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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

ISABELA SANTOS DE ALMEIDA

A CRÍTICA FILOLÓGICA NAS TESSITURAS DIGITAIS:


ARQUIVO HIPERTEXTUAL E EDIÇÃO DE TEXTOS TEATRAIS DE
JUREMA PENNA
V.1

Salvador
2014
ISABELA SANTOS DE ALMEIDA

A CRÍTICA FILOLÓGICA NAS TESSITURAS DIGITAIS:


ARQUIVO HIPERTEXTUAL E EDIÇÃO DE TEXTOS TEATRAIS DE
JUREMA PENNA
v.1

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em
Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Rosa Borges dos Santos

Salvador
2014
Sistema de Bibliotecas da UFBA

Almeida, Isabela Santos de.


A crítica filológica nas tessituras digitais: arquivo hipertextual e edição de textos teatrais de
Jurema Penna / Isabela Santos de Almeida. - 2014.
2 v.: il.

Orientadora: Profª. Drª. Rosa Borges dos Santos.


Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2014.

1. Penna, Jurema, 1927-2001. 2. Crítica textual. 3. Teatro brasileiro - Bahia. 4. Teatro


(Literatura) - Técnica. 5. Arquivo hipertextual. I. Santos, Rosa Borges dos. II. Universidade
Federal da Bahia. Instituto de Letras. III. Título.

CDD - 801.959
CDU - 801.73
Este trabalho é dedicado a meu pai, minha mãe,
minha irmã e a Rosa.
AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da fé e da crença inabalável de que o impossível está em suas mãos.

Aos meus pais, Fátima e Idelson, a quem devo a gratidão e amor eternos.

A minha irmã Carol, companheira de todos os momentos.

A minha orientadora, Dra. Rosa Borges, por me ensinar a ver além do óbvio.

A minha Tia Alice, por todos os momentos de oração e confiança em meu trabalho.

A toda minha família, em especial, minhas primas Fabi e Dani e Tia Ana, pelo carinho e pela
presença.

A Daniel Franca, pelo contraponto à tese, durante a reta final.

Aos meus amigos de grupo de pesquisa, pelo carinho e apoio. Em especial, a Eduardo Dantas,
com quem dividi as primeiras experiências na iniciação científica e com quem compartilho esse
momento de finalização de um ciclo.

A Alan Nunes, as minhas duas mãos extras na construção do arquivo hipertextual.

Às minhas colegas do Setor de Filologia Românica do ILUFBA, pelo apoio e compreensão na


reta final desse trabalho, pela palavra de conforto.

A Ari Sacramento, meu irmão filológico, que esteve presente em todas as etapas do meu
trabalho.

A Reinaldo Nunes e Arlindo Henrique Franca, pelos depoimentos.

Aos meus ex-colegas e ex-alunos do IF Baiano, que também fizeram parte dessa história.

Aos meus alunos da UFBA.

Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura.

À banca, pela leitura atenta e arguta do meu trabalho.

Muito Obrigada!
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas en la mar.

Antonio Machado, 1982.


RESUMO

Durante o exercício filológico de editar a dramaturgia de Jurema Penna, deparamo-nos com


uma intensa modificação empreendida nesses textos. Tratam-se de intervenções de cunho
autoral e não autoral, que dão a conhecer aspectos da sua elaboração, transmissão, circulação e
recepção. A construção de um produto editorial para esse conjunto documental em suporte
papel acarretaria em limitações à integração dos diversos aspectos presentes nesses textos. Em
virtude dessas características, defendemos o uso do meio digital para apresentar a edição da
dramaturgia de Jurema Penna, sob a forma de arquivo hipertextual, visto que este permite trazer
os resultados do trabalho editorial de forma relacional, integrada, flexível e legível. A fim de
compor o arquivo hipertextual, selecionamos dois textos da dramaturgia de Jurema Penna, a
saber: Iemanjá – rainha de Aiocá, O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de
Deus e das crianças. Para a elaboração da edição, foi preciso compreender as especificidades
do texto teatral como objeto de encenação e de leitura, bem como o uso do meio digital na
preparação de edições. Ao submeter tais textos ao método filológico, observamos que uma
edição crítica seria insuficiente para mostrar aos leitores a riqueza desse conjunto documental.
Realizamos, então, para cada texto, três tipos de edição: uma edição fac-similar, uma edição
sinóptica e uma edição crítica, dispostas em um arquivo hipertextual, apresentado em volume
digital. Acrescentamos ao arquivo hipertextual a edição crítica dos textos Negro amor de rendas
brancas e Bahia livre exportação, editados na dissertação de mestrado desta pesquisadora, em
suporte papel. Reunidos, esses quatro textos dão a conhecer uma Bahia dos anos 1970. A fim
de entender tal contexto, desenvolvemos uma leitura dessas representações, que integram
aspectos diversos da cultura baiana, amalgamados nas vivências dos soteropolitanos. Por meio
do estudo realizado, foi possível elaborar propostas de edição que permitiram evidenciar a
diversidade de materiais associados à produção dramatúrgica de Jurema Penna. O uso do meio
digital, portanto, possibilitou ao editor construir o seu trabalho interpretativo de uma forma
integrada e relacional, permitindo-lhe elaborar e compartilhar suas leituras por meio das
tessituras que o meio digital engendra.

PALAVRAS-CHAVE: Crítica Textual. Dramaturgia baiana. Jurema Penna. Arquivo


hipertextual.
RESUMEN

En el ejercicio filológico de editar la dramaturgia de Jurema Penna nos encontramos frente a


un cambio intenso llevado a cabo en estos textos. Estas son intervenciones hechas por el
dramaturgo u otros sujetos y nos revelan aspectos de su preparación, transmisión, circulación y
recepción. La construcción de un producto editorial para este complejo conjunto documental
en suporte papel traería limitaciones para la integración de las informaciones presentadas allí.
A causa de esas características, defendemos el uso del suporte digital para presentar la edición
de la dramaturgia de Jurema Penna, pues permite traer los resultados de nuestro trabajo de
manera relacional, integrada, flexible y legible. En el intento de componer un archivo
hipertextual, hemos seleccionado dos textos de la dramaturgia de Jurema Penna: Iemanjá –
rainha de Aiocá, O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças.
Para la preparación de la edición, fue necesario entender la especificidad del texto teatral como
un objeto de escenificación y de lectura, así como la utilización de los medios digitales en la
preparación de ediciones. El corpus fue sometido al método filológico y luego hemos
comprehendido que presentarlo sólo en una edición crítica sería insuficiente para mostrar a los
lectores la riqueza de este conjunto de documentos. Por lo tanto, se optó por realizar, para cada
texto, tres tipos de edición: una edición facsímil, una edición sinóptica y una edición crítica
dispuestas en un archivo hipertextual, en volumen digital. Añadimos a este las ediciones de
Negro amor de rendas brancas e Bahia livre exportação, presentadas por esta investigadora,
en suporte papel, en su disertación de master. Este conjunto nos da a conocer la Bahia de los
años 1970. Para entender el contexto, desarrollamos una lectura de estas representaciones, que
integran diversos aspectos de la cultura bahiana amalgamados en las experiencias de los
soteropolitanos. A través de este estudio, fue posible elaborar propuestas para la edición que
nos han permitido evidenciar la diversidad de textos y materiales asociados a esta producción
dramatúrgica. El uso de los medios digitales, por lo tanto, fue importante por activar el editor
para construir su labor interpretativa de un modo integrado y relacional, que le permite
desarrollar y compartir sus lecturas a través de lo que engendra las tesituras del medio digital.

PALABRAS-CLAVE: Dramaturgia de Jurema Penna. Crítica Textual. Arquivo hipertextual.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Jurema Penna e Mário Gusmão em Auto da Compadecida, 1959 ......................... 17


Figura 2 – Acréscimos feitos pelo ator em T91 BNV ............................................................. 19
Figura 3 – Virar a página de um texto digital .......................................................................... 77
Figura 4 – Representação do padrão – F de leitura dos textos na web .................................... 88
Figura 5 – Xanadoc ................................................................................................................. 93
Figura 6 – Interface gráfica do E-Dictor ............................................................................... 104
Figura 7 – Interface da edição Bill-Crit-O-Matic .................................................................. 107
Figura 8 – Interface da edição Comedy of Errors ................................................................. 107
Figura 9 – Interface da Edición electrónica variorum del Quijote ....................................... 109
Figura 10 – Comparação entre o fac-símile e a transcrição obtida com o uso do OCR ........ 120
Figura 11 – Tela inicial do Juxta Commons .......................................................................... 122
Figura 12 – Visualização da colação no modo Heat Map ..................................................... 123
Figura 13 – Visualização da colação no modo side-by-side view ......................................... 124
Figura 14 – Ferramenta User annotations ............................................................................. 125
Figura 15 – Visualização de histogramas .............................................................................. 126
Figura 16 – Output em formato XML ................................................................................... 127
Figura 17 – Aparato gerado pelo Juxta Commons ................................................................ 127
Figura 18 – Estrutura da edição crítica .................................................................................. 130
Figura 19 – Acesso ao arquivo hipertextual a partir da capa do volume 2 ........................... 133
Figura 20 – Página inicial do arquivo hipertextual e página inicial da edição ...................... 133
Figura 21 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão geral) ............................... 135
Figura 22 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão do detalhe)....................... 135
Figura 23 – Tela inicial da edição sinóptica .......................................................................... 136
Figura 24 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de
visualização heat map ............................................................................................................. 136
Figura 25 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de
visualização side-by-side ........................................................................................................ 136
Figura 26 – Edição crítica de O bonequeiro Vitalino... ......................................................... 139
Figura 27 – Aparato crítico da aba construção do texto ........................................................ 140
Figura 28 – O texto do ator como suplemento da leitura ...................................................... 141
Figura 29 – Os documentos da recepção como suplemento da leitura.................................. 141
Figura 30 – Texto Iemanjá... digitado ................................................................................... 145
Figura 31 – Marcas cênicas no texto datiloscrito de O bonequeiro Vitalino Tsd. ................ 196
Figura 32 – Desenhos no verso do datiloscrito de O bonequeiro Vitalino T91 .................... 197
Figura 33 – Referência à estrela nos desenhos do T91 BNV ................................................ 198
Figura 34 – Estrela do presépio sendo trazida pelos atores da peça ...................................... 199
Figura 35 – Parto de Maria .................................................................................................... 206
Figura 36 – Ameaças do boneco cangaceiro ......................................................................... 207
Figura 37 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Pelourinho ................. 208
Figura 38 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Biblioteca Pública do
Estado. .................................................................................................................................... 208
Figura 39 – Espaços cênicos do TCA.................................................................................... 209
Figura 40 – Xilogravura para a divulgação do espetáculo O bonequeiro Vitalino ............... 216
Figura 41 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino ................................... 285
Figura 42 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino ................................... 286
Figura 43 – Os retirantes, do Mestre Vitalino ....................................................................... 293
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Comparação entre os dois paradigmas da filologia .............................................. 52


Quadro 2 – Modificações textuais......................................................................................... 156
Quadro 3 – Diferentes caligrafias em T91, O bonqueiro Vitalino ........................................ 201
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BLE Bahia livre exportação


CBC Companhia Baiana de Comédias
CSS Cascading Style Sheets
D.P.F. Departamento da Polícia Federal
DCDP Divisão de Censura de Diversões Públicas
e. d. Erro de datilografia
ETBA Escola de Teatro da Bahia
ETTC Equipe Textos Teatrais Censurados
f. Folha
FCEBA Fundação Cultural do Estado da Bahia
FUNCEB Fundação Cultural do Estado da Bahia
HTML HyperText Markup Language
HXML eXtensible HyperText Markup Language
L. Linha
LdoD Arquivo digital do Livro do Desassossego
NARB Negro amor de rendas brancas
s. a. Sem acento
s. asp. Sem aspas
s. dp. Sem dois pontos
s. dtq Sem destaque
s. e. Sem exclamação
s. int. Sem interrogação
s. p. Sem ponto
s. par. Sem parênteses
s. p-e-v Sem ponto e vírgula
s. r. Sem reticências
s.d. Sem data
s.v. Sem vírgula
SBAT Sociedade Brasileira de Autores Teatrais
SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SR/BA Superintendência Regional / Bahia
T71 Testemunho de 1971, do texto Negro amor de rendas brancas
T72 Testemunho de 1972, do texto Negro amor de rendas brancas
T72* Testemunho apógrafo, de 1972, do texto Negro amor de rendas brancas
T75a Testemunho de 1975, do texto Bahia livre exportação
T75b Testemunho de 1975, do texto A moça de cabelos verdes, pertencente a
tradição do texto Iemanjá – rainha de Aiocá
T76 Testemunho de 1976, do texto Bahia livre exportação
T80 Testemunho de 1980, do texto Iemanjá – rainha de Aiocá
T91 Testemunho de 1991, do texto O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível
aos olhos de Deus e das crianças
TEI Text encoding initiative
Tsd Testemunho sem data do texto O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível
aos olhos de Deus e das crianças
XML eXtensible Markup Language
SUMÁRIO

VOLUME I

1 PRIMEIRAS PALAVRAS ............................................................................................. 11

2 UM TEXTO PARA LER: INTERSEÇÕES ENTRE A CRÍTICA TEXTUAL E O


TEATRO ............................................................................................................................. 15
2.1 ESCREVER PARA ENCENAR: A DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA ......... 15
2.2 O TEXTO TEATRAL COMO OBJETO DE EDIÇÃO................................................. 45

3 O USO DO MEIO DIGITAL NA PREPARAÇÃO DE EDIÇÕES DE TEXTOS


TEATRAIS .......................................................................................................................... 74
3.1 GESTOS DE LEITURA E ESCRITA NA TELA: CONTINUIDADES E RUPTURAS
.............................................................................................................................................. 74
3.2 PROPOSTAS EDITORIAIS: EXPLORANDO A PLASTICIDADE DO SUPORTE .. 98

4 O ARQUIVO HIPERTEXTUAL DA OBRA DE JUREMA PENNA ..................... 116


4.1 A CONSTRUÇÃO DO ARQUIVO HIPERTEXTUAL .............................................. 116
4.2 CRITÉRIOS DE EDIÇÃO ........................................................................................... 133
4.3 TEXTOS, TESTEMUNHOS, TRANSMISSÃO ......................................................... 143
4.3.1 Iemanjá – rainha de Aiocá ...................................................................................... 143
4.3.1.1 Texto crítico de Iemanjá – rainha de Aiocá .......................................................... 158
4.3.2 O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos Deus e das crianças ..... 193
4.2.2.1 Texto Crítico de O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e
das crianças ........................................................................................................................ 218

5 LEITURAS DA DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA: EXERCÍCIO DE


CRÍTICA FILOLÓGICA ................................................................................................ 240
5.1 O NEGRO NA BAHIA ................................................................................................ 240
5.1.1 Bahia livre exportação e as representações da cultura negra .............................. 241
5.1.2 O cotidiano da cidade e o povo de santo, em Iemanjá – rainha de Aiocá .......... 252
5.1.3 Dilemas negros na conquista de outros espaços, em Negro amor de rendas
brancas ............................................................................................................................... 272
5.2 CONFLUÊNCIAS ENTRE SERTÃO E LITORAL, EM O BONEQUEIRO VITALINO
............................................................................................................................................ 280
5.2.1 O espaço da feira livre como encontro de culturas............................................... 281
5.2.2 A arte de Vitalino como linguagem integradora do nordeste.............................. 292
5.2.3 O catolicismo popular ............................................................................................. 298
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 303

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 307

VOLUME II
ARQUIVO HIPERTEXTUAL

IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ


Fac-símiles e descrição
Edição sinóptica
Edição crítica

O BONEQUEIRO VITALINO OU NADA É IMPOSSÍVEL AOS OLHOS


DEUS E DAS CRIANÇAS
Fac-símiles e descrição
Edição sinóptica
Edição crítica

NEGRO AMOR DE RENDAS BRANCAS


Fac-símiles e descrição
Edição sinóptica
Edição crítica

BAHIA LIVRE EXPORTAÇÃO


Fac-símiles e descrição
Edição sinóptica
Edição crítica

DOCUMENTOS DA RECEPÇÃO
11

1 PRIMEIRAS PALAVRAS

Neste trabalho, propomo-nos ler e editar a dramaturgia de Jurema Penna (1927-2001),


tomando como referencial teórico-metodológico a Filologia. Para desenvolver esse estudo,
orientamo-nos pela prática da crítica filológica, com o intento de evidenciar o complexo cultural
no qual esses textos estavam inseridos, a fim de não incorrer em uma simplificação do nosso
objeto de pesquisa.
Na referida produção dramatúrgica, contamos vinte e cinco títulos, nos quais se incluem
os destinados ao público adulto e ao infantil, publicados e inéditos, além de adaptações de
clássicos. A maioria das peças foram escritas e encenadas predominantemente nas décadas de
1970 a 1980 e, por isso, estão atravessadas por uma conjuntura de forte repressão política,
homogeneização cultural e silenciamento das manifestações artísticas. Cada título traz, em
geral, duas versões, fazendo-nos conhecer as diferentes motivações da dramaturga para
empreender mudanças ao texto.
Nas modificações textuais realizadas, Jurema Penna mostra-se preocupada em manter-
se alinhada à norma culta, sobretudo na rubrica, espaço de trabalho do dramaturgo, onde se
pode descrever as marcações cênicas das peças e investir nos traços narrativos presentes no
texto dramático. O uso da norma culta constitui-se também como instância de legitimação da
autora, uma vez que se espera essa modalidade no registro escrito. Vale pontuar que as variantes
populares também se fazem presentes, principalmente na fala dos pescadores, cantadores e
feirantes, numa tentativa de transpor o plano da oralidade para a escrita.
Em relação à temática desse corpus, destacamos o sentido político que sempre está
manifesto. O conflito entre Juliana e Paulo, em Negro amor de rendas brancas, não se resume
a uma briga de casal, mas desencadeia uma série de discussões acerca do papel da mulher na
sociedade e do preconceito contra o negro; a história da Bahia, contada em Bahia livre
exportação, não planifica ou mitifica o estado, mas problematiza as perseguições aos negros e
aos índios no decurso da história.
Por se tratar de uma dramaturgia construída nos e para os palcos, sua autoria era sempre
compartilhada. Apesar de Jurema Penna assinar as peças e se apresentar como uma autora
individual, a interferência da cena sobre o texto confirma o caráter coletivo dessas produções,
em detrimento da emergência de uma “genialidade individual”. Nesse sentido, é preciso ler tal
dramaturgia nas suas especificidades, considerando os diferentes sujeitos intervenientes em sua
12

elaboração, vinculando-a ao momento de sua produção, circulação e recepção na sociedade


baiana, em tempos de ditadura militar.
O escopo teórico-metodológico da Crítica Textual, a Filologia em sentido estrito, nos
permite, a partir do cotejo dos documentos recolhidos desta produção dramatúrgica, lê-los em
sua elaboração e transmissão, compreender a cena em sua composição e vislumbrar a peça em
sua circulação. Os textos foram estudados e submetidos ao método filológico. O meio digital
foi o suporte escolhido para a apresentação das edições, por se mostrar flexível e alinear,
permitindo a integração entre o texto crítico, as modificações realizadas, podendo ser estas
autorais ou não. Acrescente-se a esse estudo os documentos da recepção, que possibilitaram
uma leitura das relações entre os mesmos de maneira dinâmica. A reunião dessa diversidade de
materiais editados formou aquilo que denominamos arquivo hipertextual, um ambiente virtual
que reúne e inter-relaciona os documentos de uma tradição textual, proporcionando a interação,
e que é flexível para agregar novos materiais digitais após sua consolidação (PORTELA, 2013).
Selecionamos quatro textos da dramaturga Jurema Penna para compor este estudo, a
saber: Bahia livre exportação (BLE), Negro amor de rendas brancas (NARB), Iemanjá – rainha
de Aiocá (IMJ) e O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus ou das
crianças (BNV). BLE e NARB já haviam sido estudados por esta pesquisadora na dissertação de
mestrado intitulada Três fios do bordado de Jurema Penna: leituras filológicas de uma
dramaturgia baiana (ALMEIDA, 2011). Nesta, editamos, os referidos textos em suporte papel,
além de Auto da barca do rio das lágrimas de Irati, cuja edição foi construída em suporte
digital. No trabalho que ora apresentamos, revisitamos as edições feitas, a fim de adequá-las
para o meio digital. Este trabalho, no entanto, não se configurou como uma simples transposição
de suporte, mas implicou o desenvolvimento de uma série de tarefas críticas não contempladas
na edição em papel, o que marca a significativa diferença entre as propostas de edição
apresentadas, deixando evidente que o meio virtual é um espaço em que se ampliam as
atividades críticas do editor.
A tese apresenta-se em dois volumes, um em suporte papel e outro em suporte digital.
No primeiro volume, estabelecemos o percurso da construção de uma leitura filológica dessa
dramaturgia, para a qual foi necessário levantar os pontos de convergência entre o trabalho da
Crítica Textual e as especificidades do texto dramatúrgico, bem como as relações entre esta
disciplina e a Informática. Na segunda seção, intitulada Um texto para ler: interseções entre a
crítica textual e o teatro, discutimos questões acerca do script como objeto de edição,
desdobrado em dois aspectos principais, a questão da escrita dramatúrgica de Jurema Penna,
particularizada por ter a cena como presença, e as especificidades do texto teatral e suas
13

consequências para o labor filológico. Na terceira seção, O uso do meio digital na preparação
de edições de textos teatrais, buscamos levantar elementos para compreender o texto no meio
digital como objeto plural e multifacetado, elencando as consequências desses novos gestos de
leitura para uma proposta editorial, além disso, apresentamos algumas edições em meio digital
que já foram desenvolvidas em centros de pesquisa nacionais e internacionais.
Segue-se a essa seção a exposição da proposta d’ O Arquivo Hipertextual de Jurema
Penna. Nela, discutimos o percurso metodológico para a preparação do arquivo hipertextual,
detalhando as ferramentas informáticas utilizadas, os critérios para o desenvolvimento das
edições, além de apresentar uma visão geral do arquivo hipertextual. Ainda nessa seção,
passamos a analisar as situações textuais de Iemanjá – rainha de Aiocá e O bonequeiro
Vitalino..., nas quais abordamos os testemunhos, a transmissão e, quando possível, a recepção
desses textos.
O primeiro volume é finalizado pela seção Leituras da dramaturgia de Jurema Penna:
exercício de Crítica Filológica, em que abordaremos dois aspectos da cultura baiana,
evidenciados nas subseções, a saber: O negro na Bahia, para tratar da representação do negro
e de seu papel na história da Bahia, sua vivência cotidiana na cidade de Salvador e os
enfrentamentos decorrentes da ascensão social; Confluências entre sertão e litoral, para discutir
as interseções identitárias entre a cultura sertaneja e a cultura litorânea, destacando-se três eixos
organizadores, a feira livre, a arte de mestre Vitalino e o catolicismo popular. Seguem-se a esta
seção, as Considerações Finais e as Referências.
No segundo volume, apresentamos o Arquivo Hipertextual de Jurema Penna. O volume
encontra-se em suporte digital e é acessível a partir do site
www.juremapenna.com/inicio.html1. Elegemos este meio para a sua composição e
disponibilização, pois as possibilidades de apresentação que são trazidas por ele engendram
formas de ler diferentes do texto impresso, nesse sentido, a linguagem do meio virtual torna-se
constitutiva da experiência de leitura e da construção de sentidos desse volume. Da mesma
forma, a referida linguagem é parte do exercício crítico que culmina na elaboração do arquivo
hipertextual; assim, se este tomasse a forma de impresso, perderia o seu sentido.
A organização do volume digital assemelha-se a dos sites da web, o que favorece o
reconhecimento da sua estrutura por parte do “leitor-navegador” (RODRIGUEZ DE LAS
HERAS, 1991), tornando a experiência de acesso ao Arquivo Hipertextual bastante intuitiva,

1
Para o acesso à edição sinóptica, faz-se necessário o uso de login ‘izzalmeida@gmail.com’e senha ’157913’
14

além de possibilitar a construção dos caminhos de suas leituras pelos textos. Ainda assim,
trazemos os Critérios de edição, além de breves instruções para a navegação.
O ponto de partida para a leitura desse volume são os textos teatrais de Jurema Penna,
para cada um deles, construímos três possibilidades de edição, que listamos: a) edição fac-
similar, na qual trazemos os fac-símiles e a descrição física dos testemunhos de cada um dos
textos, a fim de evidenciar as marcas presentes nos suportes; b) edição sinóptica, na qual
expomos o confronto entre as versões, por intermédio do aplicativo Juxta Commons, focando
o contraste entre os testemunhos de cada texto, dois a dois, acompanhados de comentários das
modificações textuais realizadas; c) edição crítica, quando trazemos o texto crítico, pondo em
evidência as modificações textuais realizadas. Compõem ainda o arquivo hipertextual os
documentos da recepção, atinentes à circulação dessas obras.
15

2 UM TEXTO PARA LER: INTERSEÇÕES ENTRE A CRÍTICA TEXTUAL E O


TEATRO

Nesta seção, serão levantados alguns dos problemas atinentes ao trabalho de edição de
textos de teatro. Para tanto, discutimos os principais elementos que os constituem e os
caracterizam e como estes podem demandar questionamentos e revisões da prática editorial.
Interessa assinalar o estudo filológico da dramaturgia de Jurema Penna como possibilidade para
compreender os sentidos do fazer teatral na Bahia, em tempos de ditadura militar, bem como
refletir acerca da Filologia, seus métodos e pressupostos teóricos.

2.1 ESCREVER PARA ENCENAR: A DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA

Para pensar o texto teatral censurado como objeto de edição e estudo, destacamos a
produção dramática de Jurema Penna. Esta escolha deve-se ao fato de podermos pensar, a partir
dela, momentos distintos do teatro baiano, com destaque para o movimentado cenário cultural
das décadas de 1970 e 1980. Tratam-se dos princípios da profissionalização do teatro na Bahia,
que tem como um de seus marcos a formação da primeira turma da Escola de Teatro/UFBA, da
qual Jurema Penna fez parte. Nesse tempo, um dos problemas enfrentados pelo teatro
profissional na Bahia eram os escassos recursos financeiros disponíveis. Essa dificuldade
motivava os atores e produtores a recorreram à inciativa pública a fim de obter patrocínio para
seus espetáculos, pois os valores gerados pela bilheteria não eram suficientes para mantê-los.
Jurema Penna estabelece, então, parceiras com o Teatro do Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC), e em seguida passa a atuar na Fundação Cultural do Estado da Bahia
(FUNCEB). Como esclarece em entrevista publicada em 1979,

[t]eatro é um investimento. Você não pode escapar disso, por mais que você seja
amador vai ter sempre que possuir uma aparelhagem de som, uma pesquisa. E nada
disso é feito sem investimento. É uma coisa mesmo da sociedade capitalista. Então as
pessoas que são voltadas para isto como nós todos, são pessoas pobres e precisam de
dinheiro. A gente cai num círculo vicioso porque combatemos o paternalismo e
exigimos uma atitude paternalista do Governo para que nos dê dinheiro. A gente cai
numa coisa quase contraditória porque depois que você começa a ser subvencionado
pelo Governo você começa a ser cerceado, inclusive naquilo que vai dizer (CADA
DIA, 1979).
16

A clareza de Jurema Penna, ao tratar do patrocínio no teatro, aponta para a vivência das
dificuldades de se produzir teatro na Bahia por conta própria. Na ausência de mecenas, a
solução era buscar o auxílio junto aos poderes públicos, e, para tanto, uma série de negociações
são estabelecidas entre estes e o artista, algumas delas construídas a partir de uma “ética de
fundo emotivo” (HOLANDA, 1996, p.148). Este posicionamento alude àquilo que Holanda
(1996) denomina de “homem cordial”, cuja consequência para as instituições públicas é a
interferência de interesses privados sobre o funcionamento destas. Nesse processo de
conciliação de interesses, a liberdade artística vê-se interpelada pela dependência financeira do
estado, resultando em uma limitação daquilo que pode ser dito ou do que deve ser silenciado.
Como sujeito de seu tempo, Jurema Penna estava atenta às questões políticas e sociais
que perpassavam a vida na Bahia de meados do século XX. Nesse momento, a dramaturga
começava a participar mais ativamente dos movimentos artísticos e intelectuais da cidade de
Salvador, mediante a conclusão do curso de Bacharelado em Direito pela UFBA e início de
suas atividades como atriz, em 1949. Num contexto histórico em que ser atriz significava ser
tida como prostituta, muitos enfrentamentos fizeram-se necessários. Sua personalidade e
postura foram fundamentais para estabelecer uma resistência a essas imposições e assumir um
comportamento de insubordinação às regras postas. Em entrevista a Vieira Neto, Jurema Penna
afirma:

Toda minha vida, você sabe, foi só de reivindicações pelos direitos da mulher. Tudo
o que enfrentei nas minhas atitudes, no meu ser, fumar e público (um escândalo
naquela época), ir saborear as deliciosas batidas do Mercado Modelo, com tira-gosto
de lambreta; entrar para a faculdade de Direito, quando as mulheres quase que não
tinham acesso à ela, não era de “bom tom” mulher pensar em advocacia. Basta dizer
que quando entrei para a Faculdade, só tinha duas colegas. Tudo isso já era uma luta
visceral, minha, em prol dos direitos da mulher, quando ainda nem se sonhava em
organizar movimentos feministas (VIEIRA NETO, 1980).

Além das restrições impostas ao gênero feminino, a questão do negro também


atravessava a sociedade baiana. A população negra estava submetida a uma forte segregação
social, em um contexto cujas estruturas e instituições mantinham práticas de discriminação e
exclusão do afrodescente, relegando-o a posições sociais subalternas. Ainda na década de 1960,
o sofrimento do negro era minimizado, invisibilizado ou naturalizado. A herança da ideologia
escravocrata e das teorias racialistas presentes na Escola de Medicina, legitimavam a
inferioridade intelectual dessa população, o que se refletia na dificuldade de acesso à educação
e um direcionamento desta aos subempregos, mantendo a sua posição serviçal.
17

A atitude de enfrentamento dessas questões, por parte de Jurema Penna, traduzia-se, por
exemplo, na escolha de atores negros para suas peças. Num momento em que boa parte dos
diretores escalavam atores brancos maquiados para representar personagens negros, a escolha
de Jurema Penna concretizava seu posicionamento político. Destaque-se a parceria entre
Jurema Penna e Mário Gusmão que contracenaram em diversos espetáculos ao longo de suas
carreiras, como em Auto da Compadecida (1959), conforme figura 1.

Figura 1 – Jurema Penna e Mário Gusmão em Auto da Compadecida, 1959

Fonte: JUREMA, 1995.

Tais questões eram condicionadas pela presença de um poderio militar instituído,


inclusive na regulação das práticas teatrais. Some-se a isso o estabelecimento de um poder local
ainda muito arraigado às questões do coronelismo e clientelismo e que estava em embate direto
com um desejo de modernização do pensamento político fomentado pelas diversas camadas da
sociedade. Todas essas referências encontram-se amalgamadas na dramaturgia de Jurema
Penna, que buscava representar, no palco, as questões do seu tempo, trazendo à baila problemas
que muitas vezes tendiam a ser silenciados, apagados ou deliberadamente esquecidos. Essa
posição manifestava as suas reflexões intelectuais e sua postura, problematizando causas e
consequências do preconceito étnico, da injustiça social, as questões da mulher, dentre outros
temas. Verificamos, no conjunto de sua obra, um projeto de escrita dramatúrgica, manifesto na
materialidade linguística do texto, em que há uma preocupação não somente no que se refere
ao conteúdo, mas também à forma que as suas ideias adquirem na modalidade escrita da língua.
18

O estudo dessa dramaturgia, sob a perspectiva da Filologia, interessa-nos por possibilitar


pensar o texto teatral como suporte sobre o qual esta multiplicidade de fazeres artísticos, de
linguagens e de papéis desempenhados pelos sujeitos se inscrevem, deixando os rastros do
processo da escritura e da encenação. Considerar tal multiplicidade resulta em lidar, não
somente com o componente verbal do espetáculo, mas com uma diversidade de documentos e
materiais presentes no palco, que se fazem registrar em meios diversos.
Nesse sentido, entendemos que o texto de teatro e os demais documentos resultantes de
sua produção, transmissão, circulação e recepção são permeados pelos condicionamentos das
questões sociais, históricas e culturais, constituindo-se como documento e monumento não só
do texto escrito, mas também da cena (LE GOFF, 1990; SANTOS, 2008a). Como documento,
é a prova que atesta as circunstâncias de sua elaboração, tanto por meio da leitura de sua
materialidade, como do seu conteúdo. Do ponto de vista material, trata-se de um documento
heterogêneo, composto pelo script e que pode conter marcas de diversas mãos, compreendendo
as correções autorais ou não, indicações cênicas, desenhos ilustrativos do cenário ou do
figurino, além de documentos do processo de censura. Do ponto de vista de seu conteúdo, traz
as representações de um tempo pretérito, que dão a conhecer as ideologias, os posicionamentos
sobre fatos e acontecimentos, que elucidam o pensamento individual ou coletivo, no que se
refere à produção cultural da época.
Como monumento, entendemos o texto de teatro como memória dos modos de fazer
artes cênicas na Bahia (SANTOS, 2008a). Nele se registram as etapas da produção de um
espetáculo teatral, as alianças e dissidências entre os diferentes grupos, os acordos com os
patrocinadores, a ação e a possibilidade de negociação com as instâncias da censura, além da
circulação desses documentos, como datiloscritos ou impressos. Nesses termos, ao se pensar a
produção dramatúrgica baiana, como objeto dos estudos filológicos, os scripts normalmente
são o ponto de partida, na medida em que oferecem o enredo, a lista de personagens, descrição
de cenários além de notas sobre a peça de natureza diversa. Todos estes elementos guiam o
pesquisador em busca dos outros documentos resultantes de sua produção. Interessa, assim, aos
filólogos partir do texto em direção à cena e aos vestígios deixados por ela.
Reproduzimos, em sequência, um excerto retirado da folha 18, testemunho de 1991 (cf.
figura 2), d’ O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças
(T91 BNV), que traz o registro e a memória dos fazeres teatrais baianos em tempo de ditadura
militar. Como documento, apresenta a intervenção do ator em dois momentos diferentes, em
tintas diferentes e com grafias também diferentes. Nele se registram a transmutação do texto no
palco, em que os tipos nordestinos saem do lugar, recitam versos ou cantam uma cantiga e em
19

seguida retornam ao lugar. A inscrição “pastoril”, por sua vez, indica que esta cena deve ser
realizada como um pastoril, compreendendo “cantos, louvações, loas, entoadas diante do
presépio na noite do Natal, aguardando-se a missa da meia-noite” (CASCUDO, 1999, p.682) e
que pode, ou não, aparecer em outras montagens.
O registro de “la la ri ê e” também indica que os versos podem ter sido cantarolados.
Além disso, marca-se a movimentação dos atores no espaço cênico, com a inserção de “2 troca
roda / 2 troca junto / 2 troca volta”. Este trecho constitui-se, assim, como monumento por trazer
a memória daquela encenação, o momento em que o ator registra como o texto é oralizado,
acrescentando as formas do gênero pastoril sobre as falas, escritas em linguagem de cordel.

Figura 2 – Acréscimos feitos pelo ator em T91 BNV

Fonte: PENNA, 1991, f.18.

Transcrição do acréscimo manuscrito: Pastoril/ [↑ Tipos nordestinos] / 2 – dp. lavrados / 2


troca roda / 2 troca junto / 2 troca volta / Nasceu, nasceu / é menino, menino home / Emanuel
e Emanuel será seu nome / La la ri ê e / ao lugar

Nesse sentido, a perspectiva do texto como documento e monumento difere da relação


texto-acontecimento e texto monumento. Conforme Bezerra, faz-se preciso

[...] atenuar as fronteiras e as pseudo-diferenças que alguns teóricos insistem em


apontar, entre um “texto-acontecimento” (texte-événement) e um “texto monumento”.
O primeiro seria fruto das condições materiais da sua locução e o segundo, o “texto
monumento”, seria edificado pelas condições da sua difusão escrita (manuscrita ou
impressa) e de sua preservação. Neste ponto preciso da discussão, abro um parêntese
para, a exemplo de Roger Chartier (1991), brincar com o sentido do termo inglês
performance, o qual remete geralmente à ideia de produção ou mesmo de ação, antes
de designar uma representação teatral específica; [...] como falar de texto dramático
sem evocar a sua dimensão performativa? (BEZERRA, 2011, p. 18)

Nesse caso, a construção do sentido de texto como monumento evoca a ideia deste como
detentor de um saber digno de admiração por parte do leitor e cujo valor deve ser transmitido à
posteridade. Depreendemos, a partir dessa ótica, que a cultura livresca termina por selecionar
20

textos merecedores da publicação, no meio impresso, em detrimento de outros, apresentando


um juízo de valor sobre as obras. Tal fato não convém aos propósitos almejados nesse estudo,
pois interessa-nos divulgar as diferentes materializações assumidas pelo drama, por meio dos
manuscritos, datiloscritos e impressos. Entendemos que “[...] para além do caráter de difusão,
é necessário também defender, nessa travessia, a leitura de textos teatrais como um (grande)
prazer… Um prazer de outra ordem!” (BEZERRA, 2011, p. 18).
Diante disto, pretendemos aqui estudar a dramaturgia de Jurema Penna, tomando como
ponto de partida o texto, mas também considerando, na medida do possível, a interface que este
estabelece com os outros sistemas de signos que compõem o espetáculo. Acrescentem-se a isso,
os registros de sua circulação na sociedade baiana e a recepção por seu público. Esta escolha
decorre do propósito do estudo desenvolvido, qual seja, atualizar os textos teatrais de Jurema
Penna, entendendo-os como parte da literatura dramática baiana. Nesse intento, não se pode
desconsiderar o projeto de dramaturgia idealizado pela autora, bem como o seu propósito com
o teatro baiano. Em reportagem, Jurema Penna (O CICLO, 1977), afirma que o “teatro só é
teatro no momento em que está sendo realizado, vivo, no espaço cênico, junto com o público e
dialogando com ele, através dos atores vivendo o que o autor escreveu. Antes disso acontecer,
que sei eu?”. Uma vez que Jurema Penna escrevia e montava suas próprias peças, é fundamental
considerar o embricamento dos papéis de dramaturga e diretora, bem como as interferências
mútuas resultantes dessa interação para o processo de escritura e para a montagem do
espetáculo.
Nesse sentido, torna-se necessário compreender a relação entre o texto teatral e a cena,
a fim de elucidar algumas questões que são basilares para pensá-lo como objeto de edição. Ao
longo da história do teatro ocidental, esses dois elementos têm adquirido papeis antagônicos na
construção do espetáculo, postulando um fazer teatral polarizado entre duas vertentes: a que
enfatiza uma tendência cenocentrista e a que segue uma tendência textocentrista.
Sob a primeira visão, a cena ocupa o lugar central na leitura do espetáculo. Ela possui
primazia sobre o texto, é a partir da ação que o espetáculo irá se constituir, podendo ou não dar
origem a um registro escrito ao fim dos trabalhos. O diretor ocuparia a posição principal da
construção da peça, seu olhar de demiurgo seria o responsável por organizá-la, regendo, como
maestro, todas as demais linguagens do espetáculo. Assim, “o texto não se beneficia mais de
um estatuto de autoridade ou de exclusividade: é apenas um dos materiais de representação e
não caracteriza nem organiza os elementos não verbais” (PAVIS, 2011, p. 191).
Na contramão, estaria a perspectiva textocentrista, segundo a qual o texto é o ponto de
partida para o espetáculo, é o portador dos sentidos que deverão estar presentes na montagem.
21

Busca-se uma completa semelhança entre o script e a sua performance no palco, sendo o
primeiro a causa do segundo. Neste, o autor ocupa o protagonismo na construção da montagem
e suas palavras deverão, então, ser preservadas numa cena que é espelho do texto e, por isso,
não pode ser descaracterizado. De acordo com Pavis (2011, p. 190), na tendência textocentrista,
“o texto é então concebido como uma reserva, ou até mesmo depositário do sentido que a
representação tem como missão extrair e expressar”.
Patrice Pavis defende ainda a conciliação entre as duas visões, partindo do princípio que

[...] não há sentido em querer prender a encenação em elementos potenciais ou


incompletos dos textos, mesmo se acabando sempre por encontrar um índice textual
no qual a encenação pode “legitimamente” se agarrar, não há pré-encenação já inscrita
no texto dramático, mesmo se o texto só possa ser lido imaginando situações
dramáticas nas quais se desenvolve a ação. (PAVIS, 2011, p. 192)

Ainda que a leitura do texto só se realize com a suposição de um espetáculo imaginário,


a construção da ação sempre emancipa-se dele. Apesar de Pavis destacar as interferências
existentes entre texto e cena como via de mão dupla, pontuamos que estas proposições
encontram-se calcadas em uma visão estruturalista, na qual os elementos do teatro são
compreendidos em termos de causa e efeito, sendo um dependente do outro, de maneira
hierárquica. No bojo dessa dicotomia, ambos componentes são considerados desconexos e a
relação entre eles é algo externo à construção do espetáculo. Desconsidera-se, dessa forma, que
estão imbricados e são participantes de uma mesma relação.
Ryngaert (1998, p.8) postula a existência de estilos na escrita do teatro contemporâneo

[...] um ainda clássico, de uma escrita informativa e, no fim das contas, fechada, ao
menos tanto quanto autoriza a aspiração imposta pela cena seguinte; o outro, cheio de
vazios, de uma escrita que não se esforça para fornecer narrativa, mas que, se é bem-
sucedida, impõe suas ‘ausências’ como ímãs para atrair sentido, para construir a cena
seguinte.

Observamos, assim, a multiplicidade de formas presentes na escrita dramatúrgica.


Denominada “clássica”, esta escrita ainda se encontra muito arraigada ao teatro burguês e à
tradição do século XVII e XVIII, que tem por meta a representação de uma vida cotidiana e
objetiva construir um script finalizado para ser levado ao palco. A estas se opõem os
dramaturgos que buscam novas linguagens para a escrita do texto cênico, com vistas a
contemplar as necessidades do teatro na contemporaneidade, onde o imperativo de falar por
outros meios que não o verbal adquire importância fundamental para o espetáculo, sobretudo
na interação com o público.
22

Williams (2010), por sua vez, indica que a interface entre texto e cena se constitui em
um contínuo, em progressivas aproximações ou distanciamentos. Essa relação pode ser
decorrente de inúmeros aspectos, mas recebe significativa influência das teorias de teatro que
vigoram em certos períodos históricos. Assim, analisa obras da literatura dramática universal e
propõe uma categorização destas em quatro grupos, a saber:
a) Fala encenada: “quando um texto desse tipo – Antígona, por exemplo – é adaptada
nas circunstâncias cênicas para as quais escreveu o poeta trágico, todos os detalhes
são tidos como predeterminados” (WILLIAMS, 2010, p. 218).
De uma forma geral, esse tipo de comportamento está presente nas montagens de peças
pertencentes à literatura dramática canônica, cuja obra é bastante conhecida. Tanto o diretor,
quanto o público buscam estabelecer uma identidade com tais obras, conhecidas sobretudo a
partir dos impressos. Nesse caso, o encenador opta por manter todos os detalhes indicados nas
rubricas, no que se refere ao cenário, figurino, marcações de palco etc. E, em geral, tenta
preencher os vazios do texto (ISER, 1979), tomando por referência a conjuntura social, histórica
e cultural em que foi escrito, buscando se aproximar da época do autor. Essas são obras que
recebem a atenção das editoras para a publicação e que são consumidos como literatura
dramática.
b) Representação visual: “aqui, a relação entre texto e cena varia de acordo com o grau
de utilização de convenções do que deve ser encenado visualmente” (WILLIAMS,
2010, p. 218).
O diretor tende a deslocar a interpretação da obra para outras linguagens do palco,
preservando o texto. A palavra do autor estará quase sempre a salvo de modificações e a
recriação da obra, fator inerente à montagem do espetáculo, será deslocada para o figurino, o
cenário, a iluminação, a sonoplastia etc. Por sua vez, o público mais tradicional deseja encontrar
a “obra de ...” encarnada no palco, aguarda para escutar os diálogos já conhecidos, até aceita
que haja alguma atualização no vocabulário, no entanto, reage negativamente a trechos
suprimidos e outras alterações que modifiquem a letra do autor. Tratam-se de peças
consagradas, também conhecidas por meio da leitura, além de serem veiculadas em edições
comerciais.
c) Atividade: “aqui, embora o texto, de modo geral, possa prescrever a ação, o resultado
da encenação geralmente será bem diferente do efeito do texto por si só”
(WILLIAMS, 2010, p. 219).
Nesse caso, o compromisso não está em seguir o texto do autor, mas em reinterpretá-lo,
propondo-lhe novos sentidos, seja por meio dos elementos cênicos, seja sobre o próprio
23

componente verbal do espetáculo, modificado em função das necessidades da encenação. Por


meio dos diversos materiais utilizados, o diretor reescreve um roteiro, a partir do formato que
pretende dar à sua montagem. De uma maneira geral, não são dados à leitura, pois as
modificações empreendidas pelo encenador são consideradas como pertencentes ao plano da
cena e não do texto.
Devemos considerar, no entanto, uma tendência de se publicar os cadernos de
encenação, contendo as anotações do diretor ou de outros sujeitos. Estes registros trazem o
processo de construção dos personagens, os elementos da cenografia e iluminação, a
performance dos atores etc. Kaghat (2013, p.426) lista os seguintes títulos publicados pela
Editions du Seuil, a saber Mise en scène de Phèdre, de Jean-Louis Barrault; Mise en scène
d’Othello, de Constatin Stanislavski. Note-se que o título da obra faz referência direta à
montagem e a autoria é atribuída ao encenador. Kaghat (2013, p.426) também chama a atenção
para a forma dessas publicações, marcadas por duas características:

1) o texto da encenação é relatado nas páginas do lado direito do livro e o texto


dramático nas da esquerda, de modo que as anotações e comentários do diretor se
encontram em frente aos diálogos dos quais eles tratam; 2) quando esses livros contêm
outros textos relativos ao trabalho do diretor, eles se colocam a parte e constituem
outros capítulos do livro.

Nesse sentido, ainda que os registros da construção da peça sejam incompletos e


fragmentários, podem assumir a forma impressa, com potencialidades comerciais, a que se
atribui uma autoria2. Publicar tais textos é reconhecer o trabalho de direção como criação,
dotado de traços característicos, idiossincrasias, além de um estilo próprio, que conferem ao
conjunto de suas montagens o estatuto de obra.
Williams (2010) apresenta o último estágio de sua classificação para a relação entre
texto e cena, em que os esforços para a elaboração do espetáculo concentram-se
prioritariamente sobre esta:
d) Comportamento: “[...] a encenação a um texto desse tipo é baseada menos no texto
do que na reação ao texto. Ele, muitas vezes, é mais próximo de ‘uma história que
os outros adaptam para a cena’ do que do texto que, para ser totalmente representado,
baste que seja vocalizado” (WILLIAMS, 2010, p. 219).
Neste estágio, o grau de distanciamento é bastante acentuado. O texto configura-se
apenas como argumento para uma intensa atividade de criação que tem como ponto de partida

2
A partir da publicação do caderno do encenador como livro a ler, entendemos que as anotações de encenação
constituem-se um texto e como tal, demandam, para inscrever-se no sistema dos livros impressos, um nome de
autor, a quem se podem atribuir os sentidos de sua obra, conforme teoriza Foulcault (1992 [1969]).
24

os sentidos construídos pelos atores e demais sujeitos nas experimentações cênicas. O resultado
desse processo de criação pode ser tão intenso e rico que promove a escrita de um outro script,
podendo resultar em sua posterior publicação.
Notamos que o distanciamento ou proximidade entre texto e cena não é decorrente do
estatuto da escrita para o teatro, mas advém da postura do diretor na elaboração do espetáculo,
resultando em diferentes graus de recriação. Cumpre, também, relativizar a distinção estanque
entre o texto escrito antes do palco e aquele elaborado após a improvisação cênica, concepção
que ignora as idas e vindas que o dramaturgo faz do gabinete ao palco. Entendemos, assim, que
os momentos de escrita e encenação não possuem primazia absoluta um sobre o outro, mas
podem se configurar como tempos distintos com diferentes graus de acabamento,
caracterizados por uma mútua interferência. Mesmo ao se tomar obras da literatura dramática
canônica, em que se busca uma “fala encenada”, conforme o modelo proposto por Williams
(2010), a oralização da réplica no palco promoverá sua reformulação.
Outra perspectiva que promove a superação da referida oposição é levantada por Pereira
(2006), que toma como chave de leitura para pensar esta relação no teatro contemporâneo, os
escritos de Artaud (1987), Grotowski (1992) e Brecht (2005). Apesar das diferenças nas
propostas cênicas defendidas, as obras dos três resultavam em um desmantelamento das noções
consolidadas sobre a ação e a dramaturgia. A partir do esboroamento dessas barreiras e da
desconstrução dos conceitos pertencentes a distintos campos do saber, estes passam a ser
entendidos de forma integrada. Conforme afirmam Barba e Savarese (1995, p. 69), “a palavra
‘texto’, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa
‘tecendo junto’. Nesse sentido, não há representação que não tenha texto”.
Ao retomar a etimologia da referida palavra, Barba e Savarese (1995) chamam a atenção
para a ação presente em sua construção. A dramaturgia da cena elabora-se, então, a partir da
integração entre ator, diretor e público espectador, podendo ser definida como “[...] um discurso
produzido na relação entre cena e espectador, ou em outras palavras, de uma prática de
encenação e suas articulações discursivas” (PEREIRA, 2006, p.143). Assim, supõe entender o
fazer teatral de forma socializada, uma produção de sentido que seja compartilhada por todos
em um processo de criação colaborativa. Concebendo-o em sentido lato, concluímos que não é
possível fazer um espetáculo sem texto.
No âmbito da produção dramatúrgica baiana durante a ditadura militar, a segmentação
entre o script e a peça contava com alguns complicadores. A instituição da censura militar
considerava os fazeres teatrais com base nessa separação, sendo que o primeiro sempre gozaria
da anterioridade. Assim, para serem encenados, os textos necessariamente deveriam passar pelo
25

crivo da censura, constituída de uma comissão com três técnicos em censura. A avaliação das
peças pautava-se na Lei nº 5.536, de 1968, que indicava como critério para veto as produções
que fossem “contrárias à segurança nacional e ao regime representativo e democrático, à ordem
e ao decôro públicos, aos bons costumes, ou ofensivas às coletividades ou as religiões ou, ainda,
capazes de incentivar preconceitos de raça ou de lutas de classes.”. Uma vez liberado, emitia-
se o certificado de censura e autorizava-se o espetáculo com ou sem cortes, com a devida
classificação etária.
Na ótica da censura militar, o texto deveria determinar a cena, baseado nisso, o censor
ia assistir ao ensaio geral, analisando a continuidade entre o script e o espetáculo. A presença
do sensor teria como finalidade assegurar que todas as falas seriam realizadas conforme o
registro escrito, que fora previamente aprovado ou censurado. O relatório do ensaio geral do
Serviço de Censura de Diversões Públicas de Sergipe, emitido para a peça Dona Clara Clareou
ou Simplesmente destroços, de Jurema Penna (RELATÓRIO, 1982), evidencia esta
dicotomização. Impresso e datiloscrito, o relatório é composto por quatro itens: texto,
encenação, observações e parecer. No item texto, analisa-se o tema e indica-se se este sofreu
alterações em relação ao script encaminhado para a censura, se essas alterações são
significativas, se sofreu cortes e se os cortes foram obedecidos. Quanto à encenação, o censor
designa se o cenário, a iluminação, a música, o guarda-roupa, a projeção de ‘slides’ e a
expressão corporal estão de acordo ou não com as normas censórias. O registro escrito guardaria
os sentidos permitidos pela censura que deveriam ser obedecidos na transposição para o palco,
e esta, por sua vez, congregaria as demais linguagens cênicas do teatro.
A obrigatoriedade da censura prévia à peça não barrou inovações nas quais a encenação
se desvincula do componente verbal, em busca de novas linguagens teatrais. A experimentação
torna-se característica preponderante do teatro produzido na Bahia, no bojo das vanguardas
teatrais dos anos 1970. O texto teatral, nessa circunstância, perde seu estatuto de centralidade e
de elemento organizador da cena, desconstrói-se a posição de supremacia e é, por fim,
considerado como mais um dos elementos presentes no teatro. Leão (2011) esclarece que esta
tendência do teatro baiano recebia influências das experiências cênicas desenvolvidas no eixo
Rio-São Paulo, a exemplo do Teatro de Arena, Grupo Opinião e Teatro Oficina, denotando uma
rede de permeabilidade entre essas produções.

Absorvendo as experiências artísticas desenvolvidas no eixo Rio-São Paulo, os


encenadores sediados em Salvador trabalham sua escritura cênica de maneira pessoal,
ainda que deixem visíveis filiações ou afinidades eletivas. Mesmo sem a rapidez
proporcionada pelas novas mídias que permitem a aceleração da informação, os
indivíduos e as ideias circulam; rompem-se fronteiras e o trânsito entre os artistas é
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construtivo para que a experimentação se configure como uma prática alimentadora


do espaço teatral que se vê movimentado por novos desafios (LEÃO, 2011, p. 184).

O intercâmbio com sujeitos de diferentes movimentos teatrais do Brasil e de outros


países promovia trocas culturais que repercutiam na construção do espetáculo e nas
experimentações das formas cênicas, ainda que a individualidade da escrita dramatúrgica
estivesse presente. Leão (2011) aponta algumas peças teatrais em que essas questões se
mostram, citando as produções da década de 1960 em que se observam

[...] elementos recorrentes da estética tropicalista: a alegoria, a mistura de gêneros


teatrais impregnados de deboche, o melodrama, o escracho, a chanchada, o teatro de
revista, uma pitada operística e ingredientes da cultura de massa utilizados não apenas
de forma crítica mas assumidos como parte da poética do espetáculo (LEÃO, 2011,
p.184).

O teatro baiano, do referido período, apropria-se das tendências presentes nos diversos
âmbitos das artes nacionais e num movimento antropofágico, atualizado pela estética
tropicalista, promove a amalgamação destas referências na construção dos espetáculos. Para a
década de 1970, o autor destaca Natal em Gotham City, de Deolindo Checchucci, e Macbeth,
de Enrique Ariman. Esta última peça suscitou uma série de questionamento acerca do
fundamento teórico sobre o qual se assentava o teatro baiano:

De um lado, as ideias defendidas por segmentos conservadores; do outro, aquelas


pregadas por defensores da inovação, da vanguarda, do experimentalismo na cena.
Tornam-se pauta de argumentação e também de questiúncula as formas de conceber
o espetáculo. Opõem-se os aristotélicos aos antiaristotélicos, esses últimos
aproximando-se das proposições do teatro da crueldade artaudiano em processo de
absorção por alguns encenadores baianos. (LEÃO, 2011, p. 186)

Nesse sentido, observamos que a resistência instituída pelo teatro baiano durante a
ditadura militar não se restringia ao conteúdo, mas abarcava também a forma da encenação,
ainda que, muitas vezes, estivesse submetida aos desígnios do texto. No entanto, essas novas
formas cênicas encontravam dissidentes entre os próprios sujeitos dos movimentos teatrais
baianos, constituindo tendências inovadoras e conservadoras.
Integrada a esse momento cultural, Jurema Penna elege a escrita como fundamento para
suas peças, ao mesmo tempo em que a reelabora a partir da interação com os atores. Fazendo-
se a análise dos documentos recolhidos, percebemos que a dramaturga procedia à construção
do texto em um momento prévio à elaboração da montagem, sendo este apresentado aos atores
em um processo avançado de acabamento. No entanto, era comum que as diferentes temporadas
de uma peça resultassem em alterações ao script. Essas modificações textuais implicavam
27

ampliações decorrentes de partições de réplicas, acréscimos de elementos que instigassem o


conflito na trama, ou ainda que fossem fruto de uma pesquisa realizada sobre um dado tema.
Para elucidar as questões atinentes à escrita para a encenação, tomamos o trabalho de
Rewald, Caos e Dramaturgia, em que são apresentados o processo de elaboração do texto
teatral e do espetáculo. Na situação discutida, o dramaturgo participa da montagem de duas
peças, Narraador e Gabinete de Joana, analisando sua própria escrita, bem como refletindo
teoricamente sobre este processo, a partir de alguns conceitos da Teoria do Caos.
A proposta de Rewald empenha-se em discutir a presença das outras linguagens na
escrita do texto teatral. O dramaturgo discorre acerca dos processos intervenientes no seu
trabalho, por exemplo, os motivos que o levam a reescrever passagens, reestruturar personagens
etc. Pondera a sua atividade como escritor e as funções do script em diálogo com a cena. A
discussão interessa por trazer uma reflexão detalhada desse processo e por dar a conhecer a
dinâmica presente na elaboração do espetáculo no teatro contemporâneo, bem como o lugar do
escritor nessa dinâmica.
Ao se pensar o papel do dramaturgo, a partir do trabalho de Rewald, desconstrói-se a
ideia pré-estabelecida de um texto de teatro terminado, bem como de um escritor que conclui
sua participação na montagem com a entrega do script para os diretores e atores. No percurso
empreendido por Rewald, a perspectiva que se solidifica é a da obra que está sempre submetida
à apreciação daqueles que a irão encenar. Atores, diretores, cenógrafos, figurinistas e
iluminadores analisam ativamente, projetando, no momento da leitura, as ações necessárias
para a realização do espetáculo, conforme o papel desempenhado. Dessa forma,

[o] dramaturgo não é artista soberano na construção da obra. Suas idéias e propostas
têm de ser aceitas e discutidas pelo grupo. No entanto, é a partir de tais discussões que
surgem novas idéias e material de trabalho para uma evolução da obra, o que
caracteriza tal prática como um processo colaborativo (REWALD, 2005, p. xiv).

E como há uma transposição de linguagens no momento da construção da cena, abre-se


o precedente para que outros elementos sejam agregados ou mesmo interfiram no componente
verbal do espetáculo, tanto no que diz respeito aos diálogos, como nas rubricas, ocasionando
um movimento em que as ações do palco intervêm sobre o texto dramático, configurando um
processo de criação baseado na troca de experiências. Nesses termos, a noção de dramaturgo-
demiurgo que, no exercício solitário de gabinete, estabelece seu universo ficcional, se desfaz,
para a emergência de um sujeito que acompanha os ensaios, atento à reação provocada pelo seu
texto nos participantes da cena, o que poderá motivar momentos de reescrita.
28

A fim de caracterizar o trabalho dramatúrgico, Magaldi (1997, p.16) afirma que

[a]o escrever a peça, o dramaturgo autêntico já supõe a encenação, da qual participa


obrigatoriamente o público. Se ele quisesse prescindir da representação, preferiria
outro gênero literário. Pode o autor não se importar com a acolhida do público, mas
nunca deve esquecer que as suas palavras precisam ser encontradas em função de uma
audiência.

De acordo com Magaldi, a encenação permanece como presença durante a escrita da


peça. O dramaturgo vislumbra a participação das outras linguagens do espetáculo, bem como o
papel desempenhado pelo público. Esse exercício projetivo de antever a ação durante a escrita,
no entanto, não é suficiente para o teatro contemporâneo, devendo ser somado à vivência da
preparação do espetáculo. Assim, o dramaturgo, quando possível, deve ir a campo, deslocando-
se de sua visão escritural e linear para perceber como seu texto reverbera no processo de
encenação. Dessa forma,

[...] mais do que exercer a função de autor da obra, constitui-se como o intérprete
textual das experiências vividas durante o processo […]. Para tanto, é fundamental
um exercício de escuta incessante praticado pelo dramaturgo. Afinal ele é a “antena”
do processo (REWALD, 2005, p. 23).

Para além da produção textual, esse sujeito assumiria o papel de tradutor da construção
da cena para o plano da escrita. A fim de entender esta faceta, Rewald (2005) propõe a noção
de autor-espectador, partindo das ideias de autor-scriptor e autor-leitor, discutidas por Almuth
Grésillon (1990) e retomadas por Philippe Willemart (1993). Ampliam-se, assim, as
possibilidades de leituras de sua obra, antes restritas à “leitura de gabinete”, assumindo um
campo mais amplo, dessa forma,

[o] autor-espectador é o escritor forçado a sair do seu gabinete, da sua clausura, da


sua solidão imaculada. Para criar, ele necessita olhar o outro, entender a criação do
outro, dialogar com o outro, aceitar as regras do outro e fazer com que o outro aceite
as suas. O autor-espectador tem de olhar para si e para o mundo ao mesmo tempo, e
sua criação é a própria medida deste colocar-se no mundo. Ele não pode se anular
aceitando totalmente as questões do outro em detrimento das suas, como também não
pode impor a qualquer custo as suas ideias, sem ouvir o outro. Em ambos os casos o
processo se empobrece, pois perde a dimensão do diálogo, da interação, necessários
para sua evolução (REWALD, 2005, p. 40).

Durante o processo de reescrita, essas leituras e percepções do dramaturgo são


registradas, analisadas e incorporadas aos textos. As versões resultantes terminam por constituir
um espaço de memória da cena, em que ficam postas certas escolhas. Na comparação dessas
29

múltiplas versões, torna-se evidente aquilo que foi suprimido, ou seja, o que não se adequou à
proposta da dramaturgia:

Nesse sentido, reforça-se a ideia de que toda discussão ocorrida na história do


processo, mesmo que tenha sido abandonada, faz parte de sua memória, e de um certo
modo, nunca desaparece. No máximo, pode ser encoberta por outras discussões e
informações posteriores, sendo, porém, passível de voltar à tona, ou então de ser
descoberta por uma leitura mais aprofundada. A estrutura de um processo pode ser
aproximada à de um palimpsesto, ou seja, o seu corpo guarda marcas de sua história,
algumas plenamente visíveis, outras encobertas por camadas construídas ao longo do
tempo. (REWALD, 2005, p. 24)

A noção do palimpsesto da cena reforça a multiplicidade do texto teatral e suas


diferentes camadas textuais, além de apontar para a história de sua construção. Vale ressaltar a
necessidade de um olhar atento do pesquisador, pois é por meio dele que tal multiplicidade
poderá ser evidenciada nas marcas que o próprio processo de escrita se empenha em apagar.
Nesse sentido, “a memória do processo faz com que todas as versões do texto estejam
vivas e não sejam simplesmente substituídas e esquecidas” (REWALD, 2005, p. 32). É graças
aos registros da cena, lidos em paralelo ao texto em estágio terminal, que é possível se perceber
tais versões vivas. Na ausência de documentos mais completos do espetáculo teatral, os seus
vestígios postos em fotografias, matérias de jornais, anotações de palco etc. permitem
compreender as supressões, deslocamentos, inserções como parte do processo, já que a retirada
de um personagem, rubrica ou cena, cumpre uma função dentro da textualidade do espetáculo
e, portanto, sua ausência também constitui sentidos.
Como não se espera que a transição do script para o palco se faça de forma linear, as
questões direcionadas ao texto do dramaturgo são desafios a ele impostos e que se constituirão
como elemento de inovação na narrativa já conhecida. Por isso, a escrita é entendida como lugar
de instabilidade, de confronto, em que

[o] texto tem que levantar problemas e não resolvê-los. Quanto maior o número de
questões suscitadas pelo texto, melhor. Não se trata de uma retração no espaço de
atuação do dramaturgo e nem de um desejo do dramaturgo de se colocar fora do
processo, mas de uma estratégia que visa a interação como forma de evolução.
Deixando questões em aberto para serem resolvidas pela direção e pelos atores, o
dramaturgo espera por novas soluções, diferentes das que havia pensado, para
aproveitá-las numa evolução do texto dramático. (REWALD, 2005, p. 64)

O texto necessariamente problematiza e é problematizado pela cena. Ao mesmo tempo


em que impõe seus desafios ao elenco, é questionado pelos atores, diretores, cenógrafos,
figurinistas etc. Nesse terreno de instabilidade, em que surgem os problemas, há também lugar
30

para a invenção e para a construção coletiva. É no espaço de experimentação cênica e ao assumir


a posição de dramaturgo-espectador, que se torna possível a colaboração entre as diferentes
esferas da produção teatral. Devemos considerar também, que na elaboração da encenação, para
além das questões artísticas, atuam, inevitavelmente, as questões da vida prática, como a
proximidade da estreia, a emergência de um festival, ou um convite para a apresentação. A
necessidade de mostrar o espetáculo tende a forçar o processo criativo para a delimitação de
uma forma, em lugar da experimentação livre, levando a encenação e o texto a assumir formatos
mais estáveis,

[…] a peça deixa de ser um corpo aberto, sem forma fixa, passível de se configurar
de inúmeras formas possíveis, e passa a ser um corpo fechado, com uma estrutura
cristalizada, embora sujeita a mutações espontâneas (improvisações, erros dos atores)
ou propositais (mudanças propostas pelo diretor, dramaturgo ou pelos próprios atores)
(REWALD, 2005, p. 76).

Fica evidente a passagem de um formato mais amplo e aberto para outro mais fechado
e cristalizado. O que não significa a impossibilidade de modificações, apenas que tais mudanças
estarão mais vinculadas ao que já está pronto, sem necessariamente promover profundas
alterações no âmago da peça. Nesse sentido, observamos que por mais amplo e aberto que o
texto e o espetáculo teatral sejam, haverá sempre uma tensão entre forças que tendem a
estabilizá-lo e outras que o forçam a manter-se na instabilidade. Apesar desse terreno movediço,
no momento da constituição do espetáculo teatral, todos os elementos confluem para a
manutenção da sua identidade, de acordo com uma estrutura ou roteiro que deve ser seguido,
uma ideia orientadora. Conforme descreve Rewald, em alguns momentos a mudança é
indesejada, pois

[t]oda alteração de texto tinha que ser suave e gradual. Um dia uma fala, outro dia
outra, e assim por diante. Desse modo, criação e construção estariam sempre em
movimento, sem a necessidade de uma crise. Nesse momento de apresentações
públicas a crise torna-se indesejável, pois traria instabilidade e vulnerabilidade ao
espetáculo, acarretando más apresentações, o que afugentaria o público e
conseqüentemente provocaria a morte do processo (cancelamento da peça por falta de
público) (REWALD, 2005, p.77).

Com o início da temporada de encenações e a inserção do público no processo, o


espetáculo tende a um nível de estabilidade, uma vez que “mudanças drásticas” poderiam
ocasionar problemas em sua estruturação e logo interfeririam na recepção. Isso permite concluir
que o improviso e as modificações ao espetáculo diminuem progressivamente na medida em
que o espetáculo vai tomando sua forma final, e possuem, portanto, finalidades distintas nos
31

ensaios e na encenação, quando o espetáculo está constituído. Com a peça pronta, a função do
improviso é manter o processo criativo em funcionamento, atualizando o espetáculo.
Ao se analisar o registro escrito da cena como fato pretérito, anterior ou não a esta, o
filólogo encontra nele a memória das escolhas e recusas na transposição da linguagem verbal e
escrita para a linguagem cênica. O script plasma este processo e de maneira limitada permite
fazer ver as diferentes versões assumidas, não sendo, nenhuma delas, capaz de abarcar a
totalidade do fenômeno teatral, visto que se trata de uma tarefa impossível. O texto teatral é o
prisma da cena, nesse sentido, não interessa vê-lo como algo que falta e que deve ser preenchido
no palco, mas sim compreendê-lo como peça do mosaico, como ponto de referência, que pode
ser adotado ou não pelo diretor.
Faz-se então necessário tomar um conceito chave para se pensar a noção de texto: o
inacabamento como elemento constitutivo de qualquer produção literária. A Crítica Genética
promoveu um deslocamento no recorte dos estudos literários, enfatizando as etapas de sua
elaboração, em detrimento da obra finalizada. Tais estudos tiveram como consequência um
descortinamento do processo de escrita, evidenciando sua elaboração. Como elemento
fundamental para pensar a obra em processo de construção, a escrita inacabada torna-se
profícuo objeto de estudo, pois impossibilita uma visão teleológica, que toma como ponto de
chegada a obra publicada, uma vez que esta não fora concluída.
Grésillon (1995) e Grésillon, Mervant-Roux e Budor (2013) têm se dedicado a pensar
a escrita dramatúrgica sob a ótica da Crítica Genética, analisando o processo criativo que
envolve as diferentes linguagens da cena. Parte-se do pressuposto de que a representação teatral
sempre considerou o processo e o inacabamento como constitutivos da sua arte e o texto teatral
sempre teve a incompletude no seu cerne. Grésillon, Mervant-Roux, Budor (2013), assim,
questionam o emprego dessa noção no âmbito do teatro:

Se a hipótese do inacabamento provocou uma reviravolta no plano teórico literário, é


por que o texto de um poema, ou de um romance podia parecer fechado. Nunca
aconteceu o mesmo para o caso da representação teatral, menos ainda para o caso do
texto dramático, que a encenação moderna teve paradoxalmente tendência a construir
um objeto estável, mas que, redigido para a encenação, apresentou-se sempre como
um conjunto aberto, que se podia modificar, ampliar ou reduzir (GRÉSILLON;
MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013, p. 392).

Ao se ler tais objetos, partindo-se dos pressupostos teórico-metodológicos da Crítica


Genética, percebemos a recusa da noção destes como depositórios do sentido da peça, ou ainda
como conteúdo a ser transplantado para o palco, dessa forma, assumimos estes textos em sua
incompletude. Se, por um lado, essa é uma característica que perpassa os demais gêneros
32

literários, já que todo texto é dotado de vazios (portanto de inacabamentos), por outro lado é na
dramaturgia que ela se evidencia de forma mais intensa, uma vez que estes vazios são
preenchidos com signos de distintas naturezas.
Para além destas questões, o inacabamento dos textos teatrais encontraria sua motivação
na palavra dita pelos atores e na sua interação com os espectadores. Mais do que representação,
o momento da encenação é a própria inscrição das falas no corpo vivo do ator. Assim,
[…] cada noite, o espetáculo renasce, pois os atores são bem vivos e os espectadores
sempre diferentes. As apresentações sucessivas não devem, portanto, ser consideradas
como ocorrências de um objeto estético acabado, mas como tantas gêneses
multiplicadas no tempo. (GRÉSILLON; MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013, p. 393)

Disto resulta que as diferentes encenações nunca serão idênticas, uma vez que a
celebração do espetáculo irá sempre promover atualizações e improvisações, instalando a
diversidade e a diferença. O espetáculo teatral só tem sentido ao encontrar a audiência, o
espectador, que atuará como grande organizador desses diversos fragmentos que compõem o
teatro, atribuindo-lhes sentido. Dessa forma, o teatro expõe seu compromisso com o refazer,
reescrever, reencenar. Nesse “rascunho interminável”, os sujeitos que participam do processo
podem reconstituir e explorar as diferentes linguagens cênicas, dotar o texto de marcas
ideológicas, propor traduções intersemióticas e culturais, afirmando o ‘aqui e agora’ como
legítimo da cena teatral.
No entanto, não é suficiente definir a obra teatral como aberta e instável, é necessário
precisar de que maneira se caracteriza o inacabado. Grésillon, Mervant-Roux e Budor propõem
uma categorização desse inacabamento, em quatro formas, a saber:

[...] o não produzido (o texto de teatro, como se sabe, é duplamente furado: as rubricas
demandam serem traduzidas cenicamente, o diálogo deve ser proferido e a própria
cena é o lugar do como se. Nada, nunca, realiza-se aí); o não fixado (nenhuma
apresentação é idêntica à outra); o incompleto (o espectador tem sua parte no
desenvolvimento da apresentação); o nunca terminado ([Uma confusão dos sons, das
coisas e dos seres. Uma espécie de rascunho interminável em que se busca a obra,
tomando emprestado todas as liberdades do dia e da noite]). (GRÉSILLON;
MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013, p. 393)

Descrever diferentes formas de inacabamento é fundamental para compreender o


estatuto do texto teatral. Vale pontuar que a particularização proposta não corresponde a um
modelo ideal, mas indica que tal fenômeno se manifesta de muitas formas nesse gênero literário
e ao longo de seu processo de elaboração. Nesse sentido, o inacabado pertence à esfera da
escrita dramatúrgica já que necessariamente demanda uma atualização no palco por meio das
demais artes nele empenhadas (cenografia, iluminação, figurino, sonoplastia etc.).
33

Assim, a partir dos documentos recolhidos, o filólogo poderá explorar o inacabamento


em sua edição. As suas várias versões, bem como sua materialidade (os testemunhos), trazem
os registros das etapas da escrita (o trabalho do dramaturgo), do texto da cena (com os registros
do diretor, dos atores e outros sujeitos), ou ainda anotações do orçamento, solicitação de pautas,
registro da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT)3. Somem-se a estas ainda, as
reações do público registradas sobretudo nos jornais, fundamentais para se conhecer a recepção
dos contemporâneos às experimentações presentes nesse fazer teatral.
Daí se problematizar a função e a importância do arquivamento de dados da gênese do
espetáculo para o estudo do texto teatral. Do ponto de vista da Genética Teatral, Grésillon,
Mervant-Roux e Budor assinalam alguns problemas que a ausência de documentos pode trazer
para a construção do dossiê genético, tais como a limitação própria dos registros estáticos, bem
como a parcialidade da gravação em vídeo, posto que “[o] registro audiovisual é sempre
suspeito de destruir a lembrança, ele tende a substituir-se à impressão da sensação do
espectador, a torná-la vaga, a apagá-la.” (GRÉSILLON; MERVANT-ROUX; BUDOR, 2013,
p. 394)
Nesse sentido, os estudos da gênese teatral estariam condicionados ao desenvolvimento
tecnológico de certo período. E na ausência desses registros audiovisuais, não poderiam ser
desenvolvidos estudos da construção teatral de períodos pretéritos, pois a dinâmica do teatro
não pode ser captada pela análise de objetos estáticos. Desconsidera-se, nesse sentido, o texto
como objeto dinâmico, que traz dentro do seu processo de escrita e das marcas textuais os
movimentos atinentes ao espetáculo teatral.
Além disso, não há como fugir da parcialidade dos registros, já que toda inscrição
verbal, textual ou fílmica apresenta o objeto registrado em função do ponto de vista de um
sujeito e está inscrita em um tempo e em um espaço. Os registros audiovisuais, por mostrarem
o todo através do enquadramento da câmera, fornecem a falsa sensação da integralidade.
Mesmo dando a conhecer a imagem e o som do espetáculo, captam-na de um ângulo e é apenas
a partir desse que o pesquisador poderá propor suas leituras. Por sua vez, os testemunhos orais
estarão entrecortados pelos mecanismos mnemônicos e as subjetividades daqueles que
vivenciaram a apresentação. A parcialidade dos testemunhos será, portanto, constitutiva de
qualquer objeto de pesquisa, seja ele “estático” ou “dinâmico”, cabendo ao pesquisador, por

3
A SBAT era responsável por recolher os direitos autorais. Para tanto os textos deveriam ser registrados na referida
sociedade. No regime militar, o registro na SBAT era feito durante o processo de censura; por conta disso, a
maioria dos scripts armazenados no Espaço Xisto Bahia, que foram submetidos ao protocolo da censura, trazem
também o carimbo da SBAT. Bortoloti (2014) afirma que não era fato isolado a associação entre as entidades da
classe de artistas e a Polícia Federal para a cobrança de direitos autorais.
34

meio de suas leituras, e do conjunto documental de que se utiliza para compô-las, colocar em
jogo a diversidade de elementos no jogo das significações.
Ao tratar da produção teatral de tempos pretéritos, resta ao pesquisador trabalhar com
os vestígios por eles deixados, bem como com as lembranças que o público daquela época ainda
possui. Em se tratando do teatro censurado, o registro dessa cena se dá pela ação da censura
prévia que exigia o texto escrito. Nesse sentido, é possível afirmar que muitas peças só se
consolidaram como scripts em decorrência do protocolo da censura prévia. Ademais, esse
mesmo protocolo dava origem uma série de documentos que possibilitam entrever a rotina dos
espetáculos e o processo de censura.
Acerca da relação entre performance e a fixação desta em um texto organizado, Chartier
remete ao teatro grego clássico, destacando aspectos da tradição helênica, que deixa o seu
legado para o teatro contemporâneo. Associado, inicialmente, aos eventos festivos e ao culto
das divindades, as formas do drama assumiam gêneros predominantemente orais, frutos de uma
inspiração circunstancial, considerados uma presentificação de um mundo extraterreno, sendo
sempre associados a um evento, como as odes inspiradas pelas musas. Assim,

[l]onge de ser o resultado de uma criação individual, um produto da arte poética, a


ode manifestava o peso esmagador que a inspiração exercia sobre o orador. O sentido
do texto dependia inteiramente da sua eficiência ritual; ele não podia ser isolado das
circunstâncias em que o poema era cantado, pois, ao invocar os deuses, ele os fazia
participar do banquete. O texto da ode, de uma singularidade irredutível, não podia
ser posto por escrito nem repetido. Ele era um momento de arrebatamento, era
mistério, evento (CHARTIER, 2002b, p.20).

Com as competições que ocorriam nos cultos das cidades-estados, foi estabelecida a
disputa entre os cantos inspirados pelas musas, resultando em uma classificação e análise
destes. O aspecto ritual acabou sendo preterido, sobretudo, com o estabelecimento de regras
para a forma do texto. Chartier discute as consequências dessa mudança de estatuto da arte
cênica, destacando, em primeiro lugar, a segmentação entre fala e performance, com a
substituição do banquete dionisíaco por uma festa imaginária, transformado em ficção literária.
Em segundo lugar, o historiador da cultura destaca a constituição de monumentos literários que
tornam necessária a figura do autor, responsável não só pela criação da obra, mas pela
consolidação do gênero.
Por fim, Chartier traz, como terceira consequência, a ideia de obra de arte como criação
e esforço, em substituição à noção de inspiração. Dessa forma, “[o] percurso do mundo grego
nos leva então de uma poesia fundamentalmente associada à performance, governada pelas
formas de sociabilidade e pelos rituais religiosos durante os quais era cantada, a uma poesia
35

governada pelas regras da ‘instituição literária’” (CHARTIER, 2002b, p.21). O texto planejado
suplanta a inspiração ritualística e emerge como referência para o fazer poético.
Outra implicação fundamental para a instituição da literatura, tal como a conhecemos
hoje, é o imperativo de fixá-la na modalidade escrita, constituindo modelo para o aprendizado,
para a citação e também para a composição de outras obras. As regras da instituição literária
irão se apresentar em Alexandria, tradicional centro de erudição o mundo antigo, e terão três
eixos principais: “o conceito de obra, com seus critérios de unidade, coerência e estabilidade; a
categoria de autor, que atribui a obra literária a um nome próprio; e finalmente, o comentário
que, identificado como trabalho de interpretação, revela os significados da obra” (CHARTIER,
2002b, p. 21).
Assim, a distinção entre texto e performance, no mundo clássico, funda as categorias da
literatura ocidental e termina por promover o rompimento entre o planejamento da fala e a cena,
estabelecendo o fundamento para a consolidação do teatro ocidental. Este aspecto reverbera
intensamente nas releituras da Poética, de Aristóteles, durante o século XVI, com a Renascença
Italiana, quando se iniciam as traduções e os comentários da obra para língua latina, tornando-
o um dos principais paradigmas para a dramaturgia ocidental. Roubine (2003) destaca
Castelvetro (1570) como um dos principais comentadores de Aristóteles e um dos fundadores
de uma leitura prescritiva desta obra. Chama a atenção o fato de algumas das proposições
atribuídas a Aristóteles sejam, na verdade, leituras e reinterpretações, levando a crer que parte
do que se considera a essência do teatro grego recebe a influência das ideias do homem europeu
renascentista.
A Poética dissemina-se por uma Europa ocidental marcada pela “mentalidade religiosa,
culto da auctoritas, horror da heresia e espírito científico: toda criação humana supõe uma
racionalidade que basta dominar para atingir seu objetivo” (ROUBINE, 2003, p.26). Toma-se,
então, como modelo a ser imitado, o conhecimento da Antiguidade Clássica, revestido de uma
sabedoria à qual já não se pode ter acesso direto, restando aquilo que foi legado pelas obras.
Ainda conforme a “Poética de Aristóteles, ou pelo menos segundo alguns de seus
comentadores, uma tragédia não deve ser julgada por meio de sua representação, mas de sua
leitura, que dá a medida de sua conformidade com as normas” (CHARTIER, 2002b, p. 21).
Nesse sentido, a dimensão de celebração do teatro encontrava-se reduzida a um conjunto de
regras que resultava em severas limitações para a criação no palco e desprezavam a recepção
das obras. É também nessa dinâmica que se constrói a supremacia do texto teatral sobre o
espetáculo, consolidando-se como repositório de significados, como letra e vontade de um autor
individual, influenciado pelo logocentrismo.
36

A escrita dramatúrgica tem como consequência a sua publicação, sobretudo a partir do


século XVI, dando origem a posicionamentos distintos acerca da questão: de um lado, a
resistência dos escritores em imprimir; de outro, a avidez dos livreiros e do público leitor. A
publicação de peças de teatro, nesse sentido, constitui-se como mais um fator para a
segmentação e oposição entre o texto e a cena. Com a popularização dos impressos e com a
constituição de uma classe de leitores interessados em adquirir livros, surge um mercado
consumidor, cuja consequência é o desenvolvimento da noção de autoria direcionada ao
dramaturgo, nesses termos,

[a] representação e a percepção do escritor de teatro como autor, no sentido pleno do


termo, emergiu lentamente, principalmente como um efeito das práticas do mercado
livreiro que simultaneamente explorou o sucesso de certos dramaturgos, multiplicou
as edições corrompidas que deviam ser recusadas por seus autores e permitiu que os
leitores reconhecessem os méritos de textos muitas vezes traídos pelas más condições
de representação ou pela indisciplina dos espectadores (CHARTIER, 2002b, p.12).

O público de teatro dessa época também se interessava por ler os textos dos espetáculos
vistos ou não; os escritores, no entanto, se mostravam bastante resistentes a publicá-los. O
principal argumento utilizado era que a linguagem verbal não representaria adequadamente a
multiplicidade de signos que conformam o espetáculo, uma vez que não fora pensado para ser
objeto de leitura, mas sim para a encenação e dela dependeria seu sentido. Outros ainda temiam
o destino de sua produção, visto que o processo de impressão resultava em alterações ao texto.
Além disso, a publicação de uma peça tinha como consequência a sua franca circulação,
podendo ser livremente apresentada; por fim, ao publicar uma peça, o dramaturgo se inscrevia
na economia dos impressos, o que implicaria obter, ou não, benefícios financeiros pelos seus
escritos (CHARTIER, 2002b).
Chartier cita alguns dramaturgos do século XVII que manifestavam essa restrição,
dentre eles Marston, segundo o qual

[a] resistência em imprimir devia-se a duas razões: por um lado o próprio processo de
publicação, que abandonava a obra nas mãos dos rude mechanicals (como o diz Puck)
empregados nas oficinas, que introduziam muitos erros no texto, e, por outro lado, a
incompatibilidade estética entre o propósito original das peças escritas para serem
representadas, vistas e ouvidas, e a forma impressa, que as privavam de sua “vida”
(CHATIER, 2002b, p. 71).

Apesar dessa oposição, a publicação de edições piratas e a circulação clandestina dessas


peças eram muito comuns. Os falsários utilizavam a técnica da braquigrafia e estenografia para
37

anotar de ouvido as falas, dando origem a omissões, digressões, substituição de palavras,


problemas na pontuação, fatores que terminavam por comprometer a qualidade do texto.
Chartier (2002b) analisa as modificações realizadas por Molière no momento da
publicação de George Dadin, assinalando uma reescrita, no intuito de suprimir certos elementos
que o autor julgou inadequados para figurar na publicação em meio impresso, ao que Chartier
esclarece:

Em todo caso, estas diferenças indicam que a dignidade literária e o status de ator
atingido por Molière a partir de 1660 levaram ele ou seu editor a suprimir ou a ignorar
no texto impresso de George Dandin os tipos de piadas presentes nas suas primeiras
farsas e comédias. A lógica da construção e da auto-elaboração da condição de autor
era igualmente um processo de censura (CHARTIER, 2002b, p. 61-62)

Com o livro impresso, os limites para “o que pode ser dito” começam a ser postos,
configurando-se, a depender do caso, como autocensura ou como uma estratégia, para que
certos temas ou opiniões não fossem associados ao autor. A noção de autor subjetivo se
solidifica e tem-se, então, um sujeito que pode ser responsabilizado por aquilo que afirma, ao
contrário do manuscrito, em que produções anônimas, ou identificadas por outros pseudônimos,
eram facilmente postas em circulação. A forma do impresso, por sua vez, denota uma noção
de fixação distinta dos manuscritos, nos quais a realização de emendas e correções eram mais
comuns, em comparação ao impresso.
Também nos textos teatrais censurados, há uma preocupação na passagem do
datiloscrito ao publicado. Em se tratando da obra O bonequeiro Vitalino, de Jurema Penna,
nosso objeto de estudo, não há mudanças significativas entre a última versão datiloscrita e a
versão impressa. No entanto, notamos uma intensa revisão no sentido de normalizar a língua
padrão ali presente, apagando dela os traços do idioleto de Jurema Penna. O layout do livro
estabelece ainda uma rasura no formato dos impressos, na medida em que rejeita a
encadernação, apresentando lâminas de papel dobradas ao meio e impressas somente no
anverso, sendo cada página precedida por uma fotografia da cerâmica do Mestre Vitalino. Tais
imagens não remetem a registros da encenação, mas são uma provocação à imaginação do
leitor.
“Sendo assim, devemos considerar as formas impressas da peça também como um tipo
de performance” (CHARTIER, 2002b, p.53), na qual o autor se inscreve ao ocupar o espaço
que lhe foi reservado na capa, autorizando a obra. No caso citado de Jurema Penna, entendemos
que o layout do livro se apresenta como uma forma de performance, pois a sua materialidade
significa, por si, a possibilidade de constituir novas formas para o teatro veiculado pelo meio
38

impresso, marcando a diferença em relação às outras publicações, atribuindo aí sentidos


diversos para um texto que encontra a plenitude de suas formas no espetáculo cênico.
Vale pontuar, portanto, a importância dos impressos como elemento de constituição da
imagem do dramaturgo na literatura. Sobre o tema, Cerquiglini esclarece que o próprio formato
do livro impresso solicita uma identificação da origem para o discurso nele contido, um
responsável intelectual para o conteúdo ali disposto, uma vez que

[l]e nom que l'on appose sur la feuille destinée à l’imprimerie autorise. S’il
commande et permet la multiplication singulière d'un fragment d’écriture, il donne à
ce fragment le statut d’un texte. Il le munit d’un auteur, c’est-à-dire d’une origine et
d’un droit; il le dote d’une forme canonique, c’est-à-dire d’une conformité stable.
L’écrit préparatoire, quelque aspect qu’il prenne, a pour seule limite le geste qui
appose le nom. La signature est l’écriture ultime, dont l’avant-text constitue l’amont
protéiforme (CERQUIGLINI, 1989, p. 11)4.

Nesse sentido, quando um texto adquire a forma impressa torna-se estável e assume uma
forma fixa. Ainda que se trate de um fragmento, a publicação autoriza-o e legitima-o como
objeto de leitura, dotando-o de uma forma apta a circular na sociedade. Subentende-se que para
assumir esse formato privilegiado de circulação, o texto foi destacado de um conjunto, por
critérios de méritos e distinção. Ademais, os custos da publicação deveriam se justificar pela
“qualidade” da obra publicada. No momento histórico em que a razão dos homens constitui-se
como ideologia principal para o desenvolvimento do pensamento, das ciências e da literatura,
restou atribuir-lhe um autor, o nome daquele que autoriza e valida as ideias dispostas no livro
impresso.
Chartier exemplifica brevemente a constituição desse autor individual de textos teatrais
e sua vinculação às formas impressas:

A ênfase dada ao ato da escritura e à importância da leitura da peça contrabalança


vigorosamente o topos da relutância em imprimir. Tal ênfase estava inscrita na
influência deixada por Ben Jonson. Ao publicar o in-fólio de 1616 de seu Workes, Ben
Jonson rompeu com a prática tradicional que transferia a propriedade das peças para
a companhia de teatro, como se os verdadeiros autores fossem os diretores das
companhias e não os dramaturgos. Ao vender seus masques e suas peças diretamente
aos editores, Ben Jonson aproveitou os recursos do livro impresso para estabelecer
uma relação de propriedade com suas obras. No contrato paródico da introdução de
Bartholomew Fair, ele usurpou os direitos tradicionais da companhia assinando
diretamente um acordo – obviamente fictício – com os espectadores e os ouvintes […]
(CHARTIER, 2002b, p. 73-74).

4
O nome que assina sobre a folha destinada à impressão a autoriza. Comanda-a e permite a multiplicação de um
fragmento singular da escrita, dá a este fragmento o status de texto. Ele se mune de um autor, ou seja, uma origem
e um direito, que lhe dá a forma canônica, isto é uma conformidade estável. A escrita preparatória, seja qual for o
aspecto que ela traga, está limitada apenas pelo gesto que assina o nome. A assinatura é a escrita final, da qual o
texto preliminar constitui a montante proteiforme. (CERQUIGLINI, 1989, p. 11, tradução nossa)
39

A atitude de Ben Jonson se constitui como a culminância de uma tendência já existente


entre aqueles que eram os responsáveis pela escrita da peça, mas que não eram reconhecidos
por tal papel. O referido dramaturgo assume o protagonismo das negociações com as casas
publicadoras, prescindindo do intermédio das companhias de teatro. A circulação das obras
dramáticas por meio impresso, que já estava instituída, substitui a criação coletiva pela autoria
individual, consolidando a segmentação entre a escrita e a cena, conforme os sentidos que a
publicação engendrava.
Chartier chama a atenção para a construção da noção de autoria no século XVIII:

A definição legal dos direitos autorais, tal como era concebido no século XVIII,
pressupunha que a obra fosse sempre a mesma, independentemente da maneira como
se materializava. O julgamento estético sobre o qual este conceito legal se funda
considera as obras literárias por elas mesmas, sem prestar nenhuma atenção às suas
diferentes formas de publicações ou performances.” (CHARTIER, 2002b, p.62).

Assim, constitui-se a falsa ideia da estabilidade do texto teatral em sua forma impressa.
A encenação seria considerada o único espaço onde o componente verbal do espetáculo poderia
ser modificado, sem prejuízo para a obra, pois a letra do autor, estabilizada sob a forma do
impresso, salvaguardaria, no plano da escrita, a “performance” original. O texto, assim,
consolidar-se-ia como uma abstração, desvinculada do âmbito literário em que se insere ou das
formas materiais que assume. Do ponto de vista legal, o nome do autor guardaria a sua
genuinidade e unidade, sendo, portanto,

[a] ‘abstração’ legal ou estética do texto, que sublinha ou reforça a definição de


direitos autorais, não entra no processo de apropriação cuja análise requer tanto a
construção do leitor, ou do espectador, enquanto membros de comunidades
específicas que compartilham as mesmas habilidades, códigos, hábitos e práticas,
quanto a caracterização dos efeitos produzidos pelos diferentes modos de transmissão
e de inscrição dos textos (CHARTIER, 2002b, p.62).

Desconsidera-se, assim, que as próprias formas de circulação engendram sentidos e, de


igual maneira, que a comunidade leitora interfere diretamente sobre os modos de interpretar e
de apresentar tais produções. Uma vez impresso, o texto teatral passaria a compartilhar do
mesmo estatuto das demais obras de ficção, inclusive do estabelecimento de um sentido
imanente à obra que deveria ser desvendado pela leitura e revelado na encenação.
Uma consequência que pode ser compreendida como resultado da publicação de peças
de teatro é a absorção de características de outros gêneros literários na escrita dramatúrgica,
sobretudo do romance. Bakhtin (2002) denomina de romancização a disseminação do modelo
40

do romance nos demais gêneros literários canônicos, permitindo-lhes uma série de renovações.
Sarrazac (2012) localiza na posição assumida por Diderot, uma tendência à romancização do
drama, presente na tentativa de traduzir para o escrito toda sorte de pantomimas realizadas em
seus espetáculos, posição essa entendida por Sarrazac como utópica:

Em meados do século XVIII, [...] o romance, ao dominar “economicamente” a cena


literária, exerce grande fascinação sobre os autores de teatro, principalmente Diderot,
que lamenta por outro lado a esclerose da dramaturgia clássica. Para ele, sob muitos
aspectos, o romance é um modelo em que o drama, para sua reforma, deve se inspirar.
(SARRAZAC, 2012, p. 167-168).

