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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA
Salvador
2014
ISABELA SANTOS DE ALMEIDA
Salvador
2014
Sistema de Bibliotecas da UFBA
CDD - 801.959
CDU - 801.73
Este trabalho é dedicado a meu pai, minha mãe,
minha irmã e a Rosa.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da fé e da crença inabalável de que o impossível está em suas mãos.
Aos meus pais, Fátima e Idelson, a quem devo a gratidão e amor eternos.
A minha orientadora, Dra. Rosa Borges, por me ensinar a ver além do óbvio.
A minha Tia Alice, por todos os momentos de oração e confiança em meu trabalho.
A toda minha família, em especial, minhas primas Fabi e Dani e Tia Ana, pelo carinho e pela
presença.
Aos meus amigos de grupo de pesquisa, pelo carinho e apoio. Em especial, a Eduardo Dantas,
com quem dividi as primeiras experiências na iniciação científica e com quem compartilho esse
momento de finalização de um ciclo.
A Ari Sacramento, meu irmão filológico, que esteve presente em todas as etapas do meu
trabalho.
Aos meus ex-colegas e ex-alunos do IF Baiano, que também fizeram parte dessa história.
Muito Obrigada!
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas en la mar.
VOLUME I
VOLUME II
ARQUIVO HIPERTEXTUAL
DOCUMENTOS DA RECEPÇÃO
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1 PRIMEIRAS PALAVRAS
consequências para o labor filológico. Na terceira seção, O uso do meio digital na preparação
de edições de textos teatrais, buscamos levantar elementos para compreender o texto no meio
digital como objeto plural e multifacetado, elencando as consequências desses novos gestos de
leitura para uma proposta editorial, além disso, apresentamos algumas edições em meio digital
que já foram desenvolvidas em centros de pesquisa nacionais e internacionais.
Segue-se a essa seção a exposição da proposta d’ O Arquivo Hipertextual de Jurema
Penna. Nela, discutimos o percurso metodológico para a preparação do arquivo hipertextual,
detalhando as ferramentas informáticas utilizadas, os critérios para o desenvolvimento das
edições, além de apresentar uma visão geral do arquivo hipertextual. Ainda nessa seção,
passamos a analisar as situações textuais de Iemanjá – rainha de Aiocá e O bonequeiro
Vitalino..., nas quais abordamos os testemunhos, a transmissão e, quando possível, a recepção
desses textos.
O primeiro volume é finalizado pela seção Leituras da dramaturgia de Jurema Penna:
exercício de Crítica Filológica, em que abordaremos dois aspectos da cultura baiana,
evidenciados nas subseções, a saber: O negro na Bahia, para tratar da representação do negro
e de seu papel na história da Bahia, sua vivência cotidiana na cidade de Salvador e os
enfrentamentos decorrentes da ascensão social; Confluências entre sertão e litoral, para discutir
as interseções identitárias entre a cultura sertaneja e a cultura litorânea, destacando-se três eixos
organizadores, a feira livre, a arte de mestre Vitalino e o catolicismo popular. Seguem-se a esta
seção, as Considerações Finais e as Referências.
No segundo volume, apresentamos o Arquivo Hipertextual de Jurema Penna. O volume
encontra-se em suporte digital e é acessível a partir do site
www.juremapenna.com/inicio.html1. Elegemos este meio para a sua composição e
disponibilização, pois as possibilidades de apresentação que são trazidas por ele engendram
formas de ler diferentes do texto impresso, nesse sentido, a linguagem do meio virtual torna-se
constitutiva da experiência de leitura e da construção de sentidos desse volume. Da mesma
forma, a referida linguagem é parte do exercício crítico que culmina na elaboração do arquivo
hipertextual; assim, se este tomasse a forma de impresso, perderia o seu sentido.
A organização do volume digital assemelha-se a dos sites da web, o que favorece o
reconhecimento da sua estrutura por parte do “leitor-navegador” (RODRIGUEZ DE LAS
HERAS, 1991), tornando a experiência de acesso ao Arquivo Hipertextual bastante intuitiva,
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Para o acesso à edição sinóptica, faz-se necessário o uso de login ‘izzalmeida@gmail.com’e senha ’157913’
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além de possibilitar a construção dos caminhos de suas leituras pelos textos. Ainda assim,
trazemos os Critérios de edição, além de breves instruções para a navegação.
O ponto de partida para a leitura desse volume são os textos teatrais de Jurema Penna,
para cada um deles, construímos três possibilidades de edição, que listamos: a) edição fac-
similar, na qual trazemos os fac-símiles e a descrição física dos testemunhos de cada um dos
textos, a fim de evidenciar as marcas presentes nos suportes; b) edição sinóptica, na qual
expomos o confronto entre as versões, por intermédio do aplicativo Juxta Commons, focando
o contraste entre os testemunhos de cada texto, dois a dois, acompanhados de comentários das
modificações textuais realizadas; c) edição crítica, quando trazemos o texto crítico, pondo em
evidência as modificações textuais realizadas. Compõem ainda o arquivo hipertextual os
documentos da recepção, atinentes à circulação dessas obras.
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Nesta seção, serão levantados alguns dos problemas atinentes ao trabalho de edição de
textos de teatro. Para tanto, discutimos os principais elementos que os constituem e os
caracterizam e como estes podem demandar questionamentos e revisões da prática editorial.
Interessa assinalar o estudo filológico da dramaturgia de Jurema Penna como possibilidade para
compreender os sentidos do fazer teatral na Bahia, em tempos de ditadura militar, bem como
refletir acerca da Filologia, seus métodos e pressupostos teóricos.
Para pensar o texto teatral censurado como objeto de edição e estudo, destacamos a
produção dramática de Jurema Penna. Esta escolha deve-se ao fato de podermos pensar, a partir
dela, momentos distintos do teatro baiano, com destaque para o movimentado cenário cultural
das décadas de 1970 e 1980. Tratam-se dos princípios da profissionalização do teatro na Bahia,
que tem como um de seus marcos a formação da primeira turma da Escola de Teatro/UFBA, da
qual Jurema Penna fez parte. Nesse tempo, um dos problemas enfrentados pelo teatro
profissional na Bahia eram os escassos recursos financeiros disponíveis. Essa dificuldade
motivava os atores e produtores a recorreram à inciativa pública a fim de obter patrocínio para
seus espetáculos, pois os valores gerados pela bilheteria não eram suficientes para mantê-los.
Jurema Penna estabelece, então, parceiras com o Teatro do Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC), e em seguida passa a atuar na Fundação Cultural do Estado da Bahia
(FUNCEB). Como esclarece em entrevista publicada em 1979,
[t]eatro é um investimento. Você não pode escapar disso, por mais que você seja
amador vai ter sempre que possuir uma aparelhagem de som, uma pesquisa. E nada
disso é feito sem investimento. É uma coisa mesmo da sociedade capitalista. Então as
pessoas que são voltadas para isto como nós todos, são pessoas pobres e precisam de
dinheiro. A gente cai num círculo vicioso porque combatemos o paternalismo e
exigimos uma atitude paternalista do Governo para que nos dê dinheiro. A gente cai
numa coisa quase contraditória porque depois que você começa a ser subvencionado
pelo Governo você começa a ser cerceado, inclusive naquilo que vai dizer (CADA
DIA, 1979).
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A clareza de Jurema Penna, ao tratar do patrocínio no teatro, aponta para a vivência das
dificuldades de se produzir teatro na Bahia por conta própria. Na ausência de mecenas, a
solução era buscar o auxílio junto aos poderes públicos, e, para tanto, uma série de negociações
são estabelecidas entre estes e o artista, algumas delas construídas a partir de uma “ética de
fundo emotivo” (HOLANDA, 1996, p.148). Este posicionamento alude àquilo que Holanda
(1996) denomina de “homem cordial”, cuja consequência para as instituições públicas é a
interferência de interesses privados sobre o funcionamento destas. Nesse processo de
conciliação de interesses, a liberdade artística vê-se interpelada pela dependência financeira do
estado, resultando em uma limitação daquilo que pode ser dito ou do que deve ser silenciado.
Como sujeito de seu tempo, Jurema Penna estava atenta às questões políticas e sociais
que perpassavam a vida na Bahia de meados do século XX. Nesse momento, a dramaturga
começava a participar mais ativamente dos movimentos artísticos e intelectuais da cidade de
Salvador, mediante a conclusão do curso de Bacharelado em Direito pela UFBA e início de
suas atividades como atriz, em 1949. Num contexto histórico em que ser atriz significava ser
tida como prostituta, muitos enfrentamentos fizeram-se necessários. Sua personalidade e
postura foram fundamentais para estabelecer uma resistência a essas imposições e assumir um
comportamento de insubordinação às regras postas. Em entrevista a Vieira Neto, Jurema Penna
afirma:
Toda minha vida, você sabe, foi só de reivindicações pelos direitos da mulher. Tudo
o que enfrentei nas minhas atitudes, no meu ser, fumar e público (um escândalo
naquela época), ir saborear as deliciosas batidas do Mercado Modelo, com tira-gosto
de lambreta; entrar para a faculdade de Direito, quando as mulheres quase que não
tinham acesso à ela, não era de “bom tom” mulher pensar em advocacia. Basta dizer
que quando entrei para a Faculdade, só tinha duas colegas. Tudo isso já era uma luta
visceral, minha, em prol dos direitos da mulher, quando ainda nem se sonhava em
organizar movimentos feministas (VIEIRA NETO, 1980).
A atitude de enfrentamento dessas questões, por parte de Jurema Penna, traduzia-se, por
exemplo, na escolha de atores negros para suas peças. Num momento em que boa parte dos
diretores escalavam atores brancos maquiados para representar personagens negros, a escolha
de Jurema Penna concretizava seu posicionamento político. Destaque-se a parceria entre
Jurema Penna e Mário Gusmão que contracenaram em diversos espetáculos ao longo de suas
carreiras, como em Auto da Compadecida (1959), conforme figura 1.
seguida retornam ao lugar. A inscrição “pastoril”, por sua vez, indica que esta cena deve ser
realizada como um pastoril, compreendendo “cantos, louvações, loas, entoadas diante do
presépio na noite do Natal, aguardando-se a missa da meia-noite” (CASCUDO, 1999, p.682) e
que pode, ou não, aparecer em outras montagens.
O registro de “la la ri ê e” também indica que os versos podem ter sido cantarolados.
Além disso, marca-se a movimentação dos atores no espaço cênico, com a inserção de “2 troca
roda / 2 troca junto / 2 troca volta”. Este trecho constitui-se, assim, como monumento por trazer
a memória daquela encenação, o momento em que o ator registra como o texto é oralizado,
acrescentando as formas do gênero pastoril sobre as falas, escritas em linguagem de cordel.
Nesse caso, a construção do sentido de texto como monumento evoca a ideia deste como
detentor de um saber digno de admiração por parte do leitor e cujo valor deve ser transmitido à
posteridade. Depreendemos, a partir dessa ótica, que a cultura livresca termina por selecionar
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Busca-se uma completa semelhança entre o script e a sua performance no palco, sendo o
primeiro a causa do segundo. Neste, o autor ocupa o protagonismo na construção da montagem
e suas palavras deverão, então, ser preservadas numa cena que é espelho do texto e, por isso,
não pode ser descaracterizado. De acordo com Pavis (2011, p. 190), na tendência textocentrista,
“o texto é então concebido como uma reserva, ou até mesmo depositário do sentido que a
representação tem como missão extrair e expressar”.
Patrice Pavis defende ainda a conciliação entre as duas visões, partindo do princípio que
[...] um ainda clássico, de uma escrita informativa e, no fim das contas, fechada, ao
menos tanto quanto autoriza a aspiração imposta pela cena seguinte; o outro, cheio de
vazios, de uma escrita que não se esforça para fornecer narrativa, mas que, se é bem-
sucedida, impõe suas ‘ausências’ como ímãs para atrair sentido, para construir a cena
seguinte.
Williams (2010), por sua vez, indica que a interface entre texto e cena se constitui em
um contínuo, em progressivas aproximações ou distanciamentos. Essa relação pode ser
decorrente de inúmeros aspectos, mas recebe significativa influência das teorias de teatro que
vigoram em certos períodos históricos. Assim, analisa obras da literatura dramática universal e
propõe uma categorização destas em quatro grupos, a saber:
a) Fala encenada: “quando um texto desse tipo – Antígona, por exemplo – é adaptada
nas circunstâncias cênicas para as quais escreveu o poeta trágico, todos os detalhes
são tidos como predeterminados” (WILLIAMS, 2010, p. 218).
De uma forma geral, esse tipo de comportamento está presente nas montagens de peças
pertencentes à literatura dramática canônica, cuja obra é bastante conhecida. Tanto o diretor,
quanto o público buscam estabelecer uma identidade com tais obras, conhecidas sobretudo a
partir dos impressos. Nesse caso, o encenador opta por manter todos os detalhes indicados nas
rubricas, no que se refere ao cenário, figurino, marcações de palco etc. E, em geral, tenta
preencher os vazios do texto (ISER, 1979), tomando por referência a conjuntura social, histórica
e cultural em que foi escrito, buscando se aproximar da época do autor. Essas são obras que
recebem a atenção das editoras para a publicação e que são consumidos como literatura
dramática.
b) Representação visual: “aqui, a relação entre texto e cena varia de acordo com o grau
de utilização de convenções do que deve ser encenado visualmente” (WILLIAMS,
2010, p. 218).
O diretor tende a deslocar a interpretação da obra para outras linguagens do palco,
preservando o texto. A palavra do autor estará quase sempre a salvo de modificações e a
recriação da obra, fator inerente à montagem do espetáculo, será deslocada para o figurino, o
cenário, a iluminação, a sonoplastia etc. Por sua vez, o público mais tradicional deseja encontrar
a “obra de ...” encarnada no palco, aguarda para escutar os diálogos já conhecidos, até aceita
que haja alguma atualização no vocabulário, no entanto, reage negativamente a trechos
suprimidos e outras alterações que modifiquem a letra do autor. Tratam-se de peças
consagradas, também conhecidas por meio da leitura, além de serem veiculadas em edições
comerciais.
c) Atividade: “aqui, embora o texto, de modo geral, possa prescrever a ação, o resultado
da encenação geralmente será bem diferente do efeito do texto por si só”
(WILLIAMS, 2010, p. 219).
Nesse caso, o compromisso não está em seguir o texto do autor, mas em reinterpretá-lo,
propondo-lhe novos sentidos, seja por meio dos elementos cênicos, seja sobre o próprio
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A partir da publicação do caderno do encenador como livro a ler, entendemos que as anotações de encenação
constituem-se um texto e como tal, demandam, para inscrever-se no sistema dos livros impressos, um nome de
autor, a quem se podem atribuir os sentidos de sua obra, conforme teoriza Foulcault (1992 [1969]).
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os sentidos construídos pelos atores e demais sujeitos nas experimentações cênicas. O resultado
desse processo de criação pode ser tão intenso e rico que promove a escrita de um outro script,
podendo resultar em sua posterior publicação.
Notamos que o distanciamento ou proximidade entre texto e cena não é decorrente do
estatuto da escrita para o teatro, mas advém da postura do diretor na elaboração do espetáculo,
resultando em diferentes graus de recriação. Cumpre, também, relativizar a distinção estanque
entre o texto escrito antes do palco e aquele elaborado após a improvisação cênica, concepção
que ignora as idas e vindas que o dramaturgo faz do gabinete ao palco. Entendemos, assim, que
os momentos de escrita e encenação não possuem primazia absoluta um sobre o outro, mas
podem se configurar como tempos distintos com diferentes graus de acabamento,
caracterizados por uma mútua interferência. Mesmo ao se tomar obras da literatura dramática
canônica, em que se busca uma “fala encenada”, conforme o modelo proposto por Williams
(2010), a oralização da réplica no palco promoverá sua reformulação.
Outra perspectiva que promove a superação da referida oposição é levantada por Pereira
(2006), que toma como chave de leitura para pensar esta relação no teatro contemporâneo, os
escritos de Artaud (1987), Grotowski (1992) e Brecht (2005). Apesar das diferenças nas
propostas cênicas defendidas, as obras dos três resultavam em um desmantelamento das noções
consolidadas sobre a ação e a dramaturgia. A partir do esboroamento dessas barreiras e da
desconstrução dos conceitos pertencentes a distintos campos do saber, estes passam a ser
entendidos de forma integrada. Conforme afirmam Barba e Savarese (1995, p. 69), “a palavra
‘texto’, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa
‘tecendo junto’. Nesse sentido, não há representação que não tenha texto”.
Ao retomar a etimologia da referida palavra, Barba e Savarese (1995) chamam a atenção
para a ação presente em sua construção. A dramaturgia da cena elabora-se, então, a partir da
integração entre ator, diretor e público espectador, podendo ser definida como “[...] um discurso
produzido na relação entre cena e espectador, ou em outras palavras, de uma prática de
encenação e suas articulações discursivas” (PEREIRA, 2006, p.143). Assim, supõe entender o
fazer teatral de forma socializada, uma produção de sentido que seja compartilhada por todos
em um processo de criação colaborativa. Concebendo-o em sentido lato, concluímos que não é
possível fazer um espetáculo sem texto.
No âmbito da produção dramatúrgica baiana durante a ditadura militar, a segmentação
entre o script e a peça contava com alguns complicadores. A instituição da censura militar
considerava os fazeres teatrais com base nessa separação, sendo que o primeiro sempre gozaria
da anterioridade. Assim, para serem encenados, os textos necessariamente deveriam passar pelo
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crivo da censura, constituída de uma comissão com três técnicos em censura. A avaliação das
peças pautava-se na Lei nº 5.536, de 1968, que indicava como critério para veto as produções
que fossem “contrárias à segurança nacional e ao regime representativo e democrático, à ordem
e ao decôro públicos, aos bons costumes, ou ofensivas às coletividades ou as religiões ou, ainda,
capazes de incentivar preconceitos de raça ou de lutas de classes.”. Uma vez liberado, emitia-
se o certificado de censura e autorizava-se o espetáculo com ou sem cortes, com a devida
classificação etária.
Na ótica da censura militar, o texto deveria determinar a cena, baseado nisso, o censor
ia assistir ao ensaio geral, analisando a continuidade entre o script e o espetáculo. A presença
do sensor teria como finalidade assegurar que todas as falas seriam realizadas conforme o
registro escrito, que fora previamente aprovado ou censurado. O relatório do ensaio geral do
Serviço de Censura de Diversões Públicas de Sergipe, emitido para a peça Dona Clara Clareou
ou Simplesmente destroços, de Jurema Penna (RELATÓRIO, 1982), evidencia esta
dicotomização. Impresso e datiloscrito, o relatório é composto por quatro itens: texto,
encenação, observações e parecer. No item texto, analisa-se o tema e indica-se se este sofreu
alterações em relação ao script encaminhado para a censura, se essas alterações são
significativas, se sofreu cortes e se os cortes foram obedecidos. Quanto à encenação, o censor
designa se o cenário, a iluminação, a música, o guarda-roupa, a projeção de ‘slides’ e a
expressão corporal estão de acordo ou não com as normas censórias. O registro escrito guardaria
os sentidos permitidos pela censura que deveriam ser obedecidos na transposição para o palco,
e esta, por sua vez, congregaria as demais linguagens cênicas do teatro.
A obrigatoriedade da censura prévia à peça não barrou inovações nas quais a encenação
se desvincula do componente verbal, em busca de novas linguagens teatrais. A experimentação
torna-se característica preponderante do teatro produzido na Bahia, no bojo das vanguardas
teatrais dos anos 1970. O texto teatral, nessa circunstância, perde seu estatuto de centralidade e
de elemento organizador da cena, desconstrói-se a posição de supremacia e é, por fim,
considerado como mais um dos elementos presentes no teatro. Leão (2011) esclarece que esta
tendência do teatro baiano recebia influências das experiências cênicas desenvolvidas no eixo
Rio-São Paulo, a exemplo do Teatro de Arena, Grupo Opinião e Teatro Oficina, denotando uma
rede de permeabilidade entre essas produções.
O teatro baiano, do referido período, apropria-se das tendências presentes nos diversos
âmbitos das artes nacionais e num movimento antropofágico, atualizado pela estética
tropicalista, promove a amalgamação destas referências na construção dos espetáculos. Para a
década de 1970, o autor destaca Natal em Gotham City, de Deolindo Checchucci, e Macbeth,
de Enrique Ariman. Esta última peça suscitou uma série de questionamento acerca do
fundamento teórico sobre o qual se assentava o teatro baiano:
Nesse sentido, observamos que a resistência instituída pelo teatro baiano durante a
ditadura militar não se restringia ao conteúdo, mas abarcava também a forma da encenação,
ainda que, muitas vezes, estivesse submetida aos desígnios do texto. No entanto, essas novas
formas cênicas encontravam dissidentes entre os próprios sujeitos dos movimentos teatrais
baianos, constituindo tendências inovadoras e conservadoras.
Integrada a esse momento cultural, Jurema Penna elege a escrita como fundamento para
suas peças, ao mesmo tempo em que a reelabora a partir da interação com os atores. Fazendo-
se a análise dos documentos recolhidos, percebemos que a dramaturga procedia à construção
do texto em um momento prévio à elaboração da montagem, sendo este apresentado aos atores
em um processo avançado de acabamento. No entanto, era comum que as diferentes temporadas
de uma peça resultassem em alterações ao script. Essas modificações textuais implicavam
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[o] dramaturgo não é artista soberano na construção da obra. Suas idéias e propostas
têm de ser aceitas e discutidas pelo grupo. No entanto, é a partir de tais discussões que
surgem novas idéias e material de trabalho para uma evolução da obra, o que
caracteriza tal prática como um processo colaborativo (REWALD, 2005, p. xiv).
[...] mais do que exercer a função de autor da obra, constitui-se como o intérprete
textual das experiências vividas durante o processo […]. Para tanto, é fundamental
um exercício de escuta incessante praticado pelo dramaturgo. Afinal ele é a “antena”
do processo (REWALD, 2005, p. 23).
Para além da produção textual, esse sujeito assumiria o papel de tradutor da construção
da cena para o plano da escrita. A fim de entender esta faceta, Rewald (2005) propõe a noção
de autor-espectador, partindo das ideias de autor-scriptor e autor-leitor, discutidas por Almuth
Grésillon (1990) e retomadas por Philippe Willemart (1993). Ampliam-se, assim, as
possibilidades de leituras de sua obra, antes restritas à “leitura de gabinete”, assumindo um
campo mais amplo, dessa forma,
múltiplas versões, torna-se evidente aquilo que foi suprimido, ou seja, o que não se adequou à
proposta da dramaturgia:
[o] texto tem que levantar problemas e não resolvê-los. Quanto maior o número de
questões suscitadas pelo texto, melhor. Não se trata de uma retração no espaço de
atuação do dramaturgo e nem de um desejo do dramaturgo de se colocar fora do
processo, mas de uma estratégia que visa a interação como forma de evolução.
Deixando questões em aberto para serem resolvidas pela direção e pelos atores, o
dramaturgo espera por novas soluções, diferentes das que havia pensado, para
aproveitá-las numa evolução do texto dramático. (REWALD, 2005, p. 64)
[…] a peça deixa de ser um corpo aberto, sem forma fixa, passível de se configurar
de inúmeras formas possíveis, e passa a ser um corpo fechado, com uma estrutura
cristalizada, embora sujeita a mutações espontâneas (improvisações, erros dos atores)
ou propositais (mudanças propostas pelo diretor, dramaturgo ou pelos próprios atores)
(REWALD, 2005, p. 76).
Fica evidente a passagem de um formato mais amplo e aberto para outro mais fechado
e cristalizado. O que não significa a impossibilidade de modificações, apenas que tais mudanças
estarão mais vinculadas ao que já está pronto, sem necessariamente promover profundas
alterações no âmago da peça. Nesse sentido, observamos que por mais amplo e aberto que o
texto e o espetáculo teatral sejam, haverá sempre uma tensão entre forças que tendem a
estabilizá-lo e outras que o forçam a manter-se na instabilidade. Apesar desse terreno movediço,
no momento da constituição do espetáculo teatral, todos os elementos confluem para a
manutenção da sua identidade, de acordo com uma estrutura ou roteiro que deve ser seguido,
uma ideia orientadora. Conforme descreve Rewald, em alguns momentos a mudança é
indesejada, pois
[t]oda alteração de texto tinha que ser suave e gradual. Um dia uma fala, outro dia
outra, e assim por diante. Desse modo, criação e construção estariam sempre em
movimento, sem a necessidade de uma crise. Nesse momento de apresentações
públicas a crise torna-se indesejável, pois traria instabilidade e vulnerabilidade ao
espetáculo, acarretando más apresentações, o que afugentaria o público e
conseqüentemente provocaria a morte do processo (cancelamento da peça por falta de
público) (REWALD, 2005, p.77).
ensaios e na encenação, quando o espetáculo está constituído. Com a peça pronta, a função do
improviso é manter o processo criativo em funcionamento, atualizando o espetáculo.
Ao se analisar o registro escrito da cena como fato pretérito, anterior ou não a esta, o
filólogo encontra nele a memória das escolhas e recusas na transposição da linguagem verbal e
escrita para a linguagem cênica. O script plasma este processo e de maneira limitada permite
fazer ver as diferentes versões assumidas, não sendo, nenhuma delas, capaz de abarcar a
totalidade do fenômeno teatral, visto que se trata de uma tarefa impossível. O texto teatral é o
prisma da cena, nesse sentido, não interessa vê-lo como algo que falta e que deve ser preenchido
no palco, mas sim compreendê-lo como peça do mosaico, como ponto de referência, que pode
ser adotado ou não pelo diretor.
Faz-se então necessário tomar um conceito chave para se pensar a noção de texto: o
inacabamento como elemento constitutivo de qualquer produção literária. A Crítica Genética
promoveu um deslocamento no recorte dos estudos literários, enfatizando as etapas de sua
elaboração, em detrimento da obra finalizada. Tais estudos tiveram como consequência um
descortinamento do processo de escrita, evidenciando sua elaboração. Como elemento
fundamental para pensar a obra em processo de construção, a escrita inacabada torna-se
profícuo objeto de estudo, pois impossibilita uma visão teleológica, que toma como ponto de
chegada a obra publicada, uma vez que esta não fora concluída.
Grésillon (1995) e Grésillon, Mervant-Roux e Budor (2013) têm se dedicado a pensar
a escrita dramatúrgica sob a ótica da Crítica Genética, analisando o processo criativo que
envolve as diferentes linguagens da cena. Parte-se do pressuposto de que a representação teatral
sempre considerou o processo e o inacabamento como constitutivos da sua arte e o texto teatral
sempre teve a incompletude no seu cerne. Grésillon, Mervant-Roux, Budor (2013), assim,
questionam o emprego dessa noção no âmbito do teatro:
literários, já que todo texto é dotado de vazios (portanto de inacabamentos), por outro lado é na
dramaturgia que ela se evidencia de forma mais intensa, uma vez que estes vazios são
preenchidos com signos de distintas naturezas.
Para além destas questões, o inacabamento dos textos teatrais encontraria sua motivação
na palavra dita pelos atores e na sua interação com os espectadores. Mais do que representação,
o momento da encenação é a própria inscrição das falas no corpo vivo do ator. Assim,
[…] cada noite, o espetáculo renasce, pois os atores são bem vivos e os espectadores
sempre diferentes. As apresentações sucessivas não devem, portanto, ser consideradas
como ocorrências de um objeto estético acabado, mas como tantas gêneses
multiplicadas no tempo. (GRÉSILLON; MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013, p. 393)
Disto resulta que as diferentes encenações nunca serão idênticas, uma vez que a
celebração do espetáculo irá sempre promover atualizações e improvisações, instalando a
diversidade e a diferença. O espetáculo teatral só tem sentido ao encontrar a audiência, o
espectador, que atuará como grande organizador desses diversos fragmentos que compõem o
teatro, atribuindo-lhes sentido. Dessa forma, o teatro expõe seu compromisso com o refazer,
reescrever, reencenar. Nesse “rascunho interminável”, os sujeitos que participam do processo
podem reconstituir e explorar as diferentes linguagens cênicas, dotar o texto de marcas
ideológicas, propor traduções intersemióticas e culturais, afirmando o ‘aqui e agora’ como
legítimo da cena teatral.
No entanto, não é suficiente definir a obra teatral como aberta e instável, é necessário
precisar de que maneira se caracteriza o inacabado. Grésillon, Mervant-Roux e Budor propõem
uma categorização desse inacabamento, em quatro formas, a saber:
[...] o não produzido (o texto de teatro, como se sabe, é duplamente furado: as rubricas
demandam serem traduzidas cenicamente, o diálogo deve ser proferido e a própria
cena é o lugar do como se. Nada, nunca, realiza-se aí); o não fixado (nenhuma
apresentação é idêntica à outra); o incompleto (o espectador tem sua parte no
desenvolvimento da apresentação); o nunca terminado ([Uma confusão dos sons, das
coisas e dos seres. Uma espécie de rascunho interminável em que se busca a obra,
tomando emprestado todas as liberdades do dia e da noite]). (GRÉSILLON;
MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013, p. 393)
3
A SBAT era responsável por recolher os direitos autorais. Para tanto os textos deveriam ser registrados na referida
sociedade. No regime militar, o registro na SBAT era feito durante o processo de censura; por conta disso, a
maioria dos scripts armazenados no Espaço Xisto Bahia, que foram submetidos ao protocolo da censura, trazem
também o carimbo da SBAT. Bortoloti (2014) afirma que não era fato isolado a associação entre as entidades da
classe de artistas e a Polícia Federal para a cobrança de direitos autorais.
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meio de suas leituras, e do conjunto documental de que se utiliza para compô-las, colocar em
jogo a diversidade de elementos no jogo das significações.
Ao tratar da produção teatral de tempos pretéritos, resta ao pesquisador trabalhar com
os vestígios por eles deixados, bem como com as lembranças que o público daquela época ainda
possui. Em se tratando do teatro censurado, o registro dessa cena se dá pela ação da censura
prévia que exigia o texto escrito. Nesse sentido, é possível afirmar que muitas peças só se
consolidaram como scripts em decorrência do protocolo da censura prévia. Ademais, esse
mesmo protocolo dava origem uma série de documentos que possibilitam entrever a rotina dos
espetáculos e o processo de censura.
Acerca da relação entre performance e a fixação desta em um texto organizado, Chartier
remete ao teatro grego clássico, destacando aspectos da tradição helênica, que deixa o seu
legado para o teatro contemporâneo. Associado, inicialmente, aos eventos festivos e ao culto
das divindades, as formas do drama assumiam gêneros predominantemente orais, frutos de uma
inspiração circunstancial, considerados uma presentificação de um mundo extraterreno, sendo
sempre associados a um evento, como as odes inspiradas pelas musas. Assim,
Com as competições que ocorriam nos cultos das cidades-estados, foi estabelecida a
disputa entre os cantos inspirados pelas musas, resultando em uma classificação e análise
destes. O aspecto ritual acabou sendo preterido, sobretudo, com o estabelecimento de regras
para a forma do texto. Chartier discute as consequências dessa mudança de estatuto da arte
cênica, destacando, em primeiro lugar, a segmentação entre fala e performance, com a
substituição do banquete dionisíaco por uma festa imaginária, transformado em ficção literária.
Em segundo lugar, o historiador da cultura destaca a constituição de monumentos literários que
tornam necessária a figura do autor, responsável não só pela criação da obra, mas pela
consolidação do gênero.
Por fim, Chartier traz, como terceira consequência, a ideia de obra de arte como criação
e esforço, em substituição à noção de inspiração. Dessa forma, “[o] percurso do mundo grego
nos leva então de uma poesia fundamentalmente associada à performance, governada pelas
formas de sociabilidade e pelos rituais religiosos durante os quais era cantada, a uma poesia
35
governada pelas regras da ‘instituição literária’” (CHARTIER, 2002b, p.21). O texto planejado
suplanta a inspiração ritualística e emerge como referência para o fazer poético.
Outra implicação fundamental para a instituição da literatura, tal como a conhecemos
hoje, é o imperativo de fixá-la na modalidade escrita, constituindo modelo para o aprendizado,
para a citação e também para a composição de outras obras. As regras da instituição literária
irão se apresentar em Alexandria, tradicional centro de erudição o mundo antigo, e terão três
eixos principais: “o conceito de obra, com seus critérios de unidade, coerência e estabilidade; a
categoria de autor, que atribui a obra literária a um nome próprio; e finalmente, o comentário
que, identificado como trabalho de interpretação, revela os significados da obra” (CHARTIER,
2002b, p. 21).
Assim, a distinção entre texto e performance, no mundo clássico, funda as categorias da
literatura ocidental e termina por promover o rompimento entre o planejamento da fala e a cena,
estabelecendo o fundamento para a consolidação do teatro ocidental. Este aspecto reverbera
intensamente nas releituras da Poética, de Aristóteles, durante o século XVI, com a Renascença
Italiana, quando se iniciam as traduções e os comentários da obra para língua latina, tornando-
o um dos principais paradigmas para a dramaturgia ocidental. Roubine (2003) destaca
Castelvetro (1570) como um dos principais comentadores de Aristóteles e um dos fundadores
de uma leitura prescritiva desta obra. Chama a atenção o fato de algumas das proposições
atribuídas a Aristóteles sejam, na verdade, leituras e reinterpretações, levando a crer que parte
do que se considera a essência do teatro grego recebe a influência das ideias do homem europeu
renascentista.
A Poética dissemina-se por uma Europa ocidental marcada pela “mentalidade religiosa,
culto da auctoritas, horror da heresia e espírito científico: toda criação humana supõe uma
racionalidade que basta dominar para atingir seu objetivo” (ROUBINE, 2003, p.26). Toma-se,
então, como modelo a ser imitado, o conhecimento da Antiguidade Clássica, revestido de uma
sabedoria à qual já não se pode ter acesso direto, restando aquilo que foi legado pelas obras.
Ainda conforme a “Poética de Aristóteles, ou pelo menos segundo alguns de seus
comentadores, uma tragédia não deve ser julgada por meio de sua representação, mas de sua
leitura, que dá a medida de sua conformidade com as normas” (CHARTIER, 2002b, p. 21).
Nesse sentido, a dimensão de celebração do teatro encontrava-se reduzida a um conjunto de
regras que resultava em severas limitações para a criação no palco e desprezavam a recepção
das obras. É também nessa dinâmica que se constrói a supremacia do texto teatral sobre o
espetáculo, consolidando-se como repositório de significados, como letra e vontade de um autor
individual, influenciado pelo logocentrismo.
36
O público de teatro dessa época também se interessava por ler os textos dos espetáculos
vistos ou não; os escritores, no entanto, se mostravam bastante resistentes a publicá-los. O
principal argumento utilizado era que a linguagem verbal não representaria adequadamente a
multiplicidade de signos que conformam o espetáculo, uma vez que não fora pensado para ser
objeto de leitura, mas sim para a encenação e dela dependeria seu sentido. Outros ainda temiam
o destino de sua produção, visto que o processo de impressão resultava em alterações ao texto.
Além disso, a publicação de uma peça tinha como consequência a sua franca circulação,
podendo ser livremente apresentada; por fim, ao publicar uma peça, o dramaturgo se inscrevia
na economia dos impressos, o que implicaria obter, ou não, benefícios financeiros pelos seus
escritos (CHARTIER, 2002b).
Chartier cita alguns dramaturgos do século XVII que manifestavam essa restrição,
dentre eles Marston, segundo o qual
[a] resistência em imprimir devia-se a duas razões: por um lado o próprio processo de
publicação, que abandonava a obra nas mãos dos rude mechanicals (como o diz Puck)
empregados nas oficinas, que introduziam muitos erros no texto, e, por outro lado, a
incompatibilidade estética entre o propósito original das peças escritas para serem
representadas, vistas e ouvidas, e a forma impressa, que as privavam de sua “vida”
(CHATIER, 2002b, p. 71).
Em todo caso, estas diferenças indicam que a dignidade literária e o status de ator
atingido por Molière a partir de 1660 levaram ele ou seu editor a suprimir ou a ignorar
no texto impresso de George Dandin os tipos de piadas presentes nas suas primeiras
farsas e comédias. A lógica da construção e da auto-elaboração da condição de autor
era igualmente um processo de censura (CHARTIER, 2002b, p. 61-62)
Com o livro impresso, os limites para “o que pode ser dito” começam a ser postos,
configurando-se, a depender do caso, como autocensura ou como uma estratégia, para que
certos temas ou opiniões não fossem associados ao autor. A noção de autor subjetivo se
solidifica e tem-se, então, um sujeito que pode ser responsabilizado por aquilo que afirma, ao
contrário do manuscrito, em que produções anônimas, ou identificadas por outros pseudônimos,
eram facilmente postas em circulação. A forma do impresso, por sua vez, denota uma noção
de fixação distinta dos manuscritos, nos quais a realização de emendas e correções eram mais
comuns, em comparação ao impresso.
Também nos textos teatrais censurados, há uma preocupação na passagem do
datiloscrito ao publicado. Em se tratando da obra O bonequeiro Vitalino, de Jurema Penna,
nosso objeto de estudo, não há mudanças significativas entre a última versão datiloscrita e a
versão impressa. No entanto, notamos uma intensa revisão no sentido de normalizar a língua
padrão ali presente, apagando dela os traços do idioleto de Jurema Penna. O layout do livro
estabelece ainda uma rasura no formato dos impressos, na medida em que rejeita a
encadernação, apresentando lâminas de papel dobradas ao meio e impressas somente no
anverso, sendo cada página precedida por uma fotografia da cerâmica do Mestre Vitalino. Tais
imagens não remetem a registros da encenação, mas são uma provocação à imaginação do
leitor.
“Sendo assim, devemos considerar as formas impressas da peça também como um tipo
de performance” (CHARTIER, 2002b, p.53), na qual o autor se inscreve ao ocupar o espaço
que lhe foi reservado na capa, autorizando a obra. No caso citado de Jurema Penna, entendemos
que o layout do livro se apresenta como uma forma de performance, pois a sua materialidade
significa, por si, a possibilidade de constituir novas formas para o teatro veiculado pelo meio
38
[l]e nom que l'on appose sur la feuille destinée à l’imprimerie autorise. S’il
commande et permet la multiplication singulière d'un fragment d’écriture, il donne à
ce fragment le statut d’un texte. Il le munit d’un auteur, c’est-à-dire d’une origine et
d’un droit; il le dote d’une forme canonique, c’est-à-dire d’une conformité stable.
L’écrit préparatoire, quelque aspect qu’il prenne, a pour seule limite le geste qui
appose le nom. La signature est l’écriture ultime, dont l’avant-text constitue l’amont
protéiforme (CERQUIGLINI, 1989, p. 11)4.
Nesse sentido, quando um texto adquire a forma impressa torna-se estável e assume uma
forma fixa. Ainda que se trate de um fragmento, a publicação autoriza-o e legitima-o como
objeto de leitura, dotando-o de uma forma apta a circular na sociedade. Subentende-se que para
assumir esse formato privilegiado de circulação, o texto foi destacado de um conjunto, por
critérios de méritos e distinção. Ademais, os custos da publicação deveriam se justificar pela
“qualidade” da obra publicada. No momento histórico em que a razão dos homens constitui-se
como ideologia principal para o desenvolvimento do pensamento, das ciências e da literatura,
restou atribuir-lhe um autor, o nome daquele que autoriza e valida as ideias dispostas no livro
impresso.
Chartier exemplifica brevemente a constituição desse autor individual de textos teatrais
e sua vinculação às formas impressas:
4
O nome que assina sobre a folha destinada à impressão a autoriza. Comanda-a e permite a multiplicação de um
fragmento singular da escrita, dá a este fragmento o status de texto. Ele se mune de um autor, ou seja, uma origem
e um direito, que lhe dá a forma canônica, isto é uma conformidade estável. A escrita preparatória, seja qual for o
aspecto que ela traga, está limitada apenas pelo gesto que assina o nome. A assinatura é a escrita final, da qual o
texto preliminar constitui a montante proteiforme. (CERQUIGLINI, 1989, p. 11, tradução nossa)
39
A definição legal dos direitos autorais, tal como era concebido no século XVIII,
pressupunha que a obra fosse sempre a mesma, independentemente da maneira como
se materializava. O julgamento estético sobre o qual este conceito legal se funda
considera as obras literárias por elas mesmas, sem prestar nenhuma atenção às suas
diferentes formas de publicações ou performances.” (CHARTIER, 2002b, p.62).
Assim, constitui-se a falsa ideia da estabilidade do texto teatral em sua forma impressa.
A encenação seria considerada o único espaço onde o componente verbal do espetáculo poderia
ser modificado, sem prejuízo para a obra, pois a letra do autor, estabilizada sob a forma do
impresso, salvaguardaria, no plano da escrita, a “performance” original. O texto, assim,
consolidar-se-ia como uma abstração, desvinculada do âmbito literário em que se insere ou das
formas materiais que assume. Do ponto de vista legal, o nome do autor guardaria a sua
genuinidade e unidade, sendo, portanto,
do romance nos demais gêneros literários canônicos, permitindo-lhes uma série de renovações.
Sarrazac (2012) localiza na posição assumida por Diderot, uma tendência à romancização do
drama, presente na tentativa de traduzir para o escrito toda sorte de pantomimas realizadas em
seus espetáculos, posição essa entendida por Sarrazac como utópica:
[o] aspecto descritivo dessas longas rubricas não deixa, por sinal, de ter seu valor
dramático. Nesse ou naquele retrato que Ibsen ou O’Neill fazem de seus personagens,
o drama acha-se de certa forma inscrito ainda mais profundamente, até nos corpos.
Quando lemos que o “tailleur de seda deve ter sido elegante, mas [...] parece afora
cansado e puído” ou que “as mãos de Mary nunca ficam em repouso. [Que] elas
antigamente foram muito bonitas [...] mas que os reumatismos as deformaram,
contraindo as articulações, retorcendo as falanges”, [...] vemos toda uma
temporalidade romanesca invadir o espaço do teatro [...] (SARRAZAC, 2012, p.165-
166).
[a] adaptação teatral, prática que se intensifica desde então, acelera a primeira fase da
romancização do drama. A matéria-prima romanesca, que se tenta embutir num drama
de forma clássica, termina por esbarrar nas regras de unidade e por amenizar a
construção das peças. As rubricas desenvolvem-se em número e em extensão; são
repensados o lugar, o personagem, a representação e o jogo; os cenários são
enriquecidos e multiplicados. O iluminismo e o romantismo dão então início, atacando
as convenções e abordando reputados temas romanescos, à modernização da forma
dramática (SARRAZAC, 2012, p. 168).
[...] dois terços desses dramas eram libretos de ópera, um claro reflexo da paixão pelo
teatro lírico no Brasil em meados do século XIX. Desses, treze eram edições de
originais brasileiros, mas a maioria (47) era constituída, como se poderia esperar, de
42
traduções do italiano, entre elas dez de Donizetti, oito de Verdi, cinco de Puccini, três
de Belini e três de Rossini. (HALLEWELL, 2012, p.175)
recursos e por agregarem grande parte dos profissionais da área. Analisa, ainda, a frequência
com que este corpus vem acompanhado de apreciação crítica e/ou de apresentação, chegando a
um percentual 65,2%, o que indica a importância desses escritos introdutórios para situar o
leitor e permitir ao pesquisador adentrar às representações que os sujeitos contemporâneos
realizavam.
Acreditamos, desse modo, na viabilidade e relevância da publicação dos textos teatrais
brasileiros, em especial os baianos censurados durante a ditadura militar. Assim como Gomes
(2007) e Magaldi (1997), entendemos que a edição dessa dramaturgia proporcionará fontes para
a constituição da memória e da história do teatro brasileiro. Na insuficiência ou inexistência de
recursos para os registros audiovisuais, o texto constitui-se como o único registro deixado pela
cena. Ainda que plasme a diversidade do espetáculo teatral na linearidade do plano escrito,
trata-se de um testemunho fundamental para se compreender os modos de fazer teatro em um
tempo pretérito.
Gomes ainda reproduz um excerto da editora chefe da Coleção Teatro Brasileiro, Soraya
Handam, afirmando que “a coleção conquistou feito notável no meio editorial. Suas peças são
encenadas em todo o Brasil após a publicação como nunca ocorreu com qualquer projeto
editorial” (GOMES, 2007, p.33). Assim como a disseminação das obras de teatro na Europa
Moderna deu-se por conta do acesso à publicação, seja ela pirata ou não (CHARTIER, 2002b),
compreendemos que a publicação dos textos teatrais será válida por inscrevê-los no âmbito da
produção intelectual na contemporaneidade, possibilitando que outros sujeitos se apropriem
deles, atribuindo-lhes novos sentidos, por meio de novas propostas de leitura e de encenação.
É neste sentido que a Filologia, que aqui se pretende desenvolver, não se propõe a
defender uma ligação linear entre texto e cena, tampouco pretende apresentar uma interpretação
final ou uma edição definitiva. Tendo em vista a amplitude e multidimensionalidade que
implica o estudo da dramaturgia, faz-se necessário, então, estabelecer um recorte para o objeto
de estudo em questão: interessam-nos os textos teatrais que se registraram por escritos e que
foram submetidos ao exame da Censura Federal. Dentro desse universo, destaca-se a
dramaturgia de Jurema Penna.
Trata-se de uma produção constituída a partir de sua visão de palco. O espaço cênico
não era portanto imaginado, mas estava presente na vivência teatral de Jurema Penna, uma vez
que possuía uma significativa experiência como atriz e a maioria das suas peças eram também
dirigidos por ela. Além disso, ao se analisar as modificações textuais, percebe-se que muitas
condensações de réplicas, eliminação de personagens e deslocamentos de trechos são realizados
com vistas ao funcionamento do espetáculo. Nesses termos, não haveria como propor uma
44
crítica filológica do texto desvinculado de sua materialização no palco, pois estes se encontram
diretamente inter-relacionados.
Ao mesmo tempo, Jurema Penna constitui-se como um sujeito-autor que se mostra no
texto teatral. Estes testemunhos encontram-se assinados e rubricados, dotados de notas do seu
processo de construção e de circulação. As modificações realizadas dão conta de sugerir os
posicionamentos políticos e ideológicos da dramaturga, de forma que a apresentam como leitora
do seu tempo, dedicada a refletir e representar, no palco, a realidade em que vive, renunciando
a um tratamento superficial de temas como racismo e políticas culturais no estado da Bahia.
Longe de ser um teatro puramente representativo, Jurema Penna se propunha a desenvolver
uma arte cênica que levasse à ação, por meio de seu trabalho como professora de teatro e
idealizadora de projetos que faziam chegar as artes às comunidades mais pobres.
Sua escrita apresenta-se permeada por outros autores e outras obras que emergem nos
espetáculos e cumprem uma função específica no desenrolar da peça. Valendo-se do processo
de citação como operador de intertextualidade, Jurema Penna entrelaça ao seu texto teatral
outros previamente conhecidos pela plateia e, por isso, constitui, no momento da encenação
uma relação de reconhecimento e proximidade com o seu público (ALMEIDA, 2011). Assim
como o processo de citação desempenha um papel no texto dramatúrgico, será também
necessário ao desenvolvimento da ação.
A escrita para o teatro estaria indissociada da elaboração da cena, pois esta reclama o
seu lugar no texto e se manifesta sobre a sua materialidade: antes da montagem, por meio das
indicações cênicas; durante, pela colaboração dos atores no ensaio; e depois, quando o
dramaturgo põe-se a revisar o script após uma temporada de apresentações. Buscamos, dessa
forma, evidenciar que os vestígios do espetáculo devem compor o referencial interpretativo do
filólogo, pois participam de forma fundamental da composição e da leitura do texto. Como se
tratam de peças montadas em tempos pretéritos, esta leitura encontra-se limitada pelos
documentos que sobreviveram ao decurso da história, o que acarreta não só circunstâncias
imprevisíveis e incontroláveis, mas também processos de escolhas e descartes, em documentos
de posse de organismos públicos (em geral com problemas de conservação) e particulares (cujos
donos apresentam resistência em ceder o material para estudo). Estes são condicionamentos do
trabalho filológico que devem ser problematizados, mas que não são impedimentos para o seu
desenvolvimento.
Jurema Penna participou do cenário das artes cênicas em âmbito local e nacional, ao
longo de 50 anos, fato que rendeu à sua carreira um caráter multifacetado. A obra da dramaturga
se caracteriza por uma temática dedicada à diversidade cultural da Bahia, englobando tanto a
45
cultura sertaneja, como o papel fundamental do elemento africano para a construção dessa
cultura. Os estudos realizados sobre a sua dramaturgia mostram uma obra com relevância
literária, mas que ainda é pouco conhecida. As modificações realizadas nas diferentes versões
do texto de uma peça evidenciam o cuidado com a construção do script, buscando transmitir a
sua mensagem da maneira eficaz; para isso realiza supressões, deslocamentos, acréscimos,
movimentos de escrita que permitem entrever o seu posicionamento ideológico frente às
dificuldades dos anos de chumbo. Defendemos, portanto, a publicação desses textos com o
propósito de divulgar a obra de Jurema Penna, bem como de levantar elementos para a
construção de parte da história do teatro baiano em tempos de ditadura militar.
[…] a representação necessita do texto para existir e para ser interpretado. O texto não
é descrito em sua enunciação cênica, ou seja, como prática de cena, mas como
referência absoluta e imutável, como pivô de toda encenação. Ao mesmo tempo, o
texto é declarado incompleto, já que necessita da representação para tomar seu
sentido. Tais proposições filológicas têm todas em comum uma visão normativa da
encenação: esta não pode ser arbitrária, ela deve servir o texto e se justificar para uma
leitura correta do texto dramático. Pressupõe-se que o texto e a cena estão ligados e
que foram concebidos um em função do outro: o texto em vista de uma futura
encenação, ou pelo menos de um modo dado de atuação; a cena pensando naquilo que
o texto sugere para a sua espacialização (PAVIS, 2011, p.191).
46
interpretá-lo, renovadas a cada temporada. Acreditamos, portanto, que o trabalho filológico não
busca uma “relação normativa”, conforme afirmou Pavis, entre o palco e o roteiro do
espetáculo.
Assumimos, como ponto de partida para a nossa análise, a significativa diferença entre
a linguagem do texto escrito e a linguagem da cena. A passagem de uma para a outra implica
um trabalho crítico que não pode ser linear ou seguir uma relação de causa e efeito. Torna-se,
assim, fato evidente que nesse processo de tradução cênica, o componente verbal do espetáculo
deverá ser ressignificado e reconstruído. Nesse sentido, tentar visualizar o espetáculo através
do texto ou o texto através do espetáculo resultará sempre em uma perspectiva oblíqua, em que
se pode ver apenas parte, uma visão obtusa, limitada e incompleta, mas ainda assim, coerente
com a proposta cênica.
O caminho interpretativo adotado na crítica filológica terá como consequência a
realização de uma leitura do fragmento, que, por sua vez, resultará igualmente incompleta, mas
que se pretende representativa do objeto em estudo. Desconsideramos, portanto uma visão de
Filologia que objetive compreender a relação entre texto e performance de forma paralela. A
busca por documentos e materiais que atestem a elaboração do espetáculo, uma das etapas do
método filológico, não tem como objetivo dar conta de uma totalidade. Acreditamos, antes, que
com esse procedimento será possível compor um mosaico de elementos textuais, culturais e
sócio-históricos a fim de que os leitores sejam capazes de propor, acerca deles, suas
interpretações.
Apesar de suas origens remontarem à Antiguidade Clássica, é possível perceber, ao
longo da história da Filologia, uma permeabilidade às teorias vigentes de cada momento
histórico. Uma vez que toda ciência se inscreve em um momento histórico, é inevitável que
apresente as marcas dele em suas formulações teórico-metodológicas. Incursionar por esses
caminhos resulta em um movimento interpretativo que se soma às propostas de empreender
uma revisão acerca dos estudos filológicos, discutindo-se as suas vinculações teóricas e
ideológicas, bem como a função que tal disciplina desempenhou ao longo de sua história.
Ademais, em um momento no qual se busca firmar o campo dos estudos filológicos em sua
relevância e especificidade, em diálogo com os avanços dos estudos do texto na
contemporaneidade, torna-se preciso estabelecer propostas de edição e estudo coerentes com
tais avanços.
