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A PEHSONALIDADE l

NEUHÜTICA DO �

NOSSO TEMPO
por
KAREN HORNEY
( Dout6ra em Medicina)

:!ate livro nos oferece um quadro minucioso


e preciso do neurótico que vive entre nó!,
doa conflitos que na realidade o governam,
das· suas ansieClades e das inúmeras dificul­
dades que encon�a em suas relações com
outras pessoas e cónsigo mesmo. Não se trata
de um livro relativo ou ligado a êste ou
àquele determinado tipo de neurose, mas que
versa sõbre a estrutura de caráter presente,
de um modo ou de outro, em pràticamente
tõdas as pessoas neuróticas de nossos dias.
A Autora sustenta que, quando dirigimos
a atenção pam as verdadeiras dificuldades
neuróticos, reconhecemos que as neuroses têm
origem não só em experiências individuais
eventuais, mas, também, nas específicas con­
dições culturais em que vivemos; realmente,
e11as condições culturais emprestam cõr e im­
J,>Ortdncla às experiências individuais e, em
ultima análise, lhes determinam a forma. Des­
de que multas de suas interpretações se des­
viam das Interpretações de Freud, muitos lei­
tores poderão indagar se isto ainda é psica­
nálise. A êsse respeito, Karen Homey escreve:
"Acredito que a consideração às gigantescas
conquistas de Fr�ud deve ser demonstrada
através do erguimento da construção cujos
alicerces êle Iançou, e que, dêsse modo, po­
demos ajudar a realizar as possibilidades fu­
turas da psicanálise, seja como teoria, seja
como terapêutica."
A 1'er1onalklade neurótica do no110 tempo
é um livro para o leigo interessado, do mesmo
modo que para aquêles que necessitam de
lidar profissionalmente com pessoas neuróticas
e, pois, que já estão familiarizados com os
problemas aqui expostos. Por êstes últimos
entendemos não apenas os psiquiatras, mas
também assistentes sociais e professÔlres, e
também antropólogos e sociólogos que já se
lntelrnrnm dn Importância dos fatõres pslqul­
UCIN no t•1t11do dn s diferentes culturas. Final­
ml!nte, conta 11 Autora poder êste livro re­
J>r111t1nt11r 111110 1lgnlflcntlvn contribuição pnra
o próprio lll'urótlco.

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NEUROSE E
DESENVOLVIMENTO
HUMANO

por
KAREN HORNEY
( Ooutara em Medicina)

Karen Homey vê o processo neurótico


como uma forma especial de. desenvolvimento
humano, a antítese do desenvolvimento sadio.
Acredita a Autora que, sob condições favorá­
veis, ás energias do homem voltam-se para
a realização de suas próprias potencialidades.
Sob pressão interna, uma pessoa alheia-se ao
seu "eu" real e lança suas energias na cria­
ção e na construção de um falso "eu" idea­
lizado, baseado no orgulho, mas atormentado
por dúvidas, pelo desprêzo, e pelo ódio a si·
mesmo. Cuidadosamente, e com grande .cla­
reza, a Autora revela neste livro os diferentes
estágios dessa situação, e descreve os recla­
mos neuróticos, a tirania das imposições inte­
riores, e as soluções dos neuróticos para
aliviar as tensões de conflito em atitudes
emocionais tais como prepotência, modéstia,
dependência ou resignação. Da primeira à
última página, Karen Homey tem em vista a
libertação das fôrças que levam à verdadeira
auto-realização.
Como todos os outros trabalhos de Karen
H �ney, Neurose e desenvolvimento humano
traz a marca da personalidade da Autora,
sua penetrante e original compreensão do ho­
mem, e a qualidade de tomar essa compre­
ensão inteligível e significativa aos leitores;
Nenhum psiquiatra, atualmente, é mais'' lido
e citado, ou tão conhecido do mundo leigo.
Seus livros anteriores tiveram profunda e im­
portante repercussão. Neurose e desenvolvi­
mento humano, refletindo sua rica experiên­
cia clínica e muitos anos de am�durecid
. a
meditação, é o mais considêrado e o mais
divulgado de todos os livros por ela já escritos.

EDIÇÃO DA
EDITÔRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIBA S. A.

Matriz:
Rua 7 de Setembro, 97 - Rio de Janeiro
A Personalidade
Neurótica de Nosso 'T'empo
Copyright, 1937, by
W. W. NORTON e CoMPANY, INc.
New York

Obra e:r:ecutada, .na.r oficinaa da


Silo Paulo Editora S. A. - São Paulo, Brasil
KAREN HORNEY

A Personalidade
J\[eurótica de ]\[osso
Tempo
traduçlJo de
OCTAVIO ALVES VELHO

segunda edição

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.


BIO DE J ANEIBO
Do original norte-americano

The Neurotic Personality of' Our Time

Da autora :
Nossos conflitos interiores.
Neurose e desenvolvimento humano.
Conheça-se a si mesmo (auto-análise).
Novos rumos na Psicanálise.

1 9 61

Direitos para a língua portuguAsa adquiridos pela

EDITÔRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.


Rua 7 de Setembro, 97 - Rio de Janeiro

que se reserva a propriedade desta tradução.

