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J\IESOPOTÂMIA

bois. O ~in~ de Chamasb fornece um balanço corretivo, lembrando-nos


que os ntuais nos templos tnmbém serviam para inculcar valores morais e
padrões éticos.
~ ~ítu_lo ?e epílogo, ~ostaria de citar uma decisão legal sobre um caso
de d1vorc10 Julgado na S1ppar do período Babilônio Antigo. É a respeito
de ~a mulher com?m e oferece um vislumbre dos problem:is perenes de
relac10n_a_1~ento con1ugal. Também mostra o comportamento compassivo
de ~m JUrJ que protege a mulher de uma rejeição premeditada pelo
mando e lhe assegura que, pelo menos, não ficará pior do que no dia em
que casou com ele:

Na presença dessas testemunhas, eles perguntaram a Aha.m-nirshu: "É esra


8 assuR
mulher a rua esposa?"
Ele dc_clar_ou: '?odem moer-me de_ pancada, sim, podem até retalhar-me, (mas)
_nao f1care1 casado com ela de 1c1to nenhum!", assim declarou ele.
Enrao el_es perguntaram à mJJlher e ela respondeu: "Eu ainda amo O meu
mando". Ele, porém, não a aceitou. Deu um nó na franja do vestido dela e As duas cidades seguintes, Assur neste capítulo e Nínive no Capítulo 9,
cortou-o. 7.1
Os cavalheir_o_s pergu_nraram-lbc (de novo): "Uma mulher que veio viver com a
eram cidades assírias, localizadas no altiplano de pedra calcária da Meso-
tua fam1lta, e cuia posição e prestígio como mulher casada sfo conhecidos potâmia setentrional. Tanto a geografia quanto, em certa medida, o sis-
1
em (todo o) teu distrito, v:ii partir assim, como se fosse uma estranha? Para a tema social dessa região diferem das cidades da planície meridional; con-
desp~d1r (ru deves) provê-la exatamente como (ela estava) quando foi morar tudo, a cultura urbana do norte devia ainda muito aos progressos promo-
conngo."76
vidos no sul. 1sso ficou sobremodo patente, graças aos documentos
escritos descobertos em sítios arqueológicos assírios. Assur e Nfnive tivc-
ran1 histórias parricularmcnrc longas de ocupação, ao passo que a maioria
das outras capitais, como Nimrud ou Calá, provedoras de alguns dos
melhores exemplos de escultura assíria, foram habitadas pelo rei por ape-
nas breves períodos de menos de um século.
Assur e Nínive foram mais do que capitais cfêmeras construídas por
reis poderosos para satisfazer um capricho momentâneo; ambas eram
lugares sagrados - sendo a primeira a sede do deus epônimo Assur e a
segunda dedicada à deusa do amor e da guerra, Ishtar. O papel dessas
duas cidades antes e depois que a Assíria afirmou o seu poderio, e o modo
como se conduziram no contexto do estado assírio, merecem especial
atenção. As provas arqueológicas revelaram a complexidade de seqüên·
cias arquitetônicas, enquanto as coleções de plaquetas de ambas as cida-
des nos falam de seus primeiros empreendimentos comerciais, das carrei-
ras de seus reis e do desvelo com que eles cuidaram das cidades e algo
sobre as práticas e rituais religiosos dos antigos templos.

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,\ 5 S li f( E $ U A S .E S C A\',\ Ç ô E $

ASSUR E SUAS ESCAVAÇÓES 2 mais antigo do que o babilônio para uma de suas explorações científicas e
sistemáticas. O abandono de Qalat Sherqat por franceses e britânicos,
A cidade de Assur foi construída sobre um penhasco de rocha calcária que somado às provas indicativas de sua riqueza potencial, fez com que o sítio
forçou a veloz correnteza do Tigre a descrever uma curva abrupta. À prin- se tornasse atraente para exploração pelos alemães. Além do mais, o sul-
cipal corrente junrou-se também na antigüidade um afluente, de modo tão otomano Abdul Hamid li estava por demais interessado em servir o
que foi criada uma ilha de formato oval com 1,80 quilômecro de linha imperado r alemão e presenteou-o com o sítio das ruínas, que por coinci-
cosreira. O afloramento rochoso elevava-se uns 25 metros acima do nível dência se encontrava justamente cm seus domínios privados. Isso deu iní·
do vale, com escarpadas vertentes. Essa posição naturalmente protegida cio às escavações alemãs, as quais duraram de 1903 a 1913.
tinha importânci;i estratégica, porquanto tornava comparativamente fácil Robert Koldewey chegou de Babilônia para organiz:1r o plano de tra•
d.efcnder o lugar, além de formar um ponto de referência com uma ampla balhos e deixar tudo em ordem antes de passar a responsabilidade geral
vista sobre o vale. Para oeste estendia-se a estepe de Jezirah, enquanto pela exploração do sítio para Walter Àndrae, que tinha trabalhado com
para leste e norte o vale era fértil e propício à lavoura. A cidade estava ele em Babilônia desde o começo. Tal como em Warka, todos os escav:1-
cnc.i:e os dois rios Zab, mais perto do Zab Inferior do que do Superior, e dorcs eram arquitetos experientes e, tendo desenvolvido um método para
um importante passo nos montes Zagros permitia cruzá-los para atingir o localizar muros de adobe, concentraram seus esforços nas construções.
planalto iraniano.
Removeram c.-:1m:1<l:1 :ipós c:imad:i p:ira esr:ibelecer :i seqüênci:i <le p:ircdes
No século XIX, o cômoro de Assur, conhecido como Qalat Sherqat, e planos, mas prestaram pouca atenção ao conteúdo do entulho, cerâ-
era, à semelhança de outros sítios arqueológicos assírios, um dos mais mica, plaquetas, ossos e outros detritos. Tampo uco mostraram grande
remotos e menos conhecidos recantos do Império Otomano. Embora a interesse cm plaquetas e epigrafia. Até mesmo a imensamente útil prova
sua espetacular localização no topo de um penhasco despertasse a curiosi- da inscrição no trono de Salmanasar continuou a ser ignorada durante
dade de um cônsul-geral britânico em Bagdá, Claudius James Rich, que o anos. Bem longe dali, em Berlim, cpigrafistas receberam a tarefa de se
descobriu em 1821 e publicou um relato de seus achados/ Assur não foi ocupar das plaquetas como se elas tivessem pouca relação com o sítio
considerado um sítio importante. Austen Layard e Hormuzd Rassam esti- onde foram encontradas. As publicações de Andrae e seus colegas preferi-
veram lá em 1840 e voltaram por pouco tempo em 1847. 4 Foram premia- ram tratar primordial e meticulosamente das estruturas arquite~ônicas e
dos com a descoberta da primeira estátua assíria jamais enconrrada, uma demonstraram a seqüência estratificada das construções, umas sobre
efígie cm tamanho natural de Sa]manasar lll, sentado num trono comple- outras.
tamente coberto de escrita cuneiforme. Apurou-se mais carde que a ins- A quantidade de monumentos i mportantes em Assur justificou, em
crição contém uma detalhada descrição das muralhas de Assur. Dois anos certa medida, esse procedimento. Andrae também fez sensíveis e evocati-
depois, encontrou-se o prisma de argila de Tiglath-Pileser I, desenterrado vos desenhos e reconstituições da cidade, como imaginou que ela devia
por operários empregados por Rassam, que passou suas descobertas para ter sido, e escreveu uma monografia popular5 em que tentou dar vida ao
Mossul. Esse texto foi usado para verificar a decifração da escrita assíria, árido material arqueológico. Descreve a impressão que Assur teria cau-
baseada nos esforços pioneiros de Henry Rawlinson cm leitura cunei- sado cm 688 a.C. a um grego "com visão clara e sentidos apurados" e, ao
forme.
identificar-se estreitamente com as sensibilidades "européias" dos "jô-
Os investigadores com apoio brirânico não empreenderam nenhuma nios", avalia a cultura e as tecnologias dos assírios de um modo embara-
escavação sistemática cm Qalar Sherqat; voltavam uma vez por outra, çosamente (embora pelos padrões de seu tempo só moderadamente)
coletavam algumas plaquetas (Rassam em 1853 e George Smith em 1873, anti-semita. Seus relatórios de escavações científicas, apesar do destaque
quando descobriu o documento de fundação no qual Adadnirari I des- dado à arquitetura, são exemplares e l'huito completos.6
creve suas atividades na construção do templo). De modo geral, eles con- Embora Andrae tivesse nutrido a esperança de chegar muito além das
centraram seus esforços nos mais promissores sítios das cercanias de Mos- construções do primeiro milênio, as edificações monumentais neo-assí-
sul. A Sociedade Oriental Alemã, que começou a escavar Babilônia em rias cobriam uma proporção tão grande do centro urbano que as tentati-
1899, decidiu fixar como alvo outro cômoro que produziria material vas sistcm:1cicas para descobrir camadas coesas dos segundo e terceiro

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1-1 E~Ol'OTAM l /1.

milên.ios eram impratidvcis . .Portanto, a maior parte da atenção foi reser- e:m miniatura. Uma pequt.:n.a peça de gipsita pintada mostra uma mulher
vada para as principais construções religiosas de Assur - o templo de nua e tatuada com esmero repousando em seu leito. Uma pequena cabeça
Anu-Adad, o templo de Assur, o templo de Sin e Chamash-, assim como feminina de alabastro primorosamente esculpida pode representar uma
para o palácio de Adadnirari I, com as abóbadas do túmulo real, e para as sacerdotisa indicada por sua faixa em volta da cabeça que parece ser
muralhas da cidade. Sondagens profundas foram realizadas apenas na caractcrísti~a da cn. Também foram recuperados grandes recipientes de
área do templo de lshtar, onde foram postos a dcscobc1io níveis do Pri- cerâmica e presentes votivos menores, jóias e estatuetas de marfim. Só
meiro Dinástico e de Ur III. foram escavadas algumas seções do templo, consistindo num estreito
Embora Assur tenha desempenhado um papel importante no inicio saguáo interno que leva a uma série de pátios rodeados por salas oblon-
do segundo milênio, quase nenhum remanescente da cidade do período gas, uma das quais foi identificada como a principal área de culto por seu
Assírio Antigo foi escavado. Obteve-se wn melhor conhecimento das conteúdo e um sacio central para oferendas.
construções dos séculos XV e XIH, e as reconstruções subseqüentes dos A fundação desse santuário data do início do terceiro milênio>nos co-
mesmos edifícios obedeceram simplesmente aos antigos planos. Havia meços do Primeiro Dinástico, talvez pelos hurritas, que estavam então
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material importante com inscrições, cm especial várias filas de estelas7 do começando a colonizar a área a leste do Tigre. Talvez º. lugar fos~e _en-
período Assírio Médio, mas as partes mais bem documentadas da cidade tão um pequeno santuário no morro 10 dedicado a uma deidade femmma.
datam dos séculos IX e VIII, apesar de essas substanciais edificações esta- Os ohjetos encontrados no interior da sala de culto asscmelh~m-sc aos__de
rem muito despojadas. A cidade tinha sido atacada e destruída pelos outros sítios da alta Mesopotâmia do período, como Man, Khafadp e
medos em 614 e as ruínas deixadas ao sabor das intempéries por quase Eshnunna e mostram que o templo era patrocinado pela elite local. Pa-
quinhentos anos, até que os partas se instalaram na área. Eles construíram rece ter fl~rcscido ao longo dos períodos Primeiro Dinástico e Acádio e
então, sobre as ruínas niveladas da antiga capital assíria, uma nova cidade talvez sua destruição tivesse algo a ver com a invasão pelos gútis, que se
11
com a típica disposição helenística, embora os templos na "acrópole" considerava serem originários dos montes Zagros. O sítio foi chamado
ainda alojassem alguns santuários dedicados a deuses assírios. Assur durante o período Acádio (e. 2350-2150), mas provavelmente não
O maior edifício era o imenso palácio parta. Os partas ficaram cm antcs.' 2 Durante a Terceira Dinastia de Ur (e. 2150-2000) o templo foi
''.Assor", como a cidade era então chamada, por trezentos anos. Daí reconstruído no mesmo local e com o mesmo traçado, só que com pare-
cm diante, a estrada ao longo do Tigre deixou de ser conservada até o des mais espessas e proporções ligeiramente maiores, por um dos gover-
período Sassânida ou Islâmico inicial (século VII ou VIII Ja nossa era), nadores de Amar-Sin de Ur, e identificado como o santuário de Ishrar.
quando um caravançará foi construído perto das antigas ruínas. A área As sepulturas bem-cuidadas e um considerável número de construções
permaneceria como um recanto perdido de uma longínqua província particulares sugerem que Qalat Sherqat tinha uma população abastada
durante o período Islâmico inicial e, sobretudo, durante todo o período com acesso a bens de prestígio (sinetcs de lápis-lazúli, ferramentas e
Otomano. armas de bronze, colares de pt:rolas), mas não há indicações sobre o tama-
nho da localidade nesse período.
As ruínas do terceiro milênio
Os mais antigos níveis de Qelat Sherqat são os associados ao "templo
arcaico de Ishtar", o qual data do. período Primeiro Dinástico Ili ASSUR NO PERÍODO ASSÍRIO ANTIGO
(e. 2600-2350). 6 As vigas de madeira e o telhado de adobe tinham desa- (C. 1990-1400)
bado quando o templo foi destruído, preservando assim muitas peças da
sala de culto. Os objetos mais valiosos tinham sido pilhados, exceto algu- As provas arqueológicas para esse período estão muito fragmen~adas.
mas peças menos importantes, mas pequenas estatuetas de gipsita e ala- Com exceção de algumas inscrições cm edifícíos, só temos conhecimen-
bastro de mulheres devotas, vestindo as saias franjadas cípicas do período, tos sobre os primeiros níveis do templo de Assur e do antigo palácio, bem
tinham ficado para trás, assim como grandes soclos de cerâmica encontra- como de partes das muralhas da cidade. A maioria desses planos data do
dos dispersos pelo chão, alguns deles modelados 110 formato de edifícios tempo de Chamshi-Addu I (1813-1781), um contemporâneo de Ham\1-

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M L s o ;1 o r A ~-11 A

rábi d:i Babilónia, mas praticarneme nenhuma escwac:io foi realizada nas Nas inscri\;Ol'S encontradas cm edifícios de Assur que preservam os
áreas residenciais da cidade. As pouc:is inscrições em ;difícios e plaquetas nomes de al1:,11111s soberanos, estes intitulam-se simplesmente "governador
constituem todas as provas históricas provenientes de Assur. Entret:into, do deus Assur". Parece que o culto dessa deidade ficou estabelecido no
este é um dos casos em que provas escritas descobertas num local comple- século XX a.C. é que o deus pode ter recebido da cidade seu nome, como
tamente diferente _preenchem com sobras essa lacuna. Constatou-se que ''o de Assur'', 11uma mudança da anterior deidade titular feminina. 16
cerca de 16.000 plaquetas cuneiformes descobertas na aldci:1 turca de A mais antiga in~crição real existente é de autoria de llushuma 1
(e. 1960-1935>):
Kültcpe, perto de Kayseri, na Ca.padócia, faúam parte dos regisrros eco-
nômicos de homens de negócios e comerciantes assírios que tinham se
Ilushuma, govcrn:idor de Assur, am:1do pelo deus Assur e pela deusa lshtar,
est:ibclccido num enclave comercial a poucos minuros de vi:igem da filho de Shalimahhc, govcnudor de Assur, filho de Puzur-Assur, governador
cidade local de Kanechc. As matrizes dessas firmas assíria.s que negocia- de Assur:
vam na rratólia estavam situadas cm Assur. As plaquetas, as quais ainda ( ... )
não for:un completamente publicadas, constituem a principal fonte de in- O deus Assur abriu p:ir:i mim dois mananciais no monte Ebih e fiz tijolos
formaç:io sobre a cidade ames de Clrnmshi-Addu. Por cerca de uma cen- para o muro peno dos dois 111:111:inci:l'is.
rcna ele :rnos (e. 1900-1800), carav;mas percorreram nos dois sentidos a ( ... )
distâni:ia entre Asl.,tr e a An;itólia central. Embora os documentos se refi- A "liberdade" dos addios e de seus filhos está estabelecida. Eu purifi-
quei-lhes o cobre. Estabeleci-lhes a liberdade desde as margens dos pântanos,
rnm :ipcll/1$ a certas conexões comerciais, a saber, as transações de esta- Ur e Nipur, Awa.l e Kism:ir, Der do deus lshtaran, até a cidade [isto é,
nho e reciJos contra prata, ouro e cobre, eles revelam muiro sobre a i\ssur]. 17
<.: Xtcnsão de um componente das atividades comerciais "internacionais''
Ja ~poca e, em especial, de que forma elas eram organizadas, financiadas Walter Andrae, o escavador alemão, encontrou, de fato, "canais de
<: executadas. 13 água e outras instalações hidráulicas, cuidadosamente isoladas com betu-
Ainda não está esclarecido como e quando Assur se tornou uma rica me, e poços construídos com tijolos trapezoidais".18 A referência de
cidade mercantil. A maioria das plaquetas capadócias data de e. 1900 a Ilushuma à "liberdade dos acádios", combinada com a menção do cobre
J 830 a.C. Alguns arquivos comerciais foram encontrados mais ou menos purificado, é interpretada hoje como refletindo as tentativas do gover-
intactos, outros tiveram que ser organizados a partir de plaquetas disper- nante assírio para estabelecer uma espécie de zona de livre comércio,
14 atraindo os comerciantes para fazerem negócios com Assur através da
sas. Estão escritos em caracteres cuneiformes na linguagem conhecida
como assírio antigo, de um modo que, quando comparados com os textos concessão de privilégios especiais. 19
babilônios da mesma época, são anacronicamente arcaicos. Uma vez que É possível que a cidade já tivesse conseguido controlar a importação
se trata de documentos comerciais sobriamente redigidos, tendo por de estanho, metal de importância vital para a fabricação do bronze, larga-
assumo embarques de mercadorias, recibos, instruções sobre política de mente usado para armas e outros utensílios. O estanho era trazido para
compras, impostas pagos e relatórios referentes a rransações, eles clificil- Assur por intermédio de uma extensa cadeia de negociantes desde algum
memc teriam qualquer referência à situação política no país de origem. ponto no Leste, provavelmente o Afeganistão. Ao conceder aos mercado-
Portanto, os antecedentes históricos parn os empreendimentos comerciais res mcsopotâmios do sul um incentivo para comprarem em Assur o esta-
de Assur tiveram que ser coligidos a partir de outras fontes nem sempre nho e aí venderem suas mercadorias, sobretudo tecidos finos e, talvez, o
muito confiáveis. Por exemplo, a lista de reis assírios (composta e. 609), cobre importado do golfo via Ur, Ilushuma fez de Assur o eixo de cone-
contém os nomes de todos os governantes desde o início do segundo xões comerciais. Seu sucessJr, Erishum, afirma que concedeu "isenção de
milênio até Assurubalit II (611-610). 15 Diz que os primeiros "dczesserc impostos à prata, ao ouro, a:.- cobre, ao estanho, ao centeio e à lã", 2º
reis viveram em tendas", referência à origem tribal da realeza assíria. Os ampliando assim ainda mais as condições favoráveis ao comércio.
nomes desses reis também aparecem na lista de ancestrais de Hamudbi e O cobre e os tecidos que os acádios levavam a Assur eram trocados
é nmito possível que sejam antecessores mais honorários do que reais. por prata e estanho, mas o negócio com os mercadores de estanho não era

