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Critica genética: o que interpretar? Claudia Amigo Pino* Resumo I Este texto tem como objetivo re- visitar 0 livro Escrever sobre escrever. Uma introdugio critica & critica ge- nética (PINO e ZULAR, 2007), mos- trando uma nova visae histériea da disciplina e, prineipalmente, novas propostas interpretativas. Para isso, langamos mao de diseussdes recentes dentro da critica genética francesa e tentamos um dialogar com as propos- tas tedrieas de Foucault, Bourdieu Maingueneau, procurando uma vi- sdo de génese mais ampla e menos descritiva. No final, recorremos a al- guns exemplos de eseritores brasilei- ros, como Machado de Assis, Mario de Andrade e Guimaraes Rosa, para mostrar particularidades dos arquivos locais e as suas possibilidades de in- terpretagao. Palavras-chave: Critica genétiea. Ma- nuscritos. Foucault. Bourdieu. Main- gueneau. Sete anos se passaram desde a pu- blicagao do livro Escrever sobre eserever. Uma introdugdo critica @ critica genética (PINO e ZULAR, 2007) que pretendia introduzir uma critica genética (disei- plina que estuda 0 processo de criacao literaria) mais ampla, centrada no estudo das praticas de eserita. Nesse tempo, a critica genética francesa lancou novas discussves ¢ a critica genética brasileira procurou novos caminhos interpretativos, em alguma medida, relacionados com as propostas do livro publieado em 2007. Aqui, pretendemos revisitar essas propostas a partir dessas discussoes e pesquisas mais recentes. Para isso, assim como no livro, faremos uma dis- cussao sobre o surgimento da disciplina, desta vez mais centrada na tradigio da qual ela se origina. A eritiea genética nao foi uma revolucao nos estudos lite- rarios: a reflexao sobre a génese do texto Frofessora Associada, Pés-graduagao om Estudos Linguisticos, Literdrice e Tradutalégiooe em Francés, ‘Universidade de Sie Paulo (USP). Data de submis: bree doiorg/10.5235/rde23102.4196 259 Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. é antiga e remonta ao inicio da critica literaria. Para diseernir 0 nosso objeto © propor interpretacao, precisamos en- tender essa tradie&o, quais s&o os seus impasses e, é claro, criar uma distancia e relagio a ela. Depois, voltaremos as primeiras definigoes da critica genétiea eas primeiras discusses das que foi ob- jeto, para em seguida entrar nas eriticas que tem recebido na Franga e no Brasil. Entao, tentaremos voltar as propostas de nosso livre critieo, ¢ fazélas dialogar com as nogdes de campo literario, de Pierre Bourdieu e de contexte discursive, de Dominique Maingueneau. Finalmente, propomos algumas reflexdes prelimina- res sobre processos de criacao de obras brasileiras, a partir dessa ideia de uma critica genética mais ampla. Mas estamos muito longe ainda do Brasil e dessa critiea genétiea, eomeca- remos desde muito antes, desde antes que alguém tivesse pensado em guardar alum manuscrito... Por um lado a recepgao, por outro a produgao O estudo da eriagao literdria nao é recente, surgiu somente um pouco depois do inicio da eritiea literaria, no Século XIX. Mas antes de entender esses pri- mérdios genéticos, é preciso lembrar que acritica literaria surge em varios paises ao mesmo tempo, com visdes opostas, tomando um eaminho semelhante ao da propria produgao literaria. Enquanto, no inicio do século, 0 romantismo se consolidava no que hoje é Alemanha e na Inglaterra, a Franga reafirmava a escrita sob regras caracteristica do clas- sicismo. A divisao geopolitiea da Europa se refletia nas escolhas e na aceitagao dos escritores.* Assim como a literatura, a critica literdéria também tomava rumos opostos nos paises inimigos: enquanto na Ale- manha 0 foco era a recepeao literaria, na Franea, os esforcos se concentravam em entender a produeao. Para citar um exemplo alemao, reproduzo a seguir um trecho de Conversa sobre poesia, um dos textos inaugurais da teoria do romantis- mo alemao; ali, F. Schlegel assinala que acritica deve ser sempre uma ampliagao da literatura, ou um gesto de amor do leitor pelo texto. Porisso o poeta nao deve satisfazer-se como legado, em obras duradouras, da expressao da poesia que lhe é inata e caracteristica. Ele precisa sempre almejar uma amplia- cao de sua poesia e de sua visao de poesia, aproxima-las do mais alto que é possivel na terra; assim, estard se esforpando para associar-se ao grande todo da maneira mais definida, mais determinada — pois a mortal generalizacdo opera justamente ao contrario. Ele o conseguira, quando tiver encontrado o centro na comunicagaio com aqueles que também o encontrarem, vindo de outros caminhos e de suas maneiras. 