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cadernos de pesquisa do LAP | le A Arte pa Ruacdo E A CIDADE LUSO-BRASILEIRA (Sécs. XVI — XVIII) Nesias retlexdes para servrem de base de discussdo a uma meso-redo tie de deixrclora minha relutencia em usar com ligereza uma expressog ve ép0ca anterior 20 século XIX, sab 0 rico de ser anacrénico: Urbanism A pare \o no existia,o coisa provavelmente também nao e certamente nao vom, mesmo sentido que hoje tem. 0 lugar da disciplina era entdo ocupado por eunge corpos de praticas e saberes, com outros significado e outro nome. nda, gos. Para ser breve, aquilo que proponho aqui é que no mundo portugues do Anigo Regime - sobretudo no mundo colonial ~ existia plena consciéncia dessa maté. ria do “saber fazer cidade", com ligagées culturais diversas do que tem hoje sob 0 nome empirico de “arte ou ciéncia da Ruacdo". Uma teoria empitica e, sobretudo pragmética, de terreno mais que de gabinete, a que se procurou dar credibilidade e forma cientifica no séc. XVII, mas que é fruto de uma evolucéo especifica do império portugués com raizes em Portugal no passado medieval, na sua situacdo de pais-limite da Europa. Penso que existe uma relacao estreita entre a “cidade regular’ e a situagao de fronteira: da cidade-militar (Valletta, Palmanova, mas também das fundacées sicilianas e das bastides inglesas da Aquitania do séc. Xi e francesos do XIVI e de fronteira como linha-de-frente dum ‘avanco de penelracdo e ocupacao do interior. O mito historiogratico da “cidade ideal” deverd, consequentemente, dar lugar ao conceito de cidade utépica (krut, 1989), sabendo-se que as utopias sdo uma realidade (a vontade de construir 0 futuro) mediatizadas com o real pela ideologia ¢ incluem uma forte vertente esté- fica, j@ nas “citta nuove" toscanas do séc. XIV tragadas por Arnolfo di Cambio! Como algumas fundagées cistercienses (Guidonil, sdo “cidades de colonizacdo", que constréem e ordenam o territorio. Gostaria, também, como premissa 4 discussdo, de afirmar dois fatos metodolégicos (e epistemolégicos) que me parecem claros. 1") A ligagdo congénita, quase indissocidvel no concreto, entre cidade e forfifica~ $40, 0 conteddo e o continente: duas faces da mesma moeda. Onde ha cidade hé fortificagdo (mesmo que a muitos km de distancia, ou controlando nés de co- municacao}, 0 brago armado da populacéo; e vice-versa, © papel dos engenhe ros militares foi instrumental no desenho das cidades. Nao € possivel, ando ce Por estratégia analitica, estudar uma coisa sem a outra, pelo menos no qve diz respeito a Portugal. TA necessidade duma definicdo rigorosa de “cidade”, no como qualquer cleo urbano estruturado, mas como um sujeito histérico com personalidade pro] E muito forte em Portugal - uma heranga da distingdo tardo-romana (que se Tantém até o século VI-Vil| entre civitas urbana e villa rural e da vitalidade do ‘municipalismo da Idade Média ~ a hierarquia entre trés niveis — juridico, sociol6- gico e formal - com origens e natureza diferentes: a cidade (sirictu sensu, a vila © a aldeia’, Sao tipos diferenciados nao s6 pela dimenséo demografica, politica econdmica e sua aparéncia fisica (regularidade, monumentalidade, meios de ‘acessol, mas, sobretudo pela especificidade oficial, com direitos e deveres dife- tentes estipulados por lei. © Foral, carta de estatuto municipal materializado na consirugdo da Casa da Cémara-e-Cadeia e eregdo do Pelourinho ~ o simbolo arrogante da autonomia concelhia onde eram expostos os criminosos* - era con- cedido pelo poder central segundo uma estratégia muito refletida, nada casual; €0 foro de cidade s6 excepcionalmente era outorgado em norma as sedes epis- copais, mas também a vilas que a Coroa pretendia desenvolvers. Na definicao do jurista Doutor Jodo de Barros em 1540, “cidade he aquela que he cercada de mu- ros e que antigamente teve nome de cidade” {i¢, que tinha bispol: mas 0 essen- cial 6 que era muito mais do que um mero titulo honorifico [como Mui nobre e sempre leal cidade de...), era uma categoria de direito que adquiria poder autérquico com assento especial nas Cortes. Mesmo dentro delas havia sutis distingdes hierarquicas: assim, o foro de Evora - 0 mais baixo, dado a quase to- dos as cidades ~ apenas isentava os cidaddos de serem agoitados em publico, enquanto 0 de Lisboa, dado a Goa e ao Rio de Janeiro, garantia uma maior parti- cipagao da populacdo trabalhadora na vida péblica, através dos eleitos para a “Casa dos 24", representando os oficios ou bandeiras. Muito ambicionado era estatuto de cidadao do Porto * - dado 4 cidade de Sao Luis do Maranhao (1615) para atrair colonos - que fazia da burguesia municipal uma auténtica aristocra- cia urbana ao isenté-los da prestagdo de servigo militar, impedir que fosser pre- sos salvo em priséo domiciliar e submetidos a tortura, poderem usar armas de noite como de dia e quaisquer tecidos ricos de seda, mesmo os proibidos pelas pragmaticas contra o luxo, e o dever de *pousada” ou hospedagem gratuita a fi- dalgos e seus criados por mais de 3 dias. Houve sérios motins no Porto por cau- 30 deste privlegio, que o Ret sempre decidia a seu favor. € dentro desse quadro complexo que devemos examinar os ndcleos urbanos coloniais, que transplan- tam para outro meio uma situacao arcaica, radicada nas origens da nagéo nos séculos XI e Xil_ E que 0 uso das sedas, p.ex., significava muito mais do que um Status social, de moda ou eliqueta: era todo um estilo de vida que estava em causa, monifestado fisicamente em moradias elegantes, com saldes que jusfifi- ‘cassem 0 uso de armagées de tecidos ricos e bordados da india e quartos de alcova com cortinados e docéis. 