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Ao narrar as angústias, as difi-

culdades , os desafios e os triunfos


. .
que marcaram seu pnmeuo ano na
Faculdade de Direito de Harvard,
Scott Turow levanta problemas
surpreendentes no sistema de edu-
cação jurídica de uma das mais an-
tigas e conceituadas instituições de
ensino dos Estados Unidos. Um re-
lato dramático e um importante
depoimento do autor de Acima de
Qualquer Suspeita e O Ônus da
Prova. ,
.1.8501 034878
OBRAS DO AUTOR
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA
SCOTT TUROW
DECLARANDO-SE CULPADO
O ÔNUS DA PROVA

O Primeiro Ano

Tradução de
A. B. PINHEIRO DE LEMOS

-·-~

4? EDIÇÃO

'"·

ri]
EDITOR~ RECORO
..
, .
-L

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

., Turow, Scott
T858p O primeiro ano/ Scott Turow ; tradução de A B.

.
,
4'cd. Pinheiro de Lemos. - 41 ed - Rio de Janeiro :
Recorei. 1994 .
Para Annette,
Tradução de: One L
ISBN 8>-01--03487-8 com amor, gratidão e admiração
,
·-
1. Romance norte-americano. 1. Lemos, A. B.
Pinheiro de (Alfredo Barcelos Pinheiro de), 1938- .
11.Tírulo.

coo -813
94-0304 CDU -820(73)-3

Título original norte-americano


ONEL

- . - - ----~
Copyright © 1977 by Scott Turow

Publicado mediante acordo com o Autor.

Proibida a exportação para Portugal.

Direitos de publicação exclusivos em língua portuguesa para o Brasil


-;
adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORO DE SERVIÇOS DE IMPRENSAS.A.
Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ - Te!.: 585-2000
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ISBN 85-01-03487-8

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Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Sumário

Prefácio 11

Matrícula
Encontro com o Inimigo 15
1$;. ' ,.
"
Setembro e Outubro
Aprendendo a Amar o Direito 31

Outubro e Novembro
Des$raça 83

Dezembro e Janeiro
Provas (Primeiro Ato) 127

Fevereiro e Março
Indo em Frente 14 9

Abril e Maio
Provas (Último Ato) 193

Epílogo 219
1'
.' .1

17/ Jf / 75

É manhã de segunda-feira e quando entro no prédio principal posso


sentir o estômago dar um nó. Pelos próximos cinco dias vou achar que
sou um pouco menos inteligente que qualquer outro à minha volta .
Na maior parte do tempo estarei imaginando que o privilégio quedes-
fruto me foi conferido como uma espécie de embuste peculiar . Terei
a certeza de que, não importa o que faça, não farei bastante bem ; e,
quando fracassar, sei que vou morrer de vergonha . Na sexta-feira es-
tarei com os nervos em frangalhos, de insônia, pressão e fadiga inte-
lectual, a ponto de não saber se conseguirei s_obrevi~enw dia. Depois
de anos sem fumar, recomecei; ultimamente, pareço estar bebendo um
pouco todas as noites . Não tenho tempo para ler um livro ou uma re-
vista e me encontro tão distante das notícias do mundo que muitas ve-
zes sinto que caí do lado escuro do planeta . Mantenho-me distraído
na maioria das ocasiões e tenho dificuldade para entabular uma con-
versa, até mesmo com minha mulher. Às vezes, inesperadamente, pos-
so ser dominado por sentimentos intensos de pânico, depressão, uma
necessidade indefinida, e as conversas e ironias , para levantar o mo-
ral , que mantenho comigo mesmo, só parecem agravar o problema.
Sou um estudante de direito no primeiro ano na faculdade, e há
muitos momentos em que não passo de um caos total.

9
Prefácio

No beisebol, este é o ano do estreante. Na Marinha, é o período do

.
.,:,..
,'
. :l"I
recruta. Em muitos setores da vida há um tempo similar de provação
e iniciação , um momento em que os novatos são forçados a se torna-
rem vítimas da própria inépcia, quando devem de alguma forma apren-
der os requisitos básicos da profissão, a fim de sobreviver.
Para alguém que deseja ser um advogado, esse tempo de prova-
ção é o primeiro ano na faculdade de direito. Os obstáculos são mui-
tos até se chegar a ser um advogado vitorioso. Entrar na faculdade hoje
em dia está longe de ser fácil. E três anos mais tarde, depois da forma-
tura, é preciso passar pela prova da Ordem dos Advogados em seu es-
tado, encontrar um emprego ou se estabelecer por conta própria,
construir e manter uma clientela. Contudo, nenhuma dessas etapas pos-
sui o drama total do primeiro ano da faculdade de direito . Não é ape-
nas um ano de exigências - o trabalho muito difícil e aparentemente
interminável, a competição na sala de aula muitas vezes implacável -
mas é também o momento típico em que os estudantes percebem um
número desconcertante de mudanças ocorrendo em si mesmos. É du-
rante o primeiro ano que se aprende a interpretar um caso, formular
uma argumentação legal, distinguir idéias que parecem indistinguíveis;
é a ocasião em que você começa a absorver a linguagem do direito,
repleta de palavras como estoppel (embargo) e replevin (restituição de
bens sob caução prestada em juízo). É durante o primeiro ano, costu-
mam dizer, que se aprende a pensar como um advogado, a desenvol-
ver certas condições mentais e uma perspectiva do mundo que o
acompanharão ao longo da carreira. E é assi m que, durante o primei-
ro ano, muitos estudantes de direito passam a sentir, às vezes com pro-
fundo pesar, que estão se tornando pessoas estranhamente diferentes
daquelas que chegaram à faculdade.
Este livro é sobre meu primeiro ano na Faculdade de Direito de
Harvard , em Cambridge, Massachusetts. O fato de que os eventos do
ano ocorreram em Harvard - a mais antiga, maior e talvez mais res-
peitada das faculdades de direito dos Estados Unidos - não diferen-
cia minha experiência, em última análise, das que tiveram quase
quarenta mil americanos que iniciam o estudo de direito todos os ou-

11

/
tonos . o primeiro a no nas faculdades de di reito americanas tende a Primeiro este livro não é um romance. Tudo o que descrevo na~
ser extraordinariamente invariável. O sistema de estudo pouco mudou páginas segui~tes me aconteceu. Mas as pessoas de _q uem falo não _sã~
no último século. Quase todo estudante de primeiro ano deve fazer (co- os mesmos amigos e professores com quem passei o ano. Comb1ne1
mo eu fiz) o q ue se considera em geral os temas básicos - o Direito e alterei personalidades, a fim de representar de maneira mais adequa-
de Cont ratos, Responsabilidade Civil e Propriedade, o Direito Penal, da o caráter geral da minha experiência. E pelo fato de as pessoas ao
,. Processo Civil. O método de ensino também não varia muito de um redor não saberem que eu realizaria este projeto, mudei os nomes, ~~­
lugar para outro. Concentra-se em casos judiciais selecionados, dos tecedentes e, às vezes, outros detalhes, a fim de evitar qualquer sacnf1-
quais os estudantes devem deduzir os princípios legais, e as aulas são cio em potencial de suas privacidades. . . .
geralmente conduzidas pelo chamado "método socrático" , em que os Finalmente devo dizer mais uma vez, de maneira clara e obJell-
1

estudantes são individualmente inter rogados a fundo sobre suas im- va, que me orgu lho de ter sido aluno da Faculda_de ~e Direito de_ Har-
pressões acerca do material. Hoje em dia, os a lunos de todas as facul- vard (" HLS", Harvard Law School, é a abrev1açao qu: usarei com
dades de direito são quase sempre brilhantes e inteligentes, sendo que freqüência). Tenho certeza de que uma grande parte ?este hvro express_a
a disputa por empregos, no futuro , e pelas honras do primeiro an o le- tal orgulho, mas faço esta declaração para garanur que as ev~ntuais
vam, na maioria das facu ldades, à mesma ênfase nas notas e ao mes- criticas à HLS não sejam mal-entendidas. Desde a sua fundaçao, em
..... mo clima de tensão, competição e incerteza em que me descobri no 1817 através de seus graduados e como um importante centro de estu-
último ano em Harvard. Para todos os que conseguiram passar pelo dos ~ Faculdade de Direito de Harvard tem exercido um impacto ex-
,.,'· primeiro ano, tenho certeza de que fo i um empreendimento similar, tra~rdinário no crescimento e enriquecimento do direi to americano e
J da profissão legal. Sinto-me feliz po r figurar entre os herdeiros de suas
opressivo, às vezes assustador, sempre vertiginosamente intenso.
Ao escrever este livro, procurei mostrar essa intensidade e o pro- tradições. A idéia de que tanto o direito corno a HLS podem faze! c_om
cesso de mudança manifestando-se dia a dia, como eu e meus colegas que as instituições se tornem mais fe~undas: m~is ~urn_a nas e mais_ JU~-
de turma sentimos. Mantive um diário ao longo do ano e muitas vezes tas não é mera suposição pessoal - e Lam bem 111st1tuc10nal , urna 1dé1a
reproduzi trechos diretamente, quando meus pensamentos e sentimen- ensinada e reforçada na HLS. Em última análise, é da crença na m~-
dança racional, representada em muitos a pectos pela faculdade de di-
- ---.- ~
tos pareciam especialmente claros e importantes. Na maior parte, po-
rém, tentei elaborar as reflexões à luz da experiência do ano concluído reito, que deriva qualquer crítica.
e do con hecimento de que as primeiras impressões nem sempre prova-
ram ser um indicador confiável da maneira como as coisas se desen- S.T.
volveriam ou mesmo do curso geral de meus sentimentos.
Este li vro é a visão de uma pessoa so bre uma experiência que po-
de ser encarada das maneiras mais variadas. Não tenho a pretensão
de que qualquer uma das minhas reações seja universal. E também se
trata de um liv ro escrito ao final de um a no, que tem mui to pouco da-
quele distanciamento proporcionado pelo tempo. Sem dúvida eu es-
creveria um livro diferente daqui a dez anos, enfatizando outros eventos,
me mostrando mais ou menos preocupado com certos elementos da
minha formação. Sem ligar para o resultado, tentei, imediatamente após
.. aquele a no exigente, gratificante e turbulento, produzir um relato coe-
rente de tudo por que passei . Escrevi com a convicção de que o direito,
como qualquer outro campo de atividade, é pouco mais do que as pes-
soas que o exercem, e que os advogados - assim como o direito que
fazem e praticam - são significativamente afetados pela ma neira co-
mo são recebidos na profissão. Se estou certo nesse ponto, então a ex-
periência do primeiro ano deve ser de interesse para todos, pois
influencia o direito que limita e orienta toda a nossa sociedade.
Devo acrescentar duas ressalvas em especial.

12 13
MATRÍCULA

Encontro com o Inimigo

3/ 9175
(Quarta-feira)

... um lugar aconchegante, um lugar bom ... eu acho.

Eles nos chamavam de "1 L" e éramos 550 se apresentando no dia 3


de setembro para iniciar a carreira de direito. Nos três primeiros dias
teríamos a Faculdade de Direito de Harvard só para nós , enquanto re-
cebíamos uma breve orientação e alguma instrução preliminar. Depois,
durante o fim de semana, chegariam os alunos mais adiantados e na
segunda-feira começariam todas as a ulas oficialmente.
Um folheto enviado em agosto a todos os alunos do primeiro ano
me instruía a comparecer à sala Roscoe Pound e ao prédio da Adminis-
tração às dez horas da manhã, a fim de me matricular e iniciar a orien-
tação. Peguei o ônibus para Cambridge em Arlington, a cidadezinha
próxima em que minha mulher e eu arrumáramos um apartamento.
Eu já estivera na faculdade, no verão, quando David, um amigo
íntimo que se formara recentemente, oferecera-me uma excursão. A
HLS ocupa quinze prédios na extremidade norte do campus de Har-
vard, limitada de um lado pela Massachusetts Avenue, a artéria prin-
cipal de Cambridge, sempre com um movimento intenso. A arquitetura

15
é eclética. Os dormitórios são quadrados, amarelos, funcionais. Ove-
lho Ausrin Hall, um prédio de salas de aula, parece uma fortaleza fuli-
ginosa, com arcadas. Lang~ell, o maior p~édi~ da facul~ade, é uma
longa extensão de concreto cmza. Quand? la est~ve, no verao_, t~do pa-
' o homem acenou com a cabeça. Apresentei-me e trocamos um
aperto de mão. Seu nome era Hal Lasky. e era de Ashtabula, ten.do pas-
sado pela Universidade Estadual de Ohio . Perguntou se eu sabia algu-
ma coisa so bre nossos professores. Os nomes constavam do folheto
...
,
recia tão sólido e permanente que expenmente1 uma emoçao mtensa 1 de agosto. Respondi que não sabia de nada.
ao pensar que em breve estaria associado a tudo aquilo e às tradições - E você sabe de alguma coisa? - indaguei .
do direito enobrecidas pelo tempo . Agora, saltando do ônibus, senti - Não muito. Já me falaram de Perini, em Contratos. Parece que
principalmente os nervos, que estavam à flor da pele. é muito duro. E de Morris, em Processo Civil... as pessoas gostam dele.
No prédio Pound, uma construção moderna, com paredes de ti- Depois de entregarmos os cartões, rodos nós, numa cerimô nia pe-
jolos à mostra e muito vidro, recebi um volumoso pacote com mate- culiar tivemos de nos " matricular" na faculdade, registrando nome,
rial para a matrícula assim que passei pela porta. Fui orientado para idade~ cursos anteriores num enorme livro. Enquanto escrevia, dei uma
"· seguir pelo corredor até uma sala de aula em que a minha seção - olhada nas credenciais de meus colegas. Dois vinham de O xfo rd. Ou-
a Seção 2 - reunia-se pela primeira vez, a fim de preencher os vários tro tinha um Ph .D. A mulher que assinou antes de mim era uma M. D.
cartões e formulários. É apenas uma página, pensei.
Todos os anos, em Harvard, os alunos do primeiro ano são dividi- Quando terminei, uma mulher entregou-me um cartão de plástico
f'
dos em quatro grupos, cada um com 140 estudantes. Eu teria todas as para identificação . Estava matriculado.
aulas com esse grupo ao longo dos anos, exceto por um único curso ele- Saí por um momento . Era um lindo dia, ensolarado e ameno . Sen-
tivo na primavera . Os membros do meu grupo, a Seção 2, pelo que me tei num muro perto do prédio Pound.
disseram , se tornariam meus amigos, meus co legas, as 140 pessoas no Aqui está você, disse a mim mesmo, na fa mosa Faculdade de Di-
mundo que melhor conheceriam os rigores que eu enfrentaria a cada dia. reito de Harvard, alma mater de muitos dos grandes homens do direi-
Também seriam as pessoas com as quais eu seria constantemente com- to americano - ministros do Supremo Tribunal Federal, senadores,
pa rad o, pelos professores e talvez por mim mesm o. As relações dentro um presidente dos Estados Unidos - e mais pessoas influentes na vida
- - -----..,- do grupo seriam íntimas. A maio ri a dos alunos do primeiro ano, mes- contemporânea do que eu podia lembrar ou contar. .
mo aqueles que vivem nos dormitórios do campus - cerca de metade "EI numero uno", como um amigo meu chamara a H LS na pn-
da turma - só teria um contato passageiro com os integrantes das ou- mavera anterior, ao tentar me pers uadir a vir para cá. Todos os deta-
tras três seções ou com os estudantes mais adiantados. De um m odo ge- lhes do lugar sugeriam sua proeminência. A HLS é a mais antiga
ral, garantiam os amigos, eu teria a impressão de me encontrar numa faculdade de direito do país. P oss ui o maior número de estudantes em
escola independente, um universo m ínimo centralizado nos professo res, tempo integral, incluindo os cursos de pós-graduação . Os mais de 65
com os 140 alunos da seção ao redor, numa órbita densa e irregular. pro fessores constituem o maior corpo docente de direito do país e tal-
Minha primeira visão dos meus compa nheiros de seção não teve na- vez o mais ilustre. Como um lugar para se obter uma instrução j uríd i-
da de auspiciosa. A maioria das pessoas estava sentada na sala de aula, es- ca, Harvard é às vezes criticada, especialmente quando comparada a
vaziando os envelopes e preenchendo os cartões e formulários obediente- o utras faculdades, como Yale, que tem um currículo mais flexível e
mente. Uns poucos alunos que pareciam se conhecer, provavelmente do um índice menor de estudantes para professores. Mas, por qualq ue r
curso preparatório, mantinham-se em grupos o u se chamavam através motivo, eu sabia q ue uma pesquisa no in verno anterior entre diretores
da sala. Tive umas poucas impressões distintas. De um modo geral, eram de faculdades de direito de todo o país revelara que Harvard ainda era
. ·~. um pouco mais jovens do que eu esperava. Havia algumas mulheres, al- considerada pela maioria como a melhor.
guns negros. A ma ior parte dos homens tinha os cabelos bem curtos. Apesar de ter me tornado parte desse cenário resplandecente, no
Havia um aviso no quadro-negro , indicando os cartões e formu- entanto, ao sentar ali, no muro, eu não me sentia inteiramente satisfei-
lários e dando a o rdem em que seriam recebidos pelos representantes to. A dúvida sobre si mesmo, sobre o que estão faze ndo é familiar aos
da secretaria, que os aguardavam no outro lado da sala. Quando aca- estudantes do primeiro a no de direito e eu já cheguei aflito. Não tinha
bei, olhei para o homem sentado ao meu lado. Observei-o contar seus certeza se estava à altura daquela tradição de excelência. E ainda não
cartões três vezes. Fiz a mesma coisa. Tornei a levantar os olhos e des- tinha certeza absoluta se a faculdade de direito era o lugar em q ue de-
co bri que ele me observava. veria estar. Para mim , o caminho a té a faculdade de direito fora cheio
- Estão todos aqui - eu disse a ele. de desvios. Estava com 26 anos, três ou quatro mais velho do que os

16 17

~' 11
meus colegas, pois levara mais tempo do que eles para compreender preocu pava-me com a possibilidade de ter tomado as decisões erradas
que queria estudar direito. ao renunciar ao ensino e ingressar em Harvard. Conversei a respeito com
Nos últimos três anos fui professor -assistente no departamento de um amigo, um estuda nte de pós-graduação no departamento, que eu sa-
inglês de Stanford, onde fiz um curso de pós-graduação. Passei esse bia que também pensava em cursar uma facu ldade de direito.
tempo dando cursos ae redação criativa e me esforçando para escre- - Escute - ele me disse-, se eu fosse para a faculdade de direi-
ver. Não era uma vida ruim. Mas descobri-me com um interesse cada to seria por querer encontrar meu inimigo. Acho que é uma boa coisa
vez mais profundo pelo direito . Algumas das coisas que andara escre- para fazer. E se quisesse encontrar meu inimigo, iria para Harvard,
vendo envolviam muita pesquisa legal e, ao contrário das minhas ex- porque teria certeza de encontrá-lo lá.
pectativas, achei o trabalho fascinante. No colégio, em Amherst, na Sorri debilmente. Não sabia direito o que ele estava querendo dizer
época do Vietnã e da luta pelos direitos civis, o direito me parecia o com "encontrar meu inimigo". Parecia um desses comentários esperta-
instrumento pelo qual as pessoas que estavam no poder se mantinham mente ambíguos que as pessoas estão sempre fazendo no departamento
no topo. Quando muitos dos meus amigos decidiram cursar a faculda- de inglês. Mas nas semanas seguintes a ex pressão me ocorreu com fre-
de de direito, eu criticara abertamente suas opções. Agora, cinco anos qüência. Compreendi que, de certa for ma, resumia meus sentimentos em
depois, eu encarava o direito menos como uma questão de privilégio relação à faculdade de direito: o medo, as incertezas, a esperança de de-
remoto e mais como uma parte da vida cotidiana. Casar, alugar um safio, triunfo, descoberta. E assim pensando em relação ao que havia pela
apartamento, comprar um carro - estava sempre envolvido por pro- frente, tornei-me ainda mais certo de que minhas decisões eram corretas.
blemas legais. Sentia-me fascinado pela extensão com que o direito de- Pensando em tudo , mais uma vez, sentado no muro, experimen-
finia nossas existências cotidianas. E os amigos cujas decisões eu tei de novo essa certeza. O encontro com o inimigo. Era o que eu que-
criticara se encontravam agora exercendo a advocacia, fazendo coisas ria fazer. E só podia torcer para que tudo desse certo.
que os agradavam e também me pareciam absorventes .
Na primavera de 1974 - pura especulação, disse a mim mesmo A programação que eu encontrara na pasta de matrícula orientava-me
- fiz o teste de admissão na faculdade de direito, um exame nacional para ir em seguida ao terceiro andar do Pound , onde estavam servindo
exigido a todos os candidatos às faculdades de direito. Fui muito bem café e biscoitos e os representantes de diversas organizações estudantis
no teste - 749 acertos em 800 questões - mas ainda relutava em re- ficavam sentados por trás das mesas, apresentando-se aos novos alu-
nunciar à carreira como escritor e professor. Só ao final da primavera, nos. Juntei-me ao grupo de estudantes casados, como Annette solici-
quando me ofereceram um emprego melhor, como professor-assistente tara. Já havíamos recebido correspondência deles, prometendo que
em outra universidade, é que me obriguei a pensar nos compromissos promoveriam diversas atividades para maridos e mulheres de estudan-
que desejava assumir pelo resto da vida. Cheguei à conclusão de que tes do primeiro ano. Os cônjuges, diziam as cartas, se descobriam muitas
acabaria lamentando se meu interesse pelo direito não fosse satisfeito. vezes .a passar longos períodos sozinhos.
No outono seguinte candidatei-me a faculdades de direito de todo Feito isso , segui para o prédio ao lado, o Harkness Commons,
o país. Quando ficou evidente que poderia escolher entre diversas fa- onde há um salão de descanso para os estudantes, uma loja de artigos
culdades, houve outro período de decisão difícil. Tinha muitos colegas diversos e, no segundo andar, um refeitório, onde eu a lmoçaria . Ao
do colégio que haviam cursado a faculdade em Harvard e a maioria começar a subir, avistei um lou ro alto, que pensei ser um a migo do
achara o lugar muito grande, austero e opressivo. Mas eu admirava colégio. Chamei-o. Estava certo ... era mesmo Mike Wald.
a reputação e os recursos de Harvard. Disse a mim mesmo, muitas ve- - Não tinha a menor idéia de que você estava aq ui - eu lhe dis-
zes, que esses amigos haviam sido estudantes de direito mais jovens se, apertando sua mão com o ma ior entusias mo.
e menos amadurecidos do que eu seria; que ingressaram na faculdade, Ele era um estudante de pós-graduação em Yale na última vez em
no final da década de 1960, com expectativas diferentes das que eu ti- que eu tivera notícias suas. Era bom encontra r um amigo, ai nda mais
nha agora. Mesmo assim, as dúvidas persistiram. Finalmente, desisti no primeiro dia.
~. de qualquer escolha ideal entre as faculdades e deixei que a decisão se Sentamos juntos para almoçar. Mike contou que viera para a facul-
baseasse no prestígio de um diploma de Harvard e no fato de que o dade de direito no ano passado, depois de concl ui r que as condições do
mercado de trabalho para minha mulher, Annette, uma professora pri- mercado de trabalho acadêmico indicavam que nunca obteria o tipo de
mária, era muito melhor em Boston . emprego que desejava, como historiador. De um modo geral, ele garan-
De vez em quando, à medida que o ano em Stanford chegava ao fim, tiu, ainda achava que a fac uldade de direito fora a escolha acertada.

18 19
Explicou que estava ali naquele momento. antes dos outros alu- leste americano da Faculdade de Direito de Harvard. Aparentemente,
nos mais adiantados, porque integrava o Comitê Consultivo Estudan- ele também pensava assim . Quando lhe perguntei de onde era , ele res-
til , o grupo de estudantes do segundo e terceiro anos - 2L e 3L - pondeu que vinha de Elizabeth, Nova Jersey, e do Colégio Estadual
que tradicionalmente ajudava a orientar a turma do primeiro ano . O Montclair, depois acrescentou:
pessoal do BSA (Board of Student Ad visors) prestaria assistência nas - Só estou aqui, cara. porque eles pensaram que eu era um porto-
aulas de Métodos Legais, o pequeno curso informal sobre redação le- riquenho.
gal e outras artes advocat!cias, que ia se reunir pela primeira vez na- Fitei-o aturdido.
quela ta rde. O BSA também estaria no comando da competição - Falo sério - ele garantiu. - Minha caixa de correspondência
chamada Julgamento Simulado, da qual todos os alunos do primeiro vive cheia de material da Organização de Estudantes Latinos.
ano deveriam participar . Ele podia estar falando sério, concluí, mas não parecia muito in-
Quando termina mos o almoço , Mike perguntou qual era a minha comodado. Um personagem típico, pensei. Um homem que se virava
eção . Respondi que era a Seção 2 e ele perguntou : de tudo que é jeito. Sorri cauteloso. Nazzario observou-me por um ins-
- Pegou Perini? tante, depois soltou uma risada e piscou para mim. Eu fora aprovado.
Acenei com a cabeça, confirmando . O instrutor na frente da sala estava pedindo nossa atenção .
Ouvi dizer que ele é durão . - Sou Chris Henley. - Ele era baixo, a barba cheia, parecia ter
Falou tudo. Ele foi meu professor no ano passado. Não é fácil. trinta e poucos anos. - Quero lhes dar boas-vindas à Faculdade de
O que ele faz . .. bate nos alunos? Direito de Harvard. Esta será uma sessão breve . Desejo apenas da r a l-
Espere para ver. - Mike sorriu, mas sacudiu a cabeça, como gumas noções sobre o que faremos nos próximos dias e depois pelo
se alguém tivesse lhe desferido um golpe. - Mas você vai sobreviver. resto do curso.
Além do mais, há muita gente que o considera um excelente professor. Antes de continuar, Henley falou um pouco a seu respeito. Fora
Interroguei Mike sobre os meus outros professores. Ele não sabia advogado da OEO (Office of Economic Opportunity - Agência de
muito , exceto sobre Nicky Morris, o professor de Processo Civil. Ele Oportunidades Econômicas), em Washington, durante sete anos. Fa-
era jovem, disse Mike, progressista, muito apreciado pelos alunos. zia agora um curso de pós-graduação em direito; no ano seguinte pro-
Deixei Mike às 14:00h e fui para a primeira reunião de Métodos vavelmente se transferiria para outra faculdade, onde se torna ria
Legais. Em vez de um curso completo da faculdade, Métodos era con- professor. Depois, apresentou os três membros do BSA que tra balha-
siderado um complemento introdutório ao currículo do primeiro ano. riam com cada um dos grupos de Métodos. Um homem esguio e mo re-
Seria realizado em apenas dez semanas, um pouco mais da metade do no, chamado Peter Geocaris - um 3L - fora designado para o meu
primeiro período , e o instrutor seria um aluno de pós-graduação, em grupo. Henley passou a descrever o curso .
vez de um membro do corpo docente. Nos próximos três dias, porém , - No programa de Métodos Legais vocês aprenderão as coisas pela
- - ---...-- Métodos seria o centro de tudo, a instrução concentrada visando a nos prática. Cada um atuará como advogado no mesmo caso. Assumirão o
leva r a um ponto em que teríamos condições de iniciar os cursos regu- papel de um associado de uma firma de advocacia que foi incumbido de
lares, a pa rtir da segunda-feira. tratar do caso de um empregado despedido por uma compa nhia.
No rmalmente, Métodos Legais seria ministrado em turmas de 25 T udo seria fictício, mas acompanharíamos o caso em todos os es-
alunos, mas hoje, na sessão inicial, três grupos estavam reunidos e a tágios, adquirindo alguma noção dos muitos aspectos do trabalho de
pequena sala de aula se encontrava lotada. H avia o maior alvoroço, um advogado. Entre outras coisas, explicou Henley, teríamos de par-
enquanto as pessoas se apresentavam umas às outras. Sentei ao lado ticipar de uma entrevista com o cliente, apresenta r a petição inicial d o
de um homem que cumprimentava os outros ao redor efusivamente. processo, preparar e discutir um sumário para o julgamento. A o final,
Não demo rou muito para que chega:;se a minha vez. veríamos como dois advogados experientes cuidariam do processo, num
- Terry Nazzario - disse ele, apertando-me a mão . julgamento simulado. Eu tinha apenas a mais vaga idéia do que signi-
Era alto e magro , de vinte e pouco anos, a pele marcada, mas bas- ficavam muitas das palavras usadas por Henley - depoimentos, inter-
ta nte bonito. Os cabelos pretos estavam penteados para trás, por cima rogatórios e julgamento sumário - e ta lvez por isso o program a me
,., das orelhas, fazendo-me lembra r uma po rção de ga rotos que chamá- parecesse tão fascinante.
\
vamos de "sebosos" , durante a minha adolescência em C hicago. Pa- Henley disse que nossa primeira tarefa seria distribuída ao fi nal
recia um pouco deslocado em meio à desenvoltura da aristocracia do da sessão. Consistia num memorando do diretor de nossa fictícia

20 21
firma de advocacia, pedindo ao associado para cuidar de uma "cau- As tarefas eram afixadas com antecedência, a fim de que estivéssemos
sa". Aqui, "causa" significa o sumário publicado da decisão de um preparados quando entrássemos na aula na segunda-feira.
juiz sobre uma questão que foi levada a seu julgamento. Tipicamente, Em Direito Penal, o professor Mano limitara-se a indicar a leitu-
o sumário de uma causa contém um resumo dos fatos que levaram à ra do primeiro capítulo do manual. O aviso do professor Perini era
mais longo:
/ ação judicial, as questões legais envolvidas e a posição do juiz a respei-
to. A parte do sumário de causa em que o juiz manifesta suas opiniões
é chamada de "parecer". Causas e pareceres são a essência do mundo Para a aula de segunda-feira, leiam por favor as páginas 1 a
de um estudante de direito. Praticamente todas as faculdades de direi- 43 do manual, Baldridge e Perini, Se/ected Cases in the Law
to americanas aderem ao "método de estudo de causa", que exige que of Contracts. Leiam também, na página 46, a causa de Hur-
os estudantes aprendam o direito pela leitura e discussão em aula de /ey v. Eddingfield e, na página 50, a causa de Poughkeepsie
uma imensa sucessão de causas. Em muitos casos, as decisões são de Buying Service, fnc. v. Poughkeepsie Newspaper Co.
tribunais de apelação, a que os advogados encaminham suas objeções
a algum aspecto legal da decisão do juiz. Como versam sobre questões Não se esqueçam de levar o manual e o suplemento para
legais bem definidas, os pareceres dos tribunais de apelação são consi- a aula.
derados instrumentos especialmente apropriados para ensinar aos es- Leiam todo o material CUIDADOSAMENTE.
tudantes o tipo preciso de raciocínio que é fundamental para o trabalho
de um advogado. Não era um bom sinal. Enquanto copiava o aviso, um homem ao meu
A causa que Henley nos designou era do Supremo Tribunal Esta- lado comentou que dera uma olhada no livro e verificara que a tarefa
dual de Nova Jersey. Pediu-nos que lêssemos com toda atenção e esti- exigiria horas. Ao terminar de escrever, também notei que o professor
véssemos preparados para discuti-la na próxima reunião do grupo de Perini sublinhara a última palavra - CUIDADOSAMENTE - duas
Métodos. Não parecia grande coisa. vezes.
Antes de nos dispensar, Henley lembrou-nos a programação do
.;,,., d!a e do resto da semana: naquela tarde, uma palestra de recepção do Tornei a subir e encontrei o diretor já no meio de sua palestra de boas-
• diretor e uma festa de celebração da nossa seção; no dia seguinte, para vindas. Era um típico discurso de primeiro dia, com muitas anedotas,
o meu grupo, mais reuniões, aulas, uma preleção do bibliotecário. Ele conselhos gerais e suaves estímulos, mas o diretor apresentava-o com
arrematou com uma sugestão pessoal. muita verve. Lembrou-nos que quase todos os advogados consideram
- Espero que todos vocês tirem alguns momentos de folga du- o primeiro ano na faculdade de direito como o momento de maior de-
ran_te o ano. Sei que estarão muito ocupados. Mas é importante, mui- safio de suas carreiras e exortou-nos a aproveitá-lo da melhor forma
t? importante mesmo, que escapem do direito de vez em quando, a possível. Depois, dispensou-nos para que fôssemos ao gramado atrás
fim de poderem manter alguma perspectiva. Não fiquem tão absorvi- do Harkness, onde seria servida cerveja às diversas seções, cada uma
dos no estudo a ponto de esquecer de largar tudo algumas vezes. O reunida num canto diferente.
trabalho sempre estará à espera aqui quando voltarem. Era a primeira oportunidade de confraternização, além dos rápi-
Parecia um conselho do qual eu não precisava. Depois de cinco dos apertos de mão e apresentações que haviam ocorrido nos corredo-
anos na Califórnia, uma coisa que eu pensava ter aprendido era como res e salas. Os colegas da minha seção puseram-se a falar uns com os
relaxar. outros, na maior ansiedade, indagando por antecedentes, trocando re-
Depois que Henley terminou, as pessoas se adiantaram para pe- latos sobre os motivos que levaram cada um à faculdade de direito.
gar~ mem~ra~do e o sumário de causa. Peguei minhas cópias e depois Conheci um ex-assessor do Senado, outro que fora campeão america-
segui a ma1ona dos colegas para o subsolo, onde Henley informara no de caratê, enquanto estava no Exército. Apresentei-me a diversas
que en<:_ontraría~os afixadas as tarefas para as primeiras aulas regulares. pessoas: um grupo reunido de estudantes do curso preparatório de Har-
Nao havena _na faculdade de direito um "dia de apresentação", vard; um homem que fora assistente jurídico na cidade de Nova York ;
como os 9ue_e~ tivera no colégio e no curso superior posterior, nada a M.D. cujo nome eu notara no livro de matrícula. Ela me disse que
daquela h1stona do professor se apresentando aos alunos e manifes- interrompera sua residência médica na Universidade da Califórnia por-
tando a esperança de que nenhum abandonasse o curso no meio. "As que achava que a faculdade de direito "podia ser divertida".
aulas começam rigorosamente no primeiro dia" , anunciava o folheto. Ao conhecer meus colegas naquele dia e nas semanas subseqüen-

22 23
tes, fiquei muitas vezes espantado pela amplitude de realizações. Cer- excluídos no passado - estão agora ingressando nas faculdades de di-
ca de dois quintos haviam saído do colégio há um ano pelo menos e reito em grande número.
poucos tinham desperdiçado esse tempo. Em torno de vinte pessoas Um dos resultados desse aumento de interesse é o crescimento do nú-
da seção haviam feito outros cursos adiantados e muitos eram bem- mero de advogados. As matrículas nas faculdades de direito subiram de-
sucedidos em carreiras anteriores. Havia um inventor, um arquiteto, pressa e em 1974 formaram-se quase trinta mil novos advogados, três vezes
um cientista pesquisador, um fazendeiro, mães, três mulheres que tra- mais do que dez anos antes e muito além do que o mercado de trabalho
balharam como assistentes sociais, muitos ex-instrutores de colégios, pode absorver. A Secretaria do Trabalho calculou que havia apenas 16.500
três repórteres, ex-militares, pessoas que ocuparam cargos importan- empregos disponíveis para novos advogados naquele ano.
tes no governo . Os homens e mulheres que vinham diretamente do co- Em conseqüência, tornou-se muito mais renhida a batalha pela ad-
légio não eram menos admiráveis. Se alguma diferença havia, era missão nas faculdades de direito de renome; Harvard, Yale, Michigan,
porque seus antecedentes estudantis eram mais extra0rdinários do que Columbia, Chicago, Stanford, Universidade da Califórnia (Boalt Hall),
da maioria que saíra há mais tempo; muitos dos a lunos mais jovens, Penn, Universidade de Nova York e Virgínia são quase sempre rela-
se não quase todos, eram summa cum laudes das melhores universida- cionadas como as melhores. São apenas os graduados dessas faculda-
des do país. des e os editores de publicações jurídicas de algumas outras que
Mais do que a variedade de glórias que cada pessoa podia apre- continuam a ter as oportunidades de emprego tão a mplas quanto as
sentar, no entanto, fiquei impressionado naquelas primeiras semanas que todos tinham poucos anos antes. A cada ano, Harvard recebe en-
com a força pessoal dos que me cercavam . Depois de dez anos em uni- tre seis e sete mil pedidos para 550 vagas. Em Yale e Stanford , a dispa-
versidades, eu estava acostumado à convivência com pessoas inteligen- ridade é ainda mais drástica: três mil candidatos pa ra apenas 165 vagas.
•. tes. Cor.tudo, nunca integrara um grupo em que todos eram afáveis, Ao fazer a seleção, os responsáveis pela admissão geralmente atri-
extrovertidos, articulados, tão magicamente capazes de fazer com que buem um peso maior a dois fatores - as notas do estudante no colé-
os ?utro~ sentissem sua energia. Haviam-me advertido que os colegas gio e o resultado de seu teste nacional. A ênfase nesses critérios é muitas
senam piratas e salteadores acadêmicos, mas enquanto circulava pelo vezes criticada. Por causa da variação de padrões acadêmicos de um
gramado do Harkness, atordoado pelo sol, excitado e um pouco tonto colégio para outro, as faculdades de direito tendem a dar preferência
de muita cerveja, senti-me como um astronauta a caminho de aventu- aos candidatos de instituições que se mostraram confiáveis no passa-
ras com os mais vigorosos e perfeitos companheiros que alguém pode- do. Em faculdades como Harvard, isso significa um fl uxo contínuo
ria escolher. de colégios da Ivy League, o grupo de instituições tradicionais do nor-
Na verdade, essa impressão não estava muito distante da verda- deste dos Estados Unidos, em detrimento dos candidatos de insti tui-
de. O processo de seleção que nos levara àquele lugar era rigoroso. Na ções menores e menos conhecidas. O único nivelador é o teste nacional
última década, a disputa pelo ingresso nas faculdades de direito de to- - o meio de avaliação comum a todos os candidatos - mas sua eficá-
do o país tornara-se extremamente intensa e acirrada. O número de cia é bastante duvidosa. O teste é ministrado numa sessão que d ura
pessoas bastante interessadas para fazer o teste nacional quadruplica- apenas quatro horas e muitas pessoas questionam o fato de se permitir
ra desde 1964; e a partir de 1971, quando a atração se tornara ainda que os resultados de um exame tão sumário sejam tão cruciais. Um
maior, houvera duas vezes mais candidatos às faculdades de direito do aproveitamento abaixo da média de 500 torna difícil o ingresso na maio-
qut> vagas. ria das faculdades de direito americanas e a cada ano incontáveis estu-
Os motivos para essa incrível valorização das faculdades de direi- dantes, que há muito planejavam uma carreira jurídica, são obrigados
to são muitos. Sem dúvida, o aumento dos índices de natalidade de- a trocar de objetivos quando chegam os resultados do teste nacional.
pois da Segunda Guerra Mundial, o fim da convocação militar e a Os responsáveis pela admissão, no entanto, rejeitam as falhas do
red~ção dos empregos de nível universitário na área de ensino, que de- critério de notas e do teste nacional, preferindo ressaltar sua utilidade
sestimulou a matrícula em outros cursos de pós-graduação, são fato- no aceleramento do processo de seleção e na previsão de sucesso na
res significativos. Também o são episódios nacionais como o Vietnã faculdade de direito. A esta altura, as notas médias e os resul tados do
e Watergate, que inspiraram muitos a encarar o direito como um meio teste dos admitidos nas facu ldades ma is exigentes atingiram níveis as-
tronômicos. Nos anos recentes, em Ha rvard , Ya le, Stanford e Chica-
~- pelo qual é possível promover mudanças. Provavelmente o elemento
go, as novas turmas tinham médias próximas do A , a mais alta nota,
mais importante para explicar a súbita elevação nas candidaturas seja
o fato de que as minorias e também as mulheres - grupos quase que e um aproveitamento em torno de 720 pontos no teste nacional.

•·.· 24
25
Não importava quais os c ritérios usados, no entanto, meu palpite at urdid o. E mesmo agora ainda não tenho certeza da decisão final do
era o de que a maioria dos meus colegas da HLS chegaria ali ou em tribunal.
alg um lugar semelha nte de qualque r maneira. Haviam superad o obs- Pior ainda, Henley pediu-nos para tentar fazer um sumário da cau-
tácul os ao longo de suas vidas, im pressiona ndo professo res , assisten- sa - o u seja, prepa rar um resumo dos fatos, questões legais e de ra-
tes e orientadores, liderando, rea li zando, conqui stando o su cesso. ciocínio essencial da decisão do tribunal. O sumário, já me disseram,
Houve momentos em que desejei uma diversidade maior no grupo. Qua- é importante. Todos o s estudantes do primeiro ano devem fazê-lo, a
se um terço era de colégios da l vy League ... e era difícil não constatar fim de poderem organizar as informações numa causa; e os diversos
como muitos dos meus colegas e ra m filhos do privilégio e da riqueza, manuais para estuda ntes dão a impressão de que é uma coisa fácil. Mas
agora adquirindo ainda mais vantagens do que todas com que já ha- não tenh o a menor idéia de como é um bom sumá rio ou por onde
viam começado. Mas esses comentários ap licavam-se também a mim começá-lo. Quais são "os fatos", por exemplo? O texto discorre ares-
- criado no leste, filho d e pais prósperos - e se as vantagens se tor- peito por uma página inteira, apresentando todos os detalhes sobre a
nassem uma base para excl usão e u se ria um dos primeiros a sair . E maneira como a tal mulher, Olga Monge , foi despedida basicame nte
hou ve muitos momentos, dura nte aqueles primeiros dias , em que, inti- por não querer sair com seu capataz. Obviamente, não devo incluir
midado pela genialidade e talentos dos colegas, senti-me o rgulhoso e tudo , mas não tenho certeza do que selecionar, até que ponto posso
às vezes surpreso por ter sido incluído no grupo. ser abstrato, se devo incluir itens como o seu salário por hora. Um su-
mário deve parecer casual o u formal? E isso faz alguma diferença? Devo
incl uir també m a argumentação do juiz que divergiu? É por isso que
os estudantes detestam o método de estudo de causas?
3/ 9175 Há vinte minutos levantei os braços em desespero e desisti .
(quase meia-noite) Sinto-me irritado e um pouco nervoso. Não estaria tão transtor-
nado se não tivesse de ler causas todos os dias e se compreendê-las não
fosse tão importante. As causas são a lei, em grande parte. Esse fato,
,,..
.i; Tentei naquela noite, pela primeira vez, ler uma causa. É difícil demais . assinalado por David, foi uma n ovidade para mim . Sempre pensara
Ao começar, pensava que a tarefa de Métodos Legais seria fácil. que o legislativo faz todas as regras e que os juízes apenas interpretam
::-1
). O memorando do diretor era simples e objetivo . Um homem chamado o que fora aprovado. Não tenho cert eza de onde tirei essa idéia, se das
Jack Katz é o cliente de " nossa firma". Ka tz, que trabalhava vários aulas de cívica da escola secund ária ou, o que é mais provável, da tele-
anos como controller de um a empresa que fabrica capas de chuva, foi visão.
despedido há poucos meses pelo presidente da companhia. Seu nome Seja como for, isso não é certo. Quando o legislati vo fala, o j uiz
é E lliot Grueman, filho do homem , agora falecido, que contratou Katz obedece. Na maior parte do tempo, porém, ninguém fala so bre o caso
há muito tempo. Grueman e Katz di vergiram sobre os planos de ex- em questão e o j ui z interpreta a lei por conta própria, verificando o
~ - -.- ....,, pansão para a companhia ; qu a ndo Katz manifestou suas objeções a que outros juízes fi zeram em circunstâncias similares. Seguind o o pre-
um me mbro do conselho direto r, Grueman tratou de d es pedi-lo. cedente, como se cost um a c hamar. Muito do que os advogados fazem
O memora ndo do diretor indica que Katz provavelmente n ão tem no tribunal, ao que parece, é tentar con vencer os juízes de que a atual
como se defender. Ao que parece, Grueman tinha todo o direito de situação é mais parecida com um precedente do que com o utro .
despedi-lo , já que Katz não poss uía um contrato de trabalho. Mesmo Esse sistema em que os juízes formula m a lei caso a caso é chama-
assim , diz o diretor, leia esta causa d e New H ampsh ire, Monge v. Bee- do de "direito consuetudinário" . Sinto-me um pouco e mba raçado por
ge Rubber Company, que pode indicar algum as limitações ao direito não te r compreendido o que isso sig nificava quando me candida tei à
do empregador de d esp edir um trabalhador. faculdade de direit0, ainda mais porque a primeira página do catálogo
Muito bem. Eram 21 :00h quando co mecei a ler. A causa tem qua- da HLS diz que a instituição prepara os advogados para exercerem a
tro páginas e terminei de ler às 22:35h. Era co mo remexer concreto com profissão "onde o direito consuetudiná ri o prevalece".
as pestanas. Não tinha a m enor idéia do que significava a metade das Pois naquela noite o direito consuetudinário prevaleceu sobre mim ,
palavras . Devo ter a berto o 8/ack's Law Dictionary pelo menos 25 ve- derrotou-me. Supo nho que não será a última vez, mas sinto-m ~ frus-
zes e mesmo assim não consigo entender muitas d efiniçõ es. Há anota- trado e perturbado .
ções e números por toda a ma téria cuj o propósito ainda me d eixa Vou dormir.

26 27
A aula de Métodos, na manhã seguinte, deixou-me mais tranqüilo. pio, ele nos fez lembrar de nossos ta lentos mútuos e do quanto pode-
Reunimo-nos num pequeno grupo de 25 a lunos e Henley mostrou ter ríamos aprender uns com os outros. Mas também descreveu as pres-
um estilo de ensinar descontraído. Primeiro, distribuiu um exemplo de sões que se desencadeariam em breve, o empenho em se destacar nas
sumário do caso Monge. Só parecia com o sumário que eu fiz no fato au las, a disputa em cada seção para fa zer a Revista de Direito .
de ambos terem sido escritos em papel, mas encontrei algum conforto Peter também disse que entre os professores encontraríamos pon-
em pensar que dispunha agora de um modelo com que trabalhar. De- tos altos e baixos. A qualidade global do ensino era excepciona l, ga-
pois, sem pressa, ele nos conduziu pelos meandros da causa propria- rantiu Peter, mas certos professores eram mais simpáticos do que
mente dita, revelando o mistério de muitos detalhes que tanto me outros. No lado ma is positivo parecia estar Nick y Morris.
confundiram na noite anterior . - Ele tem 31 anos e é um ho mem tranq üilo, a lém de muito inte-
Henley explicou que há 51 sistemas judiciais independentes no país, ligente, brilhante mesmo - disse Peter.
os de cada estado e o do governo federal. A maioria dos sistemas , no Morr is formara-se pela Faculdade de Direito de Harvard aos 23
entanto , é estruturada da mesma maneira, com três níveis de autorida- anos. Fora o primeiro de sua turma, presidente da Revista de Direito,
de ascendente. No primeiro nível estão os tribunais de justiça, onde alcançara a mais alta média acadêmica desde Felix Frankfurter. De-
um juiz ou um júri decide inicialmente cada disputa. Por cima, estão pois, trabalhara como assistente de um dos ministros do Supremo T ri-
os tribunais de apelação, compostos apenas por juízes, em que todos bunal dos Estados Unidos por um ano e fora advogado da União dos
os perdedores podem tentar uma revisão do julgamento e a inversão Trabalhadores Agrícolas , a ntes de começar a dar aulas.
da decisão judicial inicial. Finalmente, no nível mais alto, tanto nos - Ninguém jamais achou que ele era lento para aprender - acres-
sistemas estaduais quanto no federal, estão os supremos tribunais, em centou Peter.
que há uma revisão seletiva das decisões dos tribunais de apelação . De Sobre o professor de Responsabilidade Civil, William Zechman,
um modo geral, um supremo tribuna l só examina as causas de signifi- Peter não sabia quase nada, exceto que estava voltando a dar aulas,
cado amplo ou aq uelas em que uma questão legal é particularmente depois de uma longa ausência . Mas fizera um curso no ano passado
obscura. com nosso professor de Direito Penal , Bertram Mann, e não se mos-
Henley nos disse que quase todas as decisões dos tribunais de ape- trou muito entusiasmado. Mann fo ra Procurador dos Estados Unidos
lação e supremos tribunais dos Estados Unidos, estaduais ou federais, para o Distrito Sul de Nova York. Era bem-informado, explicou Pe-
... ter, mas às vezes con fuso nas aulas.
são publicadas, mostrando-nos as diversas citações abreviadas usadas
para indicar onde se pode encontrar cada caso, nas séries interminá- ,, A advertência mais terrível foi reservada para Perini.
veis de volumes produzidos por editoras oficiais e particulares. Ao con- - Ele é um grande pro fessor, mas não é fácil - disse-nos Peter.
cluir essas explicações e depois de uma breve a nálise da decisão do caso - Quando eu era lL , a primeira pessoa que ele chamou foi um cam-
M onge, Henley deixa ra as coisas bem mais claras. Agora eu sentia um peão naciona l de debates estudantis e Perini liquidou-o em quarenta
p razer genuíno por reconhecer uma ordem no que antes parecia tão segundos.
confuso e complexo. Sempre estejam preparados para essa a ula, aconselhou Geocaris.
E, no entanto, a experiência de ter ficado tão aturdido na noite Saibam o que signjfica cada palavra numa causa; e se não puderam
a nterior teve um efeito profundo em mim . O primeiro ano da faculda- estudar bem, é melhor nem aparecerem. Muito tempo passaria antes
de de direito não era mais uma coisa so bre a qual eu ouvira histórias de conseguirem esquecer a hum ilhação de serem apanhados desprepa-
e tentava imaginar como seria. Sabia ago ra como podia me sentir frus- rados.
trado, wtalmente incapaz de fazer o que se esperava . Tentei encarar A preleção sobre a biblioteca que ouvimos a seguir tin ha a mesma
essa situação com bom humor, mas tal compreensão também me incu- mistura de boas notícias e maus presságios. O bibliot ecário descn :veu
tiu medo. onde estavam localizados os livros importantes e por que haveríamos
À uma hora da ta rde o grupo de Métodos reuniu-se com o conse- de querer usá-los - os volu mes de leis e-,tadua is e de sumá ri os de cau-
lheiro do BSA, Peter Geocaris, a fim de ouvir suas sugestões sobre o sas, os tratados, enciclopédias e publicações jurídicas, os imensos ín-
que devería mos esperar nos próxim os dias. Peter tentou expor os pro- dices que nos ajudariam a encontrar o camin ho em meio a tudo aquilo.
blemas de maneira objetiva, as vantagens e retrocessos; à luz da minha Se você sabia o que estava fazendo na biblioteca, podia resolver os mais
experiência na noite a nterior, fiz um esforço para prestar a lguma aten- complexos problemas jurídicos do mundo. Mas fi cou patente que esse
ção às s uas eventuais advertências. Em relação aos colegas, por exem- tipo de competência não seria adquirido pelo mero expediente de ex-
~\
28 29
cursionar at ravés das estantes que o bibliotecário sugeriu o u através
da leitura de pesquisa jurídica. Seria preciso ir até lá constantemente,
trabalhar com o material, fracassar, fica r frustrado, tentar de novo.
Eu me sentia disposto a fazer isso. Estava determinado a fazê-lo.
Ao final do dia, essa se tornara a minha reação a todos os sinais que
indicavam tarefas árduas pela frente - uma nova determinação, uma
vontade firme . Tudo o que encontrara até aquele momento - a lei,
meus colegas, o ritmo acelerado de descoberta - deixara-me fascina- SETEMBRO E OUTUBRO
do e estava decidido a continua, assim. Tiraria o melhor proveito de
tudo, q uaisquer que fossem os obstáculos.
Estudei com afinco durante o fim de semana. Não queria experi-
mentar de novo a ignorância desamparada da outra noite. Resumi com
extremo cuidado os capítulos designados em Direito Penal e Contra-
tos, depois li várias vezes as d uas causas que P erini indicara. Fiz sumá-
Aprendendo a Amar o Direito
rios meticulosos de ambas, cada palavra avaliada, cada ângulo
considerado. Ensaiei o que diria se fosse chamado. Folheei o dicioná-
rio jurídico até virtualmente memorizar a definição de cada termo im-
portante nos pareceres. Estaria pronto para Perini, totalmente 8/ 9/ 75
preparado. (Segunda-feira)
E fiquei tão a bsorvido que nem percebi que já fo ra atraído para
o território inimigo.
Apenas um registro antes de partir para a faculdade.
Hoje é o início das aulas regulares . Começaremos agora a vida
"normal" da faculdade de direito. Os estudantes do segundo e tercei-
ro anos estarão presentes e a seção iniciará o programa que seguire-
mos durante a maior parte do ano leti vo. Neste semestre teremos
Contra tos, Processo C ivil, Direito Penal e Responsabilidade Civil. Os
dois últimos cursos só du ram um período e serão as matérias das quais
fa rem os as primeiras provas, em janeiro. Contratos e P rocesso Civil
continuam no segundo semestre, com o acréscimo de Direito de Pro-
priedade e mais uma matéria que cada um poderá escolher.
Fomos avisad os que a s a ulas de hoje - Penal e Contratos - não
serão muito parecidas com Métodos Legais. Os cursos q ue começam
ago ra são considerados as disciplinas tradicio nais da faculdade de di-
reito, matéria analítica, em lugar de mera instrução sobre como fazer
algo. Ao contrá ri o de Métodos, esses cursos terão notas e serão minis-
trados por professores. As aulas serão reali zadas com a seção inteira,
140 alunos, em vez de um pequeno grupo apenas. E, o mais sinistro
para mim, a instrução será efetuada através do " método socrático".
De certa forma, aguardo ansioso pela instrução socrática. T enho
ouvido falar muito a respeito desde que me candidatei à faculdade de
direito ... será pelo menos interessante descobrir como é.
A reação geral dos estudan tes está expressa de maneira bem su-
cinta num comentário que ouvi de David no verão, quando ele me mos-

30 31
trou a faculdade. Ele im itava um guia de excursão turística, desfiando
fatos e nomes, enquanto me levava de um prédio para outro. Quando com uma pergunta mais específica. Alguns interrogam os a lunos por
chegamos a Langdell, ele parou na escadaria, levantou a mão para as trinta segundos, outros os deixam na berlinda durante toda a aula. Uns
colunas e os nomes fam osos do direito gravados na faixa de granito poucos professores nunca fazem mais do que formu lar perguntas, des-
por baixo do telhado. prezando qualquer declaração direta . A maioria, porém, a proveita a
- Este é Langdell Hall - disse ele - , o maior prédio do campus resposta de um aluno como ponto de partida para uma breve preleção
da faculdade de direito. Contém quatro grandes salas de aula e, nos sobre um determinado tópico, antes de recomeçar as perguntas.
andares superiores, a biblioteca da Faculdade de Direito de Harvard Qualquer que seja a forma empregada, o método socrático é criti-
a maior biblioteca de faculdade de direito do mundo. O prédio te~ cado com ba~tant~ freqüê~cia . Ralph Nader chamou-o de ' 'o jogo que
1

esse nome e_m _homenagem ao falecido Christopher Columbus Lang- só um pod_e Jogar • e muitas gerações de estudantes lançaram pragas
dell, que foi diretor da Faculdade de Direito de Harvard no final do contra o diretor Langdell, como David o fizera . As pressões dos cole-
século XIX . O diretor Langdell é mais conhecido como o inventor do gas, que Peter Geocaris descreveu ao meu grupo de Métodos durante
método socrático . a orientação, muitas vezes faz com que ser chamado se torne uma ex-
David baixou a mão e contemplou o prédio, antes de arrematar: periência desagradável. Você está na presença de 140 pessoas que res-
- Que ele apodreça no inferno . peita e espera que todas o tenham em alta conta.
Apesar da aflição e protestos dos estudantes, a maioria dos pro-
O método socrático é, sem dú vida, urna das coisas que faz com que fessores de direito, inclusive os que são liberais - ou mesmo radicais
a educação jurídica - em particular no primeiro ano, quando o socra- - em outros aspectos da educação jurídica , defendem o método so-
ticismo é usado de forma mais ampla - seja tão diferente do que os crático. Consideram que a instrução socrática oferece o melhor meio
estudantes estão acostumados em qualquer outro lugar. Quando eu dava de treinar os alunos para falar na linguagem jurídica desconhecida e
aulas , sempre presumi que não havia a menor possibilidade de manter serve também para acostumá-lo ao estilo compartimentado e inquisiti-
uma discussão em aula com um grupo superior a trinta alunos. Com vo de análise que é uma parte fundamental do processo de pensar co-
mais pessoas na turma , o único meio de comunicação era a preleção. mo um advogado.
Mas o socraticismo é, de cena forma, uma tentativa de conduzir uma Para mim, o sentimento primário no início foi de inadmissível ex-
discussão coletiva com toda uma turma de 140 alunos. posiçã_o . Quaisquer que sejam os seus defeitos ou virtudes, o método
De um modo geral, a discussão socrática começa quando um alu- socrático baseia-se numa licença tácita para violar uma regra sutil de
no - vou chamá-lo de Jones - é escolhido sem aviso pelo professor comportamento público. Quando os grupos são muito grandes para
e interrogado . Tradicionalmente, o professor pedirá a Jones para qualquer arremedo de intimidade, geralmente pensamos como sendo
"enunciar a causa" , isto é, fornecer uma versão oral das informações divididos por função . O orador fala e, em nome da ordem, a audiên-
que se encontram num sumári o. Depois da exposição, o professor - cia escuta ... passiva, anônima, remota. Ao usarem o método socráti-
como Sócrates fazia com seus discípulos - interrogará Jones sobre o co, os professores estão informando aos alunos que um espaço pessoal
que acabou de dizer, pressionando-o a dar respostas mais claras e ob- normalmente seguro pode ser invadido a qualquer momento .
jetivas. Se Jones diz que o juiz considerou que o contrato foi violado, Esse sentimento pode ter me tornado mais atento nas aulas, mas
o professor perguntará que dispositivo específico do contrato foi vio- também deixou-me bastante apreensivo quando assumi o lugar indica-
lado e de que maneira. A discussão continuará assim, as questões cada do para a primeira aula de Direito Penal, naquele dia em setembro.
vez mais especificas. Em determinado momento, Jones talvez não seja Passava_ um pouco das nove horas da manhã e procurei pelas fileiras
capaz de responder a uma pergunta. O professor pode escolher outro de carteiras até encontrar meu lugar. Na maioria das faculdades de di-
aluno ao acaso ou, o que é mais comum , chamar um dos que levanta- reito, inclusive Harvard, os lugares na sala são determinados com an-
rem a mão. O substituto pode continua r a discussão da causa com o tecedência. A distribuição é aleatória e há um lugar diferente para cada
professor ou apenas responder o que fones não sabia, com o professor curso. O número da carteira de cada aluno é registrado numa planta
retomando o interrogatório de Jones. que os professores normalmente mantêm à sua frente em todos os mo-
Os sistemas de cada professor podem divergir tanto que essa des- me~tos. Muitos professores recortam fotos dos alunos do guia do pri-
crição não deve ser considerada típica . Alguns professores nunca pe- me1rp ano e os colocam na planta. Assim, é mais fáci l reconhecer os

dem uma apresentação da causa , preferindo iniciar logo a discussão alunos ao chamá-los e também se evita que sentem no fundo da sala,
fora de seus lugares designados.
32
33
A designação de lugares é uma exigência do método socrático. A res, sendo indispensável a publicação de trabalhos. Bertram Mann, ao
planta de distribuição permite que os professores selecionem estudan- que me contaram, escrevera diversos estudos muito bem conceituados
tes livremente por toda a sala para interrogatório, em vez de esperar sobre crimes sem vítimas - prostituição, consumo de narcóticos, jogo
por voluntários. Eu compreendia o motivo, mas ainda assim me sentia _ mas depois da primeira hora vi que seus melhores esforços no cam-
irritado. Tinha 26 anos, um homem amadurecido, e ali estava a rece- po do direito paravam por aí.
ber ordens sobre o lugar exato em que devia instalar o traseiro, às 9: 1Oh. Disseram-me que ele dava aulas como se falasse para si mesmo;
Além disso, persistia a possibilidade inquietante de ser chamado e, ainda constatei que era uma descrição apropriada. De vez em quando ele se
pior, a possibilidade assustadora, por mais remota que fosse, de ser virava e nos fitava, como se quisesse ter certeza de que ainda tinha uma
a primeira vítima. A inépcia podia me transformar num mito. "Lem- audiência; depois, tornava a olhar para o teto e continuava a falar.
bram de Turow? Mann chamou-o e ele apagou de pavor." Eu me sen- Os comentários só estavam vagamente ligados entre si e cada um pare-
tia apreensivo e contrafeito quando finalmente sentei. cia improvisado.
Mas afinal, não havia necessidade para tanta preocupação. O pro- - Claro que quero que vocês estejam preparados todos os dias ,
fessor Mann passou a aula fazendo comentários introdutórios. Não cha- muito bem preparados - disse ele em determinado momento. Ele es-
mou ninguém e tenho certeza de que todos ficamos gratos por isso. tendeu a mão, baixando os olhos por um instante. - Mas é claro que
Por volta de 9: 12h ele murmurou para si mesmo: se eventualmente não estiverem preparados, podem compa recer à aula
- Acho que devemos começar. assim mesmo; não precisam se manter a distância. Se for um dia as-
Mann olhou para o teto e começou a falar. Tinha quase sessenta sim, basta dizerem .. . basta dizerem "Estou despreparado" ... e darei
anos, era bastante meticuloso, com uma vasta cabeleira branca e um outra oportunidade, um ou dois dias ... depois. Não precisam se
rosto impassível, sem humor. Usava um terno listrado . Enquanto fa- preocupar.
lava, balançava para a frente e para trás, um tanto rígido, por trás do Ele pôs-se a andar de um lado para o utro, acenando com a cabeça
pódio. para si mesmo. Depois de a lgu m tempo, começou a falar sobre o cur-
Não precisei ouvir o professor Mann por muito tempo para com- so. Disse que o Direito Penal seria singular so b muitos aspectos. Era
preender que não era um grande professor. Tendo em vista o que Pe- o único curso que se concentraria expressamente no relacionamento
., ter dissera, isso não era surpresa. Não era segredo para ninguém que entre o governo e os cidadãos. E seria também o único curso em que
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cada seção era planejada de maneira a haver uma igual distribuição teríamos de estudar as leis, além das causas. Uma grande parte do nos-
dos melhores professores, o que significava que cada uma teria profes- so tempo seria ocupada pelo Código Penal Modelo, um estatuto ela-
sores bons e maus. Como outras instituições acadêmicas, a Faculdade borado na década de 1960 pelo Instituto Jurídico Americano e desde
de Direito de Harvard não se preocupa exclusivamente com a questão então adotado por diversos estados.
didática na formação do corpo docente. Encontrei Terry Nazzario depois da aula. Ele me perguntou o que
Os homens e mulheres que são professores da HLS já comprova- eu achara de Mann e respondi que não se podia ganhar todas.
ram sua excelência muitas vezes. Em poucos dias, pude comprovar que - Mas pelo menos pareceu um cara simpático - comentou Terry.
eram tratados como seres superiores, os estudantes visivelmente inti- - Não acha que aquele negócio de não estar preparado é uma boa
midados por sua inteligência e, em especial, por suas realizações. A coisa?
maioria dos professores da HLS formou-se ali mesmo. Onde quer que Concordei.
tenham estudado, praticamente todos os professores foram membros Tínhamos meia hora antes do primeiro encontro com Rudolph Pe-
da Revista de Direito e a maioria figurou entre os primeiros lugares rini, em Contratos. Terry disse que queria aproveitar o intervalo para
de suas turmas. Muitos foram assessores do Supremo Tribunal dos Es- comprar um livro e me ofereci para acompanhá-lo. Comprara todos
tados Unidos, uma honra excepcional. Depois da formatura, quase to- os meus livros na semana anterior, mas queria dar uma olhada na Law-
dos exerceram a advocacia por algum tempo, muitas vezes com grande book Thrift Shop, para o nde ele estava indo - um sebo na faculdade
sucesso, vários interromperam a carreira de professor em algumas oca- onde vendem e comp ram liv ros usados.
siões para assumir cargos proeminentes no governo - assistentes de Eu almoçara com Terry na quinta-feira e passara a conhecê-lo me-
secretários do gabinete, assessores presidenciais, altos funcionários. Mas lhor. O cam in ho que ele seguira para chegar à faculdade de direito era
a capacidade para o estudo jurídico - a especulação e pesquisa legal muito diferente do da maioria. Tinha quase a minha idade - 25 a nos
- permanece como o critério básico para a contratação de professo- - mas só concluíra o colégio em junho último. Depois da escola

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secundária, segundo seu relato, tornara-se um "vagabundo", circulando Embora há várias gerações os estudantes de direito se aproveitem des-
pelos hipódromos; mas aos vinte a nos casara, tomara dinheiro empres- ses e de outros r_esumos bem preparados, há professores que alegam
tado para ab rir uma loja de venda de aparelhos estereofônicos e volta- nunca terem ouvido a palavra "G1lbert's" dos lábios de um aluno . An-
ra a estudar, à noite. Prosperou . A mulher teve gêmeos; abriu então tes de começar, eu me sentia um tanto incrédulo, não podendo imagi-
uma segunda loja e contratou pessoas para dirigir as duas, enquanto nar que os estudantes comprassem um guia para o curso, em vez de
se transferia para o horário diurno no colégio, onde se saíra muito bem. prepará-lo pessoalmente. Parecia beirar o plágio.
Em dezembro último, uma grande cadeia de lojas oferecera muito di- Qualquer que seja a categoria, duas generalizações sobre os livros
nheiro pelas suas e não pôde recusar. de direito geralmente são procedentes: são livros enormes . .. eu já pre-
- Tínhamos o suficiente para viver muito bem por três ou qua- cisara investir nu_ma grande mochila laranja para poder carregá-los ;
tro anos. Calculei que poderíamos fazer qualquer coisa . .. ir à Europa, e são caros. Os ltvros de causas são especialmente caros, de 16 a 25
mudar para a Califórnia e ficar na pra ia. Mas gosto de estudar, cara. dólares quando novos, provavelmente inflacionados porque os edito-
É uma coisa que me agrada. Não via possibilidades num curso comum. res sabem que constituem uma leitura obrigatória e devem ser compra-
Ou seja, você não encontra emprego depois que termina e eu queria dos de qualquer maneira. Uma pressão dos alunos por preços mais
ter condições de fazer alguma coisa depois, além de gerenciar uma lo- baixos prov~velmente não adiantaria muito; e de qualquer forma, é
ja. Por isso, decidi tentar a faculdade de direito. Fiz o teste nacional, improvável, Já que os professores são quase sempre os editores ou au-
fui um dos melhores e pensei : Ei, cara, tente Harvard, você é tão bom tores dos livros que indicam . Em todos os meus cursos do primeiro
quanto qualquer outro . E bingo! Os pais de Donna ... eles pensam que ano, à exceção de um, o livro de causas exigido fora escrito pelo pró-
tem alguma coisa meio estranha por terem me deixado entrar. prio professor ou por outro membro da HLS . As trocas de livros usa-
Ele riu enquanto contava a história. Era duro, orgulhoso, inde- dos, como se faz na Lawbook Thrift Shop, são o único meio de que
pendente, inteligente, com aquela incrível agilidade mental da cidade os estudantes dispõem para reduzir os custos.
grande. Eu não podia deixar de admirá-lo. Terry saiu com um pesado livro verde, que me mostrou no mes-
A loja estava apinhada quando chegamos. É dirigida pela esposa mo instante.
de um estudante, numa pequena sala no Austin Hall. Estava repleta - Já tem este?
de alunos do segundo e terceiro anos, à procura de livros, no seu pri- Verifiquei o título. Era um hornbook sobre Contratos, escrito por
meiro dia de volta. Eu disse a Terry que esperaria lá fora. Gregory Baldridge e Rudolph Perini, como nosso livro de causas.
Devo dizer alguma coisa a respeito dos livros de direito, já que - Dois amigos me disseram que todo o curso do cara está aqui
são o foco de tanta atenção dos estudantes. Há três categorias gerais. - comentou Terry.
A primeira é formada pelos livros de causas, os volumes de mil pági- - Ele escreveu um hornbook, hem? - murmurei, ainda olha n-
nas dos quais se tiram regularmente as tarefas para as aulas. As causas do a capa.
nos livros são editadas e selecionadas por sua importância no desen-
- "Escreveu um hornbook?" Ora, o cara é Contratos ... é a a u-
volvimento de determinadas áreas do direito. Na segunda categoria, toridade, e este é o livro.
uma espécie de purgatório acadêmico, estão os "hornbooks", as "car-
- Pensei que os professores haviam dito que não deveríamos ler
tilhas" , breves tratados escritos por juristas famosos, que resumem ca-
hornbooks por enquanto.
sos importantes e apresentam descrições gerais das doutrinas a respeito.
Os professores desencorajam a leitura desses livros por estudantes prin- - Isso é o que eles dizem, cara ... mas não é o que as pessoas fa-
cipiantes. Receiam que a consulta a esse tipo de livro reduza a capaci- zem. Pelo menos foi o que me contaram .
dade do aluno do primeiro ano de deduzir a lei diretamente das cau- Dei de ombros e devolvi-lhe o livro. Mas estava preocupado. Co-
sas, por si mesmos; também ?Cham que diminuirá o interesse do estu- mo podia saber o que era certo? Sentia que deveria ter fé nos pro fesso-
dante pela aula, já que os livros muitas vezes analisam o material res, mas também não queria ficar para trás em relação aos colegas.
cotidiano da mesma maneira que os professores. Na categoria final - Vou esperar - decidi.
o mundo inferior, muito abaixo da respeitabilidade acadêmica - es- - Você é quem sabe.
tão as incontáveis publicações auxiliares de estudo, os livros de causas - Quero verificar primeiro até que ponto Perini é mesmo terrível.
editados comercialmente, as descrições de cursos e matérias e outros Ele balançou a cabeça e seguimos juntos para a sala de a ula no
tipos de sumários. A série mais conhecida é a Gilbert Law Summaries. Austin, onde ambos logo descobriríamos a verdade.

