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Faculdade de Direito da Universidade do

Porto

História do Direito
1ºANO
Professor Tiago Ramalho e Luísa Eckenroth

2021/2022
[Considerações introdutórias]

I. O Direito e a História

1. Noção operativa de História

Historia «- historía «- historéo


Procura ritmos e critica alguns momentos do passado com recurso a
FONTES HISTÓRICAS, mas não reconstrói quaisquer
acontecimentos, existe uma operação de escolha daquilo que se reconstrói
e do que não se reconstrói.
“Historia” vem do verbo “historéo” (a palavra “história” chega à língua
portuguesa através do latim, mas não é uma palavra latina. Chega ao latim
através do grego, com o significado de “procurar/examinar/investigar- ou
questionar, conhecer-, apenas num segundo momento significar
“narrar/contar/descrever” aquilo que se sabe).
História diz respeito à NARRAÇÃO de um conjunto de acontecimentos (é
cultivada a partir de histórias que são contadas), precedida de uma
INVESTIGAÇÃO, com o objetivo de controlar o seu rigor, a sua
verdade e correção (temos de verificar a veracidade).
A História não pretende, nem procura reconstituir qualquer tipo de
acontecimentos, mas sim existe alguma operação de escolha, apesar de
qualquer acontecimento poder ser narrado.
Acontecimento é o objeto da história, são historiografados. Por sua vez, a
narração e a investigação podem dirigir-se a qualquer acontecimento que
tenha ocorrido no passado.
2. As contingências da história.
Tudo pode ser objeto de investigação histórica, mas, uma vez que o
passado tem um excesso de fenómenos/acontecimentos, a investigação
histórica está sujeita a uma contingência temporal. Podemos investigar
qualquer acontecimento do passado, mas nem todos os acontecimentos
podem ser igualmente objeto de estudo.
O discurso histórico implica, necessariamente, uma seleção: nem tudo
pode ser estudado. Embora haja sempre uma pretensão de verdade, esta não
será absoluta, uma vez que o historiador está condicionado pelas
circunstâncias em que se encontra, nomeadamente a temporal (percurso
historiografado pretende iluminar o passado, atualmente há excesso de
fontes- aprofundado no ponto 3-; LIMITAÇÃO DO DISCURSO
HISTÓRICO*).
A História é um produto do espírito/reflexão/intelecto humano: mesmo que
não existissem contingências, existe a maior conveniência que o discurso
histórico fosse limitado. O Ser Humano não se pode dedicar
ilimitadamente à investigação historiográfica.
3. O «excesso» da História
Existe a maior conveniência em que o discurso histórico seja limitado, uma
vez que, a partir de certas “doses”, que podem variar de pessoa para pessoa,
o “alimento” da História pode ser danificado, prejudicando o resultado.
Jorge Luís Borges (séc. XX) «Funes, el memorioso», trata um sujeito que
tinha uma capacidade de memória ilimitada, tinha uma capacidade de
recordação prodigiosa, era alguém que não se esquecia de nada, tinha todo
o passado presente, mas não era capaz de refletir ou pensar, porque pensar
obriga-nos a esquecer diferenças, a generalizar, a abstrair. Não é imperativo
aumentar o nosso espectro de épocas a estudar, mas pelo contrário, fazer
sínteses, apagar o excesso. O trabalho do historiado será, portanto, escrever
e apagar sucessivamente.
4. Memória
De facto, é necessário encontrar um compromisso entre o que se
investiga e o que se escreve.
Enquanto com a História existe uma relação neutra, de uma forma
desapaixonada, com o passado, em que o historiador olha para o passado
com imparcialidade e independência. Com a memória, pelo contrário,
temos uma relação afetiva, limita-se ao que marca positiva ou
negativamente, pelo que implica SELEÇÃO (de tudo o que se narra no
passado).
Será impossível dizer quem somos, o nosso nome, a nossa idade,
basicamente, afirmar a nossa identidade, sem recorrer à MEMÓRIA.
A memória serve como ponto de ligação/filtragem/referência entre aquilo
que se aprende e aquilo que se esquece.
5. A História e a Memória
A memória é o critério sobre aquilo que vai incidir a atividade
histórica. Estudamos o que se encontra em relação connosco, o que está na
nossa memória. Estuda-se, portanto, a História da Memória do Direito.
A História ajuda a enriquecer a perspetiva que se tem, não só do passado,
mas igualmente do presente, uma vez que toca na memória coletiva, pois as
memórias são realidades presentes (memória coletiva), ajuda a determinar a
veracidade da memória. O estudo da História visa interferir no presente. A
História é libertadora, iluminadora, mas ao mesmo tempo, coloca em
perigo a memória, sobretudo nos aspetos político-identitários, exigindo
muita coragem, pois pode colocar em causa elementos do imaginário
coletivo.
A Memória ajuda a História a selecionar o que deve ser investigado. A
História ajuda a comprovar a Memória, filtrar a memória ou alterá-la
quando não corresponde à verdade histórica (ao estudo
historiográfico).
O passado não se altera- pretérito perfeito (Per-factum) - e, como um todo,
é invisível aos olhos do presente (Prae sum- estar perante). Embora o
passado não mude, a narrativa historiográfica que o presente tem do
passado altera-se.
6. História da Memória do Direito
«historia vero testis temporum,
lux veritatis,
vita memoriae,
magistra vitae» (De orat., 2, 36).
Tendo em conta a relação traçada, poder-se-á dizer que a cadeira podia
assumir este título. Recorda-se que há imensas gerações se vive em
sociedade organizadas, com magistrados, tribunais, entre outros. Mas a
sociedade nem sempre se organizar nos mesmo moldes.
A realidade em que vivemos tem uma natureza histórica específica- é
assim, mas podia ser de outra maneira. No seu processo, de formação, a
dada altura, a sociedade consciencializou-se do seu realismo cultural, por
exemplo, o Direito Português cujas raízes se encontram no Direito
Romano. Faz parte da memória colética uma ideia da origem das
instituições sociais que se encontra partilhada entre os membros de uma
dada comunidade, o que vai ser o objeto de estudo desta disciplina (a qual
existe particularmente a memória dos juristas. A História pretende
aproximar a memória do passado propriamente dito. A ideia de origem das
instituições sociais faz parte da memória coletiva, que se encontra
partilhada entre os membros de uma comunidade- tal como refere Cícero
em “De orat (citação inicial), “A História é realmente a testemunha dos
tempos, a luz da verdade, a memória viva, a mestre da vida.”.
7. Estrutura do programa
II. «Direitos» pré-históricos

8. As origens do Direito. Método


Ubi homo, ibi societas- Onde há Homem/ser humano
Ubi societas, ibi ius- Onde há sociedade (onde há regras de convivência,
que delimitam o espaço e o modo de interação para com os outros), há
direito
Como diria Aristóteles, o Ser Humano é um ser iminentemente social, é
um zoon politikon, um animal social feito para a participação em
sociedades. Se não socializar nos primeiros anos de vida fica com défices
cognitivos graves, é impedido de uma vida nos padrões da sociedade. Se há
sociedade, existem regras de sobrevivência que delimitam o modo de
interação com os outros.
9. Início da humanidade
Mesmo que se queira estudar o Direito do início da Humanidade, tal não é
plausível- “o sombrio abismo do tempo”, ou seja, quanto mais recuamos
no tempo, mais as fontes históricas escasseiam e o discurso histórico se
torna mais hipotético.
O Ser Humano vive no meio do tempo e desconhece a sua origem.
10.Caçadores-recolectores, sociedades segmentárias,
Protoestados
Usando disciplinas auxiliares, a História recorre a um método comparativo
com a arqueologia, a biologia, etnologia, física ou química, para “iluminar”
a História que não contém registo escrito (poucas fontes históricas).
Quem são os Caçadores-recoletores?
Surgiram até há cerca de 10 mil anos (até 12/10000 a.C.), foram as
primeiras sociedades humanas e eram fundamentadas em comunidades
de caçadores recoletores. O facto de a agricultura obrigar à
organização do tempo e espaço, permitiu a estas sociedades, que não
conhecia esta perspetiva, a não ter preocupações com o tempo/espaço,
cada dia era independente do seguinte, com 2 a 4 horas de trabalho diário,
estamos perante uma sociedade feliz (período onde a atividade principal
era a caça e recolha dos próprios produtos da Natureza, não se dedicavam
de maneira sistemática e organizada à agricultura // desenvolvimento
da agricultura mudou a perspetiva do mundo): o ser humano dá-se
muito bem neste tipo de sociedades, sem trabalho nem preocupações.
Uma sociedade nómada de caçadores recolectores não tem problemas
relativos à propriedade, porque ninguém tem propriedade significativa,
são nómadas, não têm forma de acumular riqueza e vivem conforme os
próprios frutos da natureza. O facto de serem nómadas não significa que
estejam permanentemente em movimento, estariam, entre duas e três
semanas num espaço.
Do ponto de vista social, trata-se de uma forma de organização de vida
comunitária, com coletivos de 20 e 50 pessoas (grupos pequenos), neste
sentido, todos têm entre si relações específicas e diretas: não existe
propriamente um poder político, embora possa haver protagonismo de
alguns dos seus membros. Quando há um conflito, a solução é a pessoa
a juntar-se a outro grupo. Neste modo de organização social, não pode
haver contração de matrimónio (casamentos) entre pessoas do mesmo
grupo, proibição de endogamia, é necessário que haja exogamia. Do
ponto de vista da relação entre homens e mulheres, é um modelo de
organização social com papéis de género claramente definidos: o lado
masculino dedicava-se à caça e o lado feminino à recolha de raízes,
plantas, etc., que servem de base à alimentação. Assistimos à centralidade
do princípio da reciprocidade- sociedades em que os seus diferentes
membros estão constantemente a realizar ofertas e a oferecer presentes aos
seus diferentes membros como forma de manutenção de paz e de equilíbrio
social (a partilha recíproca de tudo o que é encontrado).
Nestas sociedades não se pode falar de um Direito, no sentido atual,
neste tipo de sociedade, uma vez que a sua lógica é equivalente à lógica de
funcionamento de uma família, com as suas regras internas, mas sem o
grau de autonomização que adquirirá o Direito em formas de organização
mais complexas no futuro. Estamos na presença de índole familiar.
SOCIEDADE SEGMENTÁRIA
No Norte de África, na Mesopotâmia, no Norte da Síria e na Anatólia do
Sul (atual Turquia), surgiram as primeiras sociedades segmentárias (10000
a.C. até 3000/2000 a.C., até que se passou para os protoestados). Foi nestas
sociedades que surgiu a agricultura, o segundo momento assinalável para
fundação do Direito (sendo o primeiro a formação do Homem e o terceiro
a escrita), uma vez que trouxe a necessidade/promoveu a necessidade da
organização e planificação do tempo e do espaço (a sua repartição). A
agricultura criou uma relação entre o Ser Humano e a Natureza
(instrumentalização).
Estas sociedades funcionavam através de diferentes linhagens de famílias
(segmentos familiares) que se relacionam umas com as outras (foi o
sociólogo Durkheim que utilizou o termo “segmento”).
É no seio destas sociedades que se começa a colocar a questão da
propriedade (uma das suas principais relações que se estabeleciam entre
elas era a divisão da propriedade). Distinguia-se a propriedade dos bens
mais relevantes, que pertence ao grupo (grandes rebanhos- comunitário)
e a pequena propriedade, que era pessoal.
Não se tinha um Direito propriamente autonomizado- quando havia um
conflito, este era resolvido mediante a negociação entre as diferentes
linhagens que procuram encontrar uma solução consensual entre si. O
conflito é uma espécie de “rasgão” nas relações sociais que tem de ser
corrigido, mesmo que mediante a criação de uma nova forma de relação
entre as partes.
PROTOESTADOS
Surgem por volta de 3 mil anos a.C. (Mesopotâmia, no Egipto e China e
cerca de 2000 a.C. na Índia, Grécia e continente americano) e trata-se de
uma forma de organização que se aproxima do que serão os primeiros
Estados históricos. São caracterizados pelo início da diferenciação entre
governantes e governados, o início do que se pode chamar de poder
político, de decidir o conjunto e pela centralização do poder isolando o
indivíduo.
A consolidação do poder central é feita à custa da eliminação dos poderes
intermédios, ou seja, centralização e individualização são duas
realidades relacionadas uma com a outra- centraliza-se retirando o poder
de grupos intermediários (como a família) e isolando o indivíduo. O ser
humano deixa de ter um lugar essencialmente determinado pelos
grupos intermédios e passa a assumir um lugar isolado perante o
poder.
Quando o poder político reforça a autonomia do poder político, está ao
mesmo tempo a acumular poder porque elimina todas as instâncias
que balizam o seu poder. É aqui que surgem também os primeiros
tribunais, que decidem com autoridade alguns conflitos sociais, os
tribunais regulam as interações dos indivíduos, já que não gozam da
proteção das linhagens familiares. Desaparecidas as instâncias anteriores,
é necessário encontrar uma alternativa que permita essa solução. Contudo,
este processo não é linear: quando se consegue afirmar, tem estas
características, mas pode se desagregar.
III. Direitos da Antiguidade

11. Os Direitos da Antiguidade


A invenção da escrita muda a relação do Homem com o mundo, pois
permite que o discurso histórico se desenvolva e se torne mais rigoroso
(permite a sua conservação); o ser humano consegue criar artifícios que
durem perante o tempo e que tornam possível a sua reconstituição no
futuro. Permite um diálogo entre ausentes no espaço. Sem a escrita,
estaríamos reservados a registos orais, que estão sujeitos a uma adulteração
superior à escrita. Nós já temos uma relação com a memória própria com a
relação com a escrita. A memória dos países onde a escrita não está
desenvolvida, a memória oral é muito mais pujante e sólida (pouca
conservação para o futuro) que aquelas que têm e confiam na escrita.

III.1. Mesopotâmia
Situada entre o Rio Eufrates e o Rio Tigre (que estão entre o Iraque e o
Irão), surge a Mesopotâmia, que traz consigo a escrita e os primeiros
protoestados, bem como os primeiros textos jurídicos. Por volta de 3000
a.C. começa a surgir um conjunto de cidades de que é característica
uma certa especialização do trabalho (agricultura, artes manuais // início
da indústria). Uma parte da população dedica-se a estas tarefas (agricultura,
artes manuais, etc.), enquanto a outra parte se dedica à administração.
Estas cidades são independentes e tinham no seu vértice um príncipe,
líder político e representante da divindade (função de liderança política e
religiosa. Os vários príncipes disputavam entre si a proeminência, até que,
por volta de 2200 a.C., uma das cidades a adquire e acaba por concentrar o
poder, os SUMÉRIOS (império que vai dar lugar a uma desagregação de
poder).
A história deste espaço é algo cíclico na medida em que vive na tensão
entre o particularismo da centralização fundada na proeminência de um
centro de poder, ou no pluralismo de centros de poder.
12. Mesopotâmia: sumérios
Os Sumérios surgem por volta de 3 mil a.C.
No quadro mesopotâmico dá-se a tendência de a propriedade estar
concentrada nas mãos do templo que tinha funções político-religiosas. Ao
serviço do templo, que detém a grande propriedade fundiária (imóvel), está
grande parte da população.
O surgimento da escrita está relacionado com a necessidade de gerir os
recursos do templo. Havia um conjunto de funcionários que geriam os
recursos (funcionários burocráticos): escribas. Quanto à pequena
propriedade, esta podia ser particular (ex.: habitações, escravos, gados).
Na Mesopotâmia, o imanente e o transcendente misturam-se, não
havendo distinção entre os dois planos- é o mesmo cosmos que inclui a
ordem social e a ordem divina, é por isso que o príncipe pode ser visto
como uma representação da divindade. Quando o poder político
garante ordem pública, está igualmente a garantir ordem cósmica. Ele
próprio príncipe/rei, se legitima como alguém que foi escolhido de
forma divina.
Nesta altura de predominância suméria verificam-se já documentos que
registam operações jurídicas, nomeadamente contratos (em pedra entre
particulares- feitos pelos escribas-. Contratos de casamento, aquisição,
doação e empréstimo). Outrossim, a fonte legislativa mais antiga que
dispomos é o Codex Ur Namur (2100 a.C.), igualmente destas sociedades.
Não existe posse da versão original, mas existem versões posteriores que
refletem, ainda que de forma fragmentária, partes do que teria sido disposto
na versão original. A nossa memória jurídica legislativa recua a esta altura,
contundo, este código foi descoberto apenas no século XX.
A ideia subjacente ao modo como a sociedade é regulada neste código
foca-se na procura da justiça, como forma de impor a ordem divina,
representada pelo príncipe. Nestes primeiros textos legislativos, o rei é
visto como protetor dos mais pobres e dos mais fracos (dimensão
bastante particular do código, dimensão caritativa); rei apresenta-se como
protetor da ordem divina enquanto representante das divindades
próprias do povo.
Este império acabou por se desagregar.

13. Mesopotâmia (cont.): babilónios


Posta a desagregação de poder que procedeu o império sumério, são os
babilónios que ganham proeminência (1800-1500 a.C.). É desta
sociedade que provém o segundo texto legislativo fundamental que durante
muito tempo foi tido como o texto legislativo mais antigo da humanidade-
o Codex Hammurabi, que, segundo especialista, terá sido elaborado a 1686
a.C.
O quadro económico e demográfico em que surge este código é
caracterizado pela centralização da propriedade e o poder nas mãos do
rei. Tem a particularidade de estar conservado integralmente. A sua ideia
subjacente é a de que o rei é um garante da justiça (rei é o garante da
justiça, embora nessa interpretação, as ordens seculares e divinas
correspondem à mesma realidade). Para além disso, este código já
demonstra a preocupação com a publicidade do Direito- o direito deve
ser conhecido pelo público, pois é um elemento de defesa daqueles que
o pretendem convocar.

14. Mesopotâmia (cont.): outros casos.


Houve, no entanto, outros povos que tiveram predominância nesta época
como os Hitita, Fenícios, Edom, Moab, entre outros.

III.2 Egipto

15. Egipto
O Egipto é outro eixo de extrema importância do Oriente Antigo. A sua
civilização desenvolveu-se em redor do rio Nilo e, neste contexto, a
ordem social humana era vista como uma expressão da ordem social
divina. Note-se que o Egipto contemporâneo não é herdeiro do Egipto
Antigo, mas da civilização árabe.
O rei para os egípcios era um filho da divindade- divinização do rei- e
um garante da ordem política e religiosa, sendo que entre estas duas
esferas não existia distinção (a própria organização social é vista como
expressão da ordem divina, não é algo autónomo). A noção de Maat (ideia
de ordem ao nível individual social profissional organização do poder, e
religioso: há identidade entre direito, religião, moral, etc.- são expressões
da realidade divina) é identificada como o termo central para a cultura
egípcia. Tudo integra o mesmo cosmos.
No que diz respeito ao Direito, não é possível encontrar nenhuma fonte
de tipo legislativo, o máximo que se encontra é algum registo relativo a
contratos celebrados entre particulares. No entanto, temos a informação
de que o faraó, dentro da sua missão de conservar a ordem, emitia
decretos- tomava decisões- e elaborava leis.
Do ponto de vista económico, a cultura egípcia conhece um enorme
nível de centralização. Ao contrário da Mesopotâmia, tem um carácter
mais agrícola que urbano e a propriedade fundiária encontrava-se
concentrada nas mãos dos reis. Surge a figura da fundação, que é
definida como afetação de certos bens a um determinado fim: a quem
institui uma fundação, destinava a uma parte dos seus bens e
autonomiza-os para cumprirem os seus fins. No Egipto, esta figura foi
amplamente utilizada por motivos religiosos para garantir o culto de
defuntos- havia a preocupação de que, após a morte, devia ser feito o culto
de memória da pessoa em questão. Temendo que os descendentes não
cuidassem da memória, eram feitas ofertas a determinadas instituições
que praticassem esses atos de culto.
A principal informação a reter é que, à semelhança da civilização
mesopotâmica, temos a ideia de que a sociedade e a religião, ordem social
e divina, constituem uma mesma unidade.

III.3. Israel

16. Israel
A cultura judaica foi a única cultura antiga que perdurou até ao
presente. Naquilo a que se chama hoje de cultura israelita, podem
identificar-se dois elementos: elementos propriamente relativos à sua
origem religiosa e elementos relativos ao seu surgimento histórico.
Como é que surgiu o Israel na História? Como se manifestou?
As fontes de que dispomos permitem-nos identificar Israel enquanto
comunidade política por volta do século X a.C. Por esta altura dá-se uma
unificação política de algumas tribos (12 tribos) que se veem
descendentes de Abraão, Isaac e Jacob, ou Israel.
Esta comunidade começa um processo de unificação num período histórico
em que as grandes civilizações do seu tempo atravessavam algumas
dificuldades, nesta época da Mesopotâmia nenhum poder demonstrava
uma predominância indubitável.
A quem se deve esta unificação? Uma primeira tentativa fracassada
deve-se a Saul, já David consegue a unificação, continuada pelo seu filho
Salomão.
A partir desta última figura, este reino que unificava as várias tribos dos
descendentes do Israel divide-se me duas partes: uma que se vem a
chamar Reino de Israel, e une 10 tribos, e outra que se vem chamar
Reino de Judá, que une 2 tribos. Por sua vez, o Reino de Israel, cuja
capital era na Samaria, este cai a 722 a.C., sendo destruído pelos
Assírios. Resta apenas o Reino de Judá, que veio, também, a cair em 587
a.C. às mãos dos Persas (da Babilónia). Nesta queda (desaparece Israel
enquanto poder político), a elite do povo judaico é deportada para a
Babilónia. Esta deportação (cultura judaica não desaparece aqui) motiva o
povo judaico a reler a sua história e ter uma interpretação teológica da
mesma, em que quando se portava devidamente era recompensado com um
espaço autónomo. Assim, daquilo que era comunidade política e religiosa,
nasceu uma religião que conseguiu desvincular-se do elemento político
ligado especificamente ao espaço do atual Estado de Israel.
Israel nunca mais existiu num estado autónomo até ao século XX. Hoje,
em Israel, em assuntos de natureza familiar, existem tribunais rabínicos,
nos quais, este Direito, formado no tal exílio continua a perdurar até ao
presente.

