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Como se visse olnvisfvel

O autor deste precioso livrinho é


Jacques LoBW.
Convertido aos vinte e cinco anos,
fez-se sacerdote e foi por vezes ao mesmo
tempo estivador e pároco das docas da
região de Marselha. A partir de 1941,
os seus esforços voltaram-se para a cate-
quese missioná.ria : evangelização dos
paifllos do século vinte. Acrualmcnte
diriie a •Mission Ouvriêre Saims Pierre
et Sr. Paul•.
Perante as chagas abcnas pela des-
crença, interroga-se: que tipo de após-
tolo scni capaz de levar Deus ao mundo
de hoje ? Como há-de conseguir-se a
estrutura ncce:.sária para o amar, com
tudo o que ele tem de mau e de bom,
sem se deixar enredar nas suas malhas ?
Como assemelhar-se-lhe sem lhe perten-
cer ? Como estar comprometido a fundo
nele, mas sempre preso do Único Senhor
Absoluto, Deus ?
A resposta encontra-se oeste livro,
que apresenta como modelo actualls-
simo o irande apóstolo das gentes,
S. Paulo.

~ LIVRARIA SAMPEDRO EDITORA


Titulo original COLECÇ Ã O cS ( N T E S E•
Comme 1' 11 voyalt r1nvlslble
~dlti ons d u Cerf
JACQUES LOEW

Tradução de
V asco Miranda

COMO SE VISSE
NDID. OllSTAT .
o INVISÍVEL
Lllboe, 13 de O utubro de 1966
P. lsalas da Roa Pcrcln, e. d.
UM RETRAT O DO APÓSTOLO DE HOJE

eComo se visse o invisível,


maoccve-sc firmee (I& 11, f1
OUUMATin.
Lisboa, 13 de Outubro de 1966
Cóo. )o5o de Casao. VJs. Ccral
N.• 4

Oilttibuldor DO Bl'2Sil:
HERDHR, Uvnda Edlco:a, S5o Paulo

R<:lcrndos Iodei os dircllOI em llDgua pomiguesa para Portupl e Bnsll


l Uvnrla SAMPEDRO Editon, Av. da Rq>6blia, 1~2.Cl..O.~t
LiftVia SAMPEDRO Editora
PRÓLOGO

Este livro tem apenas um fim: restituir à palavra


«apóstolo» a sua riqueza e grandeza, digamos mesmo,
o seu exclusivismo. Não que não possa haver outras
espiritualidades apostólicas, excelentes e melhores que
a descrita aqui, mas a palavra apostolado está hoje
ligada a realidades tão diferentes que corre o risco,
aos olhos de muitos e dos mesmos apóstolos, de
perder com isso o seu forte sentido.
Não falemos do sentido banal que não é o mais
perigoso e pronto a fazer sorrir tal como o encon-
tramos por toda a parte. Uma placa de mármore
comemora em Saiote-Baume um homem excelente
cujo nome esqueci, mas cujo apelido era «Velocio»
e o título de glória: <<.Apóstolo do Oclo-Turismo».
Mas há coisas mais sérias. Qualquer generosidade
que seja, mesmo heróica, não é o apostolado e não
são forçosamente apostólicas todas as obras na Igreja,
nem toda a presença ao mundo.
Para São Paulo, esta palavra aplicava-se, antes de
mais nada, e plenamente, ao «apóstolo e sumo sacer-
dote da nossa profissão de fé, Jesus» (Heb. 3,1), porque
Jesus é por excelência « O Enviado do Pai, <<aquele
que o manifesta» On. 3, 17-34). Só nele o apos-
tolado radica a sua. origem.
COMO SB VlSSE O INVISfVBL PRÓLOGO 9
8

Jesus Cristo, por um amor ext:raor~o. envia lembrar a todos a grandeza. desta realidade e auxiliar a
por sua vez os Doze «como» 0 Pai o cnVlou. Eles guindar a Missão à altitude exigida, que é sobrenatural.
são os mensageiros por excelência, os Apóstolos. Esta obra não tem a pretensão de não ter defeitos
Para a eternidade, diz o Apocalipse, a muralha de e lacunas. Uma censura, no entanto, lhe não podecl
Jerusalém «assenta sobre doze fundamentos e s~bre ser dirigida: a de transmitir reflexões apressadas:
eles 0 nome dos doze Apóstolos do Cordc:iro» desde 1947 que vinha sendo anunciada como a con-
(Apoc. 2 1, 14). Paulo, o aborto, o. persegwdor, tinuação de En Miision Prolétarienne, sob o título
não lhes fica a dever nada. Também ele VlU. em pessoa, Jalons spirih1els. Dezassete anos passaram e, se o
0
Cristo ressuscitado e recebeu dele a missão de ser conteúdo do livro sem dúvida mudou e o seu título
seu testemunho. também, não pretende contudo suscitar métodos ou
Com a morte do último Apóstolo extingue-se um experiências apostólicas, abundantemente descritas no
privilégio incomunicável: a Revelação de q~e eles ]011mal d'1111e Miuion 01111fiere r911-r91J.
eram 0 instrumento pessoal está acabada. «Ó T11D6teo, As páginas que se seguem trazem, no entanto, e for-
guarda o depósito, escreve São Paulo, evita ~ p~­ çosamente, a marca do contexto em que nasceram:
vras vãs e ímpias e as objecções de uma pseudooênoa>> o papel e o lugar da equipa, por exemplo, a escolha
(1 Tim. 6, 20). Já nada mais poderá ser acresc_entado, de tal opção, poderão desconcertar alguns. O leitor
mas este tesouro, a pérola entre todas preoo.sa da dignar-se-á considerar que estas indicações são dadas
humanidade, deverá ser transmitido, comuntca~o, como exemplos e ilustrações práticas, não como
explicitado e, em cada geração, vivido na Igre1a: modelos exemplares.
Timóteo, Tito e, até ao fim do mundo, os nossos Mas dar à palavra «apóstolo» a sua clareza e a
Bispos receberam do Senhor este encargo, apóstolos sua firmeza, e, por isso mesmo, implantar alguns
sucessores dos Apóstolos. marcos inextirpáveis no itinerário dos apóstolos de
Mas todos são chamados a participar nesta obra, hoje, eis o que permanece o objectivo deste livro e
anunciar a mensagem do Salvador, quer a titulo do o que levou a escrevê-lo.
seu baptismo e confirmação, quer por mandato espe- Num mundo que alarga as suas dimensões a
cial da Hierarquia. Este envio para o mundo de ponto de se sentir ele próprio tomado de vertigem,
todos os cristãos é uma das grandezas da nossa época. o apóstolo recorda a única coisa verdadeira: Jesus
E eis que certos homens se oferecem para fazer dele Cristo e nenhuma outra.
0
objectivo único, a alegria e o tormento das suas
vidas: <<Eis-me aqui, envia-me» (Is. 6, 8). A est~
últimos se dirige especialmente este livro, mas quereria
O HOMEM DA FÉ,
DA PALAVRA E DA POBREZA

A «missão» é um mistério. Afirmá-lo não é uma


banalidade, nem um refúgio para os dias de fracasso.
O mistério está inscrito na sua própria natureza:
participação do homem na obra de Deus, submissão
ao Espirito que «sopra onde quer: ouves a sua voz,
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai ...»
Gn. 3, 8). é portanto uma marcha forçosamente miste-
riosa e, no sentido literal, arrasante, por caminhos
que não são os nossos: «Os meus caminhos não
são os vossos caminhos» (Is. 55, 8). É uma álgebra
perpétua onde se caminha de desconhecido em desco-
nhecido - , uma estranha alquimia em que a salvação
surge do exilio; nela, as cenezas nascem da provação,
a luz da obscuridade.
Se a marcha de quarenta anos dos Hebreus, no
deserto, contém em gérmen e narra já a história penna-
nente da humanidade no caminho para Deus até ao
fim do mundo, as suas fadigas, as suas incredulidades,
a história de Moisés é em si mesma a de cada após-
tolo durante os quarenta anos da sua própria vida.
Ora esta história de Moisés, São Paulo resume-a
COMO SB VISSE O INVISfvEL o HOMEM DA FR DA PALAVRA E DA POBREZA 15

numa &ase extraordinária: «Como se visse o iqvi- alma está no Senhor mais que os espias na aurora,
s1ve4 mostrou-se fume» (Heb. 11. 27). espiando a aurora» (1).
Nunca mais setá dada uma descrição mais precisa o mundo de hoje familiariza-nos com as teleco-
do mistério do apostolado: o apóstolo é aquele que municações; o apóstolo não conduz os homens,
faz profissão de guiar os homens para o invisível. dircctamente, à vista: tendo-se situado no compri-
Vê ele próprio melhor que os outros este .fim oculto? mento de onda de Deus, a sua fé guia-o mais firme-
Directamente, não. É ele, desde logo, um daqueles mente que o radar mais seguro.
guias cegos de que fala o Senhor, que conduz «ÜS céus e a terra passarão, as minhas palavras não
outros cegos em pleno fosso? Ainda menos. Que é, passarão ...» (Mt. 24, 35). Apesar das aparências e das
então? contradições, nas areias movediças e no lodo dos ato-
É o ho11m11 da fé: não vê, não sabe, crê. Todo leiros, a palavra de Cristo é o rochedo sobre o qual
o seu ser está comprometido na confiança absoluta ele se ergue. porque Jesus Cristo é o Verbo do Pai.
cm Deus que não pode <<0em enganar-se. nem enga- Diante do mistério da Eucaristia, São Tomás de
nar-nos», segundo a própria fórmula do acto de fé. Aquino cantava:
Cristo deu-lhe a sua Palavra e ele colocou a sua vida «Ver-te, tocar-te, saborear-te
sobre aquela Palavra do Verbo feito carne: «Sei em Não revela nada de ti,
quem pus a minha confiança» (2 Tim. 1, u). Quando Mas ouvir-te, isso só basta, e engendra a certeza
se diz do apóstolo que é o homem da Palavra, não da Fé.
é porque ele fala, antes de mais nada, para anunciar Tudo o que Tu disseste, Filho de Deus, eu o creio.
a mensagem: é, anteriormente a toda a acção, porque A tua palavra de verdade é mais certa que tudo».
ele comprometeu a sua vida, para ele e para todos O apóstolo aplica a mesma atitude a toda a sua
os homens, com a Palavra de Deus. vida: <<Porque tu o dizes, Senhor. cu lançarei as
Ele não vê o invisível mais que os outros, mas redeS>> (Luc. j, 5)·
<<mostra-se» como se o visse. É um hipócrita? De •
maneira nenhuma. Ele não vê, mas compreendeu a • •
palavra do Salmo, anunciadora do Evangelho: «Senhor,
a tua palavra é uma lâmpada aos meus pés, uma luz Assim o mistério do apostolado resulta muito da
para os meus caminhoS>> (Sal 1 r9, 105). sua própria natureza; ensinar aos homens a iluminar
O apóstolo é, portanto. o homem que na noite a sua vida por meio da Palavra divina.
espera a luz: o mundo do Antigo Testamento usava
a bela expressão de «espias da graça» : <<.A minha (1) Ttad. Chouraqui.
t6 COMO SE VISSE O INVISfvEL

E se M uma alegria para o apóstolo de Jje,


I O HOMEM DA m, DA PALAVRA E DA POBREZA 17

cm que Golias entende acabar com o Israel de Deus,


é a de descobrir que nunca, tanto como nesta se~da o apóstolo provoca o desa.fio: David obtém de Saul a
metade do século XX, a missão foi melhor delimi- permissão de combater o gigante Filisteu: <<Wrul
tada na sua função essencial criança contra um homem de guerra desde a juventude»
Porque a missão revestiu-se de muitas formas (I Sam. 17, 33). Adianta-se diante do guerreiro,
desde há dois milénios: os falsos deuses não faltaram, apenas com a funda e cinco pedrinhas da torrente,
mas hoje é a mesma ideia de Deus que é rejeitada. mas o seu apoio está em Deus. Aos insultos do
Nós já não estamos no combate para afirmar o verda- Filisteu responde: «Tu avanças contra mim com
deiro Deus; é a própria religião que os homens espada, lanças e dardos, mas eu caminho para ti em
recusam. Para os homens que nos rodeiam, a escolha nome de Javé ... » (I Salll. 17, 45).
não é entre Deus e Satan, mas entre Deus e nada, Sabe-se o que se segue, mas é bom recordar o
e eles escolheram o nada. episódio muitas vezes esquecido que precede o com-
Mas o nada oposto a Deus não está vazio, está bate: Saul tinha querido revestir David da sua farda
carregado do peso de todas as riquezas do mundo militar: <<Pôs-lhe na cabeça um capacete de bronze e
em expansão. Escolher o nada para os honmu de hoje obrigou-o a proteger-se com uma couraça. Cingiu
não é aceitar o nada (ausência do ser), é pomdr lt1tÚJ: David com a sua espada por cima da farda, mas David
os automóveis, as viagens, os confortos electro- em vão tentou caminhar porque não estava treinado ...
-domésticos, as culturas, o pensamento e o amor, e, por isso, desembaraçaram-no de todo este arma-
os amores finalmente libertos das sujeições a que o mento» (I Sam. 17, 38-39).
áistianismo os condicionara. Assim o apóstolo, se quiser enfrentar o combate
Os prestígios humanos, os laços com a cidade, singular da incredulidade de hoje, tem de renunciar
o exemplo dos grandes, as tradições que há pouco a meter-se nas armaduras próprias de Saul e de Golias:
ainda aureolavam as religiões, quaisquer que sejam, as suas armas são outras e a primeira de todas é a
caem e desaparecem: a causa de Deus já não tem soa pobreza. Em face da incredulidade maciça, a fé.
senão Deus para se defender. Já não estamos nas Em face das riquezas, dos prestigios e das técnicas,
escaramuças da vanguarda do anticlericalismo ou da a pobreza. Porque a pobreza é a consequência visível
perseguição - mesmo quando existem - nem nas da fé, a atitude daquele que espera tudo de um outro
guerrilhas retardadas. e o sinal daquele que não se apoia senão em Deus.
David está de novo face a face com o Golias de
armadura invisível. Compreendemos bem a actua- Fé e pobreza, será preciso escrevê-lo e sublinhá-lo
lidade típica deste episódio. No combate singular sem cessar, são a resposta própria e eminentemente
t8 COMO SE VISSE O INVISfvEL
I O HOMEM DA~ DA PALAVRA E DA POBREZA t9