0 amor pre- cisa ser correspondido, precisa de um contra-amor. (SCHLEGEL, 1994, p. 30-31, grifo do autor) Como podemos observar, a critica ha- sicamente se earacterizava, para Schle- gel, por nao se satisfazer com a literatura tal como ela é. A obra chama o leitor a mudé-la, amplié-la, transform4-la em 260 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. outra coisa. Nao ha busca de um texto original, nem qualquer preocupagao em entender 0 talento do escritor ou a ori- gem da obra: o foco estava na recepeao da obra. Na Franea, a eritica literdria se de- senvolve de forma mais tardia do que na Alemanha, ja que a pratica critica 6 propria do romantismo.? O primeiro grande critico francés torna-se conhecido a partir dos anos 20, depois do Congresso de Viena e do estabelecimento da paz entre Franea, Alemanha e Inglaterra. Trata-se de Charles Sainte-Beuve, que desenvolveu um método hoje completa- mente desprezado pela academia: 0 mé- todo biografico de anilise literaria, que propunha tentar entender a qualidade da obra pelo carater moral do eseritor. Por isso, ele alegava que era muito dificil criticar autores vivos, jé que o julgamen- to moral podia trazer alguns problemas para 0 critico: E sempre facil julgar um eseritor, mas no igualmente facil julgar um homem. ( Oh! Como um homem ¢ dificil de conhecer, mesmo quando esse homem n&o somos n6s, quando ele é simplesmente um outro! Quando se busea o homem no eseritor, 0 elo entre carater e talento, nao saberiamos estudé-lo bem, enquanto esse objeto ainda vive (SAINTE-BEUVE, 1992, p.136-137), Para conhecer esse “carater” do escri- tor, era necessario efetuar uma pesquisa biogréfica: conhecer seus amigos, suas amantes, seu lugar de trabalho, seus ancestrais. Porém, é importante des- taear que Sainte-Beuve nao se surpre- endia com o resultado de sua pesquisa: se a obra era julgada “boa”, o carater do escritor necessariamente seria bom também. O que demonstra a fragilidade de sua pesquisa, muitas vezes fundada em histérias ouvidas informalmente ou *intuicdes” do eritico. Ao contrario do romantismo alemao, seu propésito nao era explorar o que acontecia depois da escrita obra, mas 0 que acontecia antes; neste caso, a consti- tuigao do carter do escritor, Tratava-se de um método centrado na producao. Porém, ele nao propunha realmente fa- zer um estudo dessa produeao da obra: seu propésito era apenas confirmar uma informagao ja dada: a produgao nao era um objeto de conhecimento, mas uma forma de entender, ou mesmo de certificar a obra. (Em um contexto mais amplo, é possivel afirmar que essa forma de encarar o objeto literario inaugura a critica de tradieao francesa, que tenta sempre explicar os fendmenos literarios invocando a sua origem — seja ela biogra- fica, histériea ou mesmo psicanalitica. Ora, nao é coincidéneia que aqui, para explicar a critiea genética, eu tenha vol- tado a tradieao na qual ela que insere. Isso atesta, de certa forma, uma tradi¢ao francesa nesta argumentagao.) Mas houve alguns momentos de paz entre os dois paises. O romantismo trou- xe, para os dois paises, a valorizagao do nacional e de seu patriménio.Tanto na Franga quanto na Alemanha comega a surgir a necessidade de cultuar seus escritores e, também, de preservar seus documentos ¢ reliquias. Eis como dois icones do romantismo, Goethe e Victor 261 Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. Hugo, transformam-se em autores- -simbolo em relagao ao tratamento de seus manuseritos: Goethe foi a primei- ro a catalogar seu arquivo, enquanto Victor Hugo, 0 primeiro a doar seus manuscritos a uma instituigao publica. Essa valorizaeao dos manuseritos en- quanto tesouro nacional permitiu que, na Alemanha, fosse desenvolvida uma disciplina dedicada especifieamente ao deciframento e ao entendimento desse tipo de documentos: a filologia (GRES- SILLON, 1994, p. 83). Ao longo do século XIX, a eritiea francesa de tradigao “produtiva” vai in- corporar e valorizar esse conhecimento préprio da filologia. Mas para isso, foi necessAria uma mudanea de “suporte” da critica literaria. Enquanto antes ela era desenvolvida especialmente em colunas e artigos curtos de jornais, a partir de 1870 ela também ocupa o lugar das uni versidades, transformando-se em tema de teses e artigos de revistas especializa- das, Nesse novo lugar, a pesquisa precisa ser mais “séria” e incorporar métodos das eiéneias humanas. E assim surge a andlise historiogréfica, também com foco na produgao literaria, como a critics biografiea, mas com algumas diferengas. A pesquisa biografiea faz-se de for- ma menos intuitiva, incluindo pesquisa bibliografien e de eampo, e juntam-se a ela estudo sobre o meio social do eseritor ea anilise de manuseritos, por meio do conhecimento da filologia. Esse novo saber permitia um conhecimento maior sobre a produe&o, embora o foco sempre estivesse no préprio texto. Além disso, a andlise dos manuseritos também pre- tendia estabelecer o “verdadeiro texto” assinado pelo autor, descartando assim possiveis mudaneas feitas pelos editores (LANSON, 1965, p. 42-46). E possivel dizer que nesse momento nascia a critica genética? Segundo seus fundadores, nao. Essa foi uma discussao antiga, travada no inicio dos anos 90. Nesse momento, o critico Michel Espagne e Graham Faleo- ner, entre outros, afirmavam que muito daquilo que a eritica genética trazia de inovacao ja tinha sido desenvolvido pela critica historiografica, por exemplo, nos textos do préprio Lanson, Jé Jean-Louis Lebrave rehateu estas eriticas afirmando que o objeto da critica genética é comple- tamente outro: A pesquisa atual dos geneticistas, pelo contrario, inscreve-se em um contexto mais amplo, onde o interesse do publico nao se dirige apenas 20 autor e ao que testemunha sua genialidade. mas para o proprio objeto manuserito e os processo dos quais porta os vestigios (LEBRAVE in ZULAR, 2002, p. 145). Dessa forma, embora houvesse ana- lise de manuscritos na analise historio- erafiea, nao