Semelhante postura é assumida por dramaturgos naturalistas e simbolistas, revelando a


preocupação destes com a minúcia da descrição da cena. A presença dessas rubricas de alguma
forma limita a potência do drama por preencherem e os vazios do texto, mas, apesar disso,

[o] aspecto descritivo dessas longas rubricas não deixa, por sinal, de ter seu valor
dramático. Nesse ou naquele retrato que Ibsen ou O’Neill fazem de seus personagens,
o drama acha-se de certa forma inscrito ainda mais profundamente, até nos corpos.
Quando lemos que o “tailleur de seda deve ter sido elegante, mas [...] parece afora
cansado e puído” ou que “as mãos de Mary nunca ficam em repouso. [Que] elas
antigamente foram muito bonitas [...] mas que os reumatismos as deformaram,
contraindo as articulações, retorcendo as falanges”, [...] vemos toda uma
temporalidade romanesca invadir o espaço do teatro [...] (SARRAZAC, 2012, p.165-
166).

Além de incorporar a linguagem do romance às rubricas, outro movimento comum


durante o século XVIII foi a transposição de narrativas consagrados para o palco. A diferença
entre os gêneros acabou por limitar esta tendência, em decorrência da especificidade dos
elementos próprios da encenação, assim,

[a] adaptação teatral, prática que se intensifica desde então, acelera a primeira fase da
romancização do drama. A matéria-prima romanesca, que se tenta embutir num drama
de forma clássica, termina por esbarrar nas regras de unidade e por amenizar a
construção das peças. As rubricas desenvolvem-se em número e em extensão; são
repensados o lugar, o personagem, a representação e o jogo; os cenários são
enriquecidos e multiplicados. O iluminismo e o romantismo dão então início, atacando
as convenções e abordando reputados temas romanescos, à modernização da forma
dramática (SARRAZAC, 2012, p. 168).

A romancização teve consequências não apenas na constituição do texto, mas também


sobre o levantamento da cena. Os cenários, as marcações cênicas e a composição dos
personagens passaram também a ser elaborados a partir do componente narrativo. Como
consequência dessa interferência do romance, atribui-se o desenvolvimento de uma série de
41

técnicas que permitiram a criação de cenários sofisticados e de outros artifícios, possibilitando


a inserção de movimentos cênicos que levaram tempo e espaço para além do tablado.
Nesse jogo de interferências, a construção da encenação também irá barrar o alcance do
romance sobre plano verbal do espetáculo, visto que

as coerções materiais do palco subsistem, talvez impedindo uma romancização total


da escrita teatral, se ela pretende permanecer teatral, isto é, aspirando a um devir
cênico qualquer e não à simples leitura. Essa representação e essa mise en jeu que ela
visa impõem-lhe leis que, embora relativizadas, continuam a existir... Elas impregnam
– ainda que ele as transgrida –, a escrita daquele que pretende escrever para o teatro.
Uma romancização desse tipo, que faria de todo texto emancipado – de normas que
praticamente não existem mais – um texto de teatro, resultaria na perda de identidade
e especificidade da escrita dramática. (SARRAZAC, 2012, p. 169)

Acreditamos, dessa maneira, que a romancização do drama constitui-se em um fator


relevante para a publicação de scripts como textos para ler. A aproximação do texto teatral ao
formato do romance, por meio de sua publicação impressa, direciona-o a uma leitura silenciosa,
desvinculando-o da sua existência cênica.
Dessa relação com o romance, outras consequências podem ser levantadas. Destacamos
a escolha das peças a serem divulgadas pelo meio impresso e o status de dramaturgo.
Consideramos que se a publicação de teatro é fomentada a partir de sua similaridade com o
romance, o teatro que toma formas distintas deste estaria menos propenso a ser publicado. Em
consequência, se apenas algumas produções seriam eleitas para adquirir a forma impressa,
poucos autores poderiam inscrever seu nome como sujeito que autoriza a obra.
Acerca dos textos teatrais censurados, encontramos poucas peças que foram objeto de
publicação. Acreditamos que isso se deva ao fato de o acesso ao mercado editorial ser
severamente restrito, mesmo havendo companhias de teatro profissionais, associadas a
dramaturgos que elaboravam e muitas vezes encenavam seus escritos. Um problema que não
se restringe ao teatro, mas que se apresenta de forma mais severa para este.
Quanto ao mercado editorial e à publicação dos textos teatrais no Brasil, este gênero
ocupou um papel secundário na agenda das editoras e demais casas publicadoras. Acerca desta
porção do mercado editorial, Laurence Hallewell (2012, p. 175) destaca que, em meados do
século XIX e no que tange ao trabalho da editora Paula Brito, as publicações atinentes ao teatro
iam além das impressões encomendadas de divulgação das peças. Das 372 publicações não
periódicas atribuídas a esta editora, 100 consistiam em publicações dramáticas,

[...] dois terços desses dramas eram libretos de ópera, um claro reflexo da paixão pelo
teatro lírico no Brasil em meados do século XIX. Desses, treze eram edições de
originais brasileiros, mas a maioria (47) era constituída, como se poderia esperar, de
42

traduções do italiano, entre elas dez de Donizetti, oito de Verdi, cinco de Puccini, três
de Belini e três de Rossini. (HALLEWELL, 2012, p.175)

Na década de 1960, a editora Brasiliense publicou a Coleção Teatro Universal, dirigida


por Sábato Magaldi e editada por Caio Prado Jr., que reúne alguns textos dramáticos da
literatura mundial e nacional, como: Shakespeare, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues,
Gianfrancesco Guarnieri, além de Roberto Freire. Ainda na década de 1960, o editor Ênio
Silveira publicou a coleção Teatro Hoje (1966), dirigida por Dias Gomes. Na década de 1970,
foi a vez da Editora Abril dedicar-se à publicação dessas obras de teatro. Nas três séries,
notamos uma predileção pela publicação de obras de autores consagrados.
A Revista da SBAT também se constitui como um importante meio de publicação.
Veiculada com periodicidade bimestral ou trimestral e em seus quase duzentos volumes,
impressos desde 1924 com algumas interrupções, a revista sempre trazia uma peça teatral
escolhida por seu destaque no cenário local ou nacional ou por sua importância para o campo
literário. As peças contemplavam autores contemporâneos, sobretudo do eixo Rio de Janeiro-
São Paulo, tais como Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Athayde, Gianfrancesco Guarnieri, além
de trazer alguns títulos do teatro infantil, como os de Maria Clara Machado. A revista também
abria espaço para autores baianos, publicando peças de Vieira Neto, Jorge Amado, bem como
para os clássicos de Luís de Camões, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Gianfrancesco
Guarnieri.
Gomes (2007) desenvolve uma pesquisa quantitativa acerca do mercado editorial que
se ocupa dos textos teatrais contemporâneos, considerando como marco inicial desse período a
obra Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri. Seu corpus é composto por
peças destinadas ao público adulto e se restringe àquelas que foram publicadas por editoras
privadas. O pesquisador identifica cinco editoriais pelo volume de publicações, a saber:
Perspectiva, responsável pela obra completa de Jorge Andrade e Consuelo de Castro; Global,
que publica os escritores brasileiros de maior prestígio no cenário nacional, como Guarnieri,
Plínio Marcos e Maria Adelaide Amaral; Handam Editora e Produtora, que se destaca pela
diversidade de textos teatrais e de autores contemporâneos, e tem como objetivos “[...] divulgar
peças contemporâneas e [...] retirar do isolamento a que foi submetido o dramaturgo nacional”
(GOMES, 2007, p. 34); Civilização Brasileira, que publica volumes da Coleção Dramaturgia
Sempre; e Atrito Art Editorial, editora de menor porte, que publicou o teatro de Mario
Bortolotto, composto de doze peças.
Gomes destaca a centralização dessas grandes editoras no Rio de Janeiro e em São
Paulo, eixos principais da produção cultural nacional, por disporem de maiores fontes de
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recursos e por agregarem grande parte dos profissionais da área. Analisa, ainda, a frequência
com que este corpus vem acompanhado de apreciação crítica e/ou de apresentação, chegando a
um percentual 65,2%, o que indica a importância desses escritos introdutórios para situar o
leitor e permitir ao pesquisador adentrar às representações que os sujeitos contemporâneos
realizavam.
Acreditamos, desse modo, na viabilidade e relevância da publicação dos textos teatrais
brasileiros, em especial os baianos censurados durante a ditadura militar. Assim como Gomes
(2007) e Magaldi (1997), entendemos que a edição dessa dramaturgia proporcionará fontes para
a constituição da memória e da história do teatro brasileiro. Na insuficiência ou inexistência de
recursos para os registros audiovisuais, o texto constitui-se como o único registro deixado pela
cena. Ainda que plasme a diversidade do espetáculo teatral na linearidade do plano escrito,
trata-se de um testemunho fundamental para se compreender os modos de fazer teatro em um
tempo pretérito.
Gomes ainda reproduz um excerto da editora chefe da Coleção Teatro Brasileiro, Soraya
Handam, afirmando que “a coleção conquistou feito notável no meio editorial. Suas peças são
encenadas em todo o Brasil após a publicação como nunca ocorreu com qualquer projeto
editorial” (GOMES, 2007, p.33). Assim como a disseminação das obras de teatro na Europa
Moderna deu-se por conta do acesso à publicação, seja ela pirata ou não (CHARTIER, 2002b),
compreendemos que a publicação dos textos teatrais será válida por inscrevê-los no âmbito da
produção intelectual na contemporaneidade, possibilitando que outros sujeitos se apropriem
deles, atribuindo-lhes novos sentidos, por meio de novas propostas de leitura e de encenação.
É neste sentido que a Filologia, que aqui se pretende desenvolver, não se propõe a
defender uma ligação linear entre texto e cena, tampouco pretende apresentar uma interpretação
final ou uma edição definitiva. Tendo em vista a amplitude e multidimensionalidade que
implica o estudo da dramaturgia, faz-se necessário, então, estabelecer um recorte para o objeto
de estudo em questão: interessam-nos os textos teatrais que se registraram por escritos e que
foram submetidos ao exame da Censura Federal. Dentro desse universo, destaca-se a
dramaturgia de Jurema Penna.
Trata-se de uma produção constituída a partir de sua visão de palco. O espaço cênico
não era portanto imaginado, mas estava presente na vivência teatral de Jurema Penna, uma vez
que possuía uma significativa experiência como atriz e a maioria das suas peças eram também
dirigidos por ela. Além disso, ao se analisar as modificações textuais, percebe-se que muitas
condensações de réplicas, eliminação de personagens e deslocamentos de trechos são realizados
com vistas ao funcionamento do espetáculo. Nesses termos, não haveria como propor uma
44

crítica filológica do texto desvinculado de sua materialização no palco, pois estes se encontram
diretamente inter-relacionados.
Ao mesmo tempo, Jurema Penna constitui-se como um sujeito-autor que se mostra no
texto teatral. Estes testemunhos encontram-se assinados e rubricados, dotados de notas do seu
processo de construção e de circulação. As modificações realizadas dão conta de sugerir os
posicionamentos políticos e ideológicos da dramaturga, de forma que a apresentam como leitora
do seu tempo, dedicada a refletir e representar, no palco, a realidade em que vive, renunciando
a um tratamento superficial de temas como racismo e políticas culturais no estado da Bahia.
Longe de ser um teatro puramente representativo, Jurema Penna se propunha a desenvolver
uma arte cênica que levasse à ação, por meio de seu trabalho como professora de teatro e
idealizadora de projetos que faziam chegar as artes às comunidades mais pobres.
Sua escrita apresenta-se permeada por outros autores e outras obras que emergem nos
espetáculos e cumprem uma função específica no desenrolar da peça. Valendo-se do processo
de citação como operador de intertextualidade, Jurema Penna entrelaça ao seu texto teatral
outros previamente conhecidos pela plateia e, por isso, constitui, no momento da encenação
uma relação de reconhecimento e proximidade com o seu público (ALMEIDA, 2011). Assim
como o processo de citação desempenha um papel no texto dramatúrgico, será também
necessário ao desenvolvimento da ação.
A escrita para o teatro estaria indissociada da elaboração da cena, pois esta reclama o
seu lugar no texto e se manifesta sobre a sua materialidade: antes da montagem, por meio das
indicações cênicas; durante, pela colaboração dos atores no ensaio; e depois, quando o
dramaturgo põe-se a revisar o script após uma temporada de apresentações. Buscamos, dessa
forma, evidenciar que os vestígios do espetáculo devem compor o referencial interpretativo do
filólogo, pois participam de forma fundamental da composição e da leitura do texto. Como se
tratam de peças montadas em tempos pretéritos, esta leitura encontra-se limitada pelos
documentos que sobreviveram ao decurso da história, o que acarreta não só circunstâncias
imprevisíveis e incontroláveis, mas também processos de escolhas e descartes, em documentos
de posse de organismos públicos (em geral com problemas de conservação) e particulares (cujos
donos apresentam resistência em ceder o material para estudo). Estes são condicionamentos do
trabalho filológico que devem ser problematizados, mas que não são impedimentos para o seu
desenvolvimento.
Jurema Penna participou do cenário das artes cênicas em âmbito local e nacional, ao
longo de 50 anos, fato que rendeu à sua carreira um caráter multifacetado. A obra da dramaturga
se caracteriza por uma temática dedicada à diversidade cultural da Bahia, englobando tanto a
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cultura sertaneja, como o papel fundamental do elemento africano para a construção dessa
cultura. Os estudos realizados sobre a sua dramaturgia mostram uma obra com relevância
literária, mas que ainda é pouco conhecida. As modificações realizadas nas diferentes versões
do texto de uma peça evidenciam o cuidado com a construção do script, buscando transmitir a
sua mensagem da maneira eficaz; para isso realiza supressões, deslocamentos, acréscimos,
movimentos de escrita que permitem entrever o seu posicionamento ideológico frente às
dificuldades dos anos de chumbo. Defendemos, portanto, a publicação desses textos com o
propósito de divulgar a obra de Jurema Penna, bem como de levantar elementos para a
construção de parte da história do teatro baiano em tempos de ditadura militar.

2.2 O TEXTO TEATRAL COMO OBJETO DE EDIÇÃO

Diante da proeminente necessidade de se publicar os textos teatrais baianos, produzidos


e encenados durante a ditadura militar, como fontes necessárias tanto para a constituição de
uma literatura dramática, como para a história do teatro baiano, deslocaremos o foco da
discussão sobre a publicação desses textos das edições comerciais para as edições que tomam
por base o referencial teórico-metodológico da Filologia. Esta proposta editorial destaca-se pelo
estudo acadêmico-científico desses documentos, tendo em vista os diversos aspectos atinentes
à sua publicação, considerando desde o processo de elaboração dos primeiros fragmentos pelo
dramaturgo, passando pela conclusão e encenação, bem como sua circulação na sociedade e as
diversas formas materiais assumidas, além dos sentidos produzidos pelo público.
Ao tomar textos de teatro como objetos de edição, questionamos os sentidos atribuídos
ao trabalho filológico no trato com esses artefatos culturais. Patrice Pavis (2011) denomina
como “proposições filológicas” aquelas em que

[…] a representação necessita do texto para existir e para ser interpretado. O texto não
é descrito em sua enunciação cênica, ou seja, como prática de cena, mas como
referência absoluta e imutável, como pivô de toda encenação. Ao mesmo tempo, o
texto é declarado incompleto, já que necessita da representação para tomar seu
sentido. Tais proposições filológicas têm todas em comum uma visão normativa da
encenação: esta não pode ser arbitrária, ela deve servir o texto e se justificar para uma
leitura correta do texto dramático. Pressupõe-se que o texto e a cena estão ligados e
que foram concebidos um em função do outro: o texto em vista de uma futura
encenação, ou pelo menos de um modo dado de atuação; a cena pensando naquilo que
o texto sugere para a sua espacialização (PAVIS, 2011, p.191).
46

A adjetivação “filológicas” para essas proposições permite a Pavis abarcar na mesma


competência uma série de diferentes áreas, incluindo os teóricos da semiologia e do teatro. Fica
patente que a noção trazida pelo pesquisador está calcada em uma Filologia de base
estruturalista que tomava como pressuposto teórico a imanência do sentido no texto, cujo
trabalho do comentário visava encontrar. Esse sentido, por sua vez, era considerado unívoco e
correspondia a uma verdade interpretativa garantida pelo autor. Aplicando-se ao teatro, Pavis
caracteriza como concepção filológica aquela em que há a soberania do plano verbal no
espetáculo, tanto no que concerne a sua anterioridade em relação à cena, quanto como detentor
dos significados a serem revelados no palco.
Esta posição, entretanto, não coaduna com as práticas da Filologia na atualidade.
Conforme afirmam Borges, Souza, Matos e Almeida (2012, p.11), “[d]o ponto de vista da
Filologia, o objeto texto é concebido em sua polimorfia característica, isto é, nas distintas
formas assumidas pelo mesmo, que permitem entrever suas muitas histórias [...]”. Nesse
sentido, no ponto de vista aqui defendido, interessa ao filólogo não somente o roteiro resultante
do processo de encenação teatral, mas todos os registros verbais ou não verbais encontrados
que se refiram ao espetáculo. Consideramos como texto, para além do script da peça, os demais
documentos resultantes da produção da encenação, além de canções, fotografias, registros
verbais e não verbais, entendendo-os como elementos necessários à compreensão dos diferentes
aspectos presentes nos fazeres teatrais.
A crítica filológica, dessa forma, não se encontra mais restrita a uma prática
interpretativa que visa encontrar o sentido da obra. Ao considerar os diferentes aspectos
concernentes ao texto teatral, materializados nos testemunhos e em outros documentos da cena,
torna-se ocupação da filologia propor uma leitura, capaz de contextualizá-lo para o leitor que
se encontra temporalmente distante do momento de sua produção. Em lugar de apresentar uma
leitura pronta e fechada, o filólogo ocupa-se de, por meio do labor editorial, dotar o leitor de
elementos e instrumentos para que construa seu próprio sentido, não se tratando, pois de uma
reconstrução do passado, mas uma problematização do mesmo, a partir das referências
levantadas.
Nessa abordagem, os scripts cumprem o papel de ponto de partida para a busca de
diferentes informações que permitam vislumbrar a ação no palco. Em se tratando dos textos
teatrais baianos, testemunhas de um fazer dramático permeado pelas questões de seu tempo,
interessa-nos perceber as vinculações entre as diversas linguagens presentes no espetáculo,
dentro da complexidade em que elas se constroem. Entendemos que o papel da cena é reinventar
o texto, desdobrando-o conforme as necessidades da ação, apresentando novas formas de
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interpretá-lo, renovadas a cada temporada. Acreditamos, portanto, que o trabalho filológico não
busca uma “relação normativa”, conforme afirmou Pavis, entre o palco e o roteiro do
espetáculo.
Assumimos, como ponto de partida para a nossa análise, a significativa diferença entre
a linguagem do texto escrito e a linguagem da cena. A passagem de uma para a outra implica
um trabalho crítico que não pode ser linear ou seguir uma relação de causa e efeito. Torna-se,
assim, fato evidente que nesse processo de tradução cênica, o componente verbal do espetáculo
deverá ser ressignificado e reconstruído. Nesse sentido, tentar visualizar o espetáculo através
do texto ou o texto através do espetáculo resultará sempre em uma perspectiva oblíqua, em que
se pode ver apenas parte, uma visão obtusa, limitada e incompleta, mas ainda assim, coerente
com a proposta cênica.
O caminho interpretativo adotado na crítica filológica terá como consequência a
realização de uma leitura do fragmento, que, por sua vez, resultará igualmente incompleta, mas
que se pretende representativa do objeto em estudo. Desconsideramos, portanto uma visão de
Filologia que objetive compreender a relação entre texto e performance de forma paralela. A
busca por documentos e materiais que atestem a elaboração do espetáculo, uma das etapas do
método filológico, não tem como objetivo dar conta de uma totalidade. Acreditamos, antes, que
com esse procedimento será possível compor um mosaico de elementos textuais, culturais e
sócio-históricos a fim de que os leitores sejam capazes de propor, acerca deles, suas
interpretações.
Apesar de suas origens remontarem à Antiguidade Clássica, é possível perceber, ao
longo da história da Filologia, uma permeabilidade às teorias vigentes de cada momento
histórico. Uma vez que toda ciência se inscreve em um momento histórico, é inevitável que
apresente as marcas dele em suas formulações teórico-metodológicas. Incursionar por esses
caminhos resulta em um movimento interpretativo que se soma às propostas de empreender
uma revisão acerca dos estudos filológicos, discutindo-se as suas vinculações teóricas e
ideológicas, bem como a função que tal disciplina desempenhou ao longo de sua história.
Ademais, em um momento no qual se busca firmar o campo dos estudos filológicos em sua
relevância e especificidade, em diálogo com os avanços dos estudos do texto na
contemporaneidade, torna-se preciso estabelecer propostas de edição e estudo coerentes com
tais avanços.
A fim de pensar o desenvolvimento dos estudos filológicos, parte-se de Marquilhas
(2010b) que situa, no século XVIII, um labor filológico identificado como a “esplêndida
ciência”, que, orientando-se pelos postulados da Filosofia, consorciava os estudos linguísticos
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e literários no intento de conhecer o espírito das nações, por meio de estudos dos textos legados
pelas sociedades:

O historicismo com que abordaram a comparação dos textos antigos e medievais,


europeus e indianos, servia-lhes sobretudo para atingirem um fim que era o do
conhecimento das origens e da evolução da humanidade (a história do espírito do
mundo). As línguas eram concebidas como memórias que se enriqueciam no
momento da formação de uma cultura original, mas que perdiam vitalidade depois de
atingida a idade de ouro, avançando então para fases de decadência, envelhecimento,
esquecimento (MARQUILHAS, 2010b, p. 358).

A língua era, assim, compreendida como um organismo vivo que nascia, se desenvolvia,
decaia e morria. O determinismo era patente nestas formulações, uma vez que tais eruditos
estabeleciam uma conexão direta entre a língua falada e o seu povo, como se a primeira fosse
um reflexo do ânimo do segundo.
Este pensamento só seria revisto com a emergência dos neogramáticos e a clivagem
estabelecida entre o fenômeno linguístico e sua dimensão cultural e histórica. Para esses
teóricos, interessava estabelecer leis capazes de explanar os fenômenos, que anteriormente eram
considerados exceções à regra, por meio de explicações “internas à língua”, além de se
constituir uma teoria para a mudança linguística. A partir daí, há um progressivo afastamento
entre os Estudos Linguísticos e as Ciências Humanas: de um lado, a Filologia se constitui em
uma disciplina histórica e, de outro, a Linguística torna-se uma ciência natural.
No fluxo dessa corrente, segue, em plano secundário, a Crítica Textual, que se ocupa de
garantir que uma certa obra esteja o mais próximo possível daquilo que formulou o seu autor.
Após a segmentação dos campos dos saberes, no âmbito acadêmico do século XIX, a tarefa de
editar textos foi relegada para a Filologia, sob a égide de fornecer materiais fidedignos para os
estudos linguísticos, restituindo-os de toda a corrupção e lacuna que os “macularam” durante o
processo de circulação.
Nessa busca pelo original, constitui-se o método lachmaniano. Como uma síntese dos
saberes e das práticas que remontam à Antiguidade Clássica, diferencia-se desta por propor uma
edição com base científica, consoante às propostas que consolidaram o saber acadêmico-
científico, durante o século XIX. As etapas editoriais eram devidamente estabelecidas e o
filólogo deveria retirar da edição tudo aquilo que dissesse respeito ao seu próprio juízo de valor,
subtraindo da prática editorial a subjetividade e construindo uma ideia de editor como sujeito
neutro, que deveria ser imperceptível na elaboração da edição.
O método propunha a recolha de todos os testemunhos de uma obra, a chamada tradição
direta, bem como todos os que a ela se referissem, a tradição indireta. O objetivo era dar conta
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de uma totalidade de documentos que fosse relevante para a reconstituição do original perdido.
Para tanto, os documentos eram analisados quanto a sua autenticidade e/ou validade para a
tradição. Os testemunhos deveriam ser comparados e, por meio da análise dos erros,
estabelecer-se-ia uma filiação entre eles, conforme um modelo semelhante a uma árvore
genealógica, denominado stemma codicum. O objetivo final era chegar ao arquétipo, o texto
mais próximo ao original perdido.
Trata-se de uma proposta editorial de base positivista, cujo compromisso era com os
critérios de estabilidade textual e originalidade. Os elementos textuais que não correspondiam
ao original eram considerados desvios, acréscimos, interpolações estabelecidas de maneira a
desvirtuá-lo, afastando-o de sua forma ideal. Estes “erros” eram, por fim, expostos à margem
do texto crítico, ocupando um lugar secundário em relação ao arquétipo reconstituído. As
funções dessa edição seriam estancar as modificações feitas devido a sua circulação, bem como
estabelecer um padrão “suficientemente correto” para ocupar o espaço da obra dentro do
sistema literário.
Em reação a esta corrente de pensamento, Bédier, filólogo francês dissidente da escola
lachmanniana, propõe uma metodologia de edição que tinha como objetivo editar o manuscrito
mais representativo de uma dada tradição textual, em vez de optar por um texto compósito,
resultado da soma de outros, mas que não corresponde a nenhum dos que de fato existiram.
Conforme leitura de Elia (1993), à semelhança de Lachmann, a proposta editorial de Bédier
permanece historicista, mas se propõe a uma dimensão culturalista e não naturalista: “[o]
método de Bédier abandonava por isso a busca biológica de um antepassado comum para deter-
se na fenomenologia do texto” (ELIA, 1993, p.60).
A metodologia desenvolvida por Lachmann e Bédier tomava como objeto os
manuscritos produzidos antes da imprensa e dedicava-se principalmente a textos eclesiásticos.
É inegável admitir que estes estavam marcados por um sentido de sacralidade, que impunha um
distanciamento entre editor e obra, o que resultava numa postura de reverência frente à
singularidade do objeto em estudo. Daí tantos esforços para purgar destes os erros, desvios e
mutilações adquiridos no processo de circulação, e logo a deferência e o cuidado da parte de
quem devia “resgatar” estas obras.
O desenvolvimento dos estudos filológicos no século XX e XXI ganha novas formas
provenientes da aplicação do método filológico a objetos de natureza diversa, tais como
manuscritos de autor e impressos de diversos gêneros (jornal, contos, folhetins, romances).
Essas questões promovem deslocamentos das fronteiras dos estudos filológicos, bem como a
50

ampliação dos limites, revisão de conceitos e novas modalidades da Crítica Textual, das quais
se destacam a Bibliografia Textual, a Crítica Genética e a Sociologia dos Textos.
A Bibliografia Textual, vertente associada aos estudos anglo-saxões, dedica-se ao
trabalho com os impressos. Trata-se de entender o contexto de produção e caracterizar as
especificidades desse objeto, partindo-se do pressuposto de que no processo de produção do
livro impresso também ocorrem modificações textuais. Em que pese uma falsa impressão de
imutabilidade destes livros, quando comparados aos manuscritos, as análises desenvolvidas por
Greg e Bowers no início do século XX apontaram para a presença de intervenções sobre o texto
que eram inerentes à sua produção. Em Bibliografia Textual, os estudos apontam para o
manuscrito que originou o livro impresso, em termos de autoria e origem; o cotejo entre
manuscritos e impressos; e o estudo das revisões autorais em diferentes edições (BOWERS,
1966).
Estes estudos estão calcados na busca pela correção das alterações ao texto advindas de
sua produção e circulação. Todas as análises realizadas no que tange à aparência física dos
livros (bibliografia descritiva) e em relação à investigação dos detalhes físicos para caracterizar
o processo de sua manufatura (bibliografia analítica) materializam-se em critérios utilizados
para se chegar à edição mais próxima possível do manuscrito que a originou. A metodologia
prevê que o editor tome a versão mais antiga, corrigindo-a com base nas variantes substantivas
provenientes da tradição. Em seguida, deve-se testar a integridade da cópia e caracterizar as
demais, comparando-as ao texto tomado como base para a edição, o copy-text, exemplar a partir
do qual todas as correções, inserções e emendas serão realizadas (GREG, 1950).
No que tange à interface entre Filologia e Crítica Genética, verifica-se que o estudo do
manuscrito moderno demandou novos tratamentos teórico-metodológicos para esses objetos,
fato evidenciado nos trabalhos de Continni (1986). Willemart (1999) destaca a importância de
ratificar o lugar de nascimento de cada uma das ciências, a Filologia, que se origina no
positivismo do século XIX, e a Genética, no estruturalismo do século XX. Para o referido
pesquisador, os estudos da gênese destacam-se por proporem a preterição da análise teleológica
das fontes, assim, a investigação da documentação relativa a uma obra não se resumiria apenas
a uma sucessão de fatos e de escritos, que tem como ápice a obra impressa.
Marquilhas (2010b, p. 362) defende que o método lachmaniano permitiu o surgimento
das modalidades da Crítica Textual na contemporaneidade, quais sejam a Crítica Genética e a
Sociologia dos Textos. No que tange à Crítica Genética, a referida filóloga elucida que a
organização genealógica dos manuscritos proposta por Lachmann foi uma importante etapa
metodológica para essa disciplina estabelecer uma ordenação ao seu prototexto. Por sua vez, a
51

Crítica Genética devolve à Crítica Textual meios para compreender a escrita em seu processo
de construção, nas rasuras, avanços e recuos do autor, na produção de sua obra. Dessa forma,
se processa também uma modificação no conceito de texto, que já não se refere apenas àquele
pronto e acabado, mas um que se revela em sua produção, em sua instabilidade, sendo o produto
final apenas a culminância de uma série de processos.
Assumindo o papel de foco convergente dessas práticas editoriais, o método
lachmaninano pode ainda ser identificado como portador do gérmen dos estudos da recepção e
circulação dos textos propostos por McGann e McKenzie. Na Sociologia dos Textos, por
exemplo, a metodologia de registrar os “erros” poderia ser lida, com os olhos de hoje, como um
modo de evidenciar a recepção desses escritos por meio dos copistas. A partir das formulações
da referida disciplina, foi possível valorizar o aspecto material aliado à circulação dos textos
num dado âmbito social. No momento de seu surgimento, a Sociologia dos Textos estava
voltada para entender a dinâmica que movia as oficinas tipográficas e as complexas relações
sociais estabelecidas entre os atores sociais envolvidos na produção dos livros impressos.
Juntos, todos esses diferentes desdobramentos do fazer filológico promoveram
atualizações teórico-metodológicas, em decorrência do trabalho com os diferentes documentos.
Somem-se a esses a influência dos filósofos da diferença, dedicados a pensar a desconstrução
de alguns conceitos, tomados como basilares para a Filologia.
Lendo este novo paradigma teórico, em que se inserem os estudos contemporâneos,
Cerquiglini (2000) discorre acerca da diferenciação da história da Filologia em duas etapas,
contando-se a começar de sua consolidação como disciplina. Esta diferenciação se torna
relevante, visto que muitas vezes os ideais positivistas de pureza da edição, neutralidade do
editor e busca pela origem perdida ainda se presentificam nos meandros das práticas editoriais
contemporâneas, resultando em um estreitamento da possibilidade de leitura de uma obra,
quando não em um anacronismo teórico-metodológico.
Disto advém a proposição de dois paradigmas para a Filologia, identificados em
algumas características. O paradigma I, denominado Filologia Antiga, poderia ser relacionado
à atividade filológica desenvolvida durante os séculos XVIII ao início do século XX: é a
filologia de base positivista cujo principal objetivo era a reconstrução de um original, a partir
da comparação entre os testemunhos. De acordo com Cerquiglini (2000), a mudança para o
Paradigma II, da Nova Filologia, está vinculada, sobretudo, à transformação na concepção de
textos promovida tanto pelos avanços dos estudos literários, destacando as figuras de Roland
Barthes, Michel Foucault e Jacques Derrida, como pela noção de hipertexto, suporte de escrita
que engendra outras textualidades na apresentação da edição.
52

O quadro apresentado por Cerquiglini (2000, p. 2) sistematiza as principais diferenças


entre os dois fazeres filológicos. Para o primeiro paradigma, a opção crítica reside na autoridade
textual, o editor se exime de exercer seu papel interpretativo e propor uma leitura da situação
textual em função de obedecer a vontade do autor, perspectiva que, segundo Cerquiglini, é
resultado das ideias do romantismo literário. Neste caso, o autor não é somente o responsável
intelectual pela obra, mas materializa um certo saber canônico, ao qual se deve obediência e
respeito. Sua palavra deve ser reconstruída, resguardada e salva das alterações impostas pela
circulação dos textos na sociedade. O meio impresso, sua principal forma de circulação,
materializa a unicidade almejada, visto que mostra uma forma final, estática e aparentemente
imutável.

Quadro 1 – Comparação entre os dois paradigmas da filologia

Paradigme I5 Paradigme II
Option critique Autorité textuelle Partage textuel
Technologie Imprimerie Internet
Métaphore Arbre Réseau
Héros Auteur Scribe
Amour Unicité Variance
Objet Copie méprisée Réception positive
Texte comme Essence verbale Matérialité du codex
Principe Décontextualisation Contextualisation
But Reconstruction Simulation
Méthode Interventionnisme Comparaison
Résultat Livre imprimé Hypertexte
Fonte: Cerquiglini (2000, p.2)

O objetivo do trabalho filológico, é, nesse caso, encontrar a unicidade de uma obra a


partir do exame minucioso entre as diversas cópias degradadas, adulteradas, contaminadas.
Toda a intervenção do copista era considerada uma degradação que o afastava do original
perdido. Ao filólogo cabia, então, estabelecer a filiação entre os manuscritos em forma de
árvore genealógica, apontando os caminhos percorridos por este, a fim de chegar a sua origem.
Para tanto, estabelecia-se um processo de comparação entre as versões legadas pelos
testemunhos, o que ocasionava uma descontextualização do texto em relação a sua
materialidade, bem como perdas de informações relevantes sobre o suporte, necessárias à

5
Paradigma I: Opção crítica: autoridade textual. Tecnologia: imprensa. Metáfora: árvore. Herói: autor. Amor:
unicidade. Objeto: cópia desprezada. Texto como: essência verbal. Princípio: descontextualização. Objetivo:
reconstrução. Método: intervenção. Resultado: livro impresso. Paradigma II: Opção crítica: texto compartilhado.
Tecnologia: internet. Metáfora: rede. Herói: escriba. Amor: variação. Objeto: recepção positiva. Texto como:
materialidade do códice. Princípio: contextualização. Objetivo: simulação. Método: comparação. Resultado:
hipertexto. (CERQUIGLINI, 2000, p.2, tradução nossa).
53

interpretação dos textos. O resultado final desse trabalho é disponibilizado em página impressa,
contendo a edição, acompanhada do aparato de variantes, normalmente ao pé da página ou à
margem direita da página, em fonte menor, algumas vezes ilegíveis. Essa mise en page denuncia
o valor que se dá a cada um dos elementos presentes na edição: o texto editado ocupa o centro
do processo editorial e da página impressa, enquanto as variantes vêm em um lugar de menor
importância.
Ao fornecer um texto estabilizado, uniforme e “limpo das impurezas” do processo de
circulação, o editor oferece um objeto de leitura que é representativo de uma certa tradição
textual. Esse processo de uniformização termina apagando as marcas deixadas pelos copistas
que também são importantes por contarem a história da recepção daqueles escritos e suas
formas de circulação em uma sociedade.
Por mais que se pretenda objetiva e científica, capaz de propor uma versão que ocupe
um espaço legitimado em um dado sistema literário, a edição será sempre apenas mais uma das
formas para a circulação. Antes de se constituir como versão autorizada, uma edição crítica
mostra-se como uma possibilidade de interpretação de um conjunto de documentos que resulta
em um texto final, responsável por apresentar o percurso de escritura do autor, as materialidades
que este adquiriu em sua circulação e a recepção desta obra na sociedade.
Nesta perspectiva, seguem as proposições para a Nova Filologia. A revisão do estatuto
da escrita proposta pelos teóricos denominados pós-estruturalistas concebe-a como múltipla e
não mais unitária. Cerquiglini (1989) pontua a importância dos estudos de gênese para a
sedimentação da escrita como elemento fragmentário

[e]lle explore l’activité d’écriture polymorphe qui précède le geste ultime de la main,
par lequel la conformité de l’épreuve est souverainement attestée, et est permise, mais
sans intervention possible, la reproduction. Le bon à tirer sépare l’écriture et le texte,
l’écrivant et l’auteur, la liberté et le droit; ligne de faîte du processus littéraire, dont la
génétique sonde l’ubac, toujours plus ténébreux et profond (CERQUIGLINI, 1989,
p.19). 6

Tal descentramento permite realizar separações entre o produto e o processo da escrita,


entre a mão que escreve e o sujeito que responde legalmente. Coaduna-se com a noção
contemporânea de hipertexto, sobretudo, no que tange a sua maleabilidade, capaz de
presentificar outros documentos e estabelecer enlaces, levando o leitor a construir um percurso

6 “Ela explora a atividade de escrita polimórfica que precedeu o gesto final da mão, pela qual a conformidade da
prova é soberanamente atestada e permite a reprodução, mas sem intervenção possível. O bom separa escrita e
texto, escritor e autor, a liberdade e o direito; norma culminante do processo literário, do qual a genética sonda,
sempre mais escuro e profundo” (CERQUIGLINI, 1989, p.19, tradução nossa).
54

próprio na leitura. Além disso, o avanço no desenvolvimento de programas informáticos


permitiu que fossem desenvolvidas diversas ferramentas de edição que utilizam o meio digital
para solucionar problemas decorrentes da rigidez do suporte papel.
Trata-se, pois, de dar conta de apresentar a incompletude e a fragmentação dos textos
como elementos constitutivos do processo editorial. É preciso, assim, lançar mão de estratégias
que tragam a diversidade presente na situação textual para o cerne da proposta de edição. Diante
da complexidade do nosso objeto de pesquisa, devemos estabelecer algumas delimitações que
nos interessam para a proposta de edição da dramaturgia de Jurema Penna, a saber, as noções
de texto e de autoria, as questões atinentes à ideia de variação e de variantes, o problema do
paratexto e o papel do editor.
Acerca da noção de texto, destacamos a posição que Rita Marquilhas (2010a, verbete),
elucidada em sua definição de filologia:

[e]studo do texto escrito na perspectiva de sua produção material, da sua transmissão


através do tempo e da sua edição. O que é essencial no texto que constitui o objecto
da filologia é o seu registo em suporte material, ficando os textos orais excluídos das
preocupações desta disciplina. O termo evoluiu de uma acepção muito lata, romântica
sobretudo, que englobava estudos literários e linguísticos, para o conceito estrito de
disciplina concentrada na recriação das coordenadas materiais e culturais que
presidiram à fabricação e sobrevivência de um texto escrito. A orientação última é a
de preparar a edição do texto, daí que a filologia culmine na crítica textual. Tem ainda,
como disciplinas auxiliares, a codicologia, a bibliografia material, a manuscriptologia
e a paleografia, segundo as quais se descreve e interpreta a dimensão material do texto:
o livro, o documento e a letra que o enformam.

O recorte feito por Marquilhas atribui como objeto de estudo da Filologia os textos
constituídos a partir da língua em sua modalidade escrita. Tal definição exclui aqueles
produzidos no plano da oralidade e define a dimensão material como traço fundamental para os
estudos filológicos. Isto coaduna com a ideia de disciplina histórica e documental, que se utiliza
dos registros escritos como modo de acessar um momento pretérito e estudar sua língua, cultura
e sociedade.
Ao se ocupar da linguagem em que essas obras de artes encontram-se registradas, abre-
se espaço para considerar as diversas variantes linguísticas que nelas se apresentam, incluindo
as que trazem a interferência da fala sobre a escrita, possibilitando compreender a oralidade de
uma língua por meio dos indícios deixados. O texto é concebido a partir das formas materiais
em que se manifesta no momento em que é tomado por seus leitores, nos diferentes âmbitos
sociais. Desconstrói-se, portanto, a noção de texto como uma entidade abstrata, estável e
uniforme, desconexa da realidade em que foi produzido e das formas que assumiu durante o
seu processo de circulação.
55

Para fazê-lo, recorre-se a estudos interdisciplinares que possibilitam pensá-lo em sua


diversidade de formas e, com isso, incorporar também as abordagens postuladas por outras
disciplinas. Assim, consolida o tratamento do texto como objeto material, partindo dos
conceitos e princípios da Paleografia, Codicologia, Manuscriptologia e Bibliografia Descritiva,
analisando os diferentes suportes, as distintas formas de inscrições e os sentidos engendrados
por elas, bem como a presença dos sujeitos no processo de produção e as marcas por eles
deixadas.
Por sua vez, o trabalho com o manuscrito autoral irá impor um desafio ao aparato
teórico-metodológico da Filologia, que, em meados do século XX, ainda estava muito arraigada
ao estudo de produções antigas e medievais. O encontro com a subjetividade autoral e suas
múltiplas manifestações sobre o papel, corriqueiro suporte de escrita, constitui uma severa
diferença em relação aos suntuosos manuscritos medievais e suas iluminuras, uma escrita que,
além disso, se produz num ambiente privado e vai sendo trabalhada para adquirir uma série de
formas, atravessadas pelo momento de sua divulgação por meio impresso. Some-se a isso as
questões atinentes às noções de língua e de cultura, que irão interferir diretamente sobre o
trabalho do escritor e a materialidade da língua, sobretudo em relação à produção literária.
Tais noções possibilitam, por exemplo, a emergência de novas práticas editorais, dentro
do campo da Crítica Textual, onde se admite a edição dos manuscritos inacabados, como em
Duarte (1994), com a proposta de publicação das obras não terminadas de Eça de Queiroz e
Fernando Pessoa, discutindo, a partir desse exercício crítico, o papel do autor e do editor. Tal
estudo aponta para uma reconfiguração no objetivo da Crítica Textual, qual seja, propor uma
edição estável. Subvertendo essa lógica, Duarte (1994) dedica-se a transpor tais textos para a
circulação em meio impresso, ainda que estes não tenham sido feitos visando tal propósito. O
trabalho de edição dos inacabados permite também se desvincular de uma tradição filológica
que por muito tempo, sob os moldes românticos, buscou encontrar a última vontade do autor.
Nesses casos, essa vontade, se é que existiu, não se expressa, uma vez que a obra não foi dada
como terminada. Sua leitura, no entanto, interessa no sentido de verificar o estágio de escritura
em que se encontra.
Mesmo tomando-se manuscritos de autores contemporâneos como objeto de edição, é
muito comum que a concepção de texto esteja ainda compreendida, segundo os pilares
positivistas, como verdade ou fatualidade e não como construção sócio-histórica. Tomando-se
por referência um conceito que se constrói a partir da relação entre os sujeitos sociais
implicados em sua elaboração e circulação, torna-se relevante relembrar a ampliação da noção
de texto trazida por McKenzie (2005, p.69), que pode possuir dois significados:
56

[u]no es el texto sancionado por un autor fijo e históricamente definible. El otro es el


texto como algo siempre inconcluso, por tanto, abierto, variable, sujeto a un perpetuo
rehacerse por parte de sus lectores, sus ejecutantes o sus espectadores.7

McKenzie remete a duas possibilidades de compreender os escritos, que, por sua vez,
denotam visões distintas para autoria e leitura. Na primeira definição, o autor ocupa o papel de
organizador dos sentidos do texto, é ele quem autoriza ou desautoriza certas leituras, impondo-
se como figura legitimadora de um discurso. A segunda acepção se caracteriza por compreender
a incompletude como algo inerente à escrita, uma vez que o seu sentido será construído apenas
no momento em que o público lhe atribuir significados.
Os avanços empreendidos pela Sociologia dos Textos permitem entendê-los na sua
multiplicidade de manifestações e de linguagens, desconstruindo a dicotomia texto versus livro
ao apontar para novas formas de “registros culturais” e novas materialidades que o momento
contemporâneo engendra. McKenzie (2005), então, apresenta seu conceito:

Entiendo por «textos» los datos verbales, visuales, orales y numéricos en forma de
mapas, impresos y música, archivos de registros sonoros, de películas, vídeos y la
información computarizada; de hecho, todo desde la epigrafía a las últimas formas de
discografía. No es posible ignorar el reto que suponen esas nuevas formas.
(McKENZIE, 2005, p. 30) 8

A noção de texto tem o seu sentido expandido, não se restringe mais ao verbal em sua
modalidade escrita, mas congrega as produções compostas em um sistema de signos, parte de
uma cultura, que seja capaz de produzir sentidos ao integrar-se a outros sistemas. Ao se pensar
nas novas tecnologias e as formas como elas se relacionam à cultura escrita, McKenzie reitera
os desafios intrínsecos à compreensão de tais materialidades e ao entendimento das
especificidades de cada linguagem em que estas produções são elaboradas.
Acerca da diferença das linguagens trazidas pelos textos sonoros, fílmicos, digitais,
dentre outros, em contraste com a linguagem verbal, Chartier (2005, p.7) afirma que

[…] hay textos que no suponen utilización alguna del lenguaje verbal: la imagen, el
mapa, la partitura, el territorio mismo cuando los hombres le otorgan significados,
deben ser tenidos por textos «no verbales». Lo que permite designarlos así es el hecho

7
“Um é o texto legitimado por um autor fixo e historicamente definível. O outro é o texto como algo sempre
inconcluso, portanto, aberto, variável, sujeito a um perpétuo refazer-se por parte de seus leitores, seus intérpretes
ou seus espectadores” (MCKENZIE, 2005, p.69, tradução nossa).
8
“Entendo por ‘textos’ os dados verbais, visuais, orais e numéricos, em forma de mapas, impressos e música,
arquivos de registros sonoros, filmes, vídeos e a informação computadorizada; de fato, tudo desde a epigrafia às
últimas formas de discografia. Não é possível ignorar o desafio que supõe estas novas formas (MCKENZIE, 2005,
p. 30, tradução nossa).
57

de que todas esas producciones simbólicas han sido construidas a partir de relaciones
entre signos que forman un sistema y cuyo sentido es definido por convención. 9

Esta ampliação de sentido torna-se fundamental para a edição de textos teatrais, uma
vez que estes são atravessados por uma série de outros dados verbais, auditivos e visuais.
Músicas, efeitos sonoros e de iluminação, além de figurino, cenário e o próprio espaço cênico
configuram-se como textos que são entrelaçados na formulação do espetáculo. Do ponto de
vista da metodologia da edição, eles também farão parte do cotejo para a constituição da edição,
a partir do confronto entre as suas formas de registro e o script, possibilitando entrever a
realização cênica daquele espetáculo.
Conforme assinalam McKenzie e Chartier, devemos considerar as diversas produções
simbólicas como texto; no entanto, é imprescindível compreendê-las na sua especificidade, para
que não se incorra no perigo de ler essa pluralidade de signos sob a lógica da linguagem verbal:

[l]a extensión de la categoría de texto, puso, necesaria, pero exige al mismo tiempo,
una atención más precisa a los mecanismos específicos por los que cada forma de
inscripción de un lenguaje particular produce sentido. Esta es una exigencia
fundamental para evitar el riesgo de una proyección ilegitimada de la lógica del escrito
sobre las otras formas de texto. (CHARTIER, 2005, p.7)10

Faz-se, assim, necessário, adentrar essas diferentes lógicas, reconhecendo suas


particularidades, além das diferenças em relação à linguagem verbal, sob o risco de constituir
uma leitura que suprimirá a potência do texto não verbal. Outra consequência indesejada seria
uma hierarquização, com o componente verbal ocupando o lugar central e as demais linguagens
sendo postas em sua periferia.
Estas reconfigurações são importantes para a compreensão do nosso objeto de edição,
dado o seu caráter múltiplo e instável, constantemente submetido a processos de reelaboração.
Além disso, permite trazer para a leitura os elementos cênicos, tecendo-os a outros elementos,
tais como fotografias do espetáculo, notícias sobre a encenação, dados do espaço cênico e da
iluminação, dentre outros. Dar a ler uma edição que congrega signos verbais e não verbais
possibilitará uma experiência de leitura que integra o texto aos vestígios da cena.

9
“[…] há textos que não supõem a utilização alguma da linguagem verbal: a imagem, o mapa, a partitura, o próprio
território, quando os homens lhe outorgam significados, devem ser compreendidos com os textos ‘não verbais’. O
que permite designá-los assim é o fato de que todas essas produções simbólicas foram construídas a partir de
relações entre signos que formam um sistema e cujo sentido é definido por convenção (CHARTIER, 2005, p.7,
tradução nossa).
10
“A extensão da categoria de texto, põe-se como necessária, mas exige ao mesmo tempo, uma atenção mais
precisa aos mecanismos específicos pelos quais cada forma de inscrição de uma linguagem particular produz
sentido. Esta é uma exigência fundamental para evitar o risco de uma projeção ilegítima da lógica do escrito sobre
as outras formas de texto” (CHARTIER, 2005, p.7, tradução nossa).
58

Por sua vez, o sentido de autoria para o texto teatral estabelece-se de forma diferente em
relação a outros gêneros, sobretudo em decorrência das múltiplas interferências dos sujeitos da
cena. Quando estes indivíduos não intervêm diretamente sobre o script, a partir de uma
improvisação, por exemplo, interrogam-no e problematizam-no em função das suas
necessidades cênicas, tornando-o motivo para a sua reelaboração.
Nesse sentido, a figura do autor como detentor do processo de escritura se esboroa, uma
vez que se reconhece, ao longo da elaboração do texto, uma série de sujeitos mediadores
atuantes na sua produção e transmissão. Trata-se de um tema amplamente explorado, sobretudo
com as reconfigurações do papel do autor, realizadas inicialmente por Barthes (1988 [1968])
em A morte do autor. Neste ensaio, o teórico defende que o autor é uma personagem moderna
criada a partir da noção de prestígio social do indivíduo, solidificada com a ideologia capitalista,
que, por sua vez, foi responsável por transformá-lo no detentor da significação de sua obra.
Barthes, assim, propõe a morte dessa “entidade” e o concomitante surgimento do scriptor
moderno, que nasce ao mesmo tempo em que sua obra; e do leitor, aquele para quem a leitura
se destina e onde o sentido se constrói, “esse alguém que tem reunidos num mesmo campo
todos os traços que constituem o escrito” (BARTHES 1988 [1968], p.70).
A morte do autor configura-se como um marco que engendra a construção de uma série
de problematizações acerca do tema, dentre elas, as formuladas por Foucault, em O que é um
autor, que propõe avanços no tema, na medida em que passa a questionar as consequências
dessa morte. Da discussão suscitada por Michel Foucault, destacam-se duas noções importantes
para se pensar o estatuto do autor na prática de edição contemporânea, são elas: o nome do autor
e a função autor. Segundo Foucault (1992 [1969]), o nome do autor compartilharia certas
características comuns aos nomes próprios, como designar e indicar uma pessoa, diferenciando-
se por carregar consigo uma série de descrições acerca dos sentidos que tem a produção desse
sujeito. Assim,

[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser
sujeito ou complemento, que pode ser substituído por pronome etc.); ele exerce
relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificatória; um
tal nome de autor permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los,
selecioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os
textos se relacionem entre si. (FOUCAULT, 1992 [1969], p. 44-45.)

O nome do autor possui um funcionamento próprio nos discursos, inseridos em uma


sociedade, e que permite atribuir-lhe certos sentidos. Em torno desse nome se reunirão
representações acerca das obras e do seu estilo, além da atribuição de uma origem para o
59

discurso e de uma responsabilização estética e jurídica pelos conteúdos ali veiculados.


Poderíamos também dizer que o nome do autor faz parte da construção de um personagem que
se elabora nos e pelos seus textos. A assinatura do autor, por sua vez, atribui uma outra forma
material ao nome que o individualiza.
No caso de Jurema Penna, que costumava assinar abundantemente os seus scripts,
observamos a intenção de assumir as propostas de ordem ideológica e estética ali postas,
legitimando-se no papel de dramaturga. Há também a presença de uma questão de caráter
jurídico, já que o protocolo de censura resultava na responsabilização legal de um sujeito pelos
discursos postos em sua obra. As obrigações com a Censura Federal fizeram com que muitos
produtores e diretores assumissem uma posição de autoria, mesmo quando se tratava de uma
criação coletiva, ou ainda quando não havia a identificação do responsável por escrever a peça.
Nesse sentido, conforme Foucault (1992 [1969]), um autor se constituía, quando podia ser
punido pelo seu discurso.
Construir o nome de autor para Jurema Penna, depreendeu muitos esforços, inclusive
por sua imagem estar sempre associada à carreira de atriz. Tratam-se de investimentos no plano
discursivo, perceptíveis pelo tratamento do tema durante as entrevistas, momento em que
sempre se referia ao seu trabalho de dramaturga. Uma vez consolidada a carreira de atriz,
Jurema Penna sempre pontuava o desejo de escrever para teatro pois estava “cansada de
interpretar o pensamento alheio” (FRANCOLINS NETO, 1966). Um segundo ponto decisivo
para a constituição de seu “nome de autor” foi a montagem de sua própria dramaturgia, visto
que muitos dos seus textos foram produzidos por ela e encenados por atores amadores, que
eram seus estudantes de teatro. Ao dirigir seus próprios espetáculos, Jurema Penna instaura um
nível maior de continuidade entre o script e a performance, em comparação a uma encenação
da mesma peça realizada por outro dramaturgo.
Ainda com base no pensamento de Foucault (1992 [1969]) sobre o autor, destacamos a
função autor, caracterizada por quatro aspectos: o primeiro diz respeito à instauração de um
regime de propriedade para as obras, que deveria ser posse de um indivíduo, exigência
intensificada com o modo de produção capitalista. Em segundo lugar, com a instauração do
regime de propriedade, o leitor se habitua à presença de um autor, que lhe dará informações
sobre a origem do discurso, o contexto histórico em que foi escrito e como se deu essa produção.
A terceira função postula que a imagem do autor não se estabelece espontaneamente, mas é
resultado de um intrincado processo de atribuição de um certo discurso a um certo indivíduo
mitificado, surgindo, daí, a escrita. Por último, a figura do autor seria composta por “sujeitos”
60

mais ou menos próximos do escritor real; a função autor, finalmente, se estabelece no espaço
entre o “escritor real” e o “locutor fictício”.
Para Foucault (1992 [1969], p. 46), “a função autor é, assim, característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”.
Nesse sentido, o autor é uma entidade que possui como função direcionar a leitura de uma
produção escrita e o faz por intermédio de seu nome, sua biografia, sua posição na sociedade.
A valorização prévia do autor transforma a figura do escritor real em uma entidade que participa
da construção das leituras de sua obra. Foucault, nesse sentido, não mata o autor, não o exclui,
mas o compreende como mais um dado no processo de interpretação do texto.
No panorama atual da teoria literária, não se pode afirmar que os sentidos dados à figura
do autor tenham se esvaziado completamente. Sobretudo porque este se constrói como figura
intelectual, dono de um discurso e de posicionamentos críticos sobre literatura, cultura e
sociedade, dotado de um estilo que o particulariza. Nesse sentido, entendemos os estudos da
autoficção/autobiografia estratégicos para compreender a figura do autor como um sujeito que
se constrói a partir de uma autoficcionalização, estabelecendo para si certos discursos que não
constituem a “verdade”, mas narrativas que fazem elaborar a sua autoimagem como escritor
(LEJEUNE, 2008).
Jurema Penna se define como dramaturga por meio da narrativa que constrói de si
própria nas matérias e entrevistas publicadas em jornais da época. Nestes, ao se estabelecer
como primeira pessoa do discurso, dá a conhecer uma série de concepções sobre sua produção
dramatúrgica, evidenciando as expectativas e as frustrações com a carreira. Como observadora
de seu tempo, expõe sua percepção sobre os acontecimentos da sociedade em que vive. Além
disso, torna evidente a projeção de sua biografia sobre sua obra, conforme verificamos no
excerto da matéria publicada no Jornal da Bahia, em novembro de 1979:

Quando eu escrevi Negro Amor de Rendas Brancas – continua Jurema – existia uma
boneca aparentemente de louça e quando o personagem tirou-lhe a roupa viu que ela
tinha a barriga de pano e capim, ele sentiu-se traido [sic] pela primeira vez, a boneca
era falsa, uma mentira. Depois que escrevi esse monologo kenti [sic] que isso
acontecia comigo comecei a chorar e também a me sentir tremendamente traída. A
partir desse momento comecei a querer dissecar as pessoas para saber se elas são de
capim ou tem um diamante guardado dentro de si. (JUREMA, 1979)

Assim, a alternância entre o papel de escritora e de leitora, que experimenta um


momento catártico no confronto com o seu próprio texto, indica o caráter projetivo dessa escrita
dramatúrgica. Conforme o depoimento de Jurema Penna, não há a intenção de falar sobre si, no
entanto, a experiência subjetiva da escrita registra o desejo inconsciente, apenas revelado em
61

momento oportuno. As projeções do autor sobre o seu texto são entendidas como uma das
possíveis formas de interpretar a obra, que dão a conhecer a construção de si dentro da própria
escrita. As questões suscitadas pelos estudos da autobiografia/autoficção nos permitem
compreender Jurema Penna como uma dramaturga que se constrói pelos seus textos e se
ficcionaliza nos seus discursos.
Pensando nas consequências das problematizações da noção autoria para a Filologia,
Cerquiglini (2000, p. 2) postula a existência de uma vinculação direta entre este conceito e a
opção crítica do editor. A referida relação assume diferentes feições nos dois paradigmas da
Filologia, já citados. Na antiga filologia, o editor orienta-se pela autoridade imanente ao texto,
baseando o trabalho editorial na busca pela última versão autorizada pelo autor. Se, no entanto,
a opção crítica se inclina a compreender o compartilhamento da autoria, o autor assume a
posição da mão que escreve, de scriptor, seu trabalho é desvinculado do sentido de autoridade
de que ele ainda goza, sendo, assim, reconhecido em função dos sujeitos que colaboraram com
ele. Já não se trata de um autor que determina os sentidos, mas de um autor que levanta
diferentes aspectos de uma questão, por meio do seu exercício de escrita, e que não se pretende
como repositório da verdade sobre um texto.
Acerca do papel do editor no paradigma da Antiga Filologia, Cerquiglini (2000, p.3)
afirma que

l'éditeur ne s'interdit jamais de changer la lettre d'un texte qui lui para intrinsèquement
fautif ; l'honnêteté, voire une certaine humilité parfois devant le manuscrit s'expriment
alors par un affichage explicite des interventions. Mais, pour un tel acte de probité,
combien de corrections subreptices! L'éditeur, au fond, se persuade qu'il connait,
comprend et respecte beaucoup mieux l'original et sa langue, que le copiste. Croyant
reconstruire le travail du premier scribe, il n'est que le plus récent copiste du texte.11

As intervenções do editor sobre o texto incidiriam no critério de objetividade da edição,


desvirtuando-a da cientificidade positivista almejada pelo método filológico. No entanto, como
chama a atenção Cerquiglini, toda a tentativa de ocultar a presença da subjetividade no processo
editorial resultava em uma dissimulação da atuação do filólogo, por detrás do método científico.
Nesse sentido, certas interferências editoriais realizadas utilizam o discurso de cientificidade
para justificar escolhas que deixam entrever a subjetividade do editor, ocultada sob o referencial
teórico utilizado.

11
“Ao editor não é interdito alterar a letra de um texto que lhe parece inerentemente defeituoso; a honestidade, às
vezes até uma certa humildade diante do manuscrito são expressas por uma exibição explícita de intervenções.
Mas para tal ato de honradez, quantas correções sub-reptícias! O editor, de fato, está convencido de que conhece,
entende e respeita mais o original e sua língua que o copista. Acreditando reconstruir o trabalho do primeiro
escriba, ele é apenas o copista mais recente do texto.” (CERQUIGLINI, 2003, p. 3, tradução nossa).
62

Permeia o comportamento deste editor o respeito e a subserviência à letra do texto,


buscando, nesta, a erudição e o conhecimento veneráveis de tempos pretéritos. O trabalho do
editor fundamenta-se no sentido do resgatar conteúdo do texto e o registro de sua língua, uma
vez que estariam corrompidos pelos erros oriundos do processo de transmissão. Apoiado neste
intuito, as ações do editor se dão no sentido de expurgar todas as interferências advinda da
transmissão das obras.
Em se tratando dos textos antigos e medievais, o labor editorial baseia-se em um
conhecimento sobre a gramática histórica, que, igualmente positivista, pretende resgatar os
estágios de constituição das línguas, mas cujos resultados dão conta de uma realidade
específica, que só os acessa parcialmente. Daí se origina a presunção do editor em relação à
língua do texto, autorizando-o a se pensar mais conhecedor dessa língua que o próprio copista.
A pretensa neutralidade da aplicação do método filológico, o faz acreditar que este trabalho
efetivamente reconstrói uma realidade pretérita perdida.
Diante desse idealismo, Cerquiglini aponta o editor, apenas, como o mais novo copista.
Nesse sentido, inscreve-o no processo de transmissão, ao proporcionar novas formas para sua
circulação. Assim como o copista medieval, o editor, no intento de reproduzir os textos,
conforme o original, e de transpô-lo às formas materiais de seu tempo, também interfere sobre
eles, na medida em que interpreta a língua de um tempo pretérito e, diante de um conjunto de
variantes, realiza escolhas para a constitutio textus.
Por mais que se queira objetivo, científico e capaz de propor um texto “autêntico” com
a finalidade de ocupar um espaço legitimado em um sistema literário, o labor editorial será
sempre mais uma das formas de circulação dessa obra em uma sociedade. Antes de se ser um
texto autorizado, uma edição crítica constitui-se em uma possibilidade de interpretação de um
conjunto de documentos que resulta em uma versão final, representativa do percurso de
escritura do autor, das materialidades dos suportes que este adquiriu em sua circulação e da sua
recepção em uma sociedade.
Destacamos, assim, a necessidade de reconfigurações do papel do sujeito pesquisador.
Santos, em sua discussão acerca do conhecimento científico, defende o lugar do sujeito como
central na produção desses saberes. Nesse sentido,

[a] ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela
comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intuitivamente antes que
conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas
de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da
natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação. (SANTOS,
1995, p. 52).
63

Passa-se, então, a entender a subjetividade do editor como parte constitutiva da pesquisa,


que norteia suas escolhas, mas que não interfere ou invalida seus resultados. Desconstrói-se a
noção de editor como sujeito transparente no processo editorial, uma vez que sua opção teórico-
metodológica, além de suas preferências metodológicas estarão presentes nas escolhas
realizadas. Por sua vez, o editor não está mais condicionado a ocultar-se sob a “última vontade
do autor”, tampouco a ser submetido a esta noção como critério de validação da sua proposta
editorial. Sua leitura do conjunto documental será autônoma, abrindo uma série de sentidos que
lhe permitem traduzir o texto em seus aspectos culturais, materiais e linguísticos para um
momento histórico deslocado de sua elaboração, facilitando a aproximação de leitores não
especializados. Assim, seus investimentos estarão muito mais direcionados a construir uma
narrativa sobre o percurso daquela obra em uma dada sociedade e seu estatuto de crítico será
manifestado em excelência.
A emergência de novos paradigmas científicos atualiza a noção de filólogo como
intelectual, expandido as possibilidades de ação deste no âmbito dos projetos editoriais
desenvolvidos. Historicamente, a erudição era uma característica esperada desse sujeito,
presente, inclusive, no etmo grego “Φιλολογo” e latino “philologus”, a ideia de amor pelo saber
e pelas palavras. O próprio labor filólogo demandava o conhecimento dos diversos aspectos
que compunham atividades de tão amplo escopo, exigidos pela própria abordagem do objeto de
pesquisa. Além de eruditos, os filólogos também se constituíam como intelectuais de sua época
que se devotavam a pensar as questões da disciplina e os estudos atinentes ao seu objeto de uma
forma crítica, destacando as diversas questões trazidas por ele em relação ao referencial cultural
de onde se origina e, naturalmente, submetido aos horizontes de seu tempo.
Zygmunt Bauman, (2010) ao pensar o papel dos intelectuais na modernidade e na pós-
modernidade, discorre sobre a diferença desses sujeitos em função ao momento histórico no
qual se insere. O termo, próprio da Europa ocidental pós-iluminista, assume, na modernidade,
o sentido de intelectual como “legislador”. Suas afirmações sobre o mundo se revestem de
autoridade, estabelecendo uma relação de poder que se legitima pelo domínio de um
conhecimento superior e lhe permite emitir opiniões de referência para os não intelectuais.
A pós-modernidade, por sua vez, instaura uma distinção na interação do sujeito
intelectual com o conhecimento. Bauman constitui a metáfora do intelectual como intérprete.
Não se trata de um conhecimento sedimentado na vontade de verdade, mas “[c]onsiste em
traduzir afirmações feitas no interior de uma tradição baseada em termos comunais, a fim de
que sejam compreendidas no interior de um sistema de conhecimento fundamentado em outra
tradição” (BAUMAN, 2010, p.20). Assim, o intelectual da pós-modernidade interessa-se pela
64

relação entre sistemas culturais, suas afirmações ainda servirão de referência para os sujeitos
comuns, mas não necessariamente de forma normativa, desvinculando-se da imagem de um
saber autoritário. Seu interesse principal é estabelecer referências para que os demais sujeitos
possam transitar de um sistema cultural a outro.
Nesse sentido, entendemos o filólogo como intelectual que, por meio das propostas de
edições e estudos, media a interação do leitor contemporâneo com as obras que estão temporal
e culturalmente afastadas deles. Para estabelecer a ponte entre as culturas, torna-se necessário
propor na edição elementos que permitam ao leitor compreender o texto em seu tempo, tais
como notas explicativas, glossários, documentos da recepção, dentre outros, a fim de aproximá-
los, ampliando as possibilidades interpretativas que oferece.
A recepção do espetáculo poderá, ainda, interferir sobre a construção do texto, fazendo
com que se realizem neles alterações, uma vez que a forma como o espetáculo é recebido por
uma plateia especializada pode motivar tais ajustes. A presença do público, receptor leigo,
também pode levar a modificações, de maneira declarada ou subentendida, expressas pela
reação ao espetáculo, além das ações da censura federal que, por força de lei, interferia sobre a
produção do texto teatral. Os limites entre a recepção e a autoria serão, nesses termos,
esmaecidos.
Consideramos, portanto, que a proposta editorial não deve neutralizar a multiplicidade
dos sujeitos intervenientes na construção do script, uma vez que a escrita colaborativa é a marca
desse gênero. Não se trata, portanto, de apagar o autor dessa dinâmica, mas compreendê-lo
como mão que escreve e organiza o texto, amalgamando as diversas referências e interferências
dos demais autores sobre ele. O escritor será compreendido, dessa forma, como o responsável
legal da obra, o organizador da sua materialidade linguística, mas não o detentor dos seus
sentidos.
O dramaturgo se inscreve, portanto, nos suportes de escrita, dando origem a outras
materialidades, a partir das modificações textuais realizadas. Cabe aqui distinguir testemunhos
de versões, sobretudo ao se tomar os textos teatrais censurados cuja constante reconstrução
promove a materialização de diferentes versões em diferentes suportes, ou no mesmo suporte.
Duarte ([1997-] verbete) define testemunhos como “manuscritos ou impressos que transmitem
a obra. Designa o exemplar de um texto com todas as características próprias: suportes, lições,
variantes”. A noção de testemunhos é então apresentada numa visão totalizante que engloba
tanto os aspectos materiais, como as lições documentadas naquele suporte, abrindo margens
para se compreender o suporte e o seu conteúdo verbal numa relação de igualdade
Pérez Priego (1997, p. 36), lendo G. Pasquali (1974 [1934]), afirma que:
65

[l]os testimonios son efectivamente individuos históricos, con una fisionomía propia,
portadores en su seno muchas veces de elocuentes huellas y datos respecto de dónde
se compusieron, quién los encargó o poseyó, quiénes fueron los copistas, los
impresores, los lectores, qué tipo de papel y de letra fue utilizado, qué taller
tipográfico, etc. Todo ello nos proporciona una información muy interesante, por
supuesto, para la historia cultural, pero también muy rica y aprovechable desde la pura
critica textual12.

Nestes termos, acreditamos na pertinência de se entender os testemunhos em sua


materialidade como objetos de leitura, para além da inscrição que ele porta. Não se trata de se
tomar os elementos materiais somente do ponto de vista descritivo, elencando-se suas
características físicas, mas torna-se relevante trazer esses dados para o jogo da interpretação, a
fim de entendê-los como resquícios da cena em que foram originados. Ao se abandonar a
hierarquia estabelecida entre os testemunhos e (a versão do) texto, pelo menos dois aspectos
interessam ao editor: a história de sua gênese; e a história de sua circulação na sociedade.
Acrescente-se a isso os registros deixados pelos mediadores envolvidos nesse processo,
entendidos, também, como documentos da recepção.
Por sua vez, a noção de campanha de correção elucida que um mesmo suporte material
pode ser portador de vários momentos e etapas de escritura. Pensando-se na construção coletiva
presente em nosso objeto de estudo, esse suporte pode ser utilizado pelos diferentes sujeitos
que deixam suas marcas, constituindo diferentes versões sobre um mesmo suporte. Um mesmo
espaço físico é compartilhado por diversos sujeitos que atuam sobre ele, conforme o papel que
desempenha na elaboração do espetáculo.
A noção de variante, cerne do trabalho editorial, constituiu-se em oposição à ideia de
erros de transmissão, como eram denominadas as diferenças encontradas nos testemunhos, que
circulavam por meio de cópias manuscritas. Os erros eram compreendidos como desvios
realizados pelos copistas medievais em relação ao modelo copiado. Estes poderiam tanto ser
decorrentes do próprio processo de cópia, como da reelaboração de parte do texto, pelo desejo
do copista de torná-lo mais simples ou mais complexo, ou ainda em decorrência do
desconhecimento da língua ou das interferências do seu próprio idioleto durante a cópia.
Essa noção normativa encontra diversas limitações quando o empenho da Crítica
Textual se direciona a estudar os manuscritos autógrafos. Nestes as alterações realizadas

12
“Os testemunhos são efetivamente indivíduos históricos, com uma fisionomia própria, portadores, em seu cerne,
muitas vezes, de eloquentes marcas e dados sobre onde foram compostos, quem os encomendou ou possuiu, quem
foram os copistas, os impressores, os leitores, que tipo de papel e de letra foi utilizado, em que tipografia etc. Tudo
isso nos proporciona, seguramente, uma informação muito interessante para a história cultural, mas também muito
rica e aproveitável sob a perspectiva da pura crítica textual” (PÉREZ PRIEGO, 1997, p. 36)
66

conformam o próprio processo de escritura. Não configuram, portanto, erro em relação a um


modelo, mas as diversas formas assumidas por este antes de vir a lume. A ideia de variantes se
consolida também sob influência da linguística variacionista, em que para uma forma
preconizada pela língua padrão, havia uma série de outras possibilidades expressivas utilizadas
em situações específicas.
Do ponto de vista da Crítica Textual, o texto publicado pelo autor constitui o ápice do
processo de escrita, os testemunhos desse processo trariam a sucessão de variantes que
explicariam a forma escolhida pelo autor para a versão final. A noção de variantes apresenta-
se, assim, radicada em uma visão teleológica e retrospectiva, a obra publicada constituiria o
padrão alcançado e os testemunhos trariam as variantes em relação a esse padrão. Além disso,
narrariam um percurso linear e com um forte sentido de causalidade, em que uma variante
provoca a outra até se chegar à “vontade final do autor”.
No entanto, no percurso do manuscrito até o impresso, para se tomar apenas essa
situação como exemplo, muitas serão as formas e as motivações para as alterações, do que
resulta diferentes tipos de variantes. Duarte ([1997-] verbete) propõe uma definição bastante
genérica para o termo variante: “lição divergente, num dado lugar do texto, entre dois ou mais
testemunhos”. Conforme definição acima transcrita, variante é muito mais sinônimo de
divergência, em comparação a um padrão, do que de diferença, evidenciando-se a diversidade
de formas.
Trazendo essas situações para o nosso objeto de estudo, encontramos dificuldades no
uso do termo “variante”, pois o texto teatral assume diferentes formas, a depender do momento
de encenação, e somente algumas delas podem representar a “intenção final do autor”. Todas,
no entanto, são legítimas, uma vez que diversos processos de adaptação são necessários para a
elaboração do espetáculo, não havendo um fim último em que a mudança cesse e se constitua
como invariante para fins comparativos. O texto teatral materializado no exemplar enviado para
a censura ou publicado, apesar de estabilizados na forma de documentos escritos, se constituirão
como rascunhos para as novas encenações.
As diferenças entre as suas versões nem sempre apontarão para um momento terminal
da escrita, uma vez que as alterações podem ser realizadas e descartadas, mas em um momento
posterior podem ser resgatadas. Ainda que o conjunto dos documentos recolhidos aponte para
um estado terminal da obra, preferimos manter o texto teatral no lugar de sua complexidade,
entendendo os registros presentes nos suportes como testemunhos de um momento específico.
Não podemos, no entanto, confundir a possibilidade de escolher entre uma de suas múltiplas
formas com a ideia de variantes alternativas, aquelas em que “o autor do texto apresenta várias
67

lições para o mesmo lugar, não se decidindo por nenhuma delas” (DUARTE, [1997-], verbete),
deixando a escolha sobre qual figurará na edição crítica a cargo de editor. Durante o espetáculo,
os diferentes momentos em que o texto será retomado definirão a versão a ser utilizada, assim
a atualização performática construirá versões provisórias.
No momento de proceder à colação, elegemos um exemplar de base para constatar as
diferenças existentes entre os testemunhos e, por meio dele, estabelecer leituras sobre as
modificações realizadas, a fim de evidenciar e narrar que percursos essa obra trilhou.
Preferimos pensar essas diferenças em termos de modificações textuais, no sentido de nos
desvincularmos de um conceito que poderia acarretar a planificação do nosso objeto de
pesquisa, ou ainda mostrar-se inadequado às suas especificidades. Entendemos, portanto,
modificações textuais como alterações realizadas no texto que implicarão um desdobramento
deste em diferentes formas. Estas modificações podem tanto atender a propósitos
condicionados pela própria escrita, como pelo seu processo de encenação, englobando-se nele
os diversos participantes do espetáculo, que, juntamente com o dramaturgo, compartilham a
escrita.
Podemos identificar duas formas de modificações textuais resultantes dessas
intervenções: a) aquelas referentes à construção do texto, na qual incluímos as alterações feitas
pelos diferentes sujeitos que interferem sobre a sua escrita, como a dramaturga, os atores e os
censores; b) as relativas à revisão do texto, em que incluímos as interferências cujo objetivo é
realizar revisões ortográficas acerca das questões da língua e que também poderão incidir sobre
os seus sentidos. Os aparatos são os locais em que se registram todas estas modificações
textuais, sejam elas autorais ou não. Nas edições impressas costumam vir em um espaço
marginal, com fonte diminuída e com formas de registros que tentam poupar o máximo de
espaço e trazer o máximo de informações, enquanto o texto ocupa o espaço privilegiado da
página.
Fazer caber em uma página plana e linear a diversidade e a mobilidade presentes na
história de uma obra, tanto no que diz respeito ao processo de sua produção, quanto ao processo
de circulação e recepção pela sociedade, é um dos principais problemas com que se depara o
filólogo ao apresentar sua edição crítica em meio impresso. Desta situação resulta, um texto
crítico carregado de aparatos de notas, com informações relevantes, que ocupa as margens da
página, tonando-se, por vezes, ilegível. Conforme assinala Tavani (1988, p.79),

[l]a colocación de las variantes en los aparatos tradicionales, no solo no facilita sino
dificulta su lectura, y hace casi imposible reconocer su articulación exacta respecto a
las invariantes textuales. De modo que el problema de la disposición del texto y de las
68

variantes – la «mise en page» en la terminología eficaz de los manuscriptólogos


franceses – es una de las cuestiones más apremiantes, cuando se pretende hacer la
edición crítica de un texto contemporáneo, cuyas variantes son todas de autor, y por
lo tanto dignas de atención y de estudio, por quien desea reconstituir las distintas fases
de elaboración del texto.13

Acrescentamos às proposições de Tavani, a necessidade de apresentar no texto editado


notas acerca de sua recepção, incluindo nestas as modificações textuais decorrentes da
circulação, a documentação paratextual, além das notas do editor, e, no caso do texto teatral, os
documentos do espetáculo e os registros feitos pelos inúmeros indivíduos que dele participam.
Em algumas edições, a diminuição do tamanho do aparato, para fazê-lo caber na mesma
página, é feita com o objetivo de torná-lo próximo do texto a que faz referência, facilitando
para o leitor a constatação das modificações textuais. Apesar da vantagem, este tipo de aparato
limita severamente a quantidade de informações que podem ser dispostas, submetendo a
apresentação das variantes a um espaço restrito, o que resulta na limitação no volume das
informações ali colocadas. Nesse sentido, se o editor pretender constituir um aparato de notas
explicativas, ou se a tradição textual estudada possuir modificações textuais mais extensas, o
aparato terá suas dimensões limitadas pelo espaço a ele reservado.
Uma solução muito comum para esse problema é a apresentação do aparato em um
volume à parte ou ao final da edição, quando este toma proporções mais volumosas. Esta opção
permite ao editor, além de apontar a mudança realizada, comentá-la, promovendo um
investimento do trabalho interpretativo, uma vez que não há limitações de espaço que o
restrinja. Estas notas resultam pouco confortável, já que que o movimento de ir e vir ao final
do texto pode dificultar a continuidade da leitura incidindo sobre a construção do sentido.
Torna-se fundamental, então, desenvolver estratégias para uma apresentação das
modificações textuais, a fim de torná-las legíveis. O suporte digital tem se destacado nesta tarefa
pela sua flexibilidade e seu caráter multimídia, permitindo dotar a edição de outros elementos
além das modificações textuais, com destaque para os documentos de recepção. Entendemos
por documentos de recepção aqueles em que se registram as cenas e que fornecem dados
necessários à crítica filológica em seu intuito de buscar pistas para compor a edição. Listam-se
as fotografias, figurinos, cenários, folhetos, folders e matérias de jornais. Destes, destacam-se
as matérias de jornais pois dão conta de trazer a recepção dos espetáculos, a partir dos

13
“A colocação das variantes nos aparatos tradicionais, não só não facilita, mas dificulta sua leitura e torna quase
impossível reconhecer sua articulação exata quanto às variantes textuais. De modo que o problema da disposição
do texto e das variantes – a «mise en page» na terminologia eficaz dos manuscriptólogos franceses – é uma das
questões mais urgentes, quando se pretende fazer a edição crítica de um texto contemporâneo, cujas variantes são
todas de autor, e portanto, dignas de atenção e estudo, por quem deseja reconstituir as distintas fases de elaboração
do texto” (TAVANI, 1988, p.79, tradução nossa).
69

espectadores da peça, de sua visão sobre a sociedade, suas crenças e concepções acerca da arte
e do teatro.
Também denominado de paratexto, esse conjunto documental é formado por diversos
outros escritos que se integram a uma tradição, por estarem relacionados a ela. Nesta categoria
incluem-se os comentários, traduções, notícias, dentre outros. O referido conceito, oriundo de
formulações teóricas de base estruturalista, aponta para o que está fora do texto, mas que com
ele dialoga. Conforme Gérard Genette (1982), o paratexto de uma obra é formado pelos
elementos que a circundam como títulos, subtítulos, prefácios, posfácio, advertência, avant-
propôs, notas marginais, infrapáginas, terminais, epígrafes, ilustrações etc.
Telles (2006, p.40), a partir da leitura que faz de Genette (1982) e Lane (1992), conclui
que “o paratexto situa-se na perigrafia do texto, aquela zona intermediária entre o que está fora
do texto e o próprio texto, sendo necessário, entretanto, passar por ela para alcançar-se o texto”.
O editor constrói, dessa forma, uma relação de interação entre o texto e o paratexto, este último
entendido como elemento periférico no processo de edição, e que deve ser trazido pelo editor
em relação à obra editada, o centro do trabalho editorial. Suas principais funções são explicar
as leituras realizadas e justificar as escolhas editoriais. Entende-se, com isso, que o paratexto
cumpre uma função instrumental na construção da edição, preenchendo as suas lacunas, numa
tendência totalizante, cuja principal função é completar os vazios do texto.
Se, no entanto, a documentação paratextual for objeto de uma leitura filológica crítica,
seu papel na construção da edição deixará de ser secundário, para se constituir como elemento
que entrecorta a leitura e que orienta o editor na construção de sua edição. A relação texto e
paratexto deixa de ser binária para ser relacional, não busca a totalidade, mas atua instaurando
rupturas que abrem outras chaves interpretativas. Entendemos assim o paratexto como
suplemento para as leituras realizadas.
Conforme Derrida (2009), a noção do suplemento é decorrente da impossibilidade de
uma totalização preconizada pela lógica estruturalista, na qual, para se propor hipóteses, era
necessário dar conta da totalidade do fenômeno analisado, sendo somente possível construir
conhecimentos a partir do todo. Contra essa formulação, o filósofo desconstrói a busca pela
totalidade, uma vez que um sujeito finito não daria conta de um conhecimento infinito e propõe
o conceito de jogo, em que há “substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito”
(DERRIDA, 2009, p. 421). Esses constantes deslocamentos dão origem a um centro provisório,
estabelecendo a lógica da suplementaridade. Assim,
70

[n]ão se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui
o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-
se, vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma
coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante (DERRIDA, 2009,
p. 421-422).

Texto e paratexto não mais se complementam, e sim se suplementam na medida em que


um não totaliza o outro, mas transbordam-se mutuamente, no sentido de produzir outras
possibilidades de leitura, diferentes das esperadas, constituindo o jogo das significações. Nesta
lógica suplementar se insere a relação entre os textos teatrais e os textos de jornal, entendidos
como documentos de recepção.
As matérias jornalísticas configuram-se como produções que se auto-investem de um
sentido denotativo, calcado no objetivo de apresentar os acontecimentos do mundo de forma
neutra. Nesses termos, desconsidera-se que, conforme Compagnon (2005, p.109), o texto
referencial corresponde apenas a uma ilusão ou um desejo de querer que assim seja, não
havendo uma realidade prévia ao discurso, pois a realidade se organiza na medida em que o
discurso se constrói. Dalmonte (2009, p. 43) afirma que

[à] narrativa jornalística compete a busca de uma representação clara daquilo que é
reportado, permitindo que o fato apresentado esteja o mais próximo possível do
real.[...] O relato jornalístico, quanto mais tenta se aproximar do real, simula este real,
na medida em que é capaz de oferecer as provas do real retratado. Além do testemunho
de quem relata, a fotografia permitiu avanços nesta seara.

Nesses termos, o alto nível de verossimilhança conseguido, somando-se ao uso da


fotografia, assevera a ideia de “verdade” por eles transmitida; no entanto, constituem-se como
mais um elemento na simulação do real, visto que a fotografia também se coaduna com todo o
discurso e ideologias que a matéria de jornal pretende defender. É possível, assim, entrever a
ideologia dos autores, o papel social que os jornais ocupavam em certo período, dentre outros
elementos que jogam no processo de circulação desses jornais.
O fato de os textos jornalísticos caracterizarem-se pelo imediatismo e velocidade
constrói um vínculo com a conjuntura na qual se insere, necessitando dela para o entendimento
do seu sentido. Partem do princípio de que o público leitor compartilha conhecimentos de
mundo relativos ao momento histórico em questão, que não precisam ser esclarecidos. Por outro
lado, ao se tomar as matérias jornalísticas como objeto de estudo, o recorte estabelecido pelo
pesquisador resultará em um ordenamento e interpretação do conhecimento produzido pelo
jornalismo. Conforme Meditsch (1997), este é um “conhecimento sobre” e as informações
71

trazidas por ele não são simplesmente transferidas, mas reconhecidas por seus receptores.
Assim,

[c]omo toda outra forma de conhecimento, aquela que é produzida pelo Jornalismo
será sempre condicionada histórica e culturalmente por seu contexto e subjetivamente
por aqueles que participam desta produção. Estará também condicionada pela maneira
particular como é produzida (MEDITSCH, 1997, p.10).

Portanto, ao se tomarem as matérias de jornal de tempos pretéritos, o pesquisador,


necessariamente interpreta-os, elaborando categorizações e ativando memórias discursivas. As
leituras realizadas por ele talvez fossem invisíveis aos leitores contemporâneos à notícia, pois
emergem na rede das informações levantadas pelo pesquisador, permitindo verificar as nuances
ideológicas da época. Meditsch esclarece que as

[i]númeras mediações condicionam o modo como o Jornalismo cria e processa a


informação sobre a realidade, desde o schemata profissional [...]– o modo particular
como os jornalistas vêem o mundo, passando pelos objetivos, a estrutura e a rotina
das organizações onde trabalham, as condições técnicas e econômicas para a
realização de suas tarefas e, finalmente, o jogo de poder e os conflitos de interesses
que estão inextrincavelmente implicados na circulação social desta informação
(MEDITSCH, 1997, p.9).

É igualmente de fundamental importância estabelecer relações dos textos com as


vinculações ideológicas de seus jornais, partindo-se do princípio que tais produções, na maior
parte das vezes, trazem a perspectiva política do jornal, que termina por limitar o que pode ser
dito. Devemos considerar que o texto jornalístico envolve também uma construção coletiva,
pois, conforme elucida Luca (2005, p.16),

[…] jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas
empreeendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos
coletivos, por agregarem pessoas em torno de idéias, crenças e valores que se pretende
difundir a partir da palavra escrita. Por isso Sirinelli os caracteriza como um ‘ponto
de encontro de itinerários individuais unidos em torno de um credo comum’. Daí a
importância de se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial,
estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha do título e para os
textos pragmáticos que dão conta de intenções e expectativas, além de fornecer pistas
a respeito da leitura de passado e de futuro compartilhada por seus propugnadores.
[...] Ou seja, à análise da materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos
nem sempre imediatos e necessariamente patentes nas páginas desses impressos.

Trata-se portanto de considerar o tipo de conhecimento produzido pelo jornalismo em


sua especificidade e vinculado aos seus condicionantes. Como não é possível aceder àquilo que
foi omitido e/ou excluído, o pesquisador deverá voltar o seu olhar para o que foi incluído e
evidenciado do fato relatado. É por esse caminho que se poderá compreender que
72

[u]m dos principais problemas do Jornalismo como modo de conhecimento é a falta


de transparência destes condicionantes. A notícia é apresentada ao público como
sendo a realidade e, mesmo que o público perceba que se trata apenas de uma versão
da realidade, dificilmente terá acesso aos critérios de decisão que orientaram a equipe
de jornalistas para construí-la, e muito menos ao que foi relegado e omitido por estes
critérios, profissionais ou não. (MEDITSCH, 1997, p.10)

O mito do jornalismo imparcial se desfaz ao considerarmos as implicações ideológicas


presentes nos processos de escolhas e rechaços dos textos que serão publicados. Ao tomarmos
as matérias jornalísticas como objeto de pesquisa, é de fundamental importância tratar tais
questões como elementos constitutivos do próprio tecido textual e que devem ser lidos como
informações que perpassam o conteúdo do texto, direcionando os seus sentidos.
A imprensa baiana, a partir da década de 1950, passa a dedicar parte de sua publicação
aos eventos de teatro que aconteciam no estado, cumpre observar, então, de que forma essa
crítica teatral se presentificava nos jornais baianos. Jussilene Santana (2010) salienta a diferença
expressa nos jornais que circulavam na Bahia entre 1956 e 1961, período crucial da instalação
da Escola de Teatro da UFBA. A pesquisadora chama a atenção para o fato de na época não
haver uma profissão de jornalista delimitada, tampouco formação específica. O resultado disso
são poucas iniciativas inovadoras de fazer constar o teatro no espaço do jornal.
Destaca o A Tarde, que não problematiza os novos elementos da cena teatral baiana
trazidos pelo advento da Escola de Teatro. O teatro, nele, ocupa um espaço limitado, resumindo-
se a notas, artigos e pequenos comentários opinativos. O Diário de Notícias, por sua vez,
apresenta-se como mais inventivo, trazendo novos cadernos e suplementos, com destaque para
a coluna Diário de Notícias-Teatro: “A DN-Teatro intencionava publicar apenas críticas, mas,
devido ao irregular número de estreias, imprime notas com agenda dos grupos e textos que
discutem a própria função da crítica”. O Jornal da Bahia já se caracteriza por enfatizar, em suas
notícias, os acontecimentos relativos ao teatro, trazendo reportagens e entrevistas. Santana
(2009) conclui que é necessário tomar os escritos de jornais como fontes, percebendo suas
vinculações ideológicas.

Os jornais não apenas discordam entre si no julgamento de fatos, projetos e pessoas,


como modificam “opiniões sobre eventos e artistas quando estes assumem posturas
que se afastam das linhas editoriais defendidas ou mesmo por questões pessoais
dificilmente diagnosticáveis” (SANTANA, 2009, p.21).

Certamente, o objetivo do editor, ao ler estes objetos como fontes para sua pesquisa, é
fazer falar todos os indícios apresentados por eles, a fim de construir uma rede de interpretações.
Para dar conta de incluir numa edição esse grande volume de informações referentes, o suporte
73

digital apresenta-se como principal meio para esta veiculação e o faz de maneira legível,
maleável e flexível.
Mediante as questões levantadas, acreditamos na necessidade de se elaborar uma
proposta de edição que efetivamente considere os aspectos característicos dos textos teatrais
censurados em sua multiplicidade e que não os resuma a uma versão única. Uma vez que a
pluralidade de formas o constitui em sua produção e circulação, é necessário estabelecer
estratégias para considerar tal característica no âmago do labor editorial. Cientes dessa
demanda, e com a finalidade de integrar os aspectos previamente elencados, tomamos o meio
digital na busca por conciliar de maneira mais coerente, os avanços das discussões teóricas com
a edição da dramaturgia de Jurema Penna.
Acreditamos que o uso das ferramentas digitais torna-se um caminho para a
apresentação da edição de forma não hierarquizada e relacional. Reunir na mesma tela uma
infinidade de informações acessíveis por meio de um clique do mouse favorece perceber, nas
ferramentas informáticas, importantes aliados para se alcançar os objetivos dos estudos da
Crítica Textual na contemporaneidade, quais sejam, dotar o leitor de um texto crítico mais
relacional, trazendo para este os elementos de cultura que o permeiam, além de suas diferentes
versões. Nesse intuito, passamos a refletir acerca das possibilidades e limites deste suporte,
assim como sobre as implicações da leitura na tela.
74

3 O USO DO MEIO DIGITAL NA PREPARAÇÃO DE EDIÇÕES DE TEXTOS


TEATRAIS

Em tempos em que o advento do suporte digital já traz visíveis mudanças nas práticas
de leitura e escrita na contemporaneidade, propomo-nos a refletir acerca do uso dos recursos
informáticos no âmbito dos estudos filológicos, durante a preparação de edições. Nesta seção,
apresentaremos algumas reflexões acerca desse tema, a fim de estabelecer referências para o
desenvolvimento de edições de textos teatrais.