0 estatuto juridico refletia-se nas praticas de urbanidade e na propria forma material da urbe, mais monumental. A vila de Olinda 11535), que aspirava a ser cidade, mostrava esse desejo no luxo de seus moradores, que gastavam 80 mil cruzados/ano em vinhos portugueses, e faziam cadernos de pesquisa do LAP | | cadernos de pesquisa do LAP 10 9 Pe Ferao Cardim dizer (1583) que “em Pernambuco se acha 1 fem Lisboa" e Brandénio chamd-la “uma Lisboa pequena' (1616) oe meira capital artificial do Brasil (1549), a precursora de Brasita Pemceel privilégios do Porto, manteve um trem de vida mais modesto, 56 ee dos, séc. XVII conseguindo @ aparéncia digna duma capital Nd 2° metade i, ade ue 440 0s dados de base que importa reter, 0 quadro estavel da stu portou pelo mundo a partir de 1415 congo pério urbano do Rio da Prata Sacramento! a0 4ap0 Nagasaki, 1$70) aoa fio maritimo desde Carlago e Roma, mas a escala planetaria ~ e uma Aen fundacbes interigadas em constante flux por rolas regulares, as “career igso ele teve por cendrio os oceans, nao os continentes. Na metade orienta : Fejado da India (7504) do Indico até o Pacitico, no ocidental. 0s Estados do Br . fo maranhao, mas também fodo 0 espaco allantico, das thas dos pn cigta do golfo da Guinée, Mina e Angola. Ao longo desses 5 séculos howe Tomicomente uma evolucdo na raneira de entender, concebere fze uncona voordades em atitudes 10 diversas, que mostra a modemidade do processe 1 lusitano como uma dindmica de experiéncias em continuidade do elo menos. Tentarei aqui sintetizar esse pro 10 @ funcdo e modos de producao do espago Estes s( e geopolitica que Portugal ex expansionist. s6c_ XV ao iluminismo pombalino, P* cesso em 5 fases, no que diz respet urbano colonial portugues: 1) Num 1° momento, que Te a a colonizacao do Atlantico Proxima lilhas atldnticas & Norte da Africal, tentou-se a pura e sim- ples exportagdo do tipo de vila medieval portuguesa. Tinham sido raras as fun- aces novos: pequenos enclaves legals pare foragidos, coutos e salvaterras, ov baitros extromuros, burgos ou vilas novas. A mais importante criagdo de raiz fi Vila Real, fundada pelo rei D. Dinis em 1289 no interior da provincia de Trds-0s- Montes. O pais crescia pelo aumento das vilas, ave desde 0 séc. XIV descem do alto dos montes para a planicie: varzea de ri0s, encostas abrigadas, beira-mar {Obidos, Palmela, Tomar, Arraiolos, Monsora7, Sesimbra...). Talvez mais sob influ- ancia italiana (patente na Vila do Infante fundada pelo infante D. Henrique em 1455 res, com a sua “correntezo” de cosas uniformes que se como em Pienza], configura-se 0 que se 'em +, onde as ruas acompanham 0 relevo las e perpendiculares, com uma Rua is rossios ou terreiros uniformes © cortado da antiga order dos Templarios (de Crs- ‘da Madeira - prime 25; elevodo (vila: no promontério de Sa devia repetir em linhas paralelas, chamado urbanismo da Ordem de Cristo do terreno mas procuram manter-se paraleli da Corredoura como eixo unindo dot por transversais: assim em Tomar, sede to apés 1319); no povoado de Santa Maria do Funchal na ilha 10 aglomerado urbano edificado por europeus fora da Europe (1420- avila c, 1450, cidade em 1508 e sede de diocese em 15141; Angra dos Agores e mais terras dependentes do “padroado Portugu- ‘@s" doado em 1451 pelo Papa no mundo ndo-cristao [S.Tomé, S. Salvador do Congo, ef), Seria esse esquema bipolar tracado em forma de cruz, como simbolo da dem de Cristo, que determinaria, pela repeticao de quarteirdes e lo- 1a estrutura linear orientada para o porto, maritimo ou fluvial, ou a princi- zt tes, um |_pal entrada Tem se exagerado, a meu ver, essa fipologia geomélrica, reagindo conira a visao medievalista de um Robert Smith, que, tomando a parte pelo todo, via nos povo- ‘ados minelros ~ € mineiradores ~ espontneos e informes, o prototipo do cidade Colonial portuguesa. Parece-me mais prudente e acertado falar numa rede urba- noltendenciaimente reguTar: pao havia a obsessdo do Gngulo reto nem da geo- ‘netria abstrata, mas a necessidade pratica (e o gosto) de abrir ruas tanto quanto possivel paralelas, adaptando-se ao relevo do terreno ~ linha do costo, curso um tio, nivel de cota duma encosta abrigada da intempérie. Neste urbanismo vtendencialmente regular” [4 se define uma oposicdo entre a Vila Velha, com 0 casielo ¢ o muralha urbana (muitas vezes abandonadal e o arrabalde mais aces- ‘vel: entre a Alta e a Baixa, que serd uma das constontes da cidade portugue- sa, no confinente como no ultramar. Sobretudo, j se yerfca a tendencia ou von- tade de uma reficula relativamente rigorosa, de que s6 haverd a utensilagem mental e copacidade de realizar em época posterior. vem tragava essas vilas “de programa”? ? A documentagdo nada diz: mas eram mestres-pedreiros, pelo sistema simples de cordeacdo fella direlamente no ter- reno, contra os ventos dominantes como ensina Vitrévio’, e a demarcagdo dos lotes por marcos ou postes: auténticos engenheiros, embora a palavra ndo apa- reco, e sim o de “engenho" (designando aparelhos