se podia de critica genética propriamente dita, j4 que 0 foco nao estava na producao: os manuscritos serviam para auxiliar a leitura do tex- to e também para validé-lo. Mas para entender bem essa separacao entre o olhar historiografico-filolégico e a criti- ca genética, temos que voltar ao nosso olhar geopolitico sobre a critica. Como 262 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. foi afirmado no inicio do texto, a critica alema centrava-se na recepeao literdria e tinha como objetivo ampliar a obra, ir em direeao oposta A obra. A critica de tradigao francesa centrava-se, pelo contrario, na producao literaria, e nao tinha como objetive ampliar a ebra, mas entendé-la, certified-la, ficar sempre mais e mais perto da obra. Ora, a critica genética surge como uma forma de aliar essas duas tradiedes. A critica genética: entre a recepgao e a produgao A critiea genética surge em 1968, um ano mareado pela revoltas univer- sitérias, Nada menos propicio naquele momento que se afiliar & grande linha dominante na tradicAo universitaria francesa: a historiografia. Se naquele momento surgia algo novo, sé tinha possibilidade de sobrevivéneia se negava a tradi¢ao vigente. Além disso, ha um detalhe na eriagao da critica genética que nao pode passar desapercebido: ela surge de um grupo de pesquisadores dedicados a estudar os manuscritos de um poeta do romantismo alemao, Henrich Heine. Assim, trata-se de unir um olhar so- bre a produgo a um desejo de ampliagao, proprio dos estudos da recepeao. S6 que nesse caso, o olhar nao é sobre a obra lite- raria, mas sobre a prépria produeao. Ou seja, nos estudos genéticos, 0 estude dos manuseritos nao serve para esclarecer ou certificar a obra final, mas para criar uma reflexdo sobre 0 processo de eriagao Nessa reflexio, nao se chegara ao pro- cesso de criagao que realmente aconteceu (que nao pode ser mais que uma utopia), mas a tma nova construgao. Dessa for- ma, assim como no romantismo alemao, a critica genética nao prope ficar mais perto da obra, mas, pelo eontrario, uma ampliagao, uma nova construgao: [0 eritico genético] constréi (...) hips- teses sobre 03 eaminhos pereorrides pela escrita e sobre as significagoes possiveis desse processo de criagao que Proust, dando continuidade a Leonardo da Vinei qualifieou de cosa mentale. E nessa construgao que é necessario ser 0 mais “Dupin” possivel, “po- eta e matematico”, sensivel tanto ao trago fisico e fugitive da mao que as interferen- cias e efeitos multiplos da textualidade in statu nascendi. Eé ai também, nesse espaco amplamente inexplorado, que reside a pos- sibilidade de descobertas: 0 que é escrever? Como se esereve? Como a analisar a lingua eserita quando 0 documento superpie 0 paradigmatico ao sintagmético? O que éa escrita literdria? Qual ¢ 0 estatuto tebrico desses proto-textos? Eles fazem parte da li- teratura? H4 acontecimentos na eserita que marcam a inveng0? (GRESILLON, 1994, p. 15, grifo do autor). Ja pela primeira frase da citacao desse texto de referéneia para os gene- ticistas, vemos que o propésito da eritiea genética nao é reconstituir 0 processo de criagao original, mas construir algo novo (hipéteses), a partir do qual sur- gem novas perguntas sobre a criacao de forma geral. Mas essa paz entre produgao e re- cepeao tem também seus impasses. Mesmo se produgo nao esta ali para se aproximar da obra, mas para eriar novas perguntas e novas reflexies, os geneticis- 263. Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. tas franceses fazem questao de reforcar essa necessidade de suporte material do manuscrito. Assim, se por um lado, a cri- tiea genética implica um olhar receptivo (de distanciamento) em relaeao A obra, ela também obriga a uma aproximacao & obra, ou, mais precisamente, aos seus documentos de processo: 0 objeto dos estudos genéticos é 0 manuserito de trabalho, aquele que contém o3 vestigios dem ato, de uma enunciaeao em marcha, de uma criagao se fazendo, com seus avangos & seus braneos, seus aeréseimos e suas rasturas suas pulsdes descontroladas e suas retoma- das, seus exeessos e suas faltas, suas despe- sas e suas perdas (GRESILLON, 1994, p. 33) O estudo da génese, para os primei- ros geneticistas franceses, gira sempre em torno do manuscrito. E claro que o objetivo é se refer ‘ica genética de forma ampla (afinal, a critica genética se pergunta: o que é escrever? como se es- creve?), mas 86 é possivel fazé-lo a partir do documento. Em 2010, em uma nova discussio de questées teéricas funda- doras da critica genética, este elemento foi ainda reforeado: a ideia é discutir a criagao, mas isso s6 pode ser feito a partir do “portal” do manuscrito, que, ainda por cima, deve ser inédito. r Aer A abordagem genética nao constitui sim plesmente um novo ponto de vista critics sobre as obras e seu contexto, mas repousa, em primeiro lugar, sobre a existéncia de uma jazida - as vezes consideravel - de documentos inéditos que é necessario en- contrar, classifiear e interpretar para fazé- -los inteligiveis. Sao esses documentos, até agora ausentes do debate, que constituem 0 acesso ao universo dos processos cuja obra é o seu fim: um portal (BIASI, 2010, p. 166, grifo do autor). Ora, essa postura contraditéria em re- lagao a tradi¢ao a qual pertence a critica genética tem colocado os pesquisadores