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A maioria das salas de aula da faculdade de direito tem mais ou menos Ele falava com uma lentidão elaborada, d a ndo ênfase a cada pa-
a mesma disposição. Semicírculos concêntricos de carteiras, geralmente lavra . O sotaque era nitidamente sulista .
interrompidos por dois corredores, partem do pódio, formando uma es- Suspendeu o livro com uma das mãos.
pécie de anfiteatro. No Pound, onde nos reuníramos com Mann, as salas - O texto para este curso é Selected Cases in the Law of Con-
de aula recentes haviam sido construídas de uma maneira extraordinaria- tracts. Os editores são Baldridge e .. . - Perini levantou a mão, para
mente compacta. No Austin, no entanto, as salas eram antigas e enormes. avaliar o silêncio - et cetera.
As cadeiras e carteiras, de carvalho amarelado, estavam dispostas em fi- Ele tornou a sorrir, sem entreabrir os lábios. Umas poucas pes-
leiras, subindo íngremes para os fundos. No ponto mais alto, a sala de aula soas na sala soltaram risadinhas.
tem uns doze metros de altura, com cortinas compridas e grossas nas ja- - Creio que é desnecessário dizer que espero que comprem o li-
nelas e retratos escuros de magistrados ingleses, com suas perucas e túni- vro novo. - Perini deu seu primeiro sorriso genuíno. - Estudaremos
cas, pendurados em molduras douradas nas paredes. Era um cenário o livro causa a causa. De vez em quando poderemos saltar uma ou duas.
intimidativo, ainda mais quando se unia às histórias que todos ouvíramos Neste caso, eu os informarei com antecedência ou encontrarão um co-
a respeito de Perini. Havia um misto de humor e tensão nas conversas à municado no quadro de avisos. Devem estar sempre três causas na fren-
minha volta, as vozes um tanto abafadas. Ao seguir para o mt!u lugar, ou- te, todos os dias.
vi diversas pessoas comentarem "Não quero que seja eu", referindo-se à Entre a escrivaninha do professor e os alunos na primeira fila ha-
pessoa que Perini chamaria primeiro. via uma área estreita, uma espécie de pequeno proscênio. Perini come-
Apresentei-me aos colegas sentados perto de mim. Um deles era çou a andar por ali, devagar, as mãos nas costas. Observei-o ao se
um ex-fuzileiro de Ohio, o outro um garoto chamado Don, que acaba- aproximar do nosso lado da sala, olhando firme para os rostos ao re-
ra de sair da Universidade do Texas. Conversamos a respeito de Peri- dor. Parecia ter passado dos cinqüenta anos, pele áspera e morena.
ni, trocando as poucas informações de que dispúnhamos. Don disse Era meio calvo, mas o que sobrava de cabelos pretos estava bem trata-
que Perini era texano. Formara-se na Faculdade de Direito da Univer- do. Havia uma expressão sombria na boca e olhos.
sidade do Texas, mas era professor na HLS há vinte anos. Só no final - Vamos estudar o direito de obrigações, os contratos, transa-
f.. da década de 1960 é que interrompera por algum tempo sua carreira ções comerciais, o direito de promessas - disse Perini. - É o curso
' como professor, quando se tornara assessor de Nixon. mais difícil que farão durante todo o ano. Contratos é tradicionalmente
Já passava um pouco das dez, a hora em que a aula deveria come- o campo do direito de maior complexidade intelectual. A maioria dos
çar. A turma estava reunida e quase todos se encontravam em seus lu- grandes comentaristas jurídicos do século passado era de estudiosos
gares. Don perguntou-me como Perini parecia. de Contratos: Williston, Corbin, Fuller, Llewellyn, Baldridge ... - ele
- Não sei - respondi. - Não tenho a menor idéia. levantou a mão, como já fi zera antes - .. . et cetera .
Greg, o ex-fuzileiro, no outro lado, disse : Ele sorriu amplamente, pela primeira vez. A maioria dos alunos
- Basta dar uma olhada. riu. Um ou dois aplaudiram . Perini esperou por um momento, antes
Perini avançou lentamente entre as fileiras de carteiras. Mantinha de recomeçar a andar de um lado para outro .
a cabeça erguida, o rosto impassível. Meu primeiro pensamento foi de - Alguns dos seus colegas podem achar que o curso de Proprie-
que ele parecia mais brando do que eu esperava. Tinha mais de um dade, na primavera, é o mais difícil que eles terão. Mas vocês não vão
metro e oitenta de altura, mas era gorducho e desajeitado . Embora fi- se sentir assim, porque estarão fazendo Contratos comigo. Não sou ...
zesse calor, usava um terno preto com colete. Tinha debaixo do brac:o - ele levantou os olhos - ... uma pessoa fácil. Espero que estejam
o livro e o mapa de distribuição dos lugares. aqui todos os dias. E espero que sentem nos lugares que lhes foram
A sala permaneceu em silêncio total até que Perini alcançou se~ designados. Nos chamados bancos dos fundos quero ver apenas as pes-
lugar. Ele bateu com o livro na mesa . Ainda não sorrira. soas que estão nos visitando, à procura de um vislumbre momentâneo
- . lsto _é Contratos, Seção Dois, caso alguns de vocês estejam um de algo mórbido .
pou~o _indecisos sobre o lugar em que se encontram . - Ele sorriu ago- Risos outra vez, em alguns lugares.
ra, ng1damente. - Tenho alguns comentários a fazer, a título de in- - Espero que estejam muito bem preparados, todos os dias. Que-
tro_dução, e depois passaremos às causas que pedi que estudassem para ro ser absolutamente claro nesse ponto . Nunca ouvi a palavra "pas-
hoJe. Antes, _porém,_quero definir as regras básicas pelas quais este curso so". Não sei o que significa "despreparado" . De vez em quando, é
será conduzido, a fim de que não haja nenhuma confusão no futuro. claro, há problemas pessoais .. . todos os temos às vezes .. . que tornam
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Karlin já abrira seu caderno de anotações . A voz estava trêmula
impossível uma preparação plena. Se for esse o caso, quero que um
comunicado por escrito seja entregue à minha secretária pelo menos quando começou :
- O queixoso é intestado ...
duas horas antes da aula. Podem encontrá-la no segundo andar do pré- Ele não pôde seguir adiante.
dio dos professores, na sala 281. _ O que isso significa? - gritou Perini, do outro lado da sala ,
Anotei tudo no meu caderno : "Nada de ausência. Nada de 'pas- pondo-se a marchar ameaçador, pelo corredor, na di reção de Karli n.
so'. Nada de 'despreparado' . Comunicado à secretária duas horas an- _ Jn-tes-tado . .. in-tes-tado. O que é isso? Alguma coisa relacionada
tes da aula, sala 281." com o sistema digestivo? Esta é uma aula de anatomia, Sr . Karli n?
Santo Deus, pensei. A voz de Perini tornara-se estridente, com um tom inequívoco de
Como era de se esperar, Perini nos disse para não ler coisa algu- escárnio, os alunos desataram a rir, mais alto do que por qualquer ou-
ma além das tarefas de aula durante os primeiros meses ... nem mesmo tra coisa que ele dissera antes.
"um certo hornbook" , de que talvez já tivéssemos ouvido falar. Por Perini se encontrava agora a dois ou três metros de Karlin , que
enquanto, ele nos garantiu, ficaríamos plenamente ocupados. Depois, 0 fitava fixamente, piscou aturdido e acabou mu rmurando:
descreveu o curso com alguns detalhes. Manteve também aí um tom - Não.
de ameaça velada. Podíamos ter sido Phi Beta Kappas e primeiros da - Não, bem que achei que não era . E se a palavra fosse " testa-
turma, mas estávamos agora na Faculdade de Direito de Harvard ... do"? O que seria? Teríamos passado do sistema digestivo . .. - Perin.i
e as coisas não seriam fáceis. acenou com a mão e houve risos ainda mais sonoros quando acrescen-
Houve momentos em que tive certeza de que Perini falava apenas tou, malicioso: - ... para algum outro lugar?
meio a sério . Havia um tom teatral óbvio em tudo aquilo, na delibera- - Acho que se a palavra fosse " testado" significaria que ele ti-
ção dos gestos, na insinuação dos sorrisos . Era quase uma paródia do nha um testamento - balbuciou Karlin.
mítico professor durão, do Perini dos rumores. Mas se era uma ence- - E " intestado" que ele não tinha um testamento. Entendo ...
nação, então ele estava determinado a fazer com que fosse irresistível. - Perini sacudiu a cabeça. - E quem é " ele" , Sr. Karlin?
Não revelou mais que um vestígio de ironia e houve diversas ocasiões Karlin ficou em silêncio. Mudou de posição, enquanto Perini o
em que, ao nos fitar , parecia feito de aço . fitava. Mãos se levantaram por toda a sala . Perini chamou rapidamente
Enquanto ele continuava a descrever os assuntos que em breve es- duas ou três pessoas, que deram vários nomes .. . Hurley, Eddingfi eld ,
taríamos estudando - oferta, aceitação, interpretação; a lista era ex- o querelante . Finalmente alguém comentou que a causa não dizia.
tensa - comecei a pensar que, como Mann, deixaria a hora passar. - A causa não diz! - gritou Perini, descendo pelo corredor. -
Ninguém seria chamado e todos estaríamos sãos e salvos por mais um A causa não diz. Leiam a causa. l eiam a causa ! Com toda atenção !
dia . Mas quando faltavam seis ou sete minutos para o meio-dia, Perini Ele se inclinava a cada palavra, a pontando um dedo para a tur-
voltou ao pódio e consultou o mapa de distribuição dos lugares . ma. Olhou ameaçador para os alunos no centro da sala e depois tor-
- Vamos ver se conseguimos fazer alguma coisa hoje. nou a se concentrar em Karlin .
Ele tirou um lápis do bolso e apontou para o mapa. Podia muito - Será que realmente importa saber quem " ele" é, Sr . Karlin?
bem ser uma pistola. Por favor, eu não, pensei. - Importar?
- Sr. Karlin! - gritou Perini bruscamente. - Faz alguma diferença para o resultado da causa?
Houve um tremendo baque perto de mim . A cinco ou seis cartei- - Acho que não .
ras da minha, um homem tentava segurar os livros empilhados à sua Por que não?
frente , dois ou três dos quais se encontravam agora no chão . Tive cer- - Porque ele está morto.
teza de que era Karlin que sofrera um sobressalto ao ouvir seu nome
- Ele está morto! - gritou Perini. - Bom, isso tira uma carga
sendo chamado. Era um homem corpulento, pálido, com óculos de aros
e tanto de nossas mentes. Mas , neste caso, há um outro problema , Sr.
pretos. Usava um solidéu. Os olhos, enquanto se engalfinhava com os
Karlin. Se ele está morto, como pôde entrar com uma ação Judicial?
livros, exibiam um brilho de medo. Senti pena dele e ao mesmo tempo
culpa por meu alívio. O rosto de Karlin ainda se mantinha co ntraído de medo , mas ele
parecia estar recuperando o controle.
- Sr. Karlin - disse Perini, desviando-se para o meu lado da
sala - , por que não nos fala sobre a causa de Hur/ey v. Eddingfield? - Achei que foi o administrador que ent rou com a ação.

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- Ah , o admi nistrador! - exclamou Perini. - E o que é um ad- _ Ele é um rabino ou então estudou para ser - informou Ka-
ministrador? Um daqueles tipos que se encontra lá na secretaria? _ Cursou a Yeshiva em Nova York.
re n . . C .
Continuou assim por mais alguns minutos, Perini andando pela _ Ele se saiu multo bem. - omente1. .
sala, gritando e apontand o, enquanto bombardeava Karlin com per- _ Não podia ser de outra forma - disse o hom~~ - - Karhn re-
gu ntas, Karlin esforçando-se ao máxi mo para dar as respostas. Pouco lou que passou o verão lendo o hornbook de Perim .
depois de meio-dia Perini an unciou subitamente que prosseguiríamos ve Fitei-o aturdido por um instante, depois falei que só podia ser brin-
amanhã. E depois deixou a sala , com o mapa de lugares debaixo do cadeira. . . . . .
braço. Ma l saiu da sala, a turma explod iu em conversas . _ Foi O que ele disse - ms1st1u o homem. -Ouvi pessoalmente.
Permaneci sentado, atordoado. H omens e mulheres agruparam- Karen confirmou a informação. Nazzario aproximou-se nesse ~o-
se em torno de Karlin, dando-lhe os parabéns. E le se saíra bem ... me- mento e pedi ao homem_ que repetisse o q~e dissera a respeito de Karhn.
lhor. ao que parecia, do q ue o próprio Perini esperava. Em determ ina- - Durante o verao ... - murm urei.
do momento, o professor indagara onde Karlin obtivera as definições Terry olhou para mim, provavelmente reprimindo o "Não falei?",
que recitava metodicamente. Sabia que Karlin saíra-se muito melhor depois sacudiu a cabeça, c?m_enta~do : .
do que eu seria capaz, uma constatação que me incomodou, tendo em _ O pessoal por aqui nao brinca em serviço. . .
vista todo o meu trabalho de preparação para a aula. Não me pergun- Todos rimos e nós quatro fomos a lmoçar juntos. Depois, voltei
tara quem estava processando. Sabia o que significava "intestado", à Lawbook Thrift Shop. Não sei se me senti melhor ou pior por com-
mas não "testado", não tinha certeza se poderia chegar à conclusão prar o hornbook de Perini.
correta sob aq uele tipo de pressão. E nem mesmo queria pensar sobre
o momento em que teria de enfrentar Perini.
E também me sentia perturbado pelo clima q ue se estabelecera Por que me dei ao trabalho? Por que me importei? Por que não des-
na sala. A exorbitância do comportamento de Perini parecia ter de- cartei Perini como um algoz ou alguém que gostava de dar espetácu-
sencadeado uma espécie de energia distorcida. Por que as pessoas los? Por que estava com medo? ~
riram daquele jeito?, especulei . Não fora apenas jovialidade. Não Imaginem, isso é tudo o que posso responder. Se voce te~ 26 ?u
fo ra rea lmente um riso com Karlin . Eu também experimentara uma 22 anos, não faz muita diferença. De qualquer fo rma, tem multa c~1sa
espécie de vertigem quando Perini fizera suas indagações zombetei- em jogo. Renunciou a um emprego, a uma carreira, para _fazer aquilo.
ras. E por que as pessoas haviam levantado a mão com tanta ansie- Ou sempre desejou ser um advogado, por toda a sua vida. .
dade, esticando-se em suas cadeiras como se quisessem ser chama- E por toda a sua vida você foi um bom aluno . Por toda a_s~a ~1-
das? Quando a instrução socrática me fora descrita, eu me senti um da, isso foi uma coisa com que podia contar. Sabe que é um_pnv1l~g10
tanto incrédulo, achando que os a lunos não se precipitariam a cor- estar aqui . Estudou horas a fio um caso que tem apenas meia pág_m a.
rigir os erros uns dos ou tros. Mas se eu não estivesse tão apavo ra- A princípio, não pôde entender a maior parte do que le~, mas_v,rou
do, também poderia ter levantado a mão . O que estava acontecen- a página pelo avesso, desenhou diagramas, escreveu sumários. Nao po-
do a li? Minha confusão era total, ainda mais porque, apesar de to- dia estar mais preparado.
das as restrições q ue fazia, a verdade é que fora envolvido pela au- E quando começa a aula, aquele semideus que conhece todas as
la, ao ponto de excita mento. Perini, mesmo com todo melodrama respostas encontra outro aluno para dizer coisas que você nunca seria
e intimidação, fora magnífico, eletrizante, no pleno controle de si capaz. Declarações mais objetivas, mais precisas. E pior - muito pior
mesmo e dos alunos. Os pontos destacados tin ham uma ma ravilho- - noções, conceitos, constelações de idéias que nunca passaram por
sa clareza e objetividade. Ele era, de fat o, como diziam, um professor sua cabeça.
excepcional. É verdade, houve grandes realizações no passado. São ótimas pa-
No momento em que eu saía, Karl in, ainda cercado pelos simpati- ra enfaixar o amor-próprio ferido. Mas "eu me formei no colégio mag-
zantes, também deixava a sala. Alcancei-o para dar um capinha em suas na cum taude" não é a resposta apropriada quando o professor acaba
costas, mas não tive a o portunidade de falar com ele, enquanto se reti- de for mula r uma pergunta e aguarda a resposta, junto com outras 140
rava no turb ilhão dos colegas admiradores. Um homem e uma mulher pessoas. . . ~
que eu já conhecera, uma loura alta que vi nha de Radcliffe, Karen Son- O sentimento despertado por tudo aquilo era algo próximo dopa-
dergard , haviam ficado para trás. Interroguei-os sobre Ka rli n. nico, uma sensação de incerteza intensa e profunda, que me dom inou

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- e creio que à maioria dos meus colegas - muitas vezes durante aquela gal", uma língua que eu _não falava e na qual _era obrigado a ler_ e pen-
prim eira semana e por mais algum tempo depois. Em muitas ocasiões, sar dezesseis horas por dia. Claro que Legal unha alguma relaçao com
descobri que não estava compreendendo nada, e que só o percebia quan-
0 inglês - era mais um dialeto do que uma segun~a lí~g~a - mas nem
do a aula já ia pela metade . Também não podia entender como os ou- por isso se tornava me_nos peculiar._Era repleta de mcnve1s termos fra~-
tros conseguiam chegar à resposta cena . Talvez fossem todos gênios. ceses e latinos - ass1ze, assumps1t, demurrer, quare clausum /regi( ,
Talvez eu fosse o mais estúpido ali. milhares de outros. Além disso, notei que havia em ~eg~l um_ es~o_rço
Mas eu sabia que precisava de ajuda - alguém, alguma coisa, pa- para evitar as ambigüidades normais de língua e restnn?ir o sigm_fica-
ra me apontar o caminho . E se meu pastor fosse alguém como Perini, do de uma palavra. "Julgamento", por ~xen:plo, possui uma var:eda-
que também era um pouco lobo, eu não poderia fazer muita discrimi- de de sentidos na fala comum. "Qual e o Julgamento que voce faz
nação. Pois os cordeiros deste mundo sempre foram duros para enten- dele?" "Acho que ele tem boa capacidade de julgamento." Em L_egal,
der as coisas. "julgamento" significa apenas o pronunciamento final e determman-
Tratei de me agarrar a qualquer coisa que pudesse tornar o direito te de um tribunal numa ação judicial. . .
mais seguro, mais claro. Tornei-me uma espécie de aspirador instantâ- E além das novas palavras, empregadas de maneiras novas , havia
neo. O hornbook que comprei naquele primeiro dia logo recebeu a com- 0 estilo de argumentação escrita com que tínhamos de nos fami liari-
panhia de sumários bem preparados na escrivaninha em meu aparta- zar. Lendo causas, não demorei a descobrir que a maioria dos juízes
mento. Todos permaneceram ali, quase intocados, pois descobri que e advogados não se expressava como pessoas comuns. Pouc?s
não eram mais fáceis de entender do que as causas. Mas, de certa for- exprimiam-se na primeira pessoa do singular. A maioria não escrevia
ma, a simples visão de tudo aq uilo me deixava um pouco mais calmo. em frases declarativas simples. Queriam que suas opiniões parecessem
Subitamente, não estava tão preocupado com plágio ou integridade in- a manifestação da lei , em vez de palavras de algum indivíduo. Para
telectual. Queria entender. fazer com que os textos se tornassem menos pessoais e ma is impressi-
No início daquela primeira semana desenvolvi o plano mais bizar- vos recorriam a todos os tipos de artifícios, com muitos "em decor-
ro para tornar as coisas mais claras. Lera num dos manuais para estu- rên~ia de" e " por conseguinte", rodeios intermináveis, frases de
.. dantes que havia quem tomasse anotações de aula em tintas de cores
diferentes. Não esquecera a idéia porque me parecera bastante exage-
extensão considerável.
O trecho seguinte é de Batsakis v. Demotsis, a pri meira causa que
f
'f'
, ..
" ;~
rada. No segundo dia de aula, no entanto, constatei que minhas ano- lemos em Processo Civil:
:-,, tações estavam confusas, pareciam borrifadas sobre a folha . Fui até " ... sob as circunstâncias alegadas no Parágrafo II desta réplica,
"I, ~ a Harvard Square e comprei diversas canetas caras, cada uma numa a consideração em que se baseia o referido instrumento escrito contra
cor diferente. Passei a fazer os sumários em preto , as anotações de au- o querelante é insuficiente e carente até o lim ite de 1. 975 dólares, e o
la em azul. As regras legais específicas eram escritas em vermelho e réu alega, especialmente sob a confirmação daqui por diante, ter feito
o que não podia entender ficava em verde . Guardava as canetas, duas a deficiência e carência de consideração e agora oferece, como réu da-
de cada cor, nos bolsos da mochila, onde sobressaíam como flechas qui por diante ofereceu ao autor, 25 dólares ... "
- ____..,,,, numa aljava. Nazzario logo começou a me chamar de " Garoto do Arco-
Íris" . Os colegas me olhavam com estranheza. Não me preocupei. Pou-
Encontrar o rumo em meio a textos assim exigia tempo ... e um
tempo espantoso. Antes de iniciar a faculdade, eu não podia acreditar
co a pouco, as anotações aquiriram alguma ordem. Quando alguém que a leitura de umas poucas causas todos os dias, em cada curso, pu-
sugeria que com o tempo era natural isso acontecer, é claro que eu con- desse absorver mais do que duas horas por dia. Na primeira semana,
cordava . Mas não parei de levar as canetas na mochila e de fazer ano- nenhuma das causas tinha mais que duas ou três páginas, mas entre
tações em preto , vermelho, azul e verde. a elaboração de sumários e as freqüentes consultas ao dicionário, eu
Pensando bem agora, é evidente que uma das ,coisas que me fize- não tinha um momento de folga. Sempre que não me encontrava em
ram sentir mais desorientado no início foi o fato de mal entender o aula, estava estudando - de manhã bem cedo , ao final da tarde, en-
que lia ou ouvia. Antes de partirmos para o Leste, um advogado ami- trando pela noite - e sempre da maneira arrebatada e determinada
go, da Califórnia, aconselhou-me a lembrar que. sob muitos aspectos, com que começara no primeiro fim de semana. .
a educação jurídica era apenas o aprendizado de uma segunda língua. E ainda assim não tinha certeza se poderia cuidar de tudo. Na noite
Percebi exatamente o que ele escava querendo dizer naqueles primei- de terça-feira o trabalho aumentara a um nível alarmante. Quarta e
ros dias. O que fazíamos parecia ser um curso Berlitz intensivo de "Le- quinta-feira eram os dias mais intensos - três aulas em cada; e Zechman

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e Morris , que estaríamos conhecendo na manhã seguinte, haviam pe- Eu adquirira mais informações a seu respeito ao longo da sema-
dido tarefas substanciais. Além disso, havia a continuação do traba- Voltava a Harvard depois de uma a usência de cerca d e doze anos .
lho em Contratos e Direito Penal; e naquele dia, em Métodos Legais, ;\a professor na HLS com trinta e poucos anos, depois se transferira
H enley distribuíra um maço de causas sobre as quais teríamos de pre- ºra uma universidade inglesa. Já vo ltara aos Estados Unidos há al-
parar um memorando de oito páginas até a quinta-feira da semana se- pa ns anos, abrindo um escritó rio de advocacia, mas sua postura per-
guinte. Parecia interminável. Annette foi dormir e fiquei acordado por guanecia inegavelmente britâ nica. Era um homem d e fala suave,
horas, tentando acabar Responsabilidade Civil. ~ passível e um tanto farmai. Não saía de trás do pódio, a não ser
Mas, apesar de tudo, eu estava adorando. 1m - d
ara escrever um~ ou outra anotaçao n? _qu~ ro-neg~~- _
Não posso deixar de dizê-lo. "Aprender a amar o direito" é uma P zechman limitou-se a breves comentanos mtroduto nos. Nao men-
frase, com sua insinuação de coação, usada ironicamente pelos alunos ·onou o li vro de causas ou a preparação para as aulas. Comentou que
do primeiro ano para descrever esse período inicial na faculdade. Mas ci curso incluiria a teoria jurídica (as co ncepções amplas do propósito
se aplicava ao meu caso. Mortificado, apreensivo, exausto, mesmo as- ~ásico numa área do direito) e também a do utrina legal (a estrut~ra
sim nunca resisti à sensação de ser envolvido, dominado. A noção que de regras); depois, chamou um homem no fund o da sala para enunciar
me levara à faculdade de direito, de que um conhecimento jurídico am- a primeira cau~a. . ~- . . . . ,,
pliaria de alguma forma a compreensão das rotinas da vida cotidiana, Delitos civis, " torts" em mgles, que s1gnif1ca mais ou menos er-
foi imediatamente consumada. Em Contratos, por exemplo, Perini usou ros", é o estudo dos tipos de danos causados por particulares, uns aos
as duas primeiras causas, Hurley v. Eddingfield e Poughkeepsie Bu- outros. Num processo de responsabilidade civil, uma parte - o autor
ying, para iniciar uma análise do conflito entre liberdades pessoais e _ solicita uma indenização em dinheiro para compensar os danos su-
deveres públicos. Que tipo de obrigação, ele nos perguntou, a socieda- postamente causados pelo réu. As causas envolvem praticamente t0da
de deve impor a indivíduos como Eddingfield, um médico que se recu- a gama de infortúnios e d anos que os seres huma nos podem propor-
sara a tratar de um paciente? Suas responsabilidades seriam diferentes cionar uns aos outros - desastres d e automóvel, espanca mentos, im-
das que tinha a Poughkeepsie Newspaper Company, que recusara anún- perícia e negligência '!lédica, lesões por prod~tos def~ituosos - e as
!.. cios sem uma causa aparente? Uma sociedade podia impor qualquer narrativas do fato muitas vezes revelam calamidades bizarras. Um dos
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relacionamento comercial e preservar o direito de outros cidadãos de meus amigos comento u durante o ano que Responsabilida de Civil é
fazerem negócios da maneira como quisessem? 0 curso que prova que sua mãe estava certa.
Eu não achava tais questões mais importantes do que outras que Uma grande parte das questões em Responsabilidade Civil envol-
podiam desafiar as pessoas: quando o homem pisou pela primeira vez ve uma luta teórica para definir os deveres mínimos que os cidadãos
em Olduvai Gorge, ou como construir um carburador melhor, ou se são obrigados a assumir, por lei, em relação aos outros. Até que ponto
cargas podem ser transportadas para Omaha mais depressa. Mas eram devemos ter cuidado com os direitos dos outros? Quando iniciamos
tipos de questões que sempre me estimularam, e me sentia exultante o estudo d a primeira causa, Zechman d eixou claro que a tarefa de de-
agora por sua análise sistemática. Sentado na sala de a ula, luta ndo pa- finição pode ser desconcertante. A ação fora iniciada por uma ve lha
ra entender as causas, conversando com os colegas , eu tinha a sensa- que fratu ro u a bacia ao ter sua cadeira puxada por um garoto d e cinco
ção permanente e inebriante de que me encaminhava para a solução anos, o réu . O processo se preocupou em determinar se o menino tive-
de enigmas que há anos me fascinavam. ra a intenção de machucar a velha. O juiz acabara decidindo que sim .
- E o que o tribuna l está querendo dizer com " intenção dolo-
sa"? - perguntou Zechman ao louro alto que apresentara a causa.
Ao final da semana, tivemos a primeira aula com Zechman e Morris. - É o tipo d e perversidade moral de um ho mem que g uarda ressenti-
A aula de Responsa bilidade Civil de Zechman era logo d epois de Con- mento contra outro e, deliberad amente, ao vo lante de seu carro, atro-
tratos, às quartas-feiras , e naquele dia Perini nos reteve além da hora. pela o inimigo quando o encontra na rua?
Quando entramos na sala, Zechman já se encontrava de pé atrás do O homem no fundo respondeu que, em sua opinião, o tribunal
pódio, um homenzinho de terno preto, algumas manchas numa das estava querendo dizer uma coisa diferente.
têmporas, os cabelos compridos para que pudesse penteá-los so bre o - É possível, é possível - d isse Zechman. - Mas o qu e exata-
... ponto calvo no meio da cabeça. Achei que ele parecia muito com um mente o tribunal quis dizer então? O que justificaria atribuir a esse me-
Adiai Stevenson mais jovem . nino a responsabilidade por lesões corporais? Qual é o tipo de

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julgamento que fazemos? Se ele não fez por maldade, por que o culpa-
mos? Ele não estava simplesmente prestando atenção? É essa a inten- ter chegado a uma avaliação similar à que Terry me ofereceu na sexta-
ção dolosa? feira.
O int errogatório era gentil, suave. Ao final da au la, porém, não - O cara não sabe ensinar - comentou Terry. - Não é de ad-
hou vera respostas. Também não houve definições firmes para as ques- mirar que o tenham deixado afastado por doze anos.
tões que Zechma_n nos ap resentou nos dias subseqüentes, indagações Nicky Morris, por outro lado, foi um sucesso imediato. Desde o
sobre o que os tnbunais queriam dizer com "negligência" ou por que início ficou patente que teríamos um relacionamento diferente com ele.
os danos causados por certas atividades deviam ser indenizadas quer - Sou Nicky Morris e me sinto muito contente por estar aqui -
houvesse negligê~cia ou não. Como era possível, Zechman ind~gou, disse ele, ao começar a primeira aula. - Gosto de ensinar Processo
que em algu mas situações podia-se atropelar um pedestre e não ser obri- Civil.
gado a pagar nada, mas ter que arcar com todos os prejuízos pela Foi o único professor que se deu ao trabalho de apresentar-se, em-
explosão, num acidente imprevisto, de uma torradeira que apenas bora talvez o fizesse porque alguns a lunos na sala ainda não acredita-
vendeu? vam que ele era mesmo o professor. Quando apontei Morris antes da
As respostas da turma eram confusas, especulativas. Zechman ana- aula para o homem que sentava ao meu lado, ele se mostrou incrédu-
lisava cada uma, depois formu lava outra pergunta. Geralmente se ba- lo . Morris fora jogador de futebol a mericano em Dartmouth e ainda
seavam em complexas situações hipotéticas idealizadas por Zechman parecia um atleta, bronzeado, musculoso, esbelto. Apareceu na pri-
(" hipos", na abreviação, um termo que por semanas me lembrou, co- meira aula com um jeans e uma camisa pólo vermelha; os cabelos es-
mo filho de médico, de seringas hipodérmicas); e as próprias hipos às curos, embora penteados, eram um pouco compridos. Encostou-se no
vezes pareciam estranhas demais, aumentando ainda mais a nossa con- pódio, conversando com alguns alunos, parecendo um jogador a con-
fusão. Era agressão se um anão desferia um golpe inofensivo contra versar com as animadoras de torcida, apoiado confiante no Chevy do
Muhammad Ali? Era negligência recusar-se a gastar duzentos mil dó- treinador.
lares em medidas de segurança numa represa que poderia causar da- Na frente da turma perma neceu descontraído, as mãos nos bol-
nos à propriedade no valor de cem mil dó lares? sos, andando lentamente de um lado para outro enquanto falava. Era
Quando a perplexidade em relação a um tópico parecia alcançar evidente que em sua aula não haveria o mesmo clima de adversidade,
o auge, muitas vezes com a tu rma num silêncio desconcertante, Zech- a mesma distância. Nicky era jovem - aos 31 a nos, era até mais jo-
man passava para outro assunto. Mas nunca fazia uma declaração po- vem do que dois ou três a lunos da seção. Vestia-se como nós. Até fala-
siti va, nunca oferecia qua lquer coisa que se assemelhasse a uma va em tom coloquial - dizia "coisa", "esse negócio", " sabem como
resposta, nem mesmo uma insinuação. Continuava impassível, em seu é". E além da a finidade de maneiras, havia uma aliança mais s util en-
terno preto, a disparar perguntas; e à medida que a confusão aumen- tre Morris e a turma. Desde o início ficou óbvio que Nicky era um fo-
tava, o mesmo acontecia com a insatisfação. Ninguém entendia o que rasteiro na HLS , como nós éramos recém-chegados. E le criticava aber-
Zechman queria de nós. Éramos estúpidos? As perguntas eram mal- tamente a fac uldade de direito e a instrução jurídica em gera l.
feitas? O que deveríamos estar aprendendo? Era quase como se Zech- - Terão um poder enorme para fazer coisas terríveis quando con-
man esti vesse empenhado em intensificar a praga de incerteza que a fligia cluírem o curso - disse ele. - Ao começarem a exercer a advocacia, fica-
a todos nós. rão chocados com as incríveis oponurúdades que encontrarão para arrasar
Na sexta-feira, o nível de ansiedade na turma chegara a uma espé- com as vidas de outras pessoas. isso não tem nada de engraçado, embora
cie de fúria. A maioria estava disposta a concordar que Zechma n era a maioria dos professores de direito, por algum motivo, não goste de fa-
sério e extremamente paciente. Era afável em seus interrogatórios. Nun- lar sobre a capacidade destrutiva que todos vocês terão como advogados.
ca dissera a um estudante que estava errado e parecia quase relutante Espero que possamos conversar a respeito aqui e espero também que fa-
em chamar um estudante específico, preferindo interrogar a turma co- lemos sobre algumas das coisas boas que serão capazes de fazer, as quais,
mo um todo. Mas diversos a lunos a legaram que não haviam podido infelizmente, são um pouco mais difíceis de realizar.
tomar uma única anotação inteligível naqueles três dias de aulas. Ka- A condução da a ula era heterodoxa. Mor ris disse que preferia se-
... ren_ Sondergard , a loura a lta com quem eu conversara depois da pri-
meira aula de Perini, disse-me que se sentia tão ansiosa e confusa depois
lecionar a lunos a partir do mapa de lugares, porque assim havia uma
oportunidade igual de falar em au la. Mas se não quiséssemos falar,
da au la de quinta-feira que foi para casa e chorou. Todos pareciam por qualquer moti vo, bastava dizer "passo" quando chamados.
Não vou questioná-los - prometeu Morris. - Não sintam que
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têm a obrigação de apresentar desculpas. Não acredito em ter que coagi- quele novo vocabulário em suas conversas , falando Legal entre si. Foi
los a dizer alguma coisa. \tranho, a princípio, ouvir colegas di zendo nos cor redores "Quaere
A única coisa que ele nos pediu foi que tentássemos não levantar ~e essa posição pode ser apoiada?", o u empregando ~eg~l e~,ou~ros
a mão quando outros alunos estivessem falando . contextos - "Deixe-me acrescenta ~ um caveat" p~ra 10d1car Deixe-
Morris tinha a reputaçã o de teó rico, muitas vezes bombástico e me dar um aviso". As pessoas sentiam-se contrafenas po r parecerem
abstrato na instrução . Processo Civil trata do conjunto de regras que teatrais e empoladas. Soltavam um_ so_luço o~ ~ma ris~da quando ex-
os tribunais adotam para conduzir suas atividades em todos os proces- peri mentavam seu Legal, mas a m a1ona persistia , praucando uns com
sos não-criminais; e Morris, segundo o que nos dissera Peter Geocaris os outros.
durante a semana de matrícula, tendia a dar o curso como uma espécie Foi Nicky Morris quem melhor resum iu o que todos nós tentáva-
de investigação filosófica sobre a natureza das próprias regras. Nos pri- mos fazer ao usar os lega lismos. Na última aula de Processo Civil na-
meiros dias, no entanto, ele foi bastante prá tico e objetivo. Compreen- quela semana, uma mulher r~spondeu da seguinte maneira a uma
deu como nos sentíamos perdidos, a luta que travávamos com a língua. pergunta form ulada por Morns:
Ao longo da maior parte da primeira aula, Morris simplesmente _ O tribunal não precisa submeter matéria de jurisdição sobre
ofereceu-se para responder a perguntas. A maioria relacionava-se com a pessoa.
as causas que havíamos lido para Processo, mas eram admissíveis per- _ Não sei se entendo o que isso sign ifi ca - comentou Morris
guntas sobre qualquer tópico, e não foi surpresa que muitas pessoas _ mas ainda ass im estou contente po r ouvi-la falar dessa maneira.
indagassem sobre Contratos, po is todos nos sentíamos intimidados de- Afinal, não se pode ser um pato sem aprende r a grasnar.
mais por Perini para correr o risco de expor nossa ignorância. E a tur-
ma ficou agradecida.
- Adoro ele - comentou Karen Sondergard, depo is da última
aula da semana, na sexta-feira. - É um homem maravilhoso. 14/ 9175
:, Havia uma concordância geral de que a aula de Morris fora um (Domingo)
>{
alívio. Para muitos integrantes da Seção 2, a primeira semana como
estudantes de direito não fora um período de exultação, como aconte-
cera comigo. Muitos - talvez mesmo a maioria - pareciam achar que Trabalho, trabalho, trabalho.
fora de total opressão . O trabalho, a pressão e a incerteza angustiante Passei todo o fi m de semana ocupado, tentando concluir o me-
haviam sido demais. Durante a semana, eu ouvira queixas de insônia mo rando de Métodos Legais, a fim de poder me dedicar pelo resto da
____ --.,. fadiga, problemas de estômago, acessos de choro, consumo exagerad~ semana às tarefas diárias.
de comida, álcool e cigarro. Eu não me sentia muito distanciado das Fico esperando que as coisas abrandem um po uco. Estou esgotado.
aflições dos outros . Era fácil compreender como minha excitação po- Nunca experimentei tamanha exaustão mental como a que senti ao final
deria se traduzir em algo tão extremado, mas não tão "agradável" . de cada dia desta semana. A incessante concentração em livros e profes-
Escutávamos uns aos outros com simpatia. Era o único consolo. Está- sores, até mesmo em colegas que nunca dim inuíam o ritmo, deixou-me
vamos todos juntos nessa . absolutamente atordoado, ao chegar em casa todas as noites. O fim de
De um modo geral, esses bons sentimentos continuaram a preva- semana não foi muito melhor. Ainda estou excitado demais para dormir
lecer entre nós, mas na primeira semana ocorreram algumas mudan- direito e a coisa está sempre na minha cabeça. Sinto-me como se estives-
ças no relacionamento. Por um lado, não falávamos de outra coisa além se trancado n uma sala em que todas as paredes dizem "Direito".
do direito . As pessoas deixaram de indagar sobre os meus anteceden- Ah, eu gosto .. . como gosto! Ainda assim, é um carrossel de emo-
tes ou se gostava da Nova Inglaterra. As aulas pareciam muito estimu- ções. Muitas vezes experimento a sensação de que estou subindo pelo
lantes e difíceis para nos permitir falar de outra coisa. Estávamos todos ar, ineb riado com o poder de ampliar meus conhecimentos, estabele-
analisando, comparando, procurando a ajuda uns dos outros. Fora da cer relações, abso rver coisas. E de repente estou próximo do pavor.
aula, a faculdade tornou-se um lugar onde só se falava sobre temas Amanhã tornaremos a enfrentar Perini; quando peguei o livro de Con-
jurídicos, quase sempre com fluência . Todas as noites eu comentava tratos, senti um tremor nas entranhas. Passei os últimos 45 minutos
c?m Annett~ minha a dmi~ação por constatar como os colegas pare- andando de um lado para outro do estúdio, ensaia ndo o que diria se
ciam excepcionalmente articulados. E as pessoas começavam a injetar fosse chamado para a causa de amanhã.

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1 Estou correndo tanto que sempre me dou uns poucos .
ra uma efl - · mmutos pa.
r exao genuma sobre o que estou fazendo. A sens -
rnuito irnportante de estabilidade, em meio às incertezas da vida no
prirneiro ano . Os outros membros do seu grupo de estudos são as pes-
soas que você sempre pode procurar quando tem dúvida , os únicos
que _faço uma enorme_escultura - delicada, minúscula e det!r:~d: de estudantes da faculdade que você sabe que assumiram o compromisso
p_o r_em s:m a oportunidade de recuar para contemplá-la. É tudo e de ajudá-lo.
ndao, vista cansada, um desgaste constante e sei que esse é o scu. Corno acontecia com os acessórios de estudo , que eu tinha certeza
balho. ' meu tra.
que seria muito orgulhoso para chegar a usar , também imaginara , an-
tes de começar a fac uldade, que não ingressaria em qualquer grupo
F~~~\~~~~âs t~
Talvez se torne mais fácil em breve Ontem à . .
tarde orientação da Associação Comun.i tá ria da J~n- de estudos. Pensava que era bastante amadurecido para precisar desse
de Harva rd - o grupo de estudantes cas d e 1re1to tipo de ajuda; e além disso, preferia fazer as coisas sozinho . No início
du~a me toda a noite, foi o quanto os alu~ o~sdev:; !:~ªda convers~,
meir~ ano, especialmente no começo. O diretor falo sforçar ~o pn-
da segunda semana, com grupos se formando por toda a seção e alu-
nos mais adiantados, como Mike Wald e Peter Geocaris, aconselhando-
seu disc~rso e também o secretário da associação . E ~ã~r;:ra:is e; rne a aderir a algum, recebi o convite de Aubrey com a maior ansieda-
outra coisa enquanto comíamos. de. Minhas únicas condições eram a de que queria um lugar para Terry
- A primeira
da minha 'd sema na ou pouco mais · foram os dias
. mais . longos
. - já discutíramos a possibilidade de formar um grupo - e q ue não
vi a - comentou um ho mem. estava disposto a arcar com a responsabilidade de um sumá rio de cur-
Uma mulher sentada à mesa murmurou: so, um projeto que sabia que pelo menos dois grupos da seção já ha-
- Amém. viam começado, cada membro assumindo uma matéria para o período .
Amém. Aubrey concordou com as duas propostas e, no almoço, Terry e
eu nos reunimos com ele e as outras pessoas com que já fizera contato:
seis ou sete homens e mulheres, nenhum dos quais eu conhecia muito
Na segunda-feira Aubrey Drake deteve-me no corred bem até aquele momento . A conversa foi especulativa. Na segunda se-
n~~ ~~~P~~f
~: e~e~ãaºni u~:ia~~~;~s~f:. estudos . Con°~e~e_~ ;1~~~~~
mana da fac uldade era natural que todos se mostrassem desconfiados
com compromissos a longo prazo . No entanto , o que quer que o gru-
apresentara-se a mim porque estudara e~ V:!i· qu~se trinta anos, po viesse a fazer, todos os presentes pa reciam ansiosos em incluir uma

~:~izr
tro anos antes de mim
1
ính
um com o out r~r;~~ia~::n~;
.
1
i~:
erst. ormara-se qua-
c~;~~s;:;r;~::fs :::·
u/ ~~ escuros, boa aparenc1a, com uma espécie de charme refinad~
reunião regular antes da aula de Perini, a fim de discutir as causas do
dia. Perini ainda mantin ha a rotina de interrogatórios cerrados e to-
dos nos sentíamos profundamente intimidados.
de 1963.ha geração de estuda ntes perdera no caos político da década Quando nos reunimos no prédio Pound , no dia seguinte, para a
primeira discussão antes da aula de Perini, o grupo havia crescido ra-
- Ainda não há nada fo rmalizado - disse- e A b pidamente . Parecia que cada membro convidara um ou dois amigos
nas algumas pessoas vão se reunir no almoço para :nve~s;;~-res ~i~~- e havia quinze ou dezesseis pessoas sentadas em torno da mesa oval.
da vi~! ;~upo~ d~ estudo conslituem outra das características b~sica~ Aubrey achou que tanta gente era inconveniente e eu prefe1ia partici-
mente emr/nme1ro an_o. Um pequeno número de estudantes, geral- par de um grupo que não se preocupasse apenas com Contratos e as
dificuldades ~~~~~t s~i:g~d enco ntdra-se regula rmente para discutir as defesas contra Perini .
Ao final da semana, um grupo menor se sepa rara dos outros. Na
. I as no ecorrer dos trabalhos Não há um
::~u~mba uniform: de funci onamento desses grupos. Alg.uns limitam- tarde de quinta-feira, nós seis nos reunimos no salão de H arkness para
e acer qucstoes ao acaso· outros a proveila . discutir um problema legal que Mann indicara em Direito Penal. Além
~~tri~:~~~~~Irf
an d
; ; ~c~cios f~r-~ ais; alg~ns passa;~:~~~~1:::~fV~~:
s materias, que sao trocados com outros grupos
de Aubrey , T erry e eu, havia mais três homens. Kyle Schick formara-
se em Harvard na primavera anterior. Era alto e magro, com uma enor-
gr~es ~s exa~es. A maioria dos pro fessores estimula a formação de me cabeleira loura. Eu não o conhecia muito bem , pois ele viera por
pos e estu os . Proporcionam a cada estudante uma oportunidade intermédio de Aubrey . Parecia-me um pouco egocêntrico e exagerada-
~ara c? n~ersas pro fund~s sobre problemas legais, algo que raramente mente insinuante, mas era também jovial , com mui ta agilidade mental
passive em a ula; ~ alem do valo r ed ucacional, os grupos de estudos e bem versado em Proces o Civil , um conhecimento adquirido no ve-
possuem urna especie de função terapêutica, oferecendo um elemento
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rões que passara trabalhando no escritório de advocacia do pai, em ncretos para estarem a li . Para Stephen, o diploma de direito era um
Iowa. Sandy Stern concluíra recentemente um curso de engenharia no coeio de obter um cargo seguro de professor. Embora possuísse um do~-
MIT. Usava um enorme bigode de pontas caídas e seu estilo pessoal m ado O mercado de trabalho acadêmico em seu campo estava tao
era o de uma broca de lenta rotação. Sandy seguia reto em frente, sem ~~~urado que só aquele tipo de especialização garantiria um cargo de
constrangimento ou hesitação. Em aula, ele já se tornara bastante ex- rofessor que levasse a uma cáted: ª: .
trovertido. Nenhuma questão era pequena demais para que Sandy não p A história de Aubrey era a mais interessante, Já q ue cursara uma
lhe concedesse sua atenção e comentário, sempre na mesma voz seca, escola de administração e tivera uma instrução profissional. Concluíra
quase sem inflexão. Eu não tinha idéia de como ele chegara ao grupo,
0 curso de administração em Harvard em 1968 e passara algum tempo
mas a partir do momento em que pudemos contar com a ajuda de sua trabalhando numa empresa de importação; depois abrira uma galeria
precisa capacidade analítica no estudo dos problemas, Sandy tornou- de arte em Los Angeles. especializada em obras do leste asiático. A
se um membro aceito e valioso. galeria faliu quatro anos depois, mas não a ntes de consumir todos os
Finalmente, naq uela tarde mesmo, eu convidara Stephen Litowitz seus recu rsos. Por isso ele estava agora na faculdade de direito. Au-
para o grupo. Baixo e corpulento, Stephen sentava atrás de mim em Con- brey contou a história em tom jovial. Comentou que as coisas estavam
tratos e eu queria conhecê-lo melhor. Parecíamos ter muita coisa em co- mais brandas agora do que em meados da década de 1960, quando mui-
mum. Ele fora criado no mesmo bairro de Chicago em que Annette e eu tos de seus amigos estudan tes de direito freqüentavam as aulas de pa-
crescêramos. Era um Ph.D. em sociologia. Como eu, dera aulas numa letó e gravata. De qualquer for ma, achava que podia fazer qualquer
universidade durante dois anos, antes de ingressar na faculdade de direito. coisa que a faculdade exigisse. Estava cansado dos a ltos e baixos de
O problema apresentado por Mann envolvia uma complexa hipo, um negócio próprio. Queria trabalhar para os outros, com a garantia
. ; em qu: um acusado de estupro alegava embriaguez como desculpa pa- de uma vida boa .
;;,,..
.. ra o cnme. Devíamos decidir se tal defesa era viável, sob o Código Pe-
nal Modelo. Os dispositivos do código interligavam-se de tal modo e
Quando fui para casa, naquela noite, sentia-me bastante satisfei-
to. Como não vivia nos d orm itórios, sentira-me, nas primeiras duas
" havia remissões tão complexas que o trabalho exigiu horas de leitura semanas, um pouco isolado dos meus colegas. Agora, com o grupo,
penosa e a tenta, passando de um capítulo para outro, a fim de conci- sabia que teria um contato regular com algumas das pessoas ao meu
liar aparentes contradições. Mas foi uma sessão maravilhosa . Se eu já redor. O grupo reun ia-se quase todos os dias. Três manhãs por sema-
estava excitado com o processo de analisar um problema legal sozi- na nos encontrávamos para estudar as causas de Contratos, antes de
n~o, fiquei então positivamente inebriado com a velocidade e profun- enfrentarmos Perini; nas tardes de quinta ou sexta-feira tínhamos uma
?•da?e de per~epção que se podia alcançar num grupo de pessoas sessão mais longa, sobre Processo Civil , Responsabilidade Civil ou
inteligentes e dispostas trabalhando juntas. Foi uma espécie de entre- Penal.
vero intelectual dos mais animãdos. À exceção de Aubrey, que era muito O mais importante: tornei-me ínti mo, quase que no mesmo ins-
polido para gritar ou interromper alguém, passamos o tempo a nos le- tante, de Aubrey, Terry e Stephen. Almoçava com um deles quase to-
vantar, investindo uns contra os outros, argumentando ... cada um ten- dos os dias. Conversávamos pelo telefo ne, jogávamos squash, muitas
tando explicar antes que out ro o interrompesse. vezes nos encontrávamos nos fins de semana. Éramos francos uns com
Estávamos todos satisfeitos quando a sessão terminou. Concor- os outros, pessoais. Os três se tornaram meus grandes amigos e, sob
damos que formávamos um grupo e acertamos uma escala de novas muitos aspectos, foram o meu ano.
reuniões. Sandy e Kyle, que residia m nos dormitórios, subiram para
seus quartos, enq uanto Stephen, Terry, Aubrey e eu continuamos sen-
tados por mais alguns minutos. Nós quatro, todos mais velhos, pare- Finalmente, durante aquela segunda semana, comecei a me apresentar
cíamos nos sentir muito à vontade na compan hia uns dos o utros. como voluntário nas aulas.
Conversamos sobre o que nos levara à faculdade de direito cada um Meus motivos para falar eram de natu reza complexa. Um deles
no meio de o utra carrei ra. Terry comentou: ' era uma promessa que fizera a mim mesmo. Enquanto decidia se devia
- Às vezes digo a mim mesmo: Ei, cara, você não quer ser um ou não me candidatar à faculdade de direito, resolvera assistir a algu-
adu lto. Ainda não está preparado. Quer permanecer livre. ~ mas aulas. E fiquei contrafeito com a reticência dos alunos. Houve uma
Admiti que tam bém acalentara os mesmos pensamentos. aula que me deixo u bastante perturbado. Era um curso de Provas, no
Aubrey e Stephen, no entanto, discordaram. T inham motivos mais último ano, o professor fa lava sobre a relação advogado-cliente. As
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perguntas eram de um tipo que até mesmo eu, um leigo, poderia tentar em tentar de novo . Por um lado, parecia um absurdo , se eu tinha pa-
responder. ~ontudo, não mai~ do que dois ou três estudantes respon- vor de Perini e me sentia aflito com a perspectiva de ser chamado, expor-
dera':1. Ao final da aula, considerei aquela turma, estóica, paralisada, me voluntariamente ao mesmo tipo de interrogatório. E mais impor-
um. s1mbolo d.o estado - entre a alienação e a intimidação - que pa- tante ainda, começara a compreender como era complicada a política
recia Ler dominado tantos dos meus amigos quando eram estudantes de falar durante uma aula.
de direito. Não podia entender e jurara que não deixaria que isso me Na segunda semana desenvolvera-se um clima de desaprovação na
acontecesse. turma a qualquer sinal de agressividade ou espírito competitivo demons-
Em g.er.al, porém , levantar a mão não era o resultado de qualquer trado por algum colega. Isso se deve em parte a uma característica de
plano def1mdo. Sou um falador e tanto, ainda mais quando estou ten- geração. Querer se sair melhor do que os outros não está de acordo
so. Fora de aula, era uma espécie de moto-contínuo oral alimentado com a ética igualitária que moldou a maioria das pessoas que atingiu
por minha própria fala, abordando qualquer um que quis.esse escutar a maioridade depois dos anos sessenta . Mas em parte também, con-
como um bêbado num ônibus. Em aula, tornava-se cada vez mais difí: clui, relacionava-se com um esforço amplo dos colegas de reprimir suas
cil manter ~ boca fechada. Sentia-me tão absorvido em cada aula que próprias ambições. Todos havíamos sido estudantes vitoriosos no pas-
só me continha pelo medo de não me sair bem. sado, mas o desejo de repetir o sucesso aqui não apenas era uma espe-
Acabei cedendo na terça-feira da segunda semana. Era a aula de rança irrealista, no meio de um grupo tão talentoso, mas até mesmo
Perini. Estávamos estudando Hadley v. Baxendale, uma causa famo- perigosa, quando se considerava o quanto podia ser frustrada. Ao fi -
s~, q_ue fixava um limite a todos os tipos de indenização que o autor nal do período, os professores iriam nos examinar e dar notas. Tendo
v1tonoso de uma ação contratual podia exigir. Perini perguntou-nos em vista a nossa atual incompetência com o direito, era uma perspecti-
qual a regra que Hadley não tinha .a intenção de impor. Acrescentou va aterradora. Durante as primeiras semanas, a maioria adquirira a
que era uma resposta de uma só palavra. As pessoas levantaram a mão impressão de aparente igualdade quanto à capacidade de todos, algo
oferecendo respostas que variavam de "trabalh o" a "sentido". Perini que muitos estavam ansiosos em manter. Se todos se encontravam no
circulou pela sala, rejeitando todas as respostas com "Não" , "Nun- mesmo nível, você não podia se destacar , como sempre acontecera an-
ca", " Bobagem", "Acha que isso faz sentido? " . tes, mas também não ficaria para trás, o que seria angustiante, embo-
Quando avistou minha mão levantada, ele virou-se e apontou. ra no momento parecesse a possibilidade mais concreta. A paridade,
- Punição - respondi . portanto, tornou-se uma espécie de atraente barganha psíquica, a que
Fiquei chocado ao ouvir minha voz. O coração batia forte dentro todos aderiam, renunciando à competitividade.
do peito. Perini aproximou-se, inclinando a cabeça. Lembro de urna conversa que tive com uma colega, Helen Kirch-
Como assim? ner, ao final da segunda semana. Ela me disse que já estava detestan-
- Pela maneira como a regra funciona , não há a intenção de pu- do a faculdade de direito e explicou, quando perguntei o motivo:
nir alguém que violou um contrato . - Porque as pessoas são agressivas demais.
- Que diferença isso faz? Eu sabia que ela passara por Exeter e Princeton como uma das
. - ~ignifica que as indenizações não são concedidas para impedir primeiras de sua turma e indaguei se não era também agressiva .
a v1olaçao. - Sou , sim , mas tento não demonstrar.
E qual é então a intenção? Tentar não demonstrar tornou -se o estilo de comportamento pre-
- Apenas compensar as perdas. dominante na turma. Algumas pessoas pareceram se retrair quase que
- Certo! - exclamou Perini . - As indenizações contratuais vi- desde as primeiras aulas. Fiquei surpreso, em diversas ocas iões, du-
sam apenas compensar o autor por suas perdas. Deixem toda essa his- rante aquelas primeiras semanas, ao descobrir que muitos colegas eram
tória de punição para Responsabilidade Civil e Direito Penal. .. não tem sociáveis e extrovertidos fora da sala de aula. Nunca poderia imaginá-
nada a ver com Contratos! lo, pela aparência de impassibilidade remota com que assistiam às aulas.
.. E tudo acabou aí. Perini já voltava para o pódio . Um incidente O outro meio de reprimir os sentimentos competitivos era simples-
tnv1al. Contudo, eu me enchi de orgulho . Pessoas me deram os para- mente negá-los. Muitas pessoas declaravam que não se importavam co-
béns durante mo se sairiam , quais seriam suas notas, corno os outros as conside-
. o. dia .inteiro. Kyle, com um pouco de exagero ' disse-me
que eu vira o 1ntenor da cabeça de Perini. rariam. Foi o que eu mesmo disse com freqüência . Corno Helen, tai s
Apesar do sucesso da primeira iniciativa, eu me sentia hesitante pessoas tendiam a culpar os outros pelo clima competitivo.

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Para a grande maioria, porém, essa competitividade era parte de caradas com uma hostilidade velada. Muitos adm iravam e inveja-
nossa natureza. Era o que nos levara até ali, em primeiro lugar. Havia en m seu desembaraço, mas na maior parte do tempo eram tratadas com
alguma coisa, alguma fé na disti nção, que nos fizera escolher Harvard, vam desdém d.1veru.d o.
em vez de outra faculd~de menos reverenciada. E todos nos prepará- u _ Não consigo mais suportar Clarissa - disse-me alguém, du-
vamos agora, com o maior empenho, para uma profissão extremamente ntc a segunda semana. - Não posso imaginar como serei capaz de
competitiva, em que há vencedores e perdedores cada vez que os jura- ra breviver o ano inteiro a escutá-la. Da maneira como ela fala, pode-
dos voltam ao tribunal ou o ju iz fala. E também não havia nada de so
se até pensar que est á numa opera.
'
irracional em sermos competitivos. A competitividade proporcionara Stephen repetiu-me o comentário de alguém, segundo o qual "Cla-
recon hecimento e satisfação para muitos no passado; era um hábito rissa até que era simpática fora do campo, mas tornava-se um terror
antigo e gratificante. quando en trava em ação".
Mas tais sentimentos estavam conosco em todos 0s momentos. Em Havia uma impressão generalizada de que as pessoas que falavam
inúmeras conversas ostensivamente informais com colegas - nos cor- todos os dias estavam se exibindo. Mostravam-se egocêntricas. Osten-
r_edo res, no ginásio, no almoço - eu tinha a impressão de que era ava- tavam o supremo mau gosto de parecerem co mpetitivas.
liado, q~e as pessoas procuravam por alguma coisa, uma vantagem Com esse clima, a idéia de continuar a me oferecer para falar , de-
sobre mim; e descobria-me a fazer a mesma coisa com os outros de pois da confrontação inicial com Perini, deixo u-m~ num co~fl!to in-
vez em quando . E especialmente nas aulas, quando as perguntas dos tenso. Havia vantagens. Alunos do segundo e terceiro anos Ja t1~ham
p~ofe~sores lançavam os 140 alunos uns contra os outros, nossas agres- me dito que havia menos probabilidade de ser chamado para um mter-
soes ficavam prestes a transbordar, quer fossem ou não reconhecidas. rogatório completo quando se levantava a mão para oferecer uma res-
A outra única opção para lidar com esses sentimentos era ceder posta específica. E eu me sentia ~ais envolvi?º ~as au~as se '.alava de
-:- proc~rar abertamente s~ sair bem e conquistar reconhecimento e pres- vez em quando. Mas ainda parecia uma cobiça mfanul atrair a aten-
t1~10. So os pr~f~s~ores tinham a autoridade para conceder esses prê- ção dos professores e colegas; e tendo em vista a sutil host(lidade_a to-
mios e desde o in1c10_ do a no havia um bando de alunos , quase sem pre dos que falavam com freqüência, os riscos se tornaram multo maiores.
os mesmos! qu_e com am para a frente da sala a fim de consultar o pro- se você falava demais ou se mostrava sem inspiração ou errado no que
~e~sor_ ao termino de cada au la. Mas a maneira mais óbvia de alcançar dizia corria o risco de ser considerado um chato. Eu me sentia assim
ex1t~ Junto ao professor e aos colegas era ter capacidade para respon- volta' e meia em relação a alguns colegas que falava m todos os dias.
der as perguntas desco ncertantes sempre formuladas em todas as au- E imagino que algumas pessoas também se sentiam assim em rela-
las. No início da segunda semana dava para se notar que havia um grupo ção a mim, porque apesa r de todas as restrições que fazia, comecei a
que falava em todas as au las, pessoas que levantavam a mão, enfren- levantar a mão com bastante freqüência. Ingressei numa espécie de se-
tavam o professor e demonstravam ser menos assustadas e talvez mais gunda falange, atrás de Clarissa, Wally, Sandy e uns poucos outros. Era
competentes?º. que as ~utras. Clarissa Morgenstern ingressara na fa - ouvido com freqüência, mas não todos os dias. Contudo, jamais me re-
culdade de d1re1to depois da dissolvição de um breve casamento. Ti- signei com minha ambivalência. Se falava ou permanecia sentado em si-
nha apenas 23 ou 24 ~nos, mas era uma presença que impressionava lêncio, se estava certo ou errado, sentia-me ansioso sempre que uma idéia
- alta, atraem_e, vestida_t?das as manhãs no melhor est ilo de Vogue. me entrava na cabeça, até que eu ou mais alguém a enunciasse.
Falava num estilo elocutono, empolado, sempre fazia uma declaração Parecia uma preocupação trivial, mas acabei tentando conversar
longa quando chamada, não se limitando a uma resposta de uma só a respeito com Aubrey, já que ele se oferecia para responder tanto
fra~e. ~ally Karlin, talvez inspirado por seu sucesso com Perini no pri- quanto eu.
meiro dia, _falava constantemente; o mesmo acontecia com Sandy Stern , - Duas aulas em cada cinco - Aubrey me disse no mesmo ins-
o engenheiro do MIT que integrava meu grupo de estudo. Outros fa- tante.
lantes assíd uos surgiram nas duas semanas seguintes-:- E havia também Ele criara uma fórmula, um cálcu lo emocional, para determinar
uns poucos alunos procedentes de grandes universidades estaduais, tão a freqüência em que era ap ropriado falar.
acost_umados a !e dest~carem no meio da massa, que de vez em quan- Tive dificuldade para acred itar que ele falava mesmo sério, mas
do, amda que nao convidados pelos professores, gritavam suas respostas Aubrey con fi rmou. Caçoei um pouco, mas nas semanas seguintes me
de qualquer maneira. descobri a fazer a contagr.m também.
De um modo gera l, essas pessoas que falavam regu larmente eram
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22/9/75 Ninguém podia sequer com~çar a or~en~r as questões. Os alunos
(Quarta-feira) a sair desapontados, ate mesmo 111chgnados, e de ta vez Zech-
torna ram . .
an resolveu ficar mais atento.
m Na manhã seguinte ele entrou na sala e escreveu no quadro-negro:
Os maus professores, Mann e Zechman, parecem estar se tornando ain- ''Agressão: pensamento ou intenção de causar contato danoso ou ofe~-
da piores. . " Virando-se para a turma ' Zechman e forçou-se por parecer a fa-
sivo.
Tolerei Mann ao longo da última semana. Até permaneci um pouco 1 mas era evidente que estava um pouco amargurado.
interessado no curso. Mas hoje cheguei à conclusão de que minha rea- ve ' _ Estou dando esta definição porque o nível de ansiedade na tur-
ção moderada ao Direito Penal, até agora, é uma decorrência do que ma parece ter alcanç_ado pro_p~r~ões exageradas . E pero que compreen-
Mann subtrai de um ass unto que na verdade me fascina. dam quão pouco diz a def1111çao. .
Mann ainda fica andando pela freme da sala, fa lando para si mes- Não importava quão pouco dissesse, todos que eu olhei trai a_r~m
mo. Pelo menos a metade de seus comentários é tão desconexa que não de anotar a frase. Mas se Zechman nos proporcionara algum ahv10,
consigo encontrar nen hum sentido; e quando compreendo o que ele não durou muito.
diz, fico desapontado com seu estilo de pensamento, restrito e socioló- _ Agora vamos retomar nossa discussão sobre agressão, voltan-
gico. Há momentos em que se pode perceber como sua mente é ampla do ao homem de ontem, que deixamos atirando para o c~u. Vam~s
e sutil, mas geralmente ele tenta encaixar questões enormes em catego- presumir que ele tencionava assustar a vítima e_ que suas açoes consti-
rias minúsculas. Passamos t0do esse tempo discut indo o uso de san- tuíram de fato uma tentat iva de agressão. Ir:iag~ne~ agora que um pa-
ções penais em termos de como devem ser tratados viciados, loucos, to estava passando lá por cima. O pa_to fo i aung1do _~ela bala qu~ ~
bêbados. delinqüentes juvenis... pessoas obviamente incapazes. Res- homem disparou inadvert idamente, caiu e acenou a v1llm_a. A~ressao.
posta? Não devem ser con finadas sem uma audiência justa. Sensacio- E durante os dois dias seguintes fomos obrigados a d1scuur o mal-
nal. Mas o que fazemos com os que não são loucos, não são bêbados, dito pato.
não são delinqüentes, que sabem o que estão faze ndo e ameaçam a to- Sem respostas, é claro. Sem respostas!
dos nó ? Como podemos nos proteger deles sem perder o senso de prin- Surpreendentemente, há umas poucas ~essoas que ~arecem gos-
cípios e decência? São indagações que Mann prefere ignorar. Talvez tar do que Zechman está fazendo. Conversei na sexta-feira com Leo-
cheguemos a isso em um momento posterior do curso, mas min ha im- nard Hacker, um dos garotos que estudou na Inglater:ª · Len _fez um
pressão é de que o momento para ser filosófico é agora. curso de filosofia em Cambridge e acha que Zechman e maravilhoso.
Quanto a Zechman, ain da estou perdido com ele, junto com 99% Muito mais pessoas parecem ter desistido. Há vários alu nos agora
da turma. Os alunos permanecem confusos e irritados. A aula foi can- ignorando as causas e lendo em vez disso o Handboo~_on the ~aw_of
celada hoje e nem precisei entrar na sala para saber. Ouvi os gritos de Torts, do Professor Will iam Prosser, outro famoso auxiliar do primeiro
satisfação a centenas de metros de distância. ano, geralmente conhecido apenas como "P~o ser": Ten_ho um exemplar
Na semana passada enveredamos direto rumo ao pior na matéria. que ainda não abri, mas talvez venha a faze- lo ate o fmal da semana.
Ainda sem entender direito o que é "intenção", iniciamos o estudo
- - - ---.,- dos delitos intencionais. Zechman pegou uma causa simples e
transformou-a num labirinto. Um homem apontou um ri fle para as
costas de outro. A arma não fora disparada e a vítima não sabia que 23/ 9/75
corria perigo. O tribunal decidiu que não houve agressão, o que fazia (Quinta-feira)
sentido, pela ausência de lesões corporais.
Mas, depois, Zechman começou com suas perguntas.
E se a vítima estivesse de fren te para o homem que empunhava Henley gostou muito de meu memorando para Mét odos Legais. É bom
o rifle? E se o rifle estivesse carregado? E se não estivesse? E se, com ser elogiado, mas depois de três anos como instrutor de redação eu te-
a vítima de costas, fosse ligada uma gravação de um desmoronamen- ria provavelmente um ataque se ele me dissesse que não era capaz de
to? E se o homem apontasse o rifle para o céu, mas o disparasse? E formular uma frase direito.
( . se a arma tivesse disparado acidentalmente? E se o homem quisesse Vamos agora ao capít ulo seguinte da história ~e .J_ac~ Katz, o em-
puxar o gat ilho? pregado despedido da fábrica de capas. Hcnlcy distri buiu outro me-