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Printed. in the United. States of Brazil
lndice

INTRODUÇÃO • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 9

1 - Implicações Culturais e Psicológicas das Neuroses 15

li - Razões para se falar de uma "Personalidade Neuró-


tica de Nosso Tempo" . • . . . . . . . • . . . • • • • • • • . . • 27

Ili - Ansiedade . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . • . . . . 35

IV - Ansiedade e hostilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . .. 49

V - A estrutura básica das neuroses . . . . . . • . . . . . . . • 63

VI - A necessidade neurótica de afeição • • • • • . • • . .. . 79

VII - Outras características da necessidade de afeição 89

VIII - Maneiras de conseguir afeição e sensibilidade à


refeição . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . • . . • . • • • • • . • • 103

IX - O papel da sexualidade na necessidade neurótica 1 1 1

X - A busca de poder, prestígio e posses . . . . • . • . • . 12 1

XI - Competição neurótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 139

XII - Fuga à competição . . • . • . . . • . . . . • • . . . • • • • • • . • 153

XIII - Sentimentos de culpa neuróticos . . . . . . . . . . • • . • 169

XIV - O significado do sofrimento neurótico . . . . . . • . • . 189

XV - Cultura e neurose . . . . . . . • . . . • . • . . . . . • . . . • • • 203

fNDICE DE ASSUNTOS E DE NOMES • • • , • • • • , • , • , • • • • • • • • • 211


Intr o duçã o

A o ESCREVER tsTE LIVRO, tive em mente apresentar uma


descrição precisa da pessoa neurótica que vive entre nós, bem
como dos conflitos que realmente a impelem, de suas ansie­
dades, de seu sofrimento e das inúmeras dificuldades que tem
em suas relações consigo mesma e com as demais pessoas. Não
estou interessada, aqui, em nenhum tipo ou tipos particulares
de neuroses; concentrei-me na estrutura de caráter que apa­
rece constantemente em quase tôdas as pessoas neuróticas de
nosso tempo, sob uma forma ou outra.
Merecem realce os conflitos concretos existentes e as ten­
tativas do neurótico para resolvê-los, suas ansiedades reais e
as defesas por êle erigidas para se lhes opor. :Esse realce dedi­
cado à situação concreta não quer dizer que eu não leve em
conta a idéia de que, em última análise, as neuroses decorrem
de experiências vividas na primeira infância. Discordo, toda­
via, de muitos escritores psicanalistas, porquanto não acho jus­
tificável focalizar nossa atenção na infância, como que em uma
fascinação exclusivista, considerando as reações posteriores
como meras repetições das primitivas. Desejo mostrar que a
relação entre as experiências infantis e os conflitos ulteriores
é muito mais intrincada do que supõem os psicanalistas que
proclamam uma simples relação de causa e efeito. Conquanto
as experiências infantis contribuam como condições determi­
nantes das neuroses, sem embargo elas não são a única causa
das dificuldades subseqüentes.
Quando convergimos ���9:Y:!enção P.�r_l!l _��--dificuldad!}s '
�uL..61i.9ãS r�1u�, ..P��ce]jeiiios que. a� �E.'1:1r<?s�s são g�:rndª8...não
apenas por c;ixperi�x;içias individuªis JJ?:c.��entais, II1ª�-- .tªm.b.ém i
p�l.ªs condições culturais específiças em que viv�:rn�s. Com 1
efeito, as condições culturais não só dão pêso e Cór às expe-
10 A Personalitlaàe Neurótica

riências individuais, como, no final das contas, determinam sua


forma particular. l!: sina do indivíduo, por exemplo, que sua
müe seja dominadora ou "abnegada", porém só em dadas con­
dições culturais é que encontramos mães dominadoras ou des­
prendidas, e é só também por causa dessas condições existen­
tes que uma experiência dessas influirá mais tarde na vida.
Quando nos damos conta da enorme impartância das con­
dições culturais nas neuroses, passam para segundo plano as
condições biológicas e fisiológicas que Freud considera como
sendo suas raízes: a influência dêsses últimos fatôres só deve
ser encarada à luz de provas bem fundadas.
Esta minha orientação levou-me a algumas interpretações
novas de vários problemas básicos das neuroses. Embora se
refiram a questões tão desencontradas como o problema do
masoquismo, as implicações da necesidade neurótica de afei­
ção e o significado dos sentimentos de culpa neuróticos, tôdas
elas têm como denominador comum o destaque atribuído ao
papel decisivo que a ansiedade desempenha n! formação das
tendências neuróticas do caráter.
Já que muitas de minhas interpretações afastam-se das de
Freud, alguns leitores poderão perguntar se isto ainda é psi­
canálise. A resposta vai depender ao que se considere essen­
cial na psicanálise. Se a pessoa julga que ela é constituída
inteiramente pela soma total das teorias propostas por Freud,
o que é aqui apresentado não é psicanálise. Se, entretanto,
crê que a parte essencial da psicanálise jaz em certas tendên­
cias básicas ideológicas relativamente ao papel dos processos
inconscientes e às maneiras por que êles se expressam, bem
como em uma forma de tratamento terapêutico que faz êsses
processos aflorarem à consciência, então o que apresento é
psicanálise.. Acho que o apêgo estrito a tôdas as interpreta­
ções teóricas de Freud traz consigo o risco de levar-nos a
encontrar nas neuroses o que as teorias de Freud propendem
a fazer-nos esperar que nelas encontremos: é o perigo da
estagnação. Acredito que o respeito pelas gigantescas reali­
zações de Freud deve ser demonstrado, continuando-se a cons­
truir sôbre os alicerces por êle firmados e que, destarte, pode­
mos auxiliar a preencher as possibilidades que a psicanálise
encerra para o futuro, quer como teoria quer como terapia.
Essas observações também servem de resposta a uma outra
possível pergunta: se a minha interpretação não será um tanto
Intr od u ç ã o 11