3.1 GESTOS DE LEITURA E ESCRITA NA TELA: CONTINUIDADES E RUPTURAS

Uma breve observação do cotidiano no século XXI já mostra diversas modificações nas
práticas de leitura e de escrita, fazendo-nos refletir acerca desses gestos na contemporaneidade.
Com a popularização do personal computer (PC) na década de 1970, bem como o boom da
internet de banda larga nos últimos anos, o uso do meio digital como suporte de escrita e de
leitura tornou-se incontestável. A cada temporada “tinta e papel virtual” (CHARTIER, 2002c)
vão se aperfeiçoando com a produção de aparelhos cada vez menores e cada vez mais robustos,
tais como laptops, smartphones, tablets, e-book readers, ultrabooks, que potencializam o
acesso e o transporte de uma grande quantidade de dados sem a necessidade do uso de fios e
cabos.
É possível observar no discurso tanto de alguns teóricos, como de não especialistas, que
o texto em meio virtual inauguraria novas formas de transmissão da documentação escrita
nunca antes vistas, tais como o uso de material multimídia, exploração dos recursos visuais, uso
de hiperlinks. No entanto, uma análise mais criteriosa aponta para a necessidade de se pensar
as práticas de leitura e de escrita no ocidente em termos de rupturas e continuidades, inserindo
a “era digital” nesse continuum (CHARTIER, 2002c). Assim, seria possível identificar, na
forma inovadora do texto digital, diversas marcas que remetem a distintos momentos da história
da escrita.
Um dos primeiros diálogos que podem ser estabelecidos entre a leitura no suporte
digital, em relação aos seus antecessores, é o movimento corporal empreendido nesta atividade.
Conforme afirmam Cavallo e Chartier (1999, p.4), a leitura “não é uma operação intelectual
75

meramente abstrata; envolve o corpo, está circunscrita em um espaço e implica um


relacionamento entre uns e outros”. Ao manusear o volumen, o leitor tinha de desenrolar a
matéria para lê-lo, sustentando-o com as mãos frente a seu rosto. Isso gerava alguns
inconvenientes como o fato de os livros não poderem ser muito longos, uma vez que acarretaria
em um aumento do seu peso, tornando a leitura desconfortável (REYNOLDS; WILSON, 1986).
De modo semelhante, o texto em meio virtual e suas barras de rolagem guardam uma
identidade com o volumen na medida em que se desenrola na tela. Além disso, quando é muito
longo, sua leitura torna-se cansativa, tendendo a superficialidade e parcialidade14. Por outro
lado, o meio digital permite o rolar a tela nas direções vertical e horizontal ao mesmo tempo,
ampliar e diminuir o seu tamanho, além da tecnologia do touchscreen, que oferece o deslizar
suave na tela com o toque dos dedos, e que logo esmaece a lembrança do volumen, sugerida
pela barra de rolagem.
A mudança do volumen para o codex inaugurou a possibilidade de folhear o livro, de
utilizar a paginação para localizar informações de maneira rápida, além de liberar uma mão
para tomar notas durante a leitura, estabelecendo novos gestos, como detalha Paiva (2010, p.
22):

O pergaminho, a partir do século II a. C., prova que é mais adaptável do que o volumen
em resultado final de leitura. Mais resistente. Dobrado equivale a muitos rolos.
Modifica a leitura criando pausa. Afinal, o olho agora apreende uma ou duas páginas
por vez e não mais duas ou três colunas e seus contínuos logo abaixo como no volumen
de papiro. O ato de ler se dirige à autonomia da página vislumbrada inteira. Página
total, dando motivos para o folhear. A mão livre do leitor, não mais envolvido com a
necessidade de segurar os dois bastões do rolo de papiro, pode à vontade passear,
descansar, ir e voltar no texto assim como apreciar e interagir com a margem nova,
acolhedora do livro medieval, usada na evolução dos registros para anotações,
glossários e comentários.

A descrição do gesto de leitura inaugurado pela mudança do volumen para o codex, dá


conta de representá-lo como o avanço da tecnologia da escrita no período: sua materialidade é
mais flexível, adaptando-se a diversos contextos que o volumem não alcançava, ao mesmo
tempo em que era mais resistente que seu antecessor. A quantidade de informação que cabia
em um codex era bastante superior ao volumen, basta ver que um volumen de 7m equivaleria a
um códice de aproximadamente 70 folhas (REYNOLDS; WILSON, 1986). Por sua vez, o
suporte virtual amplia sobremaneira esta capacidade de armazenamento: se no início dos anos

14
Nielsen (2010) desenvolve uma pesquisa, na qual observa que 80% dos usuários de websites não se sentem
impelidos a usar a barra de rolagem, mantendo sua atenção no conteúdo que aparece antes da dobra, ou seja, antes
de se rolar a página. No momento em que utiliza a barra de rolagem, sua leitura se constitui em uma varredura em
busca da informação que lhe interesse.
76

2003 um computador pessoal possuía 20 GB de capacidade em seu disco rígido, nos anos 2010,
um computador portátil pode chegar a mais de 1 TB, uma capacidade aumentada em 50 vezes,
cabendo dentro de um computador um infindável número de livros.
Como herança do volumen, permaneceu a organização do texto em colunas no fólio;
como avanço, surgiu o espaço da margem da folha, lugar onde o leitor poderia acomodar suas
intervenções. Sem a necessidade de segurar os bastões do volumen, era possível escrever
durante o momento da leitura. É na margem onde o homem medieval letrado se apresenta, onde
dá a conhecer o registro de suas leituras, onde anota e explica de que maneira, como sujeito de
seu tempo, interpreta aqueles escritos temporalmente distantes.
No auge do desenvolvimento do livro religioso e laico, durante o medievo, diversos
profissionais estiveram envolvidos em cada estágio da produção do códice: “o responsável pelo
tratamento do pergaminho, o copista, o corretor, o ilustrador, o profissional de acabamento e
encadernação” (PAIVA, 2010, p. 32). A divisão de tarefas tornava cada vez mais específica a
atividade de cada um desses sujeitos e tinha por finalidade tornar a reprodução dos textos mais
célere e eficaz. No entanto, a demanda crescente por livros resultou em um desenvolvimento
das técnicas de impressão, dentre as quais a xilografia, até culminar na sistematização das
técnicas de impressão com caracteres móveis, identificadas na imprensa de Gutemberg:

Matriz, moldes, tipos metálicos, relevo, entintamento, rolamento, pressão: e eis a


impressão! A ideia revolucionária era ter as combinações à mão e poder desmembrar
o bloco da página para reutilizá-lo se necessário em outras partes – como no caso das
letras – , corrigindo com menor perda possível as falhas detectadas [...].
A técnica dos tipos móveis de Gutemberg valoriza, assim, duas perspectivas
essenciais para o futuro da produção editorial: o olhar prévio e compositivo do editor-
tipógrafo para a feição da obra em processo de criação-impressão; e a tiragem nunca
antes tão facilitada na história do livro. (PAIVA, 2010, p. 43)

Chartier (2002c) afirma que, com a mudança do volumen para o códex e deste para o
livro impresso houve uma alteração em termos de técnica de produção do livro. O
desenvolvimento da prensa de Gutemberg produz um marco na história da transmissão de
conhecimento tanto pela rapidez de produção, como na concepção da produção do livro: o
processo de composição dos tipos móveis de uma página tornava possível a visualização prévia
do que seria a página impressa. Dessa forma, o momento da composição era também um
momento de criação, visto que era papel do compositor fazer a transposição do manuscrito para
a lógica do impresso, dentro de suas potencialidades e limites do uso de cores, de entalhes para
formar figuras, do uso de letras capitulares, caracteres especiais, a disposição na página, dando
nova forma ao manuscrito.
77

No entanto, essa revolução da técnica não promove, inicialmente, mudanças radicais na


forma do livro. Ao contrário, para se consolidar como instrumento de transmissão de
conhecimento, os livros impressos necessitaram estabelecer uma relação de semelhança com o
livro manuscrito. Não foi ao acaso que o primeiro livro impresso foi a Bíblia de Gutemberg,
cuja composição baseava-se nos caracteres do códice cristão. Assim, nos primeiros momentos
de sua história, o impresso construía-se de maneira a aparentar semelhança com o livro
manuscrito. Os incunábulos, primeiros livros feitos com a tecnologia da prensa, eram
elaborados com base no modelo do códice, tanto na disposição do texto na página, no uso de
ilustrações e demais adornos, quanto no formato do tipo, que frequentemente imitava a letra
manuscrita. Esse exemplo é importante para ressaltar como a história do livro se dá entre
continuidades e rupturas.
Observamos, também nas publicações digitais mais recentes, o uso do recurso da
paginação, na qual se pode “folhear” uma revista ou jornal na tela (cf. figura 3). Assim como
os incunábulos atestam as continuidades dos manuscritos nos impressos, é possível destacar
esse recurso como uma tentativa de construir o livro digital seguindo os parâmetros e o modelo
do livro impresso.

Figura 3 – Virar a página de um texto digital

Fonte: LAFLOUFA, 2007

Nesses casos, o conteúdo permanece o mesmo da edição impressa, havendo somente


uma simples transposição de suporte, sem que se realize uma exploração das potencialidades
do suporte digital. Para ter acesso a um conteúdo dotado de recursos digitais, em geral, o usuário
deve acessar o blog e/ou aplicativo da publicação.
A técnica da imprensa, apesar de datada do século XVI, só se consolida no século XVIII,
momento em que, graças à Revolução Industrial, é possível ter livros produzidos em larga
78

escala, circulando amplamente na sociedade europeia. Vale ressaltar, ainda, que a consolidação
da oficina tipográfica implicou a constituição de um complexo de relações comerciais e laborais
envolvidos na produção do livro. A divisão do trabalho tornou as tarefas de publicador,
impressor e livreiro muito mais específicas, e promoveu um desenvolvimento tecnológico
significativo na forma de preparar e imprimir livros. Some-se a isso o acréscimo de sua
comercialização e consequente popularização, dando origem ao livro de massa (ARAÚJO,
2008). Estas publicações adquiriram diversas formatações em diferentes lugares, originando “a
venda a domicílio (chapbook ingleses, pliegos castelhanos, plecs catalães, Biblioteca bleu
francesa) que, em todo lugar, dá formas novas a textos já publicados para leitores letrados a fim
de que possam angariar um outro público mais amplo e mais humilde” (CHARTIER, 2002b
p.251).
Atualmente, essas publicações tomam outras formas. No Brasil, os livros de bolso, com
exceções, apresentam seu conteúdo alterado. A imutabilidade associada aos impressos e sua
decorrente qualidade, são, assim, submetidas a um plano secundário, em favor da produção de
edições modificadas e/ou reduzidas, com finalidades preponderantemente comerciais. Nesses
termos, a polarização existente entre os livros e os textos publicados em meio virtual, como
sendo os primeiros detentores de estabilidade e qualidade e os segundos vulneráveis a qualquer
sorte de mudança, se desconstrói, uma vez que os impressos também adquirem um caráter
múltiplo, assumindo novas formas, conforme os desígnios do mercado editorial.
Diferente da publicação dos impressos, a produção textual elaborada para o mundo
virtual diminuiu a separação entre a escrita pública e a privada: um upload de um arquivo em
um site ou a publicação de um post em um blog são suficientes para colocar um texto em
circulação. Ao mesmo tempo, essa publicação independe do reconhecimento e legitimação de
uma série de atores sociais que regulam o mercado editorial. O advento da internet, dessa forma,
produz alternativas de publicação em detrimento dos restritos âmbitos das editoras. Ademais,
um texto não precisa ser dado como acabado para ser divulgado em meio virtual, abrindo espaço
para a colaboração dos leitores no processo de sua construção. A flexibilidade do suporte
permite que uma série de alterações sejam feitas, sem ocasionar gastos financeiros que seriam
impeditivos, em se tratando de livros impressos.
Chartier (2002c) chama a atenção para os deslocamentos empreendidos pelo meio
digital em relação à ordem dos discursos, e destaca uma diferença basilar entre a cultura
impressa e a cultura digital:
79

Na cultura impressa, a percepção imediata associa um tipo de objeto, uma classe de


textos e usos particulares. A ordem dos discursos é assim estabelecida a partir da
materialidade própria de seus suportes: a carta, o jornal, a revista, o livro, o arquivo
etc. Isso não acontece mais no mundo digital onde todos os textos, sejam eles quais
forem, são entregues à leitura em um mesmo suporte (a tela do computador) e nas
mesmas formas (geralmente as que são decididas pelo leitor). É assim criada uma
contiguidade que não mais distingue os diferentes gêneros ou repertórios textuais que
se tornaram semelhantes em sua aparência e equivalentes em suas autoridades
(CHARTIER, 2002c, p.109)15.

Daí constituem-se algumas distinções no valor dado às produções no meio virtual,


tomando-se como parâmetro o impresso. Considerado fluido, aberto, facilmente modificável, o
texto digital é ainda associado a uma forma menos importante de publicação. O livro impresso
ocuparia o lugar central do mercado editorial, como materialidade privilegiada para a
transmissão de um saber, considerado canônico e legítimo. E para alcançar tal forma distinta,
foi submetido a um processo de avaliação que garantiria a sua qualidade. Essa visão, que ainda
está bastante presente no senso comum, desconsidera as questões discursivas relativas às
políticas editoriais, bem como ao uso do meio virtual como meio para a transmissão de
informações fidedignas e factíveis.
Acerca das questões atinentes ao capital econômico e simbólico mobilizados por esse
tipo de publicação, Bellei (2012) chama a atenção para a reprodução, no mundo virtual, de
formas de controle e legitimação das publicações constatadas no “mundo real”, uma vez que

esse vasto hipertexto conhecido como a internet não existe primariamente para
produzir e fazer circular a informação, mas para gerar e fazer circular capital
econômico e simbólico. Ou mais precisamente, a rede é o local do acúmulo eletrônico
do capital, através do uso adequado da “moeda” da informação e do conhecimento.
Toda informação relevante colocada nas malhas da rede é, para todos os efeitos
prático, dinheiro. Mais do que uma democracia do conhecimento, a rede é um
hipermercado de informação (BELLEI, 2012, p.12-13).

Como todo produto cultural, devemos compreender a internet como meio de circulação
de textos, inserido no modelo capitalista de produção de riquezas, sendo, com isso, atravessada
pelas questões financeiras e ideológicas. Assim, quem tem mais poder econômico para
disponibilizar conteúdo na internet, também terá mais possibilidades de fazê-los circular,
aumentando a capacidade de gerar riquezas. Não se nega a importância da apropriação que as
classes mais populares fazem dos suportes digitais como forma de empoderamento e
intervenção em suas realidades, no entanto, é preciso considerar que a ausência de letramento

15
Ainda nesse momento da discussão, Chartier destaca como um mal-estar causado pela cultura digital a
impossibilidade de hierarquizar os textos pelo seu suporte, prática bastante comum na cultura impressa, em que
um livro, somente por se considerar sua materialidade, é mais importante que um bilhete.
80

digital tem como consequência a repetição do abismo entre as classes sociais também no mundo
virtual.
Por sua vez, a velocidade da publicação interfere no contato dos leitores com os textos.
Ao publicar em meio digital, o autor tem um feedback mais rápido em comparação com o
impresso, o que pode gerar uma série de consequências sobre a elaboração de novas versões. O
ambiente virtual configura-se, dessa forma, como um espaço em que a escrita colaborativa se
constitui por excelência. O fenômeno é perceptível, por exemplo, na escrita de enciclopédia
virtual, como a Wikipedia, em que, mediante um registro, é possível modificar seus verbetes,
acrescentando-lhes dados, corrigindo equívocos ou referenciando as informações já registradas
com suas respectivas fontes.
A escrita colaborativa se manifesta também na produção de textos literários. Tomamos
o exemplo do aplicativo The silent history desenvolvido para iphone e ipad. A história aborda
a existência de uma geração de crianças que não possuem habilidades de criação ou de
compreensão linguística e é narrada do ponto de vista dos pais, professores, médicos e demais
sujeitos que convivem com elas. Como se trata de um aplicativo, o acesso se dá via download
na App Store, apesar de denominá-lo romance (“a novel”), o site do e-book não cita o nome do
autor, a referência é feita à empresa Ying Horowitz & Quinn LLC, montada pelos idealizados
e executores do aplicativo. Verificamos, assim, que neste caso, a informação de autoria
constitui-se em uma referência secundária, uma vez que o seu desenvolvimento demanda a
elaboração de um design, o uso de linguagens de programação, a produção e manipulação de
fotografias e de vídeos, a integração com um sistema de georrefenciamento, habilidades que
vão além da escrita do texto literário e que envolvem não só um escritor, mas que o incluem em
uma equipe de desenvolvimento de software.
O aplicativo oportuniza que os leitores compartilhem seus próprios textos referentes à
narrativa e possibilita uma experiência de interatividade, trazendo certos conteúdos que estarão
disponíveis conforme a geolocalização do leitor. A leitura deixa de ser uma experiência do
corpo estático, sentado e silencioso e passa a solicitar a movimentação do indivíduo pelo espaço
físico da cidade. A história não lhe é dada como um volume completo e terminado de um livro,
é preciso fazer o download dos capítulos, que devem ser explorados, na medida em que o leitor
percorre os caminhos do aplicativo. Ler na tela não significa apenas ler na frente do
computador, mas se utilizar dos gadgets que oferecem a mobilidade do suporte virtual. Nestes
termos, entendemos que “[a] revolução do texto eletrônico é, de fato, ao mesmo tempo, uma
revolução da técnica de produção dos textos, uma revolução do suporte escrito e uma revolução
das práticas de leitura” (CHARTIER, 2002c, p. 113).
81

A potencialidade do texto no meio digital é também determinada pela apropriação das


diferentes linguagens que este meio engendra. Assim, sua escrita não se limita a transpor a
lógica linear do impresso para a tela. É necessário que haja uma apropriação dos recursos da
esfera digital, tais como o hipertexto, que realiza a integração de uma série de elementos
externos a ele, e cuja estrutura de janelas possibilita justapor diferentes conteúdos em favor da
construção dos sentidos. Além disso, as questões de design são fundamentais durante essa
elaboração, pois, por meio dessas ferramentas, inserem-se outras linguagens como vídeos,
animações, fotografia, entre outras.
Interessa aqui mencionar que The silent history ganhou uma versão impressa, num
movimento oposto ao caminho normalmente percorrido pelos textos, que são primeiros
pensados para a publicação em papel, sendo posteriormente comercializados como e-book, sem
muitas inovações no formato. Não foi possível ter acesso a versão impressa, no entanto,
acreditamos que a diferença de linguagens entre o aplicativo e o livro tenha demandado uma
série de estratégias de tradução, tornando ainda mais evidente as diferenças que os dois suportes
podem acarretar em termos do processo de escritura e de leitura. Ademais, a transposição para
o meio impresso pode indicar o reconhecimento desse aplicativo como narrativa legítima e
capaz de figurar dentro dos moldes dos romances impressos, forma canônica de circulação dos
textos literários.
Acerca da questão da autoria no meio digital, Bellei (2012, p.24) esclarece que

O autor tradicional constitui um centro de poder que organiza linearmente o seu texto
em sentenças, parágrafos, capítulos, começo, meio e fim. São esses constrangimentos
impostos ao leitor, dos quais ele dificilmente consegue escapar. O autor de
hipertextos, por outro lado, produz o seu texto de acordo com o princípio da quebra
da linearidade porque trabalha com um paradigma de construção textual que substitui
sequências de sentido por saltos entre blocos de significado.

A figura do autor não existe fora do hipertexto, mas se constitui pelo estatuto que este
recebe no meio em que circula e a posição que ocupa na dinâmica literária. Nesses termos, a
noção de autoria no mundo virtual, em comparação com os impressos, configura-se como um
elemento secundário durante a leitura.
Se as obras literárias constituídas em função dos recursos do meio virtual conformarão
uma listagem de referências, como as impressas, trata-se de uma questão que só será respondida
com a intensificação da sua circulação. Não obstante, acreditamos que estas formas
oportunizam maneiras de experimentar as potencialidades do meio digital, e originam uma
relação assaz diversa das experiências de escrita e de leitura dos textos impressos. Permite-se,
82

portanto, a elaboração de novas perspectivas para a leitura e a escrita que abalam os pilares das
categorias dos textos literários impressos.
Citamos, ainda, o projeto O livro depois do livro (BIEGUELMAN, 2003), que se
desdobra em um livro impresso e um livro digital. O livro impresso possui uma diagramação
elaborada conforme a estética do código fonte, além de trazer os títulos de suas seções indicados
com termos próprios da linguagem de programação, a saber: Requisitos Mínimos; Bookmarks;
Instalação; Configuração etc. Por sua vez, o e-book tem as suas seções nomeadas conforme um
códice: bula, índice, colofon, além da numeração p -1, em referência ao Livro de Areia, de Jorge
Luis Borges.
Bielgueman (2003, p.11) se apropria dessas linguagens promovendo uma “hibridização
das mídias e uma cibridização dos espaços”. Assim, considera que as duas formas de mídias, a
impressa e a digital, não se antagonizam, mas estabelecem entre si uma relação de hibridização.
Muito do que se realiza no meio digital toma como base a lógica do impresso, da mesma forma,
o impresso tem incorporado uma série de elementos próprios do meio virtual, como a remissão
a sites da internet, o uso de mídias anexas, com conteúdo multimídia.
A pesquisadora chama a atenção para os deslocamentos em via de mão dupla que
ocorrem do papel à tela e da tela ao papel, e que promovem novas relações sociais e culturais,
uma vez que

[o] que está em jogo é a necessidade de engendrar não só repertórios capazes de


transcender o formato do códex e a cultura material da página, como as únicas
possibilidades para a exposição de idéias, mas também suas funções simbólicas, como
as de suporte de memória, e econômicas, como o valor material da autoria
(BEIGUELMAN, 2003, p.17).

Os avanços em relação ao texto em meio virtual não se restringem a uma adequação ao


suporte e à aquisição de novas formas digitais, mas alcançam a própria reflexão sobre as funções
e usos sociais desses escritos, os deslizamentos nos sentidos e as práticas culturais que eles dão
origem. Igualmente importante é discutir as interferências que a lógica dos impressos impõe
sobre o conceito de escrita, de publicação, de leitor e de autor.
Diante de um cenário em que a disseminação da leitura em meio digital se amplia e
ganha importância, muitos teóricos, sobretudo no início dos anos 1990, insistiram em afirmar
que o livro impresso estaria fadado ao desaparecimento e que a leitura estaria cada vez mais
ameaçada, frente a profusão das imagens. Muito se especulou, por exemplo, acerca do
desaparecimento dos estudos da gênese de obras literárias, uma vez que a escrita na era digital
dispensaria o uso de manuscritos. O que se constata, poucas décadas depois, é que cada vez
83

mais estas previsões apocalípticas vão perdendo força face uma corrente interpretativa que
pensa a era digital diretamente relacionada à história da escrita. Conforme afirma Biasi (2012,
p.25), “[l]e manuscrit, à l’âge numérique, existe sous une forme différente mais il existe bien,
au coeur du disque dur, et avec une intensité peut-être plus importante que dans le monde de
l’écriture sur papier”16.
Biasi destaca as novas tecnologias como uma possibilidade de realizar registros do
processo de escrita ainda mais sofisticados e completos que os rascunhos, decorrentes,
inclusive, da colaboração dos escritores e da conscientização sobre a importância dos estudos
de gênese. Góes (2013) exemplifica a constituição de manuscritos digitais como constructo
teórico a partir do registro em forma de vídeo do processo de legendagem do curta-metragem
Racoon & Crawfish. A pesquisadora se utiliza do software Camtasia que grava, em forma de
vídeo, todos os movimentos que se apresentam na tela do computador, durante a elaboração das
legendas, e sua marcação, no vídeo, registrando as hesitações, dúvidas, escolhas e preferências.
O registro da construção desse o manuscrito digital compõe o próprio dossiê genético.
Ademais, mesmo sem mecanismos tão sofisticados de registros do processo de escrita,
os escritores que criam direto no computador tendem a constituir uma série de arquivos que
guardam o processo de elaboração do texto. Há alguns ainda que o imprimem e trabalham sobre
essa materialidade, retornando ao manuscrito digital, submetendo-os a outra revisão.
Cerquiglini (1989, p.12) elucida outros aspectos da relação da informática com o
processo de escrita:

L’informatique est une technique de l’écriture. Elle remplit, d’une part, avec une
efficacité prodigieuse, lès fonctions universellement positives et progressistes de
l’écrit (déposer, classer, faire retrouver et répandre les savoirs). Elle consomme,
d’autre part, produit, stocke et diffuse immensément des inscriptions.17

As ferramentas para o tratamento dos textos, oferecidas pela informática, permitem


ainda o aperfeiçoamento da escrita como técnica, uma vez que aprimoram suas funções sociais,
das quais, brevemente, destacamos: arquivar as informações, suplantando as limitações da
memória e salvaguardando os registros da cultura de uma sociedade. No entanto, a produção, o
acúmulo e o gerenciamento das informações em suporte virtual, por mais que se constituam

16
“O manuscrito, na era digital, existe sob uma forma diferente, mas existe no coração do disco rígido, e com uma
intensidade que pode ser mais importante que no mundo da escrita sobre o papel.” (BIASI, 2012, p.25, tradução
nossa).
17
“A informática é uma técnica da escrita. Ela preencheu, de uma parte, com uma eficiência prodigiosa, as funções
ali universalmente positiva e progressistas da escrita (depositar, classificar, fazer retornar e difundir os saberes).
Por outro lado, ela consome, produz, armazena e divulga imensamente as inscrições. (CERQUIGLINI, 1989, p.12,
tradução nossa).
84

com base nas práticas bibliográficas, devem estabelecer modos de gerenciá-las a partir da lógica
do virtual, uma vez que as grandes massas textuais tendem a dificultar a leitura em tela.
Acerca da questão, Rodriguez de las Heras (1991) afirma que a linearidade do suporte
papel se faz inadequada às características do hipertexto, abrindo-se, assim, margem para a
exploração dos recursos gráficos como linguagem. No âmbito da escrita digital/hipertextual,

[e]scribir un texto sobre pantalla es como escribir sobre el agua. Una sensación de
inconsistencia, de inadecuación. Las líneas de texto pasan por la pantalla como las
leves ondulaciones en la superficie del mar, sin nada que las retenga, que las fije. Pero
la imagen puede ser la tinta en el hipertexto. Esta es la primera síntesis de estos
contrarios en la pantalla que son el texto y la imagen18 (RODRIGUEZ DE LAS
HERAS, 1991, p.7).

Rodriguez de las Heras se vale da comparação entre a tela do computador e a água,


evidenciando a fluidez desse suporte. Um texto linear transposto para o meio digital dá a
sensação de inadequação por parte de quem escreve, deixando evidente a ausência de um
efetivo diálogo com essa linguagem. Para o referido autor, o texto se adapta à tela na medida
em que os elementos gráficos são utilizados para mediar essa linguagem, e tais recursos não se
restringem somente a imagens, mas incluem animações e vídeos.
Diversos autores têm se apropriado das linguagens audiovisuais para desenvolver
escritas virtuais que podem ser denominadas cibertext, ciberliteraturas, e-poems, sound poems,
ciberdrama etc. Sob estes nomes reúnem-se a produções pensados para o meio digital,
traduções de obras impressas para o mundo virtual, além de aplicativos que produzem texto por
meio de programações no computador, gerando sequências aleatórias. Destaca-se, a título de
exemplo, o “cyberpoema” Amor Clarice, uma tradução para o meio virtual feita pelo escritor
português Rui Torres para o conto Amor, de Clarice Lispector. Utilizando-se de animação, o
escritor constrói seu poema, tomando os recursos do áudio e do vídeo, movimentando as letras
em uma profusão de movimentos; o leitor, além de ler, deve tocar para ouvir as frases recitadas.
A fragmentação das frases que aparecem aleatórias na tela promove, inicialmente,
estranhamento e faz significar pelo impacto que causa, impulsionando a múltiplas
interpretações. Interessa também destacar a recriação realizada do texto Amor, de Clarice
Lispector, no qual o trabalho de recorte, a reorganização, colagem e composição com a

18
“Escrever um texto sobre a tela é como escrever sobre a água. Uma sensação de inconsistência, de inadequação.
As linhas do texto passam pela tela como as leves ondulações na superfície do mar, sem nada que as detenha, que
as fixe. Mas a imagem pode ser a tinta no hipertexto. Esta é a primeira síntese desses opostos na tela que são o
texto e a imagem.” (DE LAS HERAS, 1991, p.7, tradução nossa).
85

animação e a trilha sonora constrói um texto completamente diferente, ao tempo em que


mantém, com o primeiro, uma identidade.
Na dinâmica das reconstruções trazidas pelo suporte digital. Pierre Lévy (1996), então,
propõe que o virtual intensifica a alternância de funções do leitor e do autor, nesses termos,

[...] a escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que participa da estruturação
do hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do sentido, já é um leitor.
Simetricamente, quem atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto da
reserva documental contribui para a redação, conclui momentaneamente uma escrita
interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor
inventa podem ser incorporados à estrutura mesma dos corpus [sic]. (LÉVY, 1996,
p.46)

É preciso, assim, ter em conta que a leitura no meio digital mobiliza estratégias diversas
daquelas utilizadas na leitura dos impressos. Ainda conforme Lévy (1996), o papel ativo da
leitura no ambiente digital torna-se ainda mais importante, porque o texto, fragmentário e
móvel, encontrará sua unidade dentro do movimento de escolhas, rechaços, e construções de
sentidos promovidos pelos cliques. Ao realizar essas seleções, o leitor constitui-se, também,
como um editor, na medida em que estabelece seus recortes sobre a massa de informações
disponíveis, decidindo ele mesmo os caminhos de sua leitura.
De acordo com Chartier (2002c, p.23),

A leitura diante da tela é geralmente descontínua, e busca, a partir de palavras-chave


ou rubricas temáticas, o fragmento textual do qual quer apoderar-se (um artigo em um
periódico, um capítulo em um livro, uma informação em um web site), sem que
necessariamente sejam percebidas a identidade e a coerência da totalidade textual que
contém esse elemento. Num certo sentido, no mundo digital todas as entidades
textuais são como bancos de dados que procuram fragmentos cuja leitura
absolutamente não supõe a compreensão ou percepção das obras em sua identidade
singular.

A leitura na tela constitui-se primordialmente como dinâmica, alinear, fragmentária,


realizada por um olhar que corre a tela em busca da informação que lhe interessa. Não há
compromisso com a integralidade da obra, nem com o conhecimento de sua totalidade,
tampouco com a deferência que se tem às obras publicadas, como portadoras de um
conhecimento “sagrado”. A rapidez dessa leitura pode, no entanto, dar lugar a uma sensação de
fadiga e desorientação, decorrentes da instabilidade do território de leitura, no qual, a qualquer
movimento do mouse, pode-se sair do local onde se estava, perdendo-se do texto lido.
Rodriguez de las Heras (1991) questiona ainda se as dificuldades inerentes à leitura em
meio virtual não seriam decorrentes da desabituação do leitor com a materialidade do suporte
86

virtual. Seja qual for o motivo, o leitor diante de um hipertexto, experimenta um espaço que já
não está limitado por um número de páginas resultantes da publicação, mas se caracteriza por
uma tela e sua cascata de janelas. Esta tela tem como fronteira uma dimensão espacial,
enquadrada por uma moldura, e uma dimensão temporal, que remete ao curto período de tempo
em que as informações permanecem sobre esse espaço e que podem, ou não, ser posteriormente
recuperadas. Com o meio digital, a leitura tornou-se também multimodal e interconectada, na
medida em que um único aparelho é capaz de dar suporte a diferentes gêneros textuais, ao
mesmo tempo em que conecta uma enorme diversidade de fontes, integrando diferentes
linguagens para se fazer comunicar.
A atitude do leitor no meio virtual apresenta-se ainda mais ativa ao se comparar com a
leitura em suporte papel, assim sendo,

Each decision will make some parts of the text more, and others less, accessible, and
you may never know the exact results of your choices; that is, exactly what you
missed. This is very different from the ambiguities of a linear text.19 (AASERTH,
1997, p.2).

Ainda que, por meio da experiência com textos impressos, seja possível percorrer
caminhos alineares, iniciando-se pelo final ou pulando capítulos etc., há uma ordem sucessiva
de capítulos, elaborada pelo autor e que permanece disponível ao leitor. Veja-se o caso de O
jogo da amarelinha, de Julio Cortázar (2006), que convida o leitor a realizar um percurso
alinear. O livro traz um “Tabuleiro de direção”, antes do início da narrativa, com uma sugestão
de rota que subverte a ordem numérica dos capítulos. O leitor pode, então, escolher ler o livro
de forma linear, seguir as direções postas no tabuleiro, ou ainda propor uma outra ordem de
leitura, mas qualquer que seja sua escolha não modificará os outros caminhos de leitura.
No cibertexto, só há uma possibilidade para o leitor: construir o seu próprio decurso de
leitura pelos infinitos caminhos propostos pelo hipertexto, com múltiplas escolhas que
terminam por serem incompatíveis umas com as outras. Cada escolha implica uma recusa de
certos trajetos, que não podem mais ser acessados, pois são produto das demandas de certo
leitor em um momento específico. Além do mais, não haverá um caminho linear ao qual uma
proposta de leitura possa se opor, uma vez que a descontinuidade é própria do hipertexto.
Dentro desse labirinto, o cibertexto desafia o leitor a percorrê-lo sob o risco de se perder
em seus infinitos caminhos:

19
“Cada decisão fará com que algumas partes do texto sejam mais acessíveis e outras menos, e você nunca pode
saber os resultados exatos de suas escolhas; ou seja, exatamente o que você perdeu. Isto é muito diferente das
ambiguidades de um texto linear.” (AASERTH, 1997, p.2, tradução nossa).
87

The cybertext puts its would-be reader at risk: the risk of rejection. The effort and
energy demanded by the cybertext of its reader raise the stakes of interpretation to
those of intervention. Trying to know a cybertext is an investment of personal
improvisation that can result in either intimacy or failure20. (AASERTH, 1997, p.2)

Apesar de acontecer também com os impressos, o fracasso na leitura no meio virtual


encontra-se condicionado, principalmente, pela energia gasta na tentativa de ordenar o grande
volume de informações, em pouco espaço de tempo, bem como de questões como luminosidade
da tela, que pode resultar desconfortável. Nesse sentido, os escritores que se dedicam a produzir
para o mundo virtual também buscam estratégias para tornar esta leitura menos fatigante e
contribuir com o seu êxito.
Nielsen21 (2006) apresenta os resultados da sua pesquisa sobre a leitura de websites.
Conforme o autor, esta caracteriza-se pela rapidez com que o usuário executa uma varredura
pela tela, buscando as palavras-chave que o interessam e detendo-se no ponto do texto que
chama sua atenção. Para chegar a essa conclusão, Nielsen e colaboradores, desenvolveram um
programa de computador denominado Eyetracking, cuja função é monitorar o movimento dos
olhos de usuários de sites de internet.
Os resultados da pesquisa apontam que os usuários apresentam três movimentos de
leitura: no primeiro, fazem uma leitura da parte superior da tela da esquerda para a direita até o
final do texto, num movimento horizontal; no segundo momento de leitura, os olhos se
direcionam para baixo, e mantém-se o movimento horizontal que percorre uma extensão menor
do que a anterior; o terceiro é um movimento vertical, no qual o usuário tratará de explorar o
restante da página sistematicamente. Em vez de formar uma leitura linear, o resultado se
assemelha a forma da letra F. A figura 4 apresenta registros das leituras de usuários, as regiões
em laranja indicam os locais onde o olhar se deteve mais tempo, em amarelo, um tempo
moderado e em roxo, um tempo reduzido.

20
O cibertexto coloca seu possível leitor em risco: o risco de rejeição. O esforço e a energia exigidos pelo cibertexto
amplia a participação do leitor da interpretação para a intervenção. Tentar conhecer um cibertexto é um
investimento de improvisação pessoal que pode resultar em uma intimidade com texto ou fracasso (AASERTH,
1997, p.2, tradução nossa).
21
Jakob Nielsen é Ph.D. em interação homem-máquina, pela Universidade Técnica da Dinamarca, em
Copenhague. Desde 1994, dedica-se a pensar a usabilidade de sites de internet. Por sua vez, define-se como
usabilidade a divisão dos estudos em tecnologia da informação que se dedica a analisar a interação homem-
máquina, constituindo um ambiente virtual mais palatável para seus usuários.
88

Figura 4 – Representação do padrão – F de leitura dos textos na web

Fonte: Nielsen, 2006.

O experimento confirma que o objetivo do leitor de websites é encontrar a informação


que lhe interessa o mais rápido possível, antes que decida alternar sua atenção para outra janela.
A partir desses estudos, Nielsen (1997) descreve algumas características do comportamento dos
leitores no meio virtual. São elas:
a) tendem a fazer uma leitura rápida da página tipo scanning22 em lugar de realizar
uma leitura detalhada;
b) preferem textos em linguagem informal;
c) preferem ler sites cuja fonte tenham credibilidade;
d) apontam como um critério de credibilidade o uso de links externos ao site, assim,
acreditam que estes são uma forma de corroborar o que está sendo exposto, tornando
a informação válida;
e) preferem textos curtos, objetivos e diretos, precedidos de pequenos resumos e/ou em
formato de pirâmide invertida, ou seja, que apresentem as conclusões no início;
f) preferem sites em hipertexto, pois estes permitem aprofundar a informação. O
número de hiperlinks não pode ser excessivo, pois o usuário pode terminar por
perder-se entre tanta informação;
g) preferem sites que coordenem imagem e texto: para eles a imagem deve ser
funcional e efetivamente ilustrar o conteúdo da tela, em caso contrário torna-se
distração e atrapalha a leitura.
Ainda que a pesquisa acima descrita tenha trazido como objeto de investigação a leitura
de websites, e não de textos literários apresentados no meio digital, acreditamos que seus

22
Conforme Paiva (2005) “scanning é uma estratégia de leitura que significa dar uma lida rápida, folhear um
livro, catálogo, manual etc., para achar algo específico como uma data, um nome, um número telefônico, um
conceito, uma definição.”
89

resultados são úteis ao editor no que tange a observar os princípios gerais que regem a leitura
no meio virtual. Um projeto editorial reúne um grande volume de informações que abarcam as
modificações textuais, a documentação paratextual, os comentários do editor, notas
explicativas, dentre outros elementos, que devem convidar o leitor a explorá-los. O desafio do
editor é, portanto, construir uma organização acessível para esse grande volume de
informações, a fim de favorecer a leitura do texto crítico.
Acerca dos diferentes textos presentes no meio digital, Paixão de Sousa (2009) propõe
uma conceituação, aludindo às questões atinentes à linguagem de programação:

Definiremos então o texto “digital” como o texto cujo processo de difusão envolve a
codificação de informação por linguagens artificiais, e que se constitui materialmente
como informação linguística codificada matematicamente e apresentada com a forma
de escrita humanamente legível. (PAIXÃO DE SOUSA, 2009, p.173)

Evidencia, dessa forma, as diferentes codificações de dados que subjazem à interface


desses objetos digitais, camada superficial e acessível, escrita em uma linguagem humana que
permite ao leitor mover-se. A aparência que o texto digital adquire na tela decorre, dessa forma,
dos inúmeros parâmetros de sua apresentação, bem como dos programas utilizados na
compilação desses parâmetros. Paixão de Sousa (2009, p. 116) toma a noção de página para
discorrer acerca do tema:

A “página”, naturalmente, é uma unidade espacial intrinsecamente ligada ao mundo


do papel. Entretanto, os processadores de texto atuais costumam exibir uma tela com
uma “página” na qual o usuário vai “escrever” o texto. Esses espaços que
reconhecemos como “páginas” na tela dos nossos processadores são, evidentemente,
representações visuais fabricadas por códigos; e os usuários permanecerão insensíveis
a este fato enquanto a representação funcionar sem problemas.

Para o leitor não especializado, a linguagem artificial utilizada para a codificação dos
dados é imperceptível, uma vez que se encontra disfarçada por uma interface elaborada em
função da similitude dos impressos. A página em branco dos editores reforça essa identidade
entre os impressos e os virtuais, que só é abalada quando um erro de codificação, tais como a
incompatibilidade entre versões de programas, torna visível o código-fonte (PAIXÃO DE
SOUSA, 2009).
A diversidade de textos digitais instaura, assim, diferentes níveis de ocultação da
linguagem de programação e para melhor compreendê-la, Paixão de Sousa (2009) propõe uma
tipologia dessas produções. O primeiro tipo são aqueles cuja a produção e a recepção se dão em
meio digital; deste grupo fazem parte os textos em formato HTML (HyperText Markup
90

Language), o XML (eXtensible Markup Language) e o XHTML (eXtensible HyperText Markup


Language) e tem como seu principal representante o hipertexto. Esta categoria traz para o leitor
uma relação menos opaca entre a interface e a linguagem de programação que a sustenta, tais
textos podem ser lidos por programas amplamente conhecidos, como os navegadores. Esta
transparência entre interface e código resulta na constituição de um sistema aberto, modificável
e atualizável.
O segundo tipo é construído com os usos de ferramentas digitais, mas sua circulação
será feita em suporte papel. Nesta categoria, Paixão e Souza (2009) relaciona os formatos .doc,
.odt, .pdf, dentre outros constituídos conforme a lógica do impresso. Pensando sobre as
consequências da escolha desses formatos, destaca a dependência deles em relação ao software
em que foram produzidos, bem como as prováveis perdas de dados decorrentes da atualização
dos softwares. Paixão de Sousa (2009) ainda esclarece sua posição sobre os “textos
parcialmente processados no meio digital”, no qual se incluem as reproduções digitais, feitas
por meio de fotografias digitais e scanners. A pesquisadora considera-os como simples
reproduções, uma vez que possuem existência material em outro suporte.
Lucía Megía (2012, p. 115), em acréscimo, associa o texto digital às produções orais,
destacando dois aspectos dessa interface:

por una parte, la interacción con el usuario, con el receptor; y por otra parte, la
conservación del mismo texto, compartiendo [...] la capacidad de difusión. De ahí
podamos hablar del texto digital como un modelo de una segunda textualidad en la
que deberíamos seguir indagando, un camino a seguir hacia el futuro que deja obsoleto
los modelos textuales actuales23.

O texto digital incorporaria aspectos dos planos oral e escrito, instaurando novas
textualidades. Assemelha-se ao oral por consentir a interação imediata com o seu leitor,
fazendo-o assumir caminhos inesperados. Por outro lado, sua capacidade de disseminação e de
conservação aproxima-o do escrito, estabelecendo uma continuidade no processo de elaboração
da cultura e da tecnologia da escrita.
A aplicação da noção de hipertexto, entendido como textos construídos com a mediação
da informática remete ao filósofo Theodor Holm Nelson (1987) que vislumbrava a
possibilidade de entender as noções de leitura e de escrita de forma não linear. Para Nelson, a
escrita constitui-se linear em decorrência da influência da forma do livro impresso sobre a

23
“por um lado, a interação com o usuário, com o receptor; e por outro lado, a conservação do mesmo texto,
compartilhando [...] a capacidade de difusão. Daí podemos falar do texto difital como um modelo de uma segunda
textualidade, a qual deveríamos seguir interrogando, um caminho a seguir para o futuro que deixa obsoleto os
modelos textuais atuais” (LUCÍA MEGÍA, 2012, p. 115)
91

elaboração, divulgação e circulação das ideias na Europa Ocidental, tornando-se necessário


rever essa afirmação, uma vez que a

sequentiality is not necessary. A structure of thought is not itself sequential. It is an


interwoven system of ideas (what I like to call a structangle). None of the ideas
necessarily comes first; and breaking up these ideas into a presentational sequence is
an arbitrary and complex process. It is often also a destructive process, since in taking
apart the whole system of connection to present it sequentially, we can scarcely avoid
breaking – that is, leaving out – some of the conections that are a part of the whole.24
(NELSON, 1987, p.14)

Nelson afirma que a ordenação linear das ideias tem como consequência a
desarticulação de certas conexões que também constroem sentidos, acarretando perdas no que
tange à integração dos conteúdos e à linearização dos discursos e dos textos, trazendo como
consequência a simplificação dos processos psicológicos que subjazem a eles. Os textos
lineares produzem também “leitores lineares”, pois constroem o hábito de organização das
informações em uma sequencialidade estática e deixam de engendrar novas possibilidades de
organização do conteúdo por parte dos leitores. Por fim, os textos lineares não consideram a
diversidade de leitores e seus referenciais culturais, resultando em uma exclusão daqueles que
não conseguem se adaptar a este formato, tais como, em casos extremos, os portadores de
necessidades especiais.
Esta proposta de hipertexto, consolidada pelas ferramentas da informática, permitiria,
assim, a integração de conteúdos e a suplantação das formas lineares para sua apresentação.
Nelson (1997) propõe defini-lo como escrita não sequencial. A simplicidade e amplitude do
conceito tem como consequência a inclusão de uma série de outros textos que não se utilizam
do suporte virtual para pensar o hipertexto, como os boxes nas enciclopédias, as manchetes em
uma revista.
Gennette (1982) localiza a hipertextualidade como um dos cinco tipos de
transtextualidade, relações mais ou menos evidentes que os textos estabelecem entre si, por
meio de mecanismos de transformação ou imitação. A hipertextualidade estaria assim definida
como

24
“sequencialidade não é necessária. A estrutura do pensamento não é por si sequencial. É um sistema interligado
de ideias (o que eu gosto de chamar um structangle). Nenhuma das ideias vem necessariamente em primeiro lugar;
e a quebra essas ideias em uma sequência de apresentação é um processo arbitrário e complexo. Muitas vezes, é
também um processo destrutivo, já que ao desmontar todo o sistema de conexão para apresentá-lo
sequencialmente, dificilmente podemos evitar a quebra de - ou seja, deixando de fora - algumas das conexões que
são uma parte do todo” (NELSON, 1987, p.14, tradução nossa).
92

toute relation unissant un text B (que j’appellarai hypertexte) à un texte antérieur A


(que j’appellerai, bien sûr hypotexte) sur lequel il greffe d’une manière que n’est pas
celle du commentaire25 (GENNETE, 1982, p.13).

Trata-se de um conceito, preponderantemente, aplicado às obras literárias. Assim, o


hipertexto não repete um hipotexto, mas estabelece com ele vínculos de semelhanças a partir
de movimentos de transformação e reconfiguração do texto que lhe serve como fonte. Notamos
que tal conceito mantém identidades com a ideia de hipertexto, no mundo virtual, uma vez que
este estabelece com o hipotexto uma ligação consecutiva, mas que não é linear. Ele alça o
hipotexto a outras possibilidades de significação, assim como faz o hiperlink ao remeter uma
página a outra, que lhe suplementa os significados.
Como destaca Nelson, o conceito de hipertextualidade, dessa forma, independe do
computador, visto que estes

are not intrinsically involved with the hypertext concept. But computers will be
involved with hypertext in every way, and in systems of every style. (Ideally, you the
reader shall be free to choose the next thing to look at – though repressive forms of
hypertext to turn up.)26 (NELSON, 1987, p.17).

Assim, nem todo texto apresentado por meio do computador assume a caraterística
hipertextual, sobretudo por se constituir a partir das formas impressas, como os formatos .pdf e
.doc, anteriormente citados. Disto decorre a necessidade de trazer as potencialidades
proporcionadas pelos suportes virtuais como linguagem para sua elaboração. Esses
procedimentos, assim realizados, teriam como consequência a deslinearização do texto e o
estabelecimento de conexões relacionais, não hierárquicas, para as quais o leitor propõe o seu
ordenamento.
Nesse intento, Nelson desenvolve o Projeto Xanadu, uma interface de apresentação de
hipertextos, em formato dinâmico, em que se pode apresentar textos em contraste. A figura 5
traz um exemplo da interface Xanadu; nela, o alvo da comparação é posto em posição central,
e, ao lado, são dispostos os que lhe serviram como fonte, os trechos coincidentes são marcados
em cores diferentes para cada uma das referências.

25
“qualquer relação que um texto B (que eu chamarei de hipertexto) para um texto anterior A (que chamarei, claro,
de hipotexto) em que se transplanta de uma forma que não é o comentário” (GENNETE, 1982, p.13, tradução
nossa).
26
“não estão intrinsecamente envolvidos com o conceito de hipertexto. Mas os computadores estarão envolvidos
com hipertexto em todos os sentidos, e em sistemas de todos os estilos. (Idelamente, você, o leitor terá a liberdade
de escolher a próxima coisa a ver – apesar da existência de formas repressivas de hipertexto.)” (NELSON, 1987,
p.17, tradução nossa).
93

Figura 5 – Xanadoc

Fonte: NELSON, [201-]

A proposta do Projeto Xanadu fundamenta-se na busca por um formato digital que


assuma efetivamente um caráter hipertextual, dinâmico e móvel, assim coerente com esse
suporte. Nelson ([201-]) pretende constituir, dessa maneira, um modelo alternativo à “página”
dos editores de texto, consolidada pelo formato portable document file (PDF). Para o referido
pesquisador, a supremacia do formato .pdf mostra a vitória da folha impressa sobre o suporte
virtual.
Floridi (1999), por sua vez, acrescenta alguns parâmetros para a caracterização do
hipertexto, visto que, para tornar-se efetivamente digital, uma publicação deve ser capaz de
explorar as potencialidades do meio virtual. Conforme Floridi (1999, p. 120-121), um texto é
um hipertexto se for formado por:

1. a discrete set of semantic units (nodes) which, in the best cases, offer a low
cognitive load, e.g. paragraphs or sections rather than pages or chapters. These units,
defined by Roland Barthes as lexia (for a discussion see Landow 1997), can be
a. alphanumeric documents (pure hypertext)
b. multimedia documents (hypermedia)
c. functional units (e.g. agents, services or applets; […]), in which case we have the
multifunctional hypertext or hypermedia.
2. a set of associations – links or hyperlinks embedded in nodes by means of special
formatted areas, known as source and destination anchors – connecting the nodes.
These are stable, active cross-references which allow the reader to move immediately
to other parts of a hypertext.
3. an interactive and dynamic interface. This enables the user to perceive – often just
visually, although acoustic and tactile hypertexts are also possible – and operate with
the anchors (e.g. through a click of the mouse or the touch of a key, by placing the
cursor on a highlighted element of the document or by dialling a sequence of numbers)
in order to consult one node from another […]. The interface may also provide, though
not necessarily, further navigation facilities, such as an a priori, spatial representation
of the whole network structure – when the system is closed and sufficiently limited to
94

be fully mappable (the sky-view system) – an a posteriori, chronological recording


system of the “history” of the links followed27.

Nesse sentido, o hipertexto seria constituído de documentos não exclusivamente


lineares, sua extensão não poderia ser associada somente à quantidade de linhas em um arquivo,
mas sim a partir do número de links que se pode pôr dentro de uma página. Essas unidades
semânticas poderiam ser entendidas tanto no que tange a textos verbais, quanto a outras
produções que se utilizassem de linguagens como imagens, vídeos etc., ou ainda que tenham
uma funcionalidade dentro do arquivo, tais como o uso de plug-ins ou aplicativos. Todo esse
material deve estar devidamente organizado em uma rede de relações lógicas, e, para tanto,
utilizam-se os hiperlinks, elementos que possibilitam percorrer os diversos caminhos do
hipertexto.
Efetivamente, as inter-relações entre diferentes partes de um texto ou entre diferentes
textos sempre existiram, basta verificar o amplo uso de artifícios como a nota de rodapé, os
índices remissivos, dentre outras formas referência. É nessa direção que Floridi (1999), a
exemplo de Nelson (1987), identifica como falacioso o argumento que afirma ser o hipertexto
um fenômeno exclusivo do meio digital, admitindo que sua apresentação nesse meio expande
as possibilidades de estabelecer conexões rápidas, além de ampliar a exploração de outras
mídias.
Lévy (1996, p.44) encontra na enciclopédia o próprio modelo de hipertextualidade,
uma vez que

[...] utiliza as ferramentas de orientação que são os dicionários, léxicos, índices,


thesaurus, atlas, quadros de sinais, sumários e remissões ao final dos artigos. No
entanto, o suporte digital apresenta uma diferença considerável em relação aos
hipertextos anteriores à informática: a pesquisa nos índices, o uso dos instrumentos

27
“1. um conjunto discreto de unidades semânticas (nós) que, nos melhores casos, têm uma baixa carga cognitiva,
como parágrafos ou secções, mais do que páginas ou capítulos. Estas unidades, definidas por Roland Barthes como
lexia […] podem ser: a) documentos alfanuméricos (hipertexto puro); b) documentos multimédia (hipermédia); c)
unidades funcionais (isto é, agentes, serviços ou applets […]), caso em que temos o hipertexto multifuncional ou
o hipermedia.
2. um conjunto de associações – links ou hiperlinks incorporados em nós por meio de áreas formatadas especiais,
conhecidas como âncoras de origem e de destino, conectando os nós. Estas são referências cruzadas, ativas e
estáveis que permitem ao leitor mover-se imediatamente para outras partes de um hipertexto.
3.uma interface dinâmica e interativa. Isto possibilita ao usuário perceber – muitas vezes apenas visualmente,
embora hipertextos acústicos e táteis também sejam possíveis – e operar com as âncoras (por exemplo, através de
um clique do mouse ou o toque de uma tecla, colocando o cursor sobre um elemento destacado do documento ou
através da discagem de uma sequência de números) com a finalidade de consultar um nó a partir de outro […]. A
interface também pode apresentar, embora não necessariamente, mais facilidades de navegação, como uma
representação espacial, a priori, de toda a estrutura da rede – quando o sistema é fechado e suficientemente limitado
para ser totalmente mapeávelb (o sistema sky-view) –, ou um sistema a posteriori do registo cronológico da história
dos links seguidos” (Floridi, 1999, p. 120-121, tradução nossa).
95

de orientação, de passagem de um nó a outro, fazem-se nele com grande rapidez, da


ordem de segundos.

Assevera-se mais uma vez que o caráter do hipertexto independe do meio virtual.
Admitimos, no entanto, que o referido meio radicaliza essa noção, sendo possível passar do
texto à fonte que lhe serviu de referência, bem como fazer o caminho reverso, em pouco
segundos. O hipertexto em meio virtual destaca-se, sobretudo, por conta da rapidez com que
conecta os diferentes materiais, armazenados em diferentes servidores, espalhados pelo mundo.
Nessa perspectiva, um dos modelos que caracterizam a própria arquitetura digital é a
perspectiva da biblioteca ou das enciclopédias. O principal intento de diversas formas de
organização e catalogação de dados da internet é constituir um índice para integrar do maior
número possível de referências e dados, em ordem alfabética, a partir dos quais se podem tecer
relações, interligando os diferentes conteúdos de uma obra.
É preciso, dessa forma, considerar como o suporte virtual retoma as funções da
biblioteca como espaço para a leitura, reunião, catalogação e salvaguarda da cultura escrita
ocidental, com algumas vantagens. Conforme Bellei (2012), as bibliotecas virtuais

1. abrigam uma boa parte, mas não a totalidade, do material impresso existente;
2. dispõem, em certos casos, de materiais digitalizados melhores do que os
equivalentes impressos;
3. e, finalmente, também em casos específicos, abrigam informações (periódicos,
livros) que só podem ser acessadas no meio eletrônico. (BELLEI, 2012, p.12)

A possibilidade de armazenar em um pequeno espaço físico uma significativa


quantidade de dados, certamente vai ao encontro do desejo alexandrino de reunir a produção
literária do ocidente. José Manuel Lucía Megías (2012) destaca que o principal propósito da
Biblioteca de Alexandria não consistia na simples acumulação de volumes, mas no intento de
realizar um trabalho crítico acerca da produção e circulação desses textos, para, então, difundi-
los. No entanto, os princípios orientadores das bibliotecas digitais têm se voltado, em sua
maioria, para projetos de digitalização. Como afirma Lucía Megías (2012, p. 102),

bibliotecas, archivos y museos, han hecho que la balanza de la inversión se haya


volcado en los proyectos a favor de los testimonios, dejando a un lado aquellos otros
que tienen como finalidad la difusión de los textos y la incorporación de herramientas
que permitan su estudio y análisis: las bibliotecas textuales28.

28
“[...] bibliotecas, arquivos e museus têm feito que a balança dos investimentos se voltassem aos projetos
favoráveis aos testemunhos, deixando de lado os outros que tem como finalidade a difusão dos textos e a
incorporação de ferramentas que permitam seu estudo e análise: as bibliotecas textuais” (LUCÍA MEGÍAS, 2012,
p. 102, tradução nossa).
96

Diante da tendência a digitalização dos documentos, Biasi (2012, p. 27) problematiza a


perenidade do suporte digital:

Quelle est la durée de vie d’un disque dur? Garantie fabricant 5 ans, maximum 10
ans… le plus mauvais papier acide fait avec de la pâte de bois de dernière qualité dure
au moins cent ans, un bon papier neutre dure mille ans. Dans les laboratoires
d’informatique où l’on manipule des données stratégiques très sensibles, ces données
sont recopiées par sécurité toutes les semaines sur de nouveaux disques, les données
fondamentales tous les jours. La même politique de copies de sauvegarde devra être
pratiquée par les bibliothèques patrimoniales qui auront en charge les données
numériques des créateurs: il faudra que ces disques durs soient recopiés indéfiniment
sur de nouveaux disques. C’est ce qui se passe déjà pour les grands corpus de données
conservées sous forme digitale.29

Se os textos manuscritos e impressos desafiavam as bibliotecas e os arquivos em termos


de disponibilização de espaço físico para salvaguarda dos documentos, a conservação de
arquivos digitais constitui um problema proporcional ao primeiro: como garantir que os dados
dos discos rígidos se mantenham ao longo do tempo? Que tecnologias podem ser empregadas
e/ou desenvolvidas para a resolução dessas questões? Os custos envolvidos na atualização das
tecnologias podem inviabilizar a conservação desses documentos? Se se pensar na evolução
das mídias digitais, percebemos que da década 1990 até a década de 2010, diversas formas de
guardar dados foram elaboradas: disquetes 3/4, disquetes ¼, CD-ROM, DVD-ROM, memória
flash, HDs portáteis e armazenamento na nuvem. Uma questão se apresenta: como se faz a
compatibilidade entre as tecnologias? Quantos dados seriam perdidos?
Muito se esperou que o meio virtual conseguisse dar conta de realizar o sonho da
preservação da totalidade de diversos corpora da cultura do ocidente, que os grandes avanços
tecnológicos dos últimos cinquenta anos seriam suficientes para a conservação desses
documentos em oposição ao que ocorreu na Antiguidade Clássica, Idade Média, Idade
Moderna, em que grandes tragédias e outros acontecimentos resultaram na perda de inúmeros
documentos que atestavam a memória de um tempo.
Invariavelmente, a conservação de dados em meio digital tem como regra fundamental
a constituição de uma série de cópias de segurança, em diferentes mídias. Somente assim seria
possível aumentar as chances de se preservar o material digital. Não obstante, não se pode

29
“Qual é o tempo de vida de um disco rígido? A garantia do fabricante é de 5 anos, no máximo 10 anos... O pior
papel ácido produzido com celulose de última qualidade dura ao menos cem anos, um bom papel neutro dura mil
anos. Em laboratórios de informática onde se lida com dados estratégicos muito sensíveis, estes dados são
recopiados por segurança semanalmente em novos discos, os dados fundamentais todos os dias. A mesma política
de backups deve ser praticada pelas bibliotecas patrimoniais que tem a seu cargo os dados digitais dos criadores,
é necessário que essas unidades sejam copiadas indefinidamente em novos discos. Isso já está acontecendo em
grande corpus de dados conservados em formato digital” (BIASI, 2012, p. 27, tradução nossa).
97

esquecer que memória e esquecimento estão presentes na dinâmica da preservação de


documentos e, sendo assim, o descarte e a perda de informações são parte do processo de
arquivamento.
Diante dessas questões, os pesquisadores, na área da Crítica Textual, mostram-se
cônscios desses novos gestos de leitura no mundo contemporâneo e buscam atualizar sua
metodologia de pesquisa, bem como suas práticas investigativas no que se refere à teoria e à
técnica de edição, a partir das novas ferramentas informáticas. O meio digital mostra-se
efetivamente útil à construção de edições e apresentação do texto crítico, visto que o suporte
papel resultava um fator limitador para construção de edições mais relacionais e menos lineares.
Nesse estudo, ofereceremos como objeto de leitura em meio digital, textos inicialmente
escritos para o teatro e conservados em suporte papel, na forma de datiloscrito. Trata-se de dar
a ler essa dramaturgia numa materialidade diferente daquela em que foi transmitida. No trânsito
do datiloscrito ao digital, é necessário romper a lógica do impresso e adentrar o hipertexto. A
utilização dos recursos do meio virtual torna-se imprescindível, a fim de apresentar a primeira
materialidade do texto, situar a obra como uma produção vinculada aos seus condicionamentos,
compreendidos aqui como o momento sócio-histórico de produção, que envolve também as
práticas de escrita e de leitura da dramaturgia baiana.
Conforme observa McKenzie (2005, p. 42) “cada sociedad reescribe su pasado, cada
lector reescribe sus textos y, si éstos gozan de una fortuna continuada, hasta cierto punto cada
impresor los rediseña”30. Nesse sentido, entendemos, pois, o editor como exegeta em sentido
lato, visto que se propõe a decifrar a materialidade das obras, em seu processo de construção,
considerando também sua produção e circulação. O resultado deste trabalho, a edição, é o
espaço em que é possível dar a conhecer as interpretações realizadas e que, por sua vez,
conduzirão o leitor na construção de seu percurso individual pela obra, utilizando-se, para isso,
do suporte virtual e das tantas possibilidades que ele engendra.

30
“cada sociedade reescreve seu passado, cada leitor reescreve seus textos e ,se estes gozam de uma fortuna
continuada, de certa maneira, cada impressor os redesenha” (MCKENZIE, 2005, p. 42, tradução nossa).
98

3.2 PROPOSTAS EDITORIAIS: EXPLORANDO A PLASTICIDADE DO SUPORTE

O uso de ferramentas informáticas para os estudos filológicos tem sido frequentemente


associado ao campo das Humanidades Digitais. Sua delimitação marca o lugar no qual os
conhecimentos informáticos tornam-se aliados das investigações na área das Ciências
Humanas. No ano de 2010, diversos profissionais da área das humanidades digitais, reunidos
em Paris para a THATCamp31, propuseram um manifesto no qual definem o campo, a saber:

[...] 2. For us, the digital humanities concern the totality of the social sciences and
humanities. The digital humanities are not tabula rasa. On the contrary, they rely on
all the paradigms, savoir-faire and knowledge specific to these disciplines, while
mobilizing the tools and unique perspectives enabled by digital technology.
3. The digital humanities designate a “transdiscipline”, embodying all the methods,
systems and heuristic perspectives linked to the digital within the fields of humanities
and the social sciences32 (MANIFESTO, 2010, p.1)

Torna-se fundamental para os pesquisadores das Humanidades Digitais construir


reflexões acerca do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) para a produção
de conhecimento nessa área. Não se trata de limitar a interdisciplinaridade à produção e à
utilização de programas para a pesquisa em Ciências Humanas, mas sim de considerar as
implicações do advento das TIC para as questões relativas ao convívio social, patrimônio e
herança cultural, produção, divulgação e circulação do conhecimento, dentre outras, uma vez
que tais tecnologias constituem meios pelos quais os homens interagem e constroem visões de
mundo.
Verificamos, como pilar da proposta, a construção de um saber assinalado por um
profundo do diálogo entre tradição e modernidade, a partir da combinação de metodologias
consolidadas de uma área, às inovações tecnológicas e renovações teóricas, explorando seus
limites e possibilidades. Citamos, como exemplo, o Thesaurus Linguae Graecae (TLG) (2009),
que tem como objetivo construir uma biblioteca digital da literatura grega que englobe os textos

31
THATCamp é o acrônimo de The Humanities and Technology Camp, um encontro aberto a pesquisadores da
área de humanidades e tecnologias, em que se trocam experiências e conhecimentos, utilizando a metodologia da
“disconferências” (unconference), ou seja, uma conferência informal, espontânea, colaborativa, não hierárquica e
interdisciplinar. Mais informações em http://thatcamp.org/about/.
32
“2. Para nós, as Humanidades Digitais referem-se à totalidade das Ciências Sociais e Humanidades. As
Humanidades Digitais não são tabula rasa. Pelo contrário, elas apoiam-se em todos os paradigmas, savoir-faire e
conhecimentos específicos dessas disciplinas, mobilizando as ferramentas e perspectivas permitidas pela
tecnologia digital. 3. As Humanidades Digitais designam uma “transdisciplinar”, que incorpora todos os métodos,
sistemas e perspectivas heurísticas relacionadas ao digital nos domínios das Humanidades e Ciências Sociais”.
(MANIFESTO, 2010, p.1, tradução nossa).
99

de Homero, passando pelas produções literárias do período da queda do Império Bizantino.


Para tanto, conjuga-se “the traditional methodologies of philological and literary study with the
most advanced features of information technology”33 (THESAURUS, 2009, p.1).
Por sua vez, o projeto Hypercites, desenvolvido na UCLA, congrega geografia,
cartografia, georreferenciamento e história para propor um ambiente virtual que permite a
superposição de mapas de diferentes épocas. O usuário pode, assim, explorar os espaços
geográficos a partir de diversas camadas históricas, dentro de um modelo hipermidiático e
interativo. Ao interconectar mapas de diferentes períodos e com diferentes tecnologias
cartográficas, esses estudos promovem a integração entre os métodos tradicionais de pesquisa
em Humanidades com os modernos métodos de Sistemas de Informação Geográfica.
A Filologia também se insere no campo das Humanidades Digitais. Um exemplo
declarado desses estudos é o trabalho desenvolvido pelo grupo de pesquisa Humanidades
Digitais, vinculado à USP, no que tange a área de Filologia e Linguística Computacional. Os
projetos vinculados a esse grupo resultaram no desenvolvimento de ferramentas informáticas
destinadas à construção de edições e ao reconhecimento óptico de caracteres, tomando como
objeto textos em português, datados dos séculos XIII ao XVI. Este trabalho resulta distinto do
uso que os filólogos, em geral, fazem dos computadores, visto que, em decorrência, de sua
formação, estes profissionais não costumam adentrar o universo das Ciências da Computação,
o que termina por estabelecer um distanciamento das inovações propostas pela Informática.
Maria Morrás, em seu ensaio de título sugestivo: Informática y crítica textual:
realidades y deseos (2003, p.225), problematiza a relação entre os filólogos e o computador,
caracterizando duas formas de se fazer filologia: a artesanal e a informática:

la filología «artesanal», en el que los editores realizan su trabajo utilizando el


ordenador sólo en los estadios últimos de preparación del texto, a modo de máquina
de escribir sofisticada; otro, el de la filología «informática», en el que los teóricos del
hipertexto proclaman el final de las ediciones críticas e incluso del libro impreso34.

No que tange à filologia artesanal, a nova máquina substitui a antiga, pois tem a oferecer
a vantagem de usar o papel apenas quando desejado, livrando-se dos erros de datilografia,
dificuldades na diagramação e editoração da página, resultando em um texto limpo e bem

33
“as metodologias tradicionais dos estudos literários e tecnológicos com os mais avançados recursos da tecnologia
da informação” (THESAURUS, 2009, p.1, tradução nossa).
34
“a filologia ‘artesanal’ na qual os editores realizam seu trabalho, utilizando o computador apenas nos últimos
momentos de preparação do texto, como uma máquina de escrever sofisticada; outro, na filologia ‘informática’,
na qual teóricos do hipertexto proclamam o final das edições críticas e inclusive do livro impresso” (MORRÁS,
2003, p.225, Tradução nossa).
100

organizado. Por estas razões, o editor crítico vislumbrou no computador a evolução de sua
máquina de escrever, em detrimento das demais formas de tratar dados. Lucía Megías (2012,
p.112) atribui essa opção à semelhança entre a folha e o teclado da máquina de datilografia e
seus correspondentes no computador, afirmando que

[c]on las páginas, los archivos, el diseño de las letras, con esta apariencia de seguir
haciendo el trabajo que era habitual en el mundo analógico nos sentimos cómodos en
el universo digital. Tan cómodos que continuamos llamando con nombre
inapropriados a determinadas realidades nuevas que la tecnología digital ha insertado
en nuestras vidas35.

A filologia informática se utiliza do computador e de diversas ferramentas digitais em


todo o processo de construção da edição, desde o uso de scanners e programas de tratamento
de imagem, na etapa da digitalização, incluindo o uso de programas específicos para a análise
das modificações ao texto, até a construção de uma interface digital para a apresentação da
edição. A Crítica Textual se beneficia dos avanços da informática para tornar o processo
editorial mais célere, poupando o editor crítico das etapas mecânicas da edição, podendo
concentrar os esforços para os momentos em que sua intervenção interpretativa é necessária. O
editor em vez de investir seu tempo somente no estabelecimento do texto crítico, poderá
dedicar-se à interpretação do aspecto material do suporte, bem como em seu conteúdo,
descortinando-o em seu processo de produção e transmissão.
Para além da oposição entre a filologia informática e a filologia artesanal, buscamos
entender a filologia informática em duas formas principais. A primeira diz respeito ao uso das
ferramentas digitais para a construção de toda a edição, que demanda o desenvolvimento de
programas específicos ou o uso de programas já existentes, customizados para se adequar à
realidade de determinado corpus. Em geral, esta categoria é bastante aplicada às obras que
possuem uma tradição complexa, composta por muitos testemunhos envolvidos na transmissão.
Além disso, está presente nas situações em que a análise linguística desempenha um papel
determinante para a construção da edição.
A segunda vertente da filologia informática que identificamos é aquela que vai se ocupar
da apresentação do texto em meio digital. Por mais que não sejam utilizados programas para a
sua produção e o uso da informática esteja restrito ao momento final do percurso editorial,
entendemos que essa vertente se afasta da concepção de filologia artesanal por se propor a

35
“[c]om as páginas, os arquivos, o desenho das letras, com essa aparência de seguir fazendo o trabalho que era
habitual no mundo analógico, nos sentimos cômodos no universo digital. Tão cômodos que continuamos
chamando com nome inapropriados determinadas realidades novas que a tecnologia digital inseriu em nossas
vidas” (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.112, tradução nossa).
101

elaborar formas eficientes de apresentar o texto crítico neste suporte. Se, por um lado, o uso de
programas de computador é o diferencial para a construção de edições pertinentes à filologia
informática; por outro, o desconhecimento das especificidades do meio digital dá origem a
edições que se resumem a uma mera transposição de suportes.
Jerome McGann (1995) parte do princípio de que a informática potencializa a circulação
da informação, o que gera uma mudança na maneira como se constrói e como circula o
conhecimento. Na sociedade contemporânea, os livros já não possuem a hegemonia do processo
de circulação, dividindo com os textos digitais o papel na transmissão das informações. À
medida que estas produções digitais vão assumindo lugares de destaque no campo dos estudos
literários e filológicos, tornam-se ferramentas de análise que permitem inaugurar novas formas
de compreender os mesmos objetos de pesquisa. Assim:

[w]hen we use books to study books, or hard copy texts to analyze other hard copy
texts, the scale of the tools seriously limits the possible results. In studying the
physical world, for example, it makes a great difference if the level of the analysis is
experiential (direct) or mathematical (abstract). In a similar way, electronic tools in
literary studies don't simply provide a new point of view on the materials, they lift
one's general level of attention to a higher order36.(MCGANN, 1995, p.2).

Defende-se, dessa forma, o suporte digital como ferramenta de experimentação, que


permite ao pesquisador levar seu objeto a suplantar a forma material do livro e, a partir de então,
dotar a sua análise de possibilidades que estariam engessadas pelo formato do impresso.
Ao problematizar as edições em suporte papel, McGann alude para a complexidade
presente na concepção das edições críticas, fac-similares e edições anotadas às quais denomina
“um conjunto de máquinas engenhosas”, variadas

[b]rilliantly conceived, these works are nonetheless infamously difficult to read and
use. Their problems arise because they deploy a book form to study another book
form. […] The critical edition's apparatus, for example, exists only because no single
book or manageable set of books can incorporate for analysis all of the relevant
documents. In standard critical editions, the primary materials come before the reader
in abbreviated and coded forms.37 (MCGANN, 1995, p.2).

36
“Quando usamos livros para estudar livros ou textos impressos para analisar outros textos impressos, a escala
das ferramentas limita seriamente os possíveis resultados. Ao estudar o mundo físico, por exemplo, faz uma grande
diferença se o nível da análise é experimental (direto) ou matemático (abstrato). De forma semelhante, as
ferramentas eletrônicas nos estudos literários não fornecem simplesmente um novo ponto de vista sobre os
materiais, elas elevam o nível geral de atenção para uma ordem superior” (MCGANN, 1995, p.2, tradução nossa).
37
“[b]rilhantemente concebidas, essas obras são, todavia, vergonhosamente difíceis de ler e usar. Seus problemas
surgem porque se utilizam de uma forma de livro para estudar outra forma de livro. [...] O aparato da edição crítica,
por exemplo, só existe porque nenhum livro ou conjunto gerenciável de livros pode incorporar para a análise de
todos os documentos relevantes.Em edições críticas padrão, os materiais pimários aparecem ao leitor em formas
abreviadas e codificadas” (MCGANN, 1995, p.2, tradução nossa).
102

A dificuldade decorrente da leitura das edições não seria originada pelo modo como esta
é concebida, mas se estabelece em decorrência da rigidez e linearidade do suporte em que é
dada a ler. As características do suporte papel tornam estática a dinamicidade própria das
modificações textuais decorrentes da produção e da transmissão dos textos.
Nesse sentido, McGann propõe a utilização do meio virtual para a proposição destas
edições, às quais denomina HyperEditing:

The electronic environment of hyperEditing frees one to a considerable extent from


these codex-based limits. Indeed, computerization for the first time releases the logical
categories of traditional critical editing to function at more optimal levels. But
"editing" text through wordprocessors is not, in the view being taken here,
"HyperEditing" because wordprocessing engines are structured only for expressive
purposes. […] To function in a "hyper" mode, an editing project must use
computerization as a means to secure freedom from the analytic limits of hardcopy
text.38 (MCGANN, 1995, p.3, tradução nossa).

Assim, vislumbramos no meio digital a possibilidade de emancipar o editor dos


condicionamentos impostos pelo livro impresso. No entanto, se esse uso se restringir a
softwares como o Word, não teremos a construção de textos para o meio virtual, uma vez que
a lógica dos impressos rege a configuração desses programas. É preciso, então, se apropriar dos
elementos do meio virtual e sua potencialidade de congregar documentos verbais, visuais,
fílmicos etc, por meio das hipermídias. Para a ilustrar a questão, traz, dentre outros exemplos,
o caso da edição da obra de William Blake, cuja dependência direta das ilustrações torna
impossível uma edição que não considere palavra e imagem em suas inter-relações. McGann,
assim, aponta para a necessidade de se construir não uma edição crítica, mas um arquivo crítico,
tomando-se como fundamento básico o exercício de inter-relacionar todos esses diversos
documentos.
McGann discute também a questão da dependência de um texto como centro do
processo editorial, indicando caminhos para a desconstrução dessa ideia. Nesse sentido,

[i]n a hypertext, each document (or part of a document) can therefore be connected to
every other document (or document part) in any way one chooses to define a
connection. […] From a scholarly editor's point of view, this structure means that
every text or even every portion of a text (i.e., every logical unit in the hypertext) has

38
“O ambiente eletrônico de hyperEditing liberta-nos, em grande medida, destes limites baseados no codex. Na
verdade, a informatização, pela primeira vez, libera as categorias lógicas de edição crítica tradicional para
funcionar em níveis mais otimizados. Mas a "edição" do texto por meio de processadores de texto não corresponde
ao que chamamos aqui "HyperEditing" porque as máquinas de processamento de texto são estruturadas apenas
para fins expressivos. [...] Para funcionar em um modo de "hiper", um projeto de edição deve usar a informatização
como um meio para garantir a liberdade dos limites analíticos do texto impresso” (MCGANN, 1995, p.3, tradução
nossa).
103

an absolute value within the structure as a whole unless its absolute character is
specifically modified. (MCGANN, 1995, p.14).39

A construção de múltiplas relações entre os diversos documentos do arquivo tem como


consequência o descentramento de uma versão escolhida como centro do processo editorial, ao
mesmo tempo em que o estabelecimento dessas relações potencializa cada testemunho como
documento individual, que tanto pode ser lido de forma isolada, quanto no conjunto de outros
escritos que lhe fazem referência.
Passamos a explorar as diversas possibilidades engendradas pelos diferentes níveis de
contato da interface entre a Crítica Textual e a Informática. Não se trata de uma investigação
acerca da linguagem de programação utilizada em cada uma das propostas. Buscamos, antes,
analisar como se dá a construção e a apresentação de edições de textos. Interessa-nos também
identificar que horizontes editoriais e noções de filologia nortearam a elaboração das edições
em questão, mapeando os traços de inovação presentes nelas.
Vale pontuar que, para relacionar a linguagem computacional às demandas filológicas,
faz-se necessário dominar uma linguagem de programação. Dada a complexidade presente
tanto na área da Filologia, como na Informática, torna-se tarefa difícil para um único
profissional dar conta de desenvolver essa articulação. Em geral, para atingir tal fim, os grupos
de pesquisa buscam associar profissionais de ambas as áreas para o desenvolvimento de edições
eletrônicas, seja por meio de convite a pesquisadores de áreas diferentes, seja estabelecendo
convênios interdepartamentais e interinstitucionais.
No caso do desenvolvimento da ferramenta E-Dictor (PAIXÃO DE SOUSA; KEPLER;
FARIA, 2009), aplicativo informático que auxilia a edição eletrônica de textos antigos e análise
linguística, o grupo de pesquisa contava com uma equipe multidisciplinar que envolvia
profissionais da área de Filologia, Linguística e Informática. O propósito do desenvolvimento
do E-Dictor foi decorrente de necessidades identificadas durante a construção de edições e
estudos linguísticos para o Corpus Anotado do Português Tycho Brahe, bem como na aplicação
do referido aplicativo às atividades de edição de textos realizadas pelo PROHPOR-UFBA.
O E-Dictor baseia-se na linguagem XML (eXtensible Markup Language) e traz como
vantagem a possibilidade de fazer diversas marcações em uma determinada palavra,
sobrepondo-as e gerando diferentes “versões” que podem ser visualizadas alternadamente. Uma

39
“[e]m um hipertexto, cada documento (ou parte de um documento), portanto, pode ser conectado a qualquer
outro documento (ou documento de peça) de qualquer forma o que indivíduo escolhe para definir uma conexão.
[...] Do ponto de vista de um editor acadêmico, esta estrutura significa que cada texto ou mesmo cada porção de
um texto (ou seja, cada unidade lógica no hipertexto) tem um valor absoluto dentro da estrutura como um todo, a
menos que seu caráter absoluto seja especificamente modificado”. (MCGANN, 1995, p.3, tradução nossa).
104

das desvantagens em se empregar o XML decorre de sua interface gráfica pouco amigável tanto
para quem utiliza o software, quanto para quem lê o seu produto. O aporte do E-Dictor surge,
também, no sentido de se propor um formato mais amigável, que não exija dos filólogos um
profundo conhecimento da referida linguagem de programação, de maneira a torná-lo acessível
a um maior número de pesquisadores (cf. figura 6). O uso dessa ferramenta pretende constituir
um processo de edição eletrônica que seja mais confiável, pautado em critérios claros de
funcionamento. De acordo com Paixão de Sousa, Kepler e Faria,

[a] especificação da estrutura XML para codificação no E-Dictor vai de encontro a


dois objetivos principais: (i) ser o mais neutra possível (em relação ao conteúdo
textual codificado) e (ii) atender a necessidades linguísticas e filológicas, em outras
palavras, é preciso que a preparação de conteúdo para análises lingüísticas seja
simples e eficiente, sem que se percam informações relevantes para estudos
filológicos (PAIXÃO DE SOUSA; KEPLER; FARIA, 2009, p. 9).

Figura 6 – Interface gráfica do E-Dictor

Fonte: PAIXÃO DE SOUSA; KEPLER; FARIA, 2009, p.8

Conforme descrição de Paixão de Sousa, Kepler e Faria (2009, p.8), o programa dispõe
de: a) Menu da aplicação: que dá acesso às funcionalidades do programa; b) Barra de
ferramentas: onde estão localizadas as opções de codificação e edição; c) Área do texto,
dividida em abas, a saber: Reprodução, Grafia e Morfologia; d) Barra de navegação entre as
páginas do documento.
105

O programa apresenta uma considerável flexibilidade, o que possibilita sua utilização


nos mais diversos contextos. No menu "Preferências", o editor poderá customizar sua edição
conforme objetivos e interesses. Na aba Edição de Palavras, é possível configurar parâmetros
de correção gráfica e grafemática, controlando, inclusive, o nível de intervenção. Na aba
Elementos do texto, pode-se especificar os elementos da estrutura, tornando possível manipular
de forma mais eficaz o arquivo XML, a partir do XSLT e do HTML, melhorando o aspecto
final do seu layout. Na aba Morfologia, o editor pode vincular (ou corrigir) as classes de
palavras associadas a um certo item lexical. Em Metadados, configuram-se as informações
acerca do texto-fonte e sobre a construção da edição.
O referido software mostra-se muito útil para um corpus que se destine ao estudo da
língua e da história, bem como para obras de tradição singular. No entanto, por não possuir uma
ferramenta para colação, o E-Dictor torna-se menos favorável ao uso de testemunhos de
tradição plural, em que se faz necessário o confronto entre os diferentes testemunhos. No
entanto, as diretrizes utilizadas para assinalar as intervenções realizadas pelo editor podem
contribuir para o desenvolvimento de um aplicativo apropriado aos textos de tradição plural, de
maneira que seja possível comparar os testemunhos e marcar em cada um deles as diferenças
encontradas, em vez de se escolher apenas um testemunho.
As obras de Shakespeare também se tornaram objetos de edição em meio eletrônico. A
Universidade de Victoria, do Canadá, mantém o projeto Internet Shakespeare Editions (2013),
que disponibiliza edições da obra de Shakespeare desenvolvidas por pesquisadores de diversos
centros universitários. Nestas, apresenta-se uma transcrição do fólio, dentro das possibilidades
do suporte eletrônico, conservando-se a ortografia e normalizando os espaços entre as palavras.
Disponibilizam-se os fac-símiles, bem como quatro ferramentas para a análise da obra: a) lista
de personagens, que mostra todas as falas de um único personagem; b) aparição dos
personagens, que traz o número de vezes que um personagem fala; c) exibição de estatísticas
sobre o texto; d) exibição do número de linhas ditas por cada personagem.
A Modern Lenguage Association (MLA), buscando tornar acessível a diversidade
textual presente nas edições variorum de Shakespeare, ocupou-se da tarefa de trazer tais obras
para o suporte digital. Inicialmente publicadas em formato impresso, no início do século vinte,
se propunham a apresentar o script da peça acompanhado de comentários, opiniões e críticas,
dispostos à sua margem. Estas notas são importantes para compreender o próprio texto e, ao
mesmo tempo, dar a conhecer a sua recepção, constituindo-se como parte da história cultural.
No entanto, a disposição que ocupavam na página do livro impresso dificultava sua leitura.
106

Neste intuito, a MLA constituiu o Committee on the New Variorum Edition of


Shakespeare (Nova Iorque) a fim de propor o desenvolvimento de edições variorum em meio
digital. Para tanto,

[f]or the time being, at least, the obviously preferable alternative to replacing the
Variorum as we know it by an unlimited electronic archive is to combine all its past
efficiency in selecting and condensing material with the new flexibility and reach of
electronic retrieval. [...] Such flexibility will help situate the Variorum as a locus of
original research, and make it less a museum of past critical artifacts40 (MODERN,
2003, p. 2).

A proposta do grupo é apresentar uma edição diplomática das edições Variorum de


Shakespeare, no formato digital. Não se trata de fornecer textos críticos que substituam a edição
variorum impressa, visto que cada edição tem seu intuito e sua especificidade. Para a construção
da edição variorum, realizou-se uma edição diplomática da variorum impressa, mantendo-se as
características da paginação, pois o grupo objetiva preservar a estrutura do original, pondo em
evidência os comentários e colações feitos pelos intelectuais da época. O desafio reside em
dispor toda essa informação de maneira relacional, eficiente, econômica e conveniente.
Uma grande quantidade de material editado foi gerada a partir do trabalho desenvolvido
pela MLA, mas era ainda necessário estabelecer a forma de apresentá-lo de maneira legível,
interativa e inovadora, em uma edição eletrônica. A MLA propôs um concurso para que
estudantes desenvolvessem interfaces que permitissem a leitura das edições variorum, em
formato eletrônico, especificamente da peça Comedy of Errors. Para tanto, disponibilizou os
arquivos dotados de marcação em XML da referida peça, a fim de que, a partir desses, fossem
construídas as interfaces.
Duas propostas venceram o concurso, a primeira, denominada Bill-Crit-O-Matic (2012)
inverte a ordem de apresentação das edições e propõe, como ponto de partida da leitura, os
comentários de diversos intelectuais e leitores da obra de Shakespeare. A edição disponibiliza
um mecanismo de busca no qual se pode pesquisar, procurando-se o nome do comentador.
Oferece, também, uma lista com o nome dos críticos de Shakespeare, que permite mostrar os
diálogos entre eles; e outra com o nome dos personagens e a bibliografia. Somente por meio de
um desses caminhos é que se chega à leitura da peça. Há também a possibilidade de visualizar
os comentários dos eruditos na própria edição. Do menu Bibliography, se tem acesso à lista de

40
“Por enquanto, pelo menos, a alternativa obviamente preferível para substituir a Variorum como nós o
conhecemos por um arquivo eletrônico ilimitado é combinar toda a sua eficiência na seleção e condensação
material com a nova flexibilidade e alcance de recuperação eletrônica. [...] Essa flexibilidade ajudará a situar a
Variorum como um locus de pesquisa original e torná-la menos um museu de artefatos críticos passados”
(MODERN, 2003, p. 2, tradução nossa).
107

referências de obras críticas citadas na edição, com link para uma página com os seus
comentários. Há também a opção de se vincular a grupos de discussão que tratam de temas
relativos ao texto apresentado na edição.
A figura 7 ilustra a estrutura da edição:

Figura 7 – Interface da edição Bill-Crit-O-Matic

Fonte: BILL, 2012

A segunda proposta, vencedora do concurso da MLA, Comedy of Errors (RESIDE, D.;


LORD, 2012) constitui-se em uma interface mais linear, cujo ponto de partida é o texto de
Shakespeare. Os programadores proporcionam a experiência de um lay-out leve, utilizando-se
do HTML, JavaScript e Cascading Style Sheets (CSS) (Cf. figura 8).

Figura 8 – Interface da edição Comedy of Errors

Fonte: RESIDE; LORD, 2012


108

Conforme ilustrado na figura 8, a interface segmenta a tela em quatro espaços


funcionais. À esquerda, apresenta-se o texto da peça, num formato semelhante a um livro, à
direita, assinalado em amarelo, está o fac-símile da página impressa; nesta há cinco abas onde
também se pode visualizar, mapas, fotografias, além de arquivos de áudio, de vídeo. Abaixo,
encontram-se, marcados em verde, as notas decorrentes da edição variorum impressa e ao, lado,
um espaço para anotações, vinculado aos serviços do Google Drive.
O Proyecto Cervantes, por sua vez, reuniu pesquisadores da Universidad de Castilla-La
Mancha, da Biblioteca Nacional de Madrid, do Proyecto Cervantes da Texas A&M University
e do Center for Study of Digital Libraries a fim de construir a Edição Variorum Electrónica del
‘Quijote’ (EVE-DQ).
Furuta, Shueh-Cheng e Urbina (2001, p. 72) definem a EVE-DQ como

an electronic edition containing all editions of a text, annotation of the variances


present among the editions to allow for their comparison, derivative editions,
generated as the result of scholarly analysis of the variances and bearing supporting
reasoning, and scholarly commentary by expert editors that illumines elements of the
texts and of the comparisons among editions41

Cientes de que as edições impressas não seriam suficientes para representar a riqueza
da tradição textual do Quixote, os pesquisadores buscaram nos recursos do meio digital
subsídios para a construção de edições. O trabalho resultou em três categorias de edição:

1. Edición facsímile digital (1605-1637) de los 32 ejemplares de las 9 ediciones del Quijote
seleccionadas, cedidas principalmente por la Biblioteca Nacional, para su digitalización e
incorporación a la base de datos gráfica del proyecto.
2. Edición diplomática/documental en dos partes: a) edición diplomática electrónica de los
textos base de las princeps de 1605 y 1615 transcritos paleográficamente a partir de dos
ejemplares de la Biblioteca Nacional, a su vez cotejados electrónicamente con múltiples
ejemplares de otras bibliotecas. Estos ejemplares pueden ser visualizados como textos,
imágenes o texto e imagen sincronizados; y b) edición de un texto documental basado en el
cotejo de los textos base de las dos princeps con el resto de las ediciones posteriores,
publicadas entre 1605 a 1637.
3. Edición variorum electrónica del Quijote elaborada a partir de los textos y cotejos de las
anteriores ediciones, con clasificación y anotación de variantes, incorporación de enmiendas,
anotaciones textuales, enlaces hipertextuales a las ediciones facsímiles y documentales, e
interfaz interactivo para la composición de ediciones virtuales.42(URBINA et. al., 2005, p.
224-225).

41
“uma edição eletrônica que contém todas as edições existentes do texto, anotações das variantes, presentes entre
as edições para permitir sua comparação, edições derivadas, geradas como o resultado de análises acadêmicas de
variantes e fornecendo argumentos de apoio, além de comentários acadêmicos feitos por editores especialistas que
esclarecem elementos do texto e da comparação entre as edições” (FURUTA; SHUEH-CHENG; URBINA, 2001,
p. 72, tradução nossa).
42
“1. Edição facsímile digital (1605-1637) dos 32 exemplares das 9 edições do Quixote selecionadas, cedidas
principalmente pela Biblioteca Nacional [de Madrid], para sua digitalização e incorporação à base de dados gráfica
do projeto. 2. Edição diplomática/documental em duas partes: a) Edição diplomática eletrônica dos textos de base
109

EVE-DQ é constituído por um sistema de programas e módulos, denominado Editor de


Documentos com Múltiplas Variantes (MVED), responsável por cotejar as variantes,
sincronizar texto e imagens, visualizar os documentos, categorizar e anotar as variantes, realizar
correções. Para que os leitores pudessem utilizar a edição, foi construído o Módulo de Leitura
e Edição Virtual (VERI), a interface interativa que o usuário utiliza para acessar a edição.
Através da interface, é possível navegar pelas imagens e textos eletrônicos, visualiza-los em
diferentes modos, copiá-los ou imprimi-los e, ainda, compor edições virtuais, conforme a
vontade do leitor. Notamos aí um sofisticado trabalho de engenharia de software, no qual
especialistas em computação constroem e customizam um programa para atender aos objetivos
específicos de uma edição no suporte digital. Por meio das opções dispostas no menu lateral,
conforme ilustra a figura 9, o leitor pode escolher acessar o texto do editor ou fazer a sua própria
edição, na medida em que escolhe os testemunhos que deseja comparar, bem como as variantes
que deseja visualizar no texto crítico.

Figura 9 – Interface da Edición electrónica variorum del Quijote

Fonte: URBINA, 2008

das princeps de 1605 e 1615, transcritos paleograficamente a partir de dois exemplares da Biblioteca Nacional,
por sua vez cotejados eletronicamente com múltiplos exemplares de outras bibliotecas. Estes exemplares podem
ser visualizados como textos, imagens ou textos e imagens sincronizados; e b) edição de um texto documental
baseado no cotejo dos textos base das duas edições princeps com as demais edições publicadas de 1605 a 1637. 3.
Edição variorum eletrônica do Quixote elaborada a partir dos textos e cotejos das edições anteriores, com
classificação e anotação de variantes, incorporação de emendas, anotações textuais, links hipertextuais às edições
facsímiles e documentais, e interface interativa para a composição de edições virtuais.” (URBINA et. al., 2005, p.
224-225, tradução nossa).
110

Nestes termos, tal edição também se constitui como uma fonte de pesquisa, na qual é
possível, por exemplo, estudar um determinado tipo de variantes, ou buscar nas anotações do
editor elementos que permitam dimensionar a Espanha de D. Quixote, por meio das notas
geográficas, históricas e culturais. Mais do que isso, proporciona ao leitor diferentes caminhos
para a construção de sua leitura, possibilitando, por meio do menu “Editor”, assumir o lugar
editor, ou seguir a leitura realizada por Eduardo Urbina.
Ao contrário dos trabalhos com Cervantes e Shakespeare, em que se pode identificar um
autor e uma obra pensados para a língua escrita e cuja finalidade era a publicação, os estudos
desenvolvidos com os apócrifos de Homero, dentro das perspectivas contemporâneas de texto,
autoria e leitura, enfrentam uma dificuldade distinta. Nesse conjunto textual, algumas questões
se impõem como determinantes para o trabalho editor. Dentre elas, destaca-se o fato de o texto
de Homero ser primeiramente feito para a oralidade; nestes termos não haveria jamais duas
oralizações idênticas dos seus poemas. Além disso, foram pensados para a performance e não
para a leitura, eles construíam-se na movência da oralidade; e, só, posteriormente, com o
desenvolvimento da escrita, tomaram os contornos desse plano, adquirindo um formato mais
estável (DUÉ; EBBOTT, 2009). Não se pode, portanto, falar de autor ou de original nessa
situação, ou de intenção autoral e variantes, uma vez que não há um original ou invariante que
lhe sirva de parâmetro de correção. Dessa forma,

Instead of “mistakes” to be corrected or choices that must be weighed and evaluated,


as an editor would do in the case of a text composed in writing, we assert that these
variations are testaments to the system of language that underlies the composition-in-
performance of the oral tradition. Textual criticism as practiced is predicated on
selection and “correction” as it creates the fiction of a singular text. The digital
criticism we are proposing for the Homer Multitext maintains the integrity of each
witness to allow for continual and dynamic comparison, better reflecting the
multiplicity of the textual record and the oral tradition in which these epics were
created43 (DUÉ; EBBOTT, 2009, p.2).

