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A metodologia do projeto

de defesa dos direitos da criança


e do adolescente do Cendhec
COLEÇÃO CADERNOS CENDHEC – VOLUME 21

Os Cadernos Cendhec têm por objetivo divulgar a reflexão deste


centro sobre a sua atividade, no âmbito das suas linhas de atuação:
promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, e direito à cidade.

Títulos já publicados:

• [CADERNOS CENDHEC n° 1] Conselhos Municipais de Direito


• [CADERNOS CENDHEC n° 2] Educação para todos: sugestões para autogestão
• [CADERNOS CENDHEC n° 3] Encontro de irmãos: fragmentos de história
• [CADERNOS CENDHEC n° 4] Cidadania e direito à educação: memória de uma experiência de autogestão
• [CADERNOS CENDHEC n° 5] Solidariedade e cidadania/Direitos humanos e cidadania
• [CADERNOS CENDHEC n° 6] Cidadania e educação teológica: memória de uma experiência
• [CADERNOS CENDHEC n° 7] Uma história da criança brasileira
• [CADERNOS CENDHEC n° 8] Sistema de Garantia de Direitos: um caminho para a proteção integral
• [CADERNOS CENDHEC n° 9] Implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Estado de Pernambuco: pesquisa qualitativa
• [CADERNOS CENDHEC n° 10] Terra pra que te quero? A regularização fundiária segundo a Lei do Prezeis
• [CADERNOS CENDHEC n° 11] Onde está Kelly? O trabalho oculto de crianças e adolescentes exploradas nos serviços domésticos na cidade do Recife
• [CADERNOS CENDHEC n° 12] Entra Apulso: um breve histórico
• [CADERNOS CENDHEC n° 13] A família esperta: como conhecer os sinais de violência sexual em crianças e adolescentes
• [CADERNOS CENDHEC n° 14] Pesquisa sobre violência sexual contra crianças e adolescentes em Pernambuco: relatório de pesquisa de campo
• [CADERNOS CENDHEC n° 15] Elas não brincam em serviço: 12 histórias de trabalho doméstico de crianças e adolescentes - Cartilha para jovens multiplicadoras
• [CADERNOS CENDHEC n° 16] Elas não brincam em serviço: 12 histórias de trabalho doméstico de crianças e adolescentes - Cartilha para educadoras
• [CADERNOS CENDHEC n° 17] Usucapião coletivo: organização popular pelo direito à moradia
• [CADERNOS CENDHEC n° 18] Prezeis em revista
• [CADERNOS CENDHEC n° 19] Construindo um novo olhar
• [CADERNOS CENDHEC n° 20] Revista Se Liga, Recife!
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

A metodologia do projeto
de defesa dos direitos da criança
e do adolescente do Cendhec

Recife
2011
Copyright © 2011, Cendhec

Primeira edição

Todos os direitos reservados. Qualquer parte deste livro pode ser reproduzida ou utilizada para fins educacionais, desde que seja mencionada a fonte.

Apoio
Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento (EED)
Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife (Comdica/Recife)
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco (Cedca/PE)
Terre des Hommes Holanda

Produção editorial
Edição e revisão técnica: Marcelo Teles de Mendonça
Revisão ortográfica e gramatical: Betânia Jerônimo
Projeto gráfico: Paola Fernandes - Z.dizain Comunicação
Capa:
Reprodução da obra “Namorados (esmalte sintético/tinta acrílica sobre tela, tamanho 1,00m x 1,20m, Brasil, 2008), de autoria de Helder de Oliveira.
Obra integrante da campanha “Ler, ver, ouvir e agir”, promovida pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced).
Foto: Douglas Mansur

C 395

CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL.


A metodologia do projeto de defesa dos direitos da crianças e do
adolescente do Cendhec / CENDHEC. _
Recife, 2011.
92 p.: 21 x 29,7cm.
ISBN 978-85-89162-04-3
1. Direito da criança e do adolescente. I. CENDHEC – PE. II. Título.

CDU 342
CDD 342

Uma publicação do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec)
Rua Galvão Raposo, 295 – Madalena – Recife/PE.
CEP 50610-330
Fone: (0**81) 3227-4560
Fax: (0**81) 3227-4560
E-mail: cendhec@cendhec.org.br
SUMÁRIO

Apresentação 7

1 O Cendhec e o projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente 9

2 Da doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral: contextualização


dos direitos da criança e do adolescente no Brasil
Karla Ribeiro 13

3 O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sistema de Garantia de Direitos


Renatto Pinto 19

4 Afinal, onde mora o perigo?


Karla Ribeiro 27

5 Violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes


Valéria Nepomuceno 32

6 Acessando a Justiça: o atendimento jurídico às vitimas de violência e suas famílias


Aline Tavares e Gabriela Amazonas 36

7 O apoio às famílias: a intervenção do serviço social


Elisabeth Costa 46

8 Fortalecendo para a luta: a contribuição do profissional de psicologia


Wanda Lage, Pedro Figueiredo e Isabel Ribeiro 58

9 A importância da informação: o papel do comunicador social


Paulo Lago 69

10 Histórias exemplares
10.1 Quando a ferida é na gente, a dor é diferente 75
10.2 Vestindo-se de “bom velhinho” 77

Anexos 80
APRESENTAÇÃO
O Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) vem executando, há dez
anos, o projeto de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, no âmbito do seu Programa dos
Direitos da Criança e do Adolescente (PDCA).

Este livro é uma sistematização da metodologia desenvolvida e aprimorada pelo Cendhec ao longo
desses anos. As aprendizagens institucionais estão expostas nos artigos que compõem o livro.

Resgatamos o processo de consolidação do projeto de defesa, no atendimento às crianças


e adolescentes vítimas de violência doméstica e sexual e seus familiares. Contextualizamos
nossa prática institucional no arcabouço da doutrina de proteção integral inaugurada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente e no paradigma de um sistema de garantia dos direitos
de crianças e adolescentes.

Apresentamos nossas concepções teóricas sobre o tema da violência doméstica e sexual e


a metodologia do trabalho do Cendhec, no atendimento às vítimas dessa grave expressão
da violência que aflige crianças e os adolescentes. Dividimos com os leitores o nosso fazer
específico, no atendimento jurídico às vitimas de violência e suas famílias e na garantia do acesso
à Justiça. Além de situarmos o trabalho dos profissionais de Direito, aprofundamos a atuação do
serviço social e da psicologia na garantia dos direitos de crianças e adolescentes atendidos – o
livro também discute o papel do comunicador social no projeto. Para ilustrar nosso trabalho,
registramos duas histórias baseadas em atendimentos realizados pelo projeto.

O Cendhec deseja que a disseminação de sua metodologia possa influenciar a política pública
para o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, na perspectiva de uma
atuação interdisciplinar.

CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

7
1 O CENDHEC E O PROJETO DE
DEFESA DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Dom Helder Câmara foi um bispo católico, ordenado padre no dia 15 de agosto de 1931, em
Fortaleza, e nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro no dia 3 de março de 1952. Só aos 43 anos
de idade foi ordenado bispo, no dia 20 de abril de 1952, destacando-se na defesa dos direitos
humanos e políticos no Brasil, de modo particular, durante os anos da ditadura militar.

Ele foi a primeira pessoa a levar para o mundo a denúncia de que havia tortura no regime
militar dominante do país. Estimulou a organização popular e abriu os espaços da igreja para
a defesa dos direitos humanos e para a formação política dos populares. Tinha uma profunda
consciência dos problemas da humanidade, sempre na perspectiva da ação de Deus entre os
homens e suas intermediações.

A sua atuação na arquidiocese de Olinda e Recife, entre os anos de 1964 e 1985, teve um
papel fundamental na defesa e promoção dos direitos humanos, onde ele não media esforços,
enfrentando com ousadia as instituições do Estado responsáveis pela violação dos direitos da
população.

Mas a reação a esse movimento da sociedade não se fez esperar. Após a sua saída da
arquidiocese, houve um desmonte de serviços e instituições que na arquidiocese se ocupavam
das questões sociais e da defesa dos direitos humanos. A demissão do colegiado da Comissão de
Justiça e Paz, em 1989, marcou o fim da presença da igreja nos fóruns e instâncias de entidades de
defesa de direitos.

Nesse contexto, para atender aos novos desafios, foi fundado, em 2 de novembro de 1989, o
Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), integrado pelos membros
destituídos do colegiado e do setor jurídico da Comissão de Justiça e Paz de Olinda e Recife,
bem como por professores e alunos do Instituto de Teologia do Recife (Iter) e por militantes dos
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direitos humanos.

Ao longo dos anos, o Cendhec adquiriu reconhecimento público sobre a qualidade da sua prática
profissional nas suas atividades de promoção, defesa, controle social e formação nos direitos
da criança e do adolescente, além do direito à moradia e dos incessantes esforços junto a
outros parceiros da sociedade civil, para uma apresentação de políticas públicas que garantam a
transformação social rumo a uma sociedade mais justa.

O Cendhec é um centro de direitos humanos que atua na defesa, promoção e controle dos
direitos de crianças e adolescentes e do direito à moradia em assentamentos habitacionais de
baixa renda. Através de suas ações, busca fortalecer a sociedade civil, de modo que os direitos
individuais, coletivos e difusos e as garantias constitucionais dos cidadãos sejam plenamente
assegurados, por meio de políticas públicas elaboradas e monitoradas com a participação dos
cidadãos e do Estado, posto a serviço efetivo do bem-estar coletivo.

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Nossa missão é defender e promover os direitos humanos, em especial de crianças,
adolescentes, moradoras e moradores de assentamentos populares e grupos socialmente
excluídos, contribuindo para a transformação social rumo a uma sociedade democrática,
equitativa e sem violência.

O atendimento às vitimas de violência doméstica e sexual

O projeto de defesa dos direitos de crianças e adolescentes localiza-se juntamente com os


projetos de formação, controle social e promoção no Programa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (PDCA).

A ação do Cendhec, através desse projeto, visa à realização do atendimento interdisciplinar e


integral para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e sexual (e seus familiares). O
projeto tem como área de abrangência o município do Recife e a sua região metropolitana. Seu
objetivo consiste em garantir a exigibilidade de direitos violados de crianças e adolescentes.

O público beneficiário - direto e indireto - das ações desenvolvidas é formado por crianças e
adolescentes vítimas de violência doméstica e sexual (e seus familiares), bem como por agentes
públicos do Sistema de Garantia de Direitos que atuam direta ou indiretamente no direito da
criança e do adolescente e da sociedade em geral.

O atendimento interdisciplinar realizado pela equipe consiste no recebimento, acompanhamento e


encaminhamento dos casos aos órgãos do Sistema de Justiça e Segurança, procurando fortalecer as
relações familiares e mobilizando a família para a responsabilização do violador dos direitos da criança
e do adolescente, visando ao fim da impunidade. Este trabalho interdisciplinar é desenvolvido de forma
integrada por profissionais da área de Direito, Serviço Social e Psicologia. Como o seu foco consiste
na ação contra a violação dos direitos de crianças e adolescentes, as atividades sociais e psicológicas
são coadjuvantes às jurídicas, de modo que o atendimento psicológico e social só é dado àqueles que
estejam em acompanhamento jurídico na instituição.

Na prática, o Cendhec é a única entidade da sociedade civil que trabalha com a exigibilidade de
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direitos na área da infância e da adolescência em Pernambuco. Por este motivo, a procura por nossos
serviços tem se intensificado não só por conta do aumento dos casos de violência contra crianças e
adolescentes, mas principalmente pelas dificuldades de acesso à Justiça pela população de baixa renda.

Tal procura fez com que a equipe do projeto estipulasse critérios para o atendimento dos casos,
primando pela garantia da qualidade dos serviços prestados. Neste contexto, optamos por atender
crianças e adolescentes de baixa renda, crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social,
crianças e adolescentes vítimas de crimes praticados no contexto familiar, além de casos em que o
crime seja praticado por agente público ou que detenha poder sobre a criança ou adolescente, e de
casos que possam se tornar exemplares pelo alto grau de complexidade e resolutividade.

Por isso, ao chegar ao Cendhec, o responsável pela vítima passa por uma entrevista conduzida
por um assistente social e um advogado e, posteriormente - na avaliação do caso, verifica-se se o
mesmo será encaminhado ao profissional de psicologia para avaliação psicológica.

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O atendimento jurídico consiste na prestação de assessoria jurídica às vítimas e seus familiares,
acompanhando e monitorando o caso desde o momento da notícia-crime junto à autoridade
policial, até a fase judicial com a sentença final. Na fase judicial, o advogado do Cendhec atua como
assistente de acusação do Ministério Público.

O atendimento psicológico configura-se com o acompanhamento individual às vítimas, através de


orientações aos familiares de forma individual e também em grupos. O objetivo dessa intervenção
é provocar um processo de construção psicossocial, levando o vitimizado e as pessoas envolvidas
a estabelecerem vínculos que permitam o resgate da autoestima, mobilizando-os para o processo
de responsabilização do agressor.

Tem como principal objetivo amenizar, através do acolhimento terapêutico e da escuta clínica,
os impactos sofridos por quem vive a dor de ter o corpo e a psique mutilados em decorrência
de uma transgressão perversa. Essa transgressão expõe, através da sexualidade, suas distorções
psíquicas e mantém, dentro de uma relação de poder, a criança e o adolescente como reféns
da perversão. Desse modo, o atendimento contribui para melhorar a autoestima das vítimas e
fortalecer a capacidade de resiliência dessas crianças e adolescentes (e suas famílias).

O procedimento metodológico adotado prioriza o atendimento às situações de crise,


fundamentando-se nos diversos conceitos teóricos existentes e convergentes que apontam para
a necessidade de intervenções para situações de crise, que requerem medidas mais diretivas no
atendimento psicológico. Nesse sentido, utilizamos a psicoterapia breve como procedimento
metodológico, por acreditar ser este o que efetivamente melhor corresponde às necessidades de
crianças e adolescentes (e seus familiares).

O serviço social atua para contribuir com a defesa dos direitos das vítimas, realizando um trabalho
de integração com familiares acolhidos e orientados individualmente e em grupo, o que vem
fortalecendo os vínculos entre as diversas famílias acompanhadas. Também são realizadas visitas
domiciliares para aprofundar o conhecimento das relações familiares e das comunidades de origem
das crianças. São realizadas articulações junto aos programas sociais, objetivando o atendimento
das necessidades sociais dessas famílias durante o andamento de todo o processo.
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O atendimento psicológico e social busca nas suas ações possibilitar melhor qualidade e conquista
de resultados jurídicos positivos, pois vítimas e familiares fortalecidos são sinônimo de interação
com o processo e clareza no acompanhamento e desenrolar dos autos processuais. É a certeza de
contribuir com mais eficácia contra a impunidade e a resiliência das vítimas e seus familiares.

Toda a intervenção da equipe do projeto é baseada nos seguintes marcos legais: Constituição
Federal; Estatuto da Criança e do Adolescente; Convenção dos Direitos da Criança e do
Adolescente; planos de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, nos níveis
nacional, estadual e municipal; Política Municipal de Proteção Especial às Crianças e Adolescentes
da Cidade do Recife; Sistema de Garantia de Direitos e Normativa Internacional de Direitos
Humanos - a declaração da ONU sobre os direitos das vítimas de delitos, por exemplo, que
destaca o direito a uma assistência apropriada durante todo o processo judicial, bem como o
direito de receber informações acerca do andamento do processo e o direito de ser tratado

11
com respeito e reconhecimento, destacando a necessidade de garantia e restabelecimento da sua
integridade física e psicológica.

Apesar do esforço da equipe na intervenção junto às vítimas de violência doméstica e sexual,


através do atendimento interdisciplinar, essa prática tem mostrado que tal atendimento, por si só,
traz mudanças significativas na vida do indivíduo, mas não é suficiente para uma transformação
em busca de uma sociedade onde prevalecem os valores de justiça. Por este motivo, associamos
essa prática à intervenção política e social, com a participação dos espaços de articulação política
nos Conselhos de Direito e em outras instâncias, na perspectiva de discutir a implementação de
políticas públicas e fazer o controle social nas ações do Estado.
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2 DA DOUTRINA DA SITUAÇÃO
IRREGULAR À DOUTRINA DA PROTEÇÃO
INTEGRAL: CONTEXTUALIZAÇÃO
DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE NO BRASIL
Karla Ribeiro1

A violência praticada contra a criança e o adolescente não é recente no mundo. Tomando por
referência o nosso país, percebemos que, desde a época do seu “descobrimento”, em 1500, já
existiam crianças exploradas e violentadas, situação que infelizmente perdura até os dias de hoje.
O abandono, a exploração do trabalho infanto-juvenil, a violência e o extermínio de crianças e
adolescentes foram práticas encontradas entre a população de brancos, negros e índios.

Ao verificarmos a situação de crianças e adolescentes, ao longo da história no Brasil, podemos


destacar alguns períodos marcantes:2

Colonização
Imposição dos jesuítas para que crianças e adolescentes indígenas assimilassem a cultura europeia,
com vistas a serem facilmente explorados; e extermínio de populações indígenas provocado pelos
portugueses através de guerrilhas e contaminação.

Escravidão
Alta taxa de mortalidade infantil durante a travessia da África para o Brasil; morte de crianças
negras por desnutrição; crianças e adolescentes negros explorados na lavoura, padecendo de
maus-tratos - explorados sexualmente pelos seus senhores, não frequentavam as escolas.

Ano de 1726
É criada a “roda dos expostos”, a fim de reduzir a mortalidade infantil por abandono, pois as
crianças pobres, muitas vezes, eram abandonadas em locais públicos, junto a animais e lixo.
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Ano de 1887
Com a abolição da escravatura, a sociedade não estava preparada para absorver toda aquela massa
de trabalhadores (“ex-escravos”). Grandes problemas foram surgindo como a má distribuição de
terra, a falta de política de geração de emprego e renda, e a existência de crianças e adolescentes
sem escolas. A partir daí, iniciaram-se os problemas relativos à área da infância, que começaram a
ser vistos como casos de polícia.

Ano de 1888
Proclamação da República.

1
Advogada e coordenadora do projeto de defesa dos direitos de crianças e adolescentes / Cendhec.
2
Ver também o livro “Uma história da criança brasileira” - Coleção Cadernos Cendhec – vol. 7.
13
Ano de 1927
Surge no Brasil o primeiro Código de Menores, que não trazia inovações para a área da infância,
mas abolia a Roda dos Expostos – juízes com poder fiscalizador.

Ano de 1930
Inicia-se o processo de investimento na área de educação – os filhos da elite iam para a escola,
enquanto os dos operários juntavam-se a eles na rotina do trabalho nas fábricas.

Ano de 1937
Período do Estado Novo em que se instaurou a ditadura no país durante oito anos. Getúlio Vargas
adotou uma postura mais severa em relação aos órfãos e abandonados, criando o Serviço de
Assistência ao Menor (SAM) – verdadeiros “depósitos humanos”.

Ano de 1964
Início da ditadura militar com as Forças Armadas dominando o país por quase 20 anos.

Ano de 1979
Em plena ditadura militar, é instituído no Brasil o 2º Código de Menores, voltado apenas para
determinada parcela da sociedade, ou seja, crianças e adolescentes que se encontravam em
situação irregular.

Crianças e adolescentes brasileiros passaram um longo tempo para ter seus direitos reconhecidos
por lei. Durante esse período, meninos e meninas não eram vistos como seres humanos ou
cidadãos completos, mas como objeto de submissão de adultos e propriedade de seus pais.

Tal situação começa a mudar com o fim da ditadura militar em nosso país e o surgimento, em
1987, da Assembleia Nacional Constituinte, onde houve uma ampla mobilização da sociedade civil
em busca de uma sociedade mais justa, humana e democrática. Tudo isso com vistas à promulgação
da nova Constituição Federal, que ocorreu em outubro de 1988, trazendo conquistas na área da
infância e juventude.

Uma das principais conquistas relativas à criança e ao adolescente, trazida pela Constituição
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Federal de 1988, é o reconhecimento legal desses cidadãos como sujeitos de direitos. A Lei
8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), regida pela doutrina da proteção integral,
regulamenta o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que diz:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Vale destacar que tal conquista foi fruto de uma intensa mobilização e do esforço conjunto de
milhares de pessoas que conseguiram, de maneira significativa, alterar a legislação anterior - o
Código de Menores regido pela Doutrina da Situação Irregular, por se destinar apenas “aos
menores” em situação irregular, tais como os órfãos, os abandonados, os meninos em situação de

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rua e os marginalizados. A doutrina da proteção integral incorporada ao estatuto entende crianças
e adolescentes como sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento, merecedoras, portanto,
de uma atenção diferenciada daquela dispensada aos adultos.

Considerada por muitos uma lei avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente, diferentemente
do Código de Menores, inova a legislação ao regulamentar um sistema para garantir os direitos
fundamentais de todas as crianças e adolescentes residentes em nosso país, sem distinção de
cor, raça ou classe social, passando a reconhecê-los na condição de cidadãos em processo de
desenvolvimento.

A extrema preocupação com a garantia dos direitos fundamentais e a criação de órgãos como
os Conselhos de Direitos, os Conselhos Tutelares e os Centros de Defesa destacam-se como
consideráveis avanços elencados nessa lei. Em relação a estes órgãos, algumas considerações:

Conselhos de Direitos
Criados a partir do Artigo 88 (inciso II) do estatuto, obedecem ao Princípio da Participação
Popular – elencado no Artigo 204 da nossa Lei Maior, previsto em âmbito municipal, estadual e
nacional, e vinculado ao Poder Executivo. Tais órgãos são instâncias onde a população, representada
por organizações, participa da formulação e deliberação da política relativa aos direitos da criança
e do adolescente. Também participam membros representando a sociedade civil e membros
representando o poder público, prevalecendo o Princípio da Paridade (CENDHEC, 1999).

Conselhos Tutelares
Compõem-se de cinco membros, que recebem o nome de conselheiros tutelares e são
escolhidos pela vontade da população para um mandato de três anos, sendo permitida apenas
uma recondução. Tais órgãos têm como principal função zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Onde existir
a violação desses direitos, os Conselhos Tutelares deverão intervir. Definidos como órgãos
permanentes, autônomos e não jurisdicionais, são entidades públicas previstas na esfera municipal,
situadas no eixo da defesa de direitos sem fazer parte do Poder Judiciário, vinculadas ao Poder
Executivo para efeito da sua existência e com autonomia “apenas” para desempenharem as
atribuições que lhes são conferidas (CENDHEC, 1999). CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Centros de Defesa
São entidades da sociedade civil que passaram a ser reconhecidas legalmente através do Artigo 87
(inciso V) do estatuto, que diz:

Art. 87- São linhas de ação da política de atendimento:


................................................................................................................
V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos
da criança e do adolescente.

O Artigo 87 dá poderes para que os Centros de Defesa possam atuar sozinhos ou junto ao
Ministério Público, na defesa de crianças e adolescente com direitos violados.

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O ESTATUTO

A parte geral do Estatuto da Criança e do Adolescente trata da exposição dos direitos


fundamentais inerentes a eles. Como já citado, tal lei reconhece crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos que gozam de algumas prioridades por estarem na condição de cidadãos em
processo de desenvolvimento.

A família, a sociedade e o Estado, além de solidariamente responsáveis na efetivação e garantia desses


direitos, devem assegurá-los com absoluta prioridade, conforme dispõe o Artigo 4º do estatuto.:

Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público


assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade e à convivência familiar e comunitária.

O estatuto estabelece que a garantia de prioridade compreende a primazia, precedência,


preferência e destinação de recursos. Comentando o Artigo 4º, em seu texto Direitos
Fundamentais da Criança e do Adolescente, publicado pelo Cendhec em 1999, Porto faz as
seguintes considerações acerca dela:

• primazia (em quaisquer circunstâncias, crianças têm direito de receber proteção e socorro
antes de qualquer outra pessoa);
• precedência (necessária no atendimento aos serviços públicos);
• preferência (principais destinatários na formulação e execução de políticas sociais públicas);
• privilégio (áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude devem receber a maior
parte dos recursos públicos).

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1 Do direito à vida e à saúde3


Podemos destacar a preocupação em garantir a efetivação deste direito nas seguintes situações:
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• atendimento à gestante no período pré-natal, ao longo de sua gravidez (Artigo 8º);


• garantia do aleitamento às mães detentas e trabalhadoras (Artigo 9º);
• identificação do recém-nascido através da impressão plantar (Artigo 10º - II);
• garantia do teste do pezinho (Artigo 10º - III);
• garantia de tratamento especializado aos portadores de deficiência (Artigo 11);
• presença de um dos pais junto a crianças e adolescentes internados em sistema de
atendimento à saúde (Artigo 12).

