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| Mais. da D Guanes deste CURADORIA F CURADORE bre m6 Heloisa Barbuy * Museu Paslista/USP Em ae Introducao Como musesloga-pesquisadora de um museu de Historia, minha intengdo é falar da curadoria numa sas perspectiva histérica, contribuindo para a compreenslo de um conceito que veio se alterando a0 longo do Mt, {tempo e das razdes pelas quais sua discussd0 esta se colocando neste momento, Parece-me que as mudangas ‘no conceito de curadoria que nos alcancam mais diretamente estdo ligadas &s mudan¢as no préprio conceito de museu que se deram a partir dos anos 1970. Mas antes de chegar a isto, gostaria de tratar, ainda que de ligeiramente, de alguns outros pontos. A figura do curador A idéia e a prética da curadoria so anteriores a0 museu publico. J4 existiam em relago as colegdes particulares, que eram as dosaeis, nobres e ricos comerciantes, que colocavam a seu serviga uma pessoa para organizé-las e conservé-las (no caso de colegdes de pintura, por exemplo, essa pessoa costumava ser ns tum pintor, que também realizava obras para integra lesa) era figura do conservador, temo que se = difundiu e se mantém nos paises de lingua latina para designar os FespobSAvsis por acervos, como na Franga 2 (conservateur) e na lila (conservatore): Hoje, eiabora as atividades de tosien BR fiends acervos e de * restauragio venham sendo exercidas por S30 termo continua a a rdenadores pelos prevalecer em vérios museu: OS est trabalhos que envolyem: termo aplicado emt em vigor. Restay as propostas cientificas de isciplinas basicas as quais ele se "Nem sempre, entretanto,a fon \dentro de um museui€ tornia- im Complementar nesse sentido. Interdisciplinaridade Ofmuseu disciplinary, isto é aquele museu dedicado a esta ou aqueta disciplina ou érea de conhecimento, é tum tigdelo ja eristalizado, clissico, por assim dizer. Na prépria Universidade de Sao Paulo, este ainda é 0 modelo-em vigor, 4 medida que temos um museu de hist6ria, um museu de ciéneias da natureza, um muse 3 de arte e um museu de arqueologia e etnologia, Desde a década de 1970, no mundo todo, muito se difundiu a idéia de museus interdisciplinares ¢ eles de fato sio cada vez mais frequentes, trazendo resultados interessantes. A referéncia mais forte que nos chegou : a respeito foram as idéias desenvolvidas no seio do Icom (Consetho Internacional de Museus, Unesco), sobretudo pelo francés Georges Henri Rivire, fundadore primeiro presidente daquela organizagao. Ocorr, Isso corresponde a um sistema de funcionarment mas ndo era a isso, na verdade, que se referia Riyjece quando falava em interdisciplinaridade?. Entendo que © que ele pregou - € realizou em varios museus - foi uma confluéncia entre diferentes disciplinas para 9 certas.realidades culturais.¢..com isto, conceber.e.organizar museus. Assim, para a ios de seus projetos, como o Museu Nacional de Artes e Tradigies Populares, de Paris, ¢ wis franceses ¢ estrangeiros, fez conf gia também a geograti @ hist6ria, a etnologia (antropologia), a a sociologia, etc.’ (cf. Barbuy 19952) arqueol Quero dizer, em suma, que considero muito restrita a nogio de interdisciplinaridade concebida apenas como, Smee cea ate te eee eee ete ed ee eee ac en Sonne ces tis nea eee aera er scence eee eae er Em outras palavras, € preciso estabelecer com muita clareza, antes de mais nada, quais so, em termos de contedido, os objetivos de um, smuseu, Isso pode parecer Sbvio, mas, muito freqlientemente, que imipede o bom planejamento das instituigBes, museol6gicas é falta de uma definigao clara nesse sentido (Cété 1991: 37) Compreendo perfeitamente a necessidade de estabelecer modelos pragmticos para o funcionamento das, instituigdes, e vejo, 6 claro, que a propria proposta deste seminsrio visa urna melhor organizago e eficigncia ‘dos museus da USP, 0 que € muito positivo, Entretanto, temo realmente que ingressemos pelos pobres ccaminhos da tecnocracia ¢ que nos esquecamos de nossas metas principais. E, nesse sentido, o que mais me ‘quando falo em pesquisa, neste caso, estou me referindo as disciplinas de base do museu). Esse é um modelo perigoso, pois, em vez de redirecionar,cristaliza aquela situacdo j nossa conhecida, em que, de um lado, 08 pesquisadores se isolam ou sio isolados, pouco se interessando - ou pouco estimulados a se