dessa linha em um dilema interpreta- tivo. Por um lado, ha um chamado a refletir, pensar a criagao de forma ampla. Por outro lade, é preciso se ater & exis- téncia desses documentos e aos indices dados por eles. Assim, a critica genética conta com uma grande tarefa descritiva, que muitas vezes inibe a pratica inter- pretativa. Essa é uma constatacao dos préprios fundadores da eritica genética, que nao veem ali um problema. fi 0 caso de Pierre-Mare de Biasi, em seu texto de 2010, defende que a disciplina nao pode ser mais considerada “critica”, mas sim- plesmente “genética”, j4 que seu objetivo nao passa, de fato, por interpretar: Comegar, o quanto for praticavel, por nao interpretar: eis o que distingue a pesqui- sa genética de todas as outras formas de abordagem critica das obras. Qualquer gue seja a natureza dessa obra, o essencial da pesquisa reside nessa eonversao do olhar: no tanto o resultado em si mas processo do qual ele deriva e o anima (BIASI, 2010, p. 167) Essa defesa da nao interpretagao leva, necessariamente, a deixar para tras atradi¢ao romantica, que previa ampliar a obra ou refletir sobre a obra. Mesmo se aqui nao se trata da obra em si, mas do seu processo de criacao, essa reflexao é muito limitada pelo documento; no jogo entre o afastamento e a aproximacao ao texto, a aproximacao parece ter levado a melhor. 264 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. Fecha-se a porta ea interpretacao entra pela janela Enquanto a eritica genética francesa colocava a interpretacfio em suspenso, alguns pesquisadores no Brasil e também na Franga comegam a encontrar proble- mas nesse modelo descritive da critiea genética e a esbogar novas possibilidades de conjungao entre produgo e recepeao (ou entre génese e interpretacio). As razoes pelas quais o Brasil se destaca nessa procura por novas pos- sibilidades estao ligadas as limitagoes do trabalho com documentos e arquivos no pais. Enquanto a Franga conta com bibliotecas que centralizam a compra e a conservaeiio de manuscritos (eomo a Biblioteca Nacional da Franca), no Brasil os manuseritos de eseritores encontram-se dispersos em pequenos e médios acervos, que raras vezes tem reeursos para adquirir documentos. As- sim, 0 pesquisador que deseja estudar 0 processo de eriacio de um determinado autor, encontra-se com o problema de nao contar exatamente com uma “jazida considera como recomenda Pierre-Mare de Biasi. Além dessa restri¢ao documental, © desenvolvimento institueional das pesquisas genétieas no Brasil impés também uma maior necessidade de de- senvolvimento teérico. Aqui nao ha um. Instituto dedicado aos textos e manuseri- tos modernos, como o ITEM, na Franga, que retine os pesquisadores em torno de el de documentos inéditos”, autores € corpus especificos e onde é pos- sivel passar manhas inteiras diseutindo a transerigdo de uma frase e 0 uso de uma determinada virgula. No Brasil, os estudos genéticos sao realizados dentro de Universidades e, em grande parte, por estudantes com interesses bem diversos, reunidos em grupos heterogéneos. Nesse contexto, a deserieao torna-se especiali- zada demais: sa0 raros os casos em que é possivel um didlogo sobre a descrigao de documento? Para que efetivamente haja didlogo, a comunidade académica tem preferido diseussées conceituais mais amplas, que extrapolam o docu- mento. Por isso, hé um estranhamento em relacio aos manuais e especialmente As tiltimas discussdes na Franca. Um exemplo dessa postura sao os livros de dois grandes introdutores da critica ge- nética no Brasil: Cecilia Almeida Salles e Philippe Willemart, que tm diseutido corpora variados, procurando explicagoes genéricas sobre a criagéo, que podem ser aplicadas a diversos corpora.‘ Porém, 0 chamado a uma critica genética mais interpretativa nao vem apenas do Brasil. Na propria Franca, alguns pesquisadores que trabalham com manuseritos (mas nao so contra- tados pelo ITEM) tém manifestado seu incémodo em relacao a essa excessiva concentragao no documento. E 0 caso de Philippe Hamon, conhecido pelas obras sobre a descricao e a imagem no realisimo francés. Ele cita, por exemplo, 0 caso do escritor naturalista Emile Zola, que conta com uma enorme jazida de documentos — pesquisa, planos da narrativa, deseri¢ao 265 Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. de personagens, mapas — mas que tém pouquissimas informagoes sobre a génese estilistiea das obras. Ha também uma auséneia de mareas nos mansucritos re- lativas ao “tom” do texto (irénico? Sério?), que sto chaves para o impacto final da obra, Se nos restringirmos apenas aos documentos deixados por Zola, estudare- mos 0 processo de eriagao de livros apa- rentemente referenciais, talvez pequenas etnografias da burguesia francesa, que sAo muito distantes dos textos que ele realmente esereveu, repletos de imagens, rimas narrativas, cores, texturas. 