A fim de pensar o desenvolvimento dos estudos filológicos, parte-se de Marquilhas
(2010b) que situa, no século XVIII, um labor filológico identificado como a “esplêndida
ciência”, que, orientando-se pelos postulados da Filosofia, consorciava os estudos linguísticos
48
e literários no intento de conhecer o espírito das nações, por meio de estudos dos textos legados
pelas sociedades:
A língua era, assim, compreendida como um organismo vivo que nascia, se desenvolvia,
decaia e morria. O determinismo era patente nestas formulações, uma vez que tais eruditos
estabeleciam uma conexão direta entre a língua falada e o seu povo, como se a primeira fosse
um reflexo do ânimo do segundo.
Este pensamento só seria revisto com a emergência dos neogramáticos e a clivagem
estabelecida entre o fenômeno linguístico e sua dimensão cultural e histórica. Para esses
teóricos, interessava estabelecer leis capazes de explanar os fenômenos, que anteriormente eram
considerados exceções à regra, por meio de explicações “internas à língua”, além de se
constituir uma teoria para a mudança linguística. A partir daí, há um progressivo afastamento
entre os Estudos Linguísticos e as Ciências Humanas: de um lado, a Filologia se constitui em
uma disciplina histórica e, de outro, a Linguística torna-se uma ciência natural.
No fluxo dessa corrente, segue, em plano secundário, a Crítica Textual, que se ocupa de
garantir que uma certa obra esteja o mais próximo possível daquilo que formulou o seu autor.
Após a segmentação dos campos dos saberes, no âmbito acadêmico do século XIX, a tarefa de
editar textos foi relegada para a Filologia, sob a égide de fornecer materiais fidedignos para os
estudos linguísticos, restituindo-os de toda a corrupção e lacuna que os “macularam” durante o
processo de circulação.
Nessa busca pelo original, constitui-se o método lachmaniano. Como uma síntese dos
saberes e das práticas que remontam à Antiguidade Clássica, diferencia-se desta por propor uma
edição com base científica, consoante às propostas que consolidaram o saber acadêmico-
científico, durante o século XIX. As etapas editoriais eram devidamente estabelecidas e o
filólogo deveria retirar da edição tudo aquilo que dissesse respeito ao seu próprio juízo de valor,
subtraindo da prática editorial a subjetividade e construindo uma ideia de editor como sujeito
neutro, que deveria ser imperceptível na elaboração da edição.
O método propunha a recolha de todos os testemunhos de uma obra, a chamada tradição
direta, bem como todos os que a ela se referissem, a tradição indireta. O objetivo era dar conta
49
de uma totalidade de documentos que fosse relevante para a reconstituição do original perdido.
Para tanto, os documentos eram analisados quanto a sua autenticidade e/ou validade para a
tradição. Os testemunhos deveriam ser comparados e, por meio da análise dos erros,
estabelecer-se-ia uma filiação entre eles, conforme um modelo semelhante a uma árvore
genealógica, denominado stemma codicum. O objetivo final era chegar ao arquétipo, o texto
mais próximo ao original perdido.
Trata-se de uma proposta editorial de base positivista, cujo compromisso era com os
critérios de estabilidade textual e originalidade. Os elementos textuais que não correspondiam
ao original eram considerados desvios, acréscimos, interpolações estabelecidas de maneira a
desvirtuá-lo, afastando-o de sua forma ideal. Estes “erros” eram, por fim, expostos à margem
do texto crítico, ocupando um lugar secundário em relação ao arquétipo reconstituído. As
funções dessa edição seriam estancar as modificações feitas devido a sua circulação, bem como
estabelecer um padrão “suficientemente correto” para ocupar o espaço da obra dentro do
sistema literário.
Em reação a esta corrente de pensamento, Bédier, filólogo francês dissidente da escola
lachmanniana, propõe uma metodologia de edição que tinha como objetivo editar o manuscrito
mais representativo de uma dada tradição textual, em vez de optar por um texto compósito,
resultado da soma de outros, mas que não corresponde a nenhum dos que de fato existiram.
Conforme leitura de Elia (1993), à semelhança de Lachmann, a proposta editorial de Bédier
permanece historicista, mas se propõe a uma dimensão culturalista e não naturalista: “[o]
método de Bédier abandonava por isso a busca biológica de um antepassado comum para deter-
se na fenomenologia do texto” (ELIA, 1993, p.60).
A metodologia desenvolvida por Lachmann e Bédier tomava como objeto os
manuscritos produzidos antes da imprensa e dedicava-se principalmente a textos eclesiásticos.
É inegável admitir que estes estavam marcados por um sentido de sacralidade, que impunha um
distanciamento entre editor e obra, o que resultava numa postura de reverência frente à
singularidade do objeto em estudo. Daí tantos esforços para purgar destes os erros, desvios e
mutilações adquiridos no processo de circulação, e logo a deferência e o cuidado da parte de
quem devia “resgatar” estas obras.
O desenvolvimento dos estudos filológicos no século XX e XXI ganha novas formas
provenientes da aplicação do método filológico a objetos de natureza diversa, tais como
manuscritos de autor e impressos de diversos gêneros (jornal, contos, folhetins, romances).
Essas questões promovem deslocamentos das fronteiras dos estudos filológicos, bem como a
50
ampliação dos limites, revisão de conceitos e novas modalidades da Crítica Textual, das quais
se destacam a Bibliografia Textual, a Crítica Genética e a Sociologia dos Textos.
A Bibliografia Textual, vertente associada aos estudos anglo-saxões, dedica-se ao
trabalho com os impressos. Trata-se de entender o contexto de produção e caracterizar as
especificidades desse objeto, partindo-se do pressuposto de que no processo de produção do
livro impresso também ocorrem modificações textuais. Em que pese uma falsa impressão de
imutabilidade destes livros, quando comparados aos manuscritos, as análises desenvolvidas por
Greg e Bowers no início do século XX apontaram para a presença de intervenções sobre o texto
que eram inerentes à sua produção. Em Bibliografia Textual, os estudos apontam para o
manuscrito que originou o livro impresso, em termos de autoria e origem; o cotejo entre
manuscritos e impressos; e o estudo das revisões autorais em diferentes edições (BOWERS,
1966).
Estes estudos estão calcados na busca pela correção das alterações ao texto advindas de
sua produção e circulação. Todas as análises realizadas no que tange à aparência física dos
livros (bibliografia descritiva) e em relação à investigação dos detalhes físicos para caracterizar
o processo de sua manufatura (bibliografia analítica) materializam-se em critérios utilizados
para se chegar à edição mais próxima possível do manuscrito que a originou. A metodologia
prevê que o editor tome a versão mais antiga, corrigindo-a com base nas variantes substantivas
provenientes da tradição. Em seguida, deve-se testar a integridade da cópia e caracterizar as
demais, comparando-as ao texto tomado como base para a edição, o copy-text, exemplar a partir
do qual todas as correções, inserções e emendas serão realizadas (GREG, 1950).
No que tange à interface entre Filologia e Crítica Genética, verifica-se que o estudo do
manuscrito moderno demandou novos tratamentos teórico-metodológicos para esses objetos,
fato evidenciado nos trabalhos de Continni (1986). Willemart (1999) destaca a importância de
ratificar o lugar de nascimento de cada uma das ciências, a Filologia, que se origina no
positivismo do século XIX, e a Genética, no estruturalismo do século XX. Para o referido
pesquisador, os estudos da gênese destacam-se por proporem a preterição da análise teleológica
das fontes, assim, a investigação da documentação relativa a uma obra não se resumiria apenas
a uma sucessão de fatos e de escritos, que tem como ápice a obra impressa.
Marquilhas (2010b, p. 362) defende que o método lachmaniano permitiu o surgimento
das modalidades da Crítica Textual na contemporaneidade, quais sejam a Crítica Genética e a
Sociologia dos Textos. No que tange à Crítica Genética, a referida filóloga elucida que a
organização genealógica dos manuscritos proposta por Lachmann foi uma importante etapa
metodológica para essa disciplina estabelecer uma ordenação ao seu prototexto. Por sua vez, a
51
Crítica Genética devolve à Crítica Textual meios para compreender a escrita em seu processo
de construção, nas rasuras, avanços e recuos do autor, na produção de sua obra. Dessa forma,
se processa também uma modificação no conceito de texto, que já não se refere apenas àquele
pronto e acabado, mas um que se revela em sua produção, em sua instabilidade, sendo o produto
final apenas a culminância de uma série de processos.
Assumindo o papel de foco convergente dessas práticas editoriais, o método
lachmaninano pode ainda ser identificado como portador do gérmen dos estudos da recepção e
circulação dos textos propostos por McGann e McKenzie. Na Sociologia dos Textos, por
exemplo, a metodologia de registrar os “erros” poderia ser lida, com os olhos de hoje, como um
modo de evidenciar a recepção desses escritos por meio dos copistas. A partir das formulações
da referida disciplina, foi possível valorizar o aspecto material aliado à circulação dos textos
num dado âmbito social. No momento de seu surgimento, a Sociologia dos Textos estava
voltada para entender a dinâmica que movia as oficinas tipográficas e as complexas relações
sociais estabelecidas entre os atores sociais envolvidos na produção dos livros impressos.
Juntos, todos esses diferentes desdobramentos do fazer filológico promoveram
atualizações teórico-metodológicas, em decorrência do trabalho com os diferentes documentos.
Somem-se a esses a influência dos filósofos da diferença, dedicados a pensar a desconstrução
de alguns conceitos, tomados como basilares para a Filologia.
Lendo este novo paradigma teórico, em que se inserem os estudos contemporâneos,
Cerquiglini (2000) discorre acerca da diferenciação da história da Filologia em duas etapas,
contando-se a começar de sua consolidação como disciplina. Esta diferenciação se torna
relevante, visto que muitas vezes os ideais positivistas de pureza da edição, neutralidade do
editor e busca pela origem perdida ainda se presentificam nos meandros das práticas editoriais
contemporâneas, resultando em um estreitamento da possibilidade de leitura de uma obra,
quando não em um anacronismo teórico-metodológico.
Disto advém a proposição de dois paradigmas para a Filologia, identificados em
algumas características. O paradigma I, denominado Filologia Antiga, poderia ser relacionado
à atividade filológica desenvolvida durante os séculos XVIII ao início do século XX: é a
filologia de base positivista cujo principal objetivo era a reconstrução de um original, a partir
da comparação entre os testemunhos. De acordo com Cerquiglini (2000), a mudança para o
Paradigma II, da Nova Filologia, está vinculada, sobretudo, à transformação na concepção de
textos promovida tanto pelos avanços dos estudos literários, destacando as figuras de Roland
Barthes, Michel Foucault e Jacques Derrida, como pela noção de hipertexto, suporte de escrita
que engendra outras textualidades na apresentação da edição.
52
Paradigme I5 Paradigme II
Option critique Autorité textuelle Partage textuel
Technologie Imprimerie Internet
Métaphore Arbre Réseau
Héros Auteur Scribe
Amour Unicité Variance
Objet Copie méprisée Réception positive
Texte comme Essence verbale Matérialité du codex
Principe Décontextualisation Contextualisation
But Reconstruction Simulation
Méthode Interventionnisme Comparaison
Résultat Livre imprimé Hypertexte
Fonte: Cerquiglini (2000, p.2)
5
Paradigma I: Opção crítica: autoridade textual. Tecnologia: imprensa. Metáfora: árvore. Herói: autor. Amor:
unicidade. Objeto: cópia desprezada. Texto como: essência verbal. Princípio: descontextualização. Objetivo:
reconstrução. Método: intervenção. Resultado: livro impresso. Paradigma II: Opção crítica: texto compartilhado.
Tecnologia: internet. Metáfora: rede. Herói: escriba. Amor: variação. Objeto: recepção positiva. Texto como:
materialidade do códice. Princípio: contextualização. Objetivo: simulação. Método: comparação. Resultado:
hipertexto. (CERQUIGLINI, 2000, p.2, tradução nossa).
53
interpretação dos textos. O resultado final desse trabalho é disponibilizado em página impressa,
contendo a edição, acompanhada do aparato de variantes, normalmente ao pé da página ou à
margem direita da página, em fonte menor, algumas vezes ilegíveis. Essa mise en page denuncia
o valor que se dá a cada um dos elementos presentes na edição: o texto editado ocupa o centro
do processo editorial e da página impressa, enquanto as variantes vêm em um lugar de menor
importância.
Ao fornecer um texto estabilizado, uniforme e “limpo das impurezas” do processo de
circulação, o editor oferece um objeto de leitura que é representativo de uma certa tradição
textual. Esse processo de uniformização termina apagando as marcas deixadas pelos copistas
que também são importantes por contarem a história da recepção daqueles escritos e suas
formas de circulação em uma sociedade.
Por mais que se pretenda objetiva e científica, capaz de propor uma versão que ocupe
um espaço legitimado em um dado sistema literário, a edição será sempre apenas mais uma das
formas para a circulação. Antes de se constituir como versão autorizada, uma edição crítica
mostra-se como uma possibilidade de interpretação de um conjunto de documentos que resulta
em um texto final, responsável por apresentar o percurso de escritura do autor, as materialidades
que este adquiriu em sua circulação e a recepção desta obra na sociedade.
Nesta perspectiva, seguem as proposições para a Nova Filologia. A revisão do estatuto
da escrita proposta pelos teóricos denominados pós-estruturalistas concebe-a como múltipla e
não mais unitária. Cerquiglini (1989) pontua a importância dos estudos de gênese para a
sedimentação da escrita como elemento fragmentário
[e]lle explore l’activité d’écriture polymorphe qui précède le geste ultime de la main,
par lequel la conformité de l’épreuve est souverainement attestée, et est permise, mais
sans intervention possible, la reproduction. Le bon à tirer sépare l’écriture et le texte,
l’écrivant et l’auteur, la liberté et le droit; ligne de faîte du processus littéraire, dont la
génétique sonde l’ubac, toujours plus ténébreux et profond (CERQUIGLINI, 1989,
p.19). 6
6 “Ela explora a atividade de escrita polimórfica que precedeu o gesto final da mão, pela qual a conformidade da
prova é soberanamente atestada e permite a reprodução, mas sem intervenção possível. O bom separa escrita e
texto, escritor e autor, a liberdade e o direito; norma culminante do processo literário, do qual a genética sonda,
sempre mais escuro e profundo” (CERQUIGLINI, 1989, p.19, tradução nossa).
54
O recorte feito por Marquilhas atribui como objeto de estudo da Filologia os textos
constituídos a partir da língua em sua modalidade escrita. Tal definição exclui aqueles
produzidos no plano da oralidade e define a dimensão material como traço fundamental para os
estudos filológicos. Isto coaduna com a ideia de disciplina histórica e documental, que se utiliza
dos registros escritos como modo de acessar um momento pretérito e estudar sua língua, cultura
e sociedade.
Ao se ocupar da linguagem em que essas obras de artes encontram-se registradas, abre-
se espaço para considerar as diversas variantes linguísticas que nelas se apresentam, incluindo
as que trazem a interferência da fala sobre a escrita, possibilitando compreender a oralidade de
uma língua por meio dos indícios deixados. O texto é concebido a partir das formas materiais
em que se manifesta no momento em que é tomado por seus leitores, nos diferentes âmbitos
sociais. Desconstrói-se, portanto, a noção de texto como uma entidade abstrata, estável e
uniforme, desconexa da realidade em que foi produzido e das formas que assumiu durante o
seu processo de circulação.
55
McKenzie remete a duas possibilidades de compreender os escritos, que, por sua vez,
denotam visões distintas para autoria e leitura. Na primeira definição, o autor ocupa o papel de
organizador dos sentidos do texto, é ele quem autoriza ou desautoriza certas leituras, impondo-
se como figura legitimadora de um discurso. A segunda acepção se caracteriza por compreender
a incompletude como algo inerente à escrita, uma vez que o seu sentido será construído apenas
no momento em que o público lhe atribuir significados.
Os avanços empreendidos pela Sociologia dos Textos permitem entendê-los na sua
multiplicidade de manifestações e de linguagens, desconstruindo a dicotomia texto versus livro
ao apontar para novas formas de “registros culturais” e novas materialidades que o momento
contemporâneo engendra. McKenzie (2005), então, apresenta seu conceito:
Entiendo por «textos» los datos verbales, visuales, orales y numéricos en forma de
mapas, impresos y música, archivos de registros sonoros, de películas, vídeos y la
información computarizada; de hecho, todo desde la epigrafía a las últimas formas de
discografía. No es posible ignorar el reto que suponen esas nuevas formas.
(McKENZIE, 2005, p. 30) 8
A noção de texto tem o seu sentido expandido, não se restringe mais ao verbal em sua
modalidade escrita, mas congrega as produções compostas em um sistema de signos, parte de
uma cultura, que seja capaz de produzir sentidos ao integrar-se a outros sistemas. Ao se pensar
nas novas tecnologias e as formas como elas se relacionam à cultura escrita, McKenzie reitera
os desafios intrínsecos à compreensão de tais materialidades e ao entendimento das
especificidades de cada linguagem em que estas produções são elaboradas.
Acerca da diferença das linguagens trazidas pelos textos sonoros, fílmicos, digitais,
dentre outros, em contraste com a linguagem verbal, Chartier (2005, p.7) afirma que
[…] hay textos que no suponen utilización alguna del lenguaje verbal: la imagen, el
mapa, la partitura, el territorio mismo cuando los hombres le otorgan significados,
deben ser tenidos por textos «no verbales». Lo que permite designarlos así es el hecho
7
“Um é o texto legitimado por um autor fixo e historicamente definível. O outro é o texto como algo sempre
inconcluso, portanto, aberto, variável, sujeito a um perpétuo refazer-se por parte de seus leitores, seus intérpretes
ou seus espectadores” (MCKENZIE, 2005, p.69, tradução nossa).
8
“Entendo por ‘textos’ os dados verbais, visuais, orais e numéricos, em forma de mapas, impressos e música,
arquivos de registros sonoros, filmes, vídeos e a informação computadorizada; de fato, tudo desde a epigrafia às
últimas formas de discografia. Não é possível ignorar o desafio que supõe estas novas formas (MCKENZIE, 2005,
p. 30, tradução nossa).
57
de que todas esas producciones simbólicas han sido construidas a partir de relaciones
entre signos que forman un sistema y cuyo sentido es definido por convención. 9
Esta ampliação de sentido torna-se fundamental para a edição de textos teatrais, uma
vez que estes são atravessados por uma série de outros dados verbais, auditivos e visuais.
Músicas, efeitos sonoros e de iluminação, além de figurino, cenário e o próprio espaço cênico
configuram-se como textos que são entrelaçados na formulação do espetáculo. Do ponto de
vista da metodologia da edição, eles também farão parte do cotejo para a constituição da edição,
a partir do confronto entre as suas formas de registro e o script, possibilitando entrever a
realização cênica daquele espetáculo.
Conforme assinalam McKenzie e Chartier, devemos considerar as diversas produções
simbólicas como texto; no entanto, é imprescindível compreendê-las na sua especificidade, para
que não se incorra no perigo de ler essa pluralidade de signos sob a lógica da linguagem verbal:
[l]a extensión de la categoría de texto, puso, necesaria, pero exige al mismo tiempo,
una atención más precisa a los mecanismos específicos por los que cada forma de
inscripción de un lenguaje particular produce sentido. Esta es una exigencia
fundamental para evitar el riesgo de una proyección ilegitimada de la lógica del escrito
sobre las otras formas de texto. (CHARTIER, 2005, p.7)10
9
“[…] há textos que não supõem a utilização alguma da linguagem verbal: a imagem, o mapa, a partitura, o próprio
território, quando os homens lhe outorgam significados, devem ser compreendidos com os textos ‘não verbais’. O
que permite designá-los assim é o fato de que todas essas produções simbólicas foram construídas a partir de
relações entre signos que formam um sistema e cujo sentido é definido por convenção (CHARTIER, 2005, p.7,
tradução nossa).
10
“A extensão da categoria de texto, põe-se como necessária, mas exige ao mesmo tempo, uma atenção mais
precisa aos mecanismos específicos pelos quais cada forma de inscrição de uma linguagem particular produz
sentido. Esta é uma exigência fundamental para evitar o risco de uma projeção ilegítima da lógica do escrito sobre
as outras formas de texto” (CHARTIER, 2005, p.7, tradução nossa).
58
Por sua vez, o sentido de autoria para o texto teatral estabelece-se de forma diferente em
relação a outros gêneros, sobretudo em decorrência das múltiplas interferências dos sujeitos da
cena. Quando estes indivíduos não intervêm diretamente sobre o script, a partir de uma
improvisação, por exemplo, interrogam-no e problematizam-no em função das suas
necessidades cênicas, tornando-o motivo para a sua reelaboração.
Nesse sentido, a figura do autor como detentor do processo de escritura se esboroa, uma
vez que se reconhece, ao longo da elaboração do texto, uma série de sujeitos mediadores
atuantes na sua produção e transmissão. Trata-se de um tema amplamente explorado, sobretudo
com as reconfigurações do papel do autor, realizadas inicialmente por Barthes (1988 [1968])
em A morte do autor. Neste ensaio, o teórico defende que o autor é uma personagem moderna
criada a partir da noção de prestígio social do indivíduo, solidificada com a ideologia capitalista,
que, por sua vez, foi responsável por transformá-lo no detentor da significação de sua obra.
Barthes, assim, propõe a morte dessa “entidade” e o concomitante surgimento do scriptor
moderno, que nasce ao mesmo tempo em que sua obra; e do leitor, aquele para quem a leitura
se destina e onde o sentido se constrói, “esse alguém que tem reunidos num mesmo campo
todos os traços que constituem o escrito” (BARTHES 1988 [1968], p.70).
A morte do autor configura-se como um marco que engendra a construção de uma série
de problematizações acerca do tema, dentre elas, as formuladas por Foucault, em O que é um
autor, que propõe avanços no tema, na medida em que passa a questionar as consequências
dessa morte. Da discussão suscitada por Michel Foucault, destacam-se duas noções importantes
para se pensar o estatuto do autor na prática de edição contemporânea, são elas: o nome do autor
e a função autor. Segundo Foucault (1992 [1969]), o nome do autor compartilharia certas
características comuns aos nomes próprios, como designar e indicar uma pessoa, diferenciando-
se por carregar consigo uma série de descrições acerca dos sentidos que tem a produção desse
sujeito. Assim,
[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser
sujeito ou complemento, que pode ser substituído por pronome etc.); ele exerce
relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificatória; um
tal nome de autor permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los,
selecioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os
textos se relacionem entre si. (FOUCAULT, 1992 [1969], p. 44-45.)
mais ou menos próximos do escritor real; a função autor, finalmente, se estabelece no espaço
entre o “escritor real” e o “locutor fictício”.
Para Foucault (1992 [1969], p. 46), “a função autor é, assim, característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”.
Nesse sentido, o autor é uma entidade que possui como função direcionar a leitura de uma
produção escrita e o faz por intermédio de seu nome, sua biografia, sua posição na sociedade.
A valorização prévia do autor transforma a figura do escritor real em uma entidade que participa
da construção das leituras de sua obra. Foucault, nesse sentido, não mata o autor, não o exclui,
mas o compreende como mais um dado no processo de interpretação do texto.
No panorama atual da teoria literária, não se pode afirmar que os sentidos dados à figura
do autor tenham se esvaziado completamente. Sobretudo porque este se constrói como figura
intelectual, dono de um discurso e de posicionamentos críticos sobre literatura, cultura e
sociedade, dotado de um estilo que o particulariza. Nesse sentido, entendemos os estudos da
autoficção/autobiografia estratégicos para compreender a figura do autor como um sujeito que
se constrói a partir de uma autoficcionalização, estabelecendo para si certos discursos que não
constituem a “verdade”, mas narrativas que fazem elaborar a sua autoimagem como escritor
(LEJEUNE, 2008).
Jurema Penna se define como dramaturga por meio da narrativa que constrói de si
própria nas matérias e entrevistas publicadas em jornais da época. Nestes, ao se estabelecer
como primeira pessoa do discurso, dá a conhecer uma série de concepções sobre sua produção
dramatúrgica, evidenciando as expectativas e as frustrações com a carreira. Como observadora
de seu tempo, expõe sua percepção sobre os acontecimentos da sociedade em que vive. Além
disso, torna evidente a projeção de sua biografia sobre sua obra, conforme verificamos no
excerto da matéria publicada no Jornal da Bahia, em novembro de 1979:
Quando eu escrevi Negro Amor de Rendas Brancas – continua Jurema – existia uma
boneca aparentemente de louça e quando o personagem tirou-lhe a roupa viu que ela
tinha a barriga de pano e capim, ele sentiu-se traido [sic] pela primeira vez, a boneca
era falsa, uma mentira. Depois que escrevi esse monologo kenti [sic] que isso
acontecia comigo comecei a chorar e também a me sentir tremendamente traída. A
partir desse momento comecei a querer dissecar as pessoas para saber se elas são de
capim ou tem um diamante guardado dentro de si. (JUREMA, 1979)
momento oportuno. As projeções do autor sobre o seu texto são entendidas como uma das
possíveis formas de interpretar a obra, que dão a conhecer a construção de si dentro da própria
escrita. As questões suscitadas pelos estudos da autobiografia/autoficção nos permitem
compreender Jurema Penna como uma dramaturga que se constrói pelos seus textos e se
ficcionaliza nos seus discursos.
Pensando nas consequências das problematizações da noção autoria para a Filologia,
Cerquiglini (2000, p. 2) postula a existência de uma vinculação direta entre este conceito e a
opção crítica do editor. A referida relação assume diferentes feições nos dois paradigmas da
Filologia, já citados. Na antiga filologia, o editor orienta-se pela autoridade imanente ao texto,
baseando o trabalho editorial na busca pela última versão autorizada pelo autor. Se, no entanto,
a opção crítica se inclina a compreender o compartilhamento da autoria, o autor assume a
posição da mão que escreve, de scriptor, seu trabalho é desvinculado do sentido de autoridade
de que ele ainda goza, sendo, assim, reconhecido em função dos sujeitos que colaboraram com
ele. Já não se trata de um autor que determina os sentidos, mas de um autor que levanta
diferentes aspectos de uma questão, por meio do seu exercício de escrita, e que não se pretende
como repositório da verdade sobre um texto.
Acerca do papel do editor no paradigma da Antiga Filologia, Cerquiglini (2000, p.3)
afirma que
l'éditeur ne s'interdit jamais de changer la lettre d'un texte qui lui para intrinsèquement
fautif ; l'honnêteté, voire une certaine humilité parfois devant le manuscrit s'expriment
alors par un affichage explicite des interventions. Mais, pour un tel acte de probité,
combien de corrections subreptices! L'éditeur, au fond, se persuade qu'il connait,
comprend et respecte beaucoup mieux l'original et sa langue, que le copiste. Croyant
reconstruire le travail du premier scribe, il n'est que le plus récent copiste du texte.11
11
“Ao editor não é interdito alterar a letra de um texto que lhe parece inerentemente defeituoso; a honestidade, às
vezes até uma certa humildade diante do manuscrito são expressas por uma exibição explícita de intervenções.
Mas para tal ato de honradez, quantas correções sub-reptícias! O editor, de fato, está convencido de que conhece,
entende e respeita mais o original e sua língua que o copista. Acreditando reconstruir o trabalho do primeiro
escriba, ele é apenas o copista mais recente do texto.” (CERQUIGLINI, 2003, p. 3, tradução nossa).
62
[a] ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela
comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intuitivamente antes que
conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas
de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da
natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação. (SANTOS,
1995, p. 52).
63
relação entre sistemas culturais, suas afirmações ainda servirão de referência para os sujeitos
comuns, mas não necessariamente de forma normativa, desvinculando-se da imagem de um
saber autoritário. Seu interesse principal é estabelecer referências para que os demais sujeitos
possam transitar de um sistema cultural a outro.
Nesse sentido, entendemos o filólogo como intelectual que, por meio das propostas de
edições e estudos, media a interação do leitor contemporâneo com as obras que estão temporal
e culturalmente afastadas deles. Para estabelecer a ponte entre as culturas, torna-se necessário
propor na edição elementos que permitam ao leitor compreender o texto em seu tempo, tais
como notas explicativas, glossários, documentos da recepção, dentre outros, a fim de aproximá-
los, ampliando as possibilidades interpretativas que oferece.
A recepção do espetáculo poderá, ainda, interferir sobre a construção do texto, fazendo
com que se realizem neles alterações, uma vez que a forma como o espetáculo é recebido por
uma plateia especializada pode motivar tais ajustes. A presença do público, receptor leigo,
também pode levar a modificações, de maneira declarada ou subentendida, expressas pela
reação ao espetáculo, além das ações da censura federal que, por força de lei, interferia sobre a
produção do texto teatral. Os limites entre a recepção e a autoria serão, nesses termos,
esmaecidos.
Consideramos, portanto, que a proposta editorial não deve neutralizar a multiplicidade
dos sujeitos intervenientes na construção do script, uma vez que a escrita colaborativa é a marca
desse gênero. Não se trata, portanto, de apagar o autor dessa dinâmica, mas compreendê-lo
como mão que escreve e organiza o texto, amalgamando as diversas referências e interferências
dos demais autores sobre ele. O escritor será compreendido, dessa forma, como o responsável
legal da obra, o organizador da sua materialidade linguística, mas não o detentor dos seus
sentidos.
O dramaturgo se inscreve, portanto, nos suportes de escrita, dando origem a outras
materialidades, a partir das modificações textuais realizadas. Cabe aqui distinguir testemunhos
de versões, sobretudo ao se tomar os textos teatrais censurados cuja constante reconstrução
promove a materialização de diferentes versões em diferentes suportes, ou no mesmo suporte.
Duarte ([1997-] verbete) define testemunhos como “manuscritos ou impressos que transmitem
a obra. Designa o exemplar de um texto com todas as características próprias: suportes, lições,
variantes”. A noção de testemunhos é então apresentada numa visão totalizante que engloba
tanto os aspectos materiais, como as lições documentadas naquele suporte, abrindo margens
para se compreender o suporte e o seu conteúdo verbal numa relação de igualdade
Pérez Priego (1997, p. 36), lendo G. Pasquali (1974 [1934]), afirma que:
65
[l]os testimonios son efectivamente individuos históricos, con una fisionomía propia,
portadores en su seno muchas veces de elocuentes huellas y datos respecto de dónde
se compusieron, quién los encargó o poseyó, quiénes fueron los copistas, los
impresores, los lectores, qué tipo de papel y de letra fue utilizado, qué taller
tipográfico, etc. Todo ello nos proporciona una información muy interesante, por
supuesto, para la historia cultural, pero también muy rica y aprovechable desde la pura
critica textual12.
12
“Os testemunhos são efetivamente indivíduos históricos, com uma fisionomia própria, portadores, em seu cerne,
muitas vezes, de eloquentes marcas e dados sobre onde foram compostos, quem os encomendou ou possuiu, quem
foram os copistas, os impressores, os leitores, que tipo de papel e de letra foi utilizado, em que tipografia etc. Tudo
isso nos proporciona, seguramente, uma informação muito interessante para a história cultural, mas também muito
rica e aproveitável sob a perspectiva da pura crítica textual” (PÉREZ PRIEGO, 1997, p. 36)
66
lições para o mesmo lugar, não se decidindo por nenhuma delas” (DUARTE, [1997-], verbete),
deixando a escolha sobre qual figurará na edição crítica a cargo de editor. Durante o espetáculo,
os diferentes momentos em que o texto será retomado definirão a versão a ser utilizada, assim
a atualização performática construirá versões provisórias.
No momento de proceder à colação, elegemos um exemplar de base para constatar as
diferenças existentes entre os testemunhos e, por meio dele, estabelecer leituras sobre as
modificações realizadas, a fim de evidenciar e narrar que percursos essa obra trilhou.
Preferimos pensar essas diferenças em termos de modificações textuais, no sentido de nos
desvincularmos de um conceito que poderia acarretar a planificação do nosso objeto de
pesquisa, ou ainda mostrar-se inadequado às suas especificidades. Entendemos, portanto,
modificações textuais como alterações realizadas no texto que implicarão um desdobramento
deste em diferentes formas. Estas modificações podem tanto atender a propósitos
condicionados pela própria escrita, como pelo seu processo de encenação, englobando-se nele
os diversos participantes do espetáculo, que, juntamente com o dramaturgo, compartilham a
escrita.
Podemos identificar duas formas de modificações textuais resultantes dessas
intervenções: a) aquelas referentes à construção do texto, na qual incluímos as alterações feitas
pelos diferentes sujeitos que interferem sobre a sua escrita, como a dramaturga, os atores e os
censores; b) as relativas à revisão do texto, em que incluímos as interferências cujo objetivo é
realizar revisões ortográficas acerca das questões da língua e que também poderão incidir sobre
os seus sentidos. Os aparatos são os locais em que se registram todas estas modificações
textuais, sejam elas autorais ou não. Nas edições impressas costumam vir em um espaço
marginal, com fonte diminuída e com formas de registros que tentam poupar o máximo de
espaço e trazer o máximo de informações, enquanto o texto ocupa o espaço privilegiado da
página.
Fazer caber em uma página plana e linear a diversidade e a mobilidade presentes na
história de uma obra, tanto no que diz respeito ao processo de sua produção, quanto ao processo
de circulação e recepção pela sociedade, é um dos principais problemas com que se depara o
filólogo ao apresentar sua edição crítica em meio impresso. Desta situação resulta, um texto
crítico carregado de aparatos de notas, com informações relevantes, que ocupa as margens da
página, tonando-se, por vezes, ilegível. Conforme assinala Tavani (1988, p.79),
[l]a colocación de las variantes en los aparatos tradicionales, no solo no facilita sino
dificulta su lectura, y hace casi imposible reconocer su articulación exacta respecto a
las invariantes textuales. De modo que el problema de la disposición del texto y de las
68
13
“A colocação das variantes nos aparatos tradicionais, não só não facilita, mas dificulta sua leitura e torna quase
impossível reconhecer sua articulação exata quanto às variantes textuais. De modo que o problema da disposição
do texto e das variantes – a «mise en page» na terminologia eficaz dos manuscriptólogos franceses – é uma das
questões mais urgentes, quando se pretende fazer a edição crítica de um texto contemporâneo, cujas variantes são
todas de autor, e portanto, dignas de atenção e estudo, por quem deseja reconstituir as distintas fases de elaboração
do texto” (TAVANI, 1988, p.79, tradução nossa).
69
espectadores da peça, de sua visão sobre a sociedade, suas crenças e concepções acerca da arte
e do teatro.
Também denominado de paratexto, esse conjunto documental é formado por diversos
outros escritos que se integram a uma tradição, por estarem relacionados a ela. Nesta categoria
incluem-se os comentários, traduções, notícias, dentre outros. O referido conceito, oriundo de
formulações teóricas de base estruturalista, aponta para o que está fora do texto, mas que com
ele dialoga. Conforme Gérard Genette (1982), o paratexto de uma obra é formado pelos
elementos que a circundam como títulos, subtítulos, prefácios, posfácio, advertência, avant-
propôs, notas marginais, infrapáginas, terminais, epígrafes, ilustrações etc.
Telles (2006, p.40), a partir da leitura que faz de Genette (1982) e Lane (1992), conclui
que “o paratexto situa-se na perigrafia do texto, aquela zona intermediária entre o que está fora
do texto e o próprio texto, sendo necessário, entretanto, passar por ela para alcançar-se o texto”.
O editor constrói, dessa forma, uma relação de interação entre o texto e o paratexto, este último
entendido como elemento periférico no processo de edição, e que deve ser trazido pelo editor
em relação à obra editada, o centro do trabalho editorial. Suas principais funções são explicar
as leituras realizadas e justificar as escolhas editoriais. Entende-se, com isso, que o paratexto
cumpre uma função instrumental na construção da edição, preenchendo as suas lacunas, numa
tendência totalizante, cuja principal função é completar os vazios do texto.
Se, no entanto, a documentação paratextual for objeto de uma leitura filológica crítica,
seu papel na construção da edição deixará de ser secundário, para se constituir como elemento
que entrecorta a leitura e que orienta o editor na construção de sua edição. A relação texto e
paratexto deixa de ser binária para ser relacional, não busca a totalidade, mas atua instaurando
rupturas que abrem outras chaves interpretativas. Entendemos assim o paratexto como
suplemento para as leituras realizadas.
Conforme Derrida (2009), a noção do suplemento é decorrente da impossibilidade de
uma totalização preconizada pela lógica estruturalista, na qual, para se propor hipóteses, era
necessário dar conta da totalidade do fenômeno analisado, sendo somente possível construir
conhecimentos a partir do todo. Contra essa formulação, o filósofo desconstrói a busca pela
totalidade, uma vez que um sujeito finito não daria conta de um conhecimento infinito e propõe
o conceito de jogo, em que há “substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito”
(DERRIDA, 2009, p. 421). Esses constantes deslocamentos dão origem a um centro provisório,
estabelecendo a lógica da suplementaridade. Assim,
70
[n]ão se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui
o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-
se, vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma
coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante (DERRIDA, 2009,
p. 421-422).
[à] narrativa jornalística compete a busca de uma representação clara daquilo que é
reportado, permitindo que o fato apresentado esteja o mais próximo possível do
real.[...] O relato jornalístico, quanto mais tenta se aproximar do real, simula este real,
na medida em que é capaz de oferecer as provas do real retratado. Além do testemunho
de quem relata, a fotografia permitiu avanços nesta seara.
trazidas por ele não são simplesmente transferidas, mas reconhecidas por seus receptores.
Assim,
[c]omo toda outra forma de conhecimento, aquela que é produzida pelo Jornalismo
será sempre condicionada histórica e culturalmente por seu contexto e subjetivamente
por aqueles que participam desta produção. Estará também condicionada pela maneira
particular como é produzida (MEDITSCH, 1997, p.10).
[…] jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas
empreeendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos
coletivos, por agregarem pessoas em torno de idéias, crenças e valores que se pretende
difundir a partir da palavra escrita. Por isso Sirinelli os caracteriza como um ‘ponto
de encontro de itinerários individuais unidos em torno de um credo comum’. Daí a
importância de se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial,
estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha do título e para os
textos pragmáticos que dão conta de intenções e expectativas, além de fornecer pistas
a respeito da leitura de passado e de futuro compartilhada por seus propugnadores.
[...] Ou seja, à análise da materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos
nem sempre imediatos e necessariamente patentes nas páginas desses impressos.
Certamente, o objetivo do editor, ao ler estes objetos como fontes para sua pesquisa, é
fazer falar todos os indícios apresentados por eles, a fim de construir uma rede de interpretações.
Para dar conta de incluir numa edição esse grande volume de informações referentes, o suporte
73
digital apresenta-se como principal meio para esta veiculação e o faz de maneira legível,
maleável e flexível.
Mediante as questões levantadas, acreditamos na necessidade de se elaborar uma
proposta de edição que efetivamente considere os aspectos característicos dos textos teatrais
censurados em sua multiplicidade e que não os resuma a uma versão única. Uma vez que a
pluralidade de formas o constitui em sua produção e circulação, é necessário estabelecer
estratégias para considerar tal característica no âmago do labor editorial. Cientes dessa
demanda, e com a finalidade de integrar os aspectos previamente elencados, tomamos o meio
digital na busca por conciliar de maneira mais coerente, os avanços das discussões teóricas com
a edição da dramaturgia de Jurema Penna.
Acreditamos que o uso das ferramentas digitais torna-se um caminho para a
apresentação da edição de forma não hierarquizada e relacional. Reunir na mesma tela uma
infinidade de informações acessíveis por meio de um clique do mouse favorece perceber, nas
ferramentas informáticas, importantes aliados para se alcançar os objetivos dos estudos da
Crítica Textual na contemporaneidade, quais sejam, dotar o leitor de um texto crítico mais
relacional, trazendo para este os elementos de cultura que o permeiam, além de suas diferentes
versões. Nesse intuito, passamos a refletir acerca das possibilidades e limites deste suporte,
assim como sobre as implicações da leitura na tela.
74
Em tempos em que o advento do suporte digital já traz visíveis mudanças nas práticas
de leitura e escrita na contemporaneidade, propomo-nos a refletir acerca do uso dos recursos
informáticos no âmbito dos estudos filológicos, durante a preparação de edições. Nesta seção,
apresentaremos algumas reflexões acerca desse tema, a fim de estabelecer referências para o
desenvolvimento de edições de textos teatrais.
Uma breve observação do cotidiano no século XXI já mostra diversas modificações nas
práticas de leitura e de escrita, fazendo-nos refletir acerca desses gestos na contemporaneidade.
Com a popularização do personal computer (PC) na década de 1970, bem como o boom da
internet de banda larga nos últimos anos, o uso do meio digital como suporte de escrita e de
leitura tornou-se incontestável. A cada temporada “tinta e papel virtual” (CHARTIER, 2002c)
vão se aperfeiçoando com a produção de aparelhos cada vez menores e cada vez mais robustos,
tais como laptops, smartphones, tablets, e-book readers, ultrabooks, que potencializam o
acesso e o transporte de uma grande quantidade de dados sem a necessidade do uso de fios e
cabos.
É possível observar no discurso tanto de alguns teóricos, como de não especialistas, que
o texto em meio virtual inauguraria novas formas de transmissão da documentação escrita
nunca antes vistas, tais como o uso de material multimídia, exploração dos recursos visuais, uso
de hiperlinks. No entanto, uma análise mais criteriosa aponta para a necessidade de se pensar
as práticas de leitura e de escrita no ocidente em termos de rupturas e continuidades, inserindo
a “era digital” nesse continuum (CHARTIER, 2002c). Assim, seria possível identificar, na
forma inovadora do texto digital, diversas marcas que remetem a distintos momentos da história
da escrita.
Um dos primeiros diálogos que podem ser estabelecidos entre a leitura no suporte
digital, em relação aos seus antecessores, é o movimento corporal empreendido nesta atividade.
Conforme afirmam Cavallo e Chartier (1999, p.4), a leitura “não é uma operação intelectual
75
O pergaminho, a partir do século II a. C., prova que é mais adaptável do que o volumen
em resultado final de leitura. Mais resistente. Dobrado equivale a muitos rolos.
Modifica a leitura criando pausa. Afinal, o olho agora apreende uma ou duas páginas
por vez e não mais duas ou três colunas e seus contínuos logo abaixo como no volumen
de papiro. O ato de ler se dirige à autonomia da página vislumbrada inteira. Página
total, dando motivos para o folhear. A mão livre do leitor, não mais envolvido com a
necessidade de segurar os dois bastões do rolo de papiro, pode à vontade passear,
descansar, ir e voltar no texto assim como apreciar e interagir com a margem nova,
acolhedora do livro medieval, usada na evolução dos registros para anotações,
glossários e comentários.
14
Nielsen (2010) desenvolve uma pesquisa, na qual observa que 80% dos usuários de websites não se sentem
impelidos a usar a barra de rolagem, mantendo sua atenção no conteúdo que aparece antes da dobra, ou seja, antes
de se rolar a página. No momento em que utiliza a barra de rolagem, sua leitura se constitui em uma varredura em
busca da informação que lhe interesse.
76
2003 um computador pessoal possuía 20 GB de capacidade em seu disco rígido, nos anos 2010,
um computador portátil pode chegar a mais de 1 TB, uma capacidade aumentada em 50 vezes,
cabendo dentro de um computador um infindável número de livros.
Como herança do volumen, permaneceu a organização do texto em colunas no fólio;
como avanço, surgiu o espaço da margem da folha, lugar onde o leitor poderia acomodar suas
intervenções. Sem a necessidade de segurar os bastões do volumen, era possível escrever
durante o momento da leitura. É na margem onde o homem medieval letrado se apresenta, onde
dá a conhecer o registro de suas leituras, onde anota e explica de que maneira, como sujeito de
seu tempo, interpreta aqueles escritos temporalmente distantes.
No auge do desenvolvimento do livro religioso e laico, durante o medievo, diversos
profissionais estiveram envolvidos em cada estágio da produção do códice: “o responsável pelo
tratamento do pergaminho, o copista, o corretor, o ilustrador, o profissional de acabamento e
encadernação” (PAIVA, 2010, p. 32). A divisão de tarefas tornava cada vez mais específica a
atividade de cada um desses sujeitos e tinha por finalidade tornar a reprodução dos textos mais
célere e eficaz. No entanto, a demanda crescente por livros resultou em um desenvolvimento
das técnicas de impressão, dentre as quais a xilografia, até culminar na sistematização das
técnicas de impressão com caracteres móveis, identificadas na imprensa de Gutemberg:
Chartier (2002c) afirma que, com a mudança do volumen para o códex e deste para o
livro impresso houve uma alteração em termos de técnica de produção do livro. O
desenvolvimento da prensa de Gutemberg produz um marco na história da transmissão de
conhecimento tanto pela rapidez de produção, como na concepção da produção do livro: o
processo de composição dos tipos móveis de uma página tornava possível a visualização prévia
do que seria a página impressa. Dessa forma, o momento da composição era também um
momento de criação, visto que era papel do compositor fazer a transposição do manuscrito para
a lógica do impresso, dentro de suas potencialidades e limites do uso de cores, de entalhes para
formar figuras, do uso de letras capitulares, caracteres especiais, a disposição na página, dando
nova forma ao manuscrito.
77
escala, circulando amplamente na sociedade europeia. Vale ressaltar, ainda, que a consolidação
da oficina tipográfica implicou a constituição de um complexo de relações comerciais e laborais
envolvidos na produção do livro. A divisão do trabalho tornou as tarefas de publicador,
impressor e livreiro muito mais específicas, e promoveu um desenvolvimento tecnológico
significativo na forma de preparar e imprimir livros. Some-se a isso o acréscimo de sua
comercialização e consequente popularização, dando origem ao livro de massa (ARAÚJO,
2008). Estas publicações adquiriram diversas formatações em diferentes lugares, originando “a
venda a domicílio (chapbook ingleses, pliegos castelhanos, plecs catalães, Biblioteca bleu
francesa) que, em todo lugar, dá formas novas a textos já publicados para leitores letrados a fim
de que possam angariar um outro público mais amplo e mais humilde” (CHARTIER, 2002b
p.251).
Atualmente, essas publicações tomam outras formas. No Brasil, os livros de bolso, com
exceções, apresentam seu conteúdo alterado. A imutabilidade associada aos impressos e sua
decorrente qualidade, são, assim, submetidas a um plano secundário, em favor da produção de
edições modificadas e/ou reduzidas, com finalidades preponderantemente comerciais. Nesses
termos, a polarização existente entre os livros e os textos publicados em meio virtual, como
sendo os primeiros detentores de estabilidade e qualidade e os segundos vulneráveis a qualquer
sorte de mudança, se desconstrói, uma vez que os impressos também adquirem um caráter
múltiplo, assumindo novas formas, conforme os desígnios do mercado editorial.
Diferente da publicação dos impressos, a produção textual elaborada para o mundo
virtual diminuiu a separação entre a escrita pública e a privada: um upload de um arquivo em
um site ou a publicação de um post em um blog são suficientes para colocar um texto em
circulação. Ao mesmo tempo, essa publicação independe do reconhecimento e legitimação de
uma série de atores sociais que regulam o mercado editorial. O advento da internet, dessa forma,
produz alternativas de publicação em detrimento dos restritos âmbitos das editoras. Ademais,
um texto não precisa ser dado como acabado para ser divulgado em meio virtual, abrindo espaço
para a colaboração dos leitores no processo de sua construção. A flexibilidade do suporte
permite que uma série de alterações sejam feitas, sem ocasionar gastos financeiros que seriam
impeditivos, em se tratando de livros impressos.
Chartier (2002c) chama a atenção para os deslocamentos empreendidos pelo meio
digital em relação à ordem dos discursos, e destaca uma diferença basilar entre a cultura
impressa e a cultura digital:
79
esse vasto hipertexto conhecido como a internet não existe primariamente para
produzir e fazer circular a informação, mas para gerar e fazer circular capital
econômico e simbólico. Ou mais precisamente, a rede é o local do acúmulo eletrônico
do capital, através do uso adequado da “moeda” da informação e do conhecimento.
Toda informação relevante colocada nas malhas da rede é, para todos os efeitos
prático, dinheiro. Mais do que uma democracia do conhecimento, a rede é um
hipermercado de informação (BELLEI, 2012, p.12-13).
Como todo produto cultural, devemos compreender a internet como meio de circulação
de textos, inserido no modelo capitalista de produção de riquezas, sendo, com isso, atravessada
pelas questões financeiras e ideológicas. Assim, quem tem mais poder econômico para
disponibilizar conteúdo na internet, também terá mais possibilidades de fazê-los circular,
aumentando a capacidade de gerar riquezas. Não se nega a importância da apropriação que as
classes mais populares fazem dos suportes digitais como forma de empoderamento e
intervenção em suas realidades, no entanto, é preciso considerar que a ausência de letramento
15
Ainda nesse momento da discussão, Chartier destaca como um mal-estar causado pela cultura digital a
impossibilidade de hierarquizar os textos pelo seu suporte, prática bastante comum na cultura impressa, em que
um livro, somente por se considerar sua materialidade, é mais importante que um bilhete.
80
digital tem como consequência a repetição do abismo entre as classes sociais também no mundo
virtual.
Por sua vez, a velocidade da publicação interfere no contato dos leitores com os textos.
Ao publicar em meio digital, o autor tem um feedback mais rápido em comparação com o
impresso, o que pode gerar uma série de consequências sobre a elaboração de novas versões. O
ambiente virtual configura-se, dessa forma, como um espaço em que a escrita colaborativa se
constitui por excelência. O fenômeno é perceptível, por exemplo, na escrita de enciclopédia
virtual, como a Wikipedia, em que, mediante um registro, é possível modificar seus verbetes,
acrescentando-lhes dados, corrigindo equívocos ou referenciando as informações já registradas
com suas respectivas fontes.
A escrita colaborativa se manifesta também na produção de textos literários. Tomamos
o exemplo do aplicativo The silent history desenvolvido para iphone e ipad. A história aborda
a existência de uma geração de crianças que não possuem habilidades de criação ou de
compreensão linguística e é narrada do ponto de vista dos pais, professores, médicos e demais
sujeitos que convivem com elas. Como se trata de um aplicativo, o acesso se dá via download
na App Store, apesar de denominá-lo romance (“a novel”), o site do e-book não cita o nome do
autor, a referência é feita à empresa Ying Horowitz & Quinn LLC, montada pelos idealizados
e executores do aplicativo. Verificamos, assim, que neste caso, a informação de autoria
constitui-se em uma referência secundária, uma vez que o seu desenvolvimento demanda a
elaboração de um design, o uso de linguagens de programação, a produção e manipulação de
fotografias e de vídeos, a integração com um sistema de georrefenciamento, habilidades que
vão além da escrita do texto literário e que envolvem não só um escritor, mas que o incluem em
uma equipe de desenvolvimento de software.
O aplicativo oportuniza que os leitores compartilhem seus próprios textos referentes à
narrativa e possibilita uma experiência de interatividade, trazendo certos conteúdos que estarão
disponíveis conforme a geolocalização do leitor. A leitura deixa de ser uma experiência do
corpo estático, sentado e silencioso e passa a solicitar a movimentação do indivíduo pelo espaço
físico da cidade. A história não lhe é dada como um volume completo e terminado de um livro,
é preciso fazer o download dos capítulos, que devem ser explorados, na medida em que o leitor
percorre os caminhos do aplicativo. Ler na tela não significa apenas ler na frente do
computador, mas se utilizar dos gadgets que oferecem a mobilidade do suporte virtual. Nestes
termos, entendemos que “[a] revolução do texto eletrônico é, de fato, ao mesmo tempo, uma
revolução da técnica de produção dos textos, uma revolução do suporte escrito e uma revolução
das práticas de leitura” (CHARTIER, 2002c, p. 113).
81
O autor tradicional constitui um centro de poder que organiza linearmente o seu texto
em sentenças, parágrafos, capítulos, começo, meio e fim. São esses constrangimentos
impostos ao leitor, dos quais ele dificilmente consegue escapar. O autor de
hipertextos, por outro lado, produz o seu texto de acordo com o princípio da quebra
da linearidade porque trabalha com um paradigma de construção textual que substitui
sequências de sentido por saltos entre blocos de significado.
A figura do autor não existe fora do hipertexto, mas se constitui pelo estatuto que este
recebe no meio em que circula e a posição que ocupa na dinâmica literária. Nesses termos, a
noção de autoria no mundo virtual, em comparação com os impressos, configura-se como um
elemento secundário durante a leitura.