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morando de nosso associado fictício. Katz apresentou uma carta anti- ' onselheiro do BSA. Peter foi um guia generoso, orientando-me e a
ga, que pode passar por um contrato de trabalho com Grueman . É tão c eus companheiros do grupo de Métodos sobre os costumes da facul-
semelhante a um contrato que em breve poderemos entrar co m uma rade de direito. Fiquei intrigado desde o início com a seriedade cor:n
ação em nome de Katz. que Peter encarava as instituições da H LS. Outros estudantes mais
adiantados mostravam-se céticos sobre a facu ldade e o estudo do di-
reito. Peter, no entanto , levava muito a sério a Faculdade de Direito
de Harvard.
25/ 9175 Um dia, em meados de setembro, conversei com ele sobre o ritmo
(Sábado) vertiginoso que os alunos do primeiro ano pareciam exigir de si mes-
mos, a quantidade de trabalho qu_e fazíamos e o empenho incessante
de todos em fazer o melhor poss1vel.
A vida estudantil ainda é uma rotina árdua, aulas e li vros durante o - É isso o que mais amo na faculdade de direito - ele me disse.
dia inteiro, o estudo de sumários de causas todas as noites. E nunca _ As pessoas querem vir para cá porque acham que é a melhor e exi-
consigo dormir o suficiente. Durante a semana , só me encontro com gem o melhor de si mesmas. Há um padrão genuíno de excelência aqui,
Annette ao jantar. Nos fins de semana, até agora, tenho podido tirar um padrão de realização pessoal.
uma folga nas noites de sexta e sábado, para ir ao cinema, concertos, A expressão "padrão de excelência" me lembrou um comercial
restaurantes; mas mesmo assim tenho certeza de que não sou a melhor de Cadillac e, a princípio, tendi a descartar o comentário de Peter. Mas
das companhias. Neste momento , o direito é o meu maior entusiasmo; pensei muito a respeito e acabei compreendendo. Já observara em meus
mas depois de me perder para o mundo jurídico durante toda a sema- colegas - e às vezes em mim mesmo - uma ânsia de realização que
na, essa é a última coisa de que Annette quer ouvir falar. Mesmo quando ia além de uma mera orientação para o sucesso ou competição. Como
ela se mostra disposta a escutar, a linguagem estranha e a complexida- Peter sugeria, havia alguma coisa na Faculdade de Direito de Harvard
de de tudo fazem com que me seja difícil transmitir o que é tão emo- que inspirava os alunos a empenharem toda a sua capacidade, a faze-
cionante. Para Annette, sem dúvida, tudo parece uma confusão e uma rem as coisas de uma maneira que os deixasse orgulhosos dos resulta-
chatice. Sempre tomo a resolução de falar sobre outros assuntos, mas dos e de si mesmos . Considerei que se tratava de a lgo positivo e com
não sou capaz de cumpri-la. 0 passar do tempo passei a encarar o próprio Peter como a personifi-
cação de tudo isso. No curso de Métodos ele sempre fal ava do direito
Naquelas primeiras semanas percebi pouco a pouco que os alunos do e do trabalho do advogado como algo sério e elevado. Referia-se reg u-
segundo e terceiro anos viviam num mundo muito diferente do nosso. larmente a "realização" e "excelência", quase sempre acompanhadas
Os alunos mais adiantados não têm cursos obrigatórios e sua carga de por uma menção à Harvard law Review.
trabalho não é tão pesada. Muitos participam de atividades extracurri- Para Peter, a revista parecia o símbolo das coisas que mais admi-
cu lares relacionadas com o direito, das quais os alunos do primeiro rava na HLS. Havia ocasiões em que ele quase parecia obcecado pelo
ano geralmente são excluídos. Uma parcela considerável da energia dos assunto. Em sua primeira reunião com o grupo de Métodos, na sema-
alunos do segundo e terceiro anos não é investida na faculdade. Eles na da matrícula, Peter explicara que não era um membro da law Re-
se ocupam com a procura de trabalho para o verão próximo ou para view. Eu ficara impressionado com o seu tom de desculpa e também
depois da formatura, um processo com que a maioria dos estudantes pelo fato de ser praticamente a primeira coisa que nos dissera a seu
do primeiro ano não se envolve. respeito. Os comentários de Peter a respeito da revista sempre pare-
Contudo, o que tornava os alunos do segundo e terceiro anos tão ciam meio tristes, meio reverentes.
diferentes era o simples fato de terem sobrevivido ao primeiro ano. Para mim, como aluno do primeiro ano, a Harvard l aw Review
Eram _iniciados, quase advogados, pessoas não mais atormentadas pe- era um motivo de profundo mistério. Sabia um pouco a respeito , mas
las coisas que nos confundiam. Todos os meus colegas pareciam ter não podia entender por que as palavras "a Revista" eram tão constan-
um aluno do segundo ou terceiro ano a quem recorriam em busca de tes ao nosso redor, embora ditas de uma forma um tanto contida. Os
conselho e eu não era exceção. professores mencionavam de vez em quando "a Revista" em aula e
Muitas vezes solicitava os conhecimentos de Mike Wald . E com parecia haver todas as semanas um artigo a respeito no jornalzinho
mais freqüência ainda, levava minhas dúvidas a Peter Geocaris, nosso da faculdade. Antes de eu entrar na facu ldade, os advogados amigos

62 63
caçoaram de mim , dizendo que tinham certeza de que eu faria "a Re-
, - 0 escrita , .mas. aqui o critério principal é o do aproveitamento dos
uça
vista". Agora, até mesmo outros alunos do primeiro ano menciona-
alunos no pnme1ro ano. .
vam volta e meia " a Revista". Ao final de setembro, " a Revista"
_ E depois que se entra - perguntei -, o que se faz ale m de
parecia ser o centro do mundo privilegiado dos estudantes s uperiores, . - ?
conferir as c1taçoes .
em que os primeiranistas não estavam incluídos.
1.
- Escrevem-se notas.
,, , Finalmente, mais ou menos nessa ocasião, Terry e eu esbarramos
Terry indagou o que era uma nota. .
com Peter em Harkness. Perguntei-lhe se tinha tempo para responder
_ Uma espécie de versão júnior de um artigo de professor -:- _d1~se
a uma pergunta:
Peter. - É basicamente o seguinte: você é como um pro~essor Junior
- O que é a Harvard Law Review?
quando está na revista. Ajuda os professores com seus artigos. Faz seu
Peter fitou -me com uma expressão estranha.
- É uma revista, um periódico jurídico. próprio trabalho . <;onfere o trab_alho do_s o u~r~~ - . .
_ E exige muito tempo? - indaguei , pois Ja ouvira alguma coi-
Até aí eu sabia . As revistas de direito, produzidas por quase todas
as faculdades de di reito do país, são as publicações eruditas da profis- sa sobre isso .
Peter soltou uma risada.
são. Nas revistas aparecem artigos que sugerem alguma resposta para
- Que tal 45 horas por semana?
um problema legal particularmente complexo ou fazem uma análise
- Mais as aulas?
de um campo do' direito bastante complicado, tentando fixar uma no-
- Se eles arrumam tempo para ir.
va ordem. Os autores são geralmente professores, quase sempre do cor- Comentei que parecia pior do que ser um I L e Peter concord o u ...
po docente da faculdade que edita a revista. E não se pense que os muito pior. Os membros da rev ista consideravam um do mingo de fol-
artigos são encarados como uma erudição ociosa . Eu já lera diversos ga como um moti vo pa ra comemorar.
pareceres em que tais artigos eram citados como autoridades. Como - Então qual é a vantage m? - pergunto u Terry. - O que eles
os juízes e advogados tendem a se apoia r muito neles, esses artigos
conseguem com isso?
pressupõem um alto padrão de acurácia. Uma das tarefas principais
Peter deu de ombros.
ao se editar uma revisra de direito é providenciar para que cada ar- - Que ta l os contatos co m os professo res? Surgem muitas opor-
tigo seja meticulosamente conferido , à procura de erros, até as ci-
. .,. tações de causas e notas de pé de página. É um trabalho cansativo
tunidades quando se está na revista.
- Por exemplo? _
e a relutància dos autores do corpo docente em realizá-lo pode ex- - Um lugar de professor. Em todas as principais facul?ades na?
plicar, em parte, o fato de que as equipes das revistas de direito se-
se pode obter um cargo de professor se não se esteve na revista de di-
jam constituídas exclusivamente por estudantes - as únicas publi- reito durante o curso. E muitos se tornam assessores do Supremo ..
cações profissionais editadas por estudantes, como Peter ressaltou du- Uma assessoria judicial é um cargo que se ocupa por um ou d? 1s
ra nte a nossa conversa.
anos, como assistente de pesquisa de um juiz. O assistente pesquisa
Mesmo sabendo disso, eu permanecia um tanto confuso sobre mui- a lei sobre vários ângulos e ajuda o jui z a escrever seus pareceres. É
tos dos detalhes mais simples da operação da revista de direito. uma posição de prestígio, invejável, para os que acabaram de se fo~-
- -- - -....- - Como se faz para entrar? - perguntei a Peter, depois que ele, mar. Eu compreendia que trabalhar pa ra um mini_stro do Supr7mo Tn-
Terry e eu sentamos no salão inferior de Harkness. - É apenas pa ra bunal dos Estados Unidos constituía uma categoria toda especia l. Para
alunos do segundo e terceiro anos, não é mesmo? mim, no entanto, as recompensas de trabalhar na revista ainda pa re-
- É, sim , mas o acesso se obtém pelas notas no primeiro ano. ciam escassas, em comparação com as obrigações, o trabalho extenuan-
Peter explicou que os cinco ou seis melhores alunos de cada seção te, as muitas horas de serviço .
do primeiro ano seriam eleitos no próximo verão_, Depois, no outono - Ainda não entendo por que as pessoas co nsideram co mo uma
do segundo ano, haveria uma competição escrita para os outros que coisa sagrada. .
quisessem ingressar na revista .
- É uma honra - respondeu Peter. - A grande honra aqu i. A
- Está acontecendo agora para os alunos do segundo ano e não nata da nata. A Harvard Law Review é a ma is antiga publicação de
é brincadeira - informou ele. - Há cerca de noventa candidatos e faculdade de direito do país. É respeitada. É como esta r no Supr~mo
t ' apenas uns dez ou doze conseguirão. Em a lgumas faculdades, como Tribunal das revistas de direito . Se você integrou a equi pe da rev ista ,
Yale, a equipe da revista de direito é toda escolhida através de compe- é uma honra que permanece pelo resto da vida.
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- E você também queria estar lá? - perguntou Terry. ·cano e dos métodos e estratégias típicos do pensamento jurídico.
Peter virou a cabeça e balançou-a enfático algumas vezes. ame r1isso me pare~ia um process_o bastante m1.stenoso
Tudo . q_u~n d o 1·I a res-
- Claro que sim! Queria no primeiro ano e não obtive o apro- ·to mas dia a dia o desenvo lvimento do programa bas1co da facul-
veitamento exigido. Tentei o concurso por escrito e também não con- ~:~e 'e do método de causa se tornam cada vez mais familiares.
segui. Há até alguns alunos do terceiro ano que são eleitos com base Em Contratos, por exemplo, estamos agora estudando lnterpre-
nas notas que receberam no segundo. Tirei boas notas no segundo ano,
t ção os meios pelos quais um juiz decide o que significam as pala-
o que é indispensável para ingressar no comitê, mas ainda assim não ~as ~um contrato. A quem ele escuta? A, que disse as palavras? Ou
foi suficiente . Mas eu queria ... e queria muito . Vocês também vão que- ~ que as ouviu? Tenta calcu lar o que poderia pensar uma pessoa ra-
rer. Passa pela cabeça de todo mundo de vez em quando. ci~nal, no lugar de qualquer um dos dois? Ou se limita a considerar
A voz de Peter tinha outra vez aquele tom triste e sua expressão era
as palavras por seu significado ev idente? . .
ansiosa. Observando-o, compreendi que havia alguma coisa na Facul- o padrão de cada aula, du rante toda a semana, foi mais ou me-
dade de Direito de Harvard que eu ainda não compreendia. Talvez algo nos O mesmo. Primei ro, Peri ni chamava um aluno para enunciar os
relacionado com todo aqude empenho para ter êxito. Talvez uma parte fatos da causa; depois, pedia à pessoa para identificar a questão cen-
daquele inimigo que meu amigo de Stanford dissera que eu encontraria tral na decisão. Numa causa , o queixoso estava processando pelo alu-
aqui . Senti-me aturdido, distante, um pouco em perigo. Sacudi a cabeça. guel do terreno; assim, a questão básica era se a palavra "casa" no
- Não consigo entender. contrato de venda significava a casa apenas ou tam bém o terreno em
Olhei para Terry e ele disse que tam bém não entendia. E Peter que assentava. Com isso acertado, Perini pedia que o aluno analisasse
nos disse:
0 resultado do processo, indagando de qual ponto de vista o juiz pare-
- Esperem para saber. cia ter olhado o problema e que espécie de padrão interpretativo isso
sugeria. Perini pedia em seguida à pessoa que estava interrogando pa-
ra comparar esse padrão com o que já víramos em outras causas . Pe-
dia ao aluno para conciliar as decisões, explicar como pareciam
1/ /0/ 75 estabelecer princípios coerentes de interpretação e explicar as diferen-
(Quarta-feira) ças através das circunstâncias di versas e os fatos de cada causa. Por
exemplo, constatamos muitos padrões inter pretativos diferentes em-
pregados em causas em que os contratos eram escritos, em compara-
A carga mais pesada, em termos conceituais, parece estar começando ção com os casos em que o acordo fo ra apenas verbal. Finalmente,
agora, em todos os nossos cursos. Nas primeiras três semanas os pro- Perini abordava o que às vezes chama de "questões de pensamento pro-
fessores nos mostraram mais ou menos o esquema de cada matéria, fundo", ao que os alunos costumam se referir como "questões de po-
os princípios e termos básicos que teríamos de dominar, antes de com- lítica". Quanto de arbítrio os juízes devem ter na interpretação de con-
preendermos qualquer coisa. Agora, parece que estamos iniciando as tratos? Se muito, o juiz, em essência, pode elaborar o próprio acordo,
aulas para valer, aprendendo a erguer a casa . Passamos para o estudo em vez das partes. Se pouco, o juiz pode aceitar sem questionar todos
mais detalhado das leis em questões legais definidas, em todos os cur- os tipos de perjúrio e injustiça.
sos. Em Processo, estamos lendo causas sobre jurisdição, a complexa Os outros professores não trabalham da mesma maneira que Pe-
questão de quando, como e sobre quem um tribuna l pode exercer seu rini. De um modo geral, ele trata de apenas uma causa por dia, efe-
poder. Em Responsabilidade Civil, continuamos com os delitos inten- tuando uma análise passo a passo. Morris discorre sobre di versas causas,
cionais - tentativa de agressão, agressão, prisão indevida - e atenuan- comparando-as de uma maneira mais franca e objetiva, fazendo mui-
tes como consentimento e legítima defesa. to do trabalho que Perini exige dos alunos. Zechman geralmente trans-
Enquanto prosseguimos com esse trabalho meticuloso, parece que forma uma causa e mais uma de suas "si tuações hipotéticas", que ele
iniciamos a rotina tradicional de sala de a ula , descrita em catálogos altera pouco a pouco, pergunta a pergunta, a fim de podermos com-
e guias. A HLS, como muitas outras, é o que se chama de uma "facul- preender como cada fato se relaciona com o princípio orientador. Mann
dade de direito nacional". Isso significa que não são enfatizadas as tende a fazer preleções. Em cada curso, porém, esse processo de com-
leis de nenhum estado. Em vez disso, através da comparação de causas parar e distinguir, a fim de definir o direito, é de certa forma repetido.
de todo o pais, devemos obter uma noção dos rumos gerais do direito Em Penal, por exemplo, estamos agora afundados no atolei ro do Có-
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digo Penal Modelo e no trabalho insuportável de aprender a ler uma - Eles estão me transformando em outra pessoa - d isse ela,
lei. T odos os dias Mann nos leva a com pa rar o código com causas que referindo-se aos pro fessores. - Estão me fazendo diferente.
tratam do mesmo assunto; comparamos e distinguimos o direito con- Comentei que isso se chamava educação e ela me disse, com toda
suetudiná ri o e a lei, os dispositi vos da lei estadual e do código. razão, que eu estava sendo irreverente.
Esse quebra-cabeças, causa a causa, peça a peça, é um proces- - É a lguém que não quero ser - acrescentou Gina. - Não tem
so muito ma is fác il de descrever do que praticar. O direito consue- a im pressão de que está sendo doutrinado durante todo o tempo?
tudinário é uma loucura e as ca usas seguem todas as direções. Nun- Eu não tinha certeza se me sentia assim , mas quando Gina e eu
ca se consegue ajustar todas as peças em seus lugares. Zechman con- sentamos pa ra a lmoçar comecei a compreende r que, para ela e muita s
fundiu roda a turm a hoj e, ao nos pedir para distinguir entre duas outras pessoas na turma, havia uma crise em anda mento , que a inda
causas com fatos idênticos e resul tados contrários. Dois homens tra- não me a fetara tão profunda mente.
varam uma luta corporal. Numa ca usa, am bos pudera m processar Por um lado, o problema era tão simples qua nto Nicky o fo rmu-
um ao outro por agressão; na outra, não p uderam, porq ue o tribu- lara. Os alunos sentia m que estavam sendo forçados a se ident ifi car
n_al considerou que ambos eram " transgressores". As pessoas suge- com regras e noções sociais com que não concordava m . Em Contra-
riram todas as distinções tri viais para explicar as decisões diferen- tos, por exemplo, já ficara evidente que Perini era um ardoroso defen-
tes: uma briga fo ra com garrafas, a outra com facas; uma briga ocor- sor do mercado livre, a lguém que acreditava que a economia do país
rer~ dura_n te o dia, a o ut ra à noite. Ninguém acertou na distinção devia funciona r sem qua lquer regulamentação do governo . Peri ni lo -
m_a ,s ó?v1a : ~s. causas eram de do is estados di fe rentes, em que os go conseguiu nos demonstrar que muitas das regras contratuais do di-
tnbuna1s dec1d1am a mesma questão de ma neiras opostas. (Obtive reito consuetudinário refletiam as press uposições do mercado livre.
essa informação de Prosser, não de Zechman, que deixou tudo no Quando ele permitiu comentários sobre a conveniência ou não das re-
a r - outro exemplo do motivo pelo qual sua a ula parece uma via- gras do mercado livre, a intimidação que im punha torn ou di fíc il con-
gem num ca rrossel desembestado .) De um modo geral, no entanto testá-lo.
as cont radições são ma is s utis e os pad rões estão sempre presentes' Mas ha via uma di ficuldade ma is sutil em nossa educação , um ele-
quando se procura com a fi nco . Pelo avesso, de fre nte para trás. Pu~ mento que estava na própria base do pensamento j urídico e que e tor-
la ndo das minúcias para o quadro geral. Esse processo se encontra nou especialmente evidente em a ula. Estávamos aprendendo mais do
ago ra em plena operação, o q ue supostamente deve nos ensinar a pen- que um processo de a ná lise o u um conjunto de regras. Nas discussõe
sar como advogados. com os professores, enqua nto eles nos interrogavam e co mentavam as
respostas, também éramos taci tamente instruídos nas estratégias da ar-
Q uando iniciamos o estudo da jurisd ição em Processo, Nicky Morris gumentação legal, em formular o que a nalisáramos de uma maneira
fez o que parecia ser uma declaração importa nte. que tornaria as alegações persuasivas num trib unal. Todos compreen-
- Neste momento , a faculdade de direito começa a se tornar demos logo que esse tipo de a rgumentação devia ser racio na l, coeren-
- ------....-, mais do que o aprendizado de uma língua. Vocês precisa m também te, progressiva em sua lógica. Nada era encarado como um fato
começar a aprender as leis e não demorarão a descobrir que há uma incontestável; nada estava provado só porque se sentia com convicção.
recom pensa e tanto em conhecer as leis e saber como ap licá-las. Ao Todos os professores tentavam nos incutir que não se influencia um
aprender as leis, no entanto , não pensam que devem renuncia r a um juiz com declarações de fé emocionais. Nicky Morris muitas vezes es-
senso de a nális_e mo ra l. A lei, em quase todos os seus aspectos, é carnecia das respostas como " a lgaravia senti menta l" . Perini, em mais
um reflexo de sistemas de valores conflita ntes. Não cheguem ao pon- de uma ocasião, arrasou com alu nos q ue tenta vam argumentar com
to de pensarem que, porque estão aprendendo uma lei, devem ne- princípios supostamente incontestáveis.
cessa riamente assumir os valores que produziram a referida lei. Por que , Perini perguntou um dia, o direito de negociar e assumir
O comentário surpreendeu muitos a lunos. Ao sairmos pa ra almo- contratos é conferido a todos os ad ul tos, em vez de apenas a um grupo
çar, conversei com Gina Spi tz a respeito do que Nicky dissera. Era uma selecionado na sociedade?
mul her determinada. Acabara de se fo rmar em Barnard e transborda- Porque isso era fundamenta l, sugeriu um aluno , básico: iodas as
va com a exuberâ ncia da cidade de Nova York. Era grande, extroverti- pessoas são criadas iguais.
da, com uma inteligência cintilante. Mas o comentário de Nicky a - É mesmo? - d isse Perini . - Foi o senhor quem as cri ou, Sr.
a fetara de uma maneira q ue a de ixara abalada. Vivian? Fez um estudo a respeito?

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- Acredito nisso - respondeu Vivian. ofessores faz iam com os alunos em aula. E parecia-me que havia o u-
- Meus parabéns, isso prova muita coisa. Mas como justifica is- pros hábitos com que devia ser cauteloso. O que estávamos aprenden -
so, Sr. Vivian? ~o era um processo de pensamento literal , linear, progressivo.(? tipo
A exigência para que analisássemos e justificássemos nossas opi- d método de solução de problemas bastante estruturado e en~t~ado
niões nem sempre podia ser cumprida com facilidade. Muitas das con- ~ cada aula de Perini, por exemplo - aquela história de deftnir os
vicções mais profundas pareciam às vezes inarticuláveis em suas ~etalhes, depois passar para as implicações mais amplas - , era ui:na
funções , quando não em contradição com outros princípios profun- habilidade técnica extremamente útil, m~s eu tei:n i_a que pu?esse preJu-
dos. Constatei isso com freqüência. Pensava, por exemplo, que a ri- dicar a análise de outros assuntos. E alem da ng1dez, havia um certo
queza deveria ter uma ampla distribuição, mas muitos exemplos modo de ser do pensamento legal que eu achava inequivocamente de-
apresentados em aula implicavam tirar dos pobres, para os quais eu sestimulante.
achava que os direitos de propriedade deviam ser absolutos. _ O pensamento legal é obsceno - comentei para Gina, em de-
Contudo, com relativa rapidez, todos parecíamos adquirir a capaci- terminado momento da conversa.
dade de conciliar e justificar nossas posições. Na quarta semana o pro- Comecei a pensar mais tarde que alcançara uma verdade substancial.
fessor Mann promoveu um debate em aula sobre os vários projetos para Pensar como um advogado envolvia estar sempre desconfiado. Devia-se
regulamentar a prostituição e notei as diferenças no estilo de argumenta- reavaliar declarações, inferir de silêncios, procurar por falhas e ambigüi-
ção de sessões similares que tivéramos no início do período. Os estudan- dades. Fazia-se tudo menos aceita r uma declaração pelo que dizia.
tes falavam agora de estatísticas de crime e padrões de violência em áreas Por um lado, não se acreditava em nada. E, por outro, em nome da
em que ocorria a prostituição. Ressaltavam evidências e evitavam apelos coerência lógica e para preservar regras há muito estabelecidas, aceitavam-
e argumentos emocionais, baseados na profundidade de seus sentimentos. se as mais absurdas ficções - que uma empresa era uma pessoa, que o
Para Gina, no entanto, o processo que provocara esse tipo de mu- inquilino de um apartamento estava alugando terra e não uma habitação.
dança era assustador e condenável. O que tudo isso me mostrava era que o direito como um meio de
- Não me importa se Bertram Mann não quer saber como eu me encarar o mundo e a minha própria maneira pessoal de ver as coisas
sinto em rel~ção à prostituição - ela disse durante o almoço naquele não podiam se fundir completamente; que em algum mo men to, de al-
dia . - Eu sinto uma porção de coisas sobre a prostituição e têm tudo guma forma, eu teria de aprender esses hábitos da men te sem torná-
a ver sobr~ a maneira como penso sobre a prostituição . Não quero me los meus, no sentido mais profundo. Não tinha idéia de como conse-
tornar o tipo de pessoa que tenta fingir que os sentimentos não têm guiria isso, mas sa bia que era necessário.
nada a ver com as opiniões. Não é condenável sentir coisas. - Cada vez que temos uma discussão em Penal - comentou Gi-
Gina não era a única pessoa a fazer comentários desse gênero . Mais na - sinto vontade de levanta r a mão e dizer: a coisa ma is im portante
ou men~s nessa ocasião, de três ou quatro outros colegas, pessoas que é ter compaixão. Mas já sei que reação teria Mann ... ele me diria isso
eu respeitava, ouvi comentários similares, todos ressalta ndo que esta- é ótimo ou se limitaria a olhar para o teto. Afinal, esto u errada?
vam sendo limitados e prejudicados pela instrução, forçados a sobre- Concordei que ela não estava, nem na previsão da reação do Pro-
por a razão seca à emoção, a cultivar opiniões que eram "racionais" fessor Mann nem na opinião que expressara.
mas que não tinham raízes na experiência, na vida que conheceram an~ - É um problema - murmurei.
tes. Estavam sendo afastados de si mesmos. E compreendi que era o problema que ninguém a inda nos ensma-
Muitas pessoas com essas queixas vinham diretamente do colégio. ra a resolver.
~ensando a respeito, concluí que tendo sobrevivido à década de 1960,
tido um emprego, casado - já tendo vivido por diversos princípios
- eu me tornava menos vulnerável à noção de que as coisas que apren-
díamos ~m aula poderia~ de ~lgu'!1~ forma corromper algum eu cen- 71/0175
tral_, mais seguro: Mas nao havia duvida de que a preocupação de meus (Terça-feira/
am igos era genuma e escutá-las me tornava mais consciente sobre os
possíveis efeitos que o aprendizado do direito me causava.
,, Em casa, ~nn~tte me dizia que eu começara a bancar o " advoga- A aula de Perini continua a ser o maio r espetáculo da cidade. Nas ou-
do quando d1scut1amos, pressionando-a e interrogando-a, como os tras matérias, os professores a brandaram um pouco. Em Responsabi-
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!idade Civil, Processo ou Penal, ninguém mais foi chamado para enun. Ele tinha uma expressão dura e era óbvio que estava irritado. A
ciar a causa inteira desde a segunda semana. Quando se é chamado pergunta revelaria se Hal estudara a causa. Um dos pontos destacados
nessas matéri as, os professores fazem apenas uma ou duas perguntas no parecer é de que os arrendamentos orais não são válidos se feit os
e depois passam para outro o u apresentam seus comentários. Ninguém por um ano ou mais. O garoto ao meu lado, Don, murmurou:
gosta de ser chamado. Mas com Nicky pode-se passar para outro quan- - Oh, não !
do não se quer falar; e com Zechman , agora, pode-se fazer o mesmo Todos já ouvíramos os rumores sinistros sobre a reação de Perini
quando não se sabe a resposta. E sempre se pode dizer a Mann que quando descobria um aluno despreparado. Hat, no outro lado da sala,
se está despreparado. olhava para o livro, procurando desesperado peta resposta. Acabou
Mas em Contratos não há desculpas, depois que a pessoa ouve levantando os olhos e disse, quase docemente:
seu nome, e ser escolhido para a causa do dia ainda é um evento dra- - Assisti ao último filme.
mático. Apesar de alguns desvios, Perini geralmente volta ao interro- A risada foi desenfreada, em parte por alívio. Perini orriu por
gado es_colhido com mais perguntas, o que faz com que você permaneça um momento, depois esperou que a turma aquietasse. C hamou outro
na berlinda durante a hora inteira; e Perini raramente se mostra suave aluno; ames, porém, fez um comentário, ácido, de ma u agouro.
ou condescendente. O grupo de estudo mantém o frenético ensaio an- - Pode estar certo, Sr. Wile, de que isso é evidente .
tes de cada aula, para o caso de ser o dia em que um de nós terá de
oferecer o grande desempenho . "O contrato era nulo por erro." " Não,
não, erro unilateral. " "Não, erro mútuo quanto à essência." No início de outubro, muitos dos alunos mais adiantados começaram
Há, no entanto, recompensas em ser chamado . O que se diz é que a aparecer todos os dias em trajes profissionais. Os homens circula-
só aco~tece uma vez. Perini faz uma anotação no seu mapa de lugares vam pelos corredores numa falange de ternos listrados e de flanela com
por baixo do nome da pessoa que chama a cada dia. Todos já notamos colete, as mulheres usavam costumes, náilons e sapatos de saltos altos.
isso . Era o período de entrevistas na Faculdade de Direito de Harvard,
A tensão na aula é muitas vezes tremenda, enquanto esperamos os dois meses em que representantes de cerca de oitocentas firmas de
para ver quem será a vítima do dia e depois o que Perini lhe fará. Tal- advocacia e agências do governo de todo o país chega m para escolher
vez por esse motivo há mais riso em Contratos do que nas o utras au- os alunos do segundo e terceiro anos que pretendem contratar. Os alu-
las. E devo dizer também , por uma questão de justiça, que Perini possui nos do terceiro ano procuravam empregos perma nentes, para começa-
senso de humor . Pode ser extremamente engraçado e sabe agüentar uma rem logo depois do exame na Ordem dos Advogados, no verão seguime.
piada muito bem. Na segunda- feira estava dando voltas para esclare- A maioria se tornaria advogado associado em grandes firmas de advo-
cer uma questão e nos perguntou: cacia urbanas . Os alunos de segundo ano procuravam trabalhos de ve-
- Alguém assistiu ao último filme da noite passada? rão como assistentes ... também nas grandes firm as particulares.
Houve algumas risadas no mesmo instante, um tanto irônicas. Aparentemente, a busca de emprego dos estudantes mais adianta-
C reio que a maioria ai nda está muito assoberbaba com trabalho para dos tem pouco a ver com a experiência dos alunos do primeiro ano.
sequer olhar a televisão, muito menos assistir ao último filme. Dos fun- A direção da faculdade desencoraja os a lunos do primeiro ano a pro-
dos da sala, alguém gritou: curarem empregos de verão ao final do período, chegando ao ponto
- Era uma tarefa de casa? de lhes negar os serviços do Centro de Colocação Pound, que coorde-
Foi a maior risada que tivemos em aula durante o ano inteiro e na as entrevistas e o aconselhamento de carreira para os estudantes mais
Perini riu conosco. adiantados. A teoria tradicional é de que os primeiranistas se benefi-
Hoje ele chamou Hal Wile para apresentar Boone v. Coe., um ca- ciam com um descanso depois das provações do ano letivo . Além dis-
so antigo do Kentuck y. Hal é um dos alunos mais tranqüilos da tur- so, muitos empregadores relutam em contratar alunos do primeiro ano,
ma, mas atrapalhou-se hoje, primeiro com os nervos e depois com a porque ainda não conhecem muito bem o direito.
causa. Ficou evidente que não tinha um sumário e parecia que tam- Apesar desses obstáculos, a maioria dos meus colegas procurou
bém não leu direito o parecer, se é que teu. Começou hesitante, lendo e acabou encontrando um trabalho de verão , muitos até tiveram entre-
os fatos diretamente do livro. Disse que as partes haviam acertado um vistas com os futuros empregadores na própria faculdade, como os al u-
arrendamento oral por um ano. nos do segundo e terceiro anos. Houve, no entanto, muitos alunos do
- E isso é tudo, não é mesmo? - indagou Perini . primeiro ano que nem chegaram perto do centro de colocação, entre

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os quais me incluí. Permaneci alheio aos procedimentos detalhados de cil determinar. T udo o que se sabe com certeza é que os "melhores"
entrevistas e busca de emprego. mpregos vão para os alunos com as melhores notas. .
Contudo, enquanto observava os colegas mais adiantados marcha- e urna das mensagens mais objetivas que recebi, como aluno do P:1·
rem pela escola a caminho do mundo exterior, senti as preocupações ·ro ano, só de o bservar e escutar durante a tempo rad a de entrev1s-
com o fuwro aumentarem assim como muitos al unos do primeiro ano. mei
tas, foi a suprema importância das notas. Durante as primeiras semanas.
Embora ainda estivéssemos a quase três anos da formatura, compreendi d faculdade, eu pensara que as notas só eram usadas para ava 11ar os
q ue as de~isões importantes não estavam tão distantes como podia pa- ~unos capazes de integrarem a eq uipe da revista de di reito . Mas à me-
recer. Mais doz_e meses e meus colegas e eu iniciaríamos a primeira ro- ~ida que as entrevistas prosseguiam e os alunos mais adiantado~ fala-
dada de entrevistas. E a esta a ltura estaríamos procurando por mais vam ficou patente que as notas co nstituíam uma espécie de etiqueta
do que uma maneira de ganhar algum dinheiro. Tradicionalmente, o afix~da em cada um pelos professores, determinando até que pomo
emprego que um estuda nte ass ume ao final do segundo a no, no verão se podia subir no mundo legal depois da format ura.
- ? empreg~ ~ara o qual seríamos entrevistad os no próximo outono _ Há firmas e agências do governo q ue só contratam alunos com
- e uma espec1e de teste com um em pregador permanente. Muitos - notas A, outras que só cont ratam pessoas com A-menos e assim por
provavelmente a maioria - a lu nos de Harvard terminam como asso- diante - explicou Mike. - Nem todas são assim, é verdade, mas as
cia~os nas fi rmas de advocacia em que trabalharam no ve rão a nterior. notas ainda contam. .
Assim, dentro de um ano, precisaria ter alguma noção do lugar em que Isso significava que havia um sentimento de exclusão e oportuni-
An n_ette e eu queríamos viver e o tipo de advocacia q ue desejava dad e perdida. Uns poucos pareciam acha r q ue não poderiam conse-
praticar. guir os empregos que realmente desejavam. E havia outro grupo,
Por isso, ao longo do período de entrevistas, fiz questão de con- igualmente infeliz, que parecia pensar q ue os empregos que desejavam
versar com a lu nos do segundo e terceiro a nos so bre o me rcado de não existiam.
tra?alho. Logo descob_ri q ue era mais fáci l consegui r emprego em A maio ria dos empregadores q ue promove entr evistas na Facul-
Chicago, C leveland, P1ttsburgh, Nova York; muito mais difícil em dade de Direito de Harvard é formada por gra ndes firmas particulares
San Francisco, Boston, Seattle. Também descobri que muitos alu- de ad vocacia. Uma firma de advocacia é um g rupo de advogados que
nos adiantados não gostavam da busca de emprego. Embo ra prati- partilha clientes, lucros e responsab ilidades, um sistema muito pareci-
cameme todo alu no de Harvard q ue efet ua um esforço mais sério do com o de uma clínica méd ica. As firmas variam, q uanto ao volume
a_rru m~ um emprego - um fato extraordinário, tendo em vista a de operações, de dois homens até as grandes empresas de Nova Y_or k,
sll u~ça_o precária do mercado de trabalho legal - há mesmd assim Washington, Chicago, Los Angeles - a lgumas empregando m ais de
angusuas e pressões no processo de e ntrevista. Você deve se apre- duzentos advogados. Os advogados nas firmas são sócios - essencial-
sentar bem num tempo curto - vin te minutos de entrevista - e tam- mente , proprietários de uma parte da firma - ou associados, que _são
bém enfrenta a possibi lidade de esperanças fru stradas. Há também empregados a ssa lariados. As firmas q ue entrevistam em Harvard figu-
outras tensões. Mike Wald, meu amigo, passou por maus momen- ram entre as maiores e mais conhecidas do país, seus clientes são quase
tos qua nd_o procurava por um emprego de verão, durante a temporada sempre algumas das empresas e pessoas mais ricas e poderosas dos Es-
de entrevistas. tados Unidos, em cond ições de pagar pelos serviços jurídicos altamen-
- O clim ~ é terrí~el - ele me disse um dia, du rante o a lmoço. te valorizados. As grandes fir mas geralmente cobram entre sessenta e
- As pessoas ficam doidas pela firma X o u a firma Y. A pressão co- cem dólares por hora, às vezes a té duzentos.
meça a aumentar, para se aceitar qualquer emprego supostamente "me- Há muitas vantagens em integrar uma grande firma de advocacia, es-
lhor" do que outro. E você fica com a sensação de que se não aceitar pecialmente para alguém saindo da faculdade. As grandes firmas têm mais
o ·:melhor" ~mprego estará desperd içando todas as va ntagens q ue con- condições e tempo de preparar um novo associado com todo cuidado; e
qu istou ao vir para a Faculdade de Direito de Har va rd. como não há limite definido para o que os clientes podem gastar em ho-
Perguntei a Mike o que fazia com que um emprego fosse melhor norários legais, o trabalho realizado geralmente apresenta os mais altos
do que o outro. Ele deu de ombros. padrões profissionais. Os problemas q ue constituem a base das grandes
- Se_ é uma firma, ta lvez clientes mais importantes, salários um firmas de advocacia - os das grandes empresas (contratos, fusões ou acor-
pou~o mais altos. Se éh uma a?ência do governo, o quanto de poder dos de empréstimos, questões de títulos mobiliários, dificuldades fiscais)
mantpula e quanto voce podera exercer ao chegar lá. No fund o, é difí- - são às vezes extremamente desafiadores e complexos.
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Mas não é uma vida fáci l. Os jovens advogados começando como tordoado com as cifras que ouvia. Estava acostumado aos salários
associados geralmente acalentam a esperança de "chegar a sócio", um ~e professores. Em Stanfor?, no depar_tan'.ent? de inglês, um cated_rá-
processo que costuma se prolongar por um prazo entre quatro e oito tico muito respeitado, depois de uma _v1d? mteira de s~cesso_n_o ~11~1~0
anos. Para eles, o esforço combinado de exercer a advocacia e impres- como estudioso, pode ganhar 22 mil dolares. Esse e o sa la n o 1rnc1al
sionar os sócios quase sempre exige um ritmo extenuante. Muitos dos ~ara os graduados de Harvard em ~rnitas. rirmas de Nova York. ~lém
meus amigos em firmas particulares trabalham de sessenta a oitenta disso, as cifras sobem rapidamente a medida _q~e o t~mpo passa, ainda
'· horas por semana e há pouco tempo ocioso, com as firmas cobrando mais depois que um advogado se wrna um soc10. O Jornal da faculd a-
aos clientes por períodos de quinze minutos ou mesmo de seis minutos. de informou que um levantamento in formal de ex-aluno , compare-
Contudo , as objeções às grandes firmas de advocacia, que ouvi cendo a uma 15 ~ reunião an ual , revelou que para aqueles qu_e
de escudantes como Mike Wald, estavam menos relacionadas com o trabalhavam como advogados a renda anual média era de setenta mil
trabalho árduo e mais com os valores morais e políticos. Para Mike, dólares. . . .
um velho ativista da década de 60, era constrangedora a perspectiva Considerando de onde eu vinha, a conversa sobre tanto dmhe1ro as
de integrar uma firma de advocacia que ajudava as pessoas e especial- vezes me deixava inibido, até mesmo embaraçado. Essa atitude nem sem-
mente as grandes corporações cuja influência na vida nacional ele não pre era partilhada. Um dia, no início de outubro, Aubrey, ~tephen e ~u
aprovava. esbarramos com Peter Geocaris. Ele estava de terno, depois de um dia
- Muitos professores dizem para não me preocupar com as ques- de entrevistas, dispôs-se a falar sobre todo o proces o. Peter queria tra-
tões políticas e me concentrar no treinamento - comentou Mike. - balhar numa firma em Nova York, onde o salário são tradicio nalmen-
Mas como se pode ajudar a U .S. Steel a se livrar de um processo por te mais altos. Quando perguntei se o dinhei ro que ganharia não o deixaria
poluição durante o dia , e depois ir para casa e ler sua correspondência em alguns momentos constrangido, ele respondeu que não.
do Sierra Club e ainda dizer a si mesmo que é um ser humano? - Valho isso - ele afirmou . - Estudei por muito tempo, desen-
Há alternativas para o trabalho nas grandes firmas - o " direito volvi uma capacidade específica, as pessoas estão dispostas a pagar por
corporativo", como os estudantes chamam - mas encontram-se difi- isso . Não estou roubando de ninguém. E trabalh arei muito para fazer
culdades em todas. O progresso no trabalho do governo é limitado pe- jus ao que vou ganhar. Como gosto do direit o, provavelmente traba-
lo fato de que os cargos dos altos escalões são quase sempre designações lharia muito por bem menos do que vão me pagar, mas de qualquer
políticas. Os empregos de "Cavaleiro Branco" - o trabalho para or- maneira terei um grande salário e não me importo. A verdade é que
ganizações como ACLU (União Americana das Liberdadej Civis) e sou o tipo de homem que sabe como apreciar as coisas que se pode
·-~. NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor)
(.
fazer com muito dinheiro ... e pretendo desfrutá- las ao máximo .
ou firmas de advocacia de interesse público, que propõem ações judi- Como alunos do primeiro ano , a maioria dos meus colegas não
ciais em nome de todos os cidadãos, como nos processos de interesse tinha posições desenvolvidas a respeiLO de tais assu ntos - direito cor-
do consumidor e poluição - são muito difíceis de se obter ao sair da porativo e dinheiro. Para a maioria de nó , a temporada de. entrevistas
faculdade. E a perspectiva de se estabelecer por conta própria é cada servia apenas para levantar essas questões de uma maneira remota,
vez mais irrealista nos dias atuais de excesso de advogados e "advoca- pela primeira vez. Uns poucos colegas manifestavam uma cobiça sem
cia de firma" (o que significa que um advogado individual pode sedes- sentimento de culpa quando pensavam no futuro .
cobrir a enfrentar a oposição de uma firma de setenta advogados, capaz - Estou aqui pelo dinheiro - disse-me um homem chamado Jack
de esgotá-lo rapidamente com uma série de táticas exigindo mais e mais Weiss, no início do ano letivo , quando lhe perguntei por que motivo
trabalho). Além disso, todas essas alternativas sofrem consideravelmen- viera para a facu ldade de direito.
te quando comparadas com a advocacia corporativa num aspecto de Mas a maioria dos primeiranistas não via cifrões quando olhava
incontestável atração para os que procuram um emprego: dinheiro. para um livro de causas. Uma pesqui a efetuada dura nte uma tempo-
A advocacia de firma é lucrativa desde o início . Mike Wald, por rada de entrevistas e publicada pelo jorn:1! da fac uldade revelou que
exemplo, resolveu finalmente dividir seu verão - seis semanas no es- os I Ls esperavam uma renda média de 28 mil dólares depois de vinte
critório de Justiça Gratuita numa reserva índia, seis semanas com uma anos de formatura e um salário inicial de treze mil dólares. Alguns es-
firma de Chicago. A Justiça Gratuita pagou oitenta dólares por sema- tavam ansiosos pela advocacia corporativa, ma cerca de 80% disse-
na ; a firma de C hicago 325 dólares. O dinheiro era sempre uma ques- ram que, em termos ideais, preferiam fazer outra coisa - trabalho de
tão no ar durante a temporada de entrevistas e eu me sentia às vezes interesse público, trabalho político, traba lho em bene fíci o dos pobres.

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Mas muitos q ue não queriam o trabalho corporati vo - cerca de 25% 9/ 10175
- estavam convencidos de que acabariam por fazê-lo , em úl tima (Quinta-feira)
aná lise.
Era um a posição realista, pois a grande maioria acabaria na ad-
vocacia corporativa. Mais de três qua rtos dos a lunos de cada turma Outra semana de traba lho intenso. Em Métodos Legais, "entramos"
da HLS acabam trabalhando com firmas de advocacia, em um mo- com a ação judicial de J ack Katz. Cada um elaborou um a versão da
mento o u outro. Tudo parece pressionar pa ra isso. Alguns estudantes petição inicial e teremos também de rep resenta r o o utro lado - o de
- muito mais, provavelmente, d o que a pesquisa do jornal indicou Grueman - na próxima semana e preparar uma rép lica, embo ra só
- chegam com um grande interesse pelo direito corporativo e outros Deus saiba onde encontrarei tempo para isso.
o desenvol vem na facu ldade. E há ainda um gra nde número que acaba O tempo continua sendo artigo escasso e ainda me arrasto pela
chegando à conclusão de que sua obrigação como advogados é sim- semana com cinco ou seis horas de sono por noite. O trabalho pro-
plesmente defender os clientes que os procuram, sem fazer uma análi- priamente dito está muito mais fácil. Posso ler uma causa com con-
se ética mais profunda dos clientes o u de si mesmos. Para esses centração e preciso repassá-la apenas uma vez, se o fizer bem devagar ,
estudantes, o dinheiro , o poder , o treinamento, a qualidade do traba- para absorver os pontos mais importantes. Mas com a crescente com-
lho, tudo se combina para fazer com que as grandes firmas se tornem petência que meus colegas e eu sent imos, também há novas responsa-
inevitáveis. bilidades. Todos os professores estão passando mais trabal ho e uma
Mas enquanto observava a temporada de entrevistas à margem , grande parte parece mais difícil. Nos li vros de ca usas, à medida que
compreendi que, se tivesse de assum ir esse tipo de conversão, não seria avançamos, parece que mais e ma is dados cruciais fo ram omitidos dos
indo lor o u rápida. Como Mike Wald, eu passara uma boa parte de mi- sumários. Outro dia, em Contratos, tivemos uma causa em que era im-
nha vida envolvido no ativismo político - os movimentos dos direitos possível determinar qual das partes era a autora.
civis e contra a guerra, a campanha de McGovern em 1972. As convic- Quaisquer que sej am os fardos, minhas condições permanecem
ções ativistas persistiam em mim, na sua forma mais branda; a advo- boas, até mesmo melho radas. Ainda me sinto extremament e fascina-
cacia corpo rativa parecia apoiar um regime de poder contra o qual eu do pelo direito. Cada vez mais, posso perceber uma es trutura coerente
protesta ra por muito tempo. no que estou aprendendo , em vez de apenas uma sucessão de doutri-
Depois que deixamos Peter, naquela tarde, Stephen comentou q ue nas obscuras. Há muitos e eternos paradoxos - como o fato de que
nunca aceitaria um emprego numa firma corporativa, que voJtaria pa- a lei alega uma au to ridade absoluta sobre os cidadãos, exige uma o be-
ra a vida acadêmica, sem desvios. Aubrey, com seu diploma de admi- di ência incessante, embora se encontre num constante processo de mu-
nistração , um crente na proposição de que se podia conduzir os negócios dança. Também percebo dilemas fi losóficos que se repetem, como o
com decência, caçoou de Stephen, dize ndo-lhe que vivia numa torre que Nicky nos falou tantas vezes: o empenh o para criar regras que pos-
de marfim . Stephen chamou Aubrey de tubarão. Pediram a minha opi- sam ser aplicadas com facilidade e igualdade, mas que também pos-
nião e respondi que ac hava que me seria difícil aceitar um emprego sam ser ajust2das para admitir o que é singul ar em cada caso. Como
corporativo. a lei pode ser eficiente e cert a sem reco rrer a declarações taxativas co-
- Mas não sei com certeza - apressei-me em acrescentar. - Eu mo " Morte a todos os la drões"?
me sinto muito indeciso em tudo o que estou fazendo. Quem pode pre- As coisas ainda permanecem em minha cabeça durante todo o tem-
ver o que vai acontecer? po, em bora às vezes eu espec ule se essa absorção não é um pouco peri-
Mais tarde, refleti sobre o que dissera. Concluí que era a única gosa o u louca. Outro dia pedi um hambúrguer e por um momento
verdade . Forçado pela temporada de entrevistas a contemplar o futu- especulei a séri o se não fora formado um cont rato e se haveri a inde ni-
ro, não tinha certeza se, qu ando chegasse a minha vez, seria capaz de zação caso eu recusasse agora. O restaurante teria direito ao valor ra-
sacrificar todas as vantagens de trabalhar numa grande firma de advo- zoável do hambúrguer o u ao lucro total?
cacia. Mas me senti irritado , a flito e surpreso por descobrir que já ex- Muitos d os meus colegas continua m a sentir uma distância muito
perimentava esse tipo de tentação, esse tipo de dúvida. maior do direito e muito mais infelicidade no estudo do q ue eu. Ou-
tros se mostram mais entusiasm ados com a faculdade do que era m ,
por exemplo, ao final da primeira semana. Mas há também um grupo
resistente - pelo menos um terço da turma - que parece não conse-

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guir encontrar um meio de apreciar o curso. Karen Sondergard ainda estávamos vi vendo de nossas "economias", a reserva de amor, consi-
protesta quase todos os dias e há várias pessoas que comentam como deração e bons sentimentos, acumulados em cinco anos de um casa-
se sentem constantemente assustadas, indecisas, sufocadas. Alguns co- mento feliz. Apesar de sua tolerância, no entanto, eu sabia que não
legas queixam-se do tédio. Muitos ainda lamentam o clima de compe- era nada di vertido. Ela se senti a sozinha e cansada, ai nda arcava com
tição e empenho implacáveis. Nessas questões, continuo a achar que a maior parte dos afazeres domésticos.
as pessoas devem olhar para si mesmas com um pouco mais de hones- Para nós, foi importante e extremamente agradável passarmos algum
tidade .. . e de caridade. Não há muitos por aqui que gostem de correr tempo juntos de novo, quando minha cabeça não fervilhava com o direi_to.
a meia velocidade apenas, mesmo que provavelmente acabemos nos - Você está relaxado - comentou Annette na manhã de domin-
atropelando uns aos outros. go - Eu já começava a du vidar se algum dia volt aria a vê-lo assim.
Contudo, quaisquer que sejam os motivos, sei que as pessoas são Ela tinha razão . Fiquei um tanto espantado só pelas mudanças em
sinceras quando falam de sua infelicidade. Já ouvi mais de uma pessoa meu estado físico. Sentia-me mais controlado, mais forte, mais intei-
descrever o último mês como o pior de sua vida . .É só uma amostra da ro. Conseguira dormir direito. O estômago não se encontrava mais per-
intensidade absurda com que estão vivendo esta experiência; pela minha manentemente embrulhado. A pulsação parecia menos violenta. Já não
perspectiva devo considerar esta experiência como uma das melhores. sentia aquele suor fri o. Compreendi, pela primeira vez, como era in-
tensa a pressão a que estivera submetido. Era uma pessoa diferente ali ,
0 homem que fora seis semanas antes. Pensava em coisas difere ntes.
No fim de semana em que se comemorava o Descobrimento da Améri- Não tentava manter minha linguagem precisa ou analisar cada propo-
ca, Annette e eu fomos com David e sua mulher, Lynne, para o inte- sição falada para encontrar seu ponto de convergência. Podia contem-
rior do estado de Nova York, onde a família de David possui uma plar as montanhas, assim como palavras e livros. Podia viver apenas
cabana, à margem de um lago nas Catskills. Ele e Lynne nos convida- com a indiferença da tranqü ilidade na cabeça.
ram para ver as cores do outono pela primeira vez depois de anos na - Fui arrebatado dos ladrões de cérebro - falei para Annette.
Califórnia e para descansar um pouco, o que todos precisávamos. Foi Com Lynne e David, fizemos o desjejum tarde e depois lemos o
o meu primeiro fim de semana de folga desde que iniciara a faculdade, Times do domingo. À tarde, nós quatro iniciamos a escalada do mor-
seis semanas antes. ro por trás da cabana. Passamos por um pequeno bosque e Annette
Ao deixarmos a cidade, sentei na frente com David, conversando e Lynne, que usavam sapatos mocassins, acharam que não poderiam
sobre o direito. Chegamos à cabana depois do escurecer e-não vimos continuar sem ter alguma coisa como apoio. Voltaram para a cabana
as montanhas até a manhã segu inte; mas, como Lynne e David haviam e David e eu continuamos até o alto do morro .
garantido, eram mesmo magníficas . Talvez nenhuma outra coisa que Podia-se ver todo o vale lá de cima: o lago sob as nuvens, pare-
não esse tipo de esplendor fosse capaz de me remover do transe legal. cendo um telhado de ardósia cinzento; as colinas resplandecendo em
Mas deu certo. Excursionamos pelos bosques, pescamos, bebemos e suas cores. Sentamos em silêncio, contemplando a paisagem. Pensei
conversamos ao lado da lareira acesa. Visitamos as pequenas e lindas de novo como eram insólitas as exigências que fizera a mim mesmo
cidades ao redor, muitas vezes apenas ficamos parados, atordoados, durante as últimas semanas, encaradas lá de cima. Realizar, ter êxito,
contemplando as cores esplêndidas das montanhas. fazer e ser excelente. Era uma espécie de loucura. O que estava aconte-
Tive a oportunidade, pela primeira vez em semanas, de passar al- cendo? O que eu fazia comigo mesmo?
gum tempo com minha mulher. Fora um mês e meio nada fácil para Perguntei a David como ele descreveria seu estado de espírito dL,-
Annette. Ela começara um novo emprego, como professora de arte nu- rante o primeiro ano na faculdade de di reito .
ma escola primária, numa das comunidades suburbanas do norte. Era - Recordando agora - disse ele, solenemente-, acho que foi
um emprego excelente e ela sentia-se afortunada por tê-lo conseguido, uma loucura .. . enlouqueci por completo.
mas o trabalho era fisicamente exigente e a deixava exausta. Via sete- - Acho que é isso o que está me acontecendo.
centas crianças por semana e carregava seus materiais de uma sala pa- - Não se preocupe. Sempre passa e ninguém vai notar na facul-
ra outra. E eu não tinha condições de ajudá-la na adaptação a um novo dade. Todas as pessoas por lá lhe diriam a mesma coisa. - David en-
ambiente. Mal estava presente, distraído em todos os momentos, qua- rouqueceu a voz, numa imitação de um veterano desconhecido, deu-me
se sempre estudando. Para mim, Annette mantinha um generoso bom um tapa sonoro nas costas e acrescentou : - Meu garoto , você está sim-
humor. Dizia-me que considerava aq uele ano como um período em que plesmente aprendendo a amar o direito.

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OUTUBRO E NOVEMBRO

Desgraça

18110/75
(Sábado)

A faculdade pa rece estar entrando ago ra em seu segundo estágio. O


vigor das primei ras sema nas, a ex ul tação pela complexidade gigantes-
ca do direito e o brilho dos colegas começaram a se d issipar. Os aspec-
tos mais som br ios da vida na faculdade começam a se tornar evidentes.
O que não significa que a fac uldade ficou cha ta - apenas que há um
~
equilíbrio a flo rando, embo ra eu ainda o considere bastante favorável.
's· Dentro da turma , as relações pa recem ter se normalizado, como
acontece em qualquer g rupo ma is nu meroso. Como todos estivemos
em aula, reconhecemos a ignorância e fa li bilidade mútuas, não esta-
mos mais tão im pressionados uns com os outros e assim nos tornamos
menos at raídos. De um modo geral, prevalece agora um clima de mo-
déstia e bonomia. Não mais encaramos uns aos outros como os obje-
tos desconhecidos em q ue estão ostensivame nte à mostra todos os
louvores e feitos conq uistados , como decalques de excursão na baga-
gem. Os relacionamentos são ma is pessoais e sentimos uns pelos ou-
tros o grau no rmal de atrações e aversões. Há uns poucos romances
na turma, muitas amizades crescentes. Eu me tornei cada vez mais li-
gado a Steve Li towitz. Passamos m uito tempo j un tos durante o dia,
seguimos juntos para a estação rodoviária na Ha rvard Square ao final
da tarde, até nos falamos pelo telefone à noite, como colegiais. Admi-
ro seu modo de ser; e pelas nossas afinidades, parecemos reagir da mes-
ma maneira à maioria das coisas.
O trabalho continua, opressivo na quantidade e longe de ser fácil.
Em Métodos Legais, as tarefas continuam a se acumular. Daqui a pouco

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enfrentare_m_os no~so grande projeto: elaborar um sumário em apoio _ O cara está fazendo alguma viagem filosófica que não consigo
a uma pet1çao de J_ulgamento sumário do processo de Jack Katz. Nos entender - Terry me dissera na semana passada. .
cu rso _regulares, sinto ui:n~ crescente resistência a uma porção de coi- Mas creio que há agora uma maioria que aprecia a aula. Muitas
~as. _Ha apenas uma maten a sobre a qual não tenho queixas . Por mais vezes me sinto tão excitado que não consigo fi car sentado quieto, lite-
mcnvel que po~sa parecer, é Responsa bilidade Civil. Há duas ou três ralmente. Lá estamos nós, na penúltima fila, a mulher lendo, o ho-
s~manas que m!nha afeição por William Zechman e o gosto pela maté- mem resmungando, eu me remexendo na cadeira.
ria que el~ ensina vem aumentando. Começou quando estudávamos As outras matérias, infelizmente, não estão indo tão bem. Em Pe-
o consentimento, a defesa em que o réu alega que não houve ofensa nal, Mann é quase intolerável. Segue em frente em linha reta, como
porque_o autor concordou com a atividade que causou os danos. A algum cavalo de arado atordoado, cada aula é uma compa ração arras-
confusao na turma alcançara um nível tão elevado que se transforma- tada entre a causa e o código. E quando minhas objeções não são em
ra nur:na ~spécie de tédio desesperançado. A mulher que senta ao meu relação à deficiência do ensino, parecem se concentrar nos professores
lado h~ d1s<:_retamente um jornal. O homem no outro lado ansiava por pessoalmente. Como acontece com meus colegas, os professo res estão
uma d1vcrsao. se tornando seres conhecidos - pessoas agora, não mais divindades
- Se ao menos _ele se mexesse - sussurrou o homem, olhando _ e venho desenvolvendo sentimentos em relação a cada um. Perini
para Zechman, paralisado por trás do pódio. - Mexa-se' ainda é brilhante em aula. Esquadrinha as mentes dos al unos como
Eu não ~e sentia _m uito mais feliz. Zechman e suas m~lditas per- um clarividente e lhe concedo o prêmio como o melhor professor que
gunta_s, pe_nse1, suas h1pos absurdas: se agressão é um mero contato já tive. Iniciamos o estudo da "tríade básica" da lei de contrato -
ofensivo, e agressão dar um beijo de boa noite numa mulher, se ela oferta, aceitação e compensação, os três elementos indispensáveis pa-
diz recatadamenre que não? Empurrar um homem de uma ponte que ra formar uma obrigação compulsória - e Perini demonstra uma ha-
e~tá prestes a desmoronar? Ou o consent imento de alguma forma cor- bilidade extraordinária para apresentar essas noções difíceis. Mas o
rige todas essas ofensas? clima que ele cria em aula me parece cada vez mais condenável.
Imaginava quando ele acabaria com aq uilo. Não havia respostas - Segunda, terça e quarta, as manhãs em que temos Contratos,
para aquelas perguntas. Nunca haveria. pego o ônibus em Watertown e sinto um enjôo no estômago -
_ Fiq_uei imóvel por um segundo. E repeti o que aca bara de pensar: confessou-me Stephen pelo telefone, na semana passada. - Não dá
nao havia resp_?Stas. Era esse o ponto que Zechman - e alguns outros para acreditar, mas penso na aula e me sinto mal. E quando saio da
professor~s, ~ao com cama insistência - tentava nos incutir há sema- aula na quarta-feira, experimento a sensação de que a semana já acabou.
nas. As lei: sao expressas. Mas a controvérsia teórica nunca é defini- O mesmo se pode dizer de quase todos os outros na turma. O que
da . Se voce_começa em Responsabilidáde Civil com um sistema moral mais me perturba é que Perini parece perceber o nosso mal-estar e o
que determma a cul pa de quem é deliberadamente perverso - 0 cara aceita com uma reação próxima do júbilo.
que quer atrop~lar alguém - o que faz quando o atropelamento não Até mesmo Nicky Morris começou a me dar nos nervos. Sinto-me
p~ssa de um ac1deme~ Como distri_bui a _culpa quando A espera prej u- grato por sua descontração em aula, mas há momentos em que a gen-
d1c_a r B de uma maneira - assusta-lo disparando um rifle - e acaba tileza parece menos amizade e mais condescendência. Ainda estamos
fermdo-o de uma man~ira aberrantemente cômica - com um pato cain- estudando jurisdição sobre a pessoa, um tema que foi crescendo em
do em sua cabeça? Ate que ponto as noções morais básicas podem levá- complexidade. Historicamente , os tribunais só podiam exercer seu po-
lo? _Em ~ue '.11omemo você deve dizer que não é culpa de ninguém que der sobre as pessoas na área em que se situavam. Hoje em dia há uma
a vida e assim? ' avaliação precária de fatores sutis para determinar até que ponto esse
_ C~m. a compreensão de que eu não estava perdendo alguma solu- poder pode se estender. Às vezes, ao explicar esse processo, parece que
çao_ obJeuva para todos os problemas, o curso de Zechman começou Nicky tenta ser deliberadamente confuso. Quando a turma não enten-
sub_1tamente a fazer sentido. Considero-o agora como uma espécie de de, ele pode então nos falar naquele tom cada vez mais familiar que
lap1dador de idéias. Ele usa as pergumas como um martelo de ourives sugere não apenas que somos pessoas muito menos instruídas, mas tam-
trabalhando os conceitos até adq uirirem uma incrível excelência e brilho'. bém consideravelmente menos inteligentes. Ocorreu-me o pensamento
Nem todas as pessoas na turma partilham a inda meu entusiasmo. de que Nicky, o famoso jogador de futebol americano, tornou-se pro-
O hom~m e a mulher ac _meu lado ainda estão resmungando e lendo, fessor em busca de um campo em que pudesse vencer sempre.
respectivamente. Nazzano também está insatisfeito. Lendo tudo isso, parece que estou totalmente desiludido. Não é
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bem assi m. Ainda sinto muito daquele prazer sôfrego na faculdade. sânimo parecia disseminado . A maioria dos estudantes da Seção 2 pa-
Mal comecei a distinguir o bom do mau - um equilíbrio, como eu receu assumir uma perspectiva sombria do que estávamos fazendo. Uns
disse no começo. Tenho a visão de que a tarefa das próximas semanas poucos davam a impressão de extrair forças da rotina e seguiam em
será ~ ajustamento a esses pequenos desapontamentos que começo a frente inexoráveis, mas a reação mais comum era o início de uma re-
expenmentar . sistência ativa à faculdade de direito e suas exigências. Ninguém aban-
donou a faculdade, é claro. Nas primeiras semanas do período, um
Mais cedo ou mais tarde eu ~~nh_a de pousar. Há seis semanas que ve- homem, sempre se queixando gentilmente que se sentia perplexo, de-
nho flutuamo_ c~mo um gav1ao mebnado pelo céu e o fim de semana sistira de continuar. O que já aconteceu antes. Todos os anos, 2 ou
afastado do direito mostrou-me como esse vôo podia às vezes ser peri- 30/o das novas turmas deixam a faculdade. Os motivos variam: casa-
goso_ e desvairado . Precisava me controlar. Retornando na terça-feira mento, doença, o reconhecimento de que simplesmente não eram ta-
seguinte, co_n:entrando-me, e_st~dando, pressionado outra vez pelo cli- lhados para o direito . Algumas pessoas nessas categorias acabam
ma de prec1sao tensa, acabei ficando atordoado, sentindo-me mal. voltando.
~nquanto pas~ava pelas semanas intermediárias de outubro, mui- Na Seção 2, no entanto, praticamente todos decidiram insistir .
tas co1s_as contnbu1am ~ara arrefecer meu ânimo. A mortalha cinzenta Creio que queríamos ser advogados; e, além disso, quase todos chegá-
que paira sobre Cai:nbndge pelo menos seis meses por ano começara ramos preparados para aquela decepção emocional que experimentá-
a aparecer. Os esq uilos _ar~azenavam nozes. O inverno, gelado, úmi- vamos em meados de outubro. Todos tínhamos amigos que já haviam
do e despreza?º - o pnme1ro que aquele californiano temporário en- cursado a Faculdade de Direito de Harvard e nos fizeram relatos som-
frentava em :mco ~nos-: aproximava-se. Fazendo uma retrospectiva, brios. E resolvemos vir mesmo assim. Talvez a expectativa de dificul-
numa :xt:nsao m~1to m~1or do que reconheci na ocasião, vejo que as dades apressasse a chegada dos problemas.
ad~ertencias que fiz a mim mesmo nas montanhas chegaram tarde de- Qualquer que fosse a causa, muitos estavam tão insatisfeitos a pon-
mais. Já me esgotara. A força e entusiasmo iniciais com que começara to de se tornarem pouco cooperativos. A freqüência , embora nomi-
a faculdade estavam consumidos e não me restavam reservas. Tornara- nalmente exigida, começou a cair em cada cadeira, especialmente na
me ~m homem exausto, mas ainda submetido às mesmas pressões e de Mann, em que muitas vezes ficava reduzida em 15 a 2007o a cada
por isso às vezes deprimido. aula. Exceto em Contratos, de Perini, onde o recurso de se refugiar
TambéJ? ~e sentia cada vez mais vulnerável a uma porção de coi- nas últimas fileiras tornou-se comum, embora não fosse permitido. A
sas que repnm_i~a . Identificara muitos problemas nas primeiras sema- cada aula, entre seis e doze pessoas se instalavam nos últimos lugares
nas, sem perm_1t!r. que a~t~rassem meu ânimo elevado, que predomina- - aquele mundo perdido que não aparecia no mapa de lugares.
va - _os sacnf1c1os ex_ig1dos pela ética da realização, as mudanças Terry foi um dos que começaram a faltar às aulas e sentar lá atrás
pesso~1s for~adas pela mstruçao , que Gina ressaltara, as dúvidas que quando aparecia.
expenment~1 durant~ ~ temporada de entrevistas. Agora, todas essas - Não consigo mais ficar sentado quietinho - ele me disse. -
coisas e mais uma _s ene de pe~cepções novas, mas similares, começa- Estou cansado desses caras me falando, me dizendo como pensar . Te-
ra~ a exercer seu impacto. Tmha também de lidar com o fato puro nho de fazer as coisas à minha maneira.
e simples de que o novo brilho se tornara embaçado. Para meus cole- Para mim, o sinal mais dramático da mudança de atitude entre
g:1s: eu, houvera um ganho ~xt~a?rdinári_o de conhecimento e compe- os alunos ocorreu numa aula de Responsabilidade Civil, em meados
tencia'. mas no processo o mJSteno emocionante do direito começara de outubro. Zechman falava sobre apropriação indébita, um dos re-
a se dissolver. médios para o roubo. Se um ladrão leva o seu Chevy, você pode
Em tudo e por tudo , minhas expectativas estavam mudando mas processá-lo civilmente por apropriação indébita, mesmo que ele esteja
o t?m sensato e comedido que registrei em meu diário - dizend~ que sendo criminalmente julgado por roubo. Zechman descreveu a situa-
tena de m~ "ajustar" a "peq uenos desapontamentos" - disfarçava ção como uma "venda judicialmente compulsória", significando que
um desva~10, amargura e falta de controle em meus sentimentos, que o ladrão ficaria com o carro e você receberia o seu valor - uma opção
aumentar~am nas sema nas subseqüentes e até certo ponto já se acha- valiosa se o ladrão que levou o carro para uma volta bateu com o Chevy,
vam enraizados.
por exemplo. Era um ponto que muitos não haviam percebido. Do meio
~uitas das coisas que experimentei durante esse período foram da sala um homem gritou, num tom um pouco beligerante:
exclusivas, o resultado de idiossincrasias pessoais, mas um clima de de- - De onde é que tirou essa idéia?
...
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Zechman era normalmente muitO polido conosco, mas creio que o mais extrovertido dos membros da Guild era Wade Strunk . Vi-
considerou o comentário como uma quebra do decoro. Olhou friamente ha do Alabama e era um radical paradoxal. Era polido, meticuloso.
para o estudante e disse: ~ sava os cabelos curto~ e quase se_~pre estava bem vesti?º· Usavajou-
- Quando tiver uma oportunidade, leia as causas. /ards caríssimos e camisas de esuhstas, o sota9u: trazia todo o lu_x ?
Foi rápido e desdenhoso. Algumas pessoas riram, mas depois de al- e graça de uma era su~ist_a passada. Mas ele era insistente em suas cnu-

gu~s segundos uma vaia elevou-se de vários cantos da sala. Vaiar quem cas à faculdade de d1re1to. .
esta falando por algum comentário o fensivo é um antigo hábito de Har- Meu primeiro confronto com Wade ocorreu no fmal de setembro.
vard, praticado em toda a universidade. É levado para a faculdade de di- Na quinta e sexta-feira, Responsabilidade e Processo Civil eram na mes-
reito todos os _a nos pelos que vieram do Harvard College e fo ra logo ma sala, em Langdell , havendo meia hora de intervalo entre as aulas.
adotado por minha turma. Até aq uele dia, em meados de outubro, a vaia Depois de Responsabilidade Civil , um home~ senta~o ao meu _lado
esti vera reservada apenas para outros estudantes, em geral quando seus perguntou se eu achava seguro deixar os seus livros ah. Respon~1 que
comentários eram politicamente conservadores. (A maioria dos vaiado- tinha certeza que sim, que nenhum dos nossos colegas me parecia um
res parecia da esquerda.) Mas depois daquele dia em que Zechman foi ladrão.
o alvo, a vaia tornou-se uma arma do arsenal dos estudantes usada com Wade, que estava próximo, ouviu o diálogo . .
freqüência contra o corpo docente, em especial quando um professo r des- - As pessoas por aqui? - disse ele no mesmo instante. - Ora,
ca~tava os comentários de um aluno de maneira injusta ou dizia alguma a metade já é de lad rões, embora ainda não saiba._ Daqu~ a_três anos
coisa cruel. Os professores costumavam aceitar a vaia com o rosto fran- estarão trabalhando em grandes firmas de advocacia de d1re1to corpo-
zido, uma expressão sombria, ou tentavam justificar seus comentários. rativo, cujos honorários são pagos por nada _menos do 9ue o roubo.
. Houve mais e m_ais exemplos dessa confro ntação aberta. Nas pri- E muitos já roubam agora. A pasta do meu mstrutor foi roubada de
meiras semanas, muitos alunos que se sentiam contrafeitos ou infeli- dentro de sua sala.
~es presumiram que a culpa era deles, que eram de alguma forma Eu não tinha certeza se Wade falava sério . Comentei que se trata-
incompetentes. Agora, deixaram de se culpar e denunciavam a insti- va de uma faculdade grande e que provavelmente havia uns poucos
tu!çã? ~ o e~tilo educacional. O método socrático, diziam, era injusto ali que eram capazes de qualquer coisa. E não havia a menor dúvida
e. m11m1da11vo. Aprendíamos em aula muito sobre a técnica pura, de que no futuro algumas pessoas boas poderiam se deixar envolver
dispensando-se bem pouca atenção aos deveres éticos dos advogados por instituições perniciosas.
com a sociedade. E o clima na HLS era muitas vezes amargamente de- - Mas não acha realmente que todos por aqui são desonestos,
plorado - uma fá brica de robôs, as pessoas começaram a chamá-la; não é mesmo? - indaguei.
uma panela de pressão legal. - Claro que não - respondeu Wade . - Só a maioria. Isso mes-
Como acontece com freqüência, os mais vigorosos em suas críti- mo a maioria é absolutamente corrupta.
cas eram os membros da Harvard Law Guild , uma organização de es- ' Muitos dos colegas de Wade tinham uma opinião igualmente ca-
tudantes dedicada à reforma progressista na estrutura e sistema ridosa a seu respeito. Em meados de outubro havia alguns que riam
educacional da facu ldade de direito. A Guild pro movera uma reunião alto cada vez que Wade falava em aula. Todos sabíamos que seria a
- -- · - ---. ..,, no início do ano letivo e muitos homens e mulheres da turma haviam mesma conversa de marxismo barato, uma descrição de como a dou-
participado . Kyle, o egresso de Harvard em meu grupo de estudo, era trina em particular que estávamos estudando fora pr?jetada ~ara a pro-
um mem?~º· Também o era Helen Kirchner, a mulher que se queixara teção das classes dominantes e sua riqueza. Depois de mais um dos
da agress1v1dade dos colegas. Na turma havia vários outros participantes arroubos irracionais de Wade, um dos membros do grupo dos gozado-
da Guild. Durante as primeiras semanas, a maioria se mantivera co- res abordou-me ao final da aula . Acenou com a cabeça na direção de
medida, partilhando as queixas apenas entre si. Mas à medida que a Wade, elegantemente vestido como sempre , e disse, imitando o sota-
insatisfação no meio do período se tornou mais patente, os membros que sulista : . .
da Guild, sentindo um ambiente mais propício , passaram a se mani- - Depois da revolução, todos serão obrigados a vestir Yves St.
festar com freqüência . De vez em quando desafiavam os professores Laurent.
em aula, especialmente Mann, que muitas vezes assumia posições mo- Em meados de out ubro, no entanto , passei a conceder mais aten-
deradas ou conservadoras em assuntos controversos como sistema pe- ção a todos os membros da Guild, até mesmo Wade, que eu _sabia ?an-
nitenciário, reforma da fiança e crimes de colarinho branco. car o tolo apenas por paixão, por uma preocupação genu1n a. Tinha