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M F. SUl'OT ÁlllJA

conduzido por escrito. Os comerciantes orientais levavamprovnvdmcntc variassem. Parece que o transporte era confiado a carregadores especiali-
eles mesmos as suas mercadorias. Daí sabermos pouco a respeito dessas zados que atuavam como representantes dos donos da carga.
trocas. É provável que levassem consigo a prata e os teddos, e os assírios, A segurança não parece ter sido um grande problema, uma vez que a
por seu turno, estabeleceram suas próprias representações comerciais na maioria dos príncipes locais se beneficiava com o trânsito comercial por
An:ttólia, então uma região dividida em muitos e pequenos principados, suas terras peb cobrança de vários impostos e pedágios. Nessa época, os
rica em minérios e metais, e ávida por adquirir as últimas modas em ves- mercadores que percorriam codo o Oriente Próximo gozavam de imuni-
tuário da Mesopotâmia. Estanho e produtos t2xceis babilôajos, em diver- dade diplomática. 2~ O governante de Kaneche também tinha um direito
sas qualidades, eram transportados de Assu r para a Anatólia centraJ, onde de preempção e todas as caravanas eram obrigadas a "passar primeiro
a feitoria assíria (kamm) perto de Kancche servia como o principal entre- pelo palácio". Como todos os textos mostram, os mercadores tinham
posto. Embora o governo pareça ter arrecadado alguns Lmpostos para plena consciência de que a ética era essencial para inspirar confiança e
Assur, esse empreendimento não era estatal, mas fruto da iniciativa pri- garantir a continuidade dos 11eg6cios. As pedras que determinavam os
vada. _pesos eram cuidadosamente checadas e contas precisas eram exigidas
Os mercadores eram empresários "impelidos pelo desejo de obter pelos sócios da companhia.
lucros". 21 Trabalhavam em equipes, em geral compostas de membros da Muitos mercadores são conhecidos por suas plaquetas. AJguns foram
família. Caravanas de burros transportavam para Kaaeche o estanho e os viver na Anatólia na juventude e ali permaneceram por vários anos. Um
tecidos. Estes podiam ser ali vendidos contra pagamento em prata e ouro, mercador podia ter uma esposa local, além de qualquer outra que pudesse
os quais eram remetidos de volta para Assur, selados e com nma carta ter em Assur, desde que ambas fossem igualmente sustentadas. A corres-
notificando o recebedor da soma exata que se esperava cobrar, ou então pondência entre mercadores na Anatólia e suas esposas em Assur revela
convertidos em outras mercadorias, como lã e cobre, que eram levadas que as mulheres atuavam como representantes de seus maridos em todas
para outras cidades anatólias, algumas tão distante quanto as situadas às as espécies de situações comerciais e legais. 25 Elas também eram as produ-
margens do mar Negro, e então trocadas por prata e ouro. O preço de toras de um:i grande variedade de materiais têxteis, ajudadas por outras
venda do estanho e dos tecidos era o dobro do preço de compra. 22 Embo- mulheres da casa. Esperava-se que elas reagissem com rapidez às mudan-
ra várias despesas com transporte, os custos de alojamento e os impostos ças de gosto e moda, como provam algumas cartas. Embora o pano para
tívessem que ser deduzidos desse ganho, os mercadores lucravam o bas- lençóis pareça ter constituído o artigo responsável pelo maior volume de
tante, o que fazia o negócio valer a pena. Os tecidos eram muito mais comércio têxtil, as peças de vestuário bordadas e de fino acabamenco
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volumosos para transportar e só tinham metade do valor do estanho, mas obtinham altos preços e eram avidamente disputadas pela elite anatólia.
como havia muita procura deles como artigos de luxo estrangeiros, tam- As mulheres que produziam tais artigos recebiam uma parte dos lucros e
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bém eram importados. parece terem tido considerável controle sobre questões financeiras.
Urna caravana típica de Assur para o karttm de Kaneche consistia Nem todos os negócios conduzidos no karum de Kaneche eram entre
numa tropa de cinco ou seis burros, em que cada animal transportava Assur e a colônia. Algumas firmas se especializaram no comércio com a
uma carga de 60 a 90 quilos (2 a 3 talentos). Eram ajoujados com tecidos Anatólia central, sobretudo negociando cobre, que raramente era expor-
e estanho, assim como com forragem para, pelo menos, as primeiras eta- tado para a Assíria. 25 Também havia empresários cm Assur que não se
pas da jornada, que levava entre cinco e seis semanas. Os burros também dedicavam diretamente aos negócios, mas se especializavam em fornecer
faziam parte do capital, já que podiam ser vendidos à chegada. Prata, capital p:ira empreendimentos comerciais. 29 Isso adquiria muitas vezes a
ouro e outros metais preciosos (ferro) e também pedras eram mais leves e forma de investimento de longo prazo, que durava vários anos, com a alo-
muito menos volumosos do que estanho ou tecidos. Para viagens no inte- cação de lucro sendo acordada de antemão entre o comerciante e o cre-
rior da Anatólia, especialmente em terrenos planos, podiam ser compra- dor.30 Como também vimos, os assírios tinham representantes residindo
das ou alugadas carroças, pux2das por burros ou bois.23 Os trajetos usa- cm outr:is cidades babilônias, corno Sippar, Mari e Nipur. Essa rede de
dos pelas caravanas e o tempo que levavam para viajar entre Assur e a mercadores pôde, por algumas centenas de anos, criar um circuito de ope-
An:1tóli:1 central não foram estabelecidos com clareza e é provável que rações comerciais que carreou grande riqueza e experiência para Assur.

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~1ESOPOTAM1A AS S U 1\ NO l' E R j O DO AS S f RI O A N T 1 G O ( C . 1 9 9 O· 1 •I Oll l

Não obstante, o simples fato de Assur e o seu mercado Anatólia est::m :m til local de Assur, por exemplo, ou de que forma os fazendeiros e os pro-
muito bem documentados não sigui fica que Assur tivesse um monopólio prietários de rebanhos eram afet::idos. Entretanto, a prosperidade da
do conu:rcio ou controlasse, de algum modo, toda a atividade comercial cidade deve ter produzido benefícios sob a forma de melhorias nas como-
na alta J\llcsopotâmia. Pelo conrr:írio, ficou r:ipi<lamenre claro, à m1xlida didades loc::iis, como os poços de Ilushuma, as muralhas da cidade e os
que mais arquivos estão sendo dcscoberros, que Assur constituiu apenas edifícios do templo, que os governantes proclamam em suas inscrições.
um cntre diversos ctrcuiros comerciais. Emar e lviari, sobre o Eufr:m:s,
Carchcmish, na Síria setentrional, e Sippar e Babilónia, é claro, também Assur sob o governo de Chamshi-Addu I
opernrnm redes de escambo em outras ::íreas. 5 1 Quando Ch::imshi-Addu I se apoderou do controle de Assur, o comércio
As plaquetas da Capadócia também contêm informações sobre a ins- anntólio estava agonizante e o karum cm Kaneche teve que ser abando-
tituição governamental em Assur, a qual é sempre referida simplesmente nado às pressas. O resultado foi a perda ela principal fonte de renda da
como "a cidade":u Esta era provavelmente uma junta composta pelos "cidade", o que pode ter precipitado uma crise que poderia ser explorada
líderes das grandes empresas mercantis, qtLe se reuniam, segundo os por um estrangeiro poderoso. As informações sobre o governo de Cham-
indícios, num edifício chamado a ''cas:1 da cidade" (bit alim). Ess::i comis- shi-Addu provêm dos arquivos de Mari, na época outra próspera cidade
são tomava de;:cisões sobre polírica com1;rcial, fixava as taxas de exporta- comcrcial sobre o Eufrates, das numerosas inscrições deixadas pelo pró-
ção e scl::iva os fardos entregues às caravanas que saíam da cidade. Tam- prío rei e da lista de reis assírios.
b!'.:m ::miava como corpo diplom;itico (um pouco à maneira da Compa- Chamshi-Addu era filho do chefe amorita, Ilu(a)-Kabkabi, que tinha
nhia das Índias Orientais britânica) e controlava as relações com os sua base de operações em Terqa sobre o Eufrates e Jurara contra outros
governantes :matólios, em cuja cooperação e proteção as caravanas e os chefes loc::iis, como o de Mari, Yagid-Lim, que afirmava tê-lo expulsado
mercadores residentes confiavam. de Terqa:1r. Chamshi-Addu parece ter ido para Babilônia, como nota a
Os poderosos homens de negócios eram também os derentores de lista de reis assírios, numa época cm que era intensa a luta por influência
outro cargo, o de limnm, traduzido como '\:pônimo", pois os anos não política e territorial, em especial na região do médio Eufrates. Era vital
eram denominados rerrospectivamente após um evento importante, para ele ser informado sobre os principais protagonistas e permanecer à
como 11::i b:iixa Mesopotâmia, mas ele acordo com o nome do próprio margem de quaisquer desenvolvimentos, alianças, querelas e ações milita-
fi111mu. O funcionário era escolhido por sorteio e exercia o cargo durante res, e as plaquetas de Mari estão por certo repletas de relatórios com
um ano. O mais provável é que o presidente do conselho municip::il fosse informações sigilosas sobre a situação numa vasta área geográfica. Nessas
o cpônimo corrente e que o cargo fosse exercido cm rodízio entre os circunstâncias, qualquer pessoa de espírito vivo, bem-informada e deci-
membros de um pequeno grupo de cidaJãos influentes. O governante, dida, capaz de explorar uma oportunidade para ampliar sua influência,
que nas inscrições se intitulava sempre "governador (issiak11m) do deus inabalável n:1 busca do poder e calma o suficiente para preservá-lo, podia
Assur", parece ter tido um papel mais complementar do que superior. li ser alguém para fazer história. Chamshi-Addu era justamente um desses
Era responsável pelas obras públicas, pela fiscalização do judiciário e homens, que surgiu da obscuridade para ser "o rei do mundo",
desempenhava funções de destaque nos ritos religiosos e cerimoniais da A seqüência exata de eventos não pode ser reconstituída e só os
cidaJe.3'1 O título ruba'um marca-o como o chefe da linhagem :uistocr::í- momentos culminantes de sua ascensão têm sido transmitidos. Ele tomou
tica, com o status mais elevado na sociedade de Assur. 35 de assalto Ekalate, uma cidade sobre o Tigre não muito ao norte de Assur,
Os relatos dos mercadores nada nos dizem sobre as relações entre a e expulsou o soberano local, Erichum l,'7 mas não existem provas de ele
cidade e a população local, ou sobre o papel dos templos. Isso gera a im- ter operado a partir de Assur e muito menos de ter feito da cidade a capi-
pressão de que Assur no século XX a.C. era primordialmente uma :frca t:il de um antigo "império" assírio, o qual certamente não existiu nessa
comercial capitalista cuja riqueza dependia exclusivamente da ativid:idc época. 3 s Qualquer impressão de ser esse o caso deriva inteiramcnce da
mcrcanril, um pouco como ::i Bagdá abássicla de As Mil e Unw Noites. lista de reis assírios, a qual integrou Chamshi-Addu, o usurpador, numa
Qualquer atividade comercial imensa é suscetível de estimular uma eco- cocs:1 linha dinástica. Durante o seu reinado de 32 anos, Chamshi-Addu
110111i:1 lo c:11, mas sabemos pouco acerca da o rg:iniznçiio <la produçiio tb:- :impliou pouco a pouco seu território, graças a uma mistura de diplom::i-

.l l ·I 2 ?. 5
eia baseada cm casamentos din:ísticos e uso da força militar. Conquisl'ou pude ter i:omtruído o zigurate ligndo a esse tcmplo43 e um pahkio t;ilvel.
Mari e colocou seu filho mais moço como regente. De Ekalate, acabo11 sobre ns ruínas de uma construção m:iis antiga do período Addio. O pal:\-
afinal por controlar rodo o vale de Jezirah, a região do médio Eufr:m:s, cio era um edifício compacto, com uma distribuição perfeita dos espaços,
com Terqa e Karana, até o vale de Habur, onde Shubat-Enlil (a atual Tdl quase quadrado na forma, com um pátio central quadrado cm torno do
Leil:m) se tornou uma florescente capital provincial. Seu poder cxp:m- qual cstnvam agrupados a.s s:ilas de recepção e numerosos pátios subsidi:í-
diu-se ainda mais para lesre, até os montes Zagros, garantindo assim o rios oos setores laterais. Esse edifício iria também permanecer relativa-
acesso ao altiplano iraniano pelo desfiladeiro de Chamshara. Ele adom11 mente inalterado até o primeiro milc'.:nio, tornando-se o local de sepulta-
o antigo título real mesopotâmio de sar kissati, ''rei do universo", um tro- mento de muitos monarcas assírios.-i 4
cadilho que joga com o velho epíteto de "rei de Quich" (reino que Ch:1m-
shi-Addu não logrou dominar!) e com a noção de "totalidade".3 9 Ele deve A unificação política da alta Mesopotâmia não sobreviveu à morte
ter considerado Assur uma cidade dotada de um status especial que lhe de Chamshi-Addu. Embora ele possa ter tido "uma brilhante antcvi-
permitia conduzir seus próprios negócios. Num determinado momento, são"45 da possibilidade de controlar todo o nordeste, tal visão foi pre-
Assur foi até chamada a arbitrar uma disputa entre Ekallate e outra matura. De fato, ele dividiu os territórios entre seus dois filhos,
cid:ide.·111 Ishme-Dagan e Yasmah-Acldu. O arquivo de Mari preservou algumas
Chamshi-Addu, talvez seguindo o exemplo de soberanos babilônios, das cartas de Chamshi-Addu para Yasmah-Addu, depois que o empossou
m:rnifcstou sua autoridade empenhando-se em atividades de construç5o e como governador, nas quais critica freqücntemente o filho por ser um
m:111d:mdo compor inscriçôcs p:ir:i si mesmo. Parece ter empregado escri- administrador ineficaz, que despendia tempo demais com mulheres ou
bas babilõnios par:1 essa tarefa, uma vez que todas foram escritas cm babi- circulando à toa pela cidade em velozes carros de guerra. 46 Com o correr
l1)nio rnrrenrc e nfo no a.migo dialeto assírio. Os arquitetos alemáes que do tempo, Yasmah-Addu acabou sendo destituído e expulso por Zimri-
Ílll.i:1111 as cscnv:-u;ôes estav:1m cnc:rntados com a alta qualidade das cons- Lim, quando regressou do exílio em Alepo para reivindicar o seu trono
truçúcs, desde :i pureza e solidez do barro us:ido para os tijolos aré o pro- ancestral. Tampouco o seu primogt'.:nito, lshme-Dagan, sempre exaltado
jeto coerente e lúcido dos cdifícios.'11 A principal obra de Chamshi-Addu nas cartas do pai como um exemplo de rija varonilidade, ficou por
foi :J que mais tarde se converteu no templo de Assur, que ele, de acordo muito tempo governando Ekallate e a área a leste do Tigre, depois que
com os seus numerosos documentos de fundação, dedicou ao deus babi-
tomou posse.
lônio Enlil. Isso também demonstrou que suas ambições impe,riais esra-
v:im baseadas em padrões babilônios meridionais e que ele não estava for- Em Assur, a velha "administração" da cidade impôs-se uma vez
jando, como se tem afirmado, o primeiro império "assírio". Ele não er:i mais,·17 mas pouco se sabe do que aconteceu entre Jshme-Dagan e Assuru-
assírio e não fez nenhum esforço para submeter-se à devoção especial da balit I no século XIV, um período considerado, por isso, uma "idade das
cidade ao deus Assur. trevas" na história assíria. Mas o fato de o regime de Chamshi-Addu ser
O templo ocupava a parte mais alta do penhasco, em sua extremidade considerado ilegítimo na geração que se seguiu a Ishme-Dagan ioi corro-
nordeste, onde o platô rochoso formava um extenso oval. O templo, de for- borado por uma inscrição numa placa de alabastro por Puzur-Assur, que
mato retangular, com 11 O metros de comprimento por 60 metros de não figura na lista. de reis assírios:
laq,111ra e dois pátios sucessivos, incerligados por uma rampa a fim de ven-
cer a diferença de dois metros no declive, ajustava-se de forma 111:ignífic:1 Quando (cu), Puzur-Assur, vice-regente do deus Assur, filho de Assurbels:unc,
ao local. Seus pátios eram pavimentados com tijolos queimados e cerca- dcrrorei ... filho de Asinum, [descendente] de Chamshi-Addu, cujas vcstimcntas
dos por filas de salas, e as paredes eram cuidadosamente construídas con1 [eram impróprias] para ... que cometeu uma iniqüidade [contra] Assurbclsame.
reccssos e nichos. A arte de construção em tijolos estava desenvolvida c111 ( ... )
alto grau nesse período na alta Mesopotâmia. A fachada do templo er:1 Além disso, destruí o palácio de Chamshi-Addu, seu avô, um homem de exrraçfo
engenhosamente articulada por colunas e pilastras redondas embutidas e csrrangeLra, não de sangue assírio, que tinha derrubado os santuários da cidadt:
construídas com tijolos especialmente manufaturados. 42 Chamshi-A<ldu [Assurl e construído esse palácio.·1·~