adaptada para o tempo de hoje, o remédio verda- diferentes. O rosto maternal da Igreja, reflexo do
deiramente específico para enfrentar e cw:ar a ferida rosto de Deus, manifestava-se através de mil solici-
da incredulidade deste meio século. tudes: as obras da juventude, os hospitais, as escolas,
Ser pobres de facto, ser pobres de coração, uma as bibliotecas populares.. . Um sacerdote generoso
única e dupla pobreza - como a caridade - a que podia agrupar à volta delas numerosas boas vontades.
não chegaremos senão lentamente, ia a dizer pobre- Hoje, nas nossas cidades modernas, é a Repartição
mente, isto é, pouco a pouco, passo a passo. Não das Habitações Económicas que detém a chave dos
nos despojamos de um golpe, mas podemos tender apartamentos, de qualquer modo a esperança de obter
cada dia para a simplicidade, para o desprendimento, um, e o munidpio financiará o lar dos jovens e o
para a confiança em Deus só. «Hoje mais que ontem estádio de relva florida. Seria fácil continuar a lista.
e menos que amanhã>> não é senão uma divisa de Que nos resta? Nada... quer dizer, nada de
apaixonados ou, mais exactamente, é a divisa de imediato que se toque, que sirva e seja um susten-
todos os apaixonados do mundo, os de Deus e os táculo material da fé. Uma coisa apenas nos resta:
da santa pobreza. uma criancinha, pobre, sem poder, nua, mas esta
A pobreza exterior sem a humildade do coração criancinha é o menino do presépio, é Deus. E isso
conduz ao pior farisaísmo que pode ameaçar o após- basta. Nós estamos de qualquer maneira - que mara-
tolo. O relaxamento da pobreza efectiva esteriliza o vilha - colocados na impossibilidade de não termos
apostolado : abraçar as comodidades da vida não senão uma religião religiosa, até mesmo sem os anjos
será o mais grave, mas leva a procurar apoio noutra que alertaram os pastores dos arredores ou os magos
coisa que não seja só a palavra de Deus: regressa-se à do Oriente. A grandeza do papd missionário sai
armadura de Saul. daqui decuplicada: David provoca o desafio de Golias
Assim, o mistério da participação do apóstolo, e não tem sequer algumas pedras como armas, mas
«firme como se visse o invislveh>, na obra de Deus, Unicamente as de que fala São Paulo: «Nós vivemos
o apoio do apóstolo nesta única Palavra, a pobreza na carne, evidentemente, mas não combatemos com
que o despoja de tudo o que ocultaria que o seu os meios da carne. N ão, as armas do nosso combate
único recurso está nela, são três realidades ligadas umas não são carnais, mas têm, por Deus, o poder de
às outras, exigindo-se, completando-se. derrubar as fortalezaS>> (z Cor. 10, 3-5).
Antigamente - seria um bem? seria um mal?-, Jesus nasceu pequeno e pobre, certamente, pani
o combate apostólico era menos nltidamente circuns- testemunhar o seu amor aos pequenos e aos pobres
crito; antigam~te - e isso é ainda um facto, nem do mundo inteiro até ao fim do mundo, mas há uma
bom nem mau-, os meios apostólicos eram muito conveniência ainda mais profunda no seu humilde
20 COMO SE VISSE O INVISfvm.

nascimento. Nada é digno de Deus, nada está à sua


altura para o acolher, nenhum ornamento, nenhum
palácio, nenhuma sabedoria humana. Então Deus
escolheu um lugar onde não há nada, porque ali
não há concorrência irrisória nem falsas pseudo-
EVANGEIJZAR
-riquezas. Deus vem Unicamente onde Ele é tudo :
ao presépio, na pobreza de facto; em Maria, na pobreza
do coração.
Desde aqude dia memorávd e único na história
em que um homem que «respirava ameaças e morte
contra os disdpalos do Senhor Jesus» (Act. 9, 1)-
se viu, envolvido por uma claridade que jantava o
seu brilho à do pleno meio-dia, trespassado até à
alma por aquela voz: «Eu sou Jesus, a Quem tu
persegues» (Act. 9, 5) e lançado por terra na estrada
de Damasco, desde esse dia tornou-se imposslvd
pronunciar as palavras: Apóstolo, evangdizar, sem
aos virarmos para São Paulo. Quem rivalizaria com
ele? A sua conversão, as suas palavras, os seus gestos,
a sua vida, o fogo que o consome, fazem dele « O único
depois do Único». :Mas nós temos melhor ainda,
porque o mesmo Senhor autentificou o seu Apóstolo:
<<Este homem é um instrumento da minha escolha
para levar o meu nome perante os pagãos, os reis
e os filhos de Israel>> (Act. 9, l 5). A partir dal, o dis-
dpulo foi conduzido pdo Mestre na via real: «Eu
mesmo lhe hei-de mostrar quanto ele tem de sofrer
pelo meu nome» (Act. 9, l 6).
A vocação do apóstolo procurá-la-emas, pois, em
São Paulo e pergantar-lhe-emos o que é que ele
entende por wangeliz.ar: «lnfdiz de mim, se não evan-
gdizo» (1 Cor. 9, 16). Esta frase é iaesqueclvel na
22 COMO SE VlSSE O INVlSfvEL EVANGELIZAR 23

sua brevidade, mas tira todo o seu vigor do facto - d e vi·Sl·ta transforma-se em catequese, e con-
0 cartao
de ser, na boca de Paulo, um grito dilacerante saldo . . <Verdade que conduz à piedade na esperança
do mais profundo das suas entranhas. Evangelizar é, ttnua· < - • di
da vida eterna>>... (Tit. 1, 1-2). Paulo nao _sal sto e,
antes de tudo o mais, para ele, uma necessidade, não uando acaba as suas cartas, tem necessidade de o
uma coisa facultativa, qualquer coisa como: «seria q dizer <<Procurei a realização do Evangelho
muito infeliz, se não anunciasse o Evangelho»; o que tornar ª ·
de Cristo», diz aos Romanos (Rom. 15, 19) e aos
ele quer dizer é isto: <<acontecer-me-á certamente Efésios: <<Rezai também por mim, a fim ~e que eu
desgraça, se o não anuncian>. . a boca para falar e anunciar coraiosamente
possa a bru
Porque ele sabe e di-lo no mesmo momento: o Mistério do Evangelho, do qual, mesmo co~ as
«Pregar o Evangelho, com efeito, não é para mim
algemas, s Ou embaixador·• obtende-me a ousadia . de
um título de glória, é uma 1mes.ridade que me incumbe>> falar dele como devo» (Ef. 6, 19-20). Ele ~ assim o
(I Cor. 9, 16). Porquê? Porque «a iniciativa desta eco fiel do envio dos Doze na Ascensao: <<lde,
missão não vem de mim, diz ele, ... é um cargo que ensinai todas as nações». (Mat. 28, 19). . .
me foi confiado» (I Cor. 9, 17). E o grito de Paulo Uma palavra do pintor Braque po~ s~ ~e
já não é sequer o do homem que ele era antes, «livre conclusão: «Com a idade, a arte e a vt~ nao _sao
a respeito de todoS>>, mas o de alguém que, desde senão uma coisa>>; para São Paulo, evangelizar e viver
aquele instante, «se fez servo de todos a fim de con- fundem-se numa mesma realidade. .
quistar o maior número» (I Cor. 9, 19); e, diz ele, «Ü que vos for murmurado ao ouvido, pro-
se <<mantém o corpo em servidão, é com receio de, clamai-o nos telhados» (Mt. 10,27) dissera ~ ~~nbor:
tendo pregado aos outros, não venha ele a ficar tendo recebido «O conhecimeto do Misteno de
desclassificado» (I Cor. 9, 27). .
CristO»
(Ef· 3, 4) • sabendo que este segredo deve
Nunca ele poderá exprimir-se de outra maneira ser hoje manifestado a todos, o Apóstolo é ~ornado
que não desta: «Paulo, apóstolo de Cristo Jesus,
d e respeito diante da grandeza do acontccunento:
. d u· .
por vontade de Deus» ... (Ef. 1, 1). É esse o seu cartão «Revelação de um mistério envolvido e s enoo
de visita e não o modificará. De igual modo, dirá nos séculos eternos, mas hoje manifestado... levad~
aos Romanos: «Paulo, servo de Jesus Cristo, apóstolo ao conhecimento de todas as nações para as conduzir
por vocação, escolhido para anunciar o Evangelho à obediência da fé» (Rom. 16, 25-27). E a despro-
de Deus» (Rom. I. l ). Escrevendo a Tito, não se porção entre o mensageiro e a mensagem espanta-o
chama de outra maneira: «Paulo, servo de Deus e ainda mais: <<A mim, o menor de todos os s_antos,
apóstolo de Jesus Cristo para conduzir os eleitos de foi confiada esta graça de anunciar aos pagã~s a mson-
Deus à fé e ao conhecimento da verdade», mas, aqui, dável riqueza de Cristo e de a todos elucidar sobre
COMO SE VISSE O lNVIS1VEI.. EVANGELIZAR 25

a economia do Mistério» (Ef. 3, 8). Compreendemos nossas categorias, esta verdadeira boa nova cujo
então o seu grito: «E quem está à altura de uma cesto ~_o é senão marcha de aproximação ou conse-
tal missão?» (2 Cor. 2, 16). Como ousaria ele ser quência.
a?6stol?• se . não fosse impelido por aquela neces- Ora, esta anunciação fundamental é a verdade
sidade impenosa que invadiu a sua pessoa e a sua que nos encontra geralmente o menos disponíveis
vida? na acção quotidiana. Um sacerdote recentemente
Esta atitude do apóscolo por excelência deve ordenado contava como, havendo tido a imprudência
coroar-se a do disdpulo: «Conjuro-te diante de Deus de ir visitar uma das suas tias num convento de
e de Jesus Cris~o ... prega a palavra ... evangefua e con- contemplativas, estas lhe tinham pedido uma palestra,
sagra-te~ ~etçào do teu ministério ...» (2 Tim. 4, r-5). inesperadamente: «Mas eu não preparei nada 1- Isso
E esta suplica que São Paulo dirige a Timóteo torna-a não tem importância, fale-nos do amor de Deus.
ainda, ~ais solene o momento em que é pronunciada: «Ü jovem sacerdote acrescentava, não sem humor:
é a última carta do Apóstolo; pouco depois será «Pois bem 1 o amor de Deus, o amor de Deus ...
decapitado. ' e achei-me seco».
Esta anedota não pretende ser um argumento,
Qual é o conteúdo deste mistério? Paulo não o mas é um .sim.bolo sorridente duma situação muitas
po~e dizer sem «dobrar os joelhos na presença do vezes mais séria: o número de pregoeiros do amor
Pa.1»: «Que o Cristo habite em vossos corações pela de Deus, é afinal, muito reduz.ido. Contemos os
fé e que sejais enraizados, fundados no a.mon>. Assim sacerdotes, religiosos e militantes leigos que conhe-
recebereis_ a força de compreender ... o que é a Largura, cemos. Muito a sério, quais são de entre nós
o Compnmento, a Altura, a Profundidade conhe- os apaixonados desta anunciação? E qual é a sua
~reis o amor de Cristo que ultrapassa todo ~ conhe- percentagem? Dez por cento? Não ousamos afir-
omento e entrareis pela vossa plenitude na Plenitude má-lo.
inteira de Deas>> (Ef. 3, I4, 17_19). A seu lado, quantos «mordidos» pelos métodos
Compreende-se que a Igreja tenha escolhido de apostolado, pelos problemas sociais, intelectuais,
esta passagem como tema da missa do Sagrado psicológicos, artísticos, poliricos, que sei eu? E sem
Co_raçào, festa do a.mor de Deus por Jotkn os homens, ir mais longe, cu próprio tão persuadido do primado
pois que «os pagãos são admitidos à mesma herança» deste anúncio de Deus-Amor, como é mínima a parte
(Ef. 3,_ 6). O papel do evangelizador é, então, evidente: do tempo que lhe consagro cm cada dial O mesmo
anunaar «a tempo e a contra tempo» este amor inque- se passa, de resto, nos grandes acontecimentos como
brantável e sem exclusivo que ultrapassa todas as nas pequenas coisas.
..
26 COMO SE VISSE O INVISfvEL EVANGELIZAR 27

São Paulo, ao contrário, nunca se desvia desta anunciamoS>>, escreve São João às primeiras Igrejas
missao. Quatro ou cinco anos antes da sua última (I Jn. I, i).
declaração aos Efésios, ele explica-se já aos Gálatas Mas São Paulo ainda não disse tudo: alguns
e, graças a estes homens versáteis, beneficiamos do vcrslculos mais adiante, apesar do estremecimento
ensino mais completo no que concerne à evange- interior que se apodera dele de cada vez que fala
lização. O apóstolo é sempre aquele que transmite da graça do apostolado, vai mostrar-se mais didáctico
1
1, a revelação recebida de Jesus Cristo: «Sabei, irmãos, ainda. Numa frase, reúne os três elementos da voca-
11 que o Evangelho que por mim foi anunciado não é ção do apóstolo: ao contacto directo com o Senhor
segundo os homens, porque o não recebi nem aprendi que revela o seu mistério, junta a certeza do apelo
li de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo». e do envio aos pagãos:
1: (Gál. I, 11-12). A rigor, este texto não se aplica senão «M.as quando aprouve a D eus - que me separou
aos Doze e a São Paulo: só eles receberam a revelação desde o seio materno e me chamou pela sua graça
li
do Senhor e nenhum depois da sua morte poderá (eis o chamamento, o apelo)-
li acrescentar alguma coisa ao seu conteúdo. Esta reve- revelar a Seu Filho em mim {o contacto)
lação feita aos apóstolos é transmitida na Igreja pelo para que o anuncie aos pagãos (o envio) (Gil. 1,
magistério divinamente assistido. Mas compete a Ij-16).
cada um aderir pessoalmente a esta Palavra divina Estes três elementos são uma constante da vocação
pela fé viva, iluminada pelos dons do Espírito Santo. apostólica; encontramo-los reunidos desde a primeira
Nesta luz da fé e dos dons a alma encontra verda- convocação dos Doze pelo próprio Jesus:
deiramente a Deus. Não é, assim, menos verdade <<E chamou a Si aqueles que queria (o apelo)
que a nossa evangelização não pode ser mais que o E eles vieram ter com ele e elegeu Doze para serem
fruto directo da união pessoal e intima que mantemos seus companheiros (o contacto).
com o Senhor. Qualquer que seja a nossa formação, E para os enviar a pregar (o envio)» (Me. 3, 13).
é preciso, de certo modo, que possamos apropriar-nos ChamaálJ, impregnado, enviado pelo Senhor para o anun-
da frase de São Paulo, «por uma revelação de Jesus ciar, três graças iniciais cuja iniciativa total vem do
Cristo» ou então daquela que os Samaritanos diziam Senhor («os que quer ... desde o seio matemo ...»),
à mulher que os conduzira ao Senhon>. Não é pelo mas três graças inseparàvelmente unidas que vão
que tu dizes que acreditamos, nós próprios o ouvimos exigir do apóstolo a mais alta fidelidade e cons-
e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do tância.
mundo» Un. 4, 42). A alma do apostolado está nisso: A própria frase de Anaoias, aquela que antes de
ccO que vimos, ouvimos, contemplámos. .. nós vo-lo nenhuma outra Paulo ouviu, deve poder de qualquer
28 COMO SE VISSE O INVISlvm.

modo aplicar-se a cada apóstolo: «Ü Deus de


nossos pais predestinou-te para conheceres a sua
vontade, para veres o Justo e para ouvires as pala-
vras da sua boca; porque, para ele, serás testemunha
diante de todos os homens do que viste e ouviste>> O APELO
(Act. 22, 14-1 ~).

