tentamos quebrar alguns estigmas em torno da visão de que “[...] a
escrita é padrão e difícil de aprender [...]” como mencionados por
alguns alunos durante as aulas. Embora com grandes dificuldades, os
alunos aceitaram o desafio e sempre demonstravam grande interesse
em conhecer as diferentes situações que um texto escrito concretiza.
Quando os contos ficaram prontos, procedemos a uma ativida-
de de revisão realizada em negociação dialógica, passando, assim, à
produção final dos textos. O importante foi o processo de ressigni-
ficações da escrita nos novos eventos de letramento por parte dos alu-
nos, independentemente do nível de domínio que apresentavam das
regras da gramática normativa. Não desmerecemos sua importância,
trabalhando aspectos gramaticais também nos módulos, reforçan-
do, entretanto, a importância da experiência do estudante com as
mais diversas variedades de sua língua, para que reflita sobre o uso
da linguagem nas diversas situações de comunicação humana. Rea-
firmamos, novamente, a valorização do conteúdo, da liberdade de
expressão, da voz do aluno sendo expressa pelas palavras, a fim de
diminuir a insegurança e o medo ainda latentes na sua relação com
o texto escrito.
Por fim, a escola possibilitou aos alunos uma noite de exposi-
ção das produções textuais finais à comunidade, o que engrandeceu
ainda mais nosso projeto, além das constantes interações advindas
de todo percurso. O momento foi muito significativo para todos,
uma vez que percebemos que o trabalho com gêneros do discurso,
dentro dos objetivos pelos quais a escola deve pautar-se, pode resul-
tar em transformações muito significativas na formação do leitor e
produtor de textos, possibilitando a ele a participação em eventos de
letramento diversos e prestigiados socialmente.
Os gêneros diário e conto constituem eventos de letramento
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não-cotidianos na vida desses sujeitos, eventos cuja escolha em con-
junto na classe objetivou conhecer/dominar novas formas de usar
socialmente a escrita, ressignificando práticas já consolidadas, dada
a condição não-utilitarista, condição de fruição e de deleite, tan-
to quanto de emancipação e autonomia, associadas a esses eventos,
o que remete ao modelo ideológico de letramento, em Street (1984;
2003). A busca, nesse processo, foi a conciliação entre os universos
local e o global, tal qual propõe Street (2003), isso porque, embora
não sejam “necessários” na mobilidade social cotidiana nas esferas
em que transitam esses sujeitos, diários e contos contribuem, como
mediadores semióticos, na apropriação de novos saberes, favorecen-
do o trânsito – e, quem sabe, a inserção efetiva – desses alunos em
outras esferas sociais e lhes permitindo novos domínios da escrita.

Considerações finais

A produção escrita dos alunos em diários possibilitou ressig-


nificar/ampliar práticas de letramento para que novos eventos de letra-
mento tivessem lugar na vida desses adultos, que buscam dominar a
escrita para se inserirem em outras esferas de convívio social, tal qual
supõe o modelo ideológico de letramento (STREET, 1984; 2003). A
produção dos diários implicou o uso da escrita com uma finalidade
significativa, abrindo espaços para reflexão sobre o caráter dinâmico
da escrita nas esferas e relações sociais.
Por meio da abordagem de gêneros, possibilitamos a compre-
ensão pelos alunos de que as relações sociais são estruturadas e dadas
pela forma como as esferas e atividades humanas se organizam e dos
papéis que os indivíduos desempenham nas situações de interação e
de produção dos discursos, de forma relativamente estável, em razão
do horizonte axiológico de cada participante da interação no mo-
mento do uso do gênero.
Diferentemente dos gêneros com os quais os estudantes en-
tram mais em contato no seu cotidiano, o diário e o conto servem
a determinados contextos, a funções distintas, possuem conteúdo,
estilo e estrutura diferenciados. A importância do trabalho com os
gêneros para a ampliação da participação dos alunos em eventos de
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textos gêneros diário e conto por alunos da 6ª série da EJA
letramento diversos e das suas práticas de letramento implica um olhar
crítico sobre a realidade em que o indivíduo se insere e as diversas
nuances da escrita nesses espaços e situações de interação humana.
A contribuição deste trabalho reside, portanto, no resultado
positivo da junção das perspectivas dos Gêneros do Discurso e de
Letramento no trabalho com os usos da escrita na escola.

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