IV. Grécia

17. A cultura grega


A partir dos séculos 9/8 a.C. surge uma comunidade de índole
cultural/religiosa, a Hélade, o mundo Grego Antigo.
A cultura grega merece maior destaque por um conjunto de motivos:
 é uma ponte entre as civilizações antigas e as contemporâneas;
 a expansão romana levou a que determinado momento entrasse em
contacto com a cultura grega;
 do ponto de vista institucional, as cidades gregas adotaram uma
forma de organização muito diferente daquela que prevaleceu
em Roma, o que nos permite contrastar estas duas realidades.
As origens do povo são muito incertas. Ainda assim, os especialistas
sugerem que as origens da cultura grega se encontram em 3 lugares: na
Ásia menor (atual Turquia), em Creta e no espaço atual da Grécia.
18. As primeiras configurações políticas gregas
Esta comunidade nunca teve, no entanto, unidade política estável e, só a
partir de cerca de VII e IX a.C. é que se começam a manifestar aquelas
composições políticas que serão características desta civilização.
A forma de organização política comum a todas as cidades designa-se por
pólis, no plural, poleis. De facto, o que é singular no quadro grego é que
nunca teve uma forte e estável unificação política, como já foi referido
anteriormente (não esquecer que os seus fatores de unidade tinham índole
cultural ou religiosa).
A Grécia era chamada pelos próprios como Hélade e, na Hélade, viviam os
Helenos, que se pensavam diferentes dos outros- a que chamavam de
bárbaros- unidos apenas pelo fator linguístico, apesar de nunca ter
existido uma língua completamente comum a toda a Grécia, mas sim
diferentes dialetos com matriz/raiz comum, trata-se de uma língua com
diversas colorações, isto expressa a diversidade das poleis. Para além
disso, partilhavam obras literárias- os poemas de Homero, a Ilíada e a
Odisseia (presentes no mundo grego sobretudo sobre forma oral), festivais
desportivos e culturais comuns às diferentes poleis- como os Jogos
Olímpicos e os Jogos Ístmicos, e centros religiosos comuns- o mais
importante era o Oráculo de Delfos. Portanto, a unidade na Grécia nunca
foi política, quando muito um substrato cultural em parte comum e depois
cada uma das poleis faria o seu desenvolvimento específico, daí que não se
aborda apenas Atenas, mas também Esparta.
Um fundamento essencial da cultura grega é a diferença para com os
bárbaros. Na pólis, os gregos viviam em liberdade, não individual, mas
coletiva, em que a pólis educa os cidadãos, e os cidadãos orientam a
cidade.
PÓLIS
Do ponto de vista geográfico, a pólis compreendia vários núcleos
urbanos (cidades) e vários espaços rurais em redor desses núcleos
urbanos. Para designar o tal núcleo urbano, a língua grega não utilizava a
palavra pólis, mas sim astu, e, latim urbs. A pólis engloba, assim, quer a
parte urbana quer a parte rural, sendo que o latim apelida esta
comunidade de ciutas.
No centro da cidade encontrava-se a ágora, onde se acreditava que habitava
o Deus protetor daquela cidade. A dimensão quantitativa da pólis, entre
431 a.C. e 350 a.C., era de 430 mil pessoas e 215 mil, respetivamente.
Contudo, cidadãos só se consideravam 60 mil e 30 mil (cada pólis definia-
se pelo conjunto de cidadãos, por exemplo, o nome da pólis ateniense era
atenienses; os gregos distinguiam-se de todos aqueles que não eram gregos,
e, depois, de todos os que não eram da sua pólis). Como expressão da
identidade da pólis, encontravam-se as Leis “nomos, nomois” (também
lhes confere diferente estruturação). As nomoi de cada cidade permitiam
conhecer a organização política de cada pólis- a politeia, e instruir os seus
cidadãos a decidir o futuro governo da pólis. No fundo, as Leis de cada
cidade são quem educa e forma os cidadãos. As poleis não são
reprodução do mesmo modelo: cada uma, de acordo com os seus aspetos
históricos, sociais e culturais, defendia a sua organização política.
Para um grego, ser cidadão, é tomar parte da pólis. Toda a pólis precisa
dos seus cidadãos (polites), fundamental para o mundo grego.
Para além destes aspetos, a pólis procura a autarcia (autos + arke), isto é, o
ideal da pólis é conseguir reger-se a si própria, ser independente/autónoma
enquanto comunidade (não só a nível económico, mas também político;
porém, a nível económico nunca foi atingido). Uma vez que as poleis
tinham por ideal a autarcia, quando a população se expandia a um nível que
se tornava difícil ser subsistente para toda a população, parte desta partia
para formar uma nova pólis, em forma de colónia, mantendo um certo
vínculo com a primeira.
No entanto, vale a pena notar que as poleis são um fenómeno próprio de
todo o mundo grego e, portanto, a organização preferida foi esta, mas, se
cada uma é autónoma, significa que cada uma se pode desenvolver de
modo diferenciado.

ESTRUTURA POLÍTICA DA PÓLIS


Só começamos a ter informações mais desenvolvidas relativamente a este
aspeto por correspondência ao século IX e VIII a.C. É neste período que as
instituições políticas começam a aparecer com mais clareza. As poleis,
depois de numa primeira fase terem estrutura monárquica, passaram para
modelos aristocráticos ou, noutras poleis, para modelos democráticos (caso
de Atenas). Aristocracia (poder na mão de poucos) significa
etimologicamente “o poder na mão dos melhores” (aristos = melhor +
kratos = poder).
As primeiras poleis contam com 3 tipos de órgãos políticos:
1. conjunto de magistrados, agentes que exercem funções públicas (não
no sentido obrigatoriamente judicial);
2. um conselho de anciãos, juntava os cidadãos mais ricos e de idade
mais avançada, cabia-lhes tomar as decisões mais relevantes; é a
grande autoridade- aqui, no centro do poder, predominam as famílias
preponderantes;
3. uma Assembleia, que reúne os restantes cidadãos proprietários à qual
cabe a função de votar leis por aclamação (sem haver
necessariamente deliberação) e ratificar as propostas que são feitas
pelos magistrados.
19. Lacedemónia. Organização política
Na antiguidade grega, os Lacedemónios suponham que as nomoi foram
criadas por Licurgo no século VII a.C. Para Esparta, estas nomoi tinham de
se conservar com o máximo cuidado, o projeto devia ser mantido
integralmente, sem qualquer alteração, privilegiando acima de tudo a
estabilidade. Trata-se de uma organização política com um nível elevado de
institucionalização.
Esparta foi a pólis que mais depressa chegou a instituições políticas sólidas
e estáveis.
Os princípios fundamentais de Esparta previam que apenas um grupo muito
restrito de pessoas podia aceder à cidadania (apenas 9 mil e 10 mil
cidadãos, este número deve ser igualmente estável), uma vez que esta
minoria, vista toda igual entre si, é quem governará todo o território. Não
descurando o princípio da igualdade entre cidadãos, claro que as famílias
mais ricas teriam mais protagonismo dentro desta organização política.
A Lacedemónia teria uma diarquia, 2 reis que exercem o poder em
conjunto (os reis eram Basileus) tendo, porventura, um poder sobretudo
simbólico. Por sua vez, era necessária a cooperação entre ambos os reis
para poderem agir. Limitavam o poder um do outro: em tempos de paz,
resolvem litígios em questões de índole familiar e religiosa, em tempos de
guerra, são chefes militares que têm direito de vida/morte sobre todos. No
entanto, estão sob a vigilância de dois éforos, nesta altura de campanha
militar.
Para além dos reis, existe também:
 Conselho dos Anciãos (Gerousia)- 30 homens do sexo masculino
com mais de 60 anos escolhidos por aclamação da forma vitalícia.
Os próprios basileus juntam-se a estes, compondo este órgão mais
soberano/poderoso com funções legislativas, judiciais para crimes de
maior gravidade, e pode condenar à exclusão da cidadania e
condenar à morte;
 Apella, que era a assembleia integrada pelo conjunto de cidadãos
quando têm mais de 30 anos e receberam a educação espartana
prescrita pela Lei (e não tenham perdido os direitos políticos). Tem
funções deliberativas e de aprovação. Em teoria, esta assembleia
decide sobre a guerra e a paz, mas a Gerousia pode rejeitar as suas
deliberações. Esta assembleia é convocada pelos éforos.
 Éforos são cinco magistrados que desempenham funções executivas.
Presidem à assembleia, podem propor leis subordinadas (as que não
são fundamentais da cidade), são juízes em questões menos
relevantes. Têm mandato atual. Estes éforos também controlavam a
polícia secreta, a crypteia: este serviço secreto de operações sociais
era formado por jovens do sexo masculino que fazia o “trabalho
sujo”. Fazia parte da educação masculina, ser formado da educação
da cidade, ter feito parte desta polícia, cujos atos de homicídio eram
decorrentes.
Um dos ideais das poleis gregas, é que as nomois formem/criem/construam
os seus cidadãos. A pólis forma o cidadão para que posteriormente o
cidadão sirva a pólis. Para os gregos, o cidadão realiza-se na pólis, que por
sua vez modela o ser humano.
20. Lacedemónia. Organização social
No topo da estrutura social estão os cidadãos lacedemónios. Para ser
cidadão é necessário ser filho de cidadãos lacedemónios, estar num grupo
com atividades e refeições comuns, e submeter-se à educação e disciplina
da cidade. Se não o fizesse, ou se desertasse, perdia os direitos políticos.
Durante toda a vida, até aos 60 anos, eram organizados do ponto de vista
militar.
Os primeiros 6 anos eram passados com as mães; dos 7 aos 12 anos
recebiam treino desportivo com crianças da mesma idade, já retirados à
família e, a partir dos 12 anos, os treinos tornavam-se mais exigentes, era
dada menos alimentação e vestuário simples, isto para que se habituassem a
viver em situações de grande dificuldade. Aos 19 anos tornavam-se
combatentes e aos 24 anos combatentes de primeira linha de batalha. Aos
30 anos adquiriam o direito de participar na assembleia e podiam ter casa
própria, até lá viveria num aquartelamento militar. O homem não tem
profissão, é um guerreiro colocado ao dispor da pólis. Até aos 40 anos são
renumerados pela pólis, depois disso recebe uma porção de terra que pode
explorar para o seu rendimento. Ser cidadão é estar sujeito a um estilo de
vida exigente.
Num segundo nível estariam os perieques. Igualmente lacedemónios, mas
não eram cidadãos, dedicavam-se ao comércio e à indústria, não tinham o
reino duro dos cidadãos, mas também não tinham direito políticos.
No fim estariam os hilotas, estão na base da organização social da
Lacedemónia. Eram os escravos da pólis enquanto coletividade (não eram
escravos pessoais dos cidadãos). Podiam eventualmente adquirir a sua
liberdade. Eram em grande número e por isso grande fonte de instabilidade,
havia o risco recorrente de revoluções. Usavam-se estratégias violentas
para garantir a estabilidade como os serviços secretos e os massacres
periódicos.
Na Lacedemónia, o fator de estabilidade era de natureza militar- a
capacidade bélica dos seus cidadãos garantirem a ordem pública, daí que
Esparta tenha chegado a ser a pólis mais forte do mundo grego por volta do
ano 400, tendo rivalizado com Atenas, mas foi uma pólis incapaz de
encetar reformas políticas e acabou por desaparecer.
Apesar da sugestão do totalitarismo, este regime correspondia a uma forma
de organização política na qual aqueles que estavam sujeitos às piores
condições eram os próprios cidadãos. É difícil encontrar um grau de
politização tão grande da realidade, na medida em que toda a sociedade
estava tão organizada/maquinada para um único fim.
O autor Jacques Ellul afirma que “O conjunto de organização política e
social (da Lacedemónia) é certamente o mais racional, o mais organizado, o
mais eficaz que o mundo jamais conheceu. Mas supõe a destruição de todos
os valores intelectuais e morais, com exceção da coragem”.
Este regime é totalmente capaz de responder tecnicamente ao seu fim, sem
se questionar. Abdicando dos valores, eliminados da esfera pública. Aqui
verificamos o perigo de reduzir a sociedade a um objeto de eficiência, de
técnica.
ATENAS E ESPARTA
Os atenienses aperceberam-se que não existiu legado cultural em Esparta
(tal como foi referido anteriormente, no mundo antigo, Esparta e Atenas
rivalizaram uma com a outra- Atenas, do ponto de vista cultural, é
incomparável). Sem filosofia, tragédias/comédias. Não era uma sociedade
preparada para a deliberação e o debate, mas antes para o combate.
Apesar do regime totalizar a vida quotidiana, difere dos regimes totalitários
modernos, na medida em que não se personaliza em chefes, mas em nomoi.
Quem acarta com o grande custo de fazer viver pólis são cume de
sociedade, os cidadãos.
Os totalitarismos modernos foram sempre vistos pelos regimes
contemporâneos como odiosos, enquanto Esparta e o seu modo de vida era
respeitada pelas demais poleis.

21. Atenas. Democracia ateniense


Sólon foi aquele que, pela sua legislação lançou as bases do que seria
posteriormente a democracia ateniense. Introduziu um conjunto de
reformas sociais que permitiram o desenvolvimento democrático. Era
considerado um dos sete sábios. Este também compôs versos para as
pessoas irem interiorizando os princípios legislativos propostos.
No mundo antigo, se Esparta e Atenas competiam pelo protagonismo
político, Atenas teve a incontestável predominância cultural. Entre 509 a.C.
e 322 a.C. democracia ateniense. Até 322 a.C., Atenas teve uma fase
aristocrática, também tirânica, e, fruto de um conjunto de reformas, acabou
por enveredar para uma forma de organização democrática, apesar de num
sentido bastante diferente das democracias contemporâneas.
O princípio base da democracia ateniense centrava-se no facto de que se a
pólis é o conjunto dos cidadãos, então a soberania pertencia-lhes,
exercendo-se sobre a esfera pública (e na esfera masculina, exercido pelos
homens). Há uma rigorosa separação entre a esfera pública e a esfera
privada- a cidade terminava na “porta de casa”, isto significando que o lado
feminino da sociedade não está representado na esfera pública.
 Os limites exteriores do poder público são constituídos pelos poderes
dos particulares sobre as suas vidas individuais- a política exerce-se apenas
e somente no espaço público. Para este efeito, Hannah Arendt comenta que
“para o mundo grego, a realidade familiar era dominada pela necessidade; a
política será a esfera da liberdade”. Necessidade no sentido de que esta era
dirigida tendo em conta a satisfação das necessidades básicas da pessoa
(alimentação, proteção e reprodução); a política era a esfera da liberdade
que ultrapassa a satisfação das necessidades elementares, mas que não deve
interferir no espaço privado de cada família.
INSTITUIÇÕES DA DEMOCRACIA ATENIENSE
 Ecclesia: Igreja (surge daqui), é a assembleia geral de todos os
cidadãos, contudo apenas 10% dos cidadãos é que participavam, por
opção própria, pelo que, para as decisões mais importantes teriam de
estar pelo menos 6000 cidadãos a votar (normalmente estariam entre
1000 e 2000). Este órgão político delibera sobre questões financeiras,
alianças políticas, guerras e paz; tem competências para designar os
magistrados (executores das decisões da assembleia e uma espécie
de equivalente ao poder executivo); tem alguns poderes judiciais
(delibera sobre os crimes mais graves, por exemplo) e pode deliberar
sobre a medida preventiva de “ostracismo”. Esta assembleia, como é
próprio da cultura grega, reunia ao ar livre e é um órgão de governo
direto, o que significa que, na Ecclesia, não existe uma lógica
representativa.
OSTRACISMO
Em Atenas, todos os cidadãos tinham o mesmo direito de falar na Ecclesia.
Era temos dos atenienses que, através da sua capacidade retórica, um
cidadão atingisse um ascendente ou influenciassem os outros de tal modo
que colocariam a democracia em perigo. Para evitar esta situação a
Ecclesia tinha a possibilidade de banir o cidadão durante 10 anos, para
perder a sua influência, mas mantinha os seus bens. Este é o meio de defesa
da democracia ateniense, mas não tem qualquer poder relativamente à sua
instrumentalização, ou seja, pode ser utilizado abusivamente.
Há um autor que refere que todo o sistema jurídico assenta em pressupostos
que não pode controlar, isto é, o sistema jurídico regula a organização do
sistema político, mas assenta em pressupostos pré-políticos que ele próprio
não consegue definir. Na verdade, não podemos ter um sistema de poder
político que se afirme contra o abuso que seja praticado pela maioria dos
seus cidadãos, um sistema jurídico só se consegue afirmar numa
comunidade em que a maior parte dos seus membros o defende.
Existiram, contudo, protagonistas na democracia ateniense: Péricles, no seu
esplendor, dirigia-a, mas fazia-o com prudência, nunca chamando
excessiva atenção sobre si (por exemplo, só discursava às vezes na
Ecclesia). Este esquema da democracia ateniense objetiva colocar cada um
no seu justo lugar, de forma a não ser incentivado a ignorar a posição dos
outros cidadãos.
 Boule: constituída por 500 cidadãos com mais de 30 anos designados
por sorteio, calcula-se que 1 em 2 cidadãos de Atenas tenha, em
algum momento, feito parte da Boule. Seria uma espécie de órgão de
direção da Ecclesia, mas sempre com a preocupação de não se
sobrepor à mesma. Era um órgão mais regular, com comissões
especializadas sobre vários aspetos da vida de Atenas, que se
debruçava sobre a globalidade dos assuntos da Ecclesia, mas, na
realidade, quem detinha o poder era a Ecclesia (a Boule também
detinha alguns poderes executivos). A Boule tinha uma maior
capacidade de estudar os diferentes assuntos que a Ecclesia não
tinha, coloca-se a questão de quem dirigirá realmente a democracia:
quem pensa as questões, ou quem as ratificará? Quem tem mais
poder jurídico (Ecclesia), quem menor capacidade de refletir sobre as
questões da política ateniense, e vice-versa.
 Magistrado: executavam as decisões da assembleia, detinham um
papel subordinado à mesma. As magistraturas eram anuais para
evitar a ascensão de poder e cada um deveria prestar contas da sua
atividade. Os líderes militares, os estrategos, eram eleitos por razão
de bom senso. O mais alto magistrado era o Arconte. Não havia
algum tipo de administração pública além dos próprios magistrados
particulares, no entanto, podiam-se servir dos escravos público
(escravos da cidade).
 Heliaía: tribunal que assumiu bastante destaque e era constituído por
6000 cidadãos designados à sorte, entre os que se voluntariavam, e
de dividiam em números de 201, 501, 1501 até 2501, consoante a
complexidade do caso apreciado- lógica semelhante ao sistema de
júri. Este tribunal estaria reunido cerca de 150-200 dias por ano e
decidia por votação- havia uma série de discursos que eram feitos
por quem acusava e por aquele que tinha sido acusado e no fim os
cidadãos votavam.
PROBLEMA DESTE SISTEMA
Este sistema era impeditivo do desenvolvimento de jurisprudência, ou
seja, um discurso acerca da interpretação e aplicação do Direito uma vez
que não precisavam de argumentar, mas de apenas votar.
Neste contexto, surgem os sicofantas, que viviam da ameaça da
propositura de ações judiciais. No fundo, a preocupação geral da
democracia ateniense é de permitir a cada cidadão a participação efetiva
no poder. A isonomia (igualdade perante a lei; termo utilizado antes de
“democracia”) está na base deste sistema, que não está preparado para
se defender de uma instrumentalização. Não existia a ideia
contemporânea de separação de poderes, mas de uma separação de
órgãos (exercidos pela mesma parte da população, as mesmas pessoas
podiam ser titulares de diferentes órgãos
22. Atenas. Organização social
Os filhos de cidadãos atenienses com mais de 18 anos eram cidadãos que
estariam no topo da hierarquia social de Atenas. São eles que participam no
poder político, uma vez que este é a expressão da soberania desta
comunidade de cidadãos.
De seguida, temos os metecos, estrangeiros com residência permanente em
Atenas. Têm direitos, dedicam-se às atividades técnicas (por exemplo,
cerâmica), mas não têm direitos de participação política. Algumas das
maiores figuras da pólis de Atenas são metecos, por exemplo, Aristóteles e
Hipócrates.
No último nível temos os estrangeiros que, apesar de gozarem de proteção,
não tinham direitos. Os estrangeiros apenas devem estar em Atenas a título
transitório, se quiserem permanecer deverão ascender ao estatuto de
metecos.
No fundo desta ordem social estariam os escravos. Na escravatura
moderna, o escravo é olhado somente como um instrumento de trabalho, no
mundo antigo também não teria direitos, no entanto a sua vida não poderia
ser colocada em risco pelo seu senhor. Por sua vez, tudo dependeria da
atividade exercida pelo escravo: se alguns exerciam atividades duríssimas
(por exemplo, trabalhar nas minas), outros tinham profissões especializadas
(professores, médicos, cozinheiros, etc.) e gozavam de grande estima. A
escravatura podia cessar e o escravo passaria a meteco. Uma família
regular teria entre 3 a 5 escravos e uma família abastada até 20 escravos. A
lógica da escravatura familiar antiga seria semelhante ao nosso conceito de
criada de servir.
Para além destas categorias sociais estão as mulheres e os filhos.
As mulheres encontravam-se excluídas do espaço público de deliberação
política, que se encontravam em clara subordinação relativamente aos
homens. Contudo esta interpretação é excessivamente linear de acordo com
leituras mais recentes que chamam a atenção para que a lógica da
sociedade ateniense é da divisão de espaços tipicamente femininos e
masculino, isto é, as mulheres participavam no espaço de deliberação
pública, mas também haveria espaços femininos nos quais os cidadãos não
participariam plenamente, nomeadamente em questões religiosas e
familiares em que o papel feminino era assinalável. Ao mesmo tempo, as
obras gregas comportam personagens femininas de tal força e poder que é
contraditória com o preconceito contemporâneo perante o espaço da mulher
no mundo grego.
O estatuto dos filhos seria de sujeição ao poder dos pais, mas,
adicionalmente, há uma genérica liberdade de provocação intensiva de
morte dos embriões, pois podem exigir (os maridos) que as mães abortem e
havia a possibilidade de cometer infanticídio (podiam ser mortos ou
abandonados pelos seus pais- “direito de exposição”) até 5 ou 7 dias após o
seu nascimento.