Responder-lhe, por vezes, é fácil: «eis-me aqui>>,


diz imediatamente Samuel, ao ouvir a voz misteriosa
que se faz sentir na noite; mas Samuel é ainda uma
criança, com a espontaneidade característica das crian-
ças.
Isaías reage também com prontidão. A voz do
Senhor chama:
- «Quem enviarei eu? quem será o nosso men-
sageiro? «Eu respondi: <<Eis-me aqui, envia-ma.
- Vai, diz-me ele ...» (Is. 6, 8).
Outras vezes, ao contrário, o profeta enche-se de
pavor: <<A palavra de Javé foi-me dirigida nestes
termos : «Conheci-te, antes de te formar no ventre
matemo, consagrei-te antes que saísses do seu seio;
estabeleci-te como profeta das nações».
,
E sabemos a resposta receosa de Jeremias:
- Ah 1 Senhor !avé, vê, não sei transmitir a
palavra: sou uma criança. Mas Javé respondeu: «Não
digas: sou uma criança. Mas vai junto de todos
aqueles a quem eu te enviar e diz-lhes tudo o que
cu te mandei. Não tenhas receio diante deles .. .»
Qer. 1, 4-8). Só muito raramente ao primeiro apelo
a resposta é diflcil. A dificuldade chega mais tarde,
quando os erros, as lassidões, os fracassos e a usura
O APELO 3t
ao COMO SE VISSE O INVISfvEL

invadiram a alma do apóstolo. Partiu-se como uma aspecto brilhante lhe mascarava a fragilidade. Deus
flecha: <<ldes ver o que ides ver. Eles (os velhos) tem o seu método; raras vezes muda. Moisés perante
nada compreenderam disso, mas um dia, como o o Egípcio que «enchia de golpes um Hebreu, um
profeta Elias, pômo-nos a murmurar: «Já basta, dos seus irmãos» (Ex. 2., n), escolhe o papel de defen-
Senhor, toma a minha vida, porque eu não sou melhor sor da sua raça, e passa à acção com a veemência
que os meus pais» (1 R. 1 9, 4). espontânea que se conhece. Mas, se Deus o quer
Jeremias exprime estes sentimentos: recorda-se cfcctivamente neste serviço, não é ainda a hora,
da alegria dos primeiros dias: «Tu seduziste-me, nem, sem dúvida, exactamcnte desta maneira: ser-
Javé, e eu deixei-me seduzir; tu dominaste-me, foste -lhe-ão necessárias várias dezenas de anos de espera,
o mais forte uer. 2.0, 7). de purificação no deserto, e, quando Deus, que o
Mas a tarefa é demasiado rude, o profeta não pode &hama11a desde o princípio, o en11ior1, sabe-se o espanto
mais com ela: «Cada vez que tenho de transmitir a do homem e o diálogo extraordinário em que Moisés
palavra, tenho de gritar e proclamar: Violência e lutará para ser liberto deste peso apostólico: «Quem
rufnal A palavra de Javé, para mim, foi sempre sou eu para ir procurar o Faraó?-Eu estarei con-
opróbrio e zombaria. Eu dizia-me: não pensarei mais tigo ... - Pois sim, mas se eles perguntam qual é o
nele, não falarei mais cm seu Nome>>. Uer. 2.o, 8-9)· teu nome? - Tu dirás: Javé, o Deus de vossos
É este grito tcrrlvel que preludia a vocação rcno- Pais, enviou-me para junto de vós ... - se eles se
Vllda. <<Porque é que o meu sofrimento foi sempre
1 recusam a acreditar-me e me dizem: Javé não te
contínuo, as minhas feridas incuráveis, rebeldes aos apareceu ...»
cuidados? Ah 1 Serias Tu, para mim, como um Javé faz então dois prodígios extraordinários,
ilusório arroio de águas decepcionantes? Javé res- 1 mas Moisés recusa sempre:
pondeu, então: se voltares, far-te-ei regressar ao meu - «Desculpai-me, Senhor, a minha boca é inábil
serviço, e, se exprimires pensamentos nobres e não vis, e a minha lfogua pesada.
serás como a minha boca» uer. Ij, 18-19). - Quem dotou o homem de uma boca? Quem
Passa-se com o Apóstolo o mesmo que se passa o torna mudo, surdo, clarividente ou cego, não sou
com o profeta: a sua verdadeira resposta, o seu verda- cu, Javé? Vai, pois, na tua hora: ajudar-te-ei a falar
deiro compromisso não vêm senão num segundo e sugerir-te-ei o que deverás dizer.
tempo. Longe de ser uma contra-indicação, a prova - Desculpa-me, Senhor, encarrega. pois, quem
da descoberta acutilante da nossa fundamental inca- Tu quiseres, desta missão» (Ex. cap. 3 e 4).
pacidade constitui o verdadeiro ponto de partida: É de importância capital para os apóstolos certi-
antes, isto era apenas uma tentativa rápida, cujo ficarem-se da necessidade desta purificação: Deus
COMO SB VISSE O INVISÍVEL O APELO 33

acende cm nós uma chama. mas. é preciso que ela «Quando o homem que sonha uma grande obra
consuma primeiro o que de mais humano há cm rcli~osa é um grande sensitivo, acarinha essa obra
nós as nossas inclinações, a nossa natureza, o nosso como o fruto da sua arte pessoal; põe nela, conm
pendor. Não que a natureza e o pendor das nossas verdadeiro artista, exigências subtis e ardores febris.
atitudes sejam maus; Deus escolhe os seus ~os e Ora, as Obras de Deus e da Igreja são frutos de razão
qualliica-os para o seu serviço, ~ .é n~s~o que e de sabedoria; além disso, é necessário que não pos-
tudo isso desapareça numa alqwnua mlStenosa até sam atribujr-se ao capricho e nem mesmo ao génio
não haver senão como único motivo de acção o apelo de um artista humano. Deus, no entanto, concede
de Deus que envia: «1n nomine Domini>> (a divisa ao artista a honra de pressentir e de anunciar a obra,
de Paulo VI). mas reserva à sua Igreja o realizá-la, muitas vezes,
Enquanto a natureza e a graça co~cidem, a a~ção por meio de instrumentos mais humildes. Esta pro-
é agradável e fácil : pemia.nece ainda demasiado vação, esta lei de purificação do individual e do
humana e Deus sabe melhor que nós até que ponto humano, é imposta tanto às ideias como às obras (1-)».
os rc~sos a nós próprios e as nossas complacêricias Esta provação, noite escura do apóstolo, é inevi-
a entorpecem. Como para Gedeão, a quem Javé tável e nós encontramos um símbolo vivo desta reali-
reduz, cm mais de noventa e nove por cento (de dade nos voos dos cosmonautas: sabe-se que, nos
trinta e dois mil para trezentos), o número dos seus momentos de aceleração e desaceleração intensos, eles
soldados (Cf. Juízes, 7), com medo de ~ue .º povo não podem contar senão com os reflexos pacientemente
se imagine ser o próprio artífice da sua vitóna, D:us elaborados anteriormente: o <<Véu negro» existe pan
queima noventa e nove por cento de nós própnos, o apóstolo como para os conquistadores do espaço.
mas com o um por cento que resta ele fará maravilhas. O P. Oérissac continua:
Joumet, na mina inc.sgotável da sua Église tÍll <<Diz-se que é necessário saber sofrer não só pela
Verbe [nçarné cita textos admiráveis sobre este assunto. Igreja, mas para a Igreja. Se há alguma verdade nesta
Que ele me permita transcrevê-los para o dia em palavra, é que nós temos necessidade, por vezes, de
que cada um de nós estiver submetido à «operação ser tratados fortemente, de ser mantidos na sombra,
Gedeão». Temos de persuadir-nos antecipadamente no silêncio e sob todas as aparências da desgraça, por
disso a fim de se tornar um reflexo no dia em que não termos apoveitado agora bastantcmentc dos favores
en~os nesta purificação, porque, e por definição, e dos avanços da Igreja noutros tempos.
esta purificação há-de realizar-se nesse momento sob
aparências completamente diferentes. O texto é do (1) Joumct, tomo I, p. '48J, citando LI ""rim tll l'E1.lin,
P. Oérissac a propósito de Newman: p. 131.
a
1-

COMO SE VISSE O lNVlSfvEL O APELO 35


·~
c<l)c ois não o duvidemos, este tratamento forte, mado. Deus obrigou-o a tomar consciência de uma
obri P
do-nos ' a concorrer cficazment e r n11.f'2. a ordem
-- . miséria particular, de um vazio a preencher. Segundo
gao · _i_..le da IgrC)·a, será rv.if'2. n6s o equivalente a forma de sensibilidade que Deus deu a este coração,
e para a santlClll.U r-- inal
__ n,.,,..-1 de uma missão. Em todo o caso, os a vocação tomará uma feição diferente e levará a
w~-~b f~ é
certo de que guardamos a plenitude do EsplLltO compromissos variados: a fome, o frio, a doença,
não admitirmos nunca que possamos sofrer pela a morte, são outros tantos apelos permanentes; o subde-
· d ~.. n..;...,, diferente da que podemos sofrer senvolvimento, a injustiça social, a ausência de pro-
I gre1a e .....-.~ ..
por Deus (1).» . moção humana, são de igual modo necessidades
Possuímos ~bém o texto em que o pr6~no prementes, e tantas outras 1
Newman se explica: «Há um tempo para cada coisa; O discípulo de S. Paulo, esse, foi chamado a tomar
. d um homem desci· a a reforma de um abuso, consciência da espantosa miséria - a seus olhos, a
ma.is e d .
0
desenvolvimento mais completo de uma . 0~~ mais dilacerante de todas - que é a ausência e a
ou a adopção de uma medida de particular disoplioa, ignorância de Deus : <<Lembrai-vos de que, nesse
mas esquece-se de perguntar a si mesmo se o tempo tempo, vós estáveis sem Cristo, excluídos da cidade
conveniente para os realizar já chegou e, sa~n~o de Israel, alheios às alianças da Promessa, não tendo
que ninguém do seu tempo fará nada para a :ealiza~o esperança nem em Deus, nem neste mundo I» (Ef. 2-12).
dos seus desejos a menos que ele o faça, oao ouvirá Esta miséria parece-lhe atingir o seu paroxismo
a voz da autoridade, danificará no seu sé~o ~ quando se abate sobre o pequeno e sobre o pobre.
obra útil, de tal modo que outros, que aiod~ oao Não só porque o pobre esteja desprovido de outros
nasceram, já não encontrarão no século seguinte a bens, mas porque, no pró prio limiar de Deus, dele
ocasião favorável de conduzir felizmente esta obra é afastado. <<Estar sem Deus e sem esperança no
para a peáeição. Este homem pode parece~ ao m~do mundo» é, para o apóstolo, a miséria absoluta: ele
ousad o campea-o da verdade e um mártir da livre que se sabe pecador apesar da claridade de Deus
· ·- q .........,
op101ao, nndo é realmente um homem . . a 2quem a que ilumina o seu caminho pergunta-se com angústia
autoridade competente deve impor silêooo ( )». como avançarão aqueles que andam nas trevas e na
'À Deus chama como quer e para o que quer. Mas sombra da morte.
rv.ira antes 0 seu enviado e o coração do apóstolo Esta experiência da mais elevada desgraça do
prer--• , cha
é secretamente ferido antes mesmo de se saber - homem «O boi reconhece o boieiro e o jumento o
estábulo do seu dono, Israel não conhece nada, o meu
(1) ld., tomo Il p. 507, citando Clérissac, pag. 134. povo nada compreende>> (Is. 1, ,), é insubstituível
(1) ld., 1, pag. 484, oo ta 1 . Aquele que foi ferido da miséria da incredulidade e
16 COMO SE VISSE O INVISfvEL O APELO S7

do ateísmo já não tem necessidade de ler milhares de É uma felicidade olhar indefinidamente wm tal
textos dos teóricos para se convencer dde, nem de paisagem tanto nos seus planos mais gerais como nos
acumular as teses da sociologia: o chamamento do ,, seus pormenores. E se por acaso choveu, desde
Senhor ao apostolado penetra pela sua ferida e, segundo que. se esgaravate na areia, grãos minúsculos pro-
a sua profundeza, nós seremos mais ou menos pro- dUZU'.am rebentos de alguns millmetros. Tudo isto é
fundamente apóstolos. belo e cheio de Deus 1
Não devemos deixá-la cicatrizar, esta ferida, e, Bela também, e admirável, a técnica do petróleo.
perante a incredulidade, exige-se-nos não uma exor- Os derrik.t de quarenta e cinco metros de altura
tação fictícia, mas um olhar sempre desperto. Esta baixando a sua árvore de transmissão e o seu trépano
ausência de Deus encontramo-la em toda a parte: a três ou quatro quilómetros debaixo da terra,
no combóio, no autocarro, nas conversas e nos salões 1, os extraordinários tocheiros de violência e de cor
de chá, no atelier ruidoso da fábrica como no ambiente iluminando a noite. Aquelas vias de autoestrada cm
alcatifado do quadro superior, ou nos grupos de li que as placas que limitam a vdocidade pedem que
jovens fazendo ruldo nas suas motorizadas. Mas cm se faça a viragem somente a cem quilómetros e que,
certos lugares e perante certos contrastes, sentimo-nos 1
em pleno deserto, têm sentidos giratórios e viadutos
ainda ma.is martirizados. 1
a evitar cruzamentos dignos da América 1 Tudo isso,
também, é belo e bom, como, de resto, a magnifi-
Eu penso nas bases de extracção do petróleo, não cência de uma indústria em que o menor utcnsilio
ousando acrescentar <<no Saará», porque os aviões de vale oitenta ou cem milhões, em que o avião substitui
todos os tipos, os camiões gigantes, a dcctri- o táxi para levar o prospector ao seu trabalho, ou
cidadc, as piscinas, os climatizadores fazem dde uma repatriar um ferido mesmo pouco grave.
realidade que cm quase nada se assemelha ao deserto Mas que deserto espiritual 1
que esta palavra evoca. Nunca foi tão actual a palavra do Evangelho: «De
Bem certo, é-se literalmente ofuscado pela beleza li que serve ao homem ganhar o universo inteiro (o oiro
desta região : uma luz envolvente que faz adivinhar 1 n~gro) se vier a perder a sua alma>> (Luc. 9, 25), quer
pelo seu esplendor o que é a presença da imensidade dizer, a esquecê-la? Ricamente pagos, fortemente
de Deus, tintas de areia que representam todos os 1 nutridos, hàbilmentc distraídos, estes operários e
«beijes» possíveis do mais claro até ao malva, e cada engenheiros que vivem longe dos seus não conhecem
tom modificado ainda pelos rdcvos, pelos valczinhos, mais, durante nove semanas, nem o domingo, nem
pelas dunas e até sulcos que o vento rasga sobre o o Natal, nem qualquer outra festa: <<Ahl, sim,
solo. o domingo é o dia em que, ao meio dia, se fazem
S8 COMO SB VISSE O INVISfvEL O APELO 39