226 227
ASSUR COMO CAPITAL DO IMPÉRIO ASSÍRIO forma condigna. Quando Assur-nadin-ahhc, meu ancestral, e,~creveu ao vosso
pai no Egito, foram-lhe enviados vinte talentos de ouro. (Agora) cu (sou um
Durante os meados do segundo milênio, a cena política no Antigo Orien- igual) do rei de Hanigalbar,·19 mas para mim haveis enviado [apenas... talen-
te Próximo era domjnada pelas elites aristocráticas de origem "estrangei- ros] de ouro. Isso não é o bastante para custear sequer as idas e vindas dos
meus mensageiros! Se estais verdadeiramente disposto para a amizade, man-
ra" que governavam as populações nativas. A mais duradoura dessas di-
dai-me muito mais ouro! Fica tudo cm família! Escrevei-me dizendo do que
nastias foi_ a dos cassitas na BabiJônia, que governaram de e. 1600 a 1155. necessitais e vos será fornecido. Somos terras distantes. Deve um mensageiro
Na Anatólin, um grupo aristocrático indo-europeu formou o império continuar correndo assim de um lado para ourro? 50
bicita (1420- 1200), e na Grande Mesopotâmia outra liderança indo-
curopéia governou num reino conhecido como Mfrani (e. 1500-1370). Embora tivessem ocorrido tensões entre :1 Babilônia e a Assíria, Assu-
Todos os governantes desses reinos se dedicaram à promoçaõ de uma rub:ilit parece ter melhorado as relações e p:itrocinou até o casamento ele
forma mais ou menos intensa de intercâmbio diplomático, que incluía os sua filha, Mubalit-sherua, com Karaindash, filho de Burnaburiash, o rei
faraós da Dfrima Oitava Dinastia do Egito, que tinha o domínio da maior cassita. Quando o filho nascido dessa união foi morto numa revolta pal:1-
parte das áreas costeiras da Síria. cian:1, Assurubalit interveio. Matou o usurpador que tinha assumido a
A língua usada para correspondência entre as várias cortes era o babi- realeza e colocou no trono babilónio um parente do rei antecedente. As
lônio, e algumas das cartas remetidas para o Egito pelas corres babilôni:i, fontes que descrevem esses :icontecimentos são, porém, contraditórias, e
hitita, mitani e síria foram encontradas nos arquivos da cidade de Aquc- não está claro se o novo monarca era um infante, filho de Mubalit-sherua,
naton na atual Tel1 :il-Amarna. A influência sobre :1 Síria e a alta Mesopo- ou outro filho adulto de Burnaburiasb 11.51 Durante o seu reinado de
tàmia foi muito disputada entre o Egito, os hüitas e os mitanis, e levou a trinta e cinco anos, Assurubalit consolidou as pretensões da Assíria ao sta-
várias campanhas militares. A tensão entre hititas e egípcios redundou tus de potência em pé de igualdade com a Babilónia, os hititas e o Egito.
num empate depois da batalha de Qadesh, cerca de 1275, mas Mitani já Os dois sucessores imediatos de Assurubalit tiveram alguma dificul-
perdera a independência para os hitit:is em meados do século XIV. dade em garantir a inviolabilidade d:is fromeir:is nas montanhas seten-
A resultante desintegr:ição do est:ido mitani numa província hitita abriu o trionais e orient:iis e em subjugar as populações tribais dessas regiões.
caminho p:ira uma nova potência do Norte da Mesopotâmia e os reis de A fase seguinte na expansão assíria aconteceu no reinado de Adadnirari I
Assur :issumiram o controle da situação com o reinado de Assurubalit l (1307-1275), que conquistou territórios no sul à custa da Babilônia,
(e. 1365-1330), m:ircando o começo do estado assírio. O rei enviou uma fazendo recuar as fronteiras para a área do Diyala. Também tirou provei-
carta exploratória ao Egito, junto com presentes, para sondar como essas to das dificuldades que o rei hitita estava enfrentando n:1 Anatólia e con-
propostas seriam recebid:is. Evidentemente, ele continuou a ampliar seus quistou Mitani, o estado vass:ilo dos hititas, o que lhe deu o controle das
territórios e influência a tal ponto que, em sua carta seguinte para Ame• regiões desde o médio Eufrates até Carchemish. O seu sucessor, Salmana-
no'fis IV' se sentiu em condicões
~
de adotar um tom sobranceiro e a insistir s:ir I (1274-1245), consolidou o domínio assírio nessa áre:1 mediante a
na igualdade de status, dirigindo-se ao faraó como irmão e exigindo construção de uma série de novas fortificações e uma reestruturação da
quantidades substanci'ais de ouro: administração. O governante vassalo de Mitani foi substimído por um fun-
cionário do palácio assírio e colonos assírios foram assentados para
Que rudo corra bem convosco, vossa família e vossas cerras. Quando vi os vos- desenvolver o potencial agrícola d:1 região.52 Suas inscrições reais contêm
sos mensageiros, fiquei extremamente satisfeito. Vossos mensageiros são aco-
agora, adicionalmente, relatos de campanhas militares e não se restrin-
lhidos com a devida honra cm minha corre. Enviei-vos como oferenda de paz
um belo carro real (escolhido entre aqueles) que cu próprio uso e dois cavalos
gem mais a descrever apenas trabalhos de construção, como era o cos-
brancos que cu igualmente conduzo; um carro sem parelha de cavalos; e um tume. Refere-se a si mesmo por numerosos epítecos para sublinhar o sc 11
sinete de belo lápis-lazúli. São assim as oferendas dos grandes reis? O ouro é caráter guerreiro como "um herói valente, capaz ele desbaratar seus ini -
como poeira em vossas terras. Só se tem o trabalho de o apanhar. Por que migos no campo de batalha, cujo ardor agressivo cintila como uma ch:1111a
razão ele vos parece tão valióso? Está em andamento a construção do meu e cujas :irmas atacam como implacável armadilh:1 mortal". 53 Seria cs~t:,
novo palácio. Mandai-me ouro cm quantidade suficiente para o decorar de daí em diante, o tom para todas as inscrições reais assírias.

228 229
M L ~O\' o 't' A ~t l A i\ ~ S t l \l C U ~.t li (.A\' l'I' A\. D () 1 ~t \' L 1\ 1 () ,\ ~ ~ 1 ll 1()

O reinado do filho de SalmanasJr l, Tukulti-Nin11rt:1 I (1244- 1208), um estado no Irá ocidental que cresceria a ponto de se rornar um :;ério
marca o ponto alto do primeiro império assírio. O seu reinado tambt:m adversário da Assíria nos anos por vir:56
está nomvdmenre bem documentado, graças à descobcna de numerosos No século X111, Assur era uma cidade já consideravelmente populosa,
1
arquivos: ~ Ele converteu a Assíria na mais formidável potência militar t! a capital da potência mundial. A parte antiga da cidade ainda era o centro
cconómic~1 do seu tempo, e o modo como atingiu os seus objetivos está de funções religiosas, cerimoniais e administrativas, mas um novo distri-
d cscrfro nas inscrições reais. O seguinte excerto demonstra corno um::1 to, primordialmente residencial, conhecido como a "Cidade Nova" (a/11
exibição inicial de força seria seguida de um tr::1rado formal estabelecendo csszt), crescera muito na zona sul. O traçado do centro da cidade velha era
8 ol>rigaçiio de pagar um tributo e de uma declaração de lealdade ao sobe- uma vasta praça irregular, cercad:i por quatro edifícios monument:ús : o
rano assírio: palácio e os três templos. Do lado sul estava o duplo santuário da lua e do
sol (Chamash e Sin), construído por volta de 1500 por Assurnirari 1, um
Foi qu:indo eles se uniram para enfrcntar o meu cxérciro cm terreno muito edifício complet::1mente simétrico ligado por um pequeno e quadrado
acidentado e montanhoso. Tomaram posições p;ira um feroz conflito arma- pátio central :is salas de culto de ambos os lados.
do. C~nfianre cm Assur, n H:u senhor, e nos grandes deuses, araqud (e) pro-
0
Tukulti-Ninurta I também reconstruiu o templo de Isbt:1r. Começou
voquei sua derrota. Enchi as grutas e as ravinas das montanhas com seus por demolir as paredes antigas mas depois mudou de idéia. Deixou o anti-
cadáveres. Aml~nroci seus cadávercs (como st fossem pilhas dt.: cercais)
go templo tal como estava e ao seu lado edificou um novo, em escala muito
dianrc dos porrucs dc suas muralhas. Dcvasrci-lhes as cidades (e) ;is convcrci
maior. A nova sala de culto era dedicada à manifestação local de Ishrar,
cm mames de ruínas... Assim me tornt.:i o st.:nhor das cxrensas terras dos
Qutu. assuritu, "a assíria". 57 Media 32,5 por 8,7 metros. A fachada era domina-
( ...) da por suas salientes torres quadradas dos portões de entrada. Um p:ítio
transversal levava diretamente à vasta e oblonga cella, onde a imagem da
Cap~urci as h~rd:1s dos príncipes de J\bulli ... (rei do país) de Uqumenu (e)
lcvt:1-os sob gnlhocs parn a minha cidade de Assur. Eu os fiz jurar pelos gran- deusa estava colocada num pedestal paralelo ao lado mais estreito do re-
dt:s_dcust.:s do ~t:u (e) do inferno, impus-lhes o (pesado) jugo de minha sobe- cinto, sob um l>aldaquino e num nível superior a que se tinha acesso por um
r;inia'. (t: dc.:po1s) sol rei-os fXlfa volrarem às Sll:1S rerras... subjuguei cidades lance de escadas. Nada menos de nove documentos de fundação por Tu-
fortificadas, que se renderam a meus pt:s, e impus-lhes corvGia. Recebo anual- kulti-Ninurta t inham sido descobertos nesse templo, inscritos com o
mente com cedmônia seus valiosos rriburos c111 minha cidade de Assur. 55 texto habitual, assim como um documento extra que explicava a mudança
de plano. Ele escolheu materiais diferentes, desde grandes p lacas de pedra
A despeito dessas repetidas exibições de força, o controle assírio calcária até alabastro, chumbo e ouro,58 e assentou-os sobre almofadas de
sobre as regiões mais remoras do império e suas fronteiras cm perma- conchas e pérolas, lascas de pedra e folhas embebidas em mel e óleo.
nente expansfo era p~ecário e continuamente subverrido pela população Tukulti-Ninurta era um construtor enfrgico. Além da reconstrução
local. As tribos pastons, sobretudo, furtavam-se a confrontos diretos mas do templo de Ishtar, reforçou e reconstruiu substanci::1lmente as muralh::1s
desfcri_am. contínuos ataques de surpresa contra as regiões fronrei;iças. da cidade, escavou cm torno delas um fosso de quase vinte metros de lar-
Tukult1-N111urca p:irece ter rido t:Xito cm submeter o norte, mas enfrentou gura e deu início aos trabalhos de construção de um grande p:11:ício, para
problemas 110 sul. A sua mds controvertida vitória foi sobre a Babilônia. o qual foram transportadas enormes quantidades de terra necessárias à
Derrocou Kastiliash V, u~ soberano cassita, levando-o e aos principais formação da pl:itaforma. Pouco se sabe a respeito do edifício porque es-
membros de sua corte canvos para a Assíria. A llabilônia foi enr:io sim- trururas ulteriores foram construídas em subseqücntcs camadas superio-
plesmente anexada aos seus domínios e ele assumiu os tradicionais títulos res. Mas o seu projeto mais ambicioso foi a construção de uma nova
reais babilônios. O primeiro período de domínio assírio sobre o seu vizi- cidade três quilômetros ao norte de Assur, chamada Kar-Tukulti-Ninurta,
nho merid~on~I dur~ria trima e dois anos e resultou numa forte e persis- a qual passou :i ser, por um breve período, sua principal residência. É pos-
:ente 111f_luenc1a babilônia sobre a elite de Assur. Em termos do equilíbrio sível que a motivação para tal empreendimento, o qual seria repetido por
111tcrnac~o1:al de forças, por outro lado, a ocupação da Babilônia e a perda muitos reis assírios subseqüentes, tenha sido cm parte a megalomania -
do comercio oeste-leste fortaleceram as pretensões territoriais de Elam, demonstrar o poder absoluto do rei por gigantescos programas de cons-

23 0 23 1
ME S O I' O T ,\ /1! 1 A
A:> Sll ll c o:-1 0 C:1\l'IT/\L 1) 0 l~lf'ÉlllO A \ \ÍlllO

truções - e em parte a paranóia. Em seu novo palácio o rei esper.:1va cado ao deus-céu Anu e ao deus do tempo Adad. Sua antecâmarn murada,
ganhar mnior controle sobre Assur, ao mesmo tempo que se d istanciava à qual se tinha acesso por um portão central flanqueado por botaréus sa-
da velhn cidade, que ele talvez considerasse um ninho de intrigas. lientes, levava aos santuários gêmeos, cada um dos quais se encostava à
O saque de Babilônia e o scqiicstro dos deuses tinham sido muitís- parede de um zigurate (36,6 por 35,1 metros), provavelmente alcançado
simo mais difíceis de legitimar do que as brutais supressões de povos bár- desde o telhado das cellae duplas entre eles. Em sua simples monumenta-
baros nas fronteiras do império. Babilônia era reconhecida como deren- lidade, essa obra deve ter oferecido uma visão deveras impressionante.
rora de uma tradição cultural mais antiga do que Assur e era, ademais, O filho de Tiglath-Pilcser, Assurbclcala (1073-1056), também teve
uma cidade sagrada. Por conseguinte, as ações do rei podem ter provo- problemas contínuos com as tribos aramaicas, que àquela altura já
cado reações negativas entre os educados funciouários dos escalões supe- cinhnm penetrado em todas as áreas da Grande Mesopotâmia. Ele pare-
riores em Assur. Em Kar-Tukulti-Ninurta ele colocaria o poder real em ce ter conseguido reter a supremacia assíria e ter feita um tratado com
terreno mais firme e seguro, muiro literalmente em solo virgem. A inten- os babilônios, mas, após sua morte, o império assírio desintegrou-se e,
çiio era que uma população fiel ao rei morasse na nova cidade, e com esse t:il como na Babilônia, sobrcveio outra ''.idade das trevas", a cujo respei-
propósito ele não olhou as despesas para fazer dela um belo lugar para to as fontes documentais são poucas e dispersas. Depois, a Assíria tor-
viver. Os palácios e os templos eram decorados com ladrilhos vitrificados nou a florescer no começo do primeiro milênio, para tornar-se mais
de cores brilhamcs e com pinturas murais. O rei financiou a nova cidade poderosa do que nunca; mas essa expansão do império ocorreu princi-
com tributos e o produt0 de saques, e usou gente deportada de outras par- palmente nas direções oeste e norte. Em conseqüência, Assur passou a
tes do império como suprimento de mão-de-obra. Mas nada disso adianta- ocupar uma posição marginal. 60 Estava também relativamente perto da
ria. Talvez tenha sido o seu próprio sucesso na demonstração de poder vulnerável fronteira com a Babilônia, e esses fatos podem ter contribuí-
que provocou uma reação. De acordo com uma crônica assíria, houve do para a decisão de Assurnasirpal 11 de transferir a corte em 879 a.C.
uma rebelião palaciana cm que ele foi encerrado numa sala e assassinado para Calá, situada mais ao norte. Assur deixou de ser uma capital e tor-
por um de seus filhos. 59 Seguiram-se intensas lutas pela sucessão e o vasto nou-se uma cidade sagrada, o local de sepultamento dos monarcas assí-
império ele Tukulti-Ninurta I, que se estendera do Nordeste da Síria à rios, que repousavam cm enormes sarcófagos de mármore nas criptas do
baixa M esopotâmia, foi encolhendo gradualmente até voltar às suas anti- Antigo Pahício. Também preservou os registros históricos dos reis e altos
gas fronteiras na Mesopotâmia setentrional. dignitários assírios na forma de estelas de pedra colocadas numa praça
No século XII, os trinta e oito anos de reinado do en1:rgico Tiglath- aberta ao longo do lado sul da muralha do antigo centro urbano.
Pileser I (1114-107 6) representaram outro período de expansão assíria Do século XIV cm diante, funcionários limmu e outros dignitários
que só poderia ser realizado e mantido por contínuas campanhas milita-
vinham erigindo pedras com o rcgistro de seus nomes e títulos dos cargos
res acompanhadas de deportações em grande escala. Especialmente incô-
que exerciam. Desde Adadnirari 1, os reis também levantaram estelas,
modas eram as incursões de tribos aramaicas, que também ameaçavam e
colocadas defronte das de seus altos funcionários. A finalidade exata des-
assolavam o norte babilônio com seus repetidos ataques. Era um sinal da
ses monumentos ainda t: motivo de controvérsia, mas não parece ser aci-
considerável força e energia desse rei que ele ainda encontrasse tempo
dental o foto de as estetas de funcionários estarem colocadas face a face
para se dedicar a outras atividades além da h'llerra. Seus extensos anais
com as dos monarcas. Isso sublinha a força da elite aristocrática cm Assur,
descrevem suas expedições ao Mediterrâneo, aonde viajou por mar e
sugerindo ao mesmo tempo que a continuidade da cultura assíria er::1
matou "um cavalo-marinho" (provavelmente um golfinho), assim como
defendida por um cargo comprovadamente mais antigo que a realeza.
outras expedições de caça. Também colecionou plantas e árvores exóticas
e criou uma espécie de jardim zoológico com animais que lhe foram envia- A presença de muitos templos na cidade (trinta e quatro ao todo) ,
dos de presente (um macaco e um crocodilo do rei do Egiro) ou que ele mas, cm especial, o imponente santu:írio de Assur no promontório 1101 ll-,
próprio tinha capturado vivos (quatro elefantes da região de Habur). fez da cidade o principal centro religioso oficial, o mais importa11n: 111 1•,il
TambGm erigiu templos e monumentos em muitas cidades. Em Assur, para todos os rituais significativos e cruciais da realeza, tais como :1s wr11.1
construiu um edifício muito particular, o gig:rntesco templo duplo dcdi- çôcs e as celebrações de festividades sazonais.