mecdnicos e maquinas de guerra, que consttuiam seguindo a Machinatio e a Gromonica viruvianas?. Néo de excluir a hipdtese de uma influéncia da arte romana da Castrametacdo (cas- tro metatio, “balizar acampamentos"), j@ conhecida entre nés no séc. XV: 0 pré- prio Inf. D. Pedro traduzira c. 1430 0 De Re Militari de Vegécio. Se 0 seu sobrinho e continuador, o rei D. Jodo Il, fundou com éxito duas “Vilas Novas" de milfontes, 1486, na costa alentejana, e das Caldas de Obidos ou da Rainha, 1488, num hospital termall, nas terras [@ habitadas do ultramar somaram- se fracassos: a vila Graciosa, no rio Larache (Marrocos), a aldeia de Portugal na tual Libéria, uma feitoria na foz do rio Senegal, a fortaleza de Tangarim no estu- rio da Serra Leoa e a cidade de S. Jorge da Mina {hoje Elmina, no Ghana} ~ a ‘mois antiga fundagto européia nos trépicos (1486) - ndo tiveram o papel civlizador que 0 rei sonhara, alguns nao chegando sequer a sair do papel. Mas 0 Castelo da Mina (1481), pioneito do ponto de vista militar, dev origem & mais densa rede | || de estabelecimentos e entreposios no Golfo da Guiné - Acra, Axem, Ugaté, Ajuda || no Benim — e assegurou o controle lusitano sobre o Atlantico Sul até 0 séc. XVII || 6 fol lomado @ traigéo por Mauricio de Nassau em 1637, \ ae cadernos de pesquisa do LAP w cadernos de pesquisa do LAP | os Forouzasox Det As, 1509-10: mae ayant Mono, stouo XUV Nao se chegou, pois, a criar uma sociedade e arte “luso-marroquinas” devido a hostilidade das populagdes mucuimanas locais, e falhou a esperada cristianizacao da Africa Negra (reinos do Senegal, Congo, Angola). Mas foi um ‘campo de experiéncias onde se forjaram as técnicas de colonizagao, laboratério de formas de transicdo onde se superou de vez a heranca tardo-gética européia, testando os primeiros baluartes e sistemas defensivos [caso de Arzila, 1509, com @ Gnica torre-de-menagem feudal da Africa ao lado do proto-baluarte “da Pata da Aranho’, jG modernol, intervindo na malha urbana érabe com abertura de pra- ‘60s civicas e ruas de acesso direto a igrejas e conventos, e provando a importan- cia de diminuir e regularizar os perimetros por “cortes” {atalhos|. Especialmente instrutivo & o caso da vila de Alcdcer-Ceguer (1458!, no Estreito, entre as cidades de Ceuta e Tanger, onde escavacdes arqueologicas recentes trouxeram 6 luz uma muralha circular tipicamente medieval portuguesa em que s6 as portas monumen- fais Grabes foram aproveitadas, a estrutura vidria com a Rua Direita, 0 Castelo. 0 largos da matriz e da Misericérdia e a couraca de liga¢ao direta ao porto 11469) ~ uma malha urbana “tendencialmente regular’ que data da 2° metade do sé XV, Todo esse empenho construtivo, como em Azamor ou em Safim, saldou-s? hum insucesso: em 1550 as pracas marroquinas foram pura e simplesment ‘obandonadas, pela impossibilidade de resistirem a um ataque do modeme Pirobalistica (artilharia de fogo) que os Mouros j4 dominavam - com 0 ‘auxilio dos Portugueses, fundidores e arllheiros, transfugas para o campo contréro (0s cadernos de pesquisa do LAP cadernos de pesquisa do LAP “Elches" ou renegados} -, apenas se conservando a inexpugnavel de Mazagao (El-Jadidal, evacuada pelo Marques de Pombal (1769) p seus moradores para Nova Mazagdo no Amapa Vila-fortaieng Ara Mudar as 1) © avango da expanséo acompanha 0 da racionalidade e impse o do fn x mir linha reta, pelo habito de tracar as linhas de rumo e marcagdo de rotas a Néuticas, &s suas perpendiculares, paralelas ao Equador, das capitanias do Brasil rites 351, uma gretha ortogonal divide o globo terrestre, Doi que a nosdo de requian. dade progrida como sinal ideolégico do espirito moderno. : Do meridiano de Tordesihas (14941, tracado no abstrato a meio do ocean i Fruto dessas primeiras experiéncias, éxitos e frustracées, resullando de noves condigdes mentais e necessidades geopolticas criadas pela ansiada chegada 4 India, surge um[urbanismo manuelino] 0 comércio colonial do ouro e especiari- as exigia outro modelo urbano, mais simples, facilmente exportavel e reprodutive, de construgdo rapido, capaz de responder as funcdes de cidades maritimas, sempre junto de um bom porto, afastadas quanto baste da populagao local (a 00 do Norte da Africa fora aprendidal, num estudrio abrigado, bem defendidas por fortificacdes onde o peso da arilharia era cada vez maior. Existe um ideal de cidade caracieristico dese exiravagante estilo do remado de D. Manvel (1495-1521)"? Por estranho que pareca, julgo que sim. £ inegavel um lesforco de regularizacao sistematica, regulamentado por legislagao e posturas Imunicipais que traem a vontade do Rei, impondo normas de higiene péblica elim- lpeza das ruas, demolicéo de balcdes e arcos que atravancavam 0 trénsito cada lvez mais intenso das cidades, a retificagdo das ruas tortuosas e pracas irregula- lres e 0 alinhamento ¢ uniformizacao das novas construgées. Sao exemplos des- ‘sa alitude “moderna” o calcelamento em pedra da Rua Nova dos Mercadores, @ principal artéria da Baixa lisboeta com seus 6 m de largura, iniciado em 1482 a0 mesmo tempo que a reforma das frontarias assentes em pilares iguais, para 0 que D. Jodo II pedia 4 Camara “pintada em papel (...0 dita rua tragada e compas- sada [= medida a compassol per cévados de grandura de hum dedo de ancho" (uma planta 6 escala 1:24, diriamos hojel; a construgdo do