Uma das premissas da Crítica Textual afirma que cada situação textual demandará do
crítico um esforço interpretativo a fim de encontrar a metodologia mais adequada para o
conjunto documental de que dispõe. A situação textual dos épicos de Homero, assim, desafia o
aparato teórico-metodológico da Crítica Textual, uma vez que põe em tela um contexto pouco

43
“Em vez de ‘erros’ a serem corrigidos ou escolhas que devem ser pesadas e avaliadas, como um editor faria no
caso de um texto composto para o registro escrito, afirmamos que estas variações são testamentos para o sistema
de linguagem que subjaz a composição na performance da tradição oral. A Crítica textual, tal como praticada,
toma por base a seleção e a ‘correção’, pois cria a ficção de um texto singular. A crítica digital que estamos
propondo para o Multitexto Homero mantém a integridade de cada testemunho para permitir a comparação
contínua e dinâmica, refletindo melhor a multiplicidade do registro textual e da tradição oral, em que esses épicos
foram criados” (DUÉ; EBBOTT, 2009, p.2, tradução nossa).
111

explorado pela disciplina, que é a presença da oralidade nos escritos. Fica claro, dessa forma, a
inviabilidade de se editar uma obra tendo em vista a busca por um original perdido, uma vez
que esse original nunca existiu. Nesse caso, a atitude do editor, é determinante para a
constituição da edição, visto que o objetivo de um projeto dessa natureza não seria construir um
texto fidedigno à letra de Homero, mas sim verificar os caminhos percorridos por ele ao longo
da história da literatura e da cultura ocidental.
Para Dué e Ebbott (2009, p. 4),

A multitextual approach can be explicit about these many different channels of


transmission, placing each in its historical and cultural framework and allowing the
reader to understand better their relationships to one another, rather than giving the
false impression that they are all of the same kind and same time.44

Quanto à apresentação da edição, Dué e Ebbott reiteram a necessidade de se constituir


um formato que seja mutável e producente, comprometendo-se a fornecer ferramentas que
permitam ao leitor estabelecer comparações necessárias para observar as diversas formas que o
mesmo tomou ao longo de sua trajetória.
Manuel Portela (2013) apresenta sua proposta de Arquivo Digital para o Livro do
desassossego (LdoD), de Fernando Pessoa. Partindo do conceito de textualidade radial, Portela
propõe a construção de um arquivo que traga as quatro edições já elaboradas do livro de Pessoa,
além dos fac-símiles e da transcrição topográfica, materiais que possuem entre si relações que
permitem integrá-los. A proposta, ainda em fase de construção, pretende conjugar as diferentes
edições já realizadas e, por meio de um software específico, gerar outras edições, conforme os
desígnios do leitor. A estrutura radial potencializa a construção de um centro móvel, onde cada
uma das edições pode figurar um ponto de partida para originar outra edição.
Portela (2013) indica três principais funções para o arquivo digital, a representação
textual, a simulação contextual e a interação interpretativa. A representação textual traz a
dimensão do texto, tanto em seu suporte material originário, quanto na sua passagem para o
suporte digital, além da descrição dos metadados. A simulação contextual aponta para a
possibilidade desses materiais, reunidos em um arquivo, promoverem uma reconstrução fictícia
do período de produção e circulação dessa obra, ademais da sua atualização para um novo
suporte e para seus novos leitores. A interação interpretativa coloca o arquivo digital LdoD

44
“Uma abordagem multitextual pode ser explícita em torno desses diversos canais de transmissão, colocando
cada um em seu enquadramento histórico e cultural e permitindo ao leitor compreender melhor as suas relações
uns com os outros, ao invés de dar a falsa impressão de que todos eles são do mesmo tipo e mesmo tempo” (DUÉ;
EBBOTT, 2009, p.4, tradução nossa).
112

como gerador de novos sentidos e novas leituras para a obra, construindo-se também como uma
ferramenta de pesquisa. Nesses termos, o suporte virtual engendra novos parâmetros não
somente para a disposição do conteúdo, mas também no que se refere à constituição de
operações interpretativas, além de trazer ao leitor um ambiente de interação, a partir da leitura
e da edição colaborativas.
Apesar de não estar inscrita no âmbito da Crítica Textual, o trabalho desenvolvido por
Leonor Areal (2003) ilustra a construção de edições digitais em que se empregam ferramentas
informáticas apenas para a apresentação do texto. No CD-ROM MultiPessoa, a autora se utiliza
de diversas formas de hipertexto para apresentar a obra de Fernando Pessoa de maneira
interativa. O primeiro tipo é o hipertexto potencial, no qual se apresentam os poemas de Pessoa
organizados por temática; o leitor é convidado a percorrer a trama hipertextual que se apresenta,
seguindo um percurso polimórfico, explorando as possibilidades de leitura e de significação
decorrentes da apresentação do texto de uma forma relacional:

Nessa teia de relações pré-estabelecidas, cabe ao utilizador o papel activo de


interpretação e construção de sentidos. Ele assumirá, portanto, uma autonomia como
leitor e explorador da obra literária, para a qual lhe são fornecidas pistas, mas não
respostas. […] Pressupondo [assim] a colaboração do leitor para desvendar as ligações
propostas entre textos que lhes conserva, no entanto, a sua autonomia e inteireza
originais (nem seria tolerável segmentar ou interferir, a partir do seu interior, em
textos literários alheios). (AREAL, 2003, p. 4)

Por sua vez, o hipertexto construtivo apresenta-se em forma de fichas de citação,


organizadas em ordem alfabética, admitindo o acréscimo de novas fichas, bem como o
estabelecimento de relações entre elas com o uso de hiperlinks. Trata-se de uma ferramenta
interativa que oportuniza o leitor do meio virtual apropriar-se dessa obra assumindo o lugar de
sujeito da citação (COMPAGNON, 2005), na medida em que a brincadeira de tesoura e cola
está, agora, mediada pela tela.
Por último, o hipertexto criativo materializa-se em jogos virtuais que exploram a criação
literária a partir do material textual disponibilizado no CD-ROM, em sua maioria baseado em
jogos exploratórios, lógicos, ou ainda, em labirintos formais. Ao explorar esse tipo de jogo, o
editor atua sobre o material textual com um propósito social definido: estimular o contato com
obras literárias, utilizando uma linguagem atrativa, de maneira a evidenciar o papel ativo do
sujeito que, neste caso, literalmente atua sobre o texto, instalando a sua própria leitura. Chama
a atenção a postura crítica da organizadora da série, que, ao mesmo tempo em que apresenta o
cânone, convida o leitor a desconstruí-lo e reconstruí-lo, apropriando-se dele.
113

O uso do meio digital para a apresentação de edições tem sido uma prática bastante
frequente nas linhas de pesquisa vinculadas à Filologia, nos Programas de Pós-graduação do
Instituto de Letras, da UFBA. Destacamos como trabalho pioneiro, a tese de doutorado de
Alícia Lose (2004), denominada Arthur de Salles: esboços e rascunhos, na qual a pesquisadora
se utiliza do meio digital e das potencialidades do hiperlink para apresentar os meandros da
elaboração do texto pelo poeta baiano Arthur de Salles. Para tanto, faz uso do software Front
Page do pacote Office for Windows. Assim, apresenta a edição do manuscrito interligada, por
meio de links, com as análises e os documentos relativos a eles.
Fabiana Prudente Correia (2013) apresentou, em sua dissertação de mestrado, uma
edição fac-similar e uma edição sinóptica, para a peça Apareceu a Margarida, de Roberto
Athayde, reunidas em um arquivo digital. A pesquisadora utilizou o aplicativo Prezi, a fim de
dar a esses materiais uma organização radial, uma vez que o programa permite a expansão da
tela em múltiplas direções, além de ter suporte para a disposição de arquivos de áudio,
animações, vídeo e imagem, além do próprio texto verbal.
Destacamos, ainda, proposta de edição de Patrício Nunes Barreiros (2013), apresentada
em tese de doutorado, intitulada O pasquineiro da roça: edição dos panfletos de Eulálio Motta.
Nesta, propõe apresentar edições crítica, diplomática, fac-similar para os panfletos,
acompanhando-as de imagens, filmes e áudios. A edição é disponibilizada na web, uma vez que
sua tecnologia não se adapta a mídias como CD-ROM ou DVD-ROM.
Esta pesquisadora, no âmbito do mestrado, também desenvolveu uma edição em meio
digital para o texto teatral Auto da barca do rio das lágrimas de Irati, de Jurema Penna
(ALMEIDA, 2011). Trata-se de uma edição interpretativa, na qual o investimento da editora
voltou-se para a construção de um aparato de notas que desse conta de esclarecer dúvidas acerca
de elementos ali presentes. Assim, além da normalização da ortografia, construímos notas
explicativas para os textos citados, a partir de hiperlinks dentro da própria edição, bem como
com o uso de links externos. Destacamos a relevância desse trabalho como tentativa de explorar
o suporte digital na apresentação de edições, que culmina na proposta de Arquivo Hipertextual
apresentada nesta tese.
Diante das possibilidades para a construção de edições em meio digital anteriormente
vistas, elegemos esse suporte a fim de apresentar as edições para os textos teatrais de Jurema
Penna. Almejamos, com nossa proposta, atualizar sua dramaturgia, destacando os movimentos
de escrita presentes neles e evidenciando os diferentes sujeitos que, com ela, compartilham a
autoria. Por meio da apresentação dos fac-símiles, esperamos trazer o suporte material em que
foram compostos, estabelecendo um elo entre sua materialidade originária e as formas que
114

assumem no meio digital. Pretendemos, além de contrastar os documentos da recepção com o


texto crítico, disponibilizá-los como objetos de leitura individual e, portanto, testemunhos que
nos permitem compreender o momento histórico. Acreditamos, igualmente, na importância de
se propor uma edição sinóptica, a fim de possibilitar a leitura das diferentes versões em
contraste.
Em virtude das operações críticas instauradas pelo meio digital, entendemos a
construção dessa proposta editorial não somente como uma mera apropriação do suporte, mas
como uma construção intelectual (CRASSON, 2010). A análise da situação textual, que precede
a elaboração de qualquer edição, ganha outras feições em se tratando de uma edição digital. A
leitura do conjunto documental, realizada pelo editor, trará os primeiros parâmetros para a
elaboração do formato da edição de modo a favorecer a apresentação de um texto que evidencie
as questões com que o editor se deparou durante o labor filológico.
Uma vez que ainda está inserido na cultura dos impressos, em que a prática
preponderante é a preparação de edições conforme a lógica do suporte papel, o editor, que faz
uso do meio virtual, encontra-se submetido a duas linhas de força. A primeira linha de força, a
da conservação, se apresenta na permanência de traços que os fazeres tradicionais deixam nas
tentativas de inovação das edições em suporte virtual. A segunda, a da inovação, que o faz
buscar novas ferramentas para o desenvolvimento das edições e das novas linguagens para a
apresentação do texto editados. Nesses tensionamentos,

[l]’édition imprimée reste un modèle de référence, mais contrairement à l’éditeur


papier qui construit un objet spécifique dans une catégorie éditoriale désignée, le
numérique permet d’en élaborer plusieurs à partir de mêmes ressources. Ce sont
l’organisation des niveaux de traitement et la circulation dans ces informations qui
déterminent le type d’édition électronique. C’est aussi ce qui fonde l’hypertexte, qui
se définit tantôt comme le produit d’une construction intellectuelle, tantôt comme une
technologie autorisant la mise en relation de ressources et la constitution de parcours45
(CRASSON, 2010, p.44).

Dessa forma, não se trata apenas de dispor os dados em uma arquitetura digital: é preciso
também, tratá-los conforme os propósitos de sua edição. Destaca-se a importância da
contextualização das informações, devendo o editor dotar o leitor de subsídios que o auxiliem
na construção dos sentidos de um texto. Em virtude do uso do meio digital, torna-se necessário

45
“[a] edição impressa continua a ser um modelo de referência, mas ao contrário do editor do suporte papel que
construiu um objeto específico em uma categoria editorial designada, o editor do suporte digital permite
desenvolver mais com os mesmos recursos. É a organização dos níveis de tratamento e circulação dentro dessas
informações que determina o modelo de publicação eletrônica. Isso é o que constrói o hipertexto, que por vezes é
definido tanto como o produto de uma construção intelectual, quanto como uma tecnologia que permite a
vinculação de recursos e a constituição de percursos” (CRASSON, 2010, p.44, tradução nossa).
115

enriquecer também os objetos digitais utilizados, por meio de metadados, etiquetas apensas aos
arquivos que trazem informações sobre a sua construção e posteriores alterações, estabelecendo
uma referência para fotografias, imagens, ícones, que tendem a se perder mediante a infinidade
de objetos no meio digital.
Conforme Crasson (2010, p.44), “[s]'intéresser aux informations, c'est aussi s'interroger
sur les moyens de les rendre visibles à l’écran – tant, d’ailleurs, pour élaborer l’édition, que
pour la consulter”46. Dessa forma, é também da alçada do editor construir as relações entre as
partes da edição digital, estabelecendo caminhos para a integração dos conteúdos dispostos,
através de hiperlinks, que o leitor escolherá ou não percorrer, conforme seus objetivos de
leitura. Levando em conta as questões discutidas acerca do suporte digital, apresentaremos, na
próxima seção, a proposta de edição para os textos teatrais de Jurema Penna selecionados.
Detalharemos a metodologia utilizada para tanto, bem como as opções críticas do editor para a
elaboração dessa proposta.

46
“Interessar-se pelas informações, é também questionar os meios de torná-los visíveis na tela – tanto para elaborar
a publicação, quanto para consulta-la” (CRASSON, 2010, p.44, tradução nossa).
116

4 O ARQUIVO HIPERTEXTUAL DA OBRA DE JUREMA PENNA

A diversidade de documentos, modificações textuais, intervenções de sujeitos no


processo de escrita, dentre outros aspectos, levou-nos a optar pelo meio digital como suporte
para o desenvolvimento e a apresentação da edição dos textos teatrais de Jurema Penna. Nessa
seção, discutiremos aspectos relativos à elaboração do arquivo hipertextual, no que tange aos
procedimentos e programas empregados, e apresentaremos os critérios utilizados para a edição.
Por fim, analisaremos a situação textual presente no conjunto documental de Iemanjá – rainha
de Aiocá e O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças,
seguidos dos respectivos textos críticos.

4.1 A CONSTRUÇÃO DO ARQUIVO HIPERTEXTUAL

O meio digital, como suporte para a elaboração de edições, tem mostrado as vastas
potencialidades de se fazer a integração de um grande volume de informações e de materiais
digitais, engendrando novas formas para a sua organização e apresentação. Propor a elaboração
de uma edição em suporte virtual vai além transpor conteúdos concebidos conforme a lógica
do impresso para o novo suporte, mas implica apropriações efetivas deste suporte. Ainda que
imersos em uma cultura na qual os textos impressos constituem a forma privilegiada dos
projetos editoriais, é fundamental propor inovações para essas práticas. Em decorrência do
volume de informações e documentos levantados, a interconexão de dados traz a potencialidade
de se estabelecer centros provisórios para as edições, de fornecer ao leitor numerosos percursos
de leitura, congregando materiais de diferentes naturezas. Para tornar viável o intento editorial
de oferecer este texto múltiplo, verificamos a necessidade de trazer, não somente uma edição
crítica para a dramaturgia de Jurema Penna, mas congregar outros tipos de edição, constituindo
o que se denomina de arquivos hipertextuais ou digitais.
Urbina define o trabalho elaborado com os diversos testemunhos do Dom Quixote como
arquivo, pois “se trata de una biblioteca o colección de facsímiles digitales y de textos
eletrónicos cotejados y anotados, almacenados y organizados en bases de datos relacionales, y
117

accesibles a través de interfaces de edición y de composición47” (URBINA et.al., 2005, p. 227).


Tendo em vista o grande volume de informações relativas a essa proposta editorial, interessa
reunir e organizar os dados digitais em uma base inter-relacionada, composta por fac-símiles e
por textos eletrônicos cotejados.
Por sua vez, Manuel Portela (2013), ao assumir a noção de arquivo digital para o Livro
do Desassossego, de Fernando Pessoa, elucida que este arquivo deverá ir além do simples
repositório digital dos documentos, propondo-se à

[...] criação de um espaço eletrônico que tire pleno partido das seguintes propriedades:
a reconfiguração contínua dos artefactos digitais ao nível do código, a capacidade de
marcar eletronicamente essas configurações, a agregação de documentos e dados em
ambientes integrados, e a criação de espaços de interação colaborativa e intersubjetiva
(PORTELA, 2013, p. 1-2).

Portela salienta, como elemento basilar para um arquivo digital, a possibilidade de


diferentes sujeitos, tais como autor, editor e leitor, interagirem por meio da construção de
espaços virtuais integrados e abertos, que potencializam a agregação de novas fontes, novos
dados, bem como a reelaboração desse código-fonte, evitando sua desatualização.
Os projetos editoriais em meio digital têm se tornado mais arrojados, tanto no que tange
às ferramentas informáticas utilizadas, quanto em relação ao propósito da edição, que não mais
está restrito a fixar um texto. Vemos, então, nas propostas de arquivos hipertextuais/digitais, o
intento de conciliar os diferentes tipos de edição, atualizando-as, em função de entender a
produção e circulação da obra em questão, e integrando-as, por meio de uma base de dados que
seja ao mesmo tempo segura e relacional.
Nesse sentido, propomos o arquivo hipertextual de Jurema Penna. Partindo-se das
relações que o hipertexto permite estabelecer entre os diferentes documentos e edições.
Utilizamos materiais de natureza diversa que se articulam no propósito de fornecer ao leitor
diferentes percursos de leitura para o objeto de pesquisa em questão. Em se tratando de texto
de teatro, caracterizado por sua multiplicidade e mutabilidade, o arquivo hipertextual torna-se
um formato desejável, pois possibilita mostrar tal diversidade em um suporte mais fluído e
relacional que o suporte papel.
Nosso arquivo hipertextual foi desenvolvido com os softwares Adobe Fireworks CS5,
para a elaboração da interface gráfica, e Adobe Dreamweaver CS5, para construção da

47
“trata-se de uma biblioteca ou coleção de fac-símiles digitais e de textos eletrônicos cotejados e anotados,
armazenados e organizados em bases de dados relacionais e acessíveis através de interfaces de edição e de
composição” (URBINA et.al., 2005, p. 227, tradução nossa).
118

arquitetura digital e os hiperlinks, utilizando-se da linguagem HTML. Na tensão entre a


inovação do suporte virtual e a permanência das formas impressas, buscamos encontrar, no
meio digital, estruturas adequadas para evidenciar as situações textuais presentes no conjunto
documental selecionado. Por meio dos referidos programas, exploramos o suporte digital, ainda
que submetidos às limitações tecnológicas que nos foram impostas.
Propomos, para este arquivo hipertextual, a seguinte composição:
i. Edição fac-similar: reprodução digital dos documentos, acompanhados de sua
descrição física;
ii. Edição sinóptica: onde apresentamos o confronto entre duas versões do texto,
utilizando-se o software Juxta Commons;
iii. Edição crítica: momento em que trazemos o texto crítico acompanhado do aparato
de notas de natureza diversa;
iv. Documentos da recepção: em que se organiza e se apresenta a documentação que
atesta a recepção dos textos, relacionando-a com as demais partes do arquivo
hipertextual.
Passamos a detalhar cada uma das partes do arquivo hipertextual, indicando a
metodologia utilizada para construí-las.
Optamos por apresentar os fac-símiles acompanhados de sua descrição. Esta escolha
pautou-se no intento de encontrar um espaço que tornasse a descrição física dos testemunhos
mais funcional e mais integrada à proposta editorial, tornando-se, efetivamente, um elemento
que concorre para a crítica filológica que se pretende desenvolver. Tal procedimento mostrou-
se produtivo por evidenciar certas marcas materiais que serão fundamentais para entender a
produção, recepção e circulação desses textos, abrangendo desde os erros de datilografia, que
dão a entender a produção, até a representação do modelo de língua escrita que os sujeitos da
cena teatral possuíam no período, perpassando pelos diferentes usos e sentidos que o script,
como suporte físico, recebia nesse momento.
Muitas vezes, a presença do fac-símile promove a ilusão de estarmos diante do texto em
sua integralidade, em sua forma mais “fidedigna”. Esse raciocínio desconsidera que, mesmo
quando se reproduz a imagem, faz-se necessário a existência de uma mediação editorial que
permita compreender com mais precisão as marcas presentes no suporte. Dada essa limitação
da edição fac-similar, surgiram as edições face a face, que trazem o fac-símile acompanhado da
transcrição diplomática. Ao se fornecer a transcrição do manuscrito, seja ele medieval ou
contemporâneo, o editor suplanta a dificuldade daqueles leitores que encontram neste alguma
dificuldade de leitura. Além disso, a edição face a face enseja, ao leitor especialista, confrontar
119

a lição do manuscrito com a transcrição feita pelo editor, favorecendo, ainda, a visualização de
outros aspectos não contemplados no processo de edição, e confirmando o processo editorial
como aberto e passível de revisões.
Silva (2003), ao propor uma edição crítica e genética para o conto Linha reta e linha
curva, de Machado de Assis, apresenta os fac-símiles acompanhados de sua transcrição
diplomática. Como lhe interessa a gênese da obra, a pesquisadora registra, ao lado do fac-símile,
as ocorrências de diversos tipos de rasura, comentando-as. Este recurso auxilia o leitor na
deciframento das rasuras, pondo-as em relação com o processo de construção do texto. É nesse
sentido que justapor a descrição física do testemunho e o fac-símile implica uma atividade
crítica, a qual possibilita evidenciar os aspectos daquela materialidade que interessam ao editor
na análise de seu objeto de estudo.
Diferentes dos textos medievais ou modernos, em que a mise en page possui inúmeros
elementos estranhos aos leitores contemporâneos, os textos teatrais censurados não trazem essa
dificuldade, pois possuem um suporte material, o datiloscrito, ainda próximo dos leitores. Por
conta dessa proximidade, muitas das marcas deixadas em seu processo de circulação podem
passar despercebidas pelos leitores comuns. Faz-se, então, necessário que o editor oriente o
leitor no reconhecimento dos sinais ali existentes. A presença da imagem não dispensa a
intervenção editorial, pelo contrário, para que suas marcas sejam plenamente interpretadas, os
esclarecimentos editoriais são fundamentais. No caso dos textos teatrais censurados, não
realizamos a transcrição diplomática ao lado da imagem, pois o datiloscrito encontra-se legível
e em um bom estado de conservação.
Para proceder à construção do arquivo hipertextual, fizemos a transcrição diplomática
de todos os testemunhos. Para tanto, utilizamos o software gratuito Free Online OCR, (2014),
uma ferramenta informática capaz de reconhecer e transformar uma imagem (extensão JPG,
JPEG, BMP, TIFF, GIF), em um texto editável. O programa funciona exclusivamente on line e
sua versão gratuita aceita a conversão de 15 arquivos por hora. O usuário deve fazer o upload
da imagem e selecionar a língua e o formato de saída, que pode ser DOC, TXT, XLS. No caso
dos textos teatrais censurados, o output em formato TXT se mostrou mais vantajoso, pois
fornecia um arquivo sem formatações. Por estarem em bom estado de conservação, o
reconhecimento ótico de caracteres revelou-se eficaz, com índice de correção superior a 80%.
Na figura 10, comparamos um fac-símile e o seu output do OCR, com destaque para os
problemas de identificação dos caracteres.
120

Figura 10 – Comparação entre o fac-símile e a transcrição obtida com o uso do OCR

Maria - Deus te abençOe!


Gaspar - 6i, seu Jose, tudo bem?
Jose - Vivendo. Que negOcio é esse dÉ tostão menino? Isso e do tempo
5 que se amarrava cachorro com linguiça. Muda essa cantiga.

Gaspar - Mas minha mãe me ensinou assim, que minha 5v6 ensinou a ela.
Jose - Mas do tempo da sua av6 prá cá, muita coisa mudou. Muita coi-
sa aconteceu neste mundão de meuDeus.
10 Maria' - 56 que o dinheiro mudou cl,e' vou te contar. Olhe, meu
bisavô foi do tempo da pataca.
Jose - Depois teve .o real, mais de um real se dizia reis.
Maria_ - Quando se queria dizer que uma coisa não valia nada, meu avó'
15
falava assim:
"Não vale nem dez reis de mel coado".
José - Antes de todos teve cruzado
Maria - Teve "conto de reis". Um cpnto de reis era dinheiro.prártapá
casa.

Fonte: PENNA, 1991, f.2


121

Alguns erros de leitura são decorrentes de manchas no suporte como em “cl,e'”, em vez
de “de” (L.8); dificuldade em ler diacríticos, que ora são reconhecidos como um número, como
“5v6”, em lugar de “avó” (L.5), ora como uma letra maiúscula, como em “negOcio”, em vez
de “negócio” (L.3). Apesar disso, o uso de OCR para a transcrição mostra-se importante, uma
vez que torna tal processo muito mais célere. Os erros de reconhecimento de caracteres são
muito característicos, o que favorece a sua fácil identificação e correção. Alguns desses podem
apresentar um padrão, por exemplo o número “6”, em geral, corresponde a “ó”, isso permite
utilizar ferramentas de “localizar e substituir”, presentes na maioria dos softwares, para a
correção desses erros no momento da revisão da transcrição.
O uso desse recurso evita que erros humanos sejam cometidos pelos editores no
momento de transcrição, tais como a supressão de segmentos textuais ou sua repetição, a
modificação de termos por sinônimos, ou até mesmo erros de digitação. Com o uso do OCR, o
trabalho do editor, nessa etapa será, então, dedicado a revisão, a fim de dirimir os erros de
reconhecimento de caracteres, obtendo, assim, uma transcrição que efetivamente traga as lições
dos textos.
Tendo preparado as transcrições dos testemunhos que apresentam as diferentes versões
do texto, passamos à elaboração do segundo elemento que compõe o arquivo hipertextual: a
edição sinóptica. De acordo com Duarte ([1997-], verbete), uma edição sinóptica é aquela que
“reproduz, lado a lado, as lições de pelo menos dois diferentes testemunhos, com o objectivo
expresso de as comparar”. Borges e Souza (2012, p. 38) esclarecem que

O cotejo entre diferentes versões textuais, em confronto sinóptico, torna essa edição
crítica e também histórica; nela, buscando-se demonstrar pontos em que tais versões
se aproximam ou se afastam, trazendo notas e comentários que visam esclarecer os
textos em seus múltiplos aspectos.

Nesse sentido, uma edição sinóptica traz a comparação entre dois ou mais testemunhos,
lado a lado, para que o próprio leitor possa confrontar as versões do texto, percebendo as
modificações textuais empreendidas pelo autor, em suas escolhas e rechaços. Este tipo de
edição torna-se um instrumento para o filólogo apresentar os caminhos de sua leitura, apontando
para o leitor, por meio das notas e dos comentários, sua análise sobre as alterações feitas, que,
mais tarde, resultarão nas escolhas para o estabelecimento da edição crítica.
122

Para desenvolvimento da edição sinóptica, utilizou-se o software livre Juxta


Commons48, um programa para a colação de diferentes testemunhos. O Juxta Commons foi
idealizado pela Nines (Networked Infrastructure for Nineteenth-Century Electronic
Scholarship), uma organização que conta com o apoio da Universidade de Virginia (EUA), cujo
principal objetivo é transpor para o meio digital documentos pertencentes ao século XIX. A
engenharia de software foi desenvolvida pela Performant Software Solutions e se utiliza das
seguintes linguagens de programação: Ruby on Rails, Java, Apache Solr.
O programa destaca-se por possuir uma interface acessível, que confere ao usuário uma
navegação intuitiva por seu espaço virtual. Possui, também, modos de visualização que
permitem verificar as mudanças nos testemunhos, alternando facilmente o texto escolhido como
o de base. O site possui vários tutoriais e manuais para dirimir as dúvidas sobre o seu uso.
Passamos a descrever as ferramentas presentes no software, justificando a sua importância para
essa proposta de edição. A figura 11 apresenta a interface do programa, em sua versão online.

Figura 11 – Tela inicial do Juxta Commons

b
d e
a

Fonte: JUXTA, 2014

Nesta tela, há uma explicação sobre o uso do programa, por meio de um diagrama, onde
se inscreve “Explore your workspace”. A tela é dividida horizontalmente em duas partes, na
parte superior, está o painel de biblioteca, dividido em três seções: a primeira Sources, traz o

48
O programa encontra-se disponível em: http://juxtacommons.org/ e pode ser utilizado tanto como ferramenta
online, como software instalado no computador. Optamos pelo Juxta Commons em sua versão online, pois esta
permite compartilhar os resultados em outros sites. A depender da velocidade de conexão à internet, os modos de
visualização podem demorar para carregar.
123

botão Add Source (indicado na figura 11, letra a), que faz o upload dos arquivos para o
programa. Após o upload, é necessário clicar sobre a seta azul, da primeira coluna (figura 11,
letra b), a fim de preparar os testemunhos para a colação. Ao clicar na seta azul, os testemunhos
vão sendo listados na segunda coluna, Witnesses (figura 11, letra c). O terceiro passo é criar as
configurações de comparação para cada um dos textos analisados; para isso, é preciso clicar em
Create set (figura 11, letra d), nomeá-lo, e, em seguida configurar os critérios de colação que
admitem ignorar pontuação, capitalização e incluir ou não a sensibilidade à hifenização.
O último passo é colacionar os documentos, clicando na seta azul, da terceira coluna
(figura 11, letra e). O resultado está ilustrado na figura 12. Após a colação, o usuário é levado
ao modo de visualização Heat map; note-se que o primeiro ícone da barra de navegação está
destacado em amarelo (figura 12, letra a). Nesse modo, o programa apresenta a diferença entre
os dois testemunhos, tomando um deles como base. Conforme indicado na figura 12, letra b,
esta escolha, no entanto, não é fixa e pode ser facilmente modificada clicando-se no outro
testemunho da witness list. A diferença entre o texto de base e o outro testemunho aparece
destacada em azul. Ao clicar sobre os destaques, uma janela pop-up aparece indicando a
modificação (witness diferences, figura 12, letra c).

Figura 12 – Visualização da colação no modo Heat Map

Fonte: JUXTA, 2014

Ainda na janela pop-up witness differences (figura 12, letra c) note-se que, nesta mesma
janela pop-up, o símbolo indica a ausência do trecho destacado no testemunho
124

Yemanja_T75. Além desse, há o (delta), que indica o deslocamento de trechos e o refere-


se a trechos acrescentados em relação ao testemunho que está sendo visualizado.
O segundo modo de visualização é o side-by-side-view (figura 13, letra a). Nesta, dois
testemunhos, por vez, podem ser visualizados lado a lado, as diferenças entre eles são marcadas
em azul e a barra de rolagem permite movimentar os dois testemunhos simultaneamente, caso
o cadeado esteja habilitado (figura 13, letra b). No ângulo superior direito dos testemunhos há
o botão “Change”, que altera qual deles será visualizado em cada um dos quadros. A diferença
entre os testemunhos, também, é evidenciada por meio das flechas azuis na coluna central. Ao
se passar o mouse sobre um determinado trecho, o azul fica mais opaco, indicando a relação
entre as versões. Clicando-se sobre uma palavra de um dos testemunhos, automaticamente
ambos se alinham, permitindo a visualização da modificação textual.

Figura 13 – Visualização da colação no modo side-by-side view

b
c

Fonte: JUXTA, 2014

Este modo permite efetivar a leitura dos testemunhos em contraste. Os destaques feitos
pelo programa orientam o leitor na visualização das diferenças entre as versões, tornando o
trânsito entre elas mais fluído e intuitivo. Este tipo de edição desloca a atenção do leitor do
texto editado para as suas modificações textuais, ele é convidado a perceber, por si, as
substituições, os acréscimos e deslocamentos. Dessa forma, a noção de que uma obra adquire
diferentes formas à medida em que circula em uma sociedade, princípio orientador dos
trabalhos da Crítica Textual, torna-se, efetivamente, visível pelos modos de visualizações
trazidos pelo Juxta Commons.
125

Outra ferramenta que permite concretizar a edição sinóptica é a opção User annotations,
disponível na margem direita da tela, no modo de visualização heat map (figura 14, letra a).
Nesta, o editor poderá registrar os seus comentários acerca das modificações textuais,
compartilhando as suas interpretações com o leitor. Ao clicar em users annotations, uma janela
pop-up é aberta com os comentários do editor. Um clique sobre a lupa (figura 14, letra b), o
programa leva o leitor até a passagem do texto a que o comentário se refere. O acesso a essas
anotações também pode ser feito clicando sobre a região do texto destacada em azul. Nesse
caso, uma janela pop-up aparece na tela com a diferença entre os testemunhos e a anotação do
editor (regional annotation), como expresso na figura 14, letra c.

Figura 14 - Ferramenta User annotations

Fonte: JUXTA, 2014

A diferença entre os testemunhos também pode ser evidenciada por meio do recurso
gráfico do histograma (Cf. figura 15), acessado no terceiro botão da barra de navegação. A
opção de visualizar o histograma está disponível nos modos de visualização heat map e side-
by-side. Trata-se de um diagrama que representa a frequência da ocorrência das modificações
em relação ao texto de base escolhido. Assim, quanto mais longa a barra, mais intenso o
processo de modificação textual. Ao se comparar o histograma da peça Iemanjá – rainha de
Aiocá com o da peça O bonequeiro Vitalino, verifica-se que o processo de modificação textual
na primeira peça foi muito mais intenso que na segunda.
126

Figura 15 – Visualização de histogramas

Histograma de Iemanjá – rainha de Aiocá Histograma de O bonequeiro Vitalino.


Fonte: JUXTA, 2014

O Juxta Commons permite ainda exportar os dados da colação em formato XML,


tomando-se como parâmetro o TEI (Text encoding initiative), um padrão para a apresentação
de textos em formato digital, amplamente utilizado por universidades e bibliotecas. A adoção
desse padrão traz como principal vantagem a integração entre diferentes sistemas de bases de
dados digitais, bem como a atualização automática desses dados, em função de avanços na
tecnologia empregada. Ao transpor o texto para o padrão TEI, o Juxta Commons insere,
automaticamente, uma série de tags que compõem a sintaxe do referido padrão. Estas tags
permitem rotular tanto macrounidades, como livros, capítulos etc., quanto microunidades, como
parágrafo, sentença, palavra. No caso da comparação entre diferentes testemunhos, o TEI
também possibilita o uso de do sistema de marcação para indicar as diferentes versões
encontradas.
Observamos, na figura 16, o código-fonte do arquivo XML. As diferentes cores indicam
os elementos que o compõem: em verde estão as tags, nesse caso <app></app>, denominação
oriunda de apparatus entry, utilizadas para codificar as modificações textuais. Quando não há
diferença entre os testemunhos, o texto aparece entre as tags <app></app>, quando estas
altercações existem, dentro dessa tag aparece <rdg></rdg>, as readings que codificam as lições
modificadas em cada um dos testemunhos. Além dessas tags, destacamos a identificação dos
testemunhos feita em azul; o texto, que tem cor preta; e os caracteres acentuados em azul escuro.
127

Figura 16 - Output em formato XML

Fonte: JUXTA, 2014.

Como se percebe, o arquivo XML com todas as suas tags não é perfeitamente legível
para não especialistas, fazendo-se necessário adicionar a ele uma folha de estilos, em formato
CSS, a fim de torná-lo navegável. Em decorrência dos limites de tempo, de recursos financeiros
e humanos dessa pesquisa, não foi possível customizar o arquivo em XML a fim de produzir
uma edição a partir dele. Acredita-se, no entanto, que em momentos futuros, esse código fonte
poderá ser utilizado como base para a elaboração de edições, pois apresenta a vantagem de
seguir parâmetros internacionalmente aceitos, além de admitir atualizações conforme os
avanços dos programas e da tecnologia dos softwares.
O Juxta Commons possui também o recurso de exportar o resultado da colação como
uma edição, em caráter experimental, ao clicar no quarto botão da barra de ferramentas, opção
Edition Starter. Nesta, é possível configurar o título da edição, a sigla dos testemunhos, os
formatos de saída, se HTML ou DOC, além de numerar as linhas de 5 em 5. O resultado é um
arquivo com o texto completo, com linhas numeradas e, ao final, um aparato, em que se
apresenta uma lista com as modificações textuais identificadas com testemunho e linha com nas
linhas em que aparecem, conforme figura 17.

Figura 17 – Aparato gerado pelo Juxta Commons

Fonte: JUXTA, 2014


128

A edição repete o texto de base e as modificações textuais aparecem identificadas com


a sigla do testemunho, separados por colchete ( ] ). Compõe-se, dessa forma, o aparato positivo,
aquele em que

se recogen no sólo las variantes rechazadas, sino también la lección en ese caso
acogida en el texto. Se escribe primero ésta, repitiéndola y enmarcándola con el cierre
de un paréntesis cuadrado ( ] ), y se dan las siglas de los manuscritos que la presentan;
a continuación, se van ofreciendo las variantes no acogidas y las siglas de sus
respectivos testimonios49 (PÉREZ PRIEGO, 1997, p.92).

Este modelo, no entanto não satisfaz os propósitos desta edição, uma vez que a distância
entre a localização, no texto, da lição em que ocorre a modificação textual e a sua indicação, no
aparato, é bastante acentuada, dificultando o confronto. Além disso, é inconveniente, para a
leitura na tela, ter de movimentar a barra de rolagem para consultar o aparato. O editor só poderá
intervir sobre a edição se o fizer diretamente no código fonte, pois não há como propor
correções ou atualizações. O texto crítico fornecido pelo Juxta Commons é um texto limpo, pois
não há nenhuma marcação indicando onde houve modificações.
A Edition Starter, ferramenta do Juxta Commons, nos interessa, porém, como
instrumento para a colação, pois realiza o levantamento das modificações textuais existentes
nas diferentes versões do texto. O uso desse recurso para a colação é vantajoso, pois desobriga
o editor do trabalho mecânico, além de possibilitar maior correção durante o processo, pois,
assim como na transcrição, a colação é também pode a interferência de erros humanos.
Passamos, então, à construção da edição crítica, considerada a atividade que possibilita
exercício pleno na Crítica Textual (AZEVEDO FILHO, 1987), pois cumpre todas as etapas do
método filológico, permitindo ao editor colocar em ação o seu repertório crítico. Duarte ([1997-
], verbete) define a edição crítica a partir dos procedimentos metodológicos adotados para sua
realização, a saber:

reprodução do texto do autógrafo (quando existente) ou do texto criticamente definido


(pela operação de constitutio textus) como mais próximo do original (quando este não
existe), depois de submetido às operações de recensão (recensio), colação (collatio),
definição do estema com base na interpretação das variantes (estemática), definição
do testemunho base, elaboração de critérios de transcrição e de correcção (emendatio
ope codicum ou emendatio ope ingenii). Todas estas operações devem ser
devidamente justificadas e explicadas (annotatio), e todas as intervenções do editor,
com realce para as lições não adoptadas (do original ou dos testemunhos da tradição),
devem ser registadas no aparato crítico.

49
“são recolhidas não só as variantes rejeitadas, mas também a lição acolhida no texto. Escreve-se primeiro esta,
repetindo-a e marcando-a com o colchete de fechamento ( ] ), e registram-se as siglas dos manuscritos que as
apresentam; então, são oferecidas as variantes rejeitadas e as siglas dos seus respectivos testemunhos.” (PÉREZ
PRIEGO, 1997, p.92, tradução nossa).
129

Trata-se de uma definição, que, por ser descritiva, contempla as mais diversas situações
textuais com os quais um editor irá se defrontar, abarcando objetos de naturezas diversas,
compreendendo desde os antigos e medievais até os modernos e contemporâneos. Talvez em
consequência dessa escolha, o objetivo da realização da edição crítica não se expresse nessa
definição, visto que o propósito de desenvolvê-la varia em função das características do objeto
de pesquisa com que se trabalha e das pretensões do editor.
Em se tratando dos textos teatrais censurados, objetos de constante modificação e
recriação, uma edição crítica não pode ser considerada um lugar de estabilidade, que se propõe
a estancar o processo de modificação textual. É, antes, um espaço para a manifestação da
multiplicidade que permeia a história de um texto e deve ser capaz de representar esta
diversidade de maneira legível, o que constitui um dos grandes desafios da apresentação da
edição.
Assim, entender a edição crítica como a reprodução de um autógrafo ou reconstituição
de um original perdido não dá conta de toda a máquina interpretativa que o editor mobiliza para
além do texto, nem das infinitas possibilidades de leitura suscitadas no processo editorial. É
preciso, também, considerar que uma edição crítica constitui uma referência para os leitores:
mediante a diversidade textual, uma indicação de leitura fornecida por um especialista, deve
trazer a proposta do autor, bem como apontar para as demais versões encontradas.
Isabel Lourenço (2009, p. 229, grifo nosso) ainda acrescenta que “[t]oda edição crítica
é uma edição histórica, na medida em que inclui a evolução histórica de uma obra desde a
origem até esse momento presente”. Tendo em vista as características dos documentos que são
objetos dessa pesquisa, vale ampliar os sentidos de história aí empregados, entendendo-a não
só como cronologia dos testemunhos, das modificações textuais etc., mas como narrativa. O
editor se propõe contar a história daquele texto, conforme os documentos e evidências de que
dispõe, escolhendo destacar ou não certos aspectos dessa história, conforme sua proposta
editorial. Pensar a edição como narrativa implica, também, situar o editor dentro do seu
momento histórico, a partir de suas escolhas teóricas, uma vez que quem narra o faz sempre de
um lugar.
Pensando nessas questões brevemente apontadas, propomos uma edição crítica que
funcione como ponto de integração dos diversos documentos relativos ao objeto de estudo em
questão. Para atingir esse fim, as ferramentas do hiperlink e do hipertexto tornam-se
fundamentais na organização e integração das informações. Estas são dispostas em rede, onde
diferentes caminhos podem levar ao mesmo ou a diferentes pontos de chegada.
130

Definimos, para esta edição crítica, uma subdivisão em três partes. Cada página da
edição crítica possuirá três modos de visualização as quais se têm acesso por meio de um menu
horizontal localizado imediatamente acima do texto, que contempla o texto crítico, as revisões
ao texto, e a construção do texto (cf. figura 18).

Figura 18 - Estrutura da edição crítica

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Na aba de Revisões ao texto, apresentam-se as alterações que dizem respeito a erros de


datilografia, desvio na ortografia, algumas marcas tipográficas, uso de letras maiúsculas,
mudanças na pontuação e intervenções do editor, no sentido de normalizá-lo. Tais modificações
dão a ler a relação que Jurema Penna mantinha com a língua, suas representações sobre a norma
culta, sobre os usos da língua em um script de teatro, além da das modalidades de língua de
personagens populares nas suas peças.
Em Construção do texto, registram-se as intervenções relativas à substituição de
palavras, partição ou unificação de réplicas, deslocamentos, supressões e acréscimos de
segmentos textuais, os cortes realizados pela Censura Federal, além dos documentos da
recepção e a intervenção de outros sujeitos que elaboram o espetáculo. Uma leitura dessas
modificações textuais permite estabelecer conjecturas acerca das alterações feitas em
decorrência do processo de encenação, bem como a relação do dramaturgo com a elaboração
de seus textos.
Os segmentos textuais que forem modificados, em consequência da revisão ou da
construção, serão marcados com um destaque na cor azul. Apresenta-se, também a opção Texto
crítico, em que se disponibiliza apenas o texto editado, sem aparato, nem notas. Este
procedimento tem como objetivo oferecer uma referência para o leitor, que servirá para a
leitura, estudo e encenação.
131

Optamos por dividir o aparato nas categorias Revisões ao texto e Construção do texto,
pois o volume de modificações textuais é significativo e as marcas em azul poderiam se tornar
excessivas. Além disso, acreditamos que tais modificações possuem características que podem
ser associadas aos diversos momentos do processo de escrita. Conforme Grésillon (2007),
durante a construção do seu texto, o autor assume diferentes papéis: o de escritor, quando
efetivamente o elabora; o de leitor, quando abandona o papel de escritor para perceber como se
dá a recepção à sua produção; e o de revisor, quando opera modificações que dizem respeito a
questões de adequação ao português padrão, ou a equívocos na datilografia.
Outro elemento fundamental para compreender a circulação e recepção dos textos
teatrais durante o período da ditadura militar são os documentos da recepção. Em geral, esses
documentos são utilizados pelos editores com a finalidade de conhecer o contexto de produção
da obra, justificar escolhas editoriais ou ainda, esclarecer alguns sentidos do texto. Os
documentos da recepção que conformam o arquivo hipertextual são: documentos de censura,
fotografias, panfletos, cordéis, etc., que ilustram a leitura da dramaturgia em questão. A fim de
torná-los mais acessíveis e constituí-los como objeto de leitura e fonte de pesquisa, criou-se um
diretório dentro do arquivo hipertextual, para apresentá-los, organizando-os pela peça à qual
fazem referência, e por ordem alfabética.
Para a construção do arquivo hipertextual, foram selecionados quatro textos de Jurema
Penna, a saber: Bahia livre exportação (1975/1976), Negro amor de rendas brancas
(1971/1972), Iemanjá – rainha de Aiocá (1975/1980), O bonequeiro Vitalino ou Nada é
impossível aos olhos de Deus e das crianças (1977, 1978, 1991). Os dois primeiros foram
editados na dissertação de mestrado dessa pesquisadora, momento em que desenvolvemos
edições críticas em suporte papel. Para o presente estudo, propusemos a transposição dessas
edições para o meio digital, fazendo-se necessário discutir as diferenças na produção de edições
críticas em suportes distintos.
Como ponto de partida para elucidar essas diferenças, vale considerar a própria
polarização entre a disposição do texto editado e o aparato que traz as modificações textuais: o
primeiro ocupa posição de destaque na folha impressa; ao passo que o segundo ocupa a margem
esquerda da página ou ainda o rodapé, um espaço reduzido. A disposição dos elementos da
edição é, assim, representativa da relação hierárquica entre texto e aparato e, por consequência,
entre a versão que o editor toma como base e as lições presentes nos outros testemunhos. O
próprio espaço físico destinado às modificações textuais termina por restringir a quantidade de
informações que ali podem ser dispostas. Isto tem como resultado edições críticas que, devido
ao volume de modificações textuais a serem dispostas no aparato, investem pouco em trazer
132

outros elementos que permitam compreender o texto, tornando-as muito mais uma descrição
dessas modificações do que efetivamente uma interpretação.
A edição em meio digital desconstrói a hierarquização texto crítico x aparato, uma vez
que o hipertexto possibilita justapor informações, por meio de janelas móveis, bem como
interconectar um grande volume de informações que podem ser lidas lado a lado com o texto
crítico. O hipertexto suplanta as restrições de tamanho impostas pelo suporte papel e confere
ao editor espaço para o exercício da atividade crítica. Dessa forma, ampliam-se, também, as
possibilidades do aparato, pois este já não se restringe a apresentar documentos verbais, mas
engloba áudio, vídeo, além de material iconográfico e links para sites externos.
De uma forma geral, a metodologia utilizada para realizar edições em meio digital segue
os mesmos princípios empregados para a produção de edições críticas em suporte papel, ainda
que se utilizem ferramentas distintas, como já assinala Urbina ([200-]). A principal diferença
percebida durante o processo, foi que, para integrar as edições críticas anteriormente realizadas
(ALMEIDA, 2011) ao arquivo hipertextual, fez-se necessário resgatar os testemunhos como
individualidades, uma vez que estas traziam dos testemunhos somente aquilo que interessava
para construir o texto crítico e o aparato. Dessa forma, foi preciso retornar à descrição e à
transcrição de cada testemunho, em sua idiossincrasia. Essa ação permitiu entendê-los como
produto histórico singular, tomado em sua especificidade e não somente como detentores de
lições divergentes em relação ao texto de base.
É sob essa perspectiva que a proposta de arquivo hipertextual apresentada constitui-se
em uma tentativa de retirar a centralidade de um único testemunho, trazendo as diferentes
versões para o jogo interpretativo, ao dar acesso a diversos meios de conhece-los, seja pela
comparação na edição sinóptica, seja pela descrição acompanhada de fac-símile, ou ainda pelas
leituras engendradas em um aparato que põe em evidência os movimentos de construção e
revisão dos textos.
133

4.2 CRITÉRIOS DE EDIÇÃO

Nessa seção, trataremos da estrutura do arquivo hipertextual e discutiremos os critérios


utilizados para elaborar as edições que o integram, a saber: fac-similar, sinóptica, crítica. Na
figura 19, ilustramos a capa do volume 2 desta tese50. Ao se clicar sobre “Arquivo
Hipertextual”, o leitor é direcionado à página inicial, conforme disposto na figura 20.

Figura 19 - Acesso ao arquivo hipertextual a partir da capa do volume 2

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Da página inicial, temos acesso às edições de cada um dos textos que compõe o arquivo
hipertextual. Nessa mesma página temos ainda um link para os critérios de edição, com um
resumo dos critérios ora apresentados e uma nota biográfica sobre Jurema Penna, a fim de dar
a conhecer a vida e obra da dramaturga. Ao clicar sobre um dos textos, abre-se uma página de
onde se pode ter acesso aos três tipos de edição, acima citados, para cada peça. Há também uma
segunda possibilidade de acessá-los, via menu horizontal no topo da página (cf. figura 20, letra
a). Nesse menu, reunimos as peças pelo tipo de edição, cabendo ao leitor optar por ler as
diferentes edições do mesmo texto ou ler o mesmo tipo de edição dos diferentes textos.

Figura 20 – Página inicial do arquivo hipertextual e página inicial da edição

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

50 O volume 2 encontra-se disponível em suporte digital, no endereço eletrônico: http://www.juremapenna.com/inicio.html


134

A elaboração de uma edição fac-similar tem como objetivo dar a conhecer a


materialidade em que o texto foi produzido. Acreditamos que, assim, será possível aproximá-
lo dos modos de leitura realizados na época de sua construção, a partir da interpretação dos
dados oferecidos pelo suporte. Para a produção dos fac-símiles, capturou-se a imagem com o
uso de máquina fotográfica digital, marca Sony, modelo Alpha SLT-A35, 16.2 MP, sem o flash.
As imagens foram editadas por meio do programa Microsoft Office Picture Manager, para
ajustes no brilho, no contraste, no meio-tom, a fim de tornar a imagem mais nítida, e na
intensidade da cor, na tentativa de corrigir o tom avermelhado. Não foi feito nenhum tipo de
correção que suprimisse as marcas do suporte.
Vale ressaltar, ainda, que as folhas encontravam-se levemente onduladas em sua porção
inferior, em decorrência do armazenamento: os textos são dispostos em pastas plásticas, com
40mm de espessura, ficando soltos dentro delas; por ação da gravidade, as folhas tendem a se
curvar. Tal fato traz como consequência, para os fac-símiles, a presença de ondulações, o que
pode gerar sombras na parte inferior da folha. As imagens geradas possuem alta resolução e,
devido ao tipo de lente da câmera, é possível ampliá-las sem perder o foco.
Para a presente edição, propõe-se que os fac-símiles sejam disponibilizados,
acompanhados da sua descrição física (Cf. figura 21). A fim de torna-la mais dinâmica, utilizou-
se o recurso de tooltip, no qual, ao se passar o mouse sobre as informações destacadas em azul,
aparece, no detalhe, um recorte da imagem a que se refere (Cf. figura 22). Com o intuito de
tornar mais clara as intervenções manuscritas, recorremos ao uso de operadores para descrevê-
las, conforme listamos:
[] Acréscimo
[ ←] Acréscimo à margem direita
[ →] Acréscimo à margem esquerda
[↑] acréscimo na entrelinha superior
<> Supressão
<>/ \ substituição por sobreposição / supressão por sobreposição
<> [↑] Substituição por riscado e acréscimo na entrelinha superior

Esclarecemos que a descrição física dos testemunhos folha a folha foi realizada apenas
para os textos editados nesse trabalho. Para Negro amor de rendas brancas e Bahia livre
exportação, faremos apenas uma descrição geral, uma vez que a materialidade destes já foi
objeto de estudo da dissertação de mestrado desta pesquisadora.
135

Figura 21 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão geral)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Figura 22 – Arquivo hipertextual: Fac-símile e descrição (visão do detalhe)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

No intuito de possibilitar uma leitura paralela das versões do texto, trazemos uma edição
sinóptica, construída por meio do aplicativo Juxta Commons (cf. figura 23). Para ter acesso a
essa edição, o leitor deverá utilizar o login: “izzalmeida@gmail.com” e a senha: “157913”.
Fizemos uso da estrutura do software para realizar uma leitura dinâmica e descentrada do texto,
a partir das diferentes formas de visualização disponibilizadas: heat map, com os comentários
136

da edição, disponíves no botão User annotations (Cf. figura 24, letra a) e side-by-side view (Cf.
figura 25), conforme apresentado da seção 4.1 desta tese.

Figura 23 – Tela inicial da edição sinóptica

Fonte: JUXTA, 2014

Figura 24 - Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização heat map

Fonte: JUXTA, 2014

Figura 25 – Edição sinóptica disponibilizada, no aplicativo Juxta Commons, modo de visualização side-by-side

Fonte: JUXTA, 2014


137

Para a construção da edição, realizamos a transcrição dos testemunhos, por meio do


software Free Online OCR. Mantivemos a lição dos testemunhos, procedendo à normalização
nos casos relacionados a seguir:

- Usar devidamente as letras maiúsculas em nomes de personagens, lugares e após a


pontuação, conforme a norma padrão da língua portuguesa:
CAZUZA – ‘Tá ficando maluca, mulher?
(PENNA, 1980, p.20) (Transcrição de T80)

- Manter as maiúsculas em caso de destaque;


- Indicar as rubricas em caixa baixa:

(PENNA, 1976, p.20)


NARRADOR – E uma pequena cantora que gravou muito samba deste (Slide de Caimi jovem) jovem mulato, o
moço Cahymi, vestiu-se de baiana e rompeu as fronteiras do Brasil - A Pequena Notável – CARMEM MIRANDA!
(Transcrição T76).

- Respeitar o seccionamento do texto em fala;


- Retirar as barras inclinadas, hifens e apóstrofes que se destinam à estética do texto
datiloscrito, mantendo apenas os signos destinados à pontuação;
- Utilizar travessão antes do texto das réplicas:

(PENNA, 1975, p.20)


ATRIZ I – (Voltando a narração) Vocês podem perder tempo, mas ganham amigo, o que pra nós, é
muito importante. E esse calor humano, este dengue, essa maliomolência, essa falta de pressa, como
tambem a capoeira, a candomblé, (Transcrição T75a)

- Incorporar as intervenções manuscritas que se destinam a revisão do texto;


- Retirar a separação de sílaba da palavra ao fim da linha;
- Marcar as modificações textuais (intervenções manuscritas), valendo-se dos operadores
anteriormente relacionados:

(PENNA, 1980, p.23)


138

PÉ-MOLHADO – (Percebendo que Pedrão está estranho) Viu alma do outro mundo companeiro? [(Pedrão
não ouve)] (Transcrição de T80)

- Não registrar as intervenções manuscritas que indiquem as marcações cênicas:

(PENNA, 1991, p.2)


QUICO – (Que entrou com flores de Tia cota durante o pregão de D.Maria)
Ôi, gente! Ô Dona Maria, porque é que se enfeita a casa no Natal com folhas51 de pitanga?(Transcrição de
T80)

- Para os textos não numerados, indicar o número da folha do testemunho entre colchetes.

Realizamos essas intervenções a fim de evitar que o aplicativo as reconheça como


modificações textuais, uma vez que dizem respeito apenas à forma do texto datiloscrito. No que
tange às intervenções que documentam as marcações cênicas, preferimos incorporá-las à edição
crítica, na aba Construção do texto, pois se configuram como uma nova camada textual e
registram a encenação.
Se a edição sinóptica traz o texto como testemunho da escrita dramatúrgica de Jurema
Penna em sua dinâmica, a edição crítica proporciona a atualização deste a partir da leitura de
seu editor. Nesse intuito, preparamos edições críticas tendo em vista a sua divulgação como
objeto de leitura e de encenação. Para a elaboração deste tipo de edição em meio digital,
tomamos os princípios do método filológico, conforme os seguintes procedimentos
metodológicos definidos por Santos (2008b, p. 2666-2667):

a) Levantamento de todos os dados e testemunhos conhecidos, tanto na tradição


direta (constitui-se de cópias ou edições do texto: manuscritos, datiloscritos,
digitoscritos, impressos) como indireta (todo e qualquer documento que possa
auxiliar na leitura e interpretação do texto: comentários, citações, traduções etc);
b) Expurgo das cópias coincidentes […];
c) Confronto de todos os testemunhos úteis ao estabelecimento do texto crítico,
definindo o texto de base ou exemplar de colação, aquele que mais se aproxime
do original, isto é, ou o manuscrito (testemunho) autógrafo ou a edição impressa
mais recente em vida do autor, salvo os casos que exigem, amparado o editor em
critérios seguros, outro texto de base, conforme a história particular de cada
conjunto de textos;
d) Classificação e organização dos testemunhos considerados no processo de
estabelecimento do texto crítico, […] a partir do exame das variantes (lições
divergentes em relação ao texto de base);

51
Nesse caso, optamos por manter “folhas”, pois entendemos que a supressão do “s” trata-se de uma atualização
realizada pelo autor no momento da perfomance.
139

e) Correção do texto, neste caso, é importante diferenciar erro (contra-senso ou


deslize do autor) de variante. A correção poderá realizar-se através do cotejo dos
testemunhos reunidos ou por conjecturas; no primeiro caso, considera-se o
predomínio numérico das variantes; no segundo, busca-se o fundamento para a
ação do filólogo em informações a respeito do texto, do autor e da época em que
tal texto fora escrito.

Assim, utilizamo-nos das transcrições realizadas para a edição sinóptica e, a partir daí,
fizemos a colação dos testemunhos, por meio do aplicativo Juxta Commons, que gerou as lições
diferentes entre testemunhos para a composição do aparato crítico. Na construção da arquitetura
digital para a apresentação da edição crítica, foi nosso objetivo dispor de um texto pouco
carregado visualmente, mas que desse conta de mostrar todas as modificações textuais
realizadas durante seu processo de produção, circulação, transmissão e recepção. Nesse intuito,
optamos por dividir a edição crítica em três espaços paralelos, onde encontramos as três
propostas que compõem o texto editado (cf. figura 26):

Figura 26 - Edição crítica de O bonequeiro Vitalino...

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

O primeiro é o texto crítico resultado do trabalho interpretativo do editor a partir do


conjunto documental. Não possui aparato ou outras marcas e se destina à leitura, bem como à
encenação. Esse texto proporciona uma experiência de leitura mais próxima aos impressos,
nesse sentido, também reproduzimos esta versão no volume impresso da tese.
O segundo espaço da edição crítica é denominado revisões ao texto. Nele, expomos o
texto crítico acompanhado das modificações textuais concernentes às interferências realizadas
no sentido de adequá-lo à norma padrão da língua portuguesa. Incluímos, nessa categoria, as
revisões da ortografia e da pontuação, correção de erros de datilografia, além das interferências
do autor na atualização da grafia do texto. A leitura dessas revisões interessa por permitir
observar a maneira como Jurema Penna revisava seus textos, de um testemunho a outro, sua
140

percepção sobre a norma linguística e a representação de língua popular que evidencia na fala
de seus personagens.
A aba construção do texto traz as modificações textuais concernentes aos movimentos
de escritura, assim, apresentamos no aparato os acréscimos, supressões, deslocamentos
empreendidos pela autora, as inscrições manuscritas realizadas pelos atores e os documentos
da recepção do espetáculo. Incorporamos ao aparato crítico as marcas dos diversos sujeitos que
participam da cena, registradas em documentos de ordem diversa, como canções, vídeos,
fotografias, matérias de jornal e recortes do fac-símile do texto datiloscrito.
Todas as modificações textuais são apresentadas no aparato crítico que aparece dentro
do próprio texto crítico, com o uso do recurso tooltip do Dreamweaver CS5. Ao passar o mouse
sobre a palavra destacada aparece, abaixo do ponteiro do mouse, a modificação textual realizada
de uma versão à outra, conforme ilustrado na figura 27. Encontramos nesse recurso um espaço
producente para a disposição do aparato crítico, pois permite evidenciar as modificações
textuais dentro do texto e não à sua margem. Entendemos que, assim, é possível trazer as
modificações textuais no mesmo nível hierárquico que a lição do texto de base. O recurso
possibilita também dispor outros tipos de texto nesse mesmo espaço, tais como imagens e
vídeos. O menu localizado no rodapé da página da edição (figura 27, letra a) permite ao leitor
passar de um texto ao outro, clicando sobre o número da página desejada. Pretendemos, com
isso, facilitar a alternância de entre os textos, de forma simples e acessível, ao mesmo tempo
em que buscamos integrar os três textos, como três faces da mesma edição crítica.

Figura 27 - Aparato crítico da aba construção do texto

a
Fonte: Elaborado pela pesquisadora
141

Como ilustrado na figura 27, em que uma intervenção manuscrita altera o texto, optamos
por mostrar, no aparato, a transcrição desta, acompanhada pelo recorte do fac-símile
correspondente. Na aba Construção do texto, interessa-nos também apresentar o texto do ator
que, como anotação da cena, suplementa a leitura do script (Cf. figura 28). Nessa mesma aba,
fazemos uso dos documentos da recepção, que cotejados com o texto, proporcionam outras
leituras. Ilustramos essa opção crítica uma fotografia do momento em que o cangaceiro Pé-de-
Vento aponta seu punhal para Seu José, a foto foi disposta no texto ao lado do trecho “MANÉ–
cabra, não fale, não entoe / tu já viu o meu punhal?” (Cf. figura 29).

Figura 28 - O texto do ator como suplemento da leitura

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Figura 29 - Os documentos da recepção como suplemento da leitura

Fonte: Elaborado pela pesquisadora


142

Quanto aos critérios para intervenção no texto da edição crítica, assumimos aqueles já
elencados para a edição sinóptica, acrescidos de outros que permitem atualizar o texto:

- Manter a numeração do texto de base, indicando-a no ângulo superior direito;


- Expor o título da peça em negrito, caixa alta e centralizado, incorporando imagens
ilustrativas.
- Caso não haja numeração de página, indicar o número da folha do testemunho entre
colchetes, no ângulo superior direito;
- Manter a divisão do texto crítico em folhas, de acordo com a divisão do texto de base;
- Manter as notas explicativas, presentes no texto, que digam respeito à sua construção e
à sua circulação;
- Atualizar o texto conforme a ortografia vigente;
- Normalizar o uso dos vocábulos em iorubá, conforme Castro (2001);
- Utilizar operadores para registro no aparato crítico das intervenções dos atores no texto;
- Disponibilizar o texto crítico no volume impresso dessa edição;
- Apresentar as informações da rubrica entre parênteses e em itálico.
- Indicar com [...] as falas que foram bipartidas ou repartidas de uma versão do texto a
outra.

O uso dos recursos informáticos descritos, aliados à perspectiva crítica do editor,


permite a realização de inovações na forma da apresentação das edições. Acreditamos, nesse
sentido, que propusemos critérios coerentes para a edição dos textos de Jurema Penna,
privilegiando a diversidade de documentos, temáticas e textos, disponibilizando-os de forma
acessível, integrada e dinâmica para os leitores. Passamos, na próxima seção, a discutir as
questões atinentes à situação textual das peças Iemanjá – rainha de Aiocá e O bonequeiro
Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças.
143

4.3 TEXTOS, TESTEMUNHOS, TRANSMISSÃO

Partindo das modificações textuais, buscamos analisar as escolhas realizadas pela


dramaturga tanto na construção do seu texto, no intuito de trazer para o jogo interpretativo as
representações de Bahia, quanto os registros das formas dramáticas que a peça assume. No
decurso das modificações textuais, é possível, ainda, observar as marcas que mostram uma
preocupação com o texto teatral como objeto de leitura, ainda que, apenas, durante a encenação.
Nesta seção, apresentamos uma leitura dessa dinâmica, tomando-se as evidências presentes nos
textos de Jurema Penna, almejando-se compreender a produção, transmissão e circulação dessas
obras.

4.3.1 Iemanjá – rainha de Aiocá

A moça dos cabelos verdes foi escrita por Jurema Penna no início da década de 1970,
quando ainda vivia no Rio de Janeiro. Revista em 1975 e 1980, recebeu novo título, passando
a se chamar Iemanjá – rainha de Aiocá. Em cena, Pedrão, protagonista e marido de Dulce,
pescador respeitado, mas que blasfema contra Iemanjá, a divindade das águas para as diversas
nações africanas. O enredo mostra a vinculação de Pedrão a Iemanjá, ao narrar seu nascimento,
durante a travessia da Bahia de Todos os Santos, quando seu umbigo foi jogado ao mar. Filho
de Xangô, Pedrão ignora as suas conexões com a tradição de matriz africana e desafia Iemanjá
a aparecer para ele em suas idas ao mar. Em uma noite de lua cheia, mesmo advertido por seus
colegas, Pedrão sai para pescar, provocando-a a se revelar. Iemanjá atende o desejo do pescador,
mas sua aparição suscita um impacto que lhe retira parte da sua vontade de viver. Pouco tempo
depois, mesmo com todas as tentativas de trazer a sua atenção de volta para a terra, Pedrão
morre no mar.
Da atividade da recensio, localizamos um corpus documental composto por cinco
testemunhos, sendo três deles depositados no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia, um no
Arquivo Nacional e um depositado no acervo Nós, por exemplo, Centro de Documentação e
Memória do Teatro Vila Velha. Passamos, então, a descrever fisicamente cada um dos
144

testemunhos52, indicando suas respectivas siglas, apenas para aqueles que trazem versões
diferentes do texto e que participarão da colação.
O primeiro testemunho data de 1975 (T75b), intitula-se A moça dos cabeços verdes e
está localizado no Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia. É um datiloscrito mimeografado
a óleo, composto por 30 folhas, numerado ao centro da margem superior, (02) a (29), sem
numeração na primeira folha. O suporte encontra-se amarelado, devido à ação do tempo,
sobretudo a capa, apresentando bom estado de conservação. O carimbo do Departamento de
Polícia Federal (DPF), em formato circular, encontra-se em todas as folhas no ângulo superior
direito, onde há também outro carimbo que condiciona a programação do espetáculo à censura
prévia, além do carimbo da Sociedade Brasileira de Atores Teatrais (SBAT). Não há cortes. A
capa traz ainda, inscrições de catalogação feitas pelo acervo a lápis e caneta hidrográfica
vermelha. O texto contém algumas correções que dão conta de revisar erros de datilografia,
além de manchas decorrentes da reprodução em mimeógrafo. Consta de uma nota explicativa
acerca da elaboração da peça “Escrita em 1972– Rio de janeiro. Revista em novembro de 1975
–SALVADOR”. (PENNA, 1975b, p.29).
O Espaço Xisto Bahia guarda um segundo testemunho datiloscrito e mimeografado a
óleo, datado de 1980 (T80). O texto é composto por 36 folhas, numeradas de 01 a 30, com capa,
folha de rosto, prólogo, epígrafe, lista de personagens, seguido do texto. Não há carimbos, nem
cortes. Há, na capa, inscrições feitas a lápis referentes à catalogação realizada pelo acervo.
Contém diversas correções manuscritas, feitas antes da reprodução, que revisam aspectos da
ortografia, acentuação, pontuação, erros de datilografia e, eventualmente, fazem acréscimos.
Trata-se de uma versão diferente da anteriormente descrita. Este testemunho apresenta uma
datação distinta das fases de escrita da peça. Na capa, atribui-se a elaboração ao ano de 1972,
no Rio de Janeiro. A data de reelaboração encontra-se riscada, com a supressão de 1978 e
acréscimo de 1980: “Escrita em 1972 – RJ Revista em 1980 – Salvador –BA” (PENNA, 1980,
f.2). Ao final do texto, há uma nota explicativa, remetendo ao título original e às encenações,
que transcrevemos:

Título original – A moça dos Cabelos Verdes. Encenada em 1973–1a.Vez no Centro


Integrado de Educação Anísio Teixeira – 1
Em 1975 – Foi encenada no Teatro do SENAC – Produção do SESC– Ambas as
produções tiveram a direção da autora (PENNA, 1980, f.29)

52
A descrição aqui disposta é apresentada de forma bastante sumária. Para aspectos específicos da materialidade
de cada um desses testemunhos, consultar o menu “Fac-símiles e descrições” no Arquivo Hipertextual, segundo
volume.
145

O terceiro testemunho é um datiloscrito a óleo, reproduzido da mesma matriz do


testemunho anterior, por trazer uma versão idêntica do texto, não será incluído na colação. Este
testemunho mostra uma tentativa de dividir a peça em cenas, tomando-se como referência as
mudanças de luz e do espaço do cenário. Nesse intento, a numeração é feita com algarismos
romanos e arábicos, até a “cena 40”, a partir daí aparece somente a numeração em arábico,
findando na “cena 88”. Além disso, são usadas linhas horizontais para realizar essa divisão.
Como se tratam de indicações para o espetáculo como um todo, acreditamos que estas marcas
tenham sido feitas por sujeitos responsáveis pela iluminação e/ou sonoplastia do espetáculo, já
que a mudança dos diferentes espaços cênicos, durante a peça, ocorre com recursos da
iluminação, como o black de parte do espaço cênico.
O testemunho depositado no acervo Nós, por exemplo, Centro de Documentação e
Memória do Teatro Vila Velha, é uma cópia digitada do testemunho de 1980. O suporte
encontra-se amarelecido pela ação do tempo e ao final traz uma nota sobre a sua digitação.
Repetindo o procedimento de Jurema Penna, o digitador registra “Rio de Janeiro 1971/ Salvador
1994”, incluindo o seu trabalho de copista na tradição do texto. Abaixo da nota explicativa
sobre as encenações, lê-se “Digitado por Marcos Christianno/(Windows-Write) Março/1994”
(Cf. figura 30). Esta iniciativa de digitar os scripts arquivados foi utilizada por responsáveis
pelo acervo, como uma forma de atualizar a materialidade desses datiloscritos, efetuando uma
transposição de suportes.

Figura 30 – Texto Iemanjá... digitado

Fonte: Penna, 1994

Nesse processo de atualização, algumas modificações foram realizadas ao texto, a


começar pelo título, em que se efetua a contração da preposição com o substantivo em “d’
Ayocá”, registro não encontrado nos outros testemunhos. Modifica-se a ordem de apresentação
146

da epígrafe e do prólogo, em relação ao testemunho de 1980. A apresentação dos personagens


é completamente reorganizada, apagando-se as marcas descritivas de cada um deles.
O testemunho do Arquivo Nacional também data de 1975 e é uma fotocópia de um
datiloscrito reproduzido da mesma matriz do testemunho que se encontra no Espaço Xisto
Bahia de 1975. Encontra-se acompanhado da documentação censória, a saber: f. 1 capa do
processo, com indicações do arquivo e título da peça; f.2 ofício de encaminhamento do Serviço
de Censura de Diversões Públicas, Superintendência Regional, Bahia (SCDP/SR/BA), ao
diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Departamento de Polícia Federal
(DCDP/DPF); f.3 requerimento de censura; f.4 requerimento de censura, feito pelo Diretor
Regional do Serviço Social do Comércio – SESC; f.5 capa da peça; f.6 folha com lista das
personagens; f.7-35 texto da peça; f. 36 folha de tramitação interna da peça; f. 37 parecer do
censor nº 10393/75; f. 38 parecer do censor nº 10431/75; f. 39 cópia do certificado de censura;
f.40 capa do processo montado pela SCDP/SR/Salvador. Tais documentos atestam a história do
processo de censura, tanto no que tange aos procedimentos utilizados, quanto às representações
constituídas acerca do tema da peça, nos pareceres censórios.
A peça foi liberada sem cortes, entretanto, no parecer nº 10393/75, o Censor53 indica
um corte assinalado à folha 10, que não aparece registrado em nenhum dos testemunhos. A
julgar pelo teor dessa página, conjectura-se que o corte tenha sido à expressão “Que merda!”, à
f. 10, L. 25, T75b. O corte indicado não é considerado e nem mencionado no certificado de
censura.
Por sua vez, os pareceres dos censores deixam entrever o referencial cultural a partir do
qual os textos eram avaliados. O parecer nº 10393/75 descreve o enredo da peça, afirmando que
este “mistura em seu desenvolvimento folclore, crendice e regionalismo, além de cantigas
populares” (PARECER, 1975b), discurso em que se nota a escolha lexical marcada por um
traço negativo na descrição da temática do espetáculo. Iemanjá, divindade amplamente cultuada
nas religiões de matrizes africanas, tem seu conteúdo espiritual esvaziado. Não se considera
que ali se representa uma comunidade que compartilha uma religião, dotada de valores e regras
para seus ritos. A palavra “crendice” possui um sentido depreciativo, como se verifica no
dicionário Caldas Aulete (2014, verbete): “1. Crença (ger. popular) considerada absurda ou
ridícula, e que não tem respaldo nas doutrinas religiosas ou em explicações científicas”.
Dessa forma, a divindade é relegada a um lugar comum, reduzida a uma manifestação
folclórica. Tal identificação remete diretamente à oposição, muito em voga na década de 1970

53
Neste trabalho, optamos por preservar a identidade dos censores, a fim de não incorrer em algum
constrangimento que fira os seus direitos individuais.
147

entre folclore X cultura, na qual as manifestações culturais populares eram entrecortadas pelo
valor dado à cultura erudita, ocupando um lugar subalterno diante desta. Assim, narrativas
dissociadas da cultura das elites brasileiras são consideradas hierarquicamente inferiores em
termos de produção cultural e denunciam o referencial cultural do governo militar e do próprio
censor.
Dando seguimento a sua apreciação da peça, afirma “[a] sua história se passa numa
aldeia de Salvador e narra, com detalhes, o dia-a-dia de um grupo de pescadores, que, embora
vivendo em nossos dias, cultua toda sorte de ritos, principalmente os afros, como forma de
religião” (PARECER, 1975a). Vale notar que a única religião trazida no texto é o candomblé,
algumas vezes em interface com o catolicismo, não havendo porque considerá-lo como “toda
sorte de ritos”, pois o culto politeísta dos orixás encontra unidade nos seus preceitos.
Adiante, entende o candomblé não como religião, mas “como forma de religião” símile
desta, questionando a sua legitimidade. Apesar da descriminalização do candomblé datar de
1936, com Getúlio Vargas finalmente acolhendo a voz do povo de santo, representado por Mãe
Aninha, foi apenas em 1976, que Roberto Santos, então governador da Bahia, desobrigou os
terreiros a apresentação da licença de funcionamento expedida pela Delegacia Especial de Jogos
e Costumes. A garantia da liberdade de culto, no entanto, só viria com a redemocratização e a
constituição de 1988. A posição do censor plasma o discurso dos poderes oficiais, que não
associa a prática do culto como crime, mas também não o reconhece como manifestação de
religiosa. Indica o preconceito contra o povo negro e sua cultura, relegado a um status de
inferioridade.
O parecerista ainda afirma: “Nesse fanatismo coletivo, um dos pescadores depois de
blasfemar contra Iemanjá, acaba sendo morto pelas águas, fato que serve para aumentar ainda
mais o clima de mistério e de interrogações entre eles” (PARECER, 1975a). Ao se referir a um
“fanatismo coletivo”, o censor atribuiu, a essa vivência religiosa, uma fé desmedida e
inconsequente, fato que não se percebe durante a leitura da peça. O parecer nº 10393/75, apesar
de trazer apenas uma indicação de corte, torna-se fundamental para compreender o valor
negativo recebido pela cultura e religião africana e afrodescente nesse âmbito, marca oriunda
da escravidão que permanece na sociedade brasileira sob a forma do preconceito religioso.
O uso de vocábulos como “crendice”, “fanatismo” e “folclore”, para se referir ao
candomblé, seus mitos e práticas, deixa entrever o distanciamento do censor dessa cultura e o
julgamento desta, com base no seu próprio referencial cultural e/ou naquele defendido pelo
governo militar, aliado da igreja católica.
148

Por sua vez, o parecer censório nº 10431/75, assume facetas diversas do anteriormente
comentado: “Trata-se de uma peça teatral de fundo folclórico e temática recalcada nas crendices
e religiosidades afrobrasileiras, em que YEMANJÁ se configura como rainha do mar e as outras
entidades transcendentais servem-na com amor e carinho” (PARECER, 1975b). O técnico de
censura considera o enredo da peça em termos de crendices e folclore, mas não desconsidera o
fator religioso que fundamenta o culto africano. Ao identificar Iemanjá como rainha do mar,
que tem as outras entidades transcendentais como seus servos, o censor marca o caráter
monoteísta da sua percepção de religiosidade em que um deus ocupa a posição central e é
auxiliado por outros entes, fato que não se observa no enredo da peça.
Ao discorrer sobre o protagonista Pedrão, o censor afirma que este “é vítima dos ciúmes
de YEMANJÁ.”, não considerando que o personagem também desafia a divindade para que ela
se mostre, não sendo somente vítima dos seus caprichos. O censor segue “Vai com muita
tristeza no coração, enquanto os seus, de olhos fixos no mar, preocupam-se, e, paulatinamente,
perdem a esperança de revê-lo com vida”. Quando Pedrão parte para o mar em noite de lua
cheia, é advertido por todos da comunidade, incluindo-se Dulce, sua mulher, e Raimundão, ogã
da Casa de Mãe Rosa, dentre outros membros da comunidade, temerosos. Ainda assim, por
decisão própria, ele segue para o mar, não se confirmando a tristeza no coração de que fala o
censor.
Conclui seu parecer afirmando: “Pela grande contribuição folclórica, sem maiores
consequências de fundo legal, mas, pela dramaticidade e atitudes paraespirituais no
desenvolvimento da temática, somos pela liberação para faixa etária acima de 14
(QUATORZE) ANOS”. Do posicionamento do censor, destacamos, como aspecto que atribui
um valor positivo à peça, a contribuição folclórica que a releitura das narrativas míticas de
Iemanjá promove. A representação do candomblé no palco não ofende as leis vigentes,
tampouco causa incômodos ao público de teatro, sendo tolerada por uns e até desejada por
outros, interessados em conhecer o culto africano. Compreender essa peça como folclore, no
entanto, implica em apresentar a cultura afrodescendente, sem problematizá-la, acomodando-a
como fetiche ou excentricidade.
O parecer nº 10431/75, apesar de favorável ao script da peça, mostra uma leitura
limitada do texto, que permite vislumbrar o desconhecimento do censor sobre as culturas de
matrizes africanas. É interessante perceber a restrição à faixa etária, sob a alegação de presença
de fenômenos para-espirituais. Uma leitura mais atenta não verifica tais fenômenos, sendo a
esfera de magia proposta no texto nivelada a qualquer outra dos contos fantásticos da literatura
149

ocidental. Tal proibição tem como resultado o impedimento da convivência do público infantil
com culturas e com histórias diferentes das delas.
Todos estes testemunhos, em suas inscrições e nas diversas marcas que trazem, atestam
as diferentes formas de reprodução e circulação da peça. Os pareceres dos censores são
fundamentais para essa análise, pois registram a recepção do texto por parte de leitores que tem
horizontes de expectativas muito bem definidos e partem de um referencial cultural urbano e
elitista. Ao problematizar esse tipo de recepção, buscamos perceber como os valores culturais
do regime de 64 também configuravam uma tentativa de homogeneizar as diferentes nuances
culturais existentes no país. A oposição construída entre cultura e folclore inscreve-se, portanto,
na tentativa de minimizar o alcance da cultura popular, inferiorizando os saberes construídos
pelo povo, em comparação à cultura imposta pela Ditadura Militar.
Passamos, então, a tratar dos movimentos de retomada do texto, a partir das
modificações textuais empreendidas. Nesse intuito, dos testemunhos elencados, tomaremos
para fins de colação apenas T75b e T80, por trazerem versões distintas. A primeira diferença
observada entre T75b e T80 é a modificação do título, de A moça dos cabelos verdes, para
Yemanjá – rainha de Ayocá54. Moça de cabelos verdes e rainha de Aiocá são epítetos atribuídos
à dona das águas, ambos aparecem disseminados tanto na literatura brasileira, quando em seu
cancioneiro popular. Em Itapuã (1972), Caymmi refere-se à moça de cabelos verdes, aludindo
a uma sereia que aparece nas praias de Itapuã, em referência a uma das manifestações de
Iemanjá:

A moça bonita de cabelo verde,


Metade de gente, metade de peixe [...]
A pedra é morada da moça do mar
Sereia morena
Vem toda manhã
Se banha nas águas de Itapuã [...] (CAYMMI, 1972)

Lopes (2004, p.43) esclarece que o termo Aiocá, “[p]arece derivar do iorubá Àyòká,
nome-oriki feminino que significa ‘aquela que provoca alegria ao seu redor’, sendo
provavelmente, um dos nomes de Iemanjá”. Refere-se, ainda a uma “extensão do significado e
o título ‘Princesa do Aiocá’, dado no Brasil a esse poderoso orixá feminino” (LOPES, 2004,
p.43). Em T80, o título da peça apresenta a vacilação rainha de/do Ayocá. Nas quatro primeiras
folhas há quatro ocorrências das indicações dos títulos: em duas delas, utiliza-se a contração do

54
Esclarecemos que, quando estivermos transcrevendo a lição do testemunho, manteremos a grafia das palavras
em iorubá, conforme foi utilizada por Jurema Penna.
150

e em duas apenas a preposição de. Para esta edição, adotamos a forma de, registrada em Jorge
Amado, em Mar morto (1973) e Cascudo (1999).
Jurema Penna, em T80, realiza o acréscimo de elementos pré-textuais, a saber: uma
folha de rosto, e duas citações que funcionam como prólogo e epígrafe. Como não encontramos
referências à encenação da peça, não sabemos se tais elementos foram transpostos para ao palco.
Não se pode, no entanto, negar que prólogo e epígrafe remetem a recursos próprios do texto
impresso. O prólogo ou prefácio tem como função realizar “uma espécie de esclarecimento,
justificação, comentário ou apresentação escrita pelo próprio autor ou por outra pessoa”
(ARAÚJO, 2007, p.416). Reafirmamos a sua possível presença na encenação, uma vez que o
prólogo (stricto sensu) é um termo que “constitui, na tragédia grega, a parte anterior à entrada
do coro e da orquestra, e na qual se enuncia o assunto da peça” (BARBUDO, 2010).
Por sua vez, a epígrafe “se define como uma citação, uma sentença ou pensamento
relacionado à matéria tratada no corpo do texto” (ARAÚJO, 2007, p.410). Sua natureza também
aceita a transposição para o palco. No entanto, por ocupar folhas próprias e por não trazer
indicações cênicas, acreditamos que tais elementos tenham sido compostos tomando-se como
referência o livro impresso.
Como a epígrafe tende sempre a preceder o prólogo, optamos, em nossa edição, por
inverter a ordem de apresentação desses dois termos. Nossa opção crítica é ratificada pela
expressão “Então nasceu:” (PENNA, 1980, f.2), o uso dos dois pontos constrói no leitor a
expectativa de apresentação do texto da peça. Além disso, por se tratar de datiloscritos cujas
folhas são posteriormente grampeadas, levantamos a hipótese de que essas folhas tenham sido
retiradas de sua posição inicial.
As modificações textuais empreendidas permitem entrever dois aspectos: a correção da
língua portuguesa presente sobretudo nas rubricas e a representação de modalidades populares
na fala dos personagens. Quanto à modalidade de língua empregada por Jurema Penna, vê-se
tratar-se de um sujeito alinhado ao paradigma de língua do português padrão, destacando-se,
no entanto, a presença de uma série de normas linguísticas, resultante de mudanças ortográficas
empreendidas ao longo da história.
Jurema Penna inicia sua vida universitária nos anos 1940, graduando-se bacharel em
Direito pela UFBA em 1949. Nesse contexto, vivenciou a reforma ortográfica de 1943, que
estabelece o uso do acento diferencial para distinguir palavras homógrafas, em que o ‘e’ e o ‘o’
aparecessem com som fechado. Por analogia, essa norma é aplicada para outras palavras que
não estão em situação de homonímia, é o que acontece, por exemplo com “rêde”, “mêdo”,
“galêgo”, “côr” e em outras presentes nos dois testemunhos, em que se nota uma severa
151

vacilação no uso dessa acentuação, com inúmeros casos de hipercorreção. Em 1971, houve mais
uma reforma ortográfica que extinguia o uso do acento diferencial, restando poucas exceções
para seu emprego, decorrendo daí o conflito entre as normas e a inconsistência no uso desse
diacrítico.
Em se tratando da grafia das palavras de origem iorubá, observamos uma significativa
alternância decorrente da oralidade que permeia a transmissão do conhecimento nas culturas de
matrizes africanas. De uma forma geral, T75b traz uma grafia, ainda com vacilações, mas que
tende a estar mais próxima da forma dicionarizada em português, por sua vez a grafia de T80
tende a utilizar o <y> para representar /i/ e <n> para marcar os fonemas nasalizados, como
ocorre com a palavra “Iansã”, grafada “Iansã” em nove ocorrências e “Yansã” em uma
ocorrência em T75b. Em T80, não há nenhuma ocorrência para “Iansã” e sete ocorrências com
“Yansan”. A título de exemplo, extraímos o excerto abaixo:

1 PEDRÃO – É Iemanjá, Oxum, Nanã ou Janaína 1 PEDRÃO – É Yemanjá, Oxum, Nanan ou Janaina
que te ajuda no jogo, Pé Molhado? (A cena para que te ajuda no jogo, Sete-Mola?
como numa fotografia)
REMENDElRAS – (Cantam) Yara, Janaina,
REMENDElRAS – (Cantam) Yemanjá, Nanan, Oxum
5 Yara, Janaína 5 Das águas a rainha
Yemanjá, Nanã, Oxum com os poderes de Olorum
Das águas as rainhas
Com os poderes de Olorum (PENNA, 1980, f. 7, grifo nosso)

(PENNA, 1975b, f. 7, grifo nosso)

T75b apresenta a vacilação na grafia de Iemanjá, com “Iemanjá” (L.1) e “Yemanjá”


(L.5). Essa alternância é corrigida sistematicamente em T80, que não traz nenhuma ocorrência
de “Iemanjá”, conforme exemplificado no trecho acima, em que nas duas lições, adota-se a
grafia “Yemanjá” (L. 1, 4). A palavra “iaô”, que designa a filha de santo, também recebe
diferentes grafias, apresentando uma vacilação mais acentuada que a grafia de “Iemanjá”. Em
T75b há treze ocorrências de “iaô”, oito de “yao” e três de “iawô”. A primeira forma indica a
grafia trazida por Castro (2001) e amplamente utilizada; a segunda, aponta para a tendência à
representação do fonema /i/ como <y> e a terceira remonta à tentativa de reconstituir a grafia
iorubá “yawô”. Na nossa edição, optamos por uniformizar essa grafia, conforme Castro (2001),
que toma por base a norma ortográfica da língua portuguesa. Esta opção justifica-se por alinhar-
se ao critério de atualização ortográfica, anteriormente exposto.
Além destes casos, há uma série de outras passagens em que Jurema Penna tenta
elaborar uma escrita reconstituída do iorubá. Na tentativa de reproduzir termos e cantigas de
ouvido, a dramaturga registrava vários desvios de grafia, tais como o nome de um dos quatro
152

terreiros tradicionais de Salvador o “Ilê Axé Opô Afonjá”, grafado “Axé Apô ô Fonjá”
(PENNA, 1980, f.27). Incluímos, nesta análise, a cantiga que a personagem Dulce dedica a
Iemanjá, em contraste com a transcrições de uma cantiga de Iemanjá gravadas por Mariene de
Castro (2010), bem como com a transcrição de um ponto de Iemanjá, cantigas rituais dedicadas
à entidade (MAGGIE, 2001). Note-se que há uma mistura das duas cantigas, em que se mesclam
distintas formas de grafia na língua iorubá.

DULCE – Kini-jé, Kinijé - Lôdô Ê nijé nilé lodô Kíní jé kíní jé olódò Yemonja ó
É dImanjá-O Yemanjá ô Ki a sòrò pèléé, ìyá odò ìyá odò.
A-ko-dé lê cê Acota pê lê dê Quem é a dona dos rios? É Yemanja
a rô mi rô. Iyá orô miô A quem nos dirigimos expressando simpatia.
É di man-qê-cê- (Castro, 2010) Mãe dos rios, mãe dos rios.
Ô - rô - mi - Ro
Ô Lê, Lê. Ymanjá-ô (PONTOS, 2013)
(PENNA, 1980, f.15)

O mesmo acontece em T80 no momento em que o corpo de Pedrão é trazido à praia,


“Eles cantam o ‘sequesse’” (PENNA, 1980, f.30). A busca por referências que nos indicassem
o significado desse termo levou-nos ao “Sequecê”, uma reza cantada da nação angola que pede
riqueza e bênçãos sobre uma família. A canção fez parte do vinil intitulado Eu, Bahia, lançado
pela Philips, que reúne músicas das tradições Jeje e Angola, além de toques tradicionais e
cânticos de capoeira, relançado em 1975 trazendo como primeira canção o “Sequecê”
(MARUNDELÊ; COMENDA, 1975).
Em 1972, ano do primeiro lançamento de Eu, Bahia e da escrita de A moça dos cabelos
verdes, Jurema Penna ainda se encontrava no Rio de Janeiro. O testemunho da primeira versão
não foi localizado, no entanto sua reformulação, que corresponde a T75b, não traz o canto.
Como o relançamento do disco datou de 1975, acreditamos que esta canção tenha sido
incorporada, posteriormente, à temporada de 1975, registrando-se no texto de T80. O tema da
cantiga não se relaciona com a cena da peça, momento em que os homens trazem o corpo de
Pedrão do mar, no entanto, é aceitável que Jurema Penna não tenha transcrito uma cantiga
fúnebre das religiões de matrizes africanas, em virtude destas pertencerem a um contexto
específico marcado por uma ritualística, não podendo ser mencionadas fora dela. É válido
ressaltar que a citação de uma cantiga da nação Angola em um contexto cujo referencial cultural
é preponderantemente da nação Ketu, pode indicar o sincretismo entre as religiões de matrizes
africanas.
Outro aspecto a ser tratado acerca do uso do vocabulário do povo de santo, presente
nessa peça, refere-se à substituição ou ao acréscimo de palavras que designam a realidade dos
153

terreiros. No trecho abaixo, temos a utilização do mecanismo de coesão lexical, em que a ideia
de “búzios da África” é retomada, na oração seguinte, como “esses caoris”, conforme
transcrevemos:

MÃE ROSA – Fui lá no Mercado Modelo. Fui buscar uns búzios da África que
encomendei a Camaféu. Esses caoris tão pela hora da morte. Cada vez mais caro.
(Para Dulce) Já deu seu presente, Dulce? (PENNA, 1980, p.13, grifo nosso)

A palavra “caori” é uma hipercorreção de “cauri”, e é introduzida como hipônimo para


“búzio”. “Cauri” designa um molusco de concha branca, encontrado nos oceanos Índico e
Pacífico. O dicionário Caldas Aulete (2014, verbete), indica ainda as possibilidades de grafia
“cauril”, “caurim”.
A preferência pelo uso do vocabulário do povo de santo também se mostra na
substituição de “força”, em T75b, por “axé”, em T80:

MÃE ROSA – [...] A gente aquí tem que trabalhar MÃE ROSA – [...] A gente tem que trabalhar
muito pra vê se ajuda minha filha Dulce. Fala com muito por nossa filha Dulce. Ela tá precisando
ele que essa filha aqui está precisando de muita de muito axé.
força. (PENNA, 1980, p.25, grifo nosso)
(PENNA, 1975b, p.25, grifo nosso)

Para os adeptos do candomblé, o axé é a energia dos orixás, a força vital presente em
cada indivíduo, “o poder espiritual, princípio de ação e transformação” (LIMA, 2007, p.210).
O uso da palavra “força” em T75b apresenta-se bastante genérico, já que pode dar a entender
que Dulce precisa de um “apoio” ou de “compreensão”. A substituição para “axé” traz outros
sentidos para o texto, elucidando que as necessidades de Dulce pertencem ao plano espiritual.
Nesse sentido, o trabalho a que se refere Mãe Rosa, no início do excerto, adquire o sentido
específico de trabalho espiritual e justifica o fato dessa fala ter sido dita por uma mãe de santo.
No trecho abaixo, notamos mais uma inserção e uma substituição de itens lexicais do
vocabulário do povo de santo:

CASA DE MÃE ROSA – (no quarto dos orixás CASA DE MÃE ROSA–
da casa de mãe rosa um pegi – espécie de altar (No quarto dos orixas um pegi, espécie de altar
que sobe em degraus, coberto por uma toalha que sobe em degraus, coberto com uma toalha
branca. Vasilhas de cerâmica com as branca, bordada. Vasilhas (alquidar) de
5 obrigações espalhadas pelo chão. […] Usa 5 cerâmica com as obrigações arrumadas aos pés
guias de seus orixás, pulseiras e brincos. A do pegi. […] Guias contornam a mesa formando
mesa é forrada de branco e sobre ela um copo um circulo, dentro do qual será jogado o ifá: jogo
d'agua, uma vela acesa, um baralho, busios, um de advinhação. Sentada à mesa está Mãe Rosa,
bloco, lápis. Guias contornam a mesa formando concentrada e não manifestada, vestida
10 um circulo, dentro do qual serão jogados os 10 simplesmente, de preferência de branco, torço
busios) (PENNA, 1975b, f. 8, grifo nosso). branco na cabela, guias dos seus orixás, pulseiras
contra egun). Mãe Rosa acaba de atender
Pequena. (PENNA, 1980, f. 10, grifo nosso).
154

De T75b a T80, há o acréscimo da palavra “alquidar” (T80, L.4) ao segmento “vasilhas


de cerâmica” (T75b, L.4), usada para dispor as oferendas nos cultos afro-descendentes. Apesar
de originária do árabe “al-gidár”, foi incorporada ao léxico do povo de santo no Brasil. Por sua
vez, o termo “búzios” (T75b, L.8) é substituído por Ifá55 (T80, L.7), revertendo a relação
metonímica presente em T75b, uma vez que se troca o elemento utilizado para consultar os
segredos dos destinos, os búzios, pelo nome do próprio oráculo.
O vocabulário de um povo traz inúmeras marcas de sua cultura, bem como constrói um
mundo, ao defini-lo e representá-lo. Entendemos que, ao propor o uso de palavras próprias do
povo de santo, Jurema Penna mostra um esforço para retratar esse povo no fazer teatral, ao
tempo em que também se inscreve na cultura desse povo. Esse ponto de identificação e
aproximação se coaduna com a construção de uma verossimilhança no plano do espetáculo.
Remetemos ainda ao excerto acima para discutir o acréscimo empreendido em “o ifá:
jogo de adivinhação” (T80, L.7-8). É interessante verificar que o esclarecimento sobre o jogo
acontece no âmbito da rubrica e a probabilidade de ser traduzido para o espetáculo parece ser
limitada. Acreditamos, portanto, que este movimento de esclarecimento interessa para a leitura
do texto e não para o espetáculo.
Outro elemento que possibilita conjecturar que as revisões feitas ao texto tendem a
torná-lo objeto de leitura é ampliação dos recursos narrativos de T75b a T80. Em geral estas
intervenções fazem-se presentes predominantemente nas rubricas, resultando em uma maior
caracterização da cena, ou ainda na descrição mais verossímil do personagem, havendo um
espaço para o exercício da poética da dramaturga. No movimento de retomada da peça para a
constituição da versão presente em T80, destacamos quatro passagens em que a dramaturga se
utiliza das rubricas para inserir detalhes que interessam mais ao leitor do que à cena:

ARRUAÇA – (Esgotou a paciencia.