os ensaios das sirenes l» Tudo é pensado e organi- há DcUS>> (Sal. n-2) mas ele dava, por esta mesma
zado fora de Deus: Deus está ali socialmen.te ~uscnte, palavra, a prova da sua loucura. Ora, isso foi verda-
nem sequer há anticlericalismo, mas ~ m~erença deiro até Nietszche e Marx, os geniais disdpulos de
polida e fria: <<Deus? Mas que quercts que isso me Fuerbach, mas, a partir deles, o mundo sem Deus
faça?» Porque Deus tom~u-se semelhant~ àqu~ não julga poder crescer a não ser na proporção cxacta
palavras que nos são dev.olvtdas com a ~eg1:11°'te nota. cm que se desembaraça da ideia de Deus. «Se o
<<Desconhecido, não habita na morada 10dicada>>. positivo, o essencial na determinação da natureza de
Neste sentido, esta mais moderna indústria surge- Deus, é tirado à natureza do homem, o homem será
-nos como terra de missão em estado puro. Não despojado de tudo o que se der a Deus. Para que
está, efectivamente, misturada com problemas poli- Deus seja enriquecido, terá o homem de ser empo-
ticos, sindicalistas e outros, como os que conhecemos brecid0>>(1).
na França, mas é ainda mais angustiante, tanto a Tudo está dito nesta frase e a tese apresenta-se
distância se faz sentir entre o plano das técnicas extraor- na sua nudez quase matemática. Segundo o seu génio
dinárias postas em acção e o plano espiritual assim particular, Marx, Nietzsche ou Sartre revesti-la-ão
mantido. O deserto geográfico de outrora é substi- da sua própria sedução. «Ü homem, dirá Marx, não
tuído assim pelo deserto espiritual. pode ser senhor de si próprio senão quando deve a
Tocamos aí com as mãos <<a honra de Deus a existência a si mesmo... O atc1smo é uma negação
vingar», como diriam os Salmos; ~do a es~ palavra de Deus e por esta negação de Deus põe a existência
tudo o que ela tenha de agressividade, diríamos: do homem (1). A partir daí, Marx, analista tão pro-
a vingar por um amor muito mais interior e fiel. fundo das taras do século XIX, vai fazer deste pensa-
O chamamento ao apostolado impressiona então o mento o fio condutor que permitirá construir o
discípulo: teria Cristo morrido em vão? novo mundo.
E seis linhas, apenas, resumem o pensamento de
Uma nova etapa falta ainda vencer, uma nova Nietzsche: «Homens superiores, este Deus foi o
chicotada a sofrer, quando o apóstolo descobre que vosso maior perigo. Vós não ressuscitastes senão
a ausência de Deus não é uma simples atitude de desde que ele jaz no túmulo. Somente, então, chegou
cacto
l~ ,
mas, sim, uma indiferença sustentada porrinh
uma o grande meio-dia; presentemente, o homem superior
doutrina. Étienne Bome, no seu vigoroso liv o
Di111 n'est paJ mor/, descreve a novidade do. atc1smo (1) Fcurbach, Erse"" áJI Chrisliani11111, citado por Bomc,
actual. Um mundo sem Deus não é uma coisa nova p. 31.
( 1) Marx, É"1110111il politiqtM e/ philosojie, citlldo por Bomc,
e já no Salmo «O insensato disse no seu coração: não
PP· 27-28.
COMO SE VISS.B O INVIsfvEL O APELO u

toma-se senhor... Somente agora a montanha do loucura; ap~stolo, irá misturar-se à multidão pua
futuro humano vai ser concebida. Deus está morto, lhe pregar, mcessantemente, com a vida e com a
agora nós queremos que o super-homem viva (1).» palavra o único essencial.
~~uanto os homens estiverem feridos desta chaga
Ora, estes pensamentos encontramo-los nós, defor- da mdiferença de Deus, enquanto, no seu intimo,
mados, diluídos, mas verdadeiramente subjacentes, uma doutrina, rica de todo o dinamismo do mundo
cm muitos dos nossos vizinhos, amigos ou conhe- moderno, mantiver a sua incredulidade numa certeza
cidos... A cada canto da rua, des bebem este veneno, 1
paciíicadora, o apóstolo trará esta chaga aberta em
como água, espantados e orgulhosos de não se sen- si mesmo. Mas, ao mesmo tempo que sofre deste
tirem mal com eles. mal, o apóstolo está certo de uma certeza de fé, abso-
Aquele que foi ferido no seu amor a Deus, por luta portanto, e indestrutível, no trabalho permanente
o ver injuriado, relegado para o armazém das coisas de Deus nas almas, dos seus apdos secretos dentro
acessórias, odiado, esse está pronto para ouvir o i dos corações. Quanto mais o mundo actüal, com os
chamamento do Senhor; aquele que pressente, no os .seus ritmos e as suas técnicas, tende a rejeitar
amor aos seus irmãos de humanidade, a angústia ' a f~ e a relegá-la para a margem da sociedade, tanto
sem nome que brotará um dia do mais intimo destes mais o apóstolo, correspondendo ao apelo do Senhor,
homens e destas mulheres vazios de Deus, esse também segrega, pela sua própria chaga, a antitoxina vito-
está, desde então, preparado para ouvir o apdo do riosa, a sua fé: Deus é maior que tudo e a indiferença
Senhor. O amor deste homem a Deus que não hesitou e o ateísmo não são mais que uma gota de orvalho
entregar o seu próprio Filho à humanidade ingrata, diante do calor do seu sol. Daí a nossa alegria e a
o amor deste homem aos seus irmãos, que vê muti- certeza da utilidade e necessidade da nossa vida de
larem-se na sua mais bela tranquilidade e correrem servos mesmo «inúteis». «Assim, pois, mostrai-vos
angustiados para os tranquilizantes farmacêuticos ou ,, fumes, inquebrantáveis, sempre em progresso na obn
para os soporíferos, este duplo amor perante tantos ' do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão
atoleiros, far-lhe-á ouvir o chamamento do Senhor. ' diante do Senhor» (I Cor. 15, 58).
Monge, ele consagrar-se-á mais exclusivamente a
1
viver diante de Deus só, em nome de todos os
homens e por eles, compensando, recolhendo a sua 1

(1) Nietzsche, AiNi parl4il ZflTalÓOIUfr11, citsdo por Bome,


p. z8.

~
,,
A PRESENÇA ENGRANDECEDORA
DO SENHOR

O apóstolo ouviu o chamamento e parte: o con-


tacto com os homens, as conversas, as amizades não
lhe faltarão. Teremos muitas, para dar e vender,
mais do que poderíamos, mas a grande preocupação
das nossas vidas é ser um homem de Deus, vivendo dele,
tom ele, por ele. E isso os homens esperam-no de nós:
«Por toda a parte por onde passa um santo, ele deixa
sempre qualquer coisa>>, dizia o cura d' Azs.
«De que serve ao homem ganhar o universo
inteiro, se vier a perder a sua alma?» (Luc. 9, z5);
esta. palavra aplica-se tanto ao ganho sórdido do
avarento, à investigação tor.n ada exclusiva do sábio,
como ao «apostolado», quando ele se acompanha do
esquecimento do Deus vivo e pessoal. Moisés conduz
o seu povo na marcha para a. Terra da Promissão
que representa. a história de toda a humanidade.
Ora, Moisés é o homem a. quem Deus fala «como
um amigo fala a. um amigo» (Ex. B, n). A vida
cristã não será nunca outra coisa que não seja uma
amizade do homem com Deus e, se há uma definição
da caridade a que devemos reportar-nos sem cessar
COMO SE VISSE O INVISÍVEL A PRESENÇA ENGRANDECEDORA DO SENHOR '5
" de orvalho que reBectc o sol e se ilumina com ele.
como à fonte da nossa juventude e do nosso deslum-
bramento, essa é bem a de São Tomás de Aquino: «Que seja por toda a parte melhor conhecido, melhor
u çaridaJe é 11111a amiz.ade 'º"' De1m>. Esta curta frase,
amado, melhor servido», di-lo a oração jocista admi-
sem brilho, é mais fulgurante, quando nós a fazemos ràvelmente.
brilhar na sua plena significação, do que mil sóis Se a amizade se opõe radica.lmcntc ao egoísmo,
atómicos. Nós tetlamos, sem dúvida, pronunciado exige-se, em contrapartida, a reciprocidade. Carmcn
a palavra. <<a.mOO>, mais forte à primeira vista, Ol2S pode cantar cm todos os teatros do mundo: «Se tu
a palavra «antlzade>> recolhida dos lábios do Senhor: me não amas, eu amo-te, - E se cu te amo, toma
«Chamo-vos amigos» Qn. 15, 15), leva mais longe. cuidado contigo I» e Carmcn não conhecerá a amizade
Deus-Senhor, Senhor eterno, formidável, Deus-Pai que exige esta mútua permuta que dá e recebe. E São
fonte do nosso ser, ternura infinitamente dadivosa, Tomás tem esta &ase admirável: «Porque um amigo
que abismo, mas ainda de sentido único 1 Deus-amigo, ama no seu amigo alguém que o ama também».
e eis-nos na reciprocidade. Numa intuição de génio Entre Deus e nós, e nós e Deus, uma perpétua reci-
teológico, São Tomás vai fazer-nos penetrar, mais procidade. Deus ama-me, eu amo-o, nós amamo-nos,
adiante, nesta surpreendente realidade: não somente e se acontecimentos tristes da minha vida me fazem
a palavra do Senhor é tomada a sério, mas, tendo trair este amor a Deus, cu não posso duvidar do
perguntado ao velho Aristóteles o que é a amizade, amor sem falhas de Deus por mim.
São Tomás aplica. a noção inteiramente humana, que Mas - terceira exigência da amizade segundo Aris-
dele recebe, a este encontro recíproco e prolongado tóteles - o dom de si e a reciprocidade exigem para
do homem com Deus. se estabelecer um terreno comum; é muito mais
Uma amizade é, antes de tudo o mais, o oposto de que uma simpatia nascida de uma semelhança do
um egoísmo: é fazer passar o amigo · à frente de si espírito, ou duma afinidade mesmo profunda: a sim-
próprio, querer o seu bem, e eis o homem que, para patia e a afinidade enriquecem a reciprocidade da
ser amigo de Deus, se eleva até desejar o bem do amizade, mas não a criam. A comunhão-comunicação
próprio Deus a Deus mesmo. Ele alegra-se de que de amizade tem de radicar-se num solo nutritivo
Deus seja Deus e isso importa-lhe mais que a sua comum aos dois amigos: este terreno comum é um
própria miséria de homem. O que Deus é, deseja-se fundo indiviso do ser e da vida, uma comunidade
que o seja, e o que Deus quer, adere-se-lhe porque numa semelhança.
Ele é nosso amigo. Acrescentar-lhe, dar-lhe o quer Mas entre Deus e mim, poderá haver um terreno
que seja, isso é impossível - quem acrescentaria um comum, pertencendo propriamente a Deus e perten-
caio ao sol?-m.as quere-sc o pedaço de vidro ou a gota cendo-me também a mim, e sobre o qual se coas-
COMO SE VISSE O INVISfvEL A PRESENÇA ENGRANDECEDORA DO SENHOR U

truirá a nossa amizade? O impossível realiza-se na O homem de Deus possui um segredo: Deus
comunicação que Deus me faz da sua própria vida: revdou-lhe o seu nome: Pai, Filho, Espírito de Amor
0 que ele é no seu mistéri o, dá-mo para que possamos, e, através destas palavras humanas, o homem atinge
a partir desta comunidade de ser, realizar a comunhão o intimo mistério de Deus. Através de palavras que
da amizade. Assim, o homem de Deus é aquele que balbucia e que permanecem carregadas de obscuridâde,
renunciou a tudo para não ser senão o homem da entra em comunicação com cada uma das pessoas
amizade com Deus. Todos são chamados a isto, divinas: encontra a1 a sua alegria intima, a sua pacifi-
que não é reservado ~ alguns _especialistas~ ~ cação, não um refúgio, uma evasão, mas o próprio
alguns sentiram-se um dia tão fascinados que Já nao centro, infinitamente calmo, onde tudo se congrega.
podem - que já não querem - conhecer ou viver Se vivesse longe disso, não teria a sua conta, nem
outra coisa. Um homem de Deus é um homem se deixasse de ser um amoroso perpétuo do seu
voltado para Deus e que o reencontra em todas as amigo-Deus.
suas presenças. A primeira é a própria criação, porque É um homem voltado para Jesus-Cristo: a grande
a criação é já um sinal que faz pressentir Deus. presença de Deus que «habitou no meio de nós».
Muito recentemente, num dos maiores processos O mesmo Deus da criação, o Verbo semelhante ao
do nosso tempo, na cadeira dos acusados, um homem Pai, pôs-se ao nosso alcance, para que a reciprocidade,
fazia esta declaração : «Não fui orientado pela minha a comunicação, a comunhão entre Deus e os homens
familia e não soube encontrar, nem na Bíblia, nem sejam totais. «Ele amou-me, entregou-se por mim»
em Karl Marx, aquela ordem de mobilização moral (Gal. 2., 2.o), e, por minha vez, eu dou-lhe a minha
que eu procurava. Talvez a tenha julgado perceber vida: dar, não por uma ideologia, mas por um laço
através de Niet2scbe, restava-me procurar o meu de pessoa a pessoa. Este Cristo é de tal maneira homem
caminho. que foi, de como eu, e segundo a palavra do Salmo,
Não estou corrompido nem azedado. Não sendo «concebido no seio de uma mãe» (Sal. 139, 13), e esta
crente, sei que existe alguma coisa que se encontra mãe, a sua, eu amo-a, estremeço-a, escolho-a como
no sorriso de uma criança, num ramo de rosas ou minha e ele dá-ma. E o seu n ome é Maria.
num concerto de Bach>>. E Jesus Cristo e a Igreja é tudo um: homem de
O homem de Deus sabe ler este liame entre Deus, e homem da Ig reja. Como me poderia vir
o rosto da Criança, o perfume da rosa e Deus. à ideia ser um reformador da Igreja? Quererei eu
A sua faculdade de amiração cresce sem limites: reformar Deus? Mas Jesus Cristo chama-me para
um grão de pólen basta-lhe para reencontrar o seu muito mais: a Igreja pela qual ele morreu na cruz
criador. é a humanidade reunida desde Adão até ao Apo-
COMO SE VISSE O INVISfvEL A PRESENÇA ENGRANDECEDORA DO SENHOR ~9