Bairro Alto em xadrez quase regular a partir de 1511; ou a deciséo do Rei, em 1500, de transformar 0 Rossio de Lisboa em praca fechada por pérticos em arco regulores e “fermosos’ & maneira de cidades italianas como Bolonha, Seria um novo centro civico oposto Go Terreiro do Paco, na Ribeira junto ao Tejo, que entéo ganhava enorme desen- volvimento, e para onde mudaria o palécio real, Curiosamente, quase ndo ha um urbanismo renascentista: 0 proprio manuelino Vai absorvendo e assimilando as novidades do Renascimento italiano, com as Suos Pracas retificadas, arcarias, l6ggias e até o campanile (torre do relégiol; ¢ € NO mundo colonial que muito disso ird ser feito. Passado o Atlantico Sul, descoberto © Brasil, alcangada por fim a india, 0 Oceano Indico iré ser 0 palco de algumas —> das mais criativas inovagées le inven¢des! urbanisticas e fortificadoras, logo apés a fundagao do “Estado da india’ (1504) governado por um Vice-Rei, estendendo- se desde 0 Cabo da Boa Esperanca (Capetown) alé 0 Japao e ao arquipélago das Molucas e Timor, 4 na orla do Pacifico. A cidade de Santa Cruz de Cochim, pri- meira capital, ainda apresenta vestigios manuelinos. Uma bela planta de 1610, le- vantada pelo engenheiro-mor Jali Simo, mostra 0 Castelo Manvel fundado por ‘Afonso de Albuquerque em 1503 - 0 mais antigo erguido na india ~ e a reticula de uma “cidade aberta” pou‘co fortificada pelas defesas naturais dessa Veneza do Oriente, mas com 0 ndcleo portugués (atual Fort Cochin, um bairro numa me- trépole de 1 milhéo de habitantes) provido dos equipamentos essenciais, com ruas ber delineadas, « Ribeira com estaleiros, o drea portuéria de ver-o-peso (Peso da Pimental, € 0 foco religioso em toro @ Sé. Construida num areal vazio escolhi- do pelos Portugueses, cedido pelo seu aliado rei de Cochim, a mao de um urbanizador & aqui, a meu ver, indubitavel. A joia do Estado da India era a cidade de Goa, desde sua conquista em 1510 por Albuquerque (outros centros vitais, como Cananor e Chaul, foram apenas vilas, (6 nies de 1545, e Diu néo passou de uma fortaleza sob governo militar, s6 em 1799 recebendo estatuto municipal. Principal porto do sultanato de Bijapur, 0 conquis- tador refez Goa quase do zero, salvando apenas o palacio do Sabaio, simbolica- mente tornado residéncia vice-real e centro da cidade, na praca quadrada onde se ergueu a Sé e viviam os cidadaos mais importantes”. A mais antiga planta dessa Roma do Oriente (desde 1572 arcebispado Primaz da Asia}, de c. 1580, in- dica com nitidez 0 nécleo manuelino, com muralha oval e fosso, fechado sobre 0 mar pela Fortaleza de Santa Catarina, e uma rede de ruas orientadas a N-S cor- fadas por fravessas no sentido L-O. Vemios ndo s6 a vontade de fazer uma urbe moderna - com o bazar (mercado) cruciforme extramuros ~, mas um arquiteto militar habil: sem dévida o alentejano Tomas Fernandes, que ergueu em 1511 a fortaleza de Malaca, no estreito de Singapura. Operagdes de loteamento, como ‘a promovida em 1526 pelo capitao Pero de Faria, explicam a regularidade quase ‘geométrica de alguns bairros e do Bangasal ou “praga do comércio", que em 1614 © francés Pyrard de Laval comparava a Place Royale (atual Place des Vosges] de Paris. Os lotes de dimensées idénticas as de Lisboa, de 7/8 a 22 m (10 bracas} de frente ao jardim nas troseiras, criavam uma paisagem urbana e uma atmosfera muito parecida, infelizmente extinta, Assim parecem afirmar-se, na fase de viragem entre 1480 e 1530, as virtudes do retilineo na vida da cidade: estruturantes, higiénicas {e sabe-se o pavor da época pela pestel, defensivas, estéticas. Os torredes curvilineos das muralhas dao lu- gar aos angulares com faces planas, as ruas retificam-se. € interessante encon- trarmos a mesma atitude na Literatura de Viagens, onde o conceito de bem om como crit loriz surge cadernos de pesquisa do LAP | 6 cadernos de pesquisa do LAP | Psa oa coancoe Saas (Cavaoe Coc: evaseaen- oreo reo “cuneao-or a he’, sov0 Sa, 1610 CIDADE DE CocHit do, que admira as vias direitas e planas_e trues das do Reino. Melinde, na costa norte de hete e corre o dito “Quem viv Goa néo precisa India de Duarte Barbosa {lisboeta escrivao da femu- rig nova rec roporcionadas, 4 manel Zanzibar, é comparada com Alcoc! ver Lisboa". O Livro das Cousas da feitoria de Cananor em 1516-18) da opiniées pessoais que valem como test nho da nova maneira de ver da época: assim, Quiloa € “uma vila de mouros de mui fermosas casas de pedra e cal com muitas janelas @ nossa maneira, muito " e em Melinde “o lugar es'é mui bem orruado"; a cidade de Ormuz, bem arruadas’ bem assentada e arruada com muito boas na entrada do Golfo Pérsico, @ “mui pracas’, enquanto s6 outra grande cidade indigena Ihe merece esse elogio que @ Arqueologia confirma}: Vijaiandgar, capital do reino hindu de Narsingo, com casas ‘muito bem concerladas e arruadas de mui compridas ruas © de grandes pracas"®, 0 ideal parece ser 0 dos cidades alentejanas, de casos cobicas com terraco e fachadas alinhadas, ndo irregulares, formando longas ras ¢ pracas retilineas. 