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Curadorias: Reflexões sobre um fazer antropológico

por dentro de exposições de arte

Projeto de Pesquisa apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS/Unicamp) para
candidatura ao processo seletivo do Curso
de Mestrado

Linha de Pesquisa: Antropologia e


Etnografia do Conhecimento

Candidata: Paloma de Paula Cassari

Campinas
2021
Resumo

Este projeto de pesquisa reflete sobre relações entre imagens, poder e curadoria,

buscando compreender como os antropólogos têm pensado a montagem de

exposições na contemporaneidade. Propõe-se a etnografia de três exposições,

sendo elas, “Histórias Mestiças”, “Histórias da Sexualidade” e “(In)visible: The

Spiritual World of Taiwan through Contemporary Art”, todas curadas por

antropólogas, partindo de possíveis relações entre curadoria e antropologia,

sobretudo ao analisar expografias, seleções e dinâmicas em torno do papel do

curador.

Palavras-chave: Antropologia da Arte; Antropologia e Imagem; Curadoria;

Exposições;

Introdução

Este projeto traz como objeto de pesquisa três exposições curadas por

antropólogos, sendo elas “Histórias Mestiças” (2016), “Histórias da Sexualidade”

(2017), ambas com curadoria-adjunta de Lilia Schwarcz, e “(In)visible: The Spiritual

World of Taiwan through Contemporary Art” (2015) de Fuyubi Nakamura, sendo a

última, assumidamente antropológica.

A escolha destas exposições se dá pelo fato de trazerem antropólogas como suas

curadoras, sendo o enfoque deste projeto a intersecção entre antropologia e

curadoria, reforçando os debates realizados dentro de uma chamada “antropologia

da arte”. Nos interessa entender a importância do antropólogo como curador, ou do

curador como etnógrafo, como proposto por CESARINO (2016). Compreendendo a

curadoria como uma função na qual, como apresentada por BOONE (2010):
“o curador, em suas diversas funções, é também
diretor de museu/galeria, organizador de exposições,
arquivista, conservador, negociador (de arte), assessor de
imprensa, cúmplice de artista, enfim, múltiplos papéis que se
(con)fundem em um só.” (2010, p.160)

Ou seja, dentro da história da arte, o curador continua sendo figura que não apenas

organiza coleções como seleciona obras, tendo o poder de impulsioná-las ao

mercado de galerias e instituições, ou até mesmo, dar a objetos o status de obra de

arte. Buscamos entender como essa função dialoga com a própria antropologia,

entendendo os jogos de poderes, as dinâmicas de construção de narrativas, sejam

elas textuais ou imagéticas, e os tensionamentos acionados por uma curadoria feita

por um viés supostamente antropológico.

Deste modo, introduziremos as três exposições, suscitando algumas

questões em torno delas e de seu chamado “partido” ou “linha curatorial”1.

Começaremos por “Histórias Mestiças”, com curadoria de Lilia Schwarcz e Adriano

Pedrosa, realizada no Instituto Tomie Ohtake em 2015. A exposição se apresenta

como uma pesquisa feita pelos curadores ao longo de dois anos, em torno das

discussões históricas sobre a chamada mestiçagem e seus desdobramentos na

sociedade brasileira, sejam eles desdobramentos histórico-sociais ou culturais, de

modo que os curadores identificaram produções imagéticas de suportes diversos ao

redor desse debate. Frutos desta pesquisa foram não apenas a exposição, mas

também uma antologia de textos sobre o conceito de mestiçagem. Neste caso,

vamos nos ater a um trecho de um dos textos de Schwarcz, contido na antologia:

1
Chama-se partido curatorial uma linha de pensamento exposta pela equipe de curadores, e que
guia a narrativa proposta por uma exposição ou pela instituição de arte como um todo. Este conceito
é aprofundado na obra de Luiz Camillo Osorio (2015), ao analisar o partido curatorial do Museu
Nacional de Reina Sofia, em Madrid, aproximando as discussões entre crítica de arte e curadoria.
In. Osorio, Luiz Camillo. "Virada Curatorial: O Pôr-em-obra Da Exposição Como Poética Relacional."
Poiésis 16, no. 26 (2015).
“Local de produção por excelência, essas narrativas
apresentam respostas múltiplas e ambivalentes, frente a um
tipo de discurso que prima por se mostrar assertivo e
normativo. Os signos dessas histórias mestiças são também
descontínuos, por oposição a uma história positiva - apoiada
em datas e eventos previamente selecionados e cujo traçado
se pretende objetivo e evolutivo. No caso dos textos mestiços,
sexualidade, gênero, etnicidade, práticas violentas, raça,
diferenças culturais e mesmo históricas emergem de maneira
híbrida, incerta, deslocada.” (SCHWARCZ, 2015, p. 14)