calipsc. Ele quere-a sem manchas, sem rugas, rcsplan- outra religião, não é menos verdade que é fnfuna. a
dcccntc como uma esposa na manhã das suas núpcias porção dos apóstolos que vivem cm si o mistério
e eis que o meu amigo me chama para continuar o de Cristo e se não contentam com pregá-lo. A ter-
que Ele fez, isto é, para acabar o que falta à sua Paixão, rível doença profissional do apóstolo é acreditar que
no meu próprio corpo, para a porção da humanidade pode desempenhar uma missão deixando mais ou
de hoje. menos de viver inteiramente em si o mistério que
O homem de Deus é o homem de um grande anunoa.
amor: Deus encanta-o, fascina-o, ele saboreia Deus, Todos nós estamos ameaçados por isto: tomarmo-
a sua voada.de maravilha-o cada dia mais. E, quanto -nos um profissional do apostolado, um especialista
mais os homens à sua volta permanecem insensíveis, da liturgia ou da catequese, um permanente disto
tanto mais ele se sente chamado a isso em nome ou daquilo, um profissional da Acção Católica, talvez
de todos: «a caridade cobre a multidão dos pecados» mesmo um profissional do episcopado, e dizer «pro-
(I Ped. 4, 8), um só amor pesa mais que todas as fissionalmente>> tudo o que é preciso, até com feli-
ingratidões. E por isso é que, em nome de todos cidade, mas esta função repeliu a única coisa neces-
os homens, ele se volta cada vez mais para Deus, sária: viver, sofrer em Cristo.
para que também eles não sejam privados desta alegria, Tornámo-nos um homem do apostolado, deixámos
para que por ele, ao menos na multidão em que não de viver o nosso baptismo. Anunciamos ] esus Cristo,
faz senão um com os seus irmãos, Deus deixe de mas já não estamos preso a Ele senão debilmente e
ser desprezado. Nada no mundo é mais infinitamente com intermitências. Demos-lhe a nossa vida, como
vinculante, mais maravilhosamente diverso e total- um homem que deu em tempos a sua vida à esposa,
mente simples do que Deus : o ser mais amado diante do Sacerdote, mas cada um vive, agora, lado
esgota-se; nunca acabamos de descobrir a Deus e o a lado. Não somos positivamente infiéis, mas a
homem de Deus caminhará sempre de alegria em artéria por onde circula a graça está invadida de
alegria. detritos.
A qual de nós não aconteceu, um dia, dizer-se:
Por mais que se tenha dito e repetido, por mais <<Apesar de tudo, para Deus, eu fiz tanto como o
que se tenha pregado, explicado, que o cristianismo Padre X; ou como o padre Y». Sim, o meu trabalho
não é somente uma doutrina, mas o encontro de está melhor organiza.do, eu senti melhor as correntes
alguém, a adesão a uma pessoa, a do Senhor Jesus, actuais da juventude, descobri melhor o lugar do
e que um vínculo real, misterioso e forte, nos une laica.do e tudo o mais que se quiser ... é possível
a Ele, e que isso diferencia a nossa fé de qualquer que em relação ao pobre padre, simples proposto,
I
"
50 COMO SE VISSB O INVISfvEI. A PRESENÇA ENGRANDECEDORA DO SENHOR 51

eu ocupe um lugar de chefe de serviço, mas tenhamos geométrica, a fé dos cristãos que, na pessoa do subde-
cuidado, um e o outro, se somos apenas funcionários senvolvido da América, da Ásia, da Africa ou da
e não «entusiastas» de Cristo. Tenhamos cuidado se cintura vizinha, nutre cientemente o mesmo Jesus
somos daqueles que descem do Calvário, dizendo: de Nazaré, o Verbo feito carne, o desejado das colinas _ _,
«Foi uma bela cerimónia, havia muita gente ...» eternas.
Basta olhar para um convertido recente: para ele, Viver Cristo é isso: estar directamente <<ramificado»
o Senhor é a descoberta da ma vida. O Senhor fala-lhe, naquele que nasceu num presépio, cresceu cm Nazaré,
verdadeiramente, Cristo Jesus dá-lhe instruções rigo- falou nos campos da Galileira, se afumou Filho do
rosas: «Se o teu olho te escandaliza, se olhas uma homem e Filho do Pai, naquele que disse: <<Antes
mulher com maus desejos, se adormeces com alguma de Abraão existir, eu existo» Qn. 8, 58) e que dizia
coisa no coração contra o teu irmão ... vende o que também com toda a verdade: «Tenho sede>> Qn. 19, 28).
tens, compra a única pérola; ora ao Senhor em silên- É ter Jesus presente no «écrao>> da televisão da nossa
cio; eu tinha fome e tu deste-me de comer ... » Tudo vida.
se joga directamente entre Cristo e o seu discípulo, Ora, nós dilui.mos este Cristo, se não nos preca-
entre o discípulo e o seu Senhor. É a fonte de água vemos, nas organizações que nos cercam de todos os
borbulhante para a vida eterna onde ele se dessedenta. lados, tão vastas e tão numerosas que invadem o
Não se interpôs entre o convertido e Cristo uma série nosso tempo e o nosso espírito. Podem citar-se
de pequenos reservatórios de decantação que trans- todas e, se eu me esqueço de algumas, que não me
formem a água viva em água de torneira e o apóstolo acusem de ter por elas uma preferência oculta: um
cm soldador especialista de tubagens. cristão comprometido num movimento sindicalista
Eu não digo que os reservatórios de decantação ou numa acção social, litúrgica ou bíblica, missio-
sejam inúteis: se pensamos no problema da fome nária ou da Acção Católica; o partidário de Témoignage
no mundo, é preciso uma F. A. O., organizações, ChréJien, ou de La France Catholiq11e ou de L'Hommt
máquinas, estatísticas, electtónicas, revistas, macro e No11Vea11, o teilhardiano, que descobre as dimensões
micro-realizações, a opinião tem de ser alertada, cósmicas do Alfa e do Omega, etc., numa palavra,
e, perante o flagelo que atinge um bilião de homens, 1 todos aqueles que se puseram cm movimento em
não podemos contentar-nos com fazer rezar os meninos nome do Senhor, todos esses estão cm perigo de
de coro e obrigá-los a dar uns parcos centavos para traição e de indicácia final se não mantêm briosamente
«OS pequeninos que morrem de fome>>. Tudo isso é a única coisa necessária: o encontro pessoal, silencioso,
evidente. Mas, ao mesmo tempo que crescem os «sentados aos pés do Senhor, a ouvir a Sua Palavu»
meios postos em acção, deve aumentar, em proporção (Luc. 10, 39), cm face da sua pessoa real, chamando-o
//
COMO SE VISSE O INVISfvEL A PRESENÇA ENGRANDECEDORA DO SENHOR 53
52

pelo seu próprio nome: «Jesus, Scnhoo>, e ouviodc:ro Do mesmo modo, uma Missa, habitualmente não
também chamu-nos pelo nosso. . preparada, cm que nós, Sacerdotes, nos libertamos da
Ora, viver Cristo é reencontrá-lo nos seus austé- motorizada ou do z. cavalos na siacristia e no altar,
nos, a -c1e
L..---- -
.PJJ
e a sua M.ãe • e unir-nos sem •cessar a todos uma comunhão todos os dias apressadamente recebida
os episódios da sua vida, uns a segwr aos outros, pelo fiel, como podem ser presenças fecundas, criando
11 fazendo-os desfilar numa meditação que lhes dará e dando amor?
1

ma.is consistência real que toda a imaginaria qu~ as E que ninguém venha objcctar: «Nós não somos
publicações ilustradas põem diante de nós. É praucar monges» e mostrar uma agenda preenchida de quarto
os «retornos a Deus» que são como um <<flash» ao cm quarto de hora. Deus não nos chama para sermos
longo dos nossos dias. E é, de igual modo, fazer «homens de negócios»: pede-nos que sejamos contem-
cegamente o que Jesus chama amar, ~p-licar com~ plativos do seu mistério e que levemos aos outros este
crianças as suas lições sobre o amor, as liço~s pessoa.is mistério contemplado.
de Jesus, dadas em seu próprio nome : E ~u digo-vos.· ., O Padre Pcyriguere dizia a futuros sacerdotes:
ligar em nós, incorporar a nós estas att~des de obe- «Estai atentos para que, convosco ao serviço da
diência a Jesus. Assim, por atitud~ preasas.- a face Igreja, não seja mais um apóstolo que fala simples-
esquerda depois da direita, as súplicas ao Pai, o amor mente de Cristo. Quantos dão Cristo sem falar?
dos inimigos - Jesus dará ao nosso coração a fonna, Quantos, falando dele sem O viverem, o não dão?
o elan da própria caridade. Cristo está farto de apóstolos que falam. Oh 1 Como
Viver Cristo é também reencontrá-lo nos seus Ele tem fome e sede de apóstolos que O vivam».
modos actuais de presença, os sacramentos, mas
na condição de que sejam justamente modos de
presença e não exercícios a que nos submetemos
ma.is ou menos generosamente. O sacramento da
Penitência é típico a este respeito : que palavras se
não têm inventado para falar dele: «a limpeza,. a bar-
rela» e, no melhor dos casos~ «tenho que me ir con-
fessam. Ter-se-á esquecido que ele é um reencontro
com o Senhor e uma amizade renovada e, se pccimos
gravemente, o gesto do filho pródigo levantando-se
e caminhando de encontro ao Pai que perdoa e apaga
o pecado?
1

1
O ENVIO AOS PAGÃOS

O apelo, o viver com o Senhor, o envio aos


pagãos, três tempos de um mesmo movimento, inse-
paráveis uns dos outros
Gregos e judeus, ateus e crentes, todos são cha.-
mados, sem distinção, por Deus Nosso Senhor, que
quer que todos os homens sejam salvos e cheguem
ao conhecimento da verdade» (I Tim. 2, 3, 4); é isso
o Evangelho de que São Paulo hão deixa de mara-
vilhar-se, de um extremo ao outro das suas cartas,
aquele ecumenismo da riqueza de Deus oferecendo-se
a todos os homens: «OS pagãos admitidos à mesma
herança, membros do mesmo Corpo, beneficiários
da mesma Promessa, em Cristo Jesus, por meio do
Evangelho» (Ef. 3, 6).
Aos pagãos recentemente convertidos de Roma,
São Paulo recorda esta cadeia divina de malhas inque-
bráveis, ou, mais exactamente, esta reacção em cadeia
que não pode deixar de se produz.ir. P~a sermos
salvos, é necessário invocá-lo, ao Senhor; para o invocar,
é preciso acreditar; para acreditar, é preciso 011Pir ,·
para ouvir, é preciso um anunciador; para ser anun-
ciador, é preciso ser enviado (cf. Rom. 10, 14-17).
Assim, o envio invisível do mensageiro é o sinal
de que Deus, invislvelmente, está já à obra para salvar:
Enviado-anunciador-ouvir-acreditar-invocar-salvar.
56 COMO SE VISSE O INVISfvEL O ENVIO AOS PAGÃOS 57

Há nisto uma certeza que é a mais elevada f~r~ espinhos abafam a semente, à beira do caminho,
do apóstolo: se Deus me envia, é qu~ ele deadiu e invadem lentamente a terra boa do campo.
salvar. Nem todos, ah 1- e São Paulo di-lo - obede- O mal, hoje, é ainda mais usurpador do que na
cerão à Boa Nova, mas o enviado sabe que a sua só parábola do semeador, porque os espinhos já não
presença é já sinal da vontade d~ Deus amando aquel:S são somente as complicações inerentes à vida inteira
a quem envia o seu mensageu:o. Se toda a. oraçao ou as seduções próprias de todas as épocas. Um
feita em nome de Deus está certa de ser ouvida p~r novo fenómeno apostólico surgiu à luz do dia, com
por causa da mesma Palavra Divina, . ~~t~ ~s o impulso demográfico, a civilização industrial, a urba-
não estará certa da sua eficácia toda a diligenoa feita, nização e a democratização da instrução. Inventaram-se
inspirada e impelida pelo Senhor, . e em seu n~me. palavras, terrivelmente feias, mas que traduzem uma
Isto assenta numa verdade metafiSlca: Deus criador realidade inegável: o mundo «massificou-se», existem
não pode fazer nada em vão; desde_ que ele chama «efeitos de massa>> semelhantes à lei da atracção
uma criatura à existência, é para agu: nela e para a universal, e a existência de uma massa vai jogar-se
atrair a si. E a sua Providência serve-se das criaruras proporcionalmente à sua grandeza para aglutinar
para agir. Com a condição, é certo, de se ser ver~­ os homens a si. E fala-se mesmo da «mass
deiramente «enviado» em nome do Senhor, ~ nao media» para se designarem os meios intelectuais de
pela nossa própria fantasia ou pelo nosso dese10 de comunicação.
agitar: Ora, a partir de Constantino, o apóstolo chegava
<<Eu não enviei estes profetas - e eles correm 1- com aquele «triunfalismo» de que falava Mons. de
Não lhes disse nada - e eles profetizam 1- Ouviram Smedt, no Concilio, e a tríplice coroa da tiara
eles o meu conselho?» Qer. z.3, z.1-u). . . papal era a transcrição visível do poder, não unica-
Da autenticidade deste envio, a garantia mais mente espiritual, de que cada missionário beneficiava
segura é a autenticidade da missão do Senhor no em contrapartida: o número, a civilização estavam
nosso ser por nós consentida. Mas este «O meu do seu lado aos olhos dos cristãos da Europa, ou
viver é Cristo» (Fil. 1, z.1) este «que ele cresça e eu aos dos pagãos mais ou menos selvagens da América
diminua «vai encontrar uma rude provação nesta e da Africa. Havia, é claro, a dificuldade de penetração
terceira fase. A rotina, os métodos, os afazeres apos- deste cristianismo nas velhas civilizações da China,
tólicos no que em si comportam de material, são da índia e do Japão, mas este contratempo não era
. como que um embaraço que atrofia, pouco a pouco •
interpretado pelos missionários como sendo já um
o amor vivo do mensageiro pelo seu Senhor. A pará- caso em que, jogando contra ele o efeito de massa,
bola do semeador descreve já esta fase em que os o missionário ficava sem influência.
58 COMO SE VISSE O INVlSlvEL O ENVIO AOS PAGÃOS 59