adleriana. Há algumas analogias com certos pontos que Adler


salientou; todavia, minha interpretação repousa fundamental­
mente em bases freudianas. Adler é, de fato, um bom exem­
plo de como até mesmo um discernimento produtivo dos pro­
cessos psicológicos pode tomar-se estéril, quando explorado
unilateralmente e sem se apoiar nos descofirimentos oásicos
·

de Freud.
Como a finalidade precípua dêste livro não é definir em
que aspectos eu concorâo ou não com outros escritores psi­
canalistas, de um modo geral limitei a discussão de pontos
controvertidos a certas questões em que minhas opiniões diver­
gem flagrantemente das de Freud.
O que reuni aqui, são as impressões obtidas por mim
através ele um longo estudo psicanalítico das neuroses. Para
apresentar o material em que se baseiam as minhas inter­
pretações, eu teria de incluir muitas histórias pormenorizadas
ele casos, o gue seria sobremaneira incômodo em um livro
destinado a dar uma idéia geral dos problemas das neuroses.
Mesmo sem êsse material, todavia, é possível para o especia­
lista, e até para o leigo, verificar a validade ele minhas afir­
mações. Se êle fôr um observador atento, poderá comparar
minhas suposições com suas observações e experiências pró­
prias, e, assim estribado, aceitar ou rejeitar, modificar ou acen­
tuar o que eu disse.
O livro está escrito em linguagem acessível e, para maior
clareza, abstive-me de examinar um número excessivo de sub­
divisões. Evitou-se, tanto quanto possível, o emprêgo de
têrmos técnicos, porque sempre há o perigo de deixá-los tomar
o lugar de um raciocínio claro. Assim, pode parecer a muitos
leitores, particularmente aos leigos, que os problemas da per­
sonalidade neurótica são de fácil compreensão. Isso, porém,
seria uma conclusão errônea, e até perigosa. Não podemos
fugir ao fato de que todos os problemas psicológioos são,
por fôrça, profundamente intrincaelos e sutis. Se alguém não
estiver disposto a aceitar êsse fato, aconselhamos a não ler o
livro para que não se veja em um labirinto e fique desapon­
tado em sua procura de fórmulas pré-organizadas.
:l!:ste livro se destina ao leigo interessado e também aos
que têm de lidar profissionalmente com pessoas neuróticas,
estando familiarizados com os problemas implícitos. Entre
êstes, não visa apenas aos psiquiatras mas igualmente aos assis-
12 A Personalidade Neurótica

tentes sociais e professõres, bem como aos grupos de antro­


pblop;os e sociólogos que se aperceberam do valor dos fatõres
pslcolbgicos no estudo das diferentes culturas. Finalmente,
espero que êle seja de alguma importância para o próprio neu­
rbtico. Se êle não se mostrar infenso, em princípio, a qual­
quer reflexão psicológica como uma forma de intromissão e
imposição, terá geralmente, graças a seu próprio sofrimento,
uma compreensão mais aguçada e precisa das complexidades
psicológicas do que seus irmãos mais sadios. Infelizmente, o
fato de ler a respeito de sua situação não o curará; no que
ler, mais prontamente identificará a outros do que a si mesmo.
Valho-me desta oportunidade para agradecer a Miss Eli­
zabeth Todd, que se encarregou da organização dêste livro.
Os autores de quem sou devedora são mencionados no texto.
Minha maior gratidão é para com Freud, que nos proporcio­
nou os alicerces e os instrumentos de tralialho, e para com
meus pacientes, porque se tenho alguma compreensão, ela
resultou de nosso trabalho em conjunto.
A Personalidade
'Neurótica de ']\[osso 'Tempo
CAPÍTULO 1

I mplicaçõ es Culturais e Psicológicas


das N euroses

HOJE EM DIA, usamos assaz liberalmente o têrmo "neurótico"


sem possuirmos sempre, entretanto, uma concepção nítida do
que êle indica. Muitas vêzes, não ];>assa de uma forma ligei­
ramente mais erudita de expressar desaprovação; alguém que
antigamente se satisfaria em dizer preguiçoso, sensível, exi­
gente ou desconfiado, ao invés disso provàvelmente dirá "neu­
rótico". Contudo, temos algo em mente ao usarmos êsse nome
e, sem o percebermos perfeitamente, aplicamos certos critérios
para escolhê-lo.
Antes de mais nada, as pessoas neuróticas são diferente3
dos indivíduos comuns em suas reações. Propenderemos a con­
siderar neurótica, por exemplo, uma jovem que prefira passar
despercebida, recuse-se a aceitar um aumento de salário e
não queira ficar no mesmo nível de seus superiores, ou um
artista que ganhe trinta dólares por semana, embora pudesse
ganhar mais se devotasse maior tempo ao trabalho, e prefira
aproveitar a vida da melhor forma possível com aquela soma,
a passar grande parte de seu tempo com mulheres ou absor­
vido em passatempos técnicos. A razão pela qual chamaría­
mos essas pessoas de neuróticas, é que a maioria de nós só
conhece uma configuração de conduta que subentende o dese­
jo de progredir na vida, de passar à frente dos outros, de ganhar
mais dinneiro do que apenas o mínimo indispensável à
sobrevivência.
l!:sses exemplos atestam que um critério que aplicamos ao
designar uma pessoa como neurótica, consiste em saber se
seu modo de viver coincide com qualquer das configurações
de conduta consagradas de nosso tempo. Se a jovem sem
.rn A Personalidade Neurótica