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alguma cautela em relação ao pessoal da Guild. Eram garotos de Har- torcer o bigode descuidado e a propor acordos: um dia , com ele pre-
vard e Yale, Pa rk Avenue e Beverly Hills, que discorriam com prazer sente, poderíamos especular. No outro dia, sem ele, faríamos uma re-
sobre os apuros dos pobres . Mas eu admirava a franqueza deles e, à visão da matér ia. Como uma última es perança, ele até propôs tirar
medida que o tempo foi passando, comecei a especular se devia mes- cópias para nós do sumário que estava preparando para o o utro gru~o .
mo, independente de qualquer outra coisa que se disesse a seu respei- Não adiantou . Kyle, incisivo e determina do, continuou a repeur :
to, considerá-los completamente errados. - Alguém tem c!e sair, a lguém tem de sair .
Eu disse a Sandy que a decisão seria sua . Disse também que era
contra a sua súbita exclusão e que se ele quisesse ficar tud o bem por
mim, embora achasse que fora um erro de sua parte esconder a parti-
21110/ 75 cipação no outro grupo; e até onde eu sabia, todos sempre presumi-
(Terça-feira) ram que os grupos de estudo eram excl usivos.
Sandy ainda tentou argumentar, mas acabo u declarando que faria
0 que preferíssemos. Aubrey parecia ter o peso crucial na questão e sa-
Um dia difícil. Um incidente perturbador no almoço. cudiu a cabeça em negativa. Desejara um grupo menor desde o início.
Há a lgu m tempo que ve nho sentindo uma falta de coesão em meu Com murmúrios de desculpas de todos, Sandy recolheu seus livros
estudo~ pensei que o grupo poderia ajudar. Conversando a respeito, e foi embora. Continuamos reunidos, a fim de planejar novas ativida-
descobn que todos os outros sentiam a mesma coisa. Parecia o mo- des para o grupo. Mas toda a situação permaneceu em minha cabeça pelo
mento oportuno para uma reunião, numa tentati va de superar os pro- resto do dia. Sentia urna compaixão frustrada, irritação pela obtusida-
blemas com o grupo de estudo e consolidar os objeti vos. Assim, com de de Sandy e vergonha por termos sido tão intransigentes a ponto de
a exceçã~ de Stephen, que já tinha um compromisso para o almoço, expulsá-lo. Que diferença realmente faz para nós se ele pensa que pode
nos reu111mos todos ao meio-dia. se dar melhor com a participação em dois grupos? Sentia-me perturba-
As queixas em relação ao grupo afloraram no mesmo instante: mui- do pelo que a florara em cada um de nós. Kyle se mostrara implacável
to desorganizado, sem compromissos, sem rumo, extremamente agres- e Aubrey um tanto indiferente. Terry sempre se incomodara com o com-
sivo na discussão (um argumento de Au brey, di rigido a mim , eu acho) portamento a fetado de Sandy e estava ansioso em livrar-se dele. E eu não
e gente demais. me empenhara na defesa do direito de Sandy de permanecer no grupo.
Essa última reclamação foi de Kyle, que continuou a insistir. Stephen ficou consternado quando lhe contei a história naquela
- Temos gente demais. Assim não é possível ter uma discussão noi te , pelo telefone.
eficiente. Não podemos nos concentrar em qualquer coisa. Não dá pa- - Aquele desgraçado do Kyle! - ele exclamou .
ra continuar dessa maneira. - E Kyle finalmente declarou: - Temos Reconheci que nenhum de nós exibira o que tinha de melhor na-
de redu zir o grupo para quatro pessoas, cinco no máximo. quela tarde. Estou começando a ter uma noção do que pode decorrer
A sugestão evidente era a de que expulsássemos alguém e isso me do encontro com o inimigo.
deixou ofendido. Era exatamente o que eu estava dizendo a Kyle quando
Sand y Stern , inocente o u culpado, interveio s ubitamente:
- Não vão me expulsar só porque estou em dois grupos, não é - Pois não, Sr. T urow? - disse o professor Man n, o lhando para seu
mesmo? mapa de lugares, a fim de confirmar meu nome .
Dois?, todos perguntamos. Sandy admitiu que fazia pane de ou- Era a quarta semana de outub ro e discutía mos os crimes inco n-
tro grupo, que se ocupara durante todo o período em fazer s umários clusos - crimes te ntados, mas jamais consumados. A causa era a de
d~s matérias e preparar nülas de revisão. Explico u que ingressara tam - um homem que entrara num bar , bêbado e visivel mente tra nstornad o.
bem em nosso grupo porque parecíamos mais interessados numa dis- Brandira uma arma , ameaçara di versos fregueses e finalmente, com
cussão mais elevada e especulati va do direito, o que achava que faltava a arma apontada para a cabeça do garçom , puxa ra o gatilho. A arma
no outro grupo . não disparara . Mann nos pergu ntara como o caso seria classificado,
- Não queremos mais esse tipo de coisa por aqui - declarou nos term os do Código Penal Modelo. Os a lunos folhearam o código
T erry. - Vamos começar a acertar tudo agora . e apresentaram diversas sugestões: agressão , ten tativa de homicíd io.
Sandy recusou-se a aceitar a insinuação. Continuou sentado a re- O próprio Mann indago u se não poderia ser uma tentativa de homicí-

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dio culposo. Eu tinha a resposta para isso, muito inteligente, pensava se mais acentuada a sensação de anonimato, de falta de identidade -
e levantei a mão. '
e o único tipo de distinção disponível era ser conhecido como compe-
- Não poderia ser tentativa de homicídio cu lposo - declarei. tente, in teligente, de mente ágil, bem versado no direito. Assim, nosso
- As tentativas de cri me são intencionais e o homicíd io cu lposo é um anseio por uma identidade começava a se misturar com nossa busca
crime não-intencional. de sucesso.
'· As pessoas sorriram ao meu redor. Ouvi alguém soltar uma excla- Por sua vez, isso levava a outro problema. À medida que os estu-
mação de admiração . Acertara em cheio. Um bom ponto. dantes ficavam mais ansiosos por brilharem, também se tornavam mais
Mann baixou os olhos do teto e fitou-me gentilmente. conscientes de que não havia qualquer indicação segura quanto ao seu
- Não está ouvindo o vento assoviar por trás de você? nível de aprendizado. Embora viéssemos trabalhando demais há dois
Gelei. meses, ninguém podia sequer ter certeza de que seria ap rovado na ma-
- Infelizmente, você entrou pelo alçapão no teto - ele acres- téria. Obviamente, as chances eram a nosso favor. Havia poucos Fs
centou . - a nota mais baixa - na Faculdade de Direito de Harvard . Há qua-
Enquanto eu sentava, Mann explicou que uma tentativa de homi- renta anos um terço de cada turma era reprovado, mas hoje quase nin-
cídio intencional, havendo circunstâncias atenuantes, como embriaguez guém deixa a facu ldade por problema de aproveitamento. Mesmo assim,
ou insanidade, podia ser classificada como tentativa de homicídio cul- considerando-se a dificuldade das matérias, a poss ibilidade de alguma
poso, pelo código. coisa próxima ao fracasso, por mais rem ota que fosse, às vezes convi-
Eu cometera um erro. Não era o grande disparate do ano, mas dava à reflexão. Embora eu quisesse brilhar, para mim - , e imagino
mesmo assim sentia-me profundamente embaraçado - pior do que is- que para os outros também - quanto menos defi nida se tornava mi-
so, aflitivamente embaraçado. Aquilo parecia estar me acontecendo com nha posição, mais minhas fantasias sinistras aumentavam - uns pou-
bastante freqüência nos últimos tempos - levantava a mão para dizer cos pensamentos otimistas ofuscados por visões, em pânico, de estar
coisas que eram de alguma forma impróprias ou completamente erra- sendo enxotado para a rua.
das. E nenhum de nós tinha facilidade para suportar os erros em aula, Esse medo do fracasso só teria fim qua ndo prestássemos os exa-
muito menos se isso começasse a se repetir. mes em janeiro. Não haveria notas até lá e o reste único seria a princi-
- Não é horrível? - Stephen perguntou-me um dia, depois de pal referência para determinar o aproveitamento em cada disciplina.
tropeçar numa resposta em Processo Civil. - Há anos que não me sen- Ansiando talvez pela segurança que os exames proporcionariam - e
tia tão mal. esperando também criar condições para conseguir bons resultados -
Çlina contou depois que ele remoera o erro por horas. muitas pessoas começara m a se prepara r já no início de outubro. En-
A medida que o ano passava, o desempenho na aula assumia uma quanto isso, estávamos sempre em busca de sinais que evidenciassem
importância crescente. Agora nos empenhávamos em avaliações diá- nossa boa situação. Os est udante que po suíam as médias mais altas
rias do desempenho dos colegas na aula, especialmente quando eram do teste nacional especulavam com freqüência se haveria uma relação
chamados, quase como se fosse uma competição atlética. entre o teste e as notas na faculdade. Em di versas ocasiões me disse-
- Jack foi sensacional hoje. ram que eu ocuparia uma posição elevada na turma, por ser mais ve-
- Também acho, mas senti pena dele quando Peri ni o arrasou lho e casado; e houve muitos momentos em que repeti esse critério para
com aquela pergunta. McTerney foi até o fundo da questão. Ela é mes- mim mesmo , embora sem muito entusiasmo.
mo muito boa. Mas era na sala de aula, com os 140 a lunos reunidos, enfrentando
As razões que nos levavam a fazer essas avaliações do que aconte- o pro fessor, que a competição do exame era melhor simu lada; e era ao
cera em aula eram complexas. Em termos superficiais, imagino que era que acontecia ali que conferíamos o maior valor. Quanto mais as pes-
apenas mais um sinal de como nos tornáramos competitivos entre nós. soas tendiam a considerar o desempenho em aula como um índice de des-
Mas algo vinha acontecendo recentemente que estava levando ao exa- taque, mais nos sentíamos pressionados a aparecer da mel hor fo rma
gero o ímpeto e a ambição de cada um. Há dois meses vínhamos todos possível. A proibição extra-oficial de fazer pesquisa externa fo i inad ver-
fazendo exatamente a mesma coisa, um dia depois do outro, escutan- tidamente levantada no início de outubro, quando Sandy Stern levantou
do os mesmos professores, fazendo as mesmas leituras, efetu ando as a mão numa aula de Contratos. Estudávamos a causa de um cidadão da
mesmas descobertas. Além disso, havia pouco tempo para buscar "val- Pensilvânia que se apresemara como volu ntá ri o para o serviço militar,
vúlas de escape" fora da facuidade. Por tudo isso, para muitos tornara- durante a Guerra Civil. Prometera que enviaria pa ra a esposa uma pen-
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são de vinte dólares por mês dura nte sua ausência, mas nunca o fi zera. te horas por dia, 140 horas por semana - estudantes que estavam
A esposa o processara por quebra de contrato e perdera. Perini usou a a biblioteca no momento em que abria, só interrompiam seus estudos
causa para ilustrar as maneiras diferentes com que os tribunais tratam ~or apenas meia hora para ~ jantar todas ~s noites, ~ue repassavam
os acordos entre pessoas da fam ília em comparação com os acordos co- suas anotações em aula ao fmal de cada dia e as daulografavam n?
merciais - um tema a que voltou com freqüência durante o ano. Sandy, fi m de semana. Essas histórias eram assustadoras. Estava sendo fi-
no entanto, fora muito a lém em suas pesquisas. xado um pad rão que nem todos podiam acom panhar. Ao que pa-
- Tenho uma observação interessante sobre esse caso - disse ele. recia, algumas pessoas se adi antavam, enquanto outras ficavam para
- Pensei que o marido, já que servira no exército da União, teria uma trás.
pensão da Guerra Civil; e se ele tivesse morrido, a esposa poderia rece- Em aula, sem dúvida, começava a parecer que, apesar de todas
ber alguma coisa de qualquer maneira. Por isso , fui a Widener e en- as im pressões iniciais de paridade, havia mesmo alguns qu_e se dest~ca-
contrei o registro oficial dos pensionistas da G uerra Civil. Lá estava, vam. Todos já ouvíramos falar de estudantes que pareciam magica-
bem claro, em 1877, a Sra. Tish, como sobrevivente, começando a re- mente competentes e só surgiam de quando em quando, o tipo que só
ceber oito dólares por mês. tirava as notas máximas nos exames. Dizia-se que alguns professores
A reação da turma à pesquisa história de Sandy fo i uma mistura haviam sido estudantes assim e muitas vezes nos perguntávamos sobre
de riso indignado e vaia inevitável. Perini , que já descobrira que a obs- a possibili dade de haver alguém tão bem dotado em nossa turma. Ulti-
tinação ingênua de Sandy o convertia no alvo perfeito, disse que esta- mamente estava parecendo que havia alguns candidatos prováveis. Nes-
va desapontado - que esperava que Sandy, sendo Sandy, fizesse uma sas semanas, duas ou três pessoas havia m começado a se mani festar
viagem a Harrisburg para descobrir se o fantasma prejudicado da Sra. em aula, exibindo algo a lém do que já fora demonstrado por Clarissa,
Tish não continuava a vaguear pelos cemitéri os. Wally Karlin e alguns dos outros que falavam regularmente desde o
Contudo, apesar do humor com que os esforços de Sandy fo. início do ano letivo. Clarissa e Wally continuavam a se manifestar com
ram recebidos, tornou-se evidente, em poucos dias, que serviram pa- freqüência. Muitos de seus comentários não passavam de coisas que
ra declarar aberta a temporada de trabalho externo, um mês antes 0 resto dos alunos apenas se sentia muito inibido para dizer. Mas as
do prazo. Várias pessoas admitiam agora que pesquisavam o hor- pessoas que agora se destacavam, do~adas de ~m-talento natu:al e mui-
nbook de Perini, e a maioria informava que muitos de seus comen- tas vezes com as informações recolhidas na b1bhoteca, pareciam fazer
tários em aula pareciam sair diretamente do livro . Muitos estudan- sempre comentários extraordinariamente penetrantes . E ao contrário
t~s _começaram a encarar o hornbook como parte da leitura obriga- do desagrado irônico com que Wally, Clarissa e os outros eram trata-
tona, na esperança de se saírem bem quando chamados. Ainda mais dos , essas pessoas - "as estrelas" , como eram às vezes cha ma~as ,
desconcertante foi quando descobri subitamente que vários colegas amargamente - provocavam sentimentos próximos à aversão, mui tas
tinham sido vistos na biblioteca lendo artigos de revistas de direito vezes sem outro motivo além do medo que muitos sentiam ao se com-
capítulos ilustrativos, comentários sobre as causas registradas em nos: pararem com eles.
sos livros .
Ned Cauley, por exemplo, magro e desengonçado , com um f~rt_e
- Não sei o que essa gente pensa que está provando - comen- sotaque do Maine, to rnara-se em outu bro a estrela do curso de Penn~ .
tou Tony Dawes, um colega, quando o encontrei um dia na biblioteca. Era excepcionalmente ágil e também amava a lei de contrato. Era evi-
Tony estudava regularmente perto do local em que eram guarda- dente que Perini o admirava. A extensão de sua convicção a respeito
dos os tratados e me contou que havia uma súbita corrida de alunos do talento de Ned foi demonst rada dramaticamente um dia, quando
da Seção 2 à biblioteca. circulava pela sala, à espera de que algum aluno se apresentasse com
- Os professores não são idiotas. Sabem o que essa gente está a resposta exata para uma pergunta. Subitamente, sem olhar para trás,
fazendo. Tudo ficará evidente ao fin al do ano. Nenhum deles vai tirar Perini virou-se, apontou e disse o nome de Ned, que deu a resposta
notas melhores do que os outros.
que outros seis haviam errado. .
. . Nem _todos esta~am convencidos de que era verdade o que Tony Ned se desempenhava de maneira extraordi nária todos os dias. E
d1Z1a. Muitos se sentiam pressionados a consultar outras fontes além mais pessoas na turma faziam caretas sempre que seu no_me era m_e n-
d?. li~ro de ca_usas. e empenhar cada vez mais tempo no estudo. Ou- cionado. Alguns me garantiam que Ned não era tão intehgente assim,
vi mumer~s h1stón as de estudantes que pareciam, para aqueles que que seu sucesso não passava de uma espécie de ilusão acadêmica e que
os conheciam bem, não fazer outra coisa senão estudar direito vin- só o conseguia por mergulhar no estudo dos tratados de Contratos.
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A um pon_to qu~ me envergonha, muitas vezes concordei. De certa for.
ma, P.!re~1a óbvio ~ue qualque~ um_ que tinha a resposta certa com tanta direito açambarcar um livro que 140 outros estudantes podem estar pro-
frequenc1a só podia ser um v1gansta e um filho da puta. curando. Ignorei isso e perguntei a Harold se poderíamos pegar o livro
Qu~ndo finalmente passei a conhecer Ned, ao final do outono para dar uma olhada na causa. Ele acenou com a mão para que eu
descobri que era uma das pessoas mais bem-humoradas e divertid ' levasse o livro.
da turma. Dava um curso de culinária chinesa na universidade liv~! Aubrey e eu lemos o sumário juntos. A ferrovia violado ra tivera
?~
--:- o centro de _troca habilidades do diretório acadêmico - conhe- de pagar pelo uso da terra, mas o tribunal recusara-se a ordenar a re-
moção do cano. Tendo em vista o que sabíamos, o resultado parecia
c1a_teatro, polft1ca'. musica. Se era um destaque em Contratos, isso acon-
tecia porque seu interesse e talento eram genuínos. estranho, embora fosse um bom meio-termo das posições assumidas
. C_laro que_havia um ou dois estrelas que, mesmo descontando-se pela turma. (Soubemos mais tarde que esse processo de Iowa desenca-
a mveJa, pareciam merecer um pouco da hostilidade que geravam. Ha- deara a primeira formulação da lei contemporânea de ato nocivo aos
rold Hochschild ~ra um homem pequeno, uma voz áspera e uma cabe- interesses públicos.)
ça de cachos ruivos grudados no crânio. Era bastante arrogante Levei o livro de volta para Harold.
E~!udara em Swarthmore e muitas vezes expressava pessoalmente a opi~ - Não acha que é um resultado bastante estranho? - perguntei.
Ele estava lendo e não levantou os olhos.
mao de que todos os demais da turma tinham uma educação de segun-
da classe. Em a~la, Harold adorava falar num tom monótono, baixando - Ainda não sei que lado venceu - acrescentei.
a cabeça enfaucamente em determinados momentos, como um líder Harold continuou calado. Fitei-o por um momento , depois la r-
de_ orquestra na mar~ação do tempo forte. Ele melhorara durante a guei o livro em cima da mesa.
primavera, mas ao final de outubro Harold era o alvo incontestável - Obrigado de novo.
do desprezo dos colegas . Mais ou menos nessa ocasião tive algum con- O silêncio persistiu.
tato co°: e!e, o que me pen~itiu chegar a uma conclusão própria. Contando esse fato nos dois dias seguintes, fui informado por co-
Na u_lt1ma semana domes, quando estudávamos a lei de violação legas que Harold tinha a política de não falar com ninguém quando
de propriedade, Zechr~1an provocou um acirrado debate na aula. estudava. Absolutamente ninguém. Não seria interrompido no meio
Apresentara-nos uma h1po complicada sobre duas ferrovias com direi- da tarefa gloriosa. Receber um aceno de mão de sua parte, para pegar
tos de pa~sa_gem adj~centes. Os representantes de uma ferrovia deviam o livro, foi um acontecimento milagroso, as pessoas me disseram, mais
te~ perm1ssao para mvadir a propriedade de outra, a fim de instalar do que se poderia esperar se eu anunciasse o segundo Dilúvio.
ah, num trecho d: terra s~m utilida~e, um cano de escoamento para Stephen tinha um senso de humor macabro e começou a r ir quan-
a água que obstru1a seus tnl~os? A discussão prolongou-se por 45 mi- do lhe contei a história.
nutos: A:s ~essoas que acreditavam nos direitos de propriedade abso- - Sabe o que é mais sensacional? - ele perguntou, ainda rindo .
l~tos m s1stnam qu~ a violação não deveria ser permitida e que o cano - Sabe o que adoro neste lugar? Hochschild vai ser mesmo o prim ei-
tl~~a de ser ~emov1do. Outro~, c~m _i~ual veemência, alegaram que a ro. Ele é que terá as melhores notas. Isso é meritocracia.
~tJhdade social de uma ferrovia s1g01f1cava que a violação deveria ser Eu concordava com Stephen, mas tinha dificuldade para enco n-
ignorada. Zechman revelo u que sua hipo era na verdade uma situação trar alguma graça na situação. A idéia me deprimia. A palavra que Ste-
concreta, de uma causa anti ga em Io wa. phen usara, "meritocracia", aflorava mais e mais em minha cabeça.
- Quem venceu ? - indagaram várias pessoas . Significava que a Faculdade de Direito de Harvard era um lugar em
Zechman, corno sempre, foi enigmático . que apenas o mérito, apenas a inteligência pura e a perseverança, am-
- A ferro via - respondeu ele, escrevendo em seguida a citação bas em grau extraordinário, eram os meios exclusivos para se alcançar
no quadro-negro. o sucesso. Cada vez mais, eu me convencia de que era deficiente nos
, . f?epois de uma reunião do grupo de estudo, Aubrey e eu fomos dois fatores. Sentia-me muito exausto para ser um estudante de vinte
a b1?hotec~ p~ra pesquisar o caso. O volume não se encontrava na pra- horas por dia e muito atordoado para procurar fontes externas depois
teleira. Av1ste1 Harold Hochschild sentado ali perto . Desconfiado fui das doze a quatorze horas em que estudava todos os dias. E em com-
a~é seu compartimento. E, como era de se es perar, o vo lume desap'are- paração com pessoas como Harold e Ned, não tinha nada de valor a
c1do estava ali, sem ser lido, enquanto Harold estudava. dizer em aula. Cometia erros .. . na verdade, disparates tolos. Com a l-
Nem é preciso di ze r que se considera a bominável na faculdade de guma sorte, era medíocre. E a convicção da minha medjocridade era
amarga e infeliz. Renunciara a uma boa carreira, alguma segura nça
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e distinção, para ser engolfado na horda, e me confrontar com uma Desde então, ele tem saído quase todos os dias com um grupo de
inteligência que ofuscava a minha. A vergonha pelo que perdera e era alunos. Nós o levamos ao Ferdinand's, um restaurante francês, perto
incapaz de fazer se tornara intensa; e no dia em que me embaracei ao da Harvard Square . Ele permaneceu quase como o homem no pódio
cometer aquele erro na aula de Mann , fiquei tão abalado que os senti- - provavelmente o ser humano mais meticuloso que já conheci, a pes-
mentos se agravaram a um ponto angustiante. soa que mais deseja ter o seu mundo em perfeita ordem. Teve de virar
Saindo daquela aula, eu estava tão próximo das lágrimas quanto a salada de lagosta até o â ngulo apropriado antes de poder comê-la.
jamais ficara em dez anos. Queria explicar a Mann, a todos os cole- Mesmo assim , ele foi cati vante, encantador, embora de uma ma-
gas, que não era realmente tão estúpido ou incauto, que era capaz de neira um tanto árida. Teve o cuidado de nos fitar nos olhos enquanto
realizar muitas coisas meritórias. Mas não havia como provar isso, pa- falava; de um modo geral, a conversa foi sobre alguns dos projetos
ra eles ou para mim mesmo. que Perini realiza fora da faculdade. Ele oferece consultoria a muitos
Quando me recuperei um pouco, jurei que nunca mais permitiria republicanos no Congresso e vários no mes importantes de Washing-
que aquele sentimento me dominasse. Mas isso não significava assu- ton afloraram durante o almoço: Percy, Rhodes, Fred Graham, di ver-
mir uma visão mais equilibrada de meus sentimentos ou uma perspec- sos senadores. Fiquei surpreso ao saber que Perini trata os senadores
tiva mais ampla do que estava acontecendo em geral. Encontrava-me da mesma forma que os estudantes e experimenta a mesma satisfação
muito absorvido por tudo àquela altura. Em vez disso, prometi que com isso. Descreveu uma discussão que teve num resta urante com um
não falaria em aula. O que implicava me sentir distante e frustrado político, o presidente de um subcomitê para o qual trabalhava.
sentado em silêncio em cada aula; significava que eu cedia ao medo'. - Consegui deixá-lo encurralado em determinado momento, ab-
Mas preferia sofrer tudo, em vez de enfrentar outra vez a terrível ver- solutamente encurralado. Fiquei por cima e ele foi se torna ndo verme-
gonha. Por semanas não me deixei ouvir. lho até o pescoço. Uma coisa maravilhosa.
De um modo geral, ele se mostrou muito mais razoável em deter-
minados problemas do que eu esperava - por exemplo, a ação a fir-
mativa na admissão de mulheres e minorias na faculdade de direito.
301/0175 Tive uma discordância com ele, não intencional, quando comentei que
(Quinta-feira) há uma ênfase deliberada na faculdade ao direito corporativo.
- Nego isso - ele protestou com veemência. - Nego isso cate-
goricamente. São os estudantes e não os professores que enfatizam o
Basicamente, uma semana vazia, com dois momentos mais animado- direito corporativo. Vocês são os consumidores aqui. Nós não esta-
res - os almoços com dois de nossos professores. Nós cinco do grupo mos fazendo fila para os cursos de Corporações e Planejamento Em-
de estudo saímos com Perini ontem e com Zechman hoje. Foram ho- presarial Avançado. Deviam comparar as matrículas nesses cursos com
ras interessantes, embora eu não ficasse muito convencido de que ti- Direito de Família ou Processo Penal.
vessem proporcionado algo de mais profundo. Suponho que é um argumento válido. Ele foi agradável em geral
Almoçar com professores é uma instituição na HLS. É uma das ma- - franco, se não mesmo descontraído. O contato íntimo acentuou a
ndras menos penosas pelas quais os professores tentam atenuar uma das minha compreensão dele como pessoa. Creio que Perini só se sente à
críticas mais persistentes - a de que não há contato suficiente entre profes- vontade quando está dando aula, por trás do pódio, na plata forma .
s?res e alunos. A maioria dos professores parece sempre disponível aos con- Parece ter uma personalidade de sho wman.
vites para almoço e alguns sugerem abertamente a companhia de pequenos Quanto a Zechman, ele provou ser o mesmo ho mem tímido e for-
grupos de estudantes em um drinque ou refeição. Peter Geocaris comen- mal que se apresenta em aula. Com ele, fomos a um lugar muito me-
ta que no passado o professor Mann chegava ao ponto de pagar as contas. nos imponente, um pequeno restaurante italiano, onde podíamos sentar
No caso de Perini, o convite foi apresentado com a formalidade e conversar à vontade. Zechman falou muito sobre o exercício da ad-
típica. No início do mês, ele correu os olhos pelos estudantes ao redor vocacia. Passou os últimos anos trabalhando numa das grandes fir-
firmemente, antes de começar a aula. ' mas de Washington, apresentando-se com freqüência no Supremo
- Tenho um comunicado a fazer. - Ele se animou um pouco Tribunal. Contou algumas histórias insossas sobre o Supremo, espe-
e levantou as mãos. - Estou disponível para almoçar com vocês. Ca- cialmente sobre o ministro Douglas, de quem foi assistente na década
da um paga sua despesa. de 1950, e que ai nda encontra socialmente. Admira-o muito. De um

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modo geral, Zechman parecia satisfeito por estar de volta à faculdade. rante o primeiro período, o Conselho da Faculdade de Direito, que re-
"É uma pessoa brilhante, um estudioso profundo" , foi um comentá- presenta ?S estudantes, ~r?pôs que no futuro um curso de cada seção
rio que repetiu algumas vezes, a respeito de várias pessoas - sua idéia do primeiro ano fosse mm1strado em pequenas turmas de 35. Esse sis-
eu acho, de um grande elogio. Quando perguntou como andava se~ tema - um curso menor no primeiro ano - já foi adotado em muitas
1. curso, todos respondemos que gostávamos muito, uma reação que é outras faculdades de direito - Yale, Califórnia (Boalt), Minnesota.
quase universal agora. Em nosso almoço com Perini, ele surpreendeu-me ao declarar que era
favorável à proposta e achava que todas as turmas, em todos os anos
Como já mencionei no diário, o almoço com os professores é uma ten- não deviam ter, em termos ideais, mais do que quarenta pessoas. Mas
tativa tradicional e muitas vezes sincera de promover algum contato a maioria do corpo docente da HLS julgava a proposta muito dispen-
pessoal, numa situação que não é muito favorável. Com 140 pessoas diosa e inviável, e nunca a levou a sério.
numa sala de aula, é mínima a possibilidade de professores ou alunos Para mim, no entanto, a proposta fazia sentido. Quando me deci-
virem a se conhecer bem. A situação não melhora no segundo e tercei- dia entre as faculdades de direito, diversos amigos me aconselharam
ro anos, quando as turmas são ainda maiores. Até certo ponto, o pro- a ir para Yale, porque era a que tin ha a proporção mais baixa de estu-
blema do tamanho das turmas é exclusivo de Harvard, onde há mais dantes/ professores em todo o país. Minha tendência fora a de ignorar
estudantes para acomodar do que em qualquer outro lugar; mas em o argumento, mas agora podia compreender como um contato mais
todas as faculdades de direito americanas a proporção de alunos para regular com os professores seria uma oportunidade valiosa para todos
professores é notoriamente elevada, talvez só ri valizada, entre as insti- nós.
tuições educacionais americanas, pelas faculdades de administração. Por um lado, uma grande parte daquela sensação corrosiva e an-
É outra das dificuldades institucionais muitas vezes atribuídas ao dire- gustiante de não saber como se está indo poderia ser atenuada com tur-
tor Langdell . Ouvi um professor comentar mais tarde, em conversa com mas menores. A maioria dos professores era avessa a nos conceder
um grupo de estudantes: qualquer tipo de elogio em turmas grandes, não importava quão ex-
- Uma das grandes contribuições do diretor Langdell ao ensino traordinário fosse o desempenho de um aluno . Creio que pensavam
jurídico foi torná-lo barato. Instituindo o método socrático, ele encon- que isso só contribuiria para aumentar o ressentimento, num ambiente
trou uma maneira de instruir 140 pessoas ao mesmo tempo, uma for- que já era emocionalmente tenso. Nicky Morris podia de vez em quan-
ma de produção educacional em massa. Provou para os reitores de do elogiar os estudantes com extrema habilidade - um rápido e ca-
universidades de toda a América que podiam ganhar dinheiro com a sual " Muito bem", depois que alguém falava - mas essa capacidade
abertura de uma faculdade de direito, contratando apenas uns poucos podia ser uma decorrência da descontração de Nicky na sala de aula,
professores. difícil de ser igualada por muitos outros professores. Em tu rmas me-
Alguns professores negam que o motivo para turmas grandes seja nores, porém, os professores poderiam facilmente conceder aos indi-
o fator econômico. Um assistente do corpo docente, Thomas Heinrich , víduos as pequenas doses de atenção pessoal que lhes permitiriam uma
que dá cursos de Administração e Direito Tributário, foi designado para tranqüilidade sobre seu progresso, para não mencionar o benefício adi-
nosso grupo de Métodos Legais. Heinrich convidou-nos a todos para cional de assegurar aos estudantes um senso de auto-reconhecimento
ir à sua casa uma noite e durante a conversa defendeu as turmas gran- como pessoas distintas da multidão .
des, argumentando que proporcionavam um ambiente melhor para o O outro fator que eu achava ser favorável a turmas menores era
aprendizado. o de que, numa atmosfera mais branda, o ensino seria melhor e mais
- Vocês têm Smith ali e Johnson aqui, ambos querem argumen- completo. Uma porção de obstáculos no aprendizado do direito , co-
tar sobre o mesmo ponto. E há também Green, que tem mais alguma mo qualquer outra coisa, é idiossincrática - pequenas rugas mentais
coisa a dizer. Com 140 pessoas na mesma turma, há uma diversidade que parecem vincar todos os cérebros na turma, menos o seu. Às vezes
maior de reaçêes e respostas mais definidas. os colegas, que também estão começando a tomar conhecimento do
Heinrich também ressaltou que a pressão de falar numa turma assunto, não podem ajudar; mas os professores são capazes de endi-
grande pode proporcionar um bom treinamento a pessoas que muito reitar tudo num instante. Contudo, freqüentemente era impossível al-
em breve terão uma carreira nos tribunais. cançar os professores. Depois da aula, havia aquele espetáculo
Qualquer que seja o motivo para as turmas grandes, pode-se apos- constante, quinze ou vinte pessoas agrupadas em torno do professor,
tar que muitos estudantes prefeririam um grupo mais reduzido. Du- puxa-sacos, umas poucas pessoas que estavam determinadas a não per-

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der uma única palavra do professor, não importava quando pronun- saíam do refeitório dos professores. E não eram muitos os professores
ciada , além dos que tinham alguma pergunta genuína para fazer , mas que andavam pelos túneis subterrâneos que ligam todos os prédios da
que parecera muito insignificante ou era pessoal demais pa ra incomo- faculdade, usados pelos estudantes no inverno. A maioria dos profes-
dar toda a turma durante a aula. Visitar os professores em seus gabi- sores parecia preferir a neve e o frio a confraternizar com os estudantes.
netes era ainda mais complicado. Eles saíam com freqüência e você Lembro como Peter Geocaris se divertiu no dia em que o detive
relutava em marcar um encontro se seu problema era pequeno. Alguns para perguntar por que nunca enco ntrava um professor na biblioteca.
professo res - Morris, Zechman - eram na verdade extremamente ge- - Porque eles têm a sua própria biblioteca - respondeu Peter,
nerosos com seu tempo . Mas os alunos tinham quase sempre a nítida sorrindo.
impressão de que a maioria dos professores preferia não ser incomo- Nunca me ocorrera que com a maior biblioteca numa faculdade
dada em seus gabinetes. Passaram-se sete semanas antes que Mann de direito do mundo, a apenas cem metros de distância , os professores
anunciasse o número de seu gabinete na faculdade, e mesmo assim acres- pudessem fazer outra, no quinto andar do prédio do corpo docente,
centou: da qual os estudantes estão normalmente excluídos .
- Não apareçam por enquanto, pois não vão me encontrar lá. O fato dos professo res serem tão arredios tendia a aumentar a re-
Compreendo até certo ponto o desejo de um professor de ser dei- verência com qu e os encarávamos. Nas circunstâncias, os professo-
xado em paz. Os estudantes, especialmente tão tensos e ansiosos por res eram para nós figuras de grande poder. Podiam intimidar. Podiam
conhecimento como éramos, podem devorar um professor. Na HLS, esclarecer. Podiam estragar nossos fins de semana e noites com tare-
no entanto, eu já começara a sentir, em meados do outono, que adis- fas. Podiam encher nossas cabeças de idéias com que nos debatíamos
tância en tre professores e alunos - não apenas em termos de sala de noite e dia. Mais importante ainda, eram mestres de renome mundia l
aula, mas também num nível mais pessoal - era excessiva. Uma parte no campo do direito - cujo aprendizado contava agora com toda a
do problema era de personalidades. nossa atenção. Sob muitos aspectos, eram as pessoas que mais quería-
- Não sei se vocês gostariam de conhecer alguns dos meus cole- mos ser e em alguns momentos parecíamos considerá-los como mitos .
gas num ambiente menor - disse-nos Heinrich naquela noite em sua Quando não estávamos absorvidos na discussão objetiva do direito,
casa, quando discutimos a proposta de turma pequena do Conselho parecíamos ocupar todo o nosso tempo a falar sobre os professo res,
da Faculdade de Direito. - Muitos não se sairiam bem . trocar impressões, por exemplo , sobre as causas famosas em que Mann
Foi essa a maneira delicada que ele encontrou para dizer que há atuara ou as personalidades de Washington que tinham isso ou aquilo
professores pomposos e arrogantes na Faculdade de Direito de Har- a dizer a respeito de Perini . Em relação a Morris, nossos comentári os
vard . Muitos estão acostumados a pensa rem em si mesmos como os eram especialmente reverentes, porque ele próprio saíra há pouco tem-
melhores dos melhores, de longe as mentes mais brilhantes; não são po da faculdade, onde deixara um registro impressio nante. O relato
poucos os que resistem a desperdiçar seu gênio com meros estudantes. mais espantoso de suas proezas era a história, talvez apócrifa , de que
E, além disso, o grande número de estudantes muitas vezes impõe em um único período de exame de quatro horas ele fizera não apenas
grande distância e formalidade nas relações. Na HLS, é raro ser cha- o teste, mas também um trabalho que esquecera de aprontar po r causa
mado de o utra forma que não "Sr." e "Sra." por um professor, e ainda de suas muitas tarefas na revista de direito. Em a mbos ele recebera as
mais raro tratar os professores pelo primeiro nome. Quase nunca pro- cotações ma is altas da turma.
fesso res e alunos trocam mais do que um aceno de cabeça ou um sorri- Para mim , as relações com o corpo docente eram complicadas pe-
so quando se encontram fora da sala de aula. São conhecidos na lo fato de que eu também fora professor a té um ano antes, lá na frente
profissão, ao invés de amigos; pessoas ligadas apenas pelo mais tênue da sala de aula, sendo o uvido, obedecido. Agora me enco ntrava entre
dos vínculos: o fato de que eles sabem e você não . os alunos, ignorado, sentado num lug<1r determinado, com muitos de-
Uns poucos estudantes da minha turma mais ou menos pressiona- talhes da minha vida subitamente controlados por o utras pessoas. Co-
ram os professores no sentido de um contato maior. Ho uve um que mecei a sentir que me transformara outra vez numa criança, um
se apresentou na casa de um professor e convidou-se a entrar. Outro adolescente. Com seus corredores escuros, ladrilhad os e com linó leo,
contratou um dos nossos professo res para traba lhar num problema le- armários usados por alunos que não vivem no campus, a faculdade
gal especializado. Mas são po ucos os meios menos excepcionais de fa- tem muito a aparência e o cheiro de uma escola secundá ria . Ho uve vá-
ze r cont~to. Pos~o, ~ontar nos dedos o número de professores que rias ocasiões em que eu me sentia de fato como um adolescente, furio-
encontrei no refellono dos estud antes durante o ano. Os demais não so e rebelde . Não foi uma reação exclusiva. Percebi uma reação similar
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em muitos membros da Guild, um retorno à ira adolescente. Creio que quando me levanto; está escuro quando volto para casa. Continuo a
era em parte o motivo da veemência de nossas críticas. seguir em frente, mas não há sinal de luz.
Mas havia também ocasiões em que o sentimento de retrocesso Em casa, as coisas estão num impasse . A paciência de Annette com
era mais passivo e mais angustiante. Nossa concentração nos profes- o papel de esposa da faculdade de direito parece ter se esgotado e dis-
sores muitas vezes me lembrava a preocupação de crianças com os pais. cutimos com freqüência. Para Annette, acho que não é di fíci l sentir-se
Ao final de outubro, tive de confessar que o sentimento impetuoso que ludibriada. Foi arrastada através do país e lançada num emprego exte-
me dominava quando levantava a mão na sala era muito parecido com nuante, enquanto eu fi co com as glórias da Faculdade de Direito de
o desejo de elogio de uma criança: reconhecer isso me deixou profun- Harvard . E não ajuda muito o fato de que, no pouco tempo que pas-
damente perturbado. P ensava que já superara as emoções desse tipo. samos juntos, estou preocupado demais para lhe dispensar plena aten-
Descobria agora que minha infantilidade só desaparecera porque hou- ção. E como vivemos num lugar novo, não há um círculo de amizades
vera um período em que eu não fora tratado como uma criança. As- consolidado que possa animá-la. A faculdade não é uma comunidade
sim , houve episódios, como o da a ula de Mann, em que fracassei e senti em que estejamos ansiosos em nos integrar. Não é um lugar social. Fi-
não apenas a vergonha terrível da criança por desapo ntar adultos, mas camos felizes por não vermos uns aos o utros nos fins de semana. Nas
também a vergonha de um adulto por ter perdido todo esse terreno poucas ocasiões em que recebemos amigos da facu ldade, como acon-
como um ser humano. , teceu na noite passada, a conversa concentrou-se obsessivamen te na
Um incidente com um amigo, Tom Blaustein, é ilustrativo de co- HLS.
m o todos os meus sentimentos sobre os professores se tornavam som- Para Annette não há uma solução fácil e com freqüência ela se
briamente confusos. Tom era um jovem professo r de direito de outra sente frustrada e sozinha . Durante o dia, nos fins de semana, ela pas-
faculdade, fazendo um estágio em Harvard durante o ano. Annette e sou a sair sozinha em excursões pela cidade - a museus, exposições,
eu conhecêramos Tom e a esposa dois anos antes, na casa de um ami- expedições de compras . Mas há momentos em que se torna evidente
go comum , na Califórnia; e quando nos descobríramos juntos aqui, que ela está amargurada por minha indisponibilidade. Na semana pas-
passamos a nos conhecer muito melhor. Tom era fra nco e generoso sada Annette me disse que tenho um a relação mais íntima com o direi-
comigo, nossa amizade não era levada como sendo de professor e es- to do que com ela, uma referência não muito sutil ao fato de qu e não
tudante, mas sim no nível pessoal em que nos conhecêramos. Volta nos encontramos no quarto com a devida freqüência . (Pelo t0m das
e meia nós q uatro nos reuníamos; e de vez em quando eu me encontra- conversas na faculdade , presumo que esse problema não é só nosso.)
va a sós com T om para o almoço . Quando estávamos juntos, quase Tudo isso me deixa às vezes com um tremendo sentimento de culpa
sempre era longe da faculdade. e ta mbém impotente, já que não posso fazer desaparecer a facu ldade
Um dia esbarrei com Tom no ginásio da faculdade. Eu estava com de direito e suas exigências.
Terry e acabara de deixar a aula. Creio que o cenário me envolveu . A rotina extenuante na faculdade co ntinua, a pesada carga de tra-
Quando vi Tom , a primeira coisa que me passou pela cabeça foi que balho, a confusão, a co ncentração incessante e tacanha para se apren-
ele era um professor da faculdade de direito. Normalmente, eu nunca der o direito. E a pior semana ainda está para chegar. Métodos Legais
pensaria em chamá- lo de outra forma que não pelo primeiro nome, alcançou o ritmo máximo, com petições para julgamento sumário, re-
mas quando ele disse, afetuosamente, "Oi, Scott", não pude impedir sumos de sessões de conciliação e um projeto de pesquisa, tudo deven-
que as palavras saíssem de minha boca: do ficar pronto nas próximas semanas, para cada grupo da turma. Em
- Olá, professor. nosso grupo, os trabalhos devem ser entregues na segunda-feira e tere-
mos uma defesa o ral na quarta. Passei uma grande parte do fim de
semana com meu sócio, Willie Hewitt. Além disso, os dois cursos do
semestre, Responsabilidade Civil e Direito Penal, começam a avançar
I/ll /75 num ritmo de lo uco, agora que estamos na segunda metade do perío-
(Sdbado) do - tarefas de sessenta a o itenta páginas a cada semana - e o ritmo
também a umenta em Processo.
O trabalho não pode ser realizado de maneira meticulosa e preci-
Novembro chega com uma chuva fina e depressão . Ah, como me sinto sa. Terei de desistir do sumário da semana e não tenho mesmo certeza
po r baixo! A impressão é de que estou vivendo num túnel. Está escuro se poderia fazê-lo. E também não sei se me importo. Quase todos

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sentem-se da mesma forma que eu . Muita pressão e pouco sono. Três, turma. Um dia, durante aquelas semanas, entramos juntos no eleva-
quatro horas . Muitos passam a noit e inteira aco rdados. E o ar na fa- dor em Langdell, a caminho da biblioteca, no quarto andar. llene
culdade pa rece recender ao eflúvio dos ma us sent imentos dos a lunos, encostou-se na parede e fez uma das queixas familiares de como dor-
em relação a si mesmos e aos ri go res que enfrentam. Tempos difíceis. mira pouco durante a última semana, enquanto trabalhava em seu me-
A estação da depressão nos envolve. mo ri al.
- Por que está levando essa coisa tão a sério? - perguntei-lhe,
Foi um a no de freqüentes altos e baixos, mas cheguei ao fundo naque- como já indagara a muitos o utros.
las duas pri meiras semanas de novembro. As coisas nunca fo ram pio- - Porque não poderia suportar a derrota e depois esc ut ar a exul-
res para mim. Graças a Deus. tação do oponente. - Ela sorriu e ac rescentou: - Além do mais, va-
As tarefas de Métodos Legais levaram a turma a um frenesi geral, mos enfrentar Harry Hochschild .
que não se repetiria até os exames. Foi um desenvolvimento surpreen- Na maioria dos outros casos, no entanto , considerei a fúria gera-
dente, já que muitos dos meus colegas pareciam entediados com Mé- da pelo projeto de Métodos como mais um exemplo da histeria de su-
todos Legais durante a maio r part e do período. No meu grupo, Chris cesso/ realização/ competição. As pessoas q ueriam apenas vencer umas
Henley sabe explicar, e o qu e nos ensinou era obviamente fundamen- às o utras. Em retrospectiva, porém, reco nheço que o memorial para
ta l. Numa semana assistimos ao videoteipe de um colega (Au brey, pa- o j ulgamento satisfazia impulsos que haviam sido frustrados durante
ra ser mais exato, mu ito bom) condu zindo uma en trevista fictícia com todo o período . Um trabalho bem-feito deixaria os estudantes senti-
um cliente. Aprendêramos alguma coisa sobre a tomada de depoimen- rem que estavam de fato a caminh o de poderem assumir as funções
tos - uma forma de testemunho antes do j ulgamento - e como ela- de um advogado - provaria que haviam aprendido alguma coisa. Ain-
borar interrogatórios (as perguntas e respostas escritas trocadas pelas da mais significativo, eu acho , era o fato de que os memoriais e argu-
partes de uma ação judicial) . Na semana passada recebemos a tarefa mentações poderiam satis fazer em parte o a nseio por avaliação e
de promover um a sessão de conciliação simul ada, na tentativa de re- proporcionar uma relat iva noção da situação de cada um . Uma peti-
solver o caso de Katz. ção de julgamento sumário é uma tentativa de o bter uma decisão nu-
Eu descobrira q ue a maior parte do trabalho valia a pena, mas ma ação judicial sem um julgamento formal. O juiz examina os
a maioria dos colegas parecia achar que Métodos Legais exigia um sa- sumários e depoimentos anexados, escuta as a rgumentações e decide
crifício injusto de tempo, que poderia ser dedicado a cursos mais im- se a lei e os fatos da causa favorecem tanto um lado ao ponto de um
portantes. Por terem notas, eram considerados mais importantes. julgamento formal ser um exercício inútil. Se o tribunal decide a favor
Contudo, a tarefa de escrever um memorial - q ue seria o final da parte que solicita o julgamento sumá rio, ele ga nha o processo; uma
do curso de Métodos - acabou com esse desinteresse. Quase todos decisão contra o requerente significa que haverá um julgamento formal.
se empenharam no projeto com o maior entusiasmo. Um memorial é Em Katz, os dois lados solicitavam um julgamento sumário. Em-
a argumentação escrita de um advogado para o juiz . Aqui ele cita e bora tud o indicasse que nenhuma das petições seria deferida, as ques-
descreve causas já dec id idas as q ua is ele acred ita apoiarem sua posi- tões na causa eram bastante delicadas para que um memorial e uma
ção. Ao mesmo tempo, ten ta "discrimina r" as causas em que o opo- argumentação particularmente persuasi vos pudessem permitir a vitó-
nente vai se apoiar, procurando mostrar por que essas decisões não ria de um lado. A perspectiva de vitória concreta, inequívoca e conclu-
... se aplicam à situação. Em Métodos, vínhamos lendo pareceres sem pa- siva, parecia fascina r muitos dos meus colegas. Seria uma maneira
rar, analisando os menores pontos . Embora tivéssemos sido avisados condizente de provar um talento superior para o d ireito. Com esse ob-
que não deveríam os usar o utras ca usas , muitos da turma fora m à bi- jetivo, todos traba lhavam incansavelmente. Mas eu , diante de toda es-
bli oteca para consu ltar fo ntes externas, como as enciclopédias legais. sa intensidade competitiva, preferi me retrair. Sentia-me muito depri-
As pessoas orgulhavam-se da maneira como se esforçavam. Lembro mido para um esfo rço total. Disse a mim mesmo que o memorial não
o dia na biblioteca em q ue A ubrey e seu parceiro, Phil Pollack, tinha maior importância. H averia um a argumentação o ral - uma es-
mostraram -me as quase quarenta páginas que haviam escrito para um pécie de defesa em que você repete os pontos principais do sumá rio
memorial q ue não deveria ter mais que dez páginas. e responde às perguntas do j uiz a respeito - mas assegurei a mim mes-
Não pude entender, na ocasião , por q ue tod os se lançavam a tais mo que sempre fora muito bom num debate. Encorajei Willie a não
excessos. A única pessoa que me apresento u um a desculpa meio acei- se preocupar dema is e não foi preciso reiterar a sugestão. Em minha
tável foi ! Iene Trevka, uma mulher espirituosa e extrovertida de nossa turma, havia um punhado de alunos - uns cinco, dez no máximo -

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que só viera para a Faculdade de Direito de Harvard em busca do diplo- - A educação j urídica assume que seu principal objetivo é o de-
ma. Eles não tinham o menor desejo de competir com os colegas. Willie senvolvimento, dentro de urna estrutura ética aprimorada, das compe-
era uma dessas pessoas, mostrando-se praticamente imune às pressões tências analíticas e empíricas para promover a ju tiça - disse Nader.
competitivas. Dissera-me, por exemplo, que deveríamos ajustar nosso tra- Mas Harvard, ele afirmou, as im como a maioria das outras fa-
balho a seu porre na noite de quinta-feira e à ressaca na manhã de sexta. culdades de direito , falhava em grande parte na consecução desse ob-
Willie e eu prometemos que não gastaríamos mais do que dez ou jetivo , ao limitarem os usos para os quais esses talentos eram
doze horas no memorial, cada um. Dediquei-me ao trabalho na noite desenvolvidos .
de sexta-feira e a maior parte do sábado. Willie fez a mesma coisa. Ele falou sobre o estilo de análise que está vamo sendo exortados
Foi provavelmente um terço do tempo que a maioria dos nossos cole- a converter a pa ne de nossos reílexos mentais. Como Gina me ressal-
gas consumiu e o memorial deixava isso patente. Começava (como re- tara, ele lembrou-nos da cautela e hesitação habituais que derivam desse
conheci mais tarde) por citar o argumento mais persuasivo do oponente ti po de pensamento e indagou se não estávamos nos afasta ndo de nos-
e reivindicá-lo como nosso - um erro terrível - e daí para baixo. Ao so bom senso e intuições básicas de justiça.
entregar o memorial a Henley, na segunda-fei ra, senti-me um pouco Discorreu sobre as deficiências do método de e tudo de causas.
contrafeito, mas reprimi as preocupações. Perguntou de quem eram aquela causas ensinadas . Quem mais, além
Tendo tratado o memorial com tanta indiferença, eu deveria dispor dos prósperos, tinha condições de arcar com os enorme honorá rios
de mais tempo. Mas me oferecera, na semana anterior, para fazer um pro- legais de urna ação judicial, de levar um processo ao estágio em que
jeto de pesqu isa na biblioteca do qual Henley nos incumbira em Méto- podia ser reproduzido em nossos livros de causas? Havia danos, disse
dos. O trabalho envolvia a pesquisa de estatuto e causas de um complexo Nader - violações da lei , pro blemas legais por toda a ociedade -
problema de responsabilidade civil e consumira 25 ou trinta horas. Ape- que nunca se tornavam alvo de batalhas judiciais e sumários de causas.
nas uns poucos no meu grupo optaram por fazer a tarefa. Eu o fizera por- - Quantos camponeses você acham que promovem ações judi-
que sabia que não daria maior atenção ao memorial e, já culpado, não ciais na defesa de seus direitos? - ele indagou.
queria me sentir indolente ou desocupado, enquanto os outros se esfor- Nader falou sobre o modelo de trabalho do advogado sugerido
çavam tanto. E deu certo, sob esse aspecto. Estava agora tão pressiona- pelo constante íluxo de ca os de apelação . Não e taríamo na verdade
do quanto qualquer outro na turma, umas cem páginas atrasado em sendo treinados para sermos advogados que apena entrevistam clien-
Responsabilidade Civi l e perdendo o ritmo nos outros cursos. tes, escrevem petições e a rgumentam nos tribunais ... o tipo de advoga-
Mas essa carga de trabalho não me impedia de ouvir Ralph Nader do que Métodos Legais no ensinava a ser? Onde nos most ravam as
quando ele foi fazer uma conferência na faculdade na noite de terça- imagens de advogados como organizadores, defensores determi nados,
feira. Annette não se sentia bem , por isso peguei meu livro de Respon- em vez de contra tados indiferentes a quem estivesse pagando os preços
sabilidade Civil e fui sozinho . exigidos? Acredi távamos mesmo, como às vezes era sugerido , que os
Sou um admirador de Nader. Considero-o um fanático, mas tam- problemas jurídicos mais fascinantes eram aq ueles apresentados nas
bém acho que é uma pessoa de imaginação excepcional, alguém que causas que estudávamos? Seria de fato mais absorvente esmiuçar os
vê além das palavras pomposas que todo mundo aceita ao pensar nas detalhes das salvaguardas fiscais de alguma companhia do que encarar
instituições sociais. As instituições de que Nader falaria naquela noite (como nossa educação raramente nos pedia para fazer) os mais graves
eram a Faculdade de Direito de Harvard e a instrução jurídica em ge- problemas legais com que a sociedade se defrontava - a corrupção
ral. Nader cursou a HLS, mas não chega a ser um ex-aluno apaixona- das corporações e do governo, as fraudes contra os consumidores, o
do. Numa biografia, é citada sua descrição da faculdade como um lugar dilema de proporcionar assistência j urídica adeq uada aos pobres?
em que os alunos "aprendem a liberdade vagueando em suas jaulas". - Perguntem a si mesmos - disse Nader, quase ao final - , não de-
Em meu pavor, estava ansioso por ouvir suas críticas. Queria acredi- veriam os melhores, os mais brilhantes, as pessoas que e consideram mais
tar que havia mais coisas causando em mim sentimentos de desolação confiantes, melhor qualificadas ... não deveriam essas pessoas a sumir tais
do que apenas as minhas próprias neuroses . missões impossíveis? Não precisam entregar sua capacidade aos imenso
Nader fez um grande discurso. Falou por mais de uma hora, sem laboratórios farmacêuticos que não se imponam com o público ou às gran-
consultar qualquer anotação. Apoiou-se no pódio, mas falou com o des firmas de advocacia que os defendem. Eles podem arrumar outras pes-
fervor de um pregad or - um homem esguio, moreno, mais bem- soas para fazerem isso. Se vocês dis erem "Serei um profissional rigoroso,
apessoado do que parece na telev isão. encontrando satisfação onde puder", es1arào e aviltando.

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Deixei a conferência de Nader na maior animação. Havia algu- frente. Apresentei Annette a algumas pessoas que ela ainda não co-
mas falhas, como sempre, no que ele dissera. Eu não tinha certeza se nhecia - Gina, Kyle e Karen Sondergard - e juntos a levamos para
seria favorável a uma educação tão política quanto a que ele defendia. um lugar no fundo da sala, sugerindo diversas respostas meio obsce-
Em muitas coisas, no entanto, ele fora convincente e me deixara sen- nas caso Perini a chamasse ou comentasse sua presença.
tindo melhor do que acontecia há algum tempo com a perspectiva de Ao começar a aula, ficou patente que Perini não partiíhava nosso
me tornar advogado. ânimo elevado. A freqüência vinha caindo ultimamente, enquanto eram
Contudo, ao voltar para casa naquela noite, determinado e tem- escritos os memoriais de Métodos. Agora, com as argumentações orais
porariamente livre da depressão, refleti que não sabia direito para on- próximas, a freqüência caira ainda mais. Muitas pessoas preparavam-
de concentrar esses sentimentos. Meu inimigo, agora, era um conjunto se para a defesa oral com uma obstinação ainda maior do que antes .
de atitudes, nada de concreto. Não havia uma direção determinada onde Talvez um quarto dos lugares estivesse vazio e Perini olhou e:m silên-
atuar de forma a provocar a m udança. cio, por um longo tem po, para as fileiras pouco ocupadas, antes de
Eu não podia imaginar que em 24 horas esse alvo se mostraria. começar.
O padrão normal de Perini era tratar de uma única causa a cada
Annette não estava se sentindo melhor na manhã de quarta-feira. Ti- dia. Não sei se foi a irritação pela queda na freqüência ou apenas a
nha um dos vírus que estava sempre pegando das crianças e ficara rou- natureza do material o que levou Perini a se adiantar tanto naquela
ca demais para dar aula. Seus planos eram descansar pela manhã e aula. Qualquer que fosse o motivo, em quarenta minutos ele já con-
depois, se se sentisse melhor, me encontrar na faculdade. Queria apro- cluira duas causas e houve muita apreensão entre os alunos quando
veitar o dia de folga para conhecer os professores de quem eu falava Perini tornou a consultar o mapa de distribuição dos lugares. Meu pal-
tanto, Perini e Zechman, e para assistir à argumentação oral que eu pite era o de que muitas pessoas não haviam lido a última das três cau-
apresentaria às 14:00h. sas indicadas com muita atenção. Eu não lera coisa alguma ontem, mas
Quando ela chegou, ao meio-dia, toda a turma se encontrava num tomara a precaução de deixar um bilhete para Perini : "Sobrecarrega-
bom humor excepcional. Acabáramos de sair da aula de Penal mais do. Despreparado." Alguns dos colegas jamais entregariam um bilhe-
fascinante do período. Algumas criticas dos alunos chegaram aos ou- te a Perini, a não ser no caso de um tufão ou leucemia. As notas dos
vidos de Mann e agora ele parecia estar fazendo um esforço sério para exames na HLS são conferidas a nonimamente, havendo apenas um nú-
revigorar o curso. Pusera de lado a leitura do código e estávamos estu- mero de identificação, em vez do nome. A secretaria junta números
dando Processo Penal, um material muito mais atraente, concentrado e notas com os nomes e os professores muitas vezes não sabem quem
numa longa sucessão de causas controvertidas levadas ao Supremo Tri- recebeu o quê. Mas vários colegas, intimidados demais por Perini, es-
bunal dos Estados Unidos, como as decisões de Miranda e Escobedo, tavam convencidos de que se entregassem bilhetes ele encontraria uma
que tratam dos direitos dos acusados. Naquele dia, Mann convidara maneira de usá-los para diminuir suas notas. Nunca acreditei que Pe-
um policial local a participar da aula, a fim de mostrar o procedimen- rini pudesse chegar a esse ponto.
to de detenção e revista aprovados pelo tribunal Warren, em Terry v. - Sr. Mooney!
Ohio. O policial revistou um estudante voluntário, Charley Maier, a Perini ainda chamava nossos nomes naquela voz forte e penetran-
quem Mann preparara de antemão com uma pistola de espoleta escon- te, cada vez que um al uno era escolhido para uma causa. Mooney era
dida. Depois que o policial apalpou suas roupas de leve, sem encon- um homem alto e magro , extrema mente quieto, que pouco se manifes-
-.-~ trar a arma, Charley sacou-a e apontou-a para a cabeça do homem.
Houve muitos risos, mas foi o policial quem riu por último. Encostou
tava. Levantou os olhos com sua expressão compenetrada habitual, mas
meu coração parou quando ele falou.
Charley na parede e demonstrou a revista que fazia nos "espertinhos". - Desculpe, senhor, mas não estou preparado.
Incluía uma rápida cut ucada entre as pernas, a fim de certificar-se de Perini ficou completamente imóvel por um momento, segurando
que Charley não escondia mais nada. o lápis no ar. Deslocou o queixo de um lado para outro antes de falar.
O episódio foi conduzido com muita encenação e jovialidade por - Ou seja, achou que não chegaríamos até aq ui .
parte de todos e a discussão posterior, tentando conciliar as decisões Ele fitava Mooney com uma terrível expressão de ódio, a voz era
dos tribunais e as realidades do comportamento policial, fora pragmá- gelada, desdenhosa. Aquilo era traição. Isso mesmo, ele achava que
tica, mas profunda. Quando fomos para Contratos, estávamos todos Mooney o traíra.
bastante an imados, talvez com a esperança de coisas melhores pela Mooney tentou dar uma explicação, balbuciando:

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- Tenho uma defesa oral para fazer hoje em Métodos Legais e... - Achei que Perini perdeu o controle.
- Há outras pessoas nesta sala que também devem fazer uma de-
- E o incidente incomodou você?
fesa oral hoj e, não é mesmo? Recebi um bilhete seu? As regras foram
fixadas no primeiro dia, Sr. Mooney. Se há alguma desculpa, quero - Não muito. Mooney sabia o que aconteceria se fosse apanhado.
ser comunicado com antecedência. - Está acostumado a isso - comentei, sorrindo . - Acaba de
., Perini afastou-se do pódio por um instante, o rosto ainda contor- sair dos fuzileiros.
cido pela raiva. Eu soube que isso acontecera uma vez, vários anos an- Mas o incidente não combinava com o meu ânimo. Sabia o que
tes: Perini obrigara o aluno a ler a causa na aula, respondendo a pensava agora e acrescentei subitamente:
perguntas linha a linha, uma tortura que se prolongara por quase qua- - Foi errado, muito errado. Um professor não deve tratar um
renta minutos. Mas Perini parecia não estar pensando agora numa pu- aluno assim. Não na frente de 140 pessoas. Em lugar nenhum .
nição tão imediata para Mooney. Eu não era o único perturbado. Um minuto antes de começar a
Ele bateu com a mão no pódio. aula de Responsabilidade Civil, Lindsey Steiner levantou-se. É uma mu-
- Espero que esteja bem preparado na segunda-feira, Sr. Moo- lher magra e morena, de vinte e poucos anos, uma das pessoas mais
ney. E muito bem preparado. ativas na Guild e na Associação das Mulheres do Direito.
Outra vez aquela voz e olhar, irradiando ódio. O que ele faria com - Peço a todos que ficaram contrariados com o que aconteceu
Mooney na segunda-feira? Alguma coisa desagradável. Alguma coisa em Contratos para permanecerem na sala por mais alguns minutos de-
terrível. Naquele momento, Perini parecia bastante furioso para um pois da aula, a fim de termos uma discussão a respeito.
assassinato. E Mooney teria de arcar com aquela preocupação pelos Depois que a aula acabou e Zechman se retirou, Kyle - do meu
próximos cinco dias. grupo de estudo - e Wade Strunk foram se juntar a Lindsey na frente
A turma mantinha-se atordoada, absolutamente imóvel. Perini da sala. Mais de três quartos dos homens e mulheres da turma haviam
inclinou-se para o mapa de lugares e fez uma anotação, num gesto fu. permanecido. A maioria estava furiosa. Muitos declararam que não
rioso ; depois, chamou o homem à esquerda de Mooney. Chamar uma agüentavam mais serem tratados como crianças, não podiam mais acei-
pessoa ao lado de um aluno despreparado é um artifício familiar, usa- tar o terror de Perini e suas regras rígidas. Houve uma concordância
do pelos professores de direito para aumentar a pressão sobre os que ampla de que era preciso fazer algum protesto.
falharam. Mann , apesar da gentileza de sua retórica no primeiro dia , Uns poucos estudantes defenderam Perini . Ned Cauley disse que
fazia a mesma coisa com freqüência. Era dizer "passo" e você ofere- era um erro único de um grande professor e que deveria ser ignorado .
cia de bandeja a cabeça do colega ao lado, aumentando assim o des- Outros disseram que era um problema entre Mooney e Perini. O pró-
dém da turma por sua desgraça. Era esse o resultado da tortura da aula prio Mooney era dessa opinião.
socrática. - Eu preferia que ninguém fizesse nada - ele disse várias vezes.
O homem, Zimmerman, começou devagar, baixinho ... meio sem - Cometi um erro e acertarei tudo pessoalmente.
fôlego , como todo mundo. Mas não foi possível dissuadir a maioria dos presentes. Kyle afir-
- O que ele disse? - murmuraram algumas pessoas. mou que era um problema que envolvia a todos. Todos estávamos
- --·- - Nada que valha a pena escutar - disse Perini bruscamente.
Ele voltou para o mapa de lugares e, enquanto Zimmerman conti-
ameaçados por um tratamento similar.
Discutiu-se por algum tempo qual seria a reação mais apropriada.
nuava a falar, fez uma encenação para dizer que percebeu as ausên- Alguém sugeriu que boicotássemos a aula na segunda-feira. Outro dis-
cias. Ao final da aula, Perini olhou ao redor, furioso, e declarou: se que todos deveríamos entregar bilhetes informando que nos encon-
- Eu esperava seguir mais adiante hoje, mas o nível de prepara- trávamos despreparados. FinaJmente ficou acertado que seria escrita
ção estava péssimo. uma carta de protesto. Kyle, Lindsey e Wade a escreveriam, com a co-
E ele saiu, ainda em fúria. Nós fomos atrás, devagar, em silênc.io. laboração de quem mais estivesse interessado, seria apresentada no dia
Eu não sabia o que pensar. Annette e eu descemos o corredor para a seguinte para aprovação.
aula de Responsabilidade Civil, acompanhados por Greg Dawson, o Saí com Annette antes da reunião terminar. Minha defesa oral co-
colega que sentava ao meu lado. Apresentei-o a Annette. meçaria dentro de poucos minutos e seguimos para Pound, onde seria
- Como se sentiu? - perguntei-lhe . reaJizada. Eu me mantinha em silêncio, refletindo sobre todo o inci-
Greg deu de ombros. dente, inclusive a reação dos colegas. Assistíramos à reunião do fundo
., . l 12 113
da sala. Eu ainda não tinha certeza de como deveria encarar a situa- pódio_do ~rofessor. Y"illie e eu, assim como Jody e Jim , ficamos na
ção. Annette falou subitamente: primeira fila de carteiras, separados pelo corredor. Annette sentou lá
- Não foi tão terrível. Perini foi grosseiro, não deveria ter fala- atrás.
do com Mooney daquele jeito, mas não foi uma coisa pavorosa como Willie levantou-se e iniciou a aprentação com a frase tradicional
querem pintar. de _abertu:ª• "Com a permissão deste tribunal". Foi provavelmente a
Fiquei surpreso. úluma c01sa correta que qualquer de nós disse. Willie deixou evidente
- Meu bem, reparou no ódio quando ele falou com o garoto? que não ti~ha mui~o interesse em estar ali . Falou depressa, em tom in-
- Mas você vem me falando o ano inteiro sobre como ele é terrí- diferente, as vezes meverente. Parecia desdenhar as perguntas dos juí-
vel. É tudo o que ouço, noite após noite ... Perini é duro, Perini é mes- zes.
quinho. E agora promovem comícios. - É isso o que você pensa, Juiz - ele disse a Quinley em deter-
Pensei por um momento a respeito do que Annette dissera. Tal- minado momento .
vez ela estivesse certa. Podia compreender como o episódio pareceria Mais adia nte, respondendo a uma indagação de Peter, Willie de-
trivial a um observador de fora. Mas havia muita coisa envolvida no clarou:
caso: as pressões e a incerteza, as humilhações pessoais e as regras rígi- - Talvez seja isso mesmo , mas não quero falar a respeito .
das .. . todas as besteiras que tínhamos de aturar. Era uma perspectiva Quando ele sentou, era óbvio que Quinley estava insatisfeito. E
aterrado ra entrar em choque com Perini, mas estávamos prontos para Peter não parecia muito feliz. Minha atuação só contribuiu para agra-
revidar agora e parecia importante não deixar o momento passar. var a situação. A defesa ora l, o processo de argumentar em voz alta
- Não sei se você pode compreender, meu bem. perante um tribunal, é um dos elementos mais respeitados do ofício
Annette concordou que era bem possível. do advogado . Os grandes ad vogados orais - Daniel Webster John
W. Davis - são mitos no mundo jurídico. Para ser um advogacto des-
A defesa oral foi um desastre. se nível, diz-se em geral que duas coisas são necessárias. Primeiro, deve-
No momento em que nos aproximamos da sala no Pound em que se ter _uma eloqüência extraordinária e pensamento muito ágil. O juiz
seria realizada a sessão, compreendi que Willie e eu estávamos em difi- po~e m_t~rromper ~om perguntas sobre qualquer aspecto da causa, por
culdades . Nossos oponentes, Jim DeMarco e Jody May, apareceram mais tn v1al que seJa, que lhe pareça ser um obstác ulo para aceitar sua
em seus melhores trajes, um terno com colete e um elegante costume. argumentação ou descartar a do oponeme. Você precisa esta r prepara-
Willie e eu usávamos nossos velhos paletós esportes. do para se manifestar sobre qua lquer ponto. Para isso , uma segunda
Muito mais desconcertante foi a identidade dos juízes. Uma pe- coisa é necessária : você deve conhecer o processo a fu ndo, até os me-
tição autêntica de julgamento sumário é um procedimento defendi- nores detalhes.
do perante um único juiz. Quanto mais juízes, porém, mais cerra- Eu não estava preparado assim . Limitara-me a dar uma olha da
do o interrogatório; por esse motivo, as defesas de Métodos eram nas causas cujas citações incluíra na petição . Calculara que não seria
conduzidas perante um tribunal de dois, um colega que dava aulas necessário ma is do que isso ... apenas fi caria de pé lá na frente e falaria
e um representante do BSA . Sob todos os outros aspectos, respei- por um momento. Quando, um ou dois minutos depois de começar
taríamos as formalidades do tribunal, tratando os juízes por "Me- Quinley e Peter começa ram a me fazer perguntas sobre causas que maÍ
ritíssimo" e sendo tratados como " Advogado". Por causa disso, podia lembrar, compreendi que me encontrava num ap'"rto . Recorri
eu presumira que os juízes seriam pessoas que não conhecíamos mui- a todos os artifícios para me agüentar pelos quinze minutos . Discuti
to bem; isso faria com que toda a simulação se tornasse mais fácil. os menores pontos. Tentei fazer com que cada questão se tornasse se-
Como eu esperava, o juiz principal era um professor de Métodos mântica. Até sorri afetuosamente para Peter a lgumas vezes, acho que
em outra turma, um homem chamado Quinley. a quem eu nunca tentando lembrá-lo que éramos ambos estuda ntes , aliados, a migos, 0
vira antes. Mas houve uma confusão no escritório do BSA e seu re- que constituía uma violação discreta mas inescrupulosa das formali-
presentante para atuar como juiz era Peter Geocaris. Senti um aper- dades que deveríamos observar.
to no coração ao vê-lo. Sabia como Peter, com todas as suas idéias O processo de Jack Katz transformou-se, em última aná lise, nu-
sobre padrões de excelência, levaria aquilo a sério. Detestava a possi- ma questão legal restrita. A fim de des pedir Katz, Elliot Grueman, o
bilidade de desapontá-lo. proprietário da fá brica de capas de chuva, poderia a penas a legar que
Entramos juntos na sala. Quinley e Peter sentaram por trás do estava insatisfeito com o seu trabalho ou tinha de ap resentar motivos

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,.
que uma pessoa razoável aceitaria como válidos? Representando Grue. Annette me afagava o ombro de vez em quando e dizia, numa voz rou-
man, Willie e eu sustentávamos que a lei não exigia nada mais do que ca e irônica, que ainda me amava. Não ri muito.
a sua insatisfação subjetiva. Havia muito material nas causas que apoia- Compreendo agora que durante esse período, no outono passa-
vam essa posição, mas eu perdera a maioria. Quinley, pelo menos por do, estava aprendendo tudo sobre a desgraça. Sofria uma am pla va rie-
dez minutos, tentou gentilmente me conduzir por esse caminho. A esta dade de vergonhas e embaraços - pelo fracasso, por me sentir como
altura, porém, eu assumira uma mentalidade de frente de batalha e me uma criança, por perder o controle. Kyle, em certo momento , comen-
limitava a revidar cegamente. Assim, na metade do tempo em que fa- tou que muito da raiva da turma com Perini naquele dia vinha de um
lei, empenhei-me em encontrar falhas nos meus próprios e melhores sentimento de vergonha por havermos nos submetido continuamente
argumentos. Quase ao final, Quinley desistiu. a coisas que não ad mirávamos.
- Advogado - disse ele - , parece que estamos andando em Recordando todos aq ueles sentimentos, vejo grande parte da an-
círculos. gústia como absurda, exagerada e desnecessária. Mas, mesmo agora,
- Tem toda razão, Meritíssimo - respondi, sentando logo em ainda penso que sentiria um pouco do que me dominou depois da de-
seguida. fesa oral. Finalmente percebera que se tratava de um tra balho d igno
Meus olhos se encontraram co m os de Peter por um instante. Ele a realizar e que eu o considerara com desdém. Escarnecera de uma coi-
parecia incrédulo, um tanto consternado. sa com que deveria me importar e, na situação, afetara uma amizade,
Num tribunal de verdade, o juiz poderia decidir contra nós neste até mesmo constrangera um pouco minha mulher. Sentia-me por bai-
momento, mas Jim e Jody devia m falar também . Jody era a médica xo. E não havia saída. Não podia culpar os pro fessores ou as institui-
da turma, a lta, bonita, jovial. Jim vi nha de Comei!. Eram pessoas óti- ções. Desta vez eu fo ra a própria fonte de minha humilhação e não
mas para se enfrentar. Muitas das duplas oponentes haviam travado havia nada que pudesse fazer a lém de beber, esperar até poder esquecer.
um duelo encarniçado. Stephen e Kyle, por exemplo, acabaram em la-
dos opostos; e Kyle ainda se queixava das táticas de negociação de Ste- O movimento para censurar Perini começou a se dividir na quinta-feira.
phen . Com Jim e Jody, porém, não houvera tensão, a sensação de que Na meia hora entre Responsabilidade Civil e Processo Civil, Kyle leu
eles estavam a fim de qualquer tipo de vitória. Apenas fizeram um bom a carta que ele, Wade e Lindsey haviam escrito du rante a noite e ficou
trabalho, escreveram um sumário meticuloso, apresentaram-se pre- evidente que muito do apoio ao protesto se dissolvera. Apenas sessen-
parados para a argumentação. Ouvindo-os, compreendi subitamente ta ou setenta pessoas ficaram para escutar e muitas não gostaram dos
como todo o projeto poderia ser conduzido de maneira objetiva. Não termos da carta.
fiquei surpreso quando , um momento depois que eles acabaram de fa. Os ânimos esfriaram em 24 horas. Muitas pessoas se mostravam
lar, Quinley anunciou que haviam vencido. Foi uma das poucas vitó- dispostas agora a aceita r o que Ned Cauley dissera - que um único
rias incontestáveis que ocorreram naquelas semanas. erro de um grande professo r devia ser perdoado - ou a atender ao
- Eu gostaria de fazer alguns comentários sobre as alegações - pedido de Mooney, de que o deixassem cuidar pessoalmente do pro-
disse Quinley, a ntes de nos dispensar. blema. Além d isso, diversas pessoas estavam assustadas. Circulavam
Ele era gentil e paciente, não mencionou nomes, mas era óbvio agora rumores - provavelmente in fundados - de que Perini instruí-
que se sentia irritado pelo meu desempen ho e o de Willie. Alguns ad- ra os estudantes que eram seus assistentes de pesquisas a deixar claro
vogados, ele comentou, pareciam não se impo rtar com o que estavam que retaliaria por quaisq uer gestos de nossa parte que considerasse em-
dizendo. Foram argumentativos demais para prestarem atenção às per- baraçosos. Mais uma vez, as pessoas temiam que suas notas pudessem
gu ntas. Não assumiram posturas apropriadas, gesticularam demais, não ser prej udicadas ou que Perini de alguma fo rma descarregasse sua rai-
se deram ao trabalho de abotoar os casacos, pareceram quase insolentes. va na turma, no longo período até junho.
Saímos para o saguão e comemos uma fatia do bolo que Jody fi- Muitos dos membros da Guild favo ráveis à carta manifestaram-
zera. Comentamos como era bom ter concluído os trabalhos de Méto- se furiosos . Depreciaram a coragem e o senso mo ral dos colegas. H ou-
dos Legais. Tudo o que restava agora no curso era o julgamento ve uns poucos discursos inflamados, a lgumas invectivas . Kyle encer-
simulado do caso Katz, a que não tínhamos a obrigação de comparecer. rou a discussão, dizendo que aqueles que quisessem assinar a cana
Tornei a dar os parabéns a Jim e Jody; depois, Annette e eu fo- poderiam fazê-lo. Ele foi o primeiro, assinando com um floreio teatral.
mos para casa. Tomei dois drinques rápidos, o que não costumava fa- Observando, outra vez do fundo da sala, eu não ti nha certeza do
zer, esperei que o álcool fizesse efeito . Sentado na cozinha, desolado, que fazer .