0 primeire ponte [de insatisfactio em relagio a eritiea genética] esta ligado a uma eer- ta~e talvez excessiva, especializacao dos objetos na critica genética Muitos, € aparentemente majoritérios, pelo menos pelo que eu pude conhecer, s&0 08 estudos genéticos que se interessam pelos sistemas textuais que se geram, seja por expansao e declinag&o de um paradigma latente (eampo lexical, campo semantico, campo tematico), ou seja, sistemas deacritivos (0 conjunto da “listagem’), seja por coneatenacao transfor: macional de um sistema l6gico-semantico, ou seja, sistemas narratives (as “hist6rias’). Talvez porque, nos dossiés preparatérios dos eseritores estudados, 03 geneticistas encontram majoritariamente, logo de par- tida e se apresentando como tal, dois tipos de “textos”: de um lado as “listas” (listas de titulos, de datas, se personagens, de nomes préprios, termos téenicos de *palavras”, de obras a serem lidas, ete.), de outra parte os “planos”, resumos e roteiros (e esbogos de roteiros). Em contrapartida, os outros siste- ‘mas textuais “globalizantes”, por exemplo 03 sistemas poéticos (no sentido jakobsoniano do termo), os sistemas ritmicos, 08 sistemas argumentativos, € os sistemas do didlogo, so claramente menos estudados em seus eadernos de esbocos respeetivos e em seus modos (espeeificos ou nao) de germinagao. Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. Talvez isso se deva a submissao as veres rigida de uma certa genética a0 estudo de elementos “locais”, isol4- veis, facilmente autonomizaveis (por exemplo, uma deseri¢ao de paisagem, uma sequéncia narrativa, um retrato de perso- nagem...), ao mesmo tempo nos manuseritos ena manifestagao textual dos textos (HA- MON, 2010, p. 65, grifo do autor) A critien de Hamon tem como alvo, a submissio ao que nos dizes os documen- tos. Para pensar a criagao, é necessario levé-los em conta, mas também ir além. Muitas vezes, eles nao funeionam como portal ¢ até fecham as portas para um pensamento mais amplo sobre o proceso de eriaedo, Mas, se nao devemos nos ater & deserigao do documento, o que interpretar? O que interpretar: perspectivas Em 2007, Roberto Zular e eu propu- semps relacionar a pesquisa com manus- critos As perguntas coloeadas por Michel Foucault emA arqueologia do saber para o estudo dos enunciados. Um “enuncia- do” para Foucault nao poderia ser uma frase num documento, ou mesmo numa obra literdria: ele se refere a formas de estabelecidas dentro de uma pratica discursiva determinada. Por exemplo, no ambito da critica literaria, nés lidamos com os enunciados “autor”, “obra’ |, “esti- lo”, “estrutura”, ete. Mesmo se, em certa medida, aqui eu tenho tentado entender a origem de alguns enunciados préprios da critica genética (“produgao” ou “am- pliagao”, por exemplo), nao era essa nossa proposta inicial, Nés propomos transpor as questoes colocadas por Fou- cault para o estude dos enuneiados para refletir sobre conjuntos de documentos: Dizer que os enuneiados s80 remanentes nao é dizer que eles permanecem no campo da meméria ou que se pode reencontrar 0 que queriam dizer, mas sim que se conser- varam gracas a um certo numero de suportes e de téenicas materiais (de que o livro nao passa, é claro, de um exemplo). segundo certos tipos de instituicses (entre muitas outras, a biblioteca] ¢ com certas modalidades estatutarias (que no eo as mesmas quando se trata de um texto religioso, de um regulamento de direi- to ou de uma verdade eientifiea). Isso quer dizer, também, que eles estao investides em téenicas que os pdem em aplicarao, em pratieas que dai derivam em relapdes sociais que se constituiram ou se modificaram atra- vés deles (FOUCAULT, 2008, p. 140, grifo do autor) Assim, a nossa ideia era tentar enten- der um conjunto de manuscritos sobre determinada obra dentro do seu contexto de producao, circulagao e recepeao. Mais especificamente, isso significa entender, em relagao a produgao, quais foram as pratieas e suportes materiais de sua produgao: qual a tecnologia da escrita? O que ela nos obriga a escrever?(por exemple, hoje, os processadores de texto) Qual era a disponibilidade dos suportes (por exemplo, papel). Como se ensina a eserita nas escolas, nas universidades? Ja em relagao & circulacao, é necessario se perguntar como esses documentos chegaram ao pesquisador? Quem os ad- quiriw/ legou? Por que eles fazem parte (ou nao) do acervo de uma biblioteca? Por que o escritor decidiu conserva-los? Finalmente, sobre a recepeao, nunca podemos deixar de ter em vista por que a nossa instituigao sedia uma pesquisa sobre manuseritos, por que ela é finan- ciada (ou nfo), e qual é 0 interesse es- pecifico do pesquisador em estudar um determinado processo de eriagao (PINO e ZULAR, 2007). Essas perguntas nos ajudam a encontrar novos caminhos de interpretagao, porém elas ainda nao dao conta de muitos aspectos da produgao da obra literari A criacao literaria nao é produto de apenas um eseritor, como a propria eriti ca genética tem levado a pensar, conside- rando 0s estudos de processos de criagao centrados na figura do autor.’ Ha uma multiplicidade de sujeitos empenhados nao 6 na produeao da obra, mas também no fato de ela ser dotada de certo valor. E ninguém estudaria os manuscritos de uma obra literaria se ela nao tivesse esse valor reconhecido pelo pesquisador e pelas agéncias de apoio. Essa é a visio do sociélogo Pierre Bourdieu, que também pode ser de grande ajuda na busea de um novo tipo de interpretacao em critica genética: O produtor do valor da obra de arte nao €o artista, mas o campo de produgao en- quanto universo de crenga que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a erenga no poder eriador do artista. Sendo dado que a obra s6 existe enquanto objeto simbélico dotado devalor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente institufda como obra de arte por espectadores dotados da disposigso eda competéncia estéticas necessarias para a.comhecer e reconhecer como tal, a eiéneia das obras tem por objeto nao apenas a producdo material da obra, mas também a produedo do valor daobra ou, o que d&no 267 Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. ‘mesmo, da erenga no valor da obra (BOUR- DIEU, 2002, p. 259, grifos do autor). O manuserito, assim, deve ser consi- derado como apenas um dos documentos que constituem a producao literéria, 0 documento de apenas um dos implicados: o escritor. Além dele, esto incorporados aqueles que fizeram parte do sistema especifico de producao: editora, jornal, site ou blog, por exemplo, e todos aqueles determinantes em conferir valor para esse produto: por exemplo, 0 editor, ju- rados de concurso literario e também 0 critico ou a rede de critieos com a qual 0 eseritor dialogava (conscientemente ou nao) quando esereveu e apresentou a obra para uma editora. Esses sujeitos também geram documentos, como 0 arquivo de uma determinada editora (oficios, catalogo, apresentacao de livros, linhas editoriais, disposiedes internas), as anotagées e textos de eriticos e edito- res, e os testemunhos das relacdes entre eles (por exemplo, cartas ou entrevistas). Essas propostas dao conta de mui- tos elementos do processo criativo que nao podem ser interpretados a partir da observagao dos manuseritos de tra- balho, mas eles ainda nao respondem completamente algumas das questdes colocadas por Philippe Hamon, como “como interpretar a génese estilistica, ou a formagao do tom” das obras literérias. Acomunicacao entre escritores e critieos pode nos ajudar a entender a escolha de certos procedimentos literarios. Mas para uma discussao mais ampla, é ne- rio pensar a ceno-grafia, a rede de discursos na qual o autor se insere, de forma mais ampla. Para isso, é de inte- resse para a critica genética dialogar com outro autor que pensou a génese, mas a partir da andlise do diseurso: Dominique Maingueneau. Em O contexto da obra literdria, Maingueneau defende que a posig¢ao do escritor é bastante peculiar dentro do seu campo discursivo: ele é aquele que esta sempre fora de lugar. Para que seja reconhecido o valor de uma determinada obra, é necessario que ela tome distancia dos diseursos ao seu redor. Porém, essa distancia nao é necessariamente dada pelo que esta “dito” no texto: Tanto no caso das obras literérias como no dos enunciados *comuns”, tende-se a esquecer 0 contexto pragmatic, a sé ver o dito. Contudo, eonfronto entre ess dito e o ato de enunciagdo é uma dimens&o essencial da obra literaria: nao apenas ela constréi um mundo, mas ainda deve administra a relagdo entre esse mundo e 0 evento que seu préprio ato de enunciagao constitui, o qual nao pode ser simplesmente rejeitado para fora do mundo representado (MAINGUENEAU, 1993, p. 158, grifo do autor). Dessa forma, podemos encontrar uma resposta possivel & questao eoloeada por Hamon acima. O tom do texto é dado pela forma em como ele deve ser lido, nao necessariamente por aquilo que esta es- crito e, por isso, é muito dificil encontrar asua génese nos manuscritos. Mas como interpretar essa distancia produzida na leitura? Analisando 0 que ele chama de contexto enuneiativo de uma obra lite- raria, dado, por exemplo, pelas diversas posturas do autor em entrevistas, pela 268 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. sua filiagao literaria a um movimento literario ou politico, pela forma em como esse autor lé outros texto, além de ou- tra infinidade de fendmenos (“6 muito dificil estabelecer uma tipologia desses fenémenos”, destaca Maingueneau). Assim, para interpretar a génese de um texto, é necessdrio se perguntar por essa formagao do contexto discursivo em que essa enunciacao foi possivel, o que é dado pelos estudos biograficos, histéricos, discursivos, mas também pela anélise da obra, que muitas vezes encena seu préprio contexto.? Uma interpretacdo possivel estudo em critiea genética propoe alguns desafios a mais do que os traba- lhos em critica literaria que nao levam em conta os manuseritos. Muitas vezes, 6 preciso transerever centenas de folios eseritos com uma ealigrafia incompreen- sivel, ou passar tardes observando mar- cas dagua, medindo e pesando papeis, para poder estabelecer uma possivel cronologia. A ideia de associar a essa ta- refa um estudo das praticas de producao, cireulaeao © recepedo (Foucault), uma deseri¢ao do campo literario (Bourdieu) ou um estudo do contexto enunciativo (Maingueneau) pode parecer, a primeira vista, uma tarefa impossivel. Mas alguns esforcos ja vem sendo feitos nesse sentido, até porque estamos em uma nova fase dos estudos genétieos. HA quarenta anos atras, muitos acervos tinham sido localizados, muito me- nos catalogados ou transcritos. Hoje ja contamos com muitos manuseritos em acervos, classifieados, transeritos e, algu mas vezes, publicados. Isso permite que pouco a pouco, alguns pesquisadores se sintam liberados desse esforgo deseritivo inicial e procurem interpretacdes mais amplas, que considerem os documentos de processo, mas que também analisem os acervos das editoras, os recortes eriti- cos de um autor, a correspondéncia com outros