Observa-se, no texto de Schwarcz, um discurso que se aproxima das produções

antropológicas chamadas pós ou decoloniais. Identifica-se uma produção de

narrativas mestiças, em oposição a uma narrativa da metrópole colonial2, algo

explicitado por autores como FANON (1968) e TAUSSIG (1993), que questionam os

reflexos de países que passaram por processos de colonização, especialmente no

contexto americano. Opera-se aqui, portanto, um esforço de ressaltar a existência

de produções artísticas oriundas destes múltiplos sentidos da colonização e da

mestiçagem. Como exemplo, podemos mencionar uma das artistas selecionadas e

expostas, a fotógrafa Claudia Andujar, cujo trabalho foi objeto de diversas pesquisas

da antropologia visual3. Ao falar sobre sua série exposta, chamada “Marcados”4, ela

explicita: “A exposição e meu trabalho aqui fazem parte também da minha própria

mestiçagem como pessoa.”.5 Portanto, pode-se identificar um diálogo entre a

2
“Essa política de estereótipos faz parte de um discurso colonial bastante disseminado, o qual, por
meio de livros, mapas, desenhos, pinturas, censos, jornais e propagandas vai criando um mundo
engessado enquanto representação, feito cartografia com lugar previamente delimitado e definido.
Quase como uma resposta a esse modelo construído e veiculado pelas metrópoles coloniais, essas
histórias mestiças aparecem como o outro lado do espelho, ou talvez como um outro espelho.”
SCHWARCZ, Lilia. “Histórias mestiças são histórias de fronteiras”, 2016.
3
Vale destacar, inclusive, que a fotógrafa Claudia Andujar teve um espaço exclusivo para a
exposição virtual "A luta Yanomami", na 32.ª Reunião Brasileira de Antropologia (2020). Disponível
em: “https://www.32rba.abant.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=555”. Acesso em: [07/09/2021]
4
Trata-se de um trabalho realizado por Claudia Andujar em 1974, durante a construção de rodovias
na região Norte do país. A fotógrafa acompanhava médicos em missão de socorro e passou a tirar
retratos dos indígenas Yanomamis, na época atingidos por doenças até então inexistentes em seu
território e que vieram com a chegada e contato com outras comunidades durante a construção das
rodovias.
5
Entrevista disponível na integra em:
“https://www.youtube.com/watch?v=182Fzcrj_Gc&t=228s&ab_channel=InstitutoTomieOhtake”.
[Acesso em 03/09/2021]
antropologia e a curadoria, atuando como mediadora de relações entre imagens,

vivências e saberes. Nos atemos a este ponto para levantar algumas questões:

Primeiro, em relação a uma das funções possíveis do curador, como é trazida por

OBRIST (2010), que é a da montagem da exposição. Por montagem, como conceito

aprofundado na obra de Aby Warburg (2003), entende-se que as imagens são

refletores importantes de nossa cultura (e vice-versa) e que por este motivo,

aspectos culturais podem permanecer sobreviventes ou reminiscentes graças às

imagens. Elas são, portanto, sintomas de uma memória cultural. A maneira em que

essas imagens são selecionadas e posicionadas em montagens ou exposições

pode dar visibilidade a maiores sintomas dessas memórias. É o que Warburg vai

chamar de Nachleben (2013), e que Didi-Huberman traduzirá como sobrevivência6.

Como trazido por Schwarcz: “As imagens existem em contexto, mas também em

relação - essa é a trama de Warburg em seu Atlas.” (pg. 15, 2019).

Deste modo, como a montagem de uma exposição pode ser lida enquanto resultado

etnográfico? E como podemos nos relacionar com as imagens, ou no caso, com as

obras, de maneira antropológica? Seja ao produzi-las ou reorganizá-las numa

exposição, é possível falar em experimentações antropológicas com as imagens?

Seguimos em direção à exposição “Histórias da Sexualidade”, novamente com

curadoria de Lilia Schwarcz e Adriano Pedrosa, além da equipe curatorial do Museu

de Arte de São Paulo (MASP), para enfatizarmos a importância do enfrentamento

dessas questões relativas à antropologia e a arte.