2 .1 2 23 3
1'11õSOPOTA1'11A RELIGIÃO f. RITUAL

AS COLEÇÕES DE PLAQUETAS DE ASSUR centro de cultura foi reconhecida pela concessão do título de ai nemeqi,
67
"cidade da sabedoria".
Como na Babilônia, os templos não eram apenas lugares d e culto, mas
também centros de saber. Quando Tukulti-Ninurta I levou funcionários
babilônios para a sua capital, ele também ampliou imensamente suas cole- RELIGIÃO E RITUAL
ções de plaquetas. A poderosa influência babilônia do século XIV teria
um impacto duradouro sobre o desenvolvimento da literanira assíria e
A influência babilônia sobre Assur remonta ao final do terceiro milênio,
muitas coleções de arquivos foram descobertas cm Assur. 61 A maioria dos
quando a cidac.le era parte do estado de Ur III. Chamshi-A_ddu I também
textos do período Assírio Médio (o período de Tukulti-Ninurta I e tinha salientado sua ligação com o sul e pode ter favorecido o culto de
Tiglath-Pileser) foram encontrados no setor sudeste do templo de Assnr. Enlil em detrimento do de Assur. Tal exposição às idéias e práticas do sul
Continham as cl::íssicas obras de referência (listas de signos, listas lexicais, mesopotâmio, cm especial no tocante à religião e à ideologia, deve rcr
vocabulários), coleções de augúrios, hinos, orações, rituais e também tex- deixado algumas marcas, embora a es.cassez de textos teológicos do
tos mais especializados, como manuais com receitas de perfumes (escritos período inicial torne impossível corroborar qualquer import?çã? direta
para instrnção dos fabricantes de perfumes femininos), um manual de do pensamento babilônio.r,g Mas certament: na época de Tukulu-~murta I,
adestramento de cavalos, listas de plantas medicinais e composições lite- e durante os reinados dos sucessores de Senaquenbe, que facilitaram a
rárias, algumas em sumério (''O Regresso de Ninurta"), 62 algumas bilín-
afluência de homens de saber babilônios e seus arquivos, o deus local
gües (mitos da criação), e um catálogo de títulos de canções. A disponibi- Assur foi por eles restabelecido com um status idêntico se não superior ao
lidade dessas obras causou gr:i.nde impacto sobre os escribas e os inspirem
de Marduk no sul. Isso produziu uma versão assíria da épica da criação
a compor uma épica em 700 versos em louvor de Tukulti-Ninurta, abun-
que apresenta Assur no papel de Mardnk, além de out~~s c~mposiçõ:s
dante em referências eruditas e artifícios literários.63 similares. Em que medida rodas elas eram apenas excrc1c1os 1ntelectua1s
A maioria dos arquivos do primeiro milênio é proveniente de resi- que pouco influíram para mudar as mais antigas tradições cultas é ou~ra
dências particulares na nova cidade e pertencia a personalidades de desta- questão, uma vez que, cm primeiro lugar, sabemos bem pouco a respeito
que da sociedade assuriana. Alguns eram de famíli:i.s de escribas e as pla- de tais tradiçõcs. 69
quetas refletiam seus interesses e orientação profissional. Na casa domes-
Característico do ritual assírio é o estreito envolvimento do rei e da
tre-cantor Assur-suma-ishbu, por exemplo, foram descobertos muitos
família real. Até os deuses costumavam visitar o palácio. Adadnirari I fala
hinos, inclusive diversos hinos reais,6'1 além de textos literários como o
de um quarto cm seu palácio, "no interior do qual foi construído o
mito de Anzu, a história de Etana e os sumamente eróricos "poemas líri-
estrado do deus Assur, meu senhor, e anualmente o deus Assur, meu
cos de amor divino", que dizem respeito ao a((air entre Marduk e Ishtar e
senhor, dirige-se a esse estrado para ne1e se msta· ,ri
l ar " . liu 1rn1ti-
. N.111urr_a
aos frenéticos ciúmes de Zarpanitum, :i. esposa de Marduk. 6s
amaldiço:i. qualquer futuro governante que "impeça [os deuses qu~ r_es1-
Uma família de exorcistas tinha uma grande biblioteca particular que dem na] cidade ldc Assur] de [entrar] no meu palácio [durante fest!Vlda-
abrangia manuais de exorcismo, oráculos, rezas, textos diagnósticos e des] ",71 e Tiglath-Pilcser I relata que aos deuses são oferecidas ovelhas
muitas prescrições rar:i. conjutos e rituais destinados a neutralizar todas quando visitam o palácio. Mais regulares eram os rirua::; em que o rei
as queixas e malefícios. Também foram descobertas muitas estatuetas, tinh:i. que representar para Assur, mas apenas sobrevivem fragmentos dos
desrinadas ao uso cm seus rituais aporropaicos. Os sacerdotes instruídos
textos que descrevem tais cerimônias:
tinham também uma coleção àe textos literários e uma topogra~ia muito
interessante da cidade de Assur, descrevendo os templos, os zigurates, os
... o rei fez ... subir ... ele levou parn o templo de Anu (estátuas das deusas)
bastiões e as portas das m urnlhas. 66 Sherua, Kippat-mari ...
No total, cerca de 4.300 plaquet:i.s foram encontradas nesses arqui- (... )
vos, as quais nos p ropiciam uma idéia d a intensa ativida d e literária n:i. foram para o templo de Anu. Ele fez Assur sentar-se c~1 seu lugar, um. ,, ,:
cidade e a ampla g;:ima de fontes disponíveis. A reputação de Assur como acendeu um archote, e imolou uma ovelha, e esvaziou uma pancL, de

234 235
ltE LI e; t,\O E Ili TIIAL.
IIIE S O l' OT ,\~! I A

Assur, mas isso nunca foi confirmado por uma identificação escrita. Podia
comi~la, foi ofcn.:cida ccrvejaha11111111rt11, ele ocupou a sua posiç:io, o rei q ju
Pº:
clc__ c1~ ~1lt~1oura ~ ca_rn~iro que estava no santuário qcrs11, esfrcgara;:1 o;
rcc:1p1cnw~ . IISII, o rei fo1d1reramenrc para o palácio. No sexro dia o r~i dei-
referir-se facilmente a alguma outra deidade. As origens de Assur são obs-
curas. Talvez fosse urna deidade semítica ocidental, ou de origem hurrita.
Era provavelmente uma das muitas manifestações de um deus do tempo,
xou o palac10 .. .
( ...) em especial no monte Ebih, porquanto é mencionado como "senhor de
~ racli~~ ergueu-se_, ~euniu (to?as as coisas que eram necess,írias?), "(a cstárua Ebih" em tcxros do período Ur III. C om o decorrer do tempo, muitos
a cusa) Shcrua 1n1c1on sua Jornada" disse ela três vczcs. 72 outros poderes lhe foram atribuídos. Inspirado talvez pelo exemplo do
sumério Enlil, ele se tornou o senhor supremo do panteão. Mas, cm com-
-~s in~criçõcs reais reiteram interminavelmente a velha noção de que paração com as divindades bubilônias, cujos poderes cósmicos faziam
o rei e o v~cc-regentc de Assur, assim como o seu sumo sacerdote, e de que a parte de um sistema teológico coerente, e cujas relações de família tam-
sua autoridade depende do comando do seu senhor Assur e dos outros bém se originavam num complexo panteão, Assur era indefinido.
grandes
~ · deuses.
d Essa
· é uma continuação da antiqüíssima• rr~d· - meso-
'"' 1çao Somente como resultado da política antibabilõnia de Senaqueribe, a
potam1a e considerar o governante como o medi.ado . • r entre a 1mmam- . qual culminou na destruição da Babilônia ·e no seqüestro de Marduk e de
da d e e os d cuses. outras deidades mesopotâmias, é que a persona divina de Assur se tornou
Os deuses também visitavam os santuários uns dos outros; um frag- mais complexa, embora tomando claramente Marduk por modelo. A épi-
mento desc_~evc a es'.ada de Assur na capela de Dag:m, o deus do tem o. ca da c riação foi reescrita para apresentar Assur no lugar de Marduk, e,
Outr~ ?ca~1ao especial era o festival de Akitu, o qual podia ser rcaliz:do como vimos, Sena queríbe edificou uma casa do festival a fim de cele brar
75
~m varias epocas dura nte o ano e não era exclusivamente uma cclebracão os festejos de Ano-Novo no estilo babilônio.
b~ Ano-Novo.73 !:'- característica mais i mporcante desses festejos era t;m- Os esforços de Senaqueribe para tornar Marduk redundante não
_cm urna excur~ao ~ara os deuses, que se dirigiam a algum espaco ao ar foram seguidos por seus sucessores. Esarhadon devolveu a estátua de
Li_~re, como ~m prd1m, em geral no interior da cidade. Quando S~naque- Marduk à Babilônia e reconstruiu o templo que seu pai tinha destruído.
. r~ ~ constrmu ~1ma nova casa especial de Akitu, imitou um costume babi- Uma vez mais, Assur volrou a ser o que sempre tinha sido, a deidade local,
1~1110 q ue_localizava a casa do festival fora dos muros da cidade. Sena ue- não apenas da cidade de Assur, mas de todo o império. A sua mais impor-
nbe localizou a ~ua i~uma parte plana da cidade, ao norte da Porta Ta~ira. tante função foi ser um foco de identidade assíria. Isso é corro borado não
[ncor~orou um 1a_rd11n das delícias ao plano, que devia oferecer um belo só pelas inscrições oficiais que sublinham a estreita ligação entre estado,
panorama, com f'.la~ regulares de arbustos e árvores num pátio cenrral. rei e deus, mas também pelo freqüente uso de Assur em nomes próprios.
Teve que construir mstalações especiais para o abastecimento de á 'lia. Assur pode ter sido a de idade "nacional" nos tempos de grandes impé-
Andrae encontrou vestígios de um poço e canais dt: água que tivera1~ d; rios, quando seu nome causava medo à população de terras distantes,
ser talhados
d na superfície
- rochosa.74 As cstátu"s
" dos d eust.:s
., foram trans- como nos dizem as inscrições; mas, em essência, Assur é o deus da cidade
p_ora as em v_agoes puxados sobre carris de bronze através de ruas espe- de Assur. Ele aí estava no começo da história e ainda lá se encontrava
ci~ m~nte p~v1mentadas. Ca~a deus ou deusa tinha seu nicho próprio no muito depois do fim dos poderosos estados mesopotâmios. Mesmo hoje,
pr111c1pal
- ·d d dsalao · de culto. No fmal das cerimo' nias
• , as cle1·dade
• s regressavam os poucos cristãos nestorianos remanescentes que vivem no Norte da
a c1 a e e barco, aproveitando a corrente favorável. • Síria e do Iraque, assim como no exílio em outros países, consideram-se
"assírios" e o seu símbolo oficial é o deus dentro do disco solar, que acre-
O deus Assur ditam ser Assur, não como ser divino, mas como guardião de sua assu-
Após a destruição d e Asslll", quando a cidade revivesceu no período Parta mida identidade.
o ~esm~ ocorreu com_o cul~o de Assur. 13em pouco se sabe sobre a pcrso:
nahdade do ~cus. Nao_ existem mitos ou histórias sobre Assur, nem
mesmo o seu s1mb_o lo fo1 claramente identificado. Em alguns relevos assí-
rios aparece um disco solar alado, com um nrão de barbas h d
arco e fie I l . f • . . empun an o
• c 1as; ta imagem oi i11terpret:1da como uma r epresentação de
237
2 .3 6
9 nín1ve

O antigo cômoro de Nínive está hoje em dia quase engolido pela expan-
são urbana da cidade de Mossul. Rodovias de mão-dupla passam pertinho
das velhas muralhas e casas modernas cobrem uma vasta área da antiga
cid:1de. Os serviços da universidade, onde alguns assiriólogos iraquianos
podem ser encontrados trabalhando, fiscaliz:1111 a restauração parcial das
muralhas e portas da capital assíria. Mas a proximidade de Nínive de um:1
cidade movimentada significa o seu envolvimento nos problemas políti-
cos do nosso tempo. A pilhagem de antigüi<lades tornou-se mais comum
porqne mercados clandestinos geraram alguma forma de renda não
decbrada numa economia debilitada pélas sanções da ONU contra o Ira-
que. A falta de financiamentos e de materiais para a manutcnção dos
sítios das ruínas acelerou a deterioração dos monumentos, criando um
"desastre para um patrimônio que é herança mundial", de acordo com
um arqueólogo norte-americano que trabalhou outrora no sítio. 1
As explorações do passado e os esforços de historiadores e epigrafis-
tas pcrmitiram-nos um vislumbre de Nínive. Assim, conhecemos sua his-
tória relativamente bem para o curto espaço de tempo cm que era a capi-
tal de um império mundial; ou seja, por menos de uma centena de anos,
desde 705 :1té a sua destmiç5o cm 612. Mesmo assim, muitas perguntas
ainda permanecem sem resposta. As provas arquitetônicas são muito
escassas porque os métodos de escavação em meados do século XIX eram
rudimentares e os documentos freqüentemente inexatos.

239
1,11 '• o I' ll'I A :-11,\ N ÍNI VI·

Em me:iJos do sécu lo XIX, as dimensões de Nínive ainda podiam ser As placas c.le "alabastro csculpic.lo" tornarnm relarivamenre frícil re-
claramente vistas: um sitio não de todo retangular, fechado por uma nrn- constituir o traçado das paredes. Elas tinham sido fixadas numa calha
ralha maciça de cerca de doze quilómetros de comprimento. O maior abaixo do nível do piso, contra uma parede de adobe. Com :i remoção cl:is
cõmoro está simado ao longo da face oeste das muralhas da ci<ladc e era placas, as paredes não tardaram cm desintegrar-se, e como dispomos ape-
conhecido pelo nome turco de Kuyunjik. Um cômoro menor era ocupado nas dos esboços apressados de Layard, o projeto arquitetônico dos p:il:í-
por uma mesquita construída denrro das ruínas de um antigo mosteiro cris- cios só cm panei: conhecido. Apesar do seu êxito c::m exumar algumas das
tão, o qual era conhecido como TeU Nebi Yunus, o monte do Profeta mais belas anrigüidades assírias, Layard cansou-se dessa ocupaçfo e dei-
Jonas, que se acreditava ter sido a( enterrado. Esse cômoro menor tam- xou o Oriente Médio cm l851 para seguir carreira na política. O seu
bém era habitado por alguns aldeãos e ainda continua sendo assim ocu- sucessor cm Nínivc, em no1m: do Museu Bridnico, foi Hormuzd Rassam,
pado até hoje. Por isso, apenas algumas sondagens e limitadas escavações irmão do vice-cônsul britJnico cm Mossul, Christian Rassam. 5 Os irm:ios
foram possíveis nessa elevação. As atenções concentraram-se, portanto, eram naturais da cidade, de uma família crist:i e grandes anglófilos. Hor-
cm Kuyunjik, que tinha mais de um quilômetro e meio de comprimento e muzd escava particularmente empenhado cm servir à causa britânica e
quatrocentos metros de largura, com uma quantidade de destroços acu- decidido a obter qualquer v:mtagt.'.m que pudesse sobre os franceses, que
mulados suficiente para c:levar a superfície do cômoro oitenta metros ainda achavam ter uma reivindicação de prioridade sobre o sítio.
acima da planície circuncl:rnte. 2 Rassam fez os seus oper:írios, protegidos pela noite, aprofundarem
A proximidade das ruínas da capital distrital de Mossul fez com que algumas trincheiras exploratórias na pane fr::incesa do cômoro e, quando
elas chamassem a atenção dos primeiros exploradores. Vários objetos, descobriram mais placas esculpidas, ele declarou que, ao abrigo de novas
como plaquetas com inscrições, tinham encontrado seu caminho para as regras de sua própria b vra, cabia-lhe explorar o palácio descoberto. Em-
mãos de dignitários visitantes desde o final do século XVlll. A primeira bora os franceses reconhecessem sua derrota, o dinheiro para as escava-
pessoa a manifestar sério interesse pelo sítio foi o cônsu l francês cm Mos- ções de Rassam estava acabando. Arrancou às pressas os relevos das pare-
sul, Émile Botta.3 Ele começou escavando cm Kuyunjik cm 1842, mas des e embarcou-os para Londres, onde cenas ele caça que mostram o rei
encontrou pouca coisa além de tijolos de adobc acumulados. Desviou sua Assurbanipal matando leões, onagros e gazelas continuaram a ser muito
atenção para outro cômoro na vizinhança, conhecido como Khorsabad, admiradas por seu naturalismo e sentido patético. Também deparou com
onde descobriu os primeiros relevos esculpidos assírios. Mas, embora uma vasta coleção de plaquetas cuneiformes, mais tarde consideradas
estivesse ativamente empenh:tdo em encontrar monumentos ainda mais provenientes da biblioteca do palácio real.
esp lêndidos, não renunciou às suas esperanças cm relação a Kuyunjik. Em 1854, o coronel H. C. Rawlinson, homem de grande saber e fa-
Um perito mais jovem, o inglês Austen Layard, tinha chegado nesse meio moso decifrador da escrita cuneiforme, chegou a Mossul para uma estada
tempo, ávido por avenmra e determinado a garantir os dirciros sobre de um ano, quando obteve o apoio do Assyrian Excavation Fund. Deu
outros cômoros promissores. Foi-lhe concedida permissão para explorar prosseguimento à obra de Rassam no palácio de Assurb:mipal. Em 1873,
o lado sul de Kuyunjik, onde começou a trabalhar em 1845. Embora o outro estudioso, George Smith, chegou ao sítio, enviado por uma miss5.o
novo supervisor francês, Rouet, que substituiu Borra no sítio, achasse que organizada pelo Daily Telegraph com o objetivo de localizar uma porção
os franceses tinham direitos de prioridade, Layard persistiu com seus perdida da história assíria do dilúvio que fora escrita cm uma das "pla-
poços de sondagem e cm 1847 encontrou um palácio: quetas da biblioteca" proven ientes de Kuyunjik. Smith encontrou o frag-
mento sem grande dificuldadc1 mas morreu de disenteria peno de Alcpo
Abri nada menos de setenta e uma salas, câmaras, passagens, cujas paredes, em 1876. Daí cm diante, o objetivo de todas as subscqücntes escavações a
quase sem exceção, cinh:im si<lo :ipaineladas com chapas de alabastro escul-
mando do Museu Britânico foi encontrar mais plaquetas. Rassam,
pido, rcgisrrando o triunfo e as grandes façanhas dos reis assírios. Ntun cál-
culo aproximado, cerca de 9.880 pés, ou quase duas milhas de bai-
seguido por Budgc e King, ambos curadores do Museu Brit:lnico, estive-
xos-relevos, coru vinte e sete portais formados por colossais muros :ilados e ram em Nfnivc de 1876 a 1903.
esfinges leoninas, foram descmerrados somente nessa parte durante as A chegada de Campbell Thompson em 1904 assinalou uma 111ud:111ç;1
m inhas pesquisas.• de direção, pois ele estava empenhado em estabelecer a escavaçiio cienLÍ-