Hoje, qU2.0do o missionário se mistura às massas, uma enfermaria modelo, um ficheiro sanitirio impres-
está terrlvclmente só, sem prestigio nem poder: sionante, duches, lava-pés com sabão desinfectantc
sente-se classificado como um vestígio do passado e, incorporado à água, e até uma admirável morgue,
no melhor dos casos, completamente estranho, de um cor de lilás escuro, para caso de acidente 1 Os salários
outro mundo. Isto pode parecer em contradição com são bons, as gentes parecem calmas, não enlouque-
o lugar dado às cerimónias do Vaticano, na rádio, cidas. A saída da fábrica, não se sabe distinguir um
na televisão e na imprensa, mas é um facto que nenhum simples operário de um funcionário superior.
missionário de raiz contestará. E cito também isto, Mas, uma vez transposta a porta da fábrica, somos
não a título de prova., mas de anedota ilustrativa: surpreendidos pela inexprimfvel e aflitiva desproporção
no dia da Coroação de Paulo VI, alguém perguntava, entre esta perfeição de fabrico, estas geniais invenções
à noite, quem fora o triunfador da Volta à França, que percorrem, verificam, retocam os motores, pegam
e a brava camponesa que tinha visto a televisão dizia: numa chapa de ferro e a estampam e fazem dela a
<<Pode crer, esta noite não tivemos noticias da Volta capota de uma carroçaria, sim, toda esta riqueza de
à França, porque a Televisão, durante toda a tarde, 1
meios posta em movimento - e, nem sequer em
não fez senão mostrar uma espécie de cónego 1... face dela, nem mesmo ao lado, mas relegada para um
«Este cónego era Paulo VI e a sua coroação cm Roma! velho canto da velha aldeia, não mudada desde
Isolado, homem de pouco peso, - falo humana Adam-Opel, a da pequenina igreja da região que
e sociolõgicamente - , assim é hoje o missionário no data de 1880. Asseada, bem certo, não feia, mas
1Dcio dos homens, e o efeito de massa proporcional de tal modo distante de tudo o que faz a vida moderna,
à grandeza respectiva dos aglomerados humanos, joga, 1 fora de moda, como o estaria uma velha caixa de
a partir de agora, contra ele. música no meio de uma orquestra sinfónica em sua
Neste domínio, nada substitui a experiência pessoal: plena pujança, tão pouco conquistadora de aparência
assim como o apóstolo descobre o apelo do Senhor diante de uma indústria espalhada pelo mundo através
através da ferida que recebe da incredulidade, assim das suas agências, como o indica o mapa luminoso
ele o obriga a descobrir, na angústia da sua própria do mundo que está no vestíbulo de entrada da Opel.
impotência, esta lei da humanidade de hoje. É certo que as nossas armas não são deste mundo e a
Opel não existirá um dia e a Igreja continuará sempre
Penso numa das cidades mais novas da Alemanha, viva. Viva, sim, mas em face desta genial e gigantesca
na região das fábricas Opcl. Esta é, sem dúvida, fábrica, ela, a Igreja da região, está em letargia. E, no
uma das fábricas mais americanizadas da Europa. entanto, os seus excelentes sacerdotes são dignos de
',
Muitas, boas e bebs coisas: máquinas admiráveis, todos os elogios.
60 COMO SE VISSE O INVJSfvm. O ENVIO AOS PAGÃOS 61

É bem evidente que nem o sabão desinfectante, actual, que é uma religião. E os mais pobres desta
nem a casa mortuária de cores temas, nem mesmo massa são tão fascinados por ela como aqueles que
os milha.res de carros que esperam à porta todos a criam. Oh 1 é certo que nós não nos agastamos
os operários, podem satisfazer durante muito tempo com o fermento do mundo : porque a inteligência
o coração dos homens. Mas não é menos evidente do homem é à semelhança de Deus e Santo Ircncu
que o mais digno e o mais venerável sacerdote é resume bem São Paulo, quando diz: «A glória de
impotente diante da Opcl; antigamente, o campanário Deus é o homem vivo». Mas estas grandes e belas
elevava-se acima das casas da aldeia como um sinal d.a realidades, mesmo que não sejam opostas a Deus,
grandeza transcendente de Deus. Mas qual é o campa- são naturais e ao nível do homem. Elas invadem
nário de hoje que se elevará mais alto que a torre a pouco e pouco o missionário, tanto mais quanto,
da General Motors 1 querendo ele dar-lhe a sua plena significação, não
Então, sem que eu o tivesse procundo, impôs-se-me, assume em face delas a oposição que se assume perante
como um ruído ou um cheiro se impõe aos sentidos, os ídolos inimigos. Ele quer simultâneamente dar a
isto: Só equipas vivas, alegres, dinâmicas na sua fé, César o que é de César e prestar a Deus a homenagem
no seu acolhimento, na sua vigorosa rectidão, mas da sua criação.
também na sua aventura e na sua alegria de criaturas Nesse momento não é só o efeito de massa que
de Deus, se podem situar perante o gigantismo de entra em jogo. Na sua proximidade dos homens,
hoje como testemunho da liberdade e da alegre juven- o missionário acha-se submetido às interacçõcs e às
tude de Deus. permutas que tendem a esvaziá-lo de Deus e a enchê-lo
de todas as «glórias» do mundo. Outra lei universal
Através destes factos realiza-se melhor o carácter entra em jogo e governa todas as permutas vivas,
úduo, e a retomar sempre, d.a tentativa apostólica: a lei d.a pressão osmótica que tende, pelo jogo du
o fermento misturado à massa. É, portanto, a ordem pressões mútuas, a esvaziá-lo de Deus e a enchê-lo
do Senhor, e, à sua palavra, desde há dois mil anos, do meio que o rodeia.
assim que um recanto da terra era descoberto, partiam A Igreja conheceu sempre casos em que os homens
logo os missionários a introduzir o fermento novo sofreram uma espécie de perfusão espiritual, fur-
do Evangelho na massa dos homens. Mas hoje, tando-lhe a sua própria substância e substituindo-a
e de uma maneira acelerada nestes últimos vinte anos, por uma outra: alguns são surpreendentes e sinto-
eis que a própria massa do mundo tem fabricado e máticos, pois, sem paixão politica nem defecção da
contém o seu próprio fermento 1 Há uma fé no dina- carne, bastou a influência de um meio, a vontade
mismo, nas grandezas, nas descobertas do mundo de ser a todo o custo como este meio. Diminuindo
82 COMO SE VISSE O INVISÍVEL O ENVIO AOS PAGÃOS as
a altura das barreiras que o separavam do meio i porta do mosteiro. Nós retomamos a sua frase.
ambiente, dos seus costumes e do seu vestuário, mas acrescentamos: <<Procura ele, verdadeiramente,
o homem de Deus pode transformar-se até a um anunciar Deus aos pagãos»? Porquê., por exemplo,
ponto em que nada haja nele do que era no ponto recusar a acção temporal para o homem consagrado
de partida. Tudo parece permanecer intacto, mas a a Deus e encarregado de anunciar a mensagem?
alma mudou: Cristo já não é senão um elemento Por duas espécies de razões: umas que provêm da
no meio de outros, já não se é cidadão do Céu e parte do missionário, as outras do lado daqueles a
concidadão dos santos; é-se da terra e ela invadiu quem somos enviados.
o coração : «porque onde está o teu tesouro, aí estará Do lado do missionário há, primeiramente-mesmo
também o teu coração» (Mat. 6, 21 ). se isso o vexa. um pouco - razões de prudência:
Isto não é um fenómeno novo: Loisy e os outros o homem deixa-se arrastar pela paixão política no
padres que deixaram a Igreja no fim do século XIX sentido mais nobre da palavra, porque o homem, eu
sofreram a mesma osmose, mas isso no plano da inte- entendo o macho, é feito para isso, tanto como para
ligência e, portanto, de alguns isolados. Hoje, esta procriar. Acha-se, nos dois casos, perante uma missão
atracção da mentalidade de uma massa faz-se sentir cm que todo o seu ser, corpo e alma, encontra o
em nós todos e em todos os comportamentos da seu pleno emprego. Assim como aquele que se
nossa vida: a cabeça, os membros e o coração. tornou «eunuco por amor do Senhon> sabe que a
As velhas narrativas das «Vidas dos Santos» contêm sua fidelidade exige uma delicadeza maior, e até cm
muitas vezes o episódio da mulher da vida fácil intro- domínios que, para outros, seriam sem perigos, assim
duzida junto deles para os afastar da sua vocação. aquele que, para melhor testemunhar o invisível,
Que fariam, então, aqueles que não foram canoni- tem de renunciar à gestão dos negócios humanos,
zados? E que faríamos nós? A luta, entretanto, corre mais do que outros o perigo de se engolfar
permanecia de qualquer maneira igual: uma mulher, neles e com uma intemperança tanto mais viva quanto
um homem. Hoje, o apóstolo está frente a frente a mais deles se tiver sentido privado por muito tempo
uma multidão em que todos pensam de uma maneira e quanto mais tarde tiver descoberto a sua grandeza.
diferente dele e chamam em reforço das suas atitudes E mesmo se souber parar a tempo, acontece que
as mais modernas ciências: a sociologia, o sentido a vida espiritual é qualquer coisa de exigente naquele
da história, a psicologia. Já não é só a carne, mas que dela faz profissão, exigente não só para si, mas
o espírito que é tentado. também para a ela arrastar os outros. A segurança
«Procura ele, na verdade, a Deus»? pergunta-se de mão do cirurgião proíbe-lhe os trabalhos de força,
Sio Bento perante um postulante que se apresenta a cantora cuida das soas cordas vocais, e o homem
COMO SE VISSE O INVJSfvEL O ENVIO AOS PAGÃOS 65

que prescruta o invisível tem de proteger o seu olhar: outros cristãos. E São Paulo continua: «Vigia a
0 cinema e a oração, a televisão e a adoração não tua pessoa e os teus ensinamentos, persevera nestas
podem coabitar no mesmo homem, mais do que disposições. Agindo assim, salvar-te-ás, 111 e 01 que
os jogos do circo de outrora. Aceitemos este limite te ouvem» (I Tim. 4, 16).
de vulnerabilidade maior para nós que para o homem Assim como na caridade a ordem dos manda-
casado. A guarda do depósito que nos está confiado mentos deve ser respeitada, assim o ministério apos-
exige que concentremos nele todas as nossas energias, tólico está enraizado neste «dom espiritual que está
o que David bem conhecia. quando dizia a Deus: em ri>>.
«Ó minha força, eu olho para ri>>. (Sal. 2.8, 10). Para que os esp1ritos distraídos dos homens,
Não são hábitos de coquete da alma cuidando da exaltados pelo sensível, se voltem para Jesus Cristo,
frescura espiritual da sua pele. Do lado daqueles é necessário adoptar os próprios meios da publicidade
para quem somos enviados e que devem ouvir a moderna, aqueles de que fala São Paulo aos Gálatas
mensagem, é necessário um choque, e este resultará (3, 1): «Foram afixados (1) aos vossos olhos os traços
do exclusivismo que nós pusermos na guarda e no de Jesus Cristo na cruz».
crescimento desta mensagem e, portanto, na cons- Se apresentamos Cristo no meio de toda uma
tância em a traduzir em actos de vida ao longo dos provisão de artigos do social, do polltico, da arte,
anos. A clausura não tem só por fim proteger os da literatura, do cinema, como é o caso dos magazines
contemplativos, é um sinal, diflcilmente compreen- ilustrados, esta mesma apresentação destrona-o do
sível, talvez, mas forte, de que a sua fidelidade vem seu lugar de Único Senhor e contradiz tudo o que
só de Deus. poderemos afirmar dele, a saber «que não há outro
Ora, para nós, este exclusivismo no anúncio do Nome senão o seu, na terra e no céID>. «Porque
Evangelho é da mesma ordem. São Paulo definiu ele se fez Filho de Deus, deve morrer>>, diziam os
bem o liame dizendo a Timóteo: «Não negligencies Judeus a Pilatos (Jn. 19, 7); é bem certo que a nossa
o dom espiritual que está em ti, que te foi conferido afirmação da própria verdade nos valerá desprezos,
por uma intervenção profética acompanhada da impo- mas onde é qut:, no Evangelho, está escrito que o
sição das mãos do colégio dos presbíteros. Toma disclpulo será melhor tratado que o Senhor?
isso a peito. Consagra-te-lhe inteiramente, a fim de
que os teus progressos sejam conhecidos de todos»
1
( ) A Bíblia de Jetusalém traduz por «dépcinta»; «colocou
(I Tim. 4, 11-1s). sob os seus olhos, como um quadro», csaeve L. Ccrfaux,
É necessário insistir, é a partir de um mesmo L4 Chrllien áa11J la lhlologil paHlitúmne, pag. 46. A palavrt gtega
movimento que o homem interior cresce e engendra significa pintar, dc:scnhat.
J
66 COMO SE VISSE O INVISfvEL

No imortal Marius de Pagnol, o capitão Escar-


tefigue a bordo do seu ferry-boat, durante a travessia
do Velho-Porto, grita, ouvindo o seu imediato que
acciona longamente a sirene: «Vai-me engulir todo
o meu vapor>>. O capitão Escartefigue tinha o senti-
mento muito vivo de representar a Marinha Nacional,
mas os seus meios eram limitados, ele sabia-o e tirava
da1 as consequências. Os nossos próprios meios são
também limitados: não podemos accionar, ao mesmo
tempo, a sirene do mundo e consagrar todo o nosso
SEGUNDA PARTE
vapor ao anúncio da Palavra de Deus. Estamos no
mesmo barco em que estão os outros, mas, lá dentro,
o nosso papel é diferente. OS TRAÇOS DISTINTIVOS DO APÓSTOLO
Se o apóstolo quiser pôr sob os olhos dos homens
de hoje «OS traços de Jesus na Cruz>>, é necessário
que ele conserve sob os seus próprios olhos este
modelo e diga também: «Não vim para vos anunciar
o testemunho de Deus com o prestígio da palavra
ou da sabedoria. Não. Não quis saber nada no meio
de vós, senão Jesus, e Jesus Crucificado» (I Cor. 2. 1-2.).
1
UMA SÚPLICA INSTANTE

Temos procurado, desde há vinte anos, algumas


explicações para a descristianização dos homens. Em
primeiro lugar, encontrámos a pobreza, a insegurança,
a miséria, mas agora acrescentamos a estas causas a
riqueza, a segurança, o conforto, que nos surgem
ainda como mais descristianizantes: a Polónia pobre,
o Brasil miserávd nas suas massas, conhecem a Deus
e vivem na sua presença.
Acusamos, por sua vez, o marxismo, a injustiça
na empresa e a sua desorganização, mas, na Alemanha
federal, o marxismo é inexistente, a empresa supe-
riormente organizada, e o homem, ali, está também
inteiramente afastado de Deus.
O conformismo cristão, os padres medíocres?
Mas onde a Igreja está, por vezes, mais «estabe-
lecida», materialmente falando, é onde ela é menos
criticada e onde as vocações sinceras são mais nume-
rosas. Há países onde Deus é oficialmente negado
numa rede fechada de propaganda: mas ele é, também,
inteiramente esquecido naquelas nações que se gloriam
da sua liberdade mas onde os sentidos tudo invadiram.
Enfim, nada parece uma explicação suíicientc,
nem mesmo os tiranos terclveis do capitalismo ou
do comunismo. A ausência de Deus, segundo os
?O COMO SE VISSE O INVISfvEL UMA SÚPUCA INSTANTE 71