6
Didi-Huberman, Georges. A imagem sobrevivente. Contraponto Editora, 2013.
Como o próprio nome deixa claro, a exposição “Histórias da Sexualidade” trabalha

com narrativas em torno de questões de gênero e sexualidade, atravessadas por

questões raciais. A exposição contava com mais de 300 obras e estava dividida

entre os seguintes núcleos: corpos nus, totemismos, religiosidades,

performatividades de gênero, jogos sexuais, mercados sexuais, linguagens e

voyeurismos, políticas do corpo e ativismos. Aberta ao público em outubro de 2017,

“Histórias da sexualidade” vem em seguida à performance “La Bête”, realizada no

Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) pelo artista visual e performer

Wagner Schwartz.7 Em função da polêmica em torno do tema, a exposição virou

foco de ataque de grupos conservadores, obrigando o museu a tomar medidas de

restrição de faixa etária, ação pouco comum entre instituições culturais.

Neste contexto conturbado, apesar do sucesso de visitações, a exposição foi

diversas vezes tensionada por parte de seu público. A despeito da longa pesquisa

apresentada pela equipe curatorial, além de seminários, cursos, antologias e

catálogos, a exposição foi taxada pela mídia de “pornografia”8 e reduzida a uma

exposição de “nus”9.

Em análise dos textos apresentados pela equipe curatorial na antologia da

exposição, percebe-se uma série de defesas a uma história da sexualidade múltipla,

7
Performance realizada no MAM-SP dentro do contexto de exposições sobre o trabalho de Lygia
Clark. Rodeada de espetacularizações e polêmicas, a performance, que consistia em interações
entre corpo, e as esculturas da série “Bichos” de Lygia Clark, acabou com acusações de pedofilia e
ataques a instituições culturais por grupos conservadores; O artista Wagner Schwartz deixava seu
corpo nu, a mostra, passível de interações do público.
8
“Mostra do MASP supõe que qualquer nu se liga ao sexo”. Artigo de Jorge Coli para a Folha de São
Paulo. Disponível em:
“https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2017/11/1934458-mostra-do-masp-sobre-sexualidad
e-supoe-que-qualquer-nu-liga-se-ao-sexo.shtml”. Acesso em: 03/09/2021
9
“MASP trata sexualidade como pornografia em mostra superficial”. Artigo de Fabio Cypriano para a
Folha de São Paulo. Disponível em:
“https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/10/1931477-masp-trata-sexualidade-como-pornografia-
em-mostra-superficial.shtml”. Acesso em 03/09/2021.
que acolhe “pornografias” e “nudezes” diversas. Histórias, multiplicidades, discursos

narrativos que dialogam com discussões de gênero e a existência de múltiplas

performances de sexualidade, como debatido nas teorias feministas clássicas, numa

tentativa de não desvincular essa questão das imagens expostas. Entretanto, é

interessante pensarmos em termos de acesso. Até hoje há uma dificuldade em

encontrar os textos e as obras fora do catálogo. Isto é uma das problematizações e

questionamentos que trataremos em torno desta exposição e de sua equipe de

curadores responsáveis. Aparentemente, a própria curadoria não foi suficiente para

desatar alguns nós deste entrave; poderia caber à antropologia dar sentido a

algumas destas questões, partindo da noção de que pensamento visual também é

pensamento, e que acessar essas imagens é também acessar uma grafia, uma

forma possível de escrita e de, portanto, construção de conhecimento.

Como podemos construir plataformas que disponibilizem esse pensamento

visual da mesma maneira que buscamos fazer com o pensamento científico dentro

da universidade? Por que temos tanta dificuldade em achar artistas, obras,

referências visuais? Quando se faz uma exposição como “Histórias da

Sexualidade”, com duração de um ano, e depois não se disponibiliza o acesso às

obras ao público, não estamos mais uma vez reforçando as narrativas hegemônicas

sobre sexualidade e gênero?10 Como isso se relaciona com a curadoria e como a

antropologia pode interferir neste processo?