23. Atenas. Algumas noções da cultura grega


O que nos fica da cultura grega é uma ideia de comunidade ligada à pólis
como comunidade na qual o ser humano existe e se realiza, ou seja, temos
aqui uma noção política da sociedade, que existe enquanto palco político.
Nesta sociedade, a estrutura fundamental é dada pelas nomoi, que
expressam o carácter sui generis (carácter único, irrepetível) de cada pólis e
determinam a função dos seus cidadãos. Esta ideia base pode ter múltiplas
concretizações: as duas mais acabadas são as de Esparta e Atenas, duas
poleis provindas do mesmo espaço de cultura, mas com características
muito diferentes.
No espaço grego dá-se a “descoberta” de que o ser humano tem a
capacidade de criar formas de organização social distintas e instituições
para o fim que entendem- o ser humano não está necessariamente preso,
sujeito e acorrentado às tradições culturais existentes. A cultura grega
acaba, contudo, por desaparecer no contexto da expansão imperial de
Alexandre, o Magno, na parte final do século IV a.C. A esta altura já
existia outra cidade na sua ascensão- Roma, fundada a 753 a.C.

Parte I – Elementos de História do Direito Romano

V. As origens do Direito Romano

[Ab urbe condita 753 a.C. – Lex Duodecim Tabulorum c. 450


a.C.]

24. As origens de Roma. Lenda

Tito Lívio em Ab Urbe Condita (Desde a fundação da cidade) socorre-se de


lendas para colmatar o vazio do conhecimento. Desde a fundação da
cidade, em 753 a.C. por Rómulo e Rémulo. Estas lendas existem como
imaginário coletivo, e correspondiam a uma realidade do povo, por mais
que não tenha realmente acontecido.
Em linhas gerais, a lenda de Roma é de que a cidade fora fundada por
Rómulo, em 753 a.C. Do ponto de vista histórico, sabe-se muito pouco,
uma vez que quando uma cidade nasce, ninguém antecipa qual será o seu
futuro e, portante no momento de fundação da cidade de Roma não havia
preocupação em registar fontes históricas do processo que conduziu ao seu
sucesso. No entanto, apesar das muitas dúvidas sobre a civilização pré-
romana, é legítimo deduzir que Roma terá sido fundada em 754 ou 753
a.C., na planície do Lácio, por um conjunto de povos que partilhavam um
sentimento político de pátria universal.
25. As origens do Direito Romano. História

Sabe-se, efetivamente, que Roma está bem localizada, no cruzamento de


duas vias de comunicação- fluvial, o rio Tibre, e terrestre, a via salaria.
Sabe-se, também, que no século VIII a.C., existia já uma comunidade
localizada naquele espaço. Seria uma pequena cidade, um conjunto de
cidadãos que se agruparam e organizavam a sua vivência em conjunto
(ciutias), aliás, Roma, no seu período inicial, tratava-se de uma comunidade
predominantemente agrícola, em relação ao mundo helénico.
A cidade começa a organizar-se cerca de 600 a.C. e do ponto de vista
urbano (urbs), servia sobretudo como um lugar de encontro para a
realização de trocas. Numa sociedade fortemente ruralizada, o núcleo
urbano funciona como um mercado- forum- em que os diferentes
indivíduos conviviam e se encontravam para efetuar trocas entre si.
26. As origens do Direito Romano. Instituições sociais

Se para o mundo grego, a ideia de criação política é central, para o mundo


romano, a ideia de continuidade institucional, de evolução na continuidade,
uma evolução paulatina é fundamental. É necessário ter em conta esta
posição conservadora de conservação das instituições sociais.
Do ponto de vista da organização social, a sociedade está dividida em dois
grupos: os patrícios (membro mais ricos e poderosos), uma espécie de
nobreza aristocrática romana e a plebe (os membros do povo comum).
Do ponto de vista privado, a sociedade está dividida em famílias que são
encabeçadas pelo chefe da família, o paterfamilias (o Direito Romano
expressa a lógica de que as relações jurídicas têm lugar, em princípio, entre
os diferentes chefes de família). Cada paterfamilias tem sujeitado ao seu
poder três grupos de pessoas: a mulher, os filhos e os escravos, e ainda um
conjunto de bens, o património familiar.
O paterfamilias é uma espécie de soberano e, por esta razão, é a única
pessoa que é considerada sui iuris (soberano sobre a família), isto é, só está
sujeito ao seu próprio direito, ao direito sobre si. Já as mulheres e os filhos
são considerados pessoas alieni iuris, ou seja, sujeitos ao direito de outrem.
Os escravos não são considerados pessoas, mas são considerados objetos de
relações jurídicas, como qualquer outro bem.
O poder do paterfamilias vai adquirindo designações próprias: sobre a
mulher, manus; sobre os filhos, patriapotestas; sobre os escravos,
dominium. O direito civil romano avaliará as questões entre paterfamilias,
tudo o resto serão relações intrafamiliares alheias ao Direito.
Por sua vez, este é apenas o regime jurídico, mas para além disso existem
regras morais, religiosas e culturais que limitavam o exercício deste poder,
ou seja, quando o Direito Romano regula diferentes posições jurídicas, não
está com isso a dizer que os seus titulares terão toda a liberdade para as
poder exercer, até porque há vínculos de natureza não jurídica que vão
conter o exercício das próprias posições (limitavam o poder do
paterfamilias- a ideia de arbitrariedade e liberdade dentro dos limites do
Direito é uma ideia moderna).
Um conjunto de famílias constituía uma gens (gente), que era uma figura
da cultura romana de alguma relevância.
(o paterfamilias podia desfrutar da vida e da morte dos seus filhos)
O QUE SE ENTENDE POR CLIENTELA
A clientela era uma figura entre o que é extrajurídico e o que é jurídico. É
uma forma de relação entre pessoas, própria da cultura romana, mediante a
qual um patrício, na qualidade de patrono, facultava certos serviços/bens
aos seus clientes, que, em contrapartida, lhe prestavam obediência e certos
serviços. Tem uma lógica de lealdade pessoal, de criar uma relação
permanente de auxílio entre o patrono e os clientes.
Na Lei das XII Tábuas, há uma referência específica às relações
clientelares, o que prova que em Roma esta modalidade de relação goza de
alguma proteção jurídica (Tábua VII, 14).
A clientela é tão relevante no mundo Antigo uma vez que a sociedade não
estava tão organizada para a prestação de serviços essenciais e cada um dos
membros da comunidade dependia de relações pessoais para poder
sobreviver. Assim, a clientela é uma forma de relacionamento humano que
visa aumentar a probabilidade de quando alguém precisar de auxílio,
outrem o prestar.
Para os romanos, aquele que seria o maior valor era a fides – a confiança, o
honrar a palavra, pois é um fator que ajuda a sobreviver num contexto em
que o apoio fundamental do ser humano são os outros com quem se
relaciona de forma imediata.
27. As origens do Direito Romano. Organização política

Em Roma, durante a monarquia, o poder estava divido em três grupos: o


rei, o Conselho de Anciãos- o Senado-, e as assembleias populares. Estas
últimas separavam-se em comitia curiata, ligada à religião, comitia
centuriata e comitia tributa (algumas destas assembleias foram formadas
para fins militares).
O rei (Rex) era um monarca vitalício que dirigia a civitas e que cumpria
funções religiosas, militares e judiciais- concentrava o exercício das
funções de liderança nas matérias centrais da comunidade;
O Conselho dos Anciãos (Senado)- apesar de ainda hoje existirem dúvidas
quanto às suas funções, a doutrina maioritária, baseando-se na tradição
propende no sentido de o considerar uma assembleia constituída pelos
patres das gentes que fundaram as civitas tal como defende Santos Justo em
Direito Romano Privado e Direito Romano:
Assembleias Populares (referindo apenas a Comitia Curiata): foi a
assembleia durante o Reino de Roma e nas primeiras décadas da República
Romana, Foi a única assembleia popular com rela significado político,
sendo organizada com base nas trintas cúrias (curiae) nas quais o povo era
dividido, podendo nós afirmar que era a única assembleia na qual o povo
estava representado. Durante o tempo do Reino de Roma, esta assembleia
foi uma assembleia legislativa (comitia). Neste comício, os magistrados e o
próprio Rex assumiam as funções através da lex curiata de imperio (a lei
que confirmava os direitos dos magistrados mais elevados para manter o
poder, o imperium). A esta assembleia incumbia: a concessão de auctoritas
patrum (a legitimação socialmente reconhecida a um órgão que tem
capacidade para emitir uma opinião qualificada sobre as decisões tomadas
pelas assembleias populares); a concessão de interregnum (período no qual
um governo é suspenso especialmente entre a sucessão de reis ou regimes)
a um sucessor durante a vagatura da coroa e exercer uma função consultiva
junto do rei.
ORGANIZAÇÃO SOCIAL
Do ponto de vista da cidadania, era cidadão romano quem fosse:
 filho de dois romanos (ascendência romana);
 filho de um romano e de um estrangeiro a quem tivesse sido
concedido o direito de casar com um romano;
 filho de mãe romana, mesmo que o pai não fosse;
 escravo, se fosse libertado.
A cultura romana contrasta com a cultura grega, no sentido em que na
última, a cidadania era limitada a um núcleo restrito, enquanto, por outro
lado, a primeira caracteriza-se pela inclusão da cidadania, pela abertura das
portas a novos grupos. Para a força de Roma foi determinante o
aproveitamento das capacidades dos povos integrados.
Os cidadãos romanos eram chamados Quirites, pelo que o direito dos
cidadãos romanos seria o ius quiritum.
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO ROMANO
Na sua primeira fase, o Direito Romano está muito relacionado com a
religio (religião romana), no entanto, estava menos relacionada com a
crença pessoal e mais relacionado com a observância de certos ritos que
seriam necessários para garantir a paz e a ordem nos domínios romanos, a
pax deorum, “a paz dos deuses”.
Em vez de ter a ver com a orthodoxia, tinha a ver com a orthopraxis, isto é,
assuntos relacionados coma religião eram de natureza pública e não
particular. Da mesma maneira que o paterfamilias deveria observar estes
rituais na sua família, a comunidade romana deveria observá-los também
na sua prática para a sua proteção. Haveria, assim, uma pluralidade de
sacerdotes dedicada a essas funções- os pontífices, que eram dotados de um
artigo para registar as suas decisões e que organizariam o calendário
romano, distinguindo os dias aptos para os atos religiosos e os dias não
aptos, fas e ne fas, respetivamente. Note-se que aqui se verifica a
existência de uma classe capaz de distinguir o lícito do não lícito, uma
espécie de “jurisprudência”, mas religiosa. As obras do Direito Romano
distinguem, então, o ius- lícito jurídico- do faz- lícito religioso.
A ideia fulcral para a cultura romana é que, para a formação do Direito,
concorrem muitas fontes, entre as quais a Lei seria apenas uma delas. O
que é determinante para a interpretação do Direito em Roma é, sobretudo, o
Direito Privado. A figura do jurista- alguém cuja função é interpretar este
conjunto de fontes que constituem o Direito- é uma figura social
determinante para compreender o Direito Romano. Os primeiro juristas
eram sacerdotes, da religião romana, que entendiam indiferenciadamente
questões de índole propriamente religiosas daquelas propriamente jurídicas.
Assim, esta distinção só começou a ganhar contornos mais claros à medida
que o tempo foi avançando. Todo o sistema jurídico assenta em consensos
extrajurídicos que permitem que as instituições políticas funcionem. Aqui,
aproveita-se esta entidade partilhada e aceite- a religio, para formar o
sistema jurídico romano.
É da primeira fase do Direito Romana que datam as primeiras formas
processuais, ou seja, um meio organizado pelo poder público para resolver
um conflito.
A forma processual mais antiga do Direito Romano é a legis actio
sacramenti. Partindo da religião, que todos reconheciam, resolver-se-ia o
conflito: cada uma das partes prestava um juramento que garantia a verdade
daquilo que afirmava e quem perdesse pagaria uma sanção pecuniária, que
reverteria para o erário público. Este processo era extremamente ritualista,
com formas muito específicas para proceder ao juramento, então seria
possível perder uma ação por não utilizar os termos religiosos corretos.
A dada altura, o direito emancipar-se-á da dimensão religiosa.
28. Algumas instituições jurídicas romanas

A primeira figura era o sponsio. Se um romano quisesse constituir uma


obrigação, sponsio- uma promessa sagrada, bastaria perguntar a outrem
oralmente “Spondes?” (“Prometes?), ao qual se respondia “Spondeo”
(“Prometo”). Este método prova a existência de liberdade contratual, uma
vez que sponsio era um ato de promessa e/ou referente àquele que promete
e o stipulatio, a quem era prometido.
Para além do sponsio, tem-se a segunda figura mais importante, o
mancipatio- os bens mais importantes são trocados por meio do mancipatio.
Quando em Roma se pretendia transmitir o domínio/poder do paterfamilias
sobre os bens mais importantes da vida privada, recorria-se a um res
mancipi.
A terceira figura, o casamento, correspondia a uma mudança de família:
saída do poder do seu paterfamilias, passando para aquele com quem se
casava, uma das possibilidades deste casamento seria coemptio (compra) e
tinha lugar através do mancipatio. O paterfamilias transmitia a esposa para
a família do marido. Outra possibilidade seria usus (referência à idade de
usucapião) - se uma mulher e um homem vivessem conjugalmente, seriam
considerados casados, se estavam separados três noites por ano, isto não
aconteceria. O casamento seria, então, terminado com a mancipatio no
sentido oposto: ou para o pai, ou para um terceiro. Caso a mulher não esteja
integrada numa família, ou viúva, por exemplo, ficaria a princípio sujeita
ao seu próprio direito (sui iuris), mas com um tutor, por exemplo os irmãos
masculinos.
Os escravos estariam alieni iuris, isto é, fora do Direito, por serem
considerados objetos.
Os pais teriam ius vitae necisque- direito à vida e morte dos filhos, e
podiam matá-los ou vendê-los temporariamente como forma de
rentabilidade económica. Para evitar que esta possibilidade fosse utilizada
de forma abusiva, a Lei das XII Tábuas previa que à terceira venda, o filho
tornava-se livre. Ora, isto poderia ser feito intencionalmente, provocando
emancipato dos filhos. Mancipatio permitia ainda a adoção.
Note-se que esta figura jurídica, este ritual, permite vários efeitos jurídicos.
Esta formalidade exterior corresponde a um mecanismo aceite entre os
romanos.
VI. O Direito na República romana (c. 450 a.C./ 367 a.C. - …)
29. Pontos de referência temporais
Qual era a lógica do Direito Romano na república?
A República romana surgiu em 509 a.C., segundo a tradição, e é
caracterizada pelo seu principado e pela sua fase de declínio. Sabe-se que
foi instituída no ano 510 a.C., pelo exército das centúrias constituído por
patrícios (aristocratas da Roma Antiga) e plebeus, que até então não
possuíam representação nas assembleias populares, no seguimento da
deposição do último Rex. Deste modo, terminam quase 250 anos de
monarquia. Instaurou-se, então, uma nova organização política e social da
civitas, a República, assente em três órgãos constitucionais: as
magistraturas (no lugar do Rex), assembleias populares e senado.
(lógica dos romanos é que a organização política não devia ser uma forma
de monarquia, mas a organização familiar é uma espécie de monarquia e
lógica de limitação pelo poder público)
Há dois marcos bastante significativos para a compreensão da república
romana e do Direito Romano Privado:
1. Lei das XII Tábuas, para o Direito Romano Privado, 450 a.C.;
2. Leges licinais sextae, para a organização política romana, 367 a.C.

Secção I – A Lei das XII Tábuas


30. A Lei das XII Tábuas
A Lei das XII Tábuas é estranha no Direito Romano, uma vez que o ato
central do Direito Romano é a negação de leis, isto é, não existe uma
correspondência entre Direito e Lei. Para o Direito Romano, a Lei é apenas
uma fonte entre muitas e nem sequer é a mais importante.
O centro do Direito Romano não é a atividade legislativa, mas sim a
atividade jurídica, exercida pelos juristas. Devido a esta “estranheza”, os
autores procuram uma explicação para a elaboração destas leis e chegam à
conclusão de que estas foram resultado de uma espécie de conflito que
existiu durante a república romana entre patrícios- a elite romana- e os
plebeus, basicamente, os membros da plebe estavam insatisfeitos pelo
modo como os patrícios exerciam as magistraturas e, por isso, conclui-se
pela conveniência a criação de um conjunto de normas jurídicas que
servissem de fatores de segurança e estabilidade, isto é, um meio contra o
abuso de poder.
De acordo com a tradição romana, o Senado confiou a plenitude do poder
apenas a 10 homens, que foram enviados para a Grécia para adquirir
inspiração, para redigirem a Lei das inicialmente 10 tábuas. O resultado foi
simplesmente a recolha e inovação em alguns aspetos de algumas normas
relevantes para a cidade de Roma.
Uma vez elaboradas as 10 Tábuas, foi constituídos um novo grupo de 10
homens para redigirem mais duas. Contudo, o que ficou na memória da
cultura romana foi que as primeiras 10 Tábuas foram justas e equilibradas e
as últimas 2 foram redigidas a favor dos patrícios.
Apesar de ser uma merda fonte do Direito, não se pode subestimar a
importância da Lei das XII Tábuas, pois aprendê-la e sabê-la de cor era um
fator de identidade. Isto permite ver o papel do Direito em Roma, enquanto
essencial para o povo se pensar como comunidade. Cícero testemunha isto
e Tito Lívio afirma que a Lei das 12 Tábuas é fons omnis publici
provatique est iuris (fonte de todo (o Direito) público e privado).
 A Lei das XII Tábuas não foi uma constituição, apenas regulava
questões fragmentárias; à sua margem houve um forte desenvolvimento
interpretativo do Direito Romano, bem como do Direito Consuetudinário.
O seu conteúdo corresponde à realidade de Roma (sociedade rural e
agrária).

Secção II – A Organização Política Republicana


31. A Organização Política Republicana. As magistraturas
Surgem em 509 a.C., com o desaparecimento do rei, mas, na república
romana, temos em vista essencialmente as magistraturas tal como
organizadas em 367 pelas leges licinae sextae.
Este órgão consistia em cargos anuais (não sendo permitido a
simultaneidade de funções e sucessão imediata de mandatos), traduzindo-se
no encardo de governar e distribuía-se por vários magistrados com
competências específicas. O desempenho das cinco magistraturas
ordinárias não era apenas um encargo, mas, também, e especialmente, uma
honra, daí que se falasse de uma “carreira das honras”, sendo que o seu
exercício não compreendia, necessariamente, uma renumeração. Deste
modo, apenas a elite se podia dar ao luco de exercer estas funções
(patrícios e alguns plebeus mais abastados).
As magistraturas estavam organizadas de forma hierárquica e a cada uma
correspondiam competências específicas.
No topo desta hierarquia, e encontra-se a categoria dos censores, também
conhecidos como sanctissimus magistratus, realçando a sua superioridade.
FUNÇÕES DAS MAGISTRATURAS
Os censores eram responsáveis por organizar o censo (ato público através
do qual se procura obter informações sobre a população e as suas
características, com um propósito militar e tributário). Contudo, também
delimitava o lugar das pessoas (em termos de poder) dentro da sociedade
romana. Os cidadãos “sui iuris” tinham de declarar quem era a sua família
e declarar os escravos de que dispunham, as armas, os clientes e os próprios
bens. A importância do censo advinha do facto de o censor ter também a
sua função de controlar a moralidade pública, e se alguém não respeitasse
as regras da moralidade romana, o Censos extraía daí consequências (como
colocar a pessoa num grupo menos favorável ou excluir da lista do
Senado). Estes elaboravam a lista dos senadores, sendo que poderiam
excluir desta lista quem não correspondesse às normas morais impostas,
organizavam o recenseamento dos cidadãos romanos e tutelavam a
moralidade romana. Eram eleitos dois censores por períodos de 5 anos.
Em suma, os censores eram uma espécie de árbitro, de garantes da cultura
romana, tendo contribuído de forma muito relevante para a organização da
sociedade. Só eram escolhidos como Censores as mais destacadas figuras
de Roma, normalmente só eram escolhidos os antigos cônsules-
sanctissimus magistratus. A figura do Senado a que se dava mais destaque
era o princeps senatus, o primeiro Censor, mais velho.
Seguiam-se, nesta hierarquia, os cônsules, que teriam de ser 2, 1 patrício e
1 plebeu, de modo a encontrar uma solução para os conflitos entre estas
classes. Eram eleitos também no Comício das Cúrias e exerciam as suas
funções durante um ano.
Cada um detém a plenitude do poder do Império e de ter a força pública nas
suas mãos (imperium), utilizar a força contra o cidadão (coercitivo),
jurisdição (jutisidictio), consultar o Senado (consulere) e convocar o
Senado e as assembleias populares (us agendi cum senatu/pópulo). Em caso
de necessidade podiam ainda nomear uma outra magistratura, o Ditador-
em situações de crise política ou calamidade pública grave. As
magistraturas anteriores eram suspensas e era nomeado um Ditador, sendo
que o Senado podia concedia poderes especiais a estes cônsules, para
poderem agir sem consultar o mesmo.
Outra magistratura, seguindo esta hierarquia, era a dos Pretores. Estes
desempenhavam praticamente as mesmas funções dos cônsules, no entanto,
dependiam destes como colegas menores.
Os pretores tinham como função principal a administração da justiça, que
originou uma divisão entre dois tipos de pretores: o pretor urbano (praetor
urbanus), criado em 367 a.C., que administrava a justiça entre os cidadãos
romanos; e o pretor peregrino (praetor peregrinus), que surgiu, por sua
vez, em 242 a.C. e exercia as mesmas funções, porém entre estrangeiros e
cidadãos romanos.
De seguida, temos os Aediles Curules (edis cúris) que tinham como função
o controlo da ordem na civitas, tendo como função a fiscalização da
limpeza da cidade, manutenção das vias e dos edifícios públicos; a
regulamentação de preços e regulamentação de mercados. Gozavam do
poder punitivo (coercitivo), exercendo ainda o poder jurisdicional no
âmbito das suas funções. No início estes eram da plebe, sendo que eram os
únicos que intervinham em funções urbanas, principalmente nos mercados,
porém, posteriormente, ambos patrícios e plebeus passaram a assumir estas
funções.
Por último, na base desta hierarquia, encontravam-se os Quaestores, que
administravam os bens públicos financeiros, cobravam multas e ocupavam-
se dos confiscos e do governo da tesouraria estatal.