Se as obras literárias constituídas em função dos recursos do meio virtual conformarão
uma listagem de referências, como as impressas, trata-se de uma questão que só será respondida
com a intensificação da sua circulação. Não obstante, acreditamos que estas formas
oportunizam maneiras de experimentar as potencialidades do meio digital, e originam uma
relação assaz diversa das experiências de escrita e de leitura dos textos impressos. Permite-se,
82
portanto, a elaboração de novas perspectivas para a leitura e a escrita que abalam os pilares das
categorias dos textos literários impressos.
Citamos, ainda, o projeto O livro depois do livro (BIEGUELMAN, 2003), que se
desdobra em um livro impresso e um livro digital. O livro impresso possui uma diagramação
elaborada conforme a estética do código fonte, além de trazer os títulos de suas seções indicados
com termos próprios da linguagem de programação, a saber: Requisitos Mínimos; Bookmarks;
Instalação; Configuração etc. Por sua vez, o e-book tem as suas seções nomeadas conforme um
códice: bula, índice, colofon, além da numeração p -1, em referência ao Livro de Areia, de Jorge
Luis Borges.
Bielgueman (2003, p.11) se apropria dessas linguagens promovendo uma “hibridização
das mídias e uma cibridização dos espaços”. Assim, considera que as duas formas de mídias, a
impressa e a digital, não se antagonizam, mas estabelecem entre si uma relação de hibridização.
Muito do que se realiza no meio digital toma como base a lógica do impresso, da mesma forma,
o impresso tem incorporado uma série de elementos próprios do meio virtual, como a remissão
a sites da internet, o uso de mídias anexas, com conteúdo multimídia.
A pesquisadora chama a atenção para os deslocamentos em via de mão dupla que
ocorrem do papel à tela e da tela ao papel, e que promovem novas relações sociais e culturais,
uma vez que
mais estas previsões apocalípticas vão perdendo força face uma corrente interpretativa que
pensa a era digital diretamente relacionada à história da escrita. Conforme afirma Biasi (2012,
p.25), “[l]e manuscrit, à l’âge numérique, existe sous une forme différente mais il existe bien,
au coeur du disque dur, et avec une intensité peut-être plus importante que dans le monde de
l’écriture sur papier”16.
Biasi destaca as novas tecnologias como uma possibilidade de realizar registros do
processo de escrita ainda mais sofisticados e completos que os rascunhos, decorrentes,
inclusive, da colaboração dos escritores e da conscientização sobre a importância dos estudos
de gênese. Góes (2013) exemplifica a constituição de manuscritos digitais como constructo
teórico a partir do registro em forma de vídeo do processo de legendagem do curta-metragem
Racoon & Crawfish. A pesquisadora se utiliza do software Camtasia que grava, em forma de
vídeo, todos os movimentos que se apresentam na tela do computador, durante a elaboração das
legendas, e sua marcação, no vídeo, registrando as hesitações, dúvidas, escolhas e preferências.
O registro da construção desse o manuscrito digital compõe o próprio dossiê genético.
Ademais, mesmo sem mecanismos tão sofisticados de registros do processo de escrita,
os escritores que criam direto no computador tendem a constituir uma série de arquivos que
guardam o processo de elaboração do texto. Há alguns ainda que o imprimem e trabalham sobre
essa materialidade, retornando ao manuscrito digital, submetendo-os a outra revisão.
Cerquiglini (1989, p.12) elucida outros aspectos da relação da informática com o
processo de escrita:
L’informatique est une technique de l’écriture. Elle remplit, d’une part, avec une
efficacité prodigieuse, lès fonctions universellement positives et progressistes de
l’écrit (déposer, classer, faire retrouver et répandre les savoirs). Elle consomme,
d’autre part, produit, stocke et diffuse immensément des inscriptions.17
16
“O manuscrito, na era digital, existe sob uma forma diferente, mas existe no coração do disco rígido, e com uma
intensidade que pode ser mais importante que no mundo da escrita sobre o papel.” (BIASI, 2012, p.25, tradução
nossa).
17
“A informática é uma técnica da escrita. Ela preencheu, de uma parte, com uma eficiência prodigiosa, as funções
ali universalmente positiva e progressistas da escrita (depositar, classificar, fazer retornar e difundir os saberes).
Por outro lado, ela consome, produz, armazena e divulga imensamente as inscrições. (CERQUIGLINI, 1989, p.12,
tradução nossa).
84
com base nas práticas bibliográficas, devem estabelecer modos de gerenciá-las a partir da lógica
do virtual, uma vez que as grandes massas textuais tendem a dificultar a leitura em tela.
Acerca da questão, Rodriguez de las Heras (1991) afirma que a linearidade do suporte
papel se faz inadequada às características do hipertexto, abrindo-se, assim, margem para a
exploração dos recursos gráficos como linguagem. No âmbito da escrita digital/hipertextual,
[e]scribir un texto sobre pantalla es como escribir sobre el agua. Una sensación de
inconsistencia, de inadecuación. Las líneas de texto pasan por la pantalla como las
leves ondulaciones en la superficie del mar, sin nada que las retenga, que las fije. Pero
la imagen puede ser la tinta en el hipertexto. Esta es la primera síntesis de estos
contrarios en la pantalla que son el texto y la imagen18 (RODRIGUEZ DE LAS
HERAS, 1991, p.7).
18
“Escrever um texto sobre a tela é como escrever sobre a água. Uma sensação de inconsistência, de inadequação.
As linhas do texto passam pela tela como as leves ondulações na superfície do mar, sem nada que as detenha, que
as fixe. Mas a imagem pode ser a tinta no hipertexto. Esta é a primeira síntese desses opostos na tela que são o
texto e a imagem.” (DE LAS HERAS, 1991, p.7, tradução nossa).
85
[...] a escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que participa da estruturação
do hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do sentido, já é um leitor.
Simetricamente, quem atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto da
reserva documental contribui para a redação, conclui momentaneamente uma escrita
interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor
inventa podem ser incorporados à estrutura mesma dos corpus [sic]. (LÉVY, 1996,
p.46)
É preciso, assim, ter em conta que a leitura no meio digital mobiliza estratégias diversas
daquelas utilizadas na leitura dos impressos. Ainda conforme Lévy (1996), o papel ativo da
leitura no ambiente digital torna-se ainda mais importante, porque o texto, fragmentário e
móvel, encontrará sua unidade dentro do movimento de escolhas, rechaços, e construções de
sentidos promovidos pelos cliques. Ao realizar essas seleções, o leitor constitui-se, também,
como um editor, na medida em que estabelece seus recortes sobre a massa de informações
disponíveis, decidindo ele mesmo os caminhos de sua leitura.
De acordo com Chartier (2002c, p.23),
virtual. Seja qual for o motivo, o leitor diante de um hipertexto, experimenta um espaço que já
não está limitado por um número de páginas resultantes da publicação, mas se caracteriza por
uma tela e sua cascata de janelas. Esta tela tem como fronteira uma dimensão espacial,
enquadrada por uma moldura, e uma dimensão temporal, que remete ao curto período de tempo
em que as informações permanecem sobre esse espaço e que podem, ou não, ser posteriormente
recuperadas. Com o meio digital, a leitura tornou-se também multimodal e interconectada, na
medida em que um único aparelho é capaz de dar suporte a diferentes gêneros textuais, ao
mesmo tempo em que conecta uma enorme diversidade de fontes, integrando diferentes
linguagens para se fazer comunicar.
A atitude do leitor no meio virtual apresenta-se ainda mais ativa ao se comparar com a
leitura em suporte papel, assim sendo,
Each decision will make some parts of the text more, and others less, accessible, and
you may never know the exact results of your choices; that is, exactly what you
missed. This is very different from the ambiguities of a linear text.19 (AASERTH,
1997, p.2).
Ainda que, por meio da experiência com textos impressos, seja possível percorrer
caminhos alineares, iniciando-se pelo final ou pulando capítulos etc., há uma ordem sucessiva
de capítulos, elaborada pelo autor e que permanece disponível ao leitor. Veja-se o caso de O
jogo da amarelinha, de Julio Cortázar (2006), que convida o leitor a realizar um percurso
alinear. O livro traz um “Tabuleiro de direção”, antes do início da narrativa, com uma sugestão
de rota que subverte a ordem numérica dos capítulos. O leitor pode, então, escolher ler o livro
de forma linear, seguir as direções postas no tabuleiro, ou ainda propor uma outra ordem de
leitura, mas qualquer que seja sua escolha não modificará os outros caminhos de leitura.
No cibertexto, só há uma possibilidade para o leitor: construir o seu próprio decurso de
leitura pelos infinitos caminhos propostos pelo hipertexto, com múltiplas escolhas que
terminam por serem incompatíveis umas com as outras. Cada escolha implica uma recusa de
certos trajetos, que não podem mais ser acessados, pois são produto das demandas de certo
leitor em um momento específico. Além do mais, não haverá um caminho linear ao qual uma
proposta de leitura possa se opor, uma vez que a descontinuidade é própria do hipertexto.
Dentro desse labirinto, o cibertexto desafia o leitor a percorrê-lo sob o risco de se perder
em seus infinitos caminhos:
19
“Cada decisão fará com que algumas partes do texto sejam mais acessíveis e outras menos, e você nunca pode
saber os resultados exatos de suas escolhas; ou seja, exatamente o que você perdeu. Isto é muito diferente das
ambiguidades de um texto linear.” (AASERTH, 1997, p.2, tradução nossa).
87
The cybertext puts its would-be reader at risk: the risk of rejection. The effort and
energy demanded by the cybertext of its reader raise the stakes of interpretation to
those of intervention. Trying to know a cybertext is an investment of personal
improvisation that can result in either intimacy or failure20. (AASERTH, 1997, p.2)
20
O cibertexto coloca seu possível leitor em risco: o risco de rejeição. O esforço e a energia exigidos pelo cibertexto
amplia a participação do leitor da interpretação para a intervenção. Tentar conhecer um cibertexto é um
investimento de improvisação pessoal que pode resultar em uma intimidade com texto ou fracasso (AASERTH,
1997, p.2, tradução nossa).
21
Jakob Nielsen é Ph.D. em interação homem-máquina, pela Universidade Técnica da Dinamarca, em
Copenhague. Desde 1994, dedica-se a pensar a usabilidade de sites de internet. Por sua vez, define-se como
usabilidade a divisão dos estudos em tecnologia da informação que se dedica a analisar a interação homem-
máquina, constituindo um ambiente virtual mais palatável para seus usuários.
88
22
Conforme Paiva (2005) “scanning é uma estratégia de leitura que significa dar uma lida rápida, folhear um
livro, catálogo, manual etc., para achar algo específico como uma data, um nome, um número telefônico, um
conceito, uma definição.”
89
resultados são úteis ao editor no que tange a observar os princípios gerais que regem a leitura
no meio virtual. Um projeto editorial reúne um grande volume de informações que abarcam as
modificações textuais, a documentação paratextual, os comentários do editor, notas
explicativas, dentre outros elementos, que devem convidar o leitor a explorá-los. O desafio do
editor é, portanto, construir uma organização acessível para esse grande volume de
informações, a fim de favorecer a leitura do texto crítico.
Acerca dos diferentes textos presentes no meio digital, Paixão de Sousa (2009) propõe
uma conceituação, aludindo às questões atinentes à linguagem de programação:
Definiremos então o texto “digital” como o texto cujo processo de difusão envolve a
codificação de informação por linguagens artificiais, e que se constitui materialmente
como informação linguística codificada matematicamente e apresentada com a forma
de escrita humanamente legível. (PAIXÃO DE SOUSA, 2009, p.173)
Para o leitor não especializado, a linguagem artificial utilizada para a codificação dos
dados é imperceptível, uma vez que se encontra disfarçada por uma interface elaborada em
função da similitude dos impressos. A página em branco dos editores reforça essa identidade
entre os impressos e os virtuais, que só é abalada quando um erro de codificação, tais como a
incompatibilidade entre versões de programas, torna visível o código-fonte (PAIXÃO DE
SOUSA, 2009).
A diversidade de textos digitais instaura, assim, diferentes níveis de ocultação da
linguagem de programação e para melhor compreendê-la, Paixão de Sousa (2009) propõe uma
tipologia dessas produções. O primeiro tipo são aqueles cuja a produção e a recepção se dão em
meio digital; deste grupo fazem parte os textos em formato HTML (HyperText Markup
90
por una parte, la interacción con el usuario, con el receptor; y por otra parte, la
conservación del mismo texto, compartiendo [...] la capacidad de difusión. De ahí
podamos hablar del texto digital como un modelo de una segunda textualidad en la
que deberíamos seguir indagando, un camino a seguir hacia el futuro que deja obsoleto
los modelos textuales actuales23.
O texto digital incorporaria aspectos dos planos oral e escrito, instaurando novas
textualidades. Assemelha-se ao oral por consentir a interação imediata com o seu leitor,
fazendo-o assumir caminhos inesperados. Por outro lado, sua capacidade de disseminação e de
conservação aproxima-o do escrito, estabelecendo uma continuidade no processo de elaboração
da cultura e da tecnologia da escrita.
A aplicação da noção de hipertexto, entendido como textos construídos com a mediação
da informática remete ao filósofo Theodor Holm Nelson (1987) que vislumbrava a
possibilidade de entender as noções de leitura e de escrita de forma não linear. Para Nelson, a
escrita constitui-se linear em decorrência da influência da forma do livro impresso sobre a
23
“por um lado, a interação com o usuário, com o receptor; e por outro lado, a conservação do mesmo texto,
compartilhando [...] a capacidade de difusão. Daí podemos falar do texto difital como um modelo de uma segunda
textualidade, a qual deveríamos seguir interrogando, um caminho a seguir para o futuro que deixa obsoleto os
modelos textuais atuais” (LUCÍA MEGÍA, 2012, p. 115)
91
Nelson afirma que a ordenação linear das ideias tem como consequência a
desarticulação de certas conexões que também constroem sentidos, acarretando perdas no que
tange à integração dos conteúdos e à linearização dos discursos e dos textos, trazendo como
consequência a simplificação dos processos psicológicos que subjazem a eles. Os textos
lineares produzem também “leitores lineares”, pois constroem o hábito de organização das
informações em uma sequencialidade estática e deixam de engendrar novas possibilidades de
organização do conteúdo por parte dos leitores. Por fim, os textos lineares não consideram a
diversidade de leitores e seus referenciais culturais, resultando em uma exclusão daqueles que
não conseguem se adaptar a este formato, tais como, em casos extremos, os portadores de
necessidades especiais.
Esta proposta de hipertexto, consolidada pelas ferramentas da informática, permitiria,
assim, a integração de conteúdos e a suplantação das formas lineares para sua apresentação.
Nelson (1997) propõe defini-lo como escrita não sequencial. A simplicidade e amplitude do
conceito tem como consequência a inclusão de uma série de outros textos que não se utilizam
do suporte virtual para pensar o hipertexto, como os boxes nas enciclopédias, as manchetes em
uma revista.
Gennette (1982) localiza a hipertextualidade como um dos cinco tipos de
transtextualidade, relações mais ou menos evidentes que os textos estabelecem entre si, por
meio de mecanismos de transformação ou imitação. A hipertextualidade estaria assim definida
como
24
“sequencialidade não é necessária. A estrutura do pensamento não é por si sequencial. É um sistema interligado
de ideias (o que eu gosto de chamar um structangle). Nenhuma das ideias vem necessariamente em primeiro lugar;
e a quebra essas ideias em uma sequência de apresentação é um processo arbitrário e complexo. Muitas vezes, é
também um processo destrutivo, já que ao desmontar todo o sistema de conexão para apresentá-lo
sequencialmente, dificilmente podemos evitar a quebra de - ou seja, deixando de fora - algumas das conexões que
são uma parte do todo” (NELSON, 1987, p.14, tradução nossa).
92
are not intrinsically involved with the hypertext concept. But computers will be
involved with hypertext in every way, and in systems of every style. (Ideally, you the
reader shall be free to choose the next thing to look at – though repressive forms of
hypertext to turn up.)26 (NELSON, 1987, p.17).
Assim, nem todo texto apresentado por meio do computador assume a caraterística
hipertextual, sobretudo por se constituir a partir das formas impressas, como os formatos .pdf e
.doc, anteriormente citados. Disto decorre a necessidade de trazer as potencialidades
proporcionadas pelos suportes virtuais como linguagem para sua elaboração. Esses
procedimentos, assim realizados, teriam como consequência a deslinearização do texto e o
estabelecimento de conexões relacionais, não hierárquicas, para as quais o leitor propõe o seu
ordenamento.
Nesse intento, Nelson desenvolve o Projeto Xanadu, uma interface de apresentação de
hipertextos, em formato dinâmico, em que se pode apresentar textos em contraste. A figura 5
traz um exemplo da interface Xanadu; nela, o alvo da comparação é posto em posição central,
e, ao lado, são dispostos os que lhe serviram como fonte, os trechos coincidentes são marcados
em cores diferentes para cada uma das referências.
25
“qualquer relação que um texto B (que eu chamarei de hipertexto) para um texto anterior A (que chamarei, claro,
de hipotexto) em que se transplanta de uma forma que não é o comentário” (GENNETE, 1982, p.13, tradução
nossa).
26
“não estão intrinsecamente envolvidos com o conceito de hipertexto. Mas os computadores estarão envolvidos
com hipertexto em todos os sentidos, e em sistemas de todos os estilos. (Idelamente, você, o leitor terá a liberdade
de escolher a próxima coisa a ver – apesar da existência de formas repressivas de hipertexto.)” (NELSON, 1987,
p.17, tradução nossa).
93
Figura 5 – Xanadoc
1. a discrete set of semantic units (nodes) which, in the best cases, offer a low
cognitive load, e.g. paragraphs or sections rather than pages or chapters. These units,
defined by Roland Barthes as lexia (for a discussion see Landow 1997), can be
a. alphanumeric documents (pure hypertext)
b. multimedia documents (hypermedia)
c. functional units (e.g. agents, services or applets; […]), in which case we have the
multifunctional hypertext or hypermedia.
2. a set of associations – links or hyperlinks embedded in nodes by means of special
formatted areas, known as source and destination anchors – connecting the nodes.
These are stable, active cross-references which allow the reader to move immediately
to other parts of a hypertext.
3. an interactive and dynamic interface. This enables the user to perceive – often just
visually, although acoustic and tactile hypertexts are also possible – and operate with
the anchors (e.g. through a click of the mouse or the touch of a key, by placing the
cursor on a highlighted element of the document or by dialling a sequence of numbers)
in order to consult one node from another […]. The interface may also provide, though
not necessarily, further navigation facilities, such as an a priori, spatial representation
of the whole network structure – when the system is closed and sufficiently limited to
94
27
“1. um conjunto discreto de unidades semânticas (nós) que, nos melhores casos, têm uma baixa carga cognitiva,
como parágrafos ou secções, mais do que páginas ou capítulos. Estas unidades, definidas por Roland Barthes como
lexia […] podem ser: a) documentos alfanuméricos (hipertexto puro); b) documentos multimédia (hipermédia); c)
unidades funcionais (isto é, agentes, serviços ou applets […]), caso em que temos o hipertexto multifuncional ou
o hipermedia.
2. um conjunto de associações – links ou hiperlinks incorporados em nós por meio de áreas formatadas especiais,
conhecidas como âncoras de origem e de destino, conectando os nós. Estas são referências cruzadas, ativas e
estáveis que permitem ao leitor mover-se imediatamente para outras partes de um hipertexto.
3.uma interface dinâmica e interativa. Isto possibilita ao usuário perceber – muitas vezes apenas visualmente,
embora hipertextos acústicos e táteis também sejam possíveis – e operar com as âncoras (por exemplo, através de
um clique do mouse ou o toque de uma tecla, colocando o cursor sobre um elemento destacado do documento ou
através da discagem de uma sequência de números) com a finalidade de consultar um nó a partir de outro […]. A
interface também pode apresentar, embora não necessariamente, mais facilidades de navegação, como uma
representação espacial, a priori, de toda a estrutura da rede – quando o sistema é fechado e suficientemente limitado
para ser totalmente mapeávelb (o sistema sky-view) –, ou um sistema a posteriori do registo cronológico da história
dos links seguidos” (Floridi, 1999, p. 120-121, tradução nossa).
95
Assevera-se mais uma vez que o caráter do hipertexto independe do meio virtual.
Admitimos, no entanto, que o referido meio radicaliza essa noção, sendo possível passar do
texto à fonte que lhe serviu de referência, bem como fazer o caminho reverso, em pouco
segundos. O hipertexto em meio virtual destaca-se, sobretudo, por conta da rapidez com que
conecta os diferentes materiais, armazenados em diferentes servidores, espalhados pelo mundo.
Nessa perspectiva, um dos modelos que caracterizam a própria arquitetura digital é a
perspectiva da biblioteca ou das enciclopédias. O principal intento de diversas formas de
organização e catalogação de dados da internet é constituir um índice para integrar do maior
número possível de referências e dados, em ordem alfabética, a partir dos quais se podem tecer
relações, interligando os diferentes conteúdos de uma obra.
É preciso, dessa forma, considerar como o suporte virtual retoma as funções da
biblioteca como espaço para a leitura, reunião, catalogação e salvaguarda da cultura escrita
ocidental, com algumas vantagens. Conforme Bellei (2012), as bibliotecas virtuais
1. abrigam uma boa parte, mas não a totalidade, do material impresso existente;
2. dispõem, em certos casos, de materiais digitalizados melhores do que os
equivalentes impressos;
3. e, finalmente, também em casos específicos, abrigam informações (periódicos,
livros) que só podem ser acessadas no meio eletrônico. (BELLEI, 2012, p.12)
28
“[...] bibliotecas, arquivos e museus têm feito que a balança dos investimentos se voltassem aos projetos
favoráveis aos testemunhos, deixando de lado os outros que tem como finalidade a difusão dos textos e a
incorporação de ferramentas que permitam seu estudo e análise: as bibliotecas textuais” (LUCÍA MEGÍAS, 2012,
p. 102, tradução nossa).
96
Quelle est la durée de vie d’un disque dur? Garantie fabricant 5 ans, maximum 10
ans… le plus mauvais papier acide fait avec de la pâte de bois de dernière qualité dure
au moins cent ans, un bon papier neutre dure mille ans. Dans les laboratoires
d’informatique où l’on manipule des données stratégiques très sensibles, ces données
sont recopiées par sécurité toutes les semaines sur de nouveaux disques, les données
fondamentales tous les jours. La même politique de copies de sauvegarde devra être
pratiquée par les bibliothèques patrimoniales qui auront en charge les données
numériques des créateurs: il faudra que ces disques durs soient recopiés indéfiniment
sur de nouveaux disques. C’est ce qui se passe déjà pour les grands corpus de données
conservées sous forme digitale.29
29
“Qual é o tempo de vida de um disco rígido? A garantia do fabricante é de 5 anos, no máximo 10 anos... O pior
papel ácido produzido com celulose de última qualidade dura ao menos cem anos, um bom papel neutro dura mil
anos. Em laboratórios de informática onde se lida com dados estratégicos muito sensíveis, estes dados são
recopiados por segurança semanalmente em novos discos, os dados fundamentais todos os dias. A mesma política
de backups deve ser praticada pelas bibliotecas patrimoniais que tem a seu cargo os dados digitais dos criadores,
é necessário que essas unidades sejam copiadas indefinidamente em novos discos. Isso já está acontecendo em
grande corpus de dados conservados em formato digital” (BIASI, 2012, p. 27, tradução nossa).
97
30
“cada sociedade reescreve seu passado, cada leitor reescreve seus textos e ,se estes gozam de uma fortuna
continuada, de certa maneira, cada impressor os redesenha” (MCKENZIE, 2005, p. 42, tradução nossa).
98
[...] 2. For us, the digital humanities concern the totality of the social sciences and
humanities. The digital humanities are not tabula rasa. On the contrary, they rely on
all the paradigms, savoir-faire and knowledge specific to these disciplines, while
mobilizing the tools and unique perspectives enabled by digital technology.
3. The digital humanities designate a “transdiscipline”, embodying all the methods,
systems and heuristic perspectives linked to the digital within the fields of humanities
and the social sciences32 (MANIFESTO, 2010, p.1)
31
THATCamp é o acrônimo de The Humanities and Technology Camp, um encontro aberto a pesquisadores da
área de humanidades e tecnologias, em que se trocam experiências e conhecimentos, utilizando a metodologia da
“disconferências” (unconference), ou seja, uma conferência informal, espontânea, colaborativa, não hierárquica e
interdisciplinar. Mais informações em http://thatcamp.org/about/.
32
“2. Para nós, as Humanidades Digitais referem-se à totalidade das Ciências Sociais e Humanidades. As
Humanidades Digitais não são tabula rasa. Pelo contrário, elas apoiam-se em todos os paradigmas, savoir-faire e
conhecimentos específicos dessas disciplinas, mobilizando as ferramentas e perspectivas permitidas pela
tecnologia digital. 3. As Humanidades Digitais designam uma “transdisciplinar”, que incorpora todos os métodos,
sistemas e perspectivas heurísticas relacionadas ao digital nos domínios das Humanidades e Ciências Sociais”.
(MANIFESTO, 2010, p.1, tradução nossa).
99
No que tange à filologia artesanal, a nova máquina substitui a antiga, pois tem a oferecer
a vantagem de usar o papel apenas quando desejado, livrando-se dos erros de datilografia,
dificuldades na diagramação e editoração da página, resultando em um texto limpo e bem
33
“as metodologias tradicionais dos estudos literários e tecnológicos com os mais avançados recursos da tecnologia
da informação” (THESAURUS, 2009, p.1, tradução nossa).
34
“a filologia ‘artesanal’ na qual os editores realizam seu trabalho, utilizando o computador apenas nos últimos
momentos de preparação do texto, como uma máquina de escrever sofisticada; outro, na filologia ‘informática’,
na qual teóricos do hipertexto proclamam o final das edições críticas e inclusive do livro impresso” (MORRÁS,
2003, p.225, Tradução nossa).
100
organizado. Por estas razões, o editor crítico vislumbrou no computador a evolução de sua
máquina de escrever, em detrimento das demais formas de tratar dados. Lucía Megías (2012,
p.112) atribui essa opção à semelhança entre a folha e o teclado da máquina de datilografia e
seus correspondentes no computador, afirmando que
[c]on las páginas, los archivos, el diseño de las letras, con esta apariencia de seguir
haciendo el trabajo que era habitual en el mundo analógico nos sentimos cómodos en
el universo digital. Tan cómodos que continuamos llamando con nombre
inapropriados a determinadas realidades nuevas que la tecnología digital ha insertado
en nuestras vidas35.
35
“[c]om as páginas, os arquivos, o desenho das letras, com essa aparência de seguir fazendo o trabalho que era
habitual no mundo analógico, nos sentimos cômodos no universo digital. Tão cômodos que continuamos
chamando com nome inapropriados determinadas realidades novas que a tecnologia digital inseriu em nossas
vidas” (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.112, tradução nossa).
101
elaborar formas eficientes de apresentar o texto crítico neste suporte. Se, por um lado, o uso de
programas de computador é o diferencial para a construção de edições pertinentes à filologia
informática; por outro, o desconhecimento das especificidades do meio digital dá origem a
edições que se resumem a uma mera transposição de suportes.
Jerome McGann (1995) parte do princípio de que a informática potencializa a circulação
da informação, o que gera uma mudança na maneira como se constrói e como circula o
conhecimento. Na sociedade contemporânea, os livros já não possuem a hegemonia do processo
de circulação, dividindo com os textos digitais o papel na transmissão das informações. À
medida que estas produções digitais vão assumindo lugares de destaque no campo dos estudos
literários e filológicos, tornam-se ferramentas de análise que permitem inaugurar novas formas
de compreender os mesmos objetos de pesquisa. Assim:
[w]hen we use books to study books, or hard copy texts to analyze other hard copy
texts, the scale of the tools seriously limits the possible results. In studying the
physical world, for example, it makes a great difference if the level of the analysis is
experiential (direct) or mathematical (abstract). In a similar way, electronic tools in
literary studies don't simply provide a new point of view on the materials, they lift
one's general level of attention to a higher order36.(MCGANN, 1995, p.2).
[b]rilliantly conceived, these works are nonetheless infamously difficult to read and
use. Their problems arise because they deploy a book form to study another book
form. […] The critical edition's apparatus, for example, exists only because no single
book or manageable set of books can incorporate for analysis all of the relevant
documents. In standard critical editions, the primary materials come before the reader
in abbreviated and coded forms.37 (MCGANN, 1995, p.2).
36
“Quando usamos livros para estudar livros ou textos impressos para analisar outros textos impressos, a escala
das ferramentas limita seriamente os possíveis resultados. Ao estudar o mundo físico, por exemplo, faz uma grande
diferença se o nível da análise é experimental (direto) ou matemático (abstrato). De forma semelhante, as
ferramentas eletrônicas nos estudos literários não fornecem simplesmente um novo ponto de vista sobre os
materiais, elas elevam o nível geral de atenção para uma ordem superior” (MCGANN, 1995, p.2, tradução nossa).
37
“[b]rilhantemente concebidas, essas obras são, todavia, vergonhosamente difíceis de ler e usar. Seus problemas
surgem porque se utilizam de uma forma de livro para estudar outra forma de livro. [...] O aparato da edição crítica,
por exemplo, só existe porque nenhum livro ou conjunto gerenciável de livros pode incorporar para a análise de
todos os documentos relevantes.Em edições críticas padrão, os materiais pimários aparecem ao leitor em formas
abreviadas e codificadas” (MCGANN, 1995, p.2, tradução nossa).
102
A dificuldade decorrente da leitura das edições não seria originada pelo modo como esta
é concebida, mas se estabelece em decorrência da rigidez e linearidade do suporte em que é
dada a ler. As características do suporte papel tornam estática a dinamicidade própria das
modificações textuais decorrentes da produção e da transmissão dos textos.
Nesse sentido, McGann propõe a utilização do meio virtual para a proposição destas
edições, às quais denomina HyperEditing:
[i]n a hypertext, each document (or part of a document) can therefore be connected to
every other document (or document part) in any way one chooses to define a
connection. […] From a scholarly editor's point of view, this structure means that
every text or even every portion of a text (i.e., every logical unit in the hypertext) has
38
“O ambiente eletrônico de hyperEditing liberta-nos, em grande medida, destes limites baseados no codex. Na
verdade, a informatização, pela primeira vez, libera as categorias lógicas de edição crítica tradicional para
funcionar em níveis mais otimizados. Mas a "edição" do texto por meio de processadores de texto não corresponde
ao que chamamos aqui "HyperEditing" porque as máquinas de processamento de texto são estruturadas apenas
para fins expressivos. [...] Para funcionar em um modo de "hiper", um projeto de edição deve usar a informatização
como um meio para garantir a liberdade dos limites analíticos do texto impresso” (MCGANN, 1995, p.3, tradução
nossa).
103
an absolute value within the structure as a whole unless its absolute character is
specifically modified. (MCGANN, 1995, p.14).39
39
“[e]m um hipertexto, cada documento (ou parte de um documento), portanto, pode ser conectado a qualquer
outro documento (ou documento de peça) de qualquer forma o que indivíduo escolhe para definir uma conexão.
[...] Do ponto de vista de um editor acadêmico, esta estrutura significa que cada texto ou mesmo cada porção de
um texto (ou seja, cada unidade lógica no hipertexto) tem um valor absoluto dentro da estrutura como um todo, a
menos que seu caráter absoluto seja especificamente modificado”. (MCGANN, 1995, p.3, tradução nossa).
104
das desvantagens em se empregar o XML decorre de sua interface gráfica pouco amigável tanto
para quem utiliza o software, quanto para quem lê o seu produto. O aporte do E-Dictor surge,
também, no sentido de se propor um formato mais amigável, que não exija dos filólogos um
profundo conhecimento da referida linguagem de programação, de maneira a torná-lo acessível
a um maior número de pesquisadores (cf. figura 6). O uso dessa ferramenta pretende constituir
um processo de edição eletrônica que seja mais confiável, pautado em critérios claros de
funcionamento. De acordo com Paixão de Sousa, Kepler e Faria,
Conforme descrição de Paixão de Sousa, Kepler e Faria (2009, p.8), o programa dispõe
de: a) Menu da aplicação: que dá acesso às funcionalidades do programa; b) Barra de
ferramentas: onde estão localizadas as opções de codificação e edição; c) Área do texto,
dividida em abas, a saber: Reprodução, Grafia e Morfologia; d) Barra de navegação entre as
páginas do documento.
105
[f]or the time being, at least, the obviously preferable alternative to replacing the
Variorum as we know it by an unlimited electronic archive is to combine all its past
efficiency in selecting and condensing material with the new flexibility and reach of
electronic retrieval. [...] Such flexibility will help situate the Variorum as a locus of
original research, and make it less a museum of past critical artifacts40 (MODERN,
2003, p. 2).
40
“Por enquanto, pelo menos, a alternativa obviamente preferível para substituir a Variorum como nós o
conhecemos por um arquivo eletrônico ilimitado é combinar toda a sua eficiência na seleção e condensação
material com a nova flexibilidade e alcance de recuperação eletrônica. [...] Essa flexibilidade ajudará a situar a
Variorum como um locus de pesquisa original e torná-la menos um museu de artefatos críticos passados”
(MODERN, 2003, p. 2, tradução nossa).
107
referências de obras críticas citadas na edição, com link para uma página com os seus
comentários. Há também a opção de se vincular a grupos de discussão que tratam de temas
relativos ao texto apresentado na edição.
A figura 7 ilustra a estrutura da edição:
Cientes de que as edições impressas não seriam suficientes para representar a riqueza
da tradição textual do Quixote, os pesquisadores buscaram nos recursos do meio digital
subsídios para a construção de edições. O trabalho resultou em três categorias de edição:
1. Edición facsímile digital (1605-1637) de los 32 ejemplares de las 9 ediciones del Quijote
seleccionadas, cedidas principalmente por la Biblioteca Nacional, para su digitalización e
incorporación a la base de datos gráfica del proyecto.
2. Edición diplomática/documental en dos partes: a) edición diplomática electrónica de los
textos base de las princeps de 1605 y 1615 transcritos paleográficamente a partir de dos
ejemplares de la Biblioteca Nacional, a su vez cotejados electrónicamente con múltiples
ejemplares de otras bibliotecas. Estos ejemplares pueden ser visualizados como textos,
imágenes o texto e imagen sincronizados; y b) edición de un texto documental basado en el
cotejo de los textos base de las dos princeps con el resto de las ediciones posteriores,
publicadas entre 1605 a 1637.
3. Edición variorum electrónica del Quijote elaborada a partir de los textos y cotejos de las
anteriores ediciones, con clasificación y anotación de variantes, incorporación de enmiendas,
anotaciones textuales, enlaces hipertextuales a las ediciones facsímiles y documentales, e
interfaz interactivo para la composición de ediciones virtuales.42(URBINA et. al., 2005, p.
224-225).
41
“uma edição eletrônica que contém todas as edições existentes do texto, anotações das variantes, presentes entre
as edições para permitir sua comparação, edições derivadas, geradas como o resultado de análises acadêmicas de
variantes e fornecendo argumentos de apoio, além de comentários acadêmicos feitos por editores especialistas que
esclarecem elementos do texto e da comparação entre as edições” (FURUTA; SHUEH-CHENG; URBINA, 2001,
p. 72, tradução nossa).
42
“1. Edição facsímile digital (1605-1637) dos 32 exemplares das 9 edições do Quixote selecionadas, cedidas
principalmente pela Biblioteca Nacional [de Madrid], para sua digitalização e incorporação à base de dados gráfica
do projeto. 2. Edição diplomática/documental em duas partes: a) Edição diplomática eletrônica dos textos de base
109
das princeps de 1605 e 1615, transcritos paleograficamente a partir de dois exemplares da Biblioteca Nacional,
por sua vez cotejados eletronicamente com múltiplos exemplares de outras bibliotecas. Estes exemplares podem
ser visualizados como textos, imagens ou textos e imagens sincronizados; e b) edição de um texto documental
baseado no cotejo dos textos base das duas edições princeps com as demais edições publicadas de 1605 a 1637. 3.
Edição variorum eletrônica do Quixote elaborada a partir dos textos e cotejos das edições anteriores, com
classificação e anotação de variantes, incorporação de emendas, anotações textuais, links hipertextuais às edições
facsímiles e documentais, e interface interativa para a composição de edições virtuais.” (URBINA et. al., 2005, p.
224-225, tradução nossa).
110
Nestes termos, tal edição também se constitui como uma fonte de pesquisa, na qual é
possível, por exemplo, estudar um determinado tipo de variantes, ou buscar nas anotações do
editor elementos que permitam dimensionar a Espanha de D. Quixote, por meio das notas
geográficas, históricas e culturais. Mais do que isso, proporciona ao leitor diferentes caminhos
para a construção de sua leitura, possibilitando, por meio do menu “Editor”, assumir o lugar
editor, ou seguir a leitura realizada por Eduardo Urbina.
Ao contrário dos trabalhos com Cervantes e Shakespeare, em que se pode identificar um
autor e uma obra pensados para a língua escrita e cuja finalidade era a publicação, os estudos
desenvolvidos com os apócrifos de Homero, dentro das perspectivas contemporâneas de texto,
autoria e leitura, enfrentam uma dificuldade distinta. Nesse conjunto textual, algumas questões
se impõem como determinantes para o trabalho editor. Dentre elas, destaca-se o fato de o texto
de Homero ser primeiramente feito para a oralidade; nestes termos não haveria jamais duas
oralizações idênticas dos seus poemas. Além disso, foram pensados para a performance e não
para a leitura, eles construíam-se na movência da oralidade; e, só, posteriormente, com o
desenvolvimento da escrita, tomaram os contornos desse plano, adquirindo um formato mais
estável (DUÉ; EBBOTT, 2009). Não se pode, portanto, falar de autor ou de original nessa
situação, ou de intenção autoral e variantes, uma vez que não há um original ou invariante que
lhe sirva de parâmetro de correção. Dessa forma,
Uma das premissas da Crítica Textual afirma que cada situação textual demandará do
crítico um esforço interpretativo a fim de encontrar a metodologia mais adequada para o
conjunto documental de que dispõe. A situação textual dos épicos de Homero, assim, desafia o
aparato teórico-metodológico da Crítica Textual, uma vez que põe em tela um contexto pouco
43
“Em vez de ‘erros’ a serem corrigidos ou escolhas que devem ser pesadas e avaliadas, como um editor faria no
caso de um texto composto para o registro escrito, afirmamos que estas variações são testamentos para o sistema
de linguagem que subjaz a composição na performance da tradição oral. A Crítica textual, tal como praticada,
toma por base a seleção e a ‘correção’, pois cria a ficção de um texto singular. A crítica digital que estamos
propondo para o Multitexto Homero mantém a integridade de cada testemunho para permitir a comparação
contínua e dinâmica, refletindo melhor a multiplicidade do registro textual e da tradição oral, em que esses épicos
foram criados” (DUÉ; EBBOTT, 2009, p.2, tradução nossa).
111
explorado pela disciplina, que é a presença da oralidade nos escritos. Fica claro, dessa forma, a
inviabilidade de se editar uma obra tendo em vista a busca por um original perdido, uma vez
que esse original nunca existiu. Nesse caso, a atitude do editor, é determinante para a
constituição da edição, visto que o objetivo de um projeto dessa natureza não seria construir um
texto fidedigno à letra de Homero, mas sim verificar os caminhos percorridos por ele ao longo
da história da literatura e da cultura ocidental.
Para Dué e Ebbott (2009, p. 4),
44
“Uma abordagem multitextual pode ser explícita em torno desses diversos canais de transmissão, colocando
cada um em seu enquadramento histórico e cultural e permitindo ao leitor compreender melhor as suas relações
uns com os outros, ao invés de dar a falsa impressão de que todos eles são do mesmo tipo e mesmo tempo” (DUÉ;
EBBOTT, 2009, p.4, tradução nossa).
112
como gerador de novos sentidos e novas leituras para a obra, construindo-se também como uma
ferramenta de pesquisa. Nesses termos, o suporte virtual engendra novos parâmetros não
somente para a disposição do conteúdo, mas também no que se refere à constituição de
operações interpretativas, além de trazer ao leitor um ambiente de interação, a partir da leitura
e da edição colaborativas.
Apesar de não estar inscrita no âmbito da Crítica Textual, o trabalho desenvolvido por
Leonor Areal (2003) ilustra a construção de edições digitais em que se empregam ferramentas
informáticas apenas para a apresentação do texto. No CD-ROM MultiPessoa, a autora se utiliza
de diversas formas de hipertexto para apresentar a obra de Fernando Pessoa de maneira
interativa. O primeiro tipo é o hipertexto potencial, no qual se apresentam os poemas de Pessoa
organizados por temática; o leitor é convidado a percorrer a trama hipertextual que se apresenta,
seguindo um percurso polimórfico, explorando as possibilidades de leitura e de significação
decorrentes da apresentação do texto de uma forma relacional:
O uso do meio digital para a apresentação de edições tem sido uma prática bastante
frequente nas linhas de pesquisa vinculadas à Filologia, nos Programas de Pós-graduação do
Instituto de Letras, da UFBA. Destacamos como trabalho pioneiro, a tese de doutorado de
Alícia Lose (2004), denominada Arthur de Salles: esboços e rascunhos, na qual a pesquisadora
se utiliza do meio digital e das potencialidades do hiperlink para apresentar os meandros da
elaboração do texto pelo poeta baiano Arthur de Salles. Para tanto, faz uso do software Front
Page do pacote Office for Windows. Assim, apresenta a edição do manuscrito interligada, por
meio de links, com as análises e os documentos relativos a eles.
Fabiana Prudente Correia (2013) apresentou, em sua dissertação de mestrado, uma
edição fac-similar e uma edição sinóptica, para a peça Apareceu a Margarida, de Roberto
Athayde, reunidas em um arquivo digital. A pesquisadora utilizou o aplicativo Prezi, a fim de
dar a esses materiais uma organização radial, uma vez que o programa permite a expansão da
tela em múltiplas direções, além de ter suporte para a disposição de arquivos de áudio,
animações, vídeo e imagem, além do próprio texto verbal.
Destacamos, ainda, proposta de edição de Patrício Nunes Barreiros (2013), apresentada
em tese de doutorado, intitulada O pasquineiro da roça: edição dos panfletos de Eulálio Motta.
Nesta, propõe apresentar edições crítica, diplomática, fac-similar para os panfletos,
acompanhando-as de imagens, filmes e áudios. A edição é disponibilizada na web, uma vez que
sua tecnologia não se adapta a mídias como CD-ROM ou DVD-ROM.
Esta pesquisadora, no âmbito do mestrado, também desenvolveu uma edição em meio
digital para o texto teatral Auto da barca do rio das lágrimas de Irati, de Jurema Penna
(ALMEIDA, 2011). Trata-se de uma edição interpretativa, na qual o investimento da editora
voltou-se para a construção de um aparato de notas que desse conta de esclarecer dúvidas acerca
de elementos ali presentes. Assim, além da normalização da ortografia, construímos notas
explicativas para os textos citados, a partir de hiperlinks dentro da própria edição, bem como
com o uso de links externos. Destacamos a relevância desse trabalho como tentativa de explorar
o suporte digital na apresentação de edições, que culmina na proposta de Arquivo Hipertextual
apresentada nesta tese.
Diante das possibilidades para a construção de edições em meio digital anteriormente
vistas, elegemos esse suporte a fim de apresentar as edições para os textos teatrais de Jurema
Penna. Almejamos, com nossa proposta, atualizar sua dramaturgia, destacando os movimentos
de escrita presentes neles e evidenciando os diferentes sujeitos que, com ela, compartilham a
autoria. Por meio da apresentação dos fac-símiles, esperamos trazer o suporte material em que
foram compostos, estabelecendo um elo entre sua materialidade originária e as formas que
114
Dessa forma, não se trata apenas de dispor os dados em uma arquitetura digital: é preciso
também, tratá-los conforme os propósitos de sua edição. Destaca-se a importância da
contextualização das informações, devendo o editor dotar o leitor de subsídios que o auxiliem
na construção dos sentidos de um texto. Em virtude do uso do meio digital, torna-se necessário
45
“[a] edição impressa continua a ser um modelo de referência, mas ao contrário do editor do suporte papel que
construiu um objeto específico em uma categoria editorial designada, o editor do suporte digital permite
desenvolver mais com os mesmos recursos. É a organização dos níveis de tratamento e circulação dentro dessas
informações que determina o modelo de publicação eletrônica. Isso é o que constrói o hipertexto, que por vezes é
definido tanto como o produto de uma construção intelectual, quanto como uma tecnologia que permite a
vinculação de recursos e a constituição de percursos” (CRASSON, 2010, p.44, tradução nossa).
115
enriquecer também os objetos digitais utilizados, por meio de metadados, etiquetas apensas aos
arquivos que trazem informações sobre a sua construção e posteriores alterações, estabelecendo
uma referência para fotografias, imagens, ícones, que tendem a se perder mediante a infinidade
de objetos no meio digital.
Conforme Crasson (2010, p.44), “[s]'intéresser aux informations, c'est aussi s'interroger
sur les moyens de les rendre visibles à l’écran – tant, d’ailleurs, pour élaborer l’édition, que
pour la consulter”46. Dessa forma, é também da alçada do editor construir as relações entre as
partes da edição digital, estabelecendo caminhos para a integração dos conteúdos dispostos,
através de hiperlinks, que o leitor escolherá ou não percorrer, conforme seus objetivos de
leitura. Levando em conta as questões discutidas acerca do suporte digital, apresentaremos, na
próxima seção, a proposta de edição para os textos teatrais de Jurema Penna selecionados.
Detalharemos a metodologia utilizada para tanto, bem como as opções críticas do editor para a
elaboração dessa proposta.
46
“Interessar-se pelas informações, é também questionar os meios de torná-los visíveis na tela – tanto para elaborar
a publicação, quanto para consulta-la” (CRASSON, 2010, p.44, tradução nossa).
116
O meio digital, como suporte para a elaboração de edições, tem mostrado as vastas
potencialidades de se fazer a integração de um grande volume de informações e de materiais
digitais, engendrando novas formas para a sua organização e apresentação. Propor a elaboração
de uma edição em suporte virtual vai além transpor conteúdos concebidos conforme a lógica
do impresso para o novo suporte, mas implica apropriações efetivas deste suporte. Ainda que
imersos em uma cultura na qual os textos impressos constituem a forma privilegiada dos
projetos editoriais, é fundamental propor inovações para essas práticas. Em decorrência do
volume de informações e documentos levantados, a interconexão de dados traz a potencialidade
de se estabelecer centros provisórios para as edições, de fornecer ao leitor numerosos percursos
de leitura, congregando materiais de diferentes naturezas. Para tornar viável o intento editorial
de oferecer este texto múltiplo, verificamos a necessidade de trazer, não somente uma edição
crítica para a dramaturgia de Jurema Penna, mas congregar outros tipos de edição, constituindo
o que se denomina de arquivos hipertextuais ou digitais.
Urbina define o trabalho elaborado com os diversos testemunhos do Dom Quixote como
arquivo, pois “se trata de una biblioteca o colección de facsímiles digitales y de textos
eletrónicos cotejados y anotados, almacenados y organizados en bases de datos relacionales, y
117
[...] criação de um espaço eletrônico que tire pleno partido das seguintes propriedades:
a reconfiguração contínua dos artefactos digitais ao nível do código, a capacidade de
marcar eletronicamente essas configurações, a agregação de documentos e dados em
ambientes integrados, e a criação de espaços de interação colaborativa e intersubjetiva
(PORTELA, 2013, p. 1-2).
47
“trata-se de uma biblioteca ou coleção de fac-símiles digitais e de textos eletrônicos cotejados e anotados,
armazenados e organizados em bases de dados relacionais e acessíveis através de interfaces de edição e de
composição” (URBINA et.al., 2005, p. 227, tradução nossa).
118
a lição do manuscrito com a transcrição feita pelo editor, favorecendo, ainda, a visualização de
outros aspectos não contemplados no processo de edição, e confirmando o processo editorial
como aberto e passível de revisões.
Silva (2003), ao propor uma edição crítica e genética para o conto Linha reta e linha
curva, de Machado de Assis, apresenta os fac-símiles acompanhados de sua transcrição
diplomática. Como lhe interessa a gênese da obra, a pesquisadora registra, ao lado do fac-símile,
as ocorrências de diversos tipos de rasura, comentando-as. Este recurso auxilia o leitor na
deciframento das rasuras, pondo-as em relação com o processo de construção do texto. É nesse
sentido que justapor a descrição física do testemunho e o fac-símile implica uma atividade
crítica, a qual possibilita evidenciar os aspectos daquela materialidade que interessam ao editor
na análise de seu objeto de estudo.
Diferentes dos textos medievais ou modernos, em que a mise en page possui inúmeros
elementos estranhos aos leitores contemporâneos, os textos teatrais censurados não trazem essa
dificuldade, pois possuem um suporte material, o datiloscrito, ainda próximo dos leitores. Por
conta dessa proximidade, muitas das marcas deixadas em seu processo de circulação podem
passar despercebidas pelos leitores comuns. Faz-se, então, necessário que o editor oriente o
leitor no reconhecimento dos sinais ali existentes. A presença da imagem não dispensa a
intervenção editorial, pelo contrário, para que suas marcas sejam plenamente interpretadas, os
esclarecimentos editoriais são fundamentais. No caso dos textos teatrais censurados, não
realizamos a transcrição diplomática ao lado da imagem, pois o datiloscrito encontra-se legível
e em um bom estado de conservação.
Para proceder à construção do arquivo hipertextual, fizemos a transcrição diplomática
de todos os testemunhos. Para tanto, utilizamos o software gratuito Free Online OCR, (2014),
uma ferramenta informática capaz de reconhecer e transformar uma imagem (extensão JPG,
JPEG, BMP, TIFF, GIF), em um texto editável. O programa funciona exclusivamente on line e
sua versão gratuita aceita a conversão de 15 arquivos por hora. O usuário deve fazer o upload
da imagem e selecionar a língua e o formato de saída, que pode ser DOC, TXT, XLS. No caso
dos textos teatrais censurados, o output em formato TXT se mostrou mais vantajoso, pois
fornecia um arquivo sem formatações. Por estarem em bom estado de conservação, o
reconhecimento ótico de caracteres revelou-se eficaz, com índice de correção superior a 80%.
Na figura 10, comparamos um fac-símile e o seu output do OCR, com destaque para os
problemas de identificação dos caracteres.
120
Gaspar - Mas minha mãe me ensinou assim, que minha 5v6 ensinou a ela.
Jose - Mas do tempo da sua av6 prá cá, muita coisa mudou. Muita coi-
sa aconteceu neste mundão de meuDeus.
10 Maria' - 56 que o dinheiro mudou cl,e' vou te contar. Olhe, meu
bisavô foi do tempo da pataca.
Jose - Depois teve .o real, mais de um real se dizia reis.
Maria_ - Quando se queria dizer que uma coisa não valia nada, meu avó'
15
falava assim:
"Não vale nem dez reis de mel coado".
José - Antes de todos teve cruzado
Maria - Teve "conto de reis". Um cpnto de reis era dinheiro.prártapá
casa.
Alguns erros de leitura são decorrentes de manchas no suporte como em “cl,e'”, em vez
de “de” (L.8); dificuldade em ler diacríticos, que ora são reconhecidos como um número, como
“5v6”, em lugar de “avó” (L.5), ora como uma letra maiúscula, como em “negOcio”, em vez
de “negócio” (L.3). Apesar disso, o uso de OCR para a transcrição mostra-se importante, uma
vez que torna tal processo muito mais célere. Os erros de reconhecimento de caracteres são
muito característicos, o que favorece a sua fácil identificação e correção. Alguns desses podem
apresentar um padrão, por exemplo o número “6”, em geral, corresponde a “ó”, isso permite
utilizar ferramentas de “localizar e substituir”, presentes na maioria dos softwares, para a
correção desses erros no momento da revisão da transcrição.
O uso desse recurso evita que erros humanos sejam cometidos pelos editores no
momento de transcrição, tais como a supressão de segmentos textuais ou sua repetição, a
modificação de termos por sinônimos, ou até mesmo erros de digitação. Com o uso do OCR, o
trabalho do editor, nessa etapa será, então, dedicado a revisão, a fim de dirimir os erros de
reconhecimento de caracteres, obtendo, assim, uma transcrição que efetivamente traga as lições
dos textos.