240 24 1
IIISTÓRIA DE ü C l.ll'AC,:Ao
MESOPOTÂMIA

fica e em prestar mais atenção à arquitetura. Descobriu o templo ele nia se os últimos remanescentes de Núüve desaparecessem como resul-
Nabu, mas o programa foi interrompido por falta de verbas e só retomado tado do espírito vingativo de uma superpotência ocidental.
mais de vinte anos depois, em 1927, quando Campbell Thompson, auxi-
liado pelo jovem Max Mallowan, que estava para se casar com a escritora
de romances policiais Agatha Christie, retornou a Nínive e encetou uma HISTÓRIA DE OCUPAÇÃO
gigantesca sondagem em profundidade do sítio do templo de Ishtar a fim
de determinar a seqüência arqueológica de habitação. 6 Os níveis mais pri- No seio de uma fértil e bem irrigada região no coração da Assíria, Nínive
mitivos, antes de ser atingido o solo virgem, datavam do sexto milênio, está situada no melhor ou mais freqi.ientado ponto para a travessia do
conforme mostrou a seqüência de cerâmica. Alguns níveis de construção Tigre e é o foco de convergência das mais importantes rotas que servem
do templo foram parcialmente revelados, mas não houve providências todas as regiões povoadas do Oriente Próximo.7 Não existem detalhes de
para nenhuma exploração em grande escala de níveis anteriores ao primei- estudos de superfície relacionados com Nínive, e a seqüência arqueoló-
ro milênio. gica deriva exclusivamente da obra de Campbell Thompson sobre os
Na década de 1960, a Direção Geral de Antigüidades iraquiana reco- níveis inferiores do templo de lshtar8 e da subseqi.iente sondagem pro-
meçou os trabalhos em Nínive, alarmada pela rapidez com que a cidade funda no mesmo lugar,9 quando se descobriu que as fundações do templo
moderna estava começando a engolir o sítio arqueológico. O objetivo era tinham sido imµIantadas cm camadas pré-históricas do final do quarto
fazer da antigüidade do local um lembrete visível do passado e conver- milênio. Os escombros acumulados que compunham essas camadas pri-
tê-lo num museu. Para preservar a integridade do perímetro cio centro mitivas eram surpreendentemente espessos (20 metros), o que explica o
urbano, a equipe iraquiana restaurou partes da antiga muralha e algumas diferencial nos níveis do Kuyunjik central e da área urbana circundante.
de suas portas. Entre 1987 e 1990, arqueólogos norte-americanos ele Ber- A seqi.iência deixa claro que Nínive foi continuamente ocupada do quinto
keley juntaram-se à equipe iraquiana e trabalharam em alguns dos bairros ao terceiro milênio. Os níveis mais antigos são representados por cerâ~
residenciais da cidade e na chamada Porta Halzi, onde foram descobertas mica pintada calcolítica, 10 seguida por camadas uruquianas, repletas de
provas assustadoras da derradeira e desesperada luta contra o inimigo sinetes e selos cilíndricos e massas de "tigelas de rebordo biselado", além
medo e babilônio. de outros arrefatos do Uruque tardio.
Foi, obviamente, um lugar importante durante a segunda metade do
Esse resumo de eventos mostra de forma bem clara o pouco que até
quarto milênio, embora os escavadores não lograssem localizar nenhuma
hoje foi trazido à luz sobre a extensa história de Nínive. Os tesouros artís-
estrutura arquitetônica, por causa da sua falta de tempo e experiência em
ticos dos grandes palácios assírios foram embarcados para Londres, junta-
reconstituir o traçado de construções cm adobe. Os níveis mais recentes
mente com uma quantidade imensa de plaquetas cuneiformes. Quanto
da cidade pré-histórica datam de e. 3000-2800, período conhecido como
aos períodos históricos .1nteriores, só dispomos, por enquanto, dos teste-
Nínive V na seqüência de Campbcll Thompson, caracterizada por um
munhos oferecidos por textos encontrados em outros lugares, bem como
tipo particular de cerâmica muito comum no norte mas não encontrado
por algumas amostras de ccr5míca e um reduzido número de objetos pro-
nas regiões meridionais da Mesopotâmia. A seqüência Kuyunjik inter-
venientes dos templos. Nínive foi encontrada cedo demais, antes mesmo
rompe-se nesse nível e é possível que a principal área de ocupação sedes-
de a arqueologia ter sido criada. A história da sua descoberta reflete a
locasse para o sítio de Nebi Yunus, o qual nunca foi explorado devido à
influência das preocupações vitorianas com as origens e o domínio polí-
tico do Oriente, tal como sua negligência após a Primeira Guerra Mun- presença do santuário muçulmano e'do cemitério localizado no topo do
cômoro. 11 As fases mais antigas do templo de Ishtar foram atribuídas
dial e a nociva pilhagem das ruínas durante as sanções da ONU refletem a
situação pós-colonial do século XX. Nas descrições bíblicas durante pelos escavadores ao período Acádio. Chamshi-Addu 1, rei de Assur,
11
séculos a principal fonte de histórias sobre a cidade", Nínive esta~a conde- registra que Manishtusu, o neto de Sargão, foi o seu fundador.
nada a sofrer exemplar punição, uma cidade que o Deus hebraico queria Não estão claros o status e a extensão de Nínive durante os períodos
ver arrasada, cuja memória queria que fosse mesmo apagada, como Acádio e, em seguida, Ur !II. Fontes assírias posteriores afirmam que
vingança pelo que os assírios tinham feito aos judeus. Seria uma cruel iro- Chamshi-Addu I foi o fundador do templo de Ishtar e pode ter sido nt.:s~:t

242 24 3
M E~ O 1' 0 '1' ÍI .\\ 1,\ N f N t \' t. tl E ~ L: N ,\ Q ti l.ll l lJ 1: /\ 1\ S S \1 a IU N 11' 1\ L ( 7 li S . r. 1 l )

altura que a cidade ficou sob o controle direto de Assur. As fumbçôcs d o NÍNIVE DE SENAQUERrn E
templo, construído em adobe cru, tinh:1111 cerca de 26 por 9 metros. A ASSURBANIPAL (705-612)
O culto da deusa em Nínivc prosperou no segundo milênio e Tushrarrn,
rei de Mitani (meados do século XIV), ofereceu-se para mandar :10 faraó A história de Nínive durante o apogeu do império neo-assírio está intima-
egípcio, que estava doente, a imagem de lslnar1 a qual se acreditava ter mente ligada ao destino dos reis assírios. A proliferação de fontes prove-
poderes curativos. Assurubalit 1 (1365-1330), o grande monarc:1 do pe- nientes desse período - anais, crônic:;s, cartas, relatos astrológicos, inde-
ríodo Assírio Médio, reconstruiu o templo, embora não sobreviva pendentemente dos relatos bíblicos - significa a existência de muira
nenhuma de suas inscrições de construção. A cidade situa-se numa falha informação histórica. Obtivemos até um retrato das personalidades dos
geológica e sofreu numerosos e sfrios abalos sísmicos, um <los quais é teis assírios, e sua atitude cm rclaç5o às cidades, t::mto no estrangeiro
mencionado por Salm:111asar I (e. 1280) a propósito dos seus trabalhos de quanto no país, explica o desenvolvimento das cidades reais, em especial
reparação do templo. Ele também constru iu um palácio para sua residên- Nínivc. As inca nsáveis campanhas militares, o constante movimento de
cia. Alguns dos grandes tijolos queimados que utilizou para as fundações tropas e po vos, fizeram desse período u~ tempo de dpidas mudanças. J\s
foram descobertos por George Smith. Tigbrh-Pilescr l também realizou capitais tornaram-se não só locais para alojar o governo e a administração
extensos reparos no templo de lshtar, e da mesma maneira agiu Assur- centrais, mas também as sedes simbólicas de um império multinacional.
dan, após outro terremoto em e. ·1187. 13 Ao mesmo tempo, eram ainda cidades assírias, com antigos santuários e
A belíssima estátua de pedra calcária de um torso de mulher nua em uma elite aristocrática conservadora.
tamanho natural (hoje no Museu Britânico) foi dedicada por J\ssur-bel- O investimento nas antigas cidades e a construção de novas cidades
kala "para deleite da populaça" (e. 1080). Também declarou ter tido um reai s refletem uma tensão incrente entre governo autocrático e privilégios
palácio cm Nínive, o que foi igualmente afirmado por Chamshi-Addu IV tradicion::iis. Nínive era, a essa altura, uma cidade muito antiga e, intermi-
(e. 1000). Parece que, dessa época em diante, os reis da Assíria mantive- tentemente, uma capital. O seguinte esboço histórico deve ajudar a des-
14
ram pelo menos um palácio de verão em Nínive. No primeiro mi!ênio, crever como o status da cidade oscilava entre centro de poder e cenuo ~le
quando a Assíria se tornou uma grande potência política, os reis começa- resist<?ncia.
ram a dotar Nín.ive de templos, a partir de Assurnasirpal li (883-859),
que ampliou substancialmente o templo de Ishrar. O seu edifício foi o úl- Senaqueribe (705-681)
timo pelos duzentos anos seguintes, erguido sobre uma sólida plataforma Senaqueribe era filho de Sargão II, que provavelmente não era um des-
de tijolos de 2 metros de espessura e uns 100 por 50 metros de área. cendenre direto da linha real e teve de suprimir numerosas revoltas con-
A devastadora destruição sofrida durante o saque de Nínive cm 612 tra o seu reinado. 16 Sargão era um combatente ativo, constantemente em
esclarece que bem pouca coisa sobrou desse templo. marcha contra um ou outro senhor rebelde. Seus predecessores tinham
Sargão II (721-705) construiu um templo dedicado ao deus babilônio governado desde Calá (Nimrud), cidade fundada no século XIII e muito
Nabu, filho de Marduk, que era particularmente venerado na Assíria como ampliada durante o reinado de Assumasirpal II (883-859). É provável
um deus da vitória. Senaqueribe fez de Nínive a última capita! oficial do que Sargão, jamais tenha confiado na corte cm Calá, e transferiu seu
império e construiu um gigantesco palácio. Este foi também habitado por séquito para uma nova cidade chamada Forte de Sargão (Dur-Sharrukin),
seu sucessor, Esarhadon, embora ele possa ter residido no chamado Arse- onde construiu um imenso palácio que foi escavado por Botta. Morreu
nal, o ekal masarti em Nebi Yunus, o qual se rviu como quartel-general do como um soldado em combate na Anatólia, e nem mesmo seu corpo pôde
exército assírio. 15 Assurbanipal (668-627) construiu o último palácio assí- ser recuperado para sepultamento. Apesar do reconhecimento de que a
rio na parte setentrional de Nebi Yunus, mas depois transferiu sua cone guerra era um régio dever, a morte no campo de batalha não era conside-
para Harran, na Síria. Nínive nunca mais recuperou o stat11s de cidade rada honros:1, mas um sinal de punição divina por algum ato de insolên-
após a catástrofe de 612, mas o local foi ocupado durante os períodos cia. Isso iria toldar a memória desse rei por todas as gerações posteriores de
Helenístico e Parta, como demonstram os achados de cerâmica. governantes assírios.

244 245
:,-1 l; SO l' OTA/111 ,\ N Í N I V 1. l> E S E N ,\ tl l I E IU ll E ,\ :\ ~ ~ 11ll l\ ,\ N I l' ,\ 1. ( 7 li ~ • ,, 1 l)

Senaqueribe não era o primogênito de Sargão II, com() o seu nome várias cidades sírias se recusavam a pagar t ributo. A Bíblia descreve sua
"Sin (o deus-lua) substituiu os irmãos", clarnmente indica. Seus irmãos malograda tentativa para tomar Jerusalém, ao passo que os relevos e os
provavelmente morreram na infância, pois a posição de Scnaqueribe an:iis do palácio assírio se concentram no saque das fortal ezas de Lachi-
como príncipe herdeiro nunca foi contestada. Antes de suceder a seu pai, che e Azekah. fasas campanhas foram, no conjunto, um sucesso, pois a
já era nm jovem a quem se confiavam importantes negócios de estado> região reconheceu uma vez mais o domínio assírio, o qual iria perdurar
representando Sargão na capital durante a prolongada ausfocia deste :ité a queda cio império.
último em suas campanhas militares. Comunicava-se com o pai através de Nesse meio tempo, porém, a situaçao piorou na Babilónia, onde Mar-
cartas, 17 e existem
.
textos que reve 1amo seu mteresse
. ,
por arvores e poma- duk-apla-id ina e outro caldeu, Mushezib-Marduk, estavam de volta, fo-
res. is Nessa t;poca, ele provavelmente vivia no palácio ao norte de Nínive, mentando ativamente a rebelião e furtando-se com êxito às tentativas de
a residência tradicional d o príncipe herdeiro. c:iptura. Senaqueribe decidiu ter chegado o momento para o controle
Após a súbita morte de Sargão em 705, Senaqueribe subiu ao trono direto. Depôs o governante-fantoche e nomeou o seu pró prio príncipe
da Assíria. Já não era jovem - provavelmente um homem de quarenta e herdeiro, Assur-nadin-shumi, como rei da Babilônia. 21 Antes de Senaguc-
poucos anos-, mas era um político experiente.,, As cartas entre ele e seu ribe desenc:idcar seu :itaque punitivo c01itra 13it-Yakin cm seu refúgio cla-
p:ii tinham mostrado um respeito mútuo, porém, após a morte humi- mita, fez seu filho ir a B:ibi lônia para o sentar no trono (700). Isso parece
lhame Je s~1rgão e111 terriLório inimigo, o filho estava unpacicme por dis- ter consolid:H.lo provisoriamente a situação. Nos seis anos seguintes,
tanci:ir-se do seu progenitor, a quem jamais citou pelo nome em qualquer Scnagueribe püde se concentrar nos programas de construção e irrigação
de suas inscrições e cujo grande projeto cm Dur-Sharrukin ficou abando- cm Nínivc. Não tinha o meno r interesse cm dar continuidade a Dur-Shar-
nado e inac:ibado. 20 A morre de Sargão foi também um sinal para Mar- rukin, a capital inacabada de seu pai, e tampouco decidiu reativ:i.r a capi-
duk-apla-idina, um velho inimigo da Assíri:i, voltar do exílio e afirmar seu tal de Assurn:isirp:11, Calá. Preferiu mudar :i corte p:ira o vell10 centro reli-
domínio sobre a Babilônia. Esse foi o início de um prolongado e, em últi- gioso de Nínive, a essa altura uma cidade relativamente pequena e um
111:1 instância, ruinoso conflito na baixa Mesopotâmia, o qual iria ofuscar tanto dcc:idente, embor:i ele possa ter reconhecido muito antes o seu
todo o rcin:ido de Senaqucribe. Este decidira enfrentar resolutamente a potencial como base militar e centro aclnünistrativo.12 Ela tinha sem
situação e marchou rumo ao snl, mas M:irduk-:ipla-idina esquivou-se ao dúvida uma ligação simbólic:i com as fo rças armadas. Assurnasirpal li
confronto direto e refugiou-se nos mangues próximos ele sua província tinha iniciado s uas campanhas militares a partir de Nínive e er:i a cidade
natal de Bir:Yakin. Ele era experiente cm r.'íticas ele guerrilha e encarnou o para onde os tributos eram encaminhados.
pbnejador oportunista e líder tribal que consegue ativar a resistência con- Quando Senaqueribe mudou para Nínive todo o seu aparato admi-
tra o mais poderoso estado do mundo desse tempo. nistrativo, csrav:i planejando também exercer um controle muito mais
Os reis assírios tinham por Marduk-apla-idina uma inimizade irredu- direto sobre a cidade. O novo palácio, chamado "o palácio sem rival", foi
tível porque ele os fazia sentir-se impotentes e até ridículos, às vezes, mas concebido não só como residência real, mas também como quartel-gene-
o líder rebelue sulista er:i um útil ainda que imprevisível aliado para os ral de seu governo. As dimensões desse edifício, o dobro das do palácio de
b:ibilônios, que nunca se sentiram satisfeitos sob o d omínio assírio. Qu:1n- Sargão, refletem esse propósito. Todos os empreendimentos de Senaguc-
do a situação chegou a um impasse, Senaqueribe voltou sua cólera conrr:i ribe mostram considerável pragmatismo combinado com um apurado
a Babilônia, sngueando o tesouro real e marchando à frente do seu exér- senso de seus deveres representativos e da dimensão simbólica da realeza.
cito para dev:ist:ir e pilhar as cidades rebeldes do sul. Também nomeou Sua ambição, criar uma capitaJ verdadeiramente soberba e um meio am-
um novo rei para a Babilônia, um nobre filho nativo da cidade que tinha biente sustentável para um:i grande população, revela considerável com-
sido educado na Assíria - uma solução de compromisso cuja intenção preensão do planejamento urbano e um profundo interesse nos aspectos
era tornar mais palat:ivcl a sober:inia assíria . .Embor:i a seqüência ex:ita de agrotécnicos de desenvolvimento de uma maneira guase moderna. No
eventos não esteja inteiramente clara, Sen:iqueribe afinal considerou qut.: restante de seu reinado, concentrou-se nesse enorme projeto, usando pcs-
J situação no sul estava segura o bastante para ele p oder enfrentar os pro- so:is deslocadas de regiões periiúicas como fonte de mão-de-obra e o
blemas em outr:is regiões do império, nos montes Zagros e no oeste, onde produto de s:iques e tributos para o finan ci:i rncnto. De particular i111c-