interessar - pelo :museu em si (pesquisadores como um “mal necessério”);e de outro lado, um grupo de “préticas” encarrega- se de gerir 0 museu em seu dia-a-dia, sem qualquer verdadeira interago com as atividades cientificas da instituigao. Essas quest6es se colocam hoje, aqui, simplesmente porque elas estdo se colocando no mundo todo. Muitos, tipos novos de profissionais passaram a atuar nos museus (Caillet, 1994; Franche, 1994; Audier, 1994), Hii toda uma gama de profissionais que ao se voltar para o trabalho em museus acaba criando novas, especializages: documentalistas, arquitetos, comunicadores visuais, educadores, animadores culturais € também administradores passam a exercer, nos museus, fungdes cada vex mais especificas e especializadas. Hoje, aquele antigo tipo de curador, que.cuidava pessoalmente de todas as atividades-da.curadoriatende a saparecer (0 que cria, inclusive, um paradoxo na atual situago de enxugamento e de dristicos cortes de Pessoal © que nao é, diga-se de passagem, exclusiva da USP e nem sequer do Brasil), Entretanto, essas ‘mudangas no se fazem sem problemas e € preciso estar alerta para nfo cair nos engodos que a chamada modernizagao dos museus pode apresentar. Elisabeth Caillet (1994: 10), embora reconhecendo que ‘egmentagao profissional é jérealidade e necessidade,alerta para o fato de que “toda segmentagiio profissional presenta um perigode ‘tecnocratismo’, de "burocratismo””. E acrescenta que essa segmentaco é necessiria ‘ndo para dela extrairmos, de mancira mecanicista, uma aplicagdo hierdrquica ou administrativa, mas para melhor cercar as necessérias passagens entre as fungdes, as recuperagGes, as ‘praias’ comuns, $6 elas, permitindo o trabalho coletivo e, portanto, 0 sucesso da tarefa global” Fungi cientifica versus funciio social? Nas décadas de 1960/70, em plono contexto dos movimentos estudantis, hippies e de contra-cultura, no Ambito dos museus, fortaleceram-se coctentes anti-elitistas, que defendiam a dessacralizago dos museus © ‘sua aproximacaa das comunidades. Enfatizava-se a fungo social dos museus e, dentro dela, a fungo educativa, no sentido, inclusive, de o museu atuar muito francamente como agente de desenvolvimento de regides pobres ou intermedirias* . Essas correntes geraram os ecomuseus, os museus de identidade, 05 -museus de sociedade (a partir, € claro, de tendéncias e conformagbes jé existentes) e, de um modo geral, 0S _movimentos que se resinem sob o nome de Nova Museologia® (cf. Barbuy, 199Sa). Trouxeram uma grande renovagio 2 frea e acarretaram grandes mudancas no perfil dos profissi curadores em particular. Mas ao contrario do que muitos tem entendido, penso que os primeiros propositores dessas novas linhas (entre eles George Henri Rividre) nunca imaginaram museus totalmente sem bases Cientificas, como tantos que se eriaram, aparentemente, sob sua inspicago. E penso que isso seja, no mimo, © EECOREHRELAMAMOAERSEESLSOARASEHHODODDGOSSOAHRAALEE hae Ise Dea Sno bdo Flas gia ham bas ‘ de i al uum equivoco e que um museu, na a is poderd prescindir da pesquisa somo base. para todas.os seus trabalbos s als, educativos e culturais, sob pena de ser descaracterizado em Tee reed error entan oe eran — See vamente aos rigocosos padres da pesquisa univeritiia as GRIDER a ]Obviamente nfo se poderiaexigir que todo musu ivesseaividades pesquisa ‘profundada ouavangada (so, vez, s6 cabendo esperar dos museusuniversitirio) masercio que se deva lutar contra uma certa tendéncia que existe em alguns setores museolégicos de tomar o museu um mero centro de animago cultural em torno de “coisa alguma”, isto é, sem base no conhecimento, Estou insistindo neste ponto pois penso que justamente as mudangas no praprio conceito de museu, naquilo ‘que se consideram suas fungGes principais, implicam mudangas no conceito de curadoria. E penso que a importancia, hoje indiscutivel, que,passou a ser dada & funcao social e educativa dos museus, tendeu a criar uma falsa antinomia entre esta funco ea de centro de pesquisas, entre o carter democratico (nfo elitista) o cariter ciemifico da instituigdo, sobretudo no caso dos museus universitarios. E, ainda hoje, em muitos casos, nio se chegou A sintese necessdria entre essas duas fungi. Mas, a0 contrrio do que parece, essa falsa e desnecessétia mas persistente oposicio entre a fungao