1” jo que alin! tre direil licar ortogonalidade; mas 0 termo {6 entrara no uso corrente. fe influéncias diversas - 0 pensamento urbanistico italiano, i) Pela sintese d 1a -, parece estabili- modelo da metrépole indomugulmana, a tradicao manvelint zar-se de 1540 a 1620 um tipo “cldssico” de cidade portuguesa fou definida umd metodologia de desenho urbanol, fruto da geometria do sistema abaluartado ~ ‘empregue de modo pioneiro em Mazagao pelo engenheiro militar Benedetto da Ravena {1541} e pela primeira vez no Oriente na frente abaluartada de Div por D- Jodo de Castro (1546) ~ e da criagéo embrionaria dum ensino oficial pelo mestre- pedreiro Miguel de Arruda, a 1/Jan./1549 nomeado Mestre das fortificacdes e muros do Reino, Lugares d'Além e India. Um ministro de obras piblicas, que ia ‘em 1548 fornecera os desenhos para os baluartes “ao moderno" do Castelo da mina e 0 inteiro plano da capital do Brasil, por Luis Dias. Do seu atelier, junto ao Paco da Ribeira, rodeado de ajudantes e discipulos, devem ter saido as “tragas* e “debuxos" da maior parte dos edificios construidos pela Coroa, religiosos, civ, militares e planos urbanos, entre os quais ndo havia distingdo projetual: uma pra- tica confinuada pelo seu sucessor, 0 mesfre-mor Antonio Rodrigues {1564-90). que em 1572 inaugura o ensino formal no “Aula de Arquitetura do Paco da Ribei- sobretudo, Esse esforco de organizacao profissional, em que 0 arquiteto {neologismo Vitruviano $6 entao comecado a usar! é visto como um “scientico” ou cientista, diversifica-se nas regides do império pela pressdo das situacées e solicitagoes. A especializacao € cada vez mais uma necessidade, e enquanto no Reino con- tratam-se técnicos italianos (Tornas Benedito, 1565; Filipe Terzi, 1576), nas colbni- as criam-se cargos de alto nivel: fortificador (india, 1551; Brasil, 1588), engenheiro (India, 1568; Brasil, 1575) ¢ por fim o engenheiro-mor de quem tudo depende (1583 @ 1597), As nomeacées sucedem-se nesse final de século conturbado, em que o ritmo da construgdo militar supera tudo: como a nova cerca abaluartada de Goa, de 12 km de exiensdo (15671, e as duas maiores fortalezas jamais erguidas pelos portugueses, a do Monie Brasil em Angra (1590) num circuito de 6 km e a da ‘Aguada em Goa (1604) com um perimetro que atinge os 8 km. ‘Aesoe oa aun concen 08 Foruur2a oe Sho Taso 06 Stato, no Pecu Baoan, quOA Mos MSSONARS omrucuses 4 1612 cadernos de pesquisa doLAP Nese triunfo de geometrismo e da grande escala, as cidades séo deixadas a0 crescimento esponténeo, aliés espetacular: a Sé de Goa (1562) 6 a maior catedral portuguesa e as fundacdes dos Jesuitas, em particular a igreja de Macau (1602; fachada: 1624), ndo tém paralelo na Europa. A Coroa utiliza as fundagdes urba- nas (5. Sebastiao do Rio de Janeiro, 1565; Santissimo Nome de Deus de Macau, 1587 ~ Gnica cidade porluguesa de fundacdo particular -; Sdo Tomé de Meliapor, tual Madrasta, 1622) como insirumento ao servico proprio. Nao hé uma politica rang coerente. Sem insistirmos na jesuttica Nagaséqui (1570), que deve muito a tradigdo japonesa de estrita regularidade, e sendo a autoria do tracado do Rio de Janeiro cinda um problema (Batista Antonelli, 15822), a nica criagao de interes- se parece ser Damo, na Provincia do Norte na India. Em torno de um forte quadrangular ocupado em 1559, 0 vice-rei D. Constantino de Braganca - que jig ter em mente a corte ducal scentista de Vi icosa, m1. Jo engenheiro Benedetto da Ravena inspirado em Alberti - fez repetir 0 médulo ‘em quadras e ruas iguais, sem praca central, num tabuleiro de xadrez perfeita- mente regular que é costume atribuir ao engenheiro-mor de entdo, 0 italiano Jogo Batista Cairato). A influéncia classicista da cidade-militar e da cidade-fronteira da ltalia € Sbvia: um jesutta jd escrevia em 1570 que pelo seu tragado Damao Ihe fazia lembrar as melhores cidades italianas. ‘Mas tudo aponta como autor 0 arquiteto amador dominicano Frei Julian Romero, um castelhano que vivera em Roma no meado do século e que tanto se pode ter baseado nas Leyes de Indias iberoamericanas como em idéias colhidas na ‘ratadistica italiana, como P. Cataneo (que estava sendo usado precisamente Oran cara ween, osmaren aaeact 05 one consmutos meus cadernos de pesquisa doLAP v a Pocana vane CSc, m0 eco Fur Ter, 1594 cadernos de pesquisa do LAP | nesse ano pelo fortficador oficial na consirugéo de baluartes no Forte de Barém, No golfo Pérsico™}. E uma coincidéncia - de datas, de fontes, de localizacao ~ que iulgo que explica o caso atipico, verdadeiramente excepcional, de Damao. Por ironia, é a regularidade excessiva da sua traca ~ em que se tem querido ver a “cidade ideal” por exceléncia dos Portugueses na India - 0 fato exagerado que Mais parece afastar-se da tradicdo de empirismo das nossas urbes “arruadas* Confirma a idéia de corpo estranho 0 desenho demasiado rigido da muralha, decerto refeita ou encamisada por Cairato quando la trabalhou em 1588. Enquanto aqui triunfa 0 conceito “cientifico, erudito, da cidade ut6pica 4 italiana, com 0 seu purismo geométrico cristalino, perfeito demais para ser real, por es- Ses mesmos anos, anonimamente, vai-se definindo o tipo de vila ou de cidade colonial portuguesa: em Olinda, Salvador, Rio, Santos, Luanda, Chaul, Bacaim, Colombo e Gale (no Sri-Lankal, Macau e tantas mais. Uma cidade que se molda as condicdes do relevo e procura tirar partido dele, que se defende com uma cerca abaluartada — que condiciona o tracado urbano por um conjunto de regras das - mas sem virar 0 interior. na fase manuelin iva tranqbilidade criada pela Pax Lusitana d £ uma cidade lito- rdnea, em excelente