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1\1 l ~U I' O T /\ .\1 1 A NfNl\11'. IH SE N/\()llElll lll' A /\~Sllltll/\NIP/\I, ( 't lll.f, 1 !.)

rcsse cr:1111 suas obras ele engt'.nharia hidráulica, as qu:iis nmpliara111 consi- riachos existcnres nas cercanias, construiu novos cana is e inspecionou cm
deravelmente o solo advel cm torno da cidade e abasteceram de água os pessoa mananc iaís nas montanhas para verificar a convenic:ncia de sua
numerosos jardins e pomares que eram motivo de particular deleite para exploração como fontes de ;Ígua. O palácio, sirua do na parte sudoeste do
Sen aqueribe. Alguns desses bem construídos túneis, diques e aquedutos cômoro da cida de, era de enormes proporções e abundantemente forrado
1
ainda estão hoje cm 11s0. 2· É possível que ele tenha utilizado a perícia de de relevo s. A finalidade das cenas pictóricas, as quais documentam de um
técnicos urarruanos que seu pai tinha trazido da Anatólia ocidental após modo muito realisra as operações da máquina de guerra assíria cm cam-
sua vitóri:i sobre o exército de Urarru cm 714. Os urartuanos eram famo- panhas específicas, era impressionar qualqllcr visitante com o poderio do
sos por sua habilidade t'.111 instalações hidráulicas. exército assírio e criar um dmadouro registro visual das realizações do
Sen:iqucribc tinh:i plena conscic:ncia de seus esforços pioneiros cm rei. 25 Govern:intes estrangeiros que iam render tributo ou jurar vassala-
prol de Nínive, como mostr:1 :1 sua "inscrição modelar": gem ao rei dispori:im de tempo suficiente para contemplar essas cenas en-
quanto aguardavam nos corredores e antecâm:iras o momento de serem
(Eis o que aconteceu) naqueles dias: Nínivc, a altaneira cidade, amada por recebidos. Elas forneciam um lembrete gráfico das terríveis conseqüên-
lshtar, que conr1:m todos os ritos de deuses e deusas, a eterna e vemsra funda- ci:is da insurreição e rebelião. Mas tall)bt:m comemoravam as obras de
çfo, cujo plano foi detcrmin3do desde os dias de amanho de acordo com os engenharia civil de Scn:iqueribc. Assim, encontramos rcprescnca.çõcs do
sinais dos céus, cuja cstruturn é simples de ver, o lugar habilmente traçado, o
transporte dos colossais touros dos portais que protegiam as entradas da
lugar secreto, onde cst.io reunidas !Oda~ a~ maneiras de artifício, todos os ricos
e ocult:.is profundezas do L:1lgar; (neste lugar) reis predecessores, meus ances- cida de e do palácio; ou vemos o rei fiscalizando o trabalho de cxrração
trais, tinham exercido sua realeza sobre a Assíria, governado os sí1dítos de nas pedreiras, enquanto em suas inscrições diz ter inventado um novo
Enlil. e recebido ano após :mo o criburo do mundo inteiro. (Enrrctamo) ne- mecanismo para fundir colunas de bronze.
nhum deles tinha concedido sua cuidadosa atenção, o u solícita consideração, Senaqueribe tambt:m restaurou os remplos de Nínive e construiu as
ao pal:ício aí cxistenre, a sagrada e régia mor:.ida, que se comam excessiva- famosas muralhas da cidade, perfuradas por dezoito portões monumen-
mente pcquenn, (nem) volrara seu pensamento para traçar as ruas da cidade, tais. A cidadela e o palácio estavam protegidos por seu próprio sistema de
ampliar as praças, cavar um canal e planrar pomares. Então cu, Senaqucribe,
fortificações. Aos habitantes da cidade, cuja população engrossara muito
rei da Assíria, concebi um plano de acordo com a inspiração divina e ocupei
minha mente com sua realização. Dcporrei caldeus, arameus, geme das terras em conscqüência do afluxo de deport::idos provenientes de rod:1s as re-
de Mannaya, Que, Cilícia, Filistia e Tiro, que não tinham se curvado ao meu giões do impt:rio, o rei tinha dado lotes de terra recfm-irrigada e encora-
jugo, e impus-lhes rrabalho de corv1:ia e eles fizeram tijolos. Correi os juncos jado o cultivo de árvores de frutas não-nativas, incluindo vinhedos.
que crescem na Caldéia e tomei provid<': ncias para que as poderosas plantas Nínive começava agora a adquirir sua reputação de grande cidade real,
fossem transportadas pelos prisioneiros que fiz para cumprir o plano. com ru:is de traç:ido retilíneo, grandes bairros residenciais, esplêndidos
(... ) palácios26 e templos, cercados por campos verdejantes, pomares e jardins.
Um parque, a imagem do monte Amanus, onde colhi todos os ripos de Inspirado pela paisagem sulina da B:ibilônia, o rei ordenou que fosse cria-
especiari:is, árvores de frutos e :írvores para madeira, sustento dns montanhas do um mangue coberto de juncos, que ele povoou de java lis, cervos, pás-
e da Caldi:ia, cu plantei ao lado (do meu pal.ício).
saros e peixes, "os quais produziram filhotes cm abundância".27 O man-
A fim de planear pomares, dei aos habiramcs de Nínivc 2 pa1111 de terra e
gue, além de ser uma reserva natural, também preenchia a finalidade prá-
deixei gue os cultivassem. Para fazer os campos florescerem, rasguei monra-
nhns e vales com picaretas de ferro para ca\"ar um canal. Fiz com que do Host tica de absorver os excedentes de água gerados pelos seus cam.is depois
jorrasse uma corrente de ;'ígua que fluiu por 1 1/~ hora dupla. dos meses de inverno e de fornecer valiosos materiais de construção para
Ampliei Nínivc, a minha capital, alarguei suas praças, fiz ruas e avenidas o palácio real. Senaqueribe tambfm realizou experiências com algodão e
tfo luminosas quanto o dia. Na frente do porráo do Centro Urbano tinha fez relatos sobre as "ô.rvorcs produtoras de lã".
uma poncc construída com tijolo queimado e pedra calcária branca. (... f 1 As contínuas rebeliões no norte exigiram sua ausência por algum
tempo, e mbora ele delegasse o comando d:is forças a rmadas a altos funcio-
Ele estav:i particularmente empenhado cm :impliar :1 :írea de cultivo e nários que submeteram as províncias fronteiriças da Anatólia. Mão está
ced t:u à sua paixão por jardins botânicos e pomares. Para tal fim, desviou claro o que provocou o seu movimento seguinte contra o Sul da Babilô-

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1'1ES01'0TÁ~IIA
N { N I V 1. J> l·. ~ ~. N i\ l,l l l t, lt I H L ,\ :\ \\ li H li ;\ N 111 A 1. ( 7 IJ L /, 1 .! )

ni::i, mas preparou-se para uma forma complet:imcnrc nova de ataque Assíria as esránt:is de Bd (Marduk) e outras deidades, assim como colos-
assírio: por mar. Ordenou a construção de navios e fez com que fossem
sais montantes de valores dos templos babi lônios. Tal política teve o dese-
transportados por cerra até o Tigre, pelo qual desceram ao golfo Pérsico
jado efeito de pacificação. Durante os últimos sete :mos de seu reinado,
para desfechar um ataque de surpresa contra os seus velhos inimigos sul-
Senaqueribe encontrou pouca oposição. Mas a destrnição da cidade sa-
babilônios, sobretudo os caldeus, 28 que se tinham csrnbelecido no lado
grada de Babilónia exigia dele algum gesto par:i restabelecer o equilíbrio.
elamita (iraniano). Depois, Senaqucribe aguardou o momento adequado
Em seus últimos anos, portanto, ele se concentrou em projetos de cons-
para um regresso seguro de sua "armada", que parece ter sido bem-suce-
trução de templos e cm reformas religiosas, mais em Assur do que em
dida em destruir algumas cidades e fazer muitos prisioneiros. Esse evento
Nínive, com a intenção de fazer de Assur a nova Babilónia. Corno vimos
ímpar foi devidamente imortalizado nas paredes do palácio em Nínivc,
antes, edificou até a "casa das festividades" em deliberada imitação dos
mas essa escapada teve sérias consegüências, na medida em que o rei de
rituais babilônios para celebrar o Ano-Novo. 30
Elam, Hallushu-Inshushinak, decidiu vingar a violação do seu território
pelos assírios. Enquanro Senaqueribe estava celebrando aimb :i sua vitó- A morre de Assur-nadin-shurni, seu filho assassinado, a quem ele en-
ria na foz do rio Ulay (também representada nos relevos), 1--1:illushu-In- tronizam corno rei da Babilónia, teria mais repercussões. Por alguma ra-
shushinak desfechou um ataque contra :i Babilônia setentrional e captu- zão, Senaqueribe decidiu nomear Es~rhadon, o filho de sua principal
rou Sippar. Entrou cm Babilônia, apoderou-se de Assur-nadim-shumi, esposa e rainha Naqi'a-Zakutu, como príncipe herdeiro. Isso causou con-
filho de Senaqueribe e monarca reinante, e levou-o para Elam, onde pro- siderável ressentimento entre os seus outros filhos, que pensavam ter
vavelmente o matou. Depois nomeou um novo govem:mce de uma fomí- direitos mais à sucessão, em particular um que tinha sido o príncipe her-
lia local para ser o rei da Babilônia. deiro designado desde a infância. Scnaqueribe achou prudente retirar
A reação assírio foi rápida e o exército recuperou o controle da lhbi- Esarhadon de Nínivc, sem revogar, no entanto, a sua decisão. fsso insti-
lônia meridional, conquistou Uruquc e removeu as esráruas dos deuses da gou uma conspiração palaciana e, no vigésimo dia do décimo mês de 68 1,
cidade. Numa batalha cravada perto de Nipur, os assírios venceram e cap- Scnaqueribe foi morro cm seu "palácio sem rival". Como relatam as crô-
turaram o rei babilônio, que foi executado, mas Mushczib-Marduk, um nitas, o ato teve lugar "entre dois touros colossais", os maciços touros de
caldeu, assumiu a coroa da realeza na Babilônia e enviou uma delegação a barba encaracolada que, como espíritos guardiões, tinham por missão
Elam, carregada de tesouros, com uma soliciraçiio de ajuda contra a Assí- m:mtcr o mal longe d;is portas do palácio.
ria. O plano era unir roda a oposiçiio contra a Assíria e enfrentar o exér- A incansável experimentação de Scnaqueribe, seu interesse em solu-
cito de Senaqueribe. ções técnicas inovadoras e suas estratégias flexíveis fizeram dele um go-
A batalha culminante foi travada em Halule e, embora os assírios rei- vernante assírio incomum. Nos monumentos que criou para preservar
vindiquem uma vitória completa, foram incapazes de tirar proveito ime- sua própria memória, especialmente os relevos do palácio e as inscrições
diato de seus ganhos. Senaqucribe, portanto, decidiu lidar com o pro- reais, a criação de parques e os programas de irrigação se mostraram tiio
blema no sudoeste e organizou uma campanha contra os árabes, que esta- importantes quanto a guerra. Embora suas inscrições se alonguem sobre
vam sob a liderança de uma rainha. Ele capturou millrnres dt: camelos e as punições e tOl'turas infligidas a rebeldes ou a quantos se atreveram a de-
fez da rainha árabe sua prisioneira, e com essa freme pacificada e o rei ela- safiar o poder assírio, ele também manifestou um vivo interesse na topo-
mita fora de ação cm conseqüência de um derrame, pôde iniciar o cerco grafia e ecologia das ''terras inimigas". Gostava de mostrar que suas cam-
de Babilônia, que durou quinze meses, até 689. panhas e projetos tinham lugar num mundo real, não em algum espaço
A destruição de Babilónia foi cão sisrem.ítica quanto :.1 planificação de abstrato. Seu pai, Sargão, tinha iniciado o costume de incluir detalhes
N(nive o cinha sido. 29 Ele deu ordens explícitas aos seus soldados para topográficos em cenas de campanhas militares. Isso foi ainda mais desen-
matar, saquear e queimar, e para destruir as estátuas de divindades. E tão volvido por Senaqueribe, com detalhes quase etnográficos minuciosa-
engenhosamente quanto manipulam cursos de águu para fnzer a sua mente observados que mostr:lm os habitantes dos pântanos e mangues
cidade na Assíria desabrochar, desviou um braço do Eufrntes para inun- escondidos nos juncais, bem como o vestuário, a forma de penteado e os
dar a arruinada Babilônia. Para completar o aniquilamento, levou para a tipos de casas das regiões conquistadas por seus soldados. Os próprios