2 Do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade4


Garante a liberdade de se locomover, de estar e permanecer nos logradouros públicos, sem que
lhe seja privado tal direito sem o devido processo legal (como acontecia no Código de Menores).
Que essa liberdade seja respeitada, assim como suas expressões e opiniões emitidas; sua crença

Direito elencado no Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte Geral, Título II, Capítulo I.
3

Direito elencado no Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte Geral, Título II, Capítulo II.
4

16
em uma religião; seu direito de brincar, praticar esportes e participar da vida em família e na
comunidade; e sua participação na vida política.

3 Do direito à convivência familiar e comunitária5


Trata-se do direito que cada criança e adolescente tem de ser criado no seio de uma família, seja
ela natural ou eventualmente substituta, haja vista ser uma condição indispensável para que a vida
se desenvolva. O direito de ser tratado com igualdade de direitos e sem discriminações. A criança
(ou adolescente) não poderá mais ser retirada do seio familiar por motivo de pobreza, como
acontecia no Código de Menores.

4 Do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer6


A garantia de uma educação de qualidade possibilita o acesso e a permanência desses cidadãos
na escola, sem que haja discriminação aos alunos fora de faixa etária, aos desistentes, aos que
trabalham, aos portadores de deficiência, entre outros, a fim de que os mesmos sejam tratados
com vistas a construir a sua cidadania, garantindo:

• o direito de contestar os critérios avaliativos e recorrer às instâncias superiores;


• o direito de organizar e participar de entidades estudantis;
• a garantia suplementar de materiais didáticos;
• a garantia suplementar de transporte e alimentação;
• a assistência à saúde.

5 Do direito à profissionalização e à proteção no trabalho7


Garante, ao adolescente, trabalho a partir de 14 anos, na condição de aprendiz, devendo o mesmo
frequentar o ensino regular. Proíbe qualquer tipo de trabalho numa relação de emprego abaixo de
16 anos de idade.

Mesmo na condição de aprendiz, o trabalho que exige cuidados deverá ser executado com
proteção. Atividades consideradas penosas, perigosas e insalubres - trabalho noturno, trabalhos
realizados em locais que prejudiquem a formação do adolescente (bares, boates etc) e trabalhos
cuja realização prejudique o acesso e a permanência no ambiente escolar - são proibidas para
crianças e adolescentes. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. São


Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Código de Menores - Lei Federal nº 6.697. Promulgada em 10 de outubro de 1979.

CURY, Munir et al. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e


sociais. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 783 p.

DOURADO, Ana; FERNANDEZ, Cida. Uma história da criança brasileira. Belo Horizonte: Palco;
Recife: Cendhec, 1999. 128 p. (Coleção Cadernos Cendhec; vol.7).

5
Direito elencado no Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte Geral, Título II, Capítulo III.
6
Direito elencado no Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte Geral, Título II, Capítulo IV.
7
Direito elencado no Estatuto da Criança e do Adolescente - Parte Geral, Título II, Capítulo V.
17
PORTO, Paulo César Maia. Um Sistema de Garantia de Direitos – Inter-relações. In: Sistema
de Garantia de Direitos: um caminho para proteção integral. Recife: Cendhec, 1999. p. 11-125.
(Coleção Cadernos Cendhec; vol. 8).

SEDA, Edson. ABC do Conselho Tutelar: providências para mudança de usos, hábitos e costumes
da família, sociedade e Estado quanto a crianças e adolescentes no Brasil. Campinas, 1992.
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18
3 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE E O SISTEMA DE
GARANTIA DE DIREITOS
Renatto Marcello de Araújo Pinto8

Decorridos já alguns anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal


8.069, de 13 de julho de 1990), são indiscutíveis os avanços e conquistas decorrentes da
implementação da chamada “doutrina da proteção integral”, expressa nos dispositivos dessa
legislação, sobretudo quando comparada ao contexto anterior inspirado numa lógica repressivo-
clientelista, cujo marco legal foi o antigo Código de Menores de 1979.

Derivado da moderna normativa internacional relativa aos direitos da criança e do adolescente


- a exemplo da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989) - e da intensa
mobilização social empreendida pela sociedade civil organizada para a promulgação da
Constituição Federal de 1988, o estatuto introduz um novo paradigma político-legal-institucional.
Baseado na premissa da criança e do adolescente como sujeito de direitos, alça este segmento à
condição de prioridade absoluta na formulação e implementação de políticas públicas.

Além de assegurar direitos humanos fundamentais à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à


dignidade, à educação, à cultura, ao lazer, à convivência familiar e comunitária e à profissionalização,
propõe uma nova forma de gestão desses direitos, que se traduz na ação articulada de atores e
espaços governamentais e da sociedade civil, em âmbito municipal, estadual e nacional.

É importante destacar que essa articulação é derivada de princípios constitucionais da


descentralização político-administrativa e da participação da sociedade na formulação e
controle de políticas públicas, por meio de suas organizações representativas (Artigo 204 da
Constituição Federal). O primeiro princípio propõe uma descentralização horizontal, tirando
as decisões e a execução das políticas apenas da esfera federal, e fortalecendo as demais com
ênfase nos municípios.
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O segundo princípio também propõe uma descentralização horizontal, compartilhando o poder de
decisão e controle sobre as políticas públicas do governo em direção à sociedade civil organizada.

Outro aspecto importante para a compreensão dessa nova forma de gestão é que, a partir
do estatuto, são redefinidos os papéis, as atribuições e a forma de atuar de alguns órgãos e
instituições, a exemplo do Judiciário, da polícia e do Ministério Público, bem como criadas outras
estruturas com novas atribuições - os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares.

Nesse sentido, o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da criança e do adolescente surge da


tentativa de ordenar e sistematizar esse conjunto complexo de espaços, atores, instrumentos
e mecanismos de garantia de direitos. Mais do que isso, constitui-se na estratégia mais eficaz
de colocar em prática o que está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Daí a
importância de ser fortalecido e institucionalizado.

8
Assistente social e coordenador do Programa dos Direitos da Criança e do Adolescente / Cendhec.
19
Podemos dizer que o sistema não está explicitado no estatuto, mas se constitui numa leitura
estratégica do disposto na legislação para a garantia dos direitos humanos de crianças e
adolescentes, exigindo para a sua efetivação o reordenamento político-institucional das
organizações governamentais e da sociedade civil, de forma a atuarem de acordo com a sua
proposta.

É importante destacar que o SGD não guarda analogia ou similaridade com outros sistemas, tais
como o Sistema Único de Saúde (SUS) ou o Sistema Único de Assistência Social (Suas), uma vez
que estes são operacionais e setoriais, enquanto aquele é estratégico, transversal e intersetorial.
Enquanto ao primeiro cabe o papel de potencializar os direitos da criança e do adolescente em
todas as políticas públicas, os outros têm a função de viabilizar o atendimento direto dentro de
uma determinada política pública (NOGUEIRA NETO, 2005).

Sistema de Garantia de Direitos

O Sistema de Garantia de Direitos está organizado em três eixos fundamentais: promoção,


controle social e defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, cada um
desempenhando uma função estratégica, complementar e inter-relacionada.

Nesse aspecto, é importante perceber que o funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos


implica o movimento existente a partir da interação entre os atores que compõem cada eixo
(intraeixo) e também da interação entre esses três eixos (intereixo).

Promoção
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20
Promoção de direitos

Trata-se do eixo cuja função é promover o atendimento direto aos direitos coletivos e difusos da
criança e do adolescente, realizado através da política prevista no Artigo 87 do estatuto, que toca
transversalmente todas as políticas públicas:

Art. 87 – São linhas de ação da política de atendimento:


I. políticas sociais básicas;
II. políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo,
para aqueles que deles necessitem;
III. serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial
a vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
IV. serviços de identificação e localização de pais, responsáveis,
crianças e adolescentes desaparecidos;
V. serviços de proteção jurídico-social por entidades de defesa
dos direitos da criança e do adolescente.

As políticas sociais básicas correspondem às obrigações constitucionais do poder público, sendo


estas de caráter universal, tais como educação, saúde, cultura, lazer, habitação, saneamento,
transportes etc.

A política de assistência social, embora também considerada uma política social básica, pois
também é uma obrigação do Estado e tem caráter universal, é destacada pelo estatuto e diz
respeito ao atendimento às necessidades básicas de todos os cidadãos, de forma a torná-las
alcançáveis pelas demais políticas públicas.9

A política de proteção especial é dirigida a crianças e adolescentes em condições especiais de


risco pessoal e social, caracterizada por ações e serviços voltados para o atendimento às situações
de ameaça ou violação de direitos por ação ou omissão da sociedade, do Estado e dos pais ou
responsáveis, ou ainda em razão da conduta deles próprios, tais como:

• serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
• serviços de identificação e localização de pais, responsáveis, crianças e adolescentes desaparecidos;
• serviços de proteção jurídico-social por entidades de defesa
dos direitos da criança e do adolescente.

Também podem ser considerados na política de proteção especial os serviços socioeducativos,


destinados à ressocialização de adolescentes em conflito com a lei - internação, semiliberdade,
liberdade assistida.

Outras dimensões importantes da promoção de direitos são a formulação, deliberação e planejamento


da política de atendimento, cujos espaços privilegiados pelo estatuto são os Conselhos de Direitos
instituídos nos âmbitos municipal, estadual e nacional.Tais instituições são democráticas e participativas,
de composição paritária entre os representantes do governo e da sociedade civil organizada.
9
A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, é anterior à aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social, em 1993.
Posteriormente tivemos a consolidação da Política Nacional de Assistência Social e a implantação do Sistema Único de Assistência Social
(Suas), daí advindo a necessidade de aprofundar a discussão sobre a interface dessa política pública com o SGD.
21
Cabe ao conselho ser o principal promotor intersetorial, no sentido de potencializar o
atendimento aos direitos da criança e do adolescente, uma vez que tem poder deliberativo. Daí a
necessidade de articulação com os demais conselhos, com vistas a diagnosticar e definir diretrizes
de ação para as três esferas do poder.

Ao Conselho de Direitos cabe ainda a atribuição de fazer a gestão do fundo público especial
criado pelo estatuto para ser um instrumento de financiamento da política de proteção
especial, já que as políticas sociais básicas possuem instrumentos e mecanismos próprios para o
financiamento dos seus serviços, programas e projetos.

Entre os instrumentos de promoção de direitos também merece destaque a construção de


planos específicos para algumas áreas, tais como enfrentamento do abuso e exploração sexual
contra crianças e adolescentes, prevenção e erradicação do trabalho infantil, convivência familiar e
comunitária, atendimento socioeducativo, além dos planos setoriais de educação, saúde, assistência
social etc.

Compõem ainda esse eixo os Conselhos Setoriais, instâncias de deliberação e formulação de


políticas específicas - educação, saúde, assistência social etc. Idealmente os Conselhos Setoriais
deveriam funcionar articulados com os Conselhos de Direitos da criança e do adolescente, mas
isto não vem acontecendo.

No entanto, é papel dos Conselhos de Direitos promover uma articulação com as demais políticas
setoriais, uma vez que se constituem como espaços de formulação de uma política intersetorial e
transversal, devendo atuarem como “embaixadores” dos interesses da criança e do adolescente
nas demais áreas das políticas públicas.

Controle social da política de atendimento

O eixo do controle cumpre as funções sociais de monitoramento/vigilância e avaliação das


políticas públicas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente previstos na legislação.
O controle social tem, portanto, a função estratégica de impulsionar o bom funcionamento dos
outros dois eixos do sistema.
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Algumas leituras do Sistema de Garantia de Direitos defendem que somente pertenceriam a esse
eixo os espaços e atores destinados ao exercício do controle social externo, não institucional e de
natureza política, a exemplo de fóruns, redes e outros espaços de articulação das organizações da
sociedade civil.

Não fariam parte desse eixo instituições que exerçam o controle institucional - parlamentos,
Ministério Público e tribunais de contas, encarregadas de zelar pelos princípios constitucionais da
legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e economicidade, inclusive o próprio Conselho
de Direitos possui atribuição estatutária de controlador da política de atendimento. Esse tipo de
controle interno estaria afeto ao eixo da promoção. Tal perspectiva é defendida pelo Cendhec e
sistematizada no livro Sistema de Garantia de Direitos.

22
Não restam dúvidas, entretanto, que o controle social exercido pela sociedade civil, através de suas
organizações e espaços de articulações, precisa ser fortalecido e privilegiado, tendo em vista seu
potencial inovador e transformador - e em tese sua maior independência em relação aos governos,
resultando numa maior legitimidade para acompanhar e avaliar a execução das políticas públicas.

Daí a importância da construção e consolidação de espaços de articulação e participação


protagonizados pela sociedade civil, em detrimento de espaços onde predominem atores
governamentais ou de onde se reproduza a composição mista ou paritária já assegurada pelo
Conselho de Direitos.

Além disso, os espaços de articulação da sociedade civil (fóruns, redes, comissões, comitês,
coletivos, frentes etc) são responsáveis por darem retaguarda política aos seus representantes nos
Conselhos Setoriais e Conselhos de Direitos, não só subsidiando a atuação destes com discussão
de propostas e posicionamento político em torno das questões em debate, como também se
constituindo em espaços legítimos para escolha desses representantes e avaliação da sua atuação e
desempenho.

Podemos dizer que o efetivo exercício do controle social é realizado a partir de três atividades básicas:

• monitoramento (vigilância social) permanente das políticas públicas, no sentido de acompanhar


o seu funcionamento e avaliar resultados e impactos de serviços, programas e projetos;
• reivindicação para o bom funcionamento do sistema, cobrando das instituições que cumpram
efetivamente o papel estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como por
outras legislações;
• proposição de novas ações, projetos, programas e serviços, levando em consideração as
reais demandas da população infanto-juvenil. Tais propostas devem nortear a atuação dos
representantes da sociedade civil no Conselho de Direitos.

O financiamento das políticas públicas é um dos aspectos primordiais que deve ser alvo de
controle social. A falta de recursos suficientes para o funcionamento de ações, programas,
projetos e serviços reflete o nível de prioridade com que o poder público vem tratando a
infância e a adolescência. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

É preciso, assim, monitorar permanentemente o orçamento público destinado à política de


atendimento às crianças e adolescentes, reivindicar a destinação privilegiada e a correta aplicação
dos recursos públicos, conforme estabelece o Artigo 4º do estatuto, bem como fazer proposições
para melhorar a qualidade dos gastos públicos para essa área.

Nesse sentido, a articulação e a mobilização social são as principais diretrizes pelas quais se devem
nortear as organizações da sociedade civil, a fim de fazer funcionar o eixo do controle. Superar
a atuação isolada e voltada para interesses particulares ou corporativos é o principal desafio das
organizações que atuam nesse eixo.

23
Defesa de direitos

O eixo da defesa é acionado toda vez que a criança e o adolescente encontram-se em situação de
ameaça ou violação dos seus direitos individuais, coletivos ou difusos10, seja por ação ou omissão
do Estado, da sociedade e dos pais ou responsáveis, ou mesmo em função da sua própria conduta.

De acordo com NOGUEIRA NETO, “o eixo da defesa dos direitos da criança e do adolescente
consubstancia-se na garantia do acesso à Justiça11, ou seja, no recurso aos espaços públicos
institucionais e mecanismos jurídicos de ´proteção legal` daqueles direitos humanos (gerais
e especiais) e das liberdades fundamentais da infância e da adolescência, para assegurar a
impositividade daqueles direitos e liberdades e a sua exigibilidade de forma concreta” (2005).

A responsabilidade dos atores que nele se encontram é de atuar com vistas a atingir os seguintes
objetivos:

• fazer cessar a situação de ameaça ou violação de direitos;


• responsabilizar o agente violador através da aplicação das punições previstas na legislação.

Fazem parte desse eixo os órgãos do Sistema de Justiça e Segurança, tais como a polícia, o
Ministério Público, o Judiciário, a Defensoria Pública, além de outros como o Conselho Tutelar e os
Centros de Defesa.

Os órgãos do Sistema de Justiça e Segurança passaram por importantes modificações em suas


atribuições legais, a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em detrimento da
atuação de cunho repressivo-assistencialista que possuíam sob a égide do antigo Código de Menores.

Uma das mais importantes mudanças ocorridas foi no processo de apuração do ato infracional
cometido por adolescentes, assegurando a eles direitos e garantias já consagrados aos adultos,
além de outros decorrentes da condição especial de pessoas em processo de desenvolvimento
biopsicossocial.

A exemplo do que ocorria com qualquer cidadão, o estatuto assegurou, ao adolescente a quem se
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atribuía a autoria do ato infracional, o direito de somente ser apreendido pela polícia em flagrante
delito ou através do cumprimento de ordem judicial fundamentada.

Nesse sentido, a polícia passou a ter a obrigação de atuar segundo parâmetros bem definidos de
respeito aos direitos humanos da criança e do adolescente, mesmo em conflito com a lei. Por
outro lado, também é da polícia a atribuição de reprimir os crimes praticados contra a criança e
o adolescente.

A criação de delegacias e departamentos de polícia especializados representa um grande avanço


para o eixo da defesa. O Estado de Pernambuco foi pioneiro nesta iniciativa ao criar o primeiro
Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), tendo sido seguido por vários
outros entes federativos.

10
Direitos coletivos são aqueles que estão relacionados com um determinado grupo de pessoas, as quais gozam das mesmas prerrogativas.
Já os direitos difusos são mais amplos, cujas pessoas não podem ser determinadas.
11
Grifo nosso.
24
Na esfera do Judiciário, o reordenamento imposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
diminuiu sobremaneira o poder excessivo que possuía o antigo juiz de menores, garantindo aos
adolescentes em conflito com a lei o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Surgiu, assim, uma nova Justiça da Infância e da Juventude, mais moderna e com atribuições
bem definidas, dentro dos princípios do Estado democrático e de direito. Aí também se destaca
a criação de varas especializadas nos crimes contra a criança e o adolescente, bem como o
julgamento dos atos infracionais.

O Ministério Público passou a ser um ator de grande importância, pois o estatuto estabeleceu
que o seu papel é garantir e defender os direitos da criança e do adolescente, seja como autor das
ações ou como fiscal da lei. “Nenhuma decisão do juiz da infância e da juventude será tomada sem
se ouvir antes o Ministério Público” (MAIA PORTO: 121; 2005). Também nessa instituição houve
uma especialização na área da infância e da juventude com a criação das promotorias especiais.

Outro importante avanço obtido foi a criação dos Conselhos Tutelares, órgãos públicos não
jurisdicionais encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos assegurados no próprio
estatuto, cujos membros são escolhidos pela comunidade.

Sua criação tem claramente o objetivo de tirar da polícia e do Judiciário o excesso de poderes
outrora existentes, passando para os novos órgãos a prerrogativa de aplicar medidas de proteção,
acionando a retaguarda necessária.

Por último, destacamos o papel dos Centros de Defesa, que são organizações da sociedade civil
cujo papel é se encarregar da proteção jurídico-social dos direitos da criança e do adolescente.
Para tanto, tal objetivo deverá estar expresso no estatuto legal dessas entidades.

Ao contrário dos demais atores desse eixo que têm natureza estatal, os Centros de Defesa
passaram a ter status diferenciado com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente,
uma vez que ficaram responsáveis por uma das linhas da política de atendimento: a defesa jurídico-
social. Nesse sentido, eles diferenciam-se também de outras entidades de atendimento, pois estão
situados no eixo da defesa. Um exemplo de entidade com este perfil é o próprio Cendhec. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Alguns alegam que a atuação dos Centros de Defesa se sobrepõe às atribuições dos Conselhos
Tutelares. Entretanto, cabe destacar que embora ambos atuem na defesa dos direitos, os Centros de
Defesa diferenciam-se pela possibilidade de promoverem ações judiciais com vistas a garantir os direitos
individuais, coletivos e difusos da criança e do adolescente, tendo esses atores papéis complementares. E
também por poderem atuar como assistentes do Ministério Público nas ações judiciais.

A exemplo dos outros atores do Sistema de Garantia de Direitos, os Centros de Defesa embora
tenham sua atuação predominantemente num dos eixos (defesa), não podem e nem devem
se limitar apenas a este. Sua atuação busca contribuir para o funcionamento dos três eixos
já explicitados, através da defesa jurídico-social, da articulação com outras organizações da
sociedade civil para exercer o controle social sobre as políticas públicas e da participação no seu
planejamento e formulação como representante da sociedade civil no Conselho de Direitos.

25
Considerações finais

Cabe reafirmar a importância do fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos como


estratégia fundamental de funcionamento da política de garantia de direitos da criança e do
adolescente preceituada no estatuto.

Vale destacar que o Sistema de Garantia de Direitos - enquanto modelo de funcionamento da


política de garantia de direitos da criança e do adolescente - não é um conceito pronto e acabado,
mas em permanente construção, demandando uma reflexão constante sobre as práticas sociais e
as relações construídas pelos vários atores nele envolvidos.

O grande desafio para o bom funcionamento dessa complexa engrenagem está em compreender
que não se trata de um modelo estático ou uma simples classificação dos diversos atores sociais,
a partir da sua função ou atribuição, mas do entendimento do seu caráter sistêmico, ou seja, dos
limites e das possibilidades de interação entre os atores (dentro de cada eixo e entre eles).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. São


Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069 e legislação correlata. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2008. 6 ed. 177 p (Série Legislação).

GARCIA, Margarita Bosch. Um Sistema de Garantia de Direitos - Fundamentação. In: Sistema


de Garantia de Direitos: um caminho para proteção integral. Recife, Cendhec, 1999. p. 93 -110
(Coleção Cadernos Cendhec; vol. 8).

NOGUEIRA NETO, W. Por um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças
e adolescentes. In: Serviço social & sociedade. São Paulo, v. 26, n. 83, p. 5-29, 2005.

PORTO, Paulo César Maia. Um Sistema de Garantia de Direitos – Inter-relações. In: Sistema
de Garantia de Direitos: um caminho para proteção integral. Recife: Cendhec, 1999. p. 11-125
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

(Coleção Cadernos Cendhec; vol. 8).

26
4 AFINAL, ONDE MORA O PERIGO?
Karla Ribeiro12

Quando crianças, geralmente, somos alertados para tomar cuidado com estranhos. Mas, infelizmente,
nem sempre o perigo está fora de casa. A cada dia fica mais claro que a incondicional proteção
esperada do ambiente familiar não passa de um mito. Na maioria das vezes, os casos de violação dos
direitos de meninos e meninas ocorrem dentro de casa.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, no capítulo relacionado ao direito à convivência familiar e


comunitária, em seu Artigo 19, diz que:

Art. 19 - Toda criança e adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da
família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes.

Buscou o legislador nesse artigo colocar a família como espaço indispensável para o desenvolvimento
dos direitos inerentes ao público infanto-juvenil - um lugar onde a criança e o adolescente se
sentissem protegidos em sua condição peculiar de desenvolvimento.

Hoje, porém, a realidade se mostra perversa: o lar considerado “abrigo sagrado” passou a ser
mostrado nos noticiários como principal esconderijo do perigo. Nesses mesmos lares, crianças
e adolescentes são submetidos cotidianamente a várias formas de violação dos seus direitos,
evidenciando a ausência de uma convivência familiar protetora.

Essas violações nos fazem refletir que os direitos conferidos a esse público, através da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, da Constituição Federal, da Convenção pelos Direitos da Criança
e do Adolescente e, por fim, do próprio estatuto, ainda não se materializaram. Isto em parte pela
resistência de uma sociedade consumista, desumana, machista e adultocêntrica, que aceita crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos, tratando-os como objetos de submissão.
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Tal resistência se traduz pelas inúmeras notificações de casos dessa natureza. Apesar de
considerarmos elevados os números oficiais de casos de violência doméstica e sexual contra crianças
e adolescentes, estudiosos estimam que eles não representam a realidade, pois culturalmente é
alimentado o mito de que na esfera privada o público não entra, ou seja, o que acontece dentro “de
quatro paredes” não pode ser revelado.

Essa postura adotada culturalmente vem contrariar o Artigo 18 do Estatuto da Criança e do


Adolescente, que diz:

Art. 18 - É dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-


os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor.

12
Advogada e coordenadora do projeto de defesa dos direitos de crianças e adolescentes / Cendhec.
27
A regra disposta nesse artigo vem repetir a norma do Artigo 227, da Constituição Federal de
1988, demonstrando a preocupação do legislador quanto à necessidade de proteção da criança e
do adolescente não estar restrita à família, uma vez que o próprio artigo em discussão deixa claro
que “é dever de todos”.