situacdo portuaria e de condigdes de defesa ~ ndo por aca- so muitas delas deram origem a megaldpoles atuais, como Mazagao/El Jadida thoje 0 2° maior porto da Africa ern movimentol, Rio, Salvador, Bombaim (com os seus 15 milhdes de habitantes), Singapura (a herdeira de Malacal, etc. Por isso mesmo forgada a adaptar-se a um sitio com fortes desniveis, sempre de incrivel beleza, onde surge uma Alta e uma Baixa com a Ribeira e 0 bairro portudrio e hoje centro financeiro, unidos por ladeiras ingremes e elevadores ou monta-car- gas, formando um anfiteatro rodeado de montes: as sete colinas de Lisboa, ou 08 oiteiros de Goa e os morros do Rio fermin lo sitio: as costas ("quebra-costas’, rua cortando a encostal, a Rua Direita com suas fraves- ‘sas, as serventias de igrejas, os adros, largos, pracas e a praca-de-armas para funcdes militares e de prestigio, a beira-mar, com a Camara, 0 palicio dos Go- \_ vernadores e 0 pelourinho: a futura Praca do Comércio e a Praca da Sé. O seu cada vez mais regular, sem chegar & esquadria: procura- Hin neo com quadras proporcionadas, 0 que nem sempre 6 possivel pela natureza do terreno ou edificios preexistentes; mos a intencéo de regulari a0 indiscutivel quanto or a desen! prévios no papel, uma atitude de projeto e medida obedecendo a principios ea tos ou normas mais do que los fixos e a regras I \cretizados com mo pelos velhos métodos de jo-com us a 1 nada: ez da té : quadro. Podemos dizer que 0 tipico urbanismo colonial portugués resulta da trans- posigao para tera fime dos processos de determinagdo de rumos no mor, pas- sando insensivelmente da Nautica ao Urbanismo: é um navegador em terra, pro- ndo no solo concreto a quadri ual dos mapas oceanico: Ivy pasado 0 triunfo dos engenheiros militares italianos ¢ da Tratadistica roxmativa.que impuseram, volta ao primeiro plano a criatvidade dos “praticos® hacionais € suo experiéncia, agora enriquecida pela sintese entre o saber erudi to ov livesco @ 0 seu Tradicional empirismo. Na metade oriental do império, sob «@ ameaco cada vez mais agressiva das poténcias concorrentes — os Holandeses primeir [desde 1602, em que chegaram a fechar 0 acesso a Goa}, os Ingleses no final do s8culo - vive-se 0 momento do recuo e da consolidacdo de posicées. Ea hora do Brasil para onde se desioca o eixo dos acontecimentos. De 162001750, | aproximadamente, € af que ocorrem os progressos essenciais. Wa pratica urbanistica do Reino as novidades sao poucas: intensifica-se o pro- cesso de arruamentos, no sentido (que vinha da Idade Médial de dispor os offci- ‘95 por ruas abertas propositadamente - @ Rua dos Sapateiros, a dos Ourives, dos Comreeitos. dos Cordoeiros, dos Acougues elc., como meio de reestruturar a ci- dade, Cortesponde o uma exigéncia pragmatica do municipio, ndo a uma teoria por isso ganham nova Importancia os medidores camardrias, a quem compete 0 essencial do trabalho. A abertura, por exemplo, da Rua Nova do Almada (1673), que ainda hoje liga diretamente © Chiado @ Baixa e era entdo a artéria mais mo- derna de Lisboa, foi um processo complicado e longo, que reuniu um corpo de téenicos: 0 engenheiro-mor, 0 vereador das obras camararias, 0 vedor, os mes- tres-pedreiros contratantes da empreitada, os louvados ou peritos no exame das expropriacdes e em avaliar 0 seu preco, os mestres das obras municipais e 0 +medidor da cidade”, que realizou a planta “indo cordeando com igualdade"*. 0 objetivo era essa traca igual ~ oposta a “disformidade" - que s6 0 medidor sabia com que se buscava, além da utlidade piblica, regulorizor e dar “formosura” cidade. Assim, ndo admira que o engenheiro-mor Manuel de Azevedo Fortes, no seu tratado O Engenheiro Portugués \Lisboa, 1729), propusesse a instituiggo de | um corpo de medidores, com um medidor-mor e medidores das comarcas como. supetintendentes dos modestos oficiais camararios: uma proposta légica que nao {eve efeito, mas mostra que o ideal da regularizacdo era ja um dado adquirido. \ 3 Eno espaco brasileiro, amplo e aberto, que essa utopia ligada a ideologia do lluminismo e da idade da RazGo ira encontrar a oportunidade de se realizar. Alem dos engenheiros militares, habituados a abrir caminhos e a tracar novas povoa- 66es [6 perfeitamente regulares (como mostram as cartas de fundagao de Vila Boa de Goids e vila de Ic6, 1736, S. José do rio Negro, 1755, e Oeiras no Piaul, f aoe idénticas que parecem seguir um formuldrio preestabelecidol, os agen | urbanismo regular sistemético serdo os anénimos ocupantes do cargo ‘gual ao “medidor* metropolitano — “os funciondrios do urbanismo” na feliz ex- cadernos de pesquisa do LAP | cadernos de pesquisa do LAP 24 pressdo de Renata Araijo: os ruadores, uma profissdo (ou ao menos 0 nom; parece nao ter existido em Portugal. Mais do que aos engenheitos, a esses hy. mildes funcionGrios municipais deve-se a aparéncia moderna das cidades bros, leiras, mais regulares que as da metrépole e do Oriente; e a U9 protica profissi- onal, a arte da ruacGo, marca a entrada na era moderna. © termo [a devia ser corrente no Brasil (efalvez em Portugal na linguagem col. quial) desde o século XVI, correspondendo & forma verbal “arruado" - que implie a, logicamente, 0 verbo “arruar” - empregue por Duarte Barbosa em 1516 em Cananor com toda naturalidade de algo cujo sentido ninguém ignorava, Mas S60 encontro pela primeira vez bem explicito por Gabriel Soares de Sousa no Tratado descritvo do Brasil, em 1587, quando descreve a fundacdo, em 1549, da cidade do Salvador por Tomé de Sousa, arruando-a por boa ordem. No cap. X da Il Par. te (como corre a cidade por este rumo..."