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- Não vai assinar? - perguntou ela, com uma aparência per- siderava seus comentários sobre o d ireito dignos de preservação. No
turbada. grupo de estudo, gostava de silêncio enquanto mais ou menos disserta-
- Não sei - murmurei - , não sei ... va sobre o tópico em discussão. Confessara, no início do ano, que es-
Eu me encontrava dominado por uma confusão angustiada. Peri- perava se to rnar um professor de direito e desconfiei que já se
ni era de fato um grande professor, pensei, e Deus sabia como eu pró- considerava no cargo, no corpo docente da HLS. Era uma ambição
prio aprendera na tarde anterior o valor de estar preparado. Podia muito alta. Precisava tirar as melhores notas, fazer a revista de direito
entender por que Perini incutira sua importância aos a lunos. e causar uma impressão profunda nos professores, mas Kyle já tinha
Mas, ai nda assim, achava que ele fora grosseiro e injusto, que fo- em seu registro uma sucessão de conquistas. Fora summa cum /aude
ra cruel. Ao considerar desculpas e contrapesos, podia estar fazendo em Harva rd e no primeiro ano do curso geral instituíra um serviço de
o que Nader descrevera na o utra noite: hesitando onde meses antes o distribuição de anotações para todos os alunos que ainda estava em
bom senso tornaria tudo bem claro. Algo horrível ocorrera no dia an- operação. O serviço, pelo que me contaram, transformara Kyle numa
terior e não havia nada de errado em tentar dar um jeito para que não celebridade no campus e também lhe valera mui to dinheiro. Nos dias
acontecesse de novo. Queria apenas manifestar o que pensava. Des- de chuva, ele chegava na faculdade de táxi. Agora que Kyle se tornara
cartei os rumores de retaliação. Se fossem procedentes, só isso já justi- um ativista, eu não sabia direito para onde poderia levar aquela com-
ficaria o protesto. binação de seriedade e ambição desmedida. Admi rava-o por assumir
Fui até a frente da sala e li a carta mais uma vez. Era mesmo um uma posição, mas preferia permanecer de lado.
documento moderado . Enaltecia o ensino de Perini; reconhecia o va- Perini, por sua vez, parecia querer deixar a ocorrência para trás.
lor da preparação para a aula. O único registro crítico estava contido Quando o confrontamos na segunda-feira, pela primeira vez desde o
num parágrafo formulado com todo cuidado, em que se expressava Incidente, a turma se encontrava mais tensa do que estivera desde o
a esperança de que a reação de Perini fosse mais contida no evento primeiro dia de aula. Havia muitos murmúrios nervosos . Lancei um
de uma ocorrência similar. Acabei assinando. olhar para Mooney, que exibia sua expressão impassível habitual, mas
Ao final, havia apenas 29 assinaturas, numa turma de 140. Au- parecia muito pálido. Todos ficaram em silêncio quando Perini entrou.
brey e Terry assinaram. Stephen e Gina, não. Eu compreendia o ponto - Passei o fim de semana fora - disse Perini, pondo os livros
de vista de todos. E ainda estava convencido de que fizera o que era na mesa. - Tenho de ad mitir que quase vim para a aula despreparado.
certo em minha opinião. Era o mais próximo a que ele podia chegar de um pedido de des-
A assinatura da carta não foi o fim do que se tornara rapidamen- culpas. Os a lunos riram e aplaudiram. Uma onda de alívio espalhou-
te conhecido como "o Incidente". A rebelião organizada de uma tur- se pela sala . Os colegas pareciam satisfeitos por volta rem a ter boas
ma do primeiro ano era virtualmente inédita na Faculdade de Direito relações com o rigo roso professor e a aula prosseguiu normalmente,
de Harvard e a notícia da carta espalhou-se depressa. Na segunda-feira Perini dominou a turma com espírito, ostentação e força verbal; e dei-
Kyle liderou a lguns membros da Guild na criação de uma organização xou Mooney em paz.
chamada Seção 100, cujo objetivo era disseminar o protesto por todas Kyle e os membros da Guild, no entanto, não ficaram apazigua-
as turmas do primeiro ano. Decidiram dirigir a todos os primeiranistas dos. Achavam que Perini devia à turma um pedido de desculpas ge-
uma declaração mimeografada, em que descreviam suas insatisfações nuíno e também tinham queixas que iam além de um único episódio.
com toda a experiência na HLS e convidavam os que se sentiam da A declaração da Seção 100 a todo o primeiro a no apareceu nas caixas
mesma forma a participar de uma grande reunião, na qual poderia ser de correspondências, no porão de Langdell , na quinta-feira.
planejada uma ação coletiva. "O que está acontecendo conosco, na Faculdade de Direito de Har-
Kyle me exortara a ingressar na Seção 100. Compareci a uma ou vard?", indagava a frase inicial. Não mencionava os professores pelos
duas reuniões, mas relutava em me envolver em alguma coisa onde Kyle nomes, mas formu lava queixas contra a irrelevância do curso de Direi-
era uma força tão proeminente. Havia uma energia notável e atraente to Penal, a intimidação que todos sentíamos em Contratos, o modelo
em Kyle, sua inteligência era excepcional; mas eu estava a par da serie- do papel de advogado ensinado em Métodos Legais. Fui informado
dade inflexível que ele punha em tudo o que fazia. Todas as suas a no- que um parágrafo criticando Nicky Morris indiretamente, por sua con-
tações de a ula, por exemplo, eram escritas em cadernos de capa de descendência, fora omitido numa votação apertada. A declaração pe-
couro, que custavam quatro dólares cada. Ninguém jamais se atrevia dia a todos aqueles que tivessem restrições similares que se encontrassem
a caçoar de sua ostentação: não havia a menor dúvida de que ele con- numa reun ião na quarta-feira segu inte.

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No mesmo dia em que apareceu o comunicado da Seção 100, um novo tudei rapidamente as anotações de Processo em casa e depois larguei-
alarme espalhou-se pela Seção 2. Mas nada tinha a ver com " Inciden- as. Moderação, disse a mim mesmo. Moderação. Ainda me mantinha
tes" ou protestos. Nicky Morris anunciara que na manhã seguinte fa- calmo quando cheguei à fac uldade na manhã de sexta-feira. Perto de
ria uma prova . meu armário, um grupo de homens e mulheres da turma form ulava
- Não vai contar - garantiu Nick y, levantando as mãos para perguntas sobre Processo uns aos outros. Era evidente que haviam es-
conter o tumulto que se seguiu ao anúncio. - Não terá nada a ver com tudado muito, como Stephen previra. Discorria m desembaraçados so-
as notas finais. Claro que vou conferir o aproveitamento, mas quero bre causas que eu nem podia lembrar. T entei ignorá-los e me afastei.
apenas que tenham alguma experiência de prestação de exames e tam- Em minha caixa de correspondência, em Langdell , encontrei uma
bém gostaria de verificar o que absorveram até agora do que tenho en- cópia de nosso memorial, que entregáramos a Peter Geocaris por oca-
sinado. Podem fazer a prova anonimamente ou nem fazê-la. A opção sião da defesa oral, pedindo-lhe que lesse e comentasse. Eu ainda não
é de cada um. Mas aconselho todos a fazerem . E, por favor, não estu- conversara com Peter sobre a defesa oral. Ele ti vera de sair para uma
dem por mais de urna ou duas horas. aula assim que termináramos e eu o evitava desde então. Peter anexa-
Além dos propósitos que mencionou, creio que Nicky também que- ra um longo bilhete pessoal ao memoria l.
ria nos proporcionar um pouco de segurança e noção do ponto em que "Seu sumário não foi tão ruim quanto a defesa oral," escreveu
nos encontrávamos, coisas de que precisávamos há semanas. Mas ocor- Peter, " mas eu estaria mentindo se dissesse que me sinto orgulhoso
rendo naquele momento, tal iniciativa a umentou ainda mais o clima de qualquer dos dois. Já vi memoriais piores e ouvi defesas orais pio-
de tensão e competição criado pelas defesas orais em Métodos. Nicky res, mas sei do que você é capaz. Francamente , eu esperava muito
dissera que seria uma prova formal, em condições autênticas; por esse mais ."
motivo, muitos achavam que o teste e seus resultados seriam urna indi- O bilhete era brusco e eu não estava preparado para enfrentar ou-
cação indubitável das posições futuras. Não foram poucos os que no tra vez tudo o q ue sentira na sema na passada. Minha primeira reação
mesmo instante mergulharam de volta no pânico que prevalecera du- foi de raiva. Joguei o memorial no chão. Talvez o tenha chutado. Não
rante as últimas semanas. agüento mais toda essa besteira irritante de excelência, pensei. Mas,
Stephen a bordou-me assim que a a ula terminou. Estava visivel- depois, comecei a me questionar: na verdade, de quem é a culpa? Com
mente agitado. quem você está furioso? Peguei o memorial, tirei o bilhete de Peter,
- Vamos nos reunir, certo? Todo o grupo? Para falar sobre Pro- deixei o documento para Willie. Subitamente deprimido outra vez, saí
cesso? para o corredor, onde me encontrei com Stephen.
Aqui estamos de novo, na já conhecida encruzilhada emocional J á soube? - ele me perguntou.
entre o pânico e o retraimento. Terry já escolhera o segundo caminho. - Soube o quê?
Sentava atrás de mim em Processo e sacudira a cabeça quando eu lhe - Não vai acreditar.
pergunta ra se faria o teste. Stephen me levou a té seu a rmário e pegou um exemplar de um
- Não há a menor possibilidade - ele respondera. - Não vou jornal matutino . Abriu numa página interna. A matéria era pequena,
me esforçar por nada. Não ponho minha grana em jogo quando eles em uma única coluna. O títu lo dizia " Protesto dos Estudantes de Di-
- - -·- estão apenas se exercitando na pista . Não vou fazer nenhum exame
quando não estou absolutamente preparado.
reito de Harvard" e a notícia desc revia o Incidente e a criação da Se-
ção 100. O nome de Perini era mencionado algumas vezes, mas a única
Eu tendia para uma reação mais moderada. Disse a Stephen que crítica direta a ele ocorria no final da matéria - uma citação literal
tencionava fazer o exame, mas não via necessidade de urna sessão in- do único parágrafo crítico da carta que 29 a lunos enviaram a Pcrini .
tensiva do grupo de estudo. Lembrei-lhe que Morris dissera que não Fiquei mo rtificado.
precisaríamos de mais do que uma hora de estudo. - Por que eles publicaram ·isso? - perguntei a Stephen . - Co-
- Não seja ingênuo - protestou Stephen . -Todo mundo já es- mo conseguiram a cana?
tá subindo pelas paredes. Vão estudar durante a noite inteira . Deve- - Talvez pensem que vamos fazer uma gra nde manifestação de
mos nos reunir para ter alguma chance. protesto, todo mundo sentado na frente da faculdade .
Aubrey e até mesmo Kyle, embora absorvido com a Seção 100, Stephen explicou que um homem da turma vivia com uma mulher
concordaram . Assim, nós quatro nos reunimos ao fi nal da tarde. Eu que era repórter. Ela vira a declaração da Seção 100 e tudo partira daí.
não me sentia feliz por estar ali e fui embora depois de uma hora. Es- Segundo os rumores, ela procurara Wade Strunk, que fornecera todas

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as informações, inclusive o trecho da carta que enviáramos a Perini. mas semanas aflorou como uma enorme onda de angústia, medo e con-
Era essa parte que me perturbava. Eu assinara a carta e me sentia res- fusão. Como, como, pensei, com um espanto súbito e profundo , eu
ponsável pelo que acontecera. Pensara que era um questão particul_ar. pudera voltar àquele ponto tão baixo de ter de provar a mim mesmo?
Nunca desejara que a carta se tornasse um elemento em qualquer tipo De repente, tudo o que podia sentir era o tipo de desonra e fracasso
de humilhação pública a Perini. que sucedera a tudo o que fizera nas últimas semanas. Tinha certeza ,
Stephen não sabia de mais nada e seguiu para a aula de Responsa- uma r.erteza desesperada, que aconteceria de novo agora. Não podia
bilidade Civil , onde poderia obter novas informações. Procurei Lind- haver a menor dúvida. E não consegui tirar da cabeça essa certeza de
I sey Steiner, a mulher que pedira a todos para fi carem depois da aula, fracasso . E, assim, em poucos minutos, a profecia se consumara .
no dia do Incidente. Haviam me dito que ela estivera com Perini na- Depois de três quartos do breve período de exame, rasguei tudo
quela manhã. o que escrevera e tentei produzir alguma coisa coerente. Não havia jei-
- Ele está furioso - disse-me Lindsey - , e muito furioso. Fui to de recuperar o terreno perdido . Sabia que fracassara quando Nicky
pedir desculpas, mas ele mal podia falar. Muitas pessoas com quem me chamou - um fracasso total. Agora, a vergonha e angústia acu-
tem contato vão ler a notícia. É um tremendo constrangimento para muladas eram opressivas demais. Muita da aflição decorria da sensa-
ele. Está consternado pela publicação da carta. Disse que foi uma que- ção de me encontrar numa espiral descendente, o que agravava o
bra da confidência. E disse também que vai considerar responsabilida- ressentimento e medo. Sabia que precisava tomar alguma providência.
de de todos os que assinaram. Assim que a aula terminou, fui ao porão de Pound, onde fica o
- Essa não! Centro de Saúde da Faculdade de Direito. Há uma psiquiatra de plan-
Lindsey deu de ombros e me garantiu: tão ali, tão disponível quanto um extintor de incêndio na parede em
- Ele vai esfriar. caso de emergência.
- E foi mesmo Wade? Tentei jovialmente manter uma encenação quando cheguei. Apon-
Lindsey olhou ao redor, a fim de verificar quem podia estar escu- tei para a porta da psiquiatra e perguntei:
tando, antes de responder. - Quanto se precisa gemer para falar com ela?
- Todo mundo já falou com Wade, mas ele nem mesmo percebe Muito alto, era a resposta. A enfermeira indagou suavemente se
o que fez de errado. É muito inocente. eu era um suicida em potencial. Não, claro que não , respondi, estava
Inocente uma ova!, pensei. Fui para meu lugar, fervendo de rai- apenas angustiado. Havia muitas pessoas nessa categoria na HLS. Eu
va. Não consegui prestar atenção a Zechman naquela manhã. Se não teria de esperar até depois do Dia de Ação de Graças para falar com
fosse pelo uso indevido da carta, acharia que Perini fizera a própria a psiquiatra. Aceitei sombriamente a resposta e fui para casa.
cama. Mas ele estava certo - houvera uma violação no caso. Fora des- Permaneci em agonia e confusão durante o fim de semana. Nun-
tratado por uma fonte imprópria. Eu me sentia culpado e cada vez mais ca antes fracassara num exame. E não fazia diferença o fato de que
deprimido. De vez em quando pensava em Peter e a depressão au- não teria qualquer influência em minha nota final. Recebera a confir-
mentava. mação da suspeita de que não passava de um fracasso ridículo, mise-
No intervalo entre Responsabilidade Civil e Processo, o grupo de rável, indigno. A desgraça revolvia-se dentro de mim como garras de
estudo tornou a se reunir , a fim de discutir o exame. Eu ainda não po- fogo. O mundo como eu o via era povoado apenas por aqueles a quem
dia me concentrar. Ao voltarmos a Langdell, o acréscimo do nervosis- desapontara e magoara: Mann, Perini, Blaustein, Peter , meus amigos,
mo pelo exame me deixou desorientado. Nicky distribuiu os cadernos meus pais, minha mulher. E todos esses sentimentos se agravaram ain-
de exames. Lembrei nitidamente o dia, poucos anos antes, em que ter- da mais na manhã de segunda-feira, quando voltei à faculdade, o local
minara meu curso superior de inglês e exultara ao fazer o último exa- do crime. Fui para Hark ness, a fim de tomar uma xícara de chocolate
me. Nicky enunciou a questão: - os nervos estavam tensos demais para café. Peguei o caderno de ano-
- Analisem a causa de Pennoyer v. Neff. tações e escrevi as palavras que aparecem no início deste livro.
Teríamos de fazer um breve ensaio sobre algumas das noções prin-
cipais no problema da jurisdição, um assunto que estudáramos nos dois
primeiros meses. Não parecia tão difícil assim. Não sei como, a rras tei-me pelos dez dias seguintes. Não me sentia me-
Mas quando abri o caderno de exame, também se abriu dentro lhor, mas também não estava pior. Não houve mais crises .
de mim uma comporta emocional. Tudo o que se acumulara nas úl ti- Perini reconci liou-se com a turma na segunda-feira . Estava um

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pouco amargo desta vez. Fez um comentário sobre as coisas que se lêern Foi esse tipo de caridade em relação a mim mesmo que caracteri-
nos jornais. Depois, chamou Mooney. Não foi mais gentil nem mais zou O fim de semana. Decidi que, de um modo geral, era uma pessoa
duro com ele do que com os outros. Parecia uma maneira eficaz de sã. Na segunda-feira já me sentia bastante controlado para cancelar
pôr um ponto final ao episódio. a consulta com a psiquiatra. Ficara um pouco abalado, concluí , mas
A reunião da Seção 100 foi realizada, mas só trinta pessoas com- isso era uma conseqüência tanto da experiência quanto de alguma cri-
pareceram e o gru po prontamente se dissolveu. Cont aram-me que Kyle se pessoal. Comecei a ler alguma coi a da extensa literatura psicológi-
escrevera uma carta a Perini se desculpando. ca sobre a faculdade de direito e descobri que minha crise nada _tinha
Ao final da semana, Nicky fez outro teste. Era curto, de múltipla de excepcional, o que me tranq üilizou. "Nunca vi ansiedades mais ma-
escolha, a ser feito em casa. Eu me sentia mais seguro em meu estúdio nifestas num gru po de pessoas em circunstâncias ' normais' do que _é
e procurei fazer o teste com todo cuidado. visível nos estudantes do primeiro ano de direito", escrevera um psi-
Senti-me desesperadamente grato pelo descanso quando o Dia de quiatra. À medida_ que o ano fo i pas~ando, pude const~tar que_ muit~s
Ação de Graças chegou. O sono pareceu contribuir muito para me cu- primeiranistas haviam entrado em cnse, alguns de maneiras muiLO ma~s
rar. Marsha, uma querida amiga da Califórnia, estava de visita. Pas- intensas e angustiantes do que a min ha. Sei de pelo menos uma tentall-
samos o Dia de Ação de Graças com ela. Depois, Annette a acompa- va de suicídio na minha turma e houve muitas pessoas que confiden-
nhou até Connecticut, onde passariam alguns dias com a família de ciaram que haviam sido levadas a passar pela porta de um psiquiatra
Marsha. pela primeira vez em suas vidas, em decorrência das experiências ~o
Fiquei sozinho em Arlington. Precisava estudar . Apesar de todas primeiro ano da Faculdade de Direito de Harvard. O fato de que exis-
as resoluções do início do período, o grupo de estudo empenhava-se te um psiquiatra di ponível na faculdade é bastante indicativo .
agora em fazer um sumário do curso de Penal de Mano, em preparati- Nâo resta a menor dúvida de que alguns que passaram por mo-
vo para o exame. Seu livro de causas era novo e ainda não havia ne- mentos difíceis durante o primeiro ano da faculdade de direito já ti-
nhum guia comercial disponível. E o curso fora tão desorganizado que nham uma instabilidade p icológica, que seria agravada com tantas
todos tivéramos de concordar que era preciso um esforço coletivo pa- pressões. Mas, de um modo geral, resisto à sugestão de que muitos alu-
ra ter uma visão coerente. Eu sabia que era melhor fazer a minha parte nos da HLS que mergul ham em prolongados acesso de pânico, ansie-
agora, faltando apenas três semanas para acabar o semestre . dade e desespero devem arcar com toda a cul pa.
Um tanto apático, tentei trabalhar no sumário, durante o fi m de se- Ao final do ano, ouvi Nicky Morris falar a uma multidão de estu-
mana. Passei a maior parte do tempo andando de um lado para outro do dantes sobre a educação ju rídica em Harvard. Ele disse uma coisa que
apartamento vazio, tentando definir exatamente o que me acontecera du- vale a pena repetir:
rante o último mês. Reconheci muitas das coisas que tenho repetido aqui - Estou sempre encontrando grad uados da Faculdade de Direi-
sobre as exigências da vida estudantil e da Faculdade de Direito de Har- to de Harvard , pessoas de todas as idades, que me dizem que "o tribu-
vard. Compreendi que outro preço que pagamos pelo tamanho da HLS nal não mete medo". Muitos são homens que lutaram na Segunda
é a perda de confiança, o fato de que há gente demais para se manter os Guerra Mundial, Coréia ou Vietnã e a maioria diz que, mesmo com
vínculos ínt imos, os quais poderiam impedir a circulação de rumores e a tais experiências, nunca se sentiu tão assustada ou oprimida quanto
paranóia que vinham me levando à loucura ultimamente. nos tempos de estudante de direito em Harvard; e que depois, em com-
E conhecera mais um pouco do " meu injmigo" , aquele amontoa- paração, a ansiedade em entrar num tribunal pela primeira vez não foi
do estranho e indefinido de reconhecimentos furtivos e enervantes, a nada.
respeito de mim mesmo e do que havia ao meu redor, a que mais e "Sinto-me satisfei to se podemos preparar nossos alunos para se
mais me sentia disposto a conceder esse nome. As últimas ocorrências sentirem tão confiantes no desempenho de seus deveres profissionais.
haviam sido a defesa oral e o teste de Nicky, quando eu tentara, sensa- Mas não me enche de orgulho ser pane de uma instituição que propor-
ta ou insensatamente, me controlar no meio do estouro da boiada. cionou a tantas pessoas os piores momento de suas vidas. Não creio
Tinha de admitir agora que ainda não possuía força suficiente para que sej a uma coisa positiva dizer i o are peito desta faculdade. Acho
resistir sozinho. Refletindo sobre os exames em janeiro, concluí que que deve haver alguma coisa errada num lugar a sim ."
deveria mais ou menos abandonar a esperança de manter qualquer pers- Nicky balançou a cabeça, enquanto corria os olhos por t0dos nós,
pectiva. A saúde, naquelas circunstâncias, podia muito bem ser ades- e repetiu :
cul pa oferecida a mim mesmo para desistir. - Alguma co isa ...

124 125
DEZEMBRO E JANEIRO

Provas (Primeiro Ato)

4 / 12175
(Sexta-feira)

Pela primeira vez em um mês, senti alguma paz e prazer esta semana
na HLS . Um momento atrás estava rindo de mim mesmo. Pensando
no dia, eu me senti ao mesmo tempo exultante, deprimido e confuso.
Compreendi que só poderia esta r na faculdade de direito.
Nicky Morris devolveu hoje os dois testes que nos passou. Es-
palhou os cadern os de exame sobre o pódio largo ao entrar e os alu-
nos no instante seguinte se agruparam ao redor . E logo depois come-
çou a comparação de notas, extraordinaria mente rápida e sem hesi-
tação .
Como já sabia há muito, não me saí bem no ensaio de análise da
causa. Nick y inventou um critério bastante generoso, muito diferente
do rigor que será usado nos exames dentro de um mês. Recebi um C
- muito melhor do que esperava. Mas houve apenas vinte conceitos
abaixo de 8 na tu rma e Nick y disse bruscamente que tais a lunos de-
viam ficar " preocupados " . Minha consternação foi atenuada pelo so-
frimento a nterior a propósito do teste e pelo fato de ter recebido uma
das melhores notas no exame de múltipla escolha. Quando conversei
com Morris, mais tarde , em seu gabinete, ele disse para não me preo-
cupar com o ensaio; e resolvi aceitar seu conselho.
Para a maioria, no entanto, os testes marcaram o clima do dia .
Muitas pessoas - entre as quais Stephen - ficaram desoladas com
seu 8, es pecialmente no ensaio , a que Nicky sem dúvida dera um peso

127
maior._E ninguém_se_de~ ao trabalho_ de tomar conhecimento de meu
C. Creio que a ma1ona ficou convencida de que eu não passava de um ?ºS
Assim, os resultados testes de Nicky Morris só serviam para
palerma. acentuar uma tensão que Já estava se tornando pronunciada. Agora,
Os estudantes com um A - Aubrey foi um deles - tentaram s todos nos detínhamos uns aos outros no almoço, nos corredores fa-
m~strar_modestos, mas não foram capazes de disfarçar muito bem su: zendo perguntas sobre causas e conceitos que estudáramos no i~ício
'· do período. E os grupos de estudo se tornavam mais ativos. Algumas
sat1sfaçao. Kyle estav~ particularmente feliz e com bons motivos. Nicky
escrevera um longo bilhete sobre seu exame, dizendo que era o melhor pessoas preferiam trabalhar sozinhas, porque não queriam depender
que lera. dos outros ou,apenas porque achavam que aprendiam melhor indepen-
. Observar a poderosa influência dos testes e notas sobre todos nós dentemente. Aquela altura, porém, a maioria dos alunos da turm a en-
foi um p~uco pertur~ado_r. Não posso deixar de especular sobre como contrara o caminho para algum grupo, quase todos reunindo-se várias
será o mes até 9 de Janeiro, quando faremos o primeiro exame. vezes por semana, a fim de trocar informações e sumários, no empe-
nho de passar nos testes.
Os exames fi nais atuam no mundo de um estudante de direito como Meu grupo estava especialmente sério, em grande parte como
~1guma lua numa ór?i t! e~ci!ntrica. Estão sempre à vista; mas enquan- decorrência dos esforços de Stephen, que se tornava mais nervoso
.o se encontram a d1sta_nc1a, servem apenas para criar as tensões que a cada dia, na perspectiva dos exames. Stephen divorciara-se cerca
se avoluma!11 tod?s os dias, como as marés - !er, manter o ritmo, com- de um ano antes de ingressar na faculdade de direito . Ainda conti -
preender. A 1:1ed1da que os exames se aproximam, no entanto, em de- nuava perturbado pelo casamento. Falava com freqüência da ex-esposa,
zembro e maio , sua força gravitacional começa a provocar abalos e num tom alternadamente triste e amargo. Vivia sozinho agora, num
desabamentos. pequeno apartamento em Watertown, creio que a faculdade de direito
foi uma das primeiras coisas que encontrara para afasta r seus pensa-
Quando voltamo_s, dep_ois do fim de semana do Dia de Ação
mentos de solidão. Tornara-se cada vez mais envolvido com a faculda-
de Graças, pu_de s~nt1r o clima de exame prevalecendo. Muitos dos
de, sempre a par de muitas histórias, a suscetibilidade às exigências
es~u~anres mais adiantados, que já haviam passado por exames antes,
ex1~1am expressões sombrias. Ao se encontrarem nos corredores a aumentando, ainda mais porque possuía um talento óbvio para o
maioria g!acejav_a, dizia como todos se sentiriam muito melhor den{ro direito .
Pouco a pouco, Stephen destacara-se como uma das pessoas com
de um _mes e meio. Para um aluno do primeiro ano, isso não era um
bom smal. quem sempre se podia contar para dizer alguma coisa realmente im-
portante. O mesmo acontecia em relação a Hochschild, Stern e Cau-
Também fiquei impressior.ado com a aparência dos livros verme-
ley. Só que Stephen era o mais apreciado pelos colegas. Os outro
lhos. Em cada a no _leti_vo, ao final do outono, a faculdade publica 0s
tinham talento para aparar uma idéia, descascá-la como uma cebo-
textos d_?S exan:ies f10a1s do ano anterior. Os testes antigos de um pro-
la, até que nada mais restasse; mas Stephen era um construtor inte-
fessor sa~ considerados pelos estuda ntes como uma boa indicação pa-
lectual, alguém que podia pegar uma mera noção e convertê-la em
ra o~ tópico~ qu~ ele con~idera mais importantes e sobre os aspectos algo mais completo - um conceito, uma política. Poucas vezes se
legais a q~e e ma1s_recept1vo. Todos os anos, os estudantes examinam oferecia espontaneamente para falar em aula - era inibido demais
com a maior at~nçao os testes passados . Este ano um pro fessor repetiu para isso -, mas quando era chamado ou fazia uma de suas raras
um teste que fizera há três ou quatro a nos e teve de dar um recorde observações, Stephen apresentava respostas precisas e bem fundamen-
de conceitos máximos.
tadas, os professores muitas vezes elogiavam o vigor de seus argu-
_Os ~estes são publicados em dois volumes encadernados, um para mentos. Aubrey, Terry e eu nos encontrávamos depois das aulas, ba-
o pnme1ro ano e o outro para os demais, as capas de uma tonalidade lançando a cabeça em admiração pela fluência e inteligência de Ste-
de vermel~o tão_vibrante que _os próprios livros parecem um pouco alar-
phen.
mantes. Sao deixados em caixas nos túneis, quase todos sendo retira- - Ele é mesmo brilhante - Aubrey comentava com freqüência.
~os no mesmo dia. O mais significativo para mim era o mero fa to dos Apesar de todo esse talento manifesto, Stephen não estava menos
livros serem publicados. Que a faculdade se desse ao trabalho e ban- assustado do que nós com a perspectiva dos exames. Creio que se trata
casse aquela despesa indicava como todos , pro fessores e administra- de uma pessoa nervosa por disposição. Uma tarde, ao final de novem-
dore~, levavam a sério os exames ; era como um carim bo oficial, bro , ele pediu uma reunião do grupo de estudo, a fim de discutirmos
confirmando sua importância.
os planos de preparação para os exames.
128 129
- Todos nós estamos indo muito bem - disse Stephen, enquan- nar a faculdade e todos comentamos vá rias vezes que a participação
to corria os olhos pela mesa. - Estamos bem avançados, em compa- na revista era uma ajuda valiosa numa carreira acadêmica. Mas Terry
ração com o resto da turma . Nossa situação é muito melhor. não gostava de pensar que só ele sucumbi ra à mística da revista de
Todos protestamos e desconfio que a opinião de Stephen era na direito.
verdade o oposto . Como muitas pessoas, ele era propenso a dize r o - Está querendo dizer que nem mesmo te ntaria? Não dá para
contrário do que sentia sobre os assuntos que o deixavam contrafeito. acreditar. Eu tentaria, admito.
Por exemplo, dizia-me com freqüência que detestava o direito e a fa- - Ainda não percebo a va ntagem - declarei. - Cinqüenta ho -
culdade, ao mesmo tempo em que se dedicava ao máximo. Naquele ras por semana de trabalho extra. E enterrado na bibli oteca? Para que
caso, não havia sentido em discutir , pois Stephen levantou a mão no preciso disso?
mesmo instante e disse: Perguntei se Stephen acei ta ria.
- Estamos indo bem, mas podemos fazer ainda melhor.
- Nunca - ele respondeu . - É uma loucura.
A esta altura, Stephen expôs seu plano para o sumário de Direito
Penal. Exigiria que todos nós resumíssemos as anotações de aula e cau- - Ei, cara - interveio Terry - , mas você gos taria de ser indica-
sas, as descrições e referências das partes relevantes do Código Penal do, mesmo que recusasse, cerro? Vamos, reconheça. Seria sensaciona l
ser considerado tão bom.
Modelo, depois integrássemos todas essas informações. Seria um es-
forço longo e penoso e todos resistimos, mas a lógica de Stephen pare- - Não tenho certeza - respondi . - Espero não fi car com oco-
cia inevitável ao considerarmos a desorganização do curso. Com alguma ração partido se não me sair tão bem.
relutância, cada um assumiu a responsabilidade por uma parte dife- Eu me concentrava em desenvolver esse tipo de atitude desde que
rente do trabalho do semestre e concordou em apresentar determina- saíra da depressão em novembro. Percebera o quanto me deixara ab-
dos segmentos do sumário, em vários prazos. Também prometemos sorver pela ética do sucesso; fora implacável demais com meus erros
nos encontrar todos os dias, depois do Dia de Ação de Graças, a fim e desempenhos medíocres. Um esforço sincero era tudo o que devia
de discutir o que aprontáramos . a mim mesmo . E acrescentei :
As sessões de análise iniciais foram proveitosas. Trabalhávamos - Creio q ue é um tipo de desejo horrível sentir que tem de ser
juntos até seis horas mais ou menos, interrogando um ao outro, pro- melhor do que os outros.
curando esclarecer, depois conversávamos por mais meia hora sobre Aubrey interveio:
os acontecimentos na faculdade , especialmente na revista de direito . - Por que é tão horrível assim? Não há nada de errado nisso.
À medida que os exames se aproximavam, a revista de direito parecia É o que faz o mundo anda r. Pa ra ser franco , eu adoraria entrar na
de certa forma dominar as conversas. Trocávamos constantes impres- revista. Abre todas as portas. Eu aproveitaria a oportunidade com a
sões sobre os melhores candidatos - Hochschild , Sandy, Stern . De- maior satisfação.
pois dos testes de Nicky, Stephen concluiu que Kyle era uma barbada. Terry acenou com a cabeça em concordância. Repeti que não me
Muitas vezes lhe dizíamos que também era um dos principais candida- interessava. Stephen também . Mas eu sabia que estava sendo um pou-
tos, mas Stephen se recusava a admitir a possibilidade. Estávamos sen- co insincero. Havia um outro lado em meus sentimentos. Não tinha
tados urna noite, numa das salas do Pound , conversando depois da o menor desejo de fazer o trabalho da revista. E estava determinado
sessão do grupo de estudo, quando alguém me apontou corno um pos- a me satisfazer com menos. Mas havia momentos em que imaginava
sível candidato. que meus melhores esforços eram bastante bons para ter a oportuni-
Sacudi a cabeça e declarei que não possuía o tipo de mente ne- dade de recusar o ingresso na revista. Ainda não tinha uma idéia defi-
cessária. nida de quão longe poderia alcançar com o direito e, como tantos alunos
- E devo dizer mais urna coisa - acrescentei . - Eu não acei- do primeiro ano , ouvira falar com tal freqüência da revista que passa-
taria. ra a considerá-la como o símbolo de um sucesso que, de outra forma.
Terry não quis acreditar. Vinha aproveitando bem o tempo em era difícil determ inar. Agradava-me pensar na conquista desse tipo de
que não estava em aula e ultimamente passava horas na biblioteca, lendo posição e prestígio. E, Deus sabe, esforçara-me o suficiente, como a
artigos da revista de direito sobre qualquer coisa que achasse interes- maioria dos meus colegas, para achar que merecia alguma recompensa
sante. Durante esse tempo, adquirira o maior entusiasmo pela cultura extraordinária.
jurídica. Até falava em se tornar professor de direito depois de terrni- No dia seguinte eu conversava com Terry na biblioteca quando
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o assunto da revista tornou a surgir, como aconteciá com freqüência como pode se preocupar com seis dólares pelo Nutshe/1 de Processo
agora. É difícil resistir a Terry, especialmente quando ele pensa que Penal?
descobriu uma verdade. Tive de ceder. E eu concordava. Afinal, poderia vendê-lo no ano seguinte no se-
Vamos, reconheça logo. Você gostaria pelo menos de ser esco- bo da faculdade. Devo ter gastado assim pelo menos cem dólares
lhido. Os professores faziam o pouco que podiam para atenuar nos~a
Está bem, admito isso - respondi. - De certa forma, eu até apreensão_óbvia. Mann e Zechman descreveram em detalhes os testes
que gostaria. que P!aneJavam dar. O de Mann teria uma duração de oito horas e
Terry riu e me esmurrou o braço de brincadeira. poderia ser levado para casa; exigiria que relacionássemos uma situa-
- Certo? ção concr~ta com o Código Penal Modelo e delineássemos as questões
- Certo . processuais. Em Responsabilidade Civil, o teste duraria apenas quatro
Mas senti que fizera uma coisa arriscada, uma coisa bastante pe- horas, mas teríamos de fazê-lo na faculdade, juntos, com os inspeto-
rigosa, no instante em que falei. res. Cada professor tentou nos dar alguns conselhos. Mano mostrou
um exemplo de resposta ao teste do ano anterior. Zechman adiou o
Ao iniciarmos a última semana do período, imediatamente antes do início ?e uma d~s últimas aulas por quase vinte minutos, enquanto nos
Natal, a maioria dos estudantes pareceu abandonar qualquer esforço oferecia sugestoes sobre a melhor maneira de fazer uma revisão da
em manter uma fachada indiferente diante dos exames. Os sinais de matéria.
profunda apreensão eram amplos. Sempre que ia à biblioteca, eu en- Por mais bem-intencionados que fossem os conselhos no entanto
contrava longas filas em cada máquina de Xerox, enquanto as pessoas ainda tínhamos de viver pessoalmente o processo de exam~. Até lá ha~
esperavam para copiar edições anteriores dos livros vermelhos ou ar- v_eria tensão. cujos indícios eram cada vez mais visíveis para mim, em'par-
tigos da revista de direito, que muitos diziam conter resumos bastan- ticular no grupo de estudo, onde as relações se deterioravam rapidamente.
te explicativos do material em vários cursos. Todos na faculdade pa- Aub~ey fic_'.1ra ab?rrecido com a desorganização das sessões vespertinas
reciam se queixar que jamais conseguiriam concluir os trabalhos das de d1scussao e deixara de comparecer, achando que seria mai proveito-
aulas a tempo de efetuarem uma revisão meticulosa de todas as maté- s?_usar s~u tempo sozinho. Stephen irritara-se com Terry, que em sua opi-
rias. Karen Sondergard agora chorava quatro a cinco vezes por dia. mao fazia um trabalho desleixado em suas panes do sumári o de Pena l.
E os estudantes que viviam nos dormitórios no campus contavam que Terry, sempre empenhado em fazer as coisas à sua própria maneira, fi -
havia pessoas correndo de um lado para outro dos corredores, gri- cou furioso com as críticas. Eu me sentia em geral contrariado com o su-
tando perguntas umas para as outras, a todas as horas do dia e da n:iário, em particular com os padrões rígidos que Stephen parecia ter
noite. fixado. Correndo para terminar minhas panes antes do fin al das aulas
- -- - ---...- Para mim, as ansiedades manifestavam-se pela aquisição dispen- sentia-me como se fosse pouco mais que um empregado de Stephen. '
diosa de hornbooks, sumários e estudos dirigidos. A compra desses - Amplie um pouco mais os resumos das causas - ele dissera
acessórios de estudo aumentou tanto que alguém instalou um balcão bruscamente, ao ver as primeiras partes que entreguei.
de venda na entrada do refeitório; eu era um dos maiores fregueses. _Eu ac_hava que ~odo aquele trabalho era um elefante branco, qua-
Ao final da última semana, sabia que acumulara mais acessórios do se nao vaha a _energia que estávamos aplicando na preparação. O que
que poderia examinar até a segunda semana de janeiro, más não po- fazíamos , basicamente, ao que parecia, era acalmar os nervos de Ste-
dia resistir às minhas inseguranças. Os exames de Responsabilidade phen . Com os exames se aproximando, eu podia imaginar melhores
Civil e Penal seriam de "livro aberto", significando que poderíamos usos para o meu tempo .
consultar qualquer fonte impressa durante sua realização. Fiquei con- Qualquer que fosse a tensão entre nós quatro, era branda em con-
vencido de que a obra que deixasse de comprar haveria de ser a cru- traste com o que sentíamos em relação a Kyle . Desde o início que K yle
cial. Junto com Stephen, fiz diversas expedições à livraria na Har- estivera um tanto isolado de nós, porque era mais j ovem e vinha direto
vard Square, onde havia uma abundância de acessórios para o es- do colégio. Ele se ressentia com a distância. Queixara-se a mim a lgu-
tudo jurídico; em cada ocasião, sempre comprava mais alguma coisa. mas vezes por ser tratado como "o garoto". Tenho a impressão de que
Minhas próprias dú vidas e os argumentos de Stephen sempre me per- o surgimento da Seção 100, a que nenhum de nós aderira convencera-
suadiam . º de que havia personalidades mais simpáticas entre os ' membros da
- Depois de três mil dólares de taxa escolar - dizia Stephen - , Guild .

132 133
Em conseqüência, ele se tornara pessoalmente retraído; e depois Era o final de dezembro na Faculdade de Direito de Harvard. O
do início de dezembro , também se afastara da maioria das atividades início dos feriados .
do grupo. Anunciou primeiro que não compareceria a nenhuma das
sessões do grupo de estudo porque se atrasara muito em seu trabalho
durante o Incidente. Sabíamos que era verdade e nós quatro aceitamos
sua ausência sem qualquer protesto. Mas à medida que foi se tornan- 21/12/ 75
do evidente que Kyle não concluiria a tempo sua parte no sumário, dei- (Domingo)
xamos de ser tão generosos, ainda mais porque ele já recebera com a
maior satisfação o que os outros haviam produzido.
Tiramos a sorte e fui enviado para descobrir se ele ia mesmo fazer As aulas terminaram e todos estão seguindo para suas casas e os feria-
o trabalho . Em seu desespero para recuperar o tempo perdido, Kyle dos . Logo desligarão o sistema de aquecimento na HLS. Annette e eu
quase não aparecia na faculdade e tive de falar-lhe pelo telefone. Ele voaremos para Chicago na quarta-feira, passando os feriados com nos-
me garantiu que faria o trabalho. No meio da semana seguinte, po- sas famílias.
rém, teve de admitir que não seria possível concluí-lo antes de todos Apesar ~o clima de ran~or e t~nsão, os eventos finais do períod0
partirmos nos feriados do Natal. Disse que nos mandaria as cópias pe- correram muito bem. Na qumta-fe1ra passada o curso de Métodos Le-
lo correio. gais foi concluído com o "julgamento" de Katz v. Grueman. Jack
Quando transmiti a informação aos outros, todos partilhamos os fina}mente obte_ve justiça. Tudo bastante autêntico. O julgamento foi
maus pressentimentos. Terry expressou em voz alta o que os outros realizado no Tnbunal Ames, no segundo andar de Austin, uma enor-
pensavam, que o sumário de Kyle nunca chegaria; e Aubrey, embora me câmara revestida com painéis de carvalho, botaréus e bancadas
mais brando, também manifestou sua insatisfação . Kyle, disse ele, fi- judiciais. Um juiz de verdade do Tribunal Superior do Condado de
cara um pouco impressionado consigo mesmo, deixara de se preocu- Middlesex presidiu o julgamento, com dois advogados de Boston dis-
par tanto com as suas responsabilidades quanto deveria fazê-lo nor- c~tindo a causa etapa por etapa. Katz foi representado por um rís-
malmente. Stephen era o mais furioso . p~do e corpulento advogado tributário da cidade, que respondeu ha-
- Da próxima vez que falar com ele - disse-me Stephen - , bilmente às perguntas na reinquirição e ganhou não apenas os aplau-
mande-o à merda. sos estrepitosos dos primeiranistas ali reunidos, torcendo por ele há
Contudo, um dia depois, Stephen também anunciou que não se- muito tempo, mas também um veredito favorável para uma indeni-
ria capaz de completar a parte final de seu sumário antes de partirmos. zação de 231 mil dólares, quando o júri de estudantes de Harvard
Fixara um padrão tão detalhado para o trabalho que nem mesmo ele concluiu suas deliberações, muito depois de meia-noite. O compare-
podia concluí-lo a tempo. Terry ficou irritado ao saber disso. Não com- cimento ao julgamento não foi dos maiores, com os 1Ls sobrecarre-
parecera às aulas de Penal nas três últimas semanas, a fim de estudar gados demais nos preparativos dos exames próximos, mas a reação dos
os comentários e artigos de revista sobre o Código Penal Modelo e já presentes foi bastante instrutiva . A maioria estava entediada . Muitos
apresentara a pesquisa ao grupo. Em troca, ele esperava que os últi- dos ~eus colegas _nunca haviam entrado num tribunal e não podiam
mos dias antes dos feriados fossem aproveitados num esforço mútuo acreditar que um Julgamento de verdade fosse tão vagaroso. De certa
para discutir Responsabilidade Civil, uma matéria que ainda o con- forma, esse é o problema com que o curso de Métodos se defrontou
fundia. Agora que compreendeu que estávamos todos absorvidos de- ~urante todo o p~ríodo: convencer-nos de que o trabalho de advogado
mais com Penal para que isso acontecesse, Terry sentia-se ludibriado e geralmente mais enfadonho do que se pode imaginar por Perry Ma-
e culpou Stephen por tudo, já que fora ele quem delineara o projeto son na televisão.
de estudo. Os dois cursos cujas aulas terminaram esta semana também fo-
- Uma coisa tenho de reconhecer, o cara sempre espera demais r~m concluídos muito bem. Mann demonstrou grande dignidade ao par-
- comentou Terry para mim . -Às vezes me pergunto quando ele des- tir. Neste período , pela primeira vez na HLS , as avaliações das cadeiras
liga . pelos estudantes foram divulgadas. Mann ficou amargurado ao tomar
Concordei com Terry, Stephen era mesmo exigente demais . Para conhecimento dos resultados. Graham Heller almoçara com ele na se-
Aubrey, queixei-me que Terry não fizera tudo o que prometera. Só pos- mana passada e informou que Mann comentara que podia muito bem
so imaginar o que os outros disseram a meu respeito. estar exercendo a advocacia corporativa. Hoje, porém, ele já estava

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mais calmo. Reconheceu que o curso não fora muito bem, disse que começou a aula . Subitamente, afastou-se d o pódio, virou-se para nós,
tentara cobrir assuntos em demasia, qu e estava contrariado por não abriu os braços.
ter deixado clara a importância que atribuía aos problemas de direito - Estou simplesmente perdido - declarou ele.
'· penal . A turma aplaudiu, delirante. Quando Zechman se retirou , ao fi -
- Mas quero que saibam que respeito vocês - disse ele à turma nal da aula, foi sob uma estrondosa ovação, com todos de pé.
em geral.
Elogiou nossa inteligência, até mesmo "a arrebatada proteção mú-
tua que dispensam uns aos outros" - creio que uma referência às mui- 28/ 12175
tas ocasiões em que fora vaiado por comentários irônicos ou respostas fDom ingo)
bruscas a perguntas sinceras. Recebeu aplausos ao fazer a tradicional
saída na frente dos estudantes.
Mas a maio r manifestação de apreço foi reservada a Zechman Feriados de Natal em casa. Alguns dias a comer, beber, visita r ami-
na sexta-feira. Quase todos nós passamos além do ponto de mer~ gos. Uma oportunidade de ser o garoto louro de Harvard.
interesse pelo curso e nos tornamos absorvidos, fascinados. A me- Comecei hoje a estudar para os exames . Estudarei cinco o u seis
tade do período fora ded icada ao estudo do que Zechman chamou horas por dia enquanto estivermos aq ui; deixarei as manhãs para dor-
de "a essência da Responsabilidade Civil" - os conceitos de negli- mir, as noites para os amigos e família. Sinto apenas uma pressão sua-
gência e responsabilidade por erro, os tipos de indenização disponí- ve vez ou outra . De um modo geral, estou relaxado e animado.
veis para danos não-intencionais . Zechman ensinou a responsabili- Longe da faculdade, eu me espanto com o frenesi de pressões,
dade por erro como uma idéia de conveniência, combinando filoso- aprendizado e estímulo intelectual em que estive envolvido. O d irei-
fia e economia. Se as precauções contra o dano são menos custosas to, o direito. Provavelmente não fui arrebatado de maneira tão com -
do que os possíveis prejuízos, então dizemos que a pessoa que dei- pleta por alguma coisa desde que entrei na puberdade. Ainda assim ,
xou de adotar tais precauções foi negligente e deve pagar pelos da- escutando as conversas dos amigos, é di fíci l acreditar em tudo o que
nos sofridos. P or semanas Zechman nos persuadiu a endossar essa perdi enqua nto me encontrava tão abso rvido : a temporada de fute-
idéia e todos os seus desdobramentos, e depois, nas últimas nove ou bol americano, os progra mas de televisão, os acontecimentos polí-
dez aulas, empenhou-se numa crítica profunda do conceito de res- ticos, muitos filmes recentes. Quando as pessoas indagam se gosta-
ponsabilidade po r erro. Ao final , estava nos perguntando por que mos da região de Bosto n, digo para fal arem com Anneue. Co nhe-
não responsabilizamos as pessoas po r quaisquer danos que suas a- ço apenas o trecho de três quilômetros entre a fac uldade e o nosso apar-
ções causem , com o u sem precauções. Como sempre, não havia meio tamento .
de interpretá-lo, definir que conjunto de idéias ele apoiava pessoal- Também descobri que é difícil descrever a HLS para os o utros.
mente. Para cada idéia, ele apresentava a mesma defesa desemba- Consideram algo talismân ico e muitas vezes parecem desapo ntados o u
raçada. Contudo, com essa racio nalidade impassível, ele conseguiu confusos quando lhes digo que há algumas coisas er radas por lá.
nos mostrar a profundidade emocionante que existe nas idéias jurí- Descubro-me com freqüência pressionado a descrever qual é o proble-
dicas. ma. Minha tendência é dizer que não é um lugar humano, mas sei que
O dia de ontem foi uma demonstração desinibida da gratidão e a dificuldade po r lá é o fato de todos estarem com os sentimentos exa-
boa-vontade da turma. Quando Zechman estava prestes a começar, um cerbados, torturados por nossas pequenas agonias de dúvida, incom-
aluno levantou-se e anunciou: preensão e preocupação .
- Professor Zechman, a Seção 2 apresenta "Uma Responsabili-
dade Civil".
Seguiu-se uma encenação, com dez ou doze participantes, de uma
das incríveis situações hipotéticas de Zechman, co m rifles e caçadores, 2/ 1176
meteoros e outras coisas insólitas caindo do céu. Zechman recebeu em
seguida diversos presentes, inclusive um pato congelado . Mas, prova-
velmente , o momento mais emocionante ocorreu quando Zechman aca- Feliz Ano-Novo.
bou afrouxando o fo rmalismo inflexível. Depois da apresentação, ele Ao final desta tarde, voltamos para Massachusetts . Senti os pri-

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meiros tremores da ansiedade dos exames me dominarem ontem à Os_exames de definição de questão, obviamente, atribuem um pe-
noite e quase não do rmi. Tento agora estudar Responsabilidade Ci- so considerável ao conhecimento detalhado das normas do direito con-
vil , mas me sinto mui to ato rdoado para fazer a lgum progresso. Fica- suetudinário - leis estas que são seguidas pelos tribunais da maio ria
rei satisfeito se conseguir ma nter o cont role nas próximas duas se- dos estados e que são denominadas às vezes "leis do preto no branco"
ma nas. - e os alunos da HLS protestam j ustamente por isso. Pouco do que
aco ntece nas a ulas visa a desenvolver um conhecimento mais amplo
Fazer a revisão das ma térias para os exames provou ser um dos estu- das normas . Em meus cursos, era importante ser capaz de trabalhar
dos mais árduos que já fiz na vida. Muitos dos a lunos do segundo e com as no rmas, deduzi-las dos casos, compará-las e distingui-las; mas
terceiro a nos que voltaram em ja neiro tinham de enfrentar quatro e à medida que o semestre avançou, mais e mais discussões em aula
até cinco exames. Os primei ranistas só tinham dois, mas ainda assim se concentraram nos aspectos filosó ficos, po líticos, econômicos e ou-
o trabalho de me preparar parecia tremendo. Entre os dois cursos, co- tras preocupações pragmáticas, que justificam as normas e costumam
bríramos cerca de 1.800 páginas de causas, todas de leitura densa e gran- ser englobados sob o nome de " política". Os exames de definição
de parte valendo ser lembrada. Eu também tinha cerca de quinhentas de questão, portanto, a parentemente não avaliam o que foi de fato
páginas de anotações em aula, para não falar dos hornbooks, sumá- aprendido .
rios e compilações, mui tos dos qua is consul tava com freqüência. Mes- Diversos professores reagem a tais críticas. Os exames de defi-
mo numa segunda leitura , o ma terial não era instantaneamente nição de questão são usados há décadas - advogados de sessenta
com preensível. Havia muitas coisas que eu não dera atenção ou deixa e trinta anos foram submetidos - mas muitos professores reconhe-
ra de perceber na pri meira vez e que acha va agora que deveria estudai cem que talvez não sejam mais condizentes com uma educação que
com ma is cuidado. se tornou mais especulativa e intelectual. O ensaio de "análise da
Por isso , passei muito tempo - entre 200 e 250 ho ras - pre- causa" que Nicky nos dera, no exame experimental, é um exemplo
parando-me para os exames. Quando volta mos a Massachusetts , ini- de prova mais ampla e orientada para a política geral do direito que
ciei uma programação de dezesseis horas por dia. Parecia n_ã o ha- é agora incluída, às vezes, nos exames da faculdade de di reito . Zech-
ve r out ro jeito de fazer a revisão fina l de todo o material. E depois ma n tam bém nos disse que não deveríamos nos preocupar muito com
de todo o trabalho que ti vera durante o período, aquele não pare- o estudo dos detalhes. Queria que nos concentrássemos em perceber
cia o momento a propriado para tentar ser comedido. Annette fez o padrões no mate rial - "a floresta", ele disse, " não as árvores" .
melhor possível para me igno rar . Eu sentava no estúdio e estudava ho- Mesmo assim , o exame de Responsabilidade Civil , como todos os
ras a fio. outros que prestei no ano passado, conteria uma defi nição da ques-
Tão intenso quanto o volume de trabalho também era a sua natu- tão. P ersiste a base. Os professores acreditam que os estudantes mais
reza. O teste típico da faculdade é o que se co nhece geralmente como dotados vão analisar os fatos meticulosamente , em termos de teoria
"defin ição da questão". É apresentada uma longa narrati va, envol- abs trata e doutrina.
vendo uma complexa s ucessão de acontecimentos e diversos a tores. O Em conseqüência, passei a maior parte do tempo, no início de ja-
exame, em geral, instrui o aluno a se colocar na posição de um asso- neiro, debruçado sobre vários sumários comerciais, buscando a me-
ciado de firma de advocacia que foi chamado a trabalhar no caso, atra- morização direta de normas. Era um trabalho insosso e insatisfatório,
vés de um memorando de um sócio sênior, descrevendo as questões pouco gratificante, mas não havia como evitá-lo . Teria todos os livros
legais envolvidas. comigo quando fizesse os exames, mas o tempo seria curto demais pa-
Inevitavelmente, a narrativa foi desenvolvida de tal maneira que ra procurar tudo.
os fatos se enquadram nos limites de dezenas de categorias legais. Uma Depois de decora r mais o u menos as normas numa área es pecí-
interpretação variante de um único deta lhe pode produzir urna mudan- fica, eu voltava às minhas anotações d e a ula e tentava então dige-
ça, como um passe de mágica , nas questões e mui tas vezes no resul ta- · rir as políticas específicas para as normas . Depois, como Zechman
do da causa . Pa ra o estudante, o trabalho é a nalisar ra pidamente a aconselhara, verificava se podia relacionar 1::ssas idéias com as preo-
situação para tentar de fin ir a meada interminável de leis aplicáveis e cupações temáticas mais amplas de cada curso. Reunir tudo em minha
ta mbém descrever as implicações de usar uma lei em vez de outra. Co- mente era um feito e ta nto. Quando era garoto , assisti a um film e
mo um bom advogado, o estuda nte deve ser capaz de argumenta r nos na televisão sobre um soldado americano que mantém a sanidade men-
dois lados d a questão. tal numa prisão coreana proj etando uma casa em sua cabeça. Apren-

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der um curso de direito é um processo bastante parecido: eng1r os - e ao mesmo tempo eu ansiava e receava perder a chance de conse-
alicerces, as paredes, o telhado; norma/ política/ teoria; tentar lem- guir todas essas coisas. Há um desejo natural, eu acho. de evitar as
brar exatamente como cada uma das partes se junta e se ajusta. Al- limitações.
1, guns estudantes preferem delinear cada curso pessoalmente, achan- No dia anterior ao examP de Responsabilidade Civil eu estava
do que é a melhor maneira de captar o fluxo e organização do ma- excitado demais para continuar a estudar. À tarde, dei uma olhada
terial. Outros gostam de ler e memorizar resumos preparados. Uma num exame antigo só para treinar. Telefonei para Stephcn ao cair da
terceira escola apregoa que se pode aumentar a noção do curso fa- noite. Ele parecia tão tenso quanto eu , embora não estivesse disposto
zendo exames anteriores . Já experimentei um pouco de cada méto- a admiti-lo.
do e nunca pude encontrar muita diferença entre eles. É sempre o - Temos uma boa base - ele me disse . - Você adquiriu u ma
mesmo acúmulo lento de conhecimento, o trabalho metódico e sis- ,10ção firme da orientação geral e da doutrina deste curso, assim como
temático de montar a casa, prego a prego . E quando se chega à ins- eu. Vamos nos sair bem . Outras pessoas não compreendem a matéria
talação do telhado, quando o curso começa de fato a fazer sentido, tão bem quanto nós. Estive na biblioteca e encontrei Ellie Winship,
com os mistérios a longo prazo se dissolvendo e os padrões básicos que ainda está tentando imaginar o que é pressuposição de risco. Eu
se tornando cada vez mais evidentes, o estudo pode parecer tão gra- me sinto realmente preparado, muito tranqüilo.
tificante quanto era tedioso na fase de armazenamento de normas. O que não acontecia comigo. Fiquei andando de um lado para ou-
Em todos os estágios, foi em grande parte um projeto pessoal. tro, murmurando baixinho e olhando assustado para minhas ano ta-
Quando voltamos dos feriados do Natal, ficou evidente que Stephen , ções até dez horas da noite, quando decidi que ti nha de me deitar. O
Terry, Aubrey e eu estávamos todos pensando sobre os cursos de ma- mais importante, eu sabia, era ter uma boa noite de sono. O exame
neiras um pouco diferentes. Por esse motivo, as sessões do grupo de seria às nove horas da manhã seguinte.
estudo eram de proveito limitado. Experimentamos nos reunir uma ou Durante o primeiro ano na faculdade, minha mulher suporto u
duas vezes, mas a s variações no modo como cada um se preparava e meus muitos excessos. Sempre estava em alta ou baixa, nos extremos.
os respectivos progressos pareciam inquietar a todos. Deixávamos es- Mas Annette ainda acha que a noite a nterior ao exame de Respon-
sas reuniões com a sensação de que estávamos fazendo alguma coisa sabilidade Civil foi meu momento menos co ntrol ado e não discordo.
errada. Tomei uma pílula para dormir quando fui para a cama; e de-
Em vez disso, passamos a recorrer ao telefone para consultas es- pois de pensar um pouco sobre o meu nervosismo, resolvi também
porádicas. Sempre que havia uma área que eu não conseguia entender tomar alguns miligramas de Yalium . Tinha certeza de que isso resol-
bem ou uma linha de raciocínio que não podia acompanhar, eu telefo- veria o problema. Ainda estava desperto à meia-noite. Levantei e
nava para Stephen, Aubrey ou Terry, em busca de conselho; e vice- tomei um drinque . Aparentemente, não adiantou muita coisa. Meia
versa. Falei com cada um pelo telefone entre oito a doze vezes por dia hora depois tornei a levantar e tomei mais vinho . Desta vez Anne-
durante o períoJ o de preparação. Como era inevitável, obtive sólidas tte também saiu da cama e me suplicou que não bebesse de novo.
instruções de cada um e um pouco do conforto tão necessários nesses Eu ia me matar mistura ndo as pílulas e a bebida, disse ela. Estaria
momentos. enlouquecido com as drogas pela manhã. Voltei para a cama. Fize-
À medida que os exames se aproximavam, fomos ficando mais mos amor no vamente . Ainda não encontrei a paz. À 1:J0h, escava
e mais tensos. Meu sono era irrequieto e experimentava um constante frenético com as drogas e a frustração . Revirei-me na cama, dando
nervosismo. Pensando no primeiro dos exames de prática de Nicky, socos no colchão: estava tentando me destruir, gri tei; estava atrain-
não pude deixar de recordar que demonstrara uma capacidade para do o fracasso. Annette aq uietou-me da melhor maneira que pôde
confundir tudo. e foi para o sofá na sala, a fim de que eu pudesse ficar sozinho na
Mas o fator emocionalmente mais revelador era aquela pressão cama. Às 2:30h levantei para lhe pedir que voltasse. Ela me mandou
dupla e persistente, de que ainda não fora capaz de me livrar: queria dormir. Finalmente consegui, em algum momento depois das 3 :00h.
desesperadamente ter êxito e temia o fracasso . Essas idéias abstratas
levantavam em mim sentimentos muito mais fortes do que a mera i:;ers- Por volta das 6:J0h Annette entrou no quarto, a fim de se vestir pa-
pectiva de tirar um A ou um F . Os exames representavam uma espécie ra o trabalho, despertei com seus movimentos. Ela me deu um bei-
de abertura (ou fechamento) de um mundo de oportunidades - revis- jo de despedida e desejou boa sorte. Levantei . Sentia-me horrível.
.... ta de direito, cargos de assistente jurídico, empregos, honra, prestígio Tivera três horas de sono e agora os sedativos faziam efeito. Esta-