FUNCIONAMENTO DAS MAGISTRATURAS


1º princípio: as magistraturas são anuais (exceto o censor, que é eleito
durante 5 anos exercendo funções por um ano e meio, que era o tempo para
fazer o censo), sendo que não se admitia que alguém exercesse várias ao
mesmo tempo e não se podia ser imediatamente reeleito para o mesmo
cargo. Excetua-se também o ditador, que desempenha as suas funções
durante seis meses. No entanto, em circunstâncias particulares, como por
exemplo a guerra, o prazo de 1 ano pode ser prorrogado.
2º princípio: a colegialidade, cada magistratura tem mais do que um
titular, pelo menos dois. Contudo, com exceção dos Censores, que têm de
agir em conjunto, nos outros casos cada magistrado tem a plenitude do
poder, ou seja, pode agir sozinho. Dentro de cada magistratura, o poder está
repartido, em regra, por dois magistrados cada um dos quais pode vetar
(ius intercessionis) as decisões do outro. Também um magistrado superior
pode vetar as decisões de um inferior.
3º princípio: Direito de intercessão, cada magistrado pode opor-se às
decisões do outro- por isso é que são regidas pelo princípio da
colegialidade- para evitar o abuso do poder.
4º princípio: a responsabilidade, os magistrados respondem pelos atos
praticados contra a lex (lei) no fim do exercício de cada cargo nas
magistraturas maiores ou antes de cessarem nas magistraturas menores.
Em suma, estas características visam evitar que um titular de uma
magistratura colonize o poder, ou seja, pretendem limitar o poder.
32. O Senado
Relativamente a este órgão, é de salientar que, por norma, todos queriam
estar no Senado, no entanto, para aceder a este cargo, era necessário ter
sido cônsul antes.
Todos os magistrados podiam ser obrigados a responder pelo modo como
exerciam a sua magistratura- 180 a.C., cursus honorum (caminho que
devia ser percorrido para ocupar as diferentes magistraturas e fixou uma
idade mínima para ocupar cada uma delas). Por força desta lei, só se pode
aceder às magistraturas superiores depois de provas dadas do exercício das
magistraturas anteriores (inferiores na ordem hierárquica).
COMPOSIÇÃO DO SENADO
Na República, o Senado é a assembleia dos homens considerados mais
representativos pela sua riqueza e autoridade. Inicialmente, só incluía
patrícios, depois plebeus. Para exercer no Senado era necessário percorrer
as magistraturas. Durante grande parte deste período, continha cerca de 300
membros, tendo evoluído para 600 e, mais tarde para 900, devido à
expansão territorial do Império, com o objetivo de dissipar o poder das
grandes famílias de Roma.
FUNÇÕES DO SENADO
A principal função do Senado era garantir a maior estabilidade possível,
perante a temporalidade das magistraturas (o mandato dos magistrados é,
em regra geral anual, enquanto que o mandato dos senadores é vitalício),
conferindo desta forma, ao Senado, o papel político mais importante da
República.
As funções políticas relevantes são: a decisão da guerra; a direção do
exército; a administração pública; o culto; a designação dos governadores;
a distribuição de funções entre magistrados; a possibilidade de conferir
poder absoluto aos cônsules, em casos de guerra e a votação de leges (leis).
Além disto, o Senado possuía dois poderes jurídicos:
a) Auctoritas Patrum- uma vez aprovada uma lei, para que esta
produzisse efeitos, era necessária a autorização do Senado;
b) Interregnum- quando ninguém está em condições para exercer o
poder, este passa para o Senado, agindo como Regente.
Porém, o seu grande poder, segundo o ius agendi cum senatu, correspondo
ao seu grande prestígio social e poder.
33. As Assembleias
São três as Assembleias Populares (a elas acrescem os Consilia plebis):
1ª Assembleia: Comitia Curiata (assembleia das cúrias) - vem da época
monárquica (para onde se remete) e começam agora a perder poder;
2ª Assembleia: Comitia Centuriata (assembleia das centúrias) - é a
assembleia mais poderosa da República e é a base de recrutamento militar.
Esta intervém na eleição de magistrados com imperium, o poder de
mandar.
A população romana estava divida em 193 grupos: 18 centúrias de
cavaleiros; 175 de soldados a pé (dividida por várias classes, consoante o
rendimento: 1ª classe eram 80 centúrias, 2ª 3ª e 4ª 20 cada uma, 5ª classe
30) e 5 centúrias.
As centúrias reuniam-se e começavam a votar de acordo com a ordem mais
poderosa até à menor, até ao momento em que se obtinha a maioria- por
norma, dominava a elite romana e não se ouvia a população. Estas
assembleias são de voto e não de discussões, quem apresenta as propostas
são os magistrados, nomeadamente os cônsules.
O voto designava os Censores, os cônsules e os pretores. As leis aprovadas
pelas centúrias chamavam-se “lex rogata/leges rogatae”. O magistrado
convocava as assembleias ao abrigo do “ius agendi cum populo”, uma vez
aprovadas estas leis e obtida a autoridade do Senado, elas eram publicadas
no fórum.
Pela falta de representação da população, existiam conflitos constantes
entre os patrícios e plebe, originando instituições como tributos da plebe
(tribuni plebis) e concílios da plebe (concilium plebis).
3ª Assembleia: Comitia Tributa (assembleia das tribos) - era uma
assembleia em que a unidade de voto é a tribo (circunscrição territorial
onde vota quem lá reside, independentemente de classe social). Elegia
alguns magistrados menores. Votava certas leis.

34. Os tribunos da plebe e a assembleia da plebe


A par dos órgãos enunciados anteriormente, devido à elevada tensão
existente entre patrícios e plebeus, foi criado o Tribuno da Plebe e os
Concílios da Plebe.
Esta magistratura extraordinária, juntamente com o Ditador, nasceu de
modo ilegal, às margens dos órgãos da República Romana, porém foi, mais
tarde, introduzido no sistema. Consistia, inicialmente, num juramento
coletivo feito por toda a plebe, garantindo que qualquer ataque a este grupo
seria sancionado com a morte. Esta podia proteger qualquer membro da
plebe- se fossem adotadas medidas coercivas contra um plebeu, o Tribuno
da Plebe podia interceder e impedir as mesmas (ius auxilii-intercessio).
Existia ainda o Concílio da Plebe, que se traduz numa assembleia própria
em que a plebe se reúne. Nasceu de forma ilegal, mas foi introduzida no
sistema e, a partir de 286/287 a.C., com a “Lex Hortensia”, passou a ter o
poder de produzir legislação para toda a Roma.
O tribuno da plebe frui do “ius agendi cum plebe”; a legislação do
Conselho da Plebe é entendida como “Plebiscitum”, que se tornou um
modo normal de produção legislativa na República.
Da mesma forma que a população estava dividida em centúrias, também
estava dividida em tribos. Havia 35 tribos rurais e 4 urbanas, em que a
maior parte da população era pobre, sendo que a elite da plebe se
encontrava nas áreas rurais, por norma. É importante salientar ainda, que o
censor determinava a tribo de cada um, deste modo, se algo ilegítimo
acontecesse, podia mudar o indivíduo de tribo ou diminuir o seu status.

35. SPQR- SENATUS POPULUS QUE ROMANUS


Esta sigla representa a designação oficial da República Romana (Senado e
Povo Romano). Traduzia a complexidade das suas instituições, e como a
República Romana não se pensava enquanto soberania popular, mas como
um sistema político assente no equilíbrio entre os diversos grupos sociais.
Serviu de inspiração a múltiplos regimes posteriores e foi o que elevou
Roma da situação de pequena cidade a poder regional. Contudo, esta
mesma expansão foi a causa do desaparecimento da República Romana, no
sentido de que esta já não conseguia dar resposta aos problemas
decorrentes da expansão territorial e demográfica, dispersando a sua
coesão.
Conclui-se que a organização política de uma sociedade implica a
consideração das características específicas do povo e do espaço ao qual a
forma política se aplica- a melhor forma política de uma pequena cidade
não é a mesma aplicada numa grande cidade ou império.
Secção III – O desenvolvimento do «Direito Pretoriano»
37. O Pretor
Como sabemos, a República Romana assentava num conjunto de
magistraturas, sendo que o imperium era atribuído aos cônsules e que,
posteriormente, o poder de jurisdição foi conferido ao pretor como poder
específico.
Com o desenvolvimento do poder pelo pretor, temos o ius honorarium- o
desenvolvido do poder específico por um magistrado. Deste modo,
passamos a ter um novo estrato do Direito Romano desenvolvido por este
magistrado.
O poder de jurisdição- o poder de dizer o que é ou não é Direito, exerce-se
através do processo. É importante ainda salientar que este poder
representou um forte contributo para o Direito Privado Romano
(acrescentou, restringiu e complementou o Ius Civile).
38. O Processo Civil (agere per formulas)
Com o desenvolvimento da figura do pretor, surge o Processo Formulário
(século II a.C.) que, a partir de 17 a.C., substitui as formas processuais
anteriores. A sua base é a distinção entre duas fases:
 Fase In Iure- fase perante quem tinha o poder, ou seja, todo o
processo decorria perante o pretor. As duas partes- autor e réu-
compareciam perante o pretor e descreviam os termos do seu
conflito. Perante esta apreciação, o pretor podia tomar uma de duas
posições: dava uma ação (actio) ou recusava uma ação- ou dava uma
possibilidade ao autor de agir contra o réu, ou não. Caso desse essa
possibilidade, passava-se à fase seguinte.
 Apus iudicem: junto de júris, se o pretor entendesse que aquele caso
merecia proteção, o processo passava para esta segunda fase em que
um juiz que não era pretor (senadores) apreciava se o autor tinha ou
não razão. Ser juiz era uma honraria oferecida gratuitamente.
A decisão do juiz chamava-se sentença (o sentire, o entende do juiz em
relação ao caso, dentro da actio que o pretor concedeu), mediante a sua
interpretação dos factos, condenava o réu.
Quer o pretor, quer os juízes poderiam ter dúvidas acerca da melhor
solução. Na primeira fase, os pontífices podiam dar aos seus pareceres
(responsa). O jurista/jurisconsulto é aquele que é consultado para dar o seu
parecer jurídico, sendo que quem intervém para defender as partes é o
orados (equivalente a um advogado, na sociedade atual).
Todos os magistrados romanos, no princípio da sua atividade, deviam
publicar um Édito (edictium) – anunciar publicamente como iriam exercer
as suas funções. No caso do pretor, este édito integrava todas as ações que
propunha reconhecer (garantir proteção do caso X e Y). Deste modo, os
cidadãos romanos conseguiam prever qual seria o tipo de proteção que o
pretor lhes iria conceder. Era hábito acrescentar novidades consoante as
alterações que fossem decorrendo, ou aproveitar éditos dos anos anteriores.
Ação de reivindicação (rei vindicatio) - em que o proprietário de um bem
está privado dele, exigindo que que o tem lho devolva, reivindicando-o ou
reclamando o seu valor.
No processo desta ação, surgem duas fases/opções de sentença: Intentio (se
se resultar que a coisa sobre que se litiga pertence, pelo Direito Civil, ao
autor e não lhe foi restituída, passa-se para a fase seguinte), Condemnatio,
em que o réu é condenado a pagar tanto dinheiro quanto for o valor da
coisa.

Rei vindicatio.
Nominatio Titius iudex esto.
iudicis Seja Titius o juiz.
Intentio Si paret rem, quae de agitur, ex iure quiritium
Auli Agerii esse, neque ea res arbitrio iudicis
Aulo Agerio restituetur,
Se resultar que a coisa sobre que se litiga
pertence, pelo Direito Civil, ao Autor,
Clausula neque ea res arbitrio iudicis Aulo Agerio
arbitraria restituetur,
Espaço de e não foi, em apreciação do juiz, restituída
decisão ao Autor,
Condemnatio Quanti ea res erit, tantam pecuniam iudex
Numerium Negidium Aulo Agerio
condemna, si non paret, absolve.
Condena, juiz, o Réu a pagar tanto dinheiro
quanto for o valor da coisa. Se não resultar,
absolve.

Actio certae creditae pecuniae (-» stipulatio certae pecuniae)


Nominatio Titius iudex esto.
iudicis Seja Titius o juiz.
Intentio Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio
sestertium X milia dare oportere
Se resultar que o Réu deve dar ao Autor dez
mil sestércios
Condemnatio Iudex Numerium Negidium Aulo Agerio
sestertium X milia condemnato. Si non paret,
absolvito.
Condena, juiz, o Réu a pagar dez mil
sestércios. Se não resultar, absolve.
1) Exceptio pacti
2) Exceptio doli
Nominatio Titius iudex esto.
iudicis Seja Titius o juiz.
Intentio Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio
sestertium X milia dare oportere
Se resultar que o Réu deve dar ao Autor dez
mil sestércios
Exceptio Ne ea pecunia intra quinquenium peteretur
E tal quantia não deva ser pedida no espaço
de cinco anos

Si in ea re nihil dolo malo Auli Agerii factum


sit neque fiat
Se neste assunto o Autor não agiu nem age
com dolo
Condemnatio Iudex Numerium Negidium Aulo Agerio
sestertium X milia condemnato. Si non paret,
absolvito.
Condena, juiz, o Réu a pagar dez mil
sestércios. Se não resultar, absolve.

39. Efeitos do processo civil sobre o Direito material: os iudicia


bonae fidei
No esquema das magistraturas romanas, o magistrado incumbido da
jurisdição era o Pretor. A princípio, apenas existia um Pretor. O Pretor
urbano, posteriormente, em 242 a.C., foi criado um segundo pretor – o
Pretor Peregrino.
Como é sabido, o Direito Civil Romano nasceu a partir da religião romana
e, portanto, dos valores próprios da cultura específica daquela cidade, tendo
por detrás o cimento constituído pela religião partilhada. A partir deste
substrato comum, cria-se o Direito. Contudo, com a expansão da cidade de
Roma, começam a surgir litígios entre cidadãos e estrangeiros em relação
aos quais não se podia aplicar sem mais o Direito Civil Romano, uma vez
que não havia este substrato comum. Se um cidadão romano interage com
um cidadão não romano, que tem uma religião e um quadro cultural
diferente, os pontos de referência em comum são muito menores do que
aqueles que inicialmente existiam apenas entre os cidadãos romanos.
O ponto de partida aplica-se a um grupo de pessoas, só numa fase posterior
é que passa a aplicar-se a pessoas de cultura diferente. Para responde a este
problema é que foi criado este estatuto. Era necessário convocar valores
que, sendo aceiteis pela cultura romana, pudessem ser partilhados com
estrangeiros, era necessário um Pretor que agisse, em parte, em nome de
valores diferenciados, sob pena das suas soluções não serem aceites por
parte dos cidadãos não romanos.
O Pretor Peregrino teve muita importância, nomeadamente para o
desenvolvimento dos chamados judicia bonae fidei, ou seja, juízos de boa-
fé. O Pretor Peregrino terá invocado o valor da boa-fé para, a partir dele,
criar novas fórmulas processuais (as do processo formulário), que
permitissem proteger novas situações jurídicas. A invocação da boa-fé era
simultaneamente uma referência a uma deusa romana e a um valor de
respeito à palavra dada. É um valor específico, mas não exclusivo – não é
preciso ser romano para respeitar a palavra dada, pode ser universalizado.
A lógica da ação do Pretor peregrino é de escolher aqueles valores que
pudessem servir de base ao enquadramento das relações jurídicas com não
romanos, de identificar dentro da cultura romana aquilo que sendo
característico dela, pudesse ser partilhado com não romanos. A sua ação
permitiu que o Direito Romano passasse do particularismo para o
universalismo, do Direito exclusivo de um povo para um Direito que
permitisse enquadrar relações jurídicas entre um povo e outro.
O modo de estabelecer relações era o stipulatio. Graças à atividade do
Pretor, a este modo acresceram alguns novos, invocando-se o valor da boa-
fé, então a compra e venda também merece proteção – emptio venditio. A
locação – prestação de serviços em troca da prestação de um pagamento
(corresponde, por exemplo, à empreitada ou ao contrato de trabalho), o
contrato da sociedade, que consiste em várias pessoas colocarem os seus
esforços em comum para recolherem os frutos, e o contrato de mandato –
quando alguém encarrega outrem de praticar um ato por sua conta, também
mereceram a sua proteção. Podemos acrescentar outros que eram
protegidos de uma forma diferente: o contrato de mútuo (empréstimo de
uma coisa definida pela sua quantidade, por exemplo dinheiro) e o
comodato (empréstimo de uma coisa infungível, por exemplo livro ou
casa).
O Pretor podia dar proteção a qualquer contrato que achasse conveniente,
mas, sobretudo, mesmo que o contrato celebrado não fizesse parte dos
mencionados, havia sempre a possibilidade de se contrair uma stipulatio. O
resultado final do Direito Romano partiu da decorrência do Direito
Romano antigo, do desenvolvimento que foi impresso por parte do Pretor e
da interpretação que dele foi feita por parte de juristas. Estas inovações que
foram sendo feitas pelo Pretor, à medida que o tempo foi avançando, foram
recebidas pelo Pretor urbano.
Obligationes consensu (iudicia Obligationes re
bonae fidei) [mediante a entrega de uma
[de acordo com o acordo coisa: surge obrigação de
consensual das partes, surge restituir]
obrigação de honrar a fides]
Compra e venda (emptio Mútuo (mutuum)
venditio) Comodato (commodatum)
Locação (locatio conductio)
Sociedade (societas)
Mandato (mandatum)
Supletivamente:
Obligationes verbis [mediante o uso de certas palavras]
Stipulatio
Outras possibilidades: obligationes litteris; pacta; nuncupata.