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M E ~ D 1' o T A M 1 /\ N f N 1 \' 1: 11 E S E N /\ Q li E ll I li L:: 1\ i\ $ S IJ 1( ll A N I I' i\ L ( 7 O .1 - (. 1 2 )

touros colossais exibiam agora apenas quatro paras cm vez d:1s cincc) l\kus irm:ios enlouqueceram e cometeram tudo o que repugna aos deuses,
ames mosrradas. 31 form:iram planos malignos cm Nínive e recorreram ao uso de armas, lutando
pcb soberania e investi11Clo uns contra os outros como bodes.
Ele também consentiu às esposas e aos filhos consideravelmente mais
Apesar das dificuldades, marchei rapidamente pela estrada para Nínivc
influência do que quaisquer outros reis ames delc. 32 A rainh:i Naqi'a-Za- mas, na cerra de H:migalb:itc (alta Mesopotâmia}, todas as experientes tro-
kutu, em especial, gozava de muitos privilégios e possuía uma enorme pas me barr:iram o c:iminho, afiando suas armas.
fortuna. Ela construiu um palácio para seu filho, Esarhadon, em Nínive, Mas o medo dos grandes deuses os desalentou; quando viram o meu tre-
mandou fazer suas próprias "inscrições reais" e solicitou vários rebtórios mendo at:ique, perderam a cabeç:1. Ishtar, a senhora da batalha e da guerra,
divinatórios não apenas para uso privado, mas também para ocasiões que ama o meu s:icerdócio, veio para o meu lado, quebrou-lhes os arcos e
estatais e militares. 31 Senaqueribe foi o único rei assírio a imortalizar sua dissolveu-lhes a ordem de bar:ilha. Soou ent:io no exército o grito: "Este é o
afeição por uma mulher. Sua última esposa, Tashmetum-sharrat, que nosso rei!"
Obedecendo ao seu (dos deuses) sublime comando, todos eles vieram
devia ser muito jovem quando ele a desposou, era a sua favorita durante
para o meu lado c formàram filcir:is atrás de mim, ajuntando-se como cordei-
seus últimos anos. Construiu uma residência especial para ela e chamou- ros e implorando minha soberania. Os assírios, que perante os grandes deu-
35
lhe "o pal:kio do amor, da felicidade e da alegria", um prolongamenro da ses me tinham jurado lealdade, aproximaram-se e beijaram meus pés.
ala sudoeste do pahkio a que se tinha acesso através de um portal guar-
dado por dois leões dé pedra cujos corpos estavam, como a maioria das Esse relato combina v:írios aconteômcmos numa só seqüência, mas
outras estátuas das portas, cobertos com uma inscrição. Esta última louva mostra que a aceitação de Esarhadon se seguiu à sua vitória sobre seus ini-
a beleza de Tashmerum-sharrat, a quem "a deusa Belet-ili tinha dotado migos. A identidade cio assassino de seu pai nunca é mencionada em suas
com uma graciosidade jamais concedida a qualquer outra mulher", e ter- inscrições, e os estudiosos com freqi.ic:ncia suspeitavam de que o próprio
mina com uma prece para que ela e o seu monarca "tenham vida longa e Esarhadon estivesse envolvido na trama. Por fim, o "mistério do regicí-
venturosa nestes palácios e sejam cumulados de bem-estar".-H dio" foi engenhosaml.!nte solucionado pelo historiador finlandês Simo Par-
Senaqueribe pode ter removido populações inteiras de seus solos p:í- pola. Há um relato na Bíblia em que se diz que um certo Adramcleque
crios, mas também assegurou seu assentamento em regiões adequadas ao (mais tarde citado também como Adramclos) foi o assassino.* Desco-
cultivo. A população de Nínive, cm particular, se beneficiaria da criação briu-se depois que uma carta babilônia continha novas pistas. Contava ela
de jardins públicos, plantações e campos irrigados. Ele se deleitava fazen- a história de como um súdito fiel pretendeu avisar Senaqueribe sobre uma
do florescer a flora e a fauna selvagens, outra característica incomum para conspiração para o assassinar e solicitou uma audiência, na qual lhe reve-
um monarca assírio. Até mesmo a sua morte foi extraordinária. Não sabe- laria o nome do conspirador. Foi admitido no palácio, levado à presença
mos o que levou Senaqueribc a preferir Esarhadon como seu sucessor, cm do rei, que, como era costume, t inha o rosto coberto por um véu, e reve-
detrimento de seus outros filhos. Sua morte entre os touros cuja miss:io lou-lhe o seu segredo, ignorando que estava na presença, não de Senaque-
era manter todos os males longe das portas do palácio foi um contraponto ribc, mas do próprio príncipe assassino, a quem a carta se refere como
para a morte de seu pai em campanha. Mas enquanto este último foi consi- Ardaninlil. Como Ninlil tornou-se Mulissu em assírio, o nome do prín-
derado um Unheilsherrsche1; urn soberano malfadado, Scnaqucribe, embo- cipe, Ardamulissu, pôde facilmente ser transmitido como Adramelos ou
ra vítima de parricídio, nunca foi negado por seus descendentes. Adramelcque nas fontes hebraicas, levando-se especialmente em conta
que as letras hebraicas "k" e "s" são muito parecidas cm inscrições da
Esarhadon (681-669) época.36
As fontes históricas para o reinado de Esarhadon são excepcional-
Quando as notícias da morte de Senaqueribe chegaram ao conhecimento mentc variadas. Além do que é exposto nas inscrições oficiais, as quais
do exilado príncipe herdeiro Esarhadon, este deu-se conta de que teria de
lutar por sua elevação ao trono. Contava com o apoio da nobreza assíria, • A passagem da Oiblia é a seguinte: "Sucedeu que estando ele [Senaqucribc1 a adorar na casa
que havia jurado lealdade ao sucessor escolhido. O seguinte trecho de de Nisroquc.. seu deus. Adramclcque e Snrazcr. seus filhos, o feriram il espada; e fugiram para
seus anais regisrra os acontecimentos: a terra de Araratc; Esarhadon, seu filho, reinou cm seu lugar.. (2 Reis, 19:37). (N. <lo T.)

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~tu o l' o TA t,t 11\ NfNIVE Ili', ~t.N ,\Qlll.1\1111'. ,\ 1\~~lJIU11\Nll•AI ('i ld - 11 1 !.)

combin:-im relatos de <:amp:111has militares, programas de consrrução e ira dt: Senaqucribc, mas na "gente pérfida" da Babilônia que saqueara o
atividades religiosas (embor:l, infelizmente, niio em ordem cronológica), tesouro do templo a fim de subornar os clamitas para que atacassem a
existem cartas, documentos administrarivos e um grande número de rela- Assíria. Isso, argumenta ele, enfureceu tanto Marduk que este puniu sua
tos oraculares. A Crônica Babilônia também insere acontecimentos omiti- cidade sem fé decretando setenta anos de infortúnio. Somente através de
dos d:1 historiografia oficial assíria. augúrios favoráveis ele mudou de idéia em relação a Babilônia, abrevian-
A principal façanha milit:lr de Esarhadon foi :1 invasão do Egito.37 do os setenta anos para onze.38
A razão primordial parn o ataque foi o fato de que, durante a dinastia Esarhaclon também restabeleceu o status especial da cidade que a
cucbirn, o Egito voltou a reivindicar a posse <la região costeira da Síria, isentava de v:írios impostos e do recrutamento, e teve o cuidado de não
que se encontrava sob domínio assírio. A guerra contra o Egito durou colocar os deuses assírios acima dos da Babilônia. A decisão de devolver
muitos anos e não esteve isenta de reveses. Em 1671, após cuidadosos as estátuas scqüestrada.s de deuses babilônios foi de suprema importância.
preparativos, os assírios realizaram um esforço combinado. Uma grande E ra 11m assunto tão delicado que um número interminável de decisões
força atravessou o deserto do Sinai, escoltada por cameleiros árabes que oraculares foi necessário para determinar com exatidão o momento e o
tinham sido obrigados a abastecer de água o exército e seus cavalos. Após procedimento cercos.39 Esses esforços para combinar o severo controle e
três batalhas, Mênfis foi capturada e o faraó Taharka fugiu. Esarhadon os sinais de respeito pela santidade da cidade e seus habitantes (ele tam-
nomeou então homens de sua confiança como governadores e adminis- bém permitiu que babilônios deportados regressassem a seus lares e recu-
tradores e voltou para casa carregando um subsrancial butim da capital perassem seus bens) parecem ter sido eficazes, visto que nenhuma pertur-
egípcia. bação importante ocorreu no país durante o resto de seu reinado.
A situação nas províncias do norte e do nordeste, importantes como Uma vez que a reconstrução de Babilônia foi considerada uma priori-
fontes de metais e cavalos, tinha ficado cada vez mais difícil em resultado dade, os programas de construção de Esarhadon na Assíria foram modes-
dos movimentos maciços de novos povos, muitos dos quais falavam lín- tos cm comparação com os de seus predecessores. Achou judicioso não
guas indo-européias, incluindo os cimérios, os manianos, os medos e os hostilizar o ::;acerdócio da cidade santa assíria de Assur e empreendeu
citas. Eles ameaçaram e atacaram províncias e estados vassalos assírios, substanciais o bras de construção 110 templo de Assur. Em Nínivc, ampliou
que apelaram para a ajuda da Assíria. Os recém-chegados também foram o arsenal, "porque (o arsenal), que os meus régios ancestrais construíram
rápidos em explorar qualquer possibilidade de aliança com o poder assí- para a manutenção de equipamentos militares, guarda de cavalos e mulas
rio, se a oponunidade surgisse, embora ambas as partes estivessem igual- em estábulos, depósito de carros de guerra, de armas e de despojos do ini-
mente cônscias de que tais arranjos tinham fortes possibilidades de ser .
migo, · 11a f.1ca do ex1guo
tm , dcma1s. '' .40
efêmeros e não merecer grande crédito. Apesar do êxiro de sua política na Babilônia, de sua vitória no Egito e
O tratamento da Babilônia por Esarhadon estava em acentuado con- d.i relativa e::;tabilidade de suas fronteiras, Esarhadon era perturbado por
traste com o de seu pai, embora não estivesse disposto, em absoluto, a um profundo sentimento de insegurança e apreensão. Isso transparece
renunciar ao domínio do reino meridional pela Assíria. Pelo contrário, em suas inscrições oficiais e ai.nda mais nas cartas para os seus conselhei-
concentrou-se em melhorar a eficiência de sua administração e em resta- ros, físicos e áugures. Mais do que qualquer outro governante mesopotâ-
belecer alguma confiança na boa vontade da Assíria. Indicou o seu primo- mio conhecido, ele tinha plena consciência da natureza precária da posi-
génito, Chamasb-Chumukin, para exercer as funções de futuro rei desig- ção real como mediador supremo entre a humanidade e os deuses, e a
nado da Babilônia e confiou-lhe a supervisão da administração assíria. necessidade ele conhecer a vontade divina. Já no terceiro milênio vinham
Para demonstrar ainda mais sua política de apaziguamento, Esarhadon sendo usadas várias formas de adivinhação, como tirar a sorte, a fim de
investiu pesadamente na restauração de cidades da Babilônia e, em espe- obter rcsposras afirmativas ou negativas para questões específicas. Tal
cial, na reconsrrnção da capital, que seu pai tinha saqueado. Reconstruiu "randomizaçáo da tomada de decisões", como os antropólogos caracteri-
o templo de Esagila e o seu zigurate, o Caminho Processional e as mura- zam o caráter aleatório da adivinhação, foi usada para a nomeação de
lhas da cidade. Nas inscrições que gravou para as novas edificações, teve funcionários importantes, sobretudo quando era grande o número de c.m-
sempre o cuidado de pôr a culpa pela destruição da cidade sagrada não na didatos com as devidas credenciais. À medida que os governos iam fic111-

2.54 255
M ES O I' O TA ~11 A N [ N 1\' 1. 1) E ~EN/\ Q \ 11: ll Ili r ,\ AS S \1ll111\ N I r A 1. (7 11 1 · r, I ! )

<lo cada vez mais aurocráricos, maiores eram também os esforços 1wcessá- ,omunicar com a hum:inidadt:, os deuses também podi:1111 fabr direta-
rios para comprovar as pretensões de poder legítimo. A adivinhaçao tor- mente i:om uma pessoa num estado de rcceprividade, que ou esta\'a ador-
nem-se um veículo muito importante para demonstrar que todas :is mecida ou em transe. Gudea de Lagache, no fi nal do terceiro milênio,
significativas medidas legisbtins de interesse público eram romadas com descreveu como procurou obter desse modo a aprovação do dellS da
aprovaç:io divina, através do uso sistemático de augúrios e sentenças ora- cidade para a reconstrução de um templo.
cu l:ues. Os procedimentos para determ inar as intenções divinas t inham- Na :ilta Mesopotâmia, talvez sob a influência de países mais ociden-
se rnnvcrrido numa v<:rdadeira cil'.ncia nos dias de Esarhadon. tais, o cosmme da profecia foi estabelecido, pelo menos, no início do
A base epistemológica para a adivinhação era a idéia de que os deuses segundo milênio, como as cartas de Mari dcmonstr::un. No caso da profe-
comunicam suas intenções e preferências deixando t0da espécie de indí- cia, pessoas s<:m nada que as distinguisse como pert<:ncenres a um:1 classe
cio~ ocultos que podem ser lidos e entendidos por especialistas."11 Desde à parte e sem qualquer tipo de treinamento especial, mulheres em sua
os planer::is até as "coisas rastejantes na terra", todo o universo podia ser grande maioria, pod iam rornar-se porta-vozes de um deus. Suas declara-
visco como codificado com mensagens acerca do futuro. Isso significava çôes num est::i.do de transe eram freqüente mcnte cndcreçad:1.s ao rei e
que qu:ilquer observação de algo incomum era prodigiosa e tinha que ser constituíam u m freio cfic:iz contra qualquer abuso de poder. Durante o
rcgistrada. No transcurso de muitos séculos, quantidades gigantescas llt: período Neo-Assírio, 11:1 época de Esarhadon, er:im levadas cm conta
dados foram coletadas e, por fim, sistematicamente organ izadas para for- todas essas forma~ de adivjnhaç5.o e profcci:1, :'lssim como a astrologia,
necer um paradigma de interpretação reunido em plaquetas cuneiformes uma disciplina relativamente nova. Quando o poder passou a estar inten-
e classificado em séries de acordo com :is fontes de uma dada observação: samente conccnrrado na p<:rsonalidadc do r<:i, este se tornou o principal
summa izbu lida com as deformidades físicas, por exemplo, e summa alu objeto de indagações, assim como, em menor med ida, os membros de sua
com as formas incomuns de comportamento humano e animal. Os deuses família . Um r<:i forte e autoconfiante podia man ipular os adivin hos e
também podiam ser formalmente solicitados a comunicar-se através Je astrólogos para realizar sua p rópria vontade, mas Esarhadon, embora não
um meio específico num cenário particular. Os padrões produzidos por fosse, cm absoluto, um fr:.1co de espírito, e r a consciencioso denu is ou an-
óleo na água o u a fumaça do incenso podiam, portanto, ser atentamente sioso demais para agir _independentcmt:ntc.4 2 Eis o que ele tem a expor
examinados para a obtenção de respostas. Entretanto, o método pr efe- acerca de sua realeza:
rido na Mesopotâmia era a observação das vísceras de animais, cm espe-
cial o fígado de cordeiros seledonados para esse fim. Os deuses eram con- Sin e Chamash, os deuses gêmcos, prosscguiram cm seus cursos mês após
vidados a inscrever sua mensagem dentro do cor po de um animal sacrifi- mês, nos 13º (?) e 14" dias ap;ueceram regularmente juntos. Vênus, a mais
cal que, após ser abatido, tinha as entranhas observadas por especialistas brilh:intc das estrelas, surgiu no ocidente no percurso das estrelas de Ea, para
que haviam passado muitos anos estudando corno decifrar a escrita fortalecer a terra e apaziguar os deuses; ela chegou ao Hypsoma e desapareceu.
divina. M:i.rre, quc decide o dcsrino do Amurru, rcfulgiu no percurso das csrrclas de
E:i., mostrou a regra que deu força aos reis e a seu país como seu sinal. Mensa-
Como isso era mais irregular do que o mais antigo código binário de
gens de êxtase eram-me constantemente envia,bs. Apareceram as forç:i.s
decisões "sim e não", as interpretações podiam ser tão enigmáticas quan- favoráveis que anunciavam a fun dação do meu trono sacerdotal para sem-
to a "mensagem" original. Uma resposta vaga ou dúbia a uma indagação pre. Comunic:i.ram-sc comigo repetidas vezes em sonhos e favores divinos.
específica podia ser recusada sob a alegaçã0 de que a estripaç:io tinha sido Anunciaram a fundação do meu trono(?) e governo aré a velhice. Quando vi
executada de maneira muito pouco profis:ional ou de que a lguma imper- esses augúrios favoráveis, aumentou a conJiança cm meu coração e o júbilo
feição ou mácu la tinha aderido ao anirual ou ao áugurc, invalidando cm meu espíriro.~3
assim o resultado. É desnecessár io dizer que outros adivinhos não se fize-
ram de rogados para expressar suas dúvidas sobre os procedimentos de Entretanto, raramente seu espírito se mantinha cm repouso por nrni-
colegas e podiam levar muito tem po até chegar a uma conclusão satisfató- ro tempo e era constante o seu desejo de reconforto. Eis uma mcns:1gL·111
ria, quando o problema, a essa altura, já poderia estar solucionado por de um profeta a serviço de Ishcar de Arbela, na época um centro de n il1 u
omros meios. Em contraste com esse modo esotérico e "científico" de se especializado em inspirnda profecia. Ao contrário dos profetas do pní11