ARRUAÇA – (Esgotou a paciência. Para, Para, coloca o balde no chão e
coloca o balde no chão e rapidamente abre rapidamente abre o canivete) Quem for
o canivete) Quem for homem corra homem, corra dentro! Pode vim os
dentro. Pode vir os dois de vez! (Saem os dois de vez! (Pe-Molhado e Sete Mola
tres correndo. A iawô passeia apezar de mais velhos e bons
misteriosamente pela praia). capoeristas fingem que realmente
(PENNA, 1975b, p.3, grifo nosso) estão com medo e saem correndo com
Arruaça atrás)
(PENNA, 1980, p.3, grifo nosso)

55
É válido ressaltar que Ifá se refere também à divindade iorubá que governa o oráculo homônimo, conforme
Prandi (2001), outro nome para Orunmilá.
155

O segmento “Saem os tres correndo” é significativamente ampliado em T80,


acrescentando-se esclarecimentos acerca dos pensamentos dos personagens envolvidos na ação.
Para a construção da cena, seria suficiente dizer que “fingem que estão com medo”, no entanto,
a dramaturga opta por fazer referência à condição de Pé-molhado e Sete-mola, mais velhos e
mais experientes que Arruaça, que aceitam entrar no jogo do garoto.
No encontro de Pedrão com Pequena, a rubrica é inserida no sentido de dotar a cena da
sensualidade presente na relação dos amantes, conforme transcrevemos:

PEDRÃO – Vai embora, vá! PEDRÃO – Vai embora, vai! (As palavras
dele nada tem a ver com a verdade. Sua voz,
PEQUENA– (Vendo um aranhão no peito
olhos, ele todo é uma suplica para que ela
de Pedrão) O que foi isso?
fique)
PEDRÃO – Coisa à toa. Um arranhão de
PEQUENA– (Vendo um aranhão no peito nu
nada nas pedras. Quando chegar em casa,
de Pedrão) O que foi isso?
Dul...
PEDRÃO – Coisa atôa. Uma ponta de pedra.
PEQUENA – (Tapa a boca de Pedrão) Tá
Quando chegar em casa Dulce...
feio isso. Arranhou mesmo. (Provocante,
acaricia o peito nu de Pedrão; beijam–se. PEQUENA– (Corta o que ele vai dizer com
Os pescadores que estão voltando da loca um beijo. Os pescadores que estão voltando da
assistem o beijo, param. loca assistem o beijo)
(PENNA, 1975b, p.16-17, grifo nosso) (PENNA, 1980, p.17, grifo nosso)

O desejo de Pedrão por Pequena poderia ser expresso por uma indicação cênica menos
detalhada, como em Negro amor de rendas brancas “Paulo agora dança como se a Dayse
estivesse presente. Sexy, muito sexy.”, (Cf. arquivo hipertextual, NARB, p.19). A dramaturga,
porém, faz uso da gradação “voz-olhos-ele todo”, que confere a rubrica um tom muito mais
literário que um simples detalhamento de posição cênica.
A mesma tendência se mostra no desfecho da trama, em que o estilo romanceado da
rubrica aparece entremeado com marcações da iluminação, que indica a passagem de tempo,
conforme destacamos abaixo:

CASA DE MÃE ROSA – Sentada com toda a sua imponência de mãe de santo, Mãe
Rosa esta vestida de branco, tendo o seu Ogan Raimundão de pé ao seu lado. A Yao
agora vestida de filha de Yemanjá bete caça [sic] aos pés de Mãe Rosa e depois aos
pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a sua dança ágil e graciosa. Dança por
todo o palco onde estão prostrados. A luz vai entrando em resistência até restar apenas
um foco que acompanha a dança de Yemanjá. Black rápido. A luz volta em
resistência. Amanhecer (PENNA, 1980, p.21, grifo nosso).

Acreditamos, dessa forma, que a rubrica em Iemanjá constitui-se como espaço de


construção da dramaturgia de Jurema Penna. As escolhas da dramaturga nas modificações
textuais realizadas de T75b a T80 nos levam a concluir que T80 traz um script também
156

elaborado para ser objeto de leitura e não somente de encenação. Nesse sentido, Jurema Penna
inscreve sua imagem de dramaturga no processo de preparação de suas peças.
Interessa destacar como outra nuance do cuidado da dramaturga com o seu texto. Em
várias passagens, há períodos que sofreram modificações, mas que não alteraram
significativamente o seu sentido, conforme listados no quadro 2.

Quadro 2 – Modificações textuais

T75b F T80 F
iniciam o seu trabalho 1 iniciam a arrumação da barraca (Boteco) 1
Dando uma palmada em Arruaça 6 Dando uma amigável palmada em Arruaça 7
O povo da rede de Inácio 7 O povo da rede de Ilário 7
Pipocas, velas, flores, perfumes, garrafas de mel, 8 Velas, pipoca, flores, perfumes, pedras lisas, 10
pedras lisas. garrafas de mel.
Reza em murmúrio sobre o copo. Depois benze o 9 (Dulce se senta. Mãe Rosa se concentra. Benze 12
baralho e os búzios com o copo. os búzios com o copo depois de ter orado em
murmúrio sobre o mesmo.
a senhora compreende 9 a senhora sabe, 11
E eu tenho medo mãe, muito medo. 9 E eu tenho mêdo. Muito mêdo mãe. 11
Duzinha e Cazuza atendem Dulce 11 Cazuza e Duzinha despacham ela 12
São Sebastião venha em nosso socorro 14 São Sebastião, venha em socorro de todos nós. 15
Ele vai se acalmando aos poucos 14 Ele vai se tranquilizando aos poucos 15
RAIMUNDÃO – (Bebendo de um só gole) 16 RAIMUNDÃO – (Virando a doze) 16
A outra foi Obá, não foi? Coitada…ficou sem a 18 A outra foi Obá. Ficou sem a orelha, coitada. 18
orelha.
ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. As 18 ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. Iscas, 19
iscas, tudo. Anzóis, enrolei as linhas. Examinei a anzois, as linhas enroladas certo. Examinei a
poita. Tudo seguro. poita. Tudo seguro.
PEDRÃO – (Pegando seus apetrechos de pesca) 19 PEDRÃO – (Apanhando seus apetrechos de 19
pesca)
DUZINHA – Precisa não. Canoa já tá no mar. É 20 DUZINHA – ‘Tá não. Canôa já ‘tá no mar. E só 20
só suspender a poita. Ele precisa quem ajude ele levantar a poita. Ele tá precisando de ajuda, é
em outras coisas. em outras coisas.
DUZINHA– Ditado por ditado, tenho também 20 DUZINHA– Ditado por ditado, eu tambem tenho 20
meu. Quem vê as barba do vizinho arder, bota a o meu: Quem vê as barba do vizinho arder, põe
sua de molho as suas de molho.
Te quero ver formado, filho. 20 Quero te ver formado, filho. 21
RAIMUNDÃO – Fui só vê o pesqueiro. Hoje não 20 RAIMUNDÃO – Fui só examiná o pesqueiro. 21
é noite boa prá pesca, tu sabe disso. Hoje não é noite de bôa pesca. Tu sabe.
CASUSA – Duzinha, uma hora dessas, eu vou ter 22 CAZUNA – Duzinha, uma hora dessa eu ainda 23
uma briga feia c/ você, pra valer! É da sua conta vou tê uma briga feia com você... É da sua conta,
mulher? Vai cuidá da tua vida!!! mulher? Vá cuidá da sua vida!
PEQUENA – Não te quero mais não. 25 PEQUENA – Eu não te quero mais não, Pedrão. 25
DULCE – Tô pensando sim. 25 DULCE – Tô pensando sim, minha comadre. 26
DULCE – Mas não vai pescar. Vai a noite, sem 25 DULCE – Mas não vai pescar. Não tem hora 26
isca, sem rede, sem anzol sem linha, sem nada. nem dia. Vai sem anzol, sem rede, sem isca, sem
Tôda noite, toda noite. Não respeita nem o nada. Não respeita tempo nem vento.
tempo.
Ele nem ligou, mem respeitou 25 Ele nem ligou. 26
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.
157

São modificações textuais que não demandam muita elaboração, uma vez que se tratam
de inversões na posição dos elementos no sintagma, substituições de certas palavras por seus
sinônimos, ou ainda acréscimos de marcadores interacionais ou vocativos. Todas essas
modificações testemunham o cuidado da dramaturga com a língua de seu texto e com a
expressão das suas ideias, no intento de representar o universo baiano em sua obra.
A partir das análises aqui desenvolvidas, elegemos como texto de base para a
constituição da edição de Iemanjá – rainha de Aiocá o testemunho de 1980, por apresentar, em
relação ao testemunho de 1975, modificações textuais que o ampliam, além de dotá-los de
elementos que o configuram como um texto que se destina não somente à encenação, mas
também à leitura.
Trazemos o resultado das leituras empreendidas nos dois volumes que compõem esta
tese. No volume digital, apresentamos o texto integrado ao arquivo hipertextual de Jurema
Penna, conforme a estrutura descrita na seção 4.2. No volume em suporte papel, traremos
somente o texto crítico.
158

4.3.1.1 Texto crítico de Iemanjá – rainha de Aiocá

[Capa]

IEMANJÁ

RAINHA DE AYOCÁ

TEXTO DE

JUREMA PENNA
159

[Folha de rosto]

IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ


Texto de
JUREMA PENNA
Escrita em 1972 – RJ
Revista em 1980 – Salvador –BA

Título original –
A MOÇA DOS CABELOS VERDES
160

[Epígrafe]

“Primeiro estava o mar,


tudo era escuro.
Não havia sol, nem lua,
nem gente, nem animais,
nem plantas.
O mar estava em todas as partes,
o mar era a mãe.
A mãe não era gente, nem nada,
nem coisa alguma.
Ela era o Espírito
que estava por vir;
e ela era pensamento
e memória.”

Mitologia da tribo Kogui.


161

[Prólogo]

“Zoio Azul era um mulato forte, tinha os “oios” da


cor do mar; era alegre, bom de briga e de copo. Não
lhe faltava mulher. Depois da noite que viu a Mãe
d’Água, nunca mais prestou…. até que ficou lá.. no
palácio d´Ela. Eu conheci ele, dona moça. Pescador
bom, ‘tava ali.”
Assim, o velho pescador encerrou a conversa
comigo.
Isso foi há muito tempo.
Nunca mais esqueci.
Então, nasceu:
162

[Relação dos personagens, descrição do cenário e da época]

IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ

CENÁRIO
A ação se passa numa praia de Salvador, onde os pescadores, isolados da "civilização", vivem com suas
crenças, seus cultos e os mistérios da mãe-mar. Mãe que pode lhes dar tudo ou tudo tirar. Nesta praia, marcar
alguns ambientes tais como: a casa de Pedrão, casa de Mãe Rosa, varais das remendeiras, barraca de Cazuza,
pedra de Severino.

PERSONAGENS

PEDRÃO – Pescador de linha de fundo. Forte, querido por todos. Entre 28 e 32 anos.

DULCE – Mulher de Pedrão.

ARRUAÇA – Filho de Pedrão e Dulce. Seu verdadeiro nome é Domingos. 18 anos.

PEQUENA – Mulata jovem e bonita.

CAZUZA – Dono do boteco. Homem tranquilo, marido de Duzinha.

DUZINHA – Mulher decidida, ciumenta, capaz de usar uma navalha. Muito humana.

MÃE ROSA – Mãe de Santo. Sua figura é de uma suave rainha.

SETE-MOLA e
PÉ-MOLHADO – Pescadores.

RAIMUNDÃO – Pescador. Ogã da casa de Mãe Rosa.

CEIÇÃO e
TONINHA – Remendeiras de rede. Ceição é filha de Severino.

SEVERINO – Velho nordestino, quase cego, místico, visionário.

IAÔ – Personagem sem explicações frias e racionais. No “dizer do povo” é "uma fraca da cabeça” – “D. Iemanjá
desceu nela e ninguém nunca mais acertou a tirar.”

ÉPOCA
Em qualquer tempo em que os homens ainda creiam que “há muita coisa entre o céu e a terra que a nossa vã
filosofia não consegue explicar”.
– Hamlet – Shakespeare.
163

01
IEMANJÁ – RAINHA DE AIOCÁ

O início de peça é marcado com um longínquo canto de puxada de rede que se aproxima aos poucos, à medida
que cresce a luz de amanhecer. A estranha mulher, com suas roupas longas e transparentes, flores e fitas nos
cabelos longos, fita o mar com o seu olhar perdido: é a Iaô. Chegam à praia as remendeiras de rede. Cazuza e
Duzinha iniciam a arrumação da barraca (Boteco). Na casa de Pedrão, Arruaça toma café enquanto Dulce cuida
da casa. As remendeiras arrumam a rede prendendo-a em varais para iniciar o seu trabalho, enquanto conversam

TONINHA – Cê viu, Ceição, a lua dessa noite?


CEIÇÃO – E quem não viu? (Tom) Me dá uma saudade tão doída…
TONINHA – Saudade de quem, mulher?
CEIÇÃO – De minha terra.
TONINHA – Por que saiu de lá?
CEIÇÃO – A seca. A gente retirou.
TONHINHA – Deve ser triste.
CEIÇÃO – Se é…
TONINHA – Também é triste ficá aqui esperando. Tem sempre um medo danado apertando o coração da gente.
(Pequena pausa)
CEIÇÃO – Tomara que a rede venha farta.
(Um tempo. Olham o mar e cantam)
Fui no mar buscar laranja
Coisa que no mar não tem
Voltei toda molhadinha
Das ondas que vão e vêm.

CASA DE PEDRÃO
(Arruaça acaba de tomar o café)
ARRUAÇA – Já vou, mãe.
DULCE – Pra onde?
ARRUAÇA – Vou dá uma mãozinha na puxada; depois vou buscar o gelo.
DULCE – No compadre Cazuza?
ARRUAÇA – Não sinhora, vou no galego.
DULCE – ‘Tá certo. Mas vê se não procura briga.
ARRUAÇA – Não procuro não, mãe. São eles que provoca.
DULCE – Vai com Deus e não demora. Teu pai está chegando.

REMENDEIRAS
(Cantam)
Como dói meu coração
Esperar pelo meu bem
Vou cantar uma cantiga
Enquanto ele não vem.
164

02

BOTECO

DUZINHA – Hoje vai ser um sol de torrar o miolo.


CAZUZA – Até hoje ninguém torrou.
DUZINHA – Já sim. Diz que seu Severino ficou assim, foi do sol.
CAZUZA – Mas não foi o sol d’aqui. Foi o sol do sertão.
DUZINHA – E tem dois sol, é? Sol é um só.
CAZUZA – Êta mulher descompreendida. Tu bem sabe o que é que eu ‘tô falando. É que aqui tem vento, tem
sombra, não tem seca. Se o sol daqui torrasse miolo, tudo quanto era pescador tava de miolo mole, tudo doido por
aí.
DUZINHA – Mas anda tudo de chapéu na cabeça. Deve ser de medo.

REMENDEIRAS

TONINHA – A vida da gente é esperar. Quando não é esperar é esquecer.


CEIÇÃO – Como foi?
TONINHA – Como sempre. Saiu pro mar, como saía todo dia. Em cima da jangada. E eu fiquei na praia, como
ficava todos dia: parada. Toda parada vendo ele se afastar. O olho preso vendo meu home diminuir, diminuir, até
ser um pontinho preto nesse mundão azul. A gente não sabe nunca, se aquele pontinho vai crescer de novo ou se
vai sumir pra sempre. Quando a jangada deu na praia, tava com mancha de sangue. Diz que foi cação.
(Pausa, cantam)
Entrou lua, saiu lua
mas inté de madrugada
esperei o meu benzinho
foi pro mar, numa jangada.

(A rede chegou. Os pescadores vêm com seus apetrechos de pesca e seus cestos com o resultado de uma
pescaria farta. Pedrão traz, além do cesto, suas linhas de fundo; os pescadores vão alguns para suas casas,
outros para o boteco. Pedrão se encaminha direto para casa).

CASA DE PEDRÃO

Casa típica de pescador. Humilde, pobre e muito limpa. Em cena os elementos estritamente necessários para a
ação; Dulce, depois de ter lançado um olhar de imensa gratidão ao pequeno altar de Iemanjá, ajuda Pedrão a
tirar o cesto que traz à cabeça)

DULCE – Chegou cedo.


PEDRÃO – É. Peixe ‘tava comendo bem. Arruaça melhorou?
DULCE – Já ‘tá bom. Ele ‘tava era com luxo. Botei o unguento de mastruz que Mãe Rosa mandou. Ela botou a
doença toda pra fora na tosse.
PEDRÃO – E o xarope de agrião com ameixa, ‘cê fez?
DULCE – Fiz, homem de Deus.
165

03
PEDRÃO – E a febre já foi?
DULCE – É de hoje!… Tem mais de três dia.
PEDRÃO – Cadê ele?
DULCE – Disse que ia dar uma mãozinha na puxada de rede. Depois ia buscar o gelo.
PEDRÃO – Com aquele resto de tosse, carregando gelo na cabeça…
DULCE – Ô xente, Pedrão. Cê acha que se ele não ‘tivesse bom de todo, eu deixava ele ir?

PRAIA

(Arruaça vem com um balde de gelo na cabeça. Ao passar pela frente do boteco, Sete-Mola e Pé-Molhado
começam a se divertir às custas dele)

PÉ-MOLHADO – Tá levando pedra d'água, companheiro?


SETE-MOLA – Tá suando gelado, meu irmão?
ARRUAÇA – Deixa de brincadeira comigo!
SETE-MOLA – Que é isso parceiro, tá estranhando os amigo?
PÉ-MOLHADO – Como é que tá a temperatura aí em cima?
ARRUAÇA – É melhor parar com a brincadeira!
PÉ-MOLHADO – Tá metido a porreta só porque entrou pro ginásio?
SETE-MOLA – Então toma cuidado, parceiro, de tanto carregar pedra d’água na cabeça, pode congelar teu juízo
e tu ficar mais burro que a gente.
ARRUAÇA – Já falei pra me deixar em paz!
PÉ-MOLHADO – (Gozador) Ai meu Deus…
ARRUAÇA – (Esgotou a paciência. Para, coloca o balde no chão e rapidamente abre o canivete) Quem for
homem, corra dentro! Pode vim os dois de vez! (Pe-Molhado e Sete-Mola apesar de mais velhos e bons
capoeristas fingem que realmente estão com medo e saem correndo com Arruaça atrás)

REMENDEIRAS

(Se relacionaram com a ação)

TONINHA – É assim: Machão. Mania de briga!


CEIÇÃO – Não é à toa que botaro o nome dele Arruaça.
TONINHA – Mas tu gosta dele.
CEIÇÃO – Gosto sim. Mas, não é por isso que vou deixá de falá. Depois, é um gostá sem esperança.
TONINHA – Não vejo porque.
CEIÇÃO – Ora, Toninha, ele está estudando. Quando se formar não vai me querê mais não.
TONINHA – Isso é que você não sabe. O futuro a Deus pertence. (Surge Severino) É vem pai (Aproximando-se
dele) Bença, pai.
SEVERINO – Que meu padim padre Ciçro abençoe tudo. Os peixe do mar, as fulô dos mandacaru, o riacho das
cacimbas e os passarinhos do céu.
166

04
CEIÇÃO – Tomou seu café, pai?
SEVERINO – E o João? Que hora a canoa dele volta?
CEIÇÃO – (Muito constrangida) Daqui a pouco, pai.
SEVERINO – Mentira! É mentira! O mar engoliu ele, canoa e tudo! O povo tira os peixe do mar. O povo joga a
água amarela, cor do enxofre do diabo, nas águas do mar. O enxofre do diabo mata os peixe e envenena tudo. O
mar fica com fome. O mar precisa de sangue dos pescador pra matar a fome dele. A fome do mar é grande.
(Para estático, ameaçador. Ele e a Iaô se fitam fixamente.)
CEIÇÃO – Senta, pai. (Severino se senta numa pedra. Sua expressão vai ficando muito mansa. Aos poucos ele
inicia um cantarolar triste de uma velha canção sertaneja).

BOTECO

DUZINHA – (Referindo-se a Severino) Virge Mãe, isso me corta o coração.


CAZUZA – Cada qual cumpre a sua sina.
DUZINHA – É isso que me revolta
CAZUZA – Isso o que, criatura?
DUZINHA – Essa pasmaceira. Essa conformação besta. Tudo que acontece é a sina, é a vontade de Deus.
CAZUZA – E não é não?
DUZINHA – Sei lá!… às vez fico pensando: será que a zanga de Deus é só pros lado dos pobre, é?
CAZUZA – E rico não fica maluco não?
DUZINHA – De ficá, fica. Mas não fica pela rua, dando dó na gente e metendo medo a menino. (Vem se
aproximando Raimundão tocando berimbau; com ele vêm Sete-Mola e Pé-Molhado. A praia se anima. Sete-
Mola e Pé-Molhado iniciam o jogo de capoeira. À chegada de Pedrão eles terminam o “brinquedo”)
PEDRÃO – Continua, gente!
PÉ–MOLHADO – A gente já brincou demais.
RAIMUNDÃO– Escuta aqui, Pedrão: Por que você também não brinca um pouco? Eu sei que tu é bom de ginga.
PEDRÃO – (Entre gozador e vaidoso) Sou bom em tudo, rapaz, só que não faço gosto. Cês sabem que em terra
tô sempre de passagem. Meu bem-querer é as lonjuras do mar. No mar eu nasci, no mar quero morrer. Vamos
tomar uma?

REMENDEIRAS

CEIÇÃO – É verdade?
TONINHA – O que, menina?
CEIÇÃO – Que ele nasceu no mar?
TONINHA – Seu Pedrão? (Ceição diz que sim com a cabeça) Foi sim. Na meia travessa. Em cima do saveiro de
Silvano: o Lua Bonita. A finada Julinha de Oxum vinha de Mar Grande pra cá, pra ter menino. Dona Oxum não
quis, ele nasceu em cima das águas dela. No saveiro mesmo. O umbigo dele foi jogado no mar.
167

05
BOTECO

(Duzinha serve a bebida juntamente com Cazuza)


RAIMUNDÃO – Cê ‘tá pagando Pedrão?
PEDRÃO – Claro. Quem convida dá banquete.
SETE-MOLA – Todo homem que sabe capoeira deve ‘tá sempre treinando, Pedrão.
PEDRÃO – Tenho que dar muito rabo de arraia é nas ondas do mar. Em terra o que eu sei dá pro gasto.

NA PRAIA

(Arruaça vem buscar o balde de gelo e verifica que o gelo derreteu. Faz um gesto de raiva incontida. As
remendeiras riem, ele faz que nem percebeu e sai)

BOTECO

PÉ-MOLHADO – E você acha, Pedrão, que no mar é melhor de se viver?


PEDRÃO – Eu acho. A gente sabe que vai e não sabe se volta. Por isso mudei de ideia. Agora sou morador do
mar. O mar é que é a minha terra. Aqui tô de estrangeiro.
PÉ-MOLHADO – Turista!!! "Ispique inglis"? Isso é americano! Aprendi a falar assim no porto. "Ça va"? –
Francês. "Que bela regaça. Capite?" – Italiano. Qual é? Gringo comigo não fica mudo não. A gente se entende.
RAIMUNDÃO – (Para Pedrão) E tuas obrigações com a santa, tu já fez?
PEDRÃO – É vem ôcês com essa conversa. ‘Cês sabem que eu não acredito.
RAIMUNDÃO – Toma cuidado, Pedrão. Tu brinca com que tu quiser, mas deixa a Dona Moça em paz. Isso é
coisa séria e muito fina. (A Iaô ronda o bar)
PEDRÃO – Ignorância, isso sim. Acredito mesmo é nesses dois braço. Esse negócio de candomblé é pra encher
os bolsos dos pai de santo. (Arruaça chegou ao bar. Meio sem graça, balde na mão)
RAIMUNDÃO – Tu ‘tá falando demais, Pedrão.
PEDRÃO – Tu já viu religião que se preza ser atração pra turista?! Agora então virou moda. Religião é religião,
ora essa!
SETE-MOLA – E tu acha então que é tudo mentira?
PEDRÃO – Já falei. Se essa tal de Dona das Águas existe que me apareça. Taí, no dia que eu vê, eu acredito.
RAIMUNDÃO – Cuidado, Pedrão, ela pode castigar você.
PEDRÃO – Sai dessa seu Raimundão. Eu só queria vê prá crer. Só isso. Não diz que é tão bonita? Então por que
se esconde da gente? (Um silêncio constrangedor. Os olhos de Pedrão se encontram com os olhos da Iaô.
Pedrão se volta, vê Arruaça)
PEDRÃO – Que é que há, rapaz? ‘ Tá com cara de cachorro quando quebra prato.
ARRUAÇA – Pai…olhe… eu…

06
168

PEDRÃO – Ficou gago? Desembucha! Cadê o gelo?


ARRUAÇA – Bença, pai.
PEDRÃO – Deus te abençoe. Mas, donde ‘tá o gelo? já levou pra casa? Fala, menino.
ARRUAÇA – Bem, o negócio foi o seguinte; eu vinha andando com o balde de gelo na cabeça, aí, esses baiacus
inchado ficaro me gozando. Num guentei, puxei o canivete e eles sairam correndo e eu atrás. Deixei o balde na
praia, depois… quando fui ver o balde o gelo tinha derretido. Só tinha água.
PÉ-MOLHADO – (Numa gargalhada) O sol levou o gelo e mijou no lugar! (Todos riem. Arruaça se enfeza,
Duzinha percebe e o controla com um leve carinho. Ele engole a raiva)
PEDRÃO – E agora?
ARRUAÇA – Olha, pai, não precisa bronquear não. Eu tenho dinheiro pra comprar mais gelo.
PEDRÃO – Corta essa de bronca, rapaz! Quero filho meu levando desaforo pra casa? Ô seu Cazuza, dá gelo aí
pro Arruaça. (Cazuza atende)
PÉ-MOLHADO – Tu devia deixar o menino pescar.
PEDRAO – Quero não. Ele tá muito bem na escola. Analfa na família basta eu. Basta ser igual a mim na
valentia, na macheza; e isso ele é!
RAIMUNDÃO – É de valentão mesmo que ela gosta!
PEDRÃO – Pois que venha. Mulher bonita é comigo mesmo que se acerta!
RAIMUNDÃO – Tá falando besteira, Pedrão, deixa de desafiar a Moça. Ela é sestrosa e cheia de capricho. Basta
ouvir o canto…
PEDRÃO – Pois eu já gosto de uma cantora.

REMENDEIRAS

(Cantam).
A Mãe d’água quando canta
pros lado do pescador
sua voz fica tão doce
qu'ele esquece seu amor.

CASA DE PEDRÃO

(Arruaça chega com o balde de gelo)


DULCE – Domingos, pega os jornal pra botar o gelo em cima. Tá aí em cima da mesa. O martelo tá na gaveta.
Onde ‘tá teu pai?
ARRUAÇA – Na barraca de Seu Cazuza tomando umas.
DULCE – Disse se vai demorar?
ARRUAÇA – Falou nada não. Mas vem pra boia. (Pausa) Mãe…
DULCE – Que é?
ARRUAÇA – Nada não.
DULCE – Ô xente, menino, ‘tá feito doido? Começa a dizer as coisas e depois não é nada!
ARRUAÇA – (Um tempo depois decide) É que o pai tava falando besteira de novo. Disse que não acredita em
D. Iemanjá que… só acredita no dia que vê.
DULCE – Não se avexe não, meu filho. Não vai acontecer nada não. Minha mãe Oxum não vai permitir. Eu faço
as minha obrigações prá Dona Iemanjá conforme os preceito por mim e por ele. Faço tudo nos conformes.
169

07
PEQUENA – (A entrada da casa) Ó de casa!
DULCE – Vá entrando, Pequena.
PEQUENA – (Entrando) Salve as águas.
DULCE – Salve.
PEQUENA – (Dando uma amigável palmada em Arruaça) ‘Tá ficando home, hein, Arruaça!
ARRUAÇA – ‘Tá ficando, não senhora. Já nasci home. E quer saber de uma coisa? Não gosto que rabo de saia
me chame de Arruaça. Meu nome é Domingos!
PEQUENA – Tá certo, galinho de briga. Cadê teu pai?
ARRUAÇA – Pra quê tu quer saber?
PEQUENA – Deus é mais! A gente nem pode ter boa educação que o povo malda logo!
DULCE – (Conciliadora) Liga não, Pequena. Esse menino é assim mesmo, tem mais ciúme do pai do que eu.
Pedrão está no bar de seu Cazuza. (Arruaça se retira em “sinal de protesto” e vai cuidar do gelo).
PEQUENA – Só queria saber da pescaria de ontem de noite.
DULCE – Deu farta.
PEQUENA – Arruaça vai dar um homem bonito! … quem diria que vi ele nascer?
DULCE – E tu se lembra? Tu era bem menina. Como foi o samba?
PEQUENA – Começou bem, como sempre.
DULCE – Teve briga de novo?
PEQUENA – Só ameaça. O povo da rede de Ilário do Rio vermelho ‘tava lá. Ficou só nos xingamentos,
provocação, essas coisa. A turma do deixa-disso agiu cedo, e tudo terminou bem.
DULCE – É sempre assim: vai tudo muito bem enquanto a cachaça não sobe pra cabeça.
PEQUENA – E o galego do restaurante, tá em dia com as conta?
DULCE – Tá sim. Seu Diogo é boa paga. É por isso que Pedrão vende o peixe direto. Intermediário é que
atrapalha. Toma um cafezinho, Pequena.
PEQUENA – (Aceita) Teu café é gostoso; tudo teu é bom assim? (Riem)
DULCE – Ô Pequena, quando é que tu vai falar com mãe Rosa?
PEQUENA – No dia que eu for eu lhe aviso. (Intencional) Tá com problema, Dulce? (A Iaô para na porta da
casa)

BOTECO

(Os homens jogam “pauzinhos”, mãos fechadas, apostas feitas. As mãos se abrem, contam)
SETE-MOLA – Ganho eu!
PEDRÃO – É Iemanjá, Oxum, Nanã ou Janaína que te ajuda no jogo, Sete-Mola?
REMENDEIRAS – (Cantam) Iara, Janaína,
Iemanjá, Nanã, Oxum
Das águas a rainha
com os poderes de Olorum.
CEIÇÃO – É verdade mesmo?
TONINHA – O que?
CEIÇÃO – Isso que o povo fala. Isso de vê a Mãe d’Água. Alguém já viu?
170

08
TONINHA – Minha vó contava que a mãe dela contava a ela, que conheceu um que viu.
CEIÇÃO – Foi mesmo?
TONINHA – Pra que havera de mentir?

BOTECO
(O jogo continua)
PEDRÃO – (Depois de contar os pauzinhos) Assim não vale, Sete-Mola, você ganha todas.
SETE-MOLA – Meu santo é forte, rapaz!
PÉ-MOLHADO – É. Na hora da cachaça, do jogo e das grinfa!!!!
SETE-MOLA – Tu tá querendo dizer que sou filho de Exu? Respeito é bom e meu santo gosta. Brinque com
meu Ogum e depois não se queixe.
PÉ-MOLHADO – Tá certo, meu irmão. Tá na hora da bóia, vamo acabá com o jogo.
RAIMUNDÃO – Tá correndo da raia, Pé-Molhado?
PEDRÃO – Pede a Santa, rapaz (Vai apontando um por um). Tu dá um frasco de cheiro, tu dá uma caixa de pó
de arroz, tu dá um par de brinco e tu dá um espelho.
CAZUZA – Pere aí meu compadre, não me mete nisso não. Eu tô calado até agora!
PEDRÃO – Pois é. Aí ninguém perde, mas também ninguém ganha. (Pequena chega à porta do bar, ele a vê,
vai até ela com o copo na mão, oferece a ela enquanto fala; a Iaô está presente) É o que eu estou dizendo:
mulher bonita é comigo mesmo que se acerta, seja encantada ou de carne e osso. (Se afasta com Pequena)
DUZINHA – É, mas tem umas que são só de fogo! Vim buscar os home dos outros no bar.… essa não.
RAIMUNDÃO – (Referindo-se ao que Pedrão disse) Tenho pena dele. O pior vai ser é se o castigo vier pra
todos que nem aconteceu no Rio Vermelho.
DUZINHA – Fala isso não, seu Raimundão. Deus é mais. (Bate três vezes na madeira dos caixotes que formam
o bar; todos da cena batem também)

REMENDEIRAS
CEIÇÃO – O que foi?
TONINHA – O que?
CEIÇÃO – Que aconteceu no Rio Vermelho?
TONINHA – Tu não sabe não?
CEIÇÃO – Como havia de saber? Não cheguei aqui por nascimento, cheguei por estrada de poeira e sol.
TONINHA – Os antigos é que sabe. Mas eu vou lhe contar. Tim-tim-por-tim-tim. Como me contaram.
(Mudança de luz. Dramatizar a cena com dança, usando a Iaô como Iemanjá e os atores do elenco assumem os
personagens da lenda contada por Toninha)
TONINHA – Foi numa noite bonita, de mar calmo, e muita estrela.
CEIÇÃO – E tinha lua?
TONINHA – Não. Lua não tinha. E ninguém sabe dizer donde Ela apareceu. – Só sabem contar que, ‘tava ali:
parada na praia, com seu belo negrume, coberto de luz.

09
171

CEIÇÃO – Mas, não tinha lua.


TONINHA – Não. Lua não tinha. Quer dizer – não tinha no céu – mas, parece – diz o povo, tinha luz de lua por
donde ela ia. Uma lua que ninguém viu, pelo menos no céu.
CEIÇÃO – Virge Maria, que coisa bonita!
TONINHA – Dissero a mesma coisa, os pescador, que se assustaro com tanta beleza
CEIÇÃO – Um susto de beleza. Nunca vi contar.
TONINHA – Mas foi bem assim que aconteceu. Depois do susto eles começaro a chamar a Beleza pra nadar.
CEIÇÃO – E ela foi?
TONINHA – Diz que foi. E quando entrou nas águas do mar, parecia que as onda era berço de água, ninando
criança, apenas nascida. Ela sorria, sorria, brincava com as espumas cheias de luz que dela saía. Mas aí… nem
gosto de alembrar.
CEIÇÃO – Tu parece que viu.
TONINHA – Claro que vi. E tô vendo agora, com os olhos que tenho, no meu pensamento.
CEIÇÃO – Mas conta, menina.
TONINHA – Mas antes carece dizer a você que tudo aconteceu lá no Rio Vermelho, quando o xaréu era o peixe,
que por ali mais dava. Era riqueza de todos, fartura de mesa, alegria saída do fundo do mar, pulando nas redes,
dançando a cantiga, que veio da África, em música de negro, puxando a rede, cantando feliz (Pausa)
CEIÇÃO – Por que parou?
TONINHA – E naquela noite, depois de nadar, Ela sentou na pedra, e põe-se a cantar. Não sabem dizer, se era
flores cantando, trinado de pássaro, se música de estrela, ou som do luar…
CEIÇÃO – Ninguém teve medo?
TONINHA – Não. Medo não houve. Mas diz que Pinguinho, que era o mais moço, desconfiou de coisa
encantada. Pros matos correu, colheu uma flor, e trouxe pra ela. Ela sorriu, e nos cabelos, a flor colocou. Ele com
muito respeito, pros mato voltou e lá se escondeu.
CEIÇÃO – E os outro, que fizero?
TONINHA – Parece que os Exu por eles entraro: e, então começaram à Beleza tentar. Convidaram a Moça,
como se fosse uma qualquer, para cachaça beber.
CEIÇÃO – Mas ela não aceitou.
TONINHA – E que Deus me perdoe, que home às vez é bicho mau. Quisero todos deitar ela ali na praia, pra
d’Ela abusar. Ela correu que cansou. Mas ninguém conseguiu, nem mesmo abraçar. Sua pele macia ficava de
limo, escorregando de lisa.
CEIÇÃO – Vai, menina, não pára de falar.
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10

TONINHA – Então, Bom Cabelo, mulato brigão, metido a valente, disse pra Ela a frase infeliz “Se tu é tão santa,
melhor que as outra, entra ali naquela Igreja, e vai pro altar.”
CEIÇÃO – Mas isso é blasfêmia.
TONINHA – De todos os dois lados.
CEIÇÃO – Diz logo, menina, o fim dessa estória.
TONINHA – Diz que ela parou, mirou todos eles, bem no fundo dos olhos. Ameaçou bem mansinho assim com
a mão (Gesto de “espere“). O dia chegava, devagarinho, mandando pro céu os primeiros rosados. Depois olhou
pro encontro do mar com o céu, e foi andando muito de leve, para dentro do mar. E nunca, nunca mais, o xaréu
apareceu, pras rede do povo, lá do Rio Vermelho (Tempo: cantam)
Pescador deve fugir
do canto de Iemanjá
e se vê sua beleza
nunca mais pode amar.

CASA DE MÃE ROSA


(No quarto dos orixás um peji, espécie de altar que sobe em degraus, coberto com uma toalha branca, bordada.
Vasilhas (alguidar) de cerâmica com as obrigações arrumadas aos pés do peji. Velas, pipoca, flores, perfumes,
pedras lisas, garrafas de mel. Sobre os degraus além das “armas" dos orixás, como o machado de Xangô, o
pachorô de Oxalá (em destaque), os abêbés de Oxum e Iemanjá, arco e flecha de Oxóssi, espada de Iansã,
ferramentas de Ogum, também algumas imagens de santos católicos como Santa Bárbara e São Jorge e São
Cosme e Damião, além de imagens de índios como Pedra Furada e Jurema. Em peji de candomblé da Bahia não
há pomba gira, nem preto velho ou qualquer alusão a Exu. Exu tem sua própria casa. Na parte mais alta do peji
a “Dona da Casa” Iemanjá cercada de flores e fitas. Ao lado do peji uma pequena mesa forrada de toalha branca
e, sobre ela, um copo d'água, uma vela acesa, búzios, num tamborete, lápis e um pequeno bloco. Guias contornam
a mesa formando um círculo, dentro do qual será jogado o ifá: jogo de adivinhação. Sentada à mesa está Mãe
Rosa, concentrada e não manifestada, vestida simplesmente, de preferência de branco, torço branco na cabeça,
guias dos seus orixás, pulseiras contra egun). Mãe Rosa acaba de atender Pequena.
MÃE ROSA – Vá com Deus, minha filha.
PEQUENA – Seu Axé, minha mãe. Posso chamar Dulce?
MÃE-ROSA – Pode sim.
PEQUENA – (Depois de bater cabeça no peji vai chamar Dulce) Vem, é tua vez.
DULCE – (Entra, bate cabeça no peji, e depois quase ajoelhada diante de Mãe-Rosa) Seu axé, minha mãe.
MÃE ROSA – A nós todos, minha filha. Como vai Domingos?
DULCE – Já tá bom, minha mãe, graças à senhora.
MÃE ROSA – A mim, não. A Deus e a Seu Ossain, que é o dono das folhas.
DULCE – E a senhora, mãe, como vai?
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11

MÃE ROSA – Como Deus quer, Oxalá permite, e as Águas deixa. Tome assento minha filha. (Dulce se senta.
Mãe Rosa se concentra. Benze os búzios com o copo depois de ter orado em murmúrio sobre o mesmo. Toma os
búzios na concha das mãos, sopra três vezes, invoca os orixás e os joga sobre a mesa. Observa-os). Cabeça
quente, minha filha? Por que? O curumim não já tá bom? (Dulce permanece em intenso silêncio. Mãe Rosa
recolhe os búzios e joga outra vez) Por que essa preocupação com Pedrão, hein? O que é que ele arranjou agora?
Rabo de saia ou as mesma baboseira de sempre?
DULCE – Pois é como eu digo a senhora, mãe: Pedrão é bom; bom pai de família, o que ganha leva pra casa. A
senhora sabe que eu lavo de ganho, porque gosto de ter o meu, e gosto do trabalho, mas pelo gosto dele eu nem
trabalhava. De vez em quando ele arranja uma mulher na praia, mas a senhora sabe, nada de sério, coisa do bicho
home, mesmo. Agora, mãe… ele tá cada vez pior. Só vive desafiando a santa. E eu tenho medo. Muito medo,
mãe. (Mãe Rosa entrega o bloco e o lápis a Dulce. Vai ditando o que lê nos búzios. Sons de atabaques. A Iaô
passeia em redor da casa dirigindo-se ao terminar o toque para as remendeiras)
REMENDEIRAS (Cantam)
Iemanjá bela rainha
mãe de todos orixá
quer seus filhos perto dela
e do pai grande Oxalá.
CEIÇÃO – (Olhando o pai que silenciosamente prepara uma escultura de madeira) Tenho tanta pena de pai, era
tão ativo.
TONINHA – Trabalhava de que?
CEIÇÃO – De aboio; no roçado. Trabalhadô bom, tava ali.
TONINHA – Ficou assim de repente, foi?
CEIÇÃO – Não. Foi aos tiquinho. Começou na retirada com a morte de mãe. Depois morreu o menor. Morreu
dormindo. Acho que foi de sede. A gente nem viu a hora. (Arruaça chega às rendeiras. Deita a cabeça no colo
de Ceição. Toninha olha pro mar tristemente)
SEVERINO – (Começa o seu canto sertanejo)
Quando eu vim de lá de cima
Do meu sertão, – vaqueiro
Paracata velha no pé – vaqueiro
Chapéu de coro na mão – ai, ai, ai, ai, – ê boi.
Vaqueiro que hora é essa
a maré já 'tá enchendo
seu gado esparramado – vaqueiro
que tá fazendo, ai, ai, ai, ai, Hei boi, hei boi! (Ele anda pelo palco como se vaquejasse, dando nome aos bois)
Hei Malhado, cabra da peste, onde é que tu vai? Pé de Pau, tu tá doido, bicho? Volta, Rabo Curto, fio de uma
égua! Tão cá gota? (Ceição se levanta e reconduz o pai para o lugar dele. Arruaça tenta quebrar a tensão
atrapalhando o serviço de Ceição depois que ela volta).
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13
CEIÇÃO – Para com isso, Domingos!
ARRUAÇA – É assim, é? Venho ficar com você e você inda reclama?
CEIÇÃO – Se veio fazer favor, pode ir. Não tava querendo brigar com Sete-Mola mais Pé-Molhado. Que mania
mais besta essa de valentão!
ARRUAÇA – Até você é? Todo mundo quer mandar em mim. Que merda!
TONINHA – Briga não. Aproveita o bem querer de vocês. Briga estraga. (Ceição e Arruaça se entreolham, ele
se aconchega no colo de Ceição. Vêm do lado oposto Pé-Molhado e Sete-Mola)
ARRUAÇA – Hei, onde é que ‘cês vão?
PÉ-MOLHADO – Bestá por aí.
SETE-MOLA – Contaro que tem um carro atolado na areia perto da estrada.Vamo ajudá.
ARRUAÇA – E tem mulher de biquíni?
PE MOLHADO – Diz que tem.
CEIÇÃO – Quer dizer, se não tivesse tu não ia, não era?
SETE-MOLA – Pronto!
PÉ-MOLHADO – Vai jogar areia é, Ceição?
CEIÇÃO – Não tô falando com você.
ARRUAÇA – Vamos, gente! (Para Conceição) Cabeça de camarão. (Beija o rosto dela rapidamente e saem os
três)
CEIÇÃO – Que é isso? Cabeça de camarão?
TONINHA – (Rindo) É que camarão só tem merda na cabeça!
CEIÇÃO – Descarado! Ele me paga!
BOTECO – (Dulce segura o papel que Mãe Rosa ditou. Cazuza e Duzinha despacham ela. A Iaô no fundo do
boteco)
MÃE ROSA – (Voz off) Um frasco de cheiro, uma garrafa de mel, um colarzinho, um prato branco virgem, um
metro de fita azul, um metro de fita rosa, um metro de fita branca. Colocar tudo em maré mansa, sem onda, em
lugar calmo.
DULCE – É só. As rosa eu tenho no quintal.
CAZUZA – Vai dar presente às água, minha comadre?
DULCE – Quem tem marido pescador, precisa cuidar das moças do mar.
DUZINHA – E as da terra?
DULCE – Dessas não tenho medo não, minha comadre. Pedrão pode andar por aí, mas sempre volta pra casa.
Mas as do mar…
CAZUZA – E a senhora acredita mesmo, comadre?
DUZINHA – Ô xente? Se não acreditasse tava comprando presente? Eu, hein!…
DULCE – E o senhor duvida?
CAZUZA – Sei não. Tenho visto coisa que me faz crer, e coisa que me faz duvidar. Depois, é tudo muito
atrapalhado. Eu fico mesmo com Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Conceição.
DULCE – É, o senhor não é pescador…
DUZINHA – Não é pescador, mas vive à custa dos pescador. Tu também precisa de bom tempo, de pescaria
farta. Tu fica blasfemando, que um dia Dona Iansã se dana e manda uma ventania da zorra que essa barraca sai
voando por aí.
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13
CAZUZA – (Batendo na madeira) Credo in cruz. Isola!
DUZINHA – (Gozadora) Ô xente, tu não disse que só acredita em Deus? Pra que é que tu tá isolando? Tá com
medo da dona dos raios, é? Quem já viu se ter medo do que não existe?
(Sai com Dulce do boteco, vão andando pela praia)

PRAIA
DUZINHA – (Continuando a conversa do boteco) Eu acho engraçado, minha comadre: esse povo diz que não
acredita na seita, mas vive tudo dentro das casa das mãe de santo; usa guia, dá caruru de Cosme, caruru de Santa
Bárbara, tá tudo no Rio Vermelho no dia do presente, veste branco toda sexta–feira!!! É cada uma.
(Conversando chegaram ao grupo de pescadores. Pequena está com eles)
RAIMUNDÃO – Tu vai pescá hoje, Pedrão?
PEDRÃO – Vô não. Vô só vê se algum ladrão mexeu nas marca do meu pesqueiro. (Intencional para Pequena.
Duzinha percebe) E depois vô lá nas pedras tirar umas pinaúnas.
ARRUAÇA – Deixa eu ir, pai.
PEDRÃO – Pra que? Outro dia eu lhe levo.
DULCE – Leva ele, Pedrão.
PEDRÃO – Não tira a minha ordem, mulher. Já falei que não.
ARRUAÇA – Tá certo. Vou pro baba. (Sai correndo – baba. Mesmo que pelada)
MÃE ROSA – (Que vem do outro lado da praia) Bom dia, povo! (Todos a cumprimentam com muito respeito)
RAIMUNDÃO – Calofé, Mãe Rosa.
MÃE ROSA – Calofé - ê-mim.
RAIMUNDÃO – Donde vem assim, tão cansada?
MÃE ROSA – Fui lá no Mercado Modelo. Fui buscar uns búzios da África que encomendei a Camafeu. Esses
caoris tão pela hora da morte. Cada vez mais caro. (Para Dulce) Já deu seu presente, Dulce?
DULCE – Acabei de comprar as coisas, agora, tava só esperando o dinheiro da roupa de D. Carmem.
MÃE ROSA – Já vou indo. Que D. Oxum fique com vocês.
RAIMUNDÃO – Que pressa é essa? Descansa mais um pouco!
MÃE ROSA – Posso não. Tenho obrigação dos outros pra fazer hoje, antes do sol dobrar. Axé! (Vai saindo
devagar e magestosa)
PEDRÃO – (Em direção ao mar) Cuida da casa, Dulce. Tô indo pro mar. Quem sabe eu vejo Ela. Será que
aparece de dia? Diz aí, Sete-Mola, pra ver se confere. (Mãe Rosa para sua caminhada)
REMENDEIRAS (Catam:) Ela tem cabelos verdes
e nos olhos luz de lua
dentes alvos de espuma
noite negra na pele nua.
(O grupo se entreolha amedrontado. A Iaô marca a sua presença)

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DULCE – Vamos simbora minha comadre. ‘Pere aí Mãe Rosa a gente leva a senhora até a segunda ponte. Té
logo gente. (Saem as duas em direção de Mãe Rosa. As três saem de cena. Dulce depois voltará para a casa.
Pequena a observa. Assim que ela sai, ela faz menção de sair)
RAIMUNDÃO – (Para Pequena) Tu não tem vergonha mesmo, não é, Pequena?
PEQUENA – Eu, hein? Por que essa agora, seu Raimundão?
PÉ-MOLHADO – Tu sabe muito bem que que é que se tá falando.
PEQUENA – Que é isso? Ciúme é?
SETE-MOLA – Só doido pra ter ciúme de uma mulher como você.
PÉ-MOLHADO – Onde já se viu se ter ciúme de uma mulher que não se dá o respeito?
PEQUENA – Tão me ofendendo! Por quê? Hein, Sete-Mola, por que não aceitei teus convites, nem os teus, Pé-
Molhado? Conheço a honradez de vocês.
RAIMUNDÃO – Qué que tú tá querendo com Pedrão?
PEQUENA – Quem encomendou esse sermão, foi Mãe Rosa?
SETE-MOLA – Ai de você no dia que Mãe Rosa soubê disso!
PEQUENA – Cala boca. Não se meta! Se falá outra vez eu conto pra tua mulher tuas proposta!
RAIMUNDÃO – Tou perguntando. Não mente, que te vi nascer. Que que tu tá querendo com Pedrão? Será que
tua sina é virar a cabeça dos home casado? Tu tá querendo tomar ele de D. Dulce?
PEQUENA – Tô não, Seu Raimundão. Ele é pai de filho. Eu juro que gosto de Dulce. Mas, ele me desprezou,
por causa dela passei a maior vergonha da minha vida. Namorou comigo e me largou pra casar com ela. (Vai se
enfurecendo aos poucos, agora tem a áurea da “sua dona de cabeça”, a bela guerreira Iansã) Eu só quero que
ele me peça pra voltar, só isso.
RAIMUNDÃO – Se tu não para com isso por bem, eu vou tomar providência!
PEQUENA – Tu nem parece que é Ogã de terreiro e entende das coisas. Tu não sabe que Pedrão é Xangô vivo?
E tu já viu um homem de Xangô que não tenha, pelo menos, duas mulheres brigando por ele? Mas, Xangô, meu
nego, é o homem de Iansã. Que venha tudo quanto é Obá e Oxum. Ela não é de Oxum? Que faça seus dengues.
Foi com aquela cara de santa que ela tomou ele de mim. Mas, sou guerreira e sei lutar. Cês sabem disso melhor
do que eu. Cês sabem que isso é briga antiga. Só que ninguém sabe quando começou. Já existia antes do meu
povo atravessar o mar, pra vim pra cá sê escravo. A briga era antes. Muito antes da gente nascer. Hê, pá–rrei,
Yansan minha mãe. (Ergue o braço como se bramisse uma espada e sai correndo ao encontro de Pedrão. Os
homens ficam parados, impotentes, diante de uma força muito maior que eles. Um tempo)
RAIMUNDÃO – Ô - dô - y - á. Senhora das Águas! Seu axé!
OS OUTROS – Axé.
(Vão em direção às remendeiras. Arruaça vem correndo balde de iscas na mão. Ao passar por Ceição lhe dá um
beijo rápido)
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CEIÇÃO – Deixa disso, Arruaça.
TONINHA – Tu reclama porque tem quem te beije.
ARRUAÇA – E isso aí, Toninha! ela fala de fome, de barriga cheia.
CEIÇÃO – Eu ainda tô com a estória da moça do carro atravessada na garganta!
ARRUAÇA – Linda! Com uma tanga menor que a folha de Eva. (Ceição quer replicar, ele não permite dando-
lhe um beijo na boca. Sai depois com Sete-Mola, Raimundão e Pé-Molhado)
SEVERINO – (Levantando-se) O mar filho da terra, por ela parido, tá mugindo como vaca brava. Que meu
Padim Padre Ciçro tenha compaixão de nós. E o moço guerreiro São Sebastião, venha em socorro de todos nós.
A Besta Marinha vai sair do fundo do mar e o seu bafo de fogo, seus cabelos de cobra vão cobrir o mundo e
todos os pecadores. Os pecadores do pecado da luxúria vão virar vermes inchados… vermes inchados… (Ceição
vai até ele para acalmá-lo. Ele vai se tranquilizando aos poucos, repetindo) vermes inchados… vermes
inchados. (A Iaô perto dele)

CASA DE PEDRÃO
(Dulce, muito concentrada, arruma o seu presente de Iemanjá enquanto canta):
DULCE – Kini-jé, Kinijé - Lôdô
É dImanjá-O
A-ko-dé lê cê
a rô mi rô.
É di man-qê-cê-
Ô - rô - mi - Ro
Ô Lê, Lê. Iemanjá-ô.
(Arruaça chega com Sete-Mola e Pé-Molhado com grande alegria. Dulce fala referindo-se às iscas que
Arruaça traz no balde) Bota isso lá fora, menino! Não deixa esse fedor de peixe podre dentro de casa. Era só o
que faltava. E não quero esse horror de homem aqui não! (Saem os dois pescadores em direção às remendeiras.)
Avé Maria, meu Pai Eterno, não se pode nem arrumar um presente em paz.
ARRUAÇA – Veio isca demais, vou aproveitar e pescar uns siris. (Um tempo) Mãe…
DULCE – O que é?
ARRUAÇA – A senhora gosta mesmo de Pequena? Eu não gosto dela, mãe.
DULCE – Deixa de falá besteira, Domingos, ela gosta tanto de você.
ARRUAÇA – Gosta não. Eu sei de quem ela gosta nessa casa. O povo tá falando.
DULCE – O povo não tem assunto, filho, então dá pra inventar coisa. Mulher bonita é mulher perseguida.
Pequena não é ruim, mas, ser bonita demais, nunca foi boa sina. E cala essa boca! Deixa eu fazer meus pedidos.
Não se deve arrumar um presente nesta falação.
REMENDEIRAS – (Os pescadores estão junto com elas limpando o material de pesca elas cantam)
– Senhora, mãe das Águas
Mãe rainha, deste mar
Recebe esta oferenda
Deixa o meu bem voltar.
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CEIÇÃO – Seu Raimundo, o senhor precisa dá uns conselhos a Toninha.
RAIMUNDÃO – Já ‘tô cansado de falá, mas ela não sai dessa tristeza.
CEIÇÃO – Também falo toda hora: se João era teu homem, era meu irmão. E eu nem conheci ele depois de
home; retirou menino ainda. Se parou por aqui, quando chegamo ele não pertencia mais a este mundo. Também
fiquei sozinha sem ele. Agora só tem eu prá cuidar de pai.
PÉ-MOLHADO – Cê sabe, Toninha, que sempre gostei de você. Tu é que nunca me quis.
TONINHA – Cê é um homem tão bom. Merece quem goste de você. Prá que te enganar?
PÉ-MOLHADO – A gente junta os trapo d’agente. João era meu amigo. Enquanto ele foi vivo escondi a minha
dor. Vem, Toninha, eu ajudo você a esquecê ele.
TONINHA – Não quero fazer você de remédio. Cê não merece isso. No dia que eu esquecê dele, eu lhe falo. Só
peço a Deus que tu ainda me queira… tu é tão bom.
SETE-MOLA – Todo mundo diz que tem sete mulher pra cada homem, mas eu acho que deve ter algum com
quatorze.
CEIÇÃO – Tu não é casado, peste? (Dulce vem andando em direção ao grupo. Eles percebem, avançam para
ela)
PÉ-MOLHADO – A gente ‘tava só esperando a senhora.
DULCE – É presente pequeno, mas precisa colocar em lugar calmo.
SETE- MOLA – Pode ser na lóca da sereia?
DULCE – Pode, só não pode em lugar de arrebentação de onda.
RAIMUNDÃO – Já sei. Mãe Rosa me falou.
DULCE – O senhor também vai, seu Raimundo?
RAIMUNDÃO – Não. Não carece. (Para os dois) Pega minha canoa, vai por aqui, breirando a costa, passa o
lugar donde tinha a Pedra dos Noivos, e segue. Bota na loca que tem logo depois. Lá tá um lago.
CEIÇÃO – Eu queria tanto ver colocar um presente.
SETE-MOLA – No dia dois de fevereiro eu te levo pro presente do Rio de Vermelho.
ARRUAÇA – Precisa não. Ela tem quem leve.
(Atabaques. Toque de Iemanjá. Dulce canta o kinijé enquanto tira o papel que envolve o presente e coloca as
mãos sob o prato. Antes de entregar aos pescadores saúda o mar. Os homens recebem o presente com respeito e
se dirigem para o mar. Dulce se encaminha para a sua casa sentando-se na soleira da porta olhando os homens
que se afastam no mar.)

BOTECO

RAIMUNDÃO – Bota uma aí, seu Cazuza.


CAZUZA – Pura?
DUZINHA – Tu não sabe que seu Raimundão só bebe pura? Pra que pergunta?
CAZUZA – Por custume.
DUZINHA – Custume mais besta.
RAIMUNDÃO – (Virando a dose) Essa é boa. É das minha!
DUZINHA – Foram levar o presente de minha comadre?
RAIMUNDÃO – Foro sim.
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17
DUZINHA – E o senhor acha que vai adiantar? Minha comadre não sabe da missa a metade!

NAS PEDRAS
(Pedrão chega às pedras onde Pequena o espera)
PEDRÃO – (Ao vê-la) Qué que tu tá fazendo aqui?
PEQUENA – Tu não falou que era pra eu vim pra cá te esperar?
PEDRÃO – Falei nada.
PEQUENA – Falou sim. Não falou com a boca, mas falou com os olhos.
PEDRÃO – Vai embora, vai! (As palavras dele nada tem a ver com a verdade. Sua voz, olhos, ele todo é uma
suplica para que ela fique)
PEQUENA – (Vendo um arranhão no peito nu de Pedrão) O que foi isso?
PEDRÃO – Coisa à toa. Uma ponta de pedra. Quando chegar em casa Dulce...
PEQUENA – (Corta o que ele vai dizer com um beijo. Os pescadores que estão voltando da loca assistem o
beijo)

REMENDADEIRAS
(Cantam)
Xangô mora nas pedras
Chama Oxum para brincar
Iansã acende os raios
Pra Oxum amedrontar.

BOTECO

DUZINHA – (Vendo Pequena e Pedrão que passam) Agora a desavergonhada não escolhe nem hora. Nunca
esperei isso de meu compadre. Com a mulher que ele tem, fazê uma coisa dessa… E em plena luz do dia.
CAZUZA – Qué que você queria que ele fizesse? Que chutasse um prato desse, era?
DUZINHA – Ai meu Deus… é tudo umas criancinhas! Só são macho pra comer as mulher; mas na hora de saber
dizer “não”, é tudo umas femeazinhas, coitadinhos. Eva falou, tá falado. Desde que mundo é mundo que as
mulher vem carregando as fraquezas dessa cambada! Tá errado os dois! Ai se fosse comigo ia retalhar de
navalha a cara dos dois. Dela e principalmente a dele!
CAZUZA – Tô sabendo, valentona!
DUZINHA – É isso mesmo. – Ou medo ou respeito. Quem tem compromisso maior com comadre Dulce é ele:
Pedrão que é o marido dela e pai do filho dela! O mais errado é ele. E Pequena também. Devia respeitar a amiga
e a Mãe de Santo das duas. Não quero nem pensar, quando Mãe Rosa souber disso. Esse negócio de explicar
patifaria com o nome de D. Iansã não pode tá certo.
CAZUZA – E o que é que você tem com isso?
DUZINHA – Muita coisa! Primeiro: D. Dulce é minha comadre e mulher de respeito tá’li mesmo! Segundo: sou
filha da mesma casa e tenho que tomar providência antes que alguma coisa de muito ruim aconteça. ‘Tá na boca
do povo, meu santo. Outro dia eu joguei um verde em Mãe Rosa. (A cena para como uma fotografia)
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REMENDEIRAS
CEIÇÃO – Eu acho que D. Dulce ‘tá certa. Disputar home é coisa feia.
TONINHA – Fico com pena dela.
CEIÇÃO – Só tenho medo da reação de Domingos.
TONINHA – E será que ele sabe?
CEIÇÃO – É quem mais sabe. Ele não suporta Pequena.
TONINHA – D. Dulce também sabe. Tenho certeza.
CEIÇÃO – E fica nessa calma?
TONINHA – É isso mesmo. Mulher de Oxum é assim. Sofre calada. Só faz chorar.

CASA DE MÃE ROSA


(Duzinha ajuda Raimundão e a Mãe Rosa na arrumação do peji)
DUZINHA – Eu só queria, Mãe, que a senhora me desse uma explicação sobre isso.
MÃE ROSA – É filha, tem gente que não merece os Orixás que tem.
DUZINHA – É isso que eu não compreendo, mãe.
MÃE ROSA – Nem tudo tem explicação, filha. Fé é acreditar sem compreender.
RAIMUNDÃO – Isso é que é difícil.
MÃE ROSA – Quando acontece uma filha de Iansã se apaixonar pelo homem de outra mulher, é sempre assim:
ele é de Xangô e a outra é de Oxum, que devia sempre se casá com home de Oxóssi. Homem de Xangô é homem
perigoso. Sedutor. Xangô teve três mulheres. As três brigaro.
RAIMUNDÃO – A outra foi Obá. Ficou sem a orelha, coitada.
MÃE ROSA – Astúcia de D. Oxum. Ela é muito astuciosa! Iansã vence na luta, Oxum vence no dengo.
DUZINHA – E se a de Iansã for amiga da de Oxum? Eu acho, mãe, que se deve respeitar, quando nada, os pai de
filho!
MÃE ROSA – Tá certa, filha! Mas ninguém ‘tá livre de uma paixão errada. Num caso desse se deve procurar
uma casa pra jogar um Ifá e ler nos búzios o que fazer para lavar o coração de um amor impossível.
DUZINHA – E se as duas forem filhas da mesma casa?
MÃE ROSA – Oxalá me livre disso acontecer no meu cansuá. E depois, uma puxa de um lado, a outra puxa do
outro, se o homem não for de fé e previnido, acaba ficando de miolo mole.

NA PRAIA
SEVERINO – O monstro do mar, com suas asas de nuvem de fogo vai secar o mundo. Tudo vai ser uma seca só.
Nem dos peitos das mulher vai correr leite para a boca de velho das criancinhas desdentadas. Cordeiro de Deus,
tende piedade de nós. Meu Padim padre Ciçro, vem consolar teu povo. (Volta à sua mansidão e ao seu triste
cantarolar sertanejo)

BOTECO
(Volta a cena anterior)
DUZINHA – E o castigo já ‘tá começando. Meu compadre Pedrão só vive agora dizendo besteira desafiando D.
Iemanjá. Ele é Xangô e Xangô é filho d’Ela.
CAZUZA – E daí, o que é que tem isso?
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DUZINHA – (Pesadamente) Quando duas mulheres briga por causa de um homem, a mãe se encarrega de
desviar das duas. Termina ela levando a melhor: fica com ele.

CASA DE PEDRÃO
(Luz geral de lua cheia. A família está jantando juntamente com Pequena)
PEDRÃO – Já preparou tudo, Domingos?
ARRUAÇA – Já sim senhor. Tudo certo. Iscas, anzóis, as linhas enroladas certo. Examinei a poita. Tudo seguro.
PEQUENA – O tempo tá bom, Pedrão?
PEDRÃO – Por que? É teu marido que vai pro mar?
DULCE – Que é isso, menino? Por que responde assim? Eu juro que se fosse Pequena não cruzava mais essa
porta.
PEDRÃO – Duvido que ela faça isso…
DULCE – Deus é mais! Só vem aqui pra ser maltratada por vocês… Que coisa!
PEQUENA – Liga não, Dulce. Eu só venho aqui em consideração a você. A gente estudou na mesma escola. Tu
é a única pessoa que tem aqui da minha cidade. Você e seu Raimundão. Deixa esses brutos. Home é assim
mesmo.
ARRUAÇA – É. É assim, e quem não gostar que dê seu jeito, que o meu já tá dado.
DULCE – Menino! Cês me fazem passar cada vergonha. (Arruaça se retira)
PEDRÃO – (Apanhando seus apetrechos de pesca) Bem, já vou, gente. (Beija Dulce com muito amor, Pequena
assiste visivelmente enciumada e derruba qualquer coisa, cortando o beijo)
PEQUENA – Desculpe, gente. (Por vingança) Será que é hoje que tu vai ver, Pedrão?
DULCE– (Apavorada) Não diz isso, Pequena. Pelo amor de Deus, não diz isso!
PEDRÃO – Por mim já tinha visto. Hoje é noite de lua cheia, e conforme o dizer do povo é tempo d’ Ela andar
se exibindo por aí.

REMENDEIRAS
(Cantam)
Se no céu tem lua cheia
A sereia vem cantar
Lua faz espelho d'água
Pra rainha se mirar!

CASA DE PEDRÃO
(Todos se ligaram ao canto. Há uma tensão geral)
PEDRÃO – É isso mesmo. Taí, juro que queria ver, se é que Ela existe!
DULCE – (Indo aflita até o altar de Iemanjá) Ô minha mãe Iemanjá, perdoa esse pai de família. Tira esses maus
pensamentos da cabeça dele, minha mãe!
PEDRÃO – E é mau pensamento querer vê tanta beleza? (Dulce se joga nos braços dele como se tentasse
prendê-lo para sempre. Pequena se retira)
REMENDElRAS
(Cantam)
E manda as sereiazinhas
que nas pedras tão brincando
ir buscar as suas prendas
que nas águas tão boiando.
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PRAIA – (Ceição se levanta e leva Severino para o interior. Ele fala enquanto sai)
SEVERINO – E o sol vai deixar de brilhar. E haverá somente luz mansa de lua clareando o mundo de Deus. Vai
nascer fulor em todos os lugar da terra e margarida branca em cima do mar. As águas dos rios não vão secar
nunca mais... nunca mais...

BOTECO

PÉ-MOLHADO – Esse seu Severino é um artista. Diz cada coisa bonita que chega arrepiar.
SETE-MOLA – Então toma mais uma pra arrepiar de vez!
PÉ-MOLHADO – Pedrão foi mesmo pro mar?
CAZUZA – Foi sim. Por que?
PÉ-MOLHADO – Nada... é que hoje é noite de lua cheia.
DUZINHA – (Chegando ao boteco) A noite ‘tá que é um dia. Encontrei meu compadre.
SETE-MOLA – Ele ‘tá precisando de ajuda prá botar a canoa no mar, D. Duzinha?
DUZINHA – ‘Tá não. Canoa já ‘tá no mar. É só levantar a poita. Ele tá precisando de ajuda é em outras coisas.
SETE-MOLA – A senhora encontrou Pequena?
DUZINHA – Encontrei não. Mas se topasse ia até dar uns “conselhinhos” a ela; já basta o que eu engoli quando
encontrei ele.
CAZUZA – Já te falei pra não se meter. Briga de marido e mulher, ninguém deve meter a colher.
DUZINHA– Ditado por ditado, eu também tenho o meu: Quem vê as barba do vizinho arder, põe as suas de
molho. Pensa que eu nunca vi teus olhos de cabra morta pro lado dela, não?
CAZUZA – ‘Tá ficando maluca, mulher?
DUZINHA – Vou ficá, doida, maluca de pedra, no dia que tu arrastá sua asa pro lado dela. Cê sabe que não
tenho medo de homem nenhum. E quanto a mulher, Tereza ‘tá lá, com a cara marcada até hoje. Tu pensa que me
esqueci?
PÉ–MOLHADO – Acho bom mudar de assunto.
DUZINHA – Ai gente! Quando eu olho pra minha comadre Dulce com aquela cara inocente me dá uma revolta!
Ô Pé-Molhado, não era melhor a gente falá com Mãe Rosa?
PÉ–MOLHADO – Sabe, D. Duzinha, tem gente que pode fazer o seu destino, mas tem outros que já nasce com o
destino traçado. (A Iaô marca presença)

PRAIA

(Pedrão e Arruaça sentados na soleira da porta)


ARRUAÇA – Não quer que eu vá com o sinhor, não é pai?
PEDRÃO – Pra que? Tú ‘tá de férias. Quem estuda precisa descansar o juízo. Basta tu me ajudar como tu me
ajuda. Amanhã tu vai vender o peixe lá no mercado. Entrega tudo pra Camafeu. Neste tempo de festa não há
peixe que chegue.
ARRUAÇA – O senhor nunca vai deixar eu ir.
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PEDRÃO – Tenho medo que você pegue gosto. Quero te ver formado, filho. Quer saber de uma coisa? No dia
que te ver formado, pode dizer que teu pai é um home feliz.
RAIMUNDÃO – (Vem do mar) Oi, Pedrão! ‘Tá indo agora?
PEDRÃO– E você, Raimundão, por que voltou? O mar não tá bom?
RAIMUNDÃO – Fui só examiná o pesqueiro. Hoje não é noite de boa pesca. Tu sabe.
PEDRÃO – Sempre tem algum esfomeado no meio desse marzão.
RAIMUNDÃO – (Olhando para o mar) É… não gosto quando o mundo vira. A noite virou dia, o mar virou
lago. Tá um silêncio do tamanho do mundo. Tudo ao contrário. Isso é noite de encantado.
PEDRÃO – Medo, Raimundão?
RAIMUNDÃO – Sei lá… dá um aperto no coração. Pode dizer que é medo. Tem nada não. E quer saber de uma
coisa, Pedrão? Acho melhor tu não ir. Conselho de mais velho. (Pedrão acabou de fumar. Dá um tapa amigável
nas costas de Raimundão e do filho e vai para o mar. Arruaça vai em direção de Ceição. Raimundão se
encaminha para a casa de Mãe Rosa. Dulce em casa passa roupa. Enquanto dobram as redes as

REMENDEIRAS Cantam)
Pescador, meu bem querer
fuja do rastro da lua
é caminho da cantiga
qu’ ela canta linda e nua.
com os seus cabelos verdes
e os olhos de luar
riso claro de espuma
e feitiço no cantar.
(Dulce acaba de passar a roupa, faz uma prece a Iemanjá e vai sentar-se na soleira da porta. Pequena está só no
outro lado do palco também olhando fixamente para o mar. No boteco começa a se formar um ambiente de
romance. “Se a noite é de lua, a vontade é contar mentira, se espreguiçar” canta Caymmi em João Valentão;
tentar conseguir este clima. Um longínquo toque de berimbau parece que os embala. A Iaô, que durante todo
tempo rondou as cenas como um presságio, vai saindo a medida em que um estranho foco de luz muito azul e o
canto da sereia mixado com o ruído do mar vão se tornando cada vez mais nítidos. Arruaça deixa Ceição e corre
para junto da mãe; abraçam-se como se unidos pudessem constituir uma grande força capaz de salvar Pedrão.
No rosto de todos a perplexidade diante do inexplicável. As batidas das ondas do mar vão se ritmando
estranhamente até se tornarem som de atabaques no toque de Iemanjá. luz na

CASA DE MÃE ROSA

(Sentada com toda a sua imponência de mãe de santo, Mãe Rosa está vestida de branco, tendo o seu Ogã
Raimundão de pé, ao seu lado. A Iaô agora vestida de filha de Iemanjá bate cabeça aos pés de Mãe Rosa e depois
aos pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a sua dança ágil e graciosa. Dança por todo o palco onde estão
prostrados. A luz vai entrando em resistência até restar apenas um foco que acompanha a dança de Iemanjá.
Black rápido. A luz volta em resistência. Amanhecer.)
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22
PRAIA

(As remendeiras voltam ao seu trabalho. Arruaça preocupado espera o pai na soleira da porta. Dulce prepara o
café. Mãe Rosa está prostrada no chão diante do peji, Raimundão sentado ao seu lado)
CEIÇÃO – Cê viu, Toninha, a lua desta noite?
TONINHA – A lua eu vi, e o luar também.
CEIÇÃO – E cê ouviu?
TONINHA – Escutá, escutei; mas não sei o que foi.
CEIÇÃO – Foi onda na praia.
TONINHA – Não. Foi alma de afogado.
CEIÇÃO – Foi chorinho de criança.
TONINHA – Foi vento no meu cabelo.
CEIÇÃO – Foi viola esquecida na praia que a palha do coqueiro tocou.
TONINHA – Foi canto de namorada chorando sozinha.
CEIÇÃO – Foi água escorrendo em pedra limosa.
TONINHA – Foi lágrima descendo de olhos de amor.
CEIÇÃO – Foi cantiga de moça esperando o amado. (Um tempo. Olham o mar e cantam seu novo canto)
Eu bem disse a meu bem – serenô
que não fosse pro mar – serená
ele foi não voltou – serenô
que m’importa-me – lá .... serenô, serená.

CASA DE MÃE ROSA

(Ela se levanta ajudada por Raimundão)


MÃE ROSA – É… não vai demorá muito, a gente sabe.
RAIMUNDÃO – Vamos ter fé, Mãe.
MÃE ROSA – Não tem “mas-mas”, aconteceu!
RAIMUNDÃO – Será?

REMENDEIRAS

TONINHA – Sabe, Ceição? A noite de ontem foi de encantado.


CEIÇÃO – Quem disse?
TONINHA – Minha avó. Ela lava roupa, lá na lagoa do Abaeté.

PRAIA

(Pedrão vem vindo. Dulce rabisca a areia com um graveto, as remendeiras a observam. Cantam)
REMENDEIRAS
Escrevi na arreia – serenô
O nome dele a brincar – serená
Iemanjá com ciúme – serenô
Mandou onda pr’apagar– serenô– serená– serenô– serená.
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23
(Durante o canto Pedrão chegou às pedras. Pequena tenta ajudá-lo a subir. Ele nem a vê. Surge a figura da Iaô,
Pedrão é outro homem. Toda a sua alegria de viver ficou no mar. Pequena não se conforma, anda frente a
frente com ele. Os pescadores chegam ao bar e tudo assistem)

REMENDEIRAS
(Cantam)
Eu bem disse ao bem – serenô
que não fosse pro mar – serená
ele foi , não voltou – serenô
que m’ importa-me–lá – sereno – serená – sereno – serená.
(Pedrão passa pelo boteco “Flor das ondas” com Pequena andando frente a frente com ele. Todos observam)

BOTECO
DUZINHA – Olha só pr'aquilo, Cazuza!
CAZUNA – Duzinha, uma hora dessa eu ainda vou tê uma briga feia com você... É da sua conta, mulher? Vá
cuidá da sua vida!
DUZINHA – Meu compadre nem dá bola pra ela, e a sirigaita se oferecendo daquele jeito!!! Credo!
CAZUZA – Toma cuidado, Duzinha! Peixe morre pela boca!
PÉ-MOLHADO – (Percebendo que Pedrão está estranho) Viu alma do outro mundo, companheiro? (Pedrão
não ouve)
SETE-MOLA – Pedrão ‘tá esquesito...
RAIMUNDÃO – Falei pra ele não ir. Foi de teimoso. (A Iaô ronda o boteco)

CASA DE PEDRÃO
(Pedrão entra e se senta pesadamente em um tamborete)
ARRUAÇA – Bença, pai.
DULCE – Abençoa teu filho, home de Deus. (Ele olha para tudo como se visse pela primeira vez,
completamente ausente)
ARRUAÇA – (Chateado pois o pai nem o abençoou) Vou no seu Cazuza; quer alguma coisa, mãe?
DULCE – Precisa nada não. (Arruaça sai. Dulce apreensiva serve café a Pedrão) Toma o café, Pedrão. (Ele
bebe aos goles, automaticamente. Pequena chega)
PEQUENA – Dá licença?
DULCE – A casa é sua, Pequena, entre.
PEQUENA – Salve as águas.
DULCE – Salve. Aceita um cafezinho?
PEQUENA – Um golinho só. (Pra Perdão) Peixe não comeu essa noite? (Ele olha para ela completamente
ausente. Acende um cigarro e vai sentar-se à soleira da porta, olhos fixos no mar. A Iaô perto dele)
REMENDEIRAS
(Cantam)
Onde está, onde está – serenô
este meu pensamento – serená
tua beleza levou tudo – serenô
não te esqueço um só momento sereno – serená – sereno – serená.
186

24
BOTECO

CAZUZA – (Relacionado a Pedrão) Meu compadre não tá nada bem. Chegou do mar e nem veio tomá uma
(Para Arruaça que chegou) O que é que teu pai tem?
ARRUAÇA – Sei não, meu padrinho. Chegou de calundu. Me dá um anzol.
DUZINHA – Pequena tá lá, não ‘tá?
ARRUAÇA – Quando eu saí não tava não. (Para Cazuza) Me dá meu troco.
SETE-MOLA – Vou chamá ele.
RAIMUNDÃO – Deixa o home em paz, gente. (Arruaça recebe o troco e sai)
SEVERINO – (Que desde o início está sentado no seu lugar) Meu padim padre Cícero falou e os raio do sol
escreveu com letra de fogo nos lajedo dos monte: Só depois que as trovoada limpá os céu do turvo das nuvem é
que a paz das sombras dos pau d’arco cheirando a jasmim cambraia vai cobrir toda a terra e todo o mar. (Para e
fita o mar. Grita subitamente cheio de alegria) Olha a canoa de João! (Ceição vai até ele e o senta. Toninha
reage dolorosamente.)

REMENDEIRAS

TONINHA – (Para Arruaça) Como é que eu posso esquecer, Arruaça?


ARRUAÇA – Pensa em quem te quer bem, Toninha. Ajuda.
TONINHA – Seria tão bom… Quando ele grita assim o nome de João, é como um anzol fisgando aqui. Dói,
Arruaça, dói muito. Como deve doer o anzol na boca do peixe desprevenido.

CASA DE PEDRÃO

PEQUENA – (Ajudando Dulce a arrumar uma trouxa de roupa) Que é que há com Pedrão, hein, Dulce?
DULCE – Sei lá, Pedrão é assim mesmo. Deve de ‘tá mal satisfeito porque não tem pescado.
PEQUENA – Ô xente! Mas todo mundo sabe que noite de lua não é boa de peixe.
DULCE – É coisa de home. Um dia ‘tá pelo pé, outro pela cabeça. A gente nunca sabe. (Fita os olhos no mar. A
Iaô surge no fundo da casa)

REMENDEIRAS
(Cantam)
– Mesmo perto de mim – serenô
o seu pensamento sai – serená
só queria saber – serená
pra que mundo qu'ele vai – sereno – serená – sereno – serená.

BOTECO

(Pedrão sentado com os amigos jogando pauzinho. Apostas feitas. Ele conserva seu ar distante. A Iaô atrás
dele)
SETE-MOLA – Fala Pedrão! é a tua vez.
PEDRÃO – (Despertando) Hein?
PÉ-MOLHADO – Fala, homem. Tá sonhando acordado?
187

25
PEDRÃO – (Desinteressado) Cinco.
RAIMUNDÃO – Que é que te aconteceu Pedrão? Tem mais de 15 dias que tu ‘tá assim.
DUZINHA – Consciência doendo, meu compadre?
PEDRÃO – Tem nada doendo não, minha comadre. Acho mesmo que minha alegria só tá no mar.
CAZUZA – Mais uma rodada?
PEDRÃO – Pode botá. Eu pago, mas não quero.

REMENDEIRAS
(Cantam)
– Você levou minh’alegria – serenô
você levou o meu cantar – serená
que será de mim agora – serenô
se nem posso te mirar? – serenô–serená – sereno – serená.

PEDRAS
(Pedrão sozinho, fita a mar. Pequena chega sem que ele perceba)
PEQUENA – Pedrão…
PEDRÃO – (Olha para ela, vazio) Vai embora, vai.
PEQUENA – O que foi, Pedrão. Diz.
PEDRÃO – Me deixa só.
PEQUENA – Tá bem. Vou te deixá só. Mas fala, Pedrão. Diz o que é que cê tem.
PEDRÃO – Me deixa em paz!
PEQUENA – Eu não te quero mais não, Pedrão. Eu tava era com orgulho. Pensei muito, fui falá com Mãe Rosa
e ela tirou você do meu coração. Mas Dulce? Ela só faz chorar. Nem pra Arruaça tu tá ligando. Fala Pedrão. Diz.
Quem é ela? (A Iaô atrás dela. Pequena se vira e se defronta com ela. Pequena foge)

REMENDEIRAS
(Cantam enquanto Pequena e a Iaô se defrontam)
Salve Nanã, Mãe Oxum – serenô
salve mãe Iemanjá – serená
dona de todas as águas – serenô
Salve a rainha de Aiocá – serenô – serená – serenô – serená.
(Arruaça se despede de Ceição vai saindo do grupo)
TONINHA – Tu não vai na cidade hoje, Arruaça? (Ele não responde. Ela fala pra Ceição) Cê se incomoda,
Ceição, se eu for com ele?
CEIÇÃO – Por que havia de me incomodar?
ARRUAÇA – Só que eu não vou mais.
TONINHA – Cê não ia se matricular hoje?
ARRUAÇA – (Revolta contida) Eu ia, mas pai não deu o dinheiro. Pedi a ele e ele nem ligou. Mãe recebe hoje.
Amanhã eu vou. Serve?
CASA DE PEDRÃO
(Duzinha e Dulce conversam enquanto Dulce passa roupa)
DUZINHA – Isso é coisa de mulhé, minha comadre.
DULCE – Né não…
DUZINHA – Cê confia demais. Deixá aquela nigrinha entrá na sua casa. Na minha ela não entrava. Nem morta!
188

26
DULCE – Antes fosse, minha comadre, antes fosse. Eu não quero nem pensar. Tô com medo. Ô meu Deus, ó
minha mãe Oxum, fazei que seja mentira o que eu tô pensando!
DUZINHA – Tá pensando o que, minha comadre? Fale. (Desconfiando) Não vai me dizer que… (Não tem
coragem de terminar a frase)
DULCE – Tô pensando sim, minha comadre. Não queria pensar não, mas… aqui dentro eu sei que é. Ele
desafiou tanto! Acho que Ela castigou. E se for verdade, minha comadre, mais cedo ou mais tarde você sabe o
que acontece. Então, o que vai ser de mim, do meu filho? (Tempo) Ele agora só quer ir pro mar…
DUZINHA – (Numa tentativa de consolo) Mas ele sempre foi pro mar. Não é pescador?
DULCE – Mas não vai pescar. Não tem hora nem dia. Vai sem anzol, sem rede, sem isca, sem nada. Não
respeita tempo nem vento.
DUZINHA – Já foi falá com Mãe Rosa?
REMENDEIRAS
(Cantam)
Tua voz me arrastou – serenô
na tua estrada de lua– serená
onde está teu caminho – serenô
onde te escondes negra e nua– serenô– serená– sereno.

BOTECO
CAZUZA – Meu compadre mudou muito. Anda com ar de doido.
RAIMUNDÃO – Eu avisei. Tudo começou na lua cheia do mês passado. Falei. Disse bem assim: “Isso é noite
de encantado. Acho melhor tu não ir”. Ele nem ligou.
CAZUZA – Será gente?
SETE-MOLA – Eu respeito muito essas coisa. Sou da seita. Mas não acredito que Ela apareça.
PÉ-MOLHADO – Cuidado, Sete-Mola. Não fala demais. Se mira no espelho dos outro.
CAZUZA – Até pra cachaça ele perdeu o gosto.

REMENDEIRAS
TONINHA –Tu não queria saber se tinha alguém que viu?
CEIÇÃO – Perguntei, mas não desejei.
TONINHA – Custa de acontecê, mas acontece. Só que eu nunca havera de pensar que fosse seu Pedrão o
escolhido.
CEIÇÃO – Verdade?
TONINHA – Sei lá. Eu acho que lá dentro eu tinha certeza que mais dia, menos dia…
CEIÇÃO – Por que?
189

27
CASA DE MÃE ROSA
MÃE ROSA – (Continuando uma conversa com Raimundão) É isso mesmo, Raimundão:
– Ela é a esposa de Oxalá. Mãe de todos os Orixás. Dos filhos dela tem três muito forte e muito queridos: Ogum,
Oxóssi e Xangô. Todo pescador deve cuidar muito bem da dona das águas, principalmente se for filho de Xangô.
Pode dá choque na natureza – Raio e Mar.
RAIMUNDÃO – Qual é a mãe que gosta que filho fique desafiando ela?

REMENDEIRAS
(Numa brincadeira enfeitando a Iaô com flores, algas, argaços etc)
CEIÇÃO – Ouvi o povo dizer que o castelo dela é lindo.
TONINHA – Todo de pérolas. Ela é a rainha. E os pescadores mais bonitos que ela escolheu fazem o cortejo
dela, junto com as sereiazinhas. Ela monta numa carruagem de madrepérola e coral puxada por 12 cavalos
marinhos e sai passeando pelo fundo do mar.
CEIÇÃO – E tem flores?
TONINHA – De todas as cores.
CEIÇÃO – E tem árvores.
TONINHA – Tem. De folhas vermelhas como os flamboyants.

CASA DE MÃE ROSA


RAIMUNDÃO – E tudo muito delicado.
MÃE ROSA – Coisa fina, Raimundão, você sabe.
RAIMUNDÃO – É, mas vamos cuidar da vida. O que é que eu digo a Camafeu?
MÃE ROSA – Cê diz a ele que me desculpe. Eu tava certa de ir lá no Ilê Axé Opó Afonjá. Mas, Raimundão,
conta a ele o que tá acontecendo com Pedrão, ele vai entender e Mãe Estela também. A gente tem que trabalhar
muito por nossa filha Dulce. Ela tá precisando de muito axé.

PEDRAS
(Som de puxada de rede. Arruaça sozinho fita o mar. Chegam Pé-Molhado e Sete-Mola)
PÉ-MOLHADO – Vamos Arruaça. A rede de Lindolfo ‘tá chegando. Vamos ajudá na puxada. De noite vamos
pescá camarão. (Arruaça não responde)
SETE-MOLA – (Um tanto embaraçado) Será mesmo que teu pai viu a Mãe D’água?
ARRUAÇA – Quebro a cara do primeiro que vier com essa conversa. Ele não viu nada nem ninguém. (Contendo
o choro) Ele só anda triste porque não tem dado sorte na pescaria. Isso pode acontecer a qualquer um, não pode?
Só… só… que ele parece que não enxerga mais a gente, nem eu, nem mãe.
PÉ-MOLHADO – Chora, amigo. Não tenha vergonha não. As vez um homem precisa chorar.

CASA DE MÃE ROSA


(Dulce chora diante dela)
MÃE ROSA – Chora não, minha filha. Deus é pai e Oxalá é grande.
DULCE – Mas o que é que ele tem, minha mãe?
190

28
MÃE ROSA – (Disfarçando) Nada não. Homem é assim mesmo. Escute, ‘cê chama todas as mulheres da praia e
os pescadores também e pede a todos pra trazê rosa, palma, lírio, cravo, margarida, angélica, tudo que for flor, mas
só serve branca. E, não esquece de tirá os espinho das rosa. Numa noite que Pedrão tiver no mar, tu enche a canoa
do Pé-Molhado que é do tamanho da teu marido. Enche com todas as flor que tu puder juntar. Raimundão leva a
canoa, que só ele sabe onde arriar. No outro dia, bem cedinho tu vai à missa e pede a Deus e à Dona das Água pra
trazer teu homem de volta pra você e pra teu filho. Vai. E muita fé em Deus, minha filha. (Dulce sai) É… vamos
vê se dá jeito!
RAIMUNDÃO – Será que adianta?
MÃE-ROSA – Isso é mistério. Ninguém pode saber.

PRAIA
SEVERINO – O Santo moço guerreiro são Sebastião vai aparecer no meio do mar vestido no seu manto azul e
prata, montado em seu cavalo branco, comandando o cordão azul. E vai atravessar o mar, pisar na areia branca, ir
até o sertão e expulsar a seca moura da Hungria e encher a caatinga do mesmo verde azul dessas ondas do mar.
(Black rápido. Voltando luz de lua cheia. A Iaô está sentada nas pedras. No centro do palco, Mãe Rosa, Dulce e
Duzinha estão diante de um grande cesto já com muitas flores alvas. Severino sentado na sua pedra continua
modelando a sua escultura. O samba de roda está formado e à medida que os personagens são chamados vão
colocando seu ramo de flores alvas no cesto. O clima é de alegria)
Sete-Mola veio?
Não veio não.
Por que não veio?
Não veio não.
Pequena veio?
Não veio não
Por que não veio?
Não veio não.
Pé-Molhado veio?
Não veio não.
Por que não veio?
Não veio não.

(Assim por diante serão chamados todos os personagens. Arruaça não virá sambando. Virá sério e colocará as
suas flores ficando ao lado da mãe. A Iaô não será chamada. O samba cresce em ritmo de alegria até a
chamada de Pedrão que não vem. Todos fitam o mar e o samba vai perdendo o ritmo quente e a letra sofre
alterações)
191

29
Pedrão veio?
Não veio não.
Por que não veio
Não veio não.
Cadê Pedrão?
Não ‘ta'quí não.
Por que não veio?
eu não sei não.
Cadê Pedrão?
Não veio não.
Pedrão não veio
Cadê Pedrão?
(O canto caiu em surdina. Ao ser enunciado o nome de Pedrão, Dulce se levanta e Arruaça se agarra a ela. A
Iaô bela e misteriosa sorri. Mãe Rosa olha fixamente para ela com a compreensão e a digna aceitação negra do
inevitável. Ao terminar o canto as mulheres rezam em coro)
MULHERES – Ô bela Iemanjá. rainha de Aiocá
Mãe dos Cinco Rios, e de todos os Orixás!
Ó grande Nanã das águas profundas
Ó Janaina das águas calmas
DULCE – Ó minha doce Mãe Oxum–rainha do dengue e da beleza, mulher como ninguém, dona das águas
doces, das cachoeiras e das cascatas,
MÃE-ROSA – Lavai, senhoras nossas, com a força de vossas águas
MULHERES – Seja do mar ou dos rios
dos lagos ou das cachoeiras
mansas ou revoltosas
das profundas ou das beiras rasas,
DULCE – Lavai, Senhora, aquele atingido
MÃE-ROSA – Trazei de volta, senhoras
DULCE – Trazei de volta meu homem, pai do meu filho querido.
MULHERES – Trazei de volta, senhoras
seu pensamento distante
seu olhar perdido
seu coração vazio.
MÃE-ROSA – Trazei de volta senhoras
MULHERES – Sua alegria naufragada
seu sorriso que se foi
seu carinho, seu calor.