Dessa forma, é importante começar a refletir sobre a violência doméstica num contexto
mais amplo, entendendo que a estrutura privada não está isolada da estrutura da sociedade.
Baseando-se nesse princípio, convém lembrar que a violência doméstica e sexual contra crianças
e adolescentes é crime e, como tal, deverá ser punida, cabendo aos agressores ou agressoras as
penalidades impostas pela legislação.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nesse momento, faz-se necessário esclarecer que a violência doméstica deverá ser entendida
como toda espécie de ofensa dirigida contra crianças e adolescentes no ambiente doméstico,
familiar ou de sua intimidade. A violência doméstica, portanto, não é determinada pelo espaço
físico da residência, mas pela relação de consanguinidade ou afinidade que a vítima tenha com o
perpretador da violência. Cabe ainda destacar que, em relação à criança ou ao adolescente, essa
violência pode se expressar de várias formas (negligência, violência física, violência psicológica e
violência sexual).

As crianças, pela condição peculiar de seres em desenvolvimento, precisam de cuidados e proteção


específicos para se desenvolverem, sendo a negligência uma omissão e uma negação disso.

NEGLIGÊNCIA
A falta de ação e atenção, além do descuido de pais e responsáveis em prover direitos humanos
fundamentais (vida, saúde, educação, lazer etc), configura-se como negligência. Nessa perspectiva, é
bastante comum, no atendimento interdisciplinar realizado pela equipe do Cendhec, identificarmos
a negligência em crianças com menor idade.

O estatuto, em seu Artigo 22, elenca os deveres dos pais para com seus filhos menores:
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Art. 22 - Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores,
cabendo-lhes, ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais.

Nessa perspectiva, é necessário saber fazer uma diferenciação entre famílias negligentes e famílias
que vivem em situação de extrema pobreza, já que a negligência configura-se como motivo para
a perda e a suspensão do poder familiar, tendo o legislador o cuidado de estabelecer, no Artigo
23 do diploma legal já citado, que a pobreza não poderá servir de base à decretação da perda ou
suspensão do poder familiar:

Art. 23 - A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente


para a perda e a suspensão do pátrio poder.

28
Parágrafo Único - Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da
medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual
deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.

Nas situações em que for identificada extrema pobreza, cabe ao Estado oferecer programas de
inclusão para as famílias, assegurando a convivência familiar protetora aos seus filhos.

VIOLÊNCIA FÍSICA
Já nos casos relacionados com violência física, é comum ouvirmos, por parte do(a) agente
da agressão, que o uso da violência ocorreu como requisito básico ao dever de obediência e
educação da vítima, justificando assim o desconhecimento do Artigo 5º do Estatuto da Criança e
do Adolescente, que diz:

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na
forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Apesar do artigo deixar claro que existe punição, através de intervenção judiciária, para quem,
por ação ou omissão, cometer esses atos contra crianças e adolescentes, infelizmente as ações
violentas, muitas vezes, passam a ser interpretadas como práticas normais.

Podemos conceituar violência física como aquela caracterizada pelo uso da força, cujo objetivo do
agente da agressão é causar o sofrimento físico da vítima, ofendendo a sua integridade corporal
através de queimaduras, socos, surras com objetos contundentes etc. Geralmente é um tipo de
violência que deixa marcas, sequelas e, em alguns casos, leva a vítima a óbito. Este tipo de violência
é de fácil identificação, podendo, na maioria das situações, ser identificado a olho nu.

Diferentemente da violência física, a violência psicológica não deixa marcas visíveis, o que a torna
de difícil identificação. FALEIROS (2007) define a violência psicológica da seguinte forma:

Ela se configura através de uma relação de poder desigual, ou seja, a figura adulta
dotada de autoridade e a criança e/ou adolescente dominado. Esse poder é exercido CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
através de atitudes de mando arbitrário (“obedeça porque eu quero”), agressões
verbais, chantagens, regras excessivas, ameaças (inclusive de morte), humilhações,
desvalorização, estigmatização, desqualificação, rejeição, isolamento, exigência de
comportamentos éticos inadequados ou acima das capacidades, e exploração
econômica ou sexual.

Assim como ocorre nos casos relacionados com violência física, também é comum a tolerância
da sociedade com este tipo de violência. Muitas vezes é comum ouvirmos (inclusive de pessoas
cuja atribuição é zelar pelos direitos de crianças e adolescentes), em situações concretas de
violência psicológica, que “... é melhor deixar para lá, que isso não vai dar em nada”, referindo-se à
notificação do caso.

29
VIOLÊNCIA SEXUAL
Com relação à violência sexual, podemos classificá-la como aquele tipo de violência cujo intuito do
agente da agressão poderá ser a obtenção de prazer sexual ou ganhos materiais, mediante o uso
do corpo de uma criança ou adolescente. Tendo em vista a gravidade e amplitude deste tipo de
violência, perpetrada contra meninos e meninas, o Cendhec não atende apenas casos que ocorrem
no âmbito doméstico, mas estende o seu atendimento também para aqueles que ocorrem fora do
âmbito familiar.

Na cartilha “A família esperta: como reconhecer os sinais de violência sexual em crianças e


adolescentes”, elaborada pelo Cendhec, em 2004, a ocorrência da violência sexual está definida nas
formas de agressão sexual, abuso sexual e exploração sexual:

Na agressão sexual, o agente da agressão faz uso da coação física ou psicológica para
obtenção de sua finalidade, como ocorre no estupro; no abuso sexual, o agente agressor
vale-se da sedução, como ocorre com o pedófilo, que oferece presentes à criança para
com ela praticar atos de natureza sexual; já a exploração sexual tem como propósito
a obtenção de lucro através da comercialização do corpo de crianças e adolescentes,
ou da veiculação de materiais como fotos, vídeos, filmes pornográficos ou não, seja por
meios convencionais ou pelas ondas da Internet (2007: 11).

Esse tipo de violência pode ser expressado de várias formas: com contato físico - estupro, sexo
oral e anal, bolinagem etc; e sem contato físico - filmes pornográficos, fotos, órgãos genitais,
masturbação etc.

Em alguns casos, principalmente onde o contato físico não se fez presente, torna-se difícil
identificar a violência, valendo para os nossos tribunais a palavra da vítima. Porém, tal regra só é
respeitada quando existe uma sensibilização dos operadores do Direito, no sentido de valorizar o
que é relatado pelas vítimas.

Os principais responsáveis por esse tipo de crime seduzem, intimidam e ameaçam suas vítimas,
impedindo que elas contem para outras pessoas o que aconteceu, causando nas mesmas um
sentimento de culpa, vergonha e medo, características que muitas vezes fazem com que este tipo
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

de violência não seja revelado.

Desse modo, a violência sexual é uma das mais graves violações aos direitos de crianças e
adolescentes, pois lhes nega a liberdade, a dignidade, o respeito e o direito de viver a sua
sexualidade em condições saudáveis. Por conta disso, a Constituição Federal, em seu Artigo 227
(parágrafo quarto), dispõe que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual
da criança e do adolescente.

A situação parece muito mais preocupante se levarmos em conta a falta de dados reais sobre
o problema. De um lado, os agentes da agressão são familiares ou pessoas muito próximas das
vítimas (violência intrafamiliar); de outro, existe uma rede muito organizada, planejada e articulada
que oportuniza a inserção das vítimas num mercado de trabalho clandestino, envolto pelo
crime organizado, cujo objetivo é a exploração sexual para aferição de lucros. Tais processos
impossibilitam, muitas vezes, a ocorrência da denúncia.

30
Profissionais que atuam com a temática ressaltam os danos provocados pela violência sexual na
vida das vítimas, chegando ao consenso de que a melhor forma de evitá-la é através da prevenção,
sendo esta a mais importante política a ser implementada.

Mesmo entendendo a necessidade da prevenção, não podemos deixar de ressaltar a importância


do atendimento às vítimas e suas famílias, bem como da responsabilização dos agressores.
Infelizmente ainda existe um sentimento coletivo acerca dos crimes dessa natureza não serem
punidos. Esta é uma concepção que inibe a denúncia, gerando a impunidade e não garantindo às
vítimas a exigibilidade de reparação do seu direito violado.

Apesar da visibilidade dada à temática ao longo dos últimos anos, ainda temos muito que avançar,
haja vista que nossa sociedade ainda não se desprendeu culturalmente dos preconceitos que a
fazem ver a criança e o adolescente como objetos de submissão - e não como sujeitos de direitos.
Isto reforça a necessidade de defender intensamente os interesses superiores desse público,
entendendo que a cidadania e a democracia são feitas com medidas eficazes, sobretudo com
dignidade e respeito.

O enfrentamento da violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes é um processo


complexo que exige soluções articuladas e em várias dimensões. É necessário que ações de
erradicação sejam feitas de forma coletiva e planejada, entre os diversos setores da sociedade.
Essas ações precisam estar embasadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, reafirmando
os princípios de proteção integral, participação, mobilização, gestão paritária, descentralização,
regionalização, sustentabilidade e responsabilização.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. São


Paulo: Saraiva, 1996.

CURY, Munir et al. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e


sociais. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 783 p.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
FALEIROS,Vicente de Paula; FALEIROS, Eva Silveira. Escola que protege: enfrentando a violência
contra crianças e adolescentes. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2007 (Coleção Educação para Todos).

PEDROSA, Aparecida; GOMES, Flávia; AMAZONAS, Gabriela et al. A família esperta: como
reconhecer os sinais de violência sexual em crianças e adolescentes. Recife: Cendhec, 2007. 43 p
(Coleção Cadernos Cendhec; vol. 13).

31
5 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL
CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Valeria Nepomuceno13

No Brasil, o conceito de violência doméstica está amplamente difundido, especialmente pelas


pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), vinculado ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. GUERRA (1998:33) afirma que a violência doméstica
contra crianças e adolescentes:

...representa todo ato de omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis


contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/
ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de
proteção do adulto; e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do
direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em
condição peculiar de desenvolvimento.

Um dos aspectos importantes desse conceito é chamar a atenção para o que está ocorrendo com
crianças e adolescentes: atos de violência e desrespeito aos seus direitos humanos. A violência
doméstica pode se expressar pela violência física, psicológica ou sexual, afora a negligência.

O posicionamento da Organização Mundial de Saúde sobre violência sexual reitera que se trata de:

...qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou investidas


sexuais indesejados, ou atos direcionados ao tráfico sexual ou, de alguma forma,
voltados contra a sexualidade de uma pessoa usando a coação, praticados por uma
pessoa independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer cenário, inclusive
em casa e no trabalho, mas não limitado a eles.

A OMS também apresenta algumas circunstâncias e cenários onde podem ocorrer atos
sexualmente violentos, dentre eles o estupro cometido por estranhos, o abuso sexual de pessoas
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

mental ou fisicamente incapazes, o abuso sexual de crianças, os atos violentos contra a integridade
sexual de mulheres, a prostituição forçada e o tráfico de pessoas com fins de exploração sexual
(2002:149).

O conceito de violência sexual é um conceito composto, como afirma NOGUEIRA NETO


(2004:47):

...a expressão violência sexual é uma expressão plurívoca, tendo um sentido amplo
nos documentos políticos e outro mais estrito nas normas jurídicas.... Por sua vez, as
expressões violência sexual e abuso sexual não têm a mesma consagração na área
jurídica da que adquiriu na área político-social (onde foi cunhada), havendo apenas
menção a elas no Estatuto da Criança e do Adolescente de maneira um tanto confusa.

Coordenadora executiva do Cendhec e doutora em Serviço Social.


13

32
De forma mais didática, podemos definir violência sexual contra a criança e o adolescente como
o uso do seu corpo por alguém que visa a obter prazer sexual ou auferir ganhos materiais. Não
temos como tratar disso sem passar por outras compreensões - o abuso, a agressão sexual e
também a exploração sexual. É fato que a violência sexual tem expressões com características
específicas.

A primeira expressão é a agressão sexual, que ocorre quando o agressor vale-se da coação física
ou psicológica para praticar atos de natureza sexual com a vítima. Ele consegue isso a partir do
uso de sua força física ou de ameaças. O exemplo clássico da agressão sexual é o estupro.

Já no abuso sexual, é mais comum ocorrer coação psicológica. Neste caso, o agressor vale-se
da sedução e do engano para conseguir seu intento, que é o prazer sexual. Ele obtém um falso
consentimento da vítima. Na identificação do abuso, pesam a fala da criança e o exame médico
especializado. Ainda para a OMS, o “abuso sexual é definido como um ato em que esse responsável
usa a criança para obter gratificação sexual” (2000:60).

Para KINDERSCHUTZBUND, citado por ZURCHER (2004:61), o abuso sexual é “uma ação
sexual de um adulto (ou de uma pessoa significativamente mais velha do que a vítima) com
ou na frente de uma criança, que se aproveita da sua condição de superioridade (social e de
desenvolvimento) – desrespeitando a vontade e a capacidade de discernimento da criança – para
satisfazer às suas necessidades de excitação, intimidade ou poder”.

Sobre o silêncio da vítima, existe um interessante posicionamento de SGROI, citado por


FELIZARDO (2003:39):

...abuso sexual de crianças por adultos (ou por jovens mais velhos) é toda ação sexual
de um adulto com uma criança que, nessa fase do seu desenvolvimento emocional e
intelectual, não tem discernimento para poder consentir livremente tal ação. O adulto-
abusador se aproveita, assim, da relação desigual de poder entre um adulto e uma
criança para obrigá-la a cooperar. Decisiva aqui é a questão do dever de ocultação do
ato, o qual condena a criança ao mutismo, à indefesa e ao desamparo.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
Uma terceira expressão da violência é a exploração sexual, caracterizada pela obtenção de ganhos
materiais por parte do explorador, com uso do corpo da criança ou do adolescente, para fins de
natureza sexual. Alguns preferem tratar o fenômeno por prostituição infanto-juvenil. Preferimos,
entretanto, a expressão exploração sexual para diferenciar de venda do corpo por parte de
indivíduos adultos, que apesar das determinações sociais já estão aptos moral e legalmente para
decidirem sobre suas vidas.

A exploração sexual pode ocorrer pela ação pura e simples de aliciadores isolados ou de uma
rede organizada para atender à demanda do turismo sexual ou do tráfico, para fins de exploração
sexual. Existe ainda a exploração que é feita a partir da comercialização de fotos e vídeos de
crianças e adolescentes na Internet.

Para a OMS, “não há uma definição universalmente aceita de tráfico para exploração sexual. O
termo abrange o movimento organizado de pessoas, geralmente mulheres, entre países para

33
trabalho sexual. O tráfico também força um migrante a um ato sexual, como condição de permitir
ou fazer os acertos necessários para a migração” (2000:149).

O tráfico sexual utiliza-se da coação física, da fraude e da escravidão, que são resultantes de dívidas
forçadas. Mulheres e crianças traficadas, por exemplo, comumente recebem promessas de trabalho
doméstico ou na indústria - ao invés disso, porém, quase sempre são levadas para bordéis (2000: 149).

A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é outra terminologia empregada por


Maria Lúcia Pinto Leal (2005:21), que a define “como uma relação de mercantilização (exploração/
dominação) e abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores
sexuais (mercadores), organizados em redes de comercialização local e global (mercado), ou por
pais e responsáveis, além de consumidores de serviços sexuais pagos (demanda)”.

A complexidade do problema da violência sexual contra crianças e adolescentes está nas suas
diferentes expressões (agressão, abuso e exploração), no tipo de relação que se estabelece entre
a criança e o adolescente com o agressor, nas dificuldades para identificar os sinais da violência e
também nas consequências apresentadas para a vítima.

Uma das preocupações de quem trabalha com o tema da violência sexual diz respeito à sua
identificação. QUADROS (2005:46) relaciona alguns sinais que devem ser observados, como
forma de identificar se uma criança ou adolescente está sendo vítima de violência sexual: o
relato da criança; o sangramento na boca, ânus ou vagina; as repetidas infecções urinárias; a dor
na área genital ou anal; as lesões na área genital ou anal; as doenças sexualmente transmissíveis;
o comportamento sexual exacerbado; o medo de contato com pessoas do sexo oposto; os
distúrbios do sono e da aprendizagem; os comportamentos regressivos (perda do controle de
esfíncteres); as fugas de casa; o comportamento depressivo com ou sem tentativa de suicídio; a
vitimização sexual de outra criança; a promiscuidade em adolescentes; o consumo de drogas; a
baixa autoestima e os transtornos da alimentação (anorexia, bulimia e obesidade).

As consequências da violência sexual são as mais danosas possíveis. Justamente por isso, o
legislador incluiu no texto constitucional o parágrafo quarto, do Artigo 227, que diz que “a lei
punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes”.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Uma das primeiras consequências da violência sexual é a confusão com relação ao papel a
ser desempenhado pelo adulto frente à criança. Aqueles que deveriam proteger a criança são
justamente os que a violentam, uma vez que essa violência, na maioria das vezes, é praticada por
pessoas que têm uma relação de parentesco com a vítima. São pais, padrastos, tios, avós, primos ou
irmãos. Muitas crianças costumam representar em desenhos o agressor como um monstro. Como
substrato dessa situação, fica o sentimento de culpa pelo amor que deve ser dispensado à figura
parental e o ódio que a violência desperta.

Crianças ou adolescentes vítimas de violência sexual podem, anos mais tarde, apresentar
dificuldades em seus relacionamentos afetivo-sexuais. Em outros casos, podem repetir com
outras crianças a violência que sofreram. Comportamentos depressivos são observados em
indivíduos que passam ou passaram por uma situação de violência sexual. O consumo de álcool
e outras drogas pode estar associado a este tipo de violência. Outra grave consequência é o

34
enveredamento pelo mundo da exploração sexual. Muitas vítimas de abuso sexual acabam sendo
presas fáceis de aliciadores ou da rede de exploração sexual. Dificuldade de aprendizado na escola
e suicídio aparecem também como resultantes da violência sexual.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA,Viviane N de A. Infância e violência doméstica: fronteiras do


conhecimento. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1997.

CUADROS FERRÉ, Maria Inês. Manual básico para el diagnóstico y tratamento del matrato infantil.
Bogotá: Save the Children, 2005.

FELIZARDO, Dilma; ZURHER, Eliane et al. Seminário de Medo e Sombra - Abuso sexual contra
crianças e adolescentes. Natal: Casa Renascer, 2003.

______. Seminário de Medo e Sombra - Abuso sexual contra crianças e adolescentes. Natal: Casa
Renascer, 2004.

LACERDA, Lúcia; NEPOMUCENO,Valéria. Pesquisa sobre violência sexual contra crianças e


adolescentes em Pernambuco: relatório de pesquisa de campo. Recife: Cendhec, 2002. 95 p
(Coleção Cadernos Cendhec; vol. 14).

LEAL, Maria Lúcia Pinto. Estudo Analítico do Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de
Crianças e Adolescentes no Brasil. Rio de Janeiro: Save the Children, 2005.

ORGANIZAÇÃO Mundial de Saúde. Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Genebra, 2002.

NOGUEIRA NETO, Wanderlino. O fio da meada – A denúncia e a notificação de situações de


abuso sexual contra crianças e adolescentes. In: Colóquio sobre o Sistema de Notificação em
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes - Relatório Final. Brasília: Comitê Nacional de
Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, 2004.

CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

35
6 ACESSANDO A JUSTIÇA: O
ATENDIMENTO JURÍDICO ÀS VÍTIMAS
DE VIOLÊNCIA E SUAS FAMÍLIAS
Gabriela Amazonas14
Aline Tavares15

Antes de começarmos a descrever a metodologia do atendimento jurídico-social, vale registrar


que as etapas não ocorrem necessariamente de forma linear, perfeita e acabada, necessitando, em
alguns casos, de uma flexibilidade no fluxo regular do encaminhamento do caso. Devemos levar
em consideração que a violência contra a criança e o adolescente é um fenômeno complexo que
atinge pessoas e grupos diversos, cada um com suas características próprias, peculiaridades e
necessidades.

É importante destacar que neste artigo iremos detalhar as atividades dos profissionais de Direito,
dentro da metodologia interdisciplinar aplicada em todos os casos atendidos pelo Cendhec.

Os casos chegam, em sua grande maioria, por meio de demandas espontâneas (pessoas que
conhecem o Cendhec, por exemplo, através de campanhas), encaminhados por Conselhos
Tutelares, profissionais das áreas de saúde e educação, rede pública e privada. Além disso, chegam
casos encaminhados pela Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente, pela Vara de Crimes
contra a Criança e o Adolescente, e pelas ONGs. Há ainda outros sendo inicialmente recebidos
por um profissional de Serviço Social e um de Direito.

Considerando que o primeiro atendimento é um momento de escuta e observação por parte dos
técnicos, só após essa escuta é que procuramos fazer algumas intervenções e encaminhamentos.
Isto salvaguardando o interesse superior da criança, bem como a fragilidade da família que
geralmente chega ao Cendhec com muitas angústias e dúvidas acerca dos seus direitos e dos
procedimentos a serem adotados.

Nesse primeiro momento, procuramos conversar apenas com os responsáveis, deixando a escuta
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

da criança para a psicóloga realizar posteriormente, a fim de assegurar que a mesma não seja
revitimizada ao ter que relatar sua dor para diversos profissionais. Entendemos ainda que, em
todos os casos de suspeita de violência, a denúncia deve ser encaminhada ao Conselho Tutelar,
como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 13 - Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças ou


adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Entretanto, o Cendhec como Centro de Defesa de Direitos não se restringe à notificação ao


Conselho Tutelar, encaminhando os casos que possuem fortes indícios de violência - e que
ainda não tiveram uma denúncia formal - para as autoridades policiais, através da própria família.

Advogada do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec.


14

Advogada do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec.


15

36
Destacamos que, em alguns casos, quando há negligência da família na realização da denúncia,
mesmo após os esclarecimentos e as orientações repassadas pelos profissionais durante o
atendimento, encaminhamos por ofício a notícia da suspeita de violência para as autoridades
policiais e o Conselho Tutelar, sendo todos os procedimentos comunicados aos familiares.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi muito feliz quando tornou obrigatória a denúncia
mediante a suspeita da violência, pois muitos familiares, vizinhos, professores, médicos, entre outras
pessoas, costumam afirmar que o motivo da recusa em fazer a denúncia acontece pelo fato de
não se ter absoluta certeza, ou ainda pelo fato de não se poder provar a suspeita. O estatuto
traz a determinação de que apenas a suspeita já deve ser comunicada aos órgãos competentes,
estabelecendo que os órgãos de defesa e responsabilização façam a sua parte apurando os
fatos e buscando os elementos de comprovação ou de fortes indícios, para dar continuidade ou
até mesmo fazer cessar o processo de responsabilização. Por outro lado, mediante essa rápida
comunicação, a criança (ou adolescente) já estará sendo contemplada com as medidas de proteção
pertinentes.

Em alguns casos, esse procedimento é realizado visando a garantir o afastamento do agressor da


criança e do adolescente, bem como contribuir para que o mesmo agressor, ao passar por um
procedimento de responsabilização, não volte a violar os direitos de outras crianças. Esse caminho
que buscamos seguir, de acordo com o próprio estatuto, não é garantia absoluta de atingirmos o
nosso objetivo diante da morosidade do sistema de proteção e responsabilização. Contudo, faz-se
extremamente necessária a realização da denúncia - e principalmente o seu monitoramento:

Art. 87- São linhas de ação da política de atendimento:


................................................................................................................
V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos
da criança e do adolescente.

O profissional da área de Direito colhe informações a respeito da situação de violência e, ao final,


passa essas informações para um instrumental que servirá de subsídio para os encaminhamentos
que serão realizados junto aos familiares, durante todo o acompanhamento do caso, haja vista
respeitarmos o fortalecimento da família e as necessidades que emergirem em cada fase do CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
processo de responsabilização.

É muito importante que o profissional que acompanhar o primeiro atendimento busque incentivar
a família, no sentido de iniciar ou dar continuidade ao processo de responsabilização, que começa
com a formalização da denúncia, esclarecendo todos os detalhes quanto aos procedimentos
formais do processo de responsabilização e sobre as situações que poderão ocorrer advindas
da denúncia formal. Cabe ainda a esse profissional procurar estabelecer um vínculo de confiança
e assegurar que a família tenha toda assistência jurídica necessária para atravessar o processo
de responsabilização. Ao mesmo tempo, o trabalho dos advogados não substitui o empenho e a
colaboração da família nesse processo.

37
A intervenção jurídica
A intervenção do advogado consiste ainda do acompanhamento do processo de responsabilização,
desde a realização do primeiro atendimento no Cendhec até a finalização do processo judicial.
Ou seja, os advogados acompanham os familiares e as crianças e os adolescentes sempre que eles
precisarem se apresentar à autoridade policial e judicial, bem como monitoram o procedimento de
investigação, fazendo diligências periódicas e, na fase judicial, atuando como assistentes de acusação
do Ministério Público. Ademais, buscamos influenciar ainda a esfera policial, a fim de que todas as
diligências e ouvidas necessárias sejam realizadas. Já na fase judicial, contribuímos com a produção
de provas durante a fase de instrução processual, além dos demais atos processuais necessários
para a prestação da tutela jurisdicional.