Tendo preparado as transcrições dos testemunhos que apresentam as diferentes versões
do texto, passamos à elaboração do segundo elemento que compõe o arquivo hipertextual: a
edição sinóptica. De acordo com Duarte ([1997-], verbete), uma edição sinóptica é aquela que
“reproduz, lado a lado, as lições de pelo menos dois diferentes testemunhos, com o objectivo
expresso de as comparar”. Borges e Souza (2012, p. 38) esclarecem que
O cotejo entre diferentes versões textuais, em confronto sinóptico, torna essa edição
crítica e também histórica; nela, buscando-se demonstrar pontos em que tais versões
se aproximam ou se afastam, trazendo notas e comentários que visam esclarecer os
textos em seus múltiplos aspectos.
Nesse sentido, uma edição sinóptica traz a comparação entre dois ou mais testemunhos,
lado a lado, para que o próprio leitor possa confrontar as versões do texto, percebendo as
modificações textuais empreendidas pelo autor, em suas escolhas e rechaços. Este tipo de
edição torna-se um instrumento para o filólogo apresentar os caminhos de sua leitura, apontando
para o leitor, por meio das notas e dos comentários, sua análise sobre as alterações feitas, que,
mais tarde, resultarão nas escolhas para o estabelecimento da edição crítica.
122
b
d e
a
Nesta tela, há uma explicação sobre o uso do programa, por meio de um diagrama, onde
se inscreve “Explore your workspace”. A tela é dividida horizontalmente em duas partes, na
parte superior, está o painel de biblioteca, dividido em três seções: a primeira Sources, traz o
48
O programa encontra-se disponível em: http://juxtacommons.org/ e pode ser utilizado tanto como ferramenta
online, como software instalado no computador. Optamos pelo Juxta Commons em sua versão online, pois esta
permite compartilhar os resultados em outros sites. A depender da velocidade de conexão à internet, os modos de
visualização podem demorar para carregar.
123
botão Add Source (indicado na figura 11, letra a), que faz o upload dos arquivos para o
programa. Após o upload, é necessário clicar sobre a seta azul, da primeira coluna (figura 11,
letra b), a fim de preparar os testemunhos para a colação. Ao clicar na seta azul, os testemunhos
vão sendo listados na segunda coluna, Witnesses (figura 11, letra c). O terceiro passo é criar as
configurações de comparação para cada um dos textos analisados; para isso, é preciso clicar em
Create set (figura 11, letra d), nomeá-lo, e, em seguida configurar os critérios de colação que
admitem ignorar pontuação, capitalização e incluir ou não a sensibilidade à hifenização.
O último passo é colacionar os documentos, clicando na seta azul, da terceira coluna
(figura 11, letra e). O resultado está ilustrado na figura 12. Após a colação, o usuário é levado
ao modo de visualização Heat map; note-se que o primeiro ícone da barra de navegação está
destacado em amarelo (figura 12, letra a). Nesse modo, o programa apresenta a diferença entre
os dois testemunhos, tomando um deles como base. Conforme indicado na figura 12, letra b,
esta escolha, no entanto, não é fixa e pode ser facilmente modificada clicando-se no outro
testemunho da witness list. A diferença entre o texto de base e o outro testemunho aparece
destacada em azul. Ao clicar sobre os destaques, uma janela pop-up aparece indicando a
modificação (witness diferences, figura 12, letra c).
Ainda na janela pop-up witness differences (figura 12, letra c) note-se que, nesta mesma
janela pop-up, o símbolo indica a ausência do trecho destacado no testemunho
124
b
c
Este modo permite efetivar a leitura dos testemunhos em contraste. Os destaques feitos
pelo programa orientam o leitor na visualização das diferenças entre as versões, tornando o
trânsito entre elas mais fluído e intuitivo. Este tipo de edição desloca a atenção do leitor do
texto editado para as suas modificações textuais, ele é convidado a perceber, por si, as
substituições, os acréscimos e deslocamentos. Dessa forma, a noção de que uma obra adquire
diferentes formas à medida em que circula em uma sociedade, princípio orientador dos
trabalhos da Crítica Textual, torna-se, efetivamente, visível pelos modos de visualizações
trazidos pelo Juxta Commons.
125
Outra ferramenta que permite concretizar a edição sinóptica é a opção User annotations,
disponível na margem direita da tela, no modo de visualização heat map (figura 14, letra a).
Nesta, o editor poderá registrar os seus comentários acerca das modificações textuais,
compartilhando as suas interpretações com o leitor. Ao clicar em users annotations, uma janela
pop-up é aberta com os comentários do editor. Um clique sobre a lupa (figura 14, letra b), o
programa leva o leitor até a passagem do texto a que o comentário se refere. O acesso a essas
anotações também pode ser feito clicando sobre a região do texto destacada em azul. Nesse
caso, uma janela pop-up aparece na tela com a diferença entre os testemunhos e a anotação do
editor (regional annotation), como expresso na figura 14, letra c.
A diferença entre os testemunhos também pode ser evidenciada por meio do recurso
gráfico do histograma (Cf. figura 15), acessado no terceiro botão da barra de navegação. A
opção de visualizar o histograma está disponível nos modos de visualização heat map e side-
by-side. Trata-se de um diagrama que representa a frequência da ocorrência das modificações
em relação ao texto de base escolhido. Assim, quanto mais longa a barra, mais intenso o
processo de modificação textual. Ao se comparar o histograma da peça Iemanjá – rainha de
Aiocá com o da peça O bonequeiro Vitalino, verifica-se que o processo de modificação textual
na primeira peça foi muito mais intenso que na segunda.
126
Como se percebe, o arquivo XML com todas as suas tags não é perfeitamente legível
para não especialistas, fazendo-se necessário adicionar a ele uma folha de estilos, em formato
CSS, a fim de torná-lo navegável. Em decorrência dos limites de tempo, de recursos financeiros
e humanos dessa pesquisa, não foi possível customizar o arquivo em XML a fim de produzir
uma edição a partir dele. Acredita-se, no entanto, que em momentos futuros, esse código fonte
poderá ser utilizado como base para a elaboração de edições, pois apresenta a vantagem de
seguir parâmetros internacionalmente aceitos, além de admitir atualizações conforme os
avanços dos programas e da tecnologia dos softwares.
O Juxta Commons possui também o recurso de exportar o resultado da colação como
uma edição, em caráter experimental, ao clicar no quarto botão da barra de ferramentas, opção
Edition Starter. Nesta, é possível configurar o título da edição, a sigla dos testemunhos, os
formatos de saída, se HTML ou DOC, além de numerar as linhas de 5 em 5. O resultado é um
arquivo com o texto completo, com linhas numeradas e, ao final, um aparato, em que se
apresenta uma lista com as modificações textuais identificadas com testemunho e linha com nas
linhas em que aparecem, conforme figura 17.
se recogen no sólo las variantes rechazadas, sino también la lección en ese caso
acogida en el texto. Se escribe primero ésta, repitiéndola y enmarcándola con el cierre
de un paréntesis cuadrado ( ] ), y se dan las siglas de los manuscritos que la presentan;
a continuación, se van ofreciendo las variantes no acogidas y las siglas de sus
respectivos testimonios49 (PÉREZ PRIEGO, 1997, p.92).
Este modelo, no entanto não satisfaz os propósitos desta edição, uma vez que a distância
entre a localização, no texto, da lição em que ocorre a modificação textual e a sua indicação, no
aparato, é bastante acentuada, dificultando o confronto. Além disso, é inconveniente, para a
leitura na tela, ter de movimentar a barra de rolagem para consultar o aparato. O editor só poderá
intervir sobre a edição se o fizer diretamente no código fonte, pois não há como propor
correções ou atualizações. O texto crítico fornecido pelo Juxta Commons é um texto limpo, pois
não há nenhuma marcação indicando onde houve modificações.
A Edition Starter, ferramenta do Juxta Commons, nos interessa, porém, como
instrumento para a colação, pois realiza o levantamento das modificações textuais existentes
nas diferentes versões do texto. O uso desse recurso para a colação é vantajoso, pois desobriga
o editor do trabalho mecânico, além de possibilitar maior correção durante o processo, pois,
assim como na transcrição, a colação é também pode a interferência de erros humanos.
Passamos, então, à construção da edição crítica, considerada a atividade que possibilita
exercício pleno na Crítica Textual (AZEVEDO FILHO, 1987), pois cumpre todas as etapas do
método filológico, permitindo ao editor colocar em ação o seu repertório crítico. Duarte ([1997-
], verbete) define a edição crítica a partir dos procedimentos metodológicos adotados para sua
realização, a saber:
49
“são recolhidas não só as variantes rejeitadas, mas também a lição acolhida no texto. Escreve-se primeiro esta,
repetindo-a e marcando-a com o colchete de fechamento ( ] ), e registram-se as siglas dos manuscritos que as
apresentam; então, são oferecidas as variantes rejeitadas e as siglas dos seus respectivos testemunhos.” (PÉREZ
PRIEGO, 1997, p.92, tradução nossa).
129
Trata-se de uma definição, que, por ser descritiva, contempla as mais diversas situações
textuais com os quais um editor irá se defrontar, abarcando objetos de naturezas diversas,
compreendendo desde os antigos e medievais até os modernos e contemporâneos. Talvez em
consequência dessa escolha, o objetivo da realização da edição crítica não se expresse nessa
definição, visto que o propósito de desenvolvê-la varia em função das características do objeto
de pesquisa com que se trabalha e das pretensões do editor.
Em se tratando dos textos teatrais censurados, objetos de constante modificação e
recriação, uma edição crítica não pode ser considerada um lugar de estabilidade, que se propõe
a estancar o processo de modificação textual. É, antes, um espaço para a manifestação da
multiplicidade que permeia a história de um texto e deve ser capaz de representar esta
diversidade de maneira legível, o que constitui um dos grandes desafios da apresentação da
edição.
Assim, entender a edição crítica como a reprodução de um autógrafo ou reconstituição
de um original perdido não dá conta de toda a máquina interpretativa que o editor mobiliza para
além do texto, nem das infinitas possibilidades de leitura suscitadas no processo editorial. É
preciso, também, considerar que uma edição crítica constitui uma referência para os leitores:
mediante a diversidade textual, uma indicação de leitura fornecida por um especialista, deve
trazer a proposta do autor, bem como apontar para as demais versões encontradas.
Isabel Lourenço (2009, p. 229, grifo nosso) ainda acrescenta que “[t]oda edição crítica
é uma edição histórica, na medida em que inclui a evolução histórica de uma obra desde a
origem até esse momento presente”. Tendo em vista as características dos documentos que são
objetos dessa pesquisa, vale ampliar os sentidos de história aí empregados, entendendo-a não
só como cronologia dos testemunhos, das modificações textuais etc., mas como narrativa. O
editor se propõe contar a história daquele texto, conforme os documentos e evidências de que
dispõe, escolhendo destacar ou não certos aspectos dessa história, conforme sua proposta
editorial. Pensar a edição como narrativa implica, também, situar o editor dentro do seu
momento histórico, a partir de suas escolhas teóricas, uma vez que quem narra o faz sempre de
um lugar.
Pensando nessas questões brevemente apontadas, propomos uma edição crítica que
funcione como ponto de integração dos diversos documentos relativos ao objeto de estudo em
questão. Para atingir esse fim, as ferramentas do hiperlink e do hipertexto tornam-se
fundamentais na organização e integração das informações. Estas são dispostas em rede, onde
diferentes caminhos podem levar ao mesmo ou a diferentes pontos de chegada.
130
Definimos, para esta edição crítica, uma subdivisão em três partes. Cada página da
edição crítica possuirá três modos de visualização as quais se têm acesso por meio de um menu
horizontal localizado imediatamente acima do texto, que contempla o texto crítico, as revisões
ao texto, e a construção do texto (cf. figura 18).
Optamos por dividir o aparato nas categorias Revisões ao texto e Construção do texto,
pois o volume de modificações textuais é significativo e as marcas em azul poderiam se tornar
excessivas. Além disso, acreditamos que tais modificações possuem características que podem
ser associadas aos diversos momentos do processo de escrita. Conforme Grésillon (2007),
durante a construção do seu texto, o autor assume diferentes papéis: o de escritor, quando
efetivamente o elabora; o de leitor, quando abandona o papel de escritor para perceber como se
dá a recepção à sua produção; e o de revisor, quando opera modificações que dizem respeito a
questões de adequação ao português padrão, ou a equívocos na datilografia.
Outro elemento fundamental para compreender a circulação e recepção dos textos
teatrais durante o período da ditadura militar são os documentos da recepção. Em geral, esses
documentos são utilizados pelos editores com a finalidade de conhecer o contexto de produção
da obra, justificar escolhas editoriais ou ainda, esclarecer alguns sentidos do texto. Os
documentos da recepção que conformam o arquivo hipertextual são: documentos de censura,
fotografias, panfletos, cordéis, etc., que ilustram a leitura da dramaturgia em questão. A fim de
torná-los mais acessíveis e constituí-los como objeto de leitura e fonte de pesquisa, criou-se um
diretório dentro do arquivo hipertextual, para apresentá-los, organizando-os pela peça à qual
fazem referência, e por ordem alfabética.
Para a construção do arquivo hipertextual, foram selecionados quatro textos de Jurema
Penna, a saber: Bahia livre exportação (1975/1976), Negro amor de rendas brancas
(1971/1972), Iemanjá – rainha de Aiocá (1975/1980), O bonequeiro Vitalino ou Nada é
impossível aos olhos de Deus e das crianças (1977, 1978, 1991). Os dois primeiros foram
editados na dissertação de mestrado dessa pesquisadora, momento em que desenvolvemos
edições críticas em suporte papel. Para o presente estudo, propusemos a transposição dessas
edições para o meio digital, fazendo-se necessário discutir as diferenças na produção de edições
críticas em suportes distintos.
Como ponto de partida para elucidar essas diferenças, vale considerar a própria
polarização entre a disposição do texto editado e o aparato que traz as modificações textuais: o
primeiro ocupa posição de destaque na folha impressa; ao passo que o segundo ocupa a margem
esquerda da página ou ainda o rodapé, um espaço reduzido. A disposição dos elementos da
edição é, assim, representativa da relação hierárquica entre texto e aparato e, por consequência,
entre a versão que o editor toma como base e as lições presentes nos outros testemunhos. O
próprio espaço físico destinado às modificações textuais termina por restringir a quantidade de
informações que ali podem ser dispostas. Isto tem como resultado edições críticas que, devido
ao volume de modificações textuais a serem dispostas no aparato, investem pouco em trazer
132
outros elementos que permitam compreender o texto, tornando-as muito mais uma descrição
dessas modificações do que efetivamente uma interpretação.
A edição em meio digital desconstrói a hierarquização texto crítico x aparato, uma vez
que o hipertexto possibilita justapor informações, por meio de janelas móveis, bem como
interconectar um grande volume de informações que podem ser lidas lado a lado com o texto
crítico. O hipertexto suplanta as restrições de tamanho impostas pelo suporte papel e confere
ao editor espaço para o exercício da atividade crítica. Dessa forma, ampliam-se, também, as
possibilidades do aparato, pois este já não se restringe a apresentar documentos verbais, mas
engloba áudio, vídeo, além de material iconográfico e links para sites externos.
De uma forma geral, a metodologia utilizada para realizar edições em meio digital segue
os mesmos princípios empregados para a produção de edições críticas em suporte papel, ainda
que se utilizem ferramentas distintas, como já assinala Urbina ([200-]). A principal diferença
percebida durante o processo, foi que, para integrar as edições críticas anteriormente realizadas
(ALMEIDA, 2011) ao arquivo hipertextual, fez-se necessário resgatar os testemunhos como
individualidades, uma vez que estas traziam dos testemunhos somente aquilo que interessava
para construir o texto crítico e o aparato. Dessa forma, foi preciso retornar à descrição e à
transcrição de cada testemunho, em sua idiossincrasia. Essa ação permitiu entendê-los como
produto histórico singular, tomado em sua especificidade e não somente como detentores de
lições divergentes em relação ao texto de base.
É sob essa perspectiva que a proposta de arquivo hipertextual apresentada constitui-se
em uma tentativa de retirar a centralidade de um único testemunho, trazendo as diferentes
versões para o jogo interpretativo, ao dar acesso a diversos meios de conhece-los, seja pela
comparação na edição sinóptica, seja pela descrição acompanhada de fac-símile, ou ainda pelas
leituras engendradas em um aparato que põe em evidência os movimentos de construção e
revisão dos textos.
133
Da página inicial, temos acesso às edições de cada um dos textos que compõe o arquivo
hipertextual. Nessa mesma página temos ainda um link para os critérios de edição, com um
resumo dos critérios ora apresentados e uma nota biográfica sobre Jurema Penna, a fim de dar
a conhecer a vida e obra da dramaturga. Ao clicar sobre um dos textos, abre-se uma página de
onde se pode ter acesso aos três tipos de edição, acima citados, para cada peça. Há também uma
segunda possibilidade de acessá-los, via menu horizontal no topo da página (cf. figura 20, letra
a). Nesse menu, reunimos as peças pelo tipo de edição, cabendo ao leitor optar por ler as
diferentes edições do mesmo texto ou ler o mesmo tipo de edição dos diferentes textos.
Esclarecemos que a descrição física dos testemunhos folha a folha foi realizada apenas
para os textos editados nesse trabalho. Para Negro amor de rendas brancas e Bahia livre
exportação, faremos apenas uma descrição geral, uma vez que a materialidade destes já foi
objeto de estudo da dissertação de mestrado desta pesquisadora.
135
No intuito de possibilitar uma leitura paralela das versões do texto, trazemos uma edição
sinóptica, construída por meio do aplicativo Juxta Commons (cf. figura 23). Para ter acesso a
essa edição, o leitor deverá utilizar o login: “izzalmeida@gmail.com” e a senha: “157913”.
Fizemos uso da estrutura do software para realizar uma leitura dinâmica e descentrada do texto,
a partir das diferentes formas de visualização disponibilizadas: heat map, com os comentários
136
da edição, disponíves no botão User annotations (Cf. figura 24, letra a) e side-by-side view (Cf.
figura 25), conforme apresentado da seção 4.1 desta tese.
Figura 24 - Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização heat map
Figura 25 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização side-by-side
PÉ-MOLHADO – (Percebendo que Pedrão está estranho) Viu alma do outro mundo companeiro? [(Pedrão
não ouve)] (Transcrição de T80)
- Para os textos não numerados, indicar o número da folha do testemunho entre colchetes.
51
Nesse caso, optamos por manter “folhas”, pois entendemos que a supressão do “s” trata-se de uma atualização
realizada pelo autor no momento da perfomance.
139
Assim, utilizamo-nos das transcrições realizadas para a edição sinóptica e, a partir daí,
fizemos a colação dos testemunhos, por meio do aplicativo Juxta Commons, que gerou as lições
diferentes entre testemunhos para a composição do aparato crítico. Na construção da arquitetura
digital para a apresentação da edição crítica, foi nosso objetivo dispor de um texto pouco
carregado visualmente, mas que desse conta de mostrar todas as modificações textuais
realizadas durante seu processo de produção, circulação, transmissão e recepção. Nesse intuito,
optamos por dividir a edição crítica em três espaços paralelos, onde encontramos as três
propostas que compõem o texto editado (cf. figura 26):
percepção sobre a norma linguística e a representação de língua popular que evidencia na fala
de seus personagens.
A aba construção do texto traz as modificações textuais concernentes aos movimentos
de escritura, assim, apresentamos no aparato os acréscimos, supressões, deslocamentos
empreendidos pela autora, as inscrições manuscritas realizadas pelos atores e os documentos
da recepção do espetáculo. Incorporamos ao aparato crítico as marcas dos diversos sujeitos que
participam da cena, registradas em documentos de ordem diversa, como canções, vídeos,
fotografias, matérias de jornal e recortes do fac-símile do texto datiloscrito.
Todas as modificações textuais são apresentadas no aparato crítico que aparece dentro
do próprio texto crítico, com o uso do recurso tooltip do Dreamweaver CS5. Ao passar o mouse
sobre a palavra destacada aparece, abaixo do ponteiro do mouse, a modificação textual realizada
de uma versão à outra, conforme ilustrado na figura 27. Encontramos nesse recurso um espaço
producente para a disposição do aparato crítico, pois permite evidenciar as modificações
textuais dentro do texto e não à sua margem. Entendemos que, assim, é possível trazer as
modificações textuais no mesmo nível hierárquico que a lição do texto de base. O recurso
possibilita também dispor outros tipos de texto nesse mesmo espaço, tais como imagens e
vídeos. O menu localizado no rodapé da página da edição (figura 27, letra a) permite ao leitor
passar de um texto ao outro, clicando sobre o número da página desejada. Pretendemos, com
isso, facilitar a alternância de entre os textos, de forma simples e acessível, ao mesmo tempo
em que buscamos integrar os três textos, como três faces da mesma edição crítica.
a
Fonte: Elaborado pela pesquisadora
141
Como ilustrado na figura 27, em que uma intervenção manuscrita altera o texto, optamos
por mostrar, no aparato, a transcrição desta, acompanhada pelo recorte do fac-símile
correspondente. Na aba Construção do texto, interessa-nos também apresentar o texto do ator
que, como anotação da cena, suplementa a leitura do script (Cf. figura 28). Nessa mesma aba,
fazemos uso dos documentos da recepção, que cotejados com o texto, proporcionam outras
leituras. Ilustramos essa opção crítica uma fotografia do momento em que o cangaceiro Pé-de-
Vento aponta seu punhal para Seu José, a foto foi disposta no texto ao lado do trecho “MANÉ–
cabra, não fale, não entoe / tu já viu o meu punhal?” (Cf. figura 29).
Quanto aos critérios para intervenção no texto da edição crítica, assumimos aqueles já
elencados para a edição sinóptica, acrescidos de outros que permitem atualizar o texto:
A moça dos cabelos verdes foi escrita por Jurema Penna no início da década de 1970,
quando ainda vivia no Rio de Janeiro. Revista em 1975 e 1980, recebeu novo título, passando
a se chamar Iemanjá – rainha de Aiocá. Em cena, Pedrão, protagonista e marido de Dulce,
pescador respeitado, mas que blasfema contra Iemanjá, a divindade das águas para as diversas
nações africanas. O enredo mostra a vinculação de Pedrão a Iemanjá, ao narrar seu nascimento,
durante a travessia da Bahia de Todos os Santos, quando seu umbigo foi jogado ao mar. Filho
de Xangô, Pedrão ignora as suas conexões com a tradição de matriz africana e desafia Iemanjá
a aparecer para ele em suas idas ao mar. Em uma noite de lua cheia, mesmo advertido por seus
colegas, Pedrão sai para pescar, provocando-a a se revelar. Iemanjá atende o desejo do pescador,
mas sua aparição suscita um impacto que lhe retira parte da sua vontade de viver. Pouco tempo
depois, mesmo com todas as tentativas de trazer a sua atenção de volta para a terra, Pedrão
morre no mar.
Da atividade da recensio, localizamos um corpus documental composto por cinco
testemunhos, sendo três deles depositados no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia, um no
Arquivo Nacional e um depositado no acervo Nós, por exemplo, Centro de Documentação e
Memória do Teatro Vila Velha. Passamos, então, a descrever fisicamente cada um dos
144
testemunhos52, indicando suas respectivas siglas, apenas para aqueles que trazem versões
diferentes do texto e que participarão da colação.
O primeiro testemunho data de 1975 (T75b), intitula-se A moça dos cabeços verdes e
está localizado no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia. É um datiloscrito mimeografado
a óleo, composto por 30 folhas, numerado ao centro da margem superior, (02) a (29), sem
numeração na primeira folha. O suporte encontra-se amarelado, devido à ação do tempo,
sobretudo a capa, apresentando bom estado de conservação. O carimbo do Departamento de
Polícia Federal (DPF), em formato circular, encontra-se em todas as folhas no ângulo superior
direito, onde há também outro carimbo que condiciona a programação do espetáculo à censura
prévia, além do carimbo da Sociedade Brasileira de Atores Teatrais (SBAT). Não há cortes. A
capa traz ainda, inscrições de catalogação feitas pelo acervo a lápis e caneta hidrográfica
vermelha. O texto contém algumas correções que dão conta de revisar erros de datilografia,
além de manchas decorrentes da reprodução em mimeógrafo. Consta de uma nota explicativa
acerca da elaboração da peça “Escrita em 1972– Rio de janeiro. Revista em novembro de 1975
–SALVADOR”. (PENNA, 1975b, p.29).
O Espaço Xisto Bahia guarda um segundo testemunho datiloscrito e mimeografado a
óleo, datado de 1980 (T80). O texto é composto por 36 folhas, numeradas de 01 a 30, com capa,
folha de rosto, prólogo, epígrafe, lista de personagens, seguido do texto. Não há carimbos, nem
cortes. Há, na capa, inscrições feitas a lápis referentes à catalogação realizada pelo acervo.
Contém diversas correções manuscritas, feitas antes da reprodução, que revisam aspectos da
ortografia, acentuação, pontuação, erros de datilografia e, eventualmente, fazem acréscimos.
Trata-se de uma versão diferente da anteriormente descrita. Este testemunho apresenta uma
datação distinta das fases de escrita da peça. Na capa, atribui-se a elaboração ao ano de 1972,
no Rio de Janeiro. A data de reelaboração encontra-se riscada, com a supressão de 1978 e
acréscimo de 1980: “Escrita em 1972 – RJ Revista em 1980 – Salvador –BA” (PENNA, 1980,
f.2). Ao final do texto, há uma nota explicativa, remetendo ao título original e às encenações,
que transcrevemos:
52
A descrição aqui disposta é apresentada de forma bastante sumária. Para aspectos específicos da materialidade
de cada um desses testemunhos, consultar o menu “Fac-símiles e descrições” no Arquivo Hipertextual, segundo
volume.
145
53
Neste trabalho, optamos por preservar a identidade dos censores, a fim de não incorrer em algum
constrangimento que fira os seus direitos individuais.
147
entre folclore X cultura, na qual as manifestações culturais populares eram entrecortadas pelo
valor dado à cultura erudita, ocupando um lugar subalterno diante desta. Assim, narrativas
dissociadas da cultura das elites brasileiras são consideradas hierarquicamente inferiores em
termos de produção cultural e denunciam o referencial cultural do governo militar e do próprio
censor.
Dando seguimento a sua apreciação da peça, afirma “[a] sua história se passa numa
aldeia de Salvador e narra, com detalhes, o dia-a-dia de um grupo de pescadores, que, embora
vivendo em nossos dias, cultua toda sorte de ritos, principalmente os afros, como forma de
religião” (PARECER, 1975a). Vale notar que a única religião trazida no texto é o candomblé,
algumas vezes em interface com o catolicismo, não havendo porque considerá-lo como “toda
sorte de ritos”, pois o culto politeísta dos orixás encontra unidade nos seus preceitos.
Adiante, entende o candomblé não como religião, mas “como forma de religião” símile
desta, questionando a sua legitimidade. Apesar da descriminalização do candomblé datar de
1936, com Getúlio Vargas finalmente acolhendo a voz do povo de santo, representado por Mãe
Aninha, foi apenas em 1976, que Roberto Santos, então governador da Bahia, desobrigou os
terreiros a apresentação da licença de funcionamento expedida pela Delegacia Especial de Jogos
e Costumes. A garantia da liberdade de culto, no entanto, só viria com a redemocratização e a
constituição de 1988. A posição do censor plasma o discurso dos poderes oficiais, que não
associa a prática do culto como crime, mas também não o reconhece como manifestação de
religiosa. Indica o preconceito contra o povo negro e sua cultura, relegado a um status de
inferioridade.
O parecerista ainda afirma: “Nesse fanatismo coletivo, um dos pescadores depois de
blasfemar contra Iemanjá, acaba sendo morto pelas águas, fato que serve para aumentar ainda
mais o clima de mistério e de interrogações entre eles” (PARECER, 1975a). Ao se referir a um
“fanatismo coletivo”, o censor atribuiu, a essa vivência religiosa, uma fé desmedida e
inconsequente, fato que não se percebe durante a leitura da peça. O parecer nº 10393/75, apesar
de trazer apenas uma indicação de corte, torna-se fundamental para compreender o valor
negativo recebido pela cultura e religião africana e afrodescente nesse âmbito, marca oriunda
da escravidão que permanece na sociedade brasileira sob a forma do preconceito religioso.
O uso de vocábulos como “crendice”, “fanatismo” e “folclore”, para se referir ao
candomblé, seus mitos e práticas, deixa entrever o distanciamento do censor dessa cultura e o
julgamento desta, com base no seu próprio referencial cultural e/ou naquele defendido pelo
governo militar, aliado da igreja católica.
148
Por sua vez, o parecer censório nº 10431/75, assume facetas diversas do anteriormente
comentado: “Trata-se de uma peça teatral de fundo folclórico e temática recalcada nas crendices
e religiosidades afrobrasileiras, em que YEMANJÁ se configura como rainha do mar e as outras
entidades transcendentais servem-na com amor e carinho” (PARECER, 1975b). O técnico de
censura considera o enredo da peça em termos de crendices e folclore, mas não desconsidera o
fator religioso que fundamenta o culto africano. Ao identificar Iemanjá como rainha do mar,
que tem as outras entidades transcendentais como seus servos, o censor marca o caráter
monoteísta da sua percepção de religiosidade em que um deus ocupa a posição central e é
auxiliado por outros entes, fato que não se observa no enredo da peça.
Ao discorrer sobre o protagonista Pedrão, o censor afirma que este “é vítima dos ciúmes
de YEMANJÁ.”, não considerando que o personagem também desafia a divindade para que ela
se mostre, não sendo somente vítima dos seus caprichos. O censor segue “Vai com muita
tristeza no coração, enquanto os seus, de olhos fixos no mar, preocupam-se, e, paulatinamente,
perdem a esperança de revê-lo com vida”. Quando Pedrão parte para o mar em noite de lua
cheia, é advertido por todos da comunidade, incluindo-se Dulce, sua mulher, e Raimundão, ogã
da Casa de Mãe Rosa, dentre outros membros da comunidade, temerosos. Ainda assim, por
decisão própria, ele segue para o mar, não se confirmando a tristeza no coração de que fala o
censor.
Conclui seu parecer afirmando: “Pela grande contribuição folclórica, sem maiores
consequências de fundo legal, mas, pela dramaticidade e atitudes paraespirituais no
desenvolvimento da temática, somos pela liberação para faixa etária acima de 14
(QUATORZE) ANOS”. Do posicionamento do censor, destacamos, como aspecto que atribui
um valor positivo à peça, a contribuição folclórica que a releitura das narrativas míticas de
Iemanjá promove. A representação do candomblé no palco não ofende as leis vigentes,
tampouco causa incômodos ao público de teatro, sendo tolerada por uns e até desejada por
outros, interessados em conhecer o culto africano. Compreender essa peça como folclore, no
entanto, implica em apresentar a cultura afrodescendente, sem problematizá-la, acomodando-a
como fetiche ou excentricidade.
O parecer nº 10431/75, apesar de favorável ao script da peça, mostra uma leitura
limitada do texto, que permite vislumbrar o desconhecimento do censor sobre as culturas de
matrizes africanas. É interessante perceber a restrição à faixa etária, sob a alegação de presença
de fenômenos para-espirituais. Uma leitura mais atenta não verifica tais fenômenos, sendo a
esfera de magia proposta no texto nivelada a qualquer outra dos contos fantásticos da literatura
149
ocidental. Tal proibição tem como resultado o impedimento da convivência do público infantil
com culturas e com histórias diferentes das delas.
Todos estes testemunhos, em suas inscrições e nas diversas marcas que trazem, atestam
as diferentes formas de reprodução e circulação da peça. Os pareceres dos censores são
fundamentais para essa análise, pois registram a recepção do texto por parte de leitores que tem
horizontes de expectativas muito bem definidos e partem de um referencial cultural urbano e
elitista. Ao problematizar esse tipo de recepção, buscamos perceber como os valores culturais
do regime de 64 também configuravam uma tentativa de homogeneizar as diferentes nuances
culturais existentes no país. A oposição construída entre cultura e folclore inscreve-se, portanto,
na tentativa de minimizar o alcance da cultura popular, inferiorizando os saberes construídos
pelo povo, em comparação à cultura imposta pela Ditadura Militar.
Passamos, então, a tratar dos movimentos de retomada do texto, a partir das
modificações textuais empreendidas. Nesse intuito, dos testemunhos elencados, tomaremos
para fins de colação apenas T75b e T80, por trazerem versões distintas. A primeira diferença
observada entre T75b e T80 é a modificação do título, de A moça dos cabelos verdes, para
Yemanjá – rainha de Ayocá54. Moça de cabelos verdes e rainha de Aiocá são epítetos atribuídos
à dona das águas, ambos aparecem disseminados tanto na literatura brasileira, quando em seu
cancioneiro popular. Em Itapuã (1972), Caymmi refere-se à moça de cabelos verdes, aludindo
a uma sereia que aparece nas praias de Itapuã, em referência a uma das manifestações de
Iemanjá:
Lopes (2004, p.43) esclarece que o termo Aiocá, “[p]arece derivar do iorubá Àyòká,
nome-oriki feminino que significa ‘aquela que provoca alegria ao seu redor’, sendo
provavelmente, um dos nomes de Iemanjá”. Refere-se, ainda a uma “extensão do significado e
o título ‘Princesa do Aiocá’, dado no Brasil a esse poderoso orixá feminino” (LOPES, 2004,
p.43). Em T80, o título da peça apresenta a vacilação rainha de/do Ayocá. Nas quatro primeiras
folhas há quatro ocorrências das indicações dos títulos: em duas delas, utiliza-se a contração do
54
Esclarecemos que, quando estivermos transcrevendo a lição do testemunho, manteremos a grafia das palavras
em iorubá, conforme foi utilizada por Jurema Penna.
150
e em duas apenas a preposição de. Para esta edição, adotamos a forma de, registrada em Jorge
Amado, em Mar morto (1973) e Cascudo (1999).
Jurema Penna, em T80, realiza o acréscimo de elementos pré-textuais, a saber: uma
folha de rosto, e duas citações que funcionam como prólogo e epígrafe. Como não encontramos
referências à encenação da peça, não sabemos se tais elementos foram transpostos para ao palco.
Não se pode, no entanto, negar que prólogo e epígrafe remetem a recursos próprios do texto
impresso. O prólogo ou prefácio tem como função realizar “uma espécie de esclarecimento,
justificação, comentário ou apresentação escrita pelo próprio autor ou por outra pessoa”
(ARAÚJO, 2007, p.416). Reafirmamos a sua possível presença na encenação, uma vez que o
prólogo (stricto sensu) é um termo que “constitui, na tragédia grega, a parte anterior à entrada
do coro e da orquestra, e na qual se enuncia o assunto da peça” (BARBUDO, 2010).
Por sua vez, a epígrafe “se define como uma citação, uma sentença ou pensamento
relacionado à matéria tratada no corpo do texto” (ARAÚJO, 2007, p.410). Sua natureza também
aceita a transposição para o palco. No entanto, por ocupar folhas próprias e por não trazer
indicações cênicas, acreditamos que tais elementos tenham sido compostos tomando-se como
referência o livro impresso.
Como a epígrafe tende sempre a preceder o prólogo, optamos, em nossa edição, por
inverter a ordem de apresentação desses dois termos. Nossa opção crítica é ratificada pela
expressão “Então nasceu:” (PENNA, 1980, f.2), o uso dos dois pontos constrói no leitor a
expectativa de apresentação do texto da peça. Além disso, por se tratar de datiloscritos cujas
folhas são posteriormente grampeadas, levantamos a hipótese de que essas folhas tenham sido
retiradas de sua posição inicial.
As modificações textuais empreendidas permitem entrever dois aspectos: a correção da
língua portuguesa presente sobretudo nas rubricas e a representação de modalidades populares
na fala dos personagens. Quanto à modalidade de língua empregada por Jurema Penna, vê-se
tratar-se de um sujeito alinhado ao paradigma de língua do português padrão, destacando-se,
no entanto, a presença de uma série de normas linguísticas, resultante de mudanças ortográficas
empreendidas ao longo da história.
Jurema Penna inicia sua vida universitária nos anos 1940, graduando-se bacharel em
Direito pela UFBA em 1949. Nesse contexto, vivenciou a reforma ortográfica de 1943, que
estabelece o uso do acento diferencial para distinguir palavras homógrafas, em que o ‘e’ e o ‘o’
aparecessem com som fechado. Por analogia, essa norma é aplicada para outras palavras que
não estão em situação de homonímia, é o que acontece, por exemplo com “rêde”, “mêdo”,
“galêgo”, “côr” e em outras presentes nos dois testemunhos, em que se nota uma severa
151
vacilação no uso dessa acentuação, com inúmeros casos de hipercorreção. Em 1971, houve mais
uma reforma ortográfica que extinguia o uso do acento diferencial, restando poucas exceções
para seu emprego, decorrendo daí o conflito entre as normas e a inconsistência no uso desse
diacrítico.
Em se tratando da grafia das palavras de origem iorubá, observamos uma significativa
alternância decorrente da oralidade que permeia a transmissão do conhecimento nas culturas de
matrizes africanas. De uma forma geral, T75b traz uma grafia, ainda com vacilações, mas que
tende a estar mais próxima da forma dicionarizada em português, por sua vez a grafia de T80
tende a utilizar o <y> para representar /i/ e <n> para marcar os fonemas nasalizados, como
ocorre com a palavra “Iansã”, grafada “Iansã” em nove ocorrências e “Yansã” em uma
ocorrência em T75b. Em T80, não há nenhuma ocorrência para “Iansã” e sete ocorrências com
“Yansan”. A título de exemplo, extraímos o excerto abaixo:
1 PEDRÃO – É Iemanjá, Oxum, Nanã ou Janaína 1 PEDRÃO – É Yemanjá, Oxum, Nanan ou Janaina
que te ajuda no jogo, Pé Molhado? (A cena para que te ajuda no jogo, Sete-Mola?
como numa fotografia)
REMENDElRAS – (Cantam) Yara, Janaina,
REMENDElRAS – (Cantam) Yemanjá, Nanan, Oxum
5 Yara, Janaína 5 Das águas a rainha
Yemanjá, Nanã, Oxum com os poderes de Olorum
Das águas as rainhas
Com os poderes de Olorum (PENNA, 1980, f. 7, grifo nosso)
terreiros tradicionais de Salvador o “Ilê Axé Opô Afonjá”, grafado “Axé Apô ô Fonjá”
(PENNA, 1980, f.27). Incluímos, nesta análise, a cantiga que a personagem Dulce dedica a
Iemanjá, em contraste com a transcrições de uma cantiga de Iemanjá gravadas por Mariene de
Castro (2010), bem como com a transcrição de um ponto de Iemanjá, cantigas rituais dedicadas
à entidade (MAGGIE, 2001). Note-se que há uma mistura das duas cantigas, em que se mesclam
distintas formas de grafia na língua iorubá.
DULCE – Kini-jé, Kinijé - Lôdô Ê nijé nilé lodô Kíní jé kíní jé olódò Yemonja ó
É dImanjá-O Yemanjá ô Ki a sòrò pèléé, ìyá odò ìyá odò.
A-ko-dé lê cê Acota pê lê dê Quem é a dona dos rios? É Yemanja
a rô mi rô. Iyá orô miô A quem nos dirigimos expressando simpatia.
É di man-qê-cê- (Castro, 2010) Mãe dos rios, mãe dos rios.
Ô - rô - mi - Ro
Ô Lê, Lê. Ymanjá-ô (PONTOS, 2013)
(PENNA, 1980, f.15)
terreiros. No trecho abaixo, temos a utilização do mecanismo de coesão lexical, em que a ideia
de “búzios da África” é retomada, na oração seguinte, como “esses caoris”, conforme
transcrevemos:
MÃE ROSA – Fui lá no Mercado Modelo. Fui buscar uns búzios da África que
encomendei a Camaféu. Esses caoris tão pela hora da morte. Cada vez mais caro.
(Para Dulce) Já deu seu presente, Dulce? (PENNA, 1980, p.13, grifo nosso)
MÃE ROSA – [...] A gente aquí tem que trabalhar MÃE ROSA – [...] A gente tem que trabalhar
muito pra vê se ajuda minha filha Dulce. Fala com muito por nossa filha Dulce. Ela tá precisando
ele que essa filha aqui está precisando de muita de muito axé.
força. (PENNA, 1980, p.25, grifo nosso)
(PENNA, 1975b, p.25, grifo nosso)
Para os adeptos do candomblé, o axé é a energia dos orixás, a força vital presente em
cada indivíduo, “o poder espiritual, princípio de ação e transformação” (LIMA, 2007, p.210).
O uso da palavra “força” em T75b apresenta-se bastante genérico, já que pode dar a entender
que Dulce precisa de um “apoio” ou de “compreensão”. A substituição para “axé” traz outros
sentidos para o texto, elucidando que as necessidades de Dulce pertencem ao plano espiritual.
Nesse sentido, o trabalho a que se refere Mãe Rosa, no início do excerto, adquire o sentido
específico de trabalho espiritual e justifica o fato dessa fala ter sido dita por uma mãe de santo.
No trecho abaixo, notamos mais uma inserção e uma substituição de itens lexicais do
vocabulário do povo de santo:
CASA DE MÃE ROSA – (no quarto dos orixás CASA DE MÃE ROSA–
da casa de mãe rosa um pegi – espécie de altar (No quarto dos orixas um pegi, espécie de altar
que sobe em degraus, coberto por uma toalha que sobe em degraus, coberto com uma toalha
branca. Vasilhas de cerâmica com as branca, bordada. Vasilhas (alquidar) de
5 obrigações espalhadas pelo chão. […] Usa 5 cerâmica com as obrigações arrumadas aos pés
guias de seus orixás, pulseiras e brincos. A do pegi. […] Guias contornam a mesa formando
mesa é forrada de branco e sobre ela um copo um circulo, dentro do qual será jogado o ifá: jogo
d'agua, uma vela acesa, um baralho, busios, um de advinhação. Sentada à mesa está Mãe Rosa,
bloco, lápis. Guias contornam a mesa formando concentrada e não manifestada, vestida
10 um circulo, dentro do qual serão jogados os 10 simplesmente, de preferência de branco, torço
busios) (PENNA, 1975b, f. 8, grifo nosso). branco na cabela, guias dos seus orixás, pulseiras
contra egun). Mãe Rosa acaba de atender
Pequena. (PENNA, 1980, f. 10, grifo nosso).
154
55
É válido ressaltar que Ifá se refere também à divindade iorubá que governa o oráculo homônimo, conforme
Prandi (2001), outro nome para Orunmilá.
155
PEDRÃO – Vai embora, vá! PEDRÃO – Vai embora, vai! (As palavras
dele nada tem a ver com a verdade. Sua voz,
PEQUENA– (Vendo um aranhão no peito
olhos, ele todo é uma suplica para que ela
de Pedrão) O que foi isso?
fique)
PEDRÃO – Coisa à toa. Um arranhão de
PEQUENA– (Vendo um aranhão no peito nu
nada nas pedras. Quando chegar em casa,
de Pedrão) O que foi isso?
Dul...
PEDRÃO – Coisa atôa. Uma ponta de pedra.
PEQUENA – (Tapa a boca de Pedrão) Tá
Quando chegar em casa Dulce...
feio isso. Arranhou mesmo. (Provocante,
acaricia o peito nu de Pedrão; beijam–se. PEQUENA– (Corta o que ele vai dizer com
Os pescadores que estão voltando da loca um beijo. Os pescadores que estão voltando da
assistem o beijo, param. loca assistem o beijo)
(PENNA, 1975b, p.16-17, grifo nosso) (PENNA, 1980, p.17, grifo nosso)
O desejo de Pedrão por Pequena poderia ser expresso por uma indicação cênica menos
detalhada, como em Negro amor de rendas brancas “Paulo agora dança como se a Dayse
estivesse presente. Sexy, muito sexy.”, (Cf. arquivo hipertextual, NARB, p.19). A dramaturga,
porém, faz uso da gradação “voz-olhos-ele todo”, que confere a rubrica um tom muito mais
literário que um simples detalhamento de posição cênica.
A mesma tendência se mostra no desfecho da trama, em que o estilo romanceado da
rubrica aparece entremeado com marcações da iluminação, que indica a passagem de tempo,
conforme destacamos abaixo:
CASA DE MÃE ROSA – Sentada com toda a sua imponência de mãe de santo, Mãe
Rosa esta vestida de branco, tendo o seu Ogan Raimundão de pé ao seu lado. A Yao
agora vestida de filha de Yemanjá bete caça [sic] aos pés de Mãe Rosa e depois aos
pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a sua dança ágil e graciosa. Dança por
todo o palco onde estão prostrados. A luz vai entrando em resistência até restar apenas
um foco que acompanha a dança de Yemanjá. Black rápido. A luz volta em
resistência. Amanhecer (PENNA, 1980, p.21, grifo nosso).
elaborado para ser objeto de leitura e não somente de encenação. Nesse sentido, Jurema Penna
inscreve sua imagem de dramaturga no processo de preparação de suas peças.
Interessa destacar como outra nuance do cuidado da dramaturga com o seu texto. Em
várias passagens, há períodos que sofreram modificações, mas que não alteraram
significativamente o seu sentido, conforme listados no quadro 2.
T75b F T80 F
iniciam o seu trabalho 1 iniciam a arrumação da barraca (Boteco) 1
Dando uma palmada em Arruaça 6 Dando uma amigável palmada em Arruaça 7
O povo da rede de Inácio 7 O povo da rede de Ilário 7
Pipocas, velas, flores, perfumes, garrafas de mel, 8 Velas, pipoca, flores, perfumes, pedras lisas, 10
pedras lisas. garrafas de mel.
Reza em murmúrio sobre o copo. Depois benze o 9 (Dulce se senta. Mãe Rosa se concentra. Benze 12
baralho e os búzios com o copo. os búzios com o copo depois de ter orado em
murmúrio sobre o mesmo.
a senhora compreende 9 a senhora sabe, 11
E eu tenho medo mãe, muito medo. 9 E eu tenho mêdo. Muito mêdo mãe. 11
Duzinha e Cazuza atendem Dulce 11 Cazuza e Duzinha despacham ela 12
São Sebastião venha em nosso socorro 14 São Sebastião, venha em socorro de todos nós. 15
Ele vai se acalmando aos poucos 14 Ele vai se tranquilizando aos poucos 15
RAIMUNDÃO – (Bebendo de um só gole) 16 RAIMUNDÃO – (Virando a doze) 16
A outra foi Obá, não foi? Coitada…ficou sem a 18 A outra foi Obá. Ficou sem a orelha, coitada. 18
orelha.
ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. As 18 ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. Iscas, 19
iscas, tudo. Anzóis, enrolei as linhas. Examinei a anzois, as linhas enroladas certo. Examinei a
poita. Tudo seguro. poita. Tudo seguro.
PEDRÃO – (Pegando seus apetrechos de pesca) 19 PEDRÃO – (Apanhando seus apetrechos de 19
pesca)
DUZINHA – Precisa não. Canoa já tá no mar. É 20 DUZINHA – ‘Tá não. Canôa já ‘tá no mar. E só 20
só suspender a poita. Ele precisa quem ajude ele levantar a poita. Ele tá precisando de ajuda, é
em outras coisas. em outras coisas.
DUZINHA– Ditado por ditado, tenho também 20 DUZINHA– Ditado por ditado, eu tambem tenho 20
meu. Quem vê as barba do vizinho arder, bota a o meu: Quem vê as barba do vizinho arder, põe
sua de molho as suas de molho.
Te quero ver formado, filho. 20 Quero te ver formado, filho. 21
RAIMUNDÃO – Fui só vê o pesqueiro. Hoje não 20 RAIMUNDÃO – Fui só examiná o pesqueiro. 21
é noite boa prá pesca, tu sabe disso. Hoje não é noite de bôa pesca. Tu sabe.
CASUSA – Duzinha, uma hora dessas, eu vou ter 22 CAZUNA – Duzinha, uma hora dessa eu ainda 23
uma briga feia c/ você, pra valer! É da sua conta vou tê uma briga feia com você... É da sua conta,
mulher? Vai cuidá da tua vida!!! mulher? Vá cuidá da sua vida!
PEQUENA – Não te quero mais não. 25 PEQUENA – Eu não te quero mais não, Pedrão. 25
DULCE – Tô pensando sim. 25 DULCE – Tô pensando sim, minha comadre. 26
DULCE – Mas não vai pescar. Vai a noite, sem 25 DULCE – Mas não vai pescar. Não tem hora 26
isca, sem rede, sem anzol sem linha, sem nada. nem dia. Vai sem anzol, sem rede, sem isca, sem
Tôda noite, toda noite. Não respeita nem o nada. Não respeita tempo nem vento.
tempo.
Ele nem ligou, mem respeitou 25 Ele nem ligou. 26
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.
157
São modificações textuais que não demandam muita elaboração, uma vez que se tratam
de inversões na posição dos elementos no sintagma, substituições de certas palavras por seus
sinônimos, ou ainda acréscimos de marcadores interacionais ou vocativos. Todas essas
modificações testemunham o cuidado da dramaturga com a língua de seu texto e com a
expressão das suas ideias, no intento de representar o universo baiano em sua obra.
A partir das análises aqui desenvolvidas, elegemos como texto de base para a
constituição da edição de Iemanjá – rainha de Aiocá o testemunho de 1980, por apresentar, em
relação ao testemunho de 1975, modificações textuais que o ampliam, além de dotá-los de
elementos que o configuram como um texto que se destina não somente à encenação, mas
também à leitura.
Trazemos o resultado das leituras empreendidas nos dois volumes que compõem esta
tese. No volume digital, apresentamos o texto integrado ao arquivo hipertextual de Jurema
Penna, conforme a estrutura descrita na seção 4.2. No volume em suporte papel, traremos
somente o texto crítico.
158
[Capa]
IEMANJÁ
RAINHA DE AYOCÁ
TEXTO DE
JUREMA PENNA
159
[Folha de rosto]
Título original –
A MOÇA DOS CABELOS VERDES
160
[Epígrafe]
[Prólogo]
CENÁRIO
A ação se passa numa praia de Salvador, onde os pescadores, isolados da "civilização", vivem com suas
crenças, seus cultos e os mistérios da mãe-mar. Mãe que pode lhes dar tudo ou tudo tirar. Nesta praia, marcar
alguns ambientes tais como: a casa de Pedrão, casa de Mãe Rosa, varais das remendeiras, barraca de Cazuza,
pedra de Severino.
PERSONAGENS
PEDRÃO – Pescador de linha de fundo. Forte, querido por todos. Entre 28 e 32 anos.
DUZINHA – Mulher decidida, ciumenta, capaz de usar uma navalha. Muito humana.
SETE-MOLA e
PÉ-MOLHADO – Pescadores.
CEIÇÃO e
TONINHA – Remendeiras de rede. Ceição é filha de Severino.
IAÔ – Personagem sem explicações frias e racionais. No “dizer do povo” é "uma fraca da cabeça” – “D. Iemanjá
desceu nela e ninguém nunca mais acertou a tirar.”
ÉPOCA
Em qualquer tempo em que os homens ainda creiam que “há muita coisa entre o céu e a terra que a nossa vã
filosofia não consegue explicar”.
– Hamlet – Shakespeare.
163
01
IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ
O início de peça é marcado com um longínquo canto de puxada de rede que se aproxima aos poucos, à medida
que cresce a luz de amanhecer. A estranha mulher, com suas roupas longas e transparentes, flores e fitas nos
cabelos longos, fita o mar com o seu olhar perdido: é a Iaô. Chegam à praia as remendeiras de rede. Cazuza e
Duzinha iniciam a arrumação da barraca (Boteco). Na casa de Pedrão, Arruaça toma café enquanto Dulce cuida
da casa. As remendeiras arrumam a rede prendendo-a em varais para iniciar o seu trabalho, enquanto conversam
CASA DE PEDRÃO
(Arruaça acaba de tomar o café)
ARRUAÇA – Já vou, mãe.
DULCE – Pra onde?
ARRUAÇA – Vou dá uma mãozinha na puxada; depois vou buscar o gelo.
DULCE – No compadre Cazuza?
ARRUAÇA – Não sinhora, vou no galego.
DULCE – ‘Tá certo. Mas vê se não procura briga.
ARRUAÇA – Não procuro não, mãe. São eles que provoca.
DULCE – Vai com Deus e não demora. Teu pai está chegando.
REMENDEIRAS
(Cantam)
Como dói meu coração
Esperar pelo meu bem
Vou cantar uma cantiga
Enquanto ele não vem.