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va confuso e entorpecido. Os olhos doíam e ardia m . Tomei cinco ou
seis xícaras de café e às 8:00h parti para a faculdade. Levei a mochila d: fração de segundo, um a coisa insrantânea · não haveria u íl
cheia de livros, uma garrafa térmica e a máquina de escrever elétrica. xao profunda. ' ma re e-
Ainda estava tonto enquanto descia no ônibus pela Massachusetts Ave- . Fui ati?gido no mesmo instante por um intenso cho ue de
nue e pensei vagamente que me achava condenado. nahna. Fazia pouca diferença que eu me sentisse d cslig~d d adre-
Os estudantes da HLS podem escrever a mão ou datilografar seus po ao entrar naquela sala. Estava no maior excitamento aoºr o ~or-
exames. H á salas separadas para cada método. Escolhi datilografar, de !er as ~uestões. o coração teve um sob ressalto quando ou:r:m~r
pois sempre escrevo a máquina e me sinto mais à vontade com ela. Mas ~eira b~t1d~ de uma tecla em outra máquina de escrever, mas de pr!-
a sala reservada para a datilografia era um a das antigas em Langdell d 1sso o mc_nvel matraq uear de quarenta máqu inas tornou-se t - pois
e compreendi, quando lá cheguei, que o barulho de trinta ou quarenta go ~ara n:,1m quanto uma música de fundo. De um modo ge:a~ v~-
máq uinas numa sala sem carpete seria terrível. Ainda estava atordoa- quei perd1?0 durante aquelas quatro horas no isolamento do n~x~
do demais para ficar extremamente preocupado, mas senti-me grato de adrenalma. A promessa de um teste de "l"ivro aberto"
·1 • · ., provou ser
quando Terry apareceu com tampões de ouvidos para nós dois. Era 1 uso na, como eu Ja esperava. Olhei para o li vro de causas por um
uma grande generosidade de sua parte, não apenas porque pensara em mo~ento, mas apen_as para um efeito moral, como um reconforto· mal
mim , mas também porque os testes já estavam sendo distribuídos quan- abn .ª c_apa e tornei a fechá-lo. Não havia tempo. A sabedoria' ro-
do ele chegara e ainda assim encontrara tempo para me entregar os ve rb1al e p~ssar pelo menos um terço do período de exame planej:Odo
tampões. a elaboraçao ~as respostas e tentei fazer isso. Mas com O corpo a i-
Agradeci e perguntei-lhe como estava. rado,. eu. tendia apenas a e_svaziar cabeça. Consumi tempo dem!is
- Apavorado - respondeu Terry. - Passei a noite inteira na n~ primeira questao e depois estava datilografando numa f · · f
net1ca. un a re-
latrina, cara. Não consegui dormir.
- Eu também não. Esc_revera quase doze páginas ao terminar o tempo. Mesmo en-
Desejei-lhe boa sorte, depois examinei o teste que o inspetor aca- quanto Juntava a~ f? lhas e entregava ao inspetor, sabia q ue cometera
bara de me entregar. Li as questões. A primeira era uma óbvia defini- alguns e~ros_hornve1s. Mas estava exultante. Tinha certeza q ue passa-
ção da causa. Um médico dera a um paciente uma droga ainda em ra. O primeiro exame da faculdade de direito. Eu ia conseguir.
=', estágio experimental e seguira-se a série de desastres que se pode espe- Terry l~~ou-me para almoçar em comemoração, depois fui para
rar num curso de Responsabilidade Civil: cegueira, acidentes de auto- casa. Dormi a tarde. E levantei às 5:00h para começar a estudar D" ·_
móvel, paralisia - o mundo todo desmoronando. Devíamos responder to Penal. irei
que tipos de responsabilidade civil haviam ocorrido. A segunda ques-
tão era bem ampla. Também era uma narrativa de definição de causa,
N~o pod_ia n:,e estim~l ar da mesma maneira para O exame de Pena l,
so bre um jardineiro e uma árvo re caindo na casa do vizin ho, mas éra-
dai a dois dias. Sentia-me um pouco deprimido na manhã seguinte
mos instruídos a enfatizar a teoria e a doutrina na resposta. A questão
P? r cau_sa dos erros qu 7 cometera no exame de Responsa bilidade Ci-
final citava três casos conhecidos da lei de danos a terceiros e pedia
vil, mais do que parecia ter me ocorrido na ocasião. Não que csti-
um ensaio a respeito.
vess~ achando que_ me saíra _mal; apenas compreendera que eu havia
Tínhamos quatro horas.
perdido a o~ortu~1dade de 1r muito bem. T ambém não sentia agora
O que nunca me ocorrera em relação a um exame na faculdade
qua~~ uer efe1t_o esumulante em função das apreensões da primeira vez.
de direito era a im portância do tempo. Sabia que seríamos testados Eu Ja conhecia o monstro.
por umas poucas horas, a respeito de um conhecimento que leváramos
meses para adquirir. E estudara exames antigos. Mas nunca tentara Nun ca ~ais tornarão a nos pegar assim - comentou Stephen
quando lhe fal~. '
escrever uma resposta. Foi somente agora que percebi que não dispu-
nha de um quarto do tempo de que precisaria para formular uma res- Au?rey e Terry exprimi ram sentimentos sim ilares. Todos estáva-
posta relativamente meticulosa. As próprias questões cobriam quatro mo~ mais rela~ad~s, até mesmo um pouco menos sombrios. J á não
havia tanta agnaçao pelo telefone.
páginas em espaço um e mesmo depois de lê-las duas vezes eu sabia
que não reconhecera a metade do que estava ali. Não podia imaginar Além disso, o _esqu_ema para o exame de Penal to rnava-o me-
como seria capaz de escrever tudo o que vira. Era tudo uma reação nos assust_ador. S~na fe1~0 no ambiente mais confortá vel de casa e,
embora nao cobnsse mais matéria do que o exame de Responsabi-
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tidade Civil, teria urna duração de oito horas, não de quatro. O exa- to. Mas os exames e aquele espantoso fl uxo de pânico haviam me dei-
me de oito horas é urna inovação relati va na HLS. Visa a atenuar xado inerte.
um pouco a pressão sufocante de tempo do exame tradicional. Mui- Escrevi uma anotação no diário qua ndo cheguei em casa:
tos professores desdenham os exames realizados em casa. Acham que Eu me sinto exausto. Consumido. A cabei o primeiro perfodo na
não proporcionam a mesma prova de agi lidade mental dos testes ern faculdade de direito .
sala de aula. Por outro lado, há mais do que uns poucos estudan-
tes que pensam que o dobro do tempo apenas signi fica o dobro da
agonia. Mas para mim era gratificante saber que teria mais algum tempo Senti-me amargurado e ludibriado depois dos exames. Depois do lon-
para pensar. go sufoco, provavelmente era inevitável alguma espécie de decepção.
Estudei quase apaticamente, folheando o enorme resumo - mais E, em parte, meu desapontamento tinha pouco a ver com os exames
de quatrocentas páginas - que preparáramos. A maior parte do tra- propriamente ditos. Fazendo uma retrospectiva, compreendera o quanto
balho antes do Natal parecia agora ter sido sem sentido. O tempo e da minha elaborada preparação diá ria para as aulas não valera a pena.
o exame de Responsabilidade Civil haviam apagado quase tudo de mi- Os pontos mais sutis das causas, que eu levara horas estudando para
nha cabeça e resolvi que evitaria me embaralhar nesse tipo de projeto entender, não apenas eram irrelevantes para os exames, mas também
na primavera. Precisava absorver tudo de novo . provaram estar além do alcance de minha memória. Prometi a mim
Não tive dificuldade para dormir na noite de domingo. Annette, mesmo que não seria tão exigente no próximo período.
que não fora à escola por causa da neve, levou-me para casa depois Contudo , mesmo admitindo que era vítima dos meus próprios
que peguei o exame na manhã de segunda-feira. Dei uma olhada no excessos, houve outros aspectos dos exames que para mim contribuí-
teste ainda no carro. Por causa da natureza do material, as narrativas ram para tirar algum encanto da fac uldade, e que, lamentavelmente,
nos testes de Penal são muitas vezes burlescas. Freqüentemente pare- nunca mais seria recuperado. Durante todo o tempo , os alunos do se-
cem paródias do último ato de Hamlet, com pessoas sendo assassina- gundo e terceiro anos haviam me dito que eu nu nca passara por qual-
das por todo o palco. Mas aquela era simples, realista, sobre uma rede quer coisa parecida com um exame de direito e estavam certos. Mas
de prostituição e roubo do tipo que deve haver uma dúzia em cada ci- isso não contribuía em nada para aumentar meu respeito pelos tes-
dade grande. O exame descrevia a prisão dos membros da rede por agen- tes. Sentia-me insultado por eles - não há outra maneira melhor
tes policiais infiltrados e grampeamento telefônico. Devíamos agir como de descrever minha sensação. Eram encarados com uma seriedade ins-
assistentes do promotor distrital, designados para escrever um memo- titucional que levara meus colegas e eu a acreditarmos por meses que
rando com a relação das possíveis acusações contra os detidos e uma ofereceriam alguma espécie de avaliação refi nada, não apenas do quanto
avaliação da aceitação de cada prova obtida . aprendêramos, mas também - quase místicamente - das profunde-
Chegando em casa, trabalhei durante as primeiras horas da mes- zas de nossa capacidade e vocação para o direito. Os exa mes consti-
ma forma apática com que estudara. Folheei o Código Penal Modelo, tuíam um indicador, um campo de provas de todo o trabalho árduo
verificando crimes - esperando, eu acho, que as coisas se aj ustassem e devotado. Em vez disso, não haviam passado d~ competições inte-
em seus lugares. O que não aconteceu; entrei em pânico por volta das lectuais, exercícios frenéticos que pareciam não atribuir qualquer va-
11:30h. Desperdiçara mais de um quarto do tempo e tinha certeza - lor à percepção e imaginação - qualidades que eu mais ad mirava
absoluta - de que ago ra ia mesmo fracassar. A adrenalina surgiu en- nos outros e das quais me sentia orgul hoso quando ocorriam em mim
tão, mas por algum motivo foi demais. O corpo ficou esgotado. Em- mesmo.
palideci, coisas absurdas parec iam ocorrer dentro do peito. Ao voltar à faculdade, descobri que a maioria dos colegas pa-
Experimentei uma estranha reação artrítica, talvez só porque o fluxo recia partilhar tais sentimentos. As pessoas não podiam acredi ta r que
durara tempo demais. As articulações no corpo inteiro tornaram-se do- aqueles instrumentos peculiares e limitados seriam o critério exclu-
lorosas demais para trabalhar sentado. Tive de escrever de pé, mas aca- sivo para nossa classificação. As informações sobre a maneira casual
bei a tempo, voltando à faculdade at ravés da neve e do tráfego da hora como os professores conferiam as notas - comparando os exames
do rush, sem me atrasar. com uma lista de pontos salientes, não concedendo mais que uns pou-
Depois, tentamos comemorar. Annette e eu saímos com Terry e cos minutos a cada um - apenas aumentava a impressão de injus-
Aubrey e suas esposas, Donna e Arlene . Aubrey tomou vodca, depois tiça e frustração . E havia outro grupo que cont inu ava a lamen tar
uma garrafa de Beaujolais e três ou quatro cervejas . Também bebi mui- pelos erros. Todos cometêramos equívocos, falhas grandes e omis-

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sões. É natural, em meio àquela pressão frenética . Não existe um s:Ja, qual será o seu ~proveitamen~o nos exames. Essas avaliações pré-
exame perfeito na faculdade de direito. Chris Henley me disse mais vias, basea~as em formulas estat1sticas que combina m os resultados
tarde que apontar cerca de 600/o dos itens possíveis é quase sempre do teste nacional e as notas nos cursos anteriores, são bastante acura-
suficiente para um A, a classificação máxima. Mas algumas pessoas das. _Mas isso equivale a dizer que as faculdades de direito americanas
não podiam se convencer de que os lapsos eram esperados e passa- adm item pessoas que serão bem-sucedidas nos exames e não bons ad-
ram semanas a fazer piadas sem graça sobre a iminência de arrumar vogados. As relações entre o sucesso nos exames e realizações meritó-
as malas. rias no exercício da advocacia são, na melhor das hipóteses , especu-
A consternação pelos exames não é novidade . Os estudantes cla- lativas . Até que a ligação sej a melhor definida, a natureza restrita e
mam por uma reforma, pois há anos que se reivindica a oportunidade arbitrária dos exames continuará a determinar um meio restrito e arbi-
de avaliação através de trabalhos também ou por exames mais freqüen- trário de seleção para a advocacia. O que é uma sit uação insólita para
tes e menos tensos, o que é sempre recusa do . Alguns professores ad- uma profissão e uma ed ucação que alegam se preocuparem com a ra-
mitem francamente que preferem não perder o tempo adicional que zão e a justiça.
os sistemas alternativos exigiriam . Os estudantes desconfiam às vezes
que há outros motivos para a resistência à mudança. Os professores
são pessoas que se saíram muito bem nos exames; na verdade, devem
sua atual posição, em grande parte, a esse sucesso. É difícil não
considerá-los como simplesmente perpetuando o regime em que baseiam
seu senso de autoridade e amor-próprio.
Tom Blaustein apresentou uma defesa limitada dos exames, quan-
do lhe contei como ficara irritado com todo o processo. Admitiu que
preferia receber trabalhos de seus alunos e que os exames de direito
tradicionais não chegavam a avaliar todo o âmbito de qualidades im-
portantes para um bom advogado .
- Mas, a longo prazo - insistiu Tom - , os exames propor-
cionam alguma indicação da maneira como sua mente funciona em
determinadas situações ... ou seja, uma qualidade. E se você está fa-
zendo uma opção de carreira ... ou se alguém está tomando as deci-
sões por você ... é melhor saber isso do que não ter conhecimento
de nada.
É possível. Mas mesmo aceitando o argumento de Tom, ainda
não estou certo se uma qualidade é suficiente para determinar quem
obtém que empregos, quem se torna professor, quem vira assisten-
te de um ministro do Supremo, quem consegue o treinamento em
erudição jurídica proporcionado pela revista de direito. Mas a ver-
dade é que os exames do mina ram a tal ponto meu ano com o estu-
dante de direito que não posso analisá-los de forma objetiva. Todos
acabaremos como advogados de qualquer maneira, ingressando num
mundo de excelentes oportunidades e, ao final, procurei descartar
os exames como um exótico costume profissional, outro ritual de pas-
sagem para o iniciado.
Mas uma coisa preocupa: embora não tenha mais qualquer rela-
ção direta comigo, vale a pena mencionar . Neste momento, o ingresso
na maioria das faculdades de direito a mericanas baseia-se em avalia-
ções do tipo até que ponto os candidatos se sairão na facu ldade, ou

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FEVEREIRO E MARÇO

Indo em Frente

19/ 1/76
(Segunda-feira)

Um 1 1/2 L agora. O segundo período começa. O tédio onde antes


havia apreensão. Artifícios onde antes havia energia. Resolvi não fa-
zer sumários de causas neste período. Quero dispor de tempo para ler
um jornal de vez em quando, talvez mesmo um romance.
É muito difícil manter um senso de perspectiva na Faculdade de
Direito de Harvard, não cair num ceticismo inerte. Depois dos exa-
mes, ai nda experimento o impulso de desdenhar tudo. Ontem à noite,
ao tentar decidir que matéria facultativa deveria fazer, descobri-me a
refletir sobre profundas questões pedagógicas . Até que ponto o curso
era fácil? Valeria a pena consultar o livro vermelho? Poderia passar
sem muita preparação diária?
Antes de entrar na faculdade de direito, houve até ocasiões em
que me julguei um intelectual.

Archibald Cox, o ex-promotor de Watergate, está tão próximo quanto


se pode chegar hoje em dia de ser um autêntico herói americano . Per-
sonificação das virtudes ianques, foi Cox, como promotor de Water-
gate, quem primeiro confrontou Nixon com as gravações da Casa
Branca e, no processo, lembrou ao povo americano que os homens pú-
blicos ainda podem ser decentes.
Num ambiente diferente, Cox seria um alvo de culto constante.
Mais ou menos na ocasião em que ingressei na faculdade de direito,
dois amigos de C hicago apareceram em visita e parara m em reverência

149
si lenciosa à simples visão da placa com o nome de Cox na porta de aquilo. Assim , q uando o curso de Direito e Po lítica Pública abriu no-
seu gabinete. Mas na Faculdade de Direito de Harvard, onde Cox é vas inscrições, tratei de correr em busca da liberdade.
professor há anos, os est udantes não estão sujeitos ao mesmo tipo de Direit? e ~olítica Pú?lica era um curso in tensivo sobre as quali-
ad miração. Este ano houve um movimento contra Cox. Disseram que dades f_unc1ona1 s necessárias nos cargos dos altos escalões no governo:
ele era soporífico em aula e - algo muito mais repulsivo na HLS - conhecimento_ a nalítico ~ec~nomia, estatística, teoria da decisão), mé-
um notório professor de notas baixas. Diante da oportunidade de fa- :?d~ de planeJamento,,,tecnicas de ~dministração. Era ministrado pelo
zer um curso com Cox, a maioria da turma do primeiro ano deslocou- metodo de problema , desenvolvido na Faculdade de Administração
se para outra direção. de H ~rvard. Um "caso de estudo" era indicado para cada aula, uma
O currículo do primeiro ano na HLS foi reformado em 1972. Entre descrição detalhada das circunstâncias e dificuldades com que se de-
muitas mudanças, os primeiranistas, no segundo período, adquiriram a frontava um responsável por uma decisão. Em a ula, discorríamos so-
nova liberdade de escolher um curso para acompanhar o regime obriga- bre as possíveis soluções. O material e muito do que se dizia a respeito
tório de Contratos, Processo Civil e Propriedade. Os cursos facultativos tinham a indefinição típica da ciência social, muito diferente dos prin-
seriam " relevantes", concentrando-se menos em direito consuetudinário cípios precisos enunciados na aula normal da faculdade de direito. Mui-
e estudo de causas e mais em assuntos e questões doutrinárias com maior tos dos meus colegas acharam que estavam sendo ludibriados.
apelo intrínseco para os estudantes. Este ano, por exemplo, as opções in- - Tudo isso não passa de besteira - disse-me Kyle, um dia an-
cluíram cursos sobre direito chinês, teoria do contrato, direito dos meios tes de abando nar o curso.
de comunicação, ética jurídica, direito ambiental e direito comparado (que Eu não concordava com essa posição. Apreciava o alívio de um
estuda os sistemas jurídicos de outros países), além de um curso intitula- estudo menos angustiado, em comparação com os outros cursos. A tur-
do Direito e Política Pública, normalmente ministrado na faculdade do ma era menor - setenta alunos - e tinha estudantes de outras seções,
governo John F. Kennedy, também de Harvard. coi:no todos os cursos facultativos. Era uma novidade agradável, de-
Parece uma grande idéia, mas as aulas se transformaram em ver- pois de ver as mesmas 140 pessoas todos os dias, por meses a fio. Tam-
sões diluídas de cursos avançados, tediosas para os professores que as bém gostei do professor, Guy Sternlieb; era professor das faculdades
dão e também para os primeiranistas. Em conseqüência, eu - como de direito e administração, um ex-alto funcionário do Departamento
quase a metade da minha turma - optei pela seleção mais tradicional: de Saúde, Educação e Assistência Social. Era alto, na casa dos qua-
Direito Constitucional, outro curso básico. O curso, que estuda os prin- renta anos, fala suave ... e um sujeito muito decente, generoso com seus
cipais pronunciamentos do Supremo Tribunal dos Estados Unidos so- alunos e objetivo. Ninguém era chamado na aula de Guy. Se alguém
bre a Constituição, foi oferecido em duas turmas neste ano. Uma estava tin ha uma coisa a dizer, levantava a mão. Era tratado pelo primeiro
sob a direção de um jovem professor que adquirira uma grande repu- nome e se dirigia a Guy da mesma maneira . Apesar do tamanho da
tação entre os alunos como instrutor de um dos cursos do primeiro pe- turma, o clima era de um seminá ri o.
ríodo, em outra seção. A outra turma teria aulas de Archibald Cox. Karen Sondergard também estava fazendo o curso e me disse du-
Surgiram rumores entre os primeiranistas sobre o estilo de aula rante a segunda semana:
e a mania de Cox de dar notas baixas. Não eram verdadeiros, mas as - Sabe o que é mais espantoso nesta a ula? Compreendi outro
matrículas foram efetuadas durante aquele período histérico, ao final dia que é a única em que entro sem me sentir apavorada. Sinto-me fe-
de dezembro, antes dos exames, quando todos nós estávamos dispos- liz por estar aqui.
tos a acreditar no pior em relação a tudo. As matrículas para o jovem Poucos alunos da minha turma fariam uma declaração similar a
professor superaram as de Cox em seis para uma; quando o diretor respeito de Propriedade, nosso outro curso novo. O direito de proprie-
e o secretário tentaram igualar o tamanho das turmas, houve uma con- dade envolve as normas e dispositivos legais relacionados com a pro-
frontação com estudantes revoltados e muita discórdia - sorteios, reu- priedade das coisas. Doações, testamentos, custódias, os muitos
niões sucessivas, cartas abertas à turma. aspe~tos do direito imobiliário - aí está a maior parte da matéria ge-
Ao começar o segundo período, setenta a lunos ainda estavam de- ral. E um curso peculiar e muitas vezes extremamente difícil. A pro-
signados para o curso do professor Cox - muitos, como eu, involun- priedade é um princípio fundamental das sociedades ocidentais e as
tariamente. Tentei manter a mente aberta nos dois primeiros dias, mas normas que a regulam não podem ser facilmente a lteradas sem pertur-
Cox parecia seco demais; e mais importante ainda, concluí que não bar toda a organização social. M ui tos elementos do direito de proprie-
queria fazer outro sufocante curso jurídico. Estava cansado de tudo dade não mudaram desde a Idade Média. Uma boa parte do direito

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imobiliário, por exemplo, ainda apresenta a influência do feudalismo, Fowler chamou Wade Strunk no segundo dia.
as doutrinas formuladas pelas necessidades do senhor feudal. Muitas - Eu passo - disse Wade, com sua fala suave.
dessas normas não fazem mais sentido e simplesmente têm de ser ab- . Fowler conduzia sua aula à maneira antiquada, em que os al unos
sorvidas por hábito . deviam responder. Quando Wade falou, senti um aperto no coração
Mas outros aspectos do curso eram fascinantes. Apesar de embo- e pensei: o Incidente II.
tado pelos exames, ainda me senti bastante estimulado ao ler as causas Não ouvi o que você disse - declarou Fowler.
iniciais e considerar as questões que apresentavam. O que realmente Eu passo .
significa dizer que alguém " possui" alguma coisa? Que essa pessoa pode Como?
usar uma coisa? Ou controlá-la de alguma forma? Ou apenas ser reco- Eu passo - repetiu Wade, mais alto, olhando di reito para
nhecida como a proprietária? Por que certos tipos de uso ou controle Fowler.
são legítimos e outros são alvo de roubo e fraude? Mas, como aconte- - Estamos jogando pôquer ou algo parecido?
cera em Direito Penal, logo descobri que um pouco do meu entusias- Fowler olhou em silêncio para Wade por um momento e depois
mo natural estava sendo arrefecido pelas reações ao professor. chamou a pessoa ao seu lado .
Como a maioria dos colegas, eu ouvira falar durante o ano intei- Wade afirmou depois que estava bem preparado, apenas tentava
ro sobre Isaac Fowler. E cada história fazia com que ele parecesse me- estabelecer o direito dos alunos de permanecerem em silêncio quando
nos atraente. Um aluno do terceiro ano alegou ter feito um total de assim desejassem. Diversos estudantes manifestaram a opinião de que
doze páginas de anotações num período inteiro com Fowler. Também Fowler seria muito mais duro, se não fosse pelo Incidente, um comen-
me contaram diversas histórias sobre o desdém e a indiferença que Fow- tário que podia ser verdadeiro . De qualquer forma, aquele momento
ler demonstrava rotineiramente em relação aos alunos. com Wade serviu para demonstrar a disposição de fazerm os oposição
Era uma pessoa estranha, baixo, magro, sempre com o mesmo ca- firme, além da determinação de muitos alunos de resistir a qualquer
saco esporte de tweed , um homem soturno, de meia-idade, que dava técnica opressiva. Fowler abrandou um pouco. Mas não foi capaz de
a impressão de já ter pensado em tudo e chegado à conclusão de que ser menos chato. Ao final da primeira semana, a freqüência já come-
nada valia a pena. Como não podia deixar de ser, era um famoso scholar çara a cair e assim continuou pelo resto do período. Terry compareceu
jurídico, um especialista em direito internacional e ONU; mas, como às primeiras aulas e nunca mais voltou. Willie Hewitt saiu da sala no
professor, ele parecia ter se esgotado anos antes. Apresentava-se em meio de uma aula, murmurando alto que era melhor dormir em casa.
cada aula com um maço de anotações velhas, que lia com o mesmo O homem ao meu lado explicou que ficava chupando pastilhas mento-
entusiasmo que se costuma demonstrar pelas instruções numa lata de ladas contra a tosse numa tentativa de se manter acordado du rante a
sopa. Ao interrogar os alunos, era gentil em alguns momentos, mas aula.
com muito mais freqüência brusco e agressivo. " Não, não, isso é ridí- Eu também não gostava de Fowler. Preferia que ele aproveitasse
culo", ele dizia , interrompendo quem quer que tivesse chamado. Fow- melhor o material. Seria bom, na verdade, ter outro professor. Mas
ler fora particularmente áspero no início do período. de vez em quando alguma coisa brilhante escapava de Fowler. Era ob-
- Vou verificar se são procedentes os rumores de que vocês apren- viamente um homem culto e regularmente fazia comentários revigo-
deram alguma coisa no semestre passado - ele nos disse logo na pri- rantes, relacionando os problemas das aulas com a literat ura, antro-
meira aula. pologia, economia, história. Também era espirituoso, de uma fo rma
As causas iniciais eram todas inglesas, de meados do século XIX. Com leve e agradável. Podia se interromper no meio de uma frase com ob-
suas perguntas Fowler tentava confundir a turma, pedindo definições de servações como "Em Propriedade estudamos a Regra de Ouro .. . -
termos e manobras processuais que nunca ouvíramos antes, procurando aquele que possui o ouro". Os apartes pareciam suficientes para justi-
nos levar a abismos de inferências, pela ausência de material que ele, edi-. ficar o comparecimento.
tordo livro de causas, cortara pessoalmente dos pareceres. A Seção 2 não De um modo geral, eu partilhava os sentimentos de Stephen. Ao
estava gostando. Já víramos essa rotina no primeiro dia com Perini; e, além final da primeira semana do segundo período, ao sairmos da sala, per-
do mais, a turma já estava indisposta pela reputação de Fowler. Quando guntei o que ele achava de Fowler.
alguém não era capaz de responder a uma pergunta, nenhuma outra mão - Acho que poderia ser muito pior - respondeu Stephen. - Po-
se levantava. Ao final da primeira aula, parecia que o período seria uma deríamos tê-lo como professor no primeiro período e nesse caso não
competição longa e incessante - 1 contra 140. saberíamos o bastante para ignorá-lo.

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Ao fin al de j aneiro começou a competição de julgame n to simulado. memorando de pesq uisa e um esboço do su m ário, a lém do pró prio su-
Em H arvard, a competição é um memorial anual a J ames Barr Ames, mário. Eu fo ra informado que muitos Ames do primeiro ano torn a m -
um renomado professo r de di reito que morreu no início d o século ; e se o evento principal do in verno , co m mais tempo in vestido nisso do
em todas as suas fases, a co mpetição é geralme nte conhecida a penas que em qualq uer dos cursos, que geralm ente ficam su spensos duran te
como "Ames". a ocasião.
As competições de julgamento simulado constituem outro dos ele- Tínhamos opções consideráveis nos tipos de causas que podería-
mentos universais no currículo do p rimeiro ano da maioria das facul- mos defender. O BSA apresentou treze causas, todas fictícias, relacio-
dades de direito a m ericanas. Como o programa de Méto d os Legais, nadas com uma á rea do direito estudada n as matérias do primeiro a no .
de que Ames é tecnicamente uma extensão, o julgamento simulado pro- Além disso, h avia várias ca usas "alternativas", patrocinadas por mui-
cu ra fa miliarizar o estudante iniciante com a lgu ns dos aspectos práti- tos dos grupos extracurriculares do último ano, co mo a Sociedade d o
cos da advocacia. Os est ud a ntes preparam e defendem cau sas de Di reito Ambien tal ou o Comitê d e Pesqui sa dos Direitos Civis e Liber-
apelação - causas em que já há uma decisão em primeira instância dades Civis.
- uns contra os o utros. Na HLS, todos os debates ocorrem suposta- Eu convidara Terry para ser m eu colega e, juntos, decidimos soli-
mente no m ítico estado de Ames. Cada primeiranista é o brigado a par- citar ao BSA uma causa de difamação . Era um assunto em que Zech-
ticipar do programa. Aq ueles que apreciam a experiência inicial de ma n não entrara em R esponsabilid ade C ivil e a mbos estávamos
julgamento simulado podem, em Harvard e na maioria das outras fa- interessados e m aprender alguma coisa a respeito.
culdades de direito , continuar a participa r no segundo e te rceiro a nos, A 30 de j aneiro fomos ao escritó ri o do BSA para pegar nosso re-
sendo chamado de "competição da primeira di visão" quando há prê- g istro de julgamento. Era uma ca usa ex t raordin á ria. O revere ndo Ed-
mios em dinheiro e considerável ho nra para os vencedores. ward Gantry e ra ministro de uma igreja em Po und C ity. Antes, fora
O Ames do primeiro a no não apresenta nada t ão atraente. Só há pastor de uma congregação numa cidad ezinha próxima, mas fora di s-
um d ebate, em que na prática n ão faz muita diferença quem vence. pensado como uma censura por suas atividades co ntra a guerra . Ago-
Qualquer um com disposição pode prosseguir para as competições da ra, Ralph Wilson, um dos a ntigos congregados de Gantry, escreve para
primeira divisão. Sob muitos aspectos, o Ames é apenas uma versão o ministro, furioso, dizendo que e le continu a a d esgraça r o ministério.
m a io r da petição de julgamento sumário q ue preparamos em Métodos Ameaça tornar pública um a versão distorcida dos event os e n vo lvendo
Legais, que visava em p a rte a nos preparar para o julgamento sim ula- a dispensa de Gantry, a menos que o reverend o renuncie a seu atual
do. O s est udantes t raba lham de novo em dupl as. Outra vez teríamos pastorato. A ntes de permitir que a história chegue ao con heci m ento
de escrever um sumário - embora para o Ames as fo rmalidades da de sua congregação co mo um a intriga p erniciosa, Gantry lê a cana de
citação legal ten ham de ser o bse rvadas - e mais uma vez faríamos a Wilson para os membros da ig reja de Pound C it y e explica seu ponto
defesa perante um tribunal simulado, só que desta vez com três juízes d e vista. Mesmo ass im , é o utra vez dispensado. Processa Wi lso n pela
em vez de doi s e um deles seria um professor da faculdade de direito . difamação contida na carta e vence.
A grande diferença, no entanto, entre Am es e o q ue fi zéramos no Na apelação , T erry e e u fomos des ignados para o lado de Wi lson,
outono, era que para o j ul game nto simulado ninguém nos e ntregaria o auto r da ca rta . Não fazia diferença que e le parecesse um idiota. O
a causa pronta, como acontecera em Métodos. Estaríamos mais ou me- princípio da advocacia, que nos fora ensinado durante todo o ano, era
nos na situação em qu e os advogados muitas vezes se encontram na o de que ele merecia uma represe ntação plena e sem preconceitos. Te-
prática. Recebería m os um a versão abreviada d e um registro de julga- ría mos duas linhas de ataque. A di fa m ação ocorre q ua ndo a lg uém pu-
me nto e teríamos que argumentar na apelação co ntra ou a favor da blicamente faz come ntários, por escrito ou orais, que são inverídicos
decisão da primeria instância. Desse ponto em diante teríam os d e fa- e prejudiciais à reputação de o utro. E m Gantry v. Wilson fora o pró-
zer tudo sozinhos. Precisaríamos analisar a causa, determinar as ques- prio ministro que resolvera permitir que o conteúdo da carta se tornas-
t ões e m j ulgam ento, ir para a biblioteca e descobrir a melhor se do conhecimento público . Um dos pontos da apelação seria o papel
jurisprudência para apoiar nosso lado. O prazo entre a entrega do re- de Gantry na divulgação do materia l difamatório. O o utro era uma
gistro e a data do debate é de cerca de seis semanas, por isso se esp era questão co nstitucio n al. À p rimeira vista, há algum co nflito e ntre a le i
que o tra balho e m Ames seja a mplo. T eríamos a supervisão de estu- da difamação , que limita o que as p essoas podem dizer a respeito umas
dantes do segu ndo e terceiro a nos, geralmente do BSA, que presidem das outras, e a garantia de liberdade de mani festação da Primeira Emen-
o Ames do primeiro ano . A ntes do d ebate, teríamos de preparar um da. Dura nte muitos anos o S uprem o Tribuna l dos Estados Unidos vem

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procura ndo conciliar os dois princípios e a doutrina mais recente é a que tínhamos um bom começo ao fi nal do sábado. J á tin ha mais ou
de que, à exceção do menosprezo irresponsável pela verdade, pode-se menos enquadrado a questão constitucional e verificado alguns pare-
dizer o que quiser a respeito de alguém que seja considerado uma figu- ceres do Supremo. Trabalhando na questão da divu lgação, T erry já
ra pública. Portanto, na apelação, poderíamos argumentar que o mi- localizara material em toda a biblioteca - causas , arti gos de revistas
nistro era uma figura pública, dentro do significado da jurisprudência. de direito, até mesmo cópias de sumários. Nas horas que passara lá
Na manhã de sábado me encontrei com Terry na biblioteca, a fim em cima, faltando às a ulas, adquirira um talento excepcional para a
de iniciar a pesquisa. Na noite anterior eu repassara o Gilbert's sobre pesquisa.
Responsabilidade e também o hornbook de Prosser, absorvendo as li- Durante a semana, cada um entregou um memorando descreven-
nhas gerais da lei de difamação. Estava agora interessado em pontos do a pesquisa e a análise inicial da causa . Na sexta-feira nos reun imos
mais específicos do assunto, o que exigia a leitura de causas. Ao argu- pela primeira vez com a superviso ra designada pelo BSA para discutir
mentar diante do Supremo Tribunal de Ames, teríamos de alegar que nosso trabalho. Seu nome era Margo Sakarian, pequena, morena e mui-
o juiz da primeira instância seguira a lei errada, os precedentes erra- to bonita. Como T erry, era de Nova Jersey. Ames é provavelmente
dos. Deveríamos apresentar ao tribunal causas decididas sobre fatos a desgraça anual dos membros do BSA. Devem supervisionar meia dúzia
similares, com os resultados mais favoráveis a nosso cliente. de duplas de Ames, todas trabalhando na mesma causa, ler resmas de
Normalmente, um advogado fazendo esse tipo de pesquisa não pro- memorandos e esboços de sumários, con ferir cada trabalho para ter
curaria aJém de seu próprio estado. As causas de outras jurisdições não certeza de que foram respeitadas todas as for malidades legais que Ames
têm o mesmo efeito de precedente no tribuna l. Mas a competição de deve introduzir.
tribunal simulado era organizada de tal maneira que a lei consuetudi- Margo mostrou-se angustiada e um pouco brusca conosco no pri-
nária do estado de Ames, a jurisprudência, era for mada por todas as meiro encontro.
causas registradas de todos os esta dos da nação. Os volumes ocupam - Estão esquecendo os fatos - ela nos disse imed iatamente.
uma boa parte do enorme último andar abobadado da imensa biblio- Cada um deveria resumir os fatos da causa no memorando. Am-
teca da Faculdade de Direito de Harvard e muitos dos andares infe- bos esquecêramos. Terry reagiu com indiferença.
ri ores. - Se não podemos enumerar os fatos, então não merecemos es-
Mesmo assim, o trabalho não era tão assustador quanto pode pa- tar na Faculdade de Direito de H arvard .
recer. A empresa particular que edita a maioria dos registros analisa Ela não gostou da resposta.
cada parecer num código elaborado. Usando digestos e às vezes ostra- - Deveriam estar aqui . Vocês devem entregar um esboço de su-
tados e enciclopédias jurídicas, é possível acompanhar o código e en- mário dentro de duas sema nas. Não esqueçam de incluir os fatos.
contrar causas de todo o país sobre o ponto que interessa. O problema Marga fez mais alguns comentários sobre os nossos memorandos,
persiste . A fim de evita r uma indução ao erro do tribunal, antes de quase todos criticas sem maior importância, depois foi embora. Com-
citar uma causa - vamos chamá- la de Black v. White - é preciso se preendi que ela não fora um sucesso com Terry. A HLS conseguira
certificar de que não foi revogada, como às vezes acontece, ou que ou- acentuar as excentricidades de todos. Stephen se torn ara mais nervo-
tros juízes não criticaram o parecer como mal-argumentado. Po rtan- so. Eu passara a ser mais enfático e inseguro. Terry parecia cada vez
to, é sempre sensato conferir, pelo menos superficia lmente, cada causa mais sensível às críticas. O que fazia sentido . Ele percorrera uma lon-
subseqüente em que houve uma referência a Black v. White. Isso sig- ga distâ ncia fazendo as coisas à sua maneira e naquele ambiente de cri-
nifica recorrer a outro índice, que relaciona tais referências, depois exa- térios rigorosos sentia uma ameaça à independência que tanto prezava.
minar cada uma. Finalmente, se você é novo em tudo isso, como a Ressentia-se de qualquer coisa que encarasse como cont role. Logo de-
maioria dos estudantes do primeiro ano de direito, vai descobrir que pois do exame de Responsabilidade Civil, quando fomos almoçar, Terry
as causas tendem a revelar fraquezas menores em sua argumentação jurara que se emendaria e recomeçaria a freqüentar as a ulas - ficara
que não havia notado antes, cada uma precisando ser apoiada em mais assustado demais ao enfrentar o teste. Mas na primeira sema na do no-
causas e citações. É como desembrulhar uma molécula, só para desco- vo período, quando íamos para a au la de Processo Civil , Terry ensaia-
brir que a molécula contém átomos, os átomos contêm partes e as par- ra uma pequena dança dizendo :
tes contêm partículas. - Essa não, estou sentindo outra vez aquela coceira, não consi-
A pesquisa pode ser interminável, mas Terry e eu decidíramos fa- go ficar sentado.
zer um trabalho meritório, embora sem chegarmos à loucura. Achei E le riu, dando-me um soco no braço e se desviou para a bibliote-

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ca. Se havia alguma diferença, era que sua freqüência estava pior ago. - Supremo Tribunal da Califórnia - sussurrou Don ao meu lado.
ra. Aprendia o direito à sua maneira, lendo a maior biblioteca de fa. Eu estava tão nervoso que pensava ter dito isso. Corrigi-me e con-
culdade de direito do mundo . Enquanto observávamos Marga se tinuei, _mais ou menos lendo os fa tos do livro de causas. O processo
afastar, ele comentou para mim: envolvia uma operação de aparência duvidosa, em que o advogado de
- Não acha que essa garota é um tanto presunçosa? uma viúva idosa usara seu poder de procuração para aluga r um dos
Eu lhe disse para não se preocupar. Tínhamos duas semanas para imóveis para si mesmo. Depois sublocara a propriedade, com um lu-
fazer a pesquisa e escrever o sumário. Parecia muita coisa. cro considerável. Quando a viúva morreu, novos e mais virtuosos ad-
vogados, contratados pelo espólio, entraram com um processo ,
esperando revogar o contrato de locação do primeiro advogado . A única
Contratos e Processo Civil continuaram no segundo período . À medi- saída era o uso da doutrina da consideração e a sentença, favorável
da que o tempo passava, no entanto, descobri que minha atitude em ao espólio, fo ra bem fundamen tada .
relação a cada curso era diferente da que assumira no primeiro semes- Fui bastante competente com as perguntas de Perini a respeito da
tre. Em Contratos, um evento isolado provocara uma mudança extraor- causa, mas tive mais dificuldade quando ele me pediu para com pará-la
dinária em minha perspectiva. com outras que estudáramos nas últimas semanas. Na maior parte do
Perini finalmente me chamara para apresentar uma causa. tempo, fiquei sentado com uma expressão de profunda concentração
Acontecera na última semana do primeiro período. De certa forma, ou ofereci respostas fracas - " insuficiente", como Perini chamou uma
eu mesmo provocara esse fato. Perini, aparentemente, ensina Contratos, delas - antes que ele passasse para outro, Clarissa, Hochschild ou Cau-
no mesmo ritmo, todos os anos, e com a iminência do fim do primeiro ley. Mas me saí bastante bem para que ele me fizesse mais perguntas
semestre, parecia ansioso em alcançar alguma espécie de marca. Fui bas- durante o período.
tante insensato para atrasá-lo com uma pergunta no início da aula. Nas 24 horas subseqüentes fui o alvo da avaliação que já ap licara
- Qual o efeito da clá usula de contratos da Constituição na cau- a outros. Terry, sempre generoso, disse-me que fo ra a causa mais difí-
sa de ontem? cil do ano . Não era bem assim. Stephen elogiou-me prodigamente. Au-
- O que me diz de Bard v. Kent? - respondeu Perini. -A cau- brey, por outro lado, parecia pensar que eu poderia fazer melho r -
sa de hoje. Por que não nos fala a respeito? perguntou se eu lera o hornbook de Perini, em que aparentemente se
A turma riu muito, como todos costumávamos fazer quando Pe- podia encontrar as respostas a todas as perguntas que eu perdera. Di-
rini levava alguma vantagem sobre um aluno . Sorri enquanto abria o versas pessoas fizeram questão de me dizer que eu me mostrara bas-
liv ro de causas, mas sabia que não era a ocasião mais oportuna para tante relaxado nos momentos em que Perini se postara na min ha frente .
isso acontecer. Estivera bem preparado muitas vezes no passado . Na- Dei a mesma resposta a todos: estava satisfeito. Não chegara a
quele dia não tinha sequer um resumo. Com todo o estudo para os exa- ser sensaciona l, mas também não caí no desânimo por um desempe-
mes, não comparecera à sessão para a discussão dos fatores abstratos nho imperfeito. Em dezembro isso parecera a prova de que eu desen-
da causa, nem à sessão intensiva da manhã. E a causa era difícil. Está- volvia alguma perspectiva da ética da rea lização na HLS , resistindo
vamos mergulhados nas trevas da "doutrina de consideração", um dos ao impulso de não descartar como indignas ou uma desgraça todas as
perpétuos mistérios do direito, um conceito tão impalpável quanto a coisas que não haviam sido feitas de maneira magní fi ca.
transubstanciação. Nenhum contrato é completo a menos que ambos No segundo período, no entanto, descobri que ser chamado pos-
os lados tenha m provado a consideração. De um modo geral, trata-se suía um significado ainda maior. Não era mais um membro daquela
de alguma prova de que a transação está projetada como um intercâm- legião que ficava com o coração na boca cada vez que Perini entrava
bio positivo, uma operação comercial e não uma doação . A considera- na sala de aula . Não tornaria a ser chamado e passei, su bitamente, a
ção pode ser o pagamento em dinheiro ou alguma coisa tão tênue qua~to me sentir na aula quase como um observador de fora. A maioria dos
uma promessa. Perini chamara a consideração de "a essência analítica meus colegas ainda devotava a Contratos a mesma intensidade exta-
conceituai do curso, nosso tópico mais difícil" . Sorte minha. siada que sentia desde o início do a no. Os efeitos do Incidente haviam
- A causa é do Tribunal de Recursos da Califórnia em 1942 - sido mais ou menos eliminados. Ao que se dizia, Perini ainda conti-
comecei, a voz tremendo um pouco. nuava amargurado pelo fato e seu constrangimento público. Cartas e
- Tribunal de R ecursos? - gritou Perini . artigos, a maioria defendendo Perini, apareciam a lgumas vezes nas pu-
Oh, Deus, pensei , já começou! Não podia perceber o erro. blicações da faculdade de direito, mas tudo estava praticamente esque-
...
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cido na sala de aula . Perini continuava a exibir o mesmo charme pre- são de si mesmo, o que constituía, na minha opinião, uma apropria-
potente e a grande maioria dos alunos da Seção 2 ainda o considerava ção indébita do poder do professor.
um professor inspirado e Contratos como o nosso melhor curso. À medida que declinava meu apreço por Perini, eu tendia a negli-
Mas isso não acontecia comigo. A sensação de liberdade teve um genciar o trabalho do curso. Era uma reação adolescente, mas a única
forte efeito sobre a maneira como eu considerava o homem e seu cur- rebelião concreta que eu podia fazer. Nas manhãs de segunda-feira
so. De pé ao lado de Perini, um dia, ao final de janeiro, fiquei aturdi- descobria-me a promover competições comigo mesmo para verificar
do ao descobrir que ele era cinco ou seis centímetros mais baixo do se era capaz de ler os trabalhos de uma semana de Contratos em três
que pensara no início do ano letivo. Na verdade, ele estava diminuin- horas ou menos .
do em minha avaliação. Não mais com medo, senti mais claramente Para mim, o tempo e interesse assim disponíveis eram melhor apli-
os ressentimentos que tinha contra ele, em particular contra sua pre- cados em Processo Civil. Ao começar o segundo período , Nicky Mor-
tensão . Em aula, dispensávamos muita atenção ao Artigo 2 do Código ris deixara de ser discursivo com a turma . Absorvêramos a base da
Comercial Uniforme, idealizado como o Código Penal Modelo por um terminologia e de conceitos legais e Morris iniciara o tipo de incursão
grupo nacional de juristas, desde então adotado por todos os estados. filosófica ampla que Peter Geocaris nos dissera, no início do ano leti-
O Artigo 2 trata de "vendas" e suplantou muito do que antes se acei- vo, que seria inevitável.
tava na doutrina tradicional de contrato do direito consuetudinário. Ostensivamente, o segundo período do curso de Nicky era devo-
Quando se compra qualquer coisa em alguma loja dos Estados Uni- tado ao estudo das Normas Federais de Processo Civil. As normas fe-
dos , o CCU agora regulamenta muitos aspectos da aquisição. Como derais regulamentam a maioria dos aspectos do funcionamento de um
fizéramos com o Código Penal Modelo em Direito Penal, Perini com- tribunal federal: como as ações são iniciadas, como as informações po-
parava os resultados das causas de Contratos que estudávamos com dem ser obtidas pelas partes, o tratamento de muitos detalhes do jul-
disposições análogas do CCU. gamento em primeira instância e apelação. Não apenas essas normas
Perini adorava se mostrar com o CCU. O Artigo 2 tem cem pági- são fundamentais nos tribunais federais, mas também constituem o mo-
nas de dispositivos intrincados, mas Perini parecia ter memorizado tu- delo para os sistemas processuais de diversos estados; estudá-las é um
do, até as vírgulas. Mesmo quando tocava em alguns pontos, inadver- elemento indispensável, embora insípido, da maioria dos currículos do
tidamente , num aparte, ele comprimia as pontas dos dedos contra a primeiro ano de direito.
testa, como um clarividente de parque de diversões, depois enunciava Mas as aulas de Nicky sobre as normas nada tinham de chatas.
as partes exatas do código em que uma questão era tratada. Ao final de dezembro, passáramos vários dias estudando Erie Railroad
- Creio que encontrarão isso em 2-617, parêntesis "a". Company v. Tompkins, uma decisão de 1938 do Supremo Tribunal dos
Ele sempre estava certo e a turma se impressionava com seus co- Estados Unidos, que provara ser a vertente intelectual do curso. Em
nhecimentos dos detalhes . No primeiro semestre ele fizera citações si- Erie, o Supremo instruía os juízes federais das instâncias inferiores a
milares de seu hornbook e tratados. aplicarem a lei do estado, em vez da lei federal, em muitas causas que
Entre o pequeno grupo que partilhava minha hostilidade modera- lhes eram apresentadas. Assim, os tribunais federais em diferentes es-
da a Perini, havia os que acreditavam que tais episódios eram falsos, tados muitas vezes usavam normas diferentes para avaliar as mesmas
preparados e encenados com todo cuidado, a fim de intimidar a tur- questões legais.
ma. Eu não chegava a esse ponto, apesar de estar cada vez mais con- - Ao reconhecer a variação na lei - disse-nos Nicky - , o Su-
vencido de que Perini cometia erros, embora tri viais, muitas vezes premo Tribunal está aceitando a idéia de que nenhuma norma pode
contradizendo seu próprio hornbook. O que me incomodava, nesses ser considerada como algo "natural" . Vemos a lei depois de Erie ape-
casos e em outros parecidos, era a maneira como Perini se aproveitava nas como uma ordem imposta, uma reação à tradição política e social ,
de nossa falta de conhecimento e poder. Ele ti vera vinte anos para apren- não como uma coisa enviada do céu. A lei pode mudar; a lei pode va-
der o CCU; nós apenas começávamos o estudo, éramos vulneráveis ... riar de um lugar para outro. E nessas mudanças e variações, a lei, co-
e cativos. Se você comparecia à aula, não tinha alternativa a não ser mo qualquer outro produto social , reflete os conflitos e contradições
assistir àquelas demonstrações exuberantes, sem dispor de qualquer pa- persistentes na sociedade.
drão objetivo para saber se mereciam o tipo de admiração irrestrita Ao discorrer sobre as causas que lemos para ilustrar as normas
que Perini parecia esperar. De um modo geral, eu tinha a impressão federais, Nick y voltou a esses temas. Demonstrou como cada norma,
de que Perini usava a sala de aula para satisfazer alguma estranha vi- apesar de uma aparência neutra, refletia essas "contradições sociais

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persistentes" , que mencionara pela pr!meira vez em Erie. <::on~inuo~ e profunda. Nas_au las de Morris, descobri-me mais uma vez empenha
a falar sobre a tensão entre nosso deseJo comum de que a lei seJa uni- do_ na espec~laçao das pressuposições mais funda mentais sobre a ma
forme e certa e a vontade de que atenda de alguma forma às necessida- neira como v1ven:1os _a c~da dia - a forma como tratamos uns aos outros
des de justiça no caso individual. Descreveu os papéis conflitantes de - que me parecia tao importante ao ingressar na faculdade. Cada vez
juízes, membros de uma elite incumbida de tomar decisões, numa so- que entrava numa ~ula de Morris,_ eu recuperava toda aquela sensação
ciedade democrática . Deveria m os juízes se conformar aos sentimen- de des_coberta e_x~as1ada que expenmemara nas primeiras seis semanas.
tos populares?, Nicky nos perguntou . Deveria m os juízes de alguma E sabia q~e sama_ com a mesma sensação insólita, meio calor, meio
forma velar pelo bem-estar dos que compareciam à sua presença? De- sede - a 1mpressao de que estava sendo quase ressecado pelo excita-
veriam ajudar os ignora ntes ou apenas aplicar imparcialmente os dita- mento.
mes da lei? Nicky falou sobre os conceitos divergentes dos deveres das
partes numa ação judicial. Deveriam ser obrigadas a ajudar uma à ou-
tra , numa espécie de serviço supremo à verdade, ou autor e réu eram
gladiadores independentes, atacando-se sem quartel? Qual é o interes- ll / 2 / 76
se da comunidade na resolução justa de uma disputa? Até que ponto (Quarta-feira)
a noção de um direito exige um indivíduo para pô-lo em vigor?
As questões, os conflitos eram complexos e Nicky passou a analisá-
los com uma complexidade crescente, à medida que o período avança- ~ ~ida na faculd_a_de de di_reito neste momento é ocupada pela compe-
va. Alguns membros da turma ficaram irritados com o tratamento que uçao Ames, poht1c~ e gnpe. Parece que todos foram mordidos pelo
Morris aplicava ao curso . Achavam-no obscuro, confuso e - o pior pelo mesmo mosquito. Annette passou três dias de cama na semana
de tudo - nada prático. p~ssada. Eu fiquei em casa na quinta. Nas aulas ressoam tosses e es-
- Ele vive no espaço exterior - Ned Cauley me disse um dia. piíros.
- Não estamos aprendendo Processo Civil, mas sim a teoria das nor- . As eleições primárias de Massach usetts aproximam-se e muitos can-
mas de Nicky Morris. O que acontecerá com todos nós quando entrar- ?1d~to~ ?arece°: se sentir na obrigação de comparecer a essa augusta
mos num tribunal e apresentarmos uma petição nos termos do Artigo inst1tu1çao americana, a Faculdade de Direito de Harvard. Não procu-
Doze E? Acha que o juiz vai querer saber que é um modelo de infor- ram os votos dos est_udantes - a maio ria pertence a Udall, como o
malismo legal? meu , ou a Fred Harns. Alguns candidatos, eu acho, vêm se encontrar
Mas a maioria da turma se mostrava entusiasmada, inclusive eu. com os professores da HLS, muitos dos quais são assessores de diver-
Como Ned, ingressara na faculdade de direito para o treinamento pro- sas campanhas. Tenho a im pressão de que a maioria dos políticos quer
fissional, mas também procurava por a lgo mais, algo que se perdia apenas ter a oportunidade de usar o nome da fac uldade, apregoando-
quando os professores concentravam-se no tipo de ensino profissiona- o no resto da cam~anha. "Quando falei a respeito desse problema na
lizante desejado por Ned. Nessas aulas, o ensino do direito era tratado F_aculdade de D1re1to de H arvard ... " Tentei ver todos. Primeiro foi
basicamente como o meio de se aprender os talentos restritos e os cos- J1mmy Carte~, ? plantador de amendoins da Geórgia, em setembro,
tumes de uma espécie de alto sacerdócio. A singularidade do pensa- qua ndo a ma1o na das pessoas não sabia quem ele era. Muitas de suas
mento jurídico era enfatizada. Em conseqüência , eu e muitos outros frase~ pa~eciam slo~ans de pára-choques de caminhões e ele se mos-
colegas ficávamos muitas vezes com a sensação de um hiato entre as tr?u mcnvelmente impecável com sua pessoa, até demais. Na sexta-
idéias legais e as que conhecêramos em outras áreas de estudo. Nicky fe1ra, Sco_o~ J ackson s_e revelou um chato e insignificante, diante de
empenhava-se em remover essa fronteira. uma mult1dao em Austm. Shapp , Mo e Harris de verão comparecer até
- O direito é uma disciplina humanista - disse-nos Nicky, no o final do mês.
segundo período. - É um reflexo tão amplo da sociedade, da cultura, Sinto-me mais à vontade na faculdade agora do que em qualquer
que pode ser alvo de indagações de qualquer outro campo de investi- outr~ momento a~terior. As promessas que os a lunos do segundo e
gação: lingüística, filosofia, história, estudos literários, sociologia, eco- terceiro anos me fizeram - de que um dia seria mu ito mais fácil ler
nomia, matemática. uma causa - finalmente se consumaram. A lguma coisa se ajustou em
Nicky não abordou todos esses assuntos, mas seus ensinamentos seu lugar depois do Natal. Ainda não é como as histórias em quadri-
eram sempre animados pela noção da busca do direito como ilimitada nhos, é claro, mas a compreensão é fluente, frase a frase. Mesm::> com

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Ames, disponho de mais tempo livre do que nos piores momentos do tes. O segundo, ~m engenheiro, propõe que a \ata seja aberta largando
,. período passado. Depois do esboço do sumário, poderei passar algum uma pedr~ em cm~a:, de. gra_nde altu~ra . O terceiro é economista e tem
tempo sem trabalhar nos fins de semana . Posso fazer mais companhia seu.;:,rópno plano. Primeiro, voces devem presumir que temos
a Annette agora. Há poucos dias até fomos a um cinema no meio da abridor de latas." um
semana . Também reformulei um pouco a minha programação, levan- Seja_co~ o for, ~~itas vezes tenho a impressão de que os profes-
tando junto com Annette pela manhã, a fim de tomarmos café juntos, sores estao dizendo: Presumam que vocês estudaram economia."
antes dela partir para a escola.
Quanto às aulas, ainda estou gostando do curso facultativo, Di-
reito e Política Pública. Sternlieb passou as primeiras semanas tentan- Ames contin_uou. O~ alunos do primeiro ano concediam grande parte de
do nos familiarizar com os recursos de ciência social que considera s~a atenção a pesquisa e preparação de memoriais, e os professores pare-
valiosos para os planejadores de uma política. Neste momento estuda- ciam dar um desconto por isso. Nicky formulou suas tarefas de maneira
mos estatística e o teorema de Bayes. Na semana passada foi a teoria a estarem de acordo com a programação da competição. Perini começou
do jogo. Antes disso, tivemos outra boa dose de economia, passando d~ repente, a dar aulasA di~cur_sivas, _em vez de chamar um aluno para ser~
pelo marginalismo, otimização de Pareto e análise de custo/ benefício. vir como alvo ou re~e~enc1a. A medida que se aproximavam as datas para
Por essa linha, tenho um conselho a oferecer a qualquer um que entrega dosAm~mona1s, a freqüência às aulas baixou. Em Propriedade,
esteja cogitando de ingressar na faculdade de direito: estude um pouco ond~ as ausenc1as sempre foram elevadas desde o início do período, havia
de economia antes. O curso de política é o quarto do ano a atribuir ocasiões em que até um terço da turma faltava. No começo de uma aula
uma ênfase considerável à economia. O mercado livre em Contratos; Fowler correu os olhos pela sala e disse, quase esperançoso: '
a teoria da distribuição em Responsabilidade Civil. Em Propriedade, - Vamos ver quem está presente.
Fowler introduziu-nos numa coisa chamada teorema de Coase, um en- Apesar de todo o trabalho árduo que os estudantes dedicavam a
foque econômico da distribuição dos direitos de propriedade. Até mes- Ames, os esforços pareciam refletir um interesse genuíno em vez dos
mo Nicky já falou sobre as normas em termos de seus custos e p_adrões normais de pânico ou agressão. Houve os extrem'os já conhe-
benefícios. Em todos os casos, a economia foi apresentada como um cidos, como não podia deixar de ser - pessoas que se empenharam
elemento racionalizante, uma maneira de encontrar mais sentido nas tanto que perd~ram o sono por três noites consecutivas, outros que ale-
muitas opções difíceis do direito. garam ter es~n~o seus memoriais sem ler qualquer das causas citadas
É uma tremenda dificuldade para os que não têm qualquer co- - mas a ma1ona dos meus colegas dava a impressão de acolher Ames
nhecimento anterior do assunto. O meio mais certo de levar Sonder- como uma diversão bem-vinda. Em contraposição aos exames O tri-
gard às lágrimas é uma conversa prolongada sobre economia. Outra bun~1 _simulado_oferecia uma oportunidade autêntica de dem~nstrar
turma se manteve durante todo o ano num estado de rebelião latente e v:nf1_car por s1 mesmo até que ponto se havia adquirido alguma com-
- -~.- contra seu jovem professor de Contratos, que segue uma análise eco- petenc1a com as tarefas profissionais . E o processo de trabalhar em
nômica inflexível, o que para muitos estudantes nem deveria ser abor- caus~s em primeira ~ão, definindo sua própria argumentação, pro-
dado. P?r~10nava um novo impulso, num momento em que as preocupações
Ainda não tenho certeza do quanto devo levar tudo isso a sério. d1ánas com as aulas começavam a parecer rotineiras.
Muito do que nos ensinam sobre economia parece disfarçar algumas - É a única coisa na faculdade que faz sentido - comentou Au-
das pressuposições mais cruéis do sistema de livre iniciativa. Muitas brey a respeito de Ames. Ele se mostrava cada vez mais desencantado
vezes tenho a impressão de que a economia não passa de uma maneira com a faculdade e as abstrações dos professores . - É a única coisa
sutil de nos levar a aceitar a visão do mundo de um capitalista. O que durante tod~ o ano que prepara a gente para o exercício da profissão.
se pode dizer sobre um sistema de pensamento que presume que todos ~u p~rttlhava muito do entusiasmo geral por Ames. As questões
agem pelos interesses pessoais? da Pni:ne1ra E~e~da em nosso caso de di f1tmação - quais cidadãos
Sociólogo com anos de economia, Stephen é um cético rematado. eram figuras p~b_hcas e por que os comentários a seu respeito deviam
Acha que a economia faz pouco mais do que repetir o que já é conhe- ser menos_restnttvos - tornaram-se cada vez mais sutis e provocan-
cido . Contou-me uma piada para ilustrar o argumento . Três homens tes_,à medida que as ~studava, encontrando um prazer genuíno na pes-
estão passando fome numa ilha deserta quando encontram uma lata quisa. Claro que h_av_1a alguns aspectos de Ames que não me agradavam
de feijão. O primeiro , um homem fo rte, quer abrir a lata com os den- tanto. Um dos obJetJvos do tribunal simulado era nos familiarizar com

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as convenções de citação de causas - as a notações abreviadas que são causa que prometera cob rir. Assumi a pesquisa e também a redação
usadas em todos os documentos legais para indicar em que tribunal do memorial, sem me queixar. Não valia a pe na, refleti , prejudicar uma
uma decisão foi tomada e o volume em que a causa se encontrava re- boa amizade. Passei a minha única no ite em claro do a no apronta ndo
gistrada. Um juiz ou o advogado oponente vai muitas vezes querer re- minha parte do memorial. Ao chegar à faculdade, no dia marcado
visar as causas que você a ponta como favoráveis e por isso a citação fiquei consternado ao saber que Terry não concluíra a sua parte. Tí~
acurada é outra das habilidades insípidas de um advogado que não se nha mos pela frente um fim de semana comprido e Terry garantiu -me
pode deixar de aprender. Nossos memoriais de Ames deveriam estar que terminaria o memor ial em um dia ou dois e o entregaria a Margo,
de acordo com o sistema de citações desenvolvido pela Harvard Law que ainda teria d o is dias para estudá-lo, antes de nossa próxima re u-
Review. Ao me preparar para começar o esboço, descobri-me passan- nião, marcada para a terça-feira.
do horas na biblioteca, cercado por pilhas de livros, verificando p e- Annette e eu deixamos a cidade no fim de semana. Quando c he-
quenos detalhes irritantes como o número da página em que apareciam g uei à faculdade, na manhã de terça-feira, Terry foi se encontrar co-
as citações apresentadas, em dois ou três volumes publicados por dife- migo junto do meu armário. Exibia um sorriso estranho ao se
rentes editoras. aproximar.
Mas, no todo, gostei do trabalho do julgamento simulado. O me- - Aquela garota está ficando um pouco impaciente comigo -
morial proporcionava outra oportunidade - uma coisa rara - de ex- comemou ele.
perimentar a redação legal e adquirir mais familiaridade e controle sobre Indaguei o que isso significava. Terry explicou que não concluíra
a retórica impessoal do direito. Era uma coisa com a qual começava sua parte e que Margo, agora furiosa, telefo nara-lhe na noite passada.
a me sentir mais à vontade, pensei. - Isso não é nada engraçado, Terry - d eclarei. - Precisa faze r
A única dificuldade maior que eu tinha com o tribunal simulado seu trabalho.
não se relacionava absolutamente com o que era exigido de nós. O pro- - E será feito , cara, será feito. Vou para a biblioteca agora . Es-
blema era pessoal, pois não estava sendo fácil trabalhar com Terry. creverei tudo esta manhã. E la receberá tudo até o meio-dia . E só va-
Ele nunca sentira muito entusiasmo por Ames e eu arrefecera ainda mos nos reunir às duas da tarde.
mais a sua atração ao ficar, involuntariamente, com a parte da causa - Trate d e fazer a s ua p a rte - insisti. - Não quero ser reprova-
que mais o interessava, conforme Terry confessou depois - a questão do nessa coisa.
..
'
constitucional. Ele não dava muita atenção às exigências externas. Seu
trabalho era apático e esporádico, muito de sua pesquisa era descuida-
Parecia agora urn a preocupação vagamente realista. Dizia-se que
todos os a nos havia un s poucos a lunos do primeiro ano que não leva-
da. Na reunião do memorando, Marga oferecera-lhe sugestões sobre vam o Ames muito a sério e acabavam tendo de repetir todo o progra-
a maneira de tratar sua parte da causa, mas Terry as recusara, prefe- ma de Métodos Legais no a no seguinte. Não me incomodava d e deixar
rindo usar uma teoria legal sua, bastante confusa. Parecia ter uma va- T erry fazer o que bem quisesse, desde que ele não me arrastasse junto
ga idéia de ganhar a causa ao inventar um enfoque inteiramente novo para o fundo . Agora, porém, começava a me preocupar. Terry pare-
para a lei da difamação, relacionando-a com o conceito de responsabi- cia mais estranho em relação ao proj eto a cada dia que passava.
lidade, embora seu pensamento não fosse muito claro e n ão houvesse Encontrei-me com T erry às 14:00h e seguimos juntos para o Pound,
muito apoio para a argumentação entre as a utoridades disponíveis. onde nos encontraríamos com Margo, numa sala de re união do tercei-
- Aquela mulher está redondamente enganada - disse-me Terry ro anda r. Perguntei se concl uíra o memorial e T erry me garantiu que
a lguns dias depois da reunião com Margo. - E la não ente nde be m sim; mas enquanto subíamos no elevador, ele se m ost rava visivelmen-
este caso. A questão fundamental é muito diferente. te agi tado, irrequieto, sacudindo os o mbros.
Perguntei se tinha precedentes para provar isso. - Ei, cara, estou aporrinhado com tod o esse negócio - disse ele.
Há páginas de citações nas enciclopédias legais - responde u - Fui procurar a tal garota, como é mesmo o seu nome, M a rga , no
T erry . escritó rio d o BSA, a fim de verificar se ela recebera o tra ba lho . Margo
Leu alguma? estava lendo o que escrevi e subiu pelas pared es qua ndo me viu. Disse
H á centenas de causas. que eu teria de fazer tudo d e novo, que e u estava errado.
Nas semanas subseqüentes ele deu a impressão oe que não lera mui- Era disso que eu tinha medo .
tas. À medida que se aproximava o prazo final para o esboço do me- E o que você disse?
morial, ficou evidente que ele nunca concluiria o tra balho na pa rte da Eu disse a ela que n ão era a minha vida - respo nd eu Terry.

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Virei-me para Terry e percebi um brilho duro surgindo em seus . - Você está apenas inventa_ndo n?rmas ! - gritou Terry. _ Não
1,
olhos. Ele estava furioso e insistiu: me importo se todo mundo que Já fez isso também vê as coisas à sua
.1
- Não é a minha vida, cara, não é mesmo? maneira .. . estão todos errados ! Você está errada. Abusa d(; seu poder
Concordei que não era, esquivando-me a uma confrontação. Avan- como uma conselheira. Está tentando me pressionar. Você me dá cau-
çamos pelo corredor em silêncio. Terry deteve-me por um instante diante sas em preto e branco . Mostre! Não sabe do que está fa lando!
da sala de reunião. Finalmente ele recuou e deixou a sala, batendo a porta. Margo
- Você começa - ele me pediu . - Ainda estou esquentado. Pre- começou a chorar.
ciso recuperar o controle. - Estou apenas tentando ajudar vocês - murm urou ela.
Minha parte na reunião correu bem . Margo levantou algumas dú- Procurei confortar Margo da melhor forma possível. Pedi descul-
vidas, tentando se certificar de que eu compreendia as dimensões de pas por Terry, mas me sentia bastante abalado pela maneira como ele
minha argumentação. Não concordei com tudo o que ela disse, mas reagira . Terry me assusta ra e obviamente a Ma rgo também.
de um modo geral apreciei a maioria de suas sugestões . Não tornei a me encontrar com Terry até o dia seguinte.
Quando ela se virou para Terry, no entanto, era óbvio que per- - Diga-me o que está pensando - pediu Terry.
maneciam irritados um com o outro. Margo devolveu o trabalho de Mas depois ele acrescentou sua própria versão dos acontecimen-
Terry. Estava escrito a mão - era obrigatório ser datilografado - e tos, asseverando:
os comentários dela apareciam em letras grandes no verso de cada - Eu errei. Não devia ter recuado. Fui delicado demais .
página. Fiquei olhando para ele, incrédulo. Depois, lancei-lhe um epíteto
- Lamento que meus comentários pareçam um pouco agressivos, e me afastei.
mas fiquei de fato furiosa quando li isto - disse ela. - Você cita Mais tarde, quando descrevi a HLS a um amigo que é méd ico,
duas causas. E não enunciou os fatos. Isso deveria ser o começo de ele comparou-a com uma enfermaria de hospital. Comentou que eram
sua parte do memorial. E eu avisei aos dois que era muito importante lugares em que os internos freqüentemente tinham dificuldades para
...... ....... se manter próximos a outra pessoa. Encontravam-se sob pressão de-
~"-,, ., a maneira como enunciam os fatos .
Terry respondeu de novo que não era preciso enunciar os fatos. ma is, empenhados demais em salvarem a si mesmos para pensarem na
- Falou a mesma coisa na última vez - declarou Margo. - E preservação dos relacionamentos.
deveria ter feito isso agora. Como pode ter a esperança de convencer Acho que é verdade . Minha amizade com Stephen nunca se recu-
o tribunal quando cita apenas duas causas? perou inteiramente dos exames do primeiro período . Com Terry, o
- Cito CJS, Prosser, ALR - protestou Terry. Ames permaneceu como uma barreira entre nós. Ambos nos acalma-
- São enciclopédias, hornbooks. Não são causas. Não constituem mos em dois dias e Terry até concordo u que fora duro demais com
jurisprudência . Margo. Mas nunca lhe pediu desculpas. Em vez disso, assum iu a de-
Os dois discutiram com crescente veemência por algum tempo. Thrry terminação de justificar seu comportamento, provar que sua teoria ab-
insistiu que fizera as coisas da maneira certa e Margo, depois de tentar por surda sobre difamação fazia sentido . À medida que se aproximava o
um momento manter o controle, acabou se tomando sarcástica. Enquanto memorial final e depois a defesa oral, ele trabalhou freneticamente pa-
discutiam, ambos olhavam para mim a todo instante, em busca de apoio. ra localizar causas ou artigos de revista de direito que proporcionas-
Margo tinha razão, eu sabia; mas também reconhecia o quanto Thrry preza- sem alguma credibilidade às suas alegações. Nunca encontrou. Tentei
va a lealdade. Tentei não deixar transparecer coisa alguma. a princípio dissuadi-lo de seu raciocínio, depois tentei entender o que
Margo finalmente decidiu ser bastante clara e disse a Terry: ele dizia, mas fracassei nas duas coisas. À medida que passávamos pe-
- Seus argumentos são simplesmente incríveis . Não fazem o me- lo restante do Ames, eu disse a mim mesmo, mui tas vezes, que sim-
nor sentido. Essa ligação entre difamação e responsabilidade civil... plesmente a Faculdade de Direito de Harvard podia de vez em quando
vai se embaraçar se levar esse argumento ao tribunal. E também vai levar todos nós à loucura. Mas na determinação de meus esforços para
embaraçar Scott. ser obj etivo , j usto com Terry, percebi uma distância que não existia
Terry esbugalhou os olhos, com o mesmo brilho indignado que eu antes.
vira no corredor, inclinando-se para a frente, numa postura animal be-
ligerante. As mãos se contraíram em punhos e de vez em quando ele es-
murrava a mesa. Por um instante, receei que pudesse agredir Margo.