Podemos dizer que o processo de responsabilização acontece em três fases - investigação policial,
oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e processo judicial.

A investigação policial
A fase de investigação policial ocorre quando o Estado, neste caso representado pela autoridade
policial, toma conhecimento da situação de violência praticada contra a criança e o adolescente,
ou mesmo quando o representante legal da criança e do adolescente manifesta para a autoridade
policial o desejo de representá-los criminalmente contra o autor da agressão.

Sabemos que são várias as possibilidades jurídicas e não pretendemos aprofundá-las no texto,
porém é de grande valia pontuarmos algumas dessas possibilidades que, muitas vezes, são
distorcidas pelo imaginário de grande parte da nossa sociedade.

Segundo a nossa legislação, existem alguns tipos de crime em que não se faz necessária a concordância
expressa do responsável legal da criança e do adolescente, para que a autoridade competente adote
os procedimentos legais. São os crimes de homicídio e alguns crimes de natureza sexual - o crime
de estupro de vulnerável ou qualquer outro ato libidinoso contra menores de 14 anos. Nestes tipos
de crime, qualquer pessoa pode levar a notícia para a autoridade policial ou o Ministério Público.
Chamamos este tipo de ação de pública incondicionada, passando o Ministério Público a ser o
responsável pela denúncia formal contra o agressor ao Judiciário.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Há algum tempo, a nossa legislação previa diversos crimes de natureza sexual praticados contra
crianças ou adolescentes que necessitavam da vontade expressa do responsável legal para que
a ação penal fosse iniciada. Em 7 de agosto de 2009, entrou em vigor a Lei nº 12.015/2009,
que modificou vários artigos do Código Penal brasileiro, tornando em ação penal pública
incondicionada a maior parte dos crimes de natureza sexual praticados contra crianças e
adolescentes. Contudo, é necessário observarmos que esta alteração no Código Penal é bastante
recente e um dos princípios do nosso Direito Penal é que a lei só retroage para beneficiar o réu.
Portanto, as novas regras só valem para as denúncias realizadas a partir de 7 de agosto de 2009.

No caso do crime de favorecimento à prostituição, por exemplo, a legislação vinha exigindo a


representação criminal por parte do responsável legal da criança e do adolescente, pois em muitos
casos a própria família se recusa a registrar a ocorrência por fatores diversos - conivência, descaso,

38
medo, falta de informação, entre outros, tornando bastante difícil o enfrentamento da exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes.

Diante de um contexto em que várias ações só poderiam ser ingressadas com a vontade
expressa do representante legal, a sociedade civil organizada vinha questionando, junto aos
órgãos de segurança pública, o avanço da utilização do Artigo 244-A do ECA, que prevê o crime
de exploração sexual como ação penal pública incondicionada. Este artigo foi pensado levando
em consideração as nuances do crime de exploração sexual cometidas exclusivamente contra a
criança e o adolescente, até então sem tipificação no Código Penal brasileiro.

Com o advento da Lei nº 12.015/2009, o nosso Código Penal incorporou o crime de


favorecimento à prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável. Neste tipo
penal, as vítimas podem ser pessoas menores de 18 anos. Destaque-se que, acertadamente, a
nova redação estabeleceu que este também é um crime de ação penal pública incondicionada,
portanto independe da vontade ou da representação criminal dos responsáveis legais, sendo o
Ministério Público o responsável pelo ingresso da ação penal e a autoridade policial apta a realizar
a investigação, assim que tomar conhecimento do fato criminoso.

Devemos esclarecer que são raros os casos em que a família pode custear as despesas processuais
e a contratação de advogados. Por este motivo, a legislação prevê que nos casos de ação penal
de natureza privada, em que a vítima ou os seus responsáveis não podem prover as despesas do
processo sem a privação de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, como é o
caso das famílias atendidas pelo Cendhec, a ação passa a ser pública condicionada à representação,
ou seja, o representante legal da criança e do adolescente manifesta o seu interesse e o Ministério
Público assume a responsabilidade pela ação penal.

Essas mudanças certamente representam um grande avanço no combate aos crimes de natureza
sexual praticados contra crianças e adolescentes, pois é bastante comum nos depararmos com
cidadãos - e até mesmo alguns profissionais - que deixam de denunciar situações de violência
contra crianças e adolescentes sob a alegação de que a genitora ou o genitor tem ciência do fato,
mas não quer denunciá-lo. É sabido que sem a concordância dos mesmos, não seria possível fazer
a denúncia. Essa afirmação, a bem da verdade, nunca foi verdadeira quando tratamos de crianças CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
e adolescentes. Até mesmo nos casos em que a lei exigia a manifestação expressa do responsável
legal quanto à denúncia, a autoridade competente poderia designar um curador para tal ato, caso o
interesse do responsável legal fosse contrário à proteção dos direitos da criança e do adolescente.
Na prática isto quase não acontecia e, com as recentes mudanças no Código Penal, a concordância
dos representantes legais, na maioria dos casos, passou a ser dispensável.

Durante a fase de investigação policial, são ouvidos pela autoridade a vítima, o seu responsável
legal e as demais testemunhas e/ou informantes que possam contribuir para o esclarecimento do
fato narrado, durante o registro da ocorrência. Também serão produzidas as provas necessárias -
exames periciais e escuta da criança e do adolescente por profissionais de Psicologia ou Serviço
Social especializados.

O papel do Centro de Defesa durante essa fase é acompanhar todos os procedimentos


conduzidos pela autoridade policial, dando apoio social e jurídico à vítima e à família, além de

39
entrar em contato com o delegado que preside o inquérito quantas vezes forem necessárias para
dar celeridade ao procedimento, até o relatório final ser encaminhado para o Ministério Público.

O oferecimento da denúncia
A próxima fase de oferecimento da denúncia é uma atribuição do Ministério Público, que ao
estudar o procedimento policial e se convencer dos indícios de materialidade e autoria, prepara a
denúncia e a encaminha para o juiz de direito. Em alguns casos, o promotor poderá solicitar novas
diligências à autoridade policial ou até solicitar o arquivamento do procedimento, caso acredite
que não há indícios de cometimento de crime. Contudo, este pedido de arquivamento, além de ser
uma exceção, deverá ser apreciado pelo magistrado, cabendo recurso de quem tiver legitimidade
- o caso dos advogados do Centro de Defesa que representam, através de instrumento
procuratório, o responsável legal pela criança ou adolescente.

O recebimento da denúncia
A terceira fase começa com o recebimento da denúncia pelo magistrado, que a partir deste
momento conduz o processo judicial. É importante destacar que, com o advento da Lei n°
11.719/2008, a audiência de instrução, onde serão tomadas as declarações do(a) ofendido(a),
a inquirição das testemunhas e o interrogatório do acusado deverão ocorrer em uma única
audiência, diferentemente de como ocorria antes desta mudança no Código de Processo Penal.
Antes, normalmente, eram realizadas no mínimo três audiências, havendo uma grande contribuição
para a morosidade do andamento processual. Além da inquirição das referidas pessoas, poderão
ser solicitadas outras provas pelo advogado de defesa, pelo Ministério Público, pela assistência
de acusação ou até mesmo pelo magistrado, que possam contribuir para o processo de
responsabilização.

Durante essa fase, o papel dos advogados do Centro de Defesa é fundamental, pois ao se
habilitarem para atuar no processo judicial como assistentes de acusação, estão aptos a
acompanhar todas as audiências, bem como requerer todas as provas admitidas pela legislação,
sendo todos os requerimentos apreciados pelo representante do Ministério Público e, deferidos
ou não, pelo magistrado.

Cabe destacar que a atuação dos advogados do Cendhec destaca-se pelo amplo conhecimento
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

do caso e pela confiança estabelecida com crianças e adolescentes (e seus familiares), que se
sentem mais seguros e confiantes durante as audiências, onde, na maioria das vezes, afloram os
sentimentos de dor, injustiça, medo e revolta.

Vale salientar que os magistrados, em sua grande maioria, consideram imprescindível o depoimento
da criança e do adolescente em juízo, mesmo nas varas especializadas que possuem uma equipe
técnica composta por profissionais de Psicologia, Serviço Social e Pedagogia. Isto significa que
crianças e adolescentes que sofreram violência sexual prestarão depoimento em uma sala, na
presença de várias pessoas desconhecidas - juiz, promotor, advogado de defesa e serventuário da
Justiça, o que poderá lhes causar mais constrangimento, vergonha, insegurança e dor.

O procedimento de escuta de crianças e adolescentes, durante as várias fases do processo


de investigação e também judicial, tem sido alvo de discussões e experimentação de novas
metodologias em todo o país, uma vez consideradas as situações de constrangimento e

40
revitimizações pelas quais os mesmos são submetidos. Em alguns Estados brasileiros, foi
implantada a metodologia do “depoimento sem dano”, que consiste na escuta intermediada por
um profissional do Judiciário, mas em sala separada da sala de audiência, onde o juiz, a promotoria
e os advogados escutam e veem através de aparelhos de áudio e vídeo. Esta metodologia, que
sem dúvida traz avanços, mas ainda não garante a proteção integral do direito da criança e do
adolescente, está sendo bastante discutida em nosso Estado pelos profissionais que atuam no
Sistema de Garantia de Direitos e, possivelmente, será implantada em breve.

Diante dessa dificuldade e até por entendermos que seja extremamente necessário o relato da
criança e do adolescente, direta ou indiretamente, temos requerido, em alguns casos, um parecer
psicossocial relativo ao período em que a criança e o adolescente estiveram em acompanhamento,
seja no Cendhec ou em outra instituição, a exemplo dos Centros de Referência. Tal parecer deve
fazer parte dos autos e contribuir para a formação do convencimento do juiz, embora não possua
status de prova. Em que pese esse parecer ser bastante valorizado por alguns magistrados, tal
posicionamento não é seguido pela maioria, que prefere se restringir ao direito positivo.

Esgotada a fase de produção de provas, o Ministério Público, seguido do assistente de acusação e


do advogado de defesa, oferece as suas razões finais, remetendo o processo ao juiz para proferir
a sentença, que será de condenação ou absolvição, cabendo da decisão recurso de apelação a ser
apreciado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco.

É importante destacar que a morosidade do Sistema de Justiça e Segurança de Pernambuco faz


com que esse processo de responsabilização, que nasce com o registro do Boletim de Ocorrência
na delegacia e finda com o esgotamento dos recursos e o trânsito em julgado da sentença, possa
levar o procedimento a variar de três a sete anos, a depender do caso. Esta média é observada nos
casos em que o Cendhec atua em Recife e nos municípios da região metropolitana.

Destacamos que, no segundo semestre de 2008, foi criada em Recife uma segunda vara de crimes
contra crianças e adolescentes. Provavelmente teremos uma diminuição na média de tempo para
a conclusão, em primeira instância, dos processos. Entretanto, até o momento, só foi possível
observarmos uma melhor organização e atualização dos processos e uma celeridade na marcação
das audiências, mas ainda não aferimos a diminuição do tempo para a conclusão dos processos. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Não restam dúvidas que essa é a maior dificuldade enfrentada por um Centro de Defesa, pois a
morosidade traz prejuízos de ordem técnica para a produção de provas - uma criança que sofreu
estupro de vulnerável aos três anos terá dificuldade para relatar a situação de violência, que já foi
devidamente trabalhada por uma psicóloga, depois de passados quatro ou cinco anos, em uma sala
de audiência repleta de pessoas estranhas. Os prejuízos também podem ser de outra natureza, tais
como sensação de impunidade, descrença na Justiça, mudança de endereço sem comunicação às
autoridades e reconciliação com o agressor, por exemplo.

Para atravessarmos as dificuldades advindas da situação caótica do Sistema de Justiça e Segurança,


é necessário que a atuação da equipe interdisciplinar esteja voltada para o fortalecimento e
empoderamento da vítima e seus familiares, a fim de que eles contribuam de forma ativa para
dar celeridade ao processo. É fundamental ainda a participação proativa da família em todas as
mobilizações e campanhas promovidas pelo Cendhec, que visam à garantia de direitos através da

41
implementação de políticas públicas voltadas para a infância e juventude. Desta forma, pretende-se
que os familiares compreendam melhor o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes,
despertando para os cuidados com a prevenção e o seu papel na sociedade e na defesa e proteção
de crianças e adolescentes.

Os encaminhamentos
Passamos a descrever alguns encaminhamentos realizados pelos advogados, fazendo algumas
considerações acerca da importância de cada procedimento, visando à proteção integral da criança
e do adolescente. Lembramos que eles podem ser realizados a qualquer momento, a partir da
identificação da demanda pelos familiares ou pelos técnicos do projeto.

GUARDA
Encaminhamos os familiares para ingressar com ação de guarda nas situações em que
informalmente a criança já se encontre sob a responsabilidade de um parente que não seja o
seu responsável legal, bem como nos casos em que a criança esteja sob a responsabilidade de
um dos seus genitores e este seja o responsável pelas violações de direito da criança, havendo
a necessidade, neste caso, de uma intervenção do Conselho Tutelar e do Juizado da Infância e
Juventude, que localizarão outro parente com condições de ser guardião da criança, mesmo que
provisoriamente.

Vale salientar que nos casos em que o responsável pela violação residir na mesma casa da criança,
o estatuto, em seu Artigo 130, orienta o afastamento do agressor da moradia comum, através de
medida cautelar que poderá ser impetrada pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelos
advogados particulares e pelos Centros de Defesa. Contudo, na maioria dos casos, as crianças são
revitimizadas ao serem afastadas do seu próprio lar:

Art. 130 - Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos


pelos pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida
cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.

Nos casos acompanhados pelo Cendhec, esgotadas as possibilidades de afastamento do agressor


da moradia comum, procuramos identificar outro familiar que assuma provisoriamente a guarda
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da criança.

SUSPENSÃO DO DIREITO DE VISITA


A ação de suspensão da visita faz-se necessária sempre que o agressor for um dos genitores
da criança, representando um risco de revitimização para a mesma. Em casos de violência
sexual praticada por um dos genitores, orientamos que o responsável legal da criança ingresse
com o pedido judicial de suspensão de visita. Em alguns casos, os magistrados têm optado pela
regulamentação da visita vigiada, durante todo o período de investigação policial e processo
judicial, o que pode ser prejudicial à criança, em alguns casos, em razão da ameaça que representa
esse agressor.

SEPARAÇÃO DE CORPOS
A ação de separação de corpos é indicada quando um dos genitores demonstra a intenção de
romper com os laços matrimoniais, apesar do outro cônjuge impor a sua presença no lar.

42
Na maioria das vezes, a genitora deseja separar-se do companheiro, quando descobre a situação
de violência imposta à criança. Ocorre que alguns deles se recusam a sair de casa, chegando a
fazer ameaças a toda a família. Nestes casos, podemos acionar, além dos órgãos de segurança e
justiça, outras instituições de defesa do direito da mulher. E caso a genitora da criança também
seja vítima de violência doméstica, pode-se recorrer à aplicação de medidas protetivas previstas na
Lei Maria da Penha, as quais se estendem aos filhos.

PENSÃO ALIMENTÍCIA
O encaminhamento célere da ação de pensão alimentícia é fundamental nos casos em que o autor
da violência é o mantenedor da família, pois a partir do momento da denúncia, geralmente, ele
deixa de prover as despesas como forma de pressionar o denunciante a desistir do processo de
responsabilização.

Existem ainda encaminhamentos para a Defensoria Pública, para as mais diversas demandas
trazidas pelos familiares - regulamentação de visita, divórcio, inventário etc.

Outros encaminhamentos
Atendimento às mulheres vítimas de violência
Nas situações em que observamos que a genitora tem maior dificuldade em adotar os
procedimentos necessários para proteger seus filhos, por sofrer violência doméstica por parte
do companheiro, fazemos o acompanhamento do caso em parceria com entidades que atendem
mulheres vítimas de violência. Essas instituições avaliam se há necessidade de colocação da família
em abrigo. Destacamos que, nos casos que são acompanhados pelo Cendhec e simultaneamente
por outra instituição, é comum fazer alguns estudos de caso com equipes das duas instituições,
às vezes até três delas, a exemplo do Centro de Referência da Criança e do Adolescente (Cerca),
do Centro de Referência da Mulher Clarice Lispector, dos Conselhos Tutelares, do Instituto de
Assistência Social e Cidadania (Iasc), entre outras.

Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita)


O encaminhamento para este programa só se faz em casos onde há risco iminente de morte da
vítima, familiares ou testemunhas, que já estão em processo de responsabilização do agressor.
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Ministério Público
Fazemos encaminhamentos ao Ministério Público nos casos em que observamos a necessidade
de suspensão ou destituição do poder familiar, salientando que para a equipe esses casos são
exceções - além da destituição ser uma medida que representa uma mudança significativa e
irreversível na vida da criança, o estatuto garante o seu direito à convivência familiar e comunitária
como forma de assegurar o seu desenvolvimento sadio:

Art. 19 - Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua
família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes.

43
Art. 24 - A perda ou suspensão do poder familiar será decretada judicialmente, em
procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese
de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o Artigo 22.
Também encaminhamos ao Ministério Público representações nos casos em que conselheiros
tutelares e profissionais de educação e saúde, entre outros, atuam de forma arbitrária, violando ou
negligenciando os direitos da criança, ou até mesmo de seus familiares:

Art. 245 - Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção


à saúde e de Ensino Fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade
competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação
de maus-tratos contra criança ou adolescente.
Pena – Multa de três a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de
reincidência.

É oportuno destacar, novamente, que os encaminhamentos descritos são realizados de acordo


com as especificidades de cada caso, levando em consideração o fortalecimento do familiar
responsável pela denúncia e o interesse superior da criança que teve os seus direitos violados.
Em alguns casos, é necessário respeitar o tempo que cada família vai precisar para assimilar a
necessidade da denúncia, desde que não traga prejuízo ao bom desenvolvimento da criança e do
adolescente.

Salientamos que em todas as ocasiões em que precisamos provocar qualquer órgão público, o
fazemos através de documentos e articulações que permitam uma maior troca de informações,
fortalecendo o compromisso com a infância e juventude.

As atribuições
A violência sexual praticada contra crianças e adolescentes é um crime praticado às escondidas,
por isso denominado crime “por trás das cortinas” - em sua maioria não deixa vestígios materiais
e nem testemunhas oculares, sendo extremamente necessária a valorização da escuta da criança
e do adolescente. Devemos salientar que a acessibilidade à Justiça é o principal objetivo a ser
perseguido pelos Centros de Defesa de crianças e adolescentes.
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Nesse sentido, os advogados participam das oficinas de formação realizadas com familiares e
adolescentes do projeto de defesa, facilitando o trabalho de alguns temas como direitos humanos,
direitos fundamentais, Estatuto da Criança e do Adolescente, e Código de Menores.

Além do acompanhamento dos casos individuais, os advogados promovem outras ações jurídicas,
que visam a assegurar direitos difusos ou coletivos de crianças e adolescentes. Como exemplos,
podemos citar a ação civil pública impetrada contra o Governo do Estado, visando a manter a
estrutura da Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente, e as ações indenizatórias de casos
de violência praticada por agentes públicos - representações junto às diversas corregedorias,
representações do Ministério Público, representações de conselheiros tutelares, sempre que
houver demanda. Entretanto, também costumamos provocar o Ministério Público, no sentido de
garantir que ele cumpra o seu papel e efetive o direito dos cidadãos de acessar a Justiça.

Dentro das atribuições da equipe jurídica, estão ainda as representações institucionais em


âmbito municipal, estadual e nacional, que permitem contribuir de forma propositiva e influenciar

44
as discussões e a elaboração de políticas públicas voltadas para a infância e juventude. Isto se
dá através de debates, sempre levando em consideração a experiência adquirida no trabalho
desenvolvido dentro e fora do Cendhec e, principalmente, junto aos órgãos de defesa e
responsabilização do nosso Estado.

Cabe refletirmos ainda sobre o papel dos advogados que atuam nos Centros de Defesa.Vai muito
além da técnica e do saber jurídico que permeiam alguns escritórios particulares de advocacia, pois
mais que a capacidade técnica, que é muito importante, é imprescindível uma identificação com a
luta pelos direitos humanos, bem como um compromisso com crianças e adolescentes atendidos
ou não pela instituição. Esse compromisso deve se sobrepor aos interesses de qualquer pessoa,
inclusive dos próprios familiares que, porventura, contrariem o melhor interesse da infância e
juventude. Neste sentido, podemos afirmar que além de advogados, os profissionais da área de
Direito são defensores dos direitos humanos, tal qual demais membros da equipe interdisciplinar.

CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

45
7 O APOIO ÀS FAMÍLIAS: A
INTERVENÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO
PROJETO DE DEFESA DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Elizabete Costa16

A problemática da violação de direitos da criança e do adolescente está envolta por uma imensa
complexidade, onde se podem identificar vários fatores como a desigualdade de gênero e a
discriminação por raça e etnias, tendo a pobreza um papel de maior destaque. A precariedade
das condições socioeconômicas em que vive boa parte das famílias brasileiras prejudica o
desenvolvimento sadio de tais crianças e adolescentes, que sobrevivem em um contexto vulnerável
a diversos tipos de violência.

O Serviço Social no PDCA/Projeto de Defesa tem como objetivo contribuir para a garantia dos
direitos humanos da criança e do adolescente, com foco de intervenção na família. Tal intervenção
em um Centro de Defesa não poderia fugir aos princípios fundamentais estabelecidos pelo Código
de Ética (1993) do(a) assistente social, dentre os quais:

...reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela
inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais; a defesa
intransigente dos direitos humanos; a ampliação e consolidação da cidadania, com vistas
à garantia dos direitos civis e políticos; a defesa do aprofundamento da democracia; o
posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de
acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais; o empenho na
eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade,
a participação nos grupos socialmente discriminados, a discussão das diferenças e a
garantia do pluralismo.17

É com base nesses princípios que o Serviço Social busca estratégias de atuação junto às famílias
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

que se dirigem ao Cendhec em busca de atendimento. A demanda é oriunda de alguns municípios18


da Região Metropolitana do Recife, sendo encaminhada pelos Conselhos Tutelares, pela delegacia
especializada, pelo Ministério Público, pelos serviços públicos, pelos usuários e pelas ONGs.

A intervenção do Serviço Social no espaço do Cendhec, no atendimento às vitimas de violência


e suas famílias, tem por princípio a não substituição do Estado em seu papel de atendimento às
necessidades da sociedade. Mas o interesse por uma aproximação do fenômeno da violência,
interagindo com órgãos do Sistema de Garantia de Direitos e oportunizando experiências com
limites e possibilidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente, permite um diálogo
crítico na proposição de políticas públicas e no controle social acerca dessa realidade.

Assistente social do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec e pós-graduada em Direitos Humanos.
16

Grupo de estudos e pesquisas sobre ética. 2003. p. 63.


17

Olinda, Paulista, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e Abreu e Lima.


18

46
ATRIBUIÇÕES DO ASSISTENTE SOCIAL
• Atendimento inicial, juntamente com um profissional da área jurídica, e recebimento da denúncia.
• Entrevista social para avaliação do caso, através de orientações e encaminhamentos.
• Realização de visita domiciliar e institucional.
• Elaboração de estudos sociais.
• Coordenação do grupo de famílias - oficinas preventivas - e da formação com familiares.
• Representação institucional.

A maioria dessas atribuições passa por estratégias utilizadas pelo(a) assistente social, as quais
permitem o conhecimento das demandas do usuário. Tal procedimento denomina-se “processo de
conhecimento”19, fundamental para a interpretação da realidade e a construção de alternativas de
intervenções.

ATENDIMENTO INICIAL
O atendimento inicial é realizado em conjunto com um profissional da área jurídica. Nesse
momento, a equipe jurídico-social identifica-se, apresenta a instituição, coleta dados pessoais do
usuário através de software específico (SGDE)20 e procura escutar o que motivou a procura pelo
atendimento.

Para o Serviço Social, esse momento oferece uma riqueza de informações, pois é o “...meio
pelo qual é possível decifrar a realidade e clarear a condução do trabalho a ser realizado”21. Isto
favorece a identificação de demandas que também vêm influenciando, direta ou indiretamente, a
situação de vulnerabilidade em que se encontra a família.

O primeiro momento para o usuário é geralmente marcado por muita emoção. Ele encontra-se
bastante fragilizado com a situação de violência vivida, o que nos impede, algumas vezes, de realizar
ou completar a entrevista social onde delineamos o diagnóstico social da família.

Observa-se que apesar da família buscar a defesa da criança vítima de violência, há muitas
vezes uma preocupação em não penalizar o agente ou suposto agente da violência - e,
consequentemente, violador dos direitos, sobretudo quando se trata de violência sexual
intrafamiliar. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

É notório o sentimento de revolta que carregam essas famílias, além do desconhecimento sobre
o que causa a violência. Buscam, nesse momento, uma oportunidade para desabafar e apenas
requerer orientação sobre como proceder diante da situação.