40. Surgimento de juristas

Alfenus Varus, Dig. 9, 2, 52, 4:


Estando vários a brincar com uma bola, um de entre
eles, ao tentar apanhar a bola, atingiu um escravo e partiu-lhe
um osso. [Narratio]

Pergunta-se se o proprietário do escravo pode agir


contra aquele por cujo impulso se atingiu o escravo.
[Quaestio]

Respondi que não pode, porque parece que se deveu


mais ao acaso do que à culpa. [Responsum]

A origem da classe de juristas em Roma está estreitamente ligada à


atividade dos Pontífices, isto é, a primeira classe de juristas em Roma era
uma classe de juristas em matéria religiosa. Estes especialistas em matéria
religiosa elaboravam pareceres (responsum) dentro do domínio da sua
responsabilidade. Não eram propriamente decisões, mas um entendimento
consultivo acerca do qual, a seu ver, a melhor interpretação da religião
romana. Tem-se uma lógica interpretativa do Direito religioso.
Desta atividade dos Pontífices passamos para a atividade interpretativa
daquelas que seriam as primeiras fórmulas jurídicas que, emergindo da
religião romana, serviram para a autonomização do Direito.
Assim, como eram solicitados pareceres em matéria religiosa, passaram a
ser solicitados pareceres em matéria jurídica. De acordo com a tradição
romana, esta tradição de consultar certas pessoas em matérias jurídicas terá
começado no século III a.C., com a figura do jurista secular. Estas pessoas,
que eram consultadas para darem o seu parecer, chamavam-se de iuris
consulti, ou seja, consultados a respeito do Direito, de onde surge o
jurisconsulto- aquele que é consultado para dar o seu entendimento acerca
de uma questão jurídica, surgindo a partir do desenvolvimento de uma
prática anterior multisecular. Todo o saber dos Pontífices foi aproveitado
para ser aplicado num âmbito diferente (jurídico).
A parte principal do Corpus Iuris Civilis chama-se Digesto, que contém
milhares das respostas dadas pelos juristas. A atividade do jurista era uma
atividade livre, intelectual- quem faz parte da aristocracia romana, coloca
os seus talentos ao serviço da república romana.
A primeira atividade dos juristas romanos é a respondere; a segunda, à
semelhança dos pontífices, aconselhar como se deveriam praticar
determinados atos, cavere; a terceira é agere. Em Roma, quem
desempenhava a função de advogado era o orador, que fazia discursos
tentando impressionar os juízes no sentido mais favorável ao seu cliente.
41. Questões sociais

Com o crescimento da República Romana a ritmo acelerado, as assimetrias


sociais vão aumentando, ou seja, as sucessivas conquistas acabaram por
beneficiar as elites e, na parte final da república, a grande distinção que há
em Roma é entre grandes proprietários e proletários.
A escravatura foi um fenómeno massificado até há, historicamente, muito
pouco tempo.
Nos primórdios da república romana, a condição social de escravo era
muito melhor do que no final, em que este estatuto se degradou
completamente, cisto que passou a ser usado exclusivamente como força de
trabalho. Passamos de uma fase em que o escravo se assemelhava mais a
um ser humano a um simples objeto, de modo a satisfazer a necessidade de
mão de obra que os latifundiários precisavam.
Com o desenvolvimento da república, dá-se uma grande degradação da
Moral romana que equilibrava o Direito. À medida que a cidade de Roma
vai crescendo, perde a sua coesão social e homogeneidade cultural, sendo
que os respetivos valores fundamentais serão frequentemente colocados em
crise.
VII. O Império e o Direito Romano Clássico

Secção 1 – De César a Augusto

42. República e Principado

Nos séculos finais da cultura romana, Roma não é apenas uma cidade, mas
um poder de relvo. Nos últimos dois séculos da república romana, Roma
tinha por designação oficial “Senado e Povo Romano”. Contudo, surge um
novo agente político- o exército. O equilíbrio do poder em Roma deixa de
ser apenas entre o Senado e o povo romano, mas incluirá o exército, que é o
garante da ordem e que passará a ser o verdadeiro representante do povo
comum.
Ocorreu a fragmentação da aristocracia romana em duas partes, sendo que
uns procuravam continuar a afirmar o Senado como o centro político total
da República romana e outros procuravam reforçar o papel das assembleias
populares.
Os últimos dois séculos da república romana são, assim, de instabilidade
constante, sintomática da inaptidão das respetivas instituições políticas para
responder aos novos problemas. A passagem para a fase seguinte começa
com Júlio César.
43. Júlio César
Entre a República romana e o principado, há uma figura chamada Júlio
César, que provém da elite romana e que tinha desempenhado todas as
magistraturas, mas que também se destacava politicamente, além do
desejado. Constituiu uma aliança informal com 2 outros homens- Pompeo e
Crasso, o primeiro triunvirato.
César conseguiu que lhe fosse dado o imperium sobre algumas províncias
romanas, o que aumentou ainda mais o seu prestígio, ao contrário do que se
esperava. Durante o período em que esteve na Gália, assistiu-se a grandes
convulsões na cidade de Roma, onde agora reinava a desordem, e a tensão
entre César e Pompeo aumentou.
Inicia-se,assim, uma guerra civil em Roma. César, que está fora de Roma,
começa uma campanha para tomar o poder, conhecida como travessia do
Rubicão e os dados estão lançados, alea iacta est. César consegue eliminar
todos os adversários e foi designado como Dictator, por 10 anos, e Cônsul.
Em 45 a.C. é designado por tempo indeterminado. O Senado é aumentado
para 900 membros, pois quanto maior, menor é a sua força. Para além
disso, César adotou uma política de propaganda para legitimar a sua ação,
alguns exemplos são: o mês que estava no lugar número 5 do calendário
romano adotar uma referência ao seu primeiro nome; fez cunhar o seu rosto
na moeda e o próprio escreveu acerca da sua ação.
Podemos ver em César o fim da República romana, mas não devemos olhar
para a sua figura de forma anacrónica, como a figura de alguém que tinha
simplesmente um projeto de ambição pessoal do poder. Não, a sua lógica
de ação é a de que a República romana está ingovernável e, por isso, por
detrás de César haverá um projeto institucional, reconhecendo que para
salvar Roma é necessário colocar fim à República.
É de salientar uma expressão por si referida, entre a liberdade e o pão, é
melhor ter pão. Esta citação indica, principalmente, que a necessidade
essencial numa sociedade são a ordem pública e as necessidades públicas,
em detrimento das liberdades.
César não foi, porém, totalmente bem-sucedido, sendo que em 34 a.C. foi
assassinado no seguimento de uma conspiração que surgiu da atitude de
afrontamento excessivo às instituições políticas romanas ao aceitar o cargo
de Dictator, fazendo alguns grupos revoltarem-se e ressentirem-se
tremendamente. Este assassinato fez, consequentemente, ressurgir a guerra
civil durante um período de 14 anos, o que, naturalmente, revelou ser
extremamente destrutivo em diferentes esferas, tal como todas as guerras e
especialmente uma tão longa.
PASSAGEM PARA O PRINCIPADO, 2ª FASE
Foi visto que numa primeira parte, consideramos os acontecimentos
básicos que conduziram à passagem da República para o Principado.
Contudo, numa segunda fase, ver-se-á qual a organização que a
comunidade política romana assumiu no Principado.
Podemos identificar 2 formas de organização política: a República, depois
o Principado, mas pelo meio há um período de turbulência, de crise, de
indefinição, incerteza e insegurança, onde não se sabe qual será o desfecho.
Não foi o fim da comunidade romana, pois reconfigurou-se e conseguiu
superar os específicos fatores críticos que estavam a ameaçar a coesão e a
estabilidade política da República.
Já foi visto que o último século da República (150 e 50 a.C.) foi de enorme
turbulência, em que a aristocracia romana perdeu grande parte da sua
coesão, suscitaram-se questões sociais de difícil resolução, emergiu um
novo sujeito que não estava considerado na estrutura da República (o
exército). Na fase terminal da República emergiu uma figura que de facto
pareceu estar muito próximo de conseguir dar uma nova ordem à República
romana – Júlio César. Simplesmente, o caminho encetado por César foi um
caminho que contradisse de forma excessivamente clara as características
próprias da República.
César, de quem alguns esperavam poder restaurar a República romana, na
verdade, foi aquele que lhe colocou termo, nomeadamente a partir do
momento em que aceita ser nomeado Dictator durante 10 anos e depois por
tempo indeterminado. Não surpreende que, apesar dos seus enormes
méritos militares e grande capacidade política, tenha acabado assassinado.
Hannah Arendt refere com total acuidade que o homem mais solitário de
todos é o Ditador, uma vez que tem de negociar o poder a todo o momento
– quem quer chamar apenas a si o poder, está condenado a ter de o negociar
constantemente para que o seu poder não seja colocado em causa. Por isso
é que a democracia, em sentido contrário, pode dar lugar a grandes formas
de despotismo, pois quem tem uma legitimação democrática não sente
necessidade de negociar o poder, por se supor legitimado. Ora, esse foi o
erro de César, querer ser assumidamente um Dictator, mesmo que a sua
finalidade pudesse ser salvar a comunidade política romana, ainda que sob
uma forma diferente da República.
Cícero, uma figura de proa da literatura romana, apesar de viver no século
1 a.C. e destas debilidades da República, continuava a sonhar com a
restauração da República. Isto atesta a força dos imaginários políticos,
mesmo quando não aderem minimamente à realidade. Cícero é um lírico,
isto é, fruto da fortíssima tradição romana, tinha uma relação saudosista
com as suas próprias instituições, não estando ainda capacitado para aceitar
imediatamente a sua transformação. Este foi o erro de César, mas não vai
ser o erro de Augusto. A seguir a César, inicia-se um período de guerra
civil. César chega ao poder na sequência de uma guerra civil, em que
consegue vencer, mas com a sua morte inicia-se uma nova guerra civil de
14 anos.
Heinrich Mann refere que todos sabem porque é que as guerras começam,
mas já ninguém sabe porque continuam.
Esta afirmação é verdadeira na medida em que quando se inicia uma guerra
todos os agentes sabem qual é a sua finalidade – alcançar tal objetivo, mas
a dinâmica da guerra cria alterações tais que a dada altura ninguém sabe o
que está a fazer. Por isso é que o seu resultado é imprevisível (por exemplo,
o caso da invasão americana ao Afeganistão).
A aristocracia romana esperava que César, uma vez conquistado o poder,
restaurasse a República romana, porque não o fez é que acabou por ser
assassinado. Logo, supõe-se que aquilo que esperavam os conspirados, com
grande apoio, era que à morte de César se seguisse o normal funcionamento
da República, mas não se sucedeu. Esta circunstância atesta a que as
instituições republicanas romanas tinham falido.
44. Gaio Octávio – Gaio Júlio César Octaviano

Como é que a ordem de Roma acaba por ser restaurada?


Com a entrada de Gaio Otaviano, ou Gaio Octávio, sobrinho-neto de César,
mas foi adotado por César através do seu testamento: Júlio César, no seu
testamento, definiu Gaio Otaviano como seu sucessor.
Note-se que em Roma a organização social assenta na figura do
paterfamilias, que tem sob seu poder toda uma família, ou seja a adoção
não tem o sentido contemporâneo de passar a ter um novo pai, mas sim
com querer indiciar tal pessoa como sucessor pessoal do próprio, que
continue o seu legado. A partir de então, o nome vai mudar, passa a ser da
família de Júlio César como filho, daí o nome Gaio Júlio César Otaviano
(que mais tarde recebe o título de Augusto).
Augusto foi um talento político, de facto, muito distinto, tal como o pai
adotante, criou também um triunvirato, com Marco António e com Lépido.
Tal como aconteceu com o primeiro, o segundo triunvirato foi instável,
começando como uma aliança entre três homens, evoluiu para a rivalidade
entre eles e a tentativa de concentração de poder.
O poder acabou por se concentrar nas mãos de Augusto, no ano de 30 a.C.
Neste momento, no ano de 30 a.C., Augusto estava na mesma posição de
César algumas décadas antes (com o poder nas suas mãos).
Adversários chamava Augusto de Otaviano, pois não o consideravam
como verdadeiro Júlio César, era apenas uma figurinha que beneficiou dos
seus atos
Secção II – Organização política do principado (27 a.C. – 284
d.C.)

45. Princípios fundamentais (63 a.C. – 14 d.C.)

A grande diferença que se encontra nesta figura é a sua enorme


sensibilidade para respeitar os princípios próprios da cultura romana. É
característico da cultura romana o respeito pela tradição e por conseguinte a
preferência por formas de evolução política graduais, progressivas não
revolucionarias. A chave que explica o sucesso de Augusto é a sua
capacidade para introduzir princípios novos de organização política,
conservando na aparência, tanto quanto possível, as formas políticas
tradicionais da República de Roma. Sob um corpo aparentemente idêntico
ao da República, mas o espírito é totalmente diferente.
Este é o ideário geral de Augusto, vejamo-lo nas suas consequências em
termos de organização. É sabido que a República se legitimou em oposição
à monarquia, Roma guardou sempre a memória de que a monarquia foi um
período de despotismo, um período tirânico. Com profunda sensibilidade
para este aspeto, Augusto nunca utilizará o título de Rei, nem definirá com
clareza as suas regras sucessórias (para não parecer uma monarquia).
Finalmente, mostrará sempre o respeito formal pelas instituições romanas
republicanas, a lógica é que se o faz, porque não é apologista da
monarquia. Octaviano é um Imperador numa República, chega a afirmar
um autor (articula o que é contraditório, algo que nos remete para o génio
político de Otaviano).
Como é que Augusto se designava a sua função?
Desde 27 a.C. é designado Princeps senatus (nome que se dava ao Senador,
antigo Censor mais velho). Afirma-se não como Imperador, mas apenas
como Senador mais velho, primus inter pares (afirma que é igual a todos,
não é superior a ninguém) e princeps ciuium (o primeiro dos cidadãos).
Mais tarde vem a receber o título de Augustus, pelo Senado. Augusto
significa santo, sagrado, e abriu caminho para que o seu génio fosse
venerado como um Deus. Também é certo que durante os primeiros anos
de poder, foi sendo designado como cônsul, isto é, na aparência estava a
respeitar a lógica das magistraturas romanas. A partir de 23 a.C., deixou de
ser designado, embora com poder de convocar o Senado na mesma,
Se Augusto deixa de ser cônsul (quem tradicionalmente detém o
Imperium), onde está o poder?
Recorde-se que o poder na República romana estava distribuído por
diferentes magistraturas, cada uma tinha o seu âmbito de competência, um
cidadão romano apenas tinha esse poder na medida em que ocupasse a
magistratura. Augusto vai separar o poder da magistratura, ou seja, adquirir
alguns poderes que anteriormente eram conferidos somente aos
magistrados conservando-os mesmo independentemente do exercício de
uma magistratura.
Que poderes foram esses?
Para além do direito a convocar o Senado, detinha os poderes que
tradicionalmente cabiam ao Tribuno da Plebe, isto é, a sua pessoa torna-se
inviolável e goza do chamado direito de auxílio. No fundo, qualquer
cidadão romano pode, em caso de necessidade, pedir a sua intervenção.
Para além disso, passa para Augusto aqueles que eram os poderes do
Censor (recorde-se que eram aqueles que vigiavam/velavam pela
moralidade romana e elaboravam a lista para o Senado). Ora, se Augusto
acaba por deter os seus poderes, passa a ter o Senado na sua mão. É,
também, lhe transferido o poder militar sobre várias províncias, sendo que
esta incluía a governação civil dessas províncias. Portanto, para uma parte
significativa do território romano, o poder é exercido exclusivamente por
Augusto.
Com estas prerrogativas, é invertida a lógica própria das magistraturas
republicanas, que assentavam na limitação e divisão do poder, de modo a
que ninguém posso concentrar em si todo o poder. À medida que o
Principado vai evoluir no tempo (após Augusto), a concentração do poder
será cada vez maior, uma vez que a memória das instituições republicanas
vai começar a ser cada vez mais débil/frágil e distante, e que o figurino do
Império Romano muda: se no princípio, o centro está em Roma, com o
crescimento territorial, a relevância das províncias passa a ser maior (a
forma típica do governo das províncias é a forma imperial). Portanto,
aquilo que no princípio será uma forma política mais ao menos
dissimulada, tornar-se-á cada vez mais aparente, de primus inter pares
assiste-se a um primus super pares.
Augusto chamou a si uma forma de legitimação de natureza carismática, é
o seu talento político. Contudo, pode tornar-se particularmente crítico
regular a sucessão, uma vez que o modo como aquela pessoa chegou e
conservou o poder está estreitamente ligado às suas características
pessoais- sendo assim, como escolher alguém que ocupe a mesma função?
É o problema que se impõe e não foi bem resolvido pelo Principado, nunca
existiu um regime jurídico sucessório.
Qual foi a solução adotada pelos sucessivos imperadores?
Ou a adoção, em que o sucessor é escolhido por quem é imperador, ou a
associação ao poder, o imperador designa alguém como regente para lhe
suceder após a morte. Adicionalmente, era necessário o reconhecimento
pelo Senado e pelo exército. O século III a.C. marca o fim do Principado,
iniciando-se o Dominado, é um momento em que a ausência de regras
definidas para a sucessão impede o normal funcionamento do Império
Romano.
REPERCUSSÃO DA ATIVIDADE POLÍTICA DE AUGUSTO
SOBRE AS MAGISTRATURAS EM ROMA
O Tribunado da Plebe, com os diferentes Tribunos da Plebe, desapareceu,
uma vez que essas competências passaram para o Princeps. O mesmo
aconteceu com o Censor, magistratura que desapareceu no ano de 22 a.C.
(figura que permitia equilibrar a República romana). Na sequência desta
eliminação, quem passa a apresentar novos membros ao Senado é o
Princeps, portanto, passa a dominar o Senado. Quanto às outras
magistraturas, mantiveram-se, mas com particularidades.
As inferiores não tiveram grandes alterações. Quanto ao cônsul, em lugar
de apenas 2, é aumentado o seu número (para reduzir o seu poder), mas
sobretudo, o consulado evoluiu para uma espécie de título honorífico, deixa
de ser uma magistratura efetiva e passa a ser uma distinção que é atribuída
a cidadãos romanos a quem o Princeps quer nomear. Estas magistraturas
foram utilizadas por Augusto para distribuir o poder pelas elites.
Quanto ao Senado (alma da República romana, centro do poder), por um
lado, há um certo domínio do Princeps sobre o Senado (pois é ele que
designa quem o integra), por outro passa a ter certas competências jurídicas
que podem ser vistas como uma degradação do seu lugar.
Na República romana, o Senado não precisava de ter grandes competências
jurídicas, pois toda a gente o reconhecia como o centro do poder. Ora, com
estas competências jurídicas traduzem um tipo de compensação pelo
esvaziamento de significado do órgão. As competências jurídicas incluem o
facto de algumas províncias serem administradas pelo Senado (províncias
senatoriais) e o facto de uma vez que as assembleias populares vão perder o
seu significado, o Senado passa a ter competência legislativa. Finalmente,
as assembleias populares (os Comitia e o Concílio da Plebe) acabam por
perder a sua relevância, paulatinamente, sendo que a sua última lei de que
há registo histórico é a de finais do séc. I a.C. sob o Imperador Nerva.
Note-se que, nesta fase de Roma, o povo é representado pelo exército.
PROVÍNCIAS
Enquanto em Roma havia a tal memória muito forte das tradições
republicanas, nas províncias esta memória não existia, pelo contrário. Nas
províncias havia uma imagem tremendamente negativa da República
romana, devido ao facto de os seus habitantes associarem a República
romana a governantes corruptos, ambiciosos, que utilizavam as
magistraturas locais como forma de enriquecimento. Perante isto, a
substituição de um modelo de organização política, em que o poder é
exercido por cidadãos muitas vezes não agindo de forma recomendada, por
um Imperador forte que garante a ordem e a estabilidade, é evidente que a
aceitação desta nova forma de organização política é muito maior. Daqui o
termo pax romana ou pax augusta, é natural que o Principado seja bem
recebido uma vez que consegue dar algo de novo às províncias que lhe
faltava, um contexto pacífico, garantido por uma força previsível e
organizada.
ESTRATÉGIA DE AUGUSTO PARA CONQUISTAR O PODER
À semelhança do que ocorrera com César, também Augusto se serviu de
uma forte estratégia de propaganda e de legitimação do seu papel (a
designação do mês de Agosto deve-se a Augusto). Ao serviço da
propaganda, Octaviano contou com 3 grandes nomes da literatura latina:
Vergílio (que cantou a figura de Augusto), Horácio e Tito Lívio (que
escreveu Ab Urbe Condita, "desde a fundação de Roma").
Um elemento significativo para a autopropaganda de Augusto é uma obra
escrita na 1ª pessoa na qual relata os seus próprios feitos - Res gestae diui
Augusti ("feitos do divino Augusto"), conferir a passagem 34 desta obra,
disponibilizada pelo docente no Sigarra, notável em termos
propagandísticos. A partir do momento em que Octaviano é titulado de
Augusto, tem-se todos os elementos para se lhe atribuir a sua designação
oficial - Imperator (aquele que detém o Imperium) Caesar (o seu nome na
sequência da adoção por Júlio César) diui filius (filho da divindade)
Augustus (título conferido pelo Senado). Deve-se olhar, de facto, para o
Principado como o conjunto de compromissos entre as antigas instituições
de Roma e as novidades necessárias que permitiram a adaptação da forma
política de Roma a um contexto diferente e novo. Este equilíbrio está
estreitamente ligado ao génio próprio de Augusto, isto é, o Principado é
uma forma institucional que perdurará no tempo para além de Augusto,
mas que só nasceu graças ao seu génio político próprio – o que garantiu o
sucesso do Principado foi a sensibilidade para introduzir as alterações
necessárias no respeito pela tradição política e cultural romana. O que
Augusto faz a nível político segue a mesma lógica da evolução do Direito
Privado romano (o Direito Privado romano não evolui por substituição de
regimes anteriores, mas por desenvolvimento/acréscimo/alterações
graduais), o que lhe permite introduzir as modificações tidas como
necessárias. Consequentemente, tem igualmente o mérito de ao
reconfigurar a organização política romana, chamar à partilha do poder
alguns outros agentes de referência, nomeadamente a aristocracia (que é
ouvida mediante o Senado e distinguida com cargos/honras conferidas por
Augusto) e o exército. De facto, quem passa a estar à frente de Roma, para
além do Imperador, é o Chefe do Exército.
 Imperador afirma-se sem hostilizar as instituições republicanas.
DEPOIS DO PRINCIPADO

A partir de agora, Roma será um Império até ao seu desaparecimento: no


caso do Império do Ocidente, o fim data de 476; o Império do Oriente,
1452. Dentro do Império distingue-se o Principado, que irá até 284, e a
partir daí o Dominado ou Império tardio/Antiguidade tardia. A República
romana foi o período no qual Roma entrou na história romana, mas o
Império foi certamente o período histórico que permitiu que o legado da
cultura romana produzisse efeitos/impactuasse a longo prazo. O impacto da
cultura romana sobre a história mundial deve-se, essencialmente, aos feitos
políticos obtidos com o Império, ou seja, gerar um espaço político e
unitário pacífico, em redor de todo o Mediterrâneo, com uma certa ideia de
cultura e civilização que se afirmou e perdurou durante vários séculos. O
período de esplendor do Império romano será o séc. 2 d.C., com os
Antoninos (dinastia de Imperadores), é neste período que o Império alcança
a sua máxima extensão territorial.