cientifica «a fungdo social dos museus ndo é nada recente e, na verdade, nem foi detetada pela primeira vez nos anos 1960/70. Muito antes disso, no século XIX, jé se manifestava, conforme podemos ver em alguns estudos relativos a outros paises. Por isso mesmo, serd ainda preciso enfrentar a questo, examinando-a melhor para podermos realmente supers-la Em pafses como a Franca, a Inglaterra ¢ os Estados Unidos, cujas culturas exerceram grande influénci centre nds, a questio dos museus, no século XIX, teve grande relevancia e os debates que se deram, entdo, certamente tiveram conseqigncias sobre a formacao de nossos primeiros museus. Com diferentes nomes € conotagbes, as idéias de ciéncia e de educagdo permearam as ideologias ¢ as priticas dos museus a0 longo de todo 0 século XIX. Por vezes antepondo-se uma 3 outra, por vezes associando-se, constituem, ainda hoje, 0 cixo bisico das instituigdes museol6gicas e, muito especialmente, dos museus universitirios, ‘monarquica ou religiosa: o museu (Schaer, 1993: 51). Esso s6 aconteceu depois que uma corrente de pensamento liderada pelo abade Grégoire, empenhado em deter as destruigOes e alienagtes de certos bens, conseguiu fazer prevalecer 0 argumento de que era preciso conservar todo e qualquer testemunho da histéria, mesmo que contivesse emblemas reais ou eclesidsticos, para fim de instruir 0 povo sobre a histéria nacional. Assim, fica claro, naquele momento, quais fungdes principais eram atribuidas ao recém-criado Museu do Louvre (1793, ialmente denominado Museum central des arts) e quais as atividades da comisslo encarregada de organi Jo, que entre 1794. 1797 recebeu osignificativo nome smantes disso, entretanto, as coleges de hstria natural, que viriam dar origem a um prestgioso Tmodelo de museu cientfico, foram formadas antes de mais nada por “curiosidade cientifica, depois por necessidade de uma pesquisa sistemsica-eullizadas, em seguida, para oensino,- especialmente na segunda metade do século XIX, quando o didatismo- 0 ensino pela visio, a “ligao de coisas", - estava na ordem do dia (cf. Basbuy 1995b; 3447). Assim, logo depois do Museum Central de Ares, um outro museu er ofiilmente criado, transformando-se o Jardim Botinico do Rei em Museum Nacional de HistGria Natural (1793). Em sega foi avez do Conservatrio de Artes eOfcios (1794). Estava criado, assim, um sistema para patrimmnig clue francs dividido em irs grandes srs. axes, signcias sla nalureza.c cigncia & tGenica (Chatelain 1987: 5). Kéa questi dos museus espccificamente de histérn um pouco mais complexa e apesar da exst2ncia temporiria de um museu de monumentos franceses, seu momento fort seria posterior. Na Inglaterra, jem 1677, na linha da Historia Natural foi criado, na Universidade de Oxford, aquele que é tido como 0 mais antigo museu piblico ¢ universitrio do mundo: 0 Ashmolean Museum, a partir da doa na uma série de muscus semethantes (nas Universidades de Cambridge, 's principais desses museus a pesquisa ¢ 0, cita por lias Ashmole, e que dew o Manchester ¢ outras). Neste caso, prevaleceram como fun ersitirioe, bem menos estimuladas, atividades volladas para o grande pablico, Numa andlise da are ayn cate te ese (wane (907) demesne equipes responsiveis sio insuficientes justamente por ndo estarem previstos, na universidade, certos tipos ‘© que pode ser visto, talvez, como uma heranga daqueles de profissionais necessérios, hoje, a um mus primeiros tempos. Assim, enquanto contam com quadros intelectuais privilegiados no que diz respeito aos 08, sofrem caréncias em uma série de reas téenicas, de modo oposto a0 q diretores ¢ curadores cient acontece nos museus nio-universitérios Vé-se, entdo, que emboea falsa e desnecessiria, a antinomia entre a funSo sociale a fungi cientifica das tmuseus formou-se historicamente, mas que, em muitos casos, foi felizmente superada, Fo a propria histria cos eos valores cientifico-académicos «dos museus e a ocorréncia de uma alternancia entre os valores democr4 {que os guiaram mais fortemente num ou noutro momento, num ou noutro contexto, e que gerou a desnecesséria ‘oposigao entre as duas coisas. No caso americano, Joel Orosz (1990) mostra com muita clareza 0 modo ¢ as razbes pelas quais, entre 17406 1870, foram-se alternando na condusio das polticas museol6gicas americanas, popular, dentro da ideologia do