escritores, os seus documentos de leitura. E 0 caso da tese de doutorado de Monica Gama, “Plastico e contraditério rascunho: a autorrepresentacao de Joao Guimaraes Rosa”, defendida em 2013, que diseute a imagem do autor a partir dos seus recortes de textos criticos de jornais, dos arquivos da editora José Olympio, das entrevistas publicadas, da correspondéncia, dos manuseritos e também da encenacao das instancias de eserita e reeepefo nas préprias obras. Nao se trata de uma tese de sociologia, apesar de tratar de diversas organiza- des sociais: seu objetivo é entender a génese em um sentido amplo - a partir do contexto diseursivo, das praticas produtivas, do campo literario no Brasil e também da andlise de manuseritos preparatérios e da prépria obra. E impor- tante destacar que a pesquisadora nao teve como objetivo discutir o processo de criagao de um texto, mas a produeao de toda a obra de Guimaraes, a partir de um aspecto que perpassa varios livros: a autorrepresentacao do autor (GAMA, 2013). No exemplo a seguir, vemos um dos documentos que ela analisou, os 269 Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. rascunhos da apresentagao de Grande Sertao Veredas, que ja se encontrava facsimilado em um livro sobre a editora José Olympi Figura 1: Apresentag&o de Jo&o Guimar&es Rosa para Grande Serdo: Veredas = oe Gomuies Foss: GRANDE SERTAO : VEREDAS SENsACi ONAL Esteanne. Pepenuse. ‘et, erin i one te rng Or oan an metre rs ens eu a are antes Me oumreee te unc eee ass aca Sr suum Snes Sasi sar ines tesnurty i eves es tune rma ‘eevee an ries Newtetti, oe TE Marans © ot Cusumano tee. 0 nro pee earn ale (Setar sage How vt on Sut, 0 Pa gees eo oro on crane aria da a mate mor Fonte: Jose Olympio—O ecitor s sua casa. Org: Jose Mario Pereira, Rio de Janeiro; Sextente, 2008. p.122 Talvez esse pensamento da génese de uma forma mais ampla ajude inelusive a refletir sobre alguns impasses do estudo do manuscrito brasileiro. Além do fato de nao haver uma politica publica central de aquisigao e conservacao dos arquivos literarios no Brasil, é eurioso que alguns dos mais importantes escritores brasi- leiros nao contém com uma importante “jazida” de manuseritos inéditos, como quer Pierre-Mare de Biasi. Um dos casos mais conhecidos, é 0 do talvez maior ca- none da literatura brasileira: Machado. Apesar de alguns de seus manuseritos estarem disponiveis na Associacio Brasileira de Letras, 6 conhecido que eles nao apresentam mudangas signi- ficativas. E 0 caso dos manuscritos de Esai e Jacob, mostrada em uma apre- sentagao da pesquisa Luciana Antonini Schoepps no XI Congresso da Associagao dos Pesquisadores em Critica Genética (APCG). Ao contrario de Flaubert, am- plamente estudado pela eritiea genética francesa, o manuscrito desse romance de Machado conta apenas com uma versio manuscrita. Porém, como a pesquisado- ra observou em sua apresentacao, nao se trata de uma versao final: Machado reaproveitava as verses anteriores de seus textos: as rasuras ali encontradas correspondem a diversas campanhas de escritura. Essa hipétese é corroborada ao perceber a rasura constante da numera- ao de paginas e a presenca de “colagens” de novos trechos, que “apagam” versies anteriores, como podemos observar no folio reproduzido a seguir. E possivel tentar construir alguns caminhos de escritura, porém trata-se de um caminho bastante limitado, pois s6 podemos ob- servar algumas mudangas de palavras. Isso significa que nao é possivel discutir 0 processo de cria¢ao de Machado de Assis? Nao, certamente podemos pensar em uma génese mais ampla, que leve em 70 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. conta o campo literario, a sua relagao com a cenografia diseursiva da época e com as pratieas de eserita e eirculagao especificas da época. E tudo isso pode ser aliado ao estudo dessa tinica versao manuscrita, em que se diluem todos os tempos da criaeao.” Figura 2: Manusorito de Essai e Jacob. Créditos: Fo 20 Bivwhs “ mp Ul dans 1 Fonte: Academia Brasileira de Letras, Arquivo Mucio Leo, Setor de Arquivo dos Academicos. Dispont vel em: ehttp:/doevirt com/ocreadernevdocreader aspx2oib=8VMachado8nesq=>.Aceseo om 20 nov 2012 Essa inexisténeia de “jazida consi- derdivel” pode ser positiva e pode levar a uma diseussae mais ampla de sua génese: é 0 que vem acontecendo ha dé cadas com o estudo da eriagao de Mario de Andrade. Como tem sido amplamente exposto pela equipe dedicada ao autor n Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Mario de Andrade nao guardava verses manuscritas dos seus textos publieados em vida: eles foram presenteados aos amigos, ou simplesmente deixados em editoras, como um resto. Porém, ele guardou manuscritos inéditos, documen- tos preparatérios de outros escritores, uma extensa correspondéncia, notas de leituras nas margens de seus livros ¢ um grande fichério analitico composto de notas e reflexes variadas. Trata-se de um autor que oferece uma documen- tacao eseassa se quisermos descrever as diferentes etapas do processo criativo, porém, que tem uma documentacio muito riea se quisermos pensar 0 con- texto discursive de sua produgao. As dissertagoes ¢ teses desenvolvidas no IEB dao conta dessa discuss&o sobre a sua criagdo sempre em relac&o com o diseurso do outro: por exemplo, textos sobre manuseritos de