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02
BOTECO
REMENDEIRAS
(A rede chegou. Os pescadores vêm com seus apetrechos de pesca e seus cestos com o resultado de uma
pescaria farta. Pedrão traz, além do cesto, suas linhas de fundo; os pescadores vão alguns para suas casas,
outros para o boteco. Pedrão se encaminha direto para casa).
CASA DE PEDRÃO
Casa típica de pescador. Humilde, pobre e muito limpa. Em cena os elementos estritamente necessários para a
ação; Dulce, depois de ter lançado um olhar de imensa gratidão ao pequeno altar de Iemanjá, ajuda Pedrão a
tirar o cesto que traz à cabeça)
03
PEDRÃO – E a febre já foi?
DULCE – É de hoje!… Tem mais de três dia.
PEDRÃO – Cadê ele?
DULCE – Disse que ia dar uma mãozinha na puxada de rede. Depois ia buscar o gelo.
PEDRÃO – Com aquele resto de tosse, carregando gelo na cabeça…
DULCE – Ô xente, Pedrão. Cê acha que se ele não ‘tivesse bom de todo, eu deixava ele ir?
PRAIA
(Arruaça vem com um balde de gelo na cabeça. Ao passar pela frente do boteco, Sete-Mola e Pé-Molhado
começam a se divertir às custas dele)
REMENDEIRAS
04
CEIÇÃO – Tomou seu café, pai?
SEVERINO – E o João? Que hora a canoa dele volta?
CEIÇÃO – (Muito constrangida) Daqui a pouco, pai.
SEVERINO – Mentira! É mentira! O mar engoliu ele, canoa e tudo! O povo tira os peixe do mar. O povo joga a
água amarela, cor do enxofre do diabo, nas águas do mar. O enxofre do diabo mata os peixe e envenena tudo. O
mar fica com fome. O mar precisa de sangue dos pescador pra matar a fome dele. A fome do mar é grande.
(Para estático, ameaçador. Ele e a Iaô se fitam fixamente.)
CEIÇÃO – Senta, pai. (Severino se senta numa pedra. Sua expressão vai ficando muito mansa. Aos poucos ele
inicia um cantarolar triste de uma velha canção sertaneja).
BOTECO
REMENDEIRAS
CEIÇÃO – É verdade?
TONINHA – O que, menina?
CEIÇÃO – Que ele nasceu no mar?
TONINHA – Seu Pedrão? (Ceição diz que sim com a cabeça) Foi sim. Na meia travessa. Em cima do saveiro de
Silvano: o Lua Bonita. A finada Julinha de Oxum vinha de Mar Grande pra cá, pra ter menino. Dona Oxum não
quis, ele nasceu em cima das águas dela. No saveiro mesmo. O umbigo dele foi jogado no mar.
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05
BOTECO
NA PRAIA
(Arruaça vem buscar o balde de gelo e verifica que o gelo derreteu. Faz um gesto de raiva incontida. As
remendeiras riem, ele faz que nem percebeu e sai)
BOTECO
06
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REMENDEIRAS
(Cantam).
A Mãe d’água quando canta
pros lado do pescador
sua voz fica tão doce
qu'ele esquece seu amor.
CASA DE PEDRÃO
07
PEQUENA – (A entrada da casa) Ó de casa!
DULCE – Vá entrando, Pequena.
PEQUENA – (Entrando) Salve as águas.
DULCE – Salve.
PEQUENA – (Dando uma amigável palmada em Arruaça) ‘Tá ficando home, hein, Arruaça!
ARRUAÇA – ‘Tá ficando, não senhora. Já nasci home. E quer saber de uma coisa? Não gosto que rabo de saia
me chame de Arruaça. Meu nome é Domingos!
PEQUENA – Tá certo, galinho de briga. Cadê teu pai?
ARRUAÇA – Pra quê tu quer saber?
PEQUENA – Deus é mais! A gente nem pode ter boa educação que o povo malda logo!
DULCE – (Conciliadora) Liga não, Pequena. Esse menino é assim mesmo, tem mais ciúme do pai do que eu.
Pedrão está no bar de seu Cazuza. (Arruaça se retira em “sinal de protesto” e vai cuidar do gelo).
PEQUENA – Só queria saber da pescaria de ontem de noite.
DULCE – Deu farta.
PEQUENA – Arruaça vai dar um homem bonito! … quem diria que vi ele nascer?
DULCE – E tu se lembra? Tu era bem menina. Como foi o samba?
PEQUENA – Começou bem, como sempre.
DULCE – Teve briga de novo?
PEQUENA – Só ameaça. O povo da rede de Ilário do Rio vermelho ‘tava lá. Ficou só nos xingamentos,
provocação, essas coisa. A turma do deixa-disso agiu cedo, e tudo terminou bem.
DULCE – É sempre assim: vai tudo muito bem enquanto a cachaça não sobe pra cabeça.
PEQUENA – E o galego do restaurante, tá em dia com as conta?
DULCE – Tá sim. Seu Diogo é boa paga. É por isso que Pedrão vende o peixe direto. Intermediário é que
atrapalha. Toma um cafezinho, Pequena.
PEQUENA – (Aceita) Teu café é gostoso; tudo teu é bom assim? (Riem)
DULCE – Ô Pequena, quando é que tu vai falar com mãe Rosa?
PEQUENA – No dia que eu for eu lhe aviso. (Intencional) Tá com problema, Dulce? (A Iaô para na porta da
casa)
BOTECO
(Os homens jogam “pauzinhos”, mãos fechadas, apostas feitas. As mãos se abrem, contam)
SETE-MOLA – Ganho eu!
PEDRÃO – É Iemanjá, Oxum, Nanã ou Janaína que te ajuda no jogo, Sete-Mola?
REMENDEIRAS – (Cantam) Iara, Janaína,
Iemanjá, Nanã, Oxum
Das águas a rainha
com os poderes de Olorum.
CEIÇÃO – É verdade mesmo?
TONINHA – O que?
CEIÇÃO – Isso que o povo fala. Isso de vê a Mãe d’Água. Alguém já viu?
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TONINHA – Minha vó contava que a mãe dela contava a ela, que conheceu um que viu.
CEIÇÃO – Foi mesmo?
TONINHA – Pra que havera de mentir?
BOTECO
(O jogo continua)
PEDRÃO – (Depois de contar os pauzinhos) Assim não vale, Sete-Mola, você ganha todas.
SETE-MOLA – Meu santo é forte, rapaz!
PÉ-MOLHADO – É. Na hora da cachaça, do jogo e das grinfa!!!!
SETE-MOLA – Tu tá querendo dizer que sou filho de Exu? Respeito é bom e meu santo gosta. Brinque com
meu Ogum e depois não se queixe.
PÉ-MOLHADO – Tá certo, meu irmão. Tá na hora da bóia, vamo acabá com o jogo.
RAIMUNDÃO – Tá correndo da raia, Pé-Molhado?
PEDRÃO – Pede a Santa, rapaz (Vai apontando um por um). Tu dá um frasco de cheiro, tu dá uma caixa de pó
de arroz, tu dá um par de brinco e tu dá um espelho.
CAZUZA – Pere aí meu compadre, não me mete nisso não. Eu tô calado até agora!
PEDRÃO – Pois é. Aí ninguém perde, mas também ninguém ganha. (Pequena chega à porta do bar, ele a vê,
vai até ela com o copo na mão, oferece a ela enquanto fala; a Iaô está presente) É o que eu estou dizendo:
mulher bonita é comigo mesmo que se acerta, seja encantada ou de carne e osso. (Se afasta com Pequena)
DUZINHA – É, mas tem umas que são só de fogo! Vim buscar os home dos outros no bar.… essa não.
RAIMUNDÃO – (Referindo-se ao que Pedrão disse) Tenho pena dele. O pior vai ser é se o castigo vier pra
todos que nem aconteceu no Rio Vermelho.
DUZINHA – Fala isso não, seu Raimundão. Deus é mais. (Bate três vezes na madeira dos caixotes que formam
o bar; todos da cena batem também)
REMENDEIRAS
CEIÇÃO – O que foi?
TONINHA – O que?
CEIÇÃO – Que aconteceu no Rio Vermelho?
TONINHA – Tu não sabe não?
CEIÇÃO – Como havia de saber? Não cheguei aqui por nascimento, cheguei por estrada de poeira e sol.
TONINHA – Os antigos é que sabe. Mas eu vou lhe contar. Tim-tim-por-tim-tim. Como me contaram.
(Mudança de luz. Dramatizar a cena com dança, usando a Iaô como Iemanjá e os atores do elenco assumem os
personagens da lenda contada por Toninha)
TONINHA – Foi numa noite bonita, de mar calmo, e muita estrela.
CEIÇÃO – E tinha lua?
TONINHA – Não. Lua não tinha. E ninguém sabe dizer donde Ela apareceu. – Só sabem contar que, ‘tava ali:
parada na praia, com seu belo negrume, coberto de luz.
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TONINHA – Então, Bom Cabelo, mulato brigão, metido a valente, disse pra Ela a frase infeliz “Se tu é tão santa,
melhor que as outra, entra ali naquela Igreja, e vai pro altar.”
CEIÇÃO – Mas isso é blasfêmia.
TONINHA – De todos os dois lados.
CEIÇÃO – Diz logo, menina, o fim dessa estória.
TONINHA – Diz que ela parou, mirou todos eles, bem no fundo dos olhos. Ameaçou bem mansinho assim com
a mão (Gesto de “espere“). O dia chegava, devagarinho, mandando pro céu os primeiros rosados. Depois olhou
pro encontro do mar com o céu, e foi andando muito de leve, para dentro do mar. E nunca, nunca mais, o xaréu
apareceu, pras rede do povo, lá do Rio Vermelho (Tempo: cantam)
Pescador deve fugir
do canto de Iemanjá
e se vê sua beleza
nunca mais pode amar.
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MÃE ROSA – Como Deus quer, Oxalá permite, e as Águas deixa. Tome assento minha filha. (Dulce se senta.
Mãe Rosa se concentra. Benze os búzios com o copo depois de ter orado em murmúrio sobre o mesmo. Toma os
búzios na concha das mãos, sopra três vezes, invoca os orixás e os joga sobre a mesa. Observa-os). Cabeça
quente, minha filha? Por que? O curumim não já tá bom? (Dulce permanece em intenso silêncio. Mãe Rosa
recolhe os búzios e joga outra vez) Por que essa preocupação com Pedrão, hein? O que é que ele arranjou agora?
Rabo de saia ou as mesma baboseira de sempre?
DULCE – Pois é como eu digo a senhora, mãe: Pedrão é bom; bom pai de família, o que ganha leva pra casa. A
senhora sabe que eu lavo de ganho, porque gosto de ter o meu, e gosto do trabalho, mas pelo gosto dele eu nem
trabalhava. De vez em quando ele arranja uma mulher na praia, mas a senhora sabe, nada de sério, coisa do bicho
home, mesmo. Agora, mãe… ele tá cada vez pior. Só vive desafiando a santa. E eu tenho medo. Muito medo,
mãe. (Mãe Rosa entrega o bloco e o lápis a Dulce. Vai ditando o que lê nos búzios. Sons de atabaques. A Iaô
passeia em redor da casa dirigindo-se ao terminar o toque para as remendeiras)
REMENDEIRAS (Cantam)
Iemanjá bela rainha
mãe de todos orixá
quer seus filhos perto dela
e do pai grande Oxalá.
CEIÇÃO – (Olhando o pai que silenciosamente prepara uma escultura de madeira) Tenho tanta pena de pai, era
tão ativo.
TONINHA – Trabalhava de que?
CEIÇÃO – De aboio; no roçado. Trabalhadô bom, tava ali.
TONINHA – Ficou assim de repente, foi?
CEIÇÃO – Não. Foi aos tiquinho. Começou na retirada com a morte de mãe. Depois morreu o menor. Morreu
dormindo. Acho que foi de sede. A gente nem viu a hora. (Arruaça chega às rendeiras. Deita a cabeça no colo
de Ceição. Toninha olha pro mar tristemente)
SEVERINO – (Começa o seu canto sertanejo)
Quando eu vim de lá de cima
Do meu sertão, – vaqueiro
Paracata velha no pé – vaqueiro
Chapéu de coro na mão – ai, ai, ai, ai, – ê boi.
Vaqueiro que hora é essa
a maré já 'tá enchendo
seu gado esparramado – vaqueiro
que tá fazendo, ai, ai, ai, ai, Hei boi, hei boi! (Ele anda pelo palco como se vaquejasse, dando nome aos bois)
Hei Malhado, cabra da peste, onde é que tu vai? Pé de Pau, tu tá doido, bicho? Volta, Rabo Curto, fio de uma
égua! Tão cá gota? (Ceição se levanta e reconduz o pai para o lugar dele. Arruaça tenta quebrar a tensão
atrapalhando o serviço de Ceição depois que ela volta).
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CEIÇÃO – Para com isso, Domingos!
ARRUAÇA – É assim, é? Venho ficar com você e você inda reclama?
CEIÇÃO – Se veio fazer favor, pode ir. Não tava querendo brigar com Sete-Mola mais Pé-Molhado. Que mania
mais besta essa de valentão!
ARRUAÇA – Até você é? Todo mundo quer mandar em mim. Que merda!
TONINHA – Briga não. Aproveita o bem querer de vocês. Briga estraga. (Ceição e Arruaça se entreolham, ele
se aconchega no colo de Ceição. Vêm do lado oposto Pé-Molhado e Sete-Mola)
ARRUAÇA – Hei, onde é que ‘cês vão?
PÉ-MOLHADO – Bestá por aí.
SETE-MOLA – Contaro que tem um carro atolado na areia perto da estrada.Vamo ajudá.
ARRUAÇA – E tem mulher de biquíni?
PE MOLHADO – Diz que tem.
CEIÇÃO – Quer dizer, se não tivesse tu não ia, não era?
SETE-MOLA – Pronto!
PÉ-MOLHADO – Vai jogar areia é, Ceição?
CEIÇÃO – Não tô falando com você.
ARRUAÇA – Vamos, gente! (Para Conceição) Cabeça de camarão. (Beija o rosto dela rapidamente e saem os
três)
CEIÇÃO – Que é isso? Cabeça de camarão?
TONINHA – (Rindo) É que camarão só tem merda na cabeça!
CEIÇÃO – Descarado! Ele me paga!
BOTECO – (Dulce segura o papel que Mãe Rosa ditou. Cazuza e Duzinha despacham ela. A Iaô no fundo do
boteco)
MÃE ROSA – (Voz off) Um frasco de cheiro, uma garrafa de mel, um colarzinho, um prato branco virgem, um
metro de fita azul, um metro de fita rosa, um metro de fita branca. Colocar tudo em maré mansa, sem onda, em
lugar calmo.
DULCE – É só. As rosa eu tenho no quintal.
CAZUZA – Vai dar presente às água, minha comadre?
DULCE – Quem tem marido pescador, precisa cuidar das moças do mar.
DUZINHA – E as da terra?
DULCE – Dessas não tenho medo não, minha comadre. Pedrão pode andar por aí, mas sempre volta pra casa.
Mas as do mar…
CAZUZA – E a senhora acredita mesmo, comadre?
DUZINHA – Ô xente? Se não acreditasse tava comprando presente? Eu, hein!…
DULCE – E o senhor duvida?
CAZUZA – Sei não. Tenho visto coisa que me faz crer, e coisa que me faz duvidar. Depois, é tudo muito
atrapalhado. Eu fico mesmo com Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Conceição.
DULCE – É, o senhor não é pescador…
DUZINHA – Não é pescador, mas vive à custa dos pescador. Tu também precisa de bom tempo, de pescaria
farta. Tu fica blasfemando, que um dia Dona Iansã se dana e manda uma ventania da zorra que essa barraca sai
voando por aí.
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CAZUZA – (Batendo na madeira) Credo in cruz. Isola!
DUZINHA – (Gozadora) Ô xente, tu não disse que só acredita em Deus? Pra que é que tu tá isolando? Tá com
medo da dona dos raios, é? Quem já viu se ter medo do que não existe?
(Sai com Dulce do boteco, vão andando pela praia)
PRAIA
DUZINHA – (Continuando a conversa do boteco) Eu acho engraçado, minha comadre: esse povo diz que não
acredita na seita, mas vive tudo dentro das casa das mãe de santo; usa guia, dá caruru de Cosme, caruru de Santa
Bárbara, tá tudo no Rio Vermelho no dia do presente, veste branco toda sexta–feira!!! É cada uma.
(Conversando chegaram ao grupo de pescadores. Pequena está com eles)
RAIMUNDÃO – Tu vai pescá hoje, Pedrão?
PEDRÃO – Vô não. Vô só vê se algum ladrão mexeu nas marca do meu pesqueiro. (Intencional para Pequena.
Duzinha percebe) E depois vô lá nas pedras tirar umas pinaúnas.
ARRUAÇA – Deixa eu ir, pai.
PEDRÃO – Pra que? Outro dia eu lhe levo.
DULCE – Leva ele, Pedrão.
PEDRÃO – Não tira a minha ordem, mulher. Já falei que não.
ARRUAÇA – Tá certo. Vou pro baba. (Sai correndo – baba. Mesmo que pelada)
MÃE ROSA – (Que vem do outro lado da praia) Bom dia, povo! (Todos a cumprimentam com muito respeito)
RAIMUNDÃO – Calofé, Mãe Rosa.
MÃE ROSA – Calofé - ê-mim.
RAIMUNDÃO – Donde vem assim, tão cansada?
MÃE ROSA – Fui lá no Mercado Modelo. Fui buscar uns búzios da África que encomendei a Camafeu. Esses
caoris tão pela hora da morte. Cada vez mais caro. (Para Dulce) Já deu seu presente, Dulce?
DULCE – Acabei de comprar as coisas, agora, tava só esperando o dinheiro da roupa de D. Carmem.
MÃE ROSA – Já vou indo. Que D. Oxum fique com vocês.
RAIMUNDÃO – Que pressa é essa? Descansa mais um pouco!
MÃE ROSA – Posso não. Tenho obrigação dos outros pra fazer hoje, antes do sol dobrar. Axé! (Vai saindo
devagar e magestosa)
PEDRÃO – (Em direção ao mar) Cuida da casa, Dulce. Tô indo pro mar. Quem sabe eu vejo Ela. Será que
aparece de dia? Diz aí, Sete-Mola, pra ver se confere. (Mãe Rosa para sua caminhada)
REMENDEIRAS (Catam:) Ela tem cabelos verdes
e nos olhos luz de lua
dentes alvos de espuma
noite negra na pele nua.
(O grupo se entreolha amedrontado. A Iaô marca a sua presença)
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DULCE – Vamos simbora minha comadre. ‘Pere aí Mãe Rosa a gente leva a senhora até a segunda ponte. Té
logo gente. (Saem as duas em direção de Mãe Rosa. As três saem de cena. Dulce depois voltará para a casa.
Pequena a observa. Assim que ela sai, ela faz menção de sair)
RAIMUNDÃO – (Para Pequena) Tu não tem vergonha mesmo, não é, Pequena?
PEQUENA – Eu, hein? Por que essa agora, seu Raimundão?
PÉ-MOLHADO – Tu sabe muito bem que que é que se tá falando.
PEQUENA – Que é isso? Ciúme é?
SETE-MOLA – Só doido pra ter ciúme de uma mulher como você.
PÉ-MOLHADO – Onde já se viu se ter ciúme de uma mulher que não se dá o respeito?
PEQUENA – Tão me ofendendo! Por quê? Hein, Sete-Mola, por que não aceitei teus convites, nem os teus, Pé-
Molhado? Conheço a honradez de vocês.
RAIMUNDÃO – Qué que tú tá querendo com Pedrão?
PEQUENA – Quem encomendou esse sermão, foi Mãe Rosa?
SETE-MOLA – Ai de você no dia que Mãe Rosa soubê disso!
PEQUENA – Cala boca. Não se meta! Se falá outra vez eu conto pra tua mulher tuas proposta!
RAIMUNDÃO – Tou perguntando. Não mente, que te vi nascer. Que que tu tá querendo com Pedrão? Será que
tua sina é virar a cabeça dos home casado? Tu tá querendo tomar ele de D. Dulce?
PEQUENA – Tô não, Seu Raimundão. Ele é pai de filho. Eu juro que gosto de Dulce. Mas, ele me desprezou,
por causa dela passei a maior vergonha da minha vida. Namorou comigo e me largou pra casar com ela. (Vai se
enfurecendo aos poucos, agora tem a áurea da “sua dona de cabeça”, a bela guerreira Iansã) Eu só quero que
ele me peça pra voltar, só isso.
RAIMUNDÃO – Se tu não para com isso por bem, eu vou tomar providência!
PEQUENA – Tu nem parece que é Ogã de terreiro e entende das coisas. Tu não sabe que Pedrão é Xangô vivo?
E tu já viu um homem de Xangô que não tenha, pelo menos, duas mulheres brigando por ele? Mas, Xangô, meu
nego, é o homem de Iansã. Que venha tudo quanto é Obá e Oxum. Ela não é de Oxum? Que faça seus dengues.
Foi com aquela cara de santa que ela tomou ele de mim. Mas, sou guerreira e sei lutar. Cês sabem disso melhor
do que eu. Cês sabem que isso é briga antiga. Só que ninguém sabe quando começou. Já existia antes do meu
povo atravessar o mar, pra vim pra cá sê escravo. A briga era antes. Muito antes da gente nascer. Hê, pá–rrei,
Yansan minha mãe. (Ergue o braço como se bramisse uma espada e sai correndo ao encontro de Pedrão. Os
homens ficam parados, impotentes, diante de uma força muito maior que eles. Um tempo)
RAIMUNDÃO – Ô - dô - y - á. Senhora das Águas! Seu axé!
OS OUTROS – Axé.
(Vão em direção às remendeiras. Arruaça vem correndo balde de iscas na mão. Ao passar por Ceição lhe dá um
beijo rápido)
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CEIÇÃO – Deixa disso, Arruaça.
TONINHA – Tu reclama porque tem quem te beije.
ARRUAÇA – E isso aí, Toninha! ela fala de fome, de barriga cheia.
CEIÇÃO – Eu ainda tô com a estória da moça do carro atravessada na garganta!
ARRUAÇA – Linda! Com uma tanga menor que a folha de Eva. (Ceição quer replicar, ele não permite dando-
lhe um beijo na boca. Sai depois com Sete-Mola, Raimundão e Pé-Molhado)
SEVERINO – (Levantando-se) O mar filho da terra, por ela parido, tá mugindo como vaca brava. Que meu
Padim Padre Ciçro tenha compaixão de nós. E o moço guerreiro São Sebastião, venha em socorro de todos nós.
A Besta Marinha vai sair do fundo do mar e o seu bafo de fogo, seus cabelos de cobra vão cobrir o mundo e
todos os pecadores. Os pecadores do pecado da luxúria vão virar vermes inchados… vermes inchados… (Ceição
vai até ele para acalmá-lo. Ele vai se tranquilizando aos poucos, repetindo) vermes inchados… vermes
inchados. (A Iaô perto dele)
CASA DE PEDRÃO
(Dulce, muito concentrada, arruma o seu presente de Iemanjá enquanto canta):
DULCE – Kini-jé, Kinijé - Lôdô
É dImanjá-O
A-ko-dé lê cê
a rô mi rô.
É di man-qê-cê-
Ô - rô - mi - Ro
Ô Lê, Lê. Iemanjá-ô.
(Arruaça chega com Sete-Mola e Pé-Molhado com grande alegria. Dulce fala referindo-se às iscas que
Arruaça traz no balde) Bota isso lá fora, menino! Não deixa esse fedor de peixe podre dentro de casa. Era só o
que faltava. E não quero esse horror de homem aqui não! (Saem os dois pescadores em direção às remendeiras.)
Avé Maria, meu Pai Eterno, não se pode nem arrumar um presente em paz.
ARRUAÇA – Veio isca demais, vou aproveitar e pescar uns siris. (Um tempo) Mãe…
DULCE – O que é?
ARRUAÇA – A senhora gosta mesmo de Pequena? Eu não gosto dela, mãe.
DULCE – Deixa de falá besteira, Domingos, ela gosta tanto de você.
ARRUAÇA – Gosta não. Eu sei de quem ela gosta nessa casa. O povo tá falando.
DULCE – O povo não tem assunto, filho, então dá pra inventar coisa. Mulher bonita é mulher perseguida.
Pequena não é ruim, mas, ser bonita demais, nunca foi boa sina. E cala essa boca! Deixa eu fazer meus pedidos.
Não se deve arrumar um presente nesta falação.
REMENDEIRAS – (Os pescadores estão junto com elas limpando o material de pesca elas cantam)
– Senhora, mãe das Águas
Mãe rainha, deste mar
Recebe esta oferenda
Deixa o meu bem voltar.
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CEIÇÃO – Seu Raimundo, o senhor precisa dá uns conselhos a Toninha.
RAIMUNDÃO – Já ‘tô cansado de falá, mas ela não sai dessa tristeza.
CEIÇÃO – Também falo toda hora: se João era teu homem, era meu irmão. E eu nem conheci ele depois de
home; retirou menino ainda. Se parou por aqui, quando chegamo ele não pertencia mais a este mundo. Também
fiquei sozinha sem ele. Agora só tem eu prá cuidar de pai.
PÉ-MOLHADO – Cê sabe, Toninha, que sempre gostei de você. Tu é que nunca me quis.
TONINHA – Cê é um homem tão bom. Merece quem goste de você. Prá que te enganar?
PÉ-MOLHADO – A gente junta os trapo d’agente. João era meu amigo. Enquanto ele foi vivo escondi a minha
dor. Vem, Toninha, eu ajudo você a esquecê ele.
TONINHA – Não quero fazer você de remédio. Cê não merece isso. No dia que eu esquecê dele, eu lhe falo. Só
peço a Deus que tu ainda me queira… tu é tão bom.
SETE-MOLA – Todo mundo diz que tem sete mulher pra cada homem, mas eu acho que deve ter algum com
quatorze.
CEIÇÃO – Tu não é casado, peste? (Dulce vem andando em direção ao grupo. Eles percebem, avançam para
ela)
PÉ-MOLHADO – A gente ‘tava só esperando a senhora.
DULCE – É presente pequeno, mas precisa colocar em lugar calmo.
SETE- MOLA – Pode ser na lóca da sereia?
DULCE – Pode, só não pode em lugar de arrebentação de onda.
RAIMUNDÃO – Já sei. Mãe Rosa me falou.
DULCE – O senhor também vai, seu Raimundo?
RAIMUNDÃO – Não. Não carece. (Para os dois) Pega minha canoa, vai por aqui, breirando a costa, passa o
lugar donde tinha a Pedra dos Noivos, e segue. Bota na loca que tem logo depois. Lá tá um lago.
CEIÇÃO – Eu queria tanto ver colocar um presente.
SETE-MOLA – No dia dois de fevereiro eu te levo pro presente do Rio de Vermelho.
ARRUAÇA – Precisa não. Ela tem quem leve.
(Atabaques. Toque de Iemanjá. Dulce canta o kinijé enquanto tira o papel que envolve o presente e coloca as
mãos sob o prato. Antes de entregar aos pescadores saúda o mar. Os homens recebem o presente com respeito e
se dirigem para o mar. Dulce se encaminha para a sua casa sentando-se na soleira da porta olhando os homens
que se afastam no mar.)
BOTECO
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DUZINHA – E o senhor acha que vai adiantar? Minha comadre não sabe da missa a metade!
NAS PEDRAS
(Pedrão chega às pedras onde Pequena o espera)
PEDRÃO – (Ao vê-la) Qué que tu tá fazendo aqui?
PEQUENA – Tu não falou que era pra eu vim pra cá te esperar?
PEDRÃO – Falei nada.
PEQUENA – Falou sim. Não falou com a boca, mas falou com os olhos.
PEDRÃO – Vai embora, vai! (As palavras dele nada tem a ver com a verdade. Sua voz, olhos, ele todo é uma
suplica para que ela fique)
PEQUENA – (Vendo um arranhão no peito nu de Pedrão) O que foi isso?
PEDRÃO – Coisa à toa. Uma ponta de pedra. Quando chegar em casa Dulce...
PEQUENA – (Corta o que ele vai dizer com um beijo. Os pescadores que estão voltando da loca assistem o
beijo)
REMENDADEIRAS
(Cantam)
Xangô mora nas pedras
Chama Oxum para brincar
Iansã acende os raios
Pra Oxum amedrontar.
BOTECO
DUZINHA – (Vendo Pequena e Pedrão que passam) Agora a desavergonhada não escolhe nem hora. Nunca
esperei isso de meu compadre. Com a mulher que ele tem, fazê uma coisa dessa… E em plena luz do dia.
CAZUZA – Qué que você queria que ele fizesse? Que chutasse um prato desse, era?
DUZINHA – Ai meu Deus… é tudo umas criancinhas! Só são macho pra comer as mulher; mas na hora de saber
dizer “não”, é tudo umas femeazinhas, coitadinhos. Eva falou, tá falado. Desde que mundo é mundo que as
mulher vem carregando as fraquezas dessa cambada! Tá errado os dois! Ai se fosse comigo ia retalhar de
navalha a cara dos dois. Dela e principalmente a dele!
CAZUZA – Tô sabendo, valentona!
DUZINHA – É isso mesmo. – Ou medo ou respeito. Quem tem compromisso maior com comadre Dulce é ele:
Pedrão que é o marido dela e pai do filho dela! O mais errado é ele. E Pequena também. Devia respeitar a amiga
e a Mãe de Santo das duas. Não quero nem pensar, quando Mãe Rosa souber disso. Esse negócio de explicar
patifaria com o nome de D. Iansã não pode tá certo.
CAZUZA – E o que é que você tem com isso?
DUZINHA – Muita coisa! Primeiro: D. Dulce é minha comadre e mulher de respeito tá’li mesmo! Segundo: sou
filha da mesma casa e tenho que tomar providência antes que alguma coisa de muito ruim aconteça. ‘Tá na boca
do povo, meu santo. Outro dia eu joguei um verde em Mãe Rosa. (A cena para como uma fotografia)
180
18
REMENDEIRAS
CEIÇÃO – Eu acho que D. Dulce ‘tá certa. Disputar home é coisa feia.
TONINHA – Fico com pena dela.
CEIÇÃO – Só tenho medo da reação de Domingos.
TONINHA – E será que ele sabe?
CEIÇÃO – É quem mais sabe. Ele não suporta Pequena.
TONINHA – D. Dulce também sabe. Tenho certeza.
CEIÇÃO – E fica nessa calma?
TONINHA – É isso mesmo. Mulher de Oxum é assim. Sofre calada. Só faz chorar.
NA PRAIA
SEVERINO – O monstro do mar, com suas asas de nuvem de fogo vai secar o mundo. Tudo vai ser uma seca só.
Nem dos peitos das mulher vai correr leite para a boca de velho das criancinhas desdentadas. Cordeiro de Deus,
tende piedade de nós. Meu Padim padre Ciçro, vem consolar teu povo. (Volta à sua mansidão e ao seu triste
cantarolar sertanejo)
BOTECO
(Volta a cena anterior)
DUZINHA – E o castigo já ‘tá começando. Meu compadre Pedrão só vive agora dizendo besteira desafiando D.
Iemanjá. Ele é Xangô e Xangô é filho d’Ela.
CAZUZA – E daí, o que é que tem isso?
181
19
DUZINHA – (Pesadamente) Quando duas mulheres briga por causa de um homem, a mãe se encarrega de
desviar das duas. Termina ela levando a melhor: fica com ele.
CASA DE PEDRÃO
(Luz geral de lua cheia. A família está jantando juntamente com Pequena)
PEDRÃO – Já preparou tudo, Domingos?
ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. Iscas, anzóis, as linhas enroladas certo. Examinei a poita. Tudo seguro.
PEQUENA – O tempo tá bom, Pedrão?
PEDRÃO – Por que? É teu marido que vai pro mar?
DULCE – Que é isso, menino? Por que responde assim? Eu juro que se fosse Pequena não cruzava mais essa
porta.
PEDRÃO – Duvido que ela faça isso…
DULCE – Deus é mais! Só vem aqui pra ser maltratada por vocês… Que coisa!
PEQUENA – Liga não, Dulce. Eu só venho aqui em consideração a você. A gente estudou na mesma escola. Tu
é a única pessoa que tem aqui da minha cidade. Você e seu Raimundão. Deixa esses brutos. Home é assim
mesmo.
ARRUAÇA – É. É assim, e quem não gostar que dê seu jeito, que o meu já tá dado.
DULCE – Menino! Cês me fazem passar cada vergonha. (Arruaça se retira)
PEDRÃO – (Apanhando seus apetrechos de pesca) Bem, já vou, gente. (Beija Dulce com muito amor, Pequena
assiste visivelmente enciumada e derruba qualquer coisa, cortando o beijo)
PEQUENA – Desculpe, gente. (Por vingança) Será que é hoje que tu vai ver, Pedrão?
DULCE– (Apavorada) Não diz isso, Pequena. Pelo amor de Deus, não diz isso!
PEDRÃO – Por mim já tinha visto. Hoje é noite de lua cheia, e conforme o dizer do povo é tempo d’ Ela andar
se exibindo por aí.
REMENDEIRAS
(Cantam)
Se no céu tem lua cheia
A sereia vem cantar
Lua faz espelho d'água
Pra rainha se mirar!
CASA DE PEDRÃO
(Todos se ligaram ao canto. Há uma tensão geral)
PEDRÃO – É isso mesmo. Taí, juro que queria ver, se é que Ela existe!
DULCE – (Indo aflita até o altar de Iemanjá) Ô minha mãe Iemanjá, perdoa esse pai de família. Tira esses maus
pensamentos da cabeça dele, minha mãe!
PEDRÃO – E é mau pensamento querer vê tanta beleza? (Dulce se joga nos braços dele como se tentasse
prendê-lo para sempre. Pequena se retira)
REMENDElRAS
(Cantam)
E manda as sereiazinhas
que nas pedras tão brincando
ir buscar as suas prendas
que nas águas tão boiando.
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20
PRAIA – (Ceição se levanta e leva Severino para o interior. Ele fala enquanto sai)
SEVERINO – E o sol vai deixar de brilhar. E haverá somente luz mansa de lua clareando o mundo de Deus. Vai
nascer fulor em todos os lugar da terra e margarida branca em cima do mar. As águas dos rios não vão secar
nunca mais... nunca mais...
BOTECO
PÉ-MOLHADO – Esse seu Severino é um artista. Diz cada coisa bonita que chega arrepiar.
SETE-MOLA – Então toma mais uma pra arrepiar de vez!
PÉ-MOLHADO – Pedrão foi mesmo pro mar?
CAZUZA – Foi sim. Por que?
PÉ-MOLHADO – Nada... é que hoje é noite de lua cheia.
DUZINHA – (Chegando ao boteco) A noite ‘tá que é um dia. Encontrei meu compadre.
SETE-MOLA – Ele ‘tá precisando de ajuda prá botar a canoa no mar, D. Duzinha?
DUZINHA – ‘Tá não. Canoa já ‘tá no mar. É só levantar a poita. Ele tá precisando de ajuda é em outras coisas.
SETE-MOLA – A senhora encontrou Pequena?
DUZINHA – Encontrei não. Mas se topasse ia até dar uns “conselhinhos” a ela; já basta o que eu engoli quando
encontrei ele.
CAZUZA – Já te falei pra não se meter. Briga de marido e mulher, ninguém deve meter a colher.
DUZINHA– Ditado por ditado, eu também tenho o meu: Quem vê as barba do vizinho arder, põe as suas de
molho. Pensa que eu nunca vi teus olhos de cabra morta pro lado dela, não?
CAZUZA – ‘Tá ficando maluca, mulher?
DUZINHA – Vou ficá, doida, maluca de pedra, no dia que tu arrastá sua asa pro lado dela. Cê sabe que não
tenho medo de homem nenhum. E quanto a mulher, Tereza ‘tá lá, com a cara marcada até hoje. Tu pensa que me
esqueci?
PÉ–MOLHADO – Acho bom mudar de assunto.
DUZINHA – Ai gente! Quando eu olho pra minha comadre Dulce com aquela cara inocente me dá uma revolta!
Ô Pé-Molhado, não era melhor a gente falá com Mãe Rosa?
PÉ–MOLHADO – Sabe, D. Duzinha, tem gente que pode fazer o seu destino, mas tem outros que já nasce com o
destino traçado. (A Iaô marca presença)
PRAIA
21
PEDRÃO – Tenho medo que você pegue gosto. Quero te ver formado, filho. Quer saber de uma coisa? No dia
que te ver formado, pode dizer que teu pai é um home feliz.
RAIMUNDÃO – (Vem do mar) Oi, Pedrão! ‘Tá indo agora?
PEDRÃO– E você, Raimundão, por que voltou? O mar não tá bom?
RAIMUNDÃO – Fui só examiná o pesqueiro. Hoje não é noite de boa pesca. Tu sabe.
PEDRÃO – Sempre tem algum esfomeado no meio desse marzão.
RAIMUNDÃO – (Olhando para o mar) É… não gosto quando o mundo vira. A noite virou dia, o mar virou
lago. Tá um silêncio do tamanho do mundo. Tudo ao contrário. Isso é noite de encantado.
PEDRÃO – Medo, Raimundão?
RAIMUNDÃO – Sei lá… dá um aperto no coração. Pode dizer que é medo. Tem nada não. E quer saber de uma
coisa, Pedrão? Acho melhor tu não ir. Conselho de mais velho. (Pedrão acabou de fumar. Dá um tapa amigável
nas costas de Raimundão e do filho e vai para o mar. Arruaça vai em direção de Ceição. Raimundão se
encaminha para a casa de Mãe Rosa. Dulce em casa passa roupa. Enquanto dobram as redes as
REMENDEIRAS Cantam)
Pescador, meu bem querer
fuja do rastro da lua
é caminho da cantiga
qu’ ela canta linda e nua.
com os seus cabelos verdes
e os olhos de luar
riso claro de espuma
e feitiço no cantar.
(Dulce acaba de passar a roupa, faz uma prece a Iemanjá e vai sentar-se na soleira da porta. Pequena está só no
outro lado do palco também olhando fixamente para o mar. No boteco começa a se formar um ambiente de
romance. “Se a noite é de lua, a vontade é contar mentira, se espreguiçar” canta Caymmi em João Valentão;
tentar conseguir este clima. Um longínquo toque de berimbau parece que os embala. A Iaô, que durante todo
tempo rondou as cenas como um presságio, vai saindo a medida em que um estranho foco de luz muito azul e o
canto da sereia mixado com o ruído do mar vão se tornando cada vez mais nítidos. Arruaça deixa Ceição e corre
para junto da mãe; abraçam-se como se unidos pudessem constituir uma grande força capaz de salvar Pedrão.
No rosto de todos a perplexidade diante do inexplicável. As batidas das ondas do mar vão se ritmando
estranhamente até se tornarem som de atabaques no toque de Iemanjá. luz na
(Sentada com toda a sua imponência de mãe de santo, Mãe Rosa está vestida de branco, tendo o seu Ogã
Raimundão de pé, ao seu lado. A Iaô agora vestida de filha de Iemanjá bate cabeça aos pés de Mãe Rosa e depois
aos pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a sua dança ágil e graciosa. Dança por todo o palco onde estão
prostrados. A luz vai entrando em resistência até restar apenas um foco que acompanha a dança de Iemanjá.
Black rápido. A luz volta em resistência. Amanhecer.)
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PRAIA
(As remendeiras voltam ao seu trabalho. Arruaça preocupado espera o pai na soleira da porta. Dulce prepara o
café. Mãe Rosa está prostrada no chão diante do peji, Raimundão sentado ao seu lado)
CEIÇÃO – Cê viu, Toninha, a lua desta noite?
TONINHA – A lua eu vi, e o luar também.
CEIÇÃO – E cê ouviu?
TONINHA – Escutá, escutei; mas não sei o que foi.
CEIÇÃO – Foi onda na praia.
TONINHA – Não. Foi alma de afogado.
CEIÇÃO – Foi chorinho de criança.
TONINHA – Foi vento no meu cabelo.
CEIÇÃO – Foi viola esquecida na praia que a palha do coqueiro tocou.
TONINHA – Foi canto de namorada chorando sozinha.
CEIÇÃO – Foi água escorrendo em pedra limosa.
TONINHA – Foi lágrima descendo de olhos de amor.
CEIÇÃO – Foi cantiga de moça esperando o amado. (Um tempo. Olham o mar e cantam seu novo canto)
Eu bem disse a meu bem – serenô
que não fosse pro mar – serená
ele foi não voltou – serenô
que m’importa-me – lá .... serenô, serená.
REMENDEIRAS
PRAIA
(Pedrão vem vindo. Dulce rabisca a areia com um graveto, as remendeiras a observam. Cantam)
REMENDEIRAS
Escrevi na arreia – serenô
O nome dele a brincar – serená
Iemanjá com ciúme – serenô
Mandou onda pr’apagar– serenô– serená– serenô– serená.
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23
(Durante o canto Pedrão chegou às pedras. Pequena tenta ajudá-lo a subir. Ele nem a vê. Surge a figura da Iaô,
Pedrão é outro homem. Toda a sua alegria de viver ficou no mar. Pequena não se conforma, anda frente a
frente com ele. Os pescadores chegam ao bar e tudo assistem)
REMENDEIRAS
(Cantam)
Eu bem disse ao bem – serenô
que não fosse pro mar – serená
ele foi , não voltou – serenô
que m’ importa-me–lá – sereno – serená – sereno – serená.
(Pedrão passa pelo boteco “Flor das ondas” com Pequena andando frente a frente com ele. Todos observam)
BOTECO
DUZINHA – Olha só pr'aquilo, Cazuza!
CAZUNA – Duzinha, uma hora dessa eu ainda vou tê uma briga feia com você... É da sua conta, mulher? Vá
cuidá da sua vida!
DUZINHA – Meu compadre nem dá bola pra ela, e a sirigaita se oferecendo daquele jeito!!! Credo!
CAZUZA – Toma cuidado, Duzinha! Peixe morre pela boca!
PÉ-MOLHADO – (Percebendo que Pedrão está estranho) Viu alma do outro mundo, companheiro? (Pedrão
não ouve)
SETE-MOLA – Pedrão ‘tá esquesito...
RAIMUNDÃO – Falei pra ele não ir. Foi de teimoso. (A Iaô ronda o boteco)
CASA DE PEDRÃO
(Pedrão entra e se senta pesadamente em um tamborete)
ARRUAÇA – Bença, pai.
DULCE – Abençoa teu filho, home de Deus. (Ele olha para tudo como se visse pela primeira vez,
completamente ausente)
ARRUAÇA – (Chateado pois o pai nem o abençoou) Vou no seu Cazuza; quer alguma coisa, mãe?
DULCE – Precisa nada não. (Arruaça sai. Dulce apreensiva serve café a Pedrão) Toma o café, Pedrão. (Ele
bebe aos goles, automaticamente. Pequena chega)
PEQUENA – Dá licença?
DULCE – A casa é sua, Pequena, entre.
PEQUENA – Salve as águas.
DULCE – Salve. Aceita um cafezinho?
PEQUENA – Um golinho só. (Pra Perdão) Peixe não comeu essa noite? (Ele olha para ela completamente
ausente. Acende um cigarro e vai sentar-se à soleira da porta, olhos fixos no mar. A Iaô perto dele)
REMENDEIRAS
(Cantam)
Onde está, onde está – serenô
este meu pensamento – serená
tua beleza levou tudo – serenô
não te esqueço um só momento sereno – serená – sereno – serená.
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24
BOTECO
CAZUZA – (Relacionado a Pedrão) Meu compadre não tá nada bem. Chegou do mar e nem veio tomá uma
(Para Arruaça que chegou) O que é que teu pai tem?
ARRUAÇA – Sei não, meu padrinho. Chegou de calundu. Me dá um anzol.
DUZINHA – Pequena tá lá, não ‘tá?
ARRUAÇA – Quando eu saí não tava não. (Para Cazuza) Me dá meu troco.
SETE-MOLA – Vou chamá ele.
RAIMUNDÃO – Deixa o home em paz, gente. (Arruaça recebe o troco e sai)
SEVERINO – (Que desde o início está sentado no seu lugar) Meu padim padre Cícero falou e os raio do sol
escreveu com letra de fogo nos lajedo dos monte: Só depois que as trovoada limpá os céu do turvo das nuvem é
que a paz das sombras dos pau d’arco cheirando a jasmim cambraia vai cobrir toda a terra e todo o mar. (Para e
fita o mar. Grita subitamente cheio de alegria) Olha a canoa de João! (Ceição vai até ele e o senta. Toninha
reage dolorosamente.)
REMENDEIRAS
CASA DE PEDRÃO
PEQUENA – (Ajudando Dulce a arrumar uma trouxa de roupa) Que é que há com Pedrão, hein, Dulce?
DULCE – Sei lá, Pedrão é assim mesmo. Deve de ‘tá mal satisfeito porque não tem pescado.
PEQUENA – Ô xente! Mas todo mundo sabe que noite de lua não é boa de peixe.
DULCE – É coisa de home. Um dia ‘tá pelo pé, outro pela cabeça. A gente nunca sabe. (Fita os olhos no mar. A
Iaô surge no fundo da casa)
REMENDEIRAS
(Cantam)
– Mesmo perto de mim – serenô
o seu pensamento sai – serená
só queria saber – serená
pra que mundo qu'ele vai – sereno – serená – sereno – serená.
BOTECO
(Pedrão sentado com os amigos jogando pauzinho. Apostas feitas. Ele conserva seu ar distante. A Iaô atrás
dele)
SETE-MOLA – Fala Pedrão! é a tua vez.
PEDRÃO – (Despertando) Hein?
PÉ-MOLHADO – Fala, homem. Tá sonhando acordado?
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PEDRÃO – (Desinteressado) Cinco.
RAIMUNDÃO – Que é que te aconteceu Pedrão? Tem mais de 15 dias que tu ‘tá assim.
DUZINHA – Consciência doendo, meu compadre?
PEDRÃO – Tem nada doendo não, minha comadre. Acho mesmo que minha alegria só tá no mar.
CAZUZA – Mais uma rodada?
PEDRÃO – Pode botá. Eu pago, mas não quero.
REMENDEIRAS
(Cantam)
– Você levou minh’alegria – serenô
você levou o meu cantar – serená
que será de mim agora – serenô
se nem posso te mirar? – serenô–serená – sereno – serená.
PEDRAS
(Pedrão sozinho, fita a mar. Pequena chega sem que ele perceba)
PEQUENA – Pedrão…
PEDRÃO – (Olha para ela, vazio) Vai embora, vai.
PEQUENA – O que foi, Pedrão. Diz.
PEDRÃO – Me deixa só.
PEQUENA – Tá bem. Vou te deixá só. Mas fala, Pedrão. Diz o que é que cê tem.
PEDRÃO – Me deixa em paz!
PEQUENA – Eu não te quero mais não, Pedrão. Eu tava era com orgulho. Pensei muito, fui falá com Mãe Rosa
e ela tirou você do meu coração. Mas Dulce? Ela só faz chorar. Nem pra Arruaça tu tá ligando. Fala Pedrão. Diz.
Quem é ela? (A Iaô atrás dela. Pequena se vira e se defronta com ela. Pequena foge)
REMENDEIRAS
(Cantam enquanto Pequena e a Iaô se defrontam)
Salve Nanã, Mãe Oxum – serenô
salve mãe Iemanjá – serená
dona de todas as águas – serenô
Salve a rainha de Aiocá – serenô – serená – serenô – serená.
(Arruaça se despede de Ceição vai saindo do grupo)
TONINHA – Tu não vai na cidade hoje, Arruaça? (Ele não responde. Ela fala pra Ceição) Cê se incomoda,
Ceição, se eu for com ele?
CEIÇÃO – Por que havia de me incomodar?
ARRUAÇA – Só que eu não vou mais.
TONINHA – Cê não ia se matricular hoje?
ARRUAÇA – (Revolta contida) Eu ia, mas pai não deu o dinheiro. Pedi a ele e ele nem ligou. Mãe recebe hoje.
Amanhã eu vou. Serve?
CASA DE PEDRÃO
(Duzinha e Dulce conversam enquanto Dulce passa roupa)
DUZINHA – Isso é coisa de mulhé, minha comadre.
DULCE – Né não…
DUZINHA – Cê confia demais. Deixá aquela nigrinha entrá na sua casa. Na minha ela não entrava. Nem morta!
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DULCE – Antes fosse, minha comadre, antes fosse. Eu não quero nem pensar. Tô com medo. Ô meu Deus, ó
minha mãe Oxum, fazei que seja mentira o que eu tô pensando!
DUZINHA – Tá pensando o que, minha comadre? Fale. (Desconfiando) Não vai me dizer que… (Não tem
coragem de terminar a frase)
DULCE – Tô pensando sim, minha comadre. Não queria pensar não, mas… aqui dentro eu sei que é. Ele
desafiou tanto! Acho que Ela castigou. E se for verdade, minha comadre, mais cedo ou mais tarde você sabe o
que acontece. Então, o que vai ser de mim, do meu filho? (Tempo) Ele agora só quer ir pro mar…
DUZINHA – (Numa tentativa de consolo) Mas ele sempre foi pro mar. Não é pescador?
DULCE – Mas não vai pescar. Não tem hora nem dia. Vai sem anzol, sem rede, sem isca, sem nada. Não
respeita tempo nem vento.
DUZINHA – Já foi falá com Mãe Rosa?
REMENDEIRAS
(Cantam)
Tua voz me arrastou – serenô
na tua estrada de lua– serená
onde está teu caminho – serenô
onde te escondes negra e nua– serenô– serená– sereno.
BOTECO
CAZUZA – Meu compadre mudou muito. Anda com ar de doido.
RAIMUNDÃO – Eu avisei. Tudo começou na lua cheia do mês passado. Falei. Disse bem assim: “Isso é noite
de encantado. Acho melhor tu não ir”. Ele nem ligou.
CAZUZA – Será gente?
SETE-MOLA – Eu respeito muito essas coisa. Sou da seita. Mas não acredito que Ela apareça.
PÉ-MOLHADO – Cuidado, Sete-Mola. Não fala demais. Se mira no espelho dos outro.
CAZUZA – Até pra cachaça ele perdeu o gosto.
REMENDEIRAS
TONINHA –Tu não queria saber se tinha alguém que viu?
CEIÇÃO – Perguntei, mas não desejei.
TONINHA – Custa de acontecê, mas acontece. Só que eu nunca havera de pensar que fosse seu Pedrão o
escolhido.
CEIÇÃO – Verdade?
TONINHA – Sei lá. Eu acho que lá dentro eu tinha certeza que mais dia, menos dia…
CEIÇÃO – Por que?
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CASA DE MÃE ROSA
MÃE ROSA – (Continuando uma conversa com Raimundão) É isso mesmo, Raimundão:
– Ela é a esposa de Oxalá. Mãe de todos os Orixás. Dos filhos dela tem três muito forte e muito queridos: Ogum,
Oxóssi e Xangô. Todo pescador deve cuidar muito bem da dona das águas, principalmente se for filho de Xangô.
Pode dá choque na natureza – Raio e Mar.
RAIMUNDÃO – Qual é a mãe que gosta que filho fique desafiando ela?
REMENDEIRAS
(Numa brincadeira enfeitando a Iaô com flores, algas, argaços etc)
CEIÇÃO – Ouvi o povo dizer que o castelo dela é lindo.
TONINHA – Todo de pérolas. Ela é a rainha. E os pescadores mais bonitos que ela escolheu fazem o cortejo
dela, junto com as sereiazinhas. Ela monta numa carruagem de madrepérola e coral puxada por 12 cavalos
marinhos e sai passeando pelo fundo do mar.
CEIÇÃO – E tem flores?
TONINHA – De todas as cores.
CEIÇÃO – E tem árvores.
TONINHA – Tem. De folhas vermelhas como os flamboyants.
PEDRAS
(Som de puxada de rede. Arruaça sozinho fita o mar. Chegam Pé-Molhado e Sete-Mola)
PÉ-MOLHADO – Vamos Arruaça. A rede de Lindolfo ‘tá chegando. Vamos ajudá na puxada. De noite vamos
pescá camarão. (Arruaça não responde)
SETE-MOLA – (Um tanto embaraçado) Será mesmo que teu pai viu a Mãe D’água?
ARRUAÇA – Quebro a cara do primeiro que vier com essa conversa. Ele não viu nada nem ninguém. (Contendo
o choro) Ele só anda triste porque não tem dado sorte na pescaria. Isso pode acontecer a qualquer um, não pode?