|, parece repetir Barbosa quando diz que do Terreiro de Jesus & praca da Camara vai a cidade muito bem arrvada: 0 Que introduz uma sugestiva correspondéncia entre 0 conceito na © urbano de rua arruada, isto é, direcionada er “tomar 0 rumo* e “arruar’ 0 paralelo é claro, 'e) que e mM linha direita ou retilinea. Entre APp6s a fundacdo da capital, creio que nao & coincidéncia que 0 concelto surja bem expresso, e j@ com uma teoria implicita, em outro momento marcante ne historia do urbanismo brasileiro: 0 tracado da outra capital, na costa Norte, a ci dade de Sdo_Luis do Maranhé. £ erm novembro de 1615, apés a expulsdo dos franceses da “Franca Equinocial’, que o engenheiro-mor Francisco Frias de Mes- Gulla faz 0 projeto da nova urbe, que 0 “Regimento” do capitéo Alexandre de Moura, datado de 9 de Janeiro de 1616, recomenda se execute fazendo que fi que bem arrvada e acrescente a doacao de chaos para as casas e faca a dita repartigdo e arrvacdo sequindo em tudo a traca do engenheiro-mor, que, além disso, deixara feita uma casa para servir de modelo ds demais (provavelmente, uma maquele em madeiral. £ curioso, e sintomético do desconhecimento em que mesmo a melhor historiografia tem mantido este conceito, que o termo que consta do original, “arruacao", seja lido por Paulo Santos como “arrumacao" ”... Temnos aqui o passo fundamental na histéria da disciplina, em que da palavra designan- do a agao {e o seu resultado) se passa a sua conceituacao. O passo seguinte é a criacao oficial do cargo camarario de ruader. 0 especialista esse tipo de urbanismo ainda em larga medida empirico e sem regras cientifi- as, como o dos “medidores” do Reino, Encontramo-lo em Belém do Para, onde em 1626 0 “ruador’ da camara abria uma rua para albergar colonos vindos dos Acores™; e cremos que ndo sera por acaso que as duas primeiras ocorréncios do termo surjam exatamente em cidades-fronteira do Norte, ambas modelos de colonizacdo portuguesa que se opunham as ambicdes estrangeiras. A atividade wulgarizava-se, e com ela o cargo respectivo - talvez restrilo as capitais, € assim dT 0p esinbsad ap sousape> a Frowos teas estt.00 Bow J ¢ Go, on st conteva ctu Sho Fancsco Xaver 1593, raion 10 Sao cadernos de pesquisa do LAP | 26 tt que em 1685 (mas decerto desde muito antes) encontramos em Salvador o ‘arrvador e medidor do concelho", 0 mestre-pedreito Julido de Sousa, encarre- gado de abrir a Rua Nova entre a praia eo convento de Santa Teresa; particular. mente curiosos sdo os termos da ata da vereacao descrevendo como se proce. deu a medicdo de propriedades vizinhas: presenfes todos botou 0 pilloto 0 rumo e 0 medidor e arrvador e medidor do concelho Julido de Sousa botou suas linhas e achou unir a dita rua demandar as ditas casas...”. Uma vez mais, 0 paralelo entre 0 tragado do rumo e 0 da ruagdo, navegando em terra. Em Salvador como em Lisboa, portanto, a designacao oficial desse cargo do mu- nicipio era “medidor’: devia ser a forma erudita e prestigiada, que $6 no uso cor- rente se substituia pela variante mais popular de “ruador”. Em 1674 era “medidor da Camara* o engenheiro Francisco Pinheiro, autor do convento do Desterro (1687}*° — 0 Gnico convento feminino existente em todo o Brasil até o século XVIII ~ e sem divida 0 urbanizador de toda a encosta adjacente, entre a Ladeira do Carro e a da Fonte das Pedras. Ora, se, como afirma Carlos Ott, o mesmo enge- nheiro Francisco Pinheiro dirigiu em 1708-1709 as obras da igreja e do convento de Sao Francisco, até que ponto ndo seria ele, na sua competéncia de ruador da cGmara, 0 autor dessa obra-prima do urbanismo luso-brasileiro que 0 Terreiro de Jesus? 1 WA regularidade tornara-se, pois, uma pratica generalizada, e o gosto pelas ruas € pragas retilineas condigéo essencial da formosura das vilas e cidades. Mas & com 0 periodo pombalino, entre 1750 e 1780 - na realidade, até a destituigao do ministro Marqués de Pombal (1777} -, que a arte do ruador ou “ruagao” alcanga 0 méximo protagonismo. Seré dele, mais que do engenheiro, que depende a for- _ma urbana — ~ © melhor testemunho desse momento, e documento Gnico do processo de afir- magdo dessa pratica urbanistica de que vimos os primeiros indicios no texto de Barbosa em 1516, é 0 inédito Tratado de Ruacdo de José de Figueiredo Seixas ofe- recido em 1763 ao todo-poderoso ministro Marqués de Pombal. Trata-se de um manuscrito de luxo, bem ilustrado, contendo algumas propostas de interesse: uma reflexdo sobre 0 que se estava fazendo na reconstrucdo da Lisboa pés- Terramoto sete anos antes, constituindo como que a teoria do yrbanismo pombalino (que José-Augusto Franca caracterizou como sendo essencialmente empirico e imediatista, ndo-te6rico). O autor, um pintor de ornatos cenograficos da regido de Viseu que trabalhou com o arquiteto toscano Nicolau Nasoni e tra- duziu com vinte e poucos anos, em 1732, 0 famoso Perspectiva pictorum et architectorum do jesuita Andrea Pozzo (Roma, 1700), era um bom construtor de profissdo na cidade do Porto - onde fez igrejas rococés [Ordem 3° do Carmo) € neocléssicas (irmandade da Lapa} e indmeros