Ao falar da necessidade e da obrigatoriedade de comunicar o caso à autoridade competente, as


famílias, muitas vezes, expressam uma certa resistência. Nestes casos, tanto o assistente social
como o profissional da área jurídica realizam uma intervenção para sensibilizá-las para a causa,
baseados nas legislações de proteção nacional e internacional da criança e do adolescente, tais
como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança:

19
SANTOS, 1999. p. 13.
20
Sistema Gerenciador de Denúncias.
21
IAMAMOTO. 2003. p. 63.
47
Art. 19 – Os Estados-parte tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais
e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência
física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive
abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de
qualquer outra pessoa responsável por ela.22

E o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 5º – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma
da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.23
Art. 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou
adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais.24

Ainda sobre a resistência em não notificar, identificamos vários motivos que perpassam por esse
momento, dentre eles o medo de represália, a preocupação em afastar aquele que é o provedor da
família e a própria cultura da impunidade impregnada na sociedade brasileira. Nestes casos, todos
os esclarecimentos possíveis são realizados pela equipe jurídico-social, proporcionando às famílias
alternativas para afastar a criança ou adolescente do suposto agente da violência e comunicando o
caso à autoridade competente.

ENTREVISTA SOCIAL
Logo após o término do atendimento inicial, o Serviço Social procura agendar a entrevista social
com o usuário. Ela é realizada pelo assistente social, mediante utilização de instrumentos para
coleta de dados sobre informações acerca da composição e dinâmica familiar, situação econômica,
situação de saúde e relação da família com o suposto agente da violência (ver Anexo 2).Vale
destacar que este é um momento único para cada usuário, desenvolvido à luz dos princípios
teóricos, metodológicos e éticos que norteiam a profissão. É importante registrar as informações
mediante explicações para o usuário, de forma que ele entenda o objetivo e a importância de tal
registro, não se sentindo constrangido.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Essa intervenção no projeto de defesa tem como objetivo realizar uma avaliação social voltada
não só para compreender em que contexto a criança (ou adolescente) se encontra inserida,
como também para identificar outras demandas na família que necessitam de orientações e
encaminhamentos para a rede de proteção social.

Durante a entrevista, é comum identificar que o usuário já passou por diversas instituições
públicas e não teve o devido esclarecimento acerca dos seus direitos, apresentando alto grau de
expectativa quanto ao atendimento.

É atribuição do assistente social dispensar especial atenção às demandas trazidas pelo usuário,
informando-o corretamente sobre os encaminhamentos necessários, mediante contato prévio no
local onde ele será encaminhado. SILVA (2001) ressalta:

Convenção sobre os Direitos da Criança. 2002. p. 20.


22

Estatuto da Criança e do Adolescente. 2004. p. 13.


23

Idem. p. 14.
24

48
... o conhecimento da realidade e dos serviços comunitários, do seu funcionamento
e dos critérios para inclusão, deve fazer parte do saber profissional. Isso evitará
o desrespeito de encaminhar o entrevistado a lugares que não o atenderão em
suas necessidades ou que passarão a intervir no seu sistema familiar de forma, às
vezes, negativa.25

Tendo em vista ser a instituição um Centro de Defesa dos direitos humanos de crianças e
adolescentes atuando na responsabilização dos agressores, cabe ao assistente social da equipe
estar capacitado e preparado para, na ausência de um advogado, prestar orientações sociojurídicas
e encaminhamentos aos usuários que deles demandarem, relativos ao direito da criança e do
adolescente de ter assegurado o reconhecimento de sua paternidade, pensão alimentícia, guarda,
tutela, destituição de poder familiar, regulamentação de visitas, entre outros, tendo em vista que tais
questionamentos e situações de conflitos familiares são comumente apresentados pelos usuários.

Durante a entrevista social, também é comum realizar encaminhamentos para serviços de


educação formal e especial, saúde, assistência social, psicologia, psiquiatria e outros existentes na
rede de atendimento social. Todos os encaminhamentos são realizados mediante contato prévio
e através de ofício, garantindo certeza e clareza sobre o serviço que está sendo encaminhado e
possibilitando ao Serviço Social o seu monitoramento.

Ressaltamos que as informações coletadas na entrevista são de fundamental importância para


a realização do estudo social que escreveremos adiante. É também a entrevista social, algumas
vezes, determinante para o acompanhamento ou não do caso, de acordo com alguns critérios
estabelecidos pelo Cendhec. Um deles é priorizar o acompanhamento de casos em que a família
possui baixo poder aquisitivo, tendo em vista a dificuldade de acesso ao Sistema de Justiça e
Segurança.

VISITA DOMICILIAR
A visita domiciliar é realizada quando não é possível, através da entrevista social, diagnosticar/
compreender a dinâmica familiar e em que contexto a criança (ou adolescente) se encontra
inserida. De acordo com MAGALHÃES (2003), “a visita tem como objetivo clarificar situações
e considerar o caso na particularidade de seu contexto sociocultural e de relações sociais, não CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
podendo jamais ser uma ‘visita invasiva’”. 26

Anteriormente à realização da visita domiciliar, é importante delinear o objeto de intervenção,


apropriando-se do caso e definindo os objetivos. No projeto de defesa, é comum realizar um
agendamento prévio com a família, quando possível, através do telefone de contato obtido no
primeiro atendimento. Esse aviso prévio deve-se em função do respeito para com as famílias
atendidas. Essas famílias acabam por estabelecer um vínculo com a instituição, enquanto parceiras
na luta pela defesa dos direitos de crianças e adolescentes, na efetivação da responsabilização do
agressor e na garantia desses direitos.

Através das entrevistas realizadas no domicílio, é possível “... conhecer as condições (residência,
bairro) em que vivem tais sujeitos e apreender aspectos do cotidiano das suas relações, aspectos
esses que geralmente escapam às entrevistas de gabinete”.27
25
SILVA. 2001. p. 26.
26
MAGALHÃES. 2003. p. 54 apud FÁVERO. 2005. p. 123.
27
MIOTO. 2001. p.148 apud Idem.
49
Alguns indicadores são considerados relevantes na visita domiciliar, tais como atendimento regular
aos direitos da criança e do adolescente; situação econômica, de moradia e de saúde dos membros
da família; violência; conduta delituosa; dependência química e convivência comunitária.

Esse é mais um exercício do papel educativo do profissional de Serviço Social na equipe do


projeto de defesa, no sentido de ver o usuário como sujeito de direitos e a ele dispensar o seu
saber técnico, orientando-o e apresentando caminhos para a prática da sua cidadania.

VISITA INSTITUCIONAL
A visita institucional realizada pelo Serviço Social tem como principal objetivo conhecer o
desenvolvimento da criança e do adolescente na instituição por eles frequentada, obtendo
informações que subsidiem a defesa ou a promoção do seu direito. No projeto de defesa, tais
visitas ocorrem com maior frequência para as instituições escolares, tendo em vista que, na
maioria dos casos de violência contra crianças e adolescentes, eles apresentam comportamentos
como baixo rendimento escolar e dificuldade de interação social e concentração. Diante da
identificação de tais sintomas, a intervenção do Serviço Social contribui para a busca de estratégias
de superação das dificuldades.

Um outro fazer profissional indispensável na intervenção social é a busca de diálogo na instituição


acerca da participação dos pais ou responsáveis no estabelecimento de ensino. É importante
identificar como a criança se apresenta às aulas e como realiza as tarefas escolares, sendo possível
avaliar a participação da família no desenvolvimento da criança e do adolescente, conforme
preconiza o ECA.28

Há casos em que o direito de visita por parte de quem está sendo acusado de cometer a violência
passa a ser restrito judicialmente, até que seja esclarecido o fato junto aos órgãos competentes.
Nestes casos, a própria família, às vezes, por não se sentir segura, solicita ao Serviço Social
uma visita à escola da criança ou adolescente, no intuito de dialogar junto à direção sobre tal
determinação judicial. É importante ter bastante cuidado nessa intervenção e solicitar aos demais
profissionais o máximo de sigilo, a fim de não expor a criança ou adolescente na instituição.

O instrumento da visita institucional também é parte fundamental para a realização do estudo


CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

social, por proporcionar mais uma leitura da realidade social dos usuários atendidos pelo projeto.

É comum também realizar visitas institucionais através de parcerias, fortalecendo a rede de


atendimento à criança e ao adolescente nas RPAs29. Nesta perspectiva, a articulação poderá ser
realizada por ambos os profissionais do projeto.

ESTUDO SOCIAL
O estudo social é também um instrumento de atuação do Serviço Social no Cendhec, bem como
um suporte fundamental para a compreensão de cada caso. Trata-se de um documento elaborado
pelo assistente social, contemplando todas as intervenções possíveis, expressas através de
relatório e parecer técnico.

Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13/07/1990.


28

Região político-administrativa.
29

50
Sua elaboração consiste no estudo de documentos referentes ao caso e na sistematização de
dados coletados durante o atendimento inicial, a entrevista social, a visita domiciliar e a visita
institucional, além de informes coletados na comunidade, a depender do objeto a ser estudado. Tal
procedimento é realizado mais no campo sociojurídico30, segundo FÁVERO (2003):

...é parte de um movimento de sistematização e aprimoramento de meios para


a intervenção, com vistas ao exercício do projeto ético-político da profissão, que se
coloca na direção do enfrentamento das expressões da questão social com as quais os
assistentes sociais se deparam no dia a dia de suas atividades, em especial aquelas que
envolvem particularidades do exercício profissional.31

Nessa perspectiva, destacamos a importância do correto registro de atendimentos e


procedimentos nas pastas dos casos, pois poderão ser bastante relevantes à elaboração do estudo
social, uma vez que envolve, quase sempre, “...a reconstituição dos acontecimentos que levaram a
uma determinada situação vivenciada pelo sujeito...”.32

Trata-se de um instrumeno que contempla a origem do usuário, sua trajetória e suas condições
no presente, destacando-se o seu processo de socialização, o âmbito de suas relações familiares
(vínculos - relacionamento com a criança e/ou adolescente envolvida no caso), as relações com
a vizinhança, a inserção em grupos sociais, a formação educacional e profissional, a inserção no
mundo do trabalho, o rendimento familiar, o meio ambiente, a situação de moradia e saúde, o
vínculo com a seguridade social, a inserção (ou não) na rede de atendimento social etc.

As interpretações dos dados e o posicionamento profissional sobre a realidade estudada


constituem-se no parecer social. Este está sempre contido no estudo social, respaldado à luz de um
referencial teórico, e reflete uma observação dinâmica do usuário na relação com o seu meio social.
O parecer social permite, ao assistente social, à equipe do projeto e à própria família, a possibilidade
de reflexão e possíveis proposições estratégicas de mudanças, no âmbito da convivência familiar e
da ausência do Estado na implementação de políticas e programas sociais. Isto geralmente dificulta,
sobrecarrega e limita o cotidiano de trabalho. PIZZOL (2003) ressalta que:

...o estudo social é totalmente adequado para demonstrar toda situação que demande
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
acompanhamento e cujas informações sejam importantes em qualquer tipo de
processo.33

Nessa perspectiva, o estudo social também poderá subsidiar o inquérito e/ou processo de
responsabilização do violador dos direitos da criança e do adolescente junto a alguns órgãos do
Sistema de Justiça e Segurança, caso seja requisitado.

Para a realização do referido documento, não existe “receita” ou “modelo” metodológico, mas é
necessária uma atitude profissional que implique a busca do conhecimento de forma mais ampla,
bem como uma maior interação com as diversas expressões da questão social que se apresentam
no cotidiano da prática, com respeito às diversidades e demais princípios fundamentais contidos
no Código de Ética.

30
Que “diz respeito ao conjunto de áreas em que a ação do Serviço Social articula-se às ações de natureza jurídica...” (FÁVERO. 2003. p. 10).
31
FÁVERO, Eunice Terezinha apud CFSS. 2003. p. 10.
32
Idem. p. 28.
33
PIZZOL. 2003. p. 67.
51
PERFIL DAS FAMÍLIAS
São diversas as constituições familiares que se apresentam no cotidiano do atendimento jurídico-
social do Cendhec, no entanto há uma maior incidência de famílias nucleares34, extensas35,
monoparentais36 e “famílias reconstituídas depois do divórcio”37. Algumas com laços afetivos
fragilizados ou rompidos, a depender da situação de violência sofrida, no tocante à criança e/ou ao
adolescente ou ainda na vida conjugal.

A maioria dessas famílias vive em situação de extrema pobreza. São negras, pobres, trabalhadoras,
apresentando baixo grau de escolaridade e com expressivas desigualdades nas relações de gênero. Nas
reuniões e atendimentos, predominam genitoras ou demais responsáveis do sexo feminino.

O baixo grau de escolaridade é fator determinante na dificuldade de acesso a informações,


reflexões, críticas e estratégias de ação, que proporcionem condições de defesa e promoção de
seus próprios direitos. Tais dificuldades dizem respeito aos desafios que permeiam a sociedade
contemporânea, conforme ressalta VITALE (2003) em um de seus artigos:

... inúmeros são os desafios que permeiam a vida da família contemporânea. Podemos
pensar em temáticas como violência intra e extrafamiliar, desemprego, pobreza,
drogas e tantas outras situações que atingem dolorosamente a família e desafiam sua
capacidade para resistir e encontrar saídas.38

Observa-se que, no projeto de defesa, cada família apresenta demandas individualizadas, porém
muitas em relação à ausência de direitos e garantias fundamentais, constituindo-se usuária passiva
de programas sociais que estão sendo assegurados pela Política Nacional de Assistência Social. O
subemprego é algo gritante, pois poucos membros dessas famílias estão empregados com todos os
direitos trabalhistas assegurados. Nesta perspectiva, IAMAMOTO (2003) destaca:

... as tendências do mercado, apontadas por inúmeros estudiosos, indicam uma classe
trabalhadora polarizada com uma pequena parcela com emprego estável, dotada de força
de trabalho altamente qualificada e com acesso a direitos trabalhistas e sociais, e uma
larga parcela da população com trabalhos precários, temporários, subcontratados etc.39
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É essa larga parcela da população, perversamente penalizada pelas injustiças geradas pelo sistema
capitalista, vítima de exclusões e vivendo em um contexto de desigualdades sociais, que atendemos
e passamos a acompanhar no projeto.Vale ressaltar também que todas as pessoas que procuram
o Cendhec, mesmo não ficando em acompanhamento na instituição, são atendidas e obtêm
esclarecimentos, orientações e encaminhamentos.

Apesar da violência ser reconhecidamente um fenômeno que atinge diferentes classes sociais,
o acesso à Justiça para famílias com baixo poder aquisitivo é muito mais difícil e burocrático.
É também possível observar o despreparo técnico e/ou a insensibilidade dos agentes públicos,
no sentido de garantir o direito da criança e do adolescente, chegando-se mesmo a banalizar a
violência e a desestimular o registro da denúncia.

34
“Incluindo duas gerações com filhos biológicos” (SZYMANSKI. 2003. p. 10. In Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71).
35
“Incluindo três ou quatro gerações”. (Idem).
36
“Chefiadas por único progenitor com filhos que não são ainda adultos” (VITALE. 2003. p. 46. In Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71).
37
SZYMANSKI. 2003. p. 10. In Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71.
38
VITALE. 2003. p. 45. In Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71.
39
IAMAMOTO. 2003. p. 32.
52
OFICINAS PREVENTIVAS
A atuação do Serviço Social visa ao fortalecimento e ao empoderamento das famílias. Em todo
processo educativo, trabalha-se a emancipação desses usuários, estimulando-os a uma reflexão
política da sociedade a partir de suas próprias realidades e direcionando-os para uma atuação
individual e coletiva, que possibilite a ruptura do ciclo da exclusão social e da não acessibilidade de
direitos. Ao relatar vivências de grupo, GUIMARÃES (2003) afirma que:

...todos os integrantes de um grupo trazem consigo seu mundo interno, conforme suas
histórias vividas. São histórias constituídas pelas suas relações pessoais, familiares,
profissionais e comunitárias.40

Nessa perspectiva, as oficinas preventivas têm sido estratégicas para o projeto de defesa, uma vez
que, em paralelo aos atendimentos individuais, têm possibilitado a superação da desinformação,
construindo novos conhecimentos e práticas e proporcionando às famílias a organização das suas
demandas, oriundas das mais diversas formas de expressão das questões sociais.

Nelas os familiares passam a ter noção do que é política pública e violência contra crianças e
adolescentes, podendo atuar como agentes multiplicadores em suas respectivas comunidades e em
reuniões escolares de seus filhos. Participam dos movimentos organizados pela luta de interesses
coletivos - Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes,
articulam-se junto aos serviços comunitários para requerer seus direitos sociais e buscam se
fortalecer para o enfrentamento da morosa batalha judicial de responsabilização do agente
violador de direitos. É na própria família, em diversos casos, que se vê “...o espaço da violência, dos
maus-tratos, da mendicância.41

As oficinas ocorrem quinzenalmente e são formadas por pais e/ou responsáveis de crianças
e adolescentes em atendimento no projeto de defesa. Só não participam das oficinas aqueles
familiares que estejam trabalhando e não consigam liberação para participar das mesmas.

A sensibilização para participar dos grupos é realizada no primeiro atendimento (jurídico-social)


na instituição e estimulada nos planejamentos semestrais das atividades com participação das
famílias. Segundo ROSAMÉLIA (2003), em uma de suas conclusões: CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

... o trabalho com grupos possibilita e contribui para a ampliação do conhecimento


da realidade atual, em termos da constituição da família, levando os profissionais e
instituições a atuar de acordo com essa realidade.
Por outro lado, a atenção direta junto aos grupos de famílias favorece a expressão
de sua vivência cotidiana, em termos de sua estrutura, colaborando para que não se
sintam marginalizadas e deslocadas face à realidade.42

Nesse sentido, o momento de planejamento visa a levantar as expectativas das famílias em relação
aos temas a serem debatidos. Geralmente essas expectativas versam sobre temáticas relacionadas
com a infância e juventude, tendo em vista que este é o principal motivo da procura pelos serviços
do Cendhec. No entanto, temos inserido outros temas transversais.

40
GUIMARÃES. 2003. p. 168. In Serviço Social & Sociedade, ano XXIII, nº 71.
41
Idem, p. 175.
42
Idem. p. 177.
53
Dessa forma, têm sido discutidos diversos assuntos, tais como a história da criança brasileira – da
doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral; os direitos fundamentais - como
acessá-los e quais os órgãos que os garantem; a violência doméstica (maus-tratos) e sexual
(incluindo intrafamiliar) - como identificar, prevenir e recorrer; os órgãos de defesa do Sistema
de Garantia de Direitos contemporaneamente; os aspectos sobre o direito de família - guarda,
regulamentação de visitas, alimentos, tutela; o racismo; e a mobilização, organização e participação
no Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Os encontros ocorrem quinzenalmente e os grupos são fechados a cada semestre do ano letivo. É
sempre realizado um contrato de convivência e cada encontro tem a duração de no máximo três
horas. São utilizados recursos audiovisuais, técnicas de dinâmica de grupo, imagens, construções de
painéis e outros recursos metodológicos que estimulam a participação dos integrantes. Também
são disponibilizados materiais como cartilhas de campanhas sobre os direitos da criança e do
adolescente, e outras publicações institucionais voltadas para este público.

Como resultado, citamos alguns depoimentos coletados em uma oficina de avaliação, sempre
realizada no final de cada semestre:

...aprendemos muito e nos sentimos fortalecidos;


...nas oficinas aprendemos como reivindicar nossos direitos;
...as oficinas são maravilhosas. Deveria ter mais. Aprendi muita coisa e fiz novas
amizades. Já estamos colocando em prática tudo que nós aprendemos sobre nossos
direitos e de nossas crianças;
...nos tornamos mais fortes e aprendemos sempre a lutar por uma vida sem violência;
...a minha vida mudou muito depois que eu passei a participar das oficinas;
...eu adorei saber o que era o Dia Internacional da Mulher. Eu não sabia e a oficina me
ajudou. Fiquei sabendo também sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Aprendi
a me sentir muito bem aqui.43

A realização das oficinas também conta com profissionais que compõem a equipe do projeto de
defesa - advogados, psicólogos e estagiários das áreas de Serviço Social, Psicologia e Direito, bem
como com outros atores sociais convidados, a depender da temática a ser discutida no encontro.
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O SERVIÇO SOCIAL E A INTERDISCIPLINARIDADE


Compreendemos que a relação com a realidade social, econômica e cultural não se dá de forma
isolada.Vive-se em uma sociedade em que essas relações se dão de forma global, entendendo que
cada fenômeno observado ou vivido está inserido numa rede que lhe dá sentido e significado.
Desta forma, para o Serviço Social o trabalho interdisciplinar possibilita uma interação entre o
Direito e a Psicologia, uma vez que os casos atendidos no projeto não se encontram dentro dos
contextos e limites de uma só disciplina. Segundo MARQUES e RAMALHO (2006):

...a interdisciplinaridade é uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que


pressupõe uma atitude diferente a ser assumida frente ao problema de conhecimento,
isto é, substituir a concepção fragmentária pela unitária do ser humano.44

Depoimentos coletados junto aos familiares do Projeto da Defesa - oficina de avaliação em 12 de julho de 2007, no auditório do Cendhec, Recife/PE.
43

MARQUES; RAMALHO apud SÁ. 2006. p. 82.


44

54
No âmbito da defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, acreditamos que uma
equipe interdisciplinar seja necessária para a discussão dos casos e só funciona, na sua essência,
se cada profissional se deslocar do seu conjunto de proposições para fora da sua linguagem
específica, tornando-se acessível para todos que compõem a equipe. ETGES (1995), ao refletir
sobre o tema, relata:

...cria-se uma linguagem comum entre os cientistas de diferentes campos ou disciplinas


ou especialidades, mediante a qual eles compreendem o construto do outro e o seu
próprio. Não se cria uma nova teoria, mas a compreensão do que cada um está
fazendo, bem como a descoberta de estratégias de ação que lhes eram desconhecidas,
tanto no interior de sua própria ciência, como com relação às outras e ao mundo
exterior do cidadão comum.45

Dessa forma, o Serviço Social, através de uma atuação interdisciplinar legitimada no dia a dia
de sua prática e nas reuniões de equipe para discussão de casos, colabora e busca a construção
de novas estratégias, com vistas a fortalecer sua intervenção nas demais áreas - nos trabalhos
realizados com famílias (oficinas preventivas), nas entrevistas e encaminhamentos e na elaboração
de estudos sociais, psicossociais ou jurídico-sociais e psicológicos, caso necessário:

..a interdisciplinaridade é uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe


uma atitude diferente a ser assumida frente ao problema de conhecimento, isto é,
substituir a concepção fragmentária pela unitária do ser humano.46

Para o exercício dessa atitude diferente, é necessário despir-se de alguns valores e preconceitos,
tornando-se acessível à escuta de outros conhecimentos científicos também importantes.
Ressaltamos que cada profissional atua conforme a técnica e a ética própria de cada profissão,
devendo prezar em comum a eficiência, o compromisso e o bom senso técnico, na defesa dos
direitos da criança e do adolescente.

No âmbito da prática da interdisciplinaridade no projeto de defesa, cada profissional realiza suas


avaliações de acordo com seu ponto de vista científico que, posteriormente, em reunião de equipe,
é socializado, sendo realizadas novas avaliações e ações voltadas para proporcionar mudanças na CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
situação apresentada.

SUPERVISÃO DE ESTÁGIO
A supervisão de estagiários no projeto de defesa tem acontecido regularmente. A cada semestre
ou ano letivo, estudantes e universidades procuram o Cendhec para a prática do estágio
supervisionado. Nesta perspectiva, a instituição vem se preocupando com a formação profissional
desses alunos, buscando estabelecer compromissos mútuos no que diz respeito à oportunidade
de vivenciar a prática profissional e respectivas responsabilidades (assiduidade e respeito de ambas
as partes). Tudo isso no sentido de não fazer dessa oportunidade uma mera passagem obrigatória
para o recebimento do diploma junto à instituição de ensino, mas procurar amadurecer
tecnicamente, tendo em vista o acúmulo teórico adquirido ao longo do curso.

45
ETGES apud JANTSCH; BIANCHETTI, 1995, p. 73
46
MARQUES; RAMALHO apud SÁ, 2006, p. 82
55
Com o objetivo de proporcionar esse amadurecimento técnico, o estudante perpassa todas as
atribuições que competem ao Serviço Social, orientado a partir de um Plano de Estágio construído
pelo próprio estagiário sob a orientação do técnico. São realizados momentos de supervisão com a
discussão de textos previamente selecionados, esclarecimentos de dúvidas no cotidiano da prática e
avaliações, com o objetivo do próprio estudante construir sua identidade profissional.