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(Terça-/eira)
~e achava em condições de pre_v~r as no tas com a lguma acurácia. Ima-
gino que a n.ot~ de Responsabilidade Civil será mais alta do que a de
P~nal. Nas ulumas semanas, venho fazendo peq uenas barganhas co-
m1~0 mesmo, _t~~tando afastar o temor de um C , mas não pensando
muito na poss1b1il_dade de !"s. N_o todo, acho que ficaria satisfeito com
'
Encontrei Stephen hoje, depois da au la de Direito e Política Pública.
Ele lera um comunicado no quadro de avisos e senti um frio na espi- um B e um B-ma_is. Estaria assim no caminho para a graduação com
nha quando me informou: l~u~or, o qu e ser~a um~ b_oa recompensa depois de três anos de escra-
- As notas vão sair amanhã . v1dao. ~ verdadeiro obJet1vo,_ no e_nta?to, é resistir às vibrações já bem
Não fingirei que não passei muito tempo a pensar nas notas desde co_nhec1das da HLS e me sentir satis feito amanhã, não importam quais
seJam os resultados.
os exames. Amanhã será o dia da verdade. Como tod os os outros, não
posso deixar de presumir que os resultados serão indicativos do meu
fulU ro desempenho na faculdade, que por sua vez determina rá o que Ao fina l d ~ Processo Civil, no dia segumte, Nicky Morris fez-nos um
pequeno discurso.
vai me acontecer quando sair daqui.
Um dos efeitos mais imediatos das notas de amanhã é que servi- -: Acho que vocês não deveriam estar recebendo as notas que re-
rão como uma primeira seleção para a revista de direito. Reconheço ceberao esta tarde. Sempre achei que o primeiro ano não deveri a ter no-
que , quanto mais penso na revista, mais a perspectiva me atrai. Com tas. _Nenhum de vocês possui conhecimentos suficientes para que as notas
o passar do tempo, não é di fícil ser envolvido pela proeminência da re flnam com a lguma precisão as diferenças permanentes e inerradicáveis
Harvard Law Revie w. A revista é citada em sentenças, aceita e respei- e~tre as pesso?s que.s~o avaliadas por exames. Portanto, recomendo que
tada em todo o mundo jurídico. Acompanhando o curso de Morris, naoAlevem m~Ho a seno as notas desta tarde. Abso lutamente nada do que
vou agora à biblioteca com freqüên cia para consultar artigos da revis- v?ces gos~anam de faze r no futuro, em termos de uma carreira legal, se-
ta e já cheguei à conclusão de q ue provavelmente gostaria de partici- ra determmado por essas notas. Nada mesmo. Nem um cargo de profes-
par de sua prod ução. sor. Nem os empregos com as g ra ndes firmas de advocacia.
Não que eu espere que isso aconteça. Qualquer um que tiver dois P hil Pollack, sentado ao meu lado, inclinou-se e su~surrou :
Bs amanhã provavelmente estará fora da disputa e descon fio que serei - Note que ele não menciono u a revista de direito.
incluído nessa categoria. O rumor é de que quase todos na HLS tiram Eu ti nha no tado. Estávamos todos pensando na mesma coisa. Em-
Bs, embora a distribuição precisa das notas seja um dos segredos mais bor_a fosse u~ ~sforço admirável, o discurso de Nicky não contribuiu
bem guardados da faculdade. A secretaria mantém a informação em muito para a hv1ar as a nsiedades predominantes. Ao final do dia mui-
sigilo, a fim de evita r qualquer tenta ti va de classificação do primeiro tas pessoas sentiriam que alguns limites haviam sido fixados. '
ao último, o que foi abandonado na década de 1960. De um modo ge- O pla no da secretaria para distribuir os boletins determinava que
ral, porém , sabe-se que a secretaria envia um registro das no tas nos todos os alunos do primei ro an o se apresentassem às du as horas da
cursos do primeiro ano a cada professor. Em termos hipotéticos, os tarde numa das salas de aula de Langdell, a fim de recebê-los. Muitos
professores podem ig norar essas informações, mas é bem provável que podiam imagi nar a correria para as salas e ressentiram-se mais uma
a maioria pense na última distribuição de notas . Os estudantes tendem vez por te~em_ de se submeter em massa. A secretaria explicou mais tarde
a pensar numa curva estatística, especulando muito sobre a relação de que p~rec1a simplesmente o meio mais rápido de distribuir os boletins.
notas. Um garoto q ue conheci no vestiário do ginásio gara ntiu convic- A ~ns1edade dos primeira nistas pelas notas era tão grande que a secre-
to que apenas lOOJo das no tas são As. Mas Wally Karlin contou que taria acelerara os trabal hos, a fim de que as notas fossem comunica-
Nicky Morris lhe dissera que a distribuição ha bitua l era de 200Jo de As, das seman?s a ntes dos resultados do segundo e terceiro anos .
600/o de Bs, 200/o de Cs, com alg uns Os e Fs. Qualquer que seja a dis- Jog~e1squash à tarde e apareci tarde em Langdell, a fim de evitar
tribuição em cada curso, é bastante raro o tipo de desempenho siste- a con~usao das duas horas. Ho uve uma fila comprida na hora marca-
maticamente elevado que leva à revista de direito. Uma coisa eu sei da . D1ssera~-me que ~s ~essoas entravam na sala e saíam inexpressi-
com certeza: nos últimos três a nos, não mais do que 80Jo ou 90/o de v~s, ?S boletms compnm1dos contra o peito, murmurando que ainda
cada turma alcançaram a média de " A-menos" ou "A-mais", indis- nao tmha m dado uma olhada. A m ul tidão já havia se dispersado quan-
pensável à graduação magna cum laudes. dp cheguei. Lá embaixo havia umas poucas pessoas de outra turma
Os exames haviam sido uma taman ha loucura para mim que não e o uvi alguém pergunta r a o utro como se saíra, e a resposta:

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- Não vou para a revista de direito.
vista. Pensei que ele merecia mais por sua ho nestidade. E depo is de
Ao subir para a sala em que os boletins estavam sendo distribuí- ser expulso de Los Angeles, tenho certeza de que ele saborearia agora
dos, encontrei Stephen descendo a escada. Havia algo mais em seu rosto um grande triunfo, confirmando todas as suas mel ho res esperanças para
do qu e um mero sorriso - a expressão era animada por algo desvaira- si mesmo.
do, um júbilo profundo. Eu nem precisava perguntar. Nós três tentamos conversa r, mas os comentár ios eram inibidos
- Você se saiu bem , Stephen. e tensos. Stephen acabou d izendo suas notas a Aubrey, que lhe deu
E le soltou uma risada. os parabéns . Ao me levantar para ir embo ra , eu disse a Au brey que
- A-mais e um A. tínhamos algu m consolo - pelo menos poderíamos nos encontrar com
- Por Deus! - Apertei sua mão . Eram notas astronômicas. - Stephen no p róximo a no para um almoço na Gannet t H ouse, onde se
Isso é marav ilhoso! localiza a revista de direito.
Pedi-lhe que esperasse e subi apressado. A eno rme sala estava si- Stephen sorri u e murm urou , quase que pa ra si mesmo :
lenciosa. A mulher da secretaria tirou uma folha de computador de - Acho que estarei lá.
um livro ainda cheio. Olhei para Stephen em busca de algum sina l de hu mor, mas não
- Muito bom - disse ela, estendendo-me a folha. havia nenhum. Restavam quatro exames na primavera e ouvíramos his-
Um A-menos em Penal, um B-mais em Responsabilidade Civil. tórias sob re primeiranistas que recebiam do is As no pri meiro período
Não dari a para a revista de direito, pensei no mesmo instante, ~as me e depois não ganhavam mais nenhum. Observa nd o Stephen , no entan-
saíra muito bem . Sentia-me descontraído, só de enfrentar a realidade, to, percebi que ele sentira o cheiro do paraíso. Sabia agora o que que-
depois de me preocupar por tanto tempo. ria. Sabia q ual era o lugar a que pertencia.
Desci ao encontro de Stephen . Sandy Stern postara-se agora na Acompan hei Au brey até seu armá rio. Willie Hewiu aproximou-
base da escada, perguntando às pessoas que passavam quais eram suas se, gabando-se de dois Bs.
notas. Sandy fora muito bem, com um A e um A-menos, mas não es- - Nada mal pa ra quem mata as au las, hem? - acrescentou Wil-
tava satisfeito. lie, enquanto se afastava.
- Não tenho certeza se chegarei à revista de direito - explicou ele. Aubrey estremeceu. Ficou olhando fixamente para o seu ar mário
Aparentemente, Sandy decidira conferir todos os que julgava con- vazio.
correntes. Quando pergunto u com o eu me saíra, senti-me quase lison- - Estou cansado de ser com petente - d isse ele subitamente. -
jeado . Nos dias anteriores, não sabia se gostaria de discutir minh~s Tenho sido competente d urante toda a min ha vida. Gostaria de poder
notas. Falar sobre as notas parecia muito com a conversa sobre o di- ser o mel hor ou o pior. Ficar no grupo intermediá ri o é uma chatice.
- --·-~ nheiro que se ganha - não há como ser elegante a respeito. Falar li-
vremente acarreta o risco de invej a o u desdém. Permanecer em silêncio
Ele sacudi u a cabeça e soltou uma risada . Dei um ca pinha em suas
costas e fui embo ra.
parecia aum entar a importância de uma coisa que eu queria tratar co- Subi para a biblioteca e tentei estuda r , mas ai nda me encontrava
mo insignificante. Ao fin al, não fiz uma opção consciente. Q ua ndo atordoado, com emoções co ntrad itórias - vergo nha, inveja, compai-
Sandy pergunto u, simplesmente respo ndi sem pensar. xão, orgulho. Investira tantos sentimentos confusos nos exames e no-
Myra Katchen desceu a escada atrás de mim. Era gradu_ada e~ tas que era inevitável q ue a florasse esse labirinto . Sentia uma inveja
filosofia boa nas aulas - mais um a pessoa que Sandy consideraria intensa e horrível de Stephen, mas podia compreender que minhas no-
uma gra~de concorrente. Ele pergunto u como e!a se saír_a . . tas eram boas . Já conversara o sufi ciente com a lunos do segundo e ter-
- Muito bem mas não vai dar para a revista de direito. ceiro anos pa ra saber q ue perman ecia vaga mente, junto com muitos
Fui para o túne'i, enco ntrei Stephen e acompanhei-o até Harkness, outros, na corri da para a revisLa de direito, em bora não me si1 uasse
onde lhe paguei uma Coca como parabéns. A ubrey apareceu quando nos primeiros lugares. Muitos dos comentá rios e minhas primeiras rea-
sentamos no salão. Não havia necessidade de perguntar como ele fora. ções eram na verdade man ifestações de pesar pela redução da chan-
Aub rey estava pálido. Pôs o café que segurava na mesa. ces. Mike Wald aprox imou-se de mim na biblioteca e perguntou:
- Fiquei no meio da turma - disse ele . . - Saíram as notas do primeiro ano?
Isso só podia significar Bs. Aubrey esforçara-se, obstmad ~, du- Respo ndi que sim ; por q ue ele pergun tava?
rante o primeiro período, sem ter medo de confessar suas ambições. - Muitos ros tos vermelhos. - Mike gest icu lou para o resto da
Queria a firma de advocacia mais exclusiva, o salário mais al to, a re- biblio teca - Pessoas cho rand o.

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Por mais incrível que pudesse parecer, Mike estava certo. Naque. nas duas notas, havia muitas pessoas que haviam recebido um A co-
la tarde e nos dias subseqüentes encontrei muitos colegas que haviam mo era o meu caso , mas isso não significava que a longo prazo c~nse-
sofrido com as notas; mostravam-se sombrios, desconsolados, às ve. guiríamos As na metade dos exames. '"'--
zes chegavam às lágrimas. Praticamente todos nós havíamos sido an. Mesmo levando isso em consideração, as notas pareciam estranha-
tes estudantes destacados, acostumados às recompensas das notas altas. mente altas, ainda mais quando se pensava no que ouvíramos sobre
Tais notas eram os meios pelos quais abríramos caminho pelo mundo o rigor da linha gráfica habitual da HLS . Interroguei Mike Wald a res-
- chegando a colégios famosos, à Faculdade de Direito de Harvard . peito, uma tarde, na biblioteca, quando tivemos uma conversa mais
Constituíam o próprio sucesso, a base da elevada imagem de si mesmo prolongada sobre notas.
que cada um proj etava, consideradas, com o passar do tempo , menos - As pessoas mentem - disse-me Mike. - Isso acontece muito
como reflexos limitados de nossa capacidade e mais como sím bolos de por aqui. Algumas pessoas não suportam a idéia de não estarem lá em
mérito pessoal. Agora, como se podia prever, a maioria recebia Bs, cima. Mentem aos colegas e mentem aos empregadores. O problema
notas que muito raramente hav iam conhecido , depois de passarem pe- se tornou tão crítico que as fir mas de advocacia estão pensando em
lo colégio numa época em que os As em todas as matérias não eram exigi r uma transcrição das notas antes de contratarem.
incomuns. Para vários deles a queda era um golpe terrível e as reações Aos poucos fora m acabando as conversas sobre notas na turma
foram algumas vezes extremadas. C larissa Morgenstern, pelo que me e a loucura que as envolvia. As pessoas se recuperaram da mágoa de
contaram, recebera deis Bs-mais e ficara histérica. C horara, descon- ficarem nos escalões interm ediár ios, de serem afastadas da disputa pe-
trolada, jura ndo que deixaria a faculdade. Outros pareciam profun- la revista de direito , mas poucas pareciam considerar todo o processo
damente insultados. Kyle tivera notas como as minhas. de exames e notas, ao estilo da faculdade de direito, como outra coisa
- Não pude acreditar - ele me disse. - Fiquei olhando e pen- que não uma avaliação sensata. Muitos resul tados pareciam i-rracio-
sei: Não, deve haver algum engano , uma delas não é um A . nais. Terry, por exemplo, apostara tudo em Penal. Concentra ra seus
Não falamos de outra coisa no dia seguinte à divulgação das no- estudos nessa matéria e mais ou menos descartara Responsabilidade
tas. Foi outra das ocasiões em que Annette me acompanhou até a fa. Civil como um assunto que jamais entenderia. Contudo , em Pena l re-
culdade. Ao voltarmos para casa, ela comentou que ficara impres- cebera um B, enquanto de Zechman gan hara um A. Havia inúmeras
sionada com os comentários constantes sobre as notas, as compara- histórias assim. E havia também algumas pessoas que demonstraram
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ções incessantes. Parecia-lhe uma coisa horrível, obsessiva e adolescente. em aula uma percepção genuína dos problemas legais, mas que por al-
E sem dúvida era mesmo. Mas a maioria - à exceção dos poucos com gum motivo não se saíram bem nos exames. Foi o que aconteceu com
dois As - precisava da segurança de saber como os outros haviam se Ned Cauley. Num caso como o dele, eu não podia deixar de questio-
saído, apenas para ter certeza de que um B não era um sinal de incom- nar a validade do sistema da faculdade de dar notas no escuro - com
petência. Phyllis Wiseman tinha trinta e poucos anos, uma esposa e todo o aproveitamento do a lu no baseado nu m teste identificado por
mãe que até mesmo como estudante de direito continuara a pôr a fa. um número e não por um nome - forçando os professores a ignorar
mília em primeiro lugar. Era muito admirada na turma por manteres- conhecimentos obviamente relevantes para suas avaliações.
se tipo de perspectiva. Mas quando as notas saíram, até mesmo Phyllis O que persistia entre os meus colegas era a raiva por haver notas,
achou que tinha de participar daquele grande espetáculo. de modo que as pessoas que já haviam demonstrado seu talento ficas-
- Nunca fui uma intrometida, nunca me envolvi com fofocas - sem sujeitas ao terror de " mais" e "menos", divid idas, rotuladas. Pes-
ela me disse. - Não me interessa o que os vizinhos fazem. Mas estou soalmente, havia momentos em que eu admitia a possibilidade de haver
louca para saber como todos se saíram. pessoas enquadradas num extremo ou noutro. Se alguém podia se sair
Poucas pessoas falaram de Cs, embora se soubesse que foram mui- muito bem naqueles exames narrati vos, então merecia alguma recom-
tos. A maioria dos estudantes que recebera um C parecia ter se enver- pensa - possuía um ta lento que eu não ti nha. Por o ut ro lado, se os
gonhado em silêncio. E havia uma indicação ainda mais inquietante estudantes pareciam não ter aprendido, era conveniente adverti-los para
da profundidade do constrangimento com as notas. À medida que as isso. Mas para a grande maioria, no meio, era difícil acred itar que aq ue-
comparações continuavam, o uvi vários comentários de que a quanti- les níveis de discriminação , A-mais e B-menos, C , D e F, pudessem
dade de notas altas parecia desproporcional. Uma parte era especula- ser determinados com precisão. Poucos a nos antes, os primeiranistas
ção estatística. Tendo em vista a singularidade dos exames, era inevitável de Harvard receberam a oportunidade de optar entre o sistema de no-
que os resu ltados dos testes individuais fossem aleatórios. Com ape- tas e esquemas de avaliação mais simples - A lta, Satisfatória, Baixa

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e Insuficiente - mas os professores , numa inexplicá vel reversão, abo-
liram isso um ano a nles de nossa chegada. Ficamos com um sistema constituído por mulheres. Na minha turma de Harvard, 10% eram pre-
que parecia próximo ao capricho, e que muitas vezes era inevitavel- tos, 3% latinos e 2) 11/o m ulheres. A medida que o ano avançava, eu ob-
mente doloroso, quando se consideravam os seus efeitos no mundo real. servara com algum interesse para ver como esses desprivilegiados estavam
Perg untei a Mike Wald, na Larde de nossa conversa sobre as no- se saindo na HLS. A resposta, em suma, era mui to bem .
Las, se havia mesmo alguma justificaLiva para tudo aqui lo. As relações raciais na Faculdade d e Direito de H arvard são pro-
- Muitas pessoas lhe dirão, até mesmo vários professores, que vavelmente melhores do que em qua lquer outro ambiente que já fre-
as notas são essencialmente para os empregadores - respondeu Mike. qüentei por muitos anos. Mesmo em comparação com o clima racial
- Os ex-alunos dão muito dinheiro a esta faculdade e a maioria traba- descontraído na Bay Area, a HLS parecia extraordinária pela ausência
lha em firmas que fazem entrevistas aqui. Querem ter algum meio de de tensão. Há organizações estudantis pretas e latinas na Faculdade
acreditar que estão fazendo uma distinção significativa dos cand ida- de Direito de Harvard e meus colegas mino ritá rios eram ativos no tra-
tos. Eles ent revistam alguém por quanto te mpo ... vinte minutos? Sa- to dos problemas especiais com que se defrontavam. Contudo, havia
bem que precisam d e mais alguma coisa em que se basear. Se urna firma pouco do esforço que eu observara em outras universidades para q ue
opera muit o em direito imobiliário, talvez possa escolher entre duas pretos e latinos se mantivessem apartados. Todos nos sentíamos à von-
pessoas porque uma teve um B-mais em Propriedade e out ra um B- tade para confraternizar, sem tensões ou inibições . Isso era provavel-
•. menos. É um a bsurdo, mas posso garantir que são as firmas de advo - m ente uma conseqüência da extroversão dos estudantes minoritários
-~- . cacia que protestam quando os professores falam em mudar o sistema. da HLS, que são tão gregários quanto os o utros, e também do fato
... Fitei Mike em silêncio por um momento e depois comentei :
- Isso é comércio, não educação. Chama-se embalar o produto.
d e que poucas pessoas matriculadas na Faculdade de Direito de H ar-
vard podem se considerar, não importam quais tenham sido as barrei-
- H á quem pense assim. ras do passado, como desprivilegiadas, em termos relativos.
Mike sorriu então, pela primeira vez, depoi s deu de o mbros. O que não significa que tudo é fácil para esses estudantes. No mun-
do legal tal como ele existe continua a haver muita discriminação na con-
tratação e, depois, na promoção. A grande maioria dos empregadores está
Ao relatar a comoção em fevereiro a propósito das notas e a fu t ura ansiosa em encontrar bons advogados nas minorias, mas ainda existem
participação na revist a de direito, convém ressaltar que na mesma oca- grandes firmas corporativas que são exclusivamente de brancos, nas quais
sião estavam oco rrendo algumas mudanças interessa ntes entre os est u- a ausência de advogados pretos, latinos e asiáticos é desculpada por vá-
- -- ---~ danles que já se encontravam na Gannett House. Ao final de fevereiro,
a revista a nunciou qu e Susan Estrich, uma 2L, fora designada presi-
rios motivos, inclusive pelos preconceitos dos clientes que devem ser aten-
didos. Este ano o entrevistador de uma grande firma de advocacia de
dente. Era a primeira vez, nos 89 anos de histó ria d a revista , que u ma Chicago, de brancos, supostamente explicou a um preto do segundo ano
mulher oc upava o cargo, essencialment e o de ediL or-che fe . que o escritório estava apenas sendo superado pelos concorrentes que
Fora um bom ano para as mino rias e para a revista de direito. An- " também têm suas quotas". Esse comentário e outros levaram o sengun-
tes, C hristo pher Edley, o utro 2L , tornara-se o p rime iro memb ro pre to danista a apresentar um protesto no centro de colocação, o nde a faculda-
desde o fina l da década de 1940. Conside rando-se a posição da revista de instituiu um programa para acabar com a discriminação na comrataçào.
com o um dos gra ndes alvos de realização do mund o jurídico , os dois Cada firma entrevistadora é obrigada a submeter dados sobre o número
acontec imentos serviam para ressalta r as conquistas das minorias na de seus sócios e associados minoritários e a faculdade promete exclui r
Faculdade de Direito d e Harvard e no mundo do di reito em geral. quaisquer empregadores que demonstrem preconceitos.
Nos Estados Unidos de dez ou quinze anos atrás, é quase certo que Alguns estudantes pretos também se queixam de um p recon ceito
muiLos dos me us colegas não estariam ali. No passado recente, porém, discreto na própria faculdade . Os candidatos minoritários são adm iti-
ho uv e um impressionante aumento na matrícula de mulheres e m inorias dos com notas - e especialmente com o s resultados do teste nacional
,._ raciais nas faculdades de direito americanas. Há três vezes mais estudan- - mais baixas que os seu s colegas brancos. Embora o teste nacional
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tes de direito pretos e com sobreno m es espanhó is nas facul d ades ameri- não seja comprovadamente uma medida eficaz do provável sucesso de
canas do qu e em 1969. O au me nlo da matríc ula feminina tem sido uma um estudante minoritário na faculdade de direito, a discrepância, com-
espécie de milagre social - um crescimento de 1.100% nos últ imos do- binada com o fracasso dos estudantes minoritários em conseguir as no-
ze an os. Quase um quarto dos esrudantes de direito americanos hoje é tas altas sistemáticas necessárias para a revista de direito, tem provocado
algumas insinuações de que os estudantes minoritários n a HLS não são
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tão capazes quanto seus colegas brancos. Contudo, até mesmo profes- recebidos no campus. Mesmo depois do súbito a umento das matrícu-
sores conservadores, como Perini, já abandonaram qualquer ceticis- las femininas nos últimos anos, mui tas associadas da orga nização es-
mo sobre a capacidade de sucesso dos estudantes minoritários na HLS . tudan_ti l fem inina contin uam a achar que é mais baixa na HLS do que
- Pretos e mulheres alcançaram igualdade na faculdade - de- devena ser. Outra faculdade de di reito da á rea de Boston , da North-
clarou Perini no dia em que almoçamos com ele. - Houve um perío- western University, já admite agora urna nova tu rma a cada ano com
do no início, quando começou a pressão para a matrícula, em que as uma metade feminina. A organização estudantil feminina pressiona o
notas mais baixas sempre ficavam com os estudantes dos grupos mi- centro de admissões de H arva rd a seguir o exemplo. No momento , a
noritários . Mas isso já não acontece mais. fac uldade tem uma política mais conservadora, adota ndo um progra-
Apesar de sua boa disposição, Perini era um dos poucos profes- ma que é conhecido como "cegueira para o sexo", o que significa que
sores que pareciam de fato inibidos nas relações com pretos, latinos os candidatos são avaliados sem levar em conta esse cri tério. Nos últi-
e mulheres. Era inevitavelmente mais brando ao interrogá-los e demons- mos anos, a porcentagem de mulheres em cada nova turma vem man-
trava uma dificuldade especial ao chamar as mulheres. Foi só em de- tendo uma relação com a po rcentagem de mu lheres no total de
zembro que ele chamou uma mulher para apresentar uma causa e candidatos .
mesmo assim depois que comentários a respeito fora m feitos na Asso- O preconceito antigo contra as mulheres no mund o masculi no do
ciação das Mulheres do Direito, a organização estudan til feminina . direito pode ser uma decorrência da natureza competitiva do direito
O fato das mulheres se queixarem de algo assim - um trata men- como profissão. No tribuna l, há sem pre um vencedor e um vencido,
to desigual - é indicativo do implacável espírito feminista em voga um cavalheiro supostamente não se sente à vontade ao se empenha r
na HLS. A organização feminina é ativa no recrutamento de mais can- em combate com um a dama.
didatas e também no estímulo à contratação de mais professoras (no Em algumas ocasiões, durante o ano, tive a im pressão de que as
momento, quatro mulheres dão aulas na Faculdade de Direito de Har- mulheres da turma não se sentiam muito à vontade com a agressivida-
vard). De um modo geral, as mulheres provavelmente reivindicam seus de expressa exigida pelo direito e a faculdade. Em a ula, tendiam a ser
direitos com mais agressividade do que qualquer outro grupo minori- retraídas. Clarissa e Myra Katchen falavam com freqüência , mas as
tário na HLS , pois é bem possível que tenham mais do que se queixar. outras vinte e tantas mulheres raramente se o fereciam para dar uma
O direito sempre foi uma das profissões mais abertamente sexis- resposta. Além disso , a se acredita r em Gina, m uitas das mulheres
tas. Os tribunais e firmas de advocacia há muito são conhecidos por sentia m-se às vezes ainda ma is contrafeitas do que os homens quando
seu clima machista, onde as mulheres a inda encontram considerável eram chamadas.
resistência quando procuram empregos. A guerra a inda não foi plena- - Sei como isso parece, mas mu itas mulheres me dizem a mesma
mente vencida na própria faculdade, mesmo entre os estudantes . Al- coisa - ela comen tou em conversa com igo. - Quando sou chamada,
guns homens são inibidos ao tratar com as mulheres numa base de penso em estupro. É uma coisa súb ita. Você fica exposta. Não pode
igualdade. escapar. Não pode dizer não. E lá está aquele homem no contro le,
- Sinto vontade de dizer " E m resposta ao comentári o daquela di zendo-lhe exatamente o que fazer. Talvez seja melodramático, ma s
garota na primeira fila . . . ", mas sei que isso não pegaria bem - co- para mim há muita coisa na a ula que mostra todos os tipos de relações
mentou Ned Cauley um dia. de poder homem/ mulher dos quais ap rendi a me ressentir.
Outros parecem persistir nos padrões antigos sem qualquer cons- A reticência geral das mulheres so bre as agressões da vida na fa-
trangimento. Karen Sondergard disse que largou um grupo de estudo culdade de direito e do mundo legal é provavelmente uma desvanta-
porque percebeu que suas observações eram ignoradas exclusivamente gem. Pode até explicar por que as mu lheres, como as minorias raciais,
por ser mulher. E outro colega me disse abruptamente: tendiam a ser sub-representadas na revista de dire ito. Quan to mais eu
-. - Fico contente por haver tantas mulheres aqui. Isso vai fazer me tornava consciente dos problemas endêmicos da faculdade e do di-
reito, no entanto, mais compreendia que a aversão à agressão é um
com que nossos diplomas se tornem a inda mais valiosos, qua ndo to-
das estiverem em casa , criando os filhos . dos grandes trunfos que as mu lheres trazem para o universo jurídico.
O quanto as mulheres foram tradicionalmente excluídas do mun- Por costume, o mundo do direito tem sido rigorosamente patriarcal.
do do direito fica ilustrado no fato da Faculdade de Direito de Har- Muitos dos a rtigos psicológicos que li a respeito da fac uldade de direi-
vard não ter aceitado mulheres até 1950 , muito depois que os homens to explicavam a dificuldade das relações entre professores e alunos ao
de grupos minoritários, de todas as cores e religiões, já eram bem relacioná-las com a luta freud iana estereotipada entre pais e filhos. Uma

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figura poderosa apresent_a-se diante de um gr~po que sempre foi co~s- e por isso passei a maior parte da quarta-feira estudando o parecer.
tituído basicamente por Jovens. O macho mais velho flexiona os mus- Queria estar preparado. Não me importava tanto em vencer ou per-
culos investe contra os jovens, demonstra seu controle sobre eles, que der, disse a mim mesmo, mas não tinha a menor intenção de sair da
se tor'nam ao mesmo tem po ansiosos em imitá-lo e _ficai:n cada vez _mais sala sentindo-me cão titubeante, negligente e inarticulado quanto aco n-
ressentidos. De certa forma, esses padrões de mveJa e submissão tecera depois da petição de Métodos, no outono . Elaborei um longo
repetem-se em rodo o mundo legal, com os velhos ~empre s~ c?locan- esboço do que queria dizer.
do sobre os ombros dos jovens. Os membros da rev1s~a de d1r~1to ~on- Na noite de quinta-feira vesti o terno com colete - outra lição
ferem as citações dos artigos dos professores; os ass1sten~es Jurfd1c?s do outono - e segui de carro para a faculdade. Depois de demonstrar
escrevem pareceres que são assinados por juízes; os assoc1a~os d~ fu- alegria no início do dia, Terry mudara de idéia e tentava agora organi-
ma de advocacia trabalham intensamente nos asp:ctos ~ais tediosos zar sua argumentação, palavra por palavra. Encontramos nossos opo-
das causas dos sócios. Tudo continua até que um dia voce se to~na su- nentes, ambos de outra seção. O oposto de Terry era jovial e esperto.
bitamente um professor, um juiz o u um sócio ... e faz com os Jovens O cara do me u lado na questão , no encanto, parecia um trapaceiro.
o que antes lhe fizeram. . . Seu memorial era bom e Margo o elogiara quando nos entregara uma
A relutância das mulheres na faculdade em part1c1par nesses re_la- cópia. Mas conferindo as causas que ele citara, achei que ele passara
cionamentos tradicionais e muitas vezes injustos foi um dos pres_ság10s da advocacia para a distorção pura e simples. Observando-o agora, ti-
mais felizes que testemunhei durante o ano. Estamos nos encam1~h~n- ve a impressão de perceber o mesmo tipo de cosmética - um bom ter-
do para um tempo em que as numerosas mulhe~es que estudam d1re1to no, cabelos impecáveis e as unhas sujas. Podia mui to bem ser uma
hoje se tornarão advogadas e uma força proeminente no mundo legal. reação típica de campo de batalha.
É de se esperar que tragam suas sensibilidades para os usos do poder, Os três juízes entraram exatamente às 8:00h. Ames é às vezes bas-
como Gina descreveu. Se isso acontecer, elas podem tornar o mu~do tante formal e eu já ou vira falar de um grupo de estudantes de "defe-
legal mais justo, um lugar menos distorcido por algumas das coisas sa" que fora expulso po r não se levantar à entrada dos juízes. Nossos
mais terríveis que os homens somente tenderam a fazer uns aos outros juízes most raram-se um pouco mais informais. Um deles era um estu-
no passado. dante do BSA; era considerado o mais difícil, por ser o mais bem in-
formado so bre a causa. O segundo era um advogado de Boston,
ex-aluno da HLS . O terceiro e o mais importante era o juiz Clarence
Mealy, membro do Tribunal Superior estadual e que também dá cur-
13/ 3176 sos de Prática de Julgamento para as turmas superiores da HLS. Da-
(Sábado) vis me dissera que Mealy era um juiz muito respeitado em Boston e
me senti contente, embora um pouco intimidado, pelo toque realista.
Terry começou.
Finalmente a competição Ames chegou ao final para Terry e eu na noite - Com permissão do tribunal.
de quinta-feira, quando apresentamos nossa defesa oral. <;orno se!11- Ele estava extremamente ner voso. Usava um terno lustroso e se
pre, encarei o evento com apreensão._ Terry _estava determ!~ado a _1~- mexia irrequieto enquanto falava, engasgando, umedecendo os lábios.
sistir em sua teoria meio idiota sobre d1famaçao e responsab1!1dade c1~1l Para começar, pôde ler do que prepara ra. A defesa oral geralmente
e eu não podia imaginar o que os juízes lhe fariam . Além d1s~o, havia começa com um breve relato dos fatos e das questões da causa. Isso
agora complicações no meu lado da causa. Na semana antenor o Su- serve para refrescar a memória dos juízes.
premo Tribunal dos Estados Unidos apresentara o~tro parecer rela- Porém, Terry não foi muito além dos fatos, qua ndo o tribunal
cionado com a Primeira Emenda, em Gantry v. Wilson . O Supremo pôs-se a bombardeá-lo com pergu ntas. Como todo mundo, os juízes
redefinira outra vez a "figura pública" e, pelo que eu soubera, a nova tinham dific uldade para encontrar sentido em sua argume ntação, rela-
formulação praticamente excluía o minist~o. Parecia um desastre para cionando difamação com negligência. Ele encontrara fi nalmente uma
nós, uma espécie de pílula amar~a depo1_s de tanto tra?alho. decisão que oferecia algum apoio, mas era de um tribunal de primeira
Se fosse uma apelação genuma, o tribunal m~r~a.na outra data, instância e do século XIX. Os juízes pareceram escarnecer por usá-lo .
a fim de proporcionar ao oponente e a mim a poss1b1ltdade de to~ar - Advogado - disse o j uiz do BSA - . nem mesmo compreen-
conhecimento da nova sentença. O BSA não foi cão generoso assim do por que a legou esse po nto.

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O juiz Mealy, um irlandês de aparência cansada, parecia um pou- instância inferior. Também vencemos, mas da maneira oposta. A de-
co divertido. Balançava na cadeira, sorrindo de vez em quando na mi- cisão apresentada, depois que nos chamaram de volta, foi a inversão
nha direção. Está preso a esse idiota, ele parecia dizer, sinto pena de da decisão do tribunal inferior, sob a alegação de que o Reverendo
você. Tentei permanecer impassível, observando Terry. Ele começava Gantry era de fato uma figura pública. Acho que eu me saíra muito
a ficar furioso e irritado. Pôs-se a bater com o punho na palma aberta bem. Ao retornarmos ao corredor com os juízes, para mais cerveja e
e assumiu uma expressão dura e mal-humorada, como um colegial in- uma análise, houve muitos elogios à minha argumentação por parte
corrigível. Tornara-se absolutamente carrancudo e ríspido quando 0 dos juízes, de Terry e até mesmo dos nossos oponentes. O advogado
deixaram voltar para seu lugar. de Boston parecia me oferecer um emprego para o verão, indagando
Fui para.º pódio em seguida. Tinha o habitual aperto na gargan- várias vezes quais eram os meus planos. Não me fizera mal algum, eu
ta, mas na maior parte do tempo a preparação me ajudou a falar. Quan- sabia, que nenhum dos juízes tivesse lido a decisão do Supremo
do as perguntas foram formuladas , senti que era capaz de acompanhar Tribunal.
o fluxo. Compusera um argumento amplo para incorporar a nova causa Não demorou muito para que Terry se metesse numa discussão com
do Supremo. Aleguei que a direção geral de todas as sentenças era a o juiz do BSA, repetindo muitas das coisas que dissera a Marga. Tratei
de q~e uma pessoa se tornava uma "figura pública" sempre que se en- de me afastar. Escutava tudo aquilo há um mês e me sentia muito bem
volvia de alguma forma com o bem-estar de uma comunidade e que para estragar o ânimo com a discussão. Era um tribunal simulado, um
dentro dessa comunidade as informações sobre essa pessoa deviam ser estado mítico, uma sucessão de ficções, mas eu gostaria muito de ven-
em grande parte livres. Acho que foi um argumento muito bom. Os cer. Não experimentava há anos aquele júbilo intenso pela vitória. Tal-
juízes mais ou menos usaram os pontos que eu levantara contra meu vez seja mais uma coisa que a faculdade de direito fez comigo - mais
oponente e ele parecia sentir dificuldade em rebatê-los. infantilidade - ou um sinal de como sou faminto por elogios. Talvez
- Está apenas agravando a situação - disse-lhe o advogado de eu apenas sentisse que finalmente fizera uma coisa boa com o direito.
Boston em determinado momento. Seja como for, ainda me sentia inebriado quando saí da cama on-
Depo_is que ele acabou, houve uma rodada de réplica; depois, nós tem de manhã e um resquício daquela emoção persiste até hoje. Posso
quatro deixamos a sala, a fim de deixar os juízes deliberarem. Geral- entender agora o que movimenta a vida de um advogado de tribunal.
mente transcorrem semanas antes que um tribunal de apelação de ver- Todas essas vitórias no tribunal, claras e inequívocas, os doces mur-
dade anuncie sua decisão, num parecer por escrito, mas em Ames múrios de seu pequeno e horrível inimigo, quando se sente satisfeito.
teríamos o resultado em poucos minutos. O BSA oferece aos estudan-
tes a opção de ter o que chamam de uma "decisão competitiva". Se
todos os estudantes consentem, os juízes não apenas dizem que lado Por causa da tensão, a HLS é um lugar em que as pessoas se mostram
~enceu, mas também classificam os quatro, um contra outro, pela qua- quase sempre ansiosas por uma risada. Em meados de março ocorre-
ltdade dos argumentos e memoriais. Terry e eu discutíramos antes a ram dois fatos que são parte da rotina de faculdade, e que sempre ca-
"decisão competitiva" e a descartáramos, como sendo mais uma ma- çoam de tudo o que acontece lá.
nifestação da doença da Faculdade de Direito de Harvard. A vitória Numa sexta-feira, pouco antes das férias da primavera, saiu o nú-
ou derrota já parecia bastante competitiva. mero do jornal da faculdade do Dia dos Tolos, o 1? de abril. Havia
No corredor, nós quatro tomamos cerveja, fornecida pelo BSA, um artigo revelando a instalação de roletas no prédio em que ficavam
enquanto esperávamos. Terry sentia-se desconsolado pelo tratamento os gabinetes do corpo docente, a fim de conter a onda de estudantes
que recebera e tentei confortá-lo, concordando que o tribunal fora mes- que procuravam os professores. Outro artigo informava que uma se-
mo duro demais. O cara que argumentara contra mim dizia a todo ins- gunda publicação do campus, notando que a revista de direito esco-
tante: lhera uma mulher para dirigi-la, resolvera leva r a ação afirmativa um
Estou contente que tenha acabado. passo além, designando um cachorro como editor-chefe. ("Streaky ros-
E também concordei com isso. As causas do Ames são projetadas nou: 'Minha espécie nada teve a ver com a escolha."') Outra matéria
de tal maneira que podem virar para qualquer lado mas na maioria dizia que os estudantes haviam se mostrado tão suspeitos ao comuni-
dos julgamentos neste ano as duplas que cuidaram do nosso lado de car suas notas aos empregadores em potencial que a secretaria passa-
Gantry pa receram vencer. De um modo geral, perderam no meu lado, ria a enviá-las diretamente para as firmas, às quais os estudantes
mas ganha ram no de Terry, invertendo assim a decisão do tribunal de poderiam solicitar um boletim, caso desejassem saber como tinham se
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.,

saido. O número do Dia dos Tolos saiu a 19 de março. Ninguém pare- Foi Sandy quem gritou, do fundo da sala:
ceu se incomodar. Como eu disse, um riso é sempre bem-vindo na HLS. - 1939!
Mais ou menos nessa ocasião foi promovido o show da faculdade Outros professores exibiam um humor mais comedido . Atordoa-
de direito. Se a produção daquele ano foi típica, então a Faculdade do com uma questão numa aula de Direito Penal, um estudante disse
de Direito de Harvard é um lugar que pode ser seguramente esquecido a Bertram Mann que se sentia embaraçado.
pelos descobridores de talento da Brodway. O número de pessoas na - Acho que é essa a natureza do método socrático - respondeu
faculdade com interesse e tempo suficientes para participar do show Mann. - Nós entramos aq ui e nos embaraçamos uns aos outros.
é tão baixo que muitos do elenco vinham de fora. Mesmo assim, o show Em algumas ocasiões, Fowler podia sair de seu abati mento e se
deve continuar. mostrar quase tolo.
Para uma instituição supostamente austera, a HLS é um lugar em - Todo mundo sabe o que significa taches (negligência) - ele
que são bastante freqüentes as representações teatrais no estilo de es- nos disse um dia, ao definir um termo que surgira num parecer. - Nin-
cola primária. As turmas do primeiro ano muitas vezes apresentam en- guém sabe o que significa /aches.
cenações como a que oferecemos a Zechman na última aula de Entre os estudantes da minha turma, um senso de humor impecá-
Responsabilidade Civil. Com o tempo, compreendi que tudo isso é uma vel era o de Ilene Bello, uma mulher alta e jovial, que passou o ano
maneira dos estudantes manifestarem as emoções que não podem ex- a fazer gracejos. No meio do segundo período foram efetuados repa-
pressar em meio às formalidades da aula socrática. Os estudantes po- ros na sala em que normalmente nos reuníamos para Processo Civil.
dem demonstrar afeição, como fizemos com Zechman, para não A au la foi transferida para outra sala, duas vezes maio r, com as car-
mencionar outros sentimentos expressos com maior garantia sob o dis- teiras numa disposição diferente. Nicky descobriu que o mapa de di -
farce do drama. Todos os anos, o show da faculdade de direito é a tribuição dos lugares era inútil. Em vez disso, ele passou a nos chama r
maior oportunidade dos estudantes de ridicularizarem os professores, pelos dígitos, com os alunos respondendo ou passando ao ouvirem os
o que sem dúvida tem algo a ver com a sua continuação. números de suas cadeiras. As pessoas espalhavam-se pela eno rme sala
Muitos professores acharam que a produção daquele ano ultra- e muitas vezes Nicky chamava lugares vazios.
passou os limites do bom gosto. Os hábitos sexuais de alguns profes- - Noventa e um - gritou Nicky um dia.
sores foram esmiuçados e dois ou três necessitaram de uma dose maior No outro lado da sala, llene Bello levantou-se. Pegou a bolsa, os
de tolerância. O Incidente foi lembrado. Numa cena, um "professor livros, deslocou-se para o lado , tornou a sentar. Depois, olhou doce-
Preening" levantou um cutelo para um aluno que respondeu " despre- mente para Nicky no pódio.
parado". - Ninguém está sentado no noventa e um - disse ela .
Perini ficara bastante melindrado com o Incidente a ponto de sur- O maior triunfo de Ilene, no entanto, foi com Perini . Ela fora cria-
girem rumores de que encarara o Show sem muita jovialidade. O que da ali perto, no North End de Boston, o bairro italiano. Um dia Perini
era excepcional para ele. Em au la, o humor era a única forma de rebe- analisava uma causa intitulada D'Angelo v. Pouer. D' Angelo , um lei-
lião estudantil que Perini tolerava alegremente. Manteve durante o ano go, elaborara pessoalmente a petição inicial do processo , alegando que
inteiro um certo ar de caçoada em relação a Sandy Stern. Geralmente Potter violara um contrato com ele.
espicaçava Sandy jovialmente; lisonjeado pela atenção, Sandy tentava - O que D' Angelo diz que era o objeto do contrato no primeiro
responder. De um modo geral, Perini levava a melhor, mesmo quando parágrafo? - perguntou Perini a Andy Kitter, que se encontrava na
a turma começou a apoiar Sandy. Um dia ele classificou uma resposta berlinda nesse dia .
de Sandy como "previsivelmente confusa". Depois de ser vaiado, Pe- Quatro dúzias de ferragens de banheiro - res pondeu And y.
rini comentou: E quantas ferragens isso representa? Dê-me o número .
... - Não sabia que tinha tantos amigos, Stern. Quarenta e oito .
' Mas Sandy teve o seu dia. Quase ao final do ano, Perini lembráva- Apenas queria ter certeza - disse Perini. - Agora dê uma
nos mais uma vez da importância da precisão no trabalho do advoga- olhada no terceiro parágrafo da petição. Quantas ferragens D' Angelo
do. Tomem cuidado com os detalhes. diz que quer que sejam entregues?
- Mas é claro que sempre se pode exagerar - admitiu Perini. Andy baixo u os o lhos para o seu livro por um instante.
- Não vão querer entrar num tribunal parecendo o exército a lemão Quarenta e seis.
a marchar pela Polônia em 1941 . Quarenta e seis - repetiu Perini. - A típica matemática italiana.

184 185
No dia seguinte, quando a aula estava prestes a começar, llene suspeita profunda em relação às poucas pessoas entre nós que não eram
gritou subitamente "Professor Perini" e levantou-se. Tinha na mão particularmente extrovertidas. Eram os desconhecidos, os silenciosos
uma rosa vermelha e foi até a frente da sala . Pôs a rosa no bolso de numa corrida mu ito disputada. Inevitavelmente, quando um profes-
Perini e beijou-o nas faces, anu nciando : sor chamava um deles, havia depois uma série de comentários se fula-
- D' Angelo diz que ficará em contato. no era de fato um gê nio secreto ou apenas brilhante como os demais.
Quando as notas saíram, acabou se espalhando a notícia de que
um cara gentil e retraído do Missouri, chamado Rick Shearing, tirara
Um dos sábios com que eu costumava me encontrar no ginásio da fa- dois A-mais. A info rmação pareceu exagerar ainda mais o medo de
culdade fizera-me uma profecia no início de fevereiro. Era um aluno que havia um grupo de autômatos silenciosos e que sabiam tudo mas
do terceiro ano, um vigoroso texano. ficavam escondidos na turma. À medida que se to rnaram mais freq üen-
- Espere só até saírem as notas do primeiro período. Será tudo tes as avaliações de quem chegaria à revista de direito, muitas pessoas
diferente depois disso . Haverá caras com dois As que vão pensar que comentavam com freqüê ncia:
cria ra m asas e um halo, e haverá muitos mais que não vão se importar - É preciso tomar cuidado com os quietos. Eles costumam abo-
com nada depois das notas. Não será mais a mesma coisa. canhar tudo. Pessoas como Shearing.
Aproxim ando-se as férias da primavera, a maioria das predições De um modo geral , era psicopatologia de massa. Em várias oca-
se consumara. Havia pessoas cujas notas não haviam sido o que espe- siões, ouvi colegas classificados temerosamente como "os quietos" se
ravam e agora não demonstravam muito interesse pela faculdade. Era empenharem, ansiosos, no mesmo tipo de especulação sobre os outros.
o caso de Aub rey. Depois que saíram as notas, ele caíra num desân imo Havia agora muito ma is do que conversas francas a respeito de quem
profundo. Passara mais ou menos a descartar a Faculdade de Direito conseguiria ingressar na revista. Os estudantes que haviam se saído me-
de Harvard. Daquele momento em diante, cumpriria seu tempo ali, lhor queriam acreditar que seriam eles, e é claro que tinham as maiores
até que o deixassem sair para fazer algo útil. O caso de Ned Cauley chances. Frank Brodsky era um dos poucos alunos da turma que con-
fo i muito mais triste. As notas médias abalaram terrivelmente sua au- servara o interesse extasiado pelo d ireito ao longo do ano que muitos ex-
toconfiança e seus comentários inteligentes e elegantes foram ouvidos perimentaram a princípio. Frank costumava andar com um homem mais
poucas vezes em a ula depois de meados de fevereiro. Tentt:i encorajá- retraído, chamado Larry Jenner, os dois semp re conversavam sobre o di-
lo um dia, comentando que ele se mantivera muito silencioso ultima- reito. Sempre. Lembro de uma ocasião em que eu estava parado junto
mente e que eu sempre apreciara o que dissera no passado. de meu armári o e ouvi a voz de Brodsky - transbo rdando com o inten-
- Si nto que não devo desperdiçar o tempo dos outros - respon- so excitamento intelectua l habitual - ressoar pelo tubo de ventilação,
deu Ned. - Há muita ge nte na sala. Talvez alguém tenha algo melhor saindo de um dos reservados no banheiro dos homens:
para dizer. - Acho que o ministro Jackson estava certo em Willow River;
O efeito das notas não foi sempre tão melancólico. Ou por causa ele fo rm ulo u a questão exatamente da maneira correta.
das auto-imagens melhoradas ou pretensões demolidas, a lgu ns colegas Imagino que Frank estava ansioso em ingressar na revista e nunca
pareciam mais acessíveis. Harold Hochschild, cujas notas, segundo os tive a menor dúvida de que ele possuía o talento e o interesse para
rum ores, ficaram muito aq uém do que ele esperava, era agora um su- justificá-lo. Conversara com Frank sobre os exames um ou dois dias
jeito quase simpático. Hou ve outros, pessoas que de repente desenvol- antes da divulgação dos resultados. Ambos concordáramos que não
veram um senso de humor em relação à faculdade e a si mesmos, uns passavam de exercícios absurdos. Depois de receber dois As, no entan-
poucos que simplesmente pararam de correr e revelaram agora que eram to, Frank mudara de idéia. Parecia haver alguma espécie de correla-
pessoas atraentes. ção, ele comentou. Parecia que a maioria das pessoas recebera notas
Depois das notas , pude observar com mais freqüência um fe nô- similares nos dois exames - um A e um A-menos, um B-mais e um
meno peculiar que nos acompanhara durante todo o ano: uma preocu- B - o que devia significar alguma coisa. Não era essa a minha opinião.
pação excessiva com os a lunos ma is retraídos da tu rma. Duran te a Stephen, que obviamente era outro dos primeiros da turma, tinha
semana de matrícula , Peter Geocaris fora o primeiro a nos an uncia r dúvidas de vez em quando so bre o significado de suas notas. Ele me
um dos princípios da HLS: "As pessoas que não fa lam sempre che- disse um dia pelo telefone:
gam à revista de direito." Como estereótipo, não era totalmente cor- - Se não fosse por Terry, eu a inda poderia acreditar. Mas pen-
reto, mas o comentár io e as muitas repetições eram reveladores de uma sando no muito que ele sabia de Penal e pouco de Responsabilidade

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Civil, depois conhecendo suas notas, penso às vezes que tudo não pas- guns alunos da turma como assistentes de pesquisa no verão, como fa-
sa de uma loteria. zia todos os anos. Várias pe oa tinham a esperança de obter uma das
Na maior parte do tempo, porém, Stephen não acalentava tais dú- vagas. A maioria dos primeiranistas encontra a maior dificuldade pa-
vidas. Falava-me com freqüência sobre a conveniência de "aceitar ou ra arrumar um trabalho jurídico no verão e muitos, sendo estudantes,
não a revista de direito". Gentil mente , eu tentava lembrá-lo que ainda precisavam do dinheiro. Depois que as nota saíram , Perini anunciou
não havia nada definido. Ele concordava, mas a revista sempre volta- que estaria recebendo os currículos.
va à conversa. - Devem incluir todas as informações relevantes - disse ele. Caso
- Claro, claro - ele dizia. - Meus sentimentos são de que isso alguém duvidasse que isso incluía as duas notas do período do outono,
é otimo, estou contente por tirar notas altas porque agora posso rela- Perini acrescentou: - Sinto o maior orgulho porque muitos dos meus
xar, não foi um ano dos piores. Mas não consigo deixar de pensar na assistentes do verão chegam à revista do direito . Tenho uma elevada
revista . Quarenta, cinqüenta , sessenta horas por semana. Ainda não média de êxitos.
tenho certeza se devo aceitar. Os comunicados de Perini sobre os empregos eram sempre feitos
Com Stephen, eu tinha de interpretar isso como significando que em aula e a corrida para trabalhar com Perini tornou-se outro dos dra-
ele concluíra que devia aceitar. Havia indicações de que ele queria fa- mas e competições na turma. Ouvi dois homens se compadecendo por-
zer o máximo em tudo. Declarou no início de março que desejava rei- que, ambos com dois Bs, sabiam que seria uma per~a de te~po se
niciar as atividades do grupo de estudo. Com Ames, bem poucos grupos candidatarem. Perini acabou reduzindo sua opção a ono candidatos.
haviam se reunido, inclusive o nosso. Mas Stephen tinha um plano agora Escreveu seus nomes num pedaço de papel, que afixou com de taq ue
- outro sumário, desta vez do curso de Nicky. Mais uma vez, os argu- no mapa de distribuição de lugares. Quando as pessoas descobriram
mentos para o esforço do grupo foram persuasivos. O curso era muito que Cauley, que por tanto tempo agradara Perini em aula, fora excluí-
teórico e idi ossincrático para ser coberto por qualquer guia comercial do o critério de seleção tornou-se evidente: os oito candidatos eram
de processo civil. Mas em março, com os novos exames só em final os q ue tinham notas mais altas. Nas duas semanas anter~ores às férias
de maio, eu não estava disposto a me empenhar em preparativos. Con- da primavera Perini pro moveu um teste com os ono em aula,
seguira finalmente encontrar algum tempo longe do direito - há três interrogando-os sobre causas , enquanto os outros se limitavam a escu-
ou quatro semanas que tirava folga todos os fi ns de semana - e relu- tar. E, ao final , os empregos acabaram sendo concedidos aos três ho-
tava em renunciar tão cedo a essa liberdade. Não obstante, Terry, Au- mens com as melhores notas.
brey e Stan Kreiler, um homem quieto e bonito da Califórnia, que Fora um episódio vulgar, sob todos os aspectos. Mais uma vez,
Aubrey trouxera para o grupo no lugar de Kyle, concordaram com Ste- ele usara a sala de aula para seus propósitos particulares, transformando
phen. Acabei cedendo , mas reservei-me o direito de não fazer nenhum uma questão pessoal nu m espetáculo público. Glorificara~ si mesm?
trabalho até abril. e ao encargo de trabalhar para ele. Esfregara em nossos nar1zes os efei-
Stephen não era o único que já estava pensando nos exames. Mui- tos cruciais das notas. E, mais uma vez, se aproveitara de nossas pio-
tas pessoas anunciaram planos de estudar nas férias da primavera. Com res vulnerabilidades, dos temores de posição à necessidade de dinheiro.
o afastamento de cerca de dois terços da turma como concorrentes à Foi um desempenho totalmente desprezível e liquidou de vez qualqu~r
revista de direito, alguns dos que continuavam na disputa se mostra- respeito que eu ainda pudesse manter por ele. Detestava-o agora e u-
vam dispostos agora a efetuar um esforço extra para se aproximarem nha menos consideração pela Faculdade ele Direito de Harvard por cau-
ainda mais da terra prometida . Na out ra extremidade, algumas pes- sa de sua presença.
soas que não queriam as primeiras notas como um veredito permanen-
te tomaram a decisão de se prepararem ainda mais desta vez.
Eu ainda me esforçava para permanecer sob controle. Disse a mim
mesmo para não pensar na revista de direito ... era um azarão na dis- 29/ 3/ 76
puta. Lembrei-me várias vezes que os exames não avaliavam nenhuma
das coisas que mais tinham importância para mim. Mas um aconteci-
mento na aula de Perin i ressaltou pa ra mim e todos os o ut ros o poder Férias da primavera. Oh, Deus, quantas vezes me perguntei se conse-
autêntico que as notas exerciam sobre o nosso futu ro. guiria chegar tão longe! . .
Perini anunciou no início do segundo período que contrataria ai- Nas duas últ imas semanas, o tempo, depois de tentau vas e porá-

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dicas , ingresso u na pnmavera. O cinzento saiu ao ceu e a sensaçao r excepcionais. Pode ser tudo falso , mas ainda existe aque la aura que
de pura li berdade. . atrai as grandes firm as de advocacia e o po líticos, a té mesmo os ôni-
Um a semana longe da poderosa H : H arvard , H arvard, H arvard bus de excursão nos fin s de sema na. (No último ca o , talvez a atração
- não dá para descrever como me sinto enjoado ao o uvir esse nome. não tenha nada a ver com o direito. H á pouco tempo eu estava parado
T oda a universidade se encontra dominada po r uma p retensão absur- na fre nte da faculdade quand o três m oças salt a ram de um ô ni bus e me
da, uma espécie de fé p u rita na na excepcionalidade divina do lugar e pediram que apontasse o dormitório em que vivera o jovem herói de
seus habita ntes. É um provin cianismo d e classe superior. Contaram- Love Story.) No mundo legal, com suas formal idades e estratificações,
me recentemente a história de uma secretária que foi despedid a depois as pessoas não podem resist ir a pensar nu ma camada s upe rior de fa-
do primeiro dia porque não sabia solet rar o nome do reitor da univer- culdades de direito, entre as quais se destaca m H arva rd e Yale.
sidade. Em decorrência, pre ume-se semp re na HLS que o curso é um tram-
A fac uldade de direito não chega a ficar imune a esse tipo de esno- poli m para grandes coisas. Mann nos disse vár_ia~ vezes qu e se di_rigia ~
bismo. É uma educação em si mesma, ap rend er a cultuar a HLS. Um um grupo de futuros juízes e professo res de d1reu o. Guy..Ste:n_lieb v~1
diretor, h á poucos a nos, inst ruía cada novo aluno a cha má-la de "A Fa- ainda mais longe. Estud amos ago ra o q ue Gu y chama de analtse poli-
culdade de Direito". Muito Jessa atitude parece persistir nos professo- t ica". Dissecamos os ambientes políticos e a va lia mos as opções para os
res atuais. Não faz muito tem po Fowler apresentou um problema na lei seus protago nistas. Gu y costuma lançar de afias à~turm..3. .
de hipoteca e disse que "não terão dificuldades quando o encontrarem - Há um motivo para eu dar este curso. Voces serao congressis-
na prática, a menos , é claro, que a o utra parte seja representada por um tas, prefeitos e altos funcionários do Departamento de _E ~tado dentro
g raduado da Faculdade de Direito d e H a rvard o u talvez de Yale". de vinte a nos. O que farão nessas sit uações? O que d1rao?
O amor a H arvard na fac uld ade chega ao ponto do preconceito Fico contente por Gu y formu lar essas questões, mas ainda me sinto
em favor da jurisprudê ncia fii mada por juristas da H LS. Perini nunca um pouco co ntrafeito por um luga r que tem a pretensão d e ~er o cen-
deixa de mencion a r qua ndo um parecer que aprecia é de auto ri a de um tro de trein ame nto para a e lite do poder . Esse orgulho peculiar repre-
juiz que se formou na HLS. O mais reverenciado é o falecido ministro senta um estímul o incrível, embora táci to, à ma nutenção da si t uação,
Felix Frankfurter, agora uma espécie de ídolo da Faculdade d e Direito equivalendo também a uma mensagem discreta aos alunos de que seu
de Harvard. Frankfurter era professor na HLS quando se tornou mi- lugar no m und o legal deve ser sempre entre os po?erosos . Produz o
nistro do Supremo Tribunal dos Estados U nidos. Creio q ue ele é a per- tipo de ad vogad o que não tem qualqu er comprom1s~o com os supr~-
so nificação das fa ntas ias mais de li rantes da metade dos professores. mos valores pessoais e que representarão qualquer cliente - ITT, Hi-
Além disso, muitos professores foram seus a lunos ; a lguns - inclusive t ler Á ti la o Huno - d esde que a ca usa pareça impo rt a n te .
Fowler - foram seus assistentes no Supremo. Frankfurter foi mesmo ' Estou di zend o , nesse caso, que lam ento a minha presença na F~-
um gigan te, m as seus pa receres são todos en carados como textos bíbli- c uldade de Direito de Ha rva rd? Ach o que não (embora, na expectati-
cos e seu estilo de jurisprudê ncia, agora provavelmente superado, é en- va dos exames da primavera, que são se mpre co n iderados o in ferno
dossado sem restrições na maioria dos cursos. do primeiro ano, re erve- me o direito de um j u lgamento final): Ne-
Entre as adversidades do primeiro ano, todos fomos particular- n huma das minhas o bservações so bre a faculdade te m a pretensao de
mente suscetíveis a esse tipo de pensamento sobre a H LS. Deve ser mes- ser totalmente condenadora. A con tece apenas q ue, passados três quar-
mo especia l, você pensa, pois que o utro motivo eu teria para suportar tos do a no letivo, chegue i à conclusão de que a H LS, com seu e n orme
tudo isso? A presença na Faculdade de Direito de H a rvard é para mui- tamanho e riqueza de recursos, é um lugar em que se deve sempre es-
tos o único motivo q ue restou para apo iar o amor-próp ri o; e todos, colher e optar. Nos últimos meses , descobri-me a fazer um esforço pa-
em um momento ou outro, garantim os a nós mesm os como somos afor- ra e nca rar a faculdade d e forma mais realis ta, me impedindo de
tunados por estarmos aqui, como devemos ser inteligentes. O ímpeto mergul har no êxtase o u desespero, ao me confro ntar com ª. a m plitud e
no se ntido do pad rão d e excelência alimenta-se de tudo isso - faz com do que é oferecido. E a arrogâ ncia da H LS é uma da_s coisas_ de que
q ue nos esforcemos mais para provar q ue somos dign os , realmente os mais desejo escapa r. Faz com que o ambiente se torne ainda mais cla~s-
melho res. trofóbico e desgastante, de ixa-me g rato pelos poucos lembretes que am-
C laro que todo o chauvinismo da HLS seria absurdo, além de ofen- da restam de que Harva rd e a faculd ade d e direito não são realmente
sivo, se não fosse pelo fa to de que as pessoas da fac uldade, com o pas- o centro do universo . T ive um bom lemb rete na semana passad a , uma
sar do tempo, co nverteram ta ntos o utros e m c re ntes d e suas qualidades carta de um poeta am igo, professo r de um a universidade no sul, pa ra

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quem, tenho certeza , a lvy League sempre foi uma espécie de mistério
distan 1c. A carta demorou a me alcançar porque foi endereçada aos
cuidados da Faculdade de Direito de Harvard, Universidade de Ha r-
vard , ew Haven, Connecticut.

ABRIL E MAIO

Provas (Último Ato)

6/ 4/ 76
(Segunda-feira)

De volta à facu ldade, depois das férias. Sei um pouco agora como os
astronautas se sentem, arrebatados do vôo livre e retornando à terra.
Mesmo hoje já pude sentir a pressão incipiente dos exames. Meu estô-
mago já se contrai como um punho.