Secção III – Consequências sobre o Direito


46. Processo civil
Em primeiro lugar, temos o processo civil. O Direito Privado Romano
nasceu a partir da atividade dos Pontífices. O 1º conjunto de leis
processuais designava-se leges actiones (conjunto de formas desenvolvidas
pelos Pontífices que permitiam exercer determinadas posições jurídicas) e a
2ª forma de processo designava-se por processo formulário e surge no
âmbito da atividade do Pretor.
Com Augusto, as antigas ações de leis vão desaparecer e ser
integralmente revogadas. A forma geral de processo, em princípio única
(mas com uma exceção), passa a ser o processo formulário, designado por
Ordo (ordem) iudiciorum (dos juízes/tribunais).
Surge uma nova forma do processo civil. A partir daqui, a competência de
Augusto, proveniente do direito de auxílio (competência previamente
detida pelos tribunos, qualquer cidadão romano pedia apelar a Augusto)
surge o que será uma nova forma de processo, inicialmente de um modo
informal, e à medida que o tempo vai passando adquire contornos mais
específicos- designado Cognitio (cognição) extra (fora) ordinem (da
ordem), o que significa que a regra é a ordem dos juízes, mas para um
caso diferente que não tem qualquer proteção e um cidadão apela ao
Imperador, o Imperador pode conhecer fora da ordem normal de
funcionamento dos juízes. A longo prazo, o processo formulário vai
desaparecer e ficará apenas esta forma.
47. Consequências sobre as fontes do Direito
Em primeiro lugar, e em consequência de as assembleias populares e o
concílio da plebe perderem a sua relevância durante o Principado, as
leges (leis) e o plebiscitum (plebiscito) acabam por desaparecer, isto é, as
leis/plebiscitos anteriores até podem continuar a produzir efeitos, mas
deicam de ser utilizados para produzir nova legislação- as leis populares
perdem o seu significado. Ao nível do Direito, há duas que desaparecem.
Em segundo lugar, a sua função legislativa passa para o Senado, os senatus
consultum passam a ter valor vinculativo. Equivalente a estes pareceres
são os oratio principis (discurso do príncipe).
Em terceiro lugar, houve modificações no regime do Edictum (não
esquecer a sua importância para o Direito Privado Romano). Recorde-se no
quadro da República romana, cada magistrado, no início da sua atividade
publicava um Édito, no qual anunciava o programa da sua atuação (no
caso do Direito este programa incluía as hipóteses/casos aos quais o Pretor
conferiria proteção). Com o desenvolvimento do Principado, esta função de
proteção jurídica cabe, em termos substanciais, a magistrados designados
pelo Princeps, isto é, o Édito passa a ser pensado como uma expressão
do poder imperial. Daí que, finalmente, no ano de 130 d.C., o Imperador
Adriano confiou a um jurista chamado Juliano a tarefa de redigir uma
edição final do édito, ou seja, considerar o Édito do Pretor urbano e o
Édito de Edil para a partir deles elaborar uma versão definitiva final que
não fosse sujeita a alterações posteriores. Este Édito designou-se por
Edictum perpetuum. Se este Édito é perpétuo, neste momento já está
morta a lógica própria do Direito honorário criado pelo Pretor.
Este Édito foi objeto de comentários por partes de diferentes juristas
romanos, que através da sua atividade interpretativa, desenvolveram a
aplicação do seu conteúdo aos mais diversos casos particulares. No fundo,
o Direito Romano clássico/imperial vai ter lugar em desenvolvimento dos
frutos do Direito da República romana.
Por fim, o Imperador, independentemente da relação com o Senado, passa
a intervir de diferentes formas sobre o Direito. Como? Pelo menos das
cinco seguintes formas:
1. como titular do poder judicial nos termos do Cognitio extra
ordinum;
2. a partir do século II, mediante a resposta a questões que lhe eram
diretamente formuladas (o Imperador respondia com um rescriptum;
uma versão da resposta era dada a quem perguntava e outra era
arquivada, podendo adquirir valor jurídico);
3. o Imperador podia elaborar Constitutiones (não no sentido moderno,
mas no sentido de decisão), podia ter lugar através de três formas-
Decreta (decretos), Edicta (éditos) e Epistulae (cartas);
4. o Imperador tivera junto de si funcionários encarregados da
administração da justiça (foi aqui que os juristas iniciaram a sua
atividade) e, já com Augusto, a alguns juristas é conferido um direito
especial- ius respondendi ex auctoritate principis (direito de
responder a partir da autoridade/em nome do Princeps). Um jurista a
quem é pedido um parecer, responde não só com a sua autoridade
pessoal própria como invocando própria autoridade do Princeps. Em
caso de pareceres contraditórios, prevalecia aquele que o juiz
entendesse como mais conveniente;
5. a partir de Adriano, já no século II, na sequência de um rescriptum,
se houvesse um parecer com duas respostas convergentes, tinha o
valor de lei.

Será que este ius respondendi significa um aumento de poder conferido


à comunidade de juristas?
É duvidoso, poder verdadeiro quem tem não precisa de o ter para ser
seguido. A simples autoridade judicial não é suficiente, é preciso uma
autoridade política por detrás para confrontar o entendimento adotado.
48. Direito romano clássico
É nestes séculos do Principado que se forma aquilo a que, posteriormente,
se chama Direito Romano clássico, pretendendo assim designar-se o
período no qual o Direito Romano, sobretudo o Direito Privado romano
adquiriu a sua mais perfeita forma e desenvolvimento.
Salienta-se a característica própria desta jurisprudência romana de se
debruçar de modo concreto e conciso sobre determinados problemas
jurídicos e lhes oferecerem uma solução direta (ou lapidar) e sintética.
Portanto, a lógica própria da atividade dos juristas romanos não é a do
desenvolvimento teórico argumentativo, mas a de especial atenção à
casuística e à coerência entre as soluções dadas a hipóteses jurídicas
análogas- um jurista romano exercita constantemente a capacidade de
decisão, forma a decisão de dezenas, centenas, milhares de casos. A índole
própria da jurisprudência romana caracteriza-se por ser uma casuística
coerente, uma vez que se trata de entender cada caso, não de forma
desconectada de outras resoluções, mas oferecendo-lhe um critério de
decisão coerente, consistente com aquele que se ofereceu para uma
multiplicidade de hipóteses análogas.
No fundo, o Direito Romano mantém neste período as características das
épocas anteriores, o que muda é a capacidade de se debruçar cada vez
sobre casos mais concretos. Para além disso, os juristas romanos
agrupavam-se em coletivos, formando Escolas, não no sentido de
instituições para o ensino, mas no sentido de grupos de juristas que seguem
uma certa linha de pensamento. As duas escolas mais importantes do
Direito Romano forma a Escola Proculiana e a Escola Sabiniana.

VIII. Valores do Direito Romano


49. Alguns valores fundamentais

Do que foi visto até ao momento, os valores espcecíficos do Direito


Romano são, de acordo com Fritz Schulz:
1. A clara distinção entre lei e Direito. Em Roma, o Direito é uma
realidade muito mais vasta que a lei, no contexto geral das fontes
do Direito Romano, a lei desempenhou sempre um papel
marginal, onde há distinção entre lei e Direito, há necessidade de
um grupo específico preocupado com o Direito- a classe dos
juristas, tal é igualmente um produto da cultura romana, o autor
refere que em Roma se encontra uma cultura que se inspira no
Direito, mas não na lei;
2. Isolação (isoleriung). O jurista tem uma grande capacidade para
fazer separações (separar o Direito Público do Direito Privado, o
Direito religioso do secular entre outros), isto é, dentro de tudo o
que se encontra na sociedade, recorta com clareza o que pertence
ao Direito e o que não pertence;
3. Tradição. Para o romano, é fundamental a continuidade,
estabilidade, os valores da grauitas, a constância. Em Roma, ser
cosmopolita não significa sacrificar a romanidade, procura-se
sempre um ponto de equilíbrio entre a identidade e a diferença. Se
o Direito não aderir e não corresponder aos estratos mais
profundos da tradição cultural do povo a que respeita,
dificilmente se consegue afirmar;
4. Pátria, ou seja, de ter uma origem comum, formar uma
identidade/comunidade, uma cultura, um modo de vida, uma
ideia de civilização. Não havia nada maior que ser cidadão
romano e, a partir de 212 d.C., a cidadania é estendida a todos os
romanos (a identidade romana era integrada pela consciência de
ser das mais elevadas formas de organização política e social; por
sua vez, o orgulho romano vem das suas instituições);
5. Liberdade, não no sentido moderno, mas nas dimensões de
liberdade política em relação a poderes exteriores (Roma é livre
de qualquer potência estrangeira), liberdade de participar na vida
política romana (na República através de magistraturas, Senado e
Assembleias Populares, no Principado através da associação ao
Princeps, do exército, da recusa de qualquer forma tirânica de
governo e no Direito Privado);

VALOR DE FIDES
A fides romana é a ideia de respeito à palavra dada (de honrar a palavra que
se dá), uma ideia de que governa o direito privado e público romano,
preocupado com a verdade e com a transparência. “Roma não paga a
traidores”, quem não cumpria honra/respeitabilidade da palavra era
considerado infamis.

IX. Direito imperial tardio («Dominado»): 284-476

O Principado acabou, também ele, por desaparecer. Assim, a forma de


organização política que se segue é a forma imperial tardia, a que o
historiador Christopher Dawson, no séc. XX, de forma depreciativa,
designou de Dominado (284 – 276). De facto, o Principado vigorou entre a
mudança do milénio, com Augusto, até finais do séc. III, durando
aproximadamente 300 anos. Desses 300 anos, o princípio foi ligado ao
sucesso de Augusto, numa primeira fase, e numa segunda ao sucesso dos
imperadores Antoninos. Contudo, o séc. III, em contraste com o período
anterior, foi de enorme instabilidade política, isto é, o Principado
conseguira superar a instabilidade da fase final da República e entrou
ele mesmo em dificuldades.

FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA ESSA INSTABILIDADE


Vários motivos contribuíram para o efeito. Um deles terá sido a ausência
de clareza nas regras de sucessão ao Imperador, mas igualmente
relevantes foram as mudanças e tensões resultantes da grande expansão
demográfica. De facto, num território tão vasto como o Império romano,
que englobava todo o espaço do Mediterrâneo, a heterogeneidade
cultural era muito maior do que aquela que existia no termo da
República. O centro do Império, se na República estava em Roma, passa
dispersar-se por todo o espaço imperial, com consequências sobre a
afirmação do poder. Assinala-se que, a partir desta altura, surge um novo
agente cultural – a Igreja, que consiste num conjunto de comunidades
particulares que de forma englobante se designa por Igreja, e que a
partir do séc. III começa a ter uma grande presença pública, contudo,
ainda em tensão com o Império romano. Estamos perante um século
caraterizado por perseguições periódicas às comunidades cristãs, por
parte das autoridades imperiais. Perante estas dificuldades, tornou-se
necessário reorganizar a organização política de Roma para a tornar capaz
de responder a estes novos desafios. Essa tarefa de reformulação do
Império romano coube ao Imperador Diocleciano, imperador entre 284
(princípio do Dominado) e 305.

50. O Dominado.

Tem esta desginação, pois o Imperador era visto como um Dominus et


Deus, isto é, como dono/proprietário e um Deus (divinização do
imperador). Assim, será um período caracterizado por uma forte
afirmação do poder central na figura do Imperador, em contraste com a
República romana.
IDEÁRIO SUBJACENTE À AÇÃO DE DIOCLECIANO
Num tempo de grande preocupação, o objetivo de Diocleciano era
restaurar os antigos costumes romanos- mos maiorum (costumes dos
maiores), consequentemente restaurando a antiga religião romana, o que
conduziu a mais intensas perseguições à comunidade cristã.
Quando, na história, se pretende restaurar o passado, está a
transformar-se a sociedade para o futuro, ou seja, mesmo que
Diocleciano legitimasse a sua ação em voltar ao passado, o que estava a
fazer era, com essa inspiração, instaurar novas instituições.
MEDIDAS IMPLEMENTADAS POR DIOCLECIANO
A ação de Diocleciano passou por, no fundo, onde antes existia 1
Imperador, passa a haver 4 governante- tetrarquia (divisão do Império,
atribuindo poder a 4 figuras. O poder é dividido mediante a divisão do
Império em espaços correspondentes a 2 Augustos e 2 Césares. A ideia
por detrás é que o Império é dividido em 2 grandes espaços territoriais
(Ocidente e Oriente), estando na cúpula de cada um apenas um
Imperador Augusto, mas cada Augusto tinha ao seu lado um César,
que lhe está subordinado, para o caso da sua morte, com a cada Augusto
tem a seu lado um César, que lhe está subordinado, para o caso da sua
morte, com a intenção de introduzir regras sucessórias claras. No
entanto, com os 2 mais importantes imperadores romanos do séc. III,
Constantino e Teodósio, o Império volta a reunificar-se. A partir da
morte de Teodósio, em 395, o Império separou-se definitivamente entre
o lado ocidental e oriental, cada um seguindo a sua própria evolução.
Em segundo lugar, do ponto de vista cultural, Diocleciano tentou
promover a romanidade, ou seja, os valores tradicionais da cultura
romana, as antigas virtudes romanas. Um exemplo disso é ter introduzido
o latim como língua oficial do Oriente.
Perante o facto de, em grande parte do território, se falar grego,
Diocleciano reage com a imposição do latim, contudo, sem grande
sucesso a longo prazo. Com Constantino, em 306, a língua grega volta a
ganhar relevo, consolidando-se a formação daquela cultura a que se
chama bizantinismo – síntese entre os elementos romanos e os elementos
provenientes da cultura grega, que caraterizará a cultura oriental. Apesar da
tentativa de restauração de Diocleciano e da atividade jurídica continuar a
ser desenvolvida essencialmente em latim, a realidade acabou por se impor
na medida em que as diferenças linguísticas e culturais entre o Ocidente
e o Oriente foram mais fortes do que qualquer outra tentativa de nova
uniformização/reunificação.
Do ponto de vista administrativo, dá-se uma forte centralização do
poder nas mãos do Imperador, que passa a governar o Império através de
funcionários que estão dependentes de si. Recorde-se que, na República,
o poder é exercido por magistrados, no Dominado é o oposto: todo o
poder é visto como uma expressão do exercício imperial.
Verdadeiramente, temos 2 estruturas democráticas diferentes: por um
lado, a burocracia administrativa, por outro, a organização militar. A
primeira era organizada à semelhança do exército (forma hierárquica
vertical).
A existência destas 2 estruturas administrativas é importante, pois a
existência de duas servia como forma de cada uma limitar o poder da
outra – nenhuma tinha o exercício da totalidade do poder, princípio
romano designado por Divide et Impera. O poder é centralizado no
Imperador, apesar de haver vestígios residuais da República romana,
como por exemplo, as designações das antigas magistraturas ou mesmo do
Senado que se mantêm como dignidades honoríficas ou títulos. Roma
continua a ser chamada Urbs aeterna e distinção especial foi igualmente
dada à cidade de Bizâncio, em honra do Imperador Constantino, que se
passa a chamar Constantinopla, enaltecida como “nova Roma”. Em
último lugar, as consequências destas modificações sobre o Direito romano
incluem não se dispor das antigas magistraturas, nem de uma classe de
juristas: onde existe Direito desenvolvido sem juristas? O
desaparecimento da condições sociais e instituições que permitiram a
firmação do Direito romano clássico teve por consequência uma forte
degradação do papel social do Direito, sobretudo do Direito romano
Privado. O sinal dessa decadência jurídica consta nas chamadas leis da
citação: leis do Imperador que determina quais são os juristas romanos que
podem ser citados. Com Constantino, determina-se que apenas um jurista
chamado Papiniano deverá ser citado. Em 426, com o Imperador
Teodósio II e Valentiniano III, esta lei sobre a citação é substituída por
uma outra mais ampla, que determina que só podem ser citados Papiniano,
Ulpiano, Paulo, Modestino e Gaio.
Impõem-se 2 aspetos: como se resolvem casos de dúvida e como se
resolvem os casos de empate, através da prevalência da maioria e da
prevalência do entendimento sobre o qual Papiniano se pronunciou, se
não houver nenhuma pronúncia deste, o juiz pode decidir (a reflexão do
juiz e do julgador não representam qualquer função, revela o degredo), isto
respetivamente.
Nesta fase, o dinamismo jurídico já não está na classe dos juristas, mas
sim no Imperador. A partir desta altura, a novidade chegar-nos-á apenas
através do exercício do poder imperial, promulgando Constituições-
atos decisórios do Imperador. A fonte jurídica de referência serão as
Constituições Imperiais, reunidas em coletâneas particulares.
 Havia uma constante necessidade e capacidade de conseguir integrar, na
esfera política, os novos órgãos políticos que vão surgindo, por exemplo:
na República Romana foi necessário dar uma maior representação política;
no quadro do Império romano, o exército acabou por obter uma maior
representatividade com o passar do Principado; o Direito Romano adapta-
se aos tempos.
51. O Cristianismo. Um novo factor cultural.

A organização política romana adaptou-se para responder à sua ordem


social. O exército, que adquiriu progressivamente relevância, acabou por
obter maior representatividade com a transição para o Principado, uma
vez que o Princeps era aquele que detinha o poder sobre o exército. Não é
possível uma organização estável em que o poder tem de ser sempre
negociado e, quando tal acontece, o sistema político entra em crise.
Neste contexto, surge um novo poder político, cultural e religioso – o
cristianismo. Quando se fala em cristianismo, neste período, fala-se em
pequenas comunidades de crentes, Igrejas (no plural) que partilham uma fé
comum, e Igreja (no singular).
Nos primeiros séculos, o cristianismo não tinha grande relevância no
âmbito do Império romano, era apenas uma religião entre muitas.
Contudo, à medida que vai crescendo, começa a tornar-se uma realidade
política que não podia ser desconsiderada, ao ponto de ser objeto de
perseguições cíclicas, apesar de uma das caraterísticas mais proeminentes
da cultura romana é a sua capacidade de encontrar pontos de equilíbrio
entre o que é próprio de Roma e o que é próprio das culturas com que
interage e tal aconteceria também ao nível religioso.
Os romanos admitiam que as divindades próprias dos povos que
integravam o Império romano viessem, também, a integrar o Panteão
romano – conjunto de deuses a quem se prestava cultuo em Roma.
Recorde-se, contudo, que a lógica da religião romana não assenta na
crença, mas sim na prática, na ritualização, ou seja, a lógica da cultura
romana exige aos povos correspondentes que prestem culto às
divindades romanas. As comunidades romanas não podiam transigir
porque tal conflituava com a própria fé cristã, uma vez que lhes era exigido
reconhecerem como Deus um Deus em que não acreditavam. Ao apelidar
o Imperador de Deus, Diocleciano procurou restaurar a religião
antiga.
A incapacidade de as instituições romanas lidarem com este novo fator
político (o cristianismo) resolveu-se no séc. IV – no ano de 311, o
Imperador Galério publicou um Édito de tolerância. A partir de 311, os
cristãos são tolerados. Para além disso, em 313, com Constantino, publica-
se o Édito de Milão, que volta a oferecer, mas por um Imperador de
grande relevo, tolerância oficial ao cristianismo.
Assim, o cristianismo deixa de ser um fator marginal e passa a ser um
fator central da cultura romana, isto porque à tolerância oficial se vai
acrescer um fator adicional – a conversão de Constantino ao
cristianismo, o que, logicamente, dá um destaque notável à religião
cristã. É importante ver esta conversão não apenas como um ato pessoal,
mas também como um ato político, uma vez que o século III é um período
de grande heterogeneidade cultural e instabilidade política, no qual o
cimento social que está na base do funcionamento das instituições políticas
romanas está em crise. No fundo, quando Constantino começa a
favorecer o cristianismo, tem também em vista uma intenção política
clara – beneficiar de um novo fator de coesão social, isto é, reforçar os
laços interiores do Império a partir de um fator de coesão de índole
religiosa, pois o cristianismo tem nos seus próprios termos caraterísticas e
elementos que pretendem a criação de uma comunidade global. O sétimo
Concílio Ecuménico, ou segundo Concílio de Niceia, destinado a
responder a uma questão estritamente teológica e não política, ligada às
divergências ideológicas resultantes do confronto entre a doutrina católica
tradicional e o chamado arianismo, convocado pelo Imperador
Constantino, testemunha a sua intenção de favorecer o cristianismo.
Estas modificações no séc. IV vieram a ter amplas consequências nos
séculos subsequentes, como, por exemplo, a introdução por Constantino
do domingo como dia de descanso oficial.
RELEVÂNCIA D CRISTIANISMO
1. A promoção do cristianismo pelas instâncias centrais do Império
permitiu que os valores cristãos premiassem;
2. Após a queda do Império romano do Ocidente, em 476, as
estruturas da Igreja católica serviram de veículo para transmitir
para a época histórica seguinte elementos da cultura antiga, isto
é, o relevo histórico da promoção do cristianismo não esteve
apenas na promoção dos valores cristãos propriamente ditos,
mas em que as instituições eclesiásticas serviram como meio para
transmitir os valores da cultura greco-romana após a dissolução
das instituições políticas romanas. Por exemplo, foi na Igreja que
continuou a ser cultivada a língua latina, a literatura latina, etc.;
3. A partir do momento em que o cristianismo se tornou religião
oficial, o Império romano do Oriente pensou-se sempre como um
Império cristão. Simultaneamente com uma missão secular e
religiosa, procurando um ideal de simbiose entre estas duas
dimensões – duas realidades diferentes, mas que se harmonizam
de forma articulada – cesaropapismo (conciliação entre o poder
político e o poder eclesiástico). Depois da queda de Bizâncio, este
ideal cesaropapista foi continuado pela Igreja ortodoxa,
especialmente pela Rússia.
52. O fim do Império Romano do Ocidente. O Império Romano
do Oriente.