10
Dentro desse aspecto, procuro analisar não apenas a função da curadoria e suas implicações
dentro do campo da arte e da antropologia, como também a relação de gênero e raça embutidas nas
imagens que “consumimos” atualmente. Procurarei trabalhar a partir de um enquadramento
teórico-metodológico alimentado pelo campo de estudos de gênero, em especial os debates sobre
marcadores sociais da diferença, categorias de diferenciação (PISCITELLI, p. 265, 2008) - numa
aposta de que para refletir sobre este tema, algumas reflexões não podem ser deixadas de lado,
como as de McClintock (2010) que trata das articulações entre gênero e raça também a partir de
imagens estáticas. É também importante levar em consideração os estudos clássicos de gênero.
Neste projeto, será fundamental o trabalho de Butler (1988), que, banhada pelos estudos
Foucaultianos, apresenta uma teoria que fricciona relações de poder em relação ao gênero e
também ao sexo.
A importância de um diálogo entre curadoria e antropologia se intersecciona

dentro deste paradigma. Apesar destas duas exposições do MASP possuírem uma

antropóloga em sua equipe curatorial, devemos encaminhar e problematizar ambas

as funções em uníssono.

As relações entre antropologia e arte são conflituosas em suas respectivas

origens, uma vez que há um esforço por parte da antropologia em nomear sujeitos,

objetos ou até mesmo aqueles que produzem arte. (CESARINO, p. 5, 2017).

Entretanto, entre estes dois campos existem também poderosos diálogos, sobretudo

ao identificarem no objeto de arte uma agência, uma possibilidade daquele objeto

ter múltiplas intenções e produzir relações sociais de diversas complexidades, como

foi possível observar nas exposições curadas por Lilia Schwarcz. Parto da ideia de

curadoria tal como é proposta por OBRIST (p. 10, 2010) e por GELL (p. 5, 2009), ou

seja, um trabalho de pesquisa e seleção que caminha pela história da arte, pela

própria antropologia e que parece um trabalho crítico de relação com as imagens.

Partindo, assim, desta perspectiva, podemos afirmar que uma antropologia da arte

se debruçará não apenas em análises de aspectos estéticos e produtivos das obras

de arte, mas também em perceber quais disputas e envolvimentos estão sendo

gerados por essa produção artística. (CESARINO, GELL, 2009). Podemos, portanto,

propor a seguinte pergunta: Quais disputas e envolvimentos estão sendo gerados

por curadorias como a de “Histórias da Sexualidade”, que foi tensionada pelo

público?
Retornaremos agora à função do curador para entendermos, para além das

exposições como um dos resultados finais de seu trabalho, as problemáticas em

torno do que é se definir como curador de arte. Dentro do campo antropológico, uma

figura controversa como a do curador é obviamente levada a uma posição crítica,

dado que este tem o poder de ressaltar, selecionar ou apagar relações quando se

trata de um objeto, que pode ser considerado “artístico” para as artes e a

antropologia, mas talvez não para quem o faz. Selecionar uma obra e expô-la ao

público pode colocar em evidência alguns debates, ou acobertar outros.

Didi-Hubermann (2011), em sua análise do trabalho interrompido de Aby Warburg

nos impulsiona a pensar no quanto as imagens refletem estruturas, pensamentos,

movimentos que persistem ou se apagam diante das mudanças sociais. A

antropologia nos apresenta provocações de que o que faz algo tornar-se ou não arte

não é apenas a palavra de um curador, mas toda uma estrutura relacional de poder

por trás de pessoas e instituições que fortalecem alguns discursos e dinâmicas em

detrimento de outras. (CLIFFORD, p.15, 2016). Estudar a curadoria partindo de uma

abordagem antropológica é problematizar essa função, que se alimenta atualmente

de discursos identitários para construir exposições, ao mesmo tempo que bebe de

grandes poderes do mercado e de grandes instituições de arte.

Deste modo, é interessante pensar numa figura que tem a função de expor ou

selecionar imagens, que é um dos papéis possíveis de um curador. Estamos diante

de um campo com enorme poder de manipular ou estruturar discursos em prol de

outros, e que pode influenciar diretamente nas imagens produzidas e também,

“consumidas” pela sociedade.