impulso competitivo, ou pelo menos sem impulso competitivo


upurente, vivesse em uma cultura de índios Pueblo, seria con­
sfderada inteiramente normal,
· ou se o artista vivesse em uma
nlclcia do Sul da Itália ou do México, também seria consi­
cleraclo normal, porque naqueles lugares é inconcebível que
ulguém queira ganhar mais dinheiro ou despender maior es­
fôrço do que o absolutamente necessário para satisfazer as
necessidades imediatas. Recuando mais no tempo, na Grécia
antiga a atitude de querer trabalhar mais do que o exigido
pelas necessidades da pessoa seria classificada positivamente
como indecorosa.
Portanto, o têrmo neur6tico, apesar de oriundo da medi­
cina, não pode ser empregado atualmente sem suas inferên­
cias culturais. Pode-se diagnosticar uma fratura de perna sem
conhecer os antecedentes culturais do paciente, porém se incot­
reria em um grande risco ao denominar psic6tico um rapaz
índio pelo fato de dizer-nos que teve visões em que acre­
dita ( 1 ) Na cultura particular dêsses índios a experiência de

visões e alucinações é reputada como um dom especial, uma


bênção dos espíritos, e elas são deliberadamente provocadas
por conferirem certo prestígio à pessoa que as tem. Entre
.n6s, seria neur6tica ou psic6tica a pessoa que falasse durante
horas com seu finado avô, ao passo que uma tal comunicação
com os ancestrais é um ideal consagrado em algumas tribos
índias. Consideraríamos deveras neur6tica, uma pessoa que se
sentisse mortalmente insultada caso fôsse mencionado o nome
de um parente seu falecido, mas ela seria absolutamente nor­
mal na cultura dos Apaches Jicarillas ( 2 ) . Um homem tre­
mendamente aterrorizaao ante a aproximação de uma mulher
menstruada seria por n6s considerado neur6tico, malgrado em
muitas tribos primitivas o mêdo ante a menstruação seja a
atitude corrente.
O conceito do que é normal varia não só com a cultura,
mas também dentro da mesma cultura, com o passar do tem­
po. Hoje, por exemplo, se uma mulher adulta e independente
se considerasse "uma decaída", "indigna do amor de um
homem decente", por haver tido relações sexuais, mereceria

( l) Cf. H. ScvDDEll MEXEEL, Cllnic and Culture, in "Joumal of Ahnormal


nnd Soolal Psycbology", vol. 30 ( 1935), pp. 229-300.
(li) M. E. OPLSR, An Intarpretation of Amblvalence of two Amlt'ican lndlan
7'rlll•• ln "Journnl of Social Psychology", vol. 7 ( 1936), 1>p. 82-136.
Implicações Culturais e Psicológicas 17

a suspeita de neurótica pelo menos em muitas rodas sociais.


Há uns quarenta anos atrás, essa atitude de culpa teria sido
consideraaa normal. O conceito de normalidade muda igual­
mente nas diferentes classes da sociedade. Os membros da
classe feudal, por exemplo, acham normal que um homem
permaneça indolente todo o tempo, mostrando-se ativo ape­
nas na caça ou na guerra, ao passo que uma pessoa da pequena
burguesia que revelasse a mesma atitude seria olhada como
anormal. Essa variação também ocorre segundo as diferenças
de sexo, quando elas existem na sociedade, como é o caso da
cultura ocidental em que se imagina que homens e mulheres
tenham temperamentos distintos. E "normal" para uma mulher
ficar obcecada com o receio de envelhecer ao aproximar-se dos
quarenta, enquanto um homem que se afobe por causa da
idade nesse período de vida será considerado neurótico.
Até certo ponto, tôda pessoa _instruída sabe que há osci­
lações no que se considera como normal. Sabemos que os
chineses comem alimentos diferentes dos nossos; que os esqui­
mós têm concepções diferentes quanto à limpeza; que o pajé
tem maneiras cüferentes das usadas pelo médico moderno para
curar os doentes. No entanto, é menos generalizada a com­
preensão de que há variações não somente em costumes como
também em impulsos e sentimentos, apesar disso ter sido afir­
mado implícita ou expllcitamente por antropólogos ( 8 ) . Um
dos méritos da antropplogia moderna, no dizer de Sapir(4),
é estar sempre redescobrindo o normal.
Tôda cultura tem boas razões para aferrar-se à crença
de que seus próprios sentimentos e imEulsos são a única ex­
pressão normal da "natureza humana" ( 6 ) e a psicologia não
constituiu uma exceção a essa regra. Freud, por exemplo, con­
clui de suas observações que a mulher é mais ciumenta do
que o homem e, a seguir, procura uma explicação para êsse
fenômeno, presumivelmente geral, em bases biológicas ( 6 ) . �le