igualitarismo democratico, ¢ correntes que defendiam o profissionalismo nas cincias. Entretanto, 0 mais importante é que, Orosz.conclui sua obra mostrando que, desde 1870, essa desnecesséria oposigdo foi vencida e chegou-se com sucesso a um ‘modelo bésico que retine, nos museus americanos, as duas fungGes: “As demandas conflitantes por uma educacio popular, de um lado, ¢ por profissionalismo, de outro, eram fontes permanentes de tenses nos as, por volta de 1870, as duas reivindicagSes foram sintetizadas em um dificil equilibrio. Essa sintese, © “Compromisso Americano”, mantém-se como modelo bisico dos museus americanos até hoje. Assim, por voltade 1870, o formato do museu americano modemo coma .n ict _que_prové simultaneamente.educago_popular e. promove pesquisa académica estava completamente desenvalvido” (Orosz, 1990: ix). correntes que abracavam a causa da educac: ruuseus americanos desde 1835, Pouco se fez sobre a histria dos museus no Brasil, Embora nos itimos anos nfo tenham falta trabalhos nesse sentido, ainda esté por ser amadurecido um balango, uma visio mais amp, 20 longo do tempo. De ‘qualquer modo, pode-se dizer que os museus braileiros que surgiram no séulo XIX o Museu Nacional, 0 Maseu Paaense (hoje Emilio Goeld, 0 Museu Paranaensee 0 Museu Paulista nasceram cietificos. Ate porque eram museus dentro da rea de “hiséria natural”, modelo de musencientifico por exceléncia no séeulo XIX. Esso no spel falta de niversidades, mas porque otpo de pesquisa e de ensino que se faia ali, dependia da existencia de acervos. Tanto era assim que muitos museus de carder cientifico se desenvolveram fora das universidades, mesmo em paises onde elas existiam, ou dentro de universidades, como bases para campos diferenciados de conhecimentos, em toma das coleses © caso do Museu Paulista ‘Se em sua fase inicial, sob a dirego de von Ihering (1895-1915), © Museu Paulista teve um perfil, indiscutivelmente cientifico, exerceu também com eficiéncia uma fungo educativa, nlo s6 através de suas exposigies abertas a0 pablico, como pelo envio de séries de espécimes animais a escolas, especialmente preparadas para constituir os pequenos museus escolares de zoologia, que estavam na voga em matéria de “ligdo de coisas”, que mencionamos acima. Nesse perfodo inicial, portanto, nfo s entre essas duas fungdes. Mas nao pretendemos nos estender sobre isso porque 0 ensino escolar, na linha parece ter havido conti ‘maior herdeiro daquele Museu Paulista 6, na verdade, 0 atual Museu de Zoologia da USP. corre que por sua prépria localizagao, no local da proclamacdo da Independéncia, pelo carter de monumento de seu edificio e pela tela de Pedro Américo, Independéncia ou Morte ali instalada desde o inicio, © Museu Paulista sempre teve, também, uma forte face hist6rica, como emblema nacional. Entretanto, foi somente em torno de 1922 (centensrio da Independéncia), durante a gestio Taunay (1917-1946) que aentilo Sega0 de Historia do Museu expandiu-se significativamente, tanto pela ornamentagao interna, que recebeu (pinturas esculturas com temticas hist6ricas)”, como pelo franco crescimento do acervo hist6rico. Mas, a0 contrétio do periodo anterior, ndo se pode dizer que sua tOnica tenha sido a da pesquisa. Apesar dos varios livros eseritos por Taunay e das coletas de objetos feitas, muitas vezes, por ele prOprio, a €nfase foi muito maior sobre o aspecto educativo ou, melhor dizendo, diditico-ideolégico. De fato, parece-me que todos os imensos Receceecce SPOMORERL LOO OR ORR R HHH HAE PPAMMOHHROLHE cesforgos realizados na formago de um museu hist6rico (em Sao Paulo e em Itu), © foram claramente no sentido de coneretizar um eficiente instrumento didatico para a difusio de uma certa istSria do Brasil!®, A compreensio de todo esse processo se torna-se muito mais fcil quando nos damos conta de quanto 0 projeto Taunay se identifica com o perfil dos grandes museus hist6ricos daquele periodo, de cardter celebrativo ¢ montados numa linha de narrativa ilustrada de fatos, personagens ¢ objetos-fetiche. No Museu Paulista, naquele tempo, a curadoria era exercida praticamehte toda pelo proprio diretor e por alguris poucos colaboradores, num acentuado personalismo, proprio, aids, daquelas décadas. Depois disso, creio que o Museu s6 sera e-orientado

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