É também uma das possibilidades do trabalho curatorial, a organização das

imagens de modo que possam contar histórias, não apenas contar, mas expor

histórias, saberes, narrativas. (OBRIST, p. 292, 2010). A antropologia trata das

nossas relações com estes saberes, como eles se criam, como fazem parte da

nossa vida social. Se as imagens são criadas e recriadas pela nossa cultura, é

importante que estejamos atentos à figura do curador e como ela pode, em sua

função de organizar e expor essas imagens, manusear uma narrativa. É curioso que

isto se relacione à ausência de curadores negros, indígenas, mulheres. Não em

número, mas em cargos institucionais ocupados.11

Apesar dessa discussão entre antropologia e arte percorrer um longo caminho

histórico, seria equivocado analítica e politicamente abordar essa amplitude apenas

quando se trata de exposições coloniais12. Embora este projeto não tenha a

intenção de refazer ou retraçar uma história da curadoria no campo da arte, e nem

mesmo dar conta de um estado da arte da curadoria na antropologia, será

importante problematizar esses percursos. Observa-se no movimento da arte

brasileira dos últimos anos, um “boom” da arte chamada identitária, conforme vimos

nas exposições apresentadas, com ênfase a artistas e obras que apresentem

feridas históricas em relação à categorias como gênero, raça e classe social. Existe

uma exaltação à insurgências sociais, como nas exposições sobre as histórias, que

não se limitam às que trouxemos anteriormente. Também observa-se essa presença

em outras instituições de arte da cidade de São Paulo em: “Agora somos todxs

11
Segundo dados coletados pelo coletivo “ArtePraQuêm?”, mais de 80% dos cargos de tomada de
decisão em museus e instituições culturais da cidade de São Paulo são ocupados por homens. A
exceção da Associação Cultural VideoBrasil, em que homens ocupam apenas 23% dos cargos de
responsabilidade. Disponível em: ”http://https://www.instagram.com/artepraquem/.”
[Acesso em: 03/09/2021]
12
Entende-se que para traçar um histórico entre antropologia e curadoria com precisão, é obrigatório
passar pelas discussões em torno de museus etnográficos e exposições coloniais; discussão essa
que aprofundarei durante o processo de pesquisa, uma vez que neste projeto estarei focada na
apresentação de exposições recentes, levantando os diálogos e as problemáticas na relação
antropologia e curadoria.
negrx?” (VIDEOBRASIL)13, “MitoMotiM” (VIDEOBRASIL)14, “À Nordeste”

(SESC-SP)15, nestas, é possível visualizar uma movimentação que evidencia

violências ou apagamentos culturais em relação às pautas identitárias. Entretanto,

apesar deste crescimento de exposições com estas temáticas, dentro da estrutura

das instituições, pouca coisa mudou. Ainda observa-se um baixo número de

pessoas racializadas ou LGBTQIA+ dentro de papéis de curadoria, acervo, gestão e

seleção.

Como dito anteriormente, quando pensamos em curadoria, estamos falando de uma

posição que já foi revisitada e repensada pelas artes e pela própria antropologia.

Nas artes visuais, o curador hoje é pesquisador, gestor de instituição, responsável

pelo acervo, pelas exposições, expografias e afins, e possivelmente um mediador

de relações institucionais. De quem é o interesse em manter um cargo no qual uma

das funções é dizer o que é não uma obra de arte? De mesmo modo, se na arte

contemporânea estamos diante de um momento onde obras e histórias sobre

sexualidades e raça estão em ascensão, por que o papel de selecionar estas obras

e escrever sobre elas ainda é ocupado, em sua maioria, por homens brancos?

Um outro questionamento possível é o constante reposicionamento do cargo do

curador, geralmente articulado quando percebe-se neste uma função dotada de

poderes. Este processo é relativamente comum entre os curadores; Porque não se

afirmar curador? E porque, e quando se afirmar? A própria Schwarcz não se

13
Texto curatorial disponível em:
“http://site.videobrasil.org.br/exposicoes/galpaovb/agorasomostodxsnegrxs/”
[Acesso em: 07/09/2021]
14
Texto curatorial disponível em: “http://site.videobrasil.org.br/exposicoes/galpaovb/mitomotim/.”
[Acesso em: 07/09/2021]
15
Catálogo disponível em: “https://issuu.com/sescsp/docs/catalogo_a_nordeste_sem_cicero”.
[Acesso em: 07/09/2021)
considera curadora16, mas considerando que ela já é, já faz parte de uma grande

instituição como o MASP e já se encontra numa posição de poder, por que não?

Seria justamente esse medo de assumir uma herança histórica17 composta por

assimetrias de poder que marcam também os postos curatoriais?