Ademais, considera-se a supervisão de estágio um processo educativo que acontece entre o


supervisor e o estudante, com trocas e debates que enriquecem e inovam conjuntamente.

REFERÊNCIAS

BACELAR, Rute. O deficiente e o assistente social: uma experiência de sala de aula. Recife: Fasa,
2002. 87 p.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069 e legislação correlata. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2008. 6 ed. 177 p (Série Legislação; n.1).

BURIOLLA, Marta Alice Feiten. Supervisão em serviço social: o supervisor, sua relação e seus papéis.
3 ed. São Paulo: Cortez, 2003. 209 p.

CONSELHO Federal de Serviço Social (org). O estudo social em perícias, laudos e pareceres
técnicos: contribuição ao debate no Judiciário e na Previdência Social. São Paulo: Cortez, 2003. 96 p.

CONVENÇÃO sobre os direitos da criança. Recife: Save the Children. 20 p.

COSTA, Elisabeth Francisca da; SILVA, Moacir Vieira da; PRAZERES, Renata Cristina Barros.
Representações sociais e guarda paterna: um estudo sobre as motivações do genitor para requerer
a guarda do(a) filho(a). 2004. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Serviço Social). Recife:
Universidade Católica de Pernambuco, 2004.

ETGES apud JANTSCH, Ari Paulo; BIANCHETTI, Lucídio et al. Interdisciplinaridade: para além da
filosofia do sujeito. Petrópolis:Vozes, 1995. 204 p.

FÁVERO, Eunice Terezinha (org). O serviço social e a psicologia no Judiciário construindo saberes,
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conquistando direitos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2005. 240 p.

FERNANDES, Helena M.R (coord). Psicologia, serviço social e Direito: uma interface produtiva.
Recife: Universitária, 2001. 170 p.

GUIMARÃES, Rosamélia Ferreira. Famílias: uma experiência em grupo. In: Serviço social & sociedade.
São Paulo: Cortez, 2003. v. 23, n. 71, p. 165-179.

GRUPO DE Estudos e Pesquisas sobre Ética. Coletânea de Códigos de Ética Profissional do(a)
Assistente Social. Recife: CTC, 2003.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2003. 326 p.

PIZZOL, Alcebir. Da prática do estudo social e da perícia social no Judiciário catarinense junto aos
procedimentos da infância e da juventude. Florianópolis: TJSC, 2003. 138 p.

56
RICHARDSON, Roberto J. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999. 334 p.

SÁ, Jeanete L. Martins de (org). Serviço social e interdisciplinaridade: dos fundamentos filosóficos à
prática interdisciplinar no ensino, pesquisa e extensão. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2006. 95 p.

SANTOS, Leila Lima. Textos de serviço social. 6 ed. São Paulo: Cortez, 1999. 200 p.

SZYMANSKI, Heloísa.Viver em família como experiência de cuidado mútuo: desafios de um mundo


em mudança. In: Serviço social & sociedade. São Paulo: Cortez, 2003. v. 23, n. 71, p. 9-25.

VITALE, Maria Amália Faller. Famílias monoparentais: indagações. In: Serviço social & sociedade. São
Paulo: Cortez, 2003. v. 23, n. 71, p. 45-62.

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57
8 FORTALECENDO PARA A LUTA: O
ATENDIMENTO PSICOLÓGICO NO
CENDHEC
Wanda Lage47
Pedro Figueiredo48
Isabel Ribeiro49

A violência sexual e a violência doméstica contra crianças e adolescentes, quando reconhecidas,


exigem medidas imediatas, intervenções legais, sociais e terapêuticas, com a finalidade de
restituir os direitos humanos violados, assim como a possibilidade de garantir a essas crianças
e adolescentes as condições favoráveis para um processo de desenvolvimento saudável e não
ameaçado.

As intervenções legais são revestidas de um potencial terapêutico quando restituem à vítima a


condição de sujeito de direito, anteriormente negada e reduzida à condição de objeto por seu
agressor. Através da conscientização paulatina dos direitos, observam-se, em grande parte dos
casos atendidos, mudança de atitude e certo empoderamento, que repercutem numa melhor
organização familiar e social.

Quando o agressor é também o genitor e provê não só materialmente, mas também


simbolicamente essa família, com sua chefia masculina, uma ruptura familiar é observada com
a revelação da violência sexual e/ou doméstica e a denúncia. A situação pode ser considerada
um dos danos secundários da violência sexual contra crianças e adolescentes. Estes, apesar de
poderem estar inicialmente confusos e afetivamente envolvidos, sentirão falta dessa pessoa na
família, posteriormente, com uma melhor compreensão do fato, percebendo o agressor como
imaturo, dependente e causador de sofrimento e desamparo emocional.

Através do fortalecimento dos cuidadores não agressores, essa família é reconstruída. É frequente
observar mudanças que envolvem o processo - de casa, de emprego e, por vezes, de cidade - e
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mudanças que envolvem perdas e separações (uma existência mais digna sem a vivência traumática
e constante da violência).

Apesar de toda ansiedade, revitimização causada nas audiências, sofrimento e sentimentos de


desesperança envolvidos no processo judicial, em decorrência da desestrutura do Judiciário e
da banalização da violência sexual e doméstica, além de outros fatores, a possibilidade de uma
existência não mais ameaçada e violentada, com afastamento do agressor, promove ganhos
positivos e preservação dos direitos humanos que foram violados.

Paralelamente à intervenção jurídica está a intervenção terapêutica, que acolhe a demanda de


crianças, adolescentes e cuidadores, buscando o apoio e fortalecimento deles, em decorrência
da crise instalada com a situação traumática da violência sofrida. Como o Cendhec é um Centro
de Defesa de direitos, sua função precípua é a intervenção jurídica na busca da responsabilização

Doutora em Antropologia e ex-psicóloga do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec.
47

Ex-estagiário de Psicologia do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec.


48

Psicóloga do projeto de defesa dos direitos da criança e do adolescente / Cendhec.


49

58
daqueles que violam direitos de crianças e adolescentes. O atendimento psicoterapêutico
do Cendhec tem o importante papel de fortalecer crianças e adolescentes vitimizados,
como também suas famílias, para o longo percurso do processo judicial que se instala com a
denúncia. O equilíbrio emocional das vítimas e suas famílias, nas diversas fases do processo
judicial, vai contribuir para uma intervenção mais eficaz do setor jurídico, no que diz respeito à
responsabilização do violador dos direitos da criança e do adolescente.

Sabe-se da grande necessidade e carência de atendimentos psicológicos com os agressores - e o


quanto o acompanhamento às vítimas se tornaria “antiterapêutico”, caso eles fossem acolhidos
conjuntamente. No caso do abuso sexual, por exemplo, percebe-se a tendência do terapeuta se
tornar cúmplice, conforme ilustra FURNISS (1993: 15):

Eu tentei solucionar o problema terapêutico e de proteção à criança que sofrera abuso


sexual puramente através de formas tradicionais de terapia e terapia familiar. A análise
metassistêmica dessa terapia revelou que eu, como terapeuta, havia me tornado parte
do sistema familiar de segredo. A terapia tornou-se uma “terapia antiterapêutica”, com
a criança permanecendo desprotegida. O abuso continuava com crescentes ameaças à
criança e com o decrescente risco de revelação da pessoa que cometia o abuso - e era
pior e mais prejudicial do que antes.

A intervenção legal e o processo de responsabilização do agressor tornam-se terapêuticos


também, no sentido de dar um limite externo através da lei para alguém que não consegue
dá-lo por si só. Sem esse limite, a possibilidade da criança ou adolescente permanecer vítima
se torna muito maior. Sabe-se da grande necessidade das pessoas que cometem abuso de
receber acompanhamento psicológico paralelamente à responsabilização. E também são visíveis
a precariedade e a inexistência de serviços oferecidos exclusivamente para essas pessoas, cujo
convívio com crianças e adolescentes é ameaçador à sua integridade física e emocional.

No caso da violência sexual, crianças e adolescentes vítimas tornam-se agressivos, agitados,


inquietos ou quietos demais, e passam a vivenciar, de forma acentuada, a sexualidade, confundindo
o receber carinho e apoio emocional com o receber carícias e estímulos sexuais. Eles têm
dificuldades de aprendizagem e para fazer amigos, na maioria das vezes, com sentimento de CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
menos valia, tristeza e culpa por não compreenderem o verdadeiro sentido de sua participação
na situação em questão. Geralmente também são observadas dificuldades para dormir, pesadelos
e sensação de mal-estar durante a noite, além de crises de choro sem motivos aparentes,
demonstrando sintomas fóbicos decorrentes das ameaças sofridas.

É muito comum observar embutida em alguns discursos a ideia errônea da “criança sedutora”.
Estereótipo originado, segundo Furniss (1993), na projeção do pensamento sexual de adultos nas
crianças. A dependência intergeracional deve ser enfatizada como elucidativa do que realmente
acontece nesses casos. Uma criança em desenvolvimento apresenta dependência estrutural dos
adultos. Estes, por sua vez, têm uma responsabilidade também estrutural em relação a ela, segundo
o autor supracitado. Portanto, a violência sexual, de forma generalizada, objetiva a realização de um
desejo sexual do adulto - e não a necessidade de apoio emocional da criança.

59
CHEGADA AO ATENDIMENTO
Dentre as características observadas referentes ao estado emocional dos cuidadores que chegam
ao atendimento, em sua maioria mães, observamos alguns traços comuns:

• profundo sentimento de culpa por não ter evitado a situação de violência sexual;
• raiva diante do segredo da filha ou filho;
• desesperança em relação ao processo judicial;
• sintomas fóbicos;
• sintomas depressivos;
• insônia, inapetência, crises de choro e irritabilidade;
• fragilidade egoica;
• perda de objetivos de vida;
• dificuldade em dar suporte emocional à criança ou adolescente vítima de violência.

Também podem ser observados alguns indicadores, sinalizando que apenas a intervenção
psicológica não será tão eficaz quanto a intervenção mais diretiva e conjunta do(a) assistente
social e dos advogados. Quando a família parece apresentar resistência em reconhecer a gravidade
do fato e das necessidades de proteção à criança ou adolescente, um atendimento multidisciplinar
parece imprescindível. Neste caso, foi comum observar:

• tendência a negar o ocorrido;


• tendência a obter ganhos com a violência sofrida (casos de exploração sexual);
• atitude de não acreditar no discurso da criança ou adolescente;
• passividade;
• dificuldade para agir com autonomia e em prol da criança (ou adolescente), quando ela
é financeira ou emocionalmente dependente do agressor.

A partir dessas observações, foi criado o grupo de acolhimento de familiares, cujo objetivo é
o fortalecimento deles através de experiências e intervenções do profissional de Psicologia,
facilitador do grupo, que possibilita uma reflexão e a promoção de um comportamento mais
autônomo. Esse grupo acolhe os familiares recém-chegados à instituição e tem duração de quatro
meses, dando apoio e fortalecimento adequados. É feito também um grupo reflexivo quinzenal,
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com duração de três meses, onde são propostas atividades e discutidos temas levantados pelos
participantes.

60
O PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO INDIVIDUAL

Entrevista inicial ou acolhimento

Anamnese

Entrevista devolutiva
Orientação

Avaliação

Acompanhamento

Follow-up

A ENTREVISTA INICIAL (OU DE ACOLHIMENTO)


Inicialmente é realizada a entrevista inicial (ou de acolhimento). Através da técnica da psicoterapia
breve e da abordagem centrada na pessoa, de Carl Rogers, inicia-se a escuta do cuidador, que
chega ao atendimento psicológico em busca de apoio, orientações e fortalecimento. Este é um
momento importante do processo terapêutico, onde o sofrimento psíquico do cuidador parece
mais insuportável e, a necessidade de acolhimento deste sofrimento, mais urgente. No momento CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
inicial também é realizado o contrato terapêutico, explicando que a criança ou adolescente terá
que comparecer ao atendimento uma vez por semana, em determinado horário compatível com
a sua rotina, sem que atrapalhe a escola, durante um período de três a seis meses. Também é
realizado o convite para a participação no grupo terapêutico de familiares, cujo objetivo é a troca
positiva de experiências facilitadoras, promotoras de fortalecimento e superação de sofrimento.
Posteriormente ao encontro, marca-se a data para a realização da anamnese.

A ANAMNESE
A entrevista de anamnese (ver anexos 3 e 4) é guiada por um instrumento que consiste num
roteiro de entrevista com questões abertas e faz parte do processo de avaliação, facilitando a
compreensão dos principais sintomas apresentados pelas pessoas atendidas, além do auxílio na
definição dos objetivos a serem alcançados e dos focos a serem trabalhados no processo de
acompanhamento psicológico, baseado na técnica da psicoterapia breve.

61
Através das perguntas realizadas sobre o processo de desenvolvimento psicológico e social e as
dificuldades de crianças e adolescentes, promove-se uma reflexão sobre a percepção de alguns
comportamentos. No momento da anamnese, também podem ser realizadas algumas orientações,
tendo em vista a necessidade do cliente e a sua demanda.

A AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA
A avaliação psicológica compreende os primeiros atendimentos à criança ou adolescente,
variando geralmente de três a quatro sessões, onde inicialmente fazemos a escuta de crianças e
adolescentes, perguntando se eles sabem o motivo de estarem ali - se possível, ainda na primeira
sessão, aplicamos o questionário autobiográfico. Então, nas sessões seguintes, podemos utilizar o
teste projetivo H.T.P.50, as fabúlas de Düss e os contos de Madeleine T. Rey.

O ACOMPANHAMENTO
O acompanhamento consiste no atendimento psicoterápico de crianças e adolescentes que,
dependendo da demanda, dura de três a seis meses. São 40 minutos semanais por sessão. Como
principais sintomas, agressividade, profundo sentimento de tristeza, sentimento de menos valia,
irritabilidade, vivência precoce da sexualidade, manipulação de genitais, insegurança, fobias (medo
intenso de espaços abertos, de ficar só etc). Além deles, dificuldade de aprendizagem, distúrbio do
sono, amadurecimento precoce, pouca percepção da inadequação dos agressores, tendência a não
respeitar limites, necessidade de receber mais atenção, entre outros.

Como resultados observados em crianças e adolescentes que receberam alta e se encontram


em processo de acompanhamento psicológico já em finalização, percebemos maior organização
social, autonomia e autoconfiança em relação ao estado em que se encontravam no início
do atendimento.Vale salientar que houve novas demandas surgidas ao longo do processo
terapêutico, as quais não estavam relacionadas com a crise desencadeada pela situação de
violência. Observamos que tais crianças e adolescentes seriam beneficiados com a continuação do
acompanhamento. No entanto, como o trabalho se dá na linha da psicoterapia breve, o que não
pressupõe um processo terapêutico prolongado, é feito um encaminhamento para outros serviços,
onde essas crianças e adolescentes possam continuar se beneficiando de um acompanhamento
psicológico.
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AS ORIENTAÇÕES
As orientações consistem em recomendações e sugestões para familiares/responsáveis de crianças
e adolescentes durante o atendimento.Vale ressaltar que elas não têm caráter impositivo do saber
do profissional, mas o propósito de oferecer uma reflexão sobre tais recomendações e sugestões
junto aos familiares/responsáveis, a fim de que eles escolham o que lhes convier.

ENTREVISTAS DEVOLUTIVAS
As entrevistas devolutivas consistem em dar um retorno para os pais/familiares sobre o
andamento do acompanhamento psicológico da criança e do adolescente. Tais encontros também
servem para esclarecer dúvidas quanto ao que se apresenta no atendimento ou para obter
informações que possam ter sido esquecidas ou não ficaram claras na anamnese. Com a finalização
do processo, acontecem também alguns encaminhamentos, sempre que necessário.

Para o teste H.T.P., utilizamos como referência para aplicação e interpretação o livro de Campos (1984).
50

62
O FOLLOW-UP
O follow-up é o processo final do acompanhamento, onde após o intervalo de três meses do
término da psicoterapia é feita uma nova avaliação para ver os ganhos obtidos, a fim de saber se
é preciso fazer um novo acompanhamento de acordo com os resultados. Consiste geralmente
em três encontros, seguindo a mesma proposta da avaliação. Tal procedimento gera um relatório
de atendimentos, onde é mencionado e discutido o estado inicial quando da chegada da criança e
do adolescente, bem como o processo psicoterápico e o estado em que se encontram depois a
criança e o adolescente, avaliando-se os ganhos.

AS BASES TEÓRICAS
A abordagem centrada na pessoa, teoria que orienta a prática cotidiana dos atendimentos
psicológicos no Cendhec, foi fundada pelo psicólogo norte-americano Carl Rogers (1902–1987).

Desenvolvida a partir das suas observações realizadas no exercício da psicologia clínica, a teoria foi
aperfeiçoada e sistematizada por Rogers, que se preocupou em fundar uma abordagem psicológica
com fundamentação teórica.

Esse psicólogo foi educado numa família extremamente unida, de fortes valores religiosos e morais.
Aos 12 anos, ele foi morar numa fazenda devido ao fato do pai tornar-se um negociante bem-
sucedido e querer afastar seus filhos adolescentes das “tentações” da cidade grande. Através da
agricultura científica, atividade desempenhada por seu pai no manejo da fazenda, Rogers encontrou
o caminho que o conduziu a uma percepção fundamental da ciência.

Iniciou sua graduação em Agricultura na Faculdade de Wisconsi, largando o curso no segundo


ano em favor do sacerdócio, devido às grandes discussões religiosas que mantinha em reuniões
estudantis. Ingressou no curso de História, consciente que estaria fazendo a melhor opção.
No entanto, através do convite para participar de uma viagem à China, com a finalidade de
participar do Congresso Internacional da Federação Mundial dos Estudantes Cristãos, tornou-se
independente emocionalmente ao romper com os valores morais e religiosos dos pais. Nesta
viagem, Rogers percebeu que pessoas honestas e sinceras se dedicavam, com liberdade, aos mais
diferentes tipos de religião.
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Ao regressar da China, decidiu entrar no Union Theological Seminary, em 1924, passando dois
anos na instituição. Foi influenciado por alguns professores, no sentido de buscar a verdade
independente de onde esta o levasse. Percebeu que temas como o significado da vida muito o
interessavam, mas sentia-se, de certa forma, reprimido ao ter que defender, por trás disso, uma
crença religiosa. Foi então que decidiu se tornar psicólogo, ao se dar conta da necessidade de
buscar mais liberdade de pensamento. Começou a participar de alguns cursos no Teacher´s
College da Universidade de Colúmbia, trabalhando ao lado de seus professores e iniciando
trabalhos práticos com crianças.

Seu primeiro emprego foi como psicólogo contratado no Child Study Department, da Associação
para a Proteção à Infância, em Rochester, Nova York. Rogers passou 12 anos como psicólogo
nesta instituição e foi neste período, através da observação do que funcionava e do que era eficaz
nas relações com seus clientes, que traçou os princípios norteadores da sua teoria. Ao aceitar
seus sucessos e fracassos em meio a incidentes, deu-se conta que “é o próprio cliente que sabe

63
aquilo que sofre, a direção a tomar, os problemas cruciais, as experiências recalcadas” (ROGERS,
2001:13).

Recebeu algumas influências posteriores de Soren Kierkgaard, sobretudo ao tomar emprestada a


frase “Ser o eu que verdadeiramente se é”, a qual constitui a resposta de Rogers para a pergunta
“Qual a meta da vida”?

Possuía uma visão otimista e positiva do ser humano, diferentemente de psicanalistas mais
tradicionais como Melanie Klein e Freud, que captaram o lado mais obscuro da humanidade,
enfatizando uma visão patológica. Ao relacionarem a violência e a sexualidade com a luta pela
sobrevivência e dominância, eles esqueceram dois fatores também importantes que Rogers
resgata: a reciprocidade e o altruísmo. Para Rogers, os seres humanos precisam de aceitação e,
quando esta lhes é dada, movimentam-se, então, em direção à autoatualização.

Dentre os conceitos que nortearam sua prática, Rogers desenvolveu os conceitos de “tendência
atualizante” e “self”. Para ele, as pessoas têm fundamentalmente uma orientação positiva:

Quando consigo efetivamente compreender os sentimentos que exprimem, quando sou


capaz de aceitá-los como pessoas separadas em todo seu direito, nessa altura vejo que
tendem a orientar-se em determinadas direções (...) (Rogers, 2001: 31).

E complementa caracterizando as direções que estão subentendidas nos seus movimentos:


“positiva, construtiva, tendente à autorrealização, progredindo para a maturidade e para a
socialização”.

A “tendência atualizante”, além de visar à manutenção, ao crescimento e à reprodução do


organismo, abre caminho para o novo e para a possibilidade da criatividade. Por ser inerente
ao ser humano, esta tendência pode “ser frustrada ou desvirtuada, mas não destruída sem
que se destrua o organismo” (Rogers, 1983:40). Na sua teoria, o comportamento neurótico
é justamente a consequência ou produto desta desunião e separação entre a tendência e a
realização (MEIRELES, 2002).
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Apesar da resistência em aceitar os conceitos de patologia e normalidade, ROGERS (1992:577)


define a neurose como a satisfação de necessidades pelo organismo não reconhecidas pela
consciência, “através de meios comportamentais coerentes com o conceito de self que, portanto,
podem ser conscientemente aceitos”.

O self é a imagem que o indivíduo cria para si, a qual, muitas vezes, o impede de expressar com
liberdade seus mais genuínos sentimentos ou sensações, por não corresponder ao seu modelo
- as expressões de raiva quando se tem como self uma imagem de “bonzinho”, por exemplo. A
atitude de reprimir os sentimentos de raiva e hostilidade é especialmente reforçada pelos meios
religiosos e sociais. As noções de pecado e de bom filho internalizadas tenderiam a ser as maiores
causadoras de distúrbios psicológicos.

64
MEIRELES (2002), em relação ao conceito de self, traz a seguinte citação de ROGERS (1992:566):

Como resultado da interação com o ambiente, e particularmente, como resultado


da interação avaliatória com os outros, é formada a estrutura do self – um padrão
conceitual organizado, fluido e coerente de percepções de características do eu e do
mim, juntamente ligados a este conceito.

Ao oferecer na terapia a liberdade de experimentação de qualquer sentimento genuíno e


anteriormente reprimido, em função das relações sociais e da possibilidade de recriminação,
reprovação ou julgamento, a pessoa pode livremente se expressar e se dar conta do desequilíbrio
vivido entre suas reais experiências e as percebidas pelo seu organismo. A pessoa torna-se
motivada a buscar autenticidade e autonomia, à medida que é aceita sem julgamentos como
pessoa livre e única.

Para favorecer e motivar a pessoa a ser quem ela é, sem medo de sofrer qualquer exigência por
parte do terapeuta, Rogers defende a importância das atitudes do psicoterapeuta. Daí o motivo
da sua psicoterapia ser também chamada de não diretiva. A compreensão empática, a congruência
e a aceitação incondicional positiva são as principais atitudes que devem ser encontradas num
psicoterapeuta centrado na pessoa.

Essas atitudes devem ser compatíveis com o jeito de ser do profissional, pois não são posturas a
serem assumidas somente na hora do atendimento e aplicadas apenas dentro da técnica. Devem
fazer parte da filosofia de vida do facilitador centrado na pessoa e combinar com a sua visão de
homem e de mundo. Só acreditando verdadeiramente nessas atitudes tal teoria faz sentido. Caso
contrário, o que se percebe é uma incoerência, ferindo seus pressupostos básicos e indo contra ela:

Descobri que quanto mais conseguir ser genuíno na relação, mais útil esta será. Isso
significa que devo estar consciente dos meus próprios sentimentos, o mais que puder,
ao invés de apresentar uma fachada externa de uma atitude em um nível mais
profundo ou inconsciente (...). É somente desta maneira que o relacionamento pode
ter realidade, e realidade parece ser profundamente importante como uma primeira
condição. CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

Só sendo autêntico e verdadeiro na relação, o psicoterapeuta rogeriano será capaz de oferecer as


condições necessárias para o favorecimento do cliente. Ao oferecer sua realidade através de suas
intervenções, o terapeuta dará condições ao cliente de buscar a sua.

Para ROGERS (2001), a autoconsciência e a presença humana do terapeuta são mais importantes
que o seu treinamento técnico. Estas são as características mais afins com as condições facilitadoras
da relação terapêutica. É importante ressaltar que se essas condições são favoráveis para uma relação
onde ocorre o crescimento humano, então elas devem estar presentes também em outros tipos de
relação - entre amigos, na vida familiar e também na escola, entre professor e aluno. Essas atitudes não
existem isoladamente, mas estão imbricadas na relação terapêutica.