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MES 0 1' <l TÂMJ;\ N f N I V E P E S r. N A Q li E I\ 1111·: i\ 1\ S S lJ R li A N I I' i\ 1. ( 7 U5 - 1, 1 2 )

do d e :M:ui, esses homens e mulheres eram sumamente educados e muito ser discutidos. Obviamente, isso permitia que os seus ministros e generais
versados em literatura babilônia, como mostram suas mensagens cuida- assumissem as rédeas do poder nesse ínterim, o que podia muito bem ter
dosamente compostas: influído de tal maneira na disposição ansiosa de Esarhadon, a ponto de o
excluir periodicamente do poder.
Eu sou a Senhora de Arbela: Para Esarhadon, que [Ishtar] de Arbcla cumulou de
favores. Não pudeste confiar nas prévias declarações que te fiz? Agora podes Assurbanipal e a queda de Nínive
confiar também nesta mais recente.
Louva-me! Quando a luz do dia declina, que acendam archotes. Louva-me diante Esarhadon era, porém, arguto o bastante para resistir à excessiva in-
deles! terferência e estava determinado a regulamentar sua sucessão de modo a
Banirei o tremor de meu palácio. Comerás alimento seguro e beberás água segura eliminar a espécie de luta violenta que tinha custado a vida a seu pai. Em
e estarás seguro em teu palácio. Teu filho e teu ncro governarão como reis no 672, reuniu representantes de todas as partes do império e os fez jurar
regaço de Ninurra. perante os grandes deuses e os deuses de seus respectivos países queres-
Pela boca de La-dagi-ili de Arbela. 44 peitariam os seus desejos e seriam leais aos seus sucessores. 48 Assurbani-
pal, o neto da formidável rainha Naqi'a, tinha sido indicado como prín-
Qualquer doença na família real era causa de grande preocupação. cipe herdeiro da coroa da Assíria e passara a residir na Casa da Sucessão
Não eram consultados só os físicos, mas também os adivinhos, que (bit reduti) em Tabisu. Seu irmão mais velho, Chamash-Chumukin, tam-
tinham de estabelecer se o tratamento pretendido seria eficaz. O seguinte bém um filho da esposa babilônia de Esarhadon, Echarramat, seria rei da
excerto é de um pedido de oráculo: Babilônia.
Em 669, a situação no Egito deteriorara-se a tal ponto que tornou
[Deve Assurbanipal, o príncipe herdeiro do] Palácio da Sucessão, inevitável uma nova ofensiva militar. Esarhadon partiu para o que seria a
[beber este remédio que] esrá colocado [diante] de vossa grande [divin]dade, sua última campanha, pois faleceu no caminho. Naqi'a convocou de ime-
[e bebendo este remédio ele será] resgatado e sua vida poupada? diato os vassalos que tinham jurado obediência a seu filho e os fez confir-
[Ele viverá e ficará bom? Será... poupado e escapará? [Será a doença] de seu mar seu juramento, de modo que Assurbanipal foi devidamente coroado
[corpo] rechaçada? Ela (o) deixará? É vossa grande divindade sabedora
disso? rei da Assíria em 668. Sua primeira prioridade foi restabelecer o domínio
(... ) assírio no Egito, começando por enviar tropas a fim de sufocar insurrei-
Eu te pergunto, Chamash, grande deus, se esse remédio que est.1 agora colocado ções contra as guarnições assírias e desencadeando depois uma invasão
diante de tua divindade, e que Assurbanipal, príncipe herdeiro da Casa da total que culminou com a queda de Tebas em 663. Isso acarretou um
Sucessão [está para] beber - [se ele beber esse remédio será] salvo, (e esca- butim gigantesco, marcou o fim da Dinastia Cuchita e garantiu que não
pará). F~z-tc presente neste carneiro e coloca (nele) uma firme resposta posi- haveria mais interferência egípcia na Sírio-Palestina.
tiva .. . h
As dificuldades com os cimérios, os manianos e os medos continua-
ram, tal como ocorrera durante o reinado de seu pai, e Assurbanipal rea-
Outra manifestação do senso de vulnerabilidade de Esarhadon foi a giu com uma combinação de diplomacia e agressão para proteger suas
revitalização do antigo costume de nomear um "rei substituto" (sar puhri) fronteiras do norte e do nordeste. O conflito mais problemático que
para ocupar o trono durante tempos aziagos. Na parte final do seu rei- enfrentou, porém, foi uma guerra contra a Babilônia49 depois que vários
nado, isso aconteceu em diversas ocasiões. 46 Os eclipses de estrelas e da fatores contribuíram para um crescente afastamento entre ele e seu
Lua~ por exemplo, eram considerados especialmente perigosos, uma vez meio-irmão. Sem dúvida, Chamash-Chumukin, indicado originalmente
que podiam resultar na morte do rei, mas era possível ludibriar a morre, para ser o sucessor de seu pai no trono imperial, nutrira profundo ressen-
levando-a a reclamar o rei errado. Um fragmento sobrevivente indica que timento quando seu irmão mais moço foi preferido. Além disso, a ausên-
o infeliz substituto tinha que morrer no final do seu falso reinado. 47 cia de obrigações de Assurbanipal em relação à Babilónia foi interpretada
Durante esses períodos (que poderiam durar vários meses), o verdadeiro como um deliberado menosprezo. Ele tinha sido moroso cm responder
rei era tratado como um "camponês" e os negócios de estado não podiam aos apelos de ajuda quando elamitas e várias tribos invadiram territ ório

25 8 259
/\lESOl'OTA ,\11 A N f N I V L 1) E ~ E N ,\ t ~ \ 1L R I li E A A S S U R U A N I I' A L ( , U5 - f. 1 ! )

babilônio, e foi permitido que a restauração de deuses e mobiliário de descmpenhav::i vários papéis. Como os relevos mostram com clareza,
culto iniciada por Esarhadon fosse decaindo ano após :mo. Chamash- dezoito leões foram soltos numa paliçada construída na planície diante
Clrnmukin passou a identificar-se com a c:1.usa da independ2ncia babilô- das muralhas da cidade, correspondendo sem dúvida às suas dezoito por-
nia e recrutou o apoio de vários outros grupos políticos numa coalizão tas. A morre de dezoito leões "resguardava assim, simbolicamente, cada
antiassíria que incluiu Elam, a "tetTa do mar" caldéia, assim como tribos saída da c:1pital, toda porta e estrada que conduziam para fora dcla". 50
aramaicas e árabes. Depois dos sucessos babilônios iniciais, eles começa- A herança mais duradoura do reinado de Assurbanipal foi a sua cole-
ram a sofrer reveses e a aliança se desfez. A própria capital foi sitiada, com ção de plaquetas, ou a chamada "biblioteca", descoberta por Rassam. Foi
grandes provações e sofrimento par:1 :1 população. Após dois anos de sugerido que, como Assurbanipal niio estava originalmente destinado à
resistência, Babilônia caiu em 648. Nada mais foi registrado sobre Cha- realeza, teve uma educação mais adequada para as funções de um alto
mash-Chumukin, que provavelmente morreu na sua cidade. dignitário ou sacerdote, o que acarretava saber ler e escrever:
O alvo seguinte de Assurbanipal foi El::im, outro antigo inimigo da
Assíria. À frente da nüquina de guerra assíria, capturou Susa, a velh:1 Sou versado na arte do s:íbio Adapa; estudei a tradição secreta de roda a :me
capital elamita, e reduziu-a a um monte de escombros. Dcpois, antes de dos escribas; conheço os pom:nros celestes e terrestres. Discuti com compc-
::igir para vingar-se dos outros aliados d:1 Babilônia, os árabes, ordenou tênci:1 110 círculo dos mestres, argumentei sobre (a obra) "Se o Fígado é um~1
que se espalhasse sal por todos os campos devastados para garantir que o Correspondência do Céu" com peritos cm adivinhação. Posso resolver as
mais complicadas divisões e multiplicações que não rêm solução. Li inrricadas
lugar permaneceria inabitável para sempre. Foi o fim de Elarn 1.:omo enti-
plaqui.:tas cm obscuro sumério ou ac:idiano, difíceis de decifrar, e examinei
dade política, mas isso não resultou em paz para a Assíria, porque no inscriçõC:s seladas, obscur;\S e confusas, inscrições essas feitas cm pedra antes
vácuo criado por sua destruição vieram os medos. A pressão continuou do dilúvio.<t
aumentando de todos os lados, mas a aus2ncia de fontes escritas para os
últimos anos do reinado deAssurbanipal significa que não temos conheci- Assurbanipal certamente nutria grande interesse por todos os ramos
mento sobre se ele transferiu sua residência para Harran, ciente dos peri- do saber mcsopotâmio e deu ordens para que se requisitassem plaquetas
gos que o interior da Assíria enfrentava, ou se permaneceu em Nú1ive até dos vários ccnrros de escribas babilônios, acumulado assim a maior e mais
sua morte. completa biblioteca cuneiforme. As obras de referência contidas na biblio-
Também deixou aí a sua marca através da construção do último dos teca de Nínive facilitaram imcnsarnenre a obra dos estudiosos ocidentais
grandes palácios assírios nos terrenos do bit reduti onde passara a juven- 2.500 anos depois em suas tentativas para decifrar o "obscuro sumério e
tude, chamado o Palácio do Norte pelos exploradores cio século XIX. acadiano".
Suas paredes foram forradas de relevos e ele ergueu numerosas estámas; Tal como seu pai, Assurbanipal era um entusiasta por adivinhação,
plantou jardins com árvores exóticas. Um famoso relevo mostra-o repou- profecias em estado de transe e oráculos oníricos. Estes últimos parecem
sando à sombra de um vinhedo, acompanhado de uma esposa que pode ter despertado seu especial interesse. Mas, embora as mensagens dos adi-
ser Assursharrat, muito conhecida de uma estela com inscriç5o que ela vinhos e profetas fossem repletas de garantias tranqüilizantes ("Não
erigiu em Nínive. O estilo artístico do período de Assurbanipal exibe um temas, Assurb:rnipal"), a qued:1 do grande império ocorrcri:1 poucos anos
formidável senso para o espacejamento dramático de figuras, e os animais após s11:1 mo rte. Ainda há muita confusão sobre a scqüência de aconteci-
e as plantas, cm especial, são representados de uma forma realista e pu- mentos e sobre quem governava a Assíria nessa época, mas sabe-se que na
jante de vida, em contraste com a maneira mais estática e estereoripada de Babilônia um governante da Terra do Mar chamado Nabopolassar, que
representar seres humanos. As cenas de caça ao leão, em particular, t<:m tinha iniciado sua carreira como funcionário a serviço da Assíria, decla-
sido objeto de numerosos comentários. A prática das caçadas reais, sobre- rou a independência e expulsou o último governador assírio. Derrotou os
tudo as de leões, não deve ser vista como nm mero passatempo aristocrá- mania nos, que nessa época eram aliados da Assíria, e em 614 concluiu um
tico. Era a representação pública de um dos antigos deveres do rei: prote- tratado com Cyaxares, rei dos medas. Invadiram juntos a Assíria e desferi-
ger do mal os seus súditos. A ligação simbólica foi sublinhada pelo fato de ram sérios ataques contra as suas principais cidades. Nínive e Calá resisti-
que a caçada ocorria 11:1 época do festival do Ano-Novo, qu:rndo o rei ram com êxiro, mas Assur foi destruída. A contra-ofensiva do rei assírio,

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N Í N I V Is 1l F. S E N 1\ Q l) E R l li 1: 1\ /\ ~ ~ 11 li li A N I I' 1\ 1. (7 ll ,\ to IJ)

Sin-sarichkun, apoiado por :1liados eiras, só teve por cfcit<l provocar tensão podia sc.:r atenuada por unu vasta remoção de habitantes, 111::is os
outra expedição punitiva das forças conjunt:is medo-babil6nicas. Em :issírios não dispers:iram as comunidades existentes. Pelo contrário, as-
612, suas hostes, aumenrad:1s por vários contingentes tribais, desfecha- sentaram-nas cm núcleos urbanos e de acordo com as estruturas de parc:n-
ram um inesperado ataque contra Nínive. O cerco durou apenas três tcsco cxistcmcs.55 Apesar do pluralismo étnico e cultural da nova popula-
meses e, como as escavações da equipe de Berkdey mostraram, os defen- ção, tanto em Nínive quanto nas outras cidades reais, for::un feitos esfor-
sores tentaram desesperadamente estreitar os portões das muralhas. 52 ços para integrá-la na formação de uma comunidade. Como diz Sargão,
Esgueleros de guardas, completos com flechas encravad::is nos ossos, fo- ele tentou converter o povo de Dur-Sh:irrukin em "uma só boca" com a
ram encontrados empilhndos no interior das dm::iras de cada portão. ajuda dos escribas assírios. 5~ N:ituralmente, a elite permaneceu assíria,
O próprio tamanho da cidade militou conrra qualquer defesa efica,, e embor:i a asccns:io de :ira.meus às mais :iltas posições da administração
havia um número excessivo de portões, dos qu::iis talvez muitos deles não mostrasse a inexistência de b:irreiras intrínsecas para que as minorias
estivessem nas melhores condições. O grande número de sitiantes e os alcançassem um status elevado. Era pol ítica oficial fazer com que depor-
ataques simultâneos em vários pontos selaram o destino de Nínivc. tados fossem "contados como :issírios", passíveis de tributação mas tam-
De acordo com a Crônic:i Babilônia, Nabopolass:ir instalou a corte bém com os di reitos de cidadãos. Como sublinha Grayson, "os assírios
no p:ilâcio real por alguns meses, provavelmente a fim de supervisionar o podiam permitir-se ser tolerantes cm relação aos estrangeiros, uma vez
transporte de objetos de grande valor para a sua própria capital ames de que dominavam a maiori:i daqueles que conheciam''. 57
dar o sinal p:ira a destrniç:io da cídadc. Regressou a Babilônia com as cin- N ínive em uma experiência social tanto quanto Uruquc o fora no
zas dl! Nínive. A cidade foi incendiada, seus templos e estátuas despedaça- quarto milênio, sendo comum a :imbas um compromisso coletivo na cria-
dos, antes c.lt:, num aro final de ving:inça, Nabopolassar a inundar num ção física da cidade. Os projetos de construções monumentais simboliza-
gesro de aniquilação simbólica. Que os babilônios possam ter usado os vam a ideologia corrcnrc, e vale lembrar que Nínivc já tinha sido antes
cana!s de abastecimento de :igua cujdadosamcntc construídos por Sena- uma cid:ide no período Uruque. No relato bíblico, Nínivc tornou-se um
quenbe para reverter agora o tr:namento com que ele ramo beneficiara :i signo p:ira a transitoriedade da ambição humana. Da perspcctiva de um po-
Babilônia deu à história um final de cunho irónico. vo submetido, como eram os hebreus nessa época, a queda dos poderosos
Esse foi o fim da história metropolitana de Nínive: um imenso campo era expcriment:ida como libertação.
de ruínas que cm séculos posteriores foi p:ircialmcnre habitado. No relato Na longa história de Nínivc, que está longe de terminada, destaca-se
bíblico de Jonas, Nínive foi descrita corno uma cidade "de jornada de três um:i curiosa ambigüidadc.: e um desejo de superar as dicotomias existen-
dias", mas não foi apenas seu tamanho ou mesmo seus edifícios públicos tes. A deusa de Nínive, Isht:ir, er:i :ií cultuada "ostentando uma barba como
esplendidamente equip:idos ou seus exuberantes jardins que tornaram Assur", mas, quanto :io m:iis, tinha form:is feminin:is. Nos séculos VIII e
Nínive e outras importantes cidades assírias tão especi:iis. Elas tinham VII era uma cid:ide santa e, ao mesmo tempo, o quartel-general do exér-
populações grandes e cosmopolitas; cm torno de 120.000 é a estimativa cito; cr:i a capital da Assíria e, no entanto, habitada predominantemente
5
no caso de Nínive_ .1 Uma vez que os :issírios tinham decidido criar uma por cstr:ingeiros; era uma cidade da Mesopotâmia setentrional com áreas
capital, tiveram que realizar cm poucos :1nos o que .levara milênios em de brejo como no golfo Pc;rsico e florestas como na Anatólia. Suas tr:idi-
o_u:ros l~garcs. Tinham enormes recursos à sua disposiç:io, incluindo ma- ções intelectuais originaram-se na Babilônia e seus homens de saber dis-
tcnas-prnnas e dispendiosos materiais para mobiliário e demais apetrc- corriam sobre variantes de traduções do antigo sumério, ao passo que a
c~10s domésticos, mas o mais import:intc de todos os recursos em a capa- língua falada nas mas era o aram:iico.
cidade de mo bilizar uma incrível forç:i de rrabalho que, ao mesmo tempo Até mesmo a memória de Nínive vc.:io a ser distorcida durante os
fornecia habitantes e cidadãos imediatos p:ira a rccc;m-cri:ida mctrópol~. ' períodos Grego e Helenístico. Muitas das c:iracterísticas especiais atribuí-
"Para a grande cidade de Nínive foram trazidos deportados de Hila- das :'t Babilónia eram, na realidade, ninivistas: Semíramis era Samurra-
ku (Cilícia), Manna, Filistia, J3abilônin, Arábia, Chúbri:i e outros luga- mat, a cspos:i de Salmanasar V, que, de acordo com uma esteb, acornpa-
res"/' como registrou Scnaqucribe. Foram removidos à força de muitas nh:iva o marido n:is c:impanh:is milit:ires.58 É muito mais provável que os
partes diferentes do império, quase sempre :ireas problcnúticas onde a "Jardins Suspensos da Babilônia" se refiram a.o complexo artificial de

262 263
:-.IESOPOT,\.\!I:\

plantações e obras hidráulicas criado por Senaqucribc cm Nínivc.H Nu-


ma fomosa pintura mostrando o rei Assurbanipal cm repouso no seu jar-
dim, escutando mulheres que tocam música e sendo refrescado por su:i
esposa, que :igic:i um longo :ibano, vê-se a cabeça dcgobcb de seu arquii-
nünigo pendente de umn árvore. Na Nínive atual, absorvida pel::t cidade
de Mossul com suas minorias curdas, os escassos remanescentes do palá-
cio de Stnaqucribc estão postos a descoberto como que para desafiar as
sançócs inrernat:ion ais com que se pretende hum ilh:ir um ditador
m oderno que sente ter um parentesco inato c9m os soberanos assírios e
gosra de ser n:rratado posando e vestindo-se como os antigos senhores de
Nínivc. Tais incongruências e contradições, meio cômicas, meio trágicas,
poderiam ter divertido ,1 barbuda Dam:.i de Nínivc. 10

A Bíblia e alguns aurores clássicos deixaram descrições de Babilônia que


foram p or centenas de anos as principais fomes de qualquer conheci-
mento sobre a cidade. Os relatos bíblicos da Mesopotâmia refletem clara-
mente a memória de um povo oprimido pelo imperialismo assírio ou
babilônio. A Babel da Bíblia é, portanto, sinônimo de decadência, de
insensibilidade e prepotência políticas, e de excessos da vida urbana cm
geral. Os anos de cativeiro eram record:.idos com acrirnônia e não havia
entusiasmo por qualquer das maravilhas arquitetônicas da antiga cidade.
Pelo contrário, o grande zigurate - o protótipo da Torre de Babel - tor-
nou-se um poderoso símbolo de insensatez e arrogância humanas.
Os autores gregos, por outro lado, com destaque para Heródoto,
adotaram urna atitude muito diferente a respeito da civilização oriental.
Suas descrições de edifícios e costumes revelam um interesse quase etno-
gráfico totalmente ausente nos escritos bíblicos. Também recolheram nar-
rativas e tradiçôes, como as histórias de Semíramis e Ninus, e classifica-
ram os "Jardins Suspensos da Babilôni:.i", que nenhum deles tinha real-
mente visto, como uma das Sete Maravilhas do Mundo.
Uma das primeiras descrições européias das ruínas de Babílônia, que
tinham conservado o nome de Babil, data do século Xll da nossa era.
O rabino Benjamim de Tudcla tinha viajado para a Mesopotâmia a fim de
visitar as comunidades judaicas aí existentes e fez um relato do que viu.
Mais tarde, o inglês.John Eldred, cm 15 83, e o italiano Pictro dclla Vali<! e
o francês J. 8'.:aud1amp, no final do século XVIII, também deixaram rela-

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