Só… só… que ele parece que não enxerga mais a gente, nem eu, nem mãe.
PÉ-MOLHADO – Chora, amigo. Não tenha vergonha não. As vez um homem precisa chorar.
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MÃE ROSA – (Disfarçando) Nada não. Homem é assim mesmo. Escute, ‘cê chama todas as mulheres da praia e
os pescadores também e pede a todos pra trazê rosa, palma, lírio, cravo, margarida, angélica, tudo que for flor, mas
só serve branca. E, não esquece de tirá os espinho das rosa. Numa noite que Pedrão tiver no mar, tu enche a canoa
do Pé-Molhado que é do tamanho da teu marido. Enche com todas as flor que tu puder juntar. Raimundão leva a
canoa, que só ele sabe onde arriar. No outro dia, bem cedinho tu vai à missa e pede a Deus e à Dona das Água pra
trazer teu homem de volta pra você e pra teu filho. Vai. E muita fé em Deus, minha filha. (Dulce sai) É… vamos
vê se dá jeito!
RAIMUNDÃO – Será que adianta?
MÃE-ROSA – Isso é mistério. Ninguém pode saber.
PRAIA
SEVERINO – O Santo moço guerreiro são Sebastião vai aparecer no meio do mar vestido no seu manto azul e
prata, montado em seu cavalo branco, comandando o cordão azul. E vai atravessar o mar, pisar na areia branca, ir
até o sertão e expulsar a seca moura da Hungria e encher a caatinga do mesmo verde azul dessas ondas do mar.
(Black rápido. Voltando luz de lua cheia. A Iaô está sentada nas pedras. No centro do palco, Mãe Rosa, Dulce e
Duzinha estão diante de um grande cesto já com muitas flores alvas. Severino sentado na sua pedra continua
modelando a sua escultura. O samba de roda está formado e à medida que os personagens são chamados vão
colocando seu ramo de flores alvas no cesto. O clima é de alegria)
Sete-Mola veio?
Não veio não.
Por que não veio?
Não veio não.
Pequena veio?
Não veio não
Por que não veio?
Não veio não.
Pé-Molhado veio?
Não veio não.
Por que não veio?
Não veio não.
(Assim por diante serão chamados todos os personagens. Arruaça não virá sambando. Virá sério e colocará as
suas flores ficando ao lado da mãe. A Iaô não será chamada. O samba cresce em ritmo de alegria até a
chamada de Pedrão que não vem. Todos fitam o mar e o samba vai perdendo o ritmo quente e a letra sofre
alterações)
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Pedrão veio?
Não veio não.
Por que não veio
Não veio não.
Cadê Pedrão?
Não ‘ta'quí não.
Por que não veio?
eu não sei não.
Cadê Pedrão?
Não veio não.
Pedrão não veio
Cadê Pedrão?
(O canto caiu em surdina. Ao ser enunciado o nome de Pedrão, Dulce se levanta e Arruaça se agarra a ela. A
Iaô bela e misteriosa sorri. Mãe Rosa olha fixamente para ela com a compreensão e a digna aceitação negra do
inevitável. Ao terminar o canto as mulheres rezam em coro)
MULHERES – Ô bela Iemanjá. rainha de Aiocá
Mãe dos Cinco Rios, e de todos os Orixás!
Ó grande Nanã das águas profundas
Ó Janaina das águas calmas
DULCE – Ó minha doce Mãe Oxum–rainha do dengue e da beleza, mulher como ninguém, dona das águas
doces, das cachoeiras e das cascatas,
MÃE-ROSA – Lavai, senhoras nossas, com a força de vossas águas
MULHERES – Seja do mar ou dos rios
dos lagos ou das cachoeiras
mansas ou revoltosas
das profundas ou das beiras rasas,
DULCE – Lavai, Senhora, aquele atingido
MÃE-ROSA – Trazei de volta, senhoras
DULCE – Trazei de volta meu homem, pai do meu filho querido.
MULHERES – Trazei de volta, senhoras
seu pensamento distante
seu olhar perdido
seu coração vazio.
MÃE-ROSA – Trazei de volta senhoras
MULHERES – Sua alegria naufragada
seu sorriso que se foi
seu carinho, seu calor.
30
REMENDEIRAS
CEIÇÃO – Que noite triste!
TONINHA – E tinha lua.
CEIÇÃO – Nasceu enorme chorando luz no mar escuro. E os pingos de luz se espalhou no mar e virou claridade.
TONINHA – A estrela de brilho grande, foi maior que já vi. (Chega Pequena, olha com receio para a Iaô. Do
bar Duzinha se encaminha para as remendeiras.)
DUZINHA – Cês souberam de alguma coisa?
PEQUENA – (Aproxima-se) Do que?
DUZINHA – Tu não tem remorso não?
PEQUENA – (Muito sofrida) Faz isso não, D. Duzinha. Faz isso comigo não.
PRAIA
SEVERINO – A lua ilumina a noite, a lua clareia o mar. A caatinga fica escura do outro lado do mundo. A luz
das flechas que rasgam o corpo do Santo Donzelo São Sebastião é a estrela de luz na escuridão da noite do sertão
do meu Padim. É quando o sol, mais que tudo, vai cegar aquele que olhar a sua luz. (Mãe Rosa vem vindo. Ouve-
se os sons do sino da pequena igreja)
DUZINHA – (Para Mãe Rosa) A missa acabou. Minha comadre Dulce vem por aí. (Súbito todas olham para o
mar, os homens trazem o corpo de Pedrão coberto pelas flores alvas. Eles cantam o “Sequecê”. Dulce e Arruaça
surgem do fundo do palco e se encaminham lentamente para a boca da cena. O corpo de Pedrão coberto pelas
flores alvas é depositado aos pés de Dulce e de Arruaça. A luz toma um tom estranho. O cortejo fúnebre se forma
puxado por Severino; sua escultura está pronta: uma cruz que ele ergue agora. O cortejo sai lentamente. Foco de
luz na figura da Iaô reclinada nas pedras)
FIM.
Título original – A Moça dos Cabelos Verdes. Encenada em 1973 – 1a.Vez no Centro Integrado de Educação
Anísio Teixeira – 1
Em 1975 – Foi encenada no Teatro do SENAC – Produção do SESC– Ambas as produções tiveram a direção da
autora.
193
4.3.2 O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos Deus e das crianças
No nascer do Menino Deus, todos nós procuramos reencontrar a criança que existe
em todos nós o que [sic], infelizmente, a todo instante nos esquecemos dela. Nossa
infância é uma infância, antes de mais nada, de criança brasileira, dentro da nossa
realidade cultural, com as nossas cantigas das velhas avós e os presépios encantados
cada vez mais substituídos por pinheiros importados que para nós crianças
nordestinas, nunca foi árvore de quintal de ninguém (CADA DIA, 1977).
O projeto converge com a tônica da obra de Jurema Penna: ler, interpretar e valorizar as
expressões da cultura popular baiana e brasileira, preteridas pelas tendências de importação de
valores. Jurema Penna defende seu projeto de reinventar a festa de Natal a partir do referencial
cultural nordestino, recortando a realidade que lhe interessa representar no seu texto. A
reiteração de marcadores na primeira pessoa do plural como “nós” e “nossa” indica um sujeito
que se apresenta como porta-voz de um grupo social que, reflete acerca das questões de seu
tempo, identifica os problemas e oferece caminhos para as respostas. A fim de desconstruir uma
comemoração natalina arraigada nas culturas norte-americana e europeia, que, conforme a
dramaturga, estava cada vez mais influente no Natal das famílias brasileiras, Jurema Penna
apropria-se dos bonecos do Mestre Vitalino.
No enredo, os bonecos de barro ganham vida na noite de Natal e decidem-se pela
construção de um presépio em louvor ao menino Jesus. O ambiente da peça é repleto de
elementos da cultura nordestina, como a música da zabumba e a linguagem poética do cordel.
A peça foi celebrada com três importantes prêmios: Troféu Martim Gonçalves – Conferido pela
TV Aratu: Melhor Figurino; Troféu Martim Gonçalves – Prêmio Especial do Júri pelo trabalho
de pesquisa; Melhor Espetáculo Infantil – Serviço Nacional de Teatro. Além desses, foi
premiada com a publicação pelo Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria Municipal
de Educação e Cultura da Prefeitura da Cidade do Salvador, em 1978.
194
vulnerabilidade de seu suporte, deveria ser preservado. Esse dado pode indicar a associação
entre os acervos que se alternavam na guarda desses testemunhos. No entanto, pode também
denunciar a fragilidade desses bancos de textos, que não se sustentavam pela falta de condições
de sua manutenção.
T77 é ainda acompanhado do documento de censura da Superintendência Regional da
Bahia (SR/BA) e possui carimbos e intervenções manuscritas realizados em momentos
diferentes. A primeira camada textual, fotocópia do documento original, traz um ofício de
solicitação de censura assinado por José Augusto Burity, diretor do teatro Castro Alves, datado
de 06 de dezembro de 1978, em papel timbrado da Fundação Cultural do Estado da Bahia. O
documento recebeu o carimbo da SR/BA, assinado por S. E. de S., em 15 de dezembro de 1978,
liberando-o. Traz, ainda, o carimbo da SBAT antes da reprodução, com uma rubrica diferente
daquelas do script.
Como terceira camada textual, temos o carimbo FCEBA e a indicação da doação de
Reinaldo Nunes, inscritos a tinta azul, de tonalidades diferentes. Há, também, outro carimbo
“Aprovado” da SR/DPF (Superintendência Regional/ Departamento de Polícia Federal), datado
de 23 de novembro de 1979, assinado por Maria Helena Guerreiro, seguido da inscrição
“Aprovado para a Biblioteca Central, Clubes e Colégios”, a tinta azul. Ao que parece, e
conforme podemos observar em outros textos de Jurema Penna56, havia uma constante
preocupação de, a, cada temporada de encenações, submetê-lo novamente à censura, a fim de
evitar quaisquer problemas de ordem legal.
O segundo datiloscrito, denominado Tsd, é também composto por 27 folhas e possui
intervenções manuscritas e anotações de cena em todas as folhas, feitas a tinta azul e preta. A
versão do texto coincide, quase à totalidade, com T77. A diferença se deve a duas folhas
inseridas entre as folhas 18 e 19, numeradas 18 A e 18 B. Há também anotações que dizem
respeito às indicações cênicas e se restringem à personagem Maria. Em somente dois casos as
marcas se referem à personagem Judith; nestas duas ocorrências, Judith contracena com Maria.
Tais inscrições funcionam ora como rubricas, como em “Maria toma as ventoinhas de S. Mané”
(PENNA, [197-?], f. 4), ora como marcações do espaço cênico, como em “Maria – Esq[uerda]
do palco arreia as pitangas” (PENNA, [197-?], f. 4).
56
O cuidado de reenviar os textos à censura é presente na conduta de Jurema Penna. Observe-se o caso de Bahia
livre exportação, em que a dramaturga submete o script à Censura Federal pela primeira vez em 1975, reformula-
o e envia, novamente, em 1976, destacando e assinando as modificações realizadas. Procedimento semelhante é
feito com Negro amor de rendas brancas, em que a primeira versão é encaminhada à censura em 1971 e a segunda
versão em 1972. Diante das poucas mudanças identificadas, o arquivo do fundo DCDP opta por conservar, da
versão de 1972, apenas as folhas que apresentam cortes (Cf. Arquivo Hipertextual).
196
O script da peça pode também tornar-se suporte para o registro de outros elementos que
não o texto. O quarto testemunho (T91) traz uma série de indicações cênicas referentes ao
personagem Quico, levando a crer que se trata do testemunho pertencente ao ator/atriz que
interpretou esse personagem. Sua datação é atribuída a uma anotação na margem esquerda da
capa, onde se lê “Outubro 91, Novembro 1991, Lena”. (Cf. figura 32). Ao longo do testemunho,
outras referências a Lena serão feitas, como no verso da folha 11, onde se lê “Maria Helena /
Lena / Anel”, que acreditamos ser Lena Franca57.
57
Lena Franca (Maria Helena Franca das Neves) é atriz, diretora e escritora, dedicando-se à dramaturgia infantil
de cunho popular (COELHO, 2002). Atuou no teatro baiano durante o período da ditadura militar, participando
de alguns projetos com Jurema Penna.
197
1 SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó 1 JOSE – Mas do tempo da sua avó prá cá, muita
pra cá, muita coisa mudou. Muita coisa coisa mudou. Muita coisa aconteceu neste
aconteceu nesse mundão de meu Deus. mundão de meu Deus.
Só o que o dinheiro mudou de nome... MARIA – Só que o dinheiro mudou de nome...
5 vou te contar! Olhe meu bisavô foi do 5 vou te contar. Olhe, meu bisavô foi do tempo da
tempo da pataca. Depois teve o real. pataca.
Mais de um real se dizia réis. Quando JOSE – Depois teve o real, mais de um real se
ele queria dizer que uma coisa não valia dizia réis.
nada ele falava assim: "Não vale nem MARIA – Quando se queria dizer que uma
10 dez réis de mel coado". Duzentos réis 10 coisa não valia nada, meu avó falava assim:
era dinheiro... Teve cruzado. Teve "Não vale nem dez réis de mel coado".
"conto de réis". Um conto de réis era JOSÉ – Antes de todos teve cruzado
dinheiro pra tapá casa. Agora, tem MARIA – Teve "conto de reis". Um conto de
cruzeiro. (PENNA, 1978, p.[1]) reis era dinheiro prá tapá casa.
15 JOSÉ – Teve cruzeiro, teve cruzado de novo,
teve cruzado novo e teve cruzado sequestrado,
aí, voltou o cruzeiro.... (PENNA, [1991], p.1-2)
Além da óbvia partição da fala, observamos uma modificação no que tange à referência
às moedas que circularam no Brasil. Em T78, o personagem José menciona o conto de réis,
cruzado e cruzeiro, já em T91, a referência às moedas é ampliada, fala-se do cruzado, cruzeiro,
“cruzado de novo”, “cruzado novo”, “cruzado sequestrado” e, por fim, o “cruzeiro”. Essa nova
relação elenca as mudanças no sistema monetário brasileiro ocorrido do período de 1970 a
1990, em que se tem, nessa ordem, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo e
cruzeiro. Tal atualização não seria possível antes de 1990, ano em que a moeda brasileira volta
a se chamar cruzeiro, com o governo do presidente Collor de Mello.
Além disso, considerando-se que era prática de Jurema Penna submeter os scripts ao
crivo da censura quando reescritos, acreditamos que a ausência da documentação censória para
198
este testemunho, somada à ausência de carimbos do DPF e SBAT, indica que o datiloscrito foi
produzido em um momento pós ditadura militar.
No verso das suas folhas, há diversos desenhos que variam de ilustrações de adultos a
ilustrações infantis. Até o presente momento, não foi possível definir quem realizou os desenhos
nem seu propósito, no entanto pode-se supor que seriam eles representativos dos personagens
da peça, ou ainda, que simplesmente dialoguem com os desenhos infantis, na tentativa de
entreter crianças. Algumas conjecturas podem ser feitas. Por exemplo, a estrela é um elemento
que se repete ao longo de diversos desenhos, com traços infantis e adultos, conforme disposto
na figura 33.
Figura 33 – Referência à estrela nos desenhos do T91 BNV
O texto apresenta uma referência à estrela do presépio, uma estrela do mar, já que,
conforme o personagem Gaspar, a do céu é mais difícil de ir buscar:
possui uma cauda feita de capins, como descrito no texto. Além disso, a estrela também guarda
uma série de simbologias com o Natal, sendo sinal do nascimento de Jesus e guia para encontrá-
lo. No entanto, não podemos deixar de considerar que esta é também uma forma geométrica
muito praticada pelas crianças nas escolas, o que poderia ter ocasionado a repetição do desenho
sobre o suporte.
Qualquer que seja a motivação para a realização das figuras, é significante perceber o
texto de teatro como suporte físico do qual a criança se apropria para rabiscar, e através dos
seus desenhos, dar a conhecer sua percepção sobre mundo em que vive. Interessa-nos destacar
que tais desenhos se manifestam pois não há interdição para o uso desse suporte, denotando sua
plasticidade. Sendo uma obra dedicada ao público infantil, trazer essas marcas para a sua leitura
configura-se como uma forma de incluir sua voz na construção das representações.
Caligrafia
1: Módulo
pequeno,
ligeirament
e inclinada
para
direita,
com f.2 f.14
maiúsculas
ocasionais,
grafadas a
tinta preta,
presentes
f.19
ao longo de
todo texto.
Caligrafia
2:
Módulo
grande, f.5 f.7
letra f.12
alongada e
reta,
grafadas a
tinta azul f.19
f.15 f.19
Caligrafia
3:
Módulo
médio, a
f.12
tinta azul F9
Caligrafia
4: Módulo
pequeno, f.23
escrito
antes da
reprodução f.25 f.25
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.
A terceira versão a ser considerada para a colação dos testemunhos é a impressa, em que
se apresentam poucas modificações em relação à versão T77. Em geral, há uma revisão para a
publicação, além do acréscimo de alguns elementos como o prefácio e dados da publicação. A
quarta versão é aquela apresentada por T91, que incorpora os acréscimos manuscritos
realizados em Tsd. As diferentes versões não apresentam modificações textuais numerosas. Ao
que parece, o texto já se apresentava em uma forma bastante estável, sendo o impresso a
configuração de um momento de escrita terminal. Por sua vez, os testemunhos posteriores a ele
indicam a mobilidade característica dos textos teatrais. Devemos, no entanto, atentar para o fato
202
de que essas modificações não alteram a estrutura central do enredo, que continua basicamente
o mesmo. As modificações realizadas mostram-se decisivas para o desenvolver da ação no
palco.
Comparando-se as diferentes versões, selecionamos algumas passagens em que elas se
apresentam convergentes ou divergentes. Ao se tomar os elementos pré-textuais, identificamos
que o texto encaminhado para a censura é composto de capa, dedicatória, descrição do cenário
e lista de personagens, sendo a dedicatória, elemento pouco comum a esse gênero textual.
Exceto Tsd, que traz apenas a capa, as versões repetem esses elementos, que em T78 estão
acrescidos dos créditos de publicação. Acreditamos que a versão enviada para censura foi
também construída para servir de referência às demais reproduções realizadas dali em diante.
Por sua vez, a ausência da maioria dos elementos pré-textuais em Tsd pode denotar pouca
importância dada a eles, tidos como dispensáveis para o texto destinado à encenação.
Tomamos agora passagens em que as versões apresentam divergências. Iniciamos pela
fala de Seu José, quando discorre acerca dos diversos sistemas monetários brasileiros. Em T77,
f.1, e T78, f.1, o personagem fala sozinho, já em Tsd, f.1, o ator registra a partição da fala,
indicando os trechos convertidos em um diálogo de Seu José com Maria; em T91 (f.1-2) essa
modificação já se encontra incorporada ao datiloscrito. A segunda passagem que destacamos
refere-se à chegada do cangaceiro Pé-de-vento, que impõe a todos a sua dança. A dança não
aparece em T77 e como Tsd é uma reprodução de T77, esta cena aparece como um acréscimo
manuscrito feito antes da reprodução (Tsd, f.13). Tal modificação foi incorporada ao texto nas
versões de T78, f.6, e de T91, f.13-14, sendo este último acrescentado de mais uma ação “Tiro
– para a música”.
O caráter inovador de T91 se manifesta, por exemplo, no acréscimo da brincadeira
denominada “cadeirinha de pon pon” (T91, f.17), que consiste em encaixar os braços de duas
pessoas, construindo um apoio para carregar uma terceira que estaria sentada na “cadeira”. A
ação estabelece a transição entre Maria, que acorda do desmaio, e a tentativa de Gaspar e Davi
de acomodá-la no espaço cênico. Como a construção do texto em linguagem de cordel demanda
um grande investimento, as rubricas são sumárias e, diferente do que ocorre em Iemanjá..., não
observamos um empenho na construção dos elementos narrativos, sobrando espaço para a
improvisação.
Por sua vez, o momento da peça em que David, Gaspar e Baltazar armam o presépio,
cena inexiste apenas em T77. Trata-se de uma passagem relativamente extensa, sobre a qual se
poderia conjecturar que duas folhas foram perdidas de T77; esta hipótese, no entanto, não se
sustenta, uma vez que T77 apresenta-se contínuo, sem incoerências na numeração das folhas.
203
Por sua vez, Tsd é acrescido das folhas 18 A e 18 B, que traz a arrumação do presépio, inseridas
entre as folhas 18 e 19. Por sua vez, T78 e T91 já expõem tal arrumação incorporada ao texto.
Destacamos, ainda, a modificação feita aos versos que indicam a motivação de Vitalino
para a realização do presépio. Em T77, a dificuldade de Vitalino para realizar esse desejo era o
excesso de trabalho, expresso pelos versos “pois tão atarefado vivia / pra tanta encomenda
atender / que o presépio que sonhava / não conseguiu fazer” (T77, f.21, grifo nosso). Em T78,
temos “pois tão atarefado vivia / pra poder sobreviver / que o presépio que sonhava /não
conseguiu fazer” (T78, f.12, grifo nosso). Tsd traz a substituição manuscrita: “pois tão atarefado
vivia / <pra tanta encomenda atender> [↑na luta do sobreviver] / que o presépio que sonhava
/ não conseguiu fazer (Tsd f.21, grifo nosso). T91, por fim, traz “Pois tão atarefado vivia / na
luta do sobreviver / que o presépio que sonhava / não conseguiu fazer. (T91, f.24, grifo nosso).
T91 é, portanto, o testemunho mais inovador e Tsd traz um momento de transição entre T78 e
T91.
Ao analisarmos as modificações feitas percebemos que os três testemunhos apresentam
poucos desvios da norma padrão e poucos erros de datilografia, de uma forma geral. Como em
Iemanjá..., persiste a generalização do acento diferencial nas homógrafas com “e” e “o”
fechados em palavras como “êsse” “freguêsa”, “favôr”, com 24 ocorrências em T77, 14
ocorrências em T91 e 5 em T78. Por sua vez, o acento às palavras derivadas de acentuadas
resumem-se a “obrigatóriamente” (T77, f.2), sòsinha (T77, f.5), apresentando uma ortografia
mais próxima ao acordo de 1971.
Há também uma tendência a intensificar a representação da oralidade no texto,
principalmente no movimento de T78 a T91, como é possível notar em “Os meninos todos
entendem” (T78, f.1) e “Os menino tudo entende” (T91, f.3), ou em “que minhas mãos fiquem
duras / se eu quebrar essas juras” (T78, f.10) e “que minhas mãos fique dura / se eu quebrar
essa jura” (T91, f.19), com a supressão das marcas de plural. Ou ainda com a supressão da
marca de infinitivo nos verbos, em “pra comprar pirulito” (T78, f. 1) e “pra comprá pirulito”
(T91, f. 1). Tais marcas não são vistas em T77, o que nos leva a crer que, na elaboração dessa
versão, a preocupação com a correção gramatical se manifestava, numa previsão de transformá-
la em um impresso. Em T91, ao contrário, essas preocupações são desfeitas em favor da
representação da linguagem popular no palco, que também deixa suas marcas no datiloscrito.
Notamos, dessa forma, que mesmo com personagens falantes da modalidade popular da língua,
a publicação impressa direciona a dramaturga para o uso da norma culta, mediado pela presença
do revisor, que atua como agente normalizador, segundo as regras do português padrão.
204
Uma leitura do conjunto da obra de Jurema Penna permite perceber que alguns
elementos tratados em O bonequeiro Vitalino… são recorrentes em outros de seus textos
teatrais. A ambientação na feira também aparece em Na feira de São Joaquim e Natal na Feira
de São Joaquim58. O primeiro traz para o palco o cotidiano dos vendedores da Feira de São
Joaquim e a dificuldade de viver em sob uma forte opressão social, oriunda tanto da pobreza
que os assola, quanto dos poderes oficiais, materializados nos fiscais que cobram os impostos.
Tal opressão é também representada na figura da criança pobre que sonha em estudar, mas tem
que trabalhar na feira para ajudar a família.
Por sua vez em Natal na Feira de São Joaquim [197-?], um grupo de feirantes, dentre
eles, adultos e crianças, se reúne para celebrar um Natal mais autêntico, desvinculado das
questões econômicas e dos padrões eurocêntricos postos pela mídia. Para assim fazê-lo,
constroem um presépio no qual a personagem que representaria Nossa Senhora está grávida e
dá a luz ao menino Jesus no momento da encenação, encerrando a peça, trecho bastante
semelhante a uma das cenas de O bonequeiro Vitalino, conforme a comparação entre as duas
peças:
De Tsd a T78, notamos uma reestruturação do argumento, que implica uma ampliação
da peça. Em Natal na Feira..., a personagem Maria encerra a ação com o parto do seu filho,
que encenaria o menino Jesus no presépio. Em O bonequeiro Vitalino, Maria dá a luz e a peça
segue com o cangaceiro abandonando as armas e a vida de crimes, seguindo-se com a
58
Testemunhos datiloscritos sem data e sem registro da Censura Federal, depositados no Espaço Xisto Bahia.
205
Maria Manuela me procurou e disse que Rosita Salgado Góes, que dirigia o
Departamento Cultural da Prefeitura, iria promover um Ciclo de Natal e precisava de
um texto infantil. Fui falar com ela e acertei montar uma peça com valores nossos,
nordestinos. Quer dizer, coloquei o carro antes dos bois. Ou seja, vendi uma coisa que
não existia, a peça infantil que já estava na minha cabeça. Eu não queria uma coisa
com candomblé, essas coisas. Mas também não sabia exatamente o que queria, o que
escreveria. Tinha perdido um sobrinho, fazia pouco tempo. Então, fechei os olhos e
lhe pedi ajuda. Aí, ouvi uma voz: “Abra os olhos, tia”. Era a voz dele. Abri os olhos
e, diante de mim, vi uma família de retirantes em cerâmica popular [...] Aí o resto foi
fácil, foi jogar minha emoção, minha memória de menina das feiras de Itajuípe
(GUERRA, 2005, p. 306).
constituem-se em um rico material de recepção, uma vez que possuem uma dupla constituição.
O fotógrafo, ao estabelecer um enquadramento, privilegia certos aspectos em detrimento de
outros; os fotógrafos de teatro elegem como plano central o ator que desempenha a ação
principal, podendo privilegiar o ambiente da encenação. Este profissional age como um
mediador entre o espetáculo e os espectadores, fotografando alguns ângulos que não são
acessíveis à plateia, registrando-os para a posteridade. Atua, também, como um dos sujeitos da
cena, já que sua fotografia constrói realidades e engendra percepções sobre o espetáculo. Além
disso, apresenta o registro de montagens diferentes, indicando a permanência ou não de um
elenco ou de um cenário.
No nosso caso, essas fotografias passam a ser um elemento que suplementa a leitura,
uma vez que é possível identificá-las a certas passagens do texto, fazendo-nos refletir acerca do
espaço cênico, da elaboração dos personagens, a proposta do cenário, bem como sobre as
formas assumidas pelo drama e a tecnologia possível para a época. Apresentamos, a seguir,
imagens de algumas montagens d’O bonequeiro Vitalino. A maioria delas possui baixa
qualidade, sendo algumas fotocópias e outras reproduzidas de matérias de jornal. Não há, em
muitas, registros sobre a data ou autoria, todas as fotos aqui dispostas estão depositadas no
Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia.
A fotografia abaixo (cf. figura 35) mostra, em plano principal, Frieda Gutmman,
representando Maria, sentindo as dores do parto, e os atores em seus personagens: Mané
(portando uma espingarda), David e Samuca, ao canto a personagem Judith, todos atentos à
Maria.
Figura 35 – Parto de Maria
Como a cena se volta para Maria, é esse o ângulo escolhido pelo fotógrafo. Note-se que
o enquadramento favoreceu a inclusão dos demais personagens, registrando a interação entre
eles. Além de evidenciar a simplicidade do cenário e do figurino, é possível ainda ver o boneco
do boi de bumba levado pelo personagem David.
As imagens que seguem foram publicadas em 1978, no Jornal da Bahia (O
BONEQUEIRO, 1978) (Cf. figura 36). Tais retratos nos permitem verificar que a ação não
acontece no palco de um teatro, mas em um espaço aberto; na primeira há vegetação ao fundo,
na segunda, a parede de um imóvel. Reinaldo Nunes59, produtor do espetáculo, esclarece que
as fotos foram feitas no fundo do Convento do Carmo. O confronto das fotografias com o texto
aponta para a relação com duas cenas. A primeira mostra o despertar do boneco cangaceiro,
Mané, que de posse sua “garrucha”, que, na foto, se assemelha mais a uma espingarda, ameaça
o grupo exigindo que este lhe entregue os objetos de valor. A segunda, a julgar pela expressão
de Maria, parece referir-se ao momento em que a personagem sente as dores do parto.
Nas fotos que trazemos, em sequência, o destaque recai sobre o espaço cênico. Na
primeira fotografia, vemos, mais uma vez, o cangaceiro com arma em punho, talvez repetindo
a cena já descrita acima. É possível ver, com clareza, uma série de casarões históricos que
permitem localizar a imagem no Largo do Pelourinho, onde se vê à direita o casarão que abriga
hoje o Museu da Cidade (Cf. figura 37).
59
Reinaldo Nunes é produtor, diretor e presidente da Companhia Bahiana de Comédias, fundada na década de
1960. Concedeu entrevista a essa pesquisadora em maio de 2014.
208
A busca por outros espaços cênicos mostra o caráter popular da montagem, articulado a
uma parceria com os poderes públicos. Na matéria O bonequeiro Vitalino: a história do
209
presépio que não pode ser feito (1978), relata-se que espetáculo foi “[...] levado a alguns bairros
periféricos e de operários e também no município de Simões Filho e foi patrocinado pela
Secretaria de Transporte e Comunicações e Secretaria da Educação e Cultura do Estado da
Bahia”. Em depoimento a Silvia Maria (1979), Jurema Penna enfatiza a aceitação do público
dos bairros periféricos como um indicativo de sucesso do espetáculo, atribuindo a acolhida
desse público à simplicidade de suas formas e à linguagem do Teatro de Cordel. Conforme a
dramaturga houve
[u]ma integração total, na linguagem que eles falam e sem confusão para entender.
Me lembro que em Pau da Lima, a Prefeitura tinha dado o palanque mas não o tinha
armado. Quando chegamos, encontramos a comunidade armando o palanque e
enfeitando para a gente (MARIA, 1979).
TCA, [197-]
Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço Xisto Bahia
210
Tudo muito simples mas de muito bom gosto e de uma pureza comovente,
preservando a humildade que caracteriza o nascimento de Jesus Cristo entre nós e que
seria evidentemente uma constante em toda sua vida. Essa mesma pureza e humildade
fez com que o Mestre Vitalino pudesse com a ingenuidade dos puros e sofridos,
retratar no massapê pernambucano o homem nordestino no seu dia-a-dia de muito
suor, lágrimas e sangue, na luta pelo pão-nosso-de-cada-dia cada vez mais difícil de
ser conquistado. (VIEIRA NETO, 1978)
O som da zabumba, com seu ritmo quente contagiante, se faz presente logo no início
do espetáculo, quando os atores surgem na plateia, travestidos de vendedores de feira,
apregoando com muito humor, as suas mercadorias. Todos saltitantes e alegres [...]
Espetáculo que termina com os sinos repicando em louvor do nascimento do Menino-
Jesus. (VIEIRA NETO, 1978)
Certamente, este som era proveniente de terno de zabumba do Mestre Vicente, cuja
flauta era tocada por Mestre Vitalino, conforme descrito na ficha técnica do programa do
espetáculo. A descrição de Vieira Neto confere outra tônica à leitura do texto, suplementando
a descrição do cenário: “O espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço cênico (rua,
211
praça, adro, ou interior de igreja, o palco, etc.) trazendo seus apetrechos, suas mercadorias,
mercando, cantando seus pregões” (PENNA, 1978, p.[2]). Vieira Neto faz também uma alusão
ao toque dos sinos no fim da peça, mais um elemento que constrói a esfera mágica da
transformação dos personagens em bonecos de Vitalino, como mostram as fotografias
anteriormente apresentadas.
Ao longo da matéria, Vieira Neto expõe sua concordância como o projeto de Jurema
Penna de defender uma comemoração natalina mais próxima do referencial cultural nordestino:
Vieira Neto destaca a importância do teatro como arte que promove a reflexão e a
mudança de comportamento do espectador, que, tocado pela beleza, simplicidade e humildade
pregados pelo espetáculo, poderia construir novos sentidos para o Natal. Faz ainda uma crítica
à atuação do elenco em que não se pode destacar “[n]enhuma atuação excepcional, todos se
mantêm num mesmo padrão de interpretação”. Para o colunista do Jornal A Tarde, a maior
proeza do espetáculo é a “simplicidade, sem pretensões a genialidade”.
Em 1978, a matéria intitulada O bonequeiro Vitalino: a história do presépio que não
pode ser feito também faz referência aos bonecos de Vitalino como inspiração para Jurema
Penna, bem como “a doce magia espiritual” que compõe o fio condutor do espetáculo e que
marca a transformações dos personagens, “onde feirantes e camelôs de uma pequena Feira de
Natal são magicamente transformados em bonecos que irão contar a história do presépio que o
Grande Mestre não conseguiu fazer”. Conforme a matéria, os atores, encarnando os
personagens,
Ao citar o teatro vicentino e a poesia de João Cabral de Melo Neto, Vargens estabelece
um diálogo da obra de Jurema Penna com a tradição literária, que tanto possui antecedentes,
numa dramaturgia portuguesa, por trazer personagens-tipo, como dialoga com a produção
literária contemporânea. Tal aproximação constitui-se também uma estratégia de legitimação
do texto de Jurema Penna, inscrevendo-a numa literária canônica.
No parágrafo seguinte, o crítico também se utiliza da tradição literária para fazer uma
breve reflexão sobre a linguagem de cordel presente na peça:
Aliás, esta volta às fontes populares, [sic] é uma das mais proveitosas buscas do
modernismo, quer na prosa, quer na poesia. Não esqueçamos ser a literatura de cordel,
a forma atual da primitiva novela cavaleresca [sic] que, bem aproveitada, tem levado
ao romance modernista, [sic] os melhores efeitos, criando mesmo, um clima de magia
e misticismo com que os modernos autores envolvem seus personagens nas "estórias"
dos cantadores de feira. Veja-se, verbi gratia, Jorge Amado em Mar Morto e Adonias
Filho em Corpo Vivo. Na poesia basta-nos citar o pernambucano João Cabral de Melo
Neto (VARGENS, 1978, p.[1]).
vez que o intelectual estaria apto a executar estas transformações, e que garantiria a sua
literariedade.
Vargens ainda destaca a habilidade que Jurema Penna ao congregar elementos de um
mosaico cultural, na medida em que reúne traços da cultura soteropolitana aos bonecos de
Vitalino eminentemente pernambucanos, constituindo um interessante trânsito, o que Vargens
atribui ao sincretismo baiano, conforme observamos abaixo:
[…] Jurema Penna, transpondo "pregões" baianos (quem não se lembra da "laranja do
Cabula, uma verde outra madura"? de um passado não tão remoto?), usos e costumes
tão de nossa tradicional Bahia (a folha de pitangueira), sabe, com maestria, entrosá-
los à arte nordestina e fundi-los, todos, na grande arte dramática, com o toque de magia
e mística que dá o "encantamento" de sua peça. Clima de sincretismo baiano. Clima
de Natal. De Natal do povo. De Natal não aburguesado. De Natal do Cristo, que é o
Senhor do Bonfim da Bahia (VARGENS, 1978, p.1).
O crítico comenta, também, as estratégias utilizadas por Jurema Penna para constituir a
esfera de magia do espetáculo, a saber, o som da zabumba, o canto de Mané, o toque do sino, o
canto de vozes humanas
Não há [sic] negar-se o alto valor de tais instrumentos para criar o clima mágico. Canto
de vozes humanas e canto de músicas dos sinos. Lidando com o mais espiritual dos
instrumentos – a Palavra – Jurema Penna transporta-nos a "sentir", vivendo-a, a
Encarnação do Verbo, embalando-nos a alma com o canto popular, expressão da alma
de nossa gente, e toque dos sinos que faz reaviver em nós a criança que todos temos
(VARGENS, 1978, p.1)
Em dezembro de 1988, Zoíla Barata e Ary Barata produzem e dirigem uma nova
montagem de O bonequeiro Vitalino, para a qual Franklin Maxado60 escreve um cordel61 de
divulgação. O cordelista parte da ideia que o Natal constrói princípios e valores, como a
harmonia e a caridade, que suplantam os limites impostos por uma prática religiosa
institucionalizada. O cordel apresenta o enredo da peça e faz referência à figura que inspirou a
história, o bonequeiro Vitalino, bem como à linguagem utilizada e os personagens da ação.
O cordelista faz uma referência a Jurema Penna como autora da peça, além dos seus
diretores, exaltando a importância destes para o teatro na Bahia. Informa horário e local onde a
peça seria encenada “Vai ser levado no dia / 21 deste dezembro / Em cima da escadaria / De
um edifício central: / A Fundação Cultural / Do Estado da Bahia” (MAXADO, 1988, p.[4]). No
entanto, adverte para uma possível mobilidade do espetáculo, em decorrência de um sucesso
60
Franklin Maxado é cordelista, natural de Feira de Santana-BA. Autor dos livros sobre cordel, dentre eles, O que
é a literatura de cordel?, 1980, e O cordel televisivo, 1984, publicações da editora Pasquim/Codecri.
61
O cordel é uma publicação da Fundação Cultural do Estado da Bahia e está disponível no Arquivo Hipertextual.
215
quase certo, a julgar pelas encenações anteriores: “A peça lá nos Barrís / Pode ir prá outros
cantos / porque sei que as pessoas / Gostarão dos seus encantos” (MAXADO, 1988, p.[4]).
Maxado (1988), por sua vez, dá a sua interpretação para que o milagre do Natal tenha
se materializado em um presépio de origem pernambucana na Bahia: “Tudo na Bahia é mágico
/ Seu povo está aí prá provar / Como aqueles tres Reis Magos / Melquior e Baltazar / E Gaspar
que tudo viram / Pelo astral e sentiram / Como a peça vai pregar” (MAXADO, 1988, p.[4]).
Sendo a Bahia a “terra da magia”, e da magia sincrética, como coloca Vargens (1978), os três
reis, também magos, estariam ambientados nesse espaço.
Refere-se à linguagem do cordel como disseminadora de narrativas: “No Reino do
Encantado / O cordel é instrumento / Pra contar as estórias / De tudo no Testamento / Como o
bíblico Natal / Nesta peça teatral / Que é um deslumbramento” (MAXADO, 1988, p. [4]). É
por meio dos contos e causos que os cantadores vão elaborando as narrativas conhecidas e
incorporando a elas novos elementos de sua própria cultura, favorecendo uma atualização
dessas narrativas, bem como estabelecendo uma relação com contexto sócio-cultural em que
aparecem.
O cordel traz, ainda, uma ficha técnica, os agradecimentos da produção, além do elenco
em ordem alfabética. Interessa-nos tratar das modificações realizadas na lista de personagens e
atores, comparando-as com a versão de T78. Conforme os dados presentes no cordel de 1988,
os personagens, na forma de boneco, foram todos convertidos em retirantes, o que significa
uma redução nas referências das cerâmicas de Vitalino, que em T78 trazia o Padre, O boi de
bumba, a retirante que puxava o burrinho, o burrinho62. Além disso, inclui-se um décimo
personagem, que mantém a configuração dos demais, desempenhando três papéis nos
momentos distintos do espetáculo. Certamente, estas modificações refletem mudanças também
no texto e mostram como a cada montagem o script é objeto de apropriação por parte dos
diretores, dos atores, dentre outros, que reconstroem o espetáculo.
Assim como o cordel, os panfletos de divulgação e programas do espetáculo atraem os
espectadores em primeiro lugar pela estética da xilogravura, que remete diretamente à temática
nordestina e sertaneja, conforme apresentamos na figura 40.
A primeira imagem traz uma xilogravura de um dos bonecos de Mestre Vitalino, como
capa de um panfleto que divulga o espetáculo no Teatro Castro Alves, dias 9, 16, e 23 de
dezembro às 16:30 e 10 e 17 de dezembro às 10:00 e 16:30; datado de 1978. Neste, apresentam-
se os dados biográficos sobre Vitalino e transcrevem-se os versos que Carlos Drummond de
62
Estas formas estão representadas nas fotografias das cerâmicas de Vitalino, presentes na capa e nas lâminas 4,
5, 11 de T78.
216
O panfleto traz ainda o elenco por ordem de entrada, a ficha técnica do espetáculo, e a
dedicatória “Esta peça é de Zéu / Tia Ju”. Levando-se em consideração que Viera Neto (1978)
transcreve o poema de Drummond, havendo semelhança nas informações trazidas pelo panfleto
e aquelas contidas na matéria, acreditamos ser possível datar o panfleto do ano de 1978.
Confirmam essa datação o ofício de solicitação de censura assinado por Burity, diretor do TCA,
do mesmo ano, bem como o depoimento de Reinaldo Nunes, produtor do espetáculo (Cf.
p.208).
O segundo panfleto que traz uma xilogravura do Menino Jesus, recém-nascido, rodeado
pelos animais. Também encontra-se sem data. Nas folhas internas do folder, há o mesmo texto
com a biografia de Mestre Vitalino, apresentando poucas diferenças na diagramação. A terceira
xilogravura traz um homem adulto cuja máscara está caída ao chão e sobre sua cabeça há um
céu estrelado. A imagem pode referir-se a um dos reis magos e ao próprio movimento cênico
em que diversos personagens representam o mesmo ator. Por outro lado, é possível identificar
a máscara como símbolo do próprio teatro. Datamos ambos documentos de 1978, a partir do
depoimento de Reinaldo Nunes.
Após a exposição desse mosaico de referências, acreditamos ter sido possível entrever
os processos de construção, produção, transmissão, circulação e recepção de O bonequeiro
Vitalino, a partir de um conjunto limitado e lacunar de testemunhos. Dentro dessa dinâmica,
217
compreendemos o lugar do editor, também, no processo de recepção, uma vez que o seu
movimento de busca nos arquivos e acervos, bem como o levantamento dos materiais relativos
à peça é fundamental para a constituição de novas leituras.
Elegemos como forma de divulgar O bonequeiro Vitalino... a sua inclusão no arquivo
hipertextual aqui apresentado. Compreendemos que a edição crítica é o produto, que não se
pode construir sem trilhar o percurso explicitado nessa seção. Uma vez disposta em meio
virtual, torna-se um caminho multidirecional que irá apontar para os diferentes movimentos de
escrita e de leitura. Pensamos que dessa maneira é possível avançar mais um passo na direção
de uma edição representativa da história de uma obra, por meio da narrativa apresentada pelo
editor.
Diante dessas análises, estabelecemos como texto de base para a edição o testemunho
de 1978 (T78), que traz a versão publicada. Nossa escolha se deve ao fato de entendermos as
lições trazidas nesse testemunho como ponto de partida para as modificações empreendidas nos
demais momentos de retomada e elaboração do script. Ao tomá-lo como texto de base, em
contraste com as lições trazidas pelos outros testemunhos, esperamos pôr em evidência os
caminhos percorridos por ele em seus diferentes momentos de encenação.
Nesse intento, apresentamos, o resultado desse percurso por meio do arquivo
hipertextual, em volume digital. Este volume impresso trará somente o texto crítico.
218
4.2.2.1 Texto Crítico de O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das
crianças
[Capa]
O BONEQUEIRO VITALINO
ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças
Auto de Natal
Jurema Penna
Autora
219
[Apresentação]
[Dedicatória]
Auto de Natal
Para todas as pessoas que são crianças ainda
[Créditos da Publicação]
Secretaria Municipal de Educação e Cultura Maria Stela Santos Pita Leite – Secretária
[Descrição do cenário]
CENÁRIO
Não há, obrigatoriamente, um cenário. Deve ser criado um ambiente de pequena feira de camelôs em véspera de
Natal. O espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço cênico (rua, praça, adro ou interior de igreja, palco,
etc.), trazendo seus apetrechos, suas mercadorias, cantando os seus pregões. Marcar entre as mercadorias muita
folha de pitanga, capins pintados, ventoinhas, flores de Tia Cota, algodão doce, brinquedos.
223
[Lista de personagens]
PERSONAGENS
São ao todo 27 personagens, que devem ser feitos por 9 atores com a seguinte distribuição:
[f.1]
(O primeiro a chegar é “Seu José” que inicia a armação de sua barraca, onde vende os seus bonecos “vindos
diretamente de São Paulo”. Armada a barraca, ouve-se o pregão de Gaspar, vendendo pirulitos.)
SEU JOSÉ – Vivendo. Que negócio é esse de tostão, menino? Isso é do tempo que se amarrava cachorro com
linguiça. Muda essa cantiga.
GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, que minha avó ensinou a ela.
SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó pra cá, muita coisa mudou. Muita coisa aconteceu nesse mundão de meu
Deus. Só o que o dinheiro mudou de nome... vou te contar! Olhe, meu bisavô foi do tempo da pataca. Depois teve
o real. Mais de um real se dizia réis. Quando ele queria dizer que uma coisa não valia nada ele falava assim: “Não
vale nem dez réis de mel coado”. Duzentos réis era dinheiro... Teve cruzado. Teve “conto de réis”. Um conto de
réis era dinheiro pra tapá casa. Agora, tem cruzeiro.
MARIA – (Vendedora de pitanga que entrou no meio da conversa) É isso mesmo, seu Zé, dinheiro muda de
nome, mas de dono... não muda nunca.
GASPAR – Um cruzeiro.
MARIA – (Gozadora) Muda, Seu José. Não somos nós que fazemos esse tal de folclore? Eu vi na televisão o
homem dizendo que quem faz esse folclore é a gente. O povo.
MARIA – (Que já arrumou as folhas de pitanga) Compra pitanga, freguesinha. Pitanga pro presépio do Menino
Jesus. Cheiro gostoso de fruta gostosa. Quem vai querer?
QUICO – (Que entrou com flores de Tia Cota durante o pregão de Maria) Oi, gente! Ô dona Maria, porque é
que se enfeita a casa no Natal com folha de pitanga?
MARIA – Sei lá. Quem sabe? Deve ser bom. Pitanga é folha santa.
GASPAR – Ora, Quico. Bom é bom. Não tem porque nem pra quê? E depois é tão cheirosa.
225
QUICO – Flores! Flores! Flores de Tia Cota. Compra as flores, freguesa! Enfeite a sua casa pra o Menino Jesus!
Flores! Flores de Tia Cota! As maiores rosas do mundo! Olha os Girassóis!
ZAZINHO – (Off. Aproximando-se aos poucos) Torrá! Torrá! Torrá di cuber, Torrá...
MARIA – Esse Zazinho merca engraçado. Ninguém entende o que ele diz.
QUICO – Ô xente, dona Maria! Os meninos todos entendem. Todo menino sabe que ele está vendendo amendoim.
MARIA– Amendoim?
[f.2]
ZAZINHO – (Entrando) Du...in...Torrá! Torrá! Torra di cuber, torrá. (Ninguém entende nada, pois o que
Zazinho traz é algodão doce)
SEU JOSÉ – Baltazar, qual é a sua? Vem vendendo algodão doce e merca amendoim torrado e coberto?
ZAZINHO – Que nada, D. Maria, é sabedoria mesmo. Eu merco amendoim, já tenho minha freguesia certa, não
é? Aí os meninos vêm pra comprar os amendoins. Não tem. Como eles gostam de mim, compram o que eu
vender.
ZAZINHO – Mudá, não mudei não. É por que hoje tem muito menino na rua. Muito antes de chegar aqui, já
tinha vendido os amendoins todos. Aí o homem do algodão doce me pediu pra vender pra ele. É bonito, não é?
Parece árvore de cartão de Natal que a gente vê nas lojas. Toda branca. Toda feita de nuvem.
ZAZINHO – Pra mim é nuvem, que os anjos trouxeram pra terra pra ficar tudo macio pra ele nascer. (Ouve-se o
pregão de David)
JUDITE – (Vem quase ao mesmo tempo que David. Enquanto ele merca ela arruma seu tabuleiro, com fazendas,
rendas, colchas de retalho, roupas prontas etc e merca) Beleza. Beleza do Ceará - Tudo feito à mão. Riqueza,
freguesa. Baratinho. Não paga o luxo da casa. Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques. Não tem
problema. Olha a toalha de mesa pra sua ceia do Natal. Quem vai querer?
SAMUCA – (Chegando enquanto ela merca, quase escondido atrás dos seus capins pintados em várias cores,
dourados e prateados. Vem com grande alegria e algazarra) Cheguei. Cheguei eu, minha gente. Olha os capins
pra cama do Menino nascer. Capim colorido. Capim a cores!!! Dourado e prateado. Capim de ouro e prata. Compra
branca, compra preta, compra mulata. Olha o capim.
SEU JOSÉ – Bonecas! Bonecas e brinquedos! Diretamente das fábricas de São Paulo pras crianças da Bahia. 3
por 20. É barato, freguesa. É barato. O patrão ficou maluco, mandou vender sem lucro. É presente. Presente de
Natal. É pra acabar. É aqui mesmo. Dê alegria ao seu filho na noite de Natal. A sua boneca merece uma boneca.
Vamos, minha gente. É aqui mesmo.
226
(Cresce a animação. Os pregões agora se misturam. Entra o cantador com o seu violão, uma vara de ventoinhas
e seu tamborete. É recebido com grande alegria. Arruma o seu lugar. As ventoinhas devem funcionar como uma
árvore à sombra da qual ele se senta.)
MANÉ – (Deve dar a impressão que está sempre sobrecarregado de bagagens e de um homem que viaja muito.
Afina seu violão e começa a sua cantiga).
Presta ‘tenção minha gente
gente boa da Bahia
que vou contar uma estória
nesta minha poesia
pode parecer mentira
pra quem não acredita
em mistérios e em magia.
Tudo isso aconteceu
[f.3]
é melhor não duvidar
sou cantador respeitado
aqui e em todo lugar
não sou homem de vaidade
sou cantador de verdade
é melhor acreditar
Foi em Caruarú-Pernambuco
onde viveu Vitalino
um mestre que cresceu
sem deixar de ser menino
fazendo brinquedos de barro
de gente ou d'encantado
era esse o seu destino
(À medida que o cantador vai citando os atores vão tomando formas estáticas, isto é, assumindo os bonecos. Assim
ficam inclusive o cantador depois de assumir o cangaceiro durante o toque dos sinos, da primeira chamada para
a Missa do Galo. Depois deste toque eles vão se animando aos poucos. Essa mutação deve ter uma atmosfera de
magia. Mesmo depois de “animados” deverão sempre conservar alguma coisa de bonecos como os mamulengos).
[f.5]
JUDITE – Nos dá fala, movimento
pra tudo sair a contento
pra Deus Menino louvar.
MARIA – (Transformando-se)
Ai, meu Deus, que cansaço
tão sozinha, o que é que faço?
em pé, já não me aguento.
[f.6]
quero pois esclarecer:
Se Nossa Senhora era mãe
Por que ela não pode fazer?
[f.7]
DAVID – Não tenho medo de cobra
bicho sem serventia
quanto mais de boneco
que arrota valentia
amarelo, empapuçado
cara de papa farinha
tome vergonha na cara
e cai logo na rinha.
(Parte em defesa de Baltazar. José e Gaspar tentam em vão separar a briga e vão levando a pior. Judite e Maria
gritam. Uma grande confusão se estabelece. Ninguém mais se entende. Aos poucos o boneco cangaceiro que até
agora estava imobilizado, se anima e ao ver a confusão pega a sua garrucha e dá uns tiros para o alto. Susto
geral. Maria cai desmaiada)
[f. 8]
que hoje, esta noite santa
é noite de paz e amor
JUDITE – Tá no matulão de couro (Gaspar vai ao matulão, antes se depara com o galo)
ficar recolhido e de pé
tenho a honra de fazer
o papel de São José.
Vamos todos, minha gente
que a hora tá pra vir
do nosso pai Vitalino
a santa promessa cumprir
(O presépio está armado. Aos poucos vão se imobilizando. Voltam a ser bonecos de Vitalino. Tocam os sinos de
natal. Marcar o fim da peça com um cântico natalino, ou com um baile pastoril ou terno de reis).