No Ocidente, o Império romano acabou por não conseguir se recompor,


assiste-se a um forte declínio cultural, político, económico social e
demográfico. Aliás, os últimos séculos do Império são de grande crise
demográfica. Os cidadãos deixam de se reproduzir numa tentativa de
manter os níveis de população. No séc. IV, de acordo com alguns
historiadores, nas províncias ocidentais já haveria uma real falência das
instituições públicas, que já não conseguiam satisfazer as necessidades
básicas da população, como estabilidade, paz e alimentação.
É um século de sucessivas crises. A estes fatores, acresce um grande
acontecimento de natureza demográfica – movimentação de povos
germânicos desde a Ásia central até à Europa. Estes povos, a princípio,
estavam do lado de lá da fronteira romana – limes (limite).
Numa segunda fase, começam a ultrapassar a fronteira. Numa terceira
fase, as autoridades romanas ocidentais não conseguiam manter a ordem
pública e têm de alinhar com estes povos.
O Império acaba por cair em 476, sendo que o último imperador se
chamava Romulus Augustulus. Estes povos germânicos incluíam godos
(divididos em visigodos e ostrogodos), burgúndios, francos, lombardos,
suevos, vândalos, alanos, etc. A partir daqui a Europa não é um produto de
Roma, mas sim como uma mescla de vários elementos:
1. elemento cristão (com os seus valores próprios), era um elemento de
transmissão dos valores antigos;
2. elemento germânico;
3. elemento romano.
Os povos germânicos procuraram uma síntese com a cultura romana, aliás,
tiveram a capacidade de fazer a sua cultura romana, através de uma língua
diferente. Hoje falamos português porque os povos germânicos que
estiveram na Península Ibérica aceitaram uma síntese com uma língua local
de origem romana. Na obra Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando
Venâncio, linguista que estuda a língua portuguesa e a sua formação
histórica, afirma que o português é uma derivação do galego e que já teria
os seus elementos fundamentais no ano 600 d.C., portanto, cerca de 500
anos antes do momento que se tem como fundação da nacionalidade. É um
período em que estão na Península Ibérica os povos germânicos, isto é, é no
período da presença germânica que seria supostamente exterior, que já se
reúnem os elementos fundamentais para se formar uma língua, que é latina.
Daí que os povos germânicos tenham, também, aproveitado os elementos
do Direito romano, incluindo o próprio Direito romano, mais vulgarizado, o
que subsiste do Direito romano tardio (reuniram em compilações).
(após a queda o Império Romano do Ocidente, o novo agente político de
referência passa a ser constituído pelos povos germânicos e estes povos
englobam os povos europeus: alemães, entre outros e foi a partir destes que
se veio a constituir França, uma parte do que viria a ser Itália, parte de
Escandinávia, Inglaterra- apenas depende do povo em causa; estes povos
tentaram entrar e absorver quanto pudessem e entenderam possível dos
restos da cultura romana, aproveitando as suas instituições, entre elas, no
caso da Europa Ocidental, a língua latina, assim se explicando que no
Ocidente Europeu as principais línguas de referência tenham origem latina
e não germânica)
No Oriente, pelo contrário, atingiram-se novos períodos de esplendor, isto
é, houve efetivamente um recobro de forças do Império, entre outros
aspetos, fruto da inteligência da condução política do Império do Oriente,
ele ter sido poupado às invasões germânicas. De facto, no Oriente, o
Império romano só veio a cair em 1452, embora já estivesse numa situação
débil desde, sobretudo, o século XIII, na sequência de uma das cruzadas
movida pelo Ocidente da Europa contra o que era entendido como um
inimigo comum (os povos árabes e islâmicos) eu termino com o saque a
cidade de Constantinopla, o que marca negativamente as relações entre o
Ocidente e o Oriente. Uma vez que o Império romano conseguiu inverter o
processo de decadência, também os estudos jurídicos continuaram a ser
cultivados, nomeadamente naquilo a que se chama Escola de Beirute
(Líbano, Médio Oriente) e Escola de Constantinopla (centros organizados
para o ensino jurídico). Ambas as escolas eram verdadeiros centros
organizados de ensino jurídico.

X. Justiniano (482-565)

53. A singularidade de Justiniano e o Corpus Iuris Civilis.

Tudo indicaria, se a história fosse simples, que a partir deste momento


deixaríamos de considerar o Oriente, ora, se houve uma divisão entre o
Oriente e o Ocidente, tudo indicaria que agora, toda a nossa concentração
passaria para o Ocidente, deixando de haver Império Romano do Oriente.
Simplesmente, no âmbito do Império Romano do Oriente, que não
imediato, mas a longo prazo teve consequências no Ocidente. Este mesmo
acontecimento, no âmbito do Oriente, estava ligado a Justiniano que fora
Imperador do Oriente e promoveu uma compilação de textos- Corpus Iuris
Civilis- de Direito Romano que, a longo prazo, viria a ser de maior
importância para o Direito da Europa Ocidental.
Justiniano foi um dos mais destacados imperadores romanos, a sua
aspiração especifica foi restaurar e afirmar a grandeza do Império, sendo
que tal implica uma ação em termos militar, mas igualmente em termos
institucionais.
Quanto aos termos militares, o Imperador teve um sucesso militar
extremamente significativo durante o seu período governativo, este foi de
expansão do Império Bizantino (Bizâncio era a capital do Oriente) até ao
Norte de África e até à Península Itálica.
Relembrar que Roma cresce e chega a Bizâncio; perde parte de Itália,
mas Bizâncio volta a recuperar já com capital no Oriente. A longo prazo, os
imperadores que se seguiram a Justiniano não conseguiram manter essas
possessões em Itália.
Justiniano consegue recuperar territórios, mas recuperar a riqueza também
implica uma reestruturação das suas instituições, para que as organizações
militares sejam acompanhadas de organizações políticas. Isto remete-nos
para as questões institucionais.
Relativamente a estas questões, enquanto Justiniano promove a compilação
de textos de Direito romano, o ideal por detrás é de devolver à cultura
romana a sua grandeza, e se estas esteve, em boa parte, no seu Direito, tal
significará restaurar o Direito Romano. Neste âmbito, no preâmbulo às
instituições, o texto inicia-se com estas palavras que mostram claramente o
ideário por detrás deste projeto:
 «Imperatoriam maiestatem non solum armis
decoratam, sed etiam legibus oportet esse armatam, ut
utrumque tempus et bellorum et pacis recte possit
gubernari et princeps Romanus victor existat non solum
in hostilibus proeliis, sed etiam per legitimos tramites
calumniantium iniquitates expellens, et fiat tam iuris
religiosissimus quam victis hostibus triumphator.»

«A supremacia imperial há-de estar decorada não só


pelas armas, mas também pelas leis, para que em qualquer
tempo, seja de guerra, seja de paz, se possa governar
corretamente e o princeps romano se manifeste como
vencedor, não só nos confrontos com os inimigos, mas
também combatendo as injustiças dos caluniadores por
procedimentos legítimos, tornando-se assim tão fiel
observante do Direito como triunfador sobre os inimigos
vencidos.»

Parte inicial que vai compor o Corpus Iuris Civilis.


Concluindo, o projeto de restauração do Direito Romano tem em vista
afirmar a grandeza imperial não só no campo militar, mas sobretudo no
campo institucional. A verdadeira grandeza não se afirma quando o
governante se distingue não só pela força, mas sobretudo pelo Direito. Sem
o Direito ao seu lado, o governante é apenas aquele que tem a força bruta
ao seu lado.
 Napoleão fez o mesmo: conquistas militares e uma restauração jurídica.
CORPUS IURIS CIVILIS
Surgiu com Dionísio Godofredo, no século XVI, que decidiu fazer uma
edição dos textos romanos compilados por Justiniano.
A ação de Justiniano está integrada num propósito muito mais vasto e que
ultrapassa o Direito propriamente dito, que é a da restauração da grandeza
de Roma (é aqui que o Direito tem o seu lugar. A sua ação, na parte
jurídica, centra-se no projeto de compilação do Direito Romano que foi
confiado ao cuidado de um jurista chamado Triboniano (da Escola de
Constantinopla); do ponto de vista funcional, este jurista seria o
equivalente, no vocabulário contemporâneo, a um ministro da justiça.
Esta obra compilatória tem uma particularidade, quase que toda a sua
totalidade está escrita em latim, o que revela um forte contraste com a
língua franca do tempo. O intuito de restauração é muito mais evidente,
uma vez que se está a invocar uma língua que tem vindo a perder muita
utilizada naquele espaço territorial (restauração é mais importante).
ELEMENTO DO CORPUS IURIS CIVILIS
DIGESTO OU PANDECTAE
O Corpus Iuris Civilis é constituído pelo Digesto ou Pandectae, parte que
foi aprovada por uma Constituição imperial designada Tanta de 533. O
Digesto consiste numa recolha de citações de juristas clássicos divididas
por 50 livros, por sua vez, subdivididos em títulos. Esta recolha é a maior
de que dispomos de juristas do Direito romano clássico, daí a sua enorme
importância para o futuro- é o Digesto que explica porque esta compilação
de Justiniano realizada no Oriente teve grande importância para o Ocidente.
É que, quando em épocas futuras se procurou reconstituir o Direito
Romano, a fonte ao dispor foi esta, isto é, o Digesto constituiu o
instrumento mediante o qual gerações posteriores puderam fazer a ponte
para o Direito romano do período clássico.
O Ocidente futuro beneficiou de um produto da ação de Justiniano para, de
forma, autónoma, tentar aceder ao Direito romano clássico. Esta recolha
não foi exaustiva, antes pelo contrário, além de que Triboniano recebeu
poderes para escolher quais os fragmentos/citações a conservar, quais os
que deviam ser harmonizados e quais deveriam ser suprimidos. Perante as
fontes disponíveis, a comissão redatora encarregue da elaboração teve
poder para as modificar de acordo com o modo que entendesse mais
conveniente.
No Digesto, encontram-se citados 40 juristas romanos, desses o mais
representado é Ulpiano (Ulpianus), com cerca de 1/3 de citações, e Paulo
(Paulus) com cerca de 1/6. Estas citações foram retiradas de cerca de 200
escritos. O resultado final do Digesto é apenas 5% das fontes consultadas
pela comissão de elaboração.
Quanto ao conteúdo, o Digesto é essencialmente acerca do Direito Privado,
pois o Direito Romano Clássico dedica-se essencialmente a este. Também
há referências ao Direito Público e Penal, mas são, em termos
quantitativos, de menor relevância.

INSTITUTIONES
Destinavam-se à aprendizagem do Direito Romano, para iniciar ao
conhecimento deste Direito tão vasto, justifica-se um texto introdutório
inicial. As instituições foram elaboradas por Triboniano, Teófilo
(Constantinopla) e Doroteu (Beirute)- nomes gregos, muda o eixo da
cultura imperial. Estas instituições têm por inspiração uma obra de um
jurista romano anterior, secundário, chamado Gaio (século II). Esta
inspiração foi redescoberta no século XIX e permite ter uma imagem do
Direito romano complementar à do Digesto. Datam de 533.
CODEX
Consiste numa compilação de constituições imperiais de Adriano
(Imperador do século II) até Justiniano (Imperador no século VI). Datam
534, embora tenha havido uma versão anterior que foi substituída (em 529),
uma vez que impunha alterações na sequência de aprovação do Digesto e
das Institutiones.
Estes três elementos são os eixos fundamentais do projeto de Justiniano. A
este vão ser acrescentadas as chamadas Novellae, que foram recolhas
privadas de constituições imperiais posteriores em grego (não há delas
nenhuma versão oficial, mas havia uma coleção provada/de particulares
que recolhiam estas tais Constituições), não em latim, isto revela a intenção
de Justiniano de restaurar o latim (não se conseguiu impor).
Corpus Iuris Civilis (Corpo de Direito Civil- civil no sentido de direito
da cidade); tal designação surge quando foram publicadas por um autor
com este nome//Justiniano não daria esta designação.
Corpus Iuris Civilis difere de Corpus Iuris Canonici, este último é o
Direito Canónico, que surge na época medieval por meio da Igreja
Católica.
Justiniano proibiu que se fizessem comentários ao Digesto. Isto não é
totalmente respeito, uma vez que a lei da vida é que o Direito seja
modificado. Daí que, em âmbito bizantino, tenham surgido obras a traduzir
para grego (língua oficial do Oriente), o conteúdo do Digesto e a explicá-
lo. Estas obras de tradução e explicação foram relevantes no âmbito do
Oriente, nele tiveram importância, mas não vieram enfastiar o Direito
Europeu Ocidental no futuro.
IMPORTÂNCIA DESTA COMPILAÇÃO DE DIREITO ROMANO
A sua importância decorreria de outros eventos que não podiam ser
antecipados por Justiniano. Este apenas supôs que estava a restaurar o
Direito Romano no Oriente e, na verdade, a sua compilação veio a ser da
máxima utilidade para o Ocidente.
A partir do século XI/XII, sucessivas escolas do pensamento jurídico vão
servir-se desta coletânea de Direito romano para tentarem reconstruir o
Direito Romano para o seu tempo. No fundo, depois da queda do Império
romano no Ocidente, ele continuará a produzir efeitos de duas formas
diferentes:
1. continuará a funcionar como uma espécie de substrato integrado pelo
Direito Romano vulgar, ou seja, o Direito Romano aproveitado pelos
povos germânicos;
2. a partir do século XI, diferentes escolas do pensamento jurídico,
servir-se-ão das fontes disponíveis relativas ao Direito da
Antiguidade para edificarem aquilo que será o Direito Europeu. As
principais escolas que assumem como função utilizar o Direito
romano para o pensamento jurídico entre o século XI e XIX são:
a) os Glosadores;
b) os Comentadores;
c) Humanismo Jurídico (com muita importância em França e
também na Alemanha Ocidental);
d) Usus modernus pandectarum (corrente que pretende utilizar
o Digesto para encontrar aplicações no presente);
e) Escola História do Direito, sobretudo a Pandectística (na
Alemanha).
Isto explica, este processo histórico, que grande parte do Direito Privado
Contemporâneo corresponde a soluções do Direito Romano.
Notamos que, porventura, se o Digesto não tivesse existido como recolha
de textos fundamentais do Direito Romano (ou algo equivalente), não
disporíamos da fonte que nos serve de ponte para chegar ao Direito
Romano Clássico: sem esta ação de Justiniano, o Direito romano teria sido
igualmente grandioso, mas nada saberíamos acerca dela (aspeto próprio da
História, toda a forma de consciência acerca do modo como se vive e se
relaciona com o ser humano noutros períodos temporais, pressupõe a
conservação de fontes que permitam a sua recriação, pois, sem elas, a
ignorância prevaleceria- é o que acontece com os povos anteriores à
escrita).
Em suma, para explicar a influência do Direito Romano sobre o direito
europeu não basta recorrer a fatores explicativos de índole simplesmente
cronológica (processo histórico é muito mais complexo) e esta influência
do direito Romano advém do duplo caminho de ter subsistido como um
substrato e ter havido muitos impulsos posteriores de tentar modificar, de
modo cada vez mais fiel, o que seria o seu conteúdo real, é isto que explica
o paradoxo: o direito contemporâneo está muito mais próximo do direito
Romano clássico, de há 2000 anos atrás, do que medieval, de há 1000 anos
atrás, isto acontece, pois houve movimentos de recessão constantes no que
era mais distante (mesmo acontece com a filosofia).
Após a queda do Império romano, tem-se a alta Idade Média (fim do
Império romano – ano 1000) e a baixa Idade média (ano 1000 – fim da
Idade Média, em 1452).
XI. As grandes migrações dos povos germânicos
(século V e o ano 1000- Alta Idade Média)
55. O Império Franco. Clóvis.
Foi visto que, entre os séculos 3 e 8, se dá uma grande movimentação
demográfica de povos provindos da Ásia central para o seu extremo
ocidental, ou seja, Europa (do ponto de vista continental Europa e Ásia não
tinham nenhuma rutura, era a Euro-ásia). Foram muitos, mas é destacar um
povo especial de conjunto dos povos germânicos que, a nível europeu, virá
a ter uma importância muito grande- os Francos, as suas vicissitudes
refletiram sobretudo o direito português, logo não nos podem ser
indiferentes.
(França é descendente dos Francos)
Os Francos são um povo que chegaram à Europa ocidental e a partir da
figura de Clóvis, figura de finais do século V (481- início do seu reinado- a
511), afirma-se no momento histórico subsequente à queda do Império
Romano do Ocidente. Este afirma o seu poder no espaço correspondente à
Gália e, através de combate, consegue adquirir novas possessões no
território dam atual França e Alemanha, surge, assim, o Império
merovíngio franco.
É importante considerar o momento histórico em que surge, de facto, ao
surgir após a queda do Império Romano do Ocidente, tal permitia que
pudesse aproveitar as formas administrativas ou instituições romanas
subsistentes (administração, sistema tributário e sistema monetário)
A história nunca é feita de ruturas totais e, quando há uma modificação
de natureza política, a par da mudança, em alguns aspetos está a
continuidade em muitos outros (temos o exemplo da descolonização, em
que os povos, agora autónomos, aproveitam as instituições que lhes foram
deixadas). Basicamente, surge um novo sujeito/agente político que toma o
poder , este introduz algumas instituições e aproveita os elementos
deixados pela determinada cultura, no caso, a cultura romana.
Nestes primeiros séculos, não se assiste a um declínio imediato da cultura
romana. Tal acabará por acontecer, mas de modo paulatino. Numa primeira
fase, é possível reter a forma de vida citadina.
Outro aspeto da atuação de Clóvis que terá efeitos no Ocidente europeu é a
respetiva conversão ao cristianismo. É importante devido a 2 fatores:
a. político, pois tal permitirá beneficiar do contributo da Igreja
enquanto agente de transmissão cultural da cultura Antiga e
também enquanto apoio para a ação administrativa dos
governantes (conservou uma estrutura administrativa que
podia ser aproveitada pelos novos agentes políticos de
referência);
b. religioso, uma vez que se reconfigura o modo como a religião
cristã se apresenta na sociedade. Nos seus próprios termos, a
religião cristã pressupõe para que alguém se torne cristão, a fé
pessoal. Ora, um ato como o de Clóvis tem um significado
diferente, o que está em jogo é a religião enquanto fenómeno
social.
Na sequência da conversão do monarca, segue-se o batismo de toda a
população que integra a mesma comunidade étnica. São comportamentos
como estes que vão explicar que nos séculos subsequentes a religião no
espaço europeu seja vista não como um fenómeno especificamente
religioso, mas como um fenómeno social cuja relevância radica não em
convicções pessoais ou individuais de fé, mas sim de conformidade
comportamental com a religião social predominante, isto é, uma herança
destes atos dos primeiros monarcas germânicos.
56. Instituições políticas.
Quanto às instituições políticas, as consequências passam por, a partir de
agora, os pilares da organização social vão ser o rei, a nobreza e a Igreja.
Destes, o protagonista é o rei (as monarquias europeias têm por base as
tradições destes povos). A sociedade não se pensa como uma estrutura
institucional rígida, mas como uma rede de vinculações pessoais em cujo
vértice se encontra o rei e cujo a dispor está a uma corte, que se
compromete perante o rei a colocar-se ao seu serviço, com a contrapartida
de dele receber proteção. O único órgão institucional que encontramos
nesta forma de organização política será a Chancelaria real, destinada à
elaboração de documentos régios. Também é importante uma figura
designada Mordomo – era a segunda pessoa com mais poder, uma espécie
de Primeiro-Ministro.
Outro aspeto relevante é que em várias fases, o poder se exerce de modo
itinerante, com o rei a circular por todo o território. As funções do rei
contam com 2 fundamentais: o rei é pensado como um garante da paz e da
justiça; por outro, é pensado como um líder militar.
No quadro destas monarquias, o poder é fortemente participado pelos
súbditos ao rei (oposto das monarquias absolutas), justamente porque o rei
governa através de uma enorme rede de vinculações pessoais, impõem-se
que deixe participar no poder todos aqueles que lhes prometem obediência.
O rei deve governar cum consensu maiorum, isto é, com consenso dos
grandes, por exemplo: na aplicação do Direito, o rei se for chamado a
decidir, fá-lo em conjunto com os grandes, uma vez que o consenso é tido
como critério de verdade.
Uma outra característica é a forte associação entre a monarquia e as
estruturas eclesiásticas. O rei aproveita a seu favor estas estruturas,
nomeadamente a presença de autoridades como bispos (que têm poder
sobre as dioceses) ou abades (autoridade sobre mosteiros), associa a sua
atividade a estas personalidades. É isto que explica que, por exemplo, a
faculdade do rei convocar concílios (reuniões), o facto de participar neles e
se esforçar pela execução das respetivas decisões. Inversamente, as
autoridades eclesiásticas participam no conselho em redor do rei.
As vantagens que se impõem às autoridades eclesiásticas são:
 são elas que se impõem como um fator de dinamização cultural e
económica;
 (mais pragmática), atendendo ao celibato eclesiástico, ou seja, em
princípio um Bispo ou Abade não tem sucessor, o facto de o rei
associar a si estas autoridades permiti-lhe que, à sua morte, pudesse
tomar novas decisões a respeito da pessoa a quem confiava o
exercício da sua missão.
CONSEQUÊNCIAS SOBRE AS FONTES DO DIREITO
É natural que num período como este, em que decresce a cultura escrita e
ganha maior relevo a cultura oral, a fonte de Direito que acaba por emergir
seja o Direito Consuetudinário.
Encontra-se neste período alguma legislação, que se divide, do ponto de
vista do seu âmbito pessoal de aplicação em 3 grupos:
1. Legislação apenas destinada aos povos germânicos;
2. Legislação apenas destinada à população germânica e romana;
3. Legislação apenas destinada à população romana.
Uma fonte que surge neste período como relevante para o Direito é a
legislação proveniente de concílios eclesiásticos.
Outra fonte importante são os formulários – fórmulas típicas relativas à
celebração de contratos ou de atos jurídicos (por exemplo, queremos
celebrar um contrato, podemos fazê-lo recorrendo a um formulário),
garante que é celebrado de modo válido; eram conservados e reuniam as
formas adequadas para celebrar os contratos mais relevantes.
Conclui-se que é um período no qual as fontes de Direito provindas de
instâncias políticas centrais perdem grande relevância e em que uma
atividade jurídica interpretativa por parte de uma comunidade de juristas
não desempenha qualquer função, isto é, não há condições institucionais
neste período favoráveis a uma reflexão crítica e ponderada acerca do
Direito.
57. O Império Carolíngio.
Corresponde a um desenvolvimento particular que teve lugar no âmbito do
Império Franco. Ora, na passagem do séc. VII para o séc. VIII, este
Império passou por um conjunto de vicissitudes que conduziram a uma
reconfiguração. Desde metade do séc. VII, na realidade, o poder efetivo
estava nas mãos dos Mordomos, nomeadamente Carlos Martel (732), que
ficou conhecido para a história europeia como a figura que travou a invasão
árabe à Europa. Este teve 2 filhos, dos quais 1 deles conseguiu chegar à
condição de rei – Pepino, o Breve. Este último, em 751, torna-se rei, sendo
que a sua monarquia é legitimada do ponto de vista religioso pelo Papa. O
filho de Pepino, o Breve, será Carlos Magno, ou Carlos, o Grande. Esta
figura terá uma atividade de grande sucesso militar, mas também de grande
sucesso político.
Carlos Magno é de extrema importância para o futuro da Europa uma vez
que, no ano de 800, será coroado pelo Papa como Imperador romano. Dá-
se, assim, aquilo a que designava por renovatio (renovação) romani imperii
(Império romano), isto é, depois de terminado o tempo histórico do Império
romano, começou um outro com sucessivas tentativas de restauração, fruto
da força do imaginário político associado à grandeza de Roma. A
designação oficial que Carlos Magno dava a si próprio era Sereníssimo
augusto, grande e pacífico imperador coroado por Deus, governador do
Império Romano, e pela misericórdia de Deus rei dos Francos e dos
Lombardos.
Serenissimus augustus a Deo coronatus magnus et pacificus
imperator, Romanum gubernans imperium, qui et per
misericordiam Dei rex Francorum atque Langobardorum.
Sereníssimo augusto, grande e pacífico imperador
coroado por Deus, governador do Império Romano, e pela
misericórdia de Deus rei dos Francos e dos Lombardos.
(designação de Carlos Magno)
Esta figura teve um sucesso extraordinário, devendo-se a ele um conjunto
de iniciativas que em síntese são qualificadas como renascimento
carolíngio – conjunto de iniciativas empreendidas por Carlos Magno no
sentido da radicalização política e cultural dos seus territórios.
As principais iniciativas são:
 Na sua corte, situada na cidade de Aachen (atual Alemanha), foi
criada a Academia Palatina, para formação do monarca, da sua
família e dos seus conselheiros, e uma Escola Palatina, para
formação da aristocracia;
 Levou a cabo várias medidas para formação do clero (fator de
dinamização cultural), nomeadamente a exigência do domínio da
língua latina;
 Era da sua vontade que em cada Igreja catedral e em cada mosteiro
se abrisse uma escola, uma Escola episcopal (nas catedrais) e uma
Escola monástica (nos mosteiros);
 Empenhou-se na criação de bibliotecas e, sobretudo, de scriptoria –
espaços destinados à cópia de manuscritos. (Criação de um novo tipo
de letra, carolíngia, que foi desenvolvido de forma a permitir que a
mesma obra pudesse ser copiada por várias pessoas. Esta fonte de
letra veio ter uma grande divulgação na Idade Média);
 Dividiu o seu território em circunscrições, nas quais havia 2 poderes
(para se limitarem reciprocamente): por um lado, o Conde (poder
secular), por outro, o Bispo (que tinha poder secular e eclesiástico);
 Enviou inspetores às diferentes circunscrições, em número 2, um
secular e outro eclesiástico;
 Todas estas medidas foram acompanhadas de uma reforma jurídica
correspondente, através das chamadas capitulares, muitas delas
elaboradas no âmbito eclesiástico.
Este Império foi responsável não só por estas iniciativas culturais de
primeira importância, mas também por reabilitar o imaginário romano em
espaço europeu. Em vida de Carlos Magno, foi um Império bem
conseguido. Contudo, não sobreviveu ao filho de Carlos Magno. A partir
deste momento, o que virá a ser a França e o que virá a ser a Alemanha,
terá destinos diferenciados: ambos vêm em Carlos Magno o seu percursor,
mas com a divisão do Império Carolíngio, não se voltaram a unir.
Ainda no âmbito correspondente à atual Alemanha, no ano de 952 (1 séc.
após o fim do Império Carolíngio), um rei chamado Otão I da Saxónia veio
novamente ser designado Imperador romano. Nasceu em 952, uma entidade
política chamada Sacro Império Romano Germânico da Nação Alemã,
recuperando a herança de Carlos Magno e ainda a herança do antigo
Império romano, que perdura até 1806. Fruto desta ação, o ideário político
próprio da cultura romana esteve presente na Europa durante grande parte
da sua história. É também neste período histórico, ligado à figura de
Pepino, que se constituem os Estados Pontifícios, ou seja, as possessões
territoriais pertencentes à Igreja de Roma. Estes perduram até ao séc. XIX.
Portanto, desde este período até ao séc. XIX, a Igreja de Roma desempenha
uma dupla função na Europa e intervém de 2 formas sobre o Direito,
 por um lado, uma função espiritual;
 por outro, uma função temporal, atendendo ao poder que
detém sobre uma parte do território correspondente à atual
Itália.
Note-se que o Estado do Vaticano é ainda uma sobrevivência do que eram
os antigos Estados Pontífices e que à Santa Sé atribui-se personalidade
jurídica internacional, pois houve um tempo em que era um Estado.