65
Congruência
Essa primeira condição facilitadora da relação terapêutica diz respeito à importância do terapeuta
estar inteiro, consciente dos seus sentimentos e, portanto, congruente na relação. “Quando o
terapeuta está completa e precisamente consciente do que está vivenciando num determinado
momento da relação, ele é plenamente congruente” (ROGERS, 2001: 325). Estando congruente na
relação, o que diz será coerente com o que mais profundamente sente. Logo não terá atitudes de
fachada, ou seja, não haverá distâncias entre o que expressa e o que vivencia.

Aceitação incondicional positiva


Esta atitude diz respeito ao clima de aceitação incondicional que é propiciado pelo terapeuta
através da calorosa preocupação que sente em relação a seu cliente e a tudo que lhe diz respeito.
Tanto as atitudes positivas e os bons sentimentos quanto os sentimentos maus, as sensações ruins
e as atitudes negativas são aceitas sem juízo de valor, possibilitando o espaço necessário para que a
própria pessoa entre em contato e descubra o que suas experiências significam.

Compreensão empática
Pode ser conceituada como a habilidade de perceber como o outro o percebe, colocando-se
de forma aguda e profunda no seu mundo - “como se fosse visto do interior”, segundo Rogers
(2001:327). Para o autor, poder penetrar no universo da pessoa, dos seus sentimentos e dos
significados de suas experiências permite uma ampliação do que é claramente conhecido pelo
cliente - e ir mais além, ao exprimir significados de experiências que o cliente ainda não tem
consciência, mas que o terapeuta pode perceber através da compreensão empática. Assim o
mundo particular do cliente é captado como se fosse o seu próprio, mas o “como se” não deve ser
esquecido. É este caráter do “como se” que define a compreensão empática. Rogers explica ainda
que não basta que essas atitudes existam no terapeuta, sem que o cliente possa experimentá-las. É
preciso que o terapeuta saiba comunicá-las ao cliente e este possa apreendê-las.

A LUDOTERAPIA
Na ludoterapia não diretiva, o espaço que a criança ocupa é de liberdade.Vai ser garantida à
criança a liberdade dela ser o que quiser e de desejar o que quiser. Neste contexto, pode-se
permitir que as emoções venham à tona. Ela não prende nenhum sentimento, ou prende se assim
o desejar. Desta forma, quem conduz o caminhar do processo terapêutico é a própria criança.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

O manejo terapêutico vai proporcionar uma reflexão do que está acontecendo. O que
favorece é a maneira como a reflexão está sendo conduzida, para que a criança possa, por si só,
encontrar seus limites. Isto é, a criança por si só possui a capacidade de resolver seus problemas
satisfatoriamente. Esta é uma premissa importante nessa abordagem. Entretanto, há limites que são
importantes para o decorrer do processo terapêutico, como salienta AXLINE (1972):

Parece essencial para uma terapia mais profunda que a maioria dos limites se restrinja
às coisas materiais, tais como evitar que se destrua irremediavelmente o material de
brinquedo, que se danifique a sala, ou que se ataque o terapeuta.Também os limites de
senso comum, que visem à proteção da criança, devem ser incluídos.

66
Axline ressalta o estabelecimento de limites para a ludoterapia não diretiva, onde apenas aqueles
considerados necessários à manutenção do próprio processo e que visem à proteção da criança
sejam evidenciados.

Cabe descrever como é organizada a sala de ludoterapia nessa abordagem. A sala possui
brinquedos – os mais simples e funcionais – que possuem uma finalidade lúdica - através da
criatividade pode haver uma elaboração do conteúdo conflitivo para a criança. Como exemplos,
bonecos de pano, instrumentos musicais de brinquedo, bichos de pelúcia, famílias de bonecos,
ferramentas de brinquedo, miniaturas de peças de casa, peças de encaixe, jogos, tintas, armas de
brinquedo, papéis, tesoura, lápis coloridos, giz de cera, cola colorida etc.

Através da brincadeira com a família de bonecos de pano, foi possível identificar sentimentos
de hostilidade referentes a alguns membros da família, como no caso de um menino com
suspeita de estar sendo pressionado pela avó paterna para não falar do seu possível segundo
agressor, sobrinho dessa avó. Ao brincar com o boneco que representava a avó, ele sugeriu que
o cozinhássemos, colocando-o em uma série de situações onde caía e se machucava, revelando
hostilidade em relação a esta figura, o que nos chamou atenção e promoveu novas intervenções.

Segundo AXLINE (1972), as crianças devem ter acesso aos brinquedos facilmente, a fim de
que possam ter a liberdade de escolher o material que mais lhes possibilite expressar seus
sentimentos, ou aquilo que lhes convier expressar no momento. A autora acredita que são obtidos
melhores resultados quando todos os brinquedos ficam à vista e as crianças podem escolhê-los
como meios de expressão. Acreditamos que tal liberdade de escolha dos materiais expressivos
permita uma ampliação do caráter fantasístico da criança, que pode usar peças de “faz-de-conta”
de modos eficientes. Por exemplo, na falta de algo que represente um escudo que a criança queira
representar, algum outro objeto, como um tambor, poderá servir.

A preocupação principal na não diretividade é a forma como o terapeuta irá manejar a sessão.
E para fazer intervenções sem trazer os seus conceitos, as suas ideias e as suas regras? É
aconselhável que o terapeuta tenha como base um comportamento de permissividade e aceitação.
Existem conceitos que regem a ludoterapia não diretiva e vão ajudar a conduzir a terapia dessa
forma, pois na ludoterapia não diretiva o cliente é mais importante.Vamos aqui citar o que a CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
autora considera como sendo os oito princípios básicos da ludoterapia não diretiva:

1. O terapeuta deve desenvolver um amistoso e cálido relacionamento com a criança,


de forma que logo se estabeleça o “rapport”;51
2. O terapeuta aceita a criança exatamente como ela é;
3. O terapeuta estabelece uma sensação de permissividade no relacionamento, de tal
modo que a criança se sinta completamente livre para expressar seus sentimentos;
4. O terapeuta está sempre alerta para identificar os sentimentos que a criança está
expressando e para refleti-los para ela, de tal forma que ela adquira conhecimento
sobre seu comportamento;
5. O terapeuta mantém profundo respeito pela capacidade da criança em resolver seus
próprios problemas, dando-lhe oportunidade para isto. A responsabilidade de
escolher e de fazer mudanças é deixada à criança;

51
Relação interpessoal.
67
6. O terapeuta não tenta dirigir as ações ou conversas da criança de forma alguma. Ela
indica o caminho e o terapeuta o segue;
7. O terapeuta não tenta abreviar a duração da terapia. O processo é gradativo e assim
deve ser reconhecido por ele;
8. O terapeuta estabelece somente as limitações necessárias para fundamentar a
terapia no mundo da realidade e fazer a criança consciente de sua responsabilidade
no relacionamento.

Observamos, então, o estilo de conduta primordialmente centrado na criança, numa analogia


à abordagem de Carl Rogers (vale salientar que Axline foi aluna de Rogers). Sendo assim, tal
conduta não diretiva e menos invasiva é usada atualmente nas sessões com crianças no Cendhec.
Tal conduta mostra-se ideal, uma vez que vivências emocionais fortes, que podem vir a ser
representadas através do lúdico, apresentam-se de forma mais livre pelas crianças, fazendo-nos
refletir sobre as emoções despertadas através de suas próprias representações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenemologia da situação de psicodiagnóstico.


Petrópolis:Vozes, 2001. 96 p.

AXLINE,Virgínia Mae. Ludoterapia. 2 ed. Minas Gerais: Interlivros, 1984. 386 p.

CAMPOS, Dinah Martins de Souza. O teste do desenho como instrumento de diagnóstico da


personalidade. Petrópolis:Vozes, 1984. 110 p.

FURNISS, Tilman. Abuso sexual de crianças - Uma abordagem multidisciplinar (manejo, terapia e
intervenção legal integrados). Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. 337 p.

GOUVEIA, Álvaro de Pinheiro. Sol da terra: o uso do barro na psicoterapia. São Paulo: Summus,
1989. 143 p.

MEIRELES, Emmanuel. Abordagem centrada na pessoa: método, influências, visão de ciência e


aplicações da teoria de Carl Rogers. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2002. Disponível
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

em:<http://www.rogeriana.com/meireles/metodo01.htm>.

MELO, Liliane Martins de. Psicoterapia breve: uma abordagem junguiana. São Paulo: Instituto Pieron
de Psicologia Aplicada, 1998.

NASIO, J.D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

PACHECO, Nanci Rodrigues. Principais conceitos da psicoterapia breve. Disponível em: < HTTP://
www.psicoterapiabreve.xpg.com.br>.

ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

__________. Terapia centrada no cliente. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ROSENBERG, Rachel Lea (org). Aconselhamento psicológico centrado na pessoa. São Paulo: EPU,
2007.

68
9 A IMPORTÂNCIA DA INFORMAÇÃO: O
PAPEL DO COMUNICADOR SOCIAL
Paulo Lago52

Os meios de comunicação vêm tendo um papel fundamental na garantia dos direitos humanos.
Esses veículos, também conhecidos como mídia (jornais, revistas, cinema, rádio, televisão,
Internet etc), representam instrumentos essenciais para a efetivação dos direitos fundamentais.
Sem a sua participação ativa, a sociedade não avança na luta por justiça social e respeito aos
direitos humanos.

Dito isso, é importante que a imprensa tenha consciência da sua responsabilidade na produção
e disseminação de programas, entrevistas e matérias, que devem garantir o respeito à dignidade
humana, à cidadania e aos valores éticos e morais.

No entanto, historicamente, observa-se que, na imprensa brasileira, os temas jornalísticos,


especialmente os que faziam referência a crianças e adolescentes, eram colocados nos meios de
comunicação apenas de forma factual ou dentro de um contexto simples. Não eram trazidos em
um contexto explicativo, avaliativo e até propositivo. Em alguns casos, é notória a abordagem
onde são descritos atos violentos contra crianças e adolescentes, sem tratá-los como sujeitos
de direitos:

A imprensa utilizava de conceitos e formatos antigos para cobrir a infância e


a adolescência, muitos deles forjados na ditadura e outros herdados de visões
que datavam do início do século XX. (...) O exemplo mais conhecido (e que
ainda perdura até hoje) é o uso da palavra “menor” envolvendo crianças e
adolescentes de baixa renda no país (Da Árvore à Floresta. Rede Andi, p. 19).

Essa situação é ainda mais grave quando se aborda a violência sexual:

Esse tipo de crime traz uma série de dificuldades como a falta de informações
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
sobre a temática, a dificuldade na obtenção de estatísticas oficiais e, o mais grave,
o preconceito e o receio no relato desse tipo de caso. (...) Por isso, muitas vezes
a abordagem desse tipo de crime era feita sem analisá-la como fenômeno social
e psicológico e sem a devida cobrança às autoridades, para que as providências
fossem tomadas (O Grito dos Inocentes - Os Meios de Comunicação e a
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Rede Andi, 2005, p. 23).

O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, além da criação da Agência


de Notícia dos Direitos da Infância (Andi), em 1992, foi fundamental para o início da mudança
dessa mentalidade. Houve grandes avanços na direção do enfrentamento aos crimes de abuso e
exploração sexual.

Em Pernambuco, surgiram entidades como Auçuba Comunicação e Educação (integrante da


Rede Andi), que há 18 anos aposta em ações prioritariamente voltadas para a promoção e defesa

52
Comunicador social/jornalista e assessor de Comunicação do Cendhec.
69
dos direitos de crianças, adolescentes e jovens, através do potencial pedagógico e mobilizador
da comunicação.Vale destacar também o empenho de outras entidades da sociedade civil, que
buscam a atuação da comunicação de maneira inclusiva, em respeito aos valores humanos:

Foi a sociedade civil, representada por ONGs, movimentos, fóruns e conselhos, a


grande responsável pelo aumento da mobilização em torno do problema do abuso e
exploração sexual. (...) Ainda hoje, mesmo com os avanços no tratamento do assunto
pelas instituições governamentais, as organizações da sociedade se destacam na
discussão e adoção de estratégias de enfrentamento do problema. A sociedade civil
focaliza o atendimento às vítimas e agressores como uma das maiores lacunas das
políticas públicas que vêm sendo implementadas no país. (O Grito dos Inocentes - Os
Meios de Comunicação e a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Rede Andi,
2005, p. 35).

Como consequência desse engajamento, os veículos de comunicação estão voltando as suas


pautas jornalísticas para a inclusão de temas que abordem os direitos da criança e do adolescente,
bem como a sua violação. Estão aparecendo, com maior frequência, pautas sobre os direitos em
questão. Além do abuso e da exploração sexual, outros temas chamam atenção como a violência
doméstica, o trabalho infantil e a ressocialização de adolescentes em conflito com a lei.

Através do trabalho em rede de diversas instituições de comunicação, em várias cidades


brasileiras, houve uma maior atenção para os temas relacionados com os direitos fundamentais de
crianças e adolescentes. Cada vez mais se discute a importância de políticas públicas destinadas
a esse segmento. Além disso, a imprensa vem incluindo pautas sobre experiências positivas, que
ajudam a minimizar o sofrimento de crianças e adolescentes e mostrar os caminhos que devem
ser tomados para a resolução dessas questões.

Os avanços conseguidos foram claros, mas o caminho é muito longo, principalmente quando
se constatam exemplos de violação dos direitos de crianças e adolescentes em televisão, rádio,
Internet, entre outros. Mas não há como negar que a atuação da imprensa é fundamental. Quando
feita de forma ética e responsável, pode ajudar a denunciar violações e fortalecer o debate público
sobre a promoção e garantia dos direitos humanos.
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

O DINAMISMO DO TRABALHO
Nesse contexto, as ONGs, incluindo os Centros de Defesa de direitos da criança e do
adolescente, estão ganhando em importância como referência para os veículos de comunicação, ao
traduzir os temas em questão como parte da pauta jornalística. Há de se enfatizar a preocupação
dessas organizações em incluir profissionais de comunicação em suas equipes.

O comunicador social em um Centro de Defesa desenvolve seu trabalho, antes de tudo, dentro do
que estabelece a missão institucional. Não há como um comunicador trabalhar na assessoria de
um Centro de Defesa se não for um militante da causa dos direitos humanos - e não conhecer ou
estar associado ao trabalho institucional.

Além disso, ele deve ter o dinamismo que a profissão exige. Muitas vezes, o jornalista de um
Centro de Defesa deve ser repórter para buscar e apurar as informações entre seus colegas

70
de trabalho e entidades parceiras. Deve ser editor, quando prepara o informativo da organização.
Deve entender de diagramação e projeto gráfico. Como assessor de imprensa, deve ter um ótimo
relacionamento entre os profissionais de comunicação. E, até em alguns casos, deve aprovar ou
desaprovar o material produzido para campanhas educativas e informativas a serem desenvolvidas
pela instituição.

O comunicador, em um Centro de Defesa, precisa conhecer a atuação de cada membro da


organização. Deve ter habilidade para atuar em várias áreas da organização e acompanhar as
decisões estratégicas, especialmente quando está em jogo a imagem institucional. Por desempenhar
uma atividade que influencia todas as áreas que aborda, deve ter mais do que apenas o domínio da
técnica. Deve compreender a extensão de funções e motivações da sua prática profissional. Este
talvez seja o maior segredo para o sucesso do seu trabalho.

O TRABALHO NO CENDHEC
Reconhecido nacionalmente como Centro de Defesa dos direitos da criança e do adolescente, o
Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social entende que é estratégica a preocupação
com a questão da sua comunicação externa. Para o Cendhec, a imprensa tem um papel fundamental
numa democracia - contribuir para informar os cidadãos para que eles possam exercer
conscientemente suas escolhas.

Hoje os Centros de Defesa são muito mais procurados para falar na imprensa sobre as violações
de direitos sofridos por crianças e adolescentes, especialmente no enfoque da violência doméstica e
sexual. Neste ponto, é importante para a instituição ter uma equipe técnica que esteja preparada e
orientada para saber o que falar e como falar.

O Cendhec percebeu a comunicação como uma estratégia importante para a publicização de


suas ações, bem como para fortalecer a capacidade de ação e articulação institucional, visando ao
enfrentamento da violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes.

O comunicador, no Centro Dom Helder Câmara, tem como responsabilidade tornar evidentes
ações necessárias à exigibilidade de direitos. Essas ações vão além das dimensões jurídicas, pois
também implicam dimensões políticas, éticas, sociais e psicológicas. São princípios que embasam CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
o trabalho da instituição e contribuem para a cobrança de medidas mais eficazes por parte das
autoridades competentes.

Listamos as principais atividades desenvolvidas pelo profissional de comunicação no Cendhec:

• realização de reuniões com a equipe para definição de pautas (a equipe técnica da instituição
tem uma importância fundamental na produção de pautas enviadas para os veículos de
comunicação. São eles, muitas vezes, que podem viabilizar dados oficiais e encaminhar fontes
mais adequadas para a coleta de informações e depoimentos);
• acompanhamento e orientação de técnicos do projeto durante as entrevistas (as orientações
ajudam a melhorar a fala pública no debate sobre diferentes questões do campo social e político.
Uma fala qualificada contribui para a produção de matérias mais qualificadas, com riqueza de
conteúdo. Isto ajuda a evitar a espetacularização e o sensacionalismo do fato. A fala deve ser
sempre clara, objetiva e explicativa, tornando o trabalho da instituição uma fonte de informação);

71
• elaboração de clippings regulares com todo material publicado sobre os interesses da infância e
juventude (um ponto que merece atenção para quem atua na área é manter os profissionais da
organização bem informados a respeito do que é divulgado na mídia acerca das temáticas em
que atuam. O acompanhamento do que está sendo publicado e veiculado na imprensa também
representa um importante papel de controle social. Isto devido ao fato do monitoramento
ajudar a mapear matérias que violam os direitos humanos. O papel do assessor é também
entrar em contato com emissoras/jornais para questionar/criticar matérias ou entrevistas que
tenham sido publicadas ou veiculadas);

• realização de contatos com veículos de comunicação para divulgação das ações do projeto
(é de interesse da instituição, muitas vezes, tornar público algum evento ou campanha, ou
mesmo ter um posicionamento crítico em relação a um determinado assunto. Neste sentido,
o papel do assessor é contribuir com informações através da elaboração de matérias, notas
e sugestões de pautas propositivas sobre a temática. Além disso, ele atua como intermediário
entre os jornalistas e as fontes, para que a temática ganhe visibilidade e receba um tratamento
correto na hora de ser divulgada na mídia);

• atendimento à imprensa (é uma grande responsabilidade do assessor garantir atendimento


adequado ao jornalista, com cordialidade, transparência e rapidez. Esse bom relacionamento
não apenas significa garantir o fluxo de informação para a sociedade, mas gerar confiança, o
que pode ajudar na qualificação do trabalho da imprensa. A postura deve ser sempre ética e
com muita descrição).

A PARTICIPAÇÃO EM ESPAÇOS
Outra importante atividade que também cabe ao profissional de comunicação no Cendhec é a
participação em espaços de articulação e controle social, tais como fóruns e redes. O trabalho
integrado ajuda a fortalecer a luta pela defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Neste sentido, o
Cendhec defende uma atuação articulada com entidades da sociedade civil e órgãos governamentais.

Na Rede de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Estado de


Pernambuco, o Cendhec colabora com ações de divulgação da Campanha do 18 de Maio (Dia
Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes). Este trabalho
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

é importante porque é realizado com o envolvimento de profissionais de comunicação de outras


entidades, governamentais e não governamentais. Isto qualifica ainda mais a pauta sobre o assunto
junto aos meios de comunicação e à sociedade em geral.

A atuação da comunicação envolve diversas tarefas como produção de pautas/matérias abordando


as atividades da campanha e o tema da violência sexual, acompanhamento das entrevistas,
participação nas atividades e na elaboração de material informativo sobre a campanha. É feita
também a clipagem de todo o material publicado.
Junto com outras seis ONGs pernambucanas, o Cendhec participa da Ação em Rede pela Criança
e Adolescente (Arca) com ações estratégicas para a efetivação do Sistema de Garantia de Direitos
da criança e do adolescente, fortalecendo a luta pela defesa dos direitos humanos.

Além disso, o Cendhec participa do Grupo de Trabalho de Comunicação da Associação dos


Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), que vem colaborando para qualificar

72
a pauta jornalística sobre a temática da criança. É um importante espaço de atuação, porque
compartilha experiências de atuação com outros profissionais de comunicação que atuam em
Centros de Defesa da criança e do adolescente de diversos Estados brasileiros.

A comunicação do Cendhec colabora também na divulgação das ações do Fórum DCA Recife,
produzindo boletins eletrônicos que apresentam as ações do fórum. Além disso, participa de
oficinas estratégicas sobre comunicação, promovidas pela Associação Brasileira das Organizações
Não Governamentais (Abong).

AS CONCLUSÕES
Para o comunicador que atua em um Centro de Defesa como o Cendhec, o desafio é trabalhar
visando ao fortalecimento da visibilidade institucional e das temáticas trabalhadas pelas instituições.
E fortalecer o papel organizacional da comunicação, inserindo o tema dentro do ambiente
institucional, como instrumento de defesa dos direitos humanos.

Em relação à atuação junto aos meios de comunicação, deve manter o relacionamento com
a imprensa. No entanto, isto não deve ser feito apenas dentro da perspectiva de visibilizar a
instituição ou o tema. É importante trabalhar incessantemente para a qualificação da cobertura
jornalística dos direitos de crianças e adolescentes. Não cabe apenas denunciar e relatar o fato,
mas cobrar soluções para a questão, tais como punição de culpados e exigência de políticas
públicas para o atendimento às vítimas. Para tal, é papel do jornalista fazer uma cobertura
diversificada, exata e plural, conhecendo as legislações e ouvindo os diversos segmentos da
sociedade.

Para finalizar, não se pode esquecer o papel do comunicador social nas discussões pela luta da
democratização dos meios de comunicação como direito humano. No Brasil (e Pernambuco segue
infelizmente esta tendência), há uma concentração bastante desigual dos veículos de comunicação:

As violações do direito humano à comunicação no Brasil permanecem constantes,


sendo antes a regra do que a exceção. No início deste século, ao contrário da maioria
dos outros direitos humanos, o exercício e fruição de uma comunicação livre, baseada CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC
no interesse público, onde todas as pessoas e grupos sociais tenham direito a participar
da produção e difusão de informação, ainda são desprezados pelos poderes do Estado
brasileiro (Rede Social, 2006).

Nessa perspectiva, são lutas importantes a implementação da nova classificação indicativa da


televisão; a regulamentação da publicidade para crianças; a realização de campanhas por uma TV
mais democrática e participativa; a defesa das rádios comunitárias, servindo verdadeiramente às
comunidades; e a luta pela inclusão social, efetiva e valorizada, ao alcance de todos.
Vale destacar também a importância do monitoramento da mídia como instrumento
de participação cidadã. Outra questão importante é a criação do Conselho Nacional de
Comunicação, que tem a função de definir uma nova regulação para a comunicação no país, com
maior controle dos conteúdos de rádio, televisão, Internet e impressos, primando pelo respeito à
legislação brasileira.

73
O Cendhec reafirma a defesa da comunicação como direito humano. Por isso, apoia eventos
e ações desenvolvidos pelo Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom), além do seu
envolvimento em diversos espaços institucionais de controle social. E trilha seu caminho seguindo
a missão institucional de atuar na defesa dos direitos da criança e do adolescente.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA DE Notícias dos Direitos da Infância (org). Da árvore à floresta: a história da rede Andi
Brasil (como uma articulação de comunicadores de todo o país está ajudando a colocar a criança e
o adolescente no foco da mídia). Brasília: Andi, 2005. 133 p.

COLETIVO Brasil de Comunicação Social. Direito humano à comunicação: relatório da rede


social. Brasília: Intervozes, 2006. Disponível em: http://www.intervozes.org.br/copy_of_destaque-
4/?searchterm=direito humano à comunicação.

VIVARTA,Veet et al. O grito dos inocentes: os meios de comunicação e a violência sexual contra
crianças e adolescentes. São Paulo: Cortez, 2003. 158 p (Série Mídia e Mobilização Social; v. 5).
CENTRO DOM HELDER CÂMARA DE ESTUDOS E AÇÃO SOCIAL - CENDHEC

74
10 HISTÓRIAS EXEMPLARES*
10.1 Quando a ferida é na gente, a dor é diferente

Já era final de tarde de uma quinta-feira onde tudo parecia tranquilo no atendimento do Cendhec.
Os jornais já tinham sido lidos e recortados com as matérias que nos chamavam mais atenção;
não tinha havido audiência e os casos dos dias anteriores já estavam todos encaminhados. Na
verdade, a equipe já se preparava para sair quando chegou a Sra. Damiana, comunicando que, no
dia anterior, a sua filha Marta, de apenas oito anos, havia sofrido violência sexual.