MÃE-ROSA – Mandai-o de volta senhoras


MULHERES – Com seu sorriso presente
com seu coração repleto
e seu olhar encontrado.
E Oxalá será louvado
no céu, na terra e no mar
e no coração de todos nós.
(Mãe Rosa ajudada por Raimundão entrega o grande cesto repleto de flores a Dulce e Arruaça que por sua vez o
entregam aos pescadores. Som de atabaques, toque de Iemanjá – Kinijé. Os homens recebem o cesto e se dirigem
para o mar. Passagem de tempo, noite, amanhecer com luz na Iaô sozinha no palco. Severino e as remendeiras
chegam aos seus lugares. A Iaô nas pedras; Duzinha e Cazuza no bar)
192

30

REMENDEIRAS
CEIÇÃO – Que noite triste!
TONINHA – E tinha lua.
CEIÇÃO – Nasceu enorme chorando luz no mar escuro. E os pingos de luz se espalhou no mar e virou claridade.
TONINHA – A estrela de brilho grande, foi maior que já vi. (Chega Pequena, olha com receio para a Iaô. Do
bar Duzinha se encaminha para as remendeiras.)
DUZINHA – Cês souberam de alguma coisa?
PEQUENA – (Aproxima-se) Do que?
DUZINHA – Tu não tem remorso não?
PEQUENA – (Muito sofrida) Faz isso não, D. Duzinha. Faz isso comigo não.

PRAIA
SEVERINO – A lua ilumina a noite, a lua clareia o mar. A caatinga fica escura do outro lado do mundo. A luz
das flechas que rasgam o corpo do Santo Donzelo São Sebastião é a estrela de luz na escuridão da noite do sertão
do meu Padim. É quando o sol, mais que tudo, vai cegar aquele que olhar a sua luz. (Mãe Rosa vem vindo. Ouve-
se os sons do sino da pequena igreja)
DUZINHA – (Para Mãe Rosa) A missa acabou. Minha comadre Dulce vem por aí. (Súbito todas olham para o
mar, os homens trazem o corpo de Pedrão coberto pelas flores alvas. Eles cantam o “Sequecê”. Dulce e Arruaça
surgem do fundo do palco e se encaminham lentamente para a boca da cena. O corpo de Pedrão coberto pelas
flores alvas é depositado aos pés de Dulce e de Arruaça. A luz toma um tom estranho. O cortejo fúnebre se forma
puxado por Severino; sua escultura está pronta: uma cruz que ele ergue agora. O cortejo sai lentamente. Foco de
luz na figura da Iaô reclinada nas pedras)

FIM.

Rio de Janeiro – 1971


Salvador – 1980.

Título original – A Moça dos Cabelos Verdes. Encenada em 1973 – 1a.Vez no Centro Integrado de Educação
Anísio Teixeira – 1
Em 1975 – Foi encenada no Teatro do SENAC – Produção do SESC– Ambas as produções tiveram a direção da
autora.
193

4.3.2 O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos Deus e das crianças

O espetáculo O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das


crianças foi escrito em 1977 e encenado nos anos de 1977 a 1979, sob direção de Jurema Penna.
Neste, Jurema Penna presta uma homenagem a Vitalino (1909-1963), mestre da cerâmica, que,
no barro de massapé, imprimiu seu estilo, criando uma iconografia do povo sertanejo, de sua
vida cotidiana e de seu imaginário. A dramaturga une essa homenagem ao próprio desejo de
escrever um auto de Natal que celebrasse a cultura nordestina. A peça narra a história de pessoas
simples, que se organizam para comemorar a data, valorizando suas referências culturais. Nas
palavras da autora:

No nascer do Menino Deus, todos nós procuramos reencontrar a criança que existe
em todos nós o que [sic], infelizmente, a todo instante nos esquecemos dela. Nossa
infância é uma infância, antes de mais nada, de criança brasileira, dentro da nossa
realidade cultural, com as nossas cantigas das velhas avós e os presépios encantados
cada vez mais substituídos por pinheiros importados que para nós crianças
nordestinas, nunca foi árvore de quintal de ninguém (CADA DIA, 1977).

O projeto converge com a tônica da obra de Jurema Penna: ler, interpretar e valorizar as
expressões da cultura popular baiana e brasileira, preteridas pelas tendências de importação de
valores. Jurema Penna defende seu projeto de reinventar a festa de Natal a partir do referencial
cultural nordestino, recortando a realidade que lhe interessa representar no seu texto. A
reiteração de marcadores na primeira pessoa do plural como “nós” e “nossa” indica um sujeito
que se apresenta como porta-voz de um grupo social que, reflete acerca das questões de seu
tempo, identifica os problemas e oferece caminhos para as respostas. A fim de desconstruir uma
comemoração natalina arraigada nas culturas norte-americana e europeia, que, conforme a
dramaturga, estava cada vez mais influente no Natal das famílias brasileiras, Jurema Penna
apropria-se dos bonecos do Mestre Vitalino.
No enredo, os bonecos de barro ganham vida na noite de Natal e decidem-se pela
construção de um presépio em louvor ao menino Jesus. O ambiente da peça é repleto de
elementos da cultura nordestina, como a música da zabumba e a linguagem poética do cordel.
A peça foi celebrada com três importantes prêmios: Troféu Martim Gonçalves – Conferido pela
TV Aratu: Melhor Figurino; Troféu Martim Gonçalves – Prêmio Especial do Júri pelo trabalho
de pesquisa; Melhor Espetáculo Infantil – Serviço Nacional de Teatro. Além desses, foi
premiada com a publicação pelo Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria Municipal
de Educação e Cultura da Prefeitura da Cidade do Salvador, em 1978.
194

O espetáculo foi encenado em diversos locais da cidade de Salvador-BA, desde grandes


teatros, como o Teatro Castro Alves até a Igreja do Rio Vermelho, Igreja de São Caetano, Solar
do Unhão, Largo da Lapinha, Parque da Cidade e Largo do Pelourinho. Em 1980, foi adaptado
por Aderbal Jr. para a televisão e veiculado pela TV Educadora, em território nacional. O script
da peça apresenta-se em cinco testemunhos, sendo quatro datiloscritos e um impresso, além dos
documentos da censura. Esses textos dão a conhecer os diferentes caminhos percorridos pela
obra em seu processo de circulação, lidos a partir de suas intervenções, carimbos e outras
marcas. Passamos a descrever brevemente a materialidade de cada um desses testemunhos,
atribuindo uma sigla de identificação apenas para aqueles que trazem versões distintas do texto
e que participarão da colação.
A documentação censória data de 1977 e consta da cópia do ofício da Superintendência
Regional da Bahia (SR-BA) encaminhado à Divisão de Censura às Diversões Públicas (DCDP);
de cópia do ofício de solicitação de censura; cópia do certificado de censura com data de Nov-
77, válido até Nov-82. Há também um parecer de Censor (PARECER, 1977) e uma “ficha de
acompanhamento” (Protocolo interno).
O certificado de censura permite a montagem do espetáculo até 28 de novembro de
1982. O parecer do censor libera a peça sem restrições, com indicação de faixa etária livre,
“considerando a inexistência de matérias ofensiva às normas vigentes” (PARECER, 1977). A
ênfase do parecer recai sobre a ausência de temas que afrontem o referencial sociocultural do
regime militar. Por sua vez, a temática infantil e a linguagem do espetáculo condicionam uma
avaliação que traz poucas críticas à peça, sendo considerada apenas a sua temática natalina e
pastoril. Não há documentos que registrem o ensaio geral.
O primeiro datiloscrito analisado, doravante denominado T77, é uma cópia
mimeografada a óleo e está depositado no Espaço Xisto Bahia. O testemunho está datado de
1977 e assinado ao final por Jurema Penna. É composto por 27 folhas, acompanhado de ofício
de solicitação de censura, certificado de censura (Nov-77 a Nov-82) e cordel de divulgação do
espetáculo (1988). Consta de carimbos da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FCEBA), da
Companhia Bahiana de Comédias, do Departamento de Polícia Federal (DPF) e da Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Intervenção manuscrita à folha 9, ˗ x ˗, a caneta de tinta
verde, entre as linhas 13 e 14 e 28 e 29, marcando uma digressão dos personagens Judite e José
durante a arrumação do presépio.
Os carimbos da FCEBA-Banco de textos e da Cia Bahiana de Comédias indicam que
esta cópia pertenceu a estas instituições antes de serem depositadas no Espaço Xisto Bahia,
dando a entender que o texto teatral era objeto de arquivamento e, em decorrência da
195

vulnerabilidade de seu suporte, deveria ser preservado. Esse dado pode indicar a associação
entre os acervos que se alternavam na guarda desses testemunhos. No entanto, pode também
denunciar a fragilidade desses bancos de textos, que não se sustentavam pela falta de condições
de sua manutenção.
T77 é ainda acompanhado do documento de censura da Superintendência Regional da
Bahia (SR/BA) e possui carimbos e intervenções manuscritas realizados em momentos
diferentes. A primeira camada textual, fotocópia do documento original, traz um ofício de
solicitação de censura assinado por José Augusto Burity, diretor do teatro Castro Alves, datado
de 06 de dezembro de 1978, em papel timbrado da Fundação Cultural do Estado da Bahia. O
documento recebeu o carimbo da SR/BA, assinado por S. E. de S., em 15 de dezembro de 1978,
liberando-o. Traz, ainda, o carimbo da SBAT antes da reprodução, com uma rubrica diferente
daquelas do script.
Como terceira camada textual, temos o carimbo FCEBA e a indicação da doação de
Reinaldo Nunes, inscritos a tinta azul, de tonalidades diferentes. Há, também, outro carimbo
“Aprovado” da SR/DPF (Superintendência Regional/ Departamento de Polícia Federal), datado
de 23 de novembro de 1979, assinado por Maria Helena Guerreiro, seguido da inscrição
“Aprovado para a Biblioteca Central, Clubes e Colégios”, a tinta azul. Ao que parece, e
conforme podemos observar em outros textos de Jurema Penna56, havia uma constante
preocupação de, a, cada temporada de encenações, submetê-lo novamente à censura, a fim de
evitar quaisquer problemas de ordem legal.
O segundo datiloscrito, denominado Tsd, é também composto por 27 folhas e possui
intervenções manuscritas e anotações de cena em todas as folhas, feitas a tinta azul e preta. A
versão do texto coincide, quase à totalidade, com T77. A diferença se deve a duas folhas
inseridas entre as folhas 18 e 19, numeradas 18 A e 18 B. Há também anotações que dizem
respeito às indicações cênicas e se restringem à personagem Maria. Em somente dois casos as
marcas se referem à personagem Judith; nestas duas ocorrências, Judith contracena com Maria.
Tais inscrições funcionam ora como rubricas, como em “Maria toma as ventoinhas de S. Mané”
(PENNA, [197-?], f. 4), ora como marcações do espaço cênico, como em “Maria – Esq[uerda]
do palco arreia as pitangas” (PENNA, [197-?], f. 4).

56
O cuidado de reenviar os textos à censura é presente na conduta de Jurema Penna. Observe-se o caso de Bahia
livre exportação, em que a dramaturga submete o script à Censura Federal pela primeira vez em 1975, reformula-
o e envia, novamente, em 1976, destacando e assinando as modificações realizadas. Procedimento semelhante é
feito com Negro amor de rendas brancas, em que a primeira versão é encaminhada à censura em 1971 e a segunda
versão em 1972. Diante das poucas mudanças identificadas, o arquivo do fundo DCDP opta por conservar, da
versão de 1972, apenas as folhas que apresentam cortes (Cf. Arquivo Hipertextual).
196

Como se tratam de intervenções relativas a um único personagem e que se referem às


suas ações no espaço cênico, acreditamos que estes registros tenham sido feitos pelo ator.
Destacamos o uso que ele faz do suporte material, convertendo o script em um ponto de apoio
mnemônico, tornando-o um lugar para registrar suas ações durante os ensaios. Nesse sentido,
se a rubrica tem como função antever o movimento na cena teatral no momento da leitura do
texto, as anotações realizadas no processo de construção da montagem registram um aquilo que
ocorreu e que deve ser repetido nos próximos espetáculos, pelo menos em tese.
Há também marcas que dão conta de atualizar o script, corrigir eventuais erros de
datilografia, ou indicar pausas. Estas intervenções, bem como a ausência da encadernação,
confirmam a fluidez e mobilidade que caracterizam o texto teatral, objeto de trabalho do ator,
a ser marcado, riscado, rasurado, corrigido e reformulado. Durante a passagem do plano escrito
ao oral, as palavras ganham vida e deixam seus vestígios, como podemos verificar na figura 31.
Nesta, observamos que, sobre a fala de Seu José, o ator insere barras para marcar a conversão
da fala em um diálogo, encenado por José e Maria.

Figura 31 – Marcas cênicas no texto datiloscrito de O bonequeiro Vitalino Tsd.

Fonte: PENNA, [197-?]

O script da peça pode também tornar-se suporte para o registro de outros elementos que
não o texto. O quarto testemunho (T91) traz uma série de indicações cênicas referentes ao
personagem Quico, levando a crer que se trata do testemunho pertencente ao ator/atriz que
interpretou esse personagem. Sua datação é atribuída a uma anotação na margem esquerda da
capa, onde se lê “Outubro 91, Novembro 1991, Lena”. (Cf. figura 32). Ao longo do testemunho,
outras referências a Lena serão feitas, como no verso da folha 11, onde se lê “Maria Helena /
Lena / Anel”, que acreditamos ser Lena Franca57.

57
Lena Franca (Maria Helena Franca das Neves) é atriz, diretora e escritora, dedicando-se à dramaturgia infantil
de cunho popular (COELHO, 2002). Atuou no teatro baiano durante o período da ditadura militar, participando
de alguns projetos com Jurema Penna.
197

Figura 32 – Desenhos no verso do datiloscrito de O bonequeiro Vitalino T91

Fonte: PENNA, [1991]

A hipótese é corroborada por uma atualização realizada ao texto. Observe-se a


comparação abaixo e os destaques feitos:

1 SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó 1 JOSE – Mas do tempo da sua avó prá cá, muita
pra cá, muita coisa mudou. Muita coisa coisa mudou. Muita coisa aconteceu neste
aconteceu nesse mundão de meu Deus. mundão de meu Deus.
Só o que o dinheiro mudou de nome... MARIA – Só que o dinheiro mudou de nome...
5 vou te contar! Olhe meu bisavô foi do 5 vou te contar. Olhe, meu bisavô foi do tempo da
tempo da pataca. Depois teve o real. pataca.
Mais de um real se dizia réis. Quando JOSE – Depois teve o real, mais de um real se
ele queria dizer que uma coisa não valia dizia réis.
nada ele falava assim: "Não vale nem MARIA – Quando se queria dizer que uma
10 dez réis de mel coado". Duzentos réis 10 coisa não valia nada, meu avó falava assim:
era dinheiro... Teve cruzado. Teve "Não vale nem dez réis de mel coado".
"conto de réis". Um conto de réis era JOSÉ – Antes de todos teve cruzado
dinheiro pra tapá casa. Agora, tem MARIA – Teve "conto de reis". Um conto de
cruzeiro. (PENNA, 1978, p.[1]) reis era dinheiro prá tapá casa.
15 JOSÉ – Teve cruzeiro, teve cruzado de novo,
teve cruzado novo e teve cruzado sequestrado,
aí, voltou o cruzeiro.... (PENNA, [1991], p.1-2)

Além da óbvia partição da fala, observamos uma modificação no que tange à referência
às moedas que circularam no Brasil. Em T78, o personagem José menciona o conto de réis,
cruzado e cruzeiro, já em T91, a referência às moedas é ampliada, fala-se do cruzado, cruzeiro,
“cruzado de novo”, “cruzado novo”, “cruzado sequestrado” e, por fim, o “cruzeiro”. Essa nova
relação elenca as mudanças no sistema monetário brasileiro ocorrido do período de 1970 a
1990, em que se tem, nessa ordem, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo e
cruzeiro. Tal atualização não seria possível antes de 1990, ano em que a moeda brasileira volta
a se chamar cruzeiro, com o governo do presidente Collor de Mello.
Além disso, considerando-se que era prática de Jurema Penna submeter os scripts ao
crivo da censura quando reescritos, acreditamos que a ausência da documentação censória para
198

este testemunho, somada à ausência de carimbos do DPF e SBAT, indica que o datiloscrito foi
produzido em um momento pós ditadura militar.
No verso das suas folhas, há diversos desenhos que variam de ilustrações de adultos a
ilustrações infantis. Até o presente momento, não foi possível definir quem realizou os desenhos
nem seu propósito, no entanto pode-se supor que seriam eles representativos dos personagens
da peça, ou ainda, que simplesmente dialoguem com os desenhos infantis, na tentativa de
entreter crianças. Algumas conjecturas podem ser feitas. Por exemplo, a estrela é um elemento
que se repete ao longo de diversos desenhos, com traços infantis e adultos, conforme disposto
na figura 33.
Figura 33 – Referência à estrela nos desenhos do T91 BNV

Fonte: PENNA, [1991], f. 3, 16, 12

O texto apresenta uma referência à estrela do presépio, uma estrela do mar, já que,
conforme o personagem Gaspar, a do céu é mais difícil de ir buscar:

BALTAZAR – Mas antes é preciso


com amor e com carinho
armar a grande estrela
que guiou nosso caminho.

MELQUIOR – Toma aqui a estrela


e esses capins prateados
(PENNA, 1978, p.[10])

A figura 34 apresenta o registro fotográfico do momento em que a estrela guia é trazida


para a composição do presépio. Note-se a expressão dos personagens e a forma da estrela que
199

possui uma cauda feita de capins, como descrito no texto. Além disso, a estrela também guarda
uma série de simbologias com o Natal, sendo sinal do nascimento de Jesus e guia para encontrá-
lo. No entanto, não podemos deixar de considerar que esta é também uma forma geométrica
muito praticada pelas crianças nas escolas, o que poderia ter ocasionado a repetição do desenho
sobre o suporte.
Qualquer que seja a motivação para a realização das figuras, é significante perceber o
texto de teatro como suporte físico do qual a criança se apropria para rabiscar, e através dos
seus desenhos, dar a conhecer sua percepção sobre mundo em que vive. Interessa-nos destacar
que tais desenhos se manifestam pois não há interdição para o uso desse suporte, denotando sua
plasticidade. Sendo uma obra dedicada ao público infantil, trazer essas marcas para a sua leitura
configura-se como uma forma de incluir sua voz na construção das representações.

Figura 34 – Estrela do presépio sendo trazida pelos atores da peça

Fonte: ESTRELA, [197-]


Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço Xisto Bahia

O testemunho impresso (T78) é composto por 15 lâminas dobradas em formato de in-


fólio, medindo 250 mm x 205 mm, não são encadernadas e estão acondicionadas em um
portfólio de média gramatura em tom ocre, que, dobrado em quatro partes, funciona como capa,
contracapa e orelha, trazendo também uma apresentação para o livro. A capa é composta por
título e subtítulo, à margem superior, uma fotografia da cerâmica de Mestre Vitalino, ao centro
e à margem inferior, o nome da autora. As lâminas são impressas apenas no anverso e
apresentam na primeira página uma fotografia dos bonecos de Vitalino, seguidas das páginas
200

com o texto, excetuando-se a primeira em que há a descrição do cenário. Não há numeração de


página. A publicação foi realizada pelo Departamento de Assuntos Culturais da Prefeitura
Municipal de Salvador, datada de 29 de março 1978, na ocasião das comemorações pelo
aniversário da cidade de Salvador. Nesse sentido, vale refletir acerca do projeto editorial de O
bonequeiro Vitalino... no qual Jurema Penna publica um texto dramático em folhas não
encadernadas, gesto que, de alguma forma, faz permanecer no impresso o caráter móvel do
datiloscrito.
Quanto às versões do texto, contam-se quatro, presentes em quatro testemunhos T77,
T78, Tsd e T91. A primeira a ser considerada é a do testemunho de T77, encaminhado à censura.
Tsd traz a mesma versão que T77, no entanto apresenta a inserção de duas folhas e possui uma
camada textual atribuída a modificações realizadas durante a encenação, que foram
incorporadas a T91. Na etapa da colação, consideramos apenas as intervenções ao texto e as
anotações que se referem à descrição da ação dos personagens. As indicações relativas à
movimentação no espaço cênico estarão presentes na edição crítica. Destacamos, no quadro 3,
quatro caligrafias distintas que realizam essas anotações.
Para cada uma das caligrafias, é possível identificar um tipo de intervenção ao texto. No
que tange à caligrafia 1, as anotações realizadas referem-se às marcas cênicas e revisões. Por
sua vez, a caligrafia do tipo 2 aparece em poucas ocorrências e é utilizada para assinalar
marcações cênicas mais gerais, sem se referir a um personagem específico, podendo ainda
indicar uma redistribuição de falas para diversos personagens, além de corrigir os erros de
grafia. As caligrafias do tipo 3 e 4 evidenciam acréscimos gerais ao texto da peça e também
indicam a partição das réplicas por meio da inserção de nome de personagens.
Notamos, assim, várias mãos manipulando o mesmo script. Há mãos que o corrigem,
antes de sua distribuição entre os atores, fazem revisões antes da reprodução. Temos anotações
de cunho mais geral, numa caligrafia que se assemelha à de Jurema Penna (caligrafia 2), o que
pode nos levar a conjecturar que estas marcas sejam oriundas da construção da montagem e,
portanto, da perspectiva da diretora. Todos esses elementos nos fazem presumir que esse texto
foi tomado em momentos diversos, por diferentes sujeitos. Tal hipótese pode ser corroborada
pela diferença destes testemunhos em relação aos outros, trazendo lições que ora acompanham
o impresso, ora o datiloscrito.
201

Quadro 3 – Diferentes caligrafias em T91, O bonqueiro Vitalino

Caligrafia
1: Módulo
pequeno,
ligeirament
e inclinada
para
direita,
com f.2 f.14
maiúsculas
ocasionais,
grafadas a
tinta preta,
presentes
f.19
ao longo de
todo texto.
Caligrafia
2:
Módulo
grande, f.5 f.7
letra f.12
alongada e
reta,
grafadas a
tinta azul f.19
f.15 f.19
Caligrafia
3:
Módulo
médio, a
f.12
tinta azul F9
Caligrafia
4: Módulo
pequeno, f.23
escrito
antes da
reprodução f.25 f.25
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

A terceira versão a ser considerada para a colação dos testemunhos é a impressa, em que
se apresentam poucas modificações em relação à versão T77. Em geral, há uma revisão para a
publicação, além do acréscimo de alguns elementos como o prefácio e dados da publicação. A
quarta versão é aquela apresentada por T91, que incorpora os acréscimos manuscritos
realizados em Tsd. As diferentes versões não apresentam modificações textuais numerosas. Ao
que parece, o texto já se apresentava em uma forma bastante estável, sendo o impresso a
configuração de um momento de escrita terminal. Por sua vez, os testemunhos posteriores a ele
indicam a mobilidade característica dos textos teatrais. Devemos, no entanto, atentar para o fato
202

de que essas modificações não alteram a estrutura central do enredo, que continua basicamente
o mesmo. As modificações realizadas mostram-se decisivas para o desenvolver da ação no
palco.
Comparando-se as diferentes versões, selecionamos algumas passagens em que elas se
apresentam convergentes ou divergentes. Ao se tomar os elementos pré-textuais, identificamos
que o texto encaminhado para a censura é composto de capa, dedicatória, descrição do cenário
e lista de personagens, sendo a dedicatória, elemento pouco comum a esse gênero textual.
Exceto Tsd, que traz apenas a capa, as versões repetem esses elementos, que em T78 estão
acrescidos dos créditos de publicação. Acreditamos que a versão enviada para censura foi
também construída para servir de referência às demais reproduções realizadas dali em diante.
Por sua vez, a ausência da maioria dos elementos pré-textuais em Tsd pode denotar pouca
importância dada a eles, tidos como dispensáveis para o texto destinado à encenação.
Tomamos agora passagens em que as versões apresentam divergências. Iniciamos pela
fala de Seu José, quando discorre acerca dos diversos sistemas monetários brasileiros. Em T77,
f.1, e T78, f.1, o personagem fala sozinho, já em Tsd, f.1, o ator registra a partição da fala,
indicando os trechos convertidos em um diálogo de Seu José com Maria; em T91 (f.1-2) essa
modificação já se encontra incorporada ao datiloscrito. A segunda passagem que destacamos
refere-se à chegada do cangaceiro Pé-de-vento, que impõe a todos a sua dança. A dança não
aparece em T77 e como Tsd é uma reprodução de T77, esta cena aparece como um acréscimo
manuscrito feito antes da reprodução (Tsd, f.13). Tal modificação foi incorporada ao texto nas
versões de T78, f.6, e de T91, f.13-14, sendo este último acrescentado de mais uma ação “Tiro
– para a música”.
O caráter inovador de T91 se manifesta, por exemplo, no acréscimo da brincadeira
denominada “cadeirinha de pon pon” (T91, f.17), que consiste em encaixar os braços de duas
pessoas, construindo um apoio para carregar uma terceira que estaria sentada na “cadeira”. A
ação estabelece a transição entre Maria, que acorda do desmaio, e a tentativa de Gaspar e Davi
de acomodá-la no espaço cênico. Como a construção do texto em linguagem de cordel demanda
um grande investimento, as rubricas são sumárias e, diferente do que ocorre em Iemanjá..., não
observamos um empenho na construção dos elementos narrativos, sobrando espaço para a
improvisação.
Por sua vez, o momento da peça em que David, Gaspar e Baltazar armam o presépio,
cena inexiste apenas em T77. Trata-se de uma passagem relativamente extensa, sobre a qual se
poderia conjecturar que duas folhas foram perdidas de T77; esta hipótese, no entanto, não se
sustenta, uma vez que T77 apresenta-se contínuo, sem incoerências na numeração das folhas.
203

Por sua vez, Tsd é acrescido das folhas 18 A e 18 B, que traz a arrumação do presépio, inseridas
entre as folhas 18 e 19. Por sua vez, T78 e T91 já expõem tal arrumação incorporada ao texto.
Destacamos, ainda, a modificação feita aos versos que indicam a motivação de Vitalino
para a realização do presépio. Em T77, a dificuldade de Vitalino para realizar esse desejo era o
excesso de trabalho, expresso pelos versos “pois tão atarefado vivia / pra tanta encomenda
atender / que o presépio que sonhava / não conseguiu fazer” (T77, f.21, grifo nosso). Em T78,
temos “pois tão atarefado vivia / pra poder sobreviver / que o presépio que sonhava /não
conseguiu fazer” (T78, f.12, grifo nosso). Tsd traz a substituição manuscrita: “pois tão atarefado
vivia / <pra tanta encomenda atender> [↑na luta do sobreviver] / que o presépio que sonhava
/ não conseguiu fazer (Tsd f.21, grifo nosso). T91, por fim, traz “Pois tão atarefado vivia / na
luta do sobreviver / que o presépio que sonhava / não conseguiu fazer. (T91, f.24, grifo nosso).
T91 é, portanto, o testemunho mais inovador e Tsd traz um momento de transição entre T78 e
T91.
Ao analisarmos as modificações feitas percebemos que os três testemunhos apresentam
poucos desvios da norma padrão e poucos erros de datilografia, de uma forma geral. Como em
Iemanjá..., persiste a generalização do acento diferencial nas homógrafas com “e” e “o”
fechados em palavras como “êsse” “freguêsa”, “favôr”, com 24 ocorrências em T77, 14
ocorrências em T91 e 5 em T78. Por sua vez, o acento às palavras derivadas de acentuadas
resumem-se a “obrigatóriamente” (T77, f.2), sòsinha (T77, f.5), apresentando uma ortografia
mais próxima ao acordo de 1971.
Há também uma tendência a intensificar a representação da oralidade no texto,
principalmente no movimento de T78 a T91, como é possível notar em “Os meninos todos
entendem” (T78, f.1) e “Os menino tudo entende” (T91, f.3), ou em “que minhas mãos fiquem
duras / se eu quebrar essas juras” (T78, f.10) e “que minhas mãos fique dura / se eu quebrar
essa jura” (T91, f.19), com a supressão das marcas de plural. Ou ainda com a supressão da
marca de infinitivo nos verbos, em “pra comprar pirulito” (T78, f. 1) e “pra comprá pirulito”
(T91, f. 1). Tais marcas não são vistas em T77, o que nos leva a crer que, na elaboração dessa
versão, a preocupação com a correção gramatical se manifestava, numa previsão de transformá-
la em um impresso. Em T91, ao contrário, essas preocupações são desfeitas em favor da
representação da linguagem popular no palco, que também deixa suas marcas no datiloscrito.
Notamos, dessa forma, que mesmo com personagens falantes da modalidade popular da língua,
a publicação impressa direciona a dramaturga para o uso da norma culta, mediado pela presença
do revisor, que atua como agente normalizador, segundo as regras do português padrão.
204

Uma leitura do conjunto da obra de Jurema Penna permite perceber que alguns
elementos tratados em O bonequeiro Vitalino… são recorrentes em outros de seus textos
teatrais. A ambientação na feira também aparece em Na feira de São Joaquim e Natal na Feira
de São Joaquim58. O primeiro traz para o palco o cotidiano dos vendedores da Feira de São
Joaquim e a dificuldade de viver em sob uma forte opressão social, oriunda tanto da pobreza
que os assola, quanto dos poderes oficiais, materializados nos fiscais que cobram os impostos.
Tal opressão é também representada na figura da criança pobre que sonha em estudar, mas tem
que trabalhar na feira para ajudar a família.
Por sua vez em Natal na Feira de São Joaquim [197-?], um grupo de feirantes, dentre
eles, adultos e crianças, se reúne para celebrar um Natal mais autêntico, desvinculado das
questões econômicas e dos padrões eurocêntricos postos pela mídia. Para assim fazê-lo,
constroem um presépio no qual a personagem que representaria Nossa Senhora está grávida e
dá a luz ao menino Jesus no momento da encenação, encerrando a peça, trecho bastante
semelhante a uma das cenas de O bonequeiro Vitalino, conforme a comparação entre as duas
peças:

Excerto de Natal da Feira Excertos de O bonequeiro Vitalino

MULHER 1 – Ai meu Deus, tá me


doendo parece que vai nascer (ELA SE
CONORCE [sic] TODAS AS (CHORO DE CRIANÇA)
MULHERES A CERCAM OS Todos - Nasceu! Nasceu! Nasceu! MARIA – E Emanuel -
HOMENS PREOCUPADOS DÃO OS Seu José - Que meu padim Padre meu menino
ULTIMOS RETOQUES NO CENÁRIO) Ciçro Lhe dê urna boa sina. fará o papel mais lindo
Homem 1 – É menino ou menina? Os outros - É menino, ou menina? nasceu nesta noite de luz
Mulheres – Menino! Menino Homem.! Judite - Menino. Menino homem. fará o MENINO JESUS.
Mulher – E o meu menino que papel Maria - Emanuel, será seu nome.
vai fazer. Seu José - Escute aqui Pé-de-
Homem 1 – Não se preocupe Maria Vento»
Nascendo em noite de luz
se chamará Emanuel
e será o Menino Jesus. »

(PENNA, Jurema. [197-?]. f. 6-7 de (PENNA, Jurema.O bonequeiro (PENNA, Jurema.O


Natal na Feira de São Joaquim) Vitalino 1978, p.11) bonequeiro Vitalino
1978, p.15)

De Tsd a T78, notamos uma reestruturação do argumento, que implica uma ampliação
da peça. Em Natal na Feira..., a personagem Maria encerra a ação com o parto do seu filho,
que encenaria o menino Jesus no presépio. Em O bonequeiro Vitalino, Maria dá a luz e a peça
segue com o cangaceiro abandonando as armas e a vida de crimes, seguindo-se com a

58
Testemunhos datiloscritos sem data e sem registro da Censura Federal, depositados no Espaço Xisto Bahia.
205

arrumação do presépio. Neste momento, os personagens discutem entre si os papéis da


representação. Após a arrumação da lapinha, o recém-nascido é designado para o papel de
Menino Jesus, os atores retornam à forma de bonecos e a peça se encerra.
Quanto à temática, em O bonequeiro Vitalino, há uma defesa da comemoração de um
Natal menos estrangeirizado, esse fato não é mencionado no script. No entanto, aparece no
depoimento anteriormente citado de Jurema Penna, bem como em Natal na feira...:

Homem 2 – no Natal não curto muito


pra falar minha verdade
esse negócio de presente
isso pra mim é novidade
Mulher 3 inventada por extrangeiro [sic]
pra nós aqui os brasileiro
gastar todo o dinheiro [...]
Menina E o que Ele veio pregar
o sentimento cristão
e paz na terra
Mulher 1 Amor entre todos irmãos
e glória a Deus na alturas
isso ninguem lembra não.
(PENNA, Jurema. [197- ?]. f. 2)

Ao se comparar esse texto àquele d’ O bonequeiro Vitalino..., percebemos uma


significativa semelhança no enredo, entretanto, a estruturação do espetáculo diferencia-se.
Acreditamos, pois, que Natal na feira… constitui-se como um momento inicial para O
bonequeiro Vitalino. Dessa forma, é possível estabelecer uma relação de intertextualidade
dentro da própria obra da dramaturga, com a utilização de temas e cenas que são repetidos e
reconstruídos.
Em entrevista a Guido Guerra, Jurema Penna elabora sua própria narrativa sobre a
criação da peça, que transcrevemos:

Maria Manuela me procurou e disse que Rosita Salgado Góes, que dirigia o
Departamento Cultural da Prefeitura, iria promover um Ciclo de Natal e precisava de
um texto infantil. Fui falar com ela e acertei montar uma peça com valores nossos,
nordestinos. Quer dizer, coloquei o carro antes dos bois. Ou seja, vendi uma coisa que
não existia, a peça infantil que já estava na minha cabeça. Eu não queria uma coisa
com candomblé, essas coisas. Mas também não sabia exatamente o que queria, o que
escreveria. Tinha perdido um sobrinho, fazia pouco tempo. Então, fechei os olhos e
lhe pedi ajuda. Aí, ouvi uma voz: “Abra os olhos, tia”. Era a voz dele. Abri os olhos
e, diante de mim, vi uma família de retirantes em cerâmica popular [...] Aí o resto foi
fácil, foi jogar minha emoção, minha memória de menina das feiras de Itajuípe
(GUERRA, 2005, p. 306).

O bonequeiro Vitalino… conta ainda com uma série de registros da recepção do


espetáculo, que inclui diversas matérias de jornais e fotografias das encenações. As fotografias
206

constituem-se em um rico material de recepção, uma vez que possuem uma dupla constituição.
O fotógrafo, ao estabelecer um enquadramento, privilegia certos aspectos em detrimento de
outros; os fotógrafos de teatro elegem como plano central o ator que desempenha a ação
principal, podendo privilegiar o ambiente da encenação. Este profissional age como um
mediador entre o espetáculo e os espectadores, fotografando alguns ângulos que não são
acessíveis à plateia, registrando-os para a posteridade. Atua, também, como um dos sujeitos da
cena, já que sua fotografia constrói realidades e engendra percepções sobre o espetáculo. Além
disso, apresenta o registro de montagens diferentes, indicando a permanência ou não de um
elenco ou de um cenário.
No nosso caso, essas fotografias passam a ser um elemento que suplementa a leitura,
uma vez que é possível identificá-las a certas passagens do texto, fazendo-nos refletir acerca do
espaço cênico, da elaboração dos personagens, a proposta do cenário, bem como sobre as
formas assumidas pelo drama e a tecnologia possível para a época. Apresentamos, a seguir,
imagens de algumas montagens d’O bonequeiro Vitalino. A maioria delas possui baixa
qualidade, sendo algumas fotocópias e outras reproduzidas de matérias de jornal. Não há, em
muitas, registros sobre a data ou autoria, todas as fotos aqui dispostas estão depositadas no
Núcleo de Acervo do Espaço Xisto Bahia.
A fotografia abaixo (cf. figura 35) mostra, em plano principal, Frieda Gutmman,
representando Maria, sentindo as dores do parto, e os atores em seus personagens: Mané
(portando uma espingarda), David e Samuca, ao canto a personagem Judith, todos atentos à
Maria.
Figura 35 – Parto de Maria

Fonte: PARTO, [197-]


Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço Xisto Bahia
207

Como a cena se volta para Maria, é esse o ângulo escolhido pelo fotógrafo. Note-se que
o enquadramento favoreceu a inclusão dos demais personagens, registrando a interação entre
eles. Além de evidenciar a simplicidade do cenário e do figurino, é possível ainda ver o boneco
do boi de bumba levado pelo personagem David.
As imagens que seguem foram publicadas em 1978, no Jornal da Bahia (O
BONEQUEIRO, 1978) (Cf. figura 36). Tais retratos nos permitem verificar que a ação não
acontece no palco de um teatro, mas em um espaço aberto; na primeira há vegetação ao fundo,
na segunda, a parede de um imóvel. Reinaldo Nunes59, produtor do espetáculo, esclarece que
as fotos foram feitas no fundo do Convento do Carmo. O confronto das fotografias com o texto
aponta para a relação com duas cenas. A primeira mostra o despertar do boneco cangaceiro,
Mané, que de posse sua “garrucha”, que, na foto, se assemelha mais a uma espingarda, ameaça
o grupo exigindo que este lhe entregue os objetos de valor. A segunda, a julgar pela expressão
de Maria, parece referir-se ao momento em que a personagem sente as dores do parto.

Figura 36 – Ameaças do boneco cangaceiro

Fonte: O BONEQUEIRO, 1978

Nas fotos que trazemos, em sequência, o destaque recai sobre o espaço cênico. Na
primeira fotografia, vemos, mais uma vez, o cangaceiro com arma em punho, talvez repetindo
a cena já descrita acima. É possível ver, com clareza, uma série de casarões históricos que
permitem localizar a imagem no Largo do Pelourinho, onde se vê à direita o casarão que abriga
hoje o Museu da Cidade (Cf. figura 37).

59
Reinaldo Nunes é produtor, diretor e presidente da Companhia Bahiana de Comédias, fundada na década de
1960. Concedeu entrevista a essa pesquisadora em maio de 2014.
208

Figura 37 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Pelourinho

Fonte: PELOURINHO, [197-] Fonte: Google Street view


Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço
Xisto Bahia

A fotografia seguinte mostra uma encenação que acontece na Biblioteca Pública do


Estado, em 1979. O enquadramento direciona a atenção para o público presente, que tanto é
bastante numeroso, quanto está muito próximo dos atores. Observe-se que as pernas esticadas
quase disputam o espaço cênico com os personagens. À esquerda da fotografia está o cantador
com seu violão, à direita dois personagens em embate, não fica claro se estão dançando ou
brigando e pelo bastão que traz à mão um deles parece ser Gaspar, que, no texto, merca pirulito
(Cf. figura 38).

Figura 38 – Diferentes espaços cênicos de O bonequeiro Vitalino – Biblioteca Pública do Estado.

Fonte: MARIA, 1979


Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço Xisto Bahia

A busca por outros espaços cênicos mostra o caráter popular da montagem, articulado a
uma parceria com os poderes públicos. Na matéria O bonequeiro Vitalino: a história do
209

presépio que não pode ser feito (1978), relata-se que espetáculo foi “[...] levado a alguns bairros
periféricos e de operários e também no município de Simões Filho e foi patrocinado pela
Secretaria de Transporte e Comunicações e Secretaria da Educação e Cultura do Estado da
Bahia”. Em depoimento a Silvia Maria (1979), Jurema Penna enfatiza a aceitação do público
dos bairros periféricos como um indicativo de sucesso do espetáculo, atribuindo a acolhida
desse público à simplicidade de suas formas e à linguagem do Teatro de Cordel. Conforme a
dramaturga houve

[u]ma integração total, na linguagem que eles falam e sem confusão para entender.
Me lembro que em Pau da Lima, a Prefeitura tinha dado o palanque mas não o tinha
armado. Quando chegamos, encontramos a comunidade armando o palanque e
enfeitando para a gente (MARIA, 1979).

As fotografias do plano geral do espetáculo também dão a conhecer a configuração da


cena, a disposição de todos os personagens no espaço, bem como a vista do cenário. A figura
39 nos permite verificar dois espaços cênicos. Na primeira foto, veem-se palmeiras ao fundo, o
que pode indicar que a ação se desenvolve em um espaço externo ou em um jardim, que pode
ser do foyer do Teatro Castro Alves. Na segunda imagem, as armações tubulares no teto,
utilizadas para prender os holofotes e outros elementos de iluminação assemelham-se às
estruturas da Sala do Coro do Teatro Castro Alves. Apesar da baixa qualidade das fotografias,
as hipóteses podem ser confirmadas, pois a peça foi encenada no referido teatro.

Figura 39 – Espaços cênicos do TCA

TCA, [197-]
Digitalização a partir de cópia depositada no Espaço Xisto Bahia
210

Nas fotografias em plano geral, é possível perceber elementos do cenário descritos na


peça, como o galo e a estrela guia sobre a barraca de Seu José, além da árvore de cata-ventos
na fotografia da direita. Há também uma mudança de parte do elenco, apontada pela alteração
da atriz que vive a personagem Maria, diferente da que aparece figuras 35 e 36, indicando ser
esta outra montagem posterior a 1979, já que, até este momento, Frieda Gutmann permanece
no papel.
Consideramos, também, o texto jornalístico, em seus variados gêneros como registros
relevantes para compreender a recepção d’O bonequeiro Vitalino. Foram recolhidas algumas
publicações correspondentes aos anos de 1977 a 1980; dentre elas destacamos a crítica teatral,
matérias sobre o espetáculo, nota de divulgação, além de uma apreciação literária do texto,
publicado na coluna de Nilda Spencer, no Jornal Tribuna da Bahia.
Uma crítica ao espetáculo é feita por Vieira Neto, em O auto de Natal de Jurema Penna.
Nela, o jornalista apresenta a sua leitura da peça, destacando a excelência do texto e a
simplicidade da produção:

Tudo muito simples mas de muito bom gosto e de uma pureza comovente,
preservando a humildade que caracteriza o nascimento de Jesus Cristo entre nós e que
seria evidentemente uma constante em toda sua vida. Essa mesma pureza e humildade
fez com que o Mestre Vitalino pudesse com a ingenuidade dos puros e sofridos,
retratar no massapê pernambucano o homem nordestino no seu dia-a-dia de muito
suor, lágrimas e sangue, na luta pelo pão-nosso-de-cada-dia cada vez mais difícil de
ser conquistado. (VIEIRA NETO, 1978)

Vieira Neto evidencia um ponto de encontro entre a cultura popular nordestina e a


representação do nascimento de Jesus, unindo esses dois elementos por meio da simplicidade
que lhes são característicos e, que, por sua vez, se coadunam com a conformação do cenário
“sem aquela preocupação tão comum nas produções infantis locais de querer fazer um
‘superespetáculo’” (VIEIRA NETO, 1978). O jornalista comenta, ainda, o início do espetáculo:

O som da zabumba, com seu ritmo quente contagiante, se faz presente logo no início
do espetáculo, quando os atores surgem na plateia, travestidos de vendedores de feira,
apregoando com muito humor, as suas mercadorias. Todos saltitantes e alegres [...]
Espetáculo que termina com os sinos repicando em louvor do nascimento do Menino-
Jesus. (VIEIRA NETO, 1978)

Certamente, este som era proveniente de terno de zabumba do Mestre Vicente, cuja
flauta era tocada por Mestre Vitalino, conforme descrito na ficha técnica do programa do
espetáculo. A descrição de Vieira Neto confere outra tônica à leitura do texto, suplementando
a descrição do cenário: “O espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço cênico (rua,
211

praça, adro, ou interior de igreja, o palco, etc.) trazendo seus apetrechos, suas mercadorias,
mercando, cantando seus pregões” (PENNA, 1978, p.[2]). Vieira Neto faz também uma alusão
ao toque dos sinos no fim da peça, mais um elemento que constrói a esfera mágica da
transformação dos personagens em bonecos de Vitalino, como mostram as fotografias
anteriormente apresentadas.
Ao longo da matéria, Vieira Neto expõe sua concordância como o projeto de Jurema
Penna de defender uma comemoração natalina mais próxima do referencial cultural nordestino:

Um Natal bem brasileiro, sem a menor influência alienígena, um Natal tipicamente


nosso, esse retratado por Jurema Penna num espetáculo que merecia ser apresentado
no TCA durante todo o decorrer deste mês de dezembro a fim de que muitos que
pudessem vê-lo e quiçá se impregnar de toda pureza que irradia qual um cântico de
paz e felicidade, num mundo cada vez mais conturbado pela discórdia provocada por
aqueles que deixaram de ser crianças e consequentemente já morreram, esquecendo
de cair. (VIERA NETO, 1978)

Vieira Neto destaca a importância do teatro como arte que promove a reflexão e a
mudança de comportamento do espectador, que, tocado pela beleza, simplicidade e humildade
pregados pelo espetáculo, poderia construir novos sentidos para o Natal. Faz ainda uma crítica
à atuação do elenco em que não se pode destacar “[n]enhuma atuação excepcional, todos se
mantêm num mesmo padrão de interpretação”. Para o colunista do Jornal A Tarde, a maior
proeza do espetáculo é a “simplicidade, sem pretensões a genialidade”.
Em 1978, a matéria intitulada O bonequeiro Vitalino: a história do presépio que não
pode ser feito também faz referência aos bonecos de Vitalino como inspiração para Jurema
Penna, bem como “a doce magia espiritual” que compõe o fio condutor do espetáculo e que
marca a transformações dos personagens, “onde feirantes e camelôs de uma pequena Feira de
Natal são magicamente transformados em bonecos que irão contar a história do presépio que o
Grande Mestre não conseguiu fazer”. Conforme a matéria, os atores, encarnando os
personagens,

estiveram em cena dispostos a todo custo a cumprir a promessa do criador e bom


Mestre Vitalino […]. O trabalho de pesquisa de uma nova linguagem teatral
estruturada nas nossas origens culturais” constituiria um ponto de inovação no texto,
ao qual se atribui o merecimento dos prêmios recebidos” (O BONEQUEIRO, 1978).

Destacamos ainda duas críticas ao texto do espetáculo. A primeira assinada pelo


professor Edvaldo Pereira Lemos e publicada em jornais, a segunda, que constitui o prefácio da
publicação, escrita por José Maria da Costa Vargens (1978).
212

A apreciação de Edvaldo Pereira Lemos foi publicada na coluna de Nilda Spencer, no


Jornal Tribuna da Bahia, em 1978. A “análise literária” se inicia destacando a peça de Jurema
Penna como “texto agradável, recheado de humorismo, também de uma profunda riqueza entre
a fusão do religioso com o profano, tentando desmistificar a visão de Cristo nas linhas
tradicionais, mas situá-lo como humanismo e participação” (LEMOS, 1978, p. 10).
Ao longo da crítica, reitera-se diversas vezes a identificação da análise como literária e
a confirmação da literalidade da obra de Jurema Penna: “Surpreender-se-ão, talvez, os que
conhecem Jurema como atriz ao nos lerem tratando de JP como autora de peça teatral, como
autora de obra de arte literária”. Apesar de Jurema Penna escrever e encenar a sua dramaturgia
na Bahia, desde 1973, é interessante notar que somente com a publicação da peça teve o status
de dramaturga reconhecido. Percebemos, pois, as funções da publicação, tanto no que tange à
legitimação da dramaturga, quanto para fazer circular os textos teatrais como objetos de leitura
nessa conjuntura.
Acerca da linguagem do espetáculo, Lemos destaca a utilização de

versos que se anexam à Literatura de Cordel, mas onde o popular perde a


popularidade e retoma uma linguagem velada. Insinua mais do que diz. Rica em
sonoridade, harmonia entre fundo e forma, unidade entre música e significação, metro
e rima, ritmo e frase [...]. Representando uma fusão de gêneros e estilos, encontra-se
contudo quase toda a expressão do sentimento. Daí perceber na sua obra que o lirismo
como estado emocional é imanência na sensibilidade humana. (LEMOS, 1978, p.10,
grifo nosso)

Lemos diferencia a apropriação que Jurema Penna faz da literatura de cordel,


asseverando que, apesar de se utilizar de uma linguagem popular, não compartilha com esta sua
“popularidade”, diferenciando-se por deixar vazios para serem complementados pelos
apreciadores do texto e do espetáculo. Destaca a riqueza do uso feito por Jurema Penna dos
versos do cordel, enumerando uma série de características que lhe são peculiares, constituindo-
se em uma fusão de gêneros e estilos, cujo principal propósito é promover no seu receptor uma
emoção.
Ao descrever os diversos elementos que compõem o espetáculo, Lemos aposta na
experiência sinestésica provocada pela leitura, e constrói, assim, a imagem de Jurema Penna
dramaturga, cujo texto é capaz de instigar os sentidos:

Nesse espetáculo digno de contemplação que JP descreve coisas, inventaria-as,


nomeia-as, realça-lhes as linhas, distinguindo-as em gamas olfativas, auditivas,
visuais, tácteis aos quais adestra os sentidos. É, pois, nesse conjunto de coisas e seres
comunicado pelas sinestesias da sua obra que Jurema Penna nasce na Bahia também
como poetisa.
213

A despeito da análise carregada de subjetividade, é possível associar a percepção


sinestésica com a própria esfera de magia que perpassa o espetáculo, de que os diversos efeitos
utilizados são capazes de marcar os diferentes momentos. Tais como o primeiro toque dos sinos
para a missa do galo, que desperta os bonecos do seu sono e os faz preparar o presépio, e o
segundo, com o presépio já armado, que faz os bonecos adormecerem.
Por sua vez, José Maria da Costa Vargens (1978) escreve a apresentação do volume
impresso d’ O bonequeiro Vitalino, que também tomamos como documento de recepção do
texto. Vargens inicia sua apresentação citando a capacidade que tem Jurema Penna de construir
um Natal com forma brasileira. Notamos, ainda, uma tentativa de vincular a peça de Jurema
Penna a correntes literárias.

Em se tratando de um Auto de Natal, convém de logo, destacar a habilidade de Jurema


Penna em "abrasileirar" o tema natalino. Se formos buscar alguma linha a que
pudéssemos filiar esta peça, não há [sic] negar-se que nos encontramos diante de uma
volta consciente às origens populares do teatro, diremos mesmo ao puro teatro popular
vicentino, com as roupagens bem brasileiras — ou talvez, para não fugirmos aos
padrões estruturalistas tão em voga, de uma "aculturação" brasileira como fez João
Cabral de Melo Neto (VARGENS, 1978, p.[1]).

Ao citar o teatro vicentino e a poesia de João Cabral de Melo Neto, Vargens estabelece
um diálogo da obra de Jurema Penna com a tradição literária, que tanto possui antecedentes,
numa dramaturgia portuguesa, por trazer personagens-tipo, como dialoga com a produção
literária contemporânea. Tal aproximação constitui-se também uma estratégia de legitimação
do texto de Jurema Penna, inscrevendo-a numa literária canônica.
No parágrafo seguinte, o crítico também se utiliza da tradição literária para fazer uma
breve reflexão sobre a linguagem de cordel presente na peça:

Aliás, esta volta às fontes populares, [sic] é uma das mais proveitosas buscas do
modernismo, quer na prosa, quer na poesia. Não esqueçamos ser a literatura de cordel,
a forma atual da primitiva novela cavaleresca [sic] que, bem aproveitada, tem levado
ao romance modernista, [sic] os melhores efeitos, criando mesmo, um clima de magia
e misticismo com que os modernos autores envolvem seus personagens nas "estórias"
dos cantadores de feira. Veja-se, verbi gratia, Jorge Amado em Mar Morto e Adonias
Filho em Corpo Vivo. Na poesia basta-nos citar o pernambucano João Cabral de Melo
Neto (VARGENS, 1978, p.[1]).

Ao ancorar a literatura de cordel na novela cavalheiresca e seu uso no romance do


modernismo, Vargens (1978) vai ao encontro daquilo que Lemos (1978) denominou de
“popular [que] perde a popularidade”, assim, há uma apropriação da linguagem, no entanto esta
produz formas de cordel mais sofisticadas que aquele das feiras livres e dos cantadores, uma
214

vez que o intelectual estaria apto a executar estas transformações, e que garantiria a sua
literariedade.
Vargens ainda destaca a habilidade que Jurema Penna ao congregar elementos de um
mosaico cultural, na medida em que reúne traços da cultura soteropolitana aos bonecos de
Vitalino eminentemente pernambucanos, constituindo um interessante trânsito, o que Vargens
atribui ao sincretismo baiano, conforme observamos abaixo:

[…] Jurema Penna, transpondo "pregões" baianos (quem não se lembra da "laranja do
Cabula, uma verde outra madura"? de um passado não tão remoto?), usos e costumes
tão de nossa tradicional Bahia (a folha de pitangueira), sabe, com maestria, entrosá-
los à arte nordestina e fundi-los, todos, na grande arte dramática, com o toque de magia
e mística que dá o "encantamento" de sua peça. Clima de sincretismo baiano. Clima
de Natal. De Natal do povo. De Natal não aburguesado. De Natal do Cristo, que é o
Senhor do Bonfim da Bahia (VARGENS, 1978, p.1).

O crítico comenta, também, as estratégias utilizadas por Jurema Penna para constituir a
esfera de magia do espetáculo, a saber, o som da zabumba, o canto de Mané, o toque do sino, o
canto de vozes humanas

Não há [sic] negar-se o alto valor de tais instrumentos para criar o clima mágico. Canto
de vozes humanas e canto de músicas dos sinos. Lidando com o mais espiritual dos
instrumentos – a Palavra – Jurema Penna transporta-nos a "sentir", vivendo-a, a
Encarnação do Verbo, embalando-nos a alma com o canto popular, expressão da alma
de nossa gente, e toque dos sinos que faz reaviver em nós a criança que todos temos
(VARGENS, 1978, p.1)

Em dezembro de 1988, Zoíla Barata e Ary Barata produzem e dirigem uma nova
montagem de O bonequeiro Vitalino, para a qual Franklin Maxado60 escreve um cordel61 de
divulgação. O cordelista parte da ideia que o Natal constrói princípios e valores, como a
harmonia e a caridade, que suplantam os limites impostos por uma prática religiosa
institucionalizada. O cordel apresenta o enredo da peça e faz referência à figura que inspirou a
história, o bonequeiro Vitalino, bem como à linguagem utilizada e os personagens da ação.
O cordelista faz uma referência a Jurema Penna como autora da peça, além dos seus
diretores, exaltando a importância destes para o teatro na Bahia. Informa horário e local onde a
peça seria encenada “Vai ser levado no dia / 21 deste dezembro / Em cima da escadaria / De
um edifício central: / A Fundação Cultural / Do Estado da Bahia” (MAXADO, 1988, p.[4]). No
entanto, adverte para uma possível mobilidade do espetáculo, em decorrência de um sucesso

60
Franklin Maxado é cordelista, natural de Feira de Santana-BA. Autor dos livros sobre cordel, dentre eles, O que
é a literatura de cordel?, 1980, e O cordel televisivo, 1984, publicações da editora Pasquim/Codecri.
61
O cordel é uma publicação da Fundação Cultural do Estado da Bahia e está disponível no Arquivo Hipertextual.
215

quase certo, a julgar pelas encenações anteriores: “A peça lá nos Barrís / Pode ir prá outros
cantos / porque sei que as pessoas / Gostarão dos seus encantos” (MAXADO, 1988, p.[4]).
Maxado (1988), por sua vez, dá a sua interpretação para que o milagre do Natal tenha
se materializado em um presépio de origem pernambucana na Bahia: “Tudo na Bahia é mágico
/ Seu povo está aí prá provar / Como aqueles tres Reis Magos / Melquior e Baltazar / E Gaspar
que tudo viram / Pelo astral e sentiram / Como a peça vai pregar” (MAXADO, 1988, p.[4]).
Sendo a Bahia a “terra da magia”, e da magia sincrética, como coloca Vargens (1978), os três
reis, também magos, estariam ambientados nesse espaço.
Refere-se à linguagem do cordel como disseminadora de narrativas: “No Reino do
Encantado / O cordel é instrumento / Pra contar as estórias / De tudo no Testamento / Como o
bíblico Natal / Nesta peça teatral / Que é um deslumbramento” (MAXADO, 1988, p. [4]). É
por meio dos contos e causos que os cantadores vão elaborando as narrativas conhecidas e
incorporando a elas novos elementos de sua própria cultura, favorecendo uma atualização
dessas narrativas, bem como estabelecendo uma relação com contexto sócio-cultural em que
aparecem.
O cordel traz, ainda, uma ficha técnica, os agradecimentos da produção, além do elenco
em ordem alfabética. Interessa-nos tratar das modificações realizadas na lista de personagens e
atores, comparando-as com a versão de T78. Conforme os dados presentes no cordel de 1988,
os personagens, na forma de boneco, foram todos convertidos em retirantes, o que significa
uma redução nas referências das cerâmicas de Vitalino, que em T78 trazia o Padre, O boi de
bumba, a retirante que puxava o burrinho, o burrinho62. Além disso, inclui-se um décimo
personagem, que mantém a configuração dos demais, desempenhando três papéis nos
momentos distintos do espetáculo. Certamente, estas modificações refletem mudanças também
no texto e mostram como a cada montagem o script é objeto de apropriação por parte dos
diretores, dos atores, dentre outros, que reconstroem o espetáculo.
Assim como o cordel, os panfletos de divulgação e programas do espetáculo atraem os
espectadores em primeiro lugar pela estética da xilogravura, que remete diretamente à temática
nordestina e sertaneja, conforme apresentamos na figura 40.
A primeira imagem traz uma xilogravura de um dos bonecos de Mestre Vitalino, como
capa de um panfleto que divulga o espetáculo no Teatro Castro Alves, dias 9, 16, e 23 de
dezembro às 16:30 e 10 e 17 de dezembro às 10:00 e 16:30; datado de 1978. Neste, apresentam-
se os dados biográficos sobre Vitalino e transcrevem-se os versos que Carlos Drummond de

62
Estas formas estão representadas nas fotografias das cerâmicas de Vitalino, presentes na capa e nas lâminas 4,
5, 11 de T78.
216

Andrade escreveu na ocasião de seu falecimento. Há também a reprodução de trechos das


críticas feitas por Vargens (1978) e Lemos (1978), além da indicação dos prêmios recebidos no
ano de 1977.

Figura 40 – Xilogravura para a divulgação do espetáculo O bonequeiro Vitalino

Fonte: PANFLETO 1, [1978] Fonte: PANFLETO 2, [1978] Fonte: MAXADO, 1988

O panfleto traz ainda o elenco por ordem de entrada, a ficha técnica do espetáculo, e a
dedicatória “Esta peça é de Zéu / Tia Ju”. Levando-se em consideração que Viera Neto (1978)
transcreve o poema de Drummond, havendo semelhança nas informações trazidas pelo panfleto
e aquelas contidas na matéria, acreditamos ser possível datar o panfleto do ano de 1978.
Confirmam essa datação o ofício de solicitação de censura assinado por Burity, diretor do TCA,
do mesmo ano, bem como o depoimento de Reinaldo Nunes, produtor do espetáculo (Cf.
p.208).
O segundo panfleto que traz uma xilogravura do Menino Jesus, recém-nascido, rodeado
pelos animais. Também encontra-se sem data. Nas folhas internas do folder, há o mesmo texto
com a biografia de Mestre Vitalino, apresentando poucas diferenças na diagramação. A terceira
xilogravura traz um homem adulto cuja máscara está caída ao chão e sobre sua cabeça há um
céu estrelado. A imagem pode referir-se a um dos reis magos e ao próprio movimento cênico
em que diversos personagens representam o mesmo ator. Por outro lado, é possível identificar
a máscara como símbolo do próprio teatro. Datamos ambos documentos de 1978, a partir do
depoimento de Reinaldo Nunes.
Após a exposição desse mosaico de referências, acreditamos ter sido possível entrever
os processos de construção, produção, transmissão, circulação e recepção de O bonequeiro
Vitalino, a partir de um conjunto limitado e lacunar de testemunhos. Dentro dessa dinâmica,
217

compreendemos o lugar do editor, também, no processo de recepção, uma vez que o seu
movimento de busca nos arquivos e acervos, bem como o levantamento dos materiais relativos
à peça é fundamental para a constituição de novas leituras.
Elegemos como forma de divulgar O bonequeiro Vitalino... a sua inclusão no arquivo
hipertextual aqui apresentado. Compreendemos que a edição crítica é o produto, que não se
pode construir sem trilhar o percurso explicitado nessa seção. Uma vez disposta em meio
virtual, torna-se um caminho multidirecional que irá apontar para os diferentes movimentos de
escrita e de leitura. Pensamos que dessa maneira é possível avançar mais um passo na direção
de uma edição representativa da história de uma obra, por meio da narrativa apresentada pelo
editor.
Diante dessas análises, estabelecemos como texto de base para a edição o testemunho
de 1978 (T78), que traz a versão publicada. Nossa escolha se deve ao fato de entendermos as
lições trazidas nesse testemunho como ponto de partida para as modificações empreendidas nos
demais momentos de retomada e elaboração do script. Ao tomá-lo como texto de base, em
contraste com as lições trazidas pelos outros testemunhos, esperamos pôr em evidência os
caminhos percorridos por ele em seus diferentes momentos de encenação.
Nesse intento, apresentamos, o resultado desse percurso por meio do arquivo
hipertextual, em volume digital. Este volume impresso trará somente o texto crítico.
218

4.2.2.1 Texto Crítico de O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das
crianças

[Capa]

O BONEQUEIRO VITALINO
ou Nada é impossível aos olhos de Deus e das crianças

Auto de Natal

Jurema Penna
Autora
219

[Apresentação]

Em se tratando de um Auto de Natal, convém de logo, destacar a habilidade de Jurema Penna em


“abrasileirar” o tema natalino. Se formos buscar alguma linha a que pudéssemos filiar esta peça, não há negar-se
que nos encontramos diante de uma volta consciente às origens populares do teatro, diremos mesmo ao puro teatro
popular vicentino, com as roupagens bem brasileiras — ou talvez, para não fugirmos aos padrões estruturalistas
tão em voga, de uma “aculturação” brasileira como fez João Cabral de Melo Neto.
Aliás, esta volta às fontes populares, é uma das mais proveitosas buscas do modernismo, quer na prosa,
quer na poesia. Não esqueçamos ser a literatura de cordel, a forma atual da primitiva novela cavalheiresca que,
bem aproveitada, tem levado ao romance modernista, os melhores efeitos, criando mesmo, um clima de magia e
misticismo com que os modernos autores envolvem seus personagens nas “estórias” dos cantadores de feira. Veja-
se, verbi gratia, Jorge Amado, em Mar Morto, e Adonias Filho, em Corpo Vivo. Na poesia, basta-nos citar o
pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Pois bem, Jurema Penna, transpondo “pregões” baianos (quem não se lembra da “laranja do Cabula, uma
verde outra madura”? de um passado não tão remoto?), usos e costumes tão de nossa tradicional Bahia (a folha de
pitangueira), sabe, com maestria, entrosá-los à arte nordestina e fundi-los, todos, na grande arte dramática, com o
toque de magia e mística que dá o “encantamento” de sua peça. Clima de sincretismo baiano. Clima de Natal. De
Natal do povo. De Natal não aburguesado. De Natal do Cristo, que é o Senhor do Bonfim da Bahia.
Há mister assinalar-se a habilidade técnica que a peça impõe. Ao todo são 27 personagens que são vividos,
apenas, por 9 atores, cada ator vivendo três papéis: um na feira, outro como boneco do Vitalino e o terceiro como
figura do presépio. Para a “transformação” dos personagens em bonecos, evidentemente que o instrumento é o
“canto” do Cantador Mané, dar-lhes-á vida o “toque dos sinos”, chamada para a “Missa do Galo”. Não há negar-
se o alto valor de tais instrumentos para criar o clima mágico. Canto de vozes humanas e canto de músicas dos
sinos. Lidando com o mais espiritual dos instrumentos — a Palavra — Jurema Penna transporta-nos a “sentir”,
vivendo-a, a Encarnação do Verbo, embalando-nos a alma com o canto popular, expressão da alma de nossa gente,
e toque dos sinos que faz reaviver em nós a criança que todos temos.
Se não há inovação na arte cênica (se assim pensam os críticos que precisam encontrar na arte universal
um “respaldo” para os pobres artistas caboclos), não se lhe pode negar, a Jurema Penna, o grande mérito da
criatividade. Não lhe conheço outra peça. Afirmo porém, com a experiência de velho professor, estamos diante de
uma grande autora. Parabéns à Prefeitura Municipal pelo trabalho consciente de revelar ao cenário nacional,
autores e artistas novos do porte de uma Jurema Penna.
E a você Jurema, a quem me acostumei a aplaudir em nossos palcos, os votos de perseverança no trabalho,
que sei árduo, de criar e criar para o teatro, o que vale dizer, criar para o povo. Bebendo nas fontes populares,
vivendo a filosofia de seu tempo, você, Jurema, está construindo para o futuro. Não se esqueça que os aplausos de
hoje, como os de ontem, representam ônus para o amanhã, que, tenho certeza, será Radiante.

José Maria da Costa Vargens


220

[Dedicatória]

Auto de Natal
Para todas as pessoas que são crianças ainda

Para Zeu, da Tia Ju


221

[Créditos da Publicação]

Prefeitura da Cidade do Salvador

Fernando Wilson Araújo Magalhães


Prefeito

Secretaria Municipal de Educação e Cultura Maria Stela Santos Pita Leite – Secretária

Departamento de Assuntos Culturais Maria Rosita Salgado Góes – Diretora

Divisão de Cultura e Arte Maria Laís Salgado Góes – Diretora


222

[Descrição do cenário]

CENÁRIO

Não há, obrigatoriamente, um cenário. Deve ser criado um ambiente de pequena feira de camelôs em véspera de
Natal. O espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço cênico (rua, praça, adro ou interior de igreja, palco,
etc.), trazendo seus apetrechos, suas mercadorias, cantando os seus pregões. Marcar entre as mercadorias muita
folha de pitanga, capins pintados, ventoinhas, flores de Tia Cota, algodão doce, brinquedos.
223

[Lista de personagens]

PERSONAGENS

São ao todo 27 personagens, que devem ser feitos por 9 atores com a seguinte distribuição:

1– Vendedor na feira Seu José


O boneco Cirurgião
No presépio São José

2– Vendedor de pirulito Gaspar


O boneco O Padre
No presépio Rei Gaspar

3– Vendedora de pitanga D. Maria


O boneco Retirante grávida
No presépio A Virgem Maria

4– Vendedor de flores Quico


O boneco O operado do cirurgião
No presépio o Rei Melquior

5– Vendedor de amendoim Zazinho


(que traz algodão doce)
O boneco Retirante com galo às costas
No presépio O Rei Baltazar

6– Vendedor de laranja David


O boneco Boi de Bumba
No presépio O boi

7– Vendedora de rendas do Ceará Judite


O boneco Retirante que puxa um burrinho
No presépio Pastora

8– Vendedor de capins pintados Samuca


O boneco Burrinho que Judite leva
No presépio O burro

9– Cantador da feira Mané


O boneco O cangaceiro
No presépio O pastor
224

[f.1]
(O primeiro a chegar é “Seu José” que inicia a armação de sua barraca, onde vende os seus bonecos “vindos
diretamente de São Paulo”. Armada a barraca, ouve-se o pregão de Gaspar, vendendo pirulitos.)

GASPAR – (Off) Olha o pirulito.


enrolado no papel
enfiado no palito
mamãe eu choro
papai eu grito
me dá um tostão
pra comprar pirulito. (O pregão se aproxima até Gaspar entrar em cena) Oi, seu José. Tudo bem?

SEU JOSÉ – Vivendo. Que negócio é esse de tostão, menino? Isso é do tempo que se amarrava cachorro com
linguiça. Muda essa cantiga.

GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, que minha avó ensinou a ela.

SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó pra cá, muita coisa mudou. Muita coisa aconteceu nesse mundão de meu
Deus. Só o que o dinheiro mudou de nome... vou te contar! Olhe, meu bisavô foi do tempo da pataca. Depois teve
o real. Mais de um real se dizia réis. Quando ele queria dizer que uma coisa não valia nada ele falava assim: “Não
vale nem dez réis de mel coado”. Duzentos réis era dinheiro... Teve cruzado. Teve “conto de réis”. Um conto de
réis era dinheiro pra tapá casa. Agora, tem cruzeiro.

MARIA – (Vendedora de pitanga que entrou no meio da conversa) É isso mesmo, seu Zé, dinheiro muda de
nome, mas de dono... não muda nunca.

GASPAR – Como é que eu canto então?

SEU JOSÉ – Quanto custa um pirulito?

GASPAR – Um cruzeiro.

SEU JOSÉ – Então, temos de mudar o folclore.

MARIA – (Gozadora) Muda, Seu José. Não somos nós que fazemos esse tal de folclore? Eu vi na televisão o
homem dizendo que quem faz esse folclore é a gente. O povo.

GASPAR – Mas eu só quero saber como é que eu canto?

SEU JOSÉ – Então canta assim: (Cantam os dois)


Olha o pirulito
enrolado no papel
enfiado no palito
mamãe eu choro
papai eu grito
me dá um cruzeiro
pra comprar pirulito.

MARIA – (Que já arrumou as folhas de pitanga) Compra pitanga, freguesinha. Pitanga pro presépio do Menino
Jesus. Cheiro gostoso de fruta gostosa. Quem vai querer?

QUICO – (Que entrou com flores de Tia Cota durante o pregão de Maria) Oi, gente! Ô dona Maria, porque é
que se enfeita a casa no Natal com folha de pitanga?

MARIA – Sei lá. Quem sabe? Deve ser bom. Pitanga é folha santa.

QUICO – Bom pra quê?

GASPAR – Ora, Quico. Bom é bom. Não tem porque nem pra quê? E depois é tão cheirosa.
225

QUICO – Flores! Flores! Flores de Tia Cota. Compra as flores, freguesa! Enfeite a sua casa pra o Menino Jesus!
Flores! Flores de Tia Cota! As maiores rosas do mundo! Olha os Girassóis!

ZAZINHO – (Off. Aproximando-se aos poucos) Torrá! Torrá! Torrá di cuber, Torrá...

MARIA – Esse Zazinho merca engraçado. Ninguém entende o que ele diz.

QUICO – Ô xente, dona Maria! Os meninos todos entendem. Todo menino sabe que ele está vendendo amendoim.

MARIA– Amendoim?
[f.2]

QUICO – Sim senhora. (Bem explicativo) Torrado e coberto.

MARIA – Eu hein!? Menino tem cada uma!!

ZAZINHO – (Entrando) Du...in...Torrá! Torrá! Torra di cuber, torrá. (Ninguém entende nada, pois o que
Zazinho traz é algodão doce)

SEU JOSÉ – Baltazar, qual é a sua? Vem vendendo algodão doce e merca amendoim torrado e coberto?

MARIA – Deve ser o costume, não é, Zazinho?

ZAZINHO – Que nada, D. Maria, é sabedoria mesmo. Eu merco amendoim, já tenho minha freguesia certa, não
é? Aí os meninos vêm pra comprar os amendoins. Não tem. Como eles gostam de mim, compram o que eu
vender.

GASPAR – E por que tu mudou de mercadoria hoje?

ZAZINHO – Mudá, não mudei não. É por que hoje tem muito menino na rua. Muito antes de chegar aqui, já
tinha vendido os amendoins todos. Aí o homem do algodão doce me pediu pra vender pra ele. É bonito, não é?
Parece árvore de cartão de Natal que a gente vê nas lojas. Toda branca. Toda feita de nuvem.

SEU JOSÉ – Aquilo não é nuvem, menino. Aquilo é neve.

ZAZINHO – Pra mim é nuvem, que os anjos trouxeram pra terra pra ficar tudo macio pra ele nascer. (Ouve-se o
pregão de David)

DAVID – (Quase em cena) Olha a laranja do cabula


uma verde outra madura
quem não pode não engula.
Olha a laranja
Lanja, lima, e limão...
Tan... gerina!!...

JUDITE – (Vem quase ao mesmo tempo que David. Enquanto ele merca ela arruma seu tabuleiro, com fazendas,
rendas, colchas de retalho, roupas prontas etc e merca) Beleza. Beleza do Ceará - Tudo feito à mão. Riqueza,
freguesa. Baratinho. Não paga o luxo da casa. Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques. Não tem
problema. Olha a toalha de mesa pra sua ceia do Natal. Quem vai querer?

SAMUCA – (Chegando enquanto ela merca, quase escondido atrás dos seus capins pintados em várias cores,
dourados e prateados. Vem com grande alegria e algazarra) Cheguei. Cheguei eu, minha gente. Olha os capins
pra cama do Menino nascer. Capim colorido. Capim a cores!!! Dourado e prateado. Capim de ouro e prata. Compra
branca, compra preta, compra mulata. Olha o capim.

SEU JOSÉ – Bonecas! Bonecas e brinquedos! Diretamente das fábricas de São Paulo pras crianças da Bahia. 3
por 20. É barato, freguesa. É barato. O patrão ficou maluco, mandou vender sem lucro. É presente. Presente de
Natal. É pra acabar. É aqui mesmo. Dê alegria ao seu filho na noite de Natal. A sua boneca merece uma boneca.
Vamos, minha gente. É aqui mesmo.
226

(Cresce a animação. Os pregões agora se misturam. Entra o cantador com o seu violão, uma vara de ventoinhas
e seu tamborete. É recebido com grande alegria. Arruma o seu lugar. As ventoinhas devem funcionar como uma
árvore à sombra da qual ele se senta.)

MANÉ – (Deve dar a impressão que está sempre sobrecarregado de bagagens e de um homem que viaja muito.
Afina seu violão e começa a sua cantiga).
Presta ‘tenção minha gente
gente boa da Bahia
que vou contar uma estória
nesta minha poesia
pode parecer mentira
pra quem não acredita
em mistérios e em magia.
Tudo isso aconteceu

[f.3]
é melhor não duvidar
sou cantador respeitado
aqui e em todo lugar
não sou homem de vaidade
sou cantador de verdade
é melhor acreditar

Pois nada é impossível


aos olhos do bom Deus
que aqui nesta terra
tem olhos iguais aos Seus
são os olhos das crianças
cheios de amor e bonança
feitos à imagem de Deus.

Foi em Caruarú-Pernambuco
onde viveu Vitalino
um mestre que cresceu
sem deixar de ser menino
fazendo brinquedos de barro
de gente ou d'encantado
era esse o seu destino

Com magia nos dedos


e sopro de Deus nas mãos
seus bonecos são retratos
do povo do meu sertão
desde a família retirante
corajosa e andante
até doutor cirurgião.

Fez boi malhado, onça pintada


retirante pela estrada
burro d'água, montador,
cangaceiro, Padre Ciçro
roceiro, retratista
estudante e dentista
pastores e cantador.

Aconteceu – há muito tempo –


numa noite de Natal
que os bonecos de barro
– eu nunca vi nada igual –
227

quando a noite se encheu


do alegre som do sino
foi verdade – aconteceu
com os bonecos de Vitalino.

(À medida que o cantador vai citando os atores vão tomando formas estáticas, isto é, assumindo os bonecos. Assim
ficam inclusive o cantador depois de assumir o cangaceiro durante o toque dos sinos, da primeira chamada para
a Missa do Galo. Depois deste toque eles vão se animando aos poucos. Essa mutação deve ter uma atmosfera de
magia. Mesmo depois de “animados” deverão sempre conservar alguma coisa de bonecos como os mamulengos).

QUICO – Saí dessa, saí, meu povo


como é bom, como é gostoso
poder correr de novo.
[f.4]

JUDITE – Tu ainda não saiu


da tua casca de ovo
e já todo vaidoso
todo convencido.
Boneco mais enxirido
do que esse eu nunca vi
e onde é que tu pensa
tu tá pensando que vai?

GASPAR – Já quer correr por aí


esquece que é de barro
que quebra logo que cai.

BALTAZAR – Se tu for, eu te agarro


me grudo do teu lado
saio desembestado
pr’essa terra conhecer

SAMUCA – Vai procurar que fazer


deixa de maluqueira
deixa de falar besteira
se acomode por aqui
e nem pensar em sair (Pra Maria que ainda está boneco)
A senhora, peço licença
dê a sua opinião
diga logo o que pensa.

DAVID – Tu não tá vendo, ô cabra


qu’ela ainda não pode falar
mulher de barriga é assim
é tudo mais devagar.

SAMUCA – Eu não tinha reparado


que ela não tinha mudado.
Mas, voltando às vacas frias
volto por essas vias
volto pois a repetir
daqui, ninguém vai sair.

QUICO – Eu só queria era ver


essa terra eu conhecer
fico triste e cansado
todo tempo parado
228

BALTAZAR – levado de feira em feira


engolindo só poeira
e depois vai prum salão
e vira decoração
Ser por todos elogiado

QUICO – sacudido, espanado


olhado e reolhado
virado e revirado
sem dó, nem compaixão.

JUDITE – Vocês, por favor, se aquétem


parem de reclamar
somos bonecos famosos
ninguém pode se queixar.

SEU JOSÉ – Falou, e falou bonito


e por isso eu até grito
com orgulho e vaidade
agradecendo a Deus
a Sua grande bondade
e graça que Ele nos deu
em permitir, em deixar
que pelo menos uma noite
a gente se transformar.

[f.5]
JUDITE – Nos dá fala, movimento
pra tudo sair a contento
pra Deus Menino louvar.

GASPAR – Eu também tô de acordo


falo, brigo e até mordo
com quem quiser discordar.

MARIA – (Transformando-se)
Ai, meu Deus, que cansaço
tão sozinha, o que é que faço?
em pé, já não me aguento.

SAMUCA – (Apanhando o tamborete onde estava o cantador)


Tome, dona, tome assento
pode se descansar

JUDITE – E vá ficando tranquila


Sozinha você não está.

QUICO – Saber das horas eu queria.

BALTAZAR – Pra conhecer a Bahia?


Se tu for, eu também vou.

JOSÉ – Apois tratem de tirar


o cavalinho da chuva
que liberdade eu não dou
a boneco renitente
teimoso, metido a gente.
Daqui não sai ninguém
e tem mais outro porém:
a gente tem de armar
229

o presépio pra louvar


Jesus – o Deus Menino
promessa que fez a Deus
aquele que nos criou
o bom mestre Vitalino.

JUDITE – (Gozadora, pra José)


Olha só pra seu doutor
veja só, quem diria?
versejando poesia
vai virar cantador?

JOSÉ – Juro, até que queria


mudar de profissão.
Mas, artista é tudo pobre
e rico é cirurgião
vou os meus versos fazendo
arremedando cantador
Mas, aqui prá nós, sá dona
sem deixar de ser doutor
verso cá, verso ali
sem largar o bisturi.

JUDITE – Mas é melhor se preparando


que a hora está chegando.

MARIA – Eu vou logo dizendo


depressa esclarecendo
seja em prosa ou poesia
que sou eu quem vai fazer
o papel de Maria

JUDITE – Era só o que faltava


mulher, deixa de intriga
Porque eu nunca vi
Nossa Senhora de barriga!

QUICO – E agora eu me pergunto


Não entendo do assunto

[f.6]
quero pois esclarecer:
Se Nossa Senhora era mãe
Por que ela não pode fazer?

DAVID – Pois eu acho diferente


eu acho que a gente...

SAMUCA – Você não acha nada


deixa esta boca fechada!

GASPAR – Se todo mundo acha


por que ele não pode achar?

QUICO – Se acha, ou não acha, não sei


mas que tá procurando, tá.

JOSÉ – Querem me explicar por favor


o que eu estou escutando
o que será que vocês,
230

tão agora procurando?

GASPAR – Balela, besteira, intriga

JOSÉ – tão procurando briga.


Fica quetos, não apronta
Vão brigar em noite santa?

MARIA – Ô gente, briga não


nem discute, por favor
Vamos, tá quase na hora
D'eu fazer Nossa Senhora.

JUDITE – Quer me dizer, por favor


quem essa história contou
quem essa notícia lhe deu?
Nossa Senhora, faço eu.

MARIA – E a você, quem lhe disse


tal besteira, tal tolice

JUDITE – Eu estou dizendo, que mais quer?


é o bastante, não é?
(Para Judite)

JOSÉ – Pois se tu fizer Maria


arranje outro José.

SAMUCA – Ora por isso não seja


não se faça uma peleja
se você disiste, não quer
eu faço o São José!

DAVID – Ai que coisa engraçada,


Tá virando palhaçada.
Olha eu te dou um murro
Tu só serve pra burro.

SAMUCA – O que foi que eu ouvi?


alguém mugiu por aqui?
O que é? O que foi?
Ora... foi meu amigo boi.
E fique sabendo o senhor
que sou burro de presépio
com muita honra e amor.

DAVID – Isso eu sei e não duvido


e com muita vaidade até
mas se tu pudesse – era seu sonho
dava uma de São José.

SAMUCA – Sai de minha frente


que meu sangue já tá quente
seu amarelo empapuçado
“cara de papa pirão
tome vergonha na cara
largue meu nome no chão”.
231

[f.7]
DAVID – Não tenho medo de cobra
bicho sem serventia
quanto mais de boneco
que arrota valentia
amarelo, empapuçado
cara de papa farinha
tome vergonha na cara
e cai logo na rinha.

BALTAZAR – Isso tem jeito? Isso tem nome?


Acaba logo essa briga besta
Essa briga mais sem homem.
(David e Samuca se unem diante da ofensa comum e partem os dois para uma briga cada vez mais
engraçada com Baltazar).

QUICO – Dois contra um, não concordo


nessas horas eu discordo
o meu barro se esquenta
parece – sair fogo das ventas

GASPAR – Isso é malfeitoria


isso é grande covardia.

(Parte em defesa de Baltazar. José e Gaspar tentam em vão separar a briga e vão levando a pior. Judite e Maria
gritam. Uma grande confusão se estabelece. Ninguém mais se entende. Aos poucos o boneco cangaceiro que até
agora estava imobilizado, se anima e ao ver a confusão pega a sua garrucha e dá uns tiros para o alto. Susto
geral. Maria cai desmaiada)

MANÉ – Cheguei, e tô chegado


Pé-de-Vento respeitado
cangaceiro de valor
não tenho medo de gente
de cabra metido a valente
que grita sem sentir dor.
E vamos deixar de mais mais
e vamos deixar de choro
quero todo mundo xaxando
dançando, cantando em coro
dança côco, corta-jaca
xaxado, esquenta-mulher
quero ver todo mundo
levantando a poeira com o pé.
Passa para cá bem ligeiro
toda jóia e dinheiro
sou homem de valentia
temido em todo sertão
por soldado e capitão
do Ceará à Bahia.

JOSÉ – Seu Pé-de-Vento, é um prazer


conhecer vossa mercê
mas por favor, me perdoe
não quero falar por mal

MANÉ – Cabra, não fale, não entoe


tu já viu o meu punhal?

JOSÉ – Tem certas coisas no mundo


que nem precisa se ver
232

sou obrigado a saber


que é de muito bom aço
como também o balaço
da sua garrucha certeira

JUDITE – Escute aqui, Seu “Cangaço”


me escute por favor

[f. 8]
que hoje, esta noite santa
é noite de paz e amor

MANÉ – Tu fica queta mulher


Não me venha com dibique
esse tal de paz e amor
isso é papo de hippie?
E quem é essa que está deitada?
Tu fica calada mulher (Para Judite que vai falar)
quero todo mundo de pé.

JOSÉ – Me desculpe, seu Pé-de-Vento,


Perdoe nosso lamento

MANÉ – É coisa que eu não gosto


é coisa que eu não aguento
é ver homem lamentoso
tremendo, lacrimoroso (Judite vai falar)
E cala boca mulher.

JUDITE – Pois agora eu vou falar


tu queira ou não escutar
sempre fui e sempre vi
a mulher ser respeitada
e da sua grossura
não tô entendendo nada.
Pode levar meu dinheiro
que faço pouca questão
mas não tô aqui pra ouvir
desaforo de um cidadão
que vive correndo da justa
por todo esse sertão

SAMUCA – Cala a boca, criatura


que este capeta é malvado.

JUDITE – Malvado? mas vive correndo


dos tenente e dos soldado.

MANÉ – se tem coisa que não gosto


me deixa louco da vida
é topar na minha frente
com uma dona atrevida.

QUICO – Por favor, cavalheiro


tome logo o meu dinheiro
nesta bendita hora
tome tudo o que é meu
mas por favor, vá-se embora.

BALTAZAR – Não tenho nada pra dar


233

pois sou um pobre de Cristo


vá-se embora por favor,
acabe logo com isto.

MANÉ – Não vou-me embora daqui


Não vou-m’embora por nada
levanta, logo depressa
essa aí que tá deitada.

JUDITE – Ela não vai levantar


seu bandido malvado
onde já se viu maltratar?
uma mulher neste estado?

MANÉ – (Reparando Maria) Eu não tinha reparado


Sem chegar perto não via.
livrai-me desse pecado
Deus do Céu, Virgem Maria
Valei-me Padim Padre Ciçro
eu não tinha visto isso
[f.9]

não sou almadiçoado.


Já vou guardar meu punhal.

MARIA – (Saindo do desmaio) Virgem Mãe, Nossa Senhora


Me valei-me nessa hora
livrai-me de todo mal.

GASPAR – licença lhe peço pois


o resto acerta depois
agora vamos cuidar
de botar ela em bom lugar.
vão por aí ajeitando
enquanto eu vou arrumando
um lugar d’ela ficar.

DAVID – (Para Samuca) Vem você, vem comigo


uma coisa eu te digo
digo que nunca vi
nada igual por aqui.

JUDITE – (Com Maria já na barraca de seu José)


Menino, por favor, me traz cá
esse taboleiro de rendas
com todas essas prendas
lá do meu Ceará
traz as folhas de pitanga
capins dourados, os de cores
traz também todas as flores
que quero tudo enfeitar
me traz também esse algodão
que macio e doce colchão
eu já quero já fazer
pra hora que ele nascer.

MANÉ – (Para José) Seu moço me explique


me explique sem dibique:
porque os sinos tão tocando
por que a noite tá se enfeitando?
234

que estrela no céu é aquela


que brilha tanto e tão bela?
por que esse perfume no ar?
esse silêncio de esperar?
parece tá tudo parado.
Nunca vi noite mais linda
tem música, perfume e ainda
meu coração tá apertado
tô sentindo uma bondade
parecendo uma saudade
dos meus tempos de criança
quando tudo era festança
só brinquedo e alegria
pela caatinga corria
puro, inocente, pulando
a vida era doce vinho
um cantar de passarinho.
me digam, o que é que aconteceu.
(Choro de criança)

TODOS – Nasceu! Nasceu! Nasceu!

SEU JOSÉ – Que meu padim Padre Ciçro


Lhe dê uma boa sina.

OS OUTROS – É menino, ou menina?

JUDITE – Menino. Menino homem.

MARIA – Emanuel, será seu nome.

SEU JOSÉ – Escute aqui, Pé-de-Vento


[f.10]
preste bem atenção
pois eu tô lhe falando
de todo meu coração
não tô dizendo besteira:
me entregue esta peixeira (Ele obedece como autômato)
a garrucha e o punhal
e se tem bala no bornal
vá me dando e a cartucheira.
Teu coração foi tocado
pra te livrar do mal
no nascer desse menino
que trouxe bonito destino
vir em noite de Natal.

GASPAR – Tocou teu coração, mal nasceu


que bonito destino o seu.

QUICO – Tu de vida vai mudar


tu agora vai jurar.

DAVID – Te afastar da maldade


e correr da ruindade.

SAMUCA – tocou teu coração, Pé-de-Vento


tem de fazer juramento

BALTAZAR – Vamos depressa, não demora


235

que já tá chegando a hora.

MANÉ – Eu juro por Deus, eu juro


por meu Padim Padre Ciçro
que nunca mais toco nisso (Apontando as armas)
que minhas mãos fiquem duras
se eu quebrar essas juras
que meu olho fique cego
prometo, juro não pego
juro, nunca mais faço o mal
por essa noite santa de Natal.

BALTAZAR – (Cortando a emoção) Por Deus, Nossa Senhora


Já tá chegando a hora
da nossa Lapinha arrumar
Vamos, pois, nos apressar.

JUDITE – (Para Baltazar, Quico e Gaspar)


E que é que vocês tão fazendo
Feito uns postes parados
vão logo tomar o lugar
dos majestosos – Reis Magos.

GASPAR – Vamos depressa colegas


ora pois, como direis?
arrumar as nossas roupas
pra louvar o Rei dos Reis.

BALTAZAR – Mas antes é preciso


com amor e com carinho
armar a grande estrela
que guiou nosso caminho.

MELQUIOR – Toma aqui a estrela


e esses capins prateados

GASPAR – mistura também um pouco


com esses capins dourados.

SAMUCA – E por que essa estrela daí?


isso é estrela do mar
achada na areia da praia
por que aí vai ficar?

GASPAR – É verdade. Foi encontrada


na areia da praia ao léu
[f.11]
se tu não tá satisfeito
vai buscar uma no céu.

SAMUCA – Que gente mais esquentada


não se pode dizer nada
que já vai virando briga

DAVID – Vem pra cá, não liga.

SAMUCA – Fica tudo convencido


metido a gato mestre
mas quando chega a hora “H”
não fazem nada que preste.
236

BALTAZAR – Tu fica queto menino


não bole com quem tá calado

GASPAR – Liga não companheiro


qu’ele tá é despeitado
e se a gente for ligar
vai terminar em barulho
pois na boca do “estomo”
já tou sentido um embrulho.

MANÉ – Deixa eu procurar meu canto


que isso é briga de branco

GASPAR – Já tava esquecendo os presentes


A mirra, o incenso o ouro

BALTAZAR – Mas eu não estou encontrando

JUDITE – Tá no matulão de couro (Gaspar vai ao matulão, antes se depara com o galo)

GASPAR – É por isso que eu digo


é por isso que eu falo
é tanto disse me disse
que ninguém se lembrou do galo.

BALTAZAR – Prepara ele depressa


e bota logo no lugar

DAVID – Pode deixar comigo


Eu sei onde colocar.

MELQUIOR – Tô danado de bonito

GASPAR – É melhor não se gabar


que também estou bacana (Samuca o arremeda)
menino tu te aquéta
não me venha com chicana.

DAVID – Tu também tá demais


dando de pirracento
pirraça se tem coragem
o “bom moço” Pé-de-Vento.

SAMUCA – Não faz isso comigo


deixa de dizer besteira
tu é meu amigo?
ou quer ver minha caveira?

BALTAZAR – Minha roupa é de abafar


que lindeza de coroa.

JOSÉ – Deixa de falar atoa


Deixa de tanta vaidade.

MARIA – Que lindeza é meu filho


Santa Mãe da Piedade.

DAVID – Eu gosto de ser o boi, boi de bumba


Boi de terno, de presépio e de lapinha
237

E quem já viu, quem foi?


Um presépio sem um boi?
O boi que esquentou
com seu bafo, quente, bovino
o nosso Jesus Menino?
[f.12]

SAMUCA – E eu o burro de presépio


eu o burro de lapinha
e agora me responda
me responda logo agora
meu senhor, minha senhora,
esta minha perguntinha
quem foi? quem foi que já viu
sem um burro uma lapinha?
o burro calado correto,
que depois pelo deserto
guiado por São José
carregou a Mãe Maria
e Jesus de Nazaré.

JUDITE – Pastora feliz serei


nesta Lapinha encantada
com minha saia florida
e minha blusa encarnada
representando os humildes
que vivem em adoração
pedindo ao Deus Menino
Sua santa proteção.

MANÉ – Vou bater em retirada


vou pegar a estrada
um homem com meu passado
aqui não tem pousada
É melhor que fora me ponha
antes de passar vergonha
de me mandarem embora
é melhor eu ir agora.