(3) Cf. a excelente apresenta"lo de material antropológico em: MABGABBT


MEA.D, Sex and Temperament in Three Primitfoe Societies; '.RVTH BENEDICT, Pattema
of Culture: A. S. ILu.LOWELL, Handbook of PBYchologlcal Leads for Ethnolaglcal
Felü:l Worker•.
(4) EDWA.IU> SA.Pm, Cultural Anthropalogy and PBIJchiatf'y in "Journal of
Abnonnal and Social Psychology", vol. 27 ( 1932), pp. 229-242.
( 5) Cf. Rtrl'H BENEDICT, Patterm of Culture.
( 6) Em seu estudo Some P8f!cholaglcal Comequence• of the Anatomical Dia­
ffrwtlon betioeen the Sexes, F'lmtlD apresenta a teoria de que as diferenças sexuais
enatõmicas inevitàvelmente levam tõda mõça a inveju os rapazes por êstes pos­
suírem um pênis. MaU tarde, sua vontade de ter um pênis trensfól:ma-se na de
18 A Pers on ald
i atle Neur6tica

também admite que todos os sêres humanos têm sentimentos


de culpa atinentes ao assassinato(7 ) . � um fato indisputável,
sem embargo, que as variações máximas existem na atitude
em face do ato de matar. Conforme Peter Freuchen mos­
trou(8 ) , os esquimós não acham que um assassino precisa ser
punido. Em muitas tribos primitivas, a ofensa feita a uma
familia, g_uando um de seus membros é morto por um estra­
nho, pode ser reparada pela apresentação de um substituto.
Em algumas culturas, os sentimentos de uma mãe cujo filho
tenha sido morto, p odem ser aplacados se em seu lugar fôr
adotado o assassino ( 9).
Recorrendo ainda a conclusões antropológicas, devemos
reconhecer que alguns de nossos conceitos sôl>re a natureza
humana são assaz ingênuos, como, por exemplo, a idéia de
que a competição, a rivalidade fraterna e a afinidade entre a
afeição e a sexualidade, são inclinações inerentes à natureza
humana. Chegamos à nossa concepção de normalidade por
intermédio da aprovação de certos padrões de conduta e sen­
timentos dentro de um certo grupo, g_ue impõe êsses padrões
a seus membros. Tais padrões, contudo, variam com a cultura,
a época, a classe e o �exo.

possuir um homem por ser êle detentor de um pAnls, Ela entAo Inveja em outraa
mulheres suas relaçoes com homens - mais exatamente, a sua posse de homens
- como primitivamente invejara os rapazes por possuírem um pAnls. Ao fazer
afirmações como essa, Freud cede à tentação de sua época: fazer generalizações
&abre a natureza humana para tc'lda a humanidade, embora sua generalização pro­
venha tllo s6 da observação de uma área cultural especHica.
O antropólogo não poria em dúvld:a a validade das observações de Freud;
êle as aceitaria como pertinentes a uma determinada parte da população de uma
certa cultura em uma certa época. �le contestaria, entretanto, a validade das
generalizações de Freud, apontando para o fato de que existem diferen11as infin­
das entre os povos referentes a suas atitudes para com o ciúme, que há povos
onde os homens são mais ciumentos que as mulheres, outros em que ambos os sexos
carecem de ciúme individual e outros em que ambos silo absurdamente ciumentos.
Em vista dessas diferenças existentes, éle refutaria o empenho de Freud - ou de
qualquer outro - para explicar suas observações baseando-se Unicamente em
diferenças sexuais anatc'lmicas. Em vez disso, salientaria a necessidade de inves·
tlgar as diferenças nas condições de vida e sua repercussão sc'lbre o desenvolvi­
mento do ciúme nos homens e mulheres. Para nossa cultura, por exemplo, cum­
priria perguntar-se se a observação de Freud (que subsiste como verdadeira para
as mulheres neuróticas de nossa cultura) aplica-se também às mulheres normais.
Essa pergunta tem de ser levantada, porque amiúde os psicanalistas, que têm de
lidar dia após dia com pessoas neuróticas, perdem de vista o fato de que tam­
bém existem pessoas nonnais em nossa cuftura. Também seria mister perguntar
quais sllo as condições Pllicológicas que favorecem a intensificação do ciúme ou
do sentimento de J?OSSe relativamente ao outro sexo, e quais silo as diferenças
nn1 oondlçlles de VJda dos homens e mulheres, em nossa cultura, a quem cabe
a dlvenldadc no desenvolvimento do ciúme.
(7) SIOMUND FRE'UD, Totem and Taboo. (N. T. - Existe tradução brasileira:
Totam t1 Tal1u).
( 8) l'KTKI\ FnzuCHBN, ArcCfc Adoenture and Eakimo.
(O) l10111111T BnrFFAVLT, Thtl M.othen.
Impl icaç ões C ultura
i s e P s icol óg icas 19

Essas considerações têm implicações mais remotas para a


psicologia do que poderia parecer à primeira vista. A conse­
qüência imediata é um sentimento de dúvida acêrca da onis­
ciência psicológica. Nao devemos concluir, pela semelhança
entre conclusões referentes à nossa cultura e referentes a outras
culturas, g_ue tôdas sejam devidas às mesmas motivações. Não
mais é válido supor que uma nova descoberta psicológica revele
uma tendência universal inerente à natureza humana. O efeito
de tudo isso é confirmar o que alguns sociólogos têm asseve­
rado reiteradamente: de que não há uma psicologia normal
aplicável a tôda a humanidade.
Essas limitações, todavia, são mais do que compensadas
pelo descerramento de novas possibilidades de compreensão.
A inferência essencial de tôdas essas considerações antropoló­
gicas é que sentimentos e atitudes são moldados, em um grau
incrivelniente elevado, pelas condições em que vivemos, tanto
culturais quanto individuais, inseparàvelmente entrelaçadas.
Isso, a seu turno, significa que se conhecemos as condições
culturais em que vivemos, temos uma boa probabilidade de
conseguir uma compreensão bem mais profunda do caráter
especial dos sentimentos e atitudes normais. E, como as neu­
roses são desvios da configuração normal de conduta, também
há para elas uma esperança de melhor compreensão.
Em parte, a aaoção dêsse caminho implica em seguir
Freud ao longo da trilha que o levou afinal a oferecer ao
mundo uma compreensão das neuroses até então nem sequer
imaginada. Enquanto na teoria Freud atribuiu a origem de
nossas peculiaridades a impulsos recebidos biologicamente, êle
exprimiu enfàticamente a opinião - na teoria e mais ainda na
pratica - de que não podemos entender uma neurose sem
conhecimento minucioso das circunstâncias da vida individual,
particularmente as influências modeladoras da afetividade na
primeira infância. Aplicando o mesmo princípio ao problema
das estruturas normal e neurótica em uma dada cultura, vemos
que não podemos compreender essas estruturas sem o conhe­
cimento minucioso das influências que essa cultura em par­
ticular exerce sôbre o indivíduo{1º).