Fortalecendo a discussão trazida anteriormente e para finalizar esta seção do

projeto, trago, por fim, a exposição “(In)visible: The Spiritual World of Taiwan through

Contemporary Art”. A exposição, realizada no MOA (Museum of Anthropology -

University of British Columbia) em 2015, com curadoria da antropóloga e

pesquisadora Fuyubi Nakamura, apresentava camadas múltiplas sobre a fé e as

crenças no dia a dia da sociedade taiwanesa; aspectos filosóficos, cosmovisões,

ritos atravessados por comunidades tradicionais e processos de colonização.

Múltiplos saberes representados por obras de arte de diversos suportes, que vão de

instalações a videoartes e performance. Em seu trabalho “Asia through Art and

Anthropology; Cultural Translation Across Borders”, Nakamura nos possibilita olhar

para as imagens como mediadoras de diálogos entre o ocidente e o oriente18,

traduzindo percepções que poderiam reproduzir um olhar enviesado sobre o que é a

Asia. A partir destas discussões, Nakamura está propondo novas formas de

organização expográfica, oferecendo uma exposição como um trabalho final

etnográfico, do mesmo modo como são comuns filmes etnográficos e fotografias

16
Lilia Schwarcz, quando questionada sobre seu trabalho com curadoria por Amanda Carneiro
(também curadora), respondeu: “A pergunta é boa, mas não sei exatamente a resposta porque não
me entendo como uma curadora. Não por acaso, meu título aqui no MASP é “curadora-adjunta de
histórias”. Em: “Entre o vísível e o não-dito, uma conversa sobre curadoria com Lilia Schwarcz”
MASP, Afterall, 2019.
17
Trataremos dessa questão de uma herança histórica pós-colonial utilizando-se de autores como
McClintock (2010), Fanon (1968), Taussig (1993) e Gluckman (1975;2010). Estes desdobram suas
teorias sob os vestígios de um pensamento colonial permeado até os dias atuais.
18
Said, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das
Letras, 2007.
etnográficas no campo da antropologia visual. Este é talvez um resultado possível

de uma pesquisa que partilha das imagens como grafias do sensível.

Como trazido por KOFES (p. 19, 2020), as imagens são formas de

linguagem, formas de grafias assim como as exposições; são dispositivos que

estremecem estruturas da antropologia tradicional, nos propondo uma relação com

as próprias imagens e os objetos para além de questões estéticas ou funcionais, ou

para além de meros objetos “etnografáveis”. Como dito anteriormente, trata-se de

uma agência dos objetos e das imagens. Estabelecer diálogos entre a antropologia

e a arte é estabelecer diálogos entre diferentes campos do sensível, entre uma

antropologia que se move à experimentação e que possibilita a construção de novos

saberes, novos museus e novas formas de pensar montagens, seleções e

exposições19.

Justificativa

A importância desta pesquisa se dá por diversos fatores; o primeiro deles é a

ampliação do debate entre o campo das artes visuais e da antropologia, fomentando

as discussões feitas na antropologia visual e que possibilitam o fortalecimento de

uma antropologia da arte, como é encaminhada por Etienne Samain, Alfred Gell,

Tim Ingold e Hans Belting. Estes autores serão constantemente mobilizados para

discutir o paradigma entre arte e antropologia e consequentemente, fomentar as

produções já encaminhadas pelo LA’GRIMA (Laboratório Antropológico de Grafia e

Imagem/UNICAMP), do qual faço parte, e que fortalecem as produções científicas

19
Como vistos nos trabalhos de RUSSI, Adriana e ABREU, Regina. “Museologia colaborativa”:
diferentes processos nas relações entre antropólogos, coleções etnográficas e povos indígenas.
Horizontes Antropológicos [online]. 2019, v. 25, n. 53, pp. 17-46. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0104-71832019000100002>. [Acesso em: 7/09/2021]
E também SILVEIRA, QUEIROZ Ramiro. “Projetos, faccionalismo e curadoria xamânica: museu feito
por ticunas”. Disponível em: “http://hdl.handle.net/1843/BUOS-AQKQTV”. [Acesso em 03/09/21]
feitas por antropólogos, artistas visuais, curadores e pesquisadores da arte. Como

trabalhado pelas coordenadoras do laboratório em suas pesquisas, Fabiana Bruno e

Suely Kofes, trata-se da criação de uma antropologia possível de experimentações

com imagens e grafias; visto que o desenvolvimento deste projeto como uma

experimentação etnográfica curatorial é parte das reflexões decorrentes dos

diálogos e aprendizados que realizei no âmbito deste Laboratório.