FIM
Jurema Penna
Salvador,- 12.10.77
[f.14]
Esta peça foi lançada no “Ciclo de Natal-1977” promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da
Secretaria Municipal de Educação e Cultura da Prefeitura da Cidade do Salvador, tendo se apresentado nos
seguintes locais: Igreja do Rio Vermelho, Igreja de São Caetano, Solar do Unhão, Largo da Lapinha, Parque da
Cidade e Largo do Pau da Lima.
FICHA TÉCNICA
Música
Improviso, de Mestre Vitalino
Zabumba, de Mestre Vicente
Cenário e Figurino
Leonel Amorim
Movimentos e Expressão
Guido Lima
239
Assistente de Produção
Meire Lucia
Assistente de Direção
Lina Lemos
Produção
Companhia Baiana de Comédias
Elenco
Eduardo Logulo
Marcio Meireles
Frieda Gutman
Daniel Robson
Paulo de Lacio
Marcus Antonio
Jandira de Jesus
Jorge Santori
Waldemar Nobre
Direção
Jurema Penna
Prêmios Recebidos:
Troféu Martim Gonçalves – Conferido pela TV Aratu: Melhor Figurino
Troféu Martim Gonçalves – Prêmio Especial do Juri pelo trabalho de pesquisa
Serviço Nacional de Teatro – Melhor Espetáculo Infantil
Participação no IV Festival de Penedo – Alagoas
Esta edição teve o seu lançamento realizado no dia 29 de março de 1978 durante a 1ª Semana da Cidade do
Salvador, quando se comemorou os 429 anos da fundação da Cidade.
240
MARIA – (Gozadora) Muda, Seu José. Não somos nós que fazemos esse tal de
folclore? Eu vi na televisão o homem dizendo que quem faz esse folclore é a gente. O
povo (PENNA, 1978, p.[3]).
No excerto acima, Seu José se refere à necessidade de atualizar o pregão cantado por
Quico em que se enuncia: “pai me dá um tostão/ pra comprar pirulito”, demandando uma ação
fundamental por parte desses sujeitos, qual seja, “mudar o folclore”. A noção de folclore
apresentada distancia-se de uma definição estanque ou tradicional, em que as manifestações
populares devem ser preservadas. Assumindo o protagonismo desse processo, a personagem
Maria exorta o personagem Seu José a mudar o folclore, justificando essa ação pelo discurso
do “homem da televisão”.
As formulações teóricas acerca do folclore estavam em pleno vapor a partir da década
de 1950, com a criação do Conselho Nacional do Folclore, no intuito de preservar as tais
manifestações dos efeitos do tempo (SOARES, 2010). Neste período, também, instituem-se as
cátedras universitárias de estudos folclóricos, vinculadas tanto à sua manifestação literária,
quanto antropológica. No referido contexto acadêmico, a noção de preservação estava
profundamente ligada a uma interdição da mudança da cultura, fazendo-se preciso resguardar
o folclore brasileiro do próprio povo, origem dessas manifestações.
Durante a década de 1970, a preservação das manifestações populares encontrava-se
bastante presente na ideologia do governo militar, que pretendia transformar o folclore em
elemento integrador nacional. O referido governo dedicou-se à criação de instituições
responsáveis por gerenciar as questões da cultura no âmbito nacional, com a lei nº. 74, de 21 de
novembro de 1966, bem como o desenvolvimento de planos nacionais de cultura. O folclore
seria capaz de integrar as três matrizes culturais formadoras do Brasil, noção sedimentada na
ideia de mestiçagem postulada por Gilberto Freyre. Essas ações têm como resultado a escolha
de certas manifestações, em detrimento de outras, homogeneizando a diversidade cultural em
função de um discurso de orgulho cívico, vinculado a um calendário de festejos. Destacamos,
como indicativo desta política, a instituição do dia do folclore, durante o governo de Castelo
Branco (SOARES, 2011).
É também no governo militar que o folclore torna-se mercadoria a ser associada à recém
constituída indústria do turismo. Tanto os folcloristas vinculados aos poderes públicos, como
os intelectuais que pensavam sobre esse tema, viraram figuras responsáveis por garantir que
tais manifestações fossem legítimas, a fim de que se constituíssem como um produto a ser
vendido pela referida indústria. Assim,
243
é com a finalidade de fazer com que o turista descubra o Pelourinho nestas férias de
julho que dois grandes espetáculos estarão em cartaz por toda a temporada próxima
do turismo em Salvador. Um deles é “BAHIA LIVRE EXPORTAÇÃO” no teatro
SENAC. […] A peça é uma revisão das origens da cultura afro-baiana – segundo o
julgamento de Jurema Penna, intérprete consagrada do teatro e do cinema brasileiros.
Do Banzo Africano ao Carnaval, as saudades da Feira de Água de Meninos e o samba
de rodas do Mercado Modelo, com o exotismo de Carmem Miranda e o mistério do
culto dos Orixás até a tradicional festa do Senhor do Bonfim. BAHIA LIVRE
EXPORTAÇÃO é um retrato da Bahia autêntica, seus costumes e sua cultura sem
sofisticação. Para tanto, para ser fiel aos princípios do espírito baiano, Jurema Penna
consultou as obras de Gregório de Matos e Jorge Amado e gente que fez o espírito do
povo da Bahia, os velhos conselheiros de esquina que não dizem por meias palavras
como foi a Bahia do passado (CENTRO, 1976, grifo nosso).
244
A peça pode, então, ser considerada um espetáculo destinado aos turistas, já que uma
das suas funções seria divulgar os novos espaços do SESC-SENAC Pelourinho. Representar a
cultura baiana no palco, em um teatro localizado no Centro Histórico de Salvador, evoca certos
sentidos especiais, pois toma, como objeto de encenação, uma cultura viva com que se esbarra
nas históricas esquinas e ladeiras. Além disso, o espetáculo propõe-se a fazer uma introdução à
história da Bahia, remetendo a um passado para contextualizar o presente, mostrando como essa
cultura baiana se dissemina e engendra na literatura, nas artes plásticas e, sobretudo, na música.
Aposta-se na representação de uma “Bahia autêntica”, de “um espírito baiano” ao qual
o espetáculo é fiel e ainda à simplicidade e espontaneidade de uma “cultura sem sofisticação”
como atrativos para movimentar a máquina turística. A análise feita do espetáculo é calcada em
impressões superficiais da cultura baiana, o que fomenta uma visão estereotipada. Trata-se de
um retorno às matrizes culturais que contribuíram para a constituição da identidade baiana.
Como mercadoria de “livre exportação”, a cultura interessa pelo exotismo de sua religiosidade,
pela alegria dos seus festejos e possuiria uma essência proveniente de seu passado histórico.
Conforme a matéria citada, “A peça é uma revisão das origens da cultura afro-baiana”.
Cumpre, desse modo, questionar que cultura baiana Jurema Penna escolhe para trazer no palco.
Tomaremos um trecho do início do espetáculo para levantar possíveis respostas:
Para tratar do legado africano no Brasil, uma das primeiras referências feitas, a
dramaturga desconstrói o sentido de herança cultural como um todo fechado, que é transmitido
de uma geração a outra. Ao tratar da capoeira, Jurema Penna traz as figuras icônicas de Mestre
Pastinha e Mestre Bimba. A fazê-lo, põe em evidência os novos contornos dados à essa
manifestação que vem para o Brasil e aqui assume outros gestos e formas, constituindo novos
saberes que seriam impossíveis se essa arte permanecesse do outro lado do Atlântico. Nega-se,
dessa forma, a África como terra mítica, reduto de saberes reproduzidos no Brasil, ao tempo
em que se assume a dinâmica das interinfluências culturais, colocando o povo baiano não no
lugar de passivo receptor da cultura africana, mas de reconstrutor desses conhecimentos.
245
Jurema Penna então toma a vivência do negro cativo para tratar da renovação da
capoeira do Brasil, compreendendo-a como uma forma de defesa pessoal utilizada pelos
escravos na fuga pelos matagais e contra a violência do Capitão do Mato. Lopes (2004)
esclarece que a capoeira também possuía um caráter lúdico, sendo uma forma de recreação para
o negro durante o período colonial e imperial. O emprego de “dança-luta” e “luta-brinquedo”
(PENNA, 1976, f.2) dão conta de representar o caráter indefinível dessa manifestação que
assume o aspecto lúdico ou combativo, conforme o contexto. Neste trânsito, a capoeira passa
constituir parte das tradições populares baianas, em forma de folclore:
(Os capoeiristas vão tomando posição – os outros se preparam para a cena dos pregões
apanhando da decoração do palco o material necessário. Enquanto esperam a sua vez
fazem a “roda da capoeira”) (PENNA, 1976, f.2)
É interessante perceber que esta arte marcial não é mostrada apenas como um elemento
cênico, pelo seu exotismo, ou pelos movimentos dos bailarinos, restringindo-se à expressão
corporal, mas é acompanhada de uma reflexão acerca da sua história e dos diálogos multilaterais
existentes entre Bahia e África. Notamos, assim, que a noção apresentada de capoeira diverge
dos conceitos que trazem o folclore como cultura inferior, que não passa pelos processos de
reinvenção e reconstrução.
Nessa tentativa de reinterpretar os sentidos dados ao “jeito baiano”, destacamos uma
das cenas de BLE, em que um turista paulista pede informações sobre um endereço. Frente à
demora de conseguir a resposta, perde a paciência, mas acaba cedendo à hospitalidade baiana e
estabelecendo uma relação de amizade. Em vez de tentar desconstruir o estereótipo do “baiano
lento” a partir da negação, Jurema Penna tentar mostrar a perspectiva deste, de maneira a
justificar suas ações. Veja-se a referida passagem.
Baianos, lentos, preguiçosos e que dizem Falam – os apressados – que somos lentos,
sempre – (Slide – não faça hoje aquilo que voce preguiçosos, e que dizemos sempre
pode fazer amanhã) Claro, talvez amanhã a SLIDE (Não faça hoje aquilo que você pode fazer
gente descubra que não era mesmo necessários amanhã)
fazer. (PENNA, 1975a, f.4) NARRADORA ― Claro, talvez amanhã a gente
descubra que não era realmente necessário fazer.
ATRIZ I – (Voltando a narração) Vocês podem (PENNA, 1976, f.4)
perder tempo, mas ganham amigo, o que pra
nós, é muito importante. (PENNA, 1975a, f.6) NARRADORA ― Vocês podem perder tempo.
Mas, em compensação ganham amigos, o que
para nós baianos é o que mais importa. (PENNA,
1976, f.5)
246
PRETO VELHO ― Só tem um jeito. Vamo engá eles. Vamo botá os santos dele no
peji e dizê a eles que, por exemplo, essa daí (mostrando uma imagem de Santa
Barbara) com essa espada na mão e esse negócio parecendo uns raios é Yansan. Esse
montado nesse cavalo, (mostra São Jorge) matando esse bicho é caçador dos bons –
Só pode ser Oxossi. (Idem Senhora Santana) Essa com esse pano na cabeça, essa
menina do lado – parece uma velha – só pode ser Nanã. (Idem N.S. da Conceição)
Essa é danada de bonita. Vestida de roupa dourada. Pisando nessa cobra – É Dona
Oxum.
PRETO VELHO ― Ah… esse é o Sr. do Bonfim, o santo da colina. É santo grande
pra eles. Só pode ser o pai de nós todos. Só pode ser Oxalá. (PENNA, 1975a, f. 8-9)
Flagramos, assim, uma indistinção entre Santa Bárbara e Iansã, presente na relação de
sinonímia estabelecida entre os termos, não sendo possível identificar a preponderância de uma
sobre a outra, resultante de uma devoção popular, que funde cultos e narrativas religiosas. Note-
se como interferência da religiosidade africana sobre o catolicismo, a prática de “dar caruru”,
comida tipicamente africana e afro-brasileira, oferecida em homenagem a São Cosme e Damião
e à Santa Bárbara, referências católicas profundamente sincretizadas na Bahia.
248
sua arma – o machado de pedra. (PENNA, 1975a, praticou incesto. Em Xangô também [há] um caráter
f.10) hermafrodita que tende cada vez mais a desaparecer,
acentuando-se o aspecto masculino. Várias são as qualidades
de Xangô. Agodô, Afonjá, Lubê e Airá; este último por ter
um pacto com Oxalá se veste de branco e não come azeite.
Quando o ritmo da dança de Xangô aumenta, ele tira de um
saco imaginário as “pedras do raio” e as atira com violência
e com sua característica força. (PENNA, 1976, f.8)
Nos dois casos anteriores, os componentes de uma camada média que estava ligada
ao escravismo por uma série de elos diretos ou permeados, jogavam, manipulavam e
usavam essas idéias para estabelecerem uma modernização sem mudança social. No
250
caso da Inconfidência Baiana, essas mesmas idéias foram usadas como ferramenta
ideológica para uma mudança social radical que atingiria as próprias bases estruturais
da sociedade.
Também conhecida como Revolta dos Búzios ou Revolta das Argolinhas, por conta das
insígnias que os insurgentes utilizavam para se identificar, este foi um movimento fortemente
influenciado pelos ideais da Revolução Francesa e que pretendia a emancipação do país. A
história conta que Luiz Gonzaga, recém chegado da Europa e dotado dos ideais revolucionários,
agregou-se à sociedade literária Cavaleiros da Luz. O grupo de intelectuais dedicava-se a
discutir os princípios da revolução francesa e a disseminar essas ideias para a população, sem
pretender, no entanto, uma ação efetiva que colocasse em prática tais princípios (MOURA,
2003). Foram as camadas populares que se organizaram em uma atitude revolucionária, com a
finalidade de combater a escravidão, os abusos da metrópole sobre a colônia e garantir a
emancipação desta. Descobertos, os revoltosos foram enforcados e esquartejados, a fim de
amedrontar e reprimir outros que seguirem tal exemplo. Os quatro condenados à forca são
descritos na peça por meio de sua cor e profissão, o que indica uma revolta liderada por ex-
escravos e afrodescendentes, asseverando seu caráter popular:
A cena da morte dos revoltosos é encerrada com uma referência ao Hino ao Dois de
Julho, cuja indicação da rubrica traz a suavidade com a qual deve ser executada, funcionado
como um prenúncio às lutas pela confirmação da independência que estariam por vir. A
narradora cumpre sua função de esclarecer a referência e estabelecer relação entre os
movimentos emancipatórios:
SOM (Muito suavemente entre o som de uma flauta com o Hino ao Dois de Julho)
NARRADOR – E, das cabeças cortadas, e dos corpos esquartejados e do máu cheiro
que se espalhou pela cidade de Todos os Santos durante vários dias, nasceram aqueles
que iriam construir no campo de batalha a independencia da Bahia, consolidando a
Independencia do Brasil. (PENNA, 1976, f. 12)
251
O Dois de Julho é data histórica lembrada pelos baianos como uma luta pela
independência das mais autênticas e populares, opondo-se à artificialidade do “Grito do
Ypiranga”. Marcada pela figura quase mítica do Corneteiro Lopes e uma série de heróis que
fizeram resistência às tropas portuguesas e que são citados na peça, tais como Maria Quitéria,
General Lima e Silva, Soror Joana Angélica, General Labatut, João das Botas, não esquecendo
a referência aos sertanejos do município de Pedrão, presentes no Batalhão dos Encourados.
NARRADOR – E todos aqueles que a historia não lhes gravou os nomes, mas que o
seu sentimento de liberdade foi simbolisado na figrura do indio brasileiro que preferiu
morrer a se deixar escravizar.
NARRADORA – A mulher baiana tomou parte ativa nas lutas pela independencia da
sua terra e exigiu que tambem estivesse representada. E passaram para nós, como
simbolo do Brasil livre, na luta pela consolidação da nossa independencia conquistada
em 2 de julho de 1823, as figuras do Caboclo e da Cabocla.
(Os dois em destaque na atitude do desfile – o “povo aplaude com bandeirolas nas
mãos. Outros também estão vestidos de caboclos transitando pelo palco.) (PENNA,
1976, f. 12).
Apesar de não citar nomes como o de Maria Felipa, mulher negra que liderou as lutas
pela independência da Bahia na Ilha de Itaparica, Jurema Penna faz referência a uma ampla
camada da população afrodescendente que lutou em favor da expulsão dos portugueses,
anônimos que não tiveram seus nomes registrados, mas que, contagiados pelo sentimento de
pertença à terra e de emancipação de uma situação colonizadora, consolidaram a independência
do Brasil. Fica posto, assim, o compromisso de Jurema Penna em representar no palco uma
história da Bahia que também contemple a população que fez parte ativamente da luta, não
apenas os nomes que a historiografia escolheu como heróis.
Num contexto em que o elemento africano é destacado por sua cultura, pelas
manifestações religiosas, que dotam o povo baiano de uma singularidade, as questões trazidas
pela Revolução dos Alfaiates e discutidas no bojo de uma peça de teatro estabelecem uma rasura
nesta ideia de “cultura baiana” inicialmente estabelecida. Entendemos que ao trazer aspectos
de sua combatividade e do seu protagonismo em momentos importantes da história da Bahia,
Jurema Penna avança para além da contribuição do negro nas áreas da cultura e da arte,
trazendo-o como elemento fundamental para as lutas. Aos consagrados heróis da
independência, agrega os sapateiros, artesãos e ex-escravos que tiveram papel decisivo para
nessa luta. Em entrevista a Lena Franca, Jurema Penna demarca sua visão de história:
livro oficial não conta. É aquela história que quem conta são os mais velhos. É esse...
o passar, a tradição oral, essa pra mim é que vai fazer realmente essas mesclagem,
esse amálgama maravilhoso que é o ser baiano, o ser carioca, o ser mineiro. É essa
história que o livro não contou. (PENNA, 1984, f. 26)
Ramon, o Egípcio – Onde estão os hieróglifos da língua falada pelo povo? Em que
papiro ou pedra estão gravados os sinais? Onde está a escrita desse povo iorubá?
Onansokum – No coração, Senhor emissário. Nossa escrita é guardada no coração
como a própria vida. Os sinais são objetos sagrados. Cada objeto tem uma lenda. Cada
lenda tem história. Cada história é um mito com uma lição sagrada. E a trama da
história fica presa na cabeça, orientando o caminho de cada pessoa. (PETROVICK;
MACHADO, 2004, p. 108)
O estudo dos mitos, no contexto escolar, teria como fundamental importância para
criança a construção de uma identidade com a ancestralidade, que edificada na narrativa, torna-
se caminho de saberes que apontam para o conhecimento do mundo, do outro e de si. Dessa
forma, o mito comunica-se com a sua vivência na comunidade, podendo constituir um modelo
de atuação social, de resolução de conflitos, bem como de enfrentamento de situações.
A esfera de encantamento que perpassa essas narrativas remete o ouvinte a um tempo
ancestral, mas que, ao mesmo tempo, se atualiza no momento contemporâneo, porque possui
com ele uma identificação direta. De acordo com Lévi-Strauss (1989, p. 262),
[a] história mítica tem o paradoxo de ser ao mesmo tempo disjuntiva e conjuntiva, em
relação ao presente... Graças ao ritual, o passado “disjunto” do mito articula-se, por
um lado, com a periodicidade biológica e sazonal, e por outro, como o passado que,
ao longo das gerações, une os mortos e os vivos.
63
Iemanjá Conlá, qualidade de Iemanjá que se torna mulher de Xangô.
256
ARRUAÇA – (Um tempo depois decide) É que o pai tava falando besteira de novo.
Disse que não acredita em D. Yemanjá que… só acredita no dia que vê.
DULCE – Não se avexe não, meu filho. Não vai acontecer nada não. Minha mãe
Oxum não vai permitir, Eu faço as minha obrigações prá Dona Yemanjá conforme os
preceito por mim e por ele. Faço tudo nos conformes. (PENNA, 1980, f.6-7)
A dinâmica da vida de pescador e o próprio medo de morrer no mar provoca uma reação
em Pedrão que o faz assumir as águas como sua casa e a terra como lugar de passagem. O
personagem entende o ambiente marítimo como sua origem e como lugar para onde irá retornar
no momento de sua morte. Nesse sentido, o medo de não voltar à terra, tão temido pelas
257
Na segunda parte da canção, Caymmi canta a história de Pedro, pescador que passava
as noites no mar de onde tirava seu sustento. O momento do “sol raiá” era a hora do alívio,
sobretudo para Rosinha de Chica, que lhe nutria grande afeição. Para tristeza de Rosinha, houve
o dia em que o raiar do sol não o trouxe de volta, apenas o seu corpo foi encontrado. A canção
termina com Rosinha enlouquecida pela perda, lamentando “Morreu, morreu”.
além de outros que se prestam à espetacularização do culto a fim de entrar no circuito turístico
da cidade.
PEDRÃO – Ignorância, isso sim. Acredito mesmo é nesses dois braço. Esse negócio
de candomblé é pra encher os bolsos dos pai de santo. (Arruaça chegou ao bar? Meio
sem graça, balde na mão)
RAIMUNDÃO – Tu ‘tá falando demais Pedrão.
PEDRÃO – Tu já viu religião que se preza ser atração pra turista?! Agora então virou
moda. Religião é religião, ora essa! (PENNA, 1980, f.5)
A desconfiança de Pedrão em relação a essas práticas acaba por dar espaço a uma atitude
desrespeitosa com a divindade das águas. E assim, para acreditar em sua real existência, Pedrão
desafia Iemanjá a aparecer para ele.
PEDRÃO – Já falei. Se essa tal de Dona das Aguas existe que me apareça. Ta no dia
que eu vê, eu acredito.
RAIMUNDÃO – Cuidado Pedrão, ela pode castigar você.
PEDRÃO – Sai dessa seu RAIMUNDÃO. Eu só queria vê prá crer. Só isso. Não diz
que é tão bonita? Então por que se esconde da gente? (Um silêncio constrangedor.
Os olhos de Pedrão se encontram com os olhos da Yao. Pedrão se volta, vê Arruaça)
(PENNA, 1980, f.5).
É possível, então, estabelecer outro diálogo entre a peça Iemanjá... e a lenda recolhida
por Reginaldo Prandi (2000, p. 393). O mito narra a repreensão feita por Iemanjá Sessu ao seu
filho Xangô, pois este era muito briguento. Recriminado por sua mãe, Xangô revoltou-se e
colocou fogo pela boca, nariz e ouvidos. Furiosa com a desobediência do filho, Iemanjá fez o
seu corpo crescer e levantou as marés e as ondas ao ponto de quase afogá-lo. Xangô então pediu
clemência à mãe e ela o atendeu. Desde então, é a única que pode repreender Xangô e, por isso,
também não admite que ninguém fale mal dele.
O comportamento de Xangô para com sua mãe ressoa nos desafios feitos por Pedrão a
Iemanjá. Pedrão reitera diversas vezes a afronta ao orixá, mesmo quando advertido pelos
colegas de comunidade para não provocá-la. O tom de deboche das suas provocações soa como
um insulto ainda mais grave a Iemanjá.
O atrevimento desperta a ira da Dona das Águas, que o puni com o afogamento,
reiterando o respeito à autoridade da mãe, figura primordial na cultura iorubana.
259
YAÔ – personagem sem explicações frias e IAO – Personagem sem explicações frias e
racionais. Talvez no dizer do povo "uma racionais. No “dizer do povo” é "uma fraca da
fraca da cabeça que se acredita ser a própria cabeça” – “D. Yemanjá desceu nela e ninguem
Yemanjá”. nunca mais acertou a tirar.”
(PENNA, 1975b, f. 1) (PENNA, 1980, f. 1)
A Iaô é descrita como uma “fraca de cabeça”. Para receber o orixá, a noviça deve ter
sua cabeça devidamente preparada, passando por rituais de iniciação, caso contrário, a presença
do orixá poderá não atuar de forma positiva sobre ela, instaurando um desequilíbrio entre a sua
subjetividade e o transe ritualístico. Em T75b, este desequilíbrio da Iaô determinava uma
percepção de si como a própria encarnação de Iemanjá. Em T80, essa consciência já não existe,
pois a própria Iemanjá assume as ações da iaô. Para a construção do enredo, esta mudança tem
um papel crucial, pois a Iaô torna-se a presença da própria Iemanjá, que observa os
acontecimentos em terra.
261
Vale também ressaltar que a Iaô não possui falas, toda a comunicação durante as cenas
é feita por meio dos olhares, por expressão corporal, ou ainda por meio da dança de seu orixá.
Tal condição pode ser proveniente do seu estado psíquico, uma vez que nas casas tradicionais
de candomblé, os orixás não oralizam, ou o fazem raramente, sua comunicação se dá,
preponderantemente, por meio de outras linguagens.
As remendeiras, por sua vez, constituem ora um personagem coletivo, ora personagens
individuais. Quando personagem grupal, utilizam-se do canto para encadear a narrativa ou
marcar a conclusão da cena e início de uma nova. Podem, também, fazer referência à tradição
popular de cantar durante o desenvolvimento de uma atividade braçal, a fim de estabelecer uma
socialização entre os trabalhadores, além de ser uma forma de passar o tempo. Lembramos que
a tarefa desse grupo caracteriza-se pela repetição e pelo caráter mecânico.
A cantilena das remendeiras faz recordar o coro das tragédias gregas. Conforme Ceia
(2010, verbete),
O coro tinha várias funções no drama grego: é uma personagem da peça; fornece
conselhos, exprime opiniões, coloca questões, e por vezes toma parte activa na acção.
Ao coro competia também criticar valores de ordem social e moral e, por outro lado,
tinha ainda o papel de espectador ideal ou voz da opinião pública, reagindo aos
acontecimentos e ao comportamento das personagens como o dramaturgo julgava que
a audiência reagiria se estivesse no seu lugar. Acresce ainda a função de elemento
impulsionador da emoção dramática, conferindo movimento ao que está a ser
representado e promovendo quebras de acção por forma a levar o público a reflectir
sobre o que se está a passar.
passagem que segue, destacamos o grupo de remendeiras como comentadoras das ações. A
cantiga funciona como conclusão da cena e marcação para a entrada do próximo grupo:
TONINHA – Como sempre. Saiu pro mar, como saia todo dia. Em cima da jangada.
[...] Quando a jangada deu na praia, tava com mancha de sangue. Diz que foi cação.
(Pausa, cantam)
Entrou lua, saiu lua
mas inté de madrugada
esperei o meu benzinho
foi pro mar, numa jangada.
(PENNA, 1980, p.2)
DULCE – É coisa de home. Um dia ‘tá pelo pé, outro pela cabeça. A gente nunca
sabe. (Fita os olhos no mar. A Yaô surge no fundo da casa)
REMENDEIRAS (Cantam)
– Mesmo perto de mim – serenô
o seu pensamento sái – serená
só queria saber – serená
prá que mundo qu’ele vai – sereno – serená – sereno – serená.
(PENNA, 1980, p.24)
Aqui, Dulce tenta disfarçar para Pequena a sua percepção do comportamento de Pedrão.
Busca dessa forma, minimizar a magnitude do problema que enfrenta com o intuito de
dissimular suas preocupações e temores sobre o fato para a sua rival. A cantiga das remendeiras,
no entanto, descortina essa dissimulação, exibindo a dúvida que assola Dulce.
As remendeiras também se posicionam na relação entre os planos material e espiritual,
apresentando atitudes premonitórias em algumas passagens do texto. Transcrevemos o
momento em que Pedrão é advertido por Raimundão a não ir para o mar na “noite de
encantado”:
RAIMUNDÃO – Sei lá… dá um aperto no coração. Pode dizer que é medo. Tem
nada não. E quer saber de uma coisa, Pedrão? Acho melhor tu não ir. Conselho de
mais velho. (Pedrão acabou de fumar. Dá um tapa amigável nas costas de
Raimundão e do filho e vai para o mar. Arruaça vai em direção de Ceição.
Raimundão se encaminha para a casa de Mãe Rosa. Dulce em casa passa roupa.
Enquanto dobram as redes as
REMENDEIRAS Cantam)
Pescador, meu bem querer
fuja do rastro da lua
é caminho da cantiga
263
Para as demais cantigas não foram encontradas referências como estas, o que nos leva a
propor que a maioria seja composição de Jurema Penna, seguindo os moldes dos cantares
populares, ou ainda, apropriações que esta fez, promovendo uma retextualização destas
canções.
De T75b a T80, Jurema Penna empreende uma modificação na descrição física de
Iemanjá que é crucial para a representação do povo negro no teatro: a deusa do mar não será
descrita como uma mulher branca, mas sim como uma mulher negra em toda sua beleza e
esplendor. No relato de uma de suas aparições na praia, feito por uma das remendeiras, Iemanjá
é assim descrita: “tava ali: parada na praia, com seu belo negrume, coberto de luz”. (PENNA,
1980, p. 9), evidenciando-se, desde o início da peça, que se trata de uma Iemanjá bela, cuja pele
negra resplandece.
Tomando-se as modificações textuais empreendidas na peça, destacamos aquelas
realizadas nas cantigas das remendeiras, que transcrevemos com grifos nossos:
A imagem de Iemanjá mais difundida apresenta-a com pele clara, cabelos longos e lisos,
vestida com o azul das ondas do mar, frequentemente rodeada de outros elementos marinhos,
265
Na África, Iemanjá é uma senhora negra de formas plenas e seios volumosos. E não é
peixe da cintura para baixo. No Brasil, em terreno popular (embora não nos mais
tradicionais terreiros de candomblé), houve uma aproximação entre a orixá nigeriana
e a sereia branca da Europa, dedicada ao canto e ao sexo – e já confundida, aqui, com
a mãe-d’água. Na Bahia, no século XIX, podemos encontrar representações de
Iemanjá como senhora e não sereia, ostentando frondosas tetas.
CASA DE MÃE ROSA – (no quarto dos orixás CASA DE MÃE ROSA – (No quarto dos orixás um pegi,
da casa de mãe rosa um pegi – espécie de altar espécie de altar que sobe em degraus, coberto com uma
que sobe em degraus, coberto por uma toalha toalha branca, bordada. Vasilhas (alquidar) de cerâmica
branca. Vasilhas de cerâmica com as obrigações com as obrigações arrumadas aos pés do pegi. Velas,
espalhadas pelo chão. Pipocas, velas, flores, pipoca, flores, perfumes, pedras lisas, garrafas de mel.
perfumes, garrafas de mel, pedras lisas. Sobre os Sobre os degraus além das “armas" dos orixás, como o
degraus além das “armas" dos orixás, como o machado de Xangô, o pachorô de Oxalá (em destaque) os
machado de Xangô, os abebès de Yemanjá, arco abêbés de Oxum e Yemanjá, arco e flecha de Oxossi,
e flecha de Oxossi, espada de Iansã, etc, imagens espada de Iansan, ferramentas de Ogum, também
de santos católicos. Sentada diante de uma algumas imagens de santos católicos como Santa
pequena mesa está Mãe Rosa. Não deve estar Bárbara e São Jorge e São Cosme e Damião, além de
vestida de “baiana”. Veste-se normalmente, de imagens de índios como Pedra Furada e Jurema. Em pegi
preferência de branco. Usa guias de seus orixás, de candomblé da Bahia não há Pomba Gira, nem Preto
pulseiras e brincos. A mesa é forrada de branco e Velho ou qualquer alusão a Exu. Exu tem sua própria
sobre ela um copo d'agua, uma vela acesa, um casa. Na parte mais alta do pegi a “Dona da Casa
baralho, busios, um bloco, lápis. Guias Yemanjá cercada de flores e fitas. Ao lado do pegi uma
contornam a mesa formando um circulo, dentro pequena mesa forrada de toalha branca e, sobre ela um
do qual serão jogados os busios) (PENNA, copo d'água, uma vela acesa, búzios, num tamborete, lápis
1975b, f.8). e um pequeno bloco. Guias contornam a mesa formando
um circulo, dentro do qual será jogado o ifá: jogo de
advinhação. Sentada à mesa está Mãe Rosa, concentrada
e não manifestada, vestida simplesmente, de preferência
de branco, torço branco na cabeça, guias dos seus orixás,
pulseiras contra egun) (PENNA, 1980, f.8, grifo nosso).
àquela cultura, e que interpreta como desarrumação uma forma de organização que lhe é
desconhecida. A ideia de “obrigações espalhadas” também encontra eco em uma leitura
ocidental das culturas de matrizes africanas como primitivas e inferiores, logo, menos
organizadas e menos ordenadas. O movimento de substituir por “arrumadas” desconstrói a ideia
de cultura de matriz africana como primitiva, reconhecendo nela sua lógica própria, assim como
demonstra uma tentativa de representação da cultura do candomblé de forma engajada.
Na descrição dos orixás que compõem o peji, Jurema Penna irá acrescentar ferramentas
de orixás que não foram relacionados em T75b, adicionando o pachorô, indicando uma
reverência a Oxalá, dispondo os abebés de Oxum junto aos de Iemanjá, citando as ferramentas
de Ogum como decorrência da popularidade do culto a estes deuses no Brasil. A referência aos
santos católicos, antes genérica em T75b, é especificada em T80, trazendo santos no altar: Santa
Bárbara, São Jorge e São Cosme e Damião, relativizando, novamente, o sincretismo do
Candomblé com a Igreja Católica, que, se por um lado, não é mais necessário, por outro,
inscreve-se na história e na vivência do povo. A escolha desses santos não é aleatória, visto que
foram objeto de intenso sincretismo religioso em decorrência das duras perseguições
historicamente sofridas pelas religiões de matrizes africanas.
Na reformulação da descrição do peji, Jurema Penna acrescenta também o culto aos
donos da terra, representados por imagens dos índios Pedra Furada e Cabocla Jurema, uma
tradição presente mesmo nas casas de candomblé tradicionais, em que se rende homenagem aos
ancestrais indígenas que estavam aqui antes da chegada dos colonizadores portugueses e dos
povos africanos.
O acréscimo do esclarecimento “Em pegi de candomblé da Bahia não há Pomba Gira,
nem Preto Velho ou qualquer alusão a Exu. Exu tem sua própria casa”. A exclusão dessas duas
entidades indica a representação de um candomblé de matriz mais dessincretizada, presentes
nas nações Nagô ou Ketu, em oposição a nação Angola, mais permeável ao sincretismo, e o
candomblé de caboclo e a umbanda, que tendem a ser abertos ao culto das referidas entidades
(PINHO, 2003). Por sua vez, é válido ressaltar como o discurso, sobretudo o relativo a Exu,
adquire uma forma normativista, estabelecendo uma proibição em relação a representação desta
entidade no peji do candomblé. Como esta modificação se realiza no espaço da rubrica, há,
portanto, uma indicação expressa ao cenógrafo e ao figurista de regras que devem ser
obedecidas para a construção desses espaços cênicos.
No momento da consulta com Mãe Rosa, em T75b, Jurema Penna foge da
estereotipização da mãe de santo vestida com roupa de baiana, marcando a simplicidade das
vestes de sua personagem. Em T80, inclui a delimitação de que Mãe Rosa está “concentrada e
267
não manifestada”, o que se coaduna com o respeito à religião e à figura da ialorixá, sua
autoridade da mãe de santo.
A possessão sagrada marca o clímax do ritual, é o momento do transe, em que os orixás
são incorporados e apresentam-se por meio da dança, em uma manifestação religiosa, mas
também performática (PINHO, 2003). A Iaô manifesta-se por meio da dança de Iemanjá,
marcando o ápice da presença do orixá no espetáculo. Como observa-se, uma série de elementos
é incorporada à descrição da cena, no intuito de detalhá-la:
CASA DE MÃE ROSA – Aos pés de mãe rosa CASA DE MÃE ROSA – Sentada com toda a sua
que está sentada com Raimundão e Pé-Molhado imponência de mãe de santo, Mãe Rosa esta
ao seu lado, a iaô vestida de Iemanjá. Ela inicia a vestida de branco, tendo o seu Ogan Raimundão
sua dança ágil e graciosa. Ela dança por todo o de pé ao seu lado. A Yao agora vestida de filha de
palco, onde todos estão prostados. A luz vai Yemanjá bate caça aos pés de Mãe Rosa e depois
decrescendo até restar apenas um foco sobre a aos pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a
iaô; black rápido. Volta em seguida em sua dança ágil e graciosa. Dança por todo o palco
resistência a… onde estão prostrados. A luz vai entrando em
resistência até restar apenas um foco que
(PENNA, 1975b, f.21, grifo nosso) acompanha a dança de Yemanjá. Black rápido. A
luz volta em resistência. Amanhecer.
(PENNA, 1980, f.21, grifo nosso)
os personagens estão prostrados, enquanto a Iaô dança por todo palco, no entanto, esse
comportamento não representa a via de regra dos participantes dos rituais públicos de
candomblé, que costumam acompanhar a música com palmas ou ainda fazendo coro, quando
solicitados.
É interessante destacar que todas essas modificações foram realizadas na rubrica e não
nos diálogos. No texto escrito para o teatro, a rubrica guarda as indicações para o
desenvolvimento das ações no palco, traduzindo para as outras linguagens as descrições ali
postas. É também espaço em que o dramaturgo constrói a sua poética, fazendo uso dos recursos
narrativo-descritivos para composição do enredo. As modificações analisadas acima serão
portanto traduzidas para o espetáculo, fornecendo uma representação do candomblé pretendida
por Jurema Penna, numa forma mais próxima às casas tradicionais baianas.
A mudança na caracterização do cotidiano da mãe de santo permite também entrever a
subjetividade dessas sacerdotisas, que abrem mão de sua vida para dedicarem-se à condução da
vida espiritual e social de uma comunidade. Como afirma Campos (2003, p.21) “a aceitação
desses papéis sociais implica um processo de desindividualização”. Mãe Rosa sempre aparece
em cena trabalhando, organizando as atividades do terreiro, consultando os búzios, atendendo
os fiéis, fazendo as obrigações, dentre outras tarefas.
No excerto abaixo, com grifos nossos, destacamos como essa ocupação das mães de
santo se restringem quase que inteiramente as questões religiosas.
Neste trecho da peça, Jurema Penna faz referência a Camafeu de Oxóssi, personagem
do cotidiano soteropolitano que era Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e dono do restaurante
que levava seu nome, localizado no Mercado Modelo, em Salvador. Em T75b, Mãe Rosa iria
ajudar Camafeu com as tarefas da cozinha, cuja demanda aumenta em decorrência do verão. Já
em T80, a visita de Mãe Rosa estava sendo esperada no “Axé Apô ô Fonjá”, forma variante de
Ilê Axé Opô Afonjá. Mãe Rosa justifica o motivo de sua falta e conta com a compreensão da
responsável pelo terreiro, “Mãe Estela”, numa referência literal à ialorixá, Mãe Stella de Oxóssi.
269
A modificação textual realizada faz alusão às atividades da mãe de santo, que se ocupa das
relações entre o plano material e o plano espiritual e não de um trabalho comum como cuidar
da cozinha.
A menção literal a Mãe Stella de Oxóssi pode também tornar-se um indicativo da nação
à qual o referencial de candomblé de Jurema Penna se vincula. Mãe Stella de Oxóssi lidera o
terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, de nação Ketu, localizado em Salvador, no Bairro do São Gonçalo
do Retiro, que se forma a partir de Mãe Senhora, ialorixá feita no antigo terreiro da Barroquinha
(Campos, 2003). Mãe Stella possui uma proeminente vida intelectual, sendo a primeira ialorixá
a escrever livros sobre sua religião, é colunista do Jornal A Tarde, e ocupa a cadeira 33 da
Academia de Letras da Bahia.
Na década de 1970, os elementos do culto afro adentram o espaço das artes cênicas,
sendo trazidos, muitas vezes, como folclore, com um esvaziamento do sentido religioso e
sagrado. Se, por um lado, os elementos africanos foram incorporados às artes cênicas baianas;
por outro, promoveram uma busca pelos terreiros de candomblé como casas de espetáculos,
como ponto turístico, sem a devida vênia, atraída pelo “exotismo” do ritual, bem como pela
beleza estética do mesmo. Esta busca também fora alimentada pela presença dos orixás na
música popular brasileira, com destaque para as canções de Caymmi. Nesse ínterim, muitos
falsos “pais de santo” se aproveitam da situação para angariar proveitos financeiros dos turistas.
Esta crítica aparece no texto de Jurema Penna, que traz no discurso cético de Pedrão a
desqualificação do candomblé em decorrência da ação de falsários e charlatões, interessados na
espetacularização dos rituais para a sua exploração como fonte de lucros, como podemos
observar aqui:
PEDRÃO – Ignorância... isso sim. Acredito PEDRÃO – Ignorância, isso sim. Acredito mesmo
mesmo é nesses dois braços… esse negócio de é nesses dois braço. Esse negócio de candomblé é
candomblé é bom mesmo prá encher os bolsos pra encher os bolsos dos pai de santo. (Arruaça
dos pai de santo…agora então que virou moda. chegou ao bar? Meio sem graça, balde na mão)
SETE-MOLA – Tu está falando demais, Pedrão! RAIMUNDÃO – Tu ‘tá falando demais, Pedrão.
PEDRÃO – Tu já viu religião que se presa, sê PEDRÃO – Tu já viu religião que se preza ser
atração turistica? Religião é religião, ora essa atração pra turista?! Agora então virou moda.
Religião é religião, ora essa!
(PENNA, 1975b, f.5, grifo nosso) (PENNA, 1980, f.5, grifo nosso)
A expressão “agora então que virou moda” é deslocada de T75b a T80, constituindo
novos sentidos ao lado dos demais sintagmas com os quais se relaciona. Em T75b, a moda do
candomblé resulta em um aumento do faturamento dos “pais de santo charlatões”, já em T80,
a questão da moda é relacionada com a empresa turística. Santos (2005, p.132) esclarece que
270
Não eram poucos os terreiros de candomblé que abriam suas portas para receber os
turistas, realizando festas, inclusive fora dos períodos adequados, a fim de atrair mais visitantes
para dentro de seus barracões. Destaque-se, também, o fato de filhas de santo serem estimuladas
a, no mês de julho, a ir às ruas coletar esmolas para a festa de Omolu, tradicionalmente realizada
no mês de agosto (SANTOS, 2005). Apesar dos empenhos para a desfolclorização do
candomblé e o seu respeito como prática efetivamente religiosa, até os dias de hoje, é bastante
comum ver listada na agenda cultural de Salvador a festa em terreiros de candomblé.
Outro aspecto da representação do povo de santo no texto é a mobilização dos orixás de
cabeça como arquétipos, transformando esses santos em referência para a constituição da
própria identidade e fonte de autoconhecimento. Pensar as características dos orixás como
matriz para o comportamento humano resulta em compreender as relações humanas a partir de
uma complexidade que lhe é própria e que remete à sua ancestralidade. Em Iemanjá..., os
arquétipos são constantemente evocados para explicar o comportamento das personagens. A
preferência de Dulce em não enfrentar diretamente Pequena na disputa pelo amor de Pedrão, o
que é visto por muitos como passividade, é então explicada por Toninha que afirma: “É isso
mesmo. Mulher de Oxum é assim. Sofre calada. Só faz chorar” (PENNA, 1980, f.18).
O arquétipo pode ser também uma possível explicação para os conflitos na trama,
conforme faz Pequena ao ser questionada pelos homens da comunidade sobre suas intenções
com Pedrão e a falta de respeito a Dulce, sua amiga. Compare-se a modificação textual
apresentada da versão T75b a T80:
PEQUENA – Tu nem parece que é Ogan e entende PEQUENA – Tu nem parece que é Ogan de terreiro
das coisas. Tu não vê que Pedrão é um Xangô vivo? e entende das coisas. Tu não sabe que Pedrão é Xangô
E tu já viu um homem de Xangô que não tivesse pelo vivo? E tu já viu um homem de Xangô que não tenha,
menos duas mulher brigando por ele? Mas Xangô, pelo menos, duas mulheres brigando por ele? Mas,
meu nego, é homem de Iansã. Que venham as Obás e Xangô, meu nego é o homem de Yansan. Que venha
as Oxum. Ela não é de Oxum? Que faça seus tudo quanto é Obá e Oxum. Ela não é de Oxum? Que
dengues… Foi com aquela cara de santa que ela me faça seus dengues. Foi com aquela cara de santa que
tomou ele. Eu sou guerreira e sei lutar. Cês sabem ela tomou ele de mim. Mas, sou guerreira e sei lutar.
disso melhor do que eu. Cês sabem que isso é guerra Cês sabem disso melhor do que eu. Cês sabem que
antiga Só que ninguém sabe quando começou. Já isso é briga antiga. Só que ninguém sabe quando
existia antes do meu povo atravessar o mar e vir prá começou. Já existia antes do meu povo atravessar o
cá ser escravo. A briga era antes. Muito antes da gente mar, pra vim pra cá sê escravo. A briga era antes.
271
nascer. E vai continuar depois… depois da gente. Muito antes da gente nascer. Hê, pá-rrei, Yansan
(erguendo o braço direito como se bramisse uma minha mãe. (Ergue o braço como se bramisse uma
espada) RÊ PA HEI, IANSÃ, MINHA MÃE. (Sai espada e sai correndo ao encontro de Pedrão. Os
correndo em direção às pedras. Os homens ficam homens ficam parados, impotentes, diante de uma
parados impotentes diante de uma força muito maior força muito maior que eles. Um tempo) (PENNA,
que eles. Um tempo) (PENNA, 1975b, p. 14, grifo 1980, p. 14, grifo nosso)
nosso)
MÃE ROSA – Quando acontece uma filha de Yansan se apaixonar pelo homem de
outra mulher, é sempre assim: ele é de Xangô e a outra é de Oxum, que devia
sempre se casá com home de Oxossi. Homem de Xangô é homem perigoso. Sedutor.
Xangô teve três mulheres. As três brigaro. (PENNA, 1980, f.18)
MÃE ROSA – Tá certo filha. Se a moça tiver vergonha MÃE ROSA – Tá certa filha! Mas ninguém ‘tá livre de
e for uma moça direita, deve procurar sua Mãe de uma paixão errada. Num caso desse se deve procurar
Santo prá ela ver nos búzios como lavar seu coração uma casa pra jogar um Ifá e ler nos búzios o que fazer
de um pecado desses. para lavar o coração de um amor impossível.
(PENNA, 1980, f.14)
(PENNA, 1975b, f.14)
erradas também podem existir. Em T75b, há a expressão “o coração deve ser lavado do pecado”,
mas, como a noção de pecado não se configura para o candomblé da mesma forma que para as
religiões cristãs, “pecado” é substituído por “amor impossível”. Estas mudanças têm como
resultado a transformação da representação da mulher negra, filha de Iansã, julgada a partir de
uma moral cristã. Em T80, a perspectiva condenatória do pecado é substituída pela
compreensão e acolhimento próprio da rede de relações sociais estabelecida nos terreiros de
candomblé.
Diante do exposto, o texto Iemanjá – rainha de Aiocá propõe a encenação do cotidiano
do povo de santo na cidade de Salvador, a partir das vivências diárias de uma comunidade de
pescadores. Para fazê-lo, Jurema Penna apropria-se da temática, demonstrando respeito aos
saberes e às tradições do candomblé. De uma versão a outra, empreende modificações
elaboradas no sentido tornar mais verossímil a representação que faz da comunidade e da sua
dimensão religiosa.
Nessa experiência cotidiana, as vivências desses sujeitos vão se construindo por meio
do vínculo estabelecido com os orixás, expressos na relação que as mulheres de pescadores
constroem com Iemanjá, na tentativa de garantir o retorno do seu marido; nos estereótipos dos
orixás que moldam a personalidade e o comportamento desses indivíduos; além do culto e das
práticas religiosas. A comunidade, no entanto, é heterogênea, havendo espaço para discordância
e questionamento, mas não para a falta de respeito ou desonra. Nesse sentido, a dramaturga
reconhece o candomblé como forma de religiosidade legítima, e não como mercadoria turística,
compondo um aspecto fundamental do referencial religioso e cultural da Bahia dos anos 1970.
5.1.3 Dilemas negros na conquista de outros espaços, em Negro amor de rendas brancas
Em Negro amor de rendas brancas (NARB), Jurema Penna apresenta Paulo, um jovem
arquiteto negro bem sucedido, criado pela família para quem sua mãe, empregada doméstica,
trabalhava. Casado com uma atriz branca e decadente, Paulo representa no palco os
enfrentamentos que acometem um homem negro que ascende socialmente e que “sai do seu
lugar”, dilemas que dizem respeito tanto à vivência em sociedade, quanto aos conflitos internos.
No início da peça, antes do embate entre o casal, o preconceito é tratado como algo
comum, natural, que se enfrenta com ironia ou com o qual já se está habituado:
273
PAULO – Puxa vida. Nunca me esqueço. Essa PAULO – Puxa vida. Nunca me esqueço. Essa
timidez me atrapalha a vida. Sabia que eu quase timidez me atrapalhava a vida. Sabia que eu quase
voltei da porta do teatro? O porteiro foi logo voltei da porta do Teatro? O porteiro foi logo
implicado com a minha cara. Não queria deixar eu implicando com a minha cara.
entrar. Já não gostei. E, com o meu projetinho JULIANA – Foi, é? Essa eu não sabia.
debaixo do braço, fui entrando… (PENNA, 1971, PAULO – Claro. Criolo que não é ator na porta de
f.13-14) um teatro, é ladrão, assaltante ou esmolé! No
máximo operário desempregado procurando vaga.
Tive de mostrar carteira, os cambáus. Não queria
deixar eu entrar, de jeito nenhum. Precisou muito
papo. Por fim, com o meu projetinho debaixo do
braço, fui entrando… (PENNA, 1972*, f. 12)
JULIANA –Você concorda então. Concorda que há algo de muito errado entre nós
dois.
PAULO – Sempre houve Juliana. Sempre. Há sempre algo de muito errado quando
um preto se casa com uma branca.
JULIANA – (Se assusta. Era a última coisa que ela esperava ouvir… Fica sem
resposta)
PAULO – Não tem consciência disto por acaso? (PENNA, 1972*, f. 22)
Ao expor o pressuposto de que “há sempre algo de muito errado quando um preto se
casa com uma branca”, o personagem apresenta a tendência da sociedade brasileira ao
casamento endogâmico, em que a escolha matrimonial se dá por um indivíduo de mesma etnia
(MOUTINHO, 2003). Sendo negro, Paulo encontra-se muito mais sensível às questões do
preconceito étnico e a exposição desse fato, apesar de evidente para Paulo, causa espanto a
Juliana. Em uma segunda passagem do texto, o discurso amoroso é, mais uma vez, suplantado
pelo preconceito racial, quando Paulo se refere ao julgamento que a sociedade faz do
relacionamento dos dois:
JULIANA – Não precisa dizer mais nada. Criôla racista! Pensa que eu não entendi as
gozações que ela fez porque você é casado comigo?
PAULO – (Quase para se mesmo) E não foi só hoje, e não é só ela. Os brancos se
revoltam quando um negro ousa “sair do seu lugar”. Está apurando a raça é o que êles
dizem. Assim como os cavalos de corrida. Os cães de kennel club, os touros… Os
outros negros se sentem violentados, atingidos, ou traidos. Os grilhões ainda estão em
nossos pulsos, e as palavras, as atitudes, são os açoites do pelourinho. Escravidão que
não acaba nunca. Nem o amor nos liberta. (PENNA, 1972*, f. 6)
Como afirma Paulo, a importância dada aos negros ainda está muito arraigada a uma
noção de mercadoria, indivíduo desprovido de alma, logo de subjetividade ou de sentimentos.
274
A despeito de alguns fatos que indicam o casamento entre o negro e o branca como uma
possibilidade de ascensão do negro, Moutinho afirma que, sobretudo quando o homem é “mais
escuro” e a mulher “mais clara”, é preciso que o negro já possua elementos de prestígio para
que possa competir, nesse mercado, com o homem branco. Paulo, quando conhece Juliana, está
na condição de estudante de arquitetura, mas ainda que não possua o título para legitimar-se, o
prestígio social de um futuro arquiteto encontra-se nele, em potencial.
Durante a discussão, Paulo está disposto a mostrar os problemas antes subentendidos,
escolhendo, dessa forma, tratar abertamente do preconceito étnico em relação aos negros. O
espanto de Juliana, por sua vez, traduz a interdição do tema. É algo de que não se deseja falar,
assunto incômodo que deveria ter sido neutralizado a partir do estabelecimento da relação
amorosa. A escolha da dramaturga é tratar da questão às claras. Quando o discurso amoroso
tende a tornar o preconceito étnico velado, o palco torna-se espaço para discuti-lo. É o lugar em
que o casal fala de seus medos e preconceitos, lugar onde as inúmeras ocorrências de racismo
vistas e experimentadas são expostas.