---~ Ao final das férias, Annette e eu fomos para Cape Cod. Era o nosso
qu into aniversário de casamento e passáramos o fim de semana numa
velha e romântica esta lagem rural , constru ída no século XVlII. Pas-
seamos pela praia. Empinamos uma pipa no domingo . Eu não teria
outro dia de folga até que os exames acabassem, a 1? de j unh o .
Claro que eu planejava não permitir que os exames me dominas-
sem de maneira tão absoluta . A 6 de abril, a inda faltavam mais de cin-
co semanas para o primeiro exame. Mas ignorara o trabalho durante
o Ames e me contivera em março. Agora, nos primeiros dias de volta,
percebi que teria de pagar por isso. Em Propriedade, por exemplo , nun-
ca absorvera bem os Estatutos da Terra, um conj unto de normas me-
dievais que ainda rege muitos aspectos da transferência de bens imóveis.
Herança sem limitações, herança restrita, resíduos, reversibilidade, usu-
fru to - eu deixara tudo de lado, na esperança de que as idéias se ajus-
tassem de alguma forma com o passar do tempo . O que não acontecera .
Em abril, os conceitos ainda eram mais estranhos para mim do que
qualquer outra coisa que já encontrara desde as fórmu las de física no
primeiro período no colégio.
As obrigações além do currículo regular também começam a au-
mentar. Sternlieb deu-nos um exame para fazer em casa, sobre o ma-
192
193
.1
teria! analítico coberto nas semanas iniciais de seu curso. ~sso consu- Nosso pla no para o documento fora inadvertido, mas em abril
miu um fim de semana. Perini marcou um exame de_ prática s~bre a espalhou-se por toda a turma a notícia de que o nosso grupo projetara
matéria do primeiro período e a preparação consumiu outro fim de habilmente o sumá rio "perfeito". À medida que o mês passava, per-
semana . O teste de Perini não era obrigatório, mas eu sabia que preci- cebi que éramos alvo de um discreto ressentimento. A maioria dos gru-
sava da revisão. Outra coisa que eu percebera na primeira semana de pos não retomara as atividades no segundo período e várias pessoas
volta era a dificuldade de juntar os dois cursos que duravam todo o pareciam vagamente ofendidas por continuarmos a nos empenhar em
ano letivo, Contratos e Processo. Meus colegas retornaram das férias esforços cooperativos. Mesmo os grupos ainda em operação teriam di-
falando em termos das duas disciplinas que eu praticamente esquece- ficuldades para duplicar o que fizéramos. Começáramos um mês antes
ra: jurisdição quasi in rem, norma da prova oral, interdição pro- e também antes de ser iniciada a revisão frenética de final de período.
missória. . Em alguns casos, parecia haver uma irritação expressa, uma no-
Assim, subitamente e sem a satisfação e entusiasmo que sentua ção de que adquiríramos alguma vantagem injusta.
antes, eu voltara à programação do primeiro semestre - cinco hor~s - Como vai a máquina? - perguntava-me regularmente Jack
de sono, trabalho no fim de semana todo. Na segunda semana de abnl, Weiss, referindo-se ao nosso grupo de estudo.
Eric Varnig, um professor da Faculdade de Administração de Ha~ar_d, Jack era outro estudante de dois As, um forte concorrente à revis-
substituiu Sternlieb no curso de Direito e Política Pública. Varmg dis- ta de direito. Em meados de abril ele se tornara irrequieto e tenso, mas-
correu sobre as técnicas de administração no governo, condensando tigando um Maalox depois de outro. Parecia quase obcecado por nosso
em cinco semanas o que era um curso de um semestre inteiro na facul- sumário. Tenho certeza de que o rumor se convertera numa virtual pe-
dade de administração. Mas não reduziu na mesma proporção a leitu- dra da Roseta de Processo Civil. Jack provavelmente tinha certeza de
... ra necessária e ao final de sua terceira aula eu já estava com quase que todos nós tiraríamos um A e sabia que enfrentaria uma curva de
trezentas páginas de atraso. Era outra vez uma corrida para tirar o ~ro- notas elevadas para bem poucos.
:"1 veito máximo de cada dia. Eu estava sempre olhando para o relógio. Terry recebera o mesmo tratamento de Jack. Sugeri-lhe um dia:
' O maior fardo era provavelmente o sumário de Processo do gru- - Talvez devêssemos anunciar que qualquer um que quiser po-
po de estudo. Mais uma vez, Stephen im~unha um padrão e~igente, derá tirar uma xerox do nosso trabalho.
mas era difícil agora discutir com ele, pois o sumáno assumira ~ma Terry não gostou da idéia. Não combinava com sua filosofia de
importância inegável. Na semana anterior às f~rias da primavera, N1c~y esforço pessoal. Ninguém jamais lhe dera muita coisa, especialmente
Morris discutira seus planos para o exame fmal com a turma; quena na Faculdade de Direito de H arvard. Eu próprio não tinh a certeza se
conhecer nossas reações antes de começar a preparar o exame. Nicky gostava da idéia. Já investíramos muito trabalho no sumário àquela
disse-nos que resolvera experimentar um desvio ainda mais acentuado altura. Não sabia que compensações haveria se doássemos esses esfor-
dos exames de definição da questão. ços à turma inteira.
- As pessoas nunca vão além de recitar as normas - disse ele. Stephcn , por sua vez, parecia não ter percebido todo aq uele clima
Admitiu que os estudantes haviam-no criticado no passado por de controvérsia a propósito do sumário. Encontrava-se agora numa es-
dar um teste orientado para as normas, num curso excepcionalmente pécie de pânico cego, preparando-se para os exames. Durante as férias
teórico. Em vez disso, planejava este ano verificar o conhecimento das visitara St. Louis, onde estudara antes. Gostava da cidade e tinha uma
normas com um único problema de definição da questão. O resto do vaga esperança de encontrar algum emprego de verão ali. Mas quando
exame seria sobre problemas de análise ampla. apresentara seu currículo a diversas firmas de advocacia, descobrira
Mesmo enquanto Nicky descrevia como seriam, ouvi Stephen me que o preconceito habitual contra os estudantes do primeiro ano como
chamar por trás. Ele estava com os braços abertos e uma expressão assistentes de verão não se aplicava a casos como o seu.
exultante, a mesma que eu vira no dia em que recebera suas notas. - Uma coisa eu posso garantir - disse-me ele, ao voltar com
"Conseguimos!", ele exclamou silenciosamente. "Conseguimos!" O quatro ou cinco ofertas de trabalho para o verão. - As noras não fa-
que Stephen queria dizer era que o sumário de Processo, em que todos lam .. . gritam!
já começáramos a trabalhar agora, proporcionava uma o rganização Qualquer um se sentiria encantado com essa nova e súbita atra-
quase ideal de informações para o exame que Nicky descrevia. O teste tividade. Stephen - soli tário, desconsolado - era especialmente sus-
teria a duração de oito horas e com esse prazo quase parecia que pode- cetível. Parecia desesperado em não perder qualquer oportunidade.
ríamos extrair as respostas do sumário literalmente. Passara todo o tempo livre das férias fazendo uma revisão das ma-

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téri_as e ago ra s_e empenhava no estudo co m uma intensidade ainda É verdade.
maior. Estava litera lm ente fazendo um resumo de todos os su á · Perguntei como fora seu fim de semana. Muito bem, ele respon-
. . - "d est1·1a n do '' , e ra o termo que ele usa va - já concluí-
comerciais m nos
deu. Fora a uma festa na noite d e sexta-feira. Sandy Stern estava pre-
ra u~ resumo completo ~o hornbook de P erini. P edia licença para sente e passaram a noite co nversando sobre q uem iria para a revista
se retirar no almo ço ~epo1s de co mer t udo em poucos mi n utos . Che- de di reito. Stephen tinha todas a s categorias de fi nidas. No alto esta-
gava ao ponto de se isola r nos breves intervalos en tre as aulas vam o s "certos", o que significava Shearing . Por algum moti vo, não
estudar. para incl uía a si mesmo nesse grupo. Esta va um degrau abaixo , entre as
No processo,yarecia ter se tornado mais fascinado pelos adorno "gra nd es possibilidades" . H a via outros que ele concl uíra estarem ir-
d o sucesso, ao esti lo da Fac uld ade de Direito de H arva rd . Falava c s remediavelmente " fo ra" , po r não estarem se esfo rçand o o suficiente.
f ··ê ·
me ~os req u nc1a em ser pro fessor quando co ncluísse a fac uldade e
om
And y Kitter ficara " fora" po rque se apaixonara.
mais ,em _exercer a ad vo~ac_ia . Isso , tenho certeza, era uma reação ao - Imagi no que as pessoas que chegam à revista de direito bem
g~ nu ino inte res_se p elo d1 re1to q ue desco brira em si mesmo. Mas lam- q ue merecem - comento u Stephe n. - Que p rêmio, hem ? Cinqüen ta
bem fa_la_va mu ito sobre as diferenças fina ncei ras entre as duas ca rrei- horas po r sema na no inferno.
r~s e d1Z1a q ue est~va pe nsando e m trabalhar permanentem ente para Solte i um g ru nhido de co ncordâ ncia.
firmas de ad vocacia , q ue tanto desdenha va em o utubro . - Ou vi di zer q ue as fi rmas não querem saber de quem desiste
. - Nunca pense i que aconteceria com ele - d isse-me Terry, de- - co ntin uou ele. - Mas não sei. D e qualq uer fo rm a, temos as notas.
po is de observar Ste phen po r algum tempo, após as férias da primave- Estes exam es não estão realmente me incomo dando. Não como no pri-
'. ª· -:- <;o nheço as pessoas, sei o que cost um a ocorrer. Mas n unca meiro semestre. Foi terrível e ntão. Acho q ue m a nterei o controle ago-
1mag~ne1_qu e ele pudesse fica r tão a traído . Cara, ele com prou a via- ra . Não sinto qualquer a nsiedade.
gem inteira .
Depois d e u ma pausa, a ntes de desligar, Stephen arrematou :
Eu deveria ~rovavelmente ter conversado com Stephen. Observava-
- Ainda não .
o se a fasta r d e s1 mes~ o. Mas perma necia confuso, sem sa ber O quan-
t~ d o _q ue e~ ! ec?nhecia nele er~ um re ~ exo da mi nha próp ria in veja.
F 19 u: i em sllenc10 , enq uanto minha a m izade se desviava pa ra a com-
pa1xao . Ao fi nal de a b ril, a secreta ri a pôs à nossa d isp osição os formulários
Stephe~ ainda e nco ntrava tempo para m e telefona r de vez em q uan- e folhetos, a fim de que os a lunos do pr im eiro e segundo anos pudes-
do, e m parucular q ua ndo se encont rava deprim ido. Havia ago ra mu i- sem se m atricula r para os cursos n o ou tono seguinte. Em meio aos te-
tos mo~ ~ntos e m qu e ele pa recia sufocar sob as p ressões, as mores crescen tes provocados pelos exames, era bom saber que alguém
co nt rad 1çoes, de t udo o que queria. As conversas era m ma is o u menos pe nsava que podería mos alca nçar o segund o ano .
'."?~ó logos de Stephen, alterna ndo t ons de m edo, amb ivalência e re- Como mu itos colega s, e u ansiara com freqüê ncia em ser um se-
Je içao . gundanista. P or um lad o, haveria m ais tempo de folga . Teríamos su-
- E_s to u trabalh a nd o dema is aqui - e le m e d isse p e lo telefone pe rad o aquela luta pa ra nos fa m ilia riza r co m a estra nha ling uagem e
num do mmg?· - O sumário de P rocesso está bastante adiantado . Acho a lógica do d ireit o. O trabalho seria m ais fácil e também haveria me-
q ue m,e d~r~i bem em Co ntratos; ele não poderá faze r nada . Pro prie- nos coisas para faze r . Na HLS, os estuda ntes do segundo e terceiro
dade e o umco problema. Esta mos suspensos à beira d o pe nh asco no a nos, de um mo d o geral , n ão pod em se m a tric ular, mesmo que volun-
c urso. ta riamente, em ta ntos cursos q ua ntos são exig idos no primei ro ano.
. C_omo eu, Ste p hen ta mbém encontrava dificu ldades com a m a té- Para eles, a m a ior pa rte d o t empo livre é a bsorvida em atividades
ri a. D1~s~ra-me re~ente mente, co m u ma preocupação since ra, beiran- extracurriculares, inclusive por d iversas o rganizações estudantis q ue
do.º pan1co, que llnha certeza de que seria rep rovad o . Tinha instantes at uam em problemas relacio nados com o dire ito e q ue afetam o mundo
assim , q ua n do todos o s seus medos afloravam . Geralmente os aquie- além da H LS. Três periódicos juríd icos ed itados por estudantes cobrem
tava co m ma is estu do. os desenvolvimentos nos campos especializado s das liberdades civis, di-
- Vai se sair bem - assegurei-lhe ago ra. reito intern acional e legislação. G ru pos estudantis de pesquisas, como
_ - C laro que sim . Posso imagina r. . . o hornbook, os sumários ... o Centro de P esq uisa Legisla tiva, aproveitam a mão-de-obra gratuita
dao para entrar no nível d os Bs. Da í para cima, ning uém sabe. d isponível, circulando pelos corredores da faculdade, para investigar,

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a pedido dos interessados, problemas jurídicos contemporâneos. Há nos como _pouco mais do que uma m~rcha forçada e muitos dos pro-
também organizações, como a Sociedade de Assistência Jurídica, envol- fessores nao demonstravam um entusiasmo maior pelo que acontecia.
vidas na prestação direta de serviços legais gratuitos aos pobres. Os problemas no segundo e terceiro anos da faculdade de direito
Aproximando-se o final do ano letivo, muitos alunos do primeiro não são exclusivos de Harvard . Os professores Herber Packer e Tho-
ano estavam ansiosos em participar desses grupos no outono seguinte. mas Ehrlich, ambos de Stanford, escrevendo para um estudo sobre edu-
E podíamos também perceber outras possibilidades fascinantes no ano cação jurídica da Comissão Carnegie, apontaram uma deficiência na
pela frente . Conversáramos muitas vezes sobre o clima mais descon- educação dos últimos anos em toda parte, uma das considerações fun-
traído das turmas mais adiantadas. Em alguns cursos, o método so- damentais para se abreviar o curso de direito para dois anos.
crático é abandonado. Os professores dão aulas discursivas, respon- Como um aluno do primeiro ano, não posso me apresentar como
dendo a perguntas no final. Onde o método socrático é empregado, um profundo conhecedor das inadequações do segundo e terceiro anos.
pode ser às vezes tratado com desdém . Gina contara em dezembro que Posso, no entanto, depois de meses nos corredores, relatar o consen-
assistira a uma aula de Transações Comerciais em que nove alunos con- so das queixas dos estudantes mais adiantados. Um problema é que
secutivos haviam passado. O professor usara a tática de sacanear-o- as matérias muitas vezes estão longe de serem atraentes. De um mo-
colega, chamando o aluno ao lado do que deixara de responder; aca- do geral, os cursos são muito mais especializados e técnicos do que
bara percorrendo uma fila inteira. "Passo." "Passo." "Eu não." nas aulas do primeiro ano - Planejamento de Política Corporativa,
"Nem eu." "Desculpe." " Talvez na próxima vez." Gina relatara a Arbitramento Trabalhista e Direito Marítimo são exemplos. Outra
história a um grupo de primeiranistas no almoço e todos ficáramos exul- dificuldade é que os empregados estão batendo na porta, chaman-
tantes. Seriam dias maravilhosos. do os estudantes para saírem, muitos se tornam ansiosos em partirem.
Mais importante ainda, o currículo no segundo e terceiro anos é Os eventos em aula provavelmente parecem abstratos, insossos e pas-
bem mais flexível. Cerca de 150 cursos são oferecidos e nenhum deles sivos, qoondo comparados com o que acontece na prática. Novos
é expressamente exigido. Cada estudante decide por si mesmo o que cursos práticos que proporcionam aos estudantes instruções detalha-
vai fazer. Para o segundo ano, os professores recomendam o que cha- das e experiência no julgamento de causas e representação de clientes,
mam de "cursos básicos" - Direito Constitucional, Princípios de Con- costumam ser muito mais populares do que os cursos com aulas tradi-
tabilidade, Corporações e Direito Tributário, que é essencialmente um cionais.
estudo dos dispositivos e políticas do Código de Receita Interna dos Mas o que parecia o maior problema era também o mais óbvio.
Estados Unidos - mas cada um está livre para ignorar as sugestões. A fim de alcançarem o segundo e terceiro anos, os estudantes devem
Alguns estudantes consideram a inclusão de Corporações, Direito Tri- passar pelo primeiro - e a esta altura muitos já perderam o ânimo.
butário e Princípios de Contabilidade entre as recomendações dos pro- Foram tratados como incompetentes, aterrorizados todos os dias, ex-
fessores como um esforço para orientar os alunos a ingressarem no cluídos de qualquer privilégio, viram suas convicções mais prezadas se-
dir~i~o corporativo. Mas até mesmo professores como Nicky Morris, rem escarnecidas, sentiram em geral o aviltamento de suas noções de
pohucamente radicais em suas perspectivas, concordavam que os cur- valor pessoal. Se você é derrubado com uma freqüência excessiva,
sos básicos tratam de material importante em quase todas as áreas do aprende a não se levantar mais; depois de ser um l L em Harvard, ras-
exercí~io d~ advocacia. Até um promotor criminal, por exemplo, não tejar em silêncio para a linha de chegada parece a muitos estudantes
po_d ena cuidar de muitos casos de fraude e peculato sem saber alguma ser a melhor coisa em termos de coragem.
c01sa sobre uma corporação. Morris, no entanto, não se mostrou tão Circulando pelos corredores, vi muitas vezes os 2Ls e 3Ls como um
estimulante sobre os cursos propriamente ditos. bando triste, amargurado e derrotado. Deparei com exemplos reiterados
- Vocês devem fazer Corporações - ele explicou um dia ao nosso dessas atitudes ao longo do ano: o pesar de Peter Geocaris pela revista
grupo de estudo, no final de abril, quando almoçamos juntos. - A de direito; os muitos 2Ls e 3Ls que consultei na primavera e me disse-
matéria é tão chata que se não forem ameaçados com um exame nunca ram que não havia um único curso na HLS que valesse a pena fazer; ou
serão capazes de ler o hornbook. toda a turma do terceiro ano, que na véspera da formatura elegeu como
A atitude de Nicky em relação a Corporações era sintomática dos orador um homem que assumira o compromisso de lembrar a todos os
sentimentos em relação ao trabalho no segundo e terceiro anos em ge- colegas, anualmente, a maneira degradante como haviam sido tratados,
ral. Tudo pode parecer um mar de rosas para o lL, mas a impressão a fim de que ninguém jamais desse um único centavo como contribui-
era a de que os alunos do segundo e terceiro anos encaravam esses alu- ção de ex-aluno à Faculdade de Direito de Harvard.

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Os 2Ls e 3L_s ~cabam se rec uperando, tenho certeza. David me Na última semana de abril , Nicky Morris fez um comunicado que le-
~o_n~ou que a ~~1ona de seus colegas revelou uma grande emoção ao vou o ano letivo a terminar em desgraça. Não foi culpa de Nicky . Ek
m1c1ar o exer~1c10 da advocacia e descobrir que eram as pessoas talen- tinha as melhores intenções. Mas foi típico das reações que o acompa-
tosas que se Julgavam antes de entrarem na HLS. nharam durante o ano inteiro que as coisas não saíssem conforme o
Mas não tenho certeza se já não é tarde demais para acabar com esperado.
alguns dos efeitos perniciosos. Ao nos aproximarmos do fi m do ano, eu passara a considerar
- Sinto-me muito infeliz ao ver o que aconteceu com todas as Nicky Morris como um professor de excepcional generosidade. Ele se
pess~as com qu~ Sonny começou - disse a esposa de um amigo do mostrava mais ativamente preocupado com o bem-estar dos estudan-
terceiro ano a mim e a Anneue, uma noite, quase ao final do ano. _ tes do que qualquer outro professor que conheci na HLS. Não hesita-
São ótimas pessoas, mas agora se tornaram céticas. Fazem tudo o que va em partilhar seu tempo conosco, em seu gabinete ou depois da aula.
devem _e_ ao mesmo tempo escarnecem. Juraram no primeiro ano que Nos exames de prática, que promovia ocasionalmente, eu via um es-
nunca mam para uma firma de advocacia corporativa e agora aceitam fo rço sincero em reduzir nossas ansiedades e oferecer a avaliação de
o emprego porque era mais ou menos esperado. E a maioria já prome- que tanto precisávamos. Com suas críticas freqüentes ao sistema de
teu a si mesma que vai odiar o trabalho. E um caso clássico de alienação. distribuição de notas da HLS , eu achava que Nicky pretendia desmiti-
Pessoalmente, eu agora conhecia o suficiente sobre a HLS para ficar e atenuar a importância do que era para muitos o aspecto mais
me pro~eter que nunca cairia em nenhuma dessas atitudes típicas. Ape- angustiante do ano. E no tratamento que dispensava em aula ao Pro-
nas fana o melhor possível. Tentei selecionar os cursos para o próxi- cesso Civil e ao direito em geral, eu percebia que Morris tentava fazer
mo ano com todo cuidado. Muitos estudantes do segundo e terceiro com que a educação jurídica fosse um empreendimento ricameme in-
anos me disseram que isso era inútil . As matrículas para os dois últi- telectual, provocante e atraente para os alunos .
mos anos são quase sempre uma repetição em grande escala do que Eu sentia a maior admiração por Nicky Morris e muitos colegas
acontece com os cursos facultativos do primeiro ano em dezembro: cur- da Seção 2 partilhavam meus sentimentos. Mas outros estudantes -
sos com excesso de inscrições, listas de espera, a secretaria deslocando embora gostassem da aula - tinham menos consideração do que eu
estudantes de um curso para outro como peças num jogo de damas. por Nicky pessoalmente. Achavam que sua atitude avançada era falsa
Eu ouvira várias vezes o mesmo rumor, de que um 2L fora afastado e numa das inevitáveis injúrias infantis referiam-se a ele como " Beat
de tantos cursos no outono anterior que acabara deixando a faculdade Nick". Diziam que sua conversa incessante sobre as notas era uma ten-
por um ano. tativa deliberada de aumentar as pressões, uma indicação da impor-
".',pesar de tudo, porém, eu persisti. Analisei cada professor, con- tância que o próprio Nicky atribuía à reputação acadêmica. E seu
versei co'!1 al~nos do segundo ano, procurei o conselho de professo- comportamento em aula, apesar de procedimentos indulgentes como
res. Matncule1-me nos cursos básicos e também em História Jurídica o " passo", era egocêntrico e insensível, insistiam tais pessoas; Nicky
Provas, Direito e Filosofi a, Antitruste, Direito Trabalhista. Ao prepa~ sempre queria humilhar os alunos.
rara ~r?gramação, segui duas regras fundam entais, que me pareciam É verdade que houve ocasiões em que Nicky fora menos gentil do
as mais importantes para tornar agradável a faculdade: nunca mais me que deveria ser. Freqüentemente parecia menosprezar os melhores co-
submete_ria a um p~ofe~sor que conduzisse suas aulas como se presidis- mentários de um aluno, insinuando que eram rotineiros, nada tinham
se um tribunal arb1trán o. Não me interessava se um professor era co- de originais. Nunca me livrei inteiramente da impressão de que Nicky
nhecido como o maior jurista do mundo desde Hamurábi - se fosse competia conosco, tentando provar que ainda era, como se apregoa-
conhecido pelo tratamento áspero dado aos seus alunos, eu o ignora- va, o melhor estudante da HLS desde Frankfurter. Com o passar do
va. ?egu_n~o, tentei, na medida do possível, escolher cursos com po u- tempo, no entanto, também compreeendi que a competição emre pro-
cas mscn çoes. Os cursos dos anos superiores são muitas vezes realizados fessores e estudantes é uma decorrência natural do método socrático
com turmas de até 250 alunos. Diante de tal número, eu sabia que ne- Compareci em maio a uma reunião aberta em que um jovem professor
nhum professor podia tratar humanamente os alunos. caracterizou o método socrático como "a atribuição de um prêmio por
Tal vez meus planos para o ano seguinte não dessem certo. Mas ser capaz de sacar mais depressa do que um aluno a seis metros de dis-
não via sentido em admitir isso de antemão. Afinal, se o folclore é exa- tância". Imagino que é o prazer por esse tipo de confrontação diária
gerado, tenho dois anos para aprender tudo sobre os sen timentos de que atrai muitos ex-estudantes para se tornarem professores de di rei to.
desespera nça e tédio. Ao escolherem Nicky para esse tipo de crítica, pensei que meus
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colegas demonstravam uma reação semelhante à que eu tivera depois Sob essa pressão, os vínculos na turma começavam a se esfacelar.
de ser chamado por Perini. Só quando fiq uei mer.os desesperado e as- Durante a maio r parte do a no os membros da Seção 2 haviam se apoia-
sustado é que pude sentir meus ressentimentos contra ele; apenas em do mutuamente com a maior força. Era verdade que havia pequenos
relação a Nicky, o me nos temível dos nossos professores, muitas pes- ciúmes, mas éramos bastante unidos pa ra que Mann nos fizesse aquele
soas ousavam exp rimi r sua raiva das maneiras mais sistematicamente elogio sobre a proteção recíproca, na última aula de Penal do primeiro
ofensivas da vida na faculdade de direito - o antago nismo entre pro- período. Em um gra u sig nificativo, porém, acho que as notas do pri-
fessor e estudante na sala de au la, a distância entre os dois fora, a in- meiro semestre tiveram um efeito pulverizador. Não havia mais uma
dignidade de ser examinado e avaliado. Era perigoso demonstrar base de igualdade. Havia agora uma verd adeira inveja e uma autêntica
hostilidadee contra Perini ou Isaac Fowler - eles pareciam capazes com petição pela revista; nos dez dias segu in tes , eu veri a, ouviria e par-
de qualquer reta liação. Nicky, po r outro lado, assumira uma to lerân- ticiparia de uma conduta que foi vergonhosa.
cia liberal; e como acontecera comigo em Contratos, havia estudames O comunicado de Nicky nos lançou nesse rumo. O verdadeiro con-
na turma que não pod iam resisti r à tentação de abusar. Sempre q ue teúdo do que Morris dissera se ajustava à intenção que ele descrevera
o tempo se tornava escasso , as tarefas de Nicky é que eram ignoradas. - igualar as coisas ent re grupos e indivíduos. Limitava a extensão das
As pessoas passavam quando ele chamava, soltando risadin has como perguntas qu e poderia fazer no exame e isso, em teoria, deveria facili-
adolescentes. E porque Nicky era tão paciente, os estudantes manifes- tar a preparação dos al un os sem a ajuda de gr upos de estudo ou sumá-
tavam ressentimentos que nunca dem onstrariam contra qua lquer outro. rios de grupo. Mas no estado de ansiedade em que se encontrava a
Pressionavam-no. Desafiavam-no. Tentavam manipulá-lo. E Nicky per- turma, foi mais a ênfase do comunicado de Nicky, as implicações, que
manecia jovial, compreensivo, sincero , o que levo u-o àquele comuni- prevaleceram. Ao chamar a atenção para o que g ru pos de estudo co-
cado na última sexta-feira de abri l, no início da a ula ... o comunicado rno o nosso estavam faze ndo, os estuda ntes acharam que Morris en
que fez o ano terminar em baixa. dossara tacitamente, até recomendara, o trabalho coletivo . E ao alterar
- H á muita preocupação com o fato de algu ns grupos de estudo seus planos para o exame, Nicky parecia reconhecer o e fei to potencial-
estarem preparando eno rmes sumários e gu ias do curso para o exame - mente poderoso dos sumá rios de grupos de estudo.
disse ele, enquanto andava de um lado para o ut ro, na fren te da sala. - Com isso, o pânico desencadeou-se no mesmo instante. P essoas
Muitas pessoas, aparentemente, acham que estão mesmo em desvanta- q ue antes estavam convencidas da validade dos grupos, logo perderam
gem, competindo contra esses esforços coletivos. Assim, se a turma con- essa convicção. Em 24 ho ras alguns grupos há muito paralisados fo-
cordar, decidi alterar um pouco os planos para o exame, a fim de perm itir ram ressuscitados, enquanto outras pessoas procuravam nervosamen-
que os grupos e indivíduos parti cipem com mais equilíbrio. te po r g ru pos onde ingressar. Todos agora passaram a fazer sumários
O objetivo de Nicky era al iviar a tensão, mas o efeito, como acon- de Processo Civil , a lém de o ut ros especialmen te Propri edade, em que
tece tamas vezes, fo i justamente o oposto. Muito disso foi uma decor- parecia evidente q ue ninguém entendia as qu estões de propriedade
rência do estado em que já se encontravam os alunos . Ao fi nal de a bril, da terra.
as coisas esq uentavam rapidamente na Seção 2. Embora tivés5emos ago- O grupo de estudo novo ma is vigoroso era liderado por Kyle
ra a lgu ma experiência em exames, as exigências eram maiores neste pe- Schick. Durante o primeiro fim de semana de maio, Kyle reuniu uma
ríodo. Havia quatro cursos a revisar, não apenas dois. E a programação cooperativa de dezesseis pessoas, que no mesmo instante empenhou-se
era um obstáculo considerável. Os exames começariam apenas poucos na preparação de sumários de Processo Civil e Propriedade. Algumas
dias depois do término das aulas, a 14 de maio. Em janeiro , a maioria pessoas acharam que era uma atitude traiçoeira ... porque, como eu sou-
tivera o conforto dos feriados de Natal a ntes dos exames. Isso nos pro- be depois, fora Kyle quem procurara Nicky para se queixar dos sumá-
porcionara a oportun idade de escapar aos tropeços e neuroses q ue atri- rios coletivos.
buíamos uns aos outros. Agora, porém, não haveri a tal alívio. Os À medida que os exames se aproximavam, disseram-me várias ve-
exames começariam poucos dias depois das aulas terminarem. Nos dor- zes que Kyle andava confessando abertamente seu desejo desesperado
mitórios, pelo que me contavam, já havia pessoas su bindo pelas pare- de conseguir o ingresso na revista de direito. Achava que a participa-
des; todos sentíamos uma pressão enorme. Gina declarou que a única ção na revista era indispensável para se lançar numa carreira de pro-
maneira de se manter sã era deixar a fac uldade assim que acabasse a fessor de di reito, e su ponho que foi levado a procurar Nicky por um
úl tima aula do dia, a fim de escapar às conversas cheias de ans iedade, medo similar ao de Weiss - o de que os colegas com um sumário con-
-. agora tão freqüe ntes nos corredores. tavam com uma vantagem que ele nunca seri a capaz de superar. Antes

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rou a alteração do exame como um novo desafio. Abordou-me assim
dos exames terminarem, Kyle apresentara queixas similares sobre ou- que a aula terminou.
tras pessoas, a out ros professores. Em cada caso, te nho cert_eza de que - Tudo bem, tudo bem - disse-me ele. - Trabalhamos muito
Kyle encont rou receptividade, pois empenhara-se no relacionamento nessa coisa e agora temos de fazer com que dê certo. Vamos dar a in-
com os professores durante o ano inteiro. Envolvera-se com vá:ios de- tensidade total que merece.
les em consultas sobre suas atividades no campus; chamara muitos ou- Tentei acal mar Stephen ao sairmos para almoçar. Aubrey, Stan
tros para festas em sua casa. Até tentara aliviar as mágoas de Perini, e Terry também estavam presentes; juntos, nós quatro reiteramos pa-
enviando-lhe - algo que só Kyle ousaria fazer - uma longa mensa- ra Stephen a notícia que ele ainda não absorvera - que em grande pane
gem de parabéns, depois que Perini concluíra uma série de preleções fô ramos nós , nosso sumário e aquela "intensidade fanática" que pro-
em au la sobre " condições", um assunto complicado , envolvendo ques- vocara tudo aquilo.
tões sobre os termos de contrato cuja violação cria uma ruptura . Stephen inchou as bochechas e sacudiu a cabeça.
Sei que Kyle não gostava muito de Nicky Morris. Dissera-me isso. - As pessoas estão com medo da gente? - disse ele. - Não posso
Manifestara as queixas comuns sob re o ego de Nicky. Mas ainda assim acreditar.
convidava Nicky para partidas de beisebol nos fi ns de semana, - Com medo e ressent idas - insistiu Aubrey.
procurava-o em seu gabinete para conversar sobre problemas de Pro- Ele estava indiferente. Partil hava com Stan a opinião de que o su-
cesso. Ten ho certeza de que Nicky confiava em Kyle; e caso não con- mário era apenas da nossa conta. Não estávamos tenta ndo prejudicar
fiasse, contaram-me que Kyle induzira Phyllis Wiseman, que era ninguém e não devíamos desculpas por querer colher as recompensas
normalmente bastante retraída, a acompanhá-lo no dia em que apre- de nossa perseverança . Mas Terry sentia-se constrangido por termos
sentara suas queixas sobre os sumários de grupo. Phyllis era uma figu- lançado todos em tanta consternação . E eu estava cada vez mais tr~ns-
ra simpática. Tinha uma fam ília a cuidar, filhos. Nicky também tinha tornado por toda a história. Quando deixei a fac uldade, na sexta-feira,
filhos. Quando Phyllis dissera que os esforços dos grupos de estudo minhas reações ao comunicado de Nicky haviam se ampliado. No cli-
assustavam-na, porque nunca disporia do tempo necessário para igualá- ma mais tenso, sentia uma nova pressão para estudar ainda mais. E,
los sozinha estou certa de que Nicky compreendera. O problema de o que era ainda mais surpreendent e, também descobri que muito d?
<
Phyllis - g~nu íno, sincero - deixara a situação evidente. Nicky f!ze- meu embaraço inicial começara a ser substituído por algum ressenll-
·~ ra o que deveria e imagino que Phyllis ficara grata por seu comumca- mento contra a pessoa que fora se queixar a Morris. Por algum moti-
do. Imagino que o mesmo acontecia com Kyle. vo, o sumário era importante para mim. Durante todo o tem po, minha
Kyle formou em seguida seu grupo de estudo. Consti~uiu-o e~ tor: participação era muito em benefício de meus amigos no grupo de estu-
no de um núcleo de amigos do Harvard College, mas a 1mpressao fot do, mas agora parecia convertido num propósito mais pessoal. Com-
de que escolheu os membros com extremo cuidado. Gina contou-me preendi que talvez até estivesse tentando ignorar aquela onda crescente
que ele lhe telefonara para Vermont , convidando-a a participar. Mas de ressentimento. Stephen também estava perturbado, em profundo
ele nunca incl uiu Phyllis Wiseman. conflito consigo mesmo. É um homem gentil, não importa o quanto
esteja empenhado em alguma coisa; perturbava-o muito pensar que fora
Ao escutar Nicky Morris naquela sexta-feira, anunciando a mudan- a fonte do mal-estar de alguém.
ça de planos para o exame, senti um aperto no coração. Não porque - O problema está nas minhas notas - ele me disse na sexta-
achasse que desperdiçáramos todo o nosso trabalho . O sumário de Pro- feira antes de eu deixar a facu ldade, explicando, acho que com certa
cesso ainda seria muito valioso. Mas essa não foi a primeira coisa que razã~, por que a atenção ficara tão voltada para o nosso ~rupo e o
aflorou em minha mente. Por alguma razão , eu não percebera o cons- nosso sumário. - Gostaria de nunca ter tirado aquelas maldnas notas.
trangimento cada vez maior na turma por causa de nosso sumário. Ob- Na segunda-feira, a preocupação de Stephcn se mostrara mais con-
servei que as pessoas ficavam mais tensas; constatei que algumas, como creta. Fora um fim de semana movimentado nos do rmitórios. Os alu-
Weiss, estavam irritadas conosco. Mas enquanto Nicky falava , con- nos da Seção 2 que não tin ham acesso a grupos de estudo e sumários
cluí subitamente que meus amigos e eu, assim como os outros poucos estavam se tornando desesperados. Tinham certeza de que fracassa-
grupos empenhados em projetos si milares, tínhamos sido, aparente- riam . Mesmo que não fosse bem assim, imagi no que não era fácil sen-
mente, a causa da grande ansiedade. Senti-me culpado e bastante con- tir aquele pânico no ar e saber que se encontrava sozinho, entregue à
trafeito. própria sorte. No domi ngo, no campus, Stephen fo ra abordado, em
Stephen recebeu o aviso de Nickv com um ânimo dife rente. Enca-
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ocasiões diferentes, por dois homens, John Yolan e Malcolm Bocaine, Ned e Malcolrn já trabalhavam em suas partes do sumário e nos dias
que segundo ele quase suplicaram para entrar no nosso grupo. Na seguintes os dois pareciam ter virtualmente sumido da faculd ade, a fim
segunda-feira, numa sessão de revisão do grupo de estudo antes da au- de concluir tudo.
la, Stephen propôs que convidássemos John e Malcolm . Outras negociações estavam em a ndamento . Stephen conversava
Terry concordou no mesmo instante . Considerava indispensável com todos agora, ta lvez para não perder de vista qualquer motivo pa-
que o grupo de estudo aceitasse novos participantes, apenas para pro- ra uma nova onda de sentimentos, como a que provocara o comunica-
porcionar ajuda e paz de espírito aos outros. Aubrey e eu também es- do de Nick y. Na tarde de terça-feira ele conferenciou com J ack Weiss.
távamos dispostos a aceitar. O mesmo acontecia com Stan, o homem J ac k continuava preocupado com o nosso sumá ri o.
que substituíra Kyle no grupo, embora impusesse uma condição . - Ele quer fazer urna troca - disse-me Stephen na quarta-fei ra.
- Quero uma compensação - disse ele . - Seu grupo tem um sumá ri o de Propriedade. Vi alguma coisa.
Stan achava que os novos participantes do grupo deviam fazer al- P a receu-me muito bom. O que você acha?
gum trabalho em troca de uma cópia de nosso sumário . Stephen tam- Percebi que Stephen estava interessado. Era mais in for mação, mais
bém considerara essa possibilidade. Em março, quando dividimos o um ângu lo, um pouco mais de segurança. E havia outra complicação
livro de Processo para o resumo, nunca designamos para ninguém os no cpso. Terry não comparecera às a ulas de Propriedade durante todo
últimos capítulos. Mas Stephen, em seu incansável empenho na prepa- o período. Considerava Fowler uma perda de tempo. Prometera a si
ração para os exames, sempre se mantivera preocupado com essa omis- mesmo que aprenderia a matéria sozinho, mas adia ra o início do estu-
são. Propôs agora que John e Malcolm assumissem esse trabalho . do por tempo demais. Não era fácil saber tudo sobre a propriedade
Percebi que tinha uma espécie de plano amplo, envolvendo John e Mal- da terra a través do Gilbcrt's. Eu sabia que ele apreciaria um sumário
colm. Tinha encontrado uma maneira de conciliar seus piores impul- amplo .
sos com os melhores. Foi o que aconteceu com todos nós. Eles podem - O que acontece se entregarmos nosso sumário a eles? - per-
entrar, mas devem trabalhar. Uma compensação. Chegamos a um acor- gu ntei. - Tiram xerox e distribuem por toda a turma?
do rápido . - É possível - respondeu Stephen.
Ao deixar a faculdade na segunda-feira, já constatara que a tur- - Não há a menor possibilidade - protestei. - T raba lhamos
ma se lançara num verdadeiro frenesi. Os colegas haviam estudado du- demais para permitir isso.
ra nte todo o fim de semana, já passando as noites acordados, E como fica Terry?
memorizando , resumindo , revisando. Ninguém parecia ter um momento - Ele ent ro u no jogo. Terá de pagar.
para conversa. Estávamos todos extremamente nervosos. - Tem razão - concordou Stephen, depois de um momento. Ele
Eu não me sentia mais controlado do que qualquer o utro. Passa- soltou uma risada. - Hochschild está no grupo de Weiss . Pode imagi-
ra o mês de abril mais estável. Estudava com afinco e parecia que não nar o que aconteceria com nosso sumá rio nas mãos de H ochschild?
podia exigir mais nada de mim mesmo. Mas o comunicado de Nicky As pessoas faltavam às au las agora para preparar resumos das maté-
e as pressões resultantes me fizeram cair em parafuso. O medo intenso rias. Cada vez que eu passava pelo cent ro de có pias, no porão de Lang-
de fracassar e o desejo desesperado de me sair bem haviam me domi- dell, encont rava um colega da Seção 2 na fila, com um maço de papéis
nado outra vez, com mais intensidade do que em qualquer outro mo- na mão e uma expressão desconfiada. Pessoas a que me sentia !TIUito li-
mento anterior, desde novembro . Vo ltei a fumar durante o fim de se- gado ... Estávamos em campos opostos agora, diferentes grupos de estudo.
ma na. Acordei uma noite encharcado de suor. Ao final da tarde de quinta-feira, depo is das au las , Stephen , Terry
E o pânico de todo mundo hoje também me envolveu e agravou e eu nos encontramos numa das salas de a ula de Pound, comenta ndo
tudo isso. Meu autocontrole deteriorava-se rapidamente e de certa for- como tudo se tornara bizarro.
ma o problema do sumário ainda se encontrava no centro de tudo. - T enho pensado numa coisa - disse Terry. - Deveríamos dar
Quando Stephen trouxe a notícia de que John Yolan não tinha tempo uma cópia de nosso sumário a quem quisesse.
agora para fazer sua parte do trabalho no sumário, decla rei: - Com uma retri buição - acrescentou Stephen .
- Pois então ele que se d,:rne. Quer a sobremesa sem oferecer o - Que se dane a retribuição - disse Terry. - Eu me perguntei
jantar. Você ouviu o que Stan disse. Tem de have r uma compensação. por que fizemos isso . Uma revisão da matéria , certo? Para aprender .
Stephen balançou a cabeça, cauteloso. Na manhã seguinte ele anun- É só com isso que temos de nos preocupar. - Ele olhou para mim.
ciou que Ned Cauley se juntara ao grupo de estudo , no lugar de John. - Certo?

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7 ....
- Não sei - respondi. insultuosos. Nosso grupo de estudo reuniu-se uma tarde para anali ar
Eu ainda me encontrava nervoso. Fora uma semana terrível. um dos exames anteriores de Perini e logo descobrimos que nenhu m
- Cara, era você quem dizia que devíamos distribuir. de nós poderia sequer começar a respondê-lo ; Stephen passou um dia
1.
- Mas pense um pouco na situação. Kyle está tentando sacanear atormentado, achando que seria reprovado em Contratos. No gru po
.t todo mundo. Metade da turma pensa que somos loucos . de Kyle, informou Gina, hou vera uma insurreição, porque ninguém
- Por que se importa com Kyle? - indagou Terry. - Qual é podia compreender os comemários de Kyle so bre interdição colateral,
a diferença, se podemos ajudar algumas pessoas? um tema crucial para o exame. Karen Sondergard chorou um dia, ao
Pensei por um instante. Mas depois pus-me a falar a respeito de concluir que preferia estar em nosso grupo em vez de qualquer out ro.
tudo que conseguira durante a última semana. Circularam rumores apreensivos de que um grupo rouba ra uma cópia
- Quero a vantagem - declarei. - Quero a vantagem competi- de um dos exames. Em outra ocasião, Stephen ficou convencido de
tiva. Não me importo com os outros. Quero me sair mdhor do que que Aubrey e Stan ha viam feito um acord o secreto com o grupo de
eles. Kyle e recebiam info rmações que não partilhavam conosco. E durame
Meu tom era intenso e Stephen e Terry ficaram aturdidos. Depois todo o tempo nosso grupo continuava a aumentar. Stephen sempre t n-
nos separamos, cada um seguindo sozinho para sua casa. contrava meios de aproveitar os novos participantes. O grupo crescera
para onze ou doze pessoas na última semana de aula.
Levei algum tempo para acreditar que realmente dissera aquilo . Disse - John Yolan mudou de idéia - disse-me Stephen um dia. na
•, a mim mesmo que era apenas brincadeira. Disse a mim mesmo que só biblioteca.
falara para chocar Stephen e T erry. Mas sabia que não era bem assim. Ótimo - respondi. - Dê-lhe o sumário.
O que fo ra reprimido durante o ano inteiro se manifestava abertamen- Com uma retribuição?
te agora. Durante todo o tempo houvera uma tensão entre cuidar de Com o u sem. Pode dar a qualquer um que quiser. Terry tem
nós mesmos e ajudar uns aos outros; ao final, eu não esperava que razão.
ninguém - nem mesmo eu - renunciasse a um desejo de prosperar, Depois daquela tarde de quinta-feira na sala de au la, fiz um e!>-
de conseguir o êxito. Mas não podia acreditar como eu me tornara ex- forço para não me deixar envolver de novo por aquele turbilhão de
tremado, o tipo de criatura gananciosa a que fora reduzido. Não fala- medos. Houve ocasiões em que senti que estava para acontecer e me
,' ' ra de maneira cavalheiresca sobre competição para Stephen e Terry. empenhei ao máximo para resistir . Um dia me descobri a andar de um
Não falara sobre a lgum anseio inocente de sucesso. Havia uma fúria lado para outro no ginásio da faculdade, murmurando "Estou bem,
assassina em mjnha voz. E o que estava em jogo? A diferença entre estou bem", cemando manter em mente que tinha a lgum valo r que 'iO-
um B-mais e um B? Aquilo deveria ser educação - um empreendi- breviveria aos exames . Mas sentia que era impon a nte não ceder. Sabia
mento humano e cooperativo. onde me encontrava agora. Sabia o que enfrent ava.
Sentei em meu estúdio naquela noite e refleti sobre a situação. Fora Finalmente me deparava com o inimigo, eu pensava, cara a cara.
um ano tumultuado, concluí. Eu estava esgotado. E caíra em depres-
- . - - .----. são. Perdera a noção de mim mesmo em alguns momentos, mas não
perdera o amor-próprio, por causa da generosidade que ainda havia
em meu espírito. Mas não podia forçar demais. Compreendi que se 13/ 5 / 76
cedesse outra vez à cobiça incontrolável e assustada que me dominara (Quinta-feira)
naquela tarde teria de pagar por muito tempo, na maneira como pen-
saria a respeito de mim mesmo.
É um lugar terrível, disse a mim mesmo. Coisas absurdas estão A última aula de Contracos com Perini. Ele se mostrou terrível du ran -
acontecendo. Esforce-se ao máximo. Faça o melhor que puder. Aprenda te toda a semana, queixando-se das ausências e torturando os alu no~
o direito. Mas não sofra, pensei. Não tema. E, pelo amor de Deus, chamados. Não quer que saiamos com a impressão de que é um pro-
não abra mão da sua decência. fessor mole ou que o exame será fácil.
A loucura no ambiente e a batalha entre os grupos de estudo per- Hoje, porém, ele se mostrou brando. Os alunos se cotizaram para
sistiram. As pessoas continuavam a entregar sub-repticiamente sumá- lhe dar presentes - um retrato de um famoso comentarista de Contra -
rios em sacos de papel pardo. Jack Weiss ainda fazia comentários tos, uma enorme mola de aço enferrujada, a fim de que ele pude se

208 209
• •

ter "uma boa primavera" (a mesma palavra em inglês, spring). De- Fowler, com rara simpatia, ofereceu alguns conselhos paterna1s
pois, a turma levantou-se e cantou: sobre o exame, antes de encerrar a aula:
- Vocês se preocupam demais com os testes. Ainda não tenho
Offer, acceptance, consideration, certeza do que vou dar ... talvez administração de tempo. O problema
The peppercorn theory, a free-market nation, de vocês é que todos q uerem ser o primeiro e ninguém pode sê-lo, nes-
Mi/Is versus Wyman, Klockner "v" Green - se tipo de grupo. É verdade que alguns ficarão na frente, pelos núme-
These are a few of our favorite things. • ros, m as não na realidade.
Meia hora depois Nicky encerrou tudo . Disse-nos que há anos vem
Perini deu em seguida uma aula vibrante sobre a cessão de contratos trabalhando para ensinar o direito de uma maneira que, a seu ve r, re-
- o processo de vender seus direitos sob um acordo a uma terceira vela o interesse inerente da matéria. Ad vertiu-nos contra a apatia que
parte - e depois encerrou com uma peroração sentimental. Teve seus provavelmente sentiríamos como estud antes das turmas superiores e
momentos simpáticos. Ele pediu desculpas a Sandy Stern por insultos ofereceu-se para ajudar como pudesse, supervisionando trabalhos o u
passados; disse-nos que não entrássemos em pânico no exame e acres- outros tipos de pesquisa.
centou - o que ninguém mais fizera - que fôssemos procurá-lo se Ficou andando por toda a sala enquanto fa lava.
tivéssemos um branco por causa do medo. Comentou que constiLUía- - Há um enorme talento nesta turma. Tive o meu melhor ano
mos um grupo excelente, mas não pôde resistir a uma piadinha final até agora com vocês e agradeço por isso.
sobre o Incidente e sua transformação num evento público : E le conti nuou a andar e passo u pela porta. Deixou todos nós de
- Tem sido difícil justificar constantemente meu comportamen- pé, aplaudindo-o.
to para pessoas que não sabem o que acontece aqui. E, depois, a compreensão: estava acabado. Nosso a no juntos. Os
E também recorreu a um sentimentalismo intenso, que beirou o exames são individuais: você, os livros e o que você escreve. Aquele
patético. Disse-nos que éramos todos de sua família, que éramos to- era de fato o último momento para a Seção 2. Dei um beijo em Karen ,
dos seus amigos. abracei Gina . Apenei a mão de T erry, Stephen e Aubrey. Pensei no
- É muita desfaçatez , ele me aterroriza durante o ano inteiro e espanto e adm iração com que encarara meus colegas nas semanas ini-
depois diz que é meu amigo - comentou Gina, assim que terminou ciais e no que acomecera a todos nós depois. A Faculdade de Direito
-~ a aula. - Ele não é meu amigo. de Harvard, pensei, ah, a Faculdade de Direito de Harvard ...
Wade, pelo que ouvi dizer, comparou os comentários de hoje ao Fui para casa me sentindo atordoado e um po uco deprimido.
discurso de despedida de Nixon .
Não sei por que não posso perdoar Perini po r seus excessos; ele
possui talento como professor. Acho que o problema é a crueldade. Os exames da primavera constituem o utra das tradições da fac uldade.
A turma levantou-se para lhe oferecer uma ovação quando saiu . Não Há poucos anos as coisas eram mui to piores em Harvard e em muitas
fui capaz de seguir o exemplo. outras faculdades do que são agora. Os alunos prestavam cinco exa-
mes em cinco cursos que d uravam todo o ano letivo ; não havia testes
prévios e os estud antes não tinham a menor noção de seu progresso .
l::.m muitos casos, os exames eram na base de "livro fechado" , o que
/4/ 5176 significava que não se podia levar coisa a lg uma para as salas - ne-
(Sexta-feira) nhum li vro à mão para proporcionar algum con forto, nada que indi-
casse uma chance aos alunos em relação a toda aquela massa de
informações de uma matéria . Na primavera, os estudantes de d ireito
Nunca mais tornarei a entrar numa sala de aula como um estudante do primeiro ano se tornavam ainda mais frenéticos do que nós, na nossa
de direito do primeiro ano. As últimas aulas foram hoje. época. Amigos que estudaram em Harvard e o utras fac uldades naque-
le tempo me contaram muitas vezes as mesmas histórias sobre tentati-
vas de suicídio e sobre estudantes se mudando para motéis, a fim de
•Em tradução livre: "Ofena, aceitação, / A teoria da Bagatela, uma nação de mercado
livre, / Mills cont ra Wyman, Klockner "v" Green - / Ai estão algumas das nossas coi- escaparem ao hospício em que se transformavam os do rmi tó rios.
.;as prediletas " (N. do T.) Para nós, os exames no meio do a no letivo e o conhecimento de

2 10 211
.·I que t~dos os ou_tros era,~ de "livro aberto" atenuavam um pouco essa Muitas pessoas também haviam ficado, até o final. con fusa!) com
pres~ao. Mas ainda a~s1m não era fácil. Descobri que a experiência, os estatutos de propriedade da terra. Terry só fo i capaz de responder
em c1m_a de tudo o mais ~ue acontecera, era como ser enviado a correr a duas das quatro questões. Stephen também achava que não se saíra
uma milha em _quatro minutos, um momento depois de terminar uma bem e ficou profundamente infeliz.
°:a ratona. 7:en~mos quatro exames em dezessete dias, milhares de pá- - Está ouvindo pela primeira vez - disse-me ele. - Stephen Li-
gm~sPª:ª d1genr e lembrar. Ao final do primeiro período, em compa- towitz não chegará à revista de direito.
raçao, uvé_r~mos q~~se um mês de preparação para os exames de Ele reanimou-se em poucos dias, no entanto, ao verificar os prin-
Responsab~hd~de C1v1I e Penal. Eu não tinha noção desta vez de qual- cipais concorrentes - "as oessoas supercompetentes", como dizia Ste-
quer ocorrenc1a de uma perfei ta confluência de pensamento. A casa phen - e descobrir que tamoém tiveram dificuldades com o exame.
estava sendo construída, mas era um trabalho precipitado, com mui- O exame de Nicky. dois dias depois, foi mais ou menos como o
t?Scantos malfeitos e sem vigas sólidas. Passei a estudar sumários, an- prometido. Todos ti nham seus sumários e indicações prontos. Enquant o
tigos exames. O grupo de estudo reuniu-se algumas vezes. De um modo fazia o exame. consultei algumas vezes o sumário de Processo que fi-
geral, era apenas pa~a absorver informações, dia após dia. Dezesseis, zéramos. No final das contas, acho que provou ter alguma utilidade.
dezessete . ho~as. Meia hora para jantar. Seis horas para dormir. À espera do fim de semana do Memorial Day, a 30 de maio, res-
. . O p~1r1:1e1ro exa.~e, qu_at~o dias_ depois do encerramento das aulas, tava apenas um exame, de Contratos, a 1? de j unho.
101 de_ D1re1to e Pohuca Pubhca. Orna me telefonou na noite anterior.
~are~1a assustada e por um instante sua ansiedade transmitiu-se pela
hgaçao, me e_nvolvendo. Estou bem, disse a mim mesmo ao desligar,
eswu bem. T~ve ~m sono profundo naquela noite e nas noites seguin- 1/ 6176
tes. Um ano 1nte1ro, mas parecia que finalmente eu conseguia vencer (Terça-feira)
o meu medo .
O exame de Política, também de oito horas, correu muito bem.
Ste_rnlieb_di_stribuíra com antecedência um estudo sobre o Serviço de Portanto, tudo se resume agora a Perini. Nada mais significativo do
Sau?e Pubhc~. ~ra_o assunto de uma das duas questões, que indagava que o fato de ele estar na conclusão de nossos esforços.
quais as prov1denc1as que tomaríamos dentro da organização se ten- Não consegui estudar durante este fim de semana. A maneira co-
tássemos executar um programa de centros de saúde comunitários. Es- mo Perini ensinou Contratos - uma norma seguida por um milhão
crevendo a resposta, semi que finalmente fazia alguma coisa meritória de exceções - exigia esforços prolongados de memorização, algo q ua-
num exame na faculdade - um texto cuidadoso, bem fundamentado. se insuportável depois do massacre de três semanas. Folheei o horn-
~ara mim, já concluíra, aqueles exames eram como um tiro no escuro: book, mas só era capaz de permanecer sentado por meia hora, quarenta
as veze~ erraria, outras acertaria; e de vez em quando poderia fazer minutos no máximo. E também não me resta respeito suficiente por
uma c01sa de que me orgulhasse. Perini para me importar com sua avaliação .
Segui pa~a a faculdade, a fim de fazer o exame de Propriedade, uma Vi Kyle esgueirando-se sorrateiro pelos corredores quando cheguei
seman_a depois, senti_ndo-_me ~uas~ jovial. Thlvez fizesse também algu- à faculdade, esta manhã, antes do exame. Normalmente ele é exube-
ma coisa de valor hoJe. Nao fiz. Foi um exame de quatro horas e escrevi rante, mas acho que sentia que estava tudo em jogo agora, encolhendo-
sem parar, alimentado pela ad renalina. Houve muita controvérsia depois. se como um animal ferido, literalmente se arrastando jun to à parede.
Há alguns anos Fowler publicara um artigo numa revista de direito ava- Fiz o melhor possível para animá-lo, apresentando-me tão jovial quanto
liando uma proposta de zoneamento urbano para uma cidade de Illinois. um raio de sol. Tentei retê-lo para uma conversa, mas ele se mostrou
Uma das questões do exame pedia aos al unos que avaliassem uma pro- impaciente, obviamente querendo dar mais uma olhada em seu sumá-
.... posta de zoneamento urbano para uma cidade de Michigan. Um teste rio. Ah, eu fui a própria essência da ameaça e ainda não me sinto en-
de "livro aberto" na HLS significa que não há restrições e vários estu- vergonhado por isso.
dantes l~varam para o exame uma cópia do artigo antigo de Fowler, do Depois entrei na sala de exame. Apresentei-me para o prazo de
q~al mais ou menos extraíram suas respostas. Kyle procurara Fowler ime- quatro horas como um autêntico vendedor ambulante: protetores pa-
diatamente para protestar. Fowler tratara o problema com indiferença e ra os ouvidos, papel, quatro lápis, quatro canetas, três pacotes de ba-
ped ira a Kyle que se retirasse de seu gabinete. las de hortelã, dois maços de cigarro, um copo com chá gelado, uma

212 213

1
.. >.
Coca, duas barras de chocolat<::, um aponLador de lápis, um a exlensão
- Acabo u! - grite i, ao entrar no carro .
para a minh a máqu ina de escrever e létrica . Ao descarregar Lodo esse
Venho me repetindo isso durante as últimas ho ras. Provavelmen-
eq u ipamento, todos na sala caçoara m . Trinta o u q uarenta alunos fa-
te levarei uns doi s dias para acredi tar. O primeiro ano da faculdade
riam o exame datilografado. Foi agradável estarmos todos unid os no
de direito. Parecia apenas um mito q uando meus amigos passaram por
riso ou tra vez, m esm o q ue apenas por um momento.
isso. Agora, eu também passara. Acabou. Acabou .
. (? i~spetor disLribuiu o _exa_~e_ às 9:00h . Seria alípico de Rudo lph Quando Roscoe Po und, que mais tarde se tornara diretor da Fa-
Penm nao dar o exame mais d1 f1c!l da Faculdade de Direito de Har-
culdade de Direito de H arvard, tornara-se um estud a nte do primeiro
vard. As questões cobri a m nove páginas em espaço um - o exame d e
ano, em 1889, tivera de faze r cursos de Responsa bilidade Civil, Dire i-
N icky, em comparação, t inha três páginas. Antes de começar , eu fora
to P enal, Propriedade, Con tratos e Forças de Ações do Dire ito Con-
informado q ue fa ríamos o mesmo exame d e outra seção, com duas di- suetud inário, uma versão de Processo Civi l do século X I X. Aprendera
ferenças: o nosso teria cinco questões em vez de quatro e a out ra seção
teria o iLo horas. o direilo pela leitura de ca usas; em aula, seus professores en.sinavam
pelo método socrático. De certa forma, as coisas foram mais fáceis para
_Verifiquei ~s qu~stões numa pre~sa desesperada. Não tive apre- Pound do q ue para mim e meus co legas d a turma de 1978 da Faculda-
te~sao de refletir mu1t~ a respeito. As 11: 15h levantei os olhos pela de de Di reito de Harvard. Ele pudera passar no exame para a Ordem
pnme1ra vez e constatei q ue tudo acabaria em duas horas. Senti-me
dos Advogados depois de um único ano de instrução jurídica E não
atordoado com o pensam en to . A últim a q uestão era uma série d eso r- precisa ra acrescentar um curso fac u ltat ivo na primavera.
denada de frases, extraídas de vári as cantigas infa ntis. P erini pedia para Mas é claro q ue são extraordinárias as semelhanças ent re o pri-
descrever o possível c~ ntrato que podiam formar, quais seriam o s pro- meiro a no do d iretor Pound e o meu. Há quase um século agora, os
b~emas em seu cu mpn?1ento e quais os dilemas comuns de interpreta- advogados americanos estão urudos pelo conh eci mento de que todos
çao que estavam sugendos. Você a inda não aprendeu a ser m oderado
Perini , pensei. ' sob reviveram a uma in iciação similar; é uma espécie de grande trad i-
ção. Para mim , foi uma experiência de profundos extremos. O que e ra
Quand o terminou o prazo, fui para a frente da sala e pus-me a ruim , foi pavoroso. Mas o que e ra bom, mu itas vezes aproximou-se
an?a r de um lado pa ra o utro, aplaudindo. Vaiei, berrei. Saí para a ga- do ideal. Senti-me regularmente inspirado e revigorado pelo que est u -
le n a em q ue o BSA servia cerveja e tomei quatro copos rapidam ente. dava e poucas vezes perdi o senso d e q ue tirava o melhor pro veito de
A u brey também estava embriagado.
minha capacidade. O patrimônio da Faculdade de Direit0 de H arvard
- Tudo o que se interpõe agora entre você e um doutorado é a - seus estudantes, seus professo res, sua eminência e suas trad ições,
quantia de seis m il dólares - comento u ele, referindo-se ao c usto do que são sempre u ma presença - proporcionou-me um momento de
c urso.
intenso excitament o e gra nde fec und idade. Sob muitos aspectos, foi
Fui al_m oçar com Terry, Gina e Mike Wa ld . A o voltar, t irei tudo o melhor a no na educação de alguém que, como eu, já deve ter vinte
o q ue havia em m eu armário e guardei na mochila, depois telefone i anos de est udos; e levando tudo em consideração - mas tud o mesmo
para Annette, que se o ferecera para ir me buscar de carro. - provavelmente cu faria de novo .
. Ao subir, depois da ligação, esbarrei com Phyllis Wiseman. Fi- Co ntudo, eu não estaria sendo sincero se não dissesse que estou
quei conste rnado ao vê-la. Depois de m a nter a firmeza e a distâ ncia co nvencido de q ue, em muitas coisas, o patrim ô ni o da Facu ldade de
durante todo o ano, ela perdera o co nt role. O último m ês fora demais Direito de H a rvard vem sendo terri velme nte desperdiçado. O c urríc u-
para ela: o incide nte com Kyle, o clima lúgubre, a pressão e exau stão lo de um século q ue herdamos do diretor Pou nd precisa u rgentemente
dos exames.
d e uma mudança. No início de maio compareci a um a reunião aberta
Ela estava preocupada com a possibilidade de não ter se saído bem so bre instrução jurídica. Fora convocada por um grupo d e estudantes
de não ser mais respeitad a pela família e os am igos. Caíra numa pro: do primeiro ano e, apesar da pressão dos exames, 175 alu nos compa-
fund a depressão.
receram, a m aioria d e I Ls. As dimensões e o ânimo da multidão não
- E u me _saí um pouco m elho r do que no último período, m as deixaram dúvidas sobre a insatisfação com um com muitos aspectos do
agora confundi tudo ... - ela me disse. - É muito triste. ensino no primeiro a no. Os estudantes ouviram comentários de um co-
. Eu disse a ela, literalmente, que estava bem ... que devia dizer a m itê de p rofessores do primeiro a no. Perini escava entre e les , mas tam-
s1 mesma que estava bem.
bém havia diversos represent a ntes mais jovens e mais liberais do corpo
Annette chegou poucos minutos depois. docente da fac uldade. O lhando para eles e para os estudantes q ue se
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• 1 •

derramavam pelos corredores, Peri ni perguntou a seus colegas mais de comportamento em aula que impeça os professores de intimidarem
velhos: e explorarem livremente os alunos. Sua omissão os deixa num estado
- Somos os cristãos aqui, senhores, ou os leões? de sutil mas persistente abdicação moral. Sei que é difícil pensar nos
Seja como for, compreendi que a mesma disposição que Perini estudantes de direito a caminho de urna vida privilegiada, como opri-
enfrentara naquela noite será encontrada por professores de direito que midos; e também reconheço que o terror em aula é um aspecto perma-
comungam de sua filosofia, no futuro. Uma nova geração de profes- nente da educação jurídica há pelo menos um século. Mas o risco o
sores de direito - alguns estudantes que estavam naquela sala, pes- supremo risco, de permitir que os estudantes tenham o seu primeiro
soas formadas por experiências diferentes, e muitos, como Nicky contato com o direito nesse clima, nesse estado de pavor irremediável,
Morris, francamente opostos aos métodos antigos - muito em breve é o de que eles saiam com uma impressão tácita, insuperável de que
terá grande infl uência nas faculdades. Até mesmo Perini reconheceu de certa forma é "legal" ser implacável, ser brutal, levando-os a assu-
o que estava escrito na parede. mir essa postura no exercício das tarefas profissionais.
- Haverá mudanças - admitiu ele. - Nem mesmo eu posso ale- Essas objeções ao método socrático opressivo são, de certa ma-
gar que a Faculdade de Direito de Harvard é a maior e mais divina neira, apenas uma parte da preocupação mais ampla com a educação
instituição que existe no mundo. jurídica, de que comecei a me aperceber depois das conversas com Gi-
". na no outono passado. O direito trava uma guerra com a ambigüída-
Muitos dos rumos para essa mudança no currículo do primeiro
ano são óbvios. Em lugares mais progressistas do que a HLS, já há de, com a incerteza. No tribunal, o sistema de oposição, autor contra
turmas menores, mais oportunidades para os alunos escreverem e fa- réu, garante que alguém sempre vencerá, alguém perderá. Não impor-
zerem contato com os professores, diferentes formas de avaliação do ta que a justiça esteja igualmente com as duas partes, não importa que
desempenho dos estudantes, eleição para a revista de direito, sem qual- as questões sejam obscuras, o domín io da lei sempre será declarado.
quer relação com as notas. A própria Faculdade de Direito de Har- A lei e a certeza arbitrária de alguns de seus resultados são sem dúvida
vard já é um lugar muito diferente do que era em 1970, quando meus indispensáveis ao funcionamento seguro de uma sociedade em que há
amigos do colégio ali ingressaram. Não havia então a possibilidade de um conflito incessante exigindo solução.
passar a uma pergunta de um professor no primeiro ano; não havia Mas muitas dessas atitudes em relação à certeza parecem prejudi-
professores que, como Morris, tentassem ressaltar os aspectos huma- car o mundo do direito em geral. Muitas das instituições da educação
nistas gerais do direito; não havia exames no meio do ano letivo. O jurídica apresentam uma busca similar de certeza e definição, um de-
método de causa, que antes significava uma dieta de leitura em que sejo de subjugar o elemento fortuito, de não deixar nada ao acaso: o
não se tomava conhecimento de qualquer outra coisa. aceitou em anos processo de admissão, em que fórmulas estatísticas servem como base
recentes o acréscimo de artigos de revistas, de textos que fazem com para a decisão; a sala de aula da faculdade, em que todo o poder e
que o aprendizado do direito seja menos uma reunião de peças de um discrição se concentram no professor; as estratificações tão claramen-
quebra-cabeças e mais parecido com o verdadeiro trabalho de um ad- te definidas na população da faculdade, com os melhores alunos se-
vogado: uma comparação de novos elementos contra um contexto co- gregados na revista de direito e os professores a distância de todos ; e
nhecido. a noção da meritocracia, a tentativa de classificar e conceder privilé-
Sem dúvida as mudanças ocorrerão. Recém-saído do front, eu gios por algum padrão absoluto. Todas essas coisas equivalem, a meu
acrescentaria duas observações sobre detalhes específicos da instrução ver, a uma guerra contra a ambigüidade e a incerteza num contexto,
jurídica tal como a experimentei no primeiro ano. Naquela noite de em que não estão presentes as necessidades de um tribunal. Nem mes-
maio, os professores em geral concordaram com a vitalidade persis- mo a lei pode abolir a indefinição fundamental de muitas situações hu-
tente do método socrático. Não posso divergir diretamente, mas o pri- manas, mas nas faculdades de direito há bem pouco esforço para
vilégio peculiar que o método concede a um professor de invadir a analisar até que grau a opção humana é arbitrária. Aprendemos que
segurança de cada aluno na sala significa que, nas mãos erradas, pode há sempre uma razão, sempre um fu ndamento lógico, sempre uma ar-
se tornar um instrumento de terror. Nunca achei que minha educação gumentação . Muito do que acontece nas facu ldades e nas salas de aula
tenha melhorado por me sentir apavorado, como aconteceu muitas ve- de direito visa a instruir os estudantes em estratégias para evitar, igno-
zes em aula. Os professores de direito desculparam por tempo demais, rar e de certa forma subverter o inquantificável, o inexato, o que tem
em nome da liberdade acadêmica, o fracasso em conter seus colegas uma grande carga emocional, aquelas coisas que ainda afloram em mi-
nos limites básicos da decência. Devem formular e impor um código nha mente sob o rótulo de "humanas". Com o tempo, passei a enca-

216 217
-
-' -1 rar essa característica na educação jurídica como outras das forças que
poderi am me transformar numa pessoa inferior ao que eu gostaria de
er, o inimigo que vim enfrentar aqui.
Cursos corno os de Morris e Zechman , qu e enfatizam as incerte-
zas e contradições inerentes ao direito, são sinais do que considero pro-
gresso. Mas os estudantes ainda tomam conhecimento da operação do
direito apenas em segunda ou terceira mão , como é revelada em sumá-
ri os de causas preparados com tod o cuidado. Aprender a pensar como EPÍLOGO
um advogado deve envolver mais do que o domínio de uma habilidade
mental importan te, mas abstrata. Se eu fosse o rei do universo - ou
diretor da Faculdade de Direito de Harvard - complementaria a lei-
tu ra de causas com o uso de o utros recursos - cinema, teatro, narrati- 2/ 18176
va informal, contato autêntico com cliente, como é proporcionado nos
cursos práticos dos últimos anos - procurando cultivar uma sensibili-
dade ao contexto humano imediato em que a lei interfere com tanta As notas saíram no meio do mês. Apesar da calma e distância do ve-
fo rça. rão a reação costumeira aflorou no instante em que vi o envelope . Os
Reformas assim, como as outras que assomam no horizon te, pa- ded'os tremeram e experimentei novamente aquela sensação de insegu-
recem ser um bom presságio para tod os. Uma educação jurídica mais rança e ambivalência. Por favor, pedi , nada de Cs, mesmo enquanto
.. humana e humanista me parece muito mais adequada do que uma ins-
trução caracterizada pelo terror e a repressão dos sentimentos das pes-
acalentava a esperança de algo excepcional.
As notas eram as mesmas do primeiro período , metade As, m eta-
soas que, mais tarde, se tornarão as principais guardiães da justiça na de Bs. Ganhei um A no curso de Política, um B-mais em Propriedade;
sociedade. um A-menos de Nicky, um B de Perini. Boas notas, eu sabia; prova-
velmente me incluem em algum lugar do quarto superior da turma.
Sentia-me afo rtunado. E ainda me encontrava pressionado por um de-
sejo de mais.
Em poucos dias, Gina, Stephen, Karen Sondergard - tod~s e~-
palhados pelo país, nas férias de verão - telefonaram-me pel~ pnme1-
ra vez desde o término das aulas. As conversas foram Jov1a1s, mas
sempre acabaram nas notas. Os nomes e as notas dos colegas da Seção
2 que haviam chegado à revista de direito já eram conhecidos àquela
a ltura : Brodsky, Jenner , Sandy Stern, uma dupla dos quietos que eu
nunca poderia imaginar. Mas não Stephen. (Ele acertara sobre seu exa-
me e parecia que já começara a recuperar o s~nso de humor.) N_em K~le.
Nem Weiss. Nem Hochschild. Nem Sheanng. Nem eu. Muitos fica-
ram mais próximos do que eu, mas ainda assim me senti ludibriado.
O sentimento de inveja e repúdio deixou-me tonto por um dia.
Meu inimigo, aquele monstro voraz, ainda se debate em sua jau-
la. Acho que sempre terei de enfrentá-lo .
Sabendo disso, devo admitir que fiz com que muitos dos momen-
tos difíceis do último ano se tornassem ainda mais terríveis para mim .
Descobri muito da minha própria feiúra e aprendi mais do que queria
a respeito de sua profundidade. Suponho que isso também é parte d_a
educação. O que não significa que o primeiro ano na Faculdade de Di-
reito de Harvard faça com todo mundo o que fez comigo. Há muitas

2 18 219
..

pessoas que seriam bastante sensatas para correrem pela porta afora
depois de dois dias.
Mas, em primeiro lugar, não são essas pessoas que geralmente pas-
sam por aquela porta. São os que procuram compulsivamente alguma
vaga idéia de distinção os mais prová veis aspirantes à Faculdade de
Direito de Harvard; e, para nós, o ano vai cobrar seu tributo . De uma
forma curiosa, acho que as faculdades de direito, enquanto institui-
ções, at raem as pessoas menos apropriadas a cursá-las, para começar.
Somos homens e mulheres atraídos pelo estudo das normas, pessoas
com um gosto natural pela ordem. O primeiro a no, quando não co-
nhecemos a linguagem e não temos idéia de nosso progresso , quando
os professores parecem apenas apresentar enigmas todos os dias, vai
nos lançar inevitavelmente em para fuso. E em Harvard, a busca in-
cansável de projeção, que nos leva até lá, também estimula, depois que
chegamos, uma inevitável competição com os outros, apesar dos obs-
táculos, feiúra e equimoses, pelo que às vezes nos parece o centro de
tudo.
Assim nos tornamos vulneráveis e a faculdade não faz muito para
nos proteger de nós mesmos. Houve pessoas que conseguiram chegar
ao fim do ano com mais dignidade do que eu; outras com menos . Mas
todas as conversas que tive com meus amigos da faculdade durante o
verão , sempre voltaram, quase obsessivamente, à questão do que exa-
tamente nos acontecera. Alguma coisa sublime. Alguma coisa terrível.
Todos tivemos pelo menos um pesadelo de verão com Rudolph Perini .
E todos admitiram se espantar - e genuinamente se orgulhar - quan-
do pensavam nas pessoas que eram no outono passado.
Dentro de poucas semanas será outono outra vez e a Faculdade
de Direito de Harvard reabrirá suas portas para mais uma turma do
primeiro ano. Como ocorreu conosco, os novos estudantes irão exibir
suas glórias acadêmicas, faiscando como medalhas militares; estarão
com um apetite intenso pelo direito. Levarão seus enormes talentos,
energia, ambição, inteligência, charme. E levarão também seus inimi-
gos desconhecidos.
- Será muito estranho vê-los - comentou Gina, quando con-
versamos recentemente sobre o próximo ano letivo. - Eles serão os
primeiranistas.

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