Outro fator é a ampliação do debate sobre curadoria para além do campo das

artes visuais, onde atualmente se situa sua maior parte. Entende-se que a curadoria

exerce influência sobre as produções artísticas e, portanto, suas relações com a

sociedade e a cultura, tema que é não apenas de interesse da antropologia, mas

situa-se como norteador de seu campo. Ao mesmo tempo, o curador tem papel

importante no que será ou não acessado pela sociedade, dialogando amplamente

com instituições como museus, galerias e outras instituições culturais, como um

mediador destas instituições e das obras. Neste sentido, portanto, podemos afirmar

que as discussões em torno da curadoria podem ser deslocadas de seu contexto

familiar das artes visuais para o campo da pesquisa antropológica.

Considerando também as problemáticas institucionais em torno da figura do

curador, conforme apresentado na introdução, observa-se a ausência de curadores

indígenas, negros e uma pequena parcela de mulheres curando exposições mesmo

com a expansão de exposições identitárias. As mulheres, em sua maioria, ainda

ocupam posições de curadoria adjunta ou assistencial. Explicitar esses dados e as

problemáticas destas lacunas institucionais com as imagens que consumimos e com

quem as expõe pode ser emblemático para ampliarmos as discussões feitas dentro

das próprias exposições e instituições.


Não posso deixar de citar Max Gluckman e Michel Foucault para um maior

aprofundamento das questões de poder, em diálogo com a antropologia política.

Aby Warburg, Didi-Huberman e Fabiana Bruno estarão devidamente articulados

para refletirmos sobre montagem, seleção e formas de grafia. De mesmo modo,

Fuyubi Nakamura, é indispensável, pois ela sintetiza a orientação deste trabalho: A

criação de uma antropologia unida ao trabalho curatorial, que dialoga com as

imagens como resultados de pesquisas, possibilitando a criação de novos museus,

seleções e exposições.

Considero, portanto, que uma pesquisa voltada para a relação entre curadoria e

antropologia, dando atenção especial a expografias, seleções e dinâmicas em torno

do papel do curador, possa contribuir tanto para as reflexões que já estão em curso

no Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem - LA’GRIMA, quanto para a

explicitação de conexões já existentes entre um campo de pesquisa já consolidado

enquanto Antropologia da Arte e outros campos de saber que me interessam, como

os Estudos de Gênero e Sexualidade, a Antropologia da Política e a Antropologia do

Poder. Discutir curadoria a partir do olhar antropológico permite enxergar

assimetrias de poder de gênero, raça, sexualidade, dentre outros “marcadores

sociais da diferença” (Buarque de Almeida, Simões, Moutinho e Schwarcz, p. 17,

2018) imprescindíveis para compreendermos processos artísticos/políticos em

curso.

Objetivos

Fortalecer e ampliar as discussões em torno de uma antropologia da arte,

entendendo a curadoria como um lugar possível da intersecção entre esses dois


campos, explorando novas formas de um fazer antropológico pautado na relação

com as imagens, sobretudo com o arquivar, montar, selecionar, expor; O processo

de experimentação em torno destes fazeres é próximo do etnografar, mas é preciso

que entendamos as imagens como uma grafia possível. Compreender dinâmicas

em torno da função curatorial, suas camadas de atuação e como esse trabalho se

aproxima ou se distancia da antropologia. A etnografia dessas exposições é uma

análise de abordagens antropológicas de gênero, raça, classe, questões religiosas

que aparecem em textos curatoriais, na seleção das imagens, na maneira de montar

o espaço expográfico em todas as suas camadas e na própria função curatorial; o

que fortalece o objetivo inicial deste projeto, que é explicitar os encontros e

desencontros entre antropologia e curadoria.

Materiais, métodos e forma de análise dos resultados

Como reforçado em seções anteriores, a metodologia fundamental deste projeto se

dá através da etnografia das três exposições apresentadas, buscando fazer um

levantamento de arquivos e documentos dessas exposições, diálogos com os

curadores e artistas participantes, e também uma observação de como foi realizada

a montagem e o processo de seleção e manuseio de acervos e arquivos dos

museus envolvidos. O contato com os acervos é essencial para nos aprofundarmos

nas noções de grafia trazidas nas seções anteriores, sintetizando uma proposta de

“leitura” e “escrita” com as imagens. Vinculado a isto, é também um dos interesses

deste projeto é apresentar uma exposição ao final do desenvolvimento dessa

pesquisa. Este interesse é também pautado no trabalho de Fuyubi Nakamura, que

aponta a produção de exposições como um norte para uma produção antropológica

contemporânea onde as imagens deixam de atuar como apenas objetos de


pesquisa e se tornam mais uma vez, grafias, agentes possíveis dentro do fazer

antropológico. Neste sentido, inúmeros lugares expositivos da própria UNICAMP

podem ser ocupados por essa exposição, como o GAIA, a Casa do Lago ou o

espaço expositivo do vão da biblioteca do IFCH. Pensar em curadoria é pensar em

expografia, montagem, posicionamento das obras, iluminação, texto curatorial; A

experimentação está justamente em como fazer estes de maneira antropológica.