XII. Direito Peninsular


58. Península ibérica. Antes do contacto com Roma.
Falamos de um Direito que vigorou num espaço territorial periférico
(Península Ibérica).
Dividiu-se em 3 fases:
1. Península Ibérica antes da chegada dos romanos;
2. Península Ibérica durante a presença dos romanos;
3. Península Ibérica após o período romano, aquando da chegada dos
povos germânicos.
PRIMEIRA FASE

A partir dos dados de que se dispõe, é possível concluir que antes do


período romano não existia nenhuma unidade geográfica, isto é, não havia
nenhum ponto comum a todo o território da Península Ibérica. Pelo
contrário, era um espaço caraterizado pela pluralidade étnica – 5 povos (os
Tartéssios, os Iberos, os Celtas, os Celtiberos e os Franco-Pirenaicos),
considerados próprios, nativos, da Península Ibérica. Acrescentam-se 3
outros, que correspondem a verdadeiras potências mediterrânicas – os
Fenícios (médio oriente, atual Líbano), bem como alguns povos de cultura
grega e os Cartagineses. Consequentemente, esta diversidade de povos
conduzirá, naturalmente, a uma pluralidade política. A organização social e
política assentava nesta diversidade de tribos, cada uma com os seus
próprios agregados familiares e associando à própria tribo o poder sobre
diferentes povoações: está-se, ainda, numa forma primária de organização
política. Contudo, de forma a enfrentar um inimigo comum, poderia haver
uma confederação de diferentes povos para esse fim específico.

Como é que estes agentes interagiam entre si?


Mediante acordos da clientela (verticais) ou mediante acordos de
hospitalidade (horizontais). Do ponto de vista individual, são povos que
conhecem a distinção entre seres humanos livres e escravos.
QUANTO AO DIREITO
Quanto ao Direito, começa-se por reconhecer que se sabe muito pouco a
respeito do Direito destes povos. Do que se sabe, as ilações devem ter tidas
por hipotéticas ou provisórias, uma vez que em relação a estes povos não se
dispõe das principais fontes de que um historiador precisa para reconstituir
o seu Direito – as fontes escritas. De facto, torna-se difícil reconstituir
posteriormente o Direito de povos cuja cultura tinha uma tradição oral
muito forte.
Surge, assim, o método comparativo – quando se retira uma conclusão
acerca de uma instituição jurídica de um povo, admite-se que um povo
equivalente ou próximo também a teria desenvolvido, e o método das
sobrevivências – quando, num momento posterior, não se identifica a
origem de um determinado instituto, admite-se que ele será uma
sobrevivência de um tempo histórico anterior. Estes 2 métodos são muito
precários e falíveis. Hoje, constituem um outro conjunto de métodos
facultado por outra ciência: a arqueologia. Para estas épocas históricas, será
a arqueologia que estuda os monumentos, os vestígios de objetos, que
tenham sobrevivido, para a partir daí reconstituir os modelos de
organização social a que remetem.
Sabe-se, no entanto, que este Direito tinha como fonte predominante o
Direito Consuetudinário, que seria a base de funcionamento e organização
das relações sociais.
Podemos acrescentar os acordos de hospitalidade e, em alguns casos,
sabemos da existência de leis, mas não do seu conteúdo. A nível familiar,
sabe-se que, em geral, terá predominado um modelo de família
monogâmica e patriarcal, salvo no norte da Península, em que haveria uma
base matriarcal. Sabemos, também, que o Direito Penal tinha uma
dimensão mitológica e religiosa muito forte, sendo muito rígido e violento.
Quanto aos povos exteriores que estiveram na Península Ibérica, podemos
admitir que o seu Direito era semelhante ao aplicado nos seus locais de
origem.
59. Península ibéria. Aquando do contacto com Roma.

Distinguem-se 2 subfases:
a. fase de conquista romana, de 218 a.C. até 19 a.C.;
b. fase de romanização, de 19 a.C. até à chegada dos povos
germânicos em 409 d.C.
A fase de conquista da Península Ibérica corresponde à fase de afirmação
de Roma como grande poder militar, que diz respeito à fase tardia da
República e termina com a criação do Principado. A fase de conquista
termina em 19 a.C., quando já se está no Principado, com Augusto. Aliás,
Augusto, na sua autobiografia, faz referência expressa à Península Ibérica.
Segundo parece, a Península Ibérica foi um espaço de difícil conquista, em
que os povos locais oferecem forte resistência, mas acabou por
desaparecer.
A segunda fase respeita à romanização – veiculação e transmissão dos
valores romanos, tornando-os o quadro cultural de referência.
Como se deu esta romanização? Através de fatores culturais e políticos, por
um lado, mas também por medidas jurídicas, por outro. Os primeiros
incluem o simples funcionamento das instituições romanas (com a presença
na Península Ibéria das instituições romanas, naturalmente nelas são
veiculados os valores próprios da sua cultura), como o exército romano (em
conjunto com as legiões romanas) e a administração romana. Com o povo
romano, chega um conjunto de inovações técnicas aptas a reforçarem o
prestígio de Roma junto das populações locais – saber técnico romano,
como a abertura de estradas, a criação de uma rede de comunicação comum
a todo o espaço em redor do Mediterrâneo, o que se traduz no aumento dos
fluxos de transmissão de informação entre espaços geograficamente
distantes, para além da construção de pontes e aquedutos. O modo de vida
citadino e urbano também merece destaque – as cidades, enquanto lugares
de encontro e de cultura, contrastavam com o primitivismo dos povos
locais. A difusão da religião romana, que servia de ponto de contacto entre
os romanos e não romanos, e a própria língua latina, são também fatores de
natureza institucional relevantes. A estes fatores acrescem fatores de
natureza jurídica, isto é, uma parte da ação jurídica romana destinou-se a
promover a romanização. Neste sentido, identificam-se 2 momentos
fundamentais:
1. surge por volta do ano de 73/74 d.C. com o Imperador Vespasiano,
que conferiu aos habitantes da Península Ibérica a latinidade –
categoria intermédia entre ser cidadão e estrangeiro. Quem gozasse
deste direito, embora não fosse cidadão romano, já gozava de alguns
direitos próprios, como por exemplo beneficiar do ius civile, do
direito de sufrágio e de participação nas assembleias populares, bem
como a possibilidade de ascenderem à cidadania romana, quando
observada a condição de exercer uma magistratura local;
2. surge em 212 d.C. com o Imperador Caracala, que confere a
cidadania romana a todos os habitantes do Império – a romanização
está completa.

PONTO DE VISTA DO DIREITO

A aplicação do Direito romano passava por, em primeira instância, se


aplicar o Direito romano geral, comum a todo o Império, o que não quer
dizer que se aplicasse de modo uniforme em todo o território. Na Península
Ibérica, há menos condições para uma aplicação do Direito com um nível
cultural e jurídico elevado uma vez que se trata de um território periférico,
ao passo que no centro do Império se verificava o inverso. Na Península
Ibérica não existe uma comunidade de juristas, nem a administração
romana mais competente ou o círculo imperial. Este Direito geral seria
aplicado de uma forma vulgar. Acresceria o Direito próprio da península –
o Direito provincial e o Direito municipal (relativo às entidades com
qualidade de município). Para não romanos, valeria o ius gentium ou os
próprios Direitos locais.
Em conclusão, o Direito aplicado neste espaço era vulgarizado, certamente
com alguma miscigenação com os Direitos locais, distante do centro do
Império. Foi este Direito que passou para os povos germânicos que se
instalaram na Península Ibérica.
É certo que o povo romano trouxe muito à Península Ibérica, mas
também é correto afirmar que tirou muito desta. A Península Ibéria era uma
fonte de minérios (prata, cobre, ouro, chumbo), sendo que alguns desses
minérios acabam esgotados. Por sua vez, com uma costa muito vasta e
grandes reservas de sal, a Península Ibérica abastecia todo o Império com
reservas de peixe.
60. Península ibérica. Depois dos povos germânicos.
Do ponto de vista histórico, o período de decadência do Império Romano
foi causado, em parte, aquando da chegada dos povos germânicos ao
extremo ocidente europeu (começa na Ásia e acaba na Península Ibérico- o
seu percurso literal foi a partida da Ásia central, chegam à Europa Central e
acabam por entrar na Península Ibérica). Estes povos chegam à Península
Ibérica no ano de 409, período no qual o Império Romano ainda existia,
ainda que já debilitado.
Neste momento chegam três povos: os Alanos, os Vândalos e os Suevos
(com maior importância, uma vez que, a partir de 429, os outros dois povos
foram expulsos deste território).
O espaço de domínio dos Suevos corresponde, essencialmente, ao noroeste
da Península Ibérica (atual norte de Portugal e Galiza em Espanha). Este
espaço correspondia a uma província romana chamada Galécia, criada por
Diocleciano. Por sua vez, o espaço de domínio central deste povo
correspondia à zona entre o rio Douro e o rio Minho.
Quando os Suevos chegam à Península Ibérica fazem-no num número não
muito significativo (apenas 5% da população), o que explica que a sua
conquista não possa ser vista como um movimento de conquista, mas de
instalação local.
Este povo existiu como unidade política de 576 a 585 (corresponde ao
reinado de Leovigildo).
VISIGODOS
O segundo povo de grande relevo para a Península Ibérica foram os
Visigodos, que depois de estarem no território correspondente ao atual sul
de França, atravessam os Pirenéus e instalam-se na Península Ibérica.
Terão chegado em finais do século V.
Os Visigodos conseguiram unificar a Península Ibérica sob o seu poder,
nomeadamente após a expulsão dos Bizantinos, que, sob Justiniano, tinham
conquistado parte de Espanha e também mediante a eliminação do povo
suevo.
A partir do momento em que excluem possíveis rivais, unificam a
Península Ibérica sob o seu poder entre 621 e 631. O centro de poder do
reino visigótico era a cidade, atualmente em Espanha, de Toledo. O reino
visigótico terminou com a chegada dos povos árabes, em 711.
CARACTERÍSTICAS DESTES POVOS
Quer Suevos, quer Visigodos, ambos passaram por um processo de
cristianização, isto sendo de grande importância, pois a cristandade
subsistiu a romanidade como fator de unidade cultural. Através da
conversão ao cristianismo, os povos germânicos receberam a herança da
Antiguidade tal como veiculada pela instituição que lhe sobreviveu (a
Igreja). A conversão definitiva do reino suevo ao cristianismo dá-se em
589. No século VI, ambos os povos integravam o espaço da cristandade. A
ideia não é certamente de religião pessoalmente assumida, mas de religião
como fator social agregador de uma sociedade muito heterogénea.
Do ponto de vista demográfico, dá-se uma aproximação gradual entre os
povos germânicos e os povos locais (hispano-romanos). A permanência dos
germanos na Península Ibérica levou a uma progressiva aproximação
cultural e demográfica até ao ponto de não haver diferenças, ainda que à
partida existissem. Note-se que é afastada uma regra que proibia
casamentos mistos, uma vez que já não se compreenda a diferença entre os
dois povos.
As grandes figuras culturais deste período são de âmbito eclesiástico. No
caso do Suevos temos a figura de São Martinho de Dume; no caso dos
visigodos temos a figura de São Isidoro de Sevilha que compôs uma das
obras mais importantes da Idade Média designada Etimologias, que
consiste nos diferentes saberes e na explicação para sua origem. Num
contexto de grande dificuldade de acesso ao conhecimento, esta obra
permitiu transmitir para a Idade Média, numa primeira fase, elementos
próprios da cultura da Antiguidade. Foi um dos principais veículos para
não se perder esta ligação. A obra acabou por perder importância uma vez
que à medida que o tempo foi passando, começou-se a poder aceder a
fontes com mais qualidade.
QUANTO AO DIREITO
Conservamos fontes legislativas, umas completas, outras incompletas. São
mais inspiradas no Direito romano do que no Direito germânico e
testemunha já um elevado grau de recessão da cultura romana vulgarizada.
Sabemos que o Direito Germânico numa primeira fase seria de aplicação
pessoal, valendo apenas para os povos germânicos. A partir de 580, com o
Código Revisto de Leovigildo (embora não a se tenha a total certeza), seria
de aplicação territorial, aplicando-se a todos os que se inseriam neste
território independentemente da sua origem étnica (no período intermédio
era de discussão geográfica).
O Direito Consuetudinário era de grande importância como é próprio de
culturas que não têm a dimensão escrita.
Por sua vez, o Direito Canónico cresce em relevância, sendo que é
importante por toda a Idade Média. É emanada pela Igreja Católica e
elaborado com muita frequência pelos consílios neste período temporal.
Tratava de assuntos seculares, uma vez que a Igreja era utilizada pelo
monarca como auxiliar na sua atividade de governo.
Também disponhamos de coleções de formulários na Península Ibérica e
estes eram usados para celebração de contratos quanto à mesma.
61. Período islâmico.

O período germânico termina com a invasão árabe. Na origem dessa


invasão está um acontecimento religioso que consiste no conjunto de
revelações que uma personalidade chamada Maomé teria recebido de um
anjo. A partir do ano de 610, viriam a constituir um livro – o Alcorão, que
recolhe estas relevações e é o texto sagrado da religião islâmica. A partir
deste conjunto de revelações, Maomé inicia um movimento que terá uma
enorme importância política e religiosa.
Independentemente do aspeto estritamente religioso, o Islão (sujeição ou
submissão) tem um significado político muito relevante. Foi ele o cimento
que permitiu unificar os povos árabes, tipicamente dispersos por diferentes
tribos, que conseguiram encontrar aqui um elemento de união superador
dessas divergências. Da mesma forma que do ponto de vista cristão existe a
noção de Igreja, do ponto de vista islâmico existe a noção de Umma. Os
primeiros séculos da religião islâmica são, do ponto de vista político, de
extraordinário sucesso. Em 150 anos, o espaço que vai da Península Ibérica
até ao atual Paquistão fica sob influência islâmica, ou seja, grande parte do
espaço que ainda corresponde ao espaço de cultura islâmica foi
conquistado nestes primeiros 150 anos.
O reino visigótico é, assim, derrubado. O que trava a expansão árabe na
Europa é a derrota perante as forças dirigidas por Carlos Martel.
Compreende-se, por isso, que, no quadro de uma Europa cujo fator de
unidade, naquele momento, era de natureza religiosa, a vitória de Carol
tenha sido celebrada por todo este espaço como uma enorme conquista que
garantia um imenso prestígio ao reino franco enquanto aquele que defendeu
o território europeu do invasor.
Com a chegada dos povos árabes, sentiram-se enormes alterações no
Direito. De facto, para a religião islâmica, o Direito é uma dimensão central
(uma expressão, à qual se designa Charia- Direito Islâmico). Se Islão
significa submissão. É desde logo a submissão a um Direito próprio.

CHARIA- O DIREITO ISLÂMICO, CARACTERÍSTICAS


Direito de base religiosa, não só não é inspirado na religião, como é uma
expressão e deriva da mesma. A religião tem uma vertente normativa, de
onde resulta que são fontes centrais para o Direito Islâmico o Alcorão e a
chamada Sunna (recolha de atos que teriam sido praticados por Maomé).
O Direito Islâmico, enquanto Direito religioso, é pessoal, dirige-se àqueles
que se submetem ao Islão. Faz-se uma distinção para com terceiros:
originalmente, são obrigados à conversão ao Islão; os cristãos ou judeus,
que do ponto de vista dos Islão são vistos como precursores da religião
islâmica, podiam conservar e exercer a sua religião, mas estavam sujeitos a
um imposto especial (tolerância vinha com um preço).
Os cristãos que conservaram a sua religião correspondem aos moçárabes.
Entre moçárabes e muçulmanos aplicava-se sempre o Direito germânico, a
passo em que nas relações internas dos moçárabes se aplicava o seu Direito
próprio, herdado do período visigótico.
FONTES DO DIREITO ISLÂMICO
Consenso unânime da comunidade;
A existência de uma jurisprudência religiosa da autoria de juristas, que
emitiam pareceres sob assuntos religiosos. Esses pareceres eram
designados por fatwa. Dentro desta religião há duas grandes correntes: o
sunismo e xiismo.
Precedentes e costumes judiciais (numa primeira fase).
Atos emanados de entidade competente que pode ter uma legitimação
religiosa.
Podemos, assim, supor que a permanência árabe na Península Ibérica teria
conduzido a que a médio/longo prazo se tivessem perdido traços
caracterizantes. Por sua vez, a presença árabe acabou por eliminar de
maneira significativa elementos da cultura romana. Ninguém imaginou que
os árabes viriam a tirar o poder aos germânicos.

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