( 10) Muitos autores reconheceram a importância dos fatares culturais como


influ8ncia decisiva nas condições psicológicas. EmCH FJIOMM, em seu ensaio Zur
Entatehung dei Chriatusdogmaa em "Imago", vol. 16 ( 1 930) , J>P· 307-373, foi
o primeiro na literatura psicanalítica alema a apresentar e aperfeiçoar êste método
de estudo. Posteriormente, foi adotado por outros, como Wilhelm Reich e Otto
Fenichel. Nos Estados Unidos, Hany Stack Sullivan foi o primeiro a reconhecer
20 A Person alda
i de Neurótica

Quanto ao mais, temos que dar decididamente um passo


para além de Freud, um passo que, entretanto, só é ossível /
baseado nos descobrimentos elucidadores de Freu . Pois,
apesar de em certo aspecto êle situar-se muito à frente de
sua época, em outro - em seu realce excessivo da origem
biológica das características mentais - Freud permaneceu arrai­
gado a suas orientações científicas. 1l:le presumiu que os im­
pulsos instintivos ou relações objetais tão freqüentes em nossa
cultura são parte da ..natureza humana" biologicamente deter­
minada ou promanam de situações inalteráveis (fases " :p ré­
genitais" biologicamente especificadas; complexo edipiano).
O menoscabo dos fatôres culturais por Freud não só con­
duz a generalizações falsas, como, em grande parte, opõe-se
à compreensão das fôrças reais que motivam nossas atitudes
e atos. Creio que êsse descaso é a principal razão por que
a psicanálise, na medida em que segue fielmente as sendas
teóricas desbravadas por Freud, a despeito de suas aparen­
temente ilimitadas potencialidades parece ter batido em um
bêco-sem-saída, manifestando-se por um exuberante floresci­
mento de teorias obscuras e pelo emprêgo de uma terminologia
confusa.
Vimos, então, que uma neurose implica em um afasta­
mento do normal. :Este critério é muito importante, conquanto
não seja suficiente: as pessoas podem desviar-se da configu­
ração geral sem serem neuróticas. O artista citado acima, que
se recusava a dedicar mais tempo do que o necessário a ganhar
dinheiro, pode ter uma neurose ou pode apenas ser sábio
ao não permitir ver-se engolfado na torrente da luta compe­
titiva. Por outro lado, muitas pessoas podem ter uma neu­
rose grave e, segundo a observação superficial, estar ajus­
tlidas aos padrões de vida existentes. :€ em casos assim que
se impõe o ponto de vista psicológico ou médico.
Curioso como pareça, não é nada fácil dizer o que cons­
titui uma neurose segundo êsse ponto de vista. De qualquer
forma, enquanto estudarmos apenas o quadro aparente, será
difícil achar características comuns a tôdas as neuroses. Cer-
n necessidnde da psiquiatria levar em conta as implicações culturais. Out•os psi­
quiatras norte-americanos que encararam o problema segundo êsse Angulo, silo
AnOLP MEYER, WILLIAM A. WHITE (Twentleth Century Paychiatry), WILLIAM
A. lb:ALY e AUGUSTA BRONNER (New Ught on Delinquency). Recentemente,
nl11Un1 p1fcanalistas como FRANZ ALEXANDER e A. ICARDINER passaram a interessar-se
póla1 Inferências culturais dos problemas psicol6gicos. Entre os cientistas sociais
qm• lllpo1nm êsse ponto de vista, cf. especialmente H. D. LAssWELL (World Polltica
1111d P11r1onal ln1ecunty) e JOllN DoLLABD (Criterla for the Llfe Hidory).
Implicações C ult urais e P sic ológ icas 21