Essa experimentação curatorial-antropológica se dará em conjunto com as

pesquisas realizadas no âmbito do LA’GRIMA, também mediada pela bibliografia, já

sintetizada na justificativa acima, de modo a fomentar um aporte

teórico-metodológico fortalecido e alinhado com os interesses de pesquisa deste

projeto. Como explicitado, trabalharei com um enquadramento teórico-metodológico

pautado por trabalhos do campo da antropologia da arte.

Plano de trabalho e cronograma de execução do projeto


Bibliografia

BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Revista Concinnitas, v. 1, n. 8,


p. 64-78, 2005.

BISHOP, Claire. What is a Curator?. IDEA arts+ society, v. 26, p. 12-21, 2007.

BOONE, Silvana. Uma breve história da curadoria–Hans Ulrich Obrist–. PORTO


ARTE: Revista de Artes Visuais, v. 17, n. 29, 2010.

BRUNO, Fabiana. Arquivo e imagens: questões heurísticas e visuais ante à abertura


do Arquivo Kamayurá de Etienne Samain. GIS - Gesto, Imagem e Som - Revista de
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______________. Potências da experimentação das grafias no fazer antropológico:


imagens, palavras e montagens. Tessituras: revista de Antropologia e
Arqueologia, v. 7, n. 2, p. 198-212, 2019.

______________. Fotobiografia. Por uma Metodologia da Estética em Antropologia.


2009. Tese (Doutorado em Multimeios) – Instituto de Artes, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2009.

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SAMAIN, E. (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2012.

BUARQUE DE ALMEIDA, Simões, Moutinho e Schwarcz. Numas: 10 anos, um


exercício de memória coletiva. In: Marcadores Sociais da Diferença: gênero,
sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro
Nome; Editora Gramma, 2018.

BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre


fenomenologia e teoria feminista [1988]. Caderno de Leituras, n. 78.

CARNEIRO, Amanda. SCHWARCZ, Lilia. “Entre o visível e o não-dito”, Museu de


Arte de São Paulo (MASP), Afterall, 2019;

CESARINO, Pedro. Conflitos de pressupostos na Antropologia da Arte: relações


entre pessoas, coisas e imagens. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32,
2017.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagem Sobrevivente. História da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013a.

___________________________. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte:


Editora UFMG, v. 119, 2011.

___________________________. Que emoção! Que emoção. São Paulo: Editora


34, p. 72, 2016.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas (1952). Salvador: Editora da


Universidade Federal da Bahia, 2008.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder (1982). Genealogia da Ética,


Subjetividade e Sexualidade. Ditos & Escritos IX. Rio de Janeiro: Forense, p.
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FOSTER, Hal. O artista enquanto etnógrafo. Trad.: Alexandre Sá, revisão: Angela
Prada, 1996.

GELL, Alfred. Definição do problema: a necessidade de uma antropologia da arte.


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GLUCKMAN, Max. O material etnográfico na antropologia social inglesa. En:


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INGOLD, Tim. Antropologia: para que serve?. Editora Vozes, 2019.

KOFES, Suely. As grafias–traços, linhas, escrita, gráficos, desenhos-como


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v. 12, n. 2, p. 12-26, 2020.

____________. Uma trajetória, em narrativas. Campinas: Mercado de letras,


2001.
MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate
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OSORIO, Luiz Camillo. Virada curatorial: o pôr-em-obra da exposição como poética
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PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências


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SALLES, SAYÃO. “Curadoria Digital: Um novo patamar para preservação de dados


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WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande. Editora Companhia


das Letras, 2015.

Síntese da exposição “(In)visible: The Spiritual World of Taiwan through


Contemporary Art”.
Disponível em: “(In)visible / 形(無)形- Museum of Anthropology at UBC”. [Acesso
em: 07/09/2021]

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