(
lugares, apresenta aspectos diferentes, mas o mal é o instante a Deus para que Ele actue no segredo dos
mesmo e o remédio tem de ser proca.r:ado para além corações.
das causas imediatas e aparentes. Só Deus pode tocar Não houve um só grande missionário que não
o coração do homem: nem a ciência, nem a sabedoria fosse um homem de coração e de intercessão. «Ide
humana, nem a eloquência, nem a arte, nem qualquer 1 para a &ente e pensemos no nosso Salvador>>, dizia
prestígio, podem abrir um incrédulo a Deus. Há São Domingos aos seus companheiros de viagem:
demasiadas escapatórias, muitos caminhos estreitos. <<E ouviam-no gemer e suspirar. Onde se encontrasse,
fli muitas seduções, nobres ou vis, muitas pressões falava incessantemente de Deus ou com Deus, e exor-
sociais, muitos slogans. Todos são por demais incons- tava os irmãos a procederem do mesmo modo»,
tantes no melhor como no pior. Assim a encruzi- dizem os que viajavam com ele (1). Durante as orações
lhada em que se debate o coração do homem é tal que noctumas ouviram-no murmurar: «Senhor, tende pie-
nunca este coração, por si mesmo, encontrará a esta- dade do vosso povo 1 Que vai ser dos pecadores? (1)
bilidade, se alguma coisa - ou alguém - o não fixar E, quando celebrava a Missa, <<as lágrimas corriam-
com mais força. A vontade não deixa de procurar -lhe pelo rosto com tanta abundância que uma gota
se não for seduzida por uma paixão ou por um amor. 1

1
não esperava pela outra» (').
Existe uma outra razão, não já psicológica, mas que Santo Inácio de Loyola não tem outra arma:
se baseia na própria natureza da conversão: uma o seu extraordinário caderno de notas, que pode
alma que abandonou a Deus - ou que nunca O intitular-se <<livro de contas» de preferência a «Diário
conheceu - não pode por si mesma introduzir-se na 1
Espiritual>> regista numa estenografia algébrica as suas
amizade divina, e Jesus diz-no-lo: «Ninguém vem a lágrimas durante a Missa e a oração» ('). Quando
mim se o meu Pai o não atrain> Q n. 6, 44). A recon- o texto de Santo Inácio se torna mais claro, confia-nos
versão não é uma obra do homem: só Deus conhece 1' o seu segredo: «Ao longo da Missa, uma muito prolon-
os caminhos que, de dentro, conduzem a Ele, ou, 'I
gada devoção e muitas lágrimas, perdendo muitas
mais verdadeiramente ainda, só Deus pode entrar vezes a palavra, e todas as devoções e sentimentos
num coração e fazer aí a sua morada. «Se o Senhor 1 chegavam a Jesus».
não construir a casa, em vão se sacrifica o pedreiro; ~·

se o Senhor não guarda a cidade, em vão a vigia a 1

sentinela» (Sal. 127). (1) P. Vicaire, Saint Da111iniqt1e, p. 236.


1
( ) Ibid. pag. zp.
Fizemos a experiência uma e mil vezes. Precisamos (') Ibid. pag. 219.
de compreender que a nossa primeira tarefa e a nossa l (') Alain Guilhennou, Lo ,;, de 1ainl lg11act tk l.Ayola,
primeira eficácia residem numa súplica constante e Éditions du Seuil, p. 263.

j
72 COMO SE VISSE O INVISlvm. UMA SÚPLICA INSTANTB 73

Ora, Santo Inácio, como São Domingos, estão (Mt. 7, II); porque é o mesmo Deus o primeiro a
precisamente no momento destas lágrimas em plena suscitar a minha oração e a impelir-me a pedir, a bater
maturidade, multiplicando fundações, trabalhos apos- e a procurar.
tólicos e missões distantes. Nada que possa fazer Associados à obra de Deus porque somos seus
pensar num abrandamento senil. A sua atitude é a filhos, a nossa oração ocupa o lugar e a dignidade
única que é lógica: reza-se para se obter de um da causa: Deus decidiu que certos efeitos se não
maior o que se sabe não poder arrancar de si mesmo. produzissem senão pela oração dos seus filhos. Como
«.A messe é abundante, mas os operários são poucos», o trabalho é uma das causas da recolha, assim a oração
diz Jesus; e nós acrescentaríamos, sem dúvida: é neces- na messe de Deus: o mendigo que somos toma-se
sário, portanto, tral?alhar o dobro, mas o Senhor o cooperador de Deus.
conclui logo: «portanto, pedi ao Senhor da messe Esta certeza baseada em Deus, sempre o primeiro
que mande operários para a sua messe>> (Mat. 9, 37-38): em todas as acções e sempre eficaz, deve encher-nos
por si só, este <<portanto» bastaria para nos enraizar de força e de eficacidade apostólica: «E tudo o que
na oração e na palavra de Jesus; a sua vida, as noites pedirdes com fé ser-vos-á dado» (Mt. 21, zz).
de oração, depois dos seus dias de trabalho são disso ~ um hábito que devemos tomar: nunca nos levan-
o mais vivo comentário. tarmos depois de ter orado, sem aderir a isso com
toda a nossa certeza e sem pronunciarmos as próprias
A objecção banal: <<Vai a minha oração mudar palavras de Jesus: «Pai, dou-vos graças por me terdes
alguma coisa em Deus ou obrigá-Lo a querer o que atendido. Eu sabia que Tu me atendes sempre ...»
antes não queria?», ajuda-nos a fixar na verdadeira Qn. II, 41-42).
perspectiva, incomparàvelmente mais alta. Eu não Como poderia ser de outra maneira, uma vez
mudarei nada a Deus, é certo, mas, quando rezo, que Ele suscitou o nosso pedido.
tomo-me o instrumento vivo e verdadeiro, querido
de Deus desde toda a eternidade para essa hora e Rezar é, portanto, uma função imediatamente
que realiza, nesse momento preciso, o que Deus ligada ao nosso dever missionário. Pouco importa
quer que seja o efeito da minha oração. E se Deus que a nossa oração seja doce ou seca, alegre ou pesada,
quer a minha oração e quer que ela produza um tal extensiva ou isolada; é o nosso instrumento, o trépano
fruto, como não será ela eficaz e certa do seu resultado: que cava as profundezas para delas fazer brotar Deus.
«Se, pois, vós que sois maus sabeis dar coisas boas No corpo místico de Jesus, ligamo-nos à oração dos
aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que estí enclausurados e apoiamo-nos nela, mas temos de
nos céus as não dará àqueles que lhas suplicam 1 remodelar, de reamassar a sua oração na massa dos
COMO SE VISSE O INVISfvEL UMA SÚPUCA INSTANTE 75

homens concretos com que nos cruzamos todos os Pôs-se a andar de um lado para o outro, na casa,
dias: <<a nossa fábrica, o nosso atelier, e, a partir depois subiu de novo para o leito e inclinou-se sobre
dos nossos camaradas, Pedro e António, todos os ela sete vezes: então o rapaz espirrou e abriu os olhos»
outros semelhantes a eles, todos os contramestres a (z. Reis. 4, 32-3 5). O bordão de Eliseu, quer dizer,
partir do contramestre, os patrões ... E a nossa rua, o simples contacto não ressuscita o rapaz, é preciso
o nosso bairro, desde o vizinho de quem nos separam o duplo corpo a corpo do profeta com o filho da
apenas vinte e cinco centf.metros de tabique até ao Sunamites.
desconhecido que passa... Os noivos que vêm ver-nos, Se o apostolado é, pois, como diz tão bem o padre
Deus, envia-no-los para que uma oração directa os Lochet, <primeiro 11ma grafa a obter por 11111 mais», é indis-
impregne. solUvelmente uma ressurreição a operar pelo nosso
Uma vez que, para abrir o coração dos outros a sopro espiritual. Portanto, tudo o que sustenta e
Deus, nós compreendemos a necessidade da oração, conduz o nosso sopro é tão capital como a prontidão
peçamos, pois, ao Senhor, que faça compreender a das nossas pernas para estarmos no meio dos homens.
todo o nosso ser, inteligência e coração, - e por Tomar a Igreja simpática pela nossa presença não
dentro - o lugar primordial desta função na nossa basta para vencer os obstáculos que se levantam diante
missão apostólica. O padre Lacordaire exprimia isso dos homens e são, finalmente, de uma ordem muito
quando dizia que «O apóstolo é o Cristo particular mais elevada: é necessário um mais. Este mais é a
de uma alma>>. tomada de consciência e a utilização da «incomen-
O apostolado é o &onfa&to de 11111 homem ani111ado surável grandeza do poder de Deus que age em nós,
pelo sopro do Espírito de jesus. O milagre de Eliseu, os crentes» (Ef. 1, 19).
ao ressuscitar o filho morto da Sunamites, é cheio Será preciso insistir? Nós não rezamos para ter
de ensinamentos. A pedido da pobre mãe, Eliseu uma vida equilibrada (ainda que isso seja indispensável),
manda o seu servo, confia-lhe o seu próprio bordão, e ainda menos por uma espécie de condescendência
e ordena-lhe que estenda este bordão sobre a criança. eclesiástica que nos da.ria sossego, não só a nós pró-
O servo assim procede, mas ela permanece «sem voz e prios, mas também aos nossos superiores de todos
sem reacção». Eliseu chega, então, a casa; a criança os planos, tranquilizando-os a nosso respeito. Nós
estava morta e deitada no seu próprio leito. Entrou, rezamos como o padeiro amassa a farinha para fazer
fechou a porta e rezou a Javé. Depois subiu para o pão, como o médico aplica raios X ao seu doente,
o leito, estendeu-se sobre a criança, colou a sua boca como a mãe aleita o seu filho: - isso não lhes põe
à boca dela, os olhos aos olhos dela, as mãos nas mãos, problemas, porque fazê-lo de outta maneira? Connosco
inclinou-se sobre ela e a carne do morto reaqueceu-se. deve ser a mesma coisa: rezamos porque assim é preciso
76 COMO SE VISSE O JNVISlvEL UMA SÚPLICA INSTANTE

para que Deus visite e transforme os corações. :B. uma Actos (Act. i, 42; 4, 32; 5, u) mostram até que ponto
necessidade, uma lei. a vida dos primeiros cristãos integrava a oração,
<<Lutai, combatei comigo na oração» (Rom. 1 ), 30), a contemplação e a acção.
o velho Paulo não emprega outras palavras e, se, Porque cm cada uma das nossas acções há um
para Joana d' Ar.e, as mãos erguidas ao céu ganham além que é a própria acção de Deus, ultrapassando e
as batalhas que as baionetas dos seus soldados vão elevando o que nós mesmos visamos. Ora, é para
travar, com quanto maior razão isso não acontecerá não faltar aquilo que Deus espera de nós, que nos
com os combates do espírito? é preciso um verdadeiro sil!ncio e uma verdadeira
São João, na sua grande visão, vê as «orações atenção a Deus. Poder-se-ia escrever um ligeiro
dos santos, como taças cheias de perfume» (Ap. 5, 8) «sketch» humorístico, supondo, por impossível, a San-
e indica o seu papel: apressam a chegada do dia tíssima Vlrgem, tal qual nós somos muitas vezes:
da vinda de Deus. metera-se-lhe de tal modo na cabeça ir auxiliar sua
Quando nós empregamos palavras como contem- prima Isabel, segundo um tipo bem definido de acção,
plação, silêncio, retiro, união com Deus, vida interior, que, apenas chegada, se precipita para as panelas e
oração, perfeição, temos, qualquer que seja a nossa os tachos, lava, limpa, põe tudo em ordem e realiza,
opção pessoal, tendência para as conceber em oposição, finalmente, a sua modestíssima acção humana cm
ou ao menos cm concorrência com a outra série: vez de realizar a obra espantosa: a oração do Magnificat
acção, apostolado, doacção aos outros, contactos, e a santificação de João Baptlsta.
missão, etc. O simples facto de se pensar cm duali- Este <<além>> existe na própria oração, porque nós
dade é Wil2. falsa pista: não há o forno e o moinho não sabemos como é que é preciso orar: mas o «mesmo
onde se pode estar ao mesmo tempo, mas o organismo Espírito intercede por nós em gemidos inefáveis»
vivo cm que as duas coisas são necessárias e mutua- (Rom. 8, z6). Devemos ter, portanto, muita delica-
mente dependentes. Um campeão de corrida é, simul- deza, muito ouvido atento, para colaborarmos com
tincamcnte, músculo e fôlego. Assim, com a nossa Deus, para sermos o seu instrumento vivo, e, mar-
vida apostólica. Não temos que opor as visitas, de chando e andando sempre em frente, não nos apro-
um lado, e a oração ou uma adoração, do outro; priatmos do objectivo que comanda a nossa acção.
há visitas apostólicas em que nos procuramos a nó1, Ora, tudo o que cai sob a rubrica da «oração» obriga
e também adorações em que se não faz mais do que a entrar no plano secreto de Deus. :B. ainda a atitude
ruminar os no1101 próprios problemas. Umas e outras, de Maria que «guardava com cuidado todas as coisas
visitas e adorações, devem ser, ao contrário, uctos e as meditava em seu coração» (Luc. 2, 19). O que
de apóstolos»; as três passagens pa.W.elas dos próprios fari de nós um contemplativo e não um modesto
78 COMO SE VJSS.E O INVlslvEI.

funcionário eclesiástico é precisamente o pergun-


tarmo-nos com frequência: «Onde estão, na tua vida,
os 11erdadeiros momentos dos teus verdadeiros encontros
com Deus»? Porque os nossos verdadeiros encontros
com os homens terão lugar na medida cm que nós COMO O PAI ME ENVIOU
tivermos partido de verdadeiros encontros com Deus,
e eles a isso nos reconduzirão. Um homem, o Padre
Paris, que deixou um profundo exemplo apostólico, A FORÇA IMPERATIVA DO .COMO•
dizia num tom penetrante e inolvidável, parece, para
os seus ouvintes, que «O apostolado era uma mistura Nós somos, pela nossa oração pessoal, o 'liltimo
misteriosa de acção e de paixão». Não se poderiam reduto, no meio dos homens, da oração dos puros
exprimir melhor as exigências da nossa vida. Porque contemplativos. Mas, a esta função e, para nós,
é que lhes escapamos tão fàcilmente? Que ao menos inseparável dela, junta-se-lhe uma outra: fazer passar
se diga, escreva, afume e repita que a oração é o em nós os vestígios de Cristo, as suas maneiras de
Alfa e o Omega da nossa acção de apóstolos. O cami- ser, de agir, a sua mentalidade, o seu espírito, e isto
nho para a Terra da Promissão só se abre à oração muito precisamente a fim de que os homens que o
de Moisés, na montanha, os braços abertos até ao ignoram o descubram através da nossa semelhança.
extremo limite do esgotamento. Todo o cristão, por definição, deve tender a ser a
imagem, a semelhança, o esplendor de Cristo, a
imagem do mesmo Cristo, «Filho, herdeiro, res-
plendor da glória do Pai, imagem da sua substância»
(Heb. 1, z-3).
Mas, para o apóstolo (e todo o cristão em meio
incrédulo é apóstolo), a imitação de Cristo não é
somente uma exigência do seu baptismo: é a sua
função e seria necessário ousar dizer <<a sua profissão»,
a sua razão social. Enviado não taÓto como embaixador
(o que é próprio da missão hierárquica), mas como
uma «amostra>> autêntica, uma parcela da pedra cm
que nós fomos esculpidos. A imitação de Deus,
desde a alvorada judaica da nossa fé, assenta nesta
ao COMO SE VISSE O INVISfvEL
/ COMO O PAI ME ENVIOU 81