tamente não podemos usar os sintomas - como fobias, de­


pressões e distúrbios físico-funcionais - como um critério,
pôsto que podem não estar presentes. Inibições de certa espé­
cie estão sempre presentes, por motivos que discutirei mais
adiante, mas podem ser tão sutis ou estar tão bem disfarçadas
de molde a escapar à observação superficial. As mesmas difi­
culdades surgiriam se quiséssemos julgar, através apenas do
quadro aparente, as perturbações nas relações com outras pes­
soas, inclusive as do campo sexual; elas nunca se encontram
ausentes, mas talvez sejam bem difíceis de discernir. Há duas
características, todaviat que se podem constatar em tôdas as
neuroses, sem ter um conhecimento íntimo da estrutura da /
personalidade: uma certa rigidez das reações e uma discre-1 1
pância entre as potencialidades e as realizações.
Ambas as características precisam ser melhor explicadas.
Por rigidez das reações. quero referir-me à falta da flexibi­
lidade que nos permite rea�ir diferentemente ante situações
diversas. A pessoa normal, p ex., é desconfiada quando sente
ou vê razões para tanto; a pessoa neurótica pode mostrar-se
desconfiada todo o tempo, qualquer que seja a situação, quer
tenha ou não consciência de seu estaâo. A pessoa normal é
capaz de distinguir entre cumprimentos sinceros e insinceros;
a pessoa neurótica não os diferencia ou pode desprezá-los a
todos, em tôdas as situações. A pessoa normal ficará com raiva
quando submetida a uma imposição injustificada; a neurótica
pode reagir rancorosamente a qualquer insinuação, mesmo
quando percebe que esta é em seu próprio benefício. A pessoa
normal pode ficar indecisa, às vêzes, ante um assunto impor·
tante e de difícil decisão; a neurótica pode permanecer sempre
indecisa.
A rigidez, não obstante, só indica neurose quando se afas­
ta dos padrões culturais. Uma desconfiança rígida de tudo
quando é nôvo ou estranho é normal entre grande percentagem
de camponeses da civilização ocidental, e a importância rígida
dada pelo pequeno burguês à poupança é também um exem­
plo de rigidez normal.
Da mesma forma, a discrepância entre as potencialidades �
de uma pessoa e suas realizações concretas na vida pode de- ;
ver-se exclusivamente a fatôres externos. Será um indício de·
neurose, contudo, se, a despeito dos dons e de possibilidades
externas favoráveis a seu desenvolvimento, a pessoa perma-
22 A PersonaUàade Neurótica

necer improdutiva; ou se, a despeito de ter tôdas as possibi­


lidades para sentir-se feliz, ela não conseguir desfrutar o que
tem; ou ainda, se, malgrado bela, uma mulher achar que não
consegue atrair os homens. Por outras palavras, o neurótico
tem a impressão de que êle se atrapalha a si mesmo.
Pondo de lado o quadro aparente e olhando para a dinA­
mica que efetivamente produz as neuroses, há um fator essen­
cial comum a tôdas elas, e que vêm a ser as ansiedades e as
defesas erigidas contra elas. Por mais intrincada que possa
ser a estrutura de uma neurose, essa ansiedade é o motor que
põe em marcha o processo neurótico e conserva-o em anWi­
mento. Esta afirmação será melhor entendida nos capí­
tulos seguintes e, por isso, abstenho-me de citar exemplos
por enquanto. Mas, mesmo para ser aceita apenas provisoria­
mente como um princípio básico, exige certa elucidação.
Como está, a afirmação é por demais genérica. Ansie­
dades ou mêdos - empreguemos êstes nomes indiferentemen­
te por algum tempo - são onipresentes, e assim também as
defesas contra êles. Estas reações não se limitam aos sêres
humanos. Se um animal, ameaçado por um perigo, contra­
ataca ou foge, temos aí a mesma situação de mêdo e defesa.
Se temos receio de sermos atingido por um raio e instalamos
um pára-raios no telhado, se temos receio das conseqüências
de possíveis acidentes e fazemos um seguro, os fatôres de mêdo
e defesa estão anàlogam�nte presentes. :Eles estão presentes
sob diversas formas em tôda cultura, e podem tomar-se insti­
tucionalizados, como no uso de amuletos contra o mêdo de
maus olhados, a observância de ritos pormenorizados contra
o mêdo dos mortos, os tabus relativos a evitar as mulheres
menstruadas como uma defesa contra o mêdo ao mal que
delas emana.
Essas analogias convidam-nos a incorrer em um êrro de
lógica. Se os fatôres de mêdo e defesa são essenciais nas neu­
roses, por que não chamar as defesas institucionalizadas contra
o mêdo de provas de neuroses "culturais"? A falácia dêsse
raciocínio jaz no fato de dois fenômenos não serem forçosa­
mente idênticos quando têm um elemento em comum. Nin­
guém denominaria de rocha a uma casa somente porque é
feita do mesmo material que a rocha. Qual, pois, é a carac­
terística <los mêdos e defesas neuróticas que os torna especi­
ficamente neuróticos ? Será, talvez, que os mêdos neuróticos
Implicações Culturais e Psicológicas 28

sejam imaginários ? Não, porque também seríamos propensos


a chamar de imaginário o temor aos mortos, e em ambos os
casos estaríamos cedendo a uma impressão baseada em falta 11
de compreensão. Será, talvez, que o neurótico não saiba essen­
cialmente de que é que tem mêdo ? Não, pois tampouco o
primitivo sabe porque é que teme os mortos. A distinção nada
tem a ver com gradações de percepção ou racionalidade, mas
consiste nos dois fatôres seguintes:
1.0) As condições de vida de tôda cultura dão lugar a
certos mêdos. Podem ser ocasionados por perigos extemo.s
(natureza, inimigos ) , pelas modalidades das relações sociais
(incitamento à hostilidade devido ao recalque, injustiça, depen­
dência forçada, frustrações ) , por oposição a tradições cUJ.tu­
rais (mêdo tradicional de demônios, de violação de tabus )
independentemente de como se hajam originado. Um indivíduo
pode ser mais ou menos sujeito a êsses mêdos, porém, de modo
geral, é lícito presumir que êles atuem sôbre todos os indi­
víduos que vivem em uma dada cultura e a que nenhum pode
escapar. O neurótico, contud o, não só participa dos mêdos
comuns a todos os indivíduos de sua cuítura, como também,
por causa de circunstâncias de sua vida individual - que,
todavia, estão mescladas com as circunstâncias gerais - tem
mêdos que se afastam, quantitativa ou qualitativamente, dos
peculiares aos padrões culturais.
2.0) Os mêdos existentes em uma dada cultura são geral­
mente enfrentados por certos artifícios defensivos (como tabus,
ritos, costumes ) . Via de regra, tais defesas representam um
modo mais econômico de avir-se com os mêdos do que as
defesas construídas pelo neurótico de maneira distinta. Assim,
a pessoa normal, apesar de ter de agüentar os mêdos e defe­
sas de sua cultura, geralmente será bem capaz de correspon­
der às suas potencialidades e de desfrutar aquilo que a vida
lhe oferece; será capaz de fazer o máximo uso das possibili­
dades dadas por sua cultura. Expressando isso negativamente,
pode-se dizer que ela não sofre mais do que é inevitável em
sua cultura. Pelo contrário, a pessoa neurótica invariàvelmente
sofre mais do que a pessoa comum. Ela tem forçosamente
de pagar um preço exorbitante por suas defesas, traduzido sob
a forma de uma diminuição da vitalidade e do desenvolvi­
mento, ou, mais explicitamente, de uma diminuição de suas
capacidades de realiZação e contentamento, ocasionando a dis-
24 A Personalidade Neurótica