JOSÉ – Pé-de-Vento, venha cá


Fique aqui, faça o favor
‘tamos precisando de alguém
para fazer o pastor.

MANÉ – Mas, logo eu, seu moço? Não posso


eu sou grande pecador.

MARIA – Pois agora vou lhe dizer


que é grande alegria
do Pai, do Menino e Maria
quando a ovelha perdida
volta ao rebanho, arrependida.
Por Jesus, Nossa Senhora
Passa ser a mais querida. (Ele se convence e vai assumir o pastor)

JOSÉ – Agora vou me cuidar


que já tô me atrasando
vou procurar meu lugar
que a hora está chegando
de ao lado de Maria
238

ficar recolhido e de pé
tenho a honra de fazer
o papel de São José.
Vamos todos, minha gente
que a hora tá pra vir
do nosso pai Vitalino
a santa promessa cumprir

SAMUCA – Pois tão atarefado vivia


pra poder sobreviver.
que o presépio que sonhava.
não conseguiu fazer
[f.13]

GASPAR – Foi segredo que guardou


dentro do seu coração
e que só nós sabemos
nos disse com suas mãos

DAVID – Suas mãos que nos criou


retratos do seu sertão.

JUDITE – (Cobrindo a cabeça de Maria com uma toalha de renda)


Toma, amiga, toma este véu
Pela estrela do céu
te digo com toda alegria
és uma linda Mãe Maria
nesta noite de Natal
bonita, sem ter rival.

MARIA – E Emanuel - meu menino


fará o papel mais lindo
nasceu nesta noite de luz
fará o MENINO JESUS.

(O presépio está armado. Aos poucos vão se imobilizando. Voltam a ser bonecos de Vitalino. Tocam os sinos de
natal. Marcar o fim da peça com um cântico natalino, ou com um baile pastoril ou terno de reis).

FIM
Jurema Penna
Salvador,- 12.10.77

[f.14]

Esta peça foi lançada no “Ciclo de Natal-1977” promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da
Secretaria Municipal de Educação e Cultura da Prefeitura da Cidade do Salvador, tendo se apresentado nos
seguintes locais: Igreja do Rio Vermelho, Igreja de São Caetano, Solar do Unhão, Largo da Lapinha, Parque da
Cidade e Largo do Pau da Lima.

FICHA TÉCNICA

Música
Improviso, de Mestre Vitalino
Zabumba, de Mestre Vicente

Cenário e Figurino
Leonel Amorim

Movimentos e Expressão
Guido Lima
239

Assistente de Produção
Meire Lucia

Assistente de Direção
Lina Lemos

Produção
Companhia Baiana de Comédias

Elenco
Eduardo Logulo
Marcio Meireles
Frieda Gutman
Daniel Robson
Paulo de Lacio
Marcus Antonio
Jandira de Jesus
Jorge Santori
Waldemar Nobre

Direção
Jurema Penna

Prêmios Recebidos:
Troféu Martim Gonçalves – Conferido pela TV Aratu: Melhor Figurino
Troféu Martim Gonçalves – Prêmio Especial do Juri pelo trabalho de pesquisa
Serviço Nacional de Teatro – Melhor Espetáculo Infantil
Participação no IV Festival de Penedo – Alagoas

Esta edição teve o seu lançamento realizado no dia 29 de março de 1978 durante a 1ª Semana da Cidade do
Salvador, quando se comemorou os 429 anos da fundação da Cidade.
240

5 LEITURAS DA DRAMATURGIA DE JUREMA PENNA: EXERCÍCIO DE CRÍTICA


FILOLÓGICA

A elaboração de edições para o corpus selecionado teve como consequência o contato


com diversas marcas textuais, diretamente relacionadas às questões socioculturais presentes no
cotidiano baiano, nos anos de chumbo. Fez-se, então, necessário empreender uma leitura das
representações da Bahia, na década de 1970, analisando as modificações realizadas nas
diferentes versões das peças em estudo.
Propomos, aqui, o exercício da crítica filológica, a fim de colocar em evidência os
diversos sentidos evocados nos textos, cruzando as suas diferentes versões, além de dados
contextuais. Para realizar esta leitura, consideraremos o corpus disposto no arquivo
hipertextual, como peças de um mosaico da diversidade cultural baiana. Para tanto, tomamos
duas linhas de força que atravessam a dramaturgia de Jurema Penna, a saber: as representações
do negro e as confluências entre o sertão e o litoral. Embora outras questões tenham sido
tratadas, fizemos a delimitação dos temas a serem estudados a fim de refletir acerca das
referências culturais de que Jurema Penna se apropria na proposta de sua obra.

5.1 O NEGRO NA BAHIA

As diferentes matrizes da cultura africana que foram trazidas às terras brasileiras


exerceram uma influência basilar na constituição do repertório cultural baiano, amalgamando-
se em diversos elementos da sociedade, incluindo-se as práticas sociais. Como sujeito sensível
às questões do povo negro, Jurema Penna encena essa diversidade cultural em seus espetáculos,
apresentando-a como elemento fundamental para se pensar a Bahia. Nos textos selecionados,
identificamos três temáticas que trazem essas representações: o povo negro na história da Bahia;
o cotidiano do povo de santo na cidade de Salvador; e, por fim, o preconceito racial sofrido
pelos negros que galgam posições sociais de prestígio. Para tanto, analisaremos as escolhas
feitas pela dramaturga para tratar da temática, seu posicionamento ideológico, bem como os
recursos cênicos de que se apropria para desenvolvê-los.
241

5.1.1 Bahia livre exportação e as representações da cultura negra

A importância do elemento africano na cultura da Bahia é tema bastante explorado pela


Antropologia desde o início do século XX, bem como por cientistas de outras áreas, com
destaque para os escritos de Nina Rodrigues. Está também presente em obras de diversos
gêneros literários, dentre as quais os romances de Jorge Amado aparecem como expoente. A
produção dramatúrgica de Jurema Penna também se apropria dessa temática em Bahia livre
exportação (BLE). A peça é construída a partir de fragmentos de obras da literatura baiana e
brasileira, além de músicas, imagens e chistes relativos ao cotidiano baiano. Nessa
multiplicidade de referências entrecruzadas, Jurema Penna apresenta a sua narrativa para a
história e a cultura afrodescendente na Bahia.
Bahia livre exportação (BLE) (PENNA, 1975; 1976) recebeu como subtítulo, na versão
de 1976, Cultura livre exportação. A associação entre os dois termos dá a entender uma visão
da cultura baiana como produto destinado à comercialização e, logo, à livre exportação, bem
como a identificação da cultura popular como folclore. O interesse da dramaturga por essa
temática se manifesta inclusive na diversidade de grafias para a palavra “folclore”, a saber:
• Folcklore, com 13 ocorrências em BLE T75a; 2 ocorrências em BNV, T77; 2
ocorrências em BNV, Tsd;
• Folck-lore, com 1 ocorrência em NARB T71;
• Folklore, com 1 ocorrência em BNV Tsd;
• Folclore, com 7 ocorrências em BLE T76; 2 ocorrências em BLE T91; 3
ocorrências em BNV T78; 2 ocorrências em BV T91.
Observamos uma predominância da forma inglesa, ou sua correspondente mais
próxima, nas primeiras versões da peça, ao passo que os testemunhos mais recentes trazem a
forma “folclore”, conforme a grafia da língua portuguesa. Notamos que a retomada do texto
por Jurema Penna tende a apagar esta marca gráfica. Os usos de “folcklore”, “folck-lore” ou
“folklore”, podem ser atribuídos a uma tentativa de demonstração de erudição, confirmada com
o conhecimento da origem dos estudos folcloristas, vinculados à tradição inglesa. Além disso,
diversas obras sobre o tema circulam na segunda metade do século XX, portando ainda uma
grafia estrangeirizada.
Na transcrição do trecho de O bonequeiro Vitalino, são perceptíveis os ecos do sentido
do folclore defendido por Jurema Penna.

SEU JOSÉ – Então, temos de mudar o folclore.


242

MARIA – (Gozadora) Muda, Seu José. Não somos nós que fazemos esse tal de
folclore? Eu vi na televisão o homem dizendo que quem faz esse folclore é a gente. O
povo (PENNA, 1978, p.[3]).

No excerto acima, Seu José se refere à necessidade de atualizar o pregão cantado por
Quico em que se enuncia: “pai me dá um tostão/ pra comprar pirulito”, demandando uma ação
fundamental por parte desses sujeitos, qual seja, “mudar o folclore”. A noção de folclore
apresentada distancia-se de uma definição estanque ou tradicional, em que as manifestações
populares devem ser preservadas. Assumindo o protagonismo desse processo, a personagem
Maria exorta o personagem Seu José a mudar o folclore, justificando essa ação pelo discurso
do “homem da televisão”.
As formulações teóricas acerca do folclore estavam em pleno vapor a partir da década
de 1950, com a criação do Conselho Nacional do Folclore, no intuito de preservar as tais
manifestações dos efeitos do tempo (SOARES, 2010). Neste período, também, instituem-se as
cátedras universitárias de estudos folclóricos, vinculadas tanto à sua manifestação literária,
quanto antropológica. No referido contexto acadêmico, a noção de preservação estava
profundamente ligada a uma interdição da mudança da cultura, fazendo-se preciso resguardar
o folclore brasileiro do próprio povo, origem dessas manifestações.
Durante a década de 1970, a preservação das manifestações populares encontrava-se
bastante presente na ideologia do governo militar, que pretendia transformar o folclore em
elemento integrador nacional. O referido governo dedicou-se à criação de instituições
responsáveis por gerenciar as questões da cultura no âmbito nacional, com a lei nº. 74, de 21 de
novembro de 1966, bem como o desenvolvimento de planos nacionais de cultura. O folclore
seria capaz de integrar as três matrizes culturais formadoras do Brasil, noção sedimentada na
ideia de mestiçagem postulada por Gilberto Freyre. Essas ações têm como resultado a escolha
de certas manifestações, em detrimento de outras, homogeneizando a diversidade cultural em
função de um discurso de orgulho cívico, vinculado a um calendário de festejos. Destacamos,
como indicativo desta política, a instituição do dia do folclore, durante o governo de Castelo
Branco (SOARES, 2011).
É também no governo militar que o folclore torna-se mercadoria a ser associada à recém
constituída indústria do turismo. Tanto os folcloristas vinculados aos poderes públicos, como
os intelectuais que pensavam sobre esse tema, viraram figuras responsáveis por garantir que
tais manifestações fossem legítimas, a fim de que se constituíssem como um produto a ser
vendido pela referida indústria. Assim,
243

[e]mbora houvesse claramente a visão de defesa do folclore, pautada pela retórica a


perda que associava as noções de tradição e autenticidade como componentes
legitimadores do folclore, a Campanha posicionou-se no contexto da mercantilização
da cultura popular com menos pudores, utilizando-se, inclusive, termos como produto
e venda para referir-se às manifestações folclóricas. A autenticidade e a fidelidade que
deveriam ser preservadas nessas manifestações serviriam, no caso, para tornar o
produto folclórico mais apreciável e, portanto, lucrativo para o mercado do turismo.
(SOARES, 2011, p.16)

Santos (2005) denomina como “turismo de ‘alma negra’” a construção de uma


propaganda turística, na Bahia, fundamentada em aspectos da cultura afrodescendente. Os
poderes oficiais se apropriavam dessa matriz e utilizavam-na como forma de particularizar o
cotidiano baiano. Essa tendência estava articulada à proposta do governo militar de apoiar o
desenvolvimento cultural, por ver nele um campo estratégico para o controle social.
A cultura baiana, uma vez dotada de características excepcionais, que as diferenciava
das demais culturas brasileiras, seria por si uma atração turística:

As idéias de desenvolvimento turístico como parte da estratégia de singularizar a vida


cotidiana na Bahia podem também ser encontradas em publicações sobre o turismo
nacional e a sua distinção com o baiano. Em linhas gerais, tanto os textos oficiais
quanto aqueles que pareciam não sê-lo, como a produção de uma literatura sobre a
Bahia, reforçavam a existência de uma singularidade de “povo baiano” encontrada
pelos turistas. Termos como “contágio”, “feitiço” e “afetividade” faziam parte de um
léxico de reconhecimento e propagação a baianidade (SANTOS, 2005, p. 89)

A atenção dos poderes públicos, no âmbito de seus departamentos de cultura, voltou-se


para a construção de uma ideia de cultura baiana, marcada por traços essenciais, que dotavam
esta cultura de excentricidade e que se propagam, constituindo um sentido de verdade para esse
discurso. Nesse contexto, Bahia livre exportação foi encenado no Teatro SESC-SENAC do
Pelourinho nos anos de 1975 e 1976, e conforme registra a matéria publicada no Jornal do
Brasil, em 1976,

é com a finalidade de fazer com que o turista descubra o Pelourinho nestas férias de
julho que dois grandes espetáculos estarão em cartaz por toda a temporada próxima
do turismo em Salvador. Um deles é “BAHIA LIVRE EXPORTAÇÃO” no teatro
SENAC. […] A peça é uma revisão das origens da cultura afro-baiana – segundo o
julgamento de Jurema Penna, intérprete consagrada do teatro e do cinema brasileiros.
Do Banzo Africano ao Carnaval, as saudades da Feira de Água de Meninos e o samba
de rodas do Mercado Modelo, com o exotismo de Carmem Miranda e o mistério do
culto dos Orixás até a tradicional festa do Senhor do Bonfim. BAHIA LIVRE
EXPORTAÇÃO é um retrato da Bahia autêntica, seus costumes e sua cultura sem
sofisticação. Para tanto, para ser fiel aos princípios do espírito baiano, Jurema Penna
consultou as obras de Gregório de Matos e Jorge Amado e gente que fez o espírito do
povo da Bahia, os velhos conselheiros de esquina que não dizem por meias palavras
como foi a Bahia do passado (CENTRO, 1976, grifo nosso).
244

A peça pode, então, ser considerada um espetáculo destinado aos turistas, já que uma
das suas funções seria divulgar os novos espaços do SESC-SENAC Pelourinho. Representar a
cultura baiana no palco, em um teatro localizado no Centro Histórico de Salvador, evoca certos
sentidos especiais, pois toma, como objeto de encenação, uma cultura viva com que se esbarra
nas históricas esquinas e ladeiras. Além disso, o espetáculo propõe-se a fazer uma introdução à
história da Bahia, remetendo a um passado para contextualizar o presente, mostrando como essa
cultura baiana se dissemina e engendra na literatura, nas artes plásticas e, sobretudo, na música.
Aposta-se na representação de uma “Bahia autêntica”, de “um espírito baiano” ao qual
o espetáculo é fiel e ainda à simplicidade e espontaneidade de uma “cultura sem sofisticação”
como atrativos para movimentar a máquina turística. A análise feita do espetáculo é calcada em
impressões superficiais da cultura baiana, o que fomenta uma visão estereotipada. Trata-se de
um retorno às matrizes culturais que contribuíram para a constituição da identidade baiana.
Como mercadoria de “livre exportação”, a cultura interessa pelo exotismo de sua religiosidade,
pela alegria dos seus festejos e possuiria uma essência proveniente de seu passado histórico.
Conforme a matéria citada, “A peça é uma revisão das origens da cultura afro-baiana”.
Cumpre, desse modo, questionar que cultura baiana Jurema Penna escolhe para trazer no palco.
Tomaremos um trecho do início do espetáculo para levantar possíveis respostas:

MÚSICA ― Pastinha já foi à África


Pra mostrar a Capoeira do Brasil.
[...]
NARRADOR ― Capoeira. Uma dança? Um jogo? Uma simples brincadeira? Defesa
pessoal: É luta. É luta disfarçada em dança ou folguedo; dança-luta de vida ou de
morte do negro fugido escondendo-se na floresta do seu perseguidor, o Capitão do
Mato e seus cães de caça, fugindo em busca dos Quilombos, sonhando com Palmares
a terra livre do Rei Zambi.
(PENNA, 1976, f.2)

Para tratar do legado africano no Brasil, uma das primeiras referências feitas, a
dramaturga desconstrói o sentido de herança cultural como um todo fechado, que é transmitido
de uma geração a outra. Ao tratar da capoeira, Jurema Penna traz as figuras icônicas de Mestre
Pastinha e Mestre Bimba. A fazê-lo, põe em evidência os novos contornos dados à essa
manifestação que vem para o Brasil e aqui assume outros gestos e formas, constituindo novos
saberes que seriam impossíveis se essa arte permanecesse do outro lado do Atlântico. Nega-se,
dessa forma, a África como terra mítica, reduto de saberes reproduzidos no Brasil, ao tempo
em que se assume a dinâmica das interinfluências culturais, colocando o povo baiano não no
lugar de passivo receptor da cultura africana, mas de reconstrutor desses conhecimentos.
245

Jurema Penna então toma a vivência do negro cativo para tratar da renovação da
capoeira do Brasil, compreendendo-a como uma forma de defesa pessoal utilizada pelos
escravos na fuga pelos matagais e contra a violência do Capitão do Mato. Lopes (2004)
esclarece que a capoeira também possuía um caráter lúdico, sendo uma forma de recreação para
o negro durante o período colonial e imperial. O emprego de “dança-luta” e “luta-brinquedo”
(PENNA, 1976, f.2) dão conta de representar o caráter indefinível dessa manifestação que
assume o aspecto lúdico ou combativo, conforme o contexto. Neste trânsito, a capoeira passa
constituir parte das tradições populares baianas, em forma de folclore:

NARRADOR ― A luta-brinquedo vira folclore, escolas se formam, os seus grandes


mestres se assumem. Bimba e Pastinha. – Bença meu mestre!

(Os capoeiristas vão tomando posição – os outros se preparam para a cena dos pregões
apanhando da decoração do palco o material necessário. Enquanto esperam a sua vez
fazem a “roda da capoeira”) (PENNA, 1976, f.2)

É interessante perceber que esta arte marcial não é mostrada apenas como um elemento
cênico, pelo seu exotismo, ou pelos movimentos dos bailarinos, restringindo-se à expressão
corporal, mas é acompanhada de uma reflexão acerca da sua história e dos diálogos multilaterais
existentes entre Bahia e África. Notamos, assim, que a noção apresentada de capoeira diverge
dos conceitos que trazem o folclore como cultura inferior, que não passa pelos processos de
reinvenção e reconstrução.
Nessa tentativa de reinterpretar os sentidos dados ao “jeito baiano”, destacamos uma
das cenas de BLE, em que um turista paulista pede informações sobre um endereço. Frente à
demora de conseguir a resposta, perde a paciência, mas acaba cedendo à hospitalidade baiana e
estabelecendo uma relação de amizade. Em vez de tentar desconstruir o estereótipo do “baiano
lento” a partir da negação, Jurema Penna tentar mostrar a perspectiva deste, de maneira a
justificar suas ações. Veja-se a referida passagem.

Baianos, lentos, preguiçosos e que dizem Falam – os apressados – que somos lentos,
sempre – (Slide – não faça hoje aquilo que voce preguiçosos, e que dizemos sempre
pode fazer amanhã) Claro, talvez amanhã a SLIDE (Não faça hoje aquilo que você pode fazer
gente descubra que não era mesmo necessários amanhã)
fazer. (PENNA, 1975a, f.4) NARRADORA ― Claro, talvez amanhã a gente
descubra que não era realmente necessário fazer.
ATRIZ I – (Voltando a narração) Vocês podem (PENNA, 1976, f.4)
perder tempo, mas ganham amigo, o que pra
nós, é muito importante. (PENNA, 1975a, f.6) NARRADORA ― Vocês podem perder tempo.
Mas, em compensação ganham amigos, o que
para nós baianos é o que mais importa. (PENNA,
1976, f.5)
246

Não há modificação do lugar-comum associado ao comportamento do baiano, o que há


é uma tentativa de reversão no significado, no intuito de fazer com que os espectadores possam
perceber a situação sob um ponto de vista distinto, ressaltado pelo argumento do que realmente
importa para os baianos: o estabelecimento de laços e consequente construção de uma rede
afetiva. As modificações realizadas de T75a para T76 tornam a alteridade entre baianos e
paulistas ainda mais marcada. Com a inserção de “Falam – os apressados”, temos uma
separação da personagem baiana em relação ao discurso corrente entre os paulistas. Tal
interação que é asseverada pela mudança nos verbos em destaque: nestes o uso da primeira
pessoa do plural resulta na inclusão da narradora como sujeito do discurso. Dessa forma, a
relação de alguém que fala para um grupo de visitantes, e não partilham dessa mesma cultura,
fica assinalada na versão de T75a. Por sua vez, a inclusão da expressão “em compensação”
reitera o valor semântico da conjunção “mas”, apontando a compensação pela perda de tempo.
Ao representar o sincretismo religioso, Jurema Penna constrói uma cena de uma
negrinha conversando com um preto velho:

PRETO VELHO ― Só tem um jeito. Vamo engá eles. Vamo botá os santos dele no
peji e dizê a eles que, por exemplo, essa daí (mostrando uma imagem de Santa
Barbara) com essa espada na mão e esse negócio parecendo uns raios é Yansan. Esse
montado nesse cavalo, (mostra São Jorge) matando esse bicho é caçador dos bons –
Só pode ser Oxossi. (Idem Senhora Santana) Essa com esse pano na cabeça, essa
menina do lado – parece uma velha – só pode ser Nanã. (Idem N.S. da Conceição)
Essa é danada de bonita. Vestida de roupa dourada. Pisando nessa cobra – É Dona
Oxum.

NEGRINHA ― (Mostrando um Cristo) E esse, pai?

PRETO VELHO ― Ah… esse é o Sr. do Bonfim, o santo da colina. É santo grande
pra eles. Só pode ser o pai de nós todos. Só pode ser Oxalá. (PENNA, 1975a, f. 8-9)

O espaço da cena é, de fato, bastante reduzido para se falar da complexidade imanente


ao processo de sincretismo entre os santos da Igreja Católica e os deuses do Candomblé. Vale,
assim, perceber as escolhas feitas por Jurema Penna ao tratar do tema. Destacamos o movimento
de resistência presente na ideia de “enganar” os opressores, numa tentativa de ocultar e
preservar a cultura oprimida, camuflando-a. Põe-se em evidência a busca por similitudes entre
os santos e orixás, o que tem como consequência a disseminação de uma visão homogênea do
sincretismo, desconsiderando-se a multiplicidade de associações entre santos católicos e orixás.
Assim, de uma forma geral, o sincretismo reconhece uma associação de Senhora Santana com
Nanã, no entanto, a Irmandade da Boa Morte (Cachoeira-BA), que rende culto a Nanã, associou
a mesma orixá à Nossa Senhora da Boa Morte (MARQUES, 2002).
247

Risério (2007) assinala a constituição do sincretismo religioso em função da necessidade


de preservação da religiosidade:

Os africanos, em busca de sua sobrevivência cultural, tomaram a iniciativa.


Reinterpretaram santos católicos escolhidos a dedo, trazendo-os para o universo das
forças vitais onipresentes, estruturadoras da vida e do cosmo. Assim, mais do que uma
cristianização de Oxóssi, o que tivermos foi uma oxossização de São Jorge. Uma
africanização do catolicismo. (RISÉRIO, 2007, p.218)

Nesse sentido, o protagonismo assumido pelo africano na construção de um trânsito


entre as duas religiões permitiu a existência de interferências não somente na religião do
oprimido, mas também na religião do opressor. Uma série de costumes, preceitos e rituais do
candomblé promoveram modificações nos ritos católicos, consagrados hoje nas festas
populares de Salvador. Destacamos a Lavagem do Senhor do Bonfim e a festa de Santa Bárbara,
momentos em que há uma superposição dos sistemas religiosos, originando um produto diverso
de suas origens, mas que com ele mantém certa identidade.
Assim, conforme Risério (2007, p.202), o sincretismo religioso

é aproximação ou mescla, a hibridização, a mistura, ou o cruzar e entrecruzar de


sistemas ou elementos originários de matrizes culturais distintas, muitas vezes
resultando em produtos novos ou inovadores, que tornam quase irreconhecíveis as
suas respectivas certidões de nascimento.

Se na sua origem o sincretismo estabelecia uma relação de identificação de um orixá a


um santo católico, como representado no diálogo da Negrinha com o Preto Velho, seu produto
resulta no apagamento entre essa diferenciação inicial e a construção de algo completamente
novo. Conforme observamos no excerto seguinte,

ATRIZ 2 ― Quando vai ser o caruru de sua casa?


ATRIZ 3 ― O de Cosme?
ATRIZ 4 ― Claro, porque o de Santa Barbara é lá em casa. Esse ano eu vou querer
muito foguete pra minha mãe Yansan. (PENNA, 1976, f.2, grifo nosso)

Flagramos, assim, uma indistinção entre Santa Bárbara e Iansã, presente na relação de
sinonímia estabelecida entre os termos, não sendo possível identificar a preponderância de uma
sobre a outra, resultante de uma devoção popular, que funde cultos e narrativas religiosas. Note-
se como interferência da religiosidade africana sobre o catolicismo, a prática de “dar caruru”,
comida tipicamente africana e afro-brasileira, oferecida em homenagem a São Cosme e Damião
e à Santa Bárbara, referências católicas profundamente sincretizadas na Bahia.
248

A conclusão da cena sobre o sincretismo religioso e que encaminha para a apresentação


dos orixás tem a seguinte configuração em T75a e T76:

ATOR IV – E assim nasceu o sincretismo religioso Afro-brasileiro ou Afro-Baiano E


assim chegaram para a nossa cultura, as divindades africanas, intermediárias entre
Olorum o deus. (PENNA, 1975a, f. 8-9)

NARRADOR ― A festa do Bonfim é sem dúvida a maior demonstração pública do


sincretismo religioso na Bahia. Era vital para o Africano salvar a sua cultura, a
herança de seus ancestrais fosse qual fosse a sua nação – Gêgê, Keto, Nagô, ou
Angola. Poderia ter havido um choque que o exterminasse. Mas o sincretismo
religioso Afro-Baiano, ou Afro Brasileiro, surge e os santos trazidos por Anchieta e
Nóbrega, misturam-se, tomam novos nomes, num engodo de resultados culturais dos
mais valiosos! E foi, do fundo dos porões dos navios negreiros, que desembarcaram
na Bahia, as divindades africanas, intermediárias entre o deus supremo Olorum e os
homens mortais, assim chegaram os Orixás. (PENNA, 1976, f.7)

Em T75a, o fecho da cena aparece bastante simples, resumindo a formação do


sincretismo religioso a uma conversa entre a criança e o preto velho. A versão presente em T76
acrescenta informações importantes sobre o processo que dão conta de realizar uma reflexão
partindo de questões complexas para esse evento sócio-histórico, tais como a diversidade étnica
africana apresentada em suas nações. Fruto de um processo migratório involuntário e violento,
para esses povos manterem-se vivos do outro lado do Atlântico, era fundamental trazer a sua
cultura, adaptando-a ao novo ambiente, como parte de sua potência de vida.
Apresentar a diversidade cultural africana, tomando as três principais nações que vieram
para o Brasil, significa também reconhecer a diversidade ética e cultural daquele povo,
rompendo com a visão de uma África homogênea. As nações Ketu, Gêge e Nagô, apesar de
constituírem agrupamentos étnicos distintos, já estavam sincretizadas no próprio continente
africano, e mantiveram essas identidades estabelecidas também em território brasileiro. Jurema
Penna, no entanto não trata do sincretismo entre as religiões africanas, vinculando a noção de
sincretismo apenas ao catolicismo.
Passando-se à cena da “dança dos orixás”, interessa-nos notar a escolha da dramaturga
que se dirige a um olhar mais culturalista do que religioso, como se observa com a descrição de
Xangô:

ATOR – XANGÕ. multiplo com várias NARRADOR ― XANGÔ.


denominações – Xangôlubê, Agodo, Aganju, - ATORES ― KAÔ KABOECILE
Afonja. Sua característica hermaflodita tende cada NARRADOR ― Foi o grande guerreiro fundador da tribo
vez mais a desaparecer- acentuando-se o aspecto dos iorubá, que se transformou em Orixá. A sua real
masculino. dignidade guerreira está presente na sua dança ágil e forte. É
É o esposo de Inasãn, Oxum, e Obá. É o senhor o deus do trovão, do relâmpago e da “pedra do raio”. Esposo
dos raios, do fogo, e da pedra do raio – Sua dança de Yansã e por ele lutam mais duas mulheres Oxum e Obá.
é forte com movimentos de gueirreiro branindo a Filho de criação da grande e venerada Bahany com ela
249

sua arma – o machado de pedra. (PENNA, 1975a, praticou incesto. Em Xangô também [há] um caráter
f.10) hermafrodita que tende cada vez mais a desaparecer,
acentuando-se o aspecto masculino. Várias são as qualidades
de Xangô. Agodô, Afonjá, Lubê e Airá; este último por ter
um pacto com Oxalá se veste de branco e não come azeite.
Quando o ritmo da dança de Xangô aumenta, ele tira de um
saco imaginário as “pedras do raio” e as atira com violência
e com sua característica força. (PENNA, 1976, f.8)

A versão do texto de T76 é ampliada em comparação à T75a, denotando um trabalho de


pesquisa por parte da dramaturga. Note-se que, em T75a, a descrição de Xangô resume-se a
algumas características, parte de suas lendas, além da indicação de poucas “denominações”, os
elementos da natureza, a sua dança e arma. Em T76, elementos da história dos iorubás são
incorporados ao perfil traçado do orixá Xangô, a lendária paixão de Iansã por Xangô é
evidenciada. Por sua vez, a palavra “denominações” é substituída por “qualidades”,
correspondendo ao termo mais usada pelo povo de santo e às diferentes manifestações.
Nas duas versões, a descrição do orixá se restringe a questões de cunho cultural, não se
referindo a elementos do seu culto. Dessa forma, não há menção a detalhes como a comida do
ritual, o dia da semana em que é cultuado, folhas e pedras utilizados nos seus assentamentos,
dentre outros elementos. Esta escolha pode denotar um cuidado com a esfera do sagrado, de
maneira a não expor um culto religioso, guardando-se o respeito à espiritualidade e
religiosidade. Ou ainda, pode ser resultado do direcionamento dado ao espetáculo, tendo em
vista o público a que se dirige. Os turistas estariam, assim, mais atraídos pelo culto afro-
brasileiro em decorrência de um exotismo, mais interessados pelas questões estéticas que
envolvem o culto, do que efetivamente pelas questões religiosas.
Outro aspecto tratado por Jurema Penna, em relação à população africana e
afrodescendente de Salvador, é a participação desse segmento social em movimentos
emancipatórios, como a Revolta dos Alfaiates e as lutas que culminaram no 2 de julho. Para
narrar a revolução dos alfaiates como fato histórico determinante da luta de um povo por
independência, Jurema Penna se apropria de um poema de Cecília Meireles do Romanceiro da
Inconfidência, estabelecendo o diálogo direto entre os inconfidentes baianos e os mineiros. A
citação do texto de Cecília Meireles, no entanto, não problematiza uma diferença fundamental
entre a inconfidência que ocorreu na Bahia e as que ocorreram no Rio de Janeiro e em Minas
Gerais. Conforme elucida Moura (2003, p.34),

Nos dois casos anteriores, os componentes de uma camada média que estava ligada
ao escravismo por uma série de elos diretos ou permeados, jogavam, manipulavam e
usavam essas idéias para estabelecerem uma modernização sem mudança social. No
250

caso da Inconfidência Baiana, essas mesmas idéias foram usadas como ferramenta
ideológica para uma mudança social radical que atingiria as próprias bases estruturais
da sociedade.

Também conhecida como Revolta dos Búzios ou Revolta das Argolinhas, por conta das
insígnias que os insurgentes utilizavam para se identificar, este foi um movimento fortemente
influenciado pelos ideais da Revolução Francesa e que pretendia a emancipação do país. A
história conta que Luiz Gonzaga, recém chegado da Europa e dotado dos ideais revolucionários,
agregou-se à sociedade literária Cavaleiros da Luz. O grupo de intelectuais dedicava-se a
discutir os princípios da revolução francesa e a disseminar essas ideias para a população, sem
pretender, no entanto, uma ação efetiva que colocasse em prática tais princípios (MOURA,
2003). Foram as camadas populares que se organizaram em uma atitude revolucionária, com a
finalidade de combater a escravidão, os abusos da metrópole sobre a colônia e garantir a
emancipação desta. Descobertos, os revoltosos foram enforcados e esquartejados, a fim de
amedrontar e reprimir outros que seguirem tal exemplo. Os quatro condenados à forca são
descritos na peça por meio de sua cor e profissão, o que indica uma revolta liderada por ex-
escravos e afrodescendentes, asseverando seu caráter popular:

VOZ GRAVADA ― E, “pela dedução dos fatos descritos, e, suas convincentes


provas, o que tudo visto, e mais dos autos, condenam os réus Luiz Gonzaga das
Virgens, pardo, livre, soldado, solteiro, 36 anos; Lucas de Amorim Torres, pardo,
liberto, solteiro, 24 anos; João de Deus Nascimento, pardo, livre, casado, alfaiate, 27
anos; Manoel Faustino dos Santos Lira, pardo, forro, alfaiate, 22 anos… a que, com
baraço e pregão, pelas ruas públicas desta cidade, sejam levados à Praça da Piedade,
por ser também uma das mais públicas dela, onde na forca, que, para este suplício se
levantará mais alta do que a ordinária, morram morte natural para sempre, depois do
que, lhes serão separadas as cabeças e os corpos, pelo levante projetado, pelos ditos
réus, chefes, a fim de reduzirem o continente do Brasil, a um Governo Democrático.”
[...] (PENNA, 1976, f.12)

A cena da morte dos revoltosos é encerrada com uma referência ao Hino ao Dois de
Julho, cuja indicação da rubrica traz a suavidade com a qual deve ser executada, funcionado
como um prenúncio às lutas pela confirmação da independência que estariam por vir. A
narradora cumpre sua função de esclarecer a referência e estabelecer relação entre os
movimentos emancipatórios:

SOM (Muito suavemente entre o som de uma flauta com o Hino ao Dois de Julho)
NARRADOR – E, das cabeças cortadas, e dos corpos esquartejados e do máu cheiro
que se espalhou pela cidade de Todos os Santos durante vários dias, nasceram aqueles
que iriam construir no campo de batalha a independencia da Bahia, consolidando a
Independencia do Brasil. (PENNA, 1976, f. 12)
251

O Dois de Julho é data histórica lembrada pelos baianos como uma luta pela
independência das mais autênticas e populares, opondo-se à artificialidade do “Grito do
Ypiranga”. Marcada pela figura quase mítica do Corneteiro Lopes e uma série de heróis que
fizeram resistência às tropas portuguesas e que são citados na peça, tais como Maria Quitéria,
General Lima e Silva, Soror Joana Angélica, General Labatut, João das Botas, não esquecendo
a referência aos sertanejos do município de Pedrão, presentes no Batalhão dos Encourados.

NARRADOR – E todos aqueles que a historia não lhes gravou os nomes, mas que o
seu sentimento de liberdade foi simbolisado na figrura do indio brasileiro que preferiu
morrer a se deixar escravizar.

NARRADORA – A mulher baiana tomou parte ativa nas lutas pela independencia da
sua terra e exigiu que tambem estivesse representada. E passaram para nós, como
simbolo do Brasil livre, na luta pela consolidação da nossa independencia conquistada
em 2 de julho de 1823, as figuras do Caboclo e da Cabocla.
(Os dois em destaque na atitude do desfile – o “povo aplaude com bandeirolas nas
mãos. Outros também estão vestidos de caboclos transitando pelo palco.) (PENNA,
1976, f. 12).

Apesar de não citar nomes como o de Maria Felipa, mulher negra que liderou as lutas
pela independência da Bahia na Ilha de Itaparica, Jurema Penna faz referência a uma ampla
camada da população afrodescendente que lutou em favor da expulsão dos portugueses,
anônimos que não tiveram seus nomes registrados, mas que, contagiados pelo sentimento de
pertença à terra e de emancipação de uma situação colonizadora, consolidaram a independência
do Brasil. Fica posto, assim, o compromisso de Jurema Penna em representar no palco uma
história da Bahia que também contemple a população que fez parte ativamente da luta, não
apenas os nomes que a historiografia escolheu como heróis.
Num contexto em que o elemento africano é destacado por sua cultura, pelas
manifestações religiosas, que dotam o povo baiano de uma singularidade, as questões trazidas
pela Revolução dos Alfaiates e discutidas no bojo de uma peça de teatro estabelecem uma rasura
nesta ideia de “cultura baiana” inicialmente estabelecida. Entendemos que ao trazer aspectos
de sua combatividade e do seu protagonismo em momentos importantes da história da Bahia,
Jurema Penna avança para além da contribuição do negro nas áreas da cultura e da arte,
trazendo-o como elemento fundamental para as lutas. Aos consagrados heróis da
independência, agrega os sapateiros, artesãos e ex-escravos que tiveram papel decisivo para
nessa luta. Em entrevista a Lena Franca, Jurema Penna demarca sua visão de história:

Para mim a história de um país, a história de um povo, a história de um município não


é aquela oficial, aquela que o menino vai pra escola e aprende. `Pra mim a história de
um povo é muito mais do que isso; é a história que o livro não conta. Aquela que o
252

livro oficial não conta. É aquela história que quem conta são os mais velhos. É esse...
o passar, a tradição oral, essa pra mim é que vai fazer realmente essas mesclagem,
esse amálgama maravilhoso que é o ser baiano, o ser carioca, o ser mineiro. É essa
história que o livro não contou. (PENNA, 1984, f. 26)

As escolhas feitas por Jurema Penna na representação do negro, na história e na cultura


da Bahia, presentes em Bahia livre exportação, dão a conhecer uma tentativa de valorização
dessa etnia, evidenciando a riqueza das suas contribuições culturais e sociais. Dentro dos
horizontes de seu tempo, a obra de Jurema Penna apresenta ecos de estereótipos em relação ao
negro, no entanto é patente o esforço por desconstruí-los, de forma a valorizar as manifestações
populares, sobretudo no que tange à população de afrodescendentes.
Na próxima seção, passamos a tratar das encenações do povo de santo e sua presença
no cotidiano da cidade de Salvador, a partir da dramaturgia de Jurema Penna.

5.1.2 O cotidiano da cidade e o povo de santo, em Iemanjá – rainha de Aiocá

Em Iemanjá – rainha de Aiocá, destacamos as cenas cotidianas de uma comunidade de


pescadores que tem o mar como elemento centralizador. É a presentificação da mãe Iemanjá,
de lá tiram o sustento para alimentar suas famílias. O cotidiano desses sujeitos é representado
em suas atividades diárias, o trabalho, a convivência com os amigos e com a família, mas
também em sua religiosidade e, para alguns, no desempenho de cargos religiosos. O plano
espiritual perpassa todo o enredo do espetáculo. Nas figuras dos personagens Mãe Rosa, Iaô e
Severino, o intangível estará sempre manifesto. Assim, caracterizamos os indivíduos dessa
comunidade como parte do povo de santo, compreendendo-os como sujeitos pertencentes às
religiões afro-brasileiras, cujo cotidiano, as vivências e o idioleto estão diretamente ligados a
esse pertencimento. Interessa aqui estabelecer como Jurema Penna representa esses sujeitos em
seu texto.
Tratando-se de uma narrativa em torno de uma lenda sobre Iemanjá, é fundamental
discutir a importância dos mitos para essas comunidades. Nas tradições africanas e
afrodescendentes, os mitos são fontes de ensinamentos acerca dos princípios éticos da cultura
e da religião. Para compreendermos essa dimensão, transcrevemos abaixo um trecho de Os
sonhos do tempo perdido, mito afro-brasileiro, recolhido e publicado por Carlos Petrovick e
Vanda Machado (2004), onde o Onansokum conversa com Ramon, o Egípcio sobre a escrita
iorubá:
253

Ramon, o Egípcio – Onde estão os hieróglifos da língua falada pelo povo? Em que
papiro ou pedra estão gravados os sinais? Onde está a escrita desse povo iorubá?
Onansokum – No coração, Senhor emissário. Nossa escrita é guardada no coração
como a própria vida. Os sinais são objetos sagrados. Cada objeto tem uma lenda. Cada
lenda tem história. Cada história é um mito com uma lição sagrada. E a trama da
história fica presa na cabeça, orientando o caminho de cada pessoa. (PETROVICK;
MACHADO, 2004, p. 108)

Onansokum, assim, caracteriza a narrativa no país iorubá, em que a escrita sagrada é


composta pela materialidade do próprio corpo e do intelecto humano. Inscrevendo-se nele, este
sagrado habita o interior do ser e se converte na própria vida. Não há separação ou
dicotomização entre corpo, intelecto, emoção e espírito. Ao contrário, estes elementos fazem
parte da dinâmica do registro de tais narrativas no escopo da cultura iorubá, legada para as
comunidades diaspóricas. Por sua vez, os objetos sagrados dariam conta de uma inscrição
materializada nos símbolos que ancoram as narrativas tradicionais dentro do espaço do sagrado,
tais como o mastro central nos terreiros de candomblé, que simboliza a fecundação do céu sobre
a terra, dando origem ao mundo (PINHO, 2003).
A literatura constitui-se ao mesmo tempo fonte de conhecimento sobre o mundo em que
se vive, sobre o sagrado que se cultua, além de ser repositório das memórias. Este fazer literário
prescinde da fixação em papiro ou pedra, porque sua forma dinâmica e cara à oralidade permite
que aquele que conta, o interlocutor, desempenhe o papel de mediador entre a sabedoria
ancestral e o mundo em que vive. A forma textual que cada narrativa assume ao ser contada e
recontada não constitui um problema para essa tradição, visto que o conhecimento advém de
uma ancestralidade, autoria primeira, bem como da presença do divino que legitima as histórias
contadas. O significado da obra não estará presente no respeito a uma forma textual, mas se
estabelece na maneira como os sentidos são construídos por quem a escuta, tornando-se
inscrição no “ori”, ou seja, na cabeça, “a primeira morada de Deus na terra” (PETROVICK;
MACHADO, 2004, p. 113), orientando seu destino e sua conduta, conforme os valores
compartilhados por esse grupo social.
Assim, a literatura iorubana adquire também caráter pedagógico. Vanda Machado,
doutora em educação e coordenadora da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, sediada
na comunidade do terreiro Ilê Axé Opo Afonjá, explicita a experiência com os mitos iorubanos
como elemento pedagógico, pois

[a] intensidade dramática e a espetacularidade apresentada pelos mitos vivenciados


nos acontecimentos rituais provoca a atenção e uma forte carga emocional,
esparramando-se em toda comunidade. A criança dispensa uma atenção especial, a
cada ação singular contida nas histórias míticas, contadas na escola porque as histórias
contêm a vida da comunidade (PETROVICK; MACHADO, 2004, p. 21).
254

O estudo dos mitos, no contexto escolar, teria como fundamental importância para
criança a construção de uma identidade com a ancestralidade, que edificada na narrativa, torna-
se caminho de saberes que apontam para o conhecimento do mundo, do outro e de si. Dessa
forma, o mito comunica-se com a sua vivência na comunidade, podendo constituir um modelo
de atuação social, de resolução de conflitos, bem como de enfrentamento de situações.
A esfera de encantamento que perpassa essas narrativas remete o ouvinte a um tempo
ancestral, mas que, ao mesmo tempo, se atualiza no momento contemporâneo, porque possui
com ele uma identificação direta. De acordo com Lévi-Strauss (1989, p. 262),

[a] história mítica tem o paradoxo de ser ao mesmo tempo disjuntiva e conjuntiva, em
relação ao presente... Graças ao ritual, o passado “disjunto” do mito articula-se, por
um lado, com a periodicidade biológica e sazonal, e por outro, como o passado que,
ao longo das gerações, une os mortos e os vivos.

A atualização ritual feita ao mito converte o passado em presente, esmaecendo as


barreiras entre vivos e mortos. Quando um orixá vem para a roda dançar as suas histórias, a
literatura oral compartilhada pela comunidade torna-se verbo encarnado. No entanto, é preciso
saber contar, movendo-se entre a tradição, dialogando com o repertório de narrativas adquirido
e a contemporaneidade, estabelecendo diálogos entre os antepassados e as novas gerações,
tornando esta prática viva. Assim, os mais velhos são sempre encarregados de passar tais
narrativas adiante, dotando-se da performance que a própria oralidade engendra, da condição
hierárquica que possuem no terreiro e no respeito por sua senilidade. Os griôs representam a
forma exemplar desses sujeitos que “pela experiência vivida na família e na comunidade,
desempenha[m] o papel de agente cultural, transmitindo oralmente valores, costumes e
tradições aos seus descendentes e ao grupo, constituindo um elemento central na cultura afro-
brasileira” (ANSELMO, 2013, p.47).
Assim, cambiando-se o contexto e a inserção da cultura de matrizes africanas em uma
sociedade letrada, o interesse por registrar esses mitos foi progressivamente ampliado. O povo
de santo, ou povo de orixá, também passa a se apropriar da cultura escrita para registrar sua
literatura, mitologia e filosofia. Destacamos, por exemplo, os diversos trabalhos publicados de
Mestre Didi que transliteram a narrativa oral em contos, textos dramáticos e autos.
É na passagem da literatura oral para os gêneros literários escritos que surge o mote para
a peça Iemanjá…, como se pode ver em seu epílogo:
255

Assim, o velho pescador encerrou a conversa comigo.


Isso foi há muito tempo.
Nunca mais esqueci.
Então, nasceu:
(PENNA, 1980, f. I)

O distanciamento temporal evidenciado no epílogo não foi impositivo para promover o


esquecimento da narrativa, o que remete à ideia trazida no conto Os sonhos do tempo perdido
(PETROVICK; MACHADO, 2004). A história ouvida por Jurema Penna em um tempo remoto
também se inscreveu em seu coração e na sua cabeça, uma vez submetido a uma constante
atualização não é esquecida, pois a permanência na memória indica que aquela lembrança faz
sentido para o sujeito.
A história de Pedrão, narrada por Jurema Penna, ancora-se em, pelo menos, três mitos
descritos por Reginaldo Prandi (2001). No primeiro, intitulado Iemanjá afoga seus amantes no
mar, Iemanjá Conlá63 sai de “sua morada nas profundezas do mar e ve[m] à terra em busca do
prazer da carne” (PRANDI, 2001, p.390). Toda as noites, Iemanjá se enamora de um pescador
que está no mar e leva-o para sua morada. Depois de satisfeitos os seus desejos, devolve à praia
o seu corpo sem vida. Preocupadas com a sobrevivência dos respectivos maridos, as
companheiras dos pescadores vivem em constante tensão no aguardo pelo retorno destes e, para
acalmar o grande espírito das águas, presenteiam-no com espelhos e outros tipos de agrado.
A peça se inicia pela chegada dos pescadores, que passaram a noite no mar. De um
lado, está Toninha, que vive a tristeza de ter perdido seu marido em uma noite de pescaria. Sua
presença na trama é a encarnação do medo que perpassa a vivência dessas mulheres, e é também
a representação da consequência da perda do marido. A dor não é só da mulher, mas é
compartilhada por outros membros da comunidade; aqui, quem também sofre com a morte de
João é seu pai, Severino, o sertanejo retirante que perde parte da família por conta da seca e vê
seu filho ser levado pelas águas, ficando mentalmente perturbado.

SEVERINO – E o João? Que hora a canôa dele volta?


CEIÇÃO – (Muito constrangida) Daqui ha pouco pai.
SEVERINO – Mentira! É mentira! O mar engoliu ele, canôa e tudo! O povo tira os
peixe do mar. O povo joga a agua amarela, côr do enxofre do diabo, nas águas do mar.
O enxofre do diabo mata os peixe e envenena tudo. O mar fica com fome. O mar
precisa de sangue dos pescador pra matar a fome dele. A fome do mar é grande.
(PENNA, 1980, f.4)

63
Iemanjá Conlá, qualidade de Iemanjá que se torna mulher de Xangô.
256

Severino, como profeta da vila de pescadores, apresenta a sua leitura dos


acontecimentos evidenciando o mar como besta-fera que devora homens, em reação à sujeira
nele lançada. Conforme o personagem, o sangue derramado deve aplacar a fome do mar.
Do outro lado, Dulce, esposa de Pedrão, o ajuda a descarregar a pesca trazida “depois
de ter lançado um olhar de imensa gratidão ao pequeno altar de Yemanjá” (PENNA, 1980, f.1).
Ainda que seja filha de Oxum, Dulce deixa claro, ao longo da peça, sua preocupação em cumprir
as obrigações com Iemanjá, em contraste com Pedrão, que constantemente questiona a sua
existência, provocando temor na família, como se observa no diálogo entre Dulce e seu filho
Arruaça:

ARRUAÇA – (Um tempo depois decide) É que o pai tava falando besteira de novo.
Disse que não acredita em D. Yemanjá que… só acredita no dia que vê.
DULCE – Não se avexe não, meu filho. Não vai acontecer nada não. Minha mãe
Oxum não vai permitir, Eu faço as minha obrigações prá Dona Yemanjá conforme os
preceito por mim e por ele. Faço tudo nos conformes. (PENNA, 1980, f.6-7)

A atitude de Pedrão impele Dulce a consultar Mãe Rosa, na tentativa de reverter as


palavras más. É preciso, então, acalmar o espírito do mar, trazendo-lhe regalos. Na mudança de
T75b a T80, “agradar” é substituído por “cuidar”, modificando-se a gravidade dos fatos, já que
é preciso ter atenção para com “as moças do mar”, pois a vida do seu marido está entregue a
elas. Mediante tal ameaça constante, as moças da terra passam a ser somente mero detalhe para
Dulce.
Apesar das provocações de Pedrão à Dona das Águas, ele reconhece que seu lugar é o
mar. Para justificar esse fato, em T80, Jurema Penna acrescenta uma cena em que as
remendeiras narram o nascimento de Pedrão, que, conforme os desígnios de Oxum, a orixá de
sua mãe, deveria nascer no mar. A estreita vinculação de Pedrão ao mar é afirmada no trecho
que segue

PÉ-MOLHADO – E você acha, Pedrão, que no mar é melhor de se viver?


PEDRÃO – Eu acho. A gente sabe que vai e, não sabe se volta. Por isso mudei de
ideia. Agora sou morador do mar. O mar é que é a minha terra. Aqui tô de
estrangeiro. (PENNA, 1980, f.5)

A dinâmica da vida de pescador e o próprio medo de morrer no mar provoca uma reação
em Pedrão que o faz assumir as águas como sua casa e a terra como lugar de passagem. O
personagem entende o ambiente marítimo como sua origem e como lugar para onde irá retornar
no momento de sua morte. Nesse sentido, o medo de não voltar à terra, tão temido pelas
257

mulheres, desvanece, constituindo-se em estratégia desenvolvida pelo próprio pescador para


neutralizar seus temores.
Essa temática está também presente no cancioneiro popular brasileiro e em diversos
textos literários, dos quais destacam-se produções de Dorival Caymmi e Jorge Amado. Na obra
de Caymmi, encontramos canções que tematizam o mar e Iemanjá. Destacamos, para leitura, a
música “O mar”, uma composição de 1959, que traz a admiração pela beleza do mar que quebra
na praia, seguida da incerteza do retorno quando se vai. A morte no mar também não é algo
isolado, ao contrário, é um ameaça iminente que ronda os pescadores e suas famílias, tragédia
da qual ninguém está a salvo.

O mar quando quebra na praia


É bonito, é bonito

O mar... pescador quando sai


Nunca sabe se volta, nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar (CAYMMI, 1959)

Na segunda parte da canção, Caymmi canta a história de Pedro, pescador que passava
as noites no mar de onde tirava seu sustento. O momento do “sol raiá” era a hora do alívio,
sobretudo para Rosinha de Chica, que lhe nutria grande afeição. Para tristeza de Rosinha, houve
o dia em que o raiar do sol não o trouxe de volta, apenas o seu corpo foi encontrado. A canção
termina com Rosinha enlouquecida pela perda, lamentando “Morreu, morreu”.

Pedro saiu no seu barco


Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá (CAYMMI, 1959)

A proximidade temática entre a música de Caymmi e a peça de Jurema Penna, fica


evidenciada em alguns elementos, como o nome dos personagens Pedro/Pedrão e a loucura
decorrente do trauma, que, em Iemanjá – rainha de Aiocá, acomete Severino, que perdeu o
filho.
Pedrão, ao longo na trama, apresenta-se cético sobre Iemanjá. Sua desconfiança em
relação à presença da Deusa, vincula-se em um primeiro momento a um descrédito atribuído à
religião, e às práticas de alguns terreiros, que visam ao lucro financeiro, em suas atividades,
258

além de outros que se prestam à espetacularização do culto a fim de entrar no circuito turístico
da cidade.

PEDRÃO – Ignorância, isso sim. Acredito mesmo é nesses dois braço. Esse negócio
de candomblé é pra encher os bolsos dos pai de santo. (Arruaça chegou ao bar? Meio
sem graça, balde na mão)
RAIMUNDÃO – Tu ‘tá falando demais Pedrão.
PEDRÃO – Tu já viu religião que se preza ser atração pra turista?! Agora então virou
moda. Religião é religião, ora essa! (PENNA, 1980, f.5)

A desconfiança de Pedrão em relação a essas práticas acaba por dar espaço a uma atitude
desrespeitosa com a divindade das águas. E assim, para acreditar em sua real existência, Pedrão
desafia Iemanjá a aparecer para ele.

PEDRÃO – Já falei. Se essa tal de Dona das Aguas existe que me apareça. Ta no dia
que eu vê, eu acredito.
RAIMUNDÃO – Cuidado Pedrão, ela pode castigar você.
PEDRÃO – Sai dessa seu RAIMUNDÃO. Eu só queria vê prá crer. Só isso. Não diz
que é tão bonita? Então por que se esconde da gente? (Um silêncio constrangedor.
Os olhos de Pedrão se encontram com os olhos da Yao. Pedrão se volta, vê Arruaça)
(PENNA, 1980, f.5).

É possível, então, estabelecer outro diálogo entre a peça Iemanjá... e a lenda recolhida
por Reginaldo Prandi (2000, p. 393). O mito narra a repreensão feita por Iemanjá Sessu ao seu
filho Xangô, pois este era muito briguento. Recriminado por sua mãe, Xangô revoltou-se e
colocou fogo pela boca, nariz e ouvidos. Furiosa com a desobediência do filho, Iemanjá fez o
seu corpo crescer e levantou as marés e as ondas ao ponto de quase afogá-lo. Xangô então pediu
clemência à mãe e ela o atendeu. Desde então, é a única que pode repreender Xangô e, por isso,
também não admite que ninguém fale mal dele.
O comportamento de Xangô para com sua mãe ressoa nos desafios feitos por Pedrão a
Iemanjá. Pedrão reitera diversas vezes a afronta ao orixá, mesmo quando advertido pelos
colegas de comunidade para não provocá-la. O tom de deboche das suas provocações soa como
um insulto ainda mais grave a Iemanjá.

RAIMUNDÃO – É de valentão mesmo que ela gosta!


PEDRÃO – Pois que venha. Mulher bonita é comigo mesmo que se acerta!
RAIMUNDÃO – Tá falando besteira Pedrão, deixa de desafiar a a Moça. Ela é
sestrosa e cheia de capricho. Basta ouvir o canto…
PEDRÃO – Pois eu já gosto de uma cantora. (PENNA, 1980, f.6).

O atrevimento desperta a ira da Dona das Águas, que o puni com o afogamento,
reiterando o respeito à autoridade da mãe, figura primordial na cultura iorubana.
259

Pedrão desdenha o caráter sagrado de Iemanjá, comparando-a a uma mulher comum.


De fato, os orixás compartilham com os humanos uma semelhança em termos de sentimentos,
desejos, ações etc. Estas características não os destituem de sua divindade, tampouco de seus
poderes. O duplo caráter de mãe e mulher apresentado por Iemanjá relembra diversos mitos em
que se há relações incestuosas, pode ser vista com horror por Iemanjá, como no mito em que
Orugan, seu filho, aproveita-se da ausência de seu pai para forçá-la ao coito. Horrizada, Iemanjá
foge e desfalece, seu corpo toma proporções gigantescas e dele nascem os demais orixás
(PRANDI, 2001; AMADO, 1973).
No entanto, há também mitos que indicam o desejo de Iemanjá pelo incesto. Prandi
(2001) narra que Iemanjá, mãe de Xangô costumava dormir na mesma esteira que o filho e
sentiu-se tomada de desejos sexuais por ele. Percebendo as investidas de Iemanjá, Xangô foge
temeroso, mas o desejo de sua mãe mostra-se tão intenso que faz despertar o dele.
Por sua vez, o triângulo amoroso que se forma entre Dulce, Pedrão e Pequena é outro
elemento no texto que remete à mitologia iorubana. Como descreve Mãe Rosa, os orixás são,
também, assumidos como arquétipos do comportamento humano. Em suas atitudes,
comportamentos, os filhos de santo estariam cotidianamente repetindo esta mitologia ao longo
da vida. Assim, muitos conflitos poderiam ser explicados pela incompatibilidade entre os santos
de cabeça. Tal noção torna-se tão preponderante no universo cultural baiano, que deu origem à
expressão “meu santo não bate com o de ...”, indicando a incompatibilidade entre duas pessoas.
Nesse sentido, Dulce e Pequena estão revivendo a briga entre Oxum e Iansã, respectivamente,
pelo amor de Xangô, orixá de cabeça de Pedrão. Mãe Rosa, no entanto, esclarece que a mãe de
Xangô, Iemanjá, não se agrada dessa disputa e termina por recolher o seu filho à sua morada.
Nesta constelação de referências, verificamos o caráter múltiplo que o mito assume,
trazendo em sua diversidade de histórias e versões, a diversidade de culturas de matrizes
africanas que chega à Bahia e que se dissemina por meio da narrativa oral, adquirindo variadas
formas. Observadora atenta dessa cultura, Jurema Penna constrói seu texto apropriando-se
dessas referências e inscrevendo-se nessa tradição.
No que se refere à construção das personagens, estes podem ser agrupados em núcleos
que se comunicam entre si e que participam de diferentes formas do plano material ou espiritual.
Podem ser assim dispostos em T75b: a) plano material: Pedrão, Dulce, Arruaça, Ritinha e
Pequena (a família), os pescadores (Pé-Molhado, Sete-Mola, João Berimbau), os amigos de
Arruaça (Siri, Zequinha), Cazuza e Duzinha (os donos do boteco); b) transitam entre o plano
material e o espiritual: as remendeiras de rede: Da Glória, Ceição, Toninha e Mãe Rosa, Mãe
260

Pequena (sacerdotisas do candomblé); c) plano espiritual: Iaô e de Severino, personagens cuja


falta de razão aproxima-os da figura de Iemanjá.
De T75b a T80 há uma supressão de pelo menos uma personagem de cada núcleo,
levando a um rearranjo do papel de cada uma na trama e logo a uma reestruturação do texto.
Da família, elimina-se Ritinha e Arruaça torna-se o filho único do casal Dulce e Pedrão. Do
núcleo dos pescadores, elimina-se João Berimbau, transferindo a noção de pescador mais
experiente para Raimundão, que também é convertido em ogã da casa de Mãe Rosa, e com a
eliminação da Mãe Pequena (núcleo das sacerdotisas do candomblé), assume a função de
orientador espiritual da comunidade de pescadores, como intermediário de Mãe Rosa. Ambos
amigos de Arruaça são eliminados, bem como a remendeira Da Glória, o que resulta na
redistribuição dos papéis destas no espetáculo: em T75 Da Glória é namorada de Arruaça,
Toninha era a viúva de João e Ceição, a filha de Severino; em T80, Toninha é mulher de João
e Ceição é filha de Severino e namorada de Arruaça.
Tais diferenças já aparecem enunciadas em T80, na folha de descrição de personagens,
onde, por exemplo Dulce em T75b é “meiga e resignada”, numa tentativa de representar o
arquétipo de uma filha de Oxum, evidenciando seu caráter afetivo. Sua meiguice, no entanto,
não corresponde a sua atuação no desenvolvimento da ação, pois mesmo em T75b, Dulce é uma
mulher ativa, determinada e firme em seus propósitos, que se preocupa, por exemplo, em ter
uma fonte de renda independente do marido.
Por sua vez, a Iaô tem sua descrição modificada, conforme apresentado abaixo:

YAÔ – personagem sem explicações frias e IAO – Personagem sem explicações frias e
racionais. Talvez no dizer do povo "uma racionais. No “dizer do povo” é "uma fraca da
fraca da cabeça que se acredita ser a própria cabeça” – “D. Yemanjá desceu nela e ninguem
Yemanjá”. nunca mais acertou a tirar.”
(PENNA, 1975b, f. 1) (PENNA, 1980, f. 1)

A Iaô é descrita como uma “fraca de cabeça”. Para receber o orixá, a noviça deve ter
sua cabeça devidamente preparada, passando por rituais de iniciação, caso contrário, a presença
do orixá poderá não atuar de forma positiva sobre ela, instaurando um desequilíbrio entre a sua
subjetividade e o transe ritualístico. Em T75b, este desequilíbrio da Iaô determinava uma
percepção de si como a própria encarnação de Iemanjá. Em T80, essa consciência já não existe,
pois a própria Iemanjá assume as ações da iaô. Para a construção do enredo, esta mudança tem
um papel crucial, pois a Iaô torna-se a presença da própria Iemanjá, que observa os
acontecimentos em terra.
261

Vale também ressaltar que a Iaô não possui falas, toda a comunicação durante as cenas
é feita por meio dos olhares, por expressão corporal, ou ainda por meio da dança de seu orixá.
Tal condição pode ser proveniente do seu estado psíquico, uma vez que nas casas tradicionais
de candomblé, os orixás não oralizam, ou o fazem raramente, sua comunicação se dá,
preponderantemente, por meio de outras linguagens.
As remendeiras, por sua vez, constituem ora um personagem coletivo, ora personagens
individuais. Quando personagem grupal, utilizam-se do canto para encadear a narrativa ou
marcar a conclusão da cena e início de uma nova. Podem, também, fazer referência à tradição
popular de cantar durante o desenvolvimento de uma atividade braçal, a fim de estabelecer uma
socialização entre os trabalhadores, além de ser uma forma de passar o tempo. Lembramos que
a tarefa desse grupo caracteriza-se pela repetição e pelo caráter mecânico.
A cantilena das remendeiras faz recordar o coro das tragédias gregas. Conforme Ceia
(2010, verbete),

O coro tinha várias funções no drama grego: é uma personagem da peça; fornece
conselhos, exprime opiniões, coloca questões, e por vezes toma parte activa na acção.
Ao coro competia também criticar valores de ordem social e moral e, por outro lado,
tinha ainda o papel de espectador ideal ou voz da opinião pública, reagindo aos
acontecimentos e ao comportamento das personagens como o dramaturgo julgava que
a audiência reagiria se estivesse no seu lugar. Acresce ainda a função de elemento
impulsionador da emoção dramática, conferindo movimento ao que está a ser
representado e promovendo quebras de acção por forma a levar o público a reflectir
sobre o que se está a passar.

Observamos um eco entre as remendeiras de Jurema Penna e o coro da tragédia clássica,


momento em que a música se constitui como elemento dramático, tanto para a composição do
espetáculo, como para a constituição do enredo. A imagem das remendeiras de rede remete
também às fiandeiras da mitologia grega, três irmãs responsáveis por fiar a linha da vida, tecer
a trama e cortá-la, estando assim associadas ao nascimento, o desenvolvimento humano e a
morte. Bem como estas, as remendeiras têm o fio como matéria para sua atividade, com o qual
devem reconstruir as redes danificadas pela pescaria, concorrendo para a manutenção das
atividades. Por sua vez, suas cantigas também compõem o fio da narrativa que tece o enredo;
nelas, as remendeiras fazem comentários das cenas, dão conselhos e prenunciam os
acontecimentos.
Ao contrário das fiandeiras, as remendeiras não têm poder para atuar sobre a vida dos
personagens, mas também possuem um componente sobrenatural, uma vez que sua posição de
comentadoras da cena, dá a elas um papel de quase onisciência sobre os acontecimentos do
drama, uma vez que elas se relacionam com ações das quais não participam diretamente. Na
262

passagem que segue, destacamos o grupo de remendeiras como comentadoras das ações. A
cantiga funciona como conclusão da cena e marcação para a entrada do próximo grupo:

TONINHA – Como sempre. Saiu pro mar, como saia todo dia. Em cima da jangada.
[...] Quando a jangada deu na praia, tava com mancha de sangue. Diz que foi cação.

(Pausa, cantam)
Entrou lua, saiu lua
mas inté de madrugada
esperei o meu benzinho
foi pro mar, numa jangada.
(PENNA, 1980, p.2)

A cantiga pode também funcionar como um esclarecimento acerca do pensamento de


certo personagem, constituindo-se como mais um elemento para que o espectador construa o
sentido daquela cena e perceba as suas entrelinhas, conforme observamos no momento em que
Pequena questiona Dulce acerca do comportamento de Pedrão.

DULCE – É coisa de home. Um dia ‘tá pelo pé, outro pela cabeça. A gente nunca
sabe. (Fita os olhos no mar. A Yaô surge no fundo da casa)
REMENDEIRAS (Cantam)
– Mesmo perto de mim – serenô
o seu pensamento sái – serená
só queria saber – serená
prá que mundo qu’ele vai – sereno – serená – sereno – serená.
(PENNA, 1980, p.24)

Aqui, Dulce tenta disfarçar para Pequena a sua percepção do comportamento de Pedrão.
Busca dessa forma, minimizar a magnitude do problema que enfrenta com o intuito de
dissimular suas preocupações e temores sobre o fato para a sua rival. A cantiga das remendeiras,
no entanto, descortina essa dissimulação, exibindo a dúvida que assola Dulce.
As remendeiras também se posicionam na relação entre os planos material e espiritual,
apresentando atitudes premonitórias em algumas passagens do texto. Transcrevemos o
momento em que Pedrão é advertido por Raimundão a não ir para o mar na “noite de
encantado”:

RAIMUNDÃO – Sei lá… dá um aperto no coração. Pode dizer que é medo. Tem
nada não. E quer saber de uma coisa, Pedrão? Acho melhor tu não ir. Conselho de
mais velho. (Pedrão acabou de fumar. Dá um tapa amigável nas costas de
Raimundão e do filho e vai para o mar. Arruaça vai em direção de Ceição.
Raimundão se encaminha para a casa de Mãe Rosa. Dulce em casa passa roupa.
Enquanto dobram as redes as

REMENDEIRAS Cantam)
Pescador, meu bem querer
fuja do rastro da lua
é caminho da cantiga
263

qu’ ela canta linda e nua.


com os seus cabelos verdes
e os olhos de luar
riso claro de espuma
e feitiço no cantar
(PENNA, 1980, p.20)

Nesse caso, a cantiga assume um sentido de advertência e de prenúncio, à medida que


concorda com a proposição de Raimundão, alertando o pescador para os perigos de ir para o
mar naquela noite de lua, evitando, assim o encontro com Iemanjá, desejosa do amor dos mais
bravos pescadores.
As remendeiras, também, remetem à relação entre música e ritual, na qual a música
exerceria uma espécie de transe nas personagens, conectando-as a um saber conscientemente
desconhecido, mas que permeia a cena, uma ligação com uma presença invisível. Quanto à sua
estrutura, todas as cantigas das remendeiras obedecem ao esquema de rimas cruzadas, trazendo
um verso com rima diferente entre dois versos que rimam, seguindo o esquema ABCB, comum
no cancioneiro popular. Todas constituem quadras, estrofes de quatro versos, exceto uma
cantiga que constitui uma oitava, com oito versos. Em relação à métrica, há uma irregularidade
nessas quadras, algumas com cinco, seis ou sete sílabas poéticas na composição de cada verso,
excetuando-se a primeira.
A linguagem das cantigas é muito própria do folclore baiano e brasileiro. Sua
incorporação à cena possibilita trazer as inúmeras referências culturais dos espectadores durante
a construção dos sentidos sobre a peça. A primeira cantiga das remendeiras remete à tradição
do folclore português na Ilha de São Miguel, do Arquipélago de Açores, transmitida às cantigas
de roda brasileiras, conforme comparação:

Tradição Portuguesa Cantiga de roda brasileira Fui no mar buscar laranja


Coisa que no mar não tem
Eu fui ao mar às laranjas Fui no mar buscar laranja Voltei toda molhadinha
que é coisa que o mar não tem: coisa que o mar não tem Das ondas que vão e vem.
como há-de vir enxuto voltei toda molhadinha
quem das ondas do mar vem? das ondas que vão e vem. (PENNA, 1980, f.1)
(CAMARA, 1980, p. 70)
Fui no mar da vida um dia
fui buscar amor também
o amor que eu queria
ai meu Deus, no mar não tem.

Nas ondas fui embalada


até que à praia voltei
Sozinha, triste e molhada
das lágrimas que chorei
(SALVADOR, 2007)
264

Para as demais cantigas não foram encontradas referências como estas, o que nos leva a
propor que a maioria seja composição de Jurema Penna, seguindo os moldes dos cantares
populares, ou ainda, apropriações que esta fez, promovendo uma retextualização destas
canções.
De T75b a T80, Jurema Penna empreende uma modificação na descrição física de
Iemanjá que é crucial para a representação do povo negro no teatro: a deusa do mar não será
descrita como uma mulher branca, mas sim como uma mulher negra em toda sua beleza e
esplendor. No relato de uma de suas aparições na praia, feito por uma das remendeiras, Iemanjá
é assim descrita: “tava ali: parada na praia, com seu belo negrume, coberto de luz”. (PENNA,
1980, p. 9), evidenciando-se, desde o início da peça, que se trata de uma Iemanjá bela, cuja pele
negra resplandece.
Tomando-se as modificações textuais empreendidas na peça, destacamos aquelas
realizadas nas cantigas das remendeiras, que transcrevemos com grifos nossos:

Ela tem cabelos verdes Ela tem cabelos verdes


E os olhos cor do mar e nos olhos luz de lua
Seio branco de espuma dentes alvos de espuma
E a pele de luar noite negra na pele nua
(PENNA, 1975b, p.12) (PENNA, 1980, p.13)

Através de mecanismos metafóricos que mesclam a descrição física da personagem com


o ambiente marinho, os olhos deixam de ser verdes ou azuis e passam a ser brilhantes e
luminosos dotados do próprio brilho da lua. A alvura das espumas do mar, por sua vez, é
associada não à cor de seu seio, mas à brancura dos seus dentes, por fim, a cor de sua pele deixa
de ter a clareza do luar para trazer a escuridão das noites em que a divindade aparece aos seus
marinheiros escolhidos. Outra modificação também será realizada no excerto abaixo, quando
Jurema Penna reafirma a negritude de Iemanjá, substituindo “linda” por “negra”. Uma vez que
a beleza da deusa é pressuposto, cumpre associá-la à negritude de sua pele:

REMENDEIRAS ( Cantam) REMENDEIRAS (Cantam) –


– Tua voz me arrastou – sereno Tua voz me arrastou – serenô
Na sua estrada de lua– serená na tua estrada de lua– serená
Onde está o teu caminho – sereno onde está teu caminho – serenô
Onde cantas linda e nua– sereno– serená onde te escondes negra e nua– serenô– serená– serenô–
(PENNA, 1975b, p.25) (PENNA, 1980, p.25)

A imagem de Iemanjá mais difundida apresenta-a com pele clara, cabelos longos e lisos,
vestida com o azul das ondas do mar, frequentemente rodeada de outros elementos marinhos,
265

como conchas e pérolas. Risério (2007, p. 278) discorre acerca do embranquecimento da


imagem de Iemanjá.

Na África, Iemanjá é uma senhora negra de formas plenas e seios volumosos. E não é
peixe da cintura para baixo. No Brasil, em terreno popular (embora não nos mais
tradicionais terreiros de candomblé), houve uma aproximação entre a orixá nigeriana
e a sereia branca da Europa, dedicada ao canto e ao sexo – e já confundida, aqui, com
a mãe-d’água. Na Bahia, no século XIX, podemos encontrar representações de
Iemanjá como senhora e não sereia, ostentando frondosas tetas.

Algumas explicações para a constituição da imagem de um orixá com pele branca


calcam-se no sincretismo religioso de Iemanjá com Nossa Senhora dos Navegantes ou Nossa
Senhora da Glória. A popularização desta imagem é também decorrente das grandes festas
públicas promovidas, sobretudo, pelos umbandistas no Rio de Janeiro.
Notamos, ainda, alguns cuidados na representação do Candomblé por Jurema Penna,
visível sobretudo no movimento de modificação textual. Na cena que se segue, descreve-se o
quarto dos orixás na casa de Mãe Rosa. Nela, temos a inserção de informações descritivas
acerca da configuração do peji, resultando em uma ampliação da rubrica:

CASA DE MÃE ROSA – (no quarto dos orixás CASA DE MÃE ROSA – (No quarto dos orixás um pegi,
da casa de mãe rosa um pegi – espécie de altar espécie de altar que sobe em degraus, coberto com uma
que sobe em degraus, coberto por uma toalha toalha branca, bordada. Vasilhas (alquidar) de cerâmica
branca. Vasilhas de cerâmica com as obrigações com as obrigações arrumadas aos pés do pegi. Velas,
espalhadas pelo chão. Pipocas, velas, flores, pipoca, flores, perfumes, pedras lisas, garrafas de mel.
perfumes, garrafas de mel, pedras lisas. Sobre os Sobre os degraus além das “armas" dos orixás, como o
degraus além das “armas" dos orixás, como o machado de Xangô, o pachorô de Oxalá (em destaque) os
machado de Xangô, os abebès de Yemanjá, arco abêbés de Oxum e Yemanjá, arco e flecha de Oxossi,
e flecha de Oxossi, espada de Iansã, etc, imagens espada de Iansan, ferramentas de Ogum, também
de santos católicos. Sentada diante de uma algumas imagens de santos católicos como Santa
pequena mesa está Mãe Rosa. Não deve estar Bárbara e São Jorge e São Cosme e Damião, além de
vestida de “baiana”. Veste-se normalmente, de imagens de índios como Pedra Furada e Jurema. Em pegi
preferência de branco. Usa guias de seus orixás, de candomblé da Bahia não há Pomba Gira, nem Preto
pulseiras e brincos. A mesa é forrada de branco e Velho ou qualquer alusão a Exu. Exu tem sua própria
sobre ela um copo d'agua, uma vela acesa, um casa. Na parte mais alta do pegi a “Dona da Casa
baralho, busios, um bloco, lápis. Guias Yemanjá cercada de flores e fitas. Ao lado do pegi uma
contornam a mesa formando um circulo, dentro pequena mesa forrada de toalha branca e, sobre ela um
do qual serão jogados os busios) (PENNA, copo d'água, uma vela acesa, búzios, num tamborete, lápis
1975b, f.8). e um pequeno bloco. Guias contornam a mesa formando
um circulo, dentro do qual será jogado o ifá: jogo de
advinhação. Sentada à mesa está Mãe Rosa, concentrada
e não manifestada, vestida simplesmente, de preferência
de branco, torço branco na cabeça, guias dos seus orixás,
pulseiras contra egun) (PENNA, 1980, f.8, grifo nosso).

Ao contrário da primeira versão do texto, em T80, as obrigações encontram-se


“arrumadas” no chão e não “espalhadas”. A modificação do item lexical que inicialmente
estaria relacionada a uma desorganização do espaço, denota o olhar de observador externo
266

àquela cultura, e que interpreta como desarrumação uma forma de organização que lhe é
desconhecida. A ideia de “obrigações espalhadas” também encontra eco em uma leitura
ocidental das culturas de matrizes africanas como primitivas e inferiores, logo, menos
organizadas e menos ordenadas. O movimento de substituir por “arrumadas” desconstrói a ideia
de cultura de matriz africana como primitiva, reconhecendo nela sua lógica própria, assim como
demonstra uma tentativa de representação da cultura do candomblé de forma engajada.
Na descrição dos orixás que compõem o peji, Jurema Penna irá acrescentar ferramentas
de orixás que não foram relacionados em T75b, adicionando o pachorô, indicando uma
reverência a Oxalá, dispondo os abebés de Oxum junto aos de Iemanjá, citando as ferramentas
de Ogum como decorrência da popularidade do culto a estes deuses no Brasil. A referência aos
santos católicos, antes genérica em T75b, é especificada em T80, trazendo santos no altar: Santa
Bárbara, São Jorge e São Cosme e Damião, relativizando, novamente, o sincretismo do
Candomblé com a Igreja Católica, que, se por um lado, não é mais necessário, por outro,
inscreve-se na história e na vivência do povo. A escolha desses santos não é aleatória, visto que
foram objeto de intenso sincretismo religioso em decorrência das duras perseguições
historicamente sofridas pelas religiões de matrizes africanas.
Na reformulação da descrição do peji, Jurema Penna acrescenta também o culto aos
donos da terra, representados por imagens dos índios Pedra Furada e Cabocla Jurema, uma
tradição presente mesmo nas casas de candomblé tradicionais, em que se rende homenagem aos
ancestrais indígenas que estavam aqui antes da chegada dos colonizadores portugueses e dos
povos africanos.
O acréscimo do esclarecimento “Em pegi de candomblé da Bahia não há Pomba Gira,
nem Preto Velho ou qualquer alusão a Exu. Exu tem sua própria casa”. A exclusão dessas duas
entidades indica a representação de um candomblé de matriz mais dessincretizada, presentes
nas nações Nagô ou Ketu, em oposição a nação Angola, mais permeável ao sincretismo, e o
candomblé de caboclo e a umbanda, que tendem a ser abertos ao culto das referidas entidades
(PINHO, 2003). Por sua vez, é válido ressaltar como o discurso, sobretudo o relativo a Exu,
adquire uma forma normativista, estabelecendo uma proibição em relação a representação desta
entidade no peji do candomblé. Como esta modificação se realiza no espaço da rubrica, há,
portanto, uma indicação expressa ao cenógrafo e ao figurista de regras que devem ser
obedecidas para a construção desses espaços cênicos.
No momento da consulta com Mãe Rosa, em T75b, Jurema Penna foge da
estereotipização da mãe de santo vestida com roupa de baiana, marcando a simplicidade das
vestes de sua personagem. Em T80, inclui a delimitação de que Mãe Rosa está “concentrada e
267

não manifestada”, o que se coaduna com o respeito à religião e à figura da ialorixá, sua
autoridade da mãe de santo.
A possessão sagrada marca o clímax do ritual, é o momento do transe, em que os orixás
são incorporados e apresentam-se por meio da dança, em uma manifestação religiosa, mas
também performática (PINHO, 2003). A Iaô manifesta-se por meio da dança de Iemanjá,
marcando o ápice da presença do orixá no espetáculo. Como observa-se, uma série de elementos
é incorporada à descrição da cena, no intuito de detalhá-la:

CASA DE MÃE ROSA – Aos pés de mãe rosa CASA DE MÃE ROSA – Sentada com toda a sua
que está sentada com Raimundão e Pé-Molhado imponência de mãe de santo, Mãe Rosa esta
ao seu lado, a iaô vestida de Iemanjá. Ela inicia a vestida de branco, tendo o seu Ogan Raimundão
sua dança ágil e graciosa. Ela dança por todo o de pé ao seu lado. A Yao agora vestida de filha de
palco, onde todos estão prostados. A luz vai Yemanjá bate caça aos pés de Mãe Rosa e depois
decrescendo até restar apenas um foco sobre a aos pés de seu Raimundão, iniciando em seguida a
iaô; black rápido. Volta em seguida em sua dança ágil e graciosa. Dança por todo o palco
resistência a… onde estão prostrados. A luz vai entrando em
resistência até restar apenas um foco que
(PENNA, 1975b, f.21, grifo nosso) acompanha a dança de Yemanjá. Black rápido. A
luz volta em resistência. Amanhecer.
(PENNA, 1980, f.21, grifo nosso)

Em T80, a grandiosidade da ialorixá é marcada no texto, como elemento inicial da cena,


definindo a sua posição hierárquica em relação aos demais presentes. Em T80, Jurema Penna
substitui a expressão “vestida de Iemanjá”, que pode denotar o uso de uma fantasia, por vestida
de filha de Yemanjá”, que se torna mais precisa por indicar as vestimentas e insígnias
apropriadas para cada orixá. Conforme Pinho (2003, p. 110), no início do xirê, a primeira roda,
as iaôs ainda estão vestidas

“à baiana”, saia rodada, pano-da-costa, torço na cabeça, e descalças. Produzindo-se o


transe, as filhas são paramentadas com as vestes e os ornamentos simbólicos dos
orixás e voltam para dançar, mas agora não são mais as mesmas, mas os deuses
africanos: Oxum, Iansã, Ogum, etc., que revivem coreograficamente suas histórias e
distribuem bênçãos e axé para a comunidade. Cada devota só encarna ou recebe o
santo a que sua “cabeça”, ori, é dedicada.

Assim, entendemos que a substituição por “vestida de filha de Yemanjá”, implica a


compreensão da veste e dos símbolos utilizados como parte da ritualística da cerimônia.
Acrescentam-se em T80 gestos que também concorrem para a ritualização da cena,
destacando-se aqui o cumprimento feito pelo orixá à Mãe Rosa. Conforme Lopes (2008, p 107),
bater cabeça é “o ato de um fiel prosternar-se diante de seu orixá ou guia protetor”, demostrando
humildade, reverência e respeito pela ialorixá. Por sua vez, a dança é descrita como ágil,
graciosa e expansiva, capaz de ocupar todo o espaço cênico. De acordo com o descrito em T80,
268

os personagens estão prostrados, enquanto a Iaô dança por todo palco, no entanto, esse
comportamento não representa a via de regra dos participantes dos rituais públicos de
candomblé, que costumam acompanhar a música com palmas ou ainda fazendo coro, quando
solicitados.
É interessante destacar que todas essas modificações foram realizadas na rubrica e não
nos diálogos. No texto escrito para o teatro, a rubrica guarda as indicações para o
desenvolvimento das ações no palco, traduzindo para as outras linguagens as descrições ali
postas. É também espaço em que o dramaturgo constrói a sua poética, fazendo uso dos recursos
narrativo-descritivos para composição do enredo. As modificações analisadas acima serão
portanto traduzidas para o espetáculo, fornecendo uma representação do candomblé pretendida
por Jurema Penna, numa forma mais próxima às casas tradicionais baianas.
A mudança na caracterização do cotidiano da mãe de santo permite também entrever a
subjetividade dessas sacerdotisas, que abrem mão de sua vida para dedicarem-se à condução da
vida espiritual e social de uma comunidade. Como afirma Campos (2003, p.21) “a aceitação
desses papéis sociais implica um processo de desindividualização”. Mãe Rosa sempre aparece
em cena trabalhando, organizando as atividades do terreiro, consultando os búzios, atendendo
os fiéis, fazendo as obrigações, dentre outras tarefas.
No excerto abaixo, com grifos nossos, destacamos como essa ocupação das mães de
santo se restringem quase que inteiramente as questões religiosas.

RAIMUNDÃO – Que é que eu digo a Camaféu? RAIMUNDÃO – E, mas vamos cuidar da


vida. O que é que eu digo a Camafeu?
MÃE ROSA – Cê diz a êle que me desculpe. Eu
tava certa de ir ajudar ele na cozinha lá do MÃE ROSA – Cê diz a ele que me desculpe.
Mercado, agora no verão conforme mandei dizer Eu tava certa de ir lá no Axé Apô ô Fonjá.
por você. Mas… Raimundão, basta tu contá a ele Mas, Raimundão, conta a ele o que tá
o que está acontecendo com Pedrão qu'ele vai acontecendo com Pedrão, ele vai entender e
entender. A gente aquí tem que trabalhar muito Mãe Estela também. A gente tem que trabalhar
pra vê se ajuda minha filha Dulce. Fala com ele muito por nossa filha Dulce. Ela tá precisando
que essa filha aqui está precisando de muita força. de muito axé. (PENNA, 1980, f.25)
(PENNA, 1975b, f.25)

Neste trecho da peça, Jurema Penna faz referência a Camafeu de Oxóssi, personagem
do cotidiano soteropolitano que era Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e dono do restaurante
que levava seu nome, localizado no Mercado Modelo, em Salvador. Em T75b, Mãe Rosa iria
ajudar Camafeu com as tarefas da cozinha, cuja demanda aumenta em decorrência do verão. Já
em T80, a visita de Mãe Rosa estava sendo esperada no “Axé Apô ô Fonjá”, forma variante de
Ilê Axé Opô Afonjá. Mãe Rosa justifica o motivo de sua falta e conta com a compreensão da
responsável pelo terreiro, “Mãe Estela”, numa referência literal à ialorixá, Mãe Stella de Oxóssi.
269

A modificação textual realizada faz alusão às atividades da mãe de santo, que se ocupa das
relações entre o plano material e o plano espiritual e não de um trabalho comum como cuidar
da cozinha.
A menção literal a Mãe Stella de Oxóssi pode também tornar-se um indicativo da nação
à qual o referencial de candomblé de Jurema Penna se vincula. Mãe Stella de Oxóssi lidera o
terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, de nação Ketu, localizado em Salvador, no Bairro do São Gonçalo
do Retiro, que se forma a partir de Mãe Senhora, ialorixá feita no antigo terreiro da Barroquinha
(Campos, 2003). Mãe Stella possui uma proeminente vida intelectual, sendo a primeira ialorixá
a escrever livros sobre sua religião, é colunista do Jornal A Tarde, e ocupa a cadeira 33 da
Academia de Letras da Bahia.
Na década de 1970, os elementos do culto afro adentram o espaço das artes cênicas,
sendo trazidos, muitas vezes, como folclore, com um esvaziamento do sentido religioso e
sagrado. Se, por um lado, os elementos africanos foram incorporados às artes cênicas baianas;
por outro, promoveram uma busca pelos terreiros de candomblé como casas de espetáculos,
como ponto turístico, sem a devida vênia, atraída pelo “exotismo” do ritual, bem como pela
beleza estética do mesmo. Esta busca também fora alimentada pela presença dos orixás na
música popular brasileira, com destaque para as canções de Caymmi. Nesse ínterim, muitos
falsos “pais de santo” se aproveitam da situação para angariar proveitos financeiros dos turistas.
Esta crítica aparece no texto de Jurema Penna, que traz no discurso cético de Pedrão a
desqualificação do candomblé em decorrência da ação de falsários e charlatões, interessados na
espetacularização dos rituais para a sua exploração como fonte de lucros, como podemos
observar aqui:

PEDRÃO – Ignorância... isso sim. Acredito PEDRÃO – Ignorância, isso sim. Acredito mesmo
mesmo é nesses dois braços… esse negócio de é nesses dois braço. Esse negócio de candomblé é
candomblé é bom mesmo prá encher os bolsos pra encher os bolsos dos pai de santo. (Arruaça
dos pai de santo…agora então que virou moda. chegou ao bar? Meio sem graça, balde na mão)

SETE-MOLA – Tu está falando demais, Pedrão! RAIMUNDÃO – Tu ‘tá falando demais, Pedrão.

PEDRÃO – Tu já viu religião que se presa, sê PEDRÃO – Tu já viu religião que se preza ser
atração turistica? Religião é religião, ora essa atração pra turista?! Agora então virou moda.
Religião é religião, ora essa!
(PENNA, 1975b, f.5, grifo nosso) (PENNA, 1980, f.5, grifo nosso)

A expressão “agora então que virou moda” é deslocada de T75b a T80, constituindo
novos sentidos ao lado dos demais sintagmas com os quais se relaciona. Em T75b, a moda do
candomblé resulta em um aumento do faturamento dos “pais de santo charlatões”, já em T80,
a questão da moda é relacionada com a empresa turística. Santos (2005, p.132) esclarece que
270

A utilização do candomblé como manifestação folclórica, em anos anteriores era vista


como um estímulo do governo estadual. Em 1972, havia sido criada por Antônio
Carlos Magalhães, então governador do estado da Bahia, a Bahiatursa. A função desse
órgão era publicizar “a singular herança folclórica africana da Bahia”, com atenção
especial devotada aos cultos afro-brasileiros. Por consequência, as agências de
turismo e hotéis passaram a ser informados sobre quais os terreiros que poderiam ser
visitados em festas públicas.

Não eram poucos os terreiros de candomblé que abriam suas portas para receber os
turistas, realizando festas, inclusive fora dos períodos adequados, a fim de atrair mais visitantes
para dentro de seus barracões. Destaque-se, também, o fato de filhas de santo serem estimuladas
a, no mês de julho, a ir às ruas coletar esmolas para a festa de Omolu, tradicionalmente realizada
no mês de agosto (SANTOS, 2005). Apesar dos empenhos para a desfolclorização do
candomblé e o seu respeito como prática efetivamente religiosa, até os dias de hoje, é bastante
comum ver listada na agenda cultural de Salvador a festa em terreiros de candomblé.
Outro aspecto da representação do povo de santo no texto é a mobilização dos orixás de
cabeça como arquétipos, transformando esses santos em referência para a constituição da
própria identidade e fonte de autoconhecimento. Pensar as características dos orixás como
matriz para o comportamento humano resulta em compreender as relações humanas a partir de
uma complexidade que lhe é própria e que remete à sua ancestralidade. Em Iemanjá..., os
arquétipos são constantemente evocados para explicar o comportamento das personagens. A
preferência de Dulce em não enfrentar diretamente Pequena na disputa pelo amor de Pedrão, o
que é visto por muitos como passividade, é então explicada por Toninha que afirma: “É isso
mesmo. Mulher de Oxum é assim. Sofre calada. Só faz chorar” (PENNA, 1980, f.18).
O arquétipo pode ser também uma possível explicação para os conflitos na trama,
conforme faz Pequena ao ser questionada pelos homens da comunidade sobre suas intenções
com Pedrão e a falta de respeito a Dulce, sua amiga. Compare-se a modificação textual
apresentada da versão T75b a T80:

PEQUENA – Tu nem parece que é Ogan e entende PEQUENA – Tu nem parece que é Ogan de terreiro
das coisas. Tu não vê que Pedrão é um Xangô vivo? e entende das coisas. Tu não sabe que Pedrão é Xangô
E tu já viu um homem de Xangô que não tivesse pelo vivo? E tu já viu um homem de Xangô que não tenha,
menos duas mulher brigando por ele? Mas Xangô, pelo menos, duas mulheres brigando por ele? Mas,
meu nego, é homem de Iansã. Que venham as Obás e Xangô, meu nego é o homem de Yansan. Que venha
as Oxum. Ela não é de Oxum? Que faça seus tudo quanto é Obá e Oxum. Ela não é de Oxum? Que
dengues… Foi com aquela cara de santa que ela me faça seus dengues. Foi com aquela cara de santa que
tomou ele. Eu sou guerreira e sei lutar. Cês sabem ela tomou ele de mim. Mas, sou guerreira e sei lutar.
disso melhor do que eu. Cês sabem que isso é guerra Cês sabem disso melhor do que eu. Cês sabem que
antiga Só que ninguém sabe quando começou. Já isso é briga antiga. Só que ninguém sabe quando
existia antes do meu povo atravessar o mar e vir prá começou. Já existia antes do meu povo atravessar o
cá ser escravo. A briga era antes. Muito antes da gente mar, pra vim pra cá sê escravo. A briga era antes.
271

nascer. E vai continuar depois… depois da gente. Muito antes da gente nascer. Hê, pá-rrei, Yansan
(erguendo o braço direito como se bramisse uma minha mãe. (Ergue o braço como se bramisse uma
espada) RÊ PA HEI, IANSÃ, MINHA MÃE. (Sai espada e sai correndo ao encontro de Pedrão. Os
correndo em direção às pedras. Os homens ficam homens ficam parados, impotentes, diante de uma
parados impotentes diante de uma força muito maior força muito maior que eles. Um tempo) (PENNA,
que eles. Um tempo) (PENNA, 1975b, p. 14, grifo 1980, p. 14, grifo nosso)
nosso)

A supressão do artigo na passagem Pedrão é um Xangô vivo? (T75b), para Pedrão é


Xangô vivo? (T80), mostra a completa identificação de Pedrão ao orixá que o governa, Pequena
utiliza esse argumento para justificar seu conflito com Dulce e sua destinação para amar Pedrão.
Esta trama, portanto, é uma atualização das lendas africanas, mantendo relações diretas com
seus antepassados. A saudação a Iansã, por sua vez, faz Pequena conectar-se com a força de sua
protetora, obrigando os homens a reconhecer o poder ali manifestado.
Os arquétipos constituem também um caminho que aponta soluções para os problemas
enfrentados. Veja-se a explicação dada pela personagem Mãe Rosa para o conflito vivido por
Dulce:

MÃE ROSA – Quando acontece uma filha de Yansan se apaixonar pelo homem de
outra mulher, é sempre assim: ele é de Xangô e a outra é de Oxum, que devia
sempre se casá com home de Oxossi. Homem de Xangô é homem perigoso. Sedutor.
Xangô teve três mulheres. As três brigaro. (PENNA, 1980, f.18)

No entanto, de T75b a T80, nota-se uma transformação no texto, realizada a fim de


marcar a função do arquétipo não como um determinante de personalidade, mas como um
indício que pode ser modelado, para o bem do filho de santo.