palacetes, solares (atribui-se-Ihe a capela do Solar de Mateus, 1743), moradias rurais e prédios urbanos de aluguel ipraticamente toda a rua de Belomonte, por ras da torre dos Clerigos) ~ fessor de Deseno MO “Aula da Nautica e Fortificagéo" instituida em 1762 ia dos Vinhos do Alto-Douro, a burguesia do vinho do Porto, Nessa rade € que escreve 0 seu tratado, que live a sorte de descobrir (além de we ante de Edificar desoparecida) e apresentei no 3° Centenario da morte de ae pot ~ para onde remeto, o que me dispensa aqui de mais pormenores — tendo- .atuatmente em estudo para publicagao na Universidade de Washington (devido 3. semelhoncos flagrantes enlre as idéias do autor e o plano da capital nort Gmericano, do frances Enfant, 1791) ie efi pro- Pela Real compan 9 conleddo do texto € extreramente vasto e denso ~ até no ftulo: ratado de uasdo para emenda das rvas das Cidades, Vilas e Lugares deste Reino... mas seu objetivo € muito claro: fundar uma disciplina nova, a Ruagae, tendo _ mo. teria 0 estudo cientifico e rigoroso da forma, o desenho e o crescimento das cic gades,su0 fun¢d0, hist6ria, tipologias etc.: 0 fendmeno urbano auiénomo, tal tomo hoje 0 entendemos. Para isso, propée a criacdo dum estabelecimento de ensino em que seja estudada e a profissionalizagao de um corpo de praticantes, gs ruadores, com dois em cada comarca, coordenades pelo ruador-mor lem que se sugere a Si proprio). E 0 projeto falhado de Azevedo Fortes de 30 anos atras para os “medidores", mas que Seixas reloma com uma rindcia e uma fundamen- jagdo matematica mais que convincentes, levando 0 seu entusiasmo a pormeno- res quase risivels: propde, por exemplo, que todo o pais seja dividido em quadra- dos de % I6gua (3 km) de lado, por sua vez subdivisiveis noutros, por ruas conf nuas, prolongadas por estradas também retas e perpendiculares, criando uma quocricula de dimens6es constantes por onde se distribuam os lotes de constru- do, 0s campos de cultivo @ até as Greas florestais, de modo que, como ele diz, tol “composi¢do formosa” traré o bem comum “e o pais inteiro parecera um jar- dim!" J6 ndo 6 s6 a cidade mas 0 ordenamento do territ6rio, a rede de comunica- cées e a planificacéo regional (para usarmos termos de hojel que o preocupam, esse final do Antigo Regime. Uma utopia, mas uma utopia realizével, um plano de ado: basta ver os projetos idénticos aparecidos na Espanha (a Sindpia do conde de Campomanes, cerca de 1770, e 0 Discurso sobre Ia necesidad... de buenos caminos publicado em 1763 pelo iluminista Padre Sarmiento) e as imen- sas|inhas retas tragadas no mapa americano como divisas estaduais do Midwest- West pela Land Ordinance de Thomas Jeffersosn em 1785. A utopia era possivel. Seixas desejava “emendar alguns defeitos da ruacao" da cidade do Porto, mas apercebeu-se de que era impossivel fazé-lo parceladamente, como ele 0 diz: a “cidade perfeita’ ou “cidade regular” s6 & vidvel pelo planeamento global (uma idsia de Pierre Pattel e da totalidade do pais, estabelecendo leis de uma ciencio, “Arte da Ruacao” ou teoria geral da reforma urbana. Tem perfeita consciéncia, © al8 vaidade, de estar fazendo obra nova, pois “nem athe o tempo presente howe clgum sujeito que hala escrevido de semelhante materia’. Mos segundo F cadernos de pesquisa do LAP 27 cadernos de pesquisa do LAP | 28 Choay 0 concelto € 0 nome do Urbanismo foram inventados pelo engenheiro de Pontes-e-calcadas cataldo Ildefonso Cerda na sua obra Teoria General de Iq Urbanizacién publicada em Barcelona em 1867. A originalidade da proposia ambiciosissima de Figueiredo Seixas ~ cujo mapa se encontra no Rio de Janeiro & que ele vai pegar numa tradicdo velha de séculos e castamente nacional, que istura com leituras dos tratadistas classics, de Vitrovio a Alberti livos de jar fagem e a.arte da quadratura de tetas. De fato, o termo “Ruacao” é uma palavra desaparecido, sem traducdo possivel noutras linguas®, e a realidade que Ihe ser. ve de suporte € a experiéncia urbanistica colonial lusitana. a primeira tentativa sistematica de criar uma disciplina e erguer ao estatuto de ciéncia a prética urbanizadora, essa “arte de fazer cidade" que os Portugueses espalharam pelo mundo. Da India do século XVI passamos ao Brasil do XVII, para terminar, fechan- do 0 ciclo, no coragao do Portugal setecentista burgués le ndo na Corte, note- Sel. Ninguém suspeitava da existéncia deste surpreendente precursor Setecentista de Cerda, que deve ter estado no Brasil e da como exemplo de boa uagdo a nova Lisboa pombalina e o Rio de Janeiro - as duas capitais do império 'uso-brasileiro. seu utopismo & a ocupacao racional dos espacos do Novo ‘Mundo e 0 mapeamento enciclopédico do continente, acabada a descoberta dos Oceanos: 0 triunfo do sonho {ou pesadelo) da régua-e-esquadro substituindo a cultura da bissola e do composso. Nao & um texto fundador mas conclusivo: g teorizacdo da peculiar Escola sa de urbanismo. Como era de esperar, o livro de Seixas ficou guardado em alguma gaveta, duran- te dois séculos. Mas é legitimo perguntar 0 que teria acontecido se o Morqués de Pombal tivesse decidido dar-Ihe atencao e posto em pratica, criando uma dis- ciplina e um corpo de praticantes préprios. Provavelmente, estariamos hoje aqui Feunidos no “V Seminario de Histéria da Cidade e da Ruacdo’,

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