Juliana segue, tentando fugir da questão étnica, valendo-se, agora, do discurso da
democracia racial, onde negar a existência do conflito é o primeiro artifício para a defesa de um
posicionamento neutro, cuja consequência é a manutenção da discriminação racial. Paulo
contra-argumenta, relembrando dos momentos em que sofreu discriminação racial na presença
de Juliana, trazendo os porteiros e recepcionistas como grandes representantes da interdição
promovida pela ideologia branca e excludente:
PAULO – Como não existe? E os porteiros de alguns prédios, que mesmo se vendo
vestido de branco rico, me mandam subir pelo elevador de verviço [sic]? E aquele
hotel do Rio Grande do Sul que “esqueceu” de anotar a reserva do casal Dr. Paulo
Bispo da Silva e Senhora, quando viram que Dr. Paulo era negro (PENNA, 1972*, f.
21).
Mesmo “vestido de branco rico”, ou seja, trajado com os objetos simbólicos que o
identificam como detentor de condições socioeconômicas suficientes para usufruir de serviços,
de forma equivalente aos brancos e ricos, Paulo não é poupado do racismo. Assim, Jurema
Penna sintetiza no palco inúmeras histórias de pretos que sofrem discriminação nas mesmas
portarias em que os brancos são acolhidos, desconstruindo, no palco, a ideia de que no Brasil o
preconceito tem cunho social e atinge indistintamente os pobres, independentemente de sua cor.
Tal fato era corrente e aparece também nos versos da canção “Tradição”, de Gilberto Gil (1979),
que retrata Salvador em princípios de modernização: “No tempo que preto não entrava no
Bahiano / Nem pela porta da cozinha”, numa clara alusão ao Clube Bahiano de Tênis, reduto
da “pureza branca” da elite baiana aristocrata que não admitia negros nem em posições
serviçais.
Juliana prossegue a discussão trazendo a responsabilidade para Paulo, que possuiria uma
parcela de culpa em relação ao preconceito sofrido, uma vez que não se empenhou em denunciar
o hotel em que foi discriminado.
JULIANA – Não processamos aquele hotel porque você não quis. Existe a lei…
PAULO – (Cortando) Eu sei. Eu sei. A lei Afonso Arinos… Mas, Juliana, êles sempre
se saem muito bem. Inventariam mil reservas. Lotariam o hotel por um passe de
mágica. Depois, se a Lei existe se ela se fez necessária, foi para remediar um mal. A
lei é sempre uma consequência. Um efeito e não uma causa. Um remédio e não a
doença em si (PENNA, 1972*, f. 22-23).
Por sua vez, Brandão (2004, p.61) esclarece os efeitos mínimos da lei, encontrando ecos
na fala do personagem Paulo:
Dita lei tipificou como contravenção penal (delito de menor potencial ofensivo) uma
das formas de discriminação racial, qual seja, a recusa de entidades públicas ou
privadas em atender pessoas em razão da cor, como por exemplo, recuar hospedagem
em hotéis, proibir a entrada em estabelecimentos públicos, obstar a inscrição de alunos
em estabelecimento de ensino. Além de ter sua aplicação restrita a hipóteses prevista
na lei, a jurisprudência firmou-se no sentido de que caberia a vítima provar “o especial
modo de agir”. Estes inconvenientes tornarão a Lei Afonso Arinos praticamente
ineficaz, ocorrendo pouquíssimas condenações pela prática dessa contravenção.
JULIANA – E eu que pensava que [JULIANA] – E eu que pensava que você estivesse acima de
você estivesse acima de tudo isso. tudo isso. Que esta espécie de coisas não existissem pra você.
Que esta espécie de coisa não te PAULO – Me julgava um alienado aos problemas de negro
atingissem. neste país tão somente porque eu consegui uma posição social
PAULO – Sabe, Juliana, quando eu e econômica superior à grande maioria dos seus irmãos de côr.
era criança [...] Por que eu fui além dos lugares permitidos?
(PENNA, 1971, f. 24) JULIANA – Que é isso de lugares permitidos?
PAULO – Futebol, Samba e Carnaval, Pelé, Milton
Nascimento, Portela e Mangueira. “Negro é sensacional é
dono da festa do Povo é dono do Carnaval”. Na quarta feira
volta à sua marmita. Pensou que eu era um alienado Juliana?
JULIANA – Não… não é assim. Nunca me detive para
pensar. Não te vejo como um negro, te vejo apenas como um
homem. UM ser humano como outro qualquer.
PAULO – Sabe, Juliana, quando eu era criança, muito […]
(PENNA, 1972*, f. 22)
A tensão é direcionada para um enfrentamento entre Paulo e Juliana. Paulo expõe seu
posicionamento acerca da questão do negro no país, defendendo que a atuação desse grupo
social está restrita aos “lugares permitidos”. A dramaturga traz para a cena outros elementos do
mito da democracia racial citados por Paulo, que terminam por interditar as possibilidades de
ação do afrodescendente na sociedade brasileira. Restrito, como figura de destaque, às áreas da
música e do futebol, o negro permanece coadjuvante em outros espaços, vinculados, por
exemplo à produção de saberes formais. O personagem Paulo, então, constrói um sentimento
de pertença e de identidade com esta população, de modo que a ascensão social não apaga a sua
identidade étnica.
277
JULIANA – Não… não é assim. Nunca me detive para pensar. Não te vejo como um
negro, te vejo apenas como um homem. UM ser humano como outro qualquer. [...]
JULIANA – Você nunca me falou dessas coisas, como é que eu vou saber? (PENNA,
1972*, f. 23)
PAULO – Êles? Nunca!!! Mas… começaram a sofrer por minha causa. Os convites
para as festinhas em certas casas amigas, vinham sempre com uma recomendação
muito velada e muito sutil, pra não me levarem. Comecei a observar que nos fins de
semana estavamos sempre os três juntos; mas sós, e, só no colégio, na segunda-feira
é que sabiamos como foi a tal da festinha. Forcei Pedro a me explicar o que estava
acontecendo. Eu tinha naquela época uns 15 prá 16 anos. Ele relutou, terminou
explodindo, magoado, revoltado, ferido. [...]
PAULO – Não sei qual dos dois sofreu mais naquela noite. Eramos muito garotos.
Mas sentíamos pezar sobre nós tôda a maldade, toda a injustiça do mundo. Deixei
passar uns dois anos. Quando completei 18 anos os convenci que queria estudar no
Rio. Inventei mil desculpas.
(PENNA, 1972*, f. 25)
JULIANA ― E se eu tivesse ido, o que acontecia (ele a esbofeteia. Ela cai) Negro
sujo! Quem é você para bater em mim, seu porco mundo? (Um curto silêncio)
PAULO ― (Vencido) Racista… racista…Meu Deus ela é racista… no fundo, no
fundo eu sempre soube… Cinco anos para se revelar… (Agressivo) Mentirosa!
Farsante! Hipócrita! (Para si mesmo) Me casei com uma racista… foi preciso que eu
batesse nela para ela se revelar… (Inquisitorial) E o nosso filho, hein Juliana? Você é
realmente estéril, ou toma pílulas escondido com medo de ter um filho mulato?
(PENNA, 1972*, f. 33).
278
Apesar da ênfase à questão do homem negro, Jurema Penna também representa na peça
os dilemas que assomam a mulher negra que ascende socialmente, trazendo a personagem
Dayse, arquiteta da equipe de Paulo, que luta para provar o seu valor:
JULIANA – Tá. Falou (Irônica) Daise. A bela Dayse. Arquiteta tanto quanto você, o
Lula, o Miltinho e o Eduardo; mas assume também a secretária; qualquer dia desses
vocês terão que despedir a Lúcia por inatividade, e agora também, office-boy. Pobre
Zequinha, já, já perde o emprego.
PAULO ― Não é nada disso Juliana. O Studio “S” tem para Dayse uma importância
maior. Sabe Juliana, se é difícil a luta de uma mulher em qualquer carreira liberal,
quanto mais quando ela é arquiteta e negra. É a ela mesma que ela precisa provar que
é bacana. Entendeu? (PENNA, 1972*, f. 15)
Juliana constrói, discursivamente, a mulher negra como serviçal, aquela que precisa
assumir para si tarefas menos qualificadas para provar a sua eficiência ou para satisfazer
expectativas sociais, em decorrência de questões de gênero e etnia. Paulo retruca com o
argumento da necessidade de autoafirmação dessa mulher, evidenciando as dificuldades que
elas enfrentam para se estabelecer em uma carreira, na qual seu gênero e sua cor são estigmas
de inferioridade. Juliana, magoada pela juventude e beleza de Dayse, busca sempre
desqualificá-la, primeiro, como visto antes, em relação a posição serviçal, agora, em relação a
sua sexualidade:
JULIANA ― Não divague, Paulo. Dayse é jovem e linda, e, como toda negra, muito
sexy. Deve ser ótima de cama, não?
PAULO ― Não Juliana, nem tanto.
JULIANA ― (Absurdada, não acreditando muito no que ouviu) O que foi mesmo que
você disse?
PAULO – Exatamente o que você ouviu. (Tom) Mais um preconceito. Toda negra é
mulher fácil e boa de cama. Sem essa Juliana. Você não é negra… mas… quantos
homens você já tinha conhecido na idade da Dayse? Ela tem 23 anos. Quantos Juliana?
(PENNA, 1972*, f. 31)
PAULO ― Não estou pretendendo acusar ninguém. Estou apenas tentando destruir
mais um preconceito com a minha raça. (Pequena pausa - Muito frio, cortante quase)
Fui para a cama com a Dayse, sim. (PENNA, 1972*, f. 31)
279
O uso dos termos ofensivos concorre para evidenciar a gravidade dos problemas
tratados. O desvelamento desse problema torna o palco um espaço para mostrar aquilo que
passa invisível aos olhos do espectador no seu cotidiano.
Ao tomar as questões do negro na Bahia, Jurema Penna não se restringe apenas a tratar
desses temas em termos históricos e culturais, mas direciona o seu olhar para o momento
contemporâneo, visando descortinar, no cotidiano do negro, as dificuldades e sofrimentos,
decorrentes do preconceito. Nesse sentido, a construção do argumento do espetáculo
encaminha-se para problematizar o preconceito abertamente, num momento histórico em que a
noção de democracia racial é preponderante no Brasil e amplamente veiculada pelas mídias e
pelo discurso do governo, tendo como consequência a invisibilização desse assunto.
As questões expostas no discurso de Paulo invalidam um argumento bastante
disseminado nessa sociedade, segundo o qual a ascensão social da população negra resulta no
apagamento das diferenças étnicas. A vivência de Paulo, exposta na peça em questão, nega essa
alegação, uma vez que a noção de pertencimento a uma etnia perpassa a experiência subjetiva
dos indivíduos, constituindo a sua identidade, não sendo possível apagá-la.
Na Bahia dos anos 1970, destacamos a importância fundamental do movimento negro e
dos blocos afro de Salvador, cuja mobilização visa realizar ações de apoio a uma população
marginalizada, promovendo uma valorização social, cultural e estética (PINHO, 2003). A
clareza com que a questão é posta nos diálogos também denota uma significativa elaboração do
tema, indicando uma apropriação que Jurema Penna faz das discussões levantadas pelo
Movimento Negro na Bahia.
Ampliando a noção de cultura baiana presente na obra de Jurema Penna, abordaremos,
na seção seguinte, a apropriação que a dramaturga faz das referências culturais sertanejas e
litorâneas, integrando-as na sua representação de Bahia.
280
Destacamos como segunda linha de força para a leitura dos textos de Jurema Penna as
confluências entre a cultura sertaneja e a cultura litorânea. De modo geral, identificamos
algumas construções discursivas que põem em oposição os dois espaços geográficos,
evidenciando a própria diferença dos biomas e da experiência dos sujeitos que vivem em cada
um desses contextos: de um lado a imensidão do mar e a violência de suas marés; de outro, a
imensidão do sertão e as agruras da terra árida. A dicotomia entre o mar e o sertão é um tema
recorrente nas artes, destacando-se o cinema de Glauber Rocha e as representações do mar e do
sertão ao longo de sua filmografia. Por sua vez, o desejo de o sertão virar mar consolidou-se na
voz profética de Antônio Conselheiro, a quem a célebre frase “o sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão” é atribuída. Profecia ou realidade, o fato é que as Ciências da Terra vêm
elencando evidências indicativas de um passado remoto, em que o sertão já foi mar.
Essas identidades dicotomizadas, no entanto, se esboroam ao percebê-las a partir da
vivência dos indivíduos e nos processos de identificação que são estabelecidos entre litorâneos
e sertanejos. Um primeiro fator para isto é a migração, quando muitos nativos de regiões
castigadas pela seca são impelidos a deixarem suas terras em busca de uma condição mais
favorável para a sobrevivência. Estes levam consigo sua cultura e costumes, que, apesar de
serem muitas vezes subvalorizados pelo referencial do litoral, persistem, são disseminados,
constroem saberes e costumes em novos territórios.
Essas populações de migrantes do sertão costumam ocupar os espaços periféricos dos
grandes centros urbanos. A convivência entre os dois grupos culturais dá origem a uma
identificação entre a população marginalizada ali residente e os imigrantes, aproximados pelas
agruras enfrentadas na vida, pela pobreza que os cerca, pelo descaso das autoridades públicas
para com esses segmentos sociais. Não se pode esquecer que há também um movimento de
retorno ao interior, sobretudo nas festividades de junho, em que uma migração sazonal se
estabelece em sentido contrário e é motivada por fatores distintos. A cidade, assim, vai ao
encontro do interior, levando a sua cultura e suas práticas.
Na confluência entre litoral e sertão, uma cultura é, também, produzida e está presente
nos modos de festejar, na linguagem e na religiosidade. Como leitora das manifestações
culturais baianas, traduzindo-as para a realidade soteropolitana, Jurema Penna integra essas
diferentes matrizes no palco. Não se trata, no entanto, de homogeneização de ambas culturas,
mas sim do estabelecimento de elos em que a contradição não é indesejável ou danosa, mas é
parte desse processo.
281
É nessa dinâmica identitária que incluímos as convergências entre interior e capital nas
leituras que estabelecemos da dramaturgia de Jurema Penna, destacando três aspectos: em
primeiro lugar, trataremos o ambiente da feira livre como encontro de culturas, onde
entendemos a representação da feira como espaço para a subsistência, em que se encaminham
as mercadorias de diversos lugares para serem vendidas, mas também como lugar de
socialização e de integração de culturas.
Este ambiente é cenário para as ações desenvolvidas na peça O bonequeiro Vitalino, na
qual um grupo de feirantes se organiza para construir um presépio na noite de Natal. Acerca
dessa referência cultural na construção da peça, Jurema Penna afirma:
O nordeste está em mim e reclama um Natal puro, ingênuo, simples, valente, místico
e sofrido. E tudo isso está nos bonecos de Vitalino, nos cantadores da feira. A unidade
é perfeita. [...] Sentei na máquina e a peça está aí, com uma feira de camelôs na Bahia
no início da peça, feira em vésperas de Natal, os nossos já esquecidos e saudosos
pregões, para depois aparecer o “cantador” cheio de magia contagiante (TEATRO,
1977).
Nesse sentido, buscamos ler este texto a partir de três aspectos, que destacamos, a saber:
a feira livre como espaço de cultura; os bonecos do Mestre Vitalino, como linguagem para a
composição da identidade nordestina; e, por fim, destacamos as manifestações do catolicismo
popular, no qual a mística sertaneja se infunde sobre as celebrações e rituais da Igreja Católica
e se dissemina como prática religiosa.
primeiro se esforça por conquistar o segundo para manter sua freguesia. Os feirantes lançam
mão de uma série de estratégias de persuasão para a negociação com os fregueses, que vão
desde descontos, brindes, à construção de uma amizade com o comprador. Esta diferença em
comparação ao mercado formal estabelece-se inclusive no binômio feirante/freguês, em
oposição a vendedor/consumidor, dando a perceber a particularidade das relações estabelecidas.
Um complexo social se instaura na feira. Mais do que espaço de compra e venda de
produtos, trata-se de um lugar onde a cidade se encontra com o interior. Salvador e seus portos
possuem historicamente o papel central na dinâmica comercial da Bahia, atuando como lugar
privilegiado de comercialização de alimentos e artesanatos para uma elite urbana em ascensão,
mas que ainda possuía uma larga identificação com as prendas vindas do Recôncavo Baiano. A
Baía de Todos os Santos era, então, a principal rota pela qual os míticos saveiros aportavam
para abastecer a cidade com hortifrutigranjeiros e outras benesses produzidas no interior da
Bahia, como as carnes salgadas, as farinhas e as cerâmicas.
O encontro dos vendedores na feira é o ponto de partida para O bonequeiro Vitalino,
conforme descrição do cenário:
vivências e experiências. Além de assumir um protagonismo nesses processos, uma vez que é
durante a feira que se pode ouvir e ser ouvido, onde se tem legitimidade para falar e autoridade
sobre os fregueses, sobretudo nas indicações de usos e consumos dos alimentos
comercializados.
Em entrevista a Guido Guerra, Jurema Penna (2005) relaciona a temática da feira livre
com as vivências e memórias de sua infância em Itajuípe, região Sul da Bahia. Nas palavras da
dramaturga:
Na verdade, o que me fascinava, acima das querelas regionais, era a feira com seus
cantadores de desafios, o cego que fazia seus rimances, acompanhando-se ao som da
sanfona, para pedir esmolas, o cordelista que lia seus versos, o artesão que mercava
suas cerâmicas, seu Lampião, seu Conselheiro, seu Padre Cícero. Eu não entendia
direito aquilo, achava uma coisa misteriosa, às vezes triste, mas que me fascinava.
(PENNA, 2005, p.298)
[o]s pregões de rua são vozes ou pequenas melodias com que os vendedores
ambulantes anunciam a sua mercadoria. São conhecidos no mundo inteiro e em todos
os tempos. Podemos dividi-los em duas categorias: os individuais, em que o vendedor
escolhe uma maneira de apregoar, valendo-se muitas vezes de melodias conhecidas,
entre nós, de emboladas, modinhas, maxixes, sambas e até mesmo de árias
vulgarizadas; e os genéricos que são os utilizados por todos os vendedores do mesmo
artigo, como vassoureiros e compradores de garrafas vazias no Rio de Janeiro.
que essa apropriação acontecia em via de mão dupla, uma vez que os pregões também
interferiram em composições da música popular brasileira em meados do século XX, quando
importantes cantores, como Inezita Barroso, incorporaram os versos dos pregões cantados aos
seus discos.
A criatividade e a arte da improvisação do povo levam a um investimento nesses versos
que tem como resultado a configuração destes como literatura popular. Moraes (2008, p.3)
considera outros aspectos na definição dos pregões:
Dessa forma, o pregão possui dupla função, sendo um elemento lúdico que colore o
cotidiano da cidade, divertindo os que o escutam, ao mesmo tempo em que traz a função laboral
de angariar fregueses. Sendo produto de uma literatura oral, há poucos registros desses pregões.
Moraes (2008) chama a atenção para o uso de elementos melódicos e processos sonoros e
semânticos que se constituem como apoio para a fixação das rimas na memória. Afirma ainda
que, dos poucos registros realizados desses pregões, destacam-se os memorialistas e cronistas
da cidade, categoria, na qual podemos incluir as representações sobre a Bahia na obra de Jurema
Penna.
Os pregões dos vendedores ambulantes, como manifestação da literatura oral, trazem
para os textos em estudo outro aspecto da cultura popular soteropolitana e nordestina: a
construção de versos, aliadas a uma atividade comercial, para além de servir como uma
estratégia de atração de clientes, revela a criatividade e a inventividade desses trabalhadores da
economia informal que transformam o seu labor em arte. T91 registra uma representação da
oralidade desses pregões, como se pode mostrar nos excertos selecionados (cf. figura 41):
285
O registro “Du… in… Torrá! Torrá! Torrá di guber” representa, no texto escrito, as
formas que o pregão assume na oralidade. Em função do objetivo de fazer-se ouvir a grandes
distâncias, o pregão deve ser vocalizado em tom alto, o que pode incorrer em distorções na
articulação das palavras que compõem seus versos. Esta distorção, porém, não implica
dificuldades de comunicação entre o mercador e seu público alvo, uma vez que Quico entende
perfeitamente o verso, explicando-o com bastante precisão a Dona Maria. Por sua vez, com
uma sequência de barras manuscritas a lápis, o ator registra a entonação e inflexão que sua voz
assume, suplementando a rubrica “bem explicativo”.
Os pregões, ditos no palco, também promovem uma identificação com os espectadores
ao ver elementos do seu cotidiano ali citados, como expressa José Maria da Costa Vargens no
prólogo d’ O bonequeiro Vitalino:
Pois bem, Jurema Penna, transpondo "pregões" baianos (quem não se lembra da
"laranja do Cabula, uma verde outra madura"? de um passado não tão remoto?), usos
e costumes tão de nossa tradicional Bahia (a folha de pitangueira), sabe, com maestria,
entrosá-los à arte nordestina e fundi-los, todos, na grande arte dramática, com o toque
de magia e mística que dá o "encantamento" de sua peça. (VARGENS, 1978, [p.1])
O pregão da laranja faz referência ao bairro do Cabula, em Salvador, Bahia, que até
meados do século XX era uma região em que se produzia uma variedade de laranja denominada
laranja Bahia, conhecida também como laranja de umbigo, caracterizada pela coloração em
287
intensa e sabor adocicado. O pregão de David caracteriza, com certa zombaria, o produto
mercado:
O primeiro a chegar é "seu" José que inicia a arrumação de sua barraca, onde vende
os seus bonecos "vindos diretamente de São Paulo" mas, que na verdade são bonecos
artesanais nordestinos.
SEU JOSÉ – Bonecas! Bonecas e brinquedos! Diretamente das fábricas de São Paulo
pras crianças da Bahia. 3 por 20. É barato freguesa. É barato. (PENNA, 1991, f.1)
A estratégia utilizada por Seu José indica que uma mercadoria proveniente de São Paulo
receberia mais atenção dos seus fregueses do que as produzidas nas fábricas nordestinas, o que
dá a entender que as de São Paulo possuiriam uma qualidade superior. Além disso, no pregão
de Judite, que citamos em sequência, percebemos um discurso que desvaloriza o comércio
popular, das feiras, em relação ao comércio das grandes casas comerciais, onde, já nesse tempo,
pagava-se o status da loja.
JUDITE – (Vem quase ao mesmo tempo que David. Enquanto ele merca ela arruma
seu taboleiro, com fazendas, rendas, colchas de retalho, roupas prontas, etc e merca)
Beleza. Beleza do Ceará - Tudo feito à mão. Riqueza, fregueza. Baratinho. Não paga
o luxo da casa. Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques. Não tem
288
problema. Olha a toalha de mesa pra sua ceia do Natal. Quem vai querer? (PENNA,
1978, p.[2])
No trecho “Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques”, notamos que a
estratégia argumentativa utilizada por Judite indica a semelhança entre os produtos das feiras e
os do comércio formal, não sendo possível diferenciá-los. A feira, apesar de mais associada ao
consumo das classes populares, é também frequentada por pessoas de maior poder aquisitivo,
mas que estabelecem com ela uma relação distinta, apropriando-se daquele lugar apenas como
espaço para compras, sem vivenciar os diversos elementos culturais ali presentes.
Vivendo cotidianamente com o dinheiro, em seu real poder de compra, os feirantes são
um grupo social bastante sensível à circulação da moeda na sociedade. Ademais, seu
pertencimento às classes populares, submetidas a uma pressão inflacionária, proporciona-lhes
uma percepção acerca do dinheiro, vinculada às questões de classe, como se observa no excerto
abaixo:
GASPAR – Ôi, seu Jose, tudo bem? GASPAR – Ôi, seu Jose, tudo bem?
SEU JOSÉ – Vivendo. Que negócio é esse de JOSE – Vivendo. Que negócio é esse de tostão menino?
tostão menino? Isso é do tempo que se amarrava Isso é do tempo que se amarrava cachorro com linguiça.
cachorro com linguiça. Muda essa cantiga. Muda essa cantiga.
GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, que
que minha avó ensinou a ela. minha avó ensinou a ela.
SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó pra cá, JOSE – Mas do tempo da sua avó prá cá, muita coisa
muita coisa mudou. Muita coisa aconteceu nesse mudou. Muita coisa aconteceu neste mundão de meu
mundão de meu Deus. Só o que o dinheiro Deus.
mudou de nome... vou te contar! Olhe meu MARIA – Só que o dinheiro mudou de nome... vou te
bisavô foi do tempo da pataca. Depois teve o contar. Olhe, meu bisavô foi do tempo da pataca.
real. Mais de um real se dizia réis. Quando ele JOSE – Depois teve o real, mais de um real se dizia réis.
queria dizer que uma coisa não valia nada ele MARIA – Quando se queria dizer que uma coisa não
falava assim: "Não vale nem dez réis de mel valia nada, meu avó falava assim: "Não vale nem dez
coado". Duzentos réis era dinheiro... Teve réis de mel coado".
cruzado. Teve "conto de réis". Um conto de réis JOSÉ – Antes de todos teve cruzado
era dinheiro pra tapá casa. Agora, tem cruzeiro. MARIA – Teve "conto de reis". Um conto de reis era
(PENNA, 1978, p.[1], grifo nosso) dinheiro prá tapá casa.
JOSÉ – Teve cruzeiro, teve cruzado de novo, teve
cruzado novo e teve cruzado sequestrado, aí, voltou o
cruzeiro....
(PENNA, 1991, f.1-2, grifo nosso)
Na cena, Seu José, Maria e Gaspar discutem acerca das moedas no Brasil. Do contraste
entre as duas versões, T78 e T91, observamos uma ampliação do texto em T91, que tematiza a
situação econômica do país, pós-ditadura militar, a partir dos sucessivos sistemas monetários.
Em T91, o “cruzeiro sequestrado” faz referência ao Plano Collor I, que entrou em vigor em
1990, cuja medida mais lembrada é o bloqueio bancários na poupança cujos investimentos
fossem maiores que NCz$ 50 mil. A desvalorização da moeda é também fator de atualização
289
do pregão cantado por Quico, que em 1978 vendia seus pirulitos por um cruzeiro, passou a
cobrar cem cruzeiros pelos mesmos.
SEU JOSÉ – Então canta assim: (Cantam os dois) JOSÉ – Então canta assim. (Cantam os dois)
Olha o pirulito Olha o pirulito
enrolado no papel Enrolado no papel
enfiado no palito Enfiado no palito
mamãe eu choro papai eu choro
papai eu grito mamãe eu grito
me dá um cruzeiro me dá cem cruzeiro
pra comprar pirulito. prá compra pirulito.
(PENNA, 1978, p.[2]) (PENNA, 1991, f.2)
(À medida que o cantador vai citando os atores vão tomando formas estáticas, isto é,
assumindo os bonecos. Assim ficam inclusive o cantador depois de assumir o
cangaceiro durante o toque dos sinos, da primeira chamada para missa do galo. Depois
deste toque eles vão se animando aos poucos. Essa mutação deve ter uma atmosfera
de magia. Mesmo depois de "animados" deverão sempre conservar alguma coisa de
bonecos como os mamulengos). (PENNA, 1978, p.[3])
A partir desse ponto, os diálogos são sempre feitos em versos do cordel e os personagens
terão, também, na expressão corporal, a linguagem do boneco mamulengo. O cantador, assim,
dissemina com seu canto uma linguagem que se torna comum a todos os presentes na cena. Os
versos do cordel convertem-se em eloquente elemento cênico que desperta o interesse da plateia
pelo aspecto inusitado e criativo de suas rimas. Vale pontuar que o encontro entre literatura de
cordel e teatro foi explorado, sobretudo pelos movimentos realizados por João Augusto, no
Teatro Vila Velha, que buscavam no cordel uma linguagem mais próxima do referencial
cultural nordestino. Além disso, há de se considerar que os festejos natalinos, como também os
autos de Natal ou as encenações da Lapinha, costumavam adotar uma linguagem versejada,
configurando, inclusive, uma estratégia mnemônica.
A representação do mercado informal de Salvador traz também um personagem muito
comum nesse contexto, que são as crianças que trabalham vendendo doces e outras
mercadorias. O trabalho nas feiras ou o trabalho de ambulante configuram uma exposição a
riscos significativos para o desenvolvimento infantil, que podem estar atrelados à própria
circulação em um ambiente urbano e aos seus perigos eminentes. Somem-se a esses outros
fatores ambientais, como a exposição a vírus, bactérias, bem como às intempéries, aos efeitos
290
da fadiga, ou ainda a riscos sociais e psicológicos. Por outro lado, permite à criança transitar
pela cidade, estabelecer relações sociais com desconhecidos, além de configurar uma liberdade
de circulação e de vivências, de que muitas crianças são privadas por viverem em um contexto
familiar opressor e violento.
Portugal (2007) elabora uma breve história do trabalho infantil do qual destacamos o
período da ditadura militar, em que se percebe uma tendência a sua aceitação em virtude da
quantidade de meninos deambulando pelas cidades, bem como a situação de extrema pobreza
em que suas famílias se encontravam. Como política pública, o governo instituiu a Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que, na prática, assume o caráter autoritário,
próprio da ditadura militar, centralizando suas ações na retirada de menores da rua em favor da
segurança nacional. O decreto n.º 66.280, de 27 de fevereiro de 1970, por sua vez, dispõe sobre
o trabalho de crianças na faixa de 12 a 14 anos, que poderiam se ocupar de atividades leves, o
que exclui os “ramos de indústria e de transportes terrestres e marítimos”, como princípio para
o desenvolvimento desses trabalhos, e estabelece como “condição essencial de que os trabalhos
não sejam nocivos à saúde e ao desenvolvimento normal do menor” (PORTUGAL, 2007, p.43).
A ressalva expressa na letra da lei, no entanto, não diminui a abertura para o trabalho
infantil, trazendo o precedente para que houvesse um influxo de mão de obra barata no mercado
de trabalho. Este fato ocorre, sobretudo, a partir dos anos 1974, em que um forte arrocho salarial
foi instaurado, ampliando o abismo entre pobres e ricos e as camadas populares foram reduzidas
a uma condição de miséria. Disto resultou que, neste período, “18% das crianças com menos
de 14 anos estavam inseridas no mercado de trabalho” (RIZZINI, 1995, p.81).
Para enfrentar as dificuldades de sobreviver no mundo do trabalho, as crianças
desenvolviam uma série de estratégias de enfrentamento, utilizando-se de sua astúcia. A
sabedoria das garotos e garotas pertencentes às classes populares e que assumem este tipo de
atividade se revela quando Zazinho é perguntado porque merca amendoim e traz uma vara com
algodão-doce espetado:
A situação estabelece desafios para os quais o sujeito deve dar respostas, Zazinho, dessa
forma, compreende a sua atividade no mundo e usa as armas que tem a fim de lograr êxito em
sua venda. Nesse jogo por sobreviver em situação adversa, não se ausenta a brincadeira, o riso
e a imaginação da criança, pois conforme asseveram Alberto e outros (2010, p.69) “[t]ais
291
sujeitos, apesar das pressões que enfrentam, conseguem evitar a doença e a loucura,
normalidade que não implica ausência de sofrimento e sofrimento que não exclui o prazer”.
Mesmo vivendo em um contexto laboral de adultos, Zazinho não deixa de expressar a sua
percepção infantil, que lhe possibilita ressignificar o mundo em suas fantasias de criança:
ZAZINHO – [...]. Aí o homem do algodão doce me pediu pra vender pra ele. É
bonito não é? Parece árvore de cartão de Natal que a gente vê nas lojas. Toda
branca. Toda feita de nuvem.
SEU JOSÉ – Aquilo não é nuvem, menino. Aquilo é neve.
ZAZINHO – Pra mim é nuvem, que os anjos trouxeram pra terra pra ficar tudo
macio pra ele nascer. (Ouve-se o pregão de David) (PENNA, 1978, p.[2])
Zazinho, dessa forma, representa a criança que tem a obrigação de trabalhar por conta
das necessidades financeiras familiares, mas que ainda conserva a sua capacidade de sonhar a
partir dos seus elementos do seu cotidiano. O diálogo que estabelece com os adultos, que se
interessam em saber sobre a mudança de sua mercadoria, também indica a existência de uma
rede de suporte que essas crianças encontram nos seus espaços de trabalho. Em certos
momentos, estes adultos terminam por protegê-los de situações de violência e outros perigos,
na ausência dos seus responsáveis.
Destacamos como outro personagem singular da feira livre o cantador, que versejando
suas histórias traz as novidades das redondezas e faz circular narrativas, tomadas de ouvido e
atualizadas, durante sua performance, para aquele momento e lugar. Suas habilidades musicais
são postas à prova em pelejas de cantadores e inevitavelmente atraem os transeuntes que se
aglomeram em roda para observar o espetáculo. Em geral, aguarda uma contribuição do público
após o espetáculo ou ainda vende cordéis ou outros produtos.
Entra o cantador com o seu violão, uma vara de ventoinhas e seu tamborete. É
recebido com grande alegria. Arruma o seu lugar. As ventoinhas devem funcionar
como uma árvore à sombra da qual ele se senta.)
Os bonecos de cerâmica são acionados no espetáculo pelo cantador. Eles evocam a força
do brinquedo de barro como elemento infantil que se perpetua na vida adulta, mas que também
registra a realidade em que o sertanejo está imerso. Neste escopo, Jurema Penna destaca como
personagens da peça o cirurgião, representando o acesso à saúde do povo nordestino, e o padre,
294
para os aspectos religiosos. Além disso, a inclusão do burro e do boi não são escolhas aleatórias,
visto que estes animais desempenham mais que funções nas atividades agrícolas, são
companheiros que compartilham com o homem as agruras da terra. O boi é ainda um animal
dotado de mistérios, suas lendas o convertem em entidade encantada, como o boi bumbá, o boi
Aruá e os diversos folhetos que tratam de bovinos encantados em um sertão mítico.
Para os dois personagens, Samuca e David, transformar-se no boi e no burro do presépio,
configura-se uma honra e ambos fazem questão de evidenciá-lo na cena do presépio:
Destacamos, ainda, as similitudes entre a vida rural que leva o homem sertanejo,
rodeado pelas plantações e ocupando-se da criação de gado e o ambiente descrito no presépio,
acrescido da presença de animais tão comuns ao cotidiano sertanejo, o boi, o galo e o jumento.
Os três contextos, no entanto, guardam as suas diferenças: a Sagrada Família opõe-se aos
vendedores da feira e aos bonecos de Vitalino por seu caráter divino. A simplicidade, o
desapego aos bens materiais e a valorização da família demonstrados por ela constitui-se no
modelo que deve orientar as práticas dos sujeitos dos outros dois grupos.
Ao propor a vivificação dos bonecos de Vitalino, Jurema Penna estabelece um diálogo
com outras obras da literatura mundial em que bonecos ganham vida por uma noite e
experimentam a liberdade. O propósito do encantamento, nesse caso, não é cumprir os próprios
desejos de liberdade, mas louvar o Deus Menino em noite de Natal, confirmando-se a moral
religiosa infundida nos personagens. Ainda assim, quando Quico reclama da sua vida de boneco
e deseja sair para conhecer a Bahia, acompanhado de Baltazar, os dois são repreendidos por
Seu José.
celibatário. Maria, da peça, termina por dar à luz a seu filho, fato que tanto resolve o impasse
da Nossa Senhora, grávida, quanto traz aquele que representará o Jesus Cristo recém-nascido.
O cangaceiro Pé-de-Vento, por sua vez, dá conta de trazer para o palco os mitos que
permeiam essa personagem no imaginário nordestino. Os rumores da chegada dos cangaceiros,
que se espalhavam pelo sertão, excitavam as histórias, alimentavam os medos e comentários.
As opiniões dividiam-se entre um elogio ao cangaço, pela bravura de seus homens e pela justiça
realizada frente às desigualdades sociais que assolavam o Brasil à época. Por outro lado, os
cangaceiros constituem-se como um símbolo de desordem, assassinatos e destruição, causando
medo e repulsa àqueles que os enfrentam.
No espetáculo, Pé-de-Vento chega, exigindo os pertences de todos, que se mostram
solícitos a fim de evitar que ele se aborreça, temorosos de um ato violento. Seu José expressa
essa preocupação utilizando um tratamento formal para com o cangaceiro:
Seu José, ciente da fama de Pé-de-vento, esforça-se para não importuná-lo, tentando
ver-se livre dele. Judite, ao contrário, dispensa a deferência utilizada por Seu José e questiona
a legitimidade da figura do cangaceiro, que vive fugindo dos poderes oficiais. Judite, aqui,
configura-se como a mulher que se insurge contra autoridades questionáveis.
JUDITE – [...]
Pode levar meu dinheiro
que faço pouca questão
mas não tô aqui pra ouvir
desaforo de um cidadão
que vive correndo da justa
por todo esse sertão (PENNA, 1978, p.[9]).
O discurso de Judite não surte efeito sobre Pé-de-Vento que continua a proferir injúrias
contra os presentes e só para quando se dá conta de que a personagem Maria está grávida e
havia desmaiado em sua presença.
A ideia de cangaceiro como ser regenerável traz a própria dualidade com que esses
sujeitos são representados, ora como bandidos ora como justiceiros, em função de uma opressão
social. A mudança do cangaceiro, assim, se coaduna com a própria ideia de milagre de Natal e
da potência da vida representada pelo nascimento de uma criança que dissemina bons
sentimentos. Seu José aproveita a abertura de Pé-de-Vento para consolidar a mudança
necessária no mesmo: o abandono das armas e da vida bandida.
A benevolência e acolhimento do povo nordestino, por sua vez, se manifesta na
incorporação do ex-cangaceiro na construção do presépio:
Pé-de-Vento não se sente digno de participar de tal homenagem por conta do seu
passado, demonstrando real arrependimento em relação às suas ações. O personagem é acolhido
298
pelo grupo a fim de consolidar os novos espaços sociais que a sua mudança pode fazê-lo.
Manifesta-se, dessa forma, também, a generosidade do povo nordestino, sempre disposto a
acolher aqueles que assim necessitam. Por sua vez, a forma próxima como Pé-de-Vento pede
auxílio a Deus, à Virgem Maria e ao Padre Cícero, aproxima-se daquilo que se denomina
catolicismo popular e que iremos abordar na próxima seção.
[...] o modo indígena e negro de crer dirigiu-se não tanto a ressaltar o caráter de
verdade indiscutível de Jesus como Filho de Deus, mas em procurar e manifestar sua
bondade e seu pode em favor dos fracos. [...] A América Latina está cheia de
‘milagres’ e sucessos prodigiosos nos quais Cristo, a Virgem e os santos se revelaram
aos pobres, aos camponeses, aos pastores e escravos, e os transformaram em
intermediários entre eles e a sociedade, ao mesmo tempo que em portadores de uma
mensagem de reinvindicação da dignidade marginalizados. (GONZÁLEZ, 1992, p.
24-25).
Em vez de renegar seus deuses em favor de um único Deus, a crença católica era
disseminada no sentido de erigir a imagem de uma santidade que conhecia e compreendia a
pobreza e a opressão vivenciados por aquele segmento social. Assim, Jesus Cristo e os santos,
que também foram martirizados pelos poderosos de seu tempo, mostrariam sua bondade àqueles
pobres que sofriam similares opressões.
As diversas formas do catolicismo popular encontram-se disseminadas na obra de
Jurema Penna, sobretudo no auto de Natal O bonequeiro Vitalino. O próprio “gênero” auto de
Natal evoca a utilização da linguagem do teatro para a encenação do nascimento de Jesus Cristo,
remetendo a um costume da igreja católica de montar passagens da Bíblia em seus adros, devido
ao significativo contingente de analfabetos que não tinham acesso a esta com base na leitura.
Disto resulta, além dessas peças, a própria tradição de se fazer presépios no Natal, uma das
datas mais importantes do calendário litúrgico católico. O catolicismo popular no nordeste
300
velho retirante que sai do sertão por conta da seca, perdendo filho e esposa na retirada. Ao fim
de sua jornada, chega à comunidade de pescadores com Toninha e João, seus filhos. João, que
passa a viver da pesca, acaba por morrer no mar. A morte do filho foi o golpe final para a
sanidade mental de Severino, que perde parte de sua razão, o que também o leva a perceber a
presença do sobrenatural na comunidade de pescadores.
Diante da ameaça constante da besta marinha, simbologia para a bravura do mar,
Severino agarra-se à sua defesa espiritual: São Sebastião e Padre Cícero. Nesse contexto, o
personagem de Severino inscreve-se na trama como representante de um viés religioso e
cultural pertencente à espiritualidade mística do povo sertanejo, calcada no catolicismo popular.
No trecho abaixo, pede proteção aos seus santos contra a revolta da besta marinha:
SEVERINO – (Levantando-se) O mar filho da terra, por ela parido, tá mugindo como
vaca brava. Que meu Padim Padre Ciçro tenha compaixão de nós. E o moço guerreiro
São Sebastião, venha em socorro de todos nós. A Besta Marinha vai sair do fundo do
mar e o seu bafo de fogo, seus cabelos de cobra vão cobrir o mundo e todos os
pecadores. Os pecadores do pecado da luxúria, vão virar vermes inchados… vermes
inchados… (Ceição vai até ele para acalmá-lo. Ele vai se tranquilizando aos poucos,
repetindo) vermes inchados… vermes inchados. (A Yaô perto dele) (PENNA, 1980,
f.15)
A invocação a Padre Cícero, que, apesar de não legitimado pela Igreja Católica, é
considerado como um poderoso intercessor para o povo nordestino, manifesta-se durante os
momentos de adversidade. São Sebastião é, por sua vez, um santo muito popular: sua
característica de guerreiro é invocada para o enfrentamento de situações como a seca, a morte,
doenças e toda sorte de padecimento. No trecho de Iemanjá..., Severino relata a sua visão de
São Sebastião, que vai aparecer vestido para combate:
SEVERINO – O Santo moço guerreiro São Sebastião vai aparecer no meio do mar
vestido no seu manto azul e prata, montado em seu cavalo branco, comandando o
cordão azul. E vai atravessar o mar, pisar na areia branca, ir até o sertão e expulsar a
seca moura da Hungria e encher a caatinga do mesmo verde azul dessas ondas do mar.
(PENNA, 1980, f.27)
64
Cavalhadas são festas com diversas referências às cavalgadas medievais que acontecem em algumas regiões do
Nordeste.
302
referência ao cordão azul pode não se relacionar ao santo, mas sim ao mito de D. Sebastião, rei
de Portugal, morto na batalha do Alcácer Quibir, em 1578. Após sua morte, uma crença,
denominada sebastianismo, se espalhou por Portugal, chegando ao Brasil, segundo a qual, D.
Sebastião retornaria em momento oportuno, para reivindicar seu trono
Conforme Salomão (2008), os registros da Guerra do Contestado, acontecida no início
do século XX, no sul do país, trazia a esperança de que o exército de São Sebastião viria
combater em seu favor, no entanto, os elementos da narrativa direcionavam não ao Santo
dissidente do exército romano, mas ao rei português. Vale ainda ressaltar a presença de D.
Sebastião no panteão dos encantados de algumas religiões de matrizes afro-brasileiras em
alguns estados do Nordeste, com destaque para o Maranhão, onde os ecos do sebastianismo se
fazem escutar até os presentes dias.
Na cultura nordestina, as disputas entre os cordões vermelhos e azuis podem ser
percebidas em diversos de folguedos e manifestações populares de origem portuguesa.
Acreditamos que, no caso de Severino, há também o sincretismo entre São Sebastião e D.
Sebastião, uma vez que São Sebastião era um soldado romano e sua luta não foi contra a
perseguição aos cristãos no contexto do Império Romano, ao passo que D. Sebastião, o jovem
rei, foi morto na África em decorrência da batalha contra os mouros. É possível, dessa forma,
entender a referência feita a São Sebastião como mais uma configuração do catolicismo
popular, dessa vez sob interferência do mito português.
Consideramos, então, o catolicismo popular como um elemento presente na cultura
nordestina e baiana. Constituído na interface entre o sagrado e o profano, o complexo religioso-
cultural, decorrente da transformação da referência portuguesa, adquire formas sincréticas que
conjugam a cultura do colonizador com a cultura do colonizado, convertendo-a em novas
formas de fazer e vivenciar a religião.
Face o exposto, foi possível perceber as múltiplas apropriações que Jurema Penna faz
da cultura baiana, representando-a na sua dramaturgia, conforme análise realizada nessa seção.
A dramaturga interessa-se por trazer questões pertinentes ao seu tempo, a fim de não somente
representá-las, mas fazer das suas encenações momentos propícios para a discussão de certas
temáticas, levando o seu espectador à ação e não somente à reflexão. A partir da identificação
das linhas temáticas aqui discutidas e de um trabalho crítico-interpretativo foi possível tecer
caminhos de leitura para os textos de Jurema Penna, congregando-os sob o signo da cultura
baiana. A pluralidade de questões exploradas nessa leitura aponta para a diversidade de aspectos
da sócio-culturais representados na referida dramaturgia.
303
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] uma prática interpretativa que objetiva a leitura dos textos a partir das coordenadas
e diretrizes histórico-culturais que os tornaram possíveis. [...] configura-se a partir da
leitura do “devir” textual, entre fendas de rasuras que abrem espaço para a produção
do texto, mas também do não-texto entre atos de censura, como os que decorrem dos
vários “cortes” dos técnicos de censura do Governo Militar do Brasil.
Cada uma das atuações de sujeitos históricos diferentes na trama textual traz novidade
à tessitura e demonstram intencionalidades diferentes que enriquecem e atualizam as
diversas produções de sentido no/do texto.
Nesta perspectiva, buscamos, por meio do labor filológico, elaborar edições que se
utilizem das possibilidades engendradas pelo hiperlink e outras ferramentas digitais para
apresentar as leituras do editor, bem como para dotar o leitor de meios para construir seus
próprios caminhos interpretativos. Na elaboração do arquivo hipertextual, o trabalho crítico fez-
se presente em todas as etapas, pois, para a composição de uma arquitetura digital eficiente, é
preciso conhecer as peculiaridades do suporte material, objeto de pesquisa em questão, bem
como os propósitos do editor.
Em se tratando da dramaturgia de Jurema Penna, foi fundamental compreender as
questões histórico-culturais implicadas nesse processo, uma vez que sua produção faz
representar a cultura baiana, evidenciando posicionamentos ideológicos, marcados por meio
das escolhas dos temas e das modificações textuais realizadas. Por sua vez, outros tantos
sujeitos participam da elaboração do script, deixando suas marcas sobre eles, dos quais
destacamos o ator e o censor. Deixar de registrar informações como essa na construção da
edição, ou registrá-las num espaço marginal, de leitura difícil, resulta em privar o leitor do
contato com as nuances que permeiam o texto teatral e que lhes dão a dimensão de como
aconteceu a construção do espetáculo.
Em relação aos propósitos editoriais, foi nosso objetivo trazer edições variadas para uma
situação textual que envolve múltiplos documentos. Assim, disponibilizamos os fac-símiles,
acompanhados da descrição física do suporte, o que permite ao leitor perceber as formas
materiais assumidas pelo texto durante a sua circulação, bem como no momento histórico de
sua produção. O leitor pode, então, explorar o suporte, por si, ou sob a mediação do editor, por
meio da descrição apresentada. Através do confronto sinóptico, construído pelo aplicativo Juxta
304
Commons, foi oferecida ao leitor uma interface que lhe permite ler o texto em confronto, a partir
do contraste entre as diferentes versões, postas lado a lado; bem como ter contato com os
comentários do editor acerca das modificações textuais empreendidas.
Como terceira possibilidade do labor editorial, apresentamos uma edição crítica, a fim
de disponibilizar uma obra de referência para a divulgação da produção dramatúrgica de Jurema
Penna. Ainda que o conceito de edição crítica traga as ideias de fixação e estabilidade, bem
como a seleção de uma lição em detrimento de outras, acreditamos que com o uso dos recursos
informáticos adequados, foi possível diminuir as distâncias entre texto e aparato, trazendo as
modificações textuais para dentro do texto crítico. Por sua vez, este não seria o centro do
processo editorial, mas o ponto de partida para a visualização dos caminhos tomados por uma
dada lição, permitindo ao leitor verificar o “devir textual”. A edição crítica permitiu, também,
integrar os documentos da recepção à edição e, assim, aproximar os testemunhos do seu
momento de produção e de recepção.
McKenzie (2005, p. 46) afirma que “nuevos lectores hacen, por supuesto, nuevos textos
y que sus nuevos significados son consecuencia de sus nuevas formas”65. Consideramos,
portanto, o leitor em sua historicidade: um indivíduo que se apropria do texto de maneira ativa
e, conforme suas expectativas, interesses e os horizontes do seu tempo, o reconstrói, dando-lhe
novos sentidos. Em comparação à experiência do livro impresso, a leitura na tela torna o leitor
ainda mais ativo, uma vez que o suporte flexível e não linear lhe permite construir seu trajeto
de leitura, selecionando ou rechaçando o que será lido, conforme as suas demandas.
Também, em consonância com McKenzie, acreditamos que a materialidade dos textos
é fundamental para a construção dos seus sentidos; portanto, dispor as edições em meio digital
proporciona uma atualização das suas formas, promovendo a elaboração de novos significados.
Dessa forma, as peculiaridades do suporte digital estariam diretamente implicadas nesse
processo, incluindo aí a interface e os direcionamentos que esta pode proporcionar à leitura; os
links, hiperlinks, que permitem ao leitor movimentar-se pelo texto; além das múltiplas janelas
e suas possibilidades de justapor diferentes telas, para uma leitura em paralelo. Além disso, os
condicionantes do ambiente virtual, tais como a luminosidade, o tipo de aparelho utilizado
(desktop, laptop, tablet ou smartphone) e a rapidez da leitura interferem nesse processo,
tornando perceptível ao leitor a necessidade de adaptação a esses suportes.
65
“novos leitores fazem, evidentemente, novos textos e que seus novos significados são consequência de suas
novas formas” (MCKENZIE, 2005, p. 42, tradução nossa).
305
Mediando a relação entre leitores e obras, emerge a figura do editor. Em sua tarefa de
editar e estudar os textos, o filólogo assume uma dupla função: constitui-se como leitor e como
publicador da obra. No primeiro caso, torna-se um leitor especializado, que seleciona um corpus
a ser editado, conforme os seus interesses, propondo-lhe estudos sobre o seu conteúdo e sobre
as formas assumidas durante a circulação. No segundo caso, promove uma atualização da obra,
elaborando formas para a sua divulgação na contemporaneidade. O produto desta dupla
articulação, a edição, inscreve o editor nos processos de transmissão, de circulação e de
recepção desse texto.
Nesse sentido, entendemos o arquivo hipertextual, apresentado nessa tese, como o
resultado de um trabalho crítico-interpretativo, uma construção intelectual (CRASSON, 2010),
que traz a dupla articulação do editor, mencionada acima. O editor se constitui em leitor ao
selecionar, da dramaturgia de Jurema Penna, aquilo que lhe interessa para pensar as
modificações textuais realizadas pela autora e outros partícipes da cena teatral, bem como para
refletir acerca das representações feitas sobre a Bahia da década de 1970, além dos elementos
que possibilitam entender os modos de fazer teatro na Bahia, durante a ditadura militar.
Como publicador, busca novas formas para sua edição, que permitam ao
leitor/navegador perceber o percurso do filólogo, além de elaborar suas próprias leituras. No
momento da construção dessa interface, tínhamos como expectativa um leitor imaginário que
se interessasse por perceber as diferentes formas assumidas pelo texto durante a sua circulação.
Visando esse leitor, buscamos elaborar o arquivo hipertextual que permitisse integrar a
diversidade de testemunhos, além de documentos da recepção, em uma interface acessível e
intuitiva, que o leitor pode explorar, desvendando os caminhos percorridos pela obra.
Como afirma Rodriguez De las Heras (1991, p.2) em sua metáfora para o leitor-
navegador,
66
“O barco é a interface situada entre dois meios. Da mesma maneira, o novo navegante deve criar interfaces que
permitam, através de uma tela, mover-se pela informação, chegar a um determinado ponto, traçar uma singradura
e um percurso mais ou menos longo pela informação contida, e tudo sem perder a orientação nem naufragar. Sem
estas interfaces, que exigem para sua construção muito engenho e originalidade por estar diante de problemas
novos, nos veríamos condenados a permanecer à margem de suportes de grande densidade de informação, sem
poder navegar por ela” (DE LAS HERAS,1991, p.2, tradução nossa).
306
REFERÊNCIAS
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