«SCmelbaoça e imagem de Deus» a que o homem { c<Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me
foi criado: «Sede santos, porque cm Javé, vosso deste, para que sejam um como nós (17, 11).
Deus, sou santo» (Lcv. l 9, 2 e I Pct. l , 1 5). Esta <<Eles não são do mundo como cu não sou do
ordem, São Pedro toma-a à sua conta na sua carta, mundo» (17, 6).
ele que ouviu o Senhor Jesus afirmar no Sermão «Como Tu me enviaste para o mundo, assim
da Montanha: «Sede vós perfeitos como o vosso Pai também eu os enviei para o mundo» (17, 18).
celeste é perfeito» (Mt. 5, 48). «Como Tu, Pai, estás em mim e cu em ti, que eles
Mas cabe a São João restituir a esta palavra çomo sejam um cm nós, a fim de que o mundo creia que
o valor extraordinário que tem na boca de Cristo. Tu me enviaste» (17, 21).
Jesus revela-nos, pouco a pouco, quem é este Pai «Eu dei-lhes a glória que Tu me dest~ para que
perfeitíssimo, o segredo da sua identidade com Ele, sejam um como nós somos Wil>> (17, 22).
enfim, a semelbaoça que devemos procurar com Jesus «Eu neles e Tu em mim, para que sejam perfeita-
e seu Pai. E desta tríplice realidade, o Pai, Jesus e mente um e para que o mundo saiba que Tu me
nós, o çomo é o traço de união. Estes textos são enviaste e que eu os amei como tu me amaste>> (17, 23).
conhecidos de todos: a sua justaposição dá-lhes uma (No dia da Ressurreição): «Diz-lhes ainda uma
tal força prov~tiva que é bom, entretanto, transcre- vez : a paz seja convosco 1 Como o Pai me enviou.
vê-los e lê-los de seguida: assim eu vos envio também>> (20, 21).
<<Eu conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas Estamos no máximo da identidade e São Tomás
conhecem-me como o Pai me conhece e cu conheço de Aquino comenta: «Enviados pelo mesmo amor,
o Pai (10, 14-15). pela mesma força, pelo mesmo poder com que
«Dou-vos um mandamento novo: que vos o Pai enviou o seu bem-amado Filho, Jesus
ameis uns aos outros como eu próprio vos amei Cristo».
(13, 34). A verdade interior do nosso apostolado reside na
<<Permanecei em mim como eu cm vós ( l 5, 4). própria realidade deste «como»: por meio desta única
«Quem permanece em mim como cu nele>> (1s, J). palavra, Jesus coloca-nos no centro de onde podemos
«Como o Pai me amou, assim eu vos amei» (15, 9). compreender a nossa religião e ajuizar da qualidade
«Se observardes os meus mandamentos, perma- da nossa acção. Devemos agir à maneira de Deus,
necereis no meu amor, como eu observei os manda- como Deus: no seu amor, pelo seu poder, com a
mentos de meu Pai e permaneço no seu amor (15, 10). sua força. Um cristão não se define por nenhuma
«Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros função, por santa que seja, por nenhum compromisso,
como eu vos amei» (15, 12). por eficaz e heróico que seja, mas pelo seu carácter
82 COMO SE VISSE O INVISÍVEL COMO O PAI ME ENVIOU 83

de filho de Deus, e ser filho o que é senão ser çomo .1


vertebral à nossa vida, à nossa acção, ao que nós
o pai. Este Pai, este Deus a quem devemos, portanto, somos.
assemelhar-nos disse o seu próprio nome: Ele é Deus ama-nos, Ele é Amor... Mas, então, como
AmQr: É isso que O constitui no mais íntimo de si, ser filho de um tal Pai, como fazer as descobertas
no próprio mistério da Trindade: Deus é Amor. bastantes junto deste Pai, para nos tomarmos filhos à
Eis o que devemos observar e fazer transparecer nas sua semelhança? Porque nós não somos filhos da
nossas vidas. «presença» - ainda que a presença seja necessária
Aos vinte e cinco anos, sendo ainda descrente, ao mundo - não somos filhos da «eficácia», não
eu começava a procurar Deus, quando adoeci e tive somos filhos da «acção», somos filhos do Amor,
de ir repousar para a Suiça. A bondosa rapariga porque filhos de Deus. Para descobrir isto, não
protestante que ali me acolheu sentia uma verdadeira podemos senão contemplar Jesus Cristo. «Aquele
felicidade em partilhar as suas deliciosas compotas que me viu, viu o Pai>> Qn. 14, 9), é Ele, Ele, o filho
com os pensionistas... Trazia-no-las de manhã e ao por excelência, que vai ensinar-nos como se é um
almoço, sempre, numa bandeja que tinha, bordada filho que se assemelha a seu Pai.
pela sua mão, esta frase: <<Deus é Amor». Ao descren~e O que vemos na terra, nas palavras e nos gestos
que eu era, parecia ao mesmo tempo tocante e cheio de Cristo, é a humillssima transcrição do mistério
de humor que estas tão belas coisas, materiais e terre- eterno deste Filho de Deus no próprio seio da Trin-
nas, fossem trazidas nesta bandeja: <<Deus é Amor» ... dade: semelhante ao Pai porque recebeu tudo dele,
Penso, agora, que esta palavra entrou, pouco a pouc~, puro olhar para o Pai, como o Pai é um puro Dom
na minha alma, enquanto comia as compotas. EsqueCl, a seu Filho, Ele, Seu Bem-Amado, seu Único, «Aquele
depois, muitas coisas, mas estas palavras penetraram em quem pôs todo o seu Amon> (Marc. 1, 11).
no meu coração de descrente de uma tal maneira que, Durante vários anos, tivemos a palavra comprome-
agora, sinto bem que não há nenhuma outra verdade., timento ou «presença» nos lábios e é preciso tê-las
outra lógica no mundo, que seja tão certa, e que ela ainda porque o mesmo Jesus nos pediu que fôssemos
é a única luz das nossas vidas. Deus é Amor. Deus o sal da terra. Mas é necessário ir mais longe: os
existe. Deus ama-nos, Ele está lá... hábitos de Deus, se assim se pode dizer, devem
Quando dizemos estas palavras, quando pronun- tornar-se os nossos próprios hábitos. Ora Deus é
ciamos simplesmente a palavra - Deus e acrescen- imutável, não muda porque é perfeito. Nada lhe
tamos que ele existe e nos ama, seria preciso que pode ser acrescentado, porque Ele é tudo. E nós,
nas nossas almas houvesse, de cada vez, uma espécie contemplando este carácter imutável de Deus, apren-
de luz, uma iluminação... Esta verdade dá a coluna demos a ser estáveis, no sucesso como nos fracassos.
COMO SE VISSE O INVJSfvEL COMO O PAI ME ENVIOU 85

Ora Deus ama o Bem, o Belo. Para ele, não hi .A segunda equivalência, esta do nosso lado, é ainda
clah. não há grupo, não há rivalidade. Assim, «tudo mais premente; é o «como» do Pater: «Perdoai-no1
o que há de verdadeiro, de nobre, de justo, de puro, as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem
de amável, de honroso, tudo o que pode haver de nos tem ofendido». Deus modelará a sua atitude
bom na virtude e no louvor humano, eis o que nos sobre a nossa. Sabemos bem que não podemos ir
deve preocupar>> (Filp. 4, 8). de encontro aos homens senão com as próprias mãos
Ora Deus é Justo: quando olha para um homem, de Cristo, porque as nossas pobres mãos humaou
não repara se é patrão ou operário, comunista, progres- permanecerão com muita frequência mãos paterna-
sista ou integrista. Para Deus, é um homem. Também listas, mãos demasiado seguras de si mesmas, mãos
nós revelamos Deus aos homens olhando para cada pesadas e rugosas e que mais ferirão do que praticarão
um deles, tal como ele é, no próprio olhu de Deus. o bem.
Ora Deus é misericordioso. Não condena sem Mas se tivermos sabido inserir bem este amor
ter uma misericórdia mais elevada que a sua justiça, do Pai na nossa vida, se tivermos sabido, çomo Jesus,
e Ele que nada pode receber porque dá tudo é a fazer tudo por amor a este Pai, então as nossas mãos
generosidade por excelência. E Deus é verdadeiro. tornar-se-ão luminosas nas suas mesmas chagas, serão
«Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida>> (Jo. I4. 6) ... trespassadas como as mãos de Cristo deste amor de
A sua palavta nunca deixará de ser verdadeira. Que Deus, e serão benéficas e doces.
também o nosso «sim» seja «sim>> e o nosso <<não» «Como» Deus, é isso .. .
seja <<OãO».

Para que estes «como» entrem verdadeiramente


na nossa vida, apenas duas condições são exigidas,
mas indispensáveis: «Se não vos fizerdes como as
criancinhas não entrareis no reino dos Céus». Há
aqui uma primeira equivalência: é necessário que
todos nos tomemos pequenos. O único obstáculo
à Caridade de Deus na nossa existência é não saber-
mos aceitar ser pequeninos ... Portanto, para ent:mrmoi
nesta Caridade de Deus, não é preciso adquirir, basta
perder, apagarmo-nos diante de Deus: «É necessário
que Ele cresça. e que eu diminua>> Qn. 3, 30).
MIMOS E PROTÓTIPOS

São Paulo não poderia ter uma doutrina diferente


da ensinada por São João; mas imprime-lhe um ines-
perado vigor e merece que nos detenhamos nele.
Há uma palavra que se repete uma boa dezena de
vezes nas suas cartas com uma insistência tão parti-
cular que o sábio Giuseppe Ricciotti termina a p 'ª
e última página do seu livro sobre São Pa11/o Apóstolo
com esta mesma palavra que resume, diz ele, não
só a doutrina das epistolas, mas a própria vida do
Apóstolo: «Mostrai-vos meus imitadores como cu
o sou de Cristo» (I Cor. u, i).
São Paulo vai buscar esta palavra imitador à
linguagem profana da arte do seu tempo, técnica,
pintura, dança, e sobretudo à linguagem do teatro:
o mimo, que se mete de tal maneira na pele do
seu personagem, que lhe reproduz todos os traços.
Assim, a tradução habitual: «Mostrai-vos meus imita-
dores, como cu o sou de Cristo», oculta este sentido
muito mais forte : «Mimai-me a mim como eu mimo
a Cristo». No principio da mesma carta (I Cor. 4. 16),
tinha dito a mesma coisa: «Fui eu que, pelo Evangelho,
vos engendrei em Cristo Jesus: conjuro-vos, portanto,
pwi. que sejais meus imitadores (nú.mos)».
88 COMO SB VISSE O INVIsfvEI. MIMOS B PROTÓTIPOS 89

Mas a palavra mimo apea para UJD2 outra, corre- Bem certo, não há nenhuma razão para que o
lativa: o modelo a reproduzir, o «tipo» diz São Paulo, cristão seja inferior aos pagãos nestes domínios tempo-
traduzamos o protótipo: o apóstolo, de quem diz, rais e terrestres. Mas não é nisso que ele se reconhece:
algutcs, que foi «dado como espectáculo ao mundo», o 1ina/ do çrÍJ/ão e a Stlil imagem ião aJ B1111-a11enlllf'IZl'lfaJ.
"'toma-se, ao mimar Cristo, o protótipo que os homens Quer dizer, aquele mundo, ao contrário, onde os
terão de imitar para chegarem ao Senhor: <<Nós (Paulo, que choram são proclamados bem-aventurados e cm
Silvano e Timóteo) entendlamos propor-vos, em que os que recebem um.a bofetada têm de dar a outra
nós, um modelo (protótipo) a imitar» (z Tim. 3, 7 e 9). face e acrescentar a doação da capa à sua túnica roubada.
É essa uma das constantes ruis exortações de Paulo. De É a viver assim que o discípulo se aplica e, através
i~ modo, escrcved aos Filipcnses: «Mostrai-vos disso, se mostra de Cristo: «Vós ouvistes ... e cu
todos, irmãos, meus imitadores, e fixai os vossos disse-vos ...»
olhares naqueles que se conduzem segundo o modelo Em todos os outros campos, o cristão pode encon-
que vos oferecemos» (3, 17). E esta dupla função trar mestres que o aconselhem; neste, é inimitável
de mimo e de protótipo já não é um privilégio do por aquela qualidade do coração e de todo o seu
apóstolo, mas o modo normal da expansão da fé ser que põe em primeiro lugar as Bem-aventuranças,
e da Palavra. «E vós pusestes-vos a imitar-nos, este consentimento de Deus e este contentamento
a nós (sempre o trio, Paulo, Silvano e Timóteo) e ao de Deus.
Senhor, ao acolher a Palavra, no meio de muitas O chefe de equipa que está na fábrica e trabalha
tribulações, com a alegria do Espírito Santo: tornas- com dureza, o sacerdote que se afadiga também nas
tes-vos, assim, um modelo (protótipo) para todos suas visitas, fazem-no sem dúvida nenhuma por amor
os cristãos da Macedónia e de Acaia>> (I Tim. de Cristo. Mas a substância da sua acção, a maneira
I, 6-7). e a forma como ela é vivida, transcrita, é à imagem
O apóstolo é, assim, a ligação entre Cristo e os de Cristo, marcada pelas virtudes evang8icas que
homens: a sua conformação com o Senhor torna fazem dela uma «demonstração» de Cristo?
visível o Cristo invisfvel. Neste domínio, as nossas Finalmente (e quem tem ouvidos para ouvir, ouça,
ambições parecem ser estranhamente limitadoras. e não me faça dizer o contrário do meu pensamento 1),
Temos tanto medo de não sermos «como os outros» chego a desconfiar do emprego que fazemos da frase
de parecermos seres à parte», que parecemos ter do Senhor Jesus: <<Nisto se reconhecerá se sois meus
tomado, por vezes, como modelo, o «devotamento» discípulos, se vos amardes uns aos outroS>>, porque
àqueles que não crêem, o seu ardor em preparar a esta palavra-chave nós laicizámo-la. Este amor de
terra e em instalar-se nela. que fala o Senhor, fazemos dele devotamento, filan-

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