DUZINHA – E se a de Yansan for amiga da de Oxum?


DUZINHA – E se a de Iansã for amiga da Oxum? Eu Eu acho mãe que se deve respeitar, quando nada os pai
acho mãe, que se deve respeitar os homes dos outros. de filho!

MÃE ROSA – Tá certo filha. Se a moça tiver vergonha MÃE ROSA – Tá certa filha! Mas ninguém ‘tá livre de
e for uma moça direita, deve procurar sua Mãe de uma paixão errada. Num caso desse se deve procurar
Santo prá ela ver nos búzios como lavar seu coração uma casa pra jogar um Ifá e ler nos búzios o que fazer
de um pecado desses. para lavar o coração de um amor impossível.
(PENNA, 1980, f.14)
(PENNA, 1975b, f.14)

Observe-se que nas modificações efetuadas ao texto, Jurema Penna suprime o


julgamento moral feito às filhas de Iansã em tal condição, eliminando-se um traço negativo
atribuído à personagem, que, em T75b, poderia ser caracterizada como uma mulher volúvel,
desrespeitosa e infiel para com a amiga. Em T80, o discurso de Mãe Rosa apresenta-se mais
compreensivo com a situação, descontruindo o perfil vil de Pequena, ao considerar que paixões
272

erradas também podem existir. Em T75b, há a expressão “o coração deve ser lavado do pecado”,
mas, como a noção de pecado não se configura para o candomblé da mesma forma que para as
religiões cristãs, “pecado” é substituído por “amor impossível”. Estas mudanças têm como
resultado a transformação da representação da mulher negra, filha de Iansã, julgada a partir de
uma moral cristã. Em T80, a perspectiva condenatória do pecado é substituída pela
compreensão e acolhimento próprio da rede de relações sociais estabelecida nos terreiros de
candomblé.
Diante do exposto, o texto Iemanjá – rainha de Aiocá propõe a encenação do cotidiano
do povo de santo na cidade de Salvador, a partir das vivências diárias de uma comunidade de
pescadores. Para fazê-lo, Jurema Penna apropria-se da temática, demonstrando respeito aos
saberes e às tradições do candomblé. De uma versão a outra, empreende modificações
elaboradas no sentido tornar mais verossímil a representação que faz da comunidade e da sua
dimensão religiosa.
Nessa experiência cotidiana, as vivências desses sujeitos vão se construindo por meio
do vínculo estabelecido com os orixás, expressos na relação que as mulheres de pescadores
constroem com Iemanjá, na tentativa de garantir o retorno do seu marido; nos estereótipos dos
orixás que moldam a personalidade e o comportamento desses indivíduos; além do culto e das
práticas religiosas. A comunidade, no entanto, é heterogênea, havendo espaço para discordância
e questionamento, mas não para a falta de respeito ou desonra. Nesse sentido, a dramaturga
reconhece o candomblé como forma de religiosidade legítima, e não como mercadoria turística,
compondo um aspecto fundamental do referencial religioso e cultural da Bahia dos anos 1970.

5.1.3 Dilemas negros na conquista de outros espaços, em Negro amor de rendas brancas

Em Negro amor de rendas brancas (NARB), Jurema Penna apresenta Paulo, um jovem
arquiteto negro bem sucedido, criado pela família para quem sua mãe, empregada doméstica,
trabalhava. Casado com uma atriz branca e decadente, Paulo representa no palco os
enfrentamentos que acometem um homem negro que ascende socialmente e que “sai do seu
lugar”, dilemas que dizem respeito tanto à vivência em sociedade, quanto aos conflitos internos.
No início da peça, antes do embate entre o casal, o preconceito é tratado como algo
comum, natural, que se enfrenta com ironia ou com o qual já se está habituado:
273

PAULO – Puxa vida. Nunca me esqueço. Essa PAULO – Puxa vida. Nunca me esqueço. Essa
timidez me atrapalha a vida. Sabia que eu quase timidez me atrapalhava a vida. Sabia que eu quase
voltei da porta do teatro? O porteiro foi logo voltei da porta do Teatro? O porteiro foi logo
implicado com a minha cara. Não queria deixar eu implicando com a minha cara.
entrar. Já não gostei. E, com o meu projetinho JULIANA – Foi, é? Essa eu não sabia.
debaixo do braço, fui entrando… (PENNA, 1971, PAULO – Claro. Criolo que não é ator na porta de
f.13-14) um teatro, é ladrão, assaltante ou esmolé! No
máximo operário desempregado procurando vaga.
Tive de mostrar carteira, os cambáus. Não queria
deixar eu entrar, de jeito nenhum. Precisou muito
papo. Por fim, com o meu projetinho debaixo do
braço, fui entrando… (PENNA, 1972*, f. 12)

As desavenças se iniciam quando Juliana, a fim de beneficiar Paulo em uma


concorrência de projetos de arquitetura, pede ao seu ex-amante que interfira em favor dele.
Ainda que as questões afetivas sejam parte da briga, a centralidade da questão étnica é inegável
e permeia o conflito entre os dois personagens

JULIANA –Você concorda então. Concorda que há algo de muito errado entre nós
dois.
PAULO – Sempre houve Juliana. Sempre. Há sempre algo de muito errado quando
um preto se casa com uma branca.
JULIANA – (Se assusta. Era a última coisa que ela esperava ouvir… Fica sem
resposta)
PAULO – Não tem consciência disto por acaso? (PENNA, 1972*, f. 22)

Ao expor o pressuposto de que “há sempre algo de muito errado quando um preto se
casa com uma branca”, o personagem apresenta a tendência da sociedade brasileira ao
casamento endogâmico, em que a escolha matrimonial se dá por um indivíduo de mesma etnia
(MOUTINHO, 2003). Sendo negro, Paulo encontra-se muito mais sensível às questões do
preconceito étnico e a exposição desse fato, apesar de evidente para Paulo, causa espanto a
Juliana. Em uma segunda passagem do texto, o discurso amoroso é, mais uma vez, suplantado
pelo preconceito racial, quando Paulo se refere ao julgamento que a sociedade faz do
relacionamento dos dois:

JULIANA – Não precisa dizer mais nada. Criôla racista! Pensa que eu não entendi as
gozações que ela fez porque você é casado comigo?
PAULO – (Quase para se mesmo) E não foi só hoje, e não é só ela. Os brancos se
revoltam quando um negro ousa “sair do seu lugar”. Está apurando a raça é o que êles
dizem. Assim como os cavalos de corrida. Os cães de kennel club, os touros… Os
outros negros se sentem violentados, atingidos, ou traidos. Os grilhões ainda estão em
nossos pulsos, e as palavras, as atitudes, são os açoites do pelourinho. Escravidão que
não acaba nunca. Nem o amor nos liberta. (PENNA, 1972*, f. 6)

Como afirma Paulo, a importância dada aos negros ainda está muito arraigada a uma
noção de mercadoria, indivíduo desprovido de alma, logo de subjetividade ou de sentimentos.
274

Os valores do período escravocrata permanecem vivos, se não nas práticas comerciais e


governamentais, nos discursos e nos procedimentos da sociedade brasileira. “Nem o amor nos
liberta” do preconceito, principalmente porque historicamente a instituição do casamento não
se baseia apenas em afinidades e afeição entre o casal: outras questões étnicas políticas,
econômicas e financeiras sempre estiveram em jogo no mercado matrimonial (MOUTINHO,
2003).
Acerca dos casamentos inter-raciais, Moutinho (2003, p.212) esclarece que

[...] o casamento formal “inter-racial” (predominante no par homem “negro”/mulher


“branca”) não representa em si uma possibilidade de ascensão social para o “negro”,
dado que este, para competir no mercado matrimonial com os homens “brancos”,
deveria – como o “mulato bacharel” de Freyre – estar de posse de uma série de
elementos de prestígio.

A despeito de alguns fatos que indicam o casamento entre o negro e o branca como uma
possibilidade de ascensão do negro, Moutinho afirma que, sobretudo quando o homem é “mais
escuro” e a mulher “mais clara”, é preciso que o negro já possua elementos de prestígio para
que possa competir, nesse mercado, com o homem branco. Paulo, quando conhece Juliana, está
na condição de estudante de arquitetura, mas ainda que não possua o título para legitimar-se, o
prestígio social de um futuro arquiteto encontra-se nele, em potencial.
Durante a discussão, Paulo está disposto a mostrar os problemas antes subentendidos,
escolhendo, dessa forma, tratar abertamente do preconceito étnico em relação aos negros. O
espanto de Juliana, por sua vez, traduz a interdição do tema. É algo de que não se deseja falar,
assunto incômodo que deveria ter sido neutralizado a partir do estabelecimento da relação
amorosa. A escolha da dramaturga é tratar da questão às claras. Quando o discurso amoroso
tende a tornar o preconceito étnico velado, o palco torna-se espaço para discuti-lo. É o lugar em
que o casal fala de seus medos e preconceitos, lugar onde as inúmeras ocorrências de racismo
vistas e experimentadas são expostas.
Juliana segue, tentando fugir da questão étnica, valendo-se, agora, do discurso da
democracia racial, onde negar a existência do conflito é o primeiro artifício para a defesa de um
posicionamento neutro, cuja consequência é a manutenção da discriminação racial. Paulo
contra-argumenta, relembrando dos momentos em que sofreu discriminação racial na presença
de Juliana, trazendo os porteiros e recepcionistas como grandes representantes da interdição
promovida pela ideologia branca e excludente:

JULIANA – Paulo, côr não existe!!!


275

PAULO – Como não existe? E os porteiros de alguns prédios, que mesmo se vendo
vestido de branco rico, me mandam subir pelo elevador de verviço [sic]? E aquele
hotel do Rio Grande do Sul que “esqueceu” de anotar a reserva do casal Dr. Paulo
Bispo da Silva e Senhora, quando viram que Dr. Paulo era negro (PENNA, 1972*, f.
21).

Mesmo “vestido de branco rico”, ou seja, trajado com os objetos simbólicos que o
identificam como detentor de condições socioeconômicas suficientes para usufruir de serviços,
de forma equivalente aos brancos e ricos, Paulo não é poupado do racismo. Assim, Jurema
Penna sintetiza no palco inúmeras histórias de pretos que sofrem discriminação nas mesmas
portarias em que os brancos são acolhidos, desconstruindo, no palco, a ideia de que no Brasil o
preconceito tem cunho social e atinge indistintamente os pobres, independentemente de sua cor.
Tal fato era corrente e aparece também nos versos da canção “Tradição”, de Gilberto Gil (1979),
que retrata Salvador em princípios de modernização: “No tempo que preto não entrava no
Bahiano / Nem pela porta da cozinha”, numa clara alusão ao Clube Bahiano de Tênis, reduto
da “pureza branca” da elite baiana aristocrata que não admitia negros nem em posições
serviçais.
Juliana prossegue a discussão trazendo a responsabilidade para Paulo, que possuiria uma
parcela de culpa em relação ao preconceito sofrido, uma vez que não se empenhou em denunciar
o hotel em que foi discriminado.

JULIANA – Não processamos aquele hotel porque você não quis. Existe a lei…
PAULO – (Cortando) Eu sei. Eu sei. A lei Afonso Arinos… Mas, Juliana, êles sempre
se saem muito bem. Inventariam mil reservas. Lotariam o hotel por um passe de
mágica. Depois, se a Lei existe se ela se fez necessária, foi para remediar um mal. A
lei é sempre uma consequência. Um efeito e não uma causa. Um remédio e não a
doença em si (PENNA, 1972*, f. 22-23).

Na construção do diálogo, Jurema Penna cita a lei Afonso Arinos, imediatamente


descartada por Paulo dado os inúmeros subterfúgios que poderiam ser utilizados para
neutralizá-la, denotando assim a ineficácia da mesma. A lei 1390/51, denominada Lei Afonso
Arinos (UDN/MG) em homenagem ao jurista que a fez tramitar, é criada no momento em que
vários artistas negros, de nacionalidade estrangeira, estavam sendo barrados nas portarias
brasileiras, o que despertou o interesse da imprensa pelo tema, causando ampla repercussão. O
deputado Afonso Arinos se apropriou das discussões realizadas pela Convenção Nacional do
Negro e de uma minuta de lei produzida durante tal convenção. A referência a Afonso Arinos
no nome da lei promove um apagamento ao protagonismo do negro no desenvolvimento de
instrumentos legais que o defendam (NASCIMENTO, 2008).
276

Por sua vez, Brandão (2004, p.61) esclarece os efeitos mínimos da lei, encontrando ecos
na fala do personagem Paulo:

Dita lei tipificou como contravenção penal (delito de menor potencial ofensivo) uma
das formas de discriminação racial, qual seja, a recusa de entidades públicas ou
privadas em atender pessoas em razão da cor, como por exemplo, recuar hospedagem
em hotéis, proibir a entrada em estabelecimentos públicos, obstar a inscrição de alunos
em estabelecimento de ensino. Além de ter sua aplicação restrita a hipóteses prevista
na lei, a jurisprudência firmou-se no sentido de que caberia a vítima provar “o especial
modo de agir”. Estes inconvenientes tornarão a Lei Afonso Arinos praticamente
ineficaz, ocorrendo pouquíssimas condenações pela prática dessa contravenção.

No excerto seguinte, o discurso que permeia as réplicas da personagem Juliana se


mantém na esfera de responsabilização do negro. Dessa vez, o preconceito étnico é visto como
um processo psicológico que o próprio negro deve superar, sobretudo através da autoaceitação
e da ascensão socioeconômica:

JULIANA – E eu que pensava que [JULIANA] – E eu que pensava que você estivesse acima de
você estivesse acima de tudo isso. tudo isso. Que esta espécie de coisas não existissem pra você.
Que esta espécie de coisa não te PAULO – Me julgava um alienado aos problemas de negro
atingissem. neste país tão somente porque eu consegui uma posição social
PAULO – Sabe, Juliana, quando eu e econômica superior à grande maioria dos seus irmãos de côr.
era criança [...] Por que eu fui além dos lugares permitidos?
(PENNA, 1971, f. 24) JULIANA – Que é isso de lugares permitidos?
PAULO – Futebol, Samba e Carnaval, Pelé, Milton
Nascimento, Portela e Mangueira. “Negro é sensacional é
dono da festa do Povo é dono do Carnaval”. Na quarta feira
volta à sua marmita. Pensou que eu era um alienado Juliana?
JULIANA – Não… não é assim. Nunca me detive para
pensar. Não te vejo como um negro, te vejo apenas como um
homem. UM ser humano como outro qualquer.
PAULO – Sabe, Juliana, quando eu era criança, muito […]
(PENNA, 1972*, f. 22)

A tensão é direcionada para um enfrentamento entre Paulo e Juliana. Paulo expõe seu
posicionamento acerca da questão do negro no país, defendendo que a atuação desse grupo
social está restrita aos “lugares permitidos”. A dramaturga traz para a cena outros elementos do
mito da democracia racial citados por Paulo, que terminam por interditar as possibilidades de
ação do afrodescendente na sociedade brasileira. Restrito, como figura de destaque, às áreas da
música e do futebol, o negro permanece coadjuvante em outros espaços, vinculados, por
exemplo à produção de saberes formais. O personagem Paulo, então, constrói um sentimento
de pertença e de identidade com esta população, de modo que a ascensão social não apaga a sua
identidade étnica.
277

A cena segue com a insistência de Juliana na neutralização do sentimento étnico do


parceiro, como se este não fizesse parte da experiência subjetiva de Paulo e mobilizasse a sua
vivência e suas relações sociais.

JULIANA – Não… não é assim. Nunca me detive para pensar. Não te vejo como um
negro, te vejo apenas como um homem. UM ser humano como outro qualquer. [...]
JULIANA – Você nunca me falou dessas coisas, como é que eu vou saber? (PENNA,
1972*, f. 23)

A personagem Juliana traz como justificativa para a invisibilização da cor de Paulo o


fato de nunca terem sido mencionadas tais questões, denotando tanto a presença da interdição
temática, quanto o próprio desinteresse de quem não quer perceber o óbvio.
As questões étnicas de Paulo são ancoradas nas narrativas de sua infância. A dramaturga
se utiliza das memórias do personagem como forma de explicar a crise em relação à sua cor.
Na elaboração da narrativa, Jurema Penna utiliza-se de artifício bastante comum até os anos
1990, quando os patrões patrocinavam os estudos dos filhos da empregada. Diversas memórias
compartilhadas pelos afrodescendentes aparecem no texto, tais como a atribuição da “alcunha
de preto de alma branca” e a discriminação sofrida nas escolas da elite.

PAULO – Êles? Nunca!!! Mas… começaram a sofrer por minha causa. Os convites
para as festinhas em certas casas amigas, vinham sempre com uma recomendação
muito velada e muito sutil, pra não me levarem. Comecei a observar que nos fins de
semana estavamos sempre os três juntos; mas sós, e, só no colégio, na segunda-feira
é que sabiamos como foi a tal da festinha. Forcei Pedro a me explicar o que estava
acontecendo. Eu tinha naquela época uns 15 prá 16 anos. Ele relutou, terminou
explodindo, magoado, revoltado, ferido. [...]
PAULO – Não sei qual dos dois sofreu mais naquela noite. Eramos muito garotos.
Mas sentíamos pezar sobre nós tôda a maldade, toda a injustiça do mundo. Deixei
passar uns dois anos. Quando completei 18 anos os convenci que queria estudar no
Rio. Inventei mil desculpas.
(PENNA, 1972*, f. 25)

Apesar de viver em harmonia com os irmãos, Paulo sente-se impedido de compartilhar


com eles os mesmos espaços da elite branca soteropolitana e prefere exilar-se no Rio de Janeiro
para dar outros rumos a sua vida.

JULIANA ― E se eu tivesse ido, o que acontecia (ele a esbofeteia. Ela cai) Negro
sujo! Quem é você para bater em mim, seu porco mundo? (Um curto silêncio)
PAULO ― (Vencido) Racista… racista…Meu Deus ela é racista… no fundo, no
fundo eu sempre soube… Cinco anos para se revelar… (Agressivo) Mentirosa!
Farsante! Hipócrita! (Para si mesmo) Me casei com uma racista… foi preciso que eu
batesse nela para ela se revelar… (Inquisitorial) E o nosso filho, hein Juliana? Você é
realmente estéril, ou toma pílulas escondido com medo de ter um filho mulato?
(PENNA, 1972*, f. 33).
278

Apesar da ênfase à questão do homem negro, Jurema Penna também representa na peça
os dilemas que assomam a mulher negra que ascende socialmente, trazendo a personagem
Dayse, arquiteta da equipe de Paulo, que luta para provar o seu valor:

JULIANA – Tá. Falou (Irônica) Daise. A bela Dayse. Arquiteta tanto quanto você, o
Lula, o Miltinho e o Eduardo; mas assume também a secretária; qualquer dia desses
vocês terão que despedir a Lúcia por inatividade, e agora também, office-boy. Pobre
Zequinha, já, já perde o emprego.
PAULO ― Não é nada disso Juliana. O Studio “S” tem para Dayse uma importância
maior. Sabe Juliana, se é difícil a luta de uma mulher em qualquer carreira liberal,
quanto mais quando ela é arquiteta e negra. É a ela mesma que ela precisa provar que
é bacana. Entendeu? (PENNA, 1972*, f. 15)

Juliana constrói, discursivamente, a mulher negra como serviçal, aquela que precisa
assumir para si tarefas menos qualificadas para provar a sua eficiência ou para satisfazer
expectativas sociais, em decorrência de questões de gênero e etnia. Paulo retruca com o
argumento da necessidade de autoafirmação dessa mulher, evidenciando as dificuldades que
elas enfrentam para se estabelecer em uma carreira, na qual seu gênero e sua cor são estigmas
de inferioridade. Juliana, magoada pela juventude e beleza de Dayse, busca sempre
desqualificá-la, primeiro, como visto antes, em relação a posição serviçal, agora, em relação a
sua sexualidade:

JULIANA ― Não divague, Paulo. Dayse é jovem e linda, e, como toda negra, muito
sexy. Deve ser ótima de cama, não?
PAULO ― Não Juliana, nem tanto.
JULIANA ― (Absurdada, não acreditando muito no que ouviu) O que foi mesmo que
você disse?
PAULO – Exatamente o que você ouviu. (Tom) Mais um preconceito. Toda negra é
mulher fácil e boa de cama. Sem essa Juliana. Você não é negra… mas… quantos
homens você já tinha conhecido na idade da Dayse? Ela tem 23 anos. Quantos Juliana?
(PENNA, 1972*, f. 31)

Para elaborar seu argumento, Paulo estabelece um espelhamento entre o comportamento


sexual de Juliana e Dayse a fim de desconstruir a perspectiva de Juliana, a partir das ações da
própria personagem. O discurso construído para o personagem negro defende, declaradamente,
um posicionamento em torno das questões étnicas:

PAULO ― Não estou pretendendo acusar ninguém. Estou apenas tentando destruir
mais um preconceito com a minha raça. (Pequena pausa - Muito frio, cortante quase)
Fui para a cama com a Dayse, sim. (PENNA, 1972*, f. 31)
279

A construção do espetáculo se vale ainda do uso de expressões ofensivas para


caracterizar o negro. Juliana se refere a Dayse como “criola racista” (1972, f. 33; 1971, f.32) e
“criôla puta” (1972, f.31; 1971, f.32). E a Paulo como “negro sujo” (1972, f. 33), ausente em
T71. Em T72*, a característica é evocada pelo próprio Paulo:

PAULO – (Puxando-a para si muito suavemente) Ninguém nega as suas origens. Eu


sou mesmo um negro muito sujo. (PENNA, 1972, f.10)

O uso dos termos ofensivos concorre para evidenciar a gravidade dos problemas
tratados. O desvelamento desse problema torna o palco um espaço para mostrar aquilo que
passa invisível aos olhos do espectador no seu cotidiano.
Ao tomar as questões do negro na Bahia, Jurema Penna não se restringe apenas a tratar
desses temas em termos históricos e culturais, mas direciona o seu olhar para o momento
contemporâneo, visando descortinar, no cotidiano do negro, as dificuldades e sofrimentos,
decorrentes do preconceito. Nesse sentido, a construção do argumento do espetáculo
encaminha-se para problematizar o preconceito abertamente, num momento histórico em que a
noção de democracia racial é preponderante no Brasil e amplamente veiculada pelas mídias e
pelo discurso do governo, tendo como consequência a invisibilização desse assunto.
As questões expostas no discurso de Paulo invalidam um argumento bastante
disseminado nessa sociedade, segundo o qual a ascensão social da população negra resulta no
apagamento das diferenças étnicas. A vivência de Paulo, exposta na peça em questão, nega essa
alegação, uma vez que a noção de pertencimento a uma etnia perpassa a experiência subjetiva
dos indivíduos, constituindo a sua identidade, não sendo possível apagá-la.
Na Bahia dos anos 1970, destacamos a importância fundamental do movimento negro e
dos blocos afro de Salvador, cuja mobilização visa realizar ações de apoio a uma população
marginalizada, promovendo uma valorização social, cultural e estética (PINHO, 2003). A
clareza com que a questão é posta nos diálogos também denota uma significativa elaboração do
tema, indicando uma apropriação que Jurema Penna faz das discussões levantadas pelo
Movimento Negro na Bahia.
Ampliando a noção de cultura baiana presente na obra de Jurema Penna, abordaremos,
na seção seguinte, a apropriação que a dramaturga faz das referências culturais sertanejas e
litorâneas, integrando-as na sua representação de Bahia.
280

5.2 CONFLUÊNCIAS ENTRE SERTÃO E LITORAL, EM O BONEQUEIRO VITALINO

Destacamos como segunda linha de força para a leitura dos textos de Jurema Penna as
confluências entre a cultura sertaneja e a cultura litorânea. De modo geral, identificamos
algumas construções discursivas que põem em oposição os dois espaços geográficos,
evidenciando a própria diferença dos biomas e da experiência dos sujeitos que vivem em cada
um desses contextos: de um lado a imensidão do mar e a violência de suas marés; de outro, a
imensidão do sertão e as agruras da terra árida. A dicotomia entre o mar e o sertão é um tema
recorrente nas artes, destacando-se o cinema de Glauber Rocha e as representações do mar e do
sertão ao longo de sua filmografia. Por sua vez, o desejo de o sertão virar mar consolidou-se na
voz profética de Antônio Conselheiro, a quem a célebre frase “o sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão” é atribuída. Profecia ou realidade, o fato é que as Ciências da Terra vêm
elencando evidências indicativas de um passado remoto, em que o sertão já foi mar.
Essas identidades dicotomizadas, no entanto, se esboroam ao percebê-las a partir da
vivência dos indivíduos e nos processos de identificação que são estabelecidos entre litorâneos
e sertanejos. Um primeiro fator para isto é a migração, quando muitos nativos de regiões
castigadas pela seca são impelidos a deixarem suas terras em busca de uma condição mais
favorável para a sobrevivência. Estes levam consigo sua cultura e costumes, que, apesar de
serem muitas vezes subvalorizados pelo referencial do litoral, persistem, são disseminados,
constroem saberes e costumes em novos territórios.
Essas populações de migrantes do sertão costumam ocupar os espaços periféricos dos
grandes centros urbanos. A convivência entre os dois grupos culturais dá origem a uma
identificação entre a população marginalizada ali residente e os imigrantes, aproximados pelas
agruras enfrentadas na vida, pela pobreza que os cerca, pelo descaso das autoridades públicas
para com esses segmentos sociais. Não se pode esquecer que há também um movimento de
retorno ao interior, sobretudo nas festividades de junho, em que uma migração sazonal se
estabelece em sentido contrário e é motivada por fatores distintos. A cidade, assim, vai ao
encontro do interior, levando a sua cultura e suas práticas.
Na confluência entre litoral e sertão, uma cultura é, também, produzida e está presente
nos modos de festejar, na linguagem e na religiosidade. Como leitora das manifestações
culturais baianas, traduzindo-as para a realidade soteropolitana, Jurema Penna integra essas
diferentes matrizes no palco. Não se trata, no entanto, de homogeneização de ambas culturas,
mas sim do estabelecimento de elos em que a contradição não é indesejável ou danosa, mas é
parte desse processo.
281

Conforme esclarece Stuart Hall (2011, p.13),

[d]entro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de


tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao
invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao
menos temporariamente.

É nessa dinâmica identitária que incluímos as convergências entre interior e capital nas
leituras que estabelecemos da dramaturgia de Jurema Penna, destacando três aspectos: em
primeiro lugar, trataremos o ambiente da feira livre como encontro de culturas, onde
entendemos a representação da feira como espaço para a subsistência, em que se encaminham
as mercadorias de diversos lugares para serem vendidas, mas também como lugar de
socialização e de integração de culturas.
Este ambiente é cenário para as ações desenvolvidas na peça O bonequeiro Vitalino, na
qual um grupo de feirantes se organiza para construir um presépio na noite de Natal. Acerca
dessa referência cultural na construção da peça, Jurema Penna afirma:

O nordeste está em mim e reclama um Natal puro, ingênuo, simples, valente, místico
e sofrido. E tudo isso está nos bonecos de Vitalino, nos cantadores da feira. A unidade
é perfeita. [...] Sentei na máquina e a peça está aí, com uma feira de camelôs na Bahia
no início da peça, feira em vésperas de Natal, os nossos já esquecidos e saudosos
pregões, para depois aparecer o “cantador” cheio de magia contagiante (TEATRO,
1977).

Nesse sentido, buscamos ler este texto a partir de três aspectos, que destacamos, a saber:
a feira livre como espaço de cultura; os bonecos do Mestre Vitalino, como linguagem para a
composição da identidade nordestina; e, por fim, destacamos as manifestações do catolicismo
popular, no qual a mística sertaneja se infunde sobre as celebrações e rituais da Igreja Católica
e se dissemina como prática religiosa.

5.2.1 O espaço da feira livre como encontro de culturas

A feira livre aparece representada em diversos momentos na obra de Jurema Penna e


constitui-se como ambiente de encontro, onde as relações comerciais obedecem a uma lógica
distinta do comércio formal. Nas feiras, diversas questões permeiam a compra e a venda de
produtos, tais com o estabelecimento de vínculos afetivos entre vendedor e freguês, no qual o
282

primeiro se esforça por conquistar o segundo para manter sua freguesia. Os feirantes lançam
mão de uma série de estratégias de persuasão para a negociação com os fregueses, que vão
desde descontos, brindes, à construção de uma amizade com o comprador. Esta diferença em
comparação ao mercado formal estabelece-se inclusive no binômio feirante/freguês, em
oposição a vendedor/consumidor, dando a perceber a particularidade das relações estabelecidas.
Um complexo social se instaura na feira. Mais do que espaço de compra e venda de
produtos, trata-se de um lugar onde a cidade se encontra com o interior. Salvador e seus portos
possuem historicamente o papel central na dinâmica comercial da Bahia, atuando como lugar
privilegiado de comercialização de alimentos e artesanatos para uma elite urbana em ascensão,
mas que ainda possuía uma larga identificação com as prendas vindas do Recôncavo Baiano. A
Baía de Todos os Santos era, então, a principal rota pela qual os míticos saveiros aportavam
para abastecer a cidade com hortifrutigranjeiros e outras benesses produzidas no interior da
Bahia, como as carnes salgadas, as farinhas e as cerâmicas.
O encontro dos vendedores na feira é o ponto de partida para O bonequeiro Vitalino,
conforme descrição do cenário:

Deve ser criado um ambiente de pequena feira de camelôs em véspera de Natal. O


espetáculo se inicia com os atores chegando ao espaço cênico (rua, praça, adro ou
interior de igreja, palco, etc.), trazendo seus apetrechos, suas mercadorias, cantando
os seus pregões. Marcar entre as mercadorias muita folha de pitanga, capins pintados,
ventoninhas, flores de Tia Cota, algodão doce, brinquedos. (PENNA, 1978, p.
[cenário])

Essa diversidade de gentes, costumes e produtos, descrita na composição do cenário,


conflui para o étimo da palavra “feira”, remetendo à forma latina “feria”, que, entre os romanos,
aconteciam nos feriados ou dias de festa (BLUTEAU, 1728). Durante a Idade Média, nos dias
santos e festivos, agricultores reuniam-se para comercializar o excedente da produção. Tal
comercialização era acompanhada de festividades convertendo-se em um acontecimento na
“vida cultural” de certa comunidade. Nesse sentido, Guimarães (2010) entende a feira a partir
de seu elemento celebrativo,

o caráter comercial da feira livre mascara sua importância na manutenção e promoção


da cultura popular. Ainda que imerso no discreto dia a dia desse evento, as noções de
identidade, comunidade, hábitos, relações e comunicação aparecem fortemente
durante toda a sua duração e possibilitam aos indivíduos em situação de
subalternidade um sentimento de humanização. (GUIMARÃES, 2010, p.7)

Assinalamos o sentido de feira como espaço de construção de subjetividades e


identidades, pois é nela que os feirantes irão expor o seu conhecimento de mundo, compartilhar
283

vivências e experiências. Além de assumir um protagonismo nesses processos, uma vez que é
durante a feira que se pode ouvir e ser ouvido, onde se tem legitimidade para falar e autoridade
sobre os fregueses, sobretudo nas indicações de usos e consumos dos alimentos
comercializados.
Em entrevista a Guido Guerra, Jurema Penna (2005) relaciona a temática da feira livre
com as vivências e memórias de sua infância em Itajuípe, região Sul da Bahia. Nas palavras da
dramaturga:

Na verdade, o que me fascinava, acima das querelas regionais, era a feira com seus
cantadores de desafios, o cego que fazia seus rimances, acompanhando-se ao som da
sanfona, para pedir esmolas, o cordelista que lia seus versos, o artesão que mercava
suas cerâmicas, seu Lampião, seu Conselheiro, seu Padre Cícero. Eu não entendia
direito aquilo, achava uma coisa misteriosa, às vezes triste, mas que me fascinava.
(PENNA, 2005, p.298)

A feira era um grande espaço de interlocução entre as diversas culturas nordestinas,


desde o catador de caranguejo e sua vida no beira-mangue, as marisqueiras, o pescador de linha
de fundo, os pequenos agricultores e os seus frutos, os criadores de gado que levam os animais
vivos para a feira, curandeiros, artesãos. Nesse mosaico cultural, os cantadores, cordelistas,
sanfoneiros cegos, se encarregam de harmonizar o ruído das conversações, mercando seus
versos e suas melodias, cantando histórias e contando lendas e “causos”, disseminando as
narrativas orais, aprendidas aqui e acolá, integrando a cultura do litoral e do sertão e suas
respectivas populações que, apesar de viverem em contextos geográficos e climáticos diversos,
compartilham das mesmas lutas para sobreviver e garantir a sua descendência.
É nesse sentido que a feira se abre como espaço privilegiado da linguagem e do diálogo,
como expressa o ditado popular “ganhar a vida no grito”, oriundo da prática dos mercadores.
Para atrair a freguesia, os vendedores ambulantes valiam-se das mais diversas vocalizações,
buscando conquistar o freguês, pela voz forte, pela oferta mais interessante, ou pelo pregão
mais divertido. Conforme Câmara Cascudo (1999, verbete, p. 771),

[o]s pregões de rua são vozes ou pequenas melodias com que os vendedores
ambulantes anunciam a sua mercadoria. São conhecidos no mundo inteiro e em todos
os tempos. Podemos dividi-los em duas categorias: os individuais, em que o vendedor
escolhe uma maneira de apregoar, valendo-se muitas vezes de melodias conhecidas,
entre nós, de emboladas, modinhas, maxixes, sambas e até mesmo de árias
vulgarizadas; e os genéricos que são os utilizados por todos os vendedores do mesmo
artigo, como vassoureiros e compradores de garrafas vazias no Rio de Janeiro.

Cascudo destaca a apropriação que os vendedores ambulantes fazem de elementos da


música popular brasileira para a composição dos seus pregões. Sergl (2007), por sua vez, indica
284

que essa apropriação acontecia em via de mão dupla, uma vez que os pregões também
interferiram em composições da música popular brasileira em meados do século XX, quando
importantes cantores, como Inezita Barroso, incorporaram os versos dos pregões cantados aos
seus discos.
A criatividade e a arte da improvisação do povo levam a um investimento nesses versos
que tem como resultado a configuração destes como literatura popular. Moraes (2008, p.3)
considera outros aspectos na definição dos pregões:

Dentre variados exemplos que ilustram as diversas práticas tradicionais da oralidade,


os pregões se destacam como cantos de trabalho dimensionados por meio da entoação
melódica e da marcação rítmica de palavras-chave ou fragmentos sintéticos destas,
significando, ao mesmo tempo, forma de produção simbólica e ação funcional do
trabalho. E é dentre as diversas formas de manifestação ligadas ao mundo do trabalho
que a prática de apregoar publicamente se destaca, desde os mais idos tempos, como
um dos meios mais expressivos e eficazes de reclamo, gritado ou cantado, divulgando
todo tipo de produto. Forma específica e qualificada de proclamar, de anunciar a viva-
voz, de dizer ao público entoando, os pregões se fazem representar, ainda hoje, como
uma das mais expressivas formas de criatividade humana ligadas a aspectos
funcionais.

Dessa forma, o pregão possui dupla função, sendo um elemento lúdico que colore o
cotidiano da cidade, divertindo os que o escutam, ao mesmo tempo em que traz a função laboral
de angariar fregueses. Sendo produto de uma literatura oral, há poucos registros desses pregões.
Moraes (2008) chama a atenção para o uso de elementos melódicos e processos sonoros e
semânticos que se constituem como apoio para a fixação das rimas na memória. Afirma ainda
que, dos poucos registros realizados desses pregões, destacam-se os memorialistas e cronistas
da cidade, categoria, na qual podemos incluir as representações sobre a Bahia na obra de Jurema
Penna.
Os pregões dos vendedores ambulantes, como manifestação da literatura oral, trazem
para os textos em estudo outro aspecto da cultura popular soteropolitana e nordestina: a
construção de versos, aliadas a uma atividade comercial, para além de servir como uma
estratégia de atração de clientes, revela a criatividade e a inventividade desses trabalhadores da
economia informal que transformam o seu labor em arte. T91 registra uma representação da
oralidade desses pregões, como se pode mostrar nos excertos selecionados (cf. figura 41):
285

Figura 41 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino

Fonte: PENNA, 1977, f.2

Fonte: PENNA, 1991, f.1

Ao analisarmos os dois testemunhos, notamos dois momentos em que se fazem


modificações textuais: o primeiro ocorre de T77 a T91; o segundo acontece em T91, com as
intervenções manuscritas. Exemplifica o primeiro tipo, a substituição do ponto pela exclamação
em “Flores! Flores! Flores de Tia Cota.” (T77, L.3) e “Flores! Flores de Tia Cota!” (T91, L.3).
Esta mudança pode ser lida como uma tentativa de conferir mais ênfase para o trecho em que a
personagem está mercando seus produtos. Por sua vez, a substituição de exclamação por dois
pontos em “Compra as flores frequeza![sic]” (T77, L3) e “Compra as flores freguesa:” (T91,
L.3) marca uma mudança na inflexão da voz do ator, além de indicar uma relação entre as duas
orações. Tratam-se de intervenções, que podem ser atribuídas à dramaturga e dão conta da
reelaboração do texto.
Analisando os movimentos dentro de T91, observamos nas intervenções manuscritas às
margens um interessante testemunho de como se deu a interpretação da réplica pelo ator.
Registram-se palavras com o prolongamento da vogal em “Flôôores Floores de Cota” (T91, L3)
e “Muundo” (T91, L.5), além do uso de colchetes em “Jesus!” (T91, L4) e “Girassol” (T91,
L5), que possivelmente sinaliza as pausas. Há também outros indícios da cena: à margem
esquerda da linha 4, lê-se “mercar”, a lápis, e logo abaixo à tinta azul, lê-se a marcação de
espaço “Junto de Dona”. Ainda em T91, há nas linhas 3 a 5 supressões das marcas de plural,
como em “As maiores rosas do mundo!”, o que demonstra a tentativa de registrar, no plano da
escrita, a fala de um personagem oriundo da classe menos escolarizada, bem como a forma
como a réplica foi oralizada pelo ator.
286

Na figura 42, trazemos mais um testemunho da oralidade dos pregões. Na passagem,


Dona Maria não consegue compreender o que diz o pregão de Zazinho e questiona Quico, o
qual lhe responde que este merca amendoim:

Figura 42 – Intervenções do ator no texto de O bonequeiro Vitalino

Fonte: PENNA, 1991, f.2

O registro “Du… in… Torrá! Torrá! Torrá di guber” representa, no texto escrito, as
formas que o pregão assume na oralidade. Em função do objetivo de fazer-se ouvir a grandes
distâncias, o pregão deve ser vocalizado em tom alto, o que pode incorrer em distorções na
articulação das palavras que compõem seus versos. Esta distorção, porém, não implica
dificuldades de comunicação entre o mercador e seu público alvo, uma vez que Quico entende
perfeitamente o verso, explicando-o com bastante precisão a Dona Maria. Por sua vez, com
uma sequência de barras manuscritas a lápis, o ator registra a entonação e inflexão que sua voz
assume, suplementando a rubrica “bem explicativo”.
Os pregões, ditos no palco, também promovem uma identificação com os espectadores
ao ver elementos do seu cotidiano ali citados, como expressa José Maria da Costa Vargens no
prólogo d’ O bonequeiro Vitalino:

Pois bem, Jurema Penna, transpondo "pregões" baianos (quem não se lembra da
"laranja do Cabula, uma verde outra madura"? de um passado não tão remoto?), usos
e costumes tão de nossa tradicional Bahia (a folha de pitangueira), sabe, com maestria,
entrosá-los à arte nordestina e fundi-los, todos, na grande arte dramática, com o toque
de magia e mística que dá o "encantamento" de sua peça. (VARGENS, 1978, [p.1])

O pregão da laranja faz referência ao bairro do Cabula, em Salvador, Bahia, que até
meados do século XX era uma região em que se produzia uma variedade de laranja denominada
laranja Bahia, conhecida também como laranja de umbigo, caracterizada pela coloração em
287

intensa e sabor adocicado. O pregão de David caracteriza, com certa zombaria, o produto
mercado:

DAVID – (Quase em cena) Olha a laranja do Cabula


uma verde outra madura
quem não pode não engula.
Olha a laranja
Lanja, lima, e limão...
Tan ... gerina!!... (PENNA, 1978, p.[2])

Atualmente, o bairro do Cabula encontra-se bastante urbanizado, eminentemente


residencial, e apesar de se conservarem algumas chácaras e áreas de mata atlântica, o seu
potencial de produtor de hortifrúti foi bastante diminuído, restando hoje pequenas propriedades,
que se dedicam ao cultivo. O registro da literatura oral, dessa forma, constitui-se como
testemunho de uma Bahia de tempos não tão remotos, recortando um momento da história de
Salvador, contado pelas suas classes populares e caracterizado pela sua atividade comercial. Se
no ano de 1978, estes pregões constituíam um passado não tão remoto, nos dias de hoje eles
assumem formas diferenciadas, incorporando elementos de tecnologia de uma cultura mais
globalizada.
Como estratégia para atrair a freguesia, os pregões faziam referência à procedência
externa de sua mercadoria, o que nem sempre correspondia à verdade, conforme acontece no
Pregão de Seu José:

O primeiro a chegar é "seu" José que inicia a arrumação de sua barraca, onde vende
os seus bonecos "vindos diretamente de São Paulo" mas, que na verdade são bonecos
artesanais nordestinos.
SEU JOSÉ – Bonecas! Bonecas e brinquedos! Diretamente das fábricas de São Paulo
pras crianças da Bahia. 3 por 20. É barato freguesa. É barato. (PENNA, 1991, f.1)

A estratégia utilizada por Seu José indica que uma mercadoria proveniente de São Paulo
receberia mais atenção dos seus fregueses do que as produzidas nas fábricas nordestinas, o que
dá a entender que as de São Paulo possuiriam uma qualidade superior. Além disso, no pregão
de Judite, que citamos em sequência, percebemos um discurso que desvaloriza o comércio
popular, das feiras, em relação ao comércio das grandes casas comerciais, onde, já nesse tempo,
pagava-se o status da loja.

JUDITE – (Vem quase ao mesmo tempo que David. Enquanto ele merca ela arruma
seu taboleiro, com fazendas, rendas, colchas de retalho, roupas prontas, etc e merca)
Beleza. Beleza do Ceará - Tudo feito à mão. Riqueza, fregueza. Baratinho. Não paga
o luxo da casa. Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques. Não tem
288

problema. Olha a toalha de mesa pra sua ceia do Natal. Quem vai querer? (PENNA,
1978, p.[2])

No trecho “Compre aqui e pode dizer que comprou nas butiques”, notamos que a
estratégia argumentativa utilizada por Judite indica a semelhança entre os produtos das feiras e
os do comércio formal, não sendo possível diferenciá-los. A feira, apesar de mais associada ao
consumo das classes populares, é também frequentada por pessoas de maior poder aquisitivo,
mas que estabelecem com ela uma relação distinta, apropriando-se daquele lugar apenas como
espaço para compras, sem vivenciar os diversos elementos culturais ali presentes.
Vivendo cotidianamente com o dinheiro, em seu real poder de compra, os feirantes são
um grupo social bastante sensível à circulação da moeda na sociedade. Ademais, seu
pertencimento às classes populares, submetidas a uma pressão inflacionária, proporciona-lhes
uma percepção acerca do dinheiro, vinculada às questões de classe, como se observa no excerto
abaixo:

GASPAR – Ôi, seu Jose, tudo bem? GASPAR – Ôi, seu Jose, tudo bem?
SEU JOSÉ – Vivendo. Que negócio é esse de JOSE – Vivendo. Que negócio é esse de tostão menino?
tostão menino? Isso é do tempo que se amarrava Isso é do tempo que se amarrava cachorro com linguiça.
cachorro com linguiça. Muda essa cantiga. Muda essa cantiga.
GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, GASPAR – Mas minha mãe me ensinou assim, que
que minha avó ensinou a ela. minha avó ensinou a ela.
SEU JOSÉ – Mas do tempo da sua avó pra cá, JOSE – Mas do tempo da sua avó prá cá, muita coisa
muita coisa mudou. Muita coisa aconteceu nesse mudou. Muita coisa aconteceu neste mundão de meu
mundão de meu Deus. Só o que o dinheiro Deus.
mudou de nome... vou te contar! Olhe meu MARIA – Só que o dinheiro mudou de nome... vou te
bisavô foi do tempo da pataca. Depois teve o contar. Olhe, meu bisavô foi do tempo da pataca.
real. Mais de um real se dizia réis. Quando ele JOSE – Depois teve o real, mais de um real se dizia réis.
queria dizer que uma coisa não valia nada ele MARIA – Quando se queria dizer que uma coisa não
falava assim: "Não vale nem dez réis de mel valia nada, meu avó falava assim: "Não vale nem dez
coado". Duzentos réis era dinheiro... Teve réis de mel coado".
cruzado. Teve "conto de réis". Um conto de réis JOSÉ – Antes de todos teve cruzado
era dinheiro pra tapá casa. Agora, tem cruzeiro. MARIA – Teve "conto de reis". Um conto de reis era
(PENNA, 1978, p.[1], grifo nosso) dinheiro prá tapá casa.
JOSÉ – Teve cruzeiro, teve cruzado de novo, teve
cruzado novo e teve cruzado sequestrado, aí, voltou o
cruzeiro....
(PENNA, 1991, f.1-2, grifo nosso)

Na cena, Seu José, Maria e Gaspar discutem acerca das moedas no Brasil. Do contraste
entre as duas versões, T78 e T91, observamos uma ampliação do texto em T91, que tematiza a
situação econômica do país, pós-ditadura militar, a partir dos sucessivos sistemas monetários.
Em T91, o “cruzeiro sequestrado” faz referência ao Plano Collor I, que entrou em vigor em
1990, cuja medida mais lembrada é o bloqueio bancários na poupança cujos investimentos
fossem maiores que NCz$ 50 mil. A desvalorização da moeda é também fator de atualização
289

do pregão cantado por Quico, que em 1978 vendia seus pirulitos por um cruzeiro, passou a
cobrar cem cruzeiros pelos mesmos.

SEU JOSÉ – Então canta assim: (Cantam os dois) JOSÉ – Então canta assim. (Cantam os dois)
Olha o pirulito Olha o pirulito
enrolado no papel Enrolado no papel
enfiado no palito Enfiado no palito
mamãe eu choro papai eu choro
papai eu grito mamãe eu grito
me dá um cruzeiro me dá cem cruzeiro
pra comprar pirulito. prá compra pirulito.
(PENNA, 1978, p.[2]) (PENNA, 1991, f.2)

Jurema Penna também se apropria da linguagem da literatura oral para a composição do


espetáculo. A linguagem de cordel é trazida para à cena, materializada na figura do cantador,
que, por meio da sua poesia, promove o despertar mágico dos bonecos.

(À medida que o cantador vai citando os atores vão tomando formas estáticas, isto é,
assumindo os bonecos. Assim ficam inclusive o cantador depois de assumir o
cangaceiro durante o toque dos sinos, da primeira chamada para missa do galo. Depois
deste toque eles vão se animando aos poucos. Essa mutação deve ter uma atmosfera
de magia. Mesmo depois de "animados" deverão sempre conservar alguma coisa de
bonecos como os mamulengos). (PENNA, 1978, p.[3])

A partir desse ponto, os diálogos são sempre feitos em versos do cordel e os personagens
terão, também, na expressão corporal, a linguagem do boneco mamulengo. O cantador, assim,
dissemina com seu canto uma linguagem que se torna comum a todos os presentes na cena. Os
versos do cordel convertem-se em eloquente elemento cênico que desperta o interesse da plateia
pelo aspecto inusitado e criativo de suas rimas. Vale pontuar que o encontro entre literatura de
cordel e teatro foi explorado, sobretudo pelos movimentos realizados por João Augusto, no
Teatro Vila Velha, que buscavam no cordel uma linguagem mais próxima do referencial
cultural nordestino. Além disso, há de se considerar que os festejos natalinos, como também os
autos de Natal ou as encenações da Lapinha, costumavam adotar uma linguagem versejada,
configurando, inclusive, uma estratégia mnemônica.
A representação do mercado informal de Salvador traz também um personagem muito
comum nesse contexto, que são as crianças que trabalham vendendo doces e outras
mercadorias. O trabalho nas feiras ou o trabalho de ambulante configuram uma exposição a
riscos significativos para o desenvolvimento infantil, que podem estar atrelados à própria
circulação em um ambiente urbano e aos seus perigos eminentes. Somem-se a esses outros
fatores ambientais, como a exposição a vírus, bactérias, bem como às intempéries, aos efeitos
290

da fadiga, ou ainda a riscos sociais e psicológicos. Por outro lado, permite à criança transitar
pela cidade, estabelecer relações sociais com desconhecidos, além de configurar uma liberdade
de circulação e de vivências, de que muitas crianças são privadas por viverem em um contexto
familiar opressor e violento.
Portugal (2007) elabora uma breve história do trabalho infantil do qual destacamos o
período da ditadura militar, em que se percebe uma tendência a sua aceitação em virtude da
quantidade de meninos deambulando pelas cidades, bem como a situação de extrema pobreza
em que suas famílias se encontravam. Como política pública, o governo instituiu a Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que, na prática, assume o caráter autoritário,
próprio da ditadura militar, centralizando suas ações na retirada de menores da rua em favor da
segurança nacional. O decreto n.º 66.280, de 27 de fevereiro de 1970, por sua vez, dispõe sobre
o trabalho de crianças na faixa de 12 a 14 anos, que poderiam se ocupar de atividades leves, o
que exclui os “ramos de indústria e de transportes terrestres e marítimos”, como princípio para
o desenvolvimento desses trabalhos, e estabelece como “condição essencial de que os trabalhos
não sejam nocivos à saúde e ao desenvolvimento normal do menor” (PORTUGAL, 2007, p.43).
A ressalva expressa na letra da lei, no entanto, não diminui a abertura para o trabalho
infantil, trazendo o precedente para que houvesse um influxo de mão de obra barata no mercado
de trabalho. Este fato ocorre, sobretudo, a partir dos anos 1974, em que um forte arrocho salarial
foi instaurado, ampliando o abismo entre pobres e ricos e as camadas populares foram reduzidas
a uma condição de miséria. Disto resultou que, neste período, “18% das crianças com menos
de 14 anos estavam inseridas no mercado de trabalho” (RIZZINI, 1995, p.81).
Para enfrentar as dificuldades de sobreviver no mundo do trabalho, as crianças
desenvolviam uma série de estratégias de enfrentamento, utilizando-se de sua astúcia. A
sabedoria das garotos e garotas pertencentes às classes populares e que assumem este tipo de
atividade se revela quando Zazinho é perguntado porque merca amendoim e traz uma vara com
algodão-doce espetado:

ZAZINHO – Que nada D. Maria, é sabedoria mesmo. Eu merco amendoim, já tenho


minha freguesia certa, não é? Aí os meninos vêm pra comprar os amendoins. Não
tem. Como eles gostam de mim compram o que eu vender. (PENNA, 1978, p.[2])

A situação estabelece desafios para os quais o sujeito deve dar respostas, Zazinho, dessa
forma, compreende a sua atividade no mundo e usa as armas que tem a fim de lograr êxito em
sua venda. Nesse jogo por sobreviver em situação adversa, não se ausenta a brincadeira, o riso
e a imaginação da criança, pois conforme asseveram Alberto e outros (2010, p.69) “[t]ais
291

sujeitos, apesar das pressões que enfrentam, conseguem evitar a doença e a loucura,
normalidade que não implica ausência de sofrimento e sofrimento que não exclui o prazer”.
Mesmo vivendo em um contexto laboral de adultos, Zazinho não deixa de expressar a sua
percepção infantil, que lhe possibilita ressignificar o mundo em suas fantasias de criança:

ZAZINHO – [...]. Aí o homem do algodão doce me pediu pra vender pra ele. É
bonito não é? Parece árvore de cartão de Natal que a gente vê nas lojas. Toda
branca. Toda feita de nuvem.
SEU JOSÉ – Aquilo não é nuvem, menino. Aquilo é neve.
ZAZINHO – Pra mim é nuvem, que os anjos trouxeram pra terra pra ficar tudo
macio pra ele nascer. (Ouve-se o pregão de David) (PENNA, 1978, p.[2])

Zazinho, dessa forma, representa a criança que tem a obrigação de trabalhar por conta
das necessidades financeiras familiares, mas que ainda conserva a sua capacidade de sonhar a
partir dos seus elementos do seu cotidiano. O diálogo que estabelece com os adultos, que se
interessam em saber sobre a mudança de sua mercadoria, também indica a existência de uma
rede de suporte que essas crianças encontram nos seus espaços de trabalho. Em certos
momentos, estes adultos terminam por protegê-los de situações de violência e outros perigos,
na ausência dos seus responsáveis.
Destacamos como outro personagem singular da feira livre o cantador, que versejando
suas histórias traz as novidades das redondezas e faz circular narrativas, tomadas de ouvido e
atualizadas, durante sua performance, para aquele momento e lugar. Suas habilidades musicais
são postas à prova em pelejas de cantadores e inevitavelmente atraem os transeuntes que se
aglomeram em roda para observar o espetáculo. Em geral, aguarda uma contribuição do público
após o espetáculo ou ainda vende cordéis ou outros produtos.

Entra o cantador com o seu violão, uma vara de ventoinhas e seu tamborete. É
recebido com grande alegria. Arruma o seu lugar. As ventoinhas devem funcionar
como uma árvore à sombra da qual ele se senta.)

MANÉ – (Deve dar a impressão que está sempre sobrecarregado de bagagens e de


um homem que viaja muito. Afina seu violão e começa a sua cantiga).
Presta tenção minha gente
gente boa da Bahia
que vou contar uma estória
nesta minha poesia
pode parecer mentira
pra quem não acredita
em mistérios e em magia.
Tudo isso aconteceu
é melhor não duvidar.
sou cantador respeitado
aqui e em todo lugar
não sou homem de vaidade
sou cantador de verdade
é melhor acreditar (PENNA, 1978, p.[2])
292

O cantador é representado no texto como um homem sobrecarregado pelo peso de suas


andanças ou ainda pelas inúmeras bagagens que leva, além do fundamental violão. O fator
lúdico está presente em sua caminhada, a alegria com que é recebido pelos feirantes testemunha
a expectativa daquela comunidade em torno da novidade que chega na sua voz. Seus versos se
iniciam criando uma expectativa acerca do tema cantado, fazendo-se necessário prestar atenção
no que será dito. A cantoria ainda se estabelece entre o plano real e o místico, o cantador é o
porta voz dos acontecimentos inusitados e fantásticos, em que alguns podem não acreditar.
Contra essa descrença, o cantador Mané levanta como argumento de autoridade sua fama digna
de respeito por toda a região.
A mágica realizada pelo cangaceiro é a mágica da representação literária materializada
nas narrativas feitas a partir do imaginário de um povo e sua cultura. No diálogo com aspectos
que remetem à literatura medieval, atualizados no cotidiano das feiras com seus múltiplos
personagens, é que cantadores, repentistas, violeiros e outros fazem circular a diversidade
cultural nordestina. Na próxima seção, discorremos como essa magia é integrada à arte de
Mestre Vitalino, estabelecendo as confluências entre as diferentes matrizes culturais
nordestinas.

5.2.2 A arte de Vitalino como linguagem integradora do nordeste

Jurema Penna apropria-se da cerâmica de Vitalino para trazer a representação do


Nordeste, identificando nela aspectos presentes na cultura popular. O ideal da peça O
bonequeiro Vitalino é trazer os ícones nordestinos para a apresentação do nascimento de Jesus
Cristo. Nesta construção, a dramaturga propõe um processo de identificação entre os
personagens do cotidiano soteropolitano, os vendedores ambulantes e de feira, com os bonecos
do Mestre Vitalino e os personagens presentes no nascimento de Jesus Cristo.
O argumento da peça se constitui com fundamento em uma promessa que o mestre
Vitalino teria feito de construir um presépio com os seus bonecos. A promessa passou do
coração de Vitalino ao coração dos seus bonecos:

GASPAR – foi segredo que guardou


dentro do seu coração
e que só nós sabemos
nos disse com suas mãos
DAVID – suas mãos que nos criou
retratos do seu sertão. (PENNA, 1978, p.[3])
293

Em entrevista a Silvia Maria (1979), sobre a promessa de Vitalino, Jurema Penna


afirma: “eu inventei isso”. Ao assumir a autoria da ideia do presépio, a dramaturga passa de
executora da ideia de Vitalino, para aquela que sonha em construir uma representação de Natal
condizente com sua perspectiva de cultura popular nordestina, tomando a linguagem dos
bonecos de barro para realizar seu sonho.
A escolha dos bonecos estabelece leva em conta o intuito de, por um lado, trazer obras
representantes da cerâmica de Vitalino, e, por outro, selecionar os tipos que se transformassem
nos personagens da obra. Além disso, os bonecos eram objetos de decoração do gosto pessoal
da dramaturga, conforme relata: “assim que a ideia da peça me veio, ficava horas olhando para
a minha ‘família retirante’, para o meu ‘cirurgião’. Eles começavam a versejar dentro da minha
cuca, exigindo movimento, e movimento é vida” (MARIA, 1979). Como apreciadora e leitora
da arte de Vitalino, Jurema Penna escolhe dar voz a esses personagens para que eles contem o
seu cotidiano e encantem com a sua magia, numa tentativa de tornar o Natal uma data especial.
Os bonecos escolhidos, como referência para os personagens, aparecem nas fotografias
presentes em T78 e mostram um grupo de retirantes que trazem consigo o que restou dos seus
pertences e dos seus animais. (Cf. figura 43).

Figura 43 – Os retirantes, do Mestre Vitalino

Fonte: PENNA, 1978.

Os bonecos de cerâmica são acionados no espetáculo pelo cantador. Eles evocam a força
do brinquedo de barro como elemento infantil que se perpetua na vida adulta, mas que também
registra a realidade em que o sertanejo está imerso. Neste escopo, Jurema Penna destaca como
personagens da peça o cirurgião, representando o acesso à saúde do povo nordestino, e o padre,
294

para os aspectos religiosos. Além disso, a inclusão do burro e do boi não são escolhas aleatórias,
visto que estes animais desempenham mais que funções nas atividades agrícolas, são
companheiros que compartilham com o homem as agruras da terra. O boi é ainda um animal
dotado de mistérios, suas lendas o convertem em entidade encantada, como o boi bumbá, o boi
Aruá e os diversos folhetos que tratam de bovinos encantados em um sertão mítico.
Para os dois personagens, Samuca e David, transformar-se no boi e no burro do presépio,
configura-se uma honra e ambos fazem questão de evidenciá-lo na cena do presépio:

DAVID – Eu gosto de ser o boi, boi de bumba


Boi de terno, de presépio e de lapinha
E quem já viu, quem foi?
Um presépio sem um boi?
O boi que esquentou
com seu bafo, quente, bovino
o nosso Jesus Menino? (PENNA, 1978, p.[11])

David cita, em sua fala, a presença do boi em outras manifestações do catolicismo


popular, tais como o terno, o presépio e a lapinha, defendendo a honra de seus serviços de
esquentar o menino Jesus recém-nascido. Samuca, por sua vez, parte em defesa de seu animal:

SAMUCA – E eu o burro de presépio


eu o burro de lapinha [...]
o burro calado correto,
que depois pelo deserto
guiado por São José
carregou a Mãe Maria
e Jesus de Nazaré.
(PENNA, 1978, p.[11-12])

Ao longo da peça, os atores assumem três personagens em três momentos distintos, o


plano real, presente no ambiente da feira, o plano mágico, em que os feirantes transformam-se
em bonecos de mestre Vitalino, e o plano sagrado, onde esses bonecos assumem os papéis do
presépio. Dos aspectos que podem ser elencados para o desenvolvimento dessa identidade,
destacamos as condições sociais em que os três grupos vivem, quando a pobreza e a necessidade
de sobrevivência mobilizam os feirantes a mercarem seus produtos da forma mais atrativa
possível, quando a seca e a falta de suporte dos poderes públicos obrigam os retirantes a
abandonarem suas terras, quando uma mulher em trabalho de parto, não encontra pousada e dá
a luz a seu filho em um estábulo, rodeada pelos animais que o habitavam. A simplicidade
também marca os três grupos. Desprovidos de riquezas, poderes ou quaisquer formas de
ostentação, os personagens buscam, nos três contextos, os caminhos da humildade.
295

Destacamos, ainda, as similitudes entre a vida rural que leva o homem sertanejo,
rodeado pelas plantações e ocupando-se da criação de gado e o ambiente descrito no presépio,
acrescido da presença de animais tão comuns ao cotidiano sertanejo, o boi, o galo e o jumento.
Os três contextos, no entanto, guardam as suas diferenças: a Sagrada Família opõe-se aos
vendedores da feira e aos bonecos de Vitalino por seu caráter divino. A simplicidade, o
desapego aos bens materiais e a valorização da família demonstrados por ela constitui-se no
modelo que deve orientar as práticas dos sujeitos dos outros dois grupos.
Ao propor a vivificação dos bonecos de Vitalino, Jurema Penna estabelece um diálogo
com outras obras da literatura mundial em que bonecos ganham vida por uma noite e
experimentam a liberdade. O propósito do encantamento, nesse caso, não é cumprir os próprios
desejos de liberdade, mas louvar o Deus Menino em noite de Natal, confirmando-se a moral
religiosa infundida nos personagens. Ainda assim, quando Quico reclama da sua vida de boneco
e deseja sair para conhecer a Bahia, acompanhado de Baltazar, os dois são repreendidos por
Seu José.

JOSÉ – Apois tratem de tirar


o cavalinho da chuva
que liberdade eu não dou
a boneco renitente
teimoso, metido a gente.
Daqui não sai ninguém
e tem mais outro porém:
a gente tem de armar
o presépio pra louvar
Jesus – o Deus Menino
promessa que fez a Deus
aquele que nos criou
o bom mestre Vitalino. (PENNA, 1978, p.[5])

Vale ressaltar a polêmica gerada em torno da representação de uma Nossa Senhora


grávida, pelos próprios bonecos.

JUDITE –Era só o que faltava


mulher, deixa de intriga
Porque eu nunca vi
N. Senhora de barriga! (PENNA, 1978, p.[5])

O imaginário de profundo respeito aos santos católicos registra-se aqui na rejeição de


uma Maria grávida, o que vai de encontro aos dogmas católicos que consideram Maria virgem
e mãe. A reação da personagem pode, portanto, ser atribuída ao discurso católico de
apagamento das características humanas da Sagrada Família, sobretudo no que tange a
sexualidade: Maria, virgem e mãe, Seu José, castíssimo esposo, e Jesus, na idade adulta,
296

celibatário. Maria, da peça, termina por dar à luz a seu filho, fato que tanto resolve o impasse
da Nossa Senhora, grávida, quanto traz aquele que representará o Jesus Cristo recém-nascido.
O cangaceiro Pé-de-Vento, por sua vez, dá conta de trazer para o palco os mitos que
permeiam essa personagem no imaginário nordestino. Os rumores da chegada dos cangaceiros,
que se espalhavam pelo sertão, excitavam as histórias, alimentavam os medos e comentários.
As opiniões dividiam-se entre um elogio ao cangaço, pela bravura de seus homens e pela justiça
realizada frente às desigualdades sociais que assolavam o Brasil à época. Por outro lado, os
cangaceiros constituem-se como um símbolo de desordem, assassinatos e destruição, causando
medo e repulsa àqueles que os enfrentam.
No espetáculo, Pé-de-Vento chega, exigindo os pertences de todos, que se mostram
solícitos a fim de evitar que ele se aborreça, temorosos de um ato violento. Seu José expressa
essa preocupação utilizando um tratamento formal para com o cangaceiro:

JOSÉ – Seu Pé-de-Vento, é um prazer


conhecer vossa mercê
mas por favor, me perdôe
não quero falar por mal (PENNA, 1978, p.[6])

Seu José, ciente da fama de Pé-de-vento, esforça-se para não importuná-lo, tentando
ver-se livre dele. Judite, ao contrário, dispensa a deferência utilizada por Seu José e questiona
a legitimidade da figura do cangaceiro, que vive fugindo dos poderes oficiais. Judite, aqui,
configura-se como a mulher que se insurge contra autoridades questionáveis.

JUDITE – [...]
Pode levar meu dinheiro
que faço pouca questão
mas não tô aqui pra ouvir
desaforo de um cidadão
que vive correndo da justa
por todo esse sertão (PENNA, 1978, p.[9]).

O discurso de Judite não surte efeito sobre Pé-de-Vento que continua a proferir injúrias
contra os presentes e só para quando se dá conta de que a personagem Maria está grávida e
havia desmaiado em sua presença.

MANÉ – (Reparando Maria) Eu não tinha reparado


Sem chegar perto não via.
livrai-me desse pecado
Deus do Céu, Virgem Maria
Valei-me Padim Padre Ciçro
eu não tinha visto isso
297

não sou almadiçoado.


Já vou guardar meu punhal. (PENNA, 1978, p.[8-9])

No encontro com Maria, grávida, Pé-de-vento demonstra algum sinal de benevolência,


dando a ver o seu referencial religioso com a evocação de Deus, da Virgem Maria e do
intercessor particular “Padre Ciçro”, que apascenta a sua fúria. Um código moral se apresenta:
o respeito à parturiente que o faz guardar o punhal e desloca o argumento da cena para Maria,
prestes a dar à luz.
Este momento configura-se como o gatilho para a mudança de atitude de Pé-de-Vento
acerca da sua atuação como cangaceiro. Quando a criança nasce, o milagre de Natal no coração
de Pé-de-Vento se completa.

MANÉ – (Para José) Seu moço me explique


me explique sem dibique:
porque os sinos tão tocando
por que a noite tá se enfeitando?
que estrela no céu é aquela
que brilha tanto e tão bela?
por que esse perfume no ar?
esse silêncio de esperar?
parece tá tudo parado. (PENNA, 1978, p.[9])

A ideia de cangaceiro como ser regenerável traz a própria dualidade com que esses
sujeitos são representados, ora como bandidos ora como justiceiros, em função de uma opressão
social. A mudança do cangaceiro, assim, se coaduna com a própria ideia de milagre de Natal e
da potência da vida representada pelo nascimento de uma criança que dissemina bons
sentimentos. Seu José aproveita a abertura de Pé-de-Vento para consolidar a mudança
necessária no mesmo: o abandono das armas e da vida bandida.
A benevolência e acolhimento do povo nordestino, por sua vez, se manifesta na
incorporação do ex-cangaceiro na construção do presépio:

MANÉ – Vou bater em retirada


vou pegar a estrada
um homem com meu passado
aqui não tem pousada
É melhor que fora me ponha
antes de passar vergonha
de me mandarem embora
é melhor eu ir agora. (PENNA, 1978, p.[12])

Pé-de-Vento não se sente digno de participar de tal homenagem por conta do seu
passado, demonstrando real arrependimento em relação às suas ações. O personagem é acolhido
298

pelo grupo a fim de consolidar os novos espaços sociais que a sua mudança pode fazê-lo.
Manifesta-se, dessa forma, também, a generosidade do povo nordestino, sempre disposto a
acolher aqueles que assim necessitam. Por sua vez, a forma próxima como Pé-de-Vento pede
auxílio a Deus, à Virgem Maria e ao Padre Cícero, aproxima-se daquilo que se denomina
catolicismo popular e que iremos abordar na próxima seção.

5.2.3 O catolicismo popular

Como expressão da religiosidade nordestina, o catolicismo, em sua vertente popular, é


objeto de apropriação por Jurema Penna. Muito mais do que representar a dominação religiosa
do elemento colonizador branco, a dramaturga traz para o foco de sua peça as transformações
que o povo exerceu sobre essa religião, a partir de sua própria cultura e dos elementos do seu
cotidiano. Os personagens sagrados são aproximados do plano real, estabelecendo uma
identidade com o povo pobre e sofrido. Esta relação que, por um lado, foi imposta pelo elemento
colonizador no processo de catequização; por outro, foi difundida pelas classes populares que
preencheram os símbolos da religião do branco com aspectos de sua cultura, constituindo novos
sentidos para os ícones europeus.
O catolicismo popular é, conforme define González (1992, p.13),

o modo como a população latino-americana, majoritariamente pobre, vive o


Cristianismo. Seus elementos constitutivos são: conteúdos da fé católica, eixos
culturais (indígenas, afro-americanos, culturas populares rurais e urbanas), e eixos
sócio-históricos (ações e reações, num complexo processo de submissão, de
resistências, de humanização).

González (1992) situa-o como produto da colonização do século XVI na América


Latina, oriunda dos conflitos entre a fé católica e as religiosidades indígenas e africanas.
Considera ainda que esse não foi o único momento em que a religião católica esteve em contato
com outras matrizes religiosas, visto que, historicamente, agregou elementos de cultos greco-
romanos e germânicos, além das influências decorrentes da presença árabe na Europa ao longo
de oito séculos. No entanto, estabelece uma particularidade para os caminhos do catolicismo na
América Latina, qual seja a disseminação deste em uma população social e culturalmente
oprimida, que teve boa parte de sua cultura e identidade destroçadas no processo de
colonização.
No momento em que a catequização foi realizada com mais intensidade na América
Latina, a partir do século XVII, os ritos das religiões autóctones foram progressivamente
299

substituídos pelos católicos. Invariavelmente, diversos traços do rito suprimido foram


incorporados ao culto cristão. Some-se a isso, o fato de que, após concluído o processo de
colonização, a presença das autoridades católicas era rareada, promovendo a ascensão de
figuras como de sacristãos, sineiros, curandeiros e rezadores, que, na ausência das autoridades
católicas, assumiam a orientação do cotidiano religioso. Menos submetidos às imposições do
catecismo católico, o povo poderia ressignificar e reconstruir sua cultura e sua identidade
devastada pelo processo de colonização.
González (1992, p.15) defende a hipótese de que “na Religião Popular, além de seus
conteúdos transcendentes, se recolhe tanto a identidade cultural, como as múltiplas ações e
reações que o processo de libertação exige”, referindo-se aí a libertação tanto da escravidão
quanto do próprio poder da colônia. O catolicismo popular é, dessa forma, um espaço para a
reconstituição da identidade cultural, além de promover uma relativa emancipação das
estruturas de poder que dominavam e orientavam todas as práticas cotidianas.
A recomposição dessa identidade é também elaborada no sentido de aproximar-se da
divindade, assim,

[...] o modo indígena e negro de crer dirigiu-se não tanto a ressaltar o caráter de
verdade indiscutível de Jesus como Filho de Deus, mas em procurar e manifestar sua
bondade e seu pode em favor dos fracos. [...] A América Latina está cheia de
‘milagres’ e sucessos prodigiosos nos quais Cristo, a Virgem e os santos se revelaram
aos pobres, aos camponeses, aos pastores e escravos, e os transformaram em
intermediários entre eles e a sociedade, ao mesmo tempo que em portadores de uma
mensagem de reinvindicação da dignidade marginalizados. (GONZÁLEZ, 1992, p.
24-25).

Em vez de renegar seus deuses em favor de um único Deus, a crença católica era
disseminada no sentido de erigir a imagem de uma santidade que conhecia e compreendia a
pobreza e a opressão vivenciados por aquele segmento social. Assim, Jesus Cristo e os santos,
que também foram martirizados pelos poderosos de seu tempo, mostrariam sua bondade àqueles
pobres que sofriam similares opressões.
As diversas formas do catolicismo popular encontram-se disseminadas na obra de
Jurema Penna, sobretudo no auto de Natal O bonequeiro Vitalino. O próprio “gênero” auto de
Natal evoca a utilização da linguagem do teatro para a encenação do nascimento de Jesus Cristo,
remetendo a um costume da igreja católica de montar passagens da Bíblia em seus adros, devido
ao significativo contingente de analfabetos que não tinham acesso a esta com base na leitura.
Disto resulta, além dessas peças, a própria tradição de se fazer presépios no Natal, uma das
datas mais importantes do calendário litúrgico católico. O catolicismo popular no nordeste
300

brasileiro apropria-se dessa comemoração, constituindo outras comemorações resultantes da


aclimatação de elementos da tradição europeia no sertão nordestino, dando origem a festejos
como o terno de reis, a queima da palhinha e o já mencionado auto de Natal e outras encenações
natalinas.
Jurema Penna apresenta, em O bonequeiro Vitalino, a relação de identificação entre os
santos e os nordestinos, a começar pelos próprios nomes desses personagens, que são facilmente
transmutados para os personagens do presépio. Isso decorre, também, do fato de a antroponímia
nordestina apresentar uma predileção por nomes bíblicos, como Melquior e Baltazar, além dos
populares Maria e José. Os personagens da feira que se transformam no boi e no burro perdem
os nomes. O mesmo acontece com Judite e Mané, que assumem no presépio o papel de,
respectivamente, o pastor e a pastora, cuja escolha de designativos genéricos reforçam o intento
de simbolizar, nesses, os populares que irão adorar o menino Jesus.

JUDITE – Pastora feliz serei


nesta Lapinha encantada
com minha saia florida
e minha blusa encarnada
representando os humildes
que vivem em adoração
pedindo ao Deus Menino
Sua santa proteção. (PENNA, 1978, p.[12])

Os personagens José e Maria, grávida, que irão representar a Sagrada Família,


compartilham com esta uma relação de identidade a partir da pobreza em que se encontram
inseridos. Assim como a Virgem Maria, a personagem da peça dá à luz em um local
improvisado, problema enfrentado pelas mulheres das classes sociais baixas, em decorrência
da dificuldade de acesso ao serviço público de saúde. O personagem José, por sua vez, vale-se,
sobretudo no embate com o cangaceiro Pé-de-vento, de serenidade e sabedoria para convencê-
lo a largar as armas, agindo com a autoridade que lhe foi conferida, a exemplo do José pai de
Jesus.
As marcas dos nordestinos são também estabelecidas com a incorporação de elementos
locais na arrumação do presépio. Assim, a estrela de Belém é substituída pela estrela do mar,
os presentes levados pelos reis magos estão guardados dentro do “matulão de couro”, a
manjedoura de Jesus é enfeitada com os capins dourados, coloridos e prateados das feiras livres,
o leito do Menino Jesus é também enfeitado por flores, prendas e rendas do Ceará.
As representações do catolicismo popular são também trazidas ao litoral pelos
imigrantes. Assim acontece com o personagem Severino, da peça Iemanjá – rainha de Aiocá,
301

velho retirante que sai do sertão por conta da seca, perdendo filho e esposa na retirada. Ao fim
de sua jornada, chega à comunidade de pescadores com Toninha e João, seus filhos. João, que
passa a viver da pesca, acaba por morrer no mar. A morte do filho foi o golpe final para a
sanidade mental de Severino, que perde parte de sua razão, o que também o leva a perceber a
presença do sobrenatural na comunidade de pescadores.
Diante da ameaça constante da besta marinha, simbologia para a bravura do mar,
Severino agarra-se à sua defesa espiritual: São Sebastião e Padre Cícero. Nesse contexto, o
personagem de Severino inscreve-se na trama como representante de um viés religioso e
cultural pertencente à espiritualidade mística do povo sertanejo, calcada no catolicismo popular.
No trecho abaixo, pede proteção aos seus santos contra a revolta da besta marinha:

SEVERINO – (Levantando-se) O mar filho da terra, por ela parido, tá mugindo como
vaca brava. Que meu Padim Padre Ciçro tenha compaixão de nós. E o moço guerreiro
São Sebastião, venha em socorro de todos nós. A Besta Marinha vai sair do fundo do
mar e o seu bafo de fogo, seus cabelos de cobra vão cobrir o mundo e todos os
pecadores. Os pecadores do pecado da luxúria, vão virar vermes inchados… vermes
inchados… (Ceição vai até ele para acalmá-lo. Ele vai se tranquilizando aos poucos,
repetindo) vermes inchados… vermes inchados. (A Yaô perto dele) (PENNA, 1980,
f.15)

A invocação a Padre Cícero, que, apesar de não legitimado pela Igreja Católica, é
considerado como um poderoso intercessor para o povo nordestino, manifesta-se durante os
momentos de adversidade. São Sebastião é, por sua vez, um santo muito popular: sua
característica de guerreiro é invocada para o enfrentamento de situações como a seca, a morte,
doenças e toda sorte de padecimento. No trecho de Iemanjá..., Severino relata a sua visão de
São Sebastião, que vai aparecer vestido para combate:

SEVERINO – O Santo moço guerreiro São Sebastião vai aparecer no meio do mar
vestido no seu manto azul e prata, montado em seu cavalo branco, comandando o
cordão azul. E vai atravessar o mar, pisar na areia branca, ir até o sertão e expulsar a
seca moura da Hungria e encher a caatinga do mesmo verde azul dessas ondas do mar.
(PENNA, 1980, f.27)

São Sebastião, santo guerreiro, é invocado para defender a comunidade de pescadores


das ameaças do monstro marinho, “comandando o cordão azul”, que, conforme Calpuano
(2012), pode referir-se ao “Cordão Azul dos Cristãos”, em oposição ao “Cordão Encarnado dos
Mouros”, que nas cavalhadas64 encenam a luta entre cristãos e mouros por territórios. A

64
Cavalhadas são festas com diversas referências às cavalgadas medievais que acontecem em algumas regiões do
Nordeste.
302

referência ao cordão azul pode não se relacionar ao santo, mas sim ao mito de D. Sebastião, rei
de Portugal, morto na batalha do Alcácer Quibir, em 1578. Após sua morte, uma crença,
denominada sebastianismo, se espalhou por Portugal, chegando ao Brasil, segundo a qual, D.
Sebastião retornaria em momento oportuno, para reivindicar seu trono
Conforme Salomão (2008), os registros da Guerra do Contestado, acontecida no início
do século XX, no sul do país, trazia a esperança de que o exército de São Sebastião viria
combater em seu favor, no entanto, os elementos da narrativa direcionavam não ao Santo
dissidente do exército romano, mas ao rei português. Vale ainda ressaltar a presença de D.
Sebastião no panteão dos encantados de algumas religiões de matrizes afro-brasileiras em
alguns estados do Nordeste, com destaque para o Maranhão, onde os ecos do sebastianismo se
fazem escutar até os presentes dias.
Na cultura nordestina, as disputas entre os cordões vermelhos e azuis podem ser
percebidas em diversos de folguedos e manifestações populares de origem portuguesa.
Acreditamos que, no caso de Severino, há também o sincretismo entre São Sebastião e D.
Sebastião, uma vez que São Sebastião era um soldado romano e sua luta não foi contra a
perseguição aos cristãos no contexto do Império Romano, ao passo que D. Sebastião, o jovem
rei, foi morto na África em decorrência da batalha contra os mouros. É possível, dessa forma,
entender a referência feita a São Sebastião como mais uma configuração do catolicismo
popular, dessa vez sob interferência do mito português.
Consideramos, então, o catolicismo popular como um elemento presente na cultura
nordestina e baiana. Constituído na interface entre o sagrado e o profano, o complexo religioso-
cultural, decorrente da transformação da referência portuguesa, adquire formas sincréticas que
conjugam a cultura do colonizador com a cultura do colonizado, convertendo-a em novas
formas de fazer e vivenciar a religião.
Face o exposto, foi possível perceber as múltiplas apropriações que Jurema Penna faz
da cultura baiana, representando-a na sua dramaturgia, conforme análise realizada nessa seção.
A dramaturga interessa-se por trazer questões pertinentes ao seu tempo, a fim de não somente
representá-las, mas fazer das suas encenações momentos propícios para a discussão de certas
temáticas, levando o seu espectador à ação e não somente à reflexão. A partir da identificação
das linhas temáticas aqui discutidas e de um trabalho crítico-interpretativo foi possível tecer
caminhos de leitura para os textos de Jurema Penna, congregando-os sob o signo da cultura
baiana. A pluralidade de questões exploradas nessa leitura aponta para a diversidade de aspectos
da sócio-culturais representados na referida dramaturgia.
303

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O arquivo hipertextual, aqui apresentado, constituiu-se em uma proposta de edição


inovadora e traduz a noção de Filologia Contemporânea, expressa por Borges e Souza (2012,
p. 58-59), com o conceito de crítica filológica, como:

[...] uma prática interpretativa que objetiva a leitura dos textos a partir das coordenadas
e diretrizes histórico-culturais que os tornaram possíveis. [...] configura-se a partir da
leitura do “devir” textual, entre fendas de rasuras que abrem espaço para a produção
do texto, mas também do não-texto entre atos de censura, como os que decorrem dos
vários “cortes” dos técnicos de censura do Governo Militar do Brasil.
Cada uma das atuações de sujeitos históricos diferentes na trama textual traz novidade
à tessitura e demonstram intencionalidades diferentes que enriquecem e atualizam as
diversas produções de sentido no/do texto.

Nesta perspectiva, buscamos, por meio do labor filológico, elaborar edições que se
utilizem das possibilidades engendradas pelo hiperlink e outras ferramentas digitais para
apresentar as leituras do editor, bem como para dotar o leitor de meios para construir seus
próprios caminhos interpretativos. Na elaboração do arquivo hipertextual, o trabalho crítico fez-
se presente em todas as etapas, pois, para a composição de uma arquitetura digital eficiente, é
preciso conhecer as peculiaridades do suporte material, objeto de pesquisa em questão, bem
como os propósitos do editor.
Em se tratando da dramaturgia de Jurema Penna, foi fundamental compreender as
questões histórico-culturais implicadas nesse processo, uma vez que sua produção faz
representar a cultura baiana, evidenciando posicionamentos ideológicos, marcados por meio
das escolhas dos temas e das modificações textuais realizadas. Por sua vez, outros tantos
sujeitos participam da elaboração do script, deixando suas marcas sobre eles, dos quais
destacamos o ator e o censor. Deixar de registrar informações como essa na construção da
edição, ou registrá-las num espaço marginal, de leitura difícil, resulta em privar o leitor do
contato com as nuances que permeiam o texto teatral e que lhes dão a dimensão de como
aconteceu a construção do espetáculo.
Em relação aos propósitos editoriais, foi nosso objetivo trazer edições variadas para uma
situação textual que envolve múltiplos documentos. Assim, disponibilizamos os fac-símiles,
acompanhados da descrição física do suporte, o que permite ao leitor perceber as formas
materiais assumidas pelo texto durante a sua circulação, bem como no momento histórico de
sua produção. O leitor pode, então, explorar o suporte, por si, ou sob a mediação do editor, por
meio da descrição apresentada. Através do confronto sinóptico, construído pelo aplicativo Juxta
304

Commons, foi oferecida ao leitor uma interface que lhe permite ler o texto em confronto, a partir
do contraste entre as diferentes versões, postas lado a lado; bem como ter contato com os
comentários do editor acerca das modificações textuais empreendidas.
Como terceira possibilidade do labor editorial, apresentamos uma edição crítica, a fim
de disponibilizar uma obra de referência para a divulgação da produção dramatúrgica de Jurema
Penna. Ainda que o conceito de edição crítica traga as ideias de fixação e estabilidade, bem
como a seleção de uma lição em detrimento de outras, acreditamos que com o uso dos recursos
informáticos adequados, foi possível diminuir as distâncias entre texto e aparato, trazendo as
modificações textuais para dentro do texto crítico. Por sua vez, este não seria o centro do
processo editorial, mas o ponto de partida para a visualização dos caminhos tomados por uma
dada lição, permitindo ao leitor verificar o “devir textual”. A edição crítica permitiu, também,
integrar os documentos da recepção à edição e, assim, aproximar os testemunhos do seu
momento de produção e de recepção.
McKenzie (2005, p. 46) afirma que “nuevos lectores hacen, por supuesto, nuevos textos
y que sus nuevos significados son consecuencia de sus nuevas formas”65. Consideramos,
portanto, o leitor em sua historicidade: um indivíduo que se apropria do texto de maneira ativa
e, conforme suas expectativas, interesses e os horizontes do seu tempo, o reconstrói, dando-lhe
novos sentidos. Em comparação à experiência do livro impresso, a leitura na tela torna o leitor
ainda mais ativo, uma vez que o suporte flexível e não linear lhe permite construir seu trajeto
de leitura, selecionando ou rechaçando o que será lido, conforme as suas demandas.
Também, em consonância com McKenzie, acreditamos que a materialidade dos textos
é fundamental para a construção dos seus sentidos; portanto, dispor as edições em meio digital
proporciona uma atualização das suas formas, promovendo a elaboração de novos significados.
Dessa forma, as peculiaridades do suporte digital estariam diretamente implicadas nesse
processo, incluindo aí a interface e os direcionamentos que esta pode proporcionar à leitura; os
links, hiperlinks, que permitem ao leitor movimentar-se pelo texto; além das múltiplas janelas
e suas possibilidades de justapor diferentes telas, para uma leitura em paralelo. Além disso, os
condicionantes do ambiente virtual, tais como a luminosidade, o tipo de aparelho utilizado
(desktop, laptop, tablet ou smartphone) e a rapidez da leitura interferem nesse processo,
tornando perceptível ao leitor a necessidade de adaptação a esses suportes.

65
“novos leitores fazem, evidentemente, novos textos e que seus novos significados são consequência de suas
novas formas” (MCKENZIE, 2005, p. 42, tradução nossa).
305

Mediando a relação entre leitores e obras, emerge a figura do editor. Em sua tarefa de
editar e estudar os textos, o filólogo assume uma dupla função: constitui-se como leitor e como
publicador da obra. No primeiro caso, torna-se um leitor especializado, que seleciona um corpus
a ser editado, conforme os seus interesses, propondo-lhe estudos sobre o seu conteúdo e sobre
as formas assumidas durante a circulação. No segundo caso, promove uma atualização da obra,
elaborando formas para a sua divulgação na contemporaneidade. O produto desta dupla
articulação, a edição, inscreve o editor nos processos de transmissão, de circulação e de
recepção desse texto.
Nesse sentido, entendemos o arquivo hipertextual, apresentado nessa tese, como o
resultado de um trabalho crítico-interpretativo, uma construção intelectual (CRASSON, 2010),
que traz a dupla articulação do editor, mencionada acima. O editor se constitui em leitor ao
selecionar, da dramaturgia de Jurema Penna, aquilo que lhe interessa para pensar as
modificações textuais realizadas pela autora e outros partícipes da cena teatral, bem como para
refletir acerca das representações feitas sobre a Bahia da década de 1970, além dos elementos
que possibilitam entender os modos de fazer teatro na Bahia, durante a ditadura militar.
Como publicador, busca novas formas para sua edição, que permitam ao
leitor/navegador perceber o percurso do filólogo, além de elaborar suas próprias leituras. No
momento da construção dessa interface, tínhamos como expectativa um leitor imaginário que
se interessasse por perceber as diferentes formas assumidas pelo texto durante a sua circulação.
Visando esse leitor, buscamos elaborar o arquivo hipertextual que permitisse integrar a
diversidade de testemunhos, além de documentos da recepção, em uma interface acessível e
intuitiva, que o leitor pode explorar, desvendando os caminhos percorridos pela obra.
Como afirma Rodriguez De las Heras (1991, p.2) em sua metáfora para o leitor-
navegador,

El barco es el interfaz situado entre dos medios. De la misma manera, el nuevo


navegante debe crear unos interfaces que permitan, a través de una pantalla, moverse
por la información, llegar a un determinado punto, trazar una singladura y un recorrido
más o menos largo por la información contenida, y todo sin perder la orientación ni
naufragar. Sin estos interfaces, que exigen para su construcción mucho ingenio y
originalidad por estar ante problemas nuevos, nos veríamos condenados a quedarnos
a la orilla de unos soportes de muy alta densidad de información, sin poder navegar
por ella.66

66
“O barco é a interface situada entre dois meios. Da mesma maneira, o novo navegante deve criar interfaces que
permitam, através de uma tela, mover-se pela informação, chegar a um determinado ponto, traçar uma singradura
e um percurso mais ou menos longo pela informação contida, e tudo sem perder a orientação nem naufragar. Sem
estas interfaces, que exigem para sua construção muito engenho e originalidade por estar diante de problemas
novos, nos veríamos condenados a permanecer à margem de suportes de grande densidade de informação, sem
poder navegar por ela” (DE LAS HERAS,1991, p.2, tradução nossa).
306

Nesse sentido, faz-se necessário que os filólogos se dediquem à elaboração de novas


ferramentas e interfaces de maneira a explorar o hipertexto e suas formas multimodais e
alineares, a fim de divulgar e dar a conhecer os textos legados por uma sociedade. Trata-se de
um trabalho que não se desenvolve sozinho, demandando uma equipe interdisciplinar a fim de
construir arquiteturas digitais capazes de tornar o grande volume de informações acessível, de
maneira integrada, relacional e rizomática. O olhar do filólogo na composição deste arquivo
hipertextual é, nesse sentido, indispensável, uma vez que a sua experiência de leitura para a
composição da edição acontece na relação entre os textos.
Destacamos também a importância do uso de ferramentas informáticas para a
elaboração das edições: o reconhecimento óptico de caracteres (OCR), na transcrição dos
testemunhos e o aplicativo Juxta Commons, na colação dos testemunhos, ambos fundamentais
para a prática editorial, pois desobrigam o filólogo do trabalho mecânico, podendo este
mobilizar suas energias e tempo para o trabalho interpretativo e criativo. Além disso, o uso
dessas ferramentas evita o erro humano na transcrição e colação, proporcionando resultados
mais fiáveis.
Como suporte de leitura e crítica, o meio digital proporciona a integração entre os
diversos documentos que contam a história da circulação e da recepção da dramaturgia de
Jurema Penna. Ao justapor este conteúdo por meio do uso do hiperlinks, foi possível dar a ler
não somente o texto teatral, mas também aspectos da conjuntura sócio-histórica e fragmentos
da cena. Nessa direção, podemos afirmar que a proposta de edição da dramaturgia baiana, sob
o viés da Filologia e em interface com a Informática, permite a proposição de modos distintos
de leitura que não dicotomizam script e performance, mas integram traços de encenações
pretéritas na leitura do texto. Nesse sentido, acreditamos que este trabalho se coaduna com o
objetivo principal de um estudo filológico, qual seja, ler, interpretar, editar e dar a conhecer a
produção literária de uma sociedade.
307

REFERÊNCIAS

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BAHIA livre exportação no teatro do SESC. Diário de Notícias, Salvador, 17 e 18 jun. 1976.

CADA DIA que passa fica mais difícil levar arte ao povo. As pessoas estão bloqueadas.
Correio da Bahia. Salvador, 15 jan. 1979.

CENTRO de formação profissional para Turismo e Hospitalidade No pelourinho o maior


conjunto da arquitetura colonial da América. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 23 jun. 1976

ESPETÁCULOS: Dorival Caymmi encerra concerto, hoje, no TCA. Jornal da Bahia, 2 dez.
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O BONEQUEIRO Vitalino: a história do presépio que não pôde ser feito. Tribuna da Bahia,
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PARA gostar desta peça não importa a idade. Importante é ser criança. Jornal da Bahia,
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PANFLETO 2: O bonequeiro Vitalino. Salvador: [s.n.] [1978].

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GENTIL, Sóstrates. Teatro. A Tarde, Salvador, 07 dez. 1973.

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PENNA, Jurema. Bahia livre exportação. Salvador, 1975a.

PENNA, Jurema. Bahia livre exportação. Salvador, 1976.

PENNA, Jurema. Iemanjá – rainha de Aiocá. Salvador, 1980.

PENNA, Jurema. Iemanjá – rainha de Aiocá. Salvador, 1994.

PENNA, Jurema. Negro amor de rendas brancas. Rio de Janeiro, 1971.

PENNA, Jurema. Negro amor de rendas brancas. Rio de Janeiro, 1972.

PENNA, Jurema. Negro amor de rendas brancas. Rio de Janeiro, 1972*.

PENNA, Jurema. O bonequeiro Vitalino (ou nada é impossível aos olhos de Deus e das
crianças): auto de Natal. [Salvador, Ba]: Prefeitura da Cidade do Salvador, Secretaria
309

Municipal de Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, Divisão Cultura e


Arte, 1978.

PENNA, Jurema. O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus ou das
crianças. Salvador, [197-].

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