outros eseritores no acervo, ou sobre Mario de Andrade ¢ as revistas francesas e 0 expressionismo alemao. Em uma recente dissertacao de mestrado orientada pela professora Telé Ancona Lopez sobre o manuscrito inédito mm Revista do Programa da Pér-Craduagio em Leta da Univer dade da Passo Fund -v. 10-n. de “A gramatiquinha da fala brasileira’, a pesquisadora Aline Novais de Almeida refere-se a esse fichério analitico como lugar de cireulacio desse contexto dis- cursivo, onde é possivel observar tanto a relagio do escritor com a producto cultural com a qual ele dialogava, como o naseimento de novas obras (ALMEIDA, 2013). No exemplo reproduzidos a seguir, por exemplo, podemos observar as refe- réncias de Mario de Andrade sobre os filmes de Chaplin: Figuras 3: Fichario analitico de Mario de Andrade arti le FP RRA ey poate 43.6 Baa we 0" font wants BAYT Poste man Cae AE. 27, Zace 6 LS eT Fon Sicofann? 928 “ Big ete man ne Fonte: Instituto de Estudos Brasileiros. Disponival om: -chitp:/www.\eb usp brimarioscripter/eongressos! carlto-ou-chaplin-da-criacac-ao-criadorum-exem= plo-de-reelaboracao-textuakem-caras-de-mario, hurnnttp:/iuwwr job usp. brimarioscriptor/eongres ‘s08/carito-ou-chaplin-da-criacao-a0-criador-um. -exemplo-de-reelaboracao-textual-em-caras-de- :mario.htmt>. Acesso: 08 ago. 2014, Estes sao apenas alguns exemplos de interpretacdes possiveis a partir da proposta de uma critiea genétiea mais ampla, menos descritiva e também mais democratica, jé que considera a criagao como um projeto coletivo, de um grupo de individuos, mas também de um tempo, de um contexto discursivo, de um campo intelectual, de uma pratica de eserita. Genetic critic: what to interpret? Abstract This text has the goal to revisit the book Write about write. A critical introduction to the genetic critic, sho- wing a new historical vision of the discipline and, mostly, new interpre. tative proposals. For this, we bring recent discussions inside the french genetic critic and try to dialogue with Foueault, Bourdieu and Maingueneau theoretical propositions, looking for a wider genesis and less descriptive vision. In the end, we resort to some examples of brazilian writers, such as Machado de Assis, Mario de Andrade € Guimaraes Rosa, to show particula- rities of the local files and its possibi- lities of interpretation. Keywords: Genetic critic. Manuscripts. Foucault. Bourdieu. Maingueneau. Notas E importante destacar que essa divisdo nfo é absoluta, Os irmaos Schlegel, na Alemanha, explicitam essa disputa ao afirmar que a lite- yatura deve ser livre, e nao regida por regras, como ‘afirmam na Franga’. Porém, existiam escritores franeeses que defendiam um novo tipo de literatura, mais centrada na prosa e no romance e ligada a uma tradi¢a0 nacional, come, por exemplo, Madame de Staal. Porém, nao existe ainda um movimento “romantica”, que 56 existiré na Franga (de forma segmenta- da) vinte anos depois. © movimento romantico tem a critica como con- sequéneia porque pressupde que nao ha regras para eserever. Assim, 0s tratados de poética nao sao suficientes para entender o texto literario; cada obra nova demanda uma nova reflexo. E nesse intuito que nasce a prética critica entre m2 Revista do Programa da Pés-Craduacio em Leta da Universidade da Passo Fund -v. 10-n. p25 273- jules. 2014 final do século XVIII e o inicio do século XIX. Nesse contexto, devo destacar o trabalho do Projeto Brépols, na USP, que se dedica & trans- crigdo dos eadernos de Proust e 0 Grupo Mario de Andrade, do TEB, que se dediea a transerever e divulgar o acervo documental de Mario de Andrade, E 0 caso dos livros Redes da criacao (2006), de Cecilia Almeida Salles, que tenta refletir sobre a aplieabilidade do pensamento em *rede” para deserever 0 processo de criagao em varias artes (especialmente as artes plasticas) ou Psi- canalise e teoria literdria (2014), de Philippe Willemart, que tenta relacionar os manuscritos de Proust e Bauchau com operagées préprias da psicanslive. Como ja foi dito, no Instituto de Textos & Manuscrites Modernes (ITEM), os diferentes grupos de pesquisa se retinem em torno de acervos de autores especificos, como o grupo Emile Zola, Jean-Paul Sartre, Roland Barthes. Gustave Flaubert, Mareel Proust. Mainguenean analica exemplos de Flaubert ¢ 0 préprio Zola, que tratam de escritores, leitores e das dificuldades de produgéo e intepretagao de cada um. A comunieagao sera publieada nos ansis do congresso, eiija publicarao est prevista para oano de 2014. A autora gentilmente me cedeu o texto inédito da apresentacao Referéncias ALMEIDA, Aline Novais. Edigdo genética @A gramatiquinha da fala brasileira. Dis- sertaedo (Mestrado em Literatura Brasileira. Disponivel em: . Acesso em: § ago. 2014. BIAISI, Pierre-Mare.Pour une génétique généralisée: approche des processus Tage numérique. Genesis, 30. 2010. p. 163-175 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. de Maria Litcia Machado. Sio Paulo: Com- panhia das Letras, 2002, FOUCAULT, M. A arqueologia do saber Forense Universitaria: 2008. GAMA, M. Plastico e contraditério rascunho: a autorrepresentacéo de Jodo Guimardes Rosa. Tese (Doutorado em Literatura Bra- sileira) — Universidade de Sao Paulo. Dis- ponivel em: . Acesso em: 08 ago. 2014. 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