crepància que mencionei. Deveras, o neurótico é sempre um


sofredor. A única razão que me levou a não citar isto, ao
discutir as características comuns a tôdas as neuroses que
podem ser apuradas pela observação superficial, é que ela
não é necessàriamente perceptível a quem está de Íora. O
próprio neurótico pode mesmo não se dar conta de que está
sofrendo.
Por falar em mêdos e defesas, receio que a esta altura
muitos leitores já estejam impacientes ante uma discussão tão
extensa de uma questão tão simples como a de saber o que
constitui uma neurose. Para defender-me, posso recorrer ao
fato de que os fenômenos psicológicos são sempre complica­
dos, de que, embora haja perguntas aparentemente simples,
nunca há uma resposta simples, de que o apuro em que nos
vemos aqui no comêço nada tem de excepcional e nos acom­
panhará através de todo o livro, não importa com que pro­
blema tenhamos de nos haver. A dificuldade particular da
descrição de uma neurose consiste em não ser possível dar
uma resposta satisfatória só com instrumentos psicológicos ou
só com sociológicos, sendo mister recorrer a êles alternada­
mente, como de fato temos feito. Se encarássemos uma neu­
rose apenas sob o ponto de vista de sua estrutura dinâmica
e psíquica, teríamos que conceber um ser humano normal -
e êste não existe. Defrontamo-nos com mais dificuldades ao
transpormos os limites de nosso país ou de países de cultura
similar à nossa. E se encarássemos uma neurose unicamente
sob o ponto de vista sociológico, como um mero desvio da
configuração de conduta comum em uma certa sociedade, esta­
ríamos desprezando grosseiramente tudo o que sabemos acêrca
das características psicológicas da n eurose; nenhum psiquia­
tra, de qualquer escola ou país, identificaria os resultados com
aquilo a que êle está acostumado a designar como neurose.
A reconciliação dos dois modos de abordar o problema é
encontrada em um método de observação que considera o
afastamento tanto no quadro evidente da neurose quanto na
dinâmica dos processos psíquicos, mas sem considerar qual­
quer dêles como princ�pal e decisivo: os dois devem ser com­
binados. Foi isso que fizemos, dum modo geral, assinalando
que o rnêdo e a delesa são centros dinâmicos da neurose, só
<"Onstitnindo uma neurose quando se afastam, quantitativa
Implicações Culturais e Psicológicas 25

ou qualitativamente, dos mêdos e defesas normais em uma


mesma cultura.
Temos de dar mais um passo à frente, na mesma direção.
Há ainda uma outra característica essencial da neurose, qual
seja a presença de tendências contraditórias, de cuja existên­
cia, ou pelo menos de cujo conteúdo exato, o próprio neu­
rótico não se apercebe, e para as quais êle tenta obter, auto­
màticamente, certas soluções conciliatórias. 11: esta última
característica que Freud salientou, de várias maneiras, como
uma componente indispensável das neuroses. O que distingue
os conflitos neuróticos dos existentes comumente em uma cul­
tura não é seu conteúdo nem tampouco o fato dêles serem
essencialmente inconscientes - em ambos êsses aspectos os
conflitos culturais comuns podem ser idênticos - mas sim o
.fato de que no neurótico os conflitos são mais intensos e
acentuados. A pessoa neurótica busca e chega a soluções con­
ciliatórias - não impropriamente classificadas como neuróti­
cas - e que são menos satisfatórias do que as do indivíduo
comum, sendo obtidas à custa de grandes sacrifícios da perso­
nalidade como um todo.
Recapitulando tôdas estas apreciações, podemos dizer que
ainda não estamos em condições de apresentar uma defini­
ção perfeita de neurose; podemos, entretanto, fazer uma des­
crição: �. neurose é um distúrbio psíquico suscitado por
mêdos e defesas contra êstes mêdos, e por tentativas para
encontrar soluções conciliatórias para tendências em conflito.
Para aplicações práticas, só convém dar a êsse distúrbio o
nome de neurose quando êle se afasta dos padrões comuns
à cultura considerada.
,
CAPITULO I I

R aro es para se F alar de U ma


"Personalida de N eurótica de N osso T empo''

C oMO ESTAMOS INTERESSADOS nas formas pelas quais a neu­


rose afeta a personalidade, o campo de nossa investigação
fica limitado em duas direções. Em primeiro lugar, há neu­
roses que podem sobrevir em indivíduos cuja personalidade,
a não ser por isso, permanece intacta