Na sala de atendimento, Damiana falava o tempo todo que aquilo não podia ter acontecido com a
sua filha. Ela foi atendida de imediato por uma advogada e uma psicóloga, em virtude do estado em
que se encontrava.

Na ocasião do atendimento, Damiana mostrava-se muito agitada e sem querer aceitar a violência
ocorrida com a sua filha. Afinal, o agressor tinha sido o seu cunhado Almir, marido de uma irmã de
quem gostava muito.

Ao ser perguntada se tinha conhecimento do agressor já haver abusado de outras crianças, ela
respondeu que já tinha ouvido falar de outros casos de crianças abusadas por ele na rua em que mora.

- Doutora, quando a ferida é na gente, a dor é diferente. Que pena que teve de acontecer comigo para eu
poder acreditar que esse cara é um monstro.
- Mas por quê? Você tem que entender que esse tipo de violência pode ocorrer com qualquer pessoa...
- É doutora, mas com minha filha eu pensei que aquele homem nunca iria ter coragem... É que ele já fez
isso com outras pessoas da comunidade.
- E ninguém denunciou o que ele fez?
- Na comunidade ninguém denunciou, todos têm medo dele. Só lembro que uma mulher já fez uma
denúncia contra ele antes e não sei como ficou o caso.Também lembro que minha irmã comentou que
ele estava respondendo processo injustamente. Eu nem quis me meter nessa história na época. Não era
comigo mesmo. Só que agora é diferente e eu quero fazer justiça.
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Com bastante dificuldade e o suporte dado pela psicóloga, Damiana começou a relatar o ocorrido,
dizendo que não costumava deixar suas filhas irem sozinhas até a casa da sua irmã, porque existia
um boato que o cunhado costumava exibir seus órgãos genitais para garotas da rua, além de já ter
tentado violentar uma de suas irmãs.

Relatou ainda que, no dia anterior, tinha saído para trabalhar e, ao chegar em casa, percebeu que
Marta estava estranha. Era um misto de medo, aflição e desconfiança. Então resolveu indagá-la
sobre o que estava acontecendo e ficou assustada com o que escutou.

- Marta, o que está acontecendo, filha? Você está tão assustada... Conte, por favor, o que houve para eu ver
como lhe ajudo.
- É que fui na casa do tio Almir, hoje à tarde, brincar com os meninos (referindo-se aos primos).
- Por que você foi sozinha para a casa dele? Eu não já falei que não quero você por lá?

*
Os nomes que aparecem nas histórias são fictícios.
75
- É que fui brincar e ele me prometeu dar um dinheiro.
- E o que aconteceu? Fale logo, já estou ficando agoniada.
- Quando eu estava no jardim, brincando, ele me chamou para ir buscar o dinheiro que estava guardado
no quarto.
- E aí menina? Conta logo o que ele fez. Eu nem posso acreditar. Já pedi tantas vezes para não ir lá sem
tua tia estar em casa, Marta. Onde tu tava com a cabeça, menina? O que ele fez com você?
- Ele não me deu o dinheiro, mainha. Ele só queria mostrar o pinto dele para mim. E depois colocou o
dedo no meu “piu-piu” e lambeu. Eu fiquei com minha roupa suja de um negócio que saiu do pinto dele.
- Como é a história? Cadê a sua roupa?
- Eu limpei com um papel. Só tô falando porque eu não quero que ele faça isso de novo.
- E ele já tinha feito isso com você, Marta?
- Fez uma vez, quando fui brincar lá e tia foi para o supermercado. Só que disse que eu não podia falar
isso para ninguém, senão mandaria prender meu pai.

Damiana estava completamente transtornada. Também pudera. Tinha relatado em casa o que havia
acontecido e, quando disse que ia denunciar, toda a família foi contra, com exceção do marido,
que até o momento não sabia de nada. Todos eram contra a denúncia, porque achavam que aquilo
era um assunto de família e ninguém podia tomar conhecimento. Se ela denunciasse o caso, Almir
poderia ser preso e sua irmã e seus sobrinhos iriam passar necessidade, uma vez que ele mantinha
a família.

No decorrer do atendimento, as coisas foram se esclarecendo para os técnicos do projeto.


Almir é policial civil e uma pessoa de muitas amizades. Por ser policial, estabelece medo em
todos da comunidade por conta da sua profissão. Utilizava-se dessa condição porque acreditava
na impunidade, achava que nada iria acontecer com ele. Ameaçou Damiana, caso ela tomasse
providências em relação ao caso, e como todos acreditavam na impunidade, saiu de casa tranquilo
para trabalhar.

No mesmo dia, Damiana foi acompanhada pela equipe do Cendhec até a Gerência de Polícia da
Criança e do Adolescente (GPCA) para prestar queixa do ocorrido. O atendimento foi realizado
com muita celeridade e uma boa condução.
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Ao voltar para o Cendhec, já existiam outras pessoas da comunidade nos esperando. Essas pessoas
já haviam sofrido o mesmo tipo de violação por parte de Almir e nunca tiveram coragem de
denunciar. Na verdade, elas serviram de informantes no inquérito que apurava a violência sofrida
por Marta.

A família de Damiana, a cada dia, aumentava o cerco, querendo a todo custo que ela retirasse a
queixa que fez contra Almir, como se fosse possível.

Marta e sua família passaram a ser atendidas pela equipe interdisciplinar do Cendhec, na
perspectiva do fortalecimento desses para a responsabilização do agressor. O pai de Marta logo
soube do acontecido e, apesar de arrasado com o que aconteceu com a sua filha, colaborava com
a recuperação dela.

76
No decorrer do inquérito, uma mulher de nome Telma, que havia denunciado Almir há alguns anos
pelo fato dele ter bolinado a sua filha, procurou o Cendhec, desta vez querendo a todo custo
que ele fosse responsabilizado. O medo das pessoas em testemunhar havia levado o Judiciário a
absolver Almir por ausência de provas, no processo em que a sua filha foi vítima.

Almir, sentindo-se vulnerável, resolveu ameaçar todos os envolvidos, afinal parte das testemunhas
havia também sido vitimada. Essas ameaças levaram a delegada a solicitar a sua prisão preventiva,
que de logo foi decretada pelo juiz.

Almir foi preso e assim permaneceu durante toda a instrução judicial, o que veio a fortalecer o
depoimento das testemunhas no processo. Mesmo no presídio, ele continuou a fazer ameaças às
testemunhas e aos profissionais do Cendhec que atuaram no caso.

Após toda a instrução, Almir foi condenado em primeira instância, tendo o juiz fixado a pena
em seis anos de reclusão em regime semiaberto. Não conformado com o resultado, o Cendhec
recorreu ao Tribunal de Justiça de Pernambuco e a mesma foi reformulada para 12 anos de
reclusão em regime fechado. Em um dia de visitas, Almir não resistiu à sua compulsão sexual por
crianças e tentou abusar de uma menina, parente de outro detento, sendo agredido pelos demais
presidiários.

10.2 Vestindo-se de “bom velhinho”...

Era assim que o Sr. Raimundo levava a sua vida. Homem simples, com 66 anos, aposentado, casado,
pai de filhos e, na época, avô de uma linda menina.

Raimundo, como iremos chamá-lo daqui por diante, era também um senhor de muitas amizades no
bairro onde morava. Gostava sempre de agradar aos vizinhos e era uma pessoa muito simpática e
de bom caráter. Bem, esta parte é o que diziam dele.

Não é que todo Natal ele se vestia de “bom velhinho”... “Ele é responsável por fazer a festa
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das crianças, vestindo-se de Papai Noel. Ele distribui presentes para todos. Todos gostam dele
na vizinhança”, foi assim que Neide, genitora de Elaine, descreveu o Sr. Raimundo no primeiro
atendimento realizado pela equipe do projeto. Já era novembro e ela estava preocupada com o
Natal que se aproximava. Mais uma vez iria assistir à “bondade” daquele homem na comunidade, já
que ele era vizinho da sua sogra.

Neide, quando buscou a ajuda do Cendhec, havia três anos que vivia perambulando de um lado
para outro, desesperadamente, com vistas a responsabilizar o Sr. Raimundo por ter cometido
violência sexual contra a sua filha. Até que um dia, um funcionário da Vara Privativa de Crimes
contra a Criança e o Adolescente, por conhecer o trabalho desenvolvido pelo Cendhec, forneceu
para ela o nosso endereço, incentivando-a a nos procurar para ajudá-la a resolver o problema.

Na realidade, aquele funcionário não mais aguentava ver o sofrimento de Neide, que já não fazia
outra coisa senão buscar, incessantemente, informações acerca do processo que tramitava naquela
vara especializada.

77
Quando recebida pela equipe, Neide relatou estar sofrendo muito, dizendo sempre: “Ninguém
acredita em mim. Ele compra todo mundo. Estou sozinha; até minha sogra, às vezes, tem dúvida
que ele tenha feito o que fez...”. Nos seus relatos, ficava evidente o abuso sofrido por Elaine em
suas mãos trêmulas e na sua fala distorcida.

Na verdade, Neide deixava a equipe muito preocupada com o seu estado, pois o sentimento de
vingança era tamanho - tínhamos medo que ela atentasse contra a vida de Raimundo.

Tudo que aquela mãe falou naquele dia era compreensível... Na verdade, Elaine encontrava-se com
oito anos na data do seu primeiro atendimento no Cendhec, porém a violência havia acontecido
quando ela tinha cinco anos.

Naquele momento, pudemos perceber que o tempo não tinha apagado as marcas, nem na mãe e
muito menos na filha, que apesar da sua pouca idade ficava confusa entre a violência que sofreu e
o estado em que se encontrava a mãe.

Com muita dificuldade, Neide relatou que a filha tinha contado que os abusos sexuais aconteciam
sempre na casa de Raimundo, o qual era vizinho da avó da vítima. Elaine costumava frequentar
a residência do agressor para visitar a avó e era exatamente nessas ocasiões que ele costumava
fazer suas investidas, tocando, passando o dedo e a língua no seu “piu-piu”, beijando a sua boca,
entre outros atos, sendo ainda costume do agressor levar a criança para um quartinho de
ferramentas localizado nos fundos da casa.

No momento das investidas, era comum o agressor tapar com as mãos a boca de Elaine para que
a mesma não pudesse gritar, e também a ameaçar caso ela contasse para alguém o que aconteceu
– dizia que mataria sua mãe e seu pai. Elaine lembrou ainda que, em uma determinada ocasião, o Sr.
Raimundo solicitou que ela levasse sua coleguinha para o quartinho de ferramentas, alegando que
“lamberia as duas da cabeça aos pés e depois daria dinheiro para elas” (sic).

Neide nos falou que quando tomou conhecimento desses fatos, logo procurou a Gerência de
Polícia da Criança e do Adolescente para que fossem tomadas as providências cabíveis.
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Ela relatou que a filha, desde muito pequenininha, tem problemas renais e faz tratamento para
sanar este problema. Também percebeu que, no período em que a violência ocorreu, este
problema foi agravado, com a criança se queixando de fortes dores na vagina e no ânus, além de
insônia no período de sono.

Apesar de perceber esses sintomas, Neide em nenhum momento desconfiou que Elaine estivesse
sendo violentada. Achava que os desconfortos apresentados estavam relacionados ao problema
renal do qual Elaine vinha se tratando.

Os fatos só vieram à tona quando Elaine apresentou um comportamento agressivo contra


Raimundo, o que despertou em seus familiares o desejo de procurar saber o que estava
acontecendo. Afinal, Raimundo sempre foi tão legal com Elaine e seus coleguinhas, dando-lhes
frutas e alguns presentinhos... Foi nesta ocasião que a criança relatou que estava sendo abusada
por ele.

78
No mesmo dia, Neide procurou a polícia, posto que já tinha conhecimento do acusado abusar de
outras crianças. Na época, uma de suas vítimas compareceu espontaneamente à GPCA para prestar
declarações acerca da violência que havia sofrido no passado.

Ainda nesse período, Neide recebeu queixas da escola de Elaine, em razão do seu baixo rendi-
mento escolar e da forma como ela vinha se comportando em sala de aula.

Desde seu primeiro atendimento, a equipe do Cendhec passou a acompanhar interdisciplinari-


amente o caso. A criança foi inserida em um processo de terapia breve, porque apresentava sinto-
mas como insônia, nervosismo e medo de sair de casa.

Neide logo foi inserida, juntamente com outros familiares, nas oficinas realizadas pelo Serviço
Social, com vistas a enfrentar a situação.

Por sua vez, foram marcadas audiências para que houvesse a celeridade do processo. No decorrer
disso, como era de se esperar, Raimundo negou os fatos a ele atribuídos. Como se não bastasse,
ameaçou as testemunhas e tentou agredir Neide. Tais fatos levaram o juiz a conceder a prisão
preventiva de Raimundo, que passou em torno de 15 dias preso.

A criança, no momento da sua ouvida em juízo, deparou-se com Raimundo na sala de audiências
e ficou desestabilizada com a situação, ocasião em que o juiz solicitou que ele ficasse do lado de
fora. Suas declarações, nesse dia, foram marcadas por nervosismo e dúvidas.

Depois de concluída a fase de instrução processual, mesmo com fortes indícios do crime apre-
sentados por provas testemunhais, o juiz, em sua sentença prolatada em 18 de dezembro de 2002,
véspera do período natalino, resolveu presentear o “bom velhinho”. Julgou improcedente a denún-
cia e absolveu o Sr. Raimundo por entender que não houve concordância entre a palavra da vítima,
a prova técnica e a prova testemunhal.

Tal sentença causou estranheza por parte de quem conhecia o processo, haja vista o conjunto de
provas reunidas, tais como laudos médicos, declarações de escolas, provas testemunhais - e até
mesmo a palavra da vítima que, em momento algum, teve avaliado o contexto em que a violência se
deu.
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Não conformados com essa situação, o Ministério Público e o Cendhec, como assistente de
acusação, recorreram da sentença prolatada pelo MM Juízo de 1ª Instância por entenderem ser
injusta em seu todo.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao analisar o recurso oferecido pelo Ministério Público,


deu provimento ao mesmo, condenando o Sr. Raimundo a uma pena de 12 anos e seis meses de
reclusão, em regime integralmente fechado, com expedição de mandado de prisão em seu desfavor.

O Sr. Raimundo finalmente foi preso, deixando para a família de Elaine a sensação de dever cum-
prido, afinal se fez justiça. Esta decisão trouxe ainda um forte alívio para a criança, que já não mais
visitava a avó com frequência, em virtude do medo que tinha do agressor.

Por outro lado, Neide passou a multiplicar informações em relação à defesa de direitos da criança
e do adolescente na comunidade onde morava. Até os dias de hoje, é responsável por encaminhar
outras crianças e adolescentes vítimas de violência para o Cendhec.

79
ANEXOS

Anexo 1

FLUXOGRAMA DO ATENDIMENTO JURÍDICO-SOCIAL

Momento I
Recebimento da denúncia
jurídico-social (1º atendimento)

Momento II
Entrevista social para avaliação do caso, parecer
social, orientações, encaminhamentos para a rede
de serviços e visitas domiciliares e institucionais

Momento III
Discussão interdisciplinar do caso

Momento IV
Elaboração de estudo social, entrevistas
e visitas complementares, além de
outros encaminhamentos sociais

Momento V
Trabalho social com famílias - oficinas preventivas
que abordam temas transversais (Estatuto
da Criança e do Adolescente, raça, direito
sexual e reprodutivo, gênero etc) e estímulo à
participação em ações de mobilização social

Momento VI
Reavaliação interdisciplinar do caso (evolução)

Momento VII
Fortalecimento e empoderamento familiar
Anexo 2

REGISTRO DE DADOS/ENTREVISTA SOCIAL/VISITA DOMICILIAR


(instrumento para elaboração do estudo social)

Entrevista social ( ) – data: ____/___/_____ Visita domiciliar ( ) – data: ____/___/_____

DADOS DO USUÁRIO / RESPONSÁVEL


Nome: Parentesco com a C/A:

Idade: Estado civil: RG.


Endereço: Fone p/ contato:

Ponto de referência:

Grau de instrução: [ ] alfabetizado [ ] 1º grau Cor/raça: [ ] branco [ ] negro


[ ] 2º grau [ ] não alfabetizado [ ] pardo [ ] indígena

Trabalha: [S] [N] ....em atividade [ ] formal [ ] informal


DADOS DA CRIANÇA E/OU ADOLESCENTE
Nome:
Endereço: Ponto de referência:

Fone p/ contato:

Encaminhamento:
Filiação:
Data de nascimento: Sexo: [F] [M] Estuda: [ N ] [S]
...curso:
Idade: Cor/raça: Nome da instituição de ensino:
[ ] branco
[ ] negro Bairro:
[ ] pardo
Documentação: nº Grau de instrução:
[ ] indígena
RG [ ] RN [ ] [ ] não alfabetizado [ ] alfabetizado [ ] Maternal [ ] Ens. Fund. I
[ ] Ens. Fund. II [ ] Ensino Médio [ ] 3º grau
Turno: Série:

Trabalha: [ ] não [ ] sim .... em atividade [ ] formal [ ] informal .... Qual?


DADOS DO AGRESSOR E DO FATO DENUNCIADO
Agressor ou suposto: Idade:

Data: Natureza:
Local do fato da violência:

Existia algum relacionamento da vítima com o agressor?

Comportamento do acusado na comunidade (se é agressivo, estuda, onde e com quem reside etc):

O acusado trabalha? Onde?

O que faz?

CONDIÇÕES DE MORADIA DA FAMÍLIA


Localização RPA:

Residem em: [ ] casa [ ] apt° [ ] outros


Próprio [ ] Cedido [ ] Alugado [ ] Outros [ ]
Ambiente interno Ambiente externo
Tipo de moradia: Em época de chuva, a casa é inundada?
[ ] alvenaria [ ] taipa [ ] madeira [ ] sim [ ] não
[ ] outros: ____________________________
Possui:
Distribuição do espaço físico: [ ] água [ ] energia elétrica
[ ] sala [ ] quartos [ ] cozinha [ ] banheiro [ ] saneamento básico [ ] rua asfaltada
[ ] terraço [ ] quintal [ ] área de serviço [ ] outros:________________
Existe lixo exposto?
A C/A tem sua própria cama: [ ] sim [ ] não
[ ] sim [ ] não
Nas proximidades, existe:
Higiene e organização: [ ] posto de saúde
[ ] ótima [ ] boa [ ] regular [ ] péssima [ ] hospital
[ ] escola pública
Possui ornamentação e embelezamento:
[ ] sim [ ] não Necessita de transporte para chegar aos
itens citados:
[ ] sim [ ] não
COMPOSIÇÃO FAMILIAR E SITUAÇÃO ECONÔMICA
Número de pessoas que residem com a C/A: Quem são:
Nome Sexo Idade Grau de Escolaridade
parentesco

Quantos da residência trabalham?


Renda
Nome Ocupação atual Fração
Tipo Valor (R$)

Pensão alimentícia:
Nome Valor (R$) Fração Tipo

Aposentadoria ou BPC:
Nome Valor (R$) Fração Tipo

A família considera sua renda mensal.... [ ] suficiente [ ] insuficiente


Tipo de trabalho: [ ] formal [ ] informal
Participa de algum programa social?
[ ] Bolsa Família - Valor (R$) [ ] Bolsa Escola - Valor (R$) [ ] Leite Pernambuco
[ ] Outros - Especifique:
Relação familiar

Quem acompanha as tarefas da escola e leva para a unidade de saúde, quando necessário (C/A)?
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Conta com apoio financeiro, material ou psicológico de familiares que não os da residência?
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Existe situação conflituosa? [ ] sim [ ] não


... Qual e por quê? _________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Como são solucionados os conflitos? [ ] diálogo [ ] imposição de autoridade [ ] força física

Houve mudanças na família depois da denúncia? [ ] sim [ ] não


.... quais _______________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Como a família percebe o caso? _________________________________________________________________


______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Observar expressões afetivas em relação à família:


verbal (referiu-se de forma afetuosa acerca dos familiares): [ ] sim [ ] não
diálogo tranquilo e equilibrado: [ ] sim [ ] não
corporal - [ ] amistoso [ ] agressivo [ ] ausente

Participação social na comunidade


[ ] atividade esportiva e recreativa ... quem _____________________________________________________________
[ ] grupos de mães ... quem _________________________________________________________________________
[ ] associação/conselho de moradores ... quem __________________________________________________________
[ ] grupo de 3ª idade ... quem _______________________________________________________________________
[ ] atividade na igreja ... quem _______________________________________________________________________
[ ] grupo de jovens .... quem ________________________________________________________________________
[ ] outros ______________________________________________________________________________________
Situação de saúde

A C/A tem algum problema de saúde: [ ] sim [ ] não


Qual? _________________________________________________________________________________________
Faz tratamento? _______________________________________________________________________________
Onde? ________________________________________________________________________________________

Familiares apresentam:
Deficiência física: [ ] ... quem?________________________________________________________________________
Deficiência mental: [ ] ... quem?_______________________________________________________________________
Dependência de álcool: [ ] ... quem?___________________________________________________________________
Dependência de drogas: [ ] ... quem?___________________________________________________________________

Os pais da C/A têm alguma dependência? _____________________________________________________________


Fato relevante provocado pela situação: _________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Relação com vizinhos


Convivência:
[ ] amistosa [ ] agressiva [ ] ausente

Existem brigas?
[ ] sempre [ ] nunca [ ] às vezes

Observações: __________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Outras observações/considerações:
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________

Notificação ao CT:
Encaminhamentos necessários:
a) Sociais:
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
b) Psicológicos:
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
c) Jurídicos:
______________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________________
Técnico responsável: ___________________________________________________________________________
Estagiário(a): _________________________________________________________________________________
Anexo 3

ANAMNESE INFANTIL EM PSICOTERAPIA BREVE

Nome:
Data de nascimento: Idade: Sexo:
Nível de instrução: Estuda atualmente? Onde?

Endereço residencial: Fone:

Bairro: Cidade:

Obs.:

Nome do responsável:
Local de trabalho: Telefone: Idade:

Número de irmãos: Genetograma:

Outras informações:
Como foi a gravidez? Foi desejada? Foi planejada?
Como foi o parto?
Foi amamentada? Se sim, quanto tempo?
Como percebeu o desenvolvimento da criança em relação às outras?
Dorme bem à noite?
Tem pesadelos?
Range os dentes (bruxismo)?
Apresenta enurese?
Tem medo de alguma coisa?
Como é o relacionamento com os colegas?
Como é o comportamento na escola?
Descreva um dia comum na sua vida...
Como é a rotina?
Encaminhado por:
Atendimentos anteriores? Onde? Profissional que atendeu:

A psicoterapia foi concluída? Início: Se interrompido, por quê?


Término:

Queixa ou motivo da consulta:

Obs.:
Resumo do diagnóstico:

História recente:

História passada:

Informações adicionais:

Acompanhamento psicológico? Outros acompanhamentos ou avaliações? Se sim, qual(is)?

Planejamento da psicoterapia:

Foco terapêutico:

Estratégias/recursos a serem utilizados:

Objetivo(s) a ser(em) atingido(s):

Tempo previsto para o processo: Tratamento: concluído ( ) interrompido ( )


Se interrompido, por quê?

Resumo das entrevistas:

Avaliação do processo terapêutico:

Assinatura: CRP: Data:


Anexo 4

ANAMNESE COM ADOLESCENTES EM PSICOTERAPIA BREVE

Nome:
Data de nascimento: Idade: Sexo:
Nível de instrução: Estuda Onde?
atualmente?

Repetiu alguma série?

Endereço residencial: Fone:

Bairro: Cidade:

Nome do responsável:

Local de trabalho: Telefone: Idade:

Procedência
Encaminhado por:
Outras informações
Comportamento na escola?
Demonstra falta de interesse em aprender?
Quais grupos frequenta?
Como é o comportamento em casa?
Como cuida da aparência?
O que mais gosta de fazer?
Qual o maior medo?
Como é a sua rotina?
Atendimentos anteriores? Onde? Profissional que atendeu:

A psicoterapia foi concluída? Início: Se interrompido, por quê?

Término:

Queixa ou motivo da consulta:


Obs.:

Resumo do diagnóstico:

História recente:

História passada:

Informações adicionais:

Acompanhamento psicológico? Outros acompanhamentos ou avaliações?


Se sim, qual(is)?

Planejamento da psicoterapia:

Foco terapêutico:

Estratégias/recursos a serem utilizados:

Objetivo(s) a ser(em) atingido(s):


Tempo previsto para o processo: Tratamento: concluído ( ) interrompido ( )

Se interrompido, por quê?

Resumo das entrevistas:

Avaliação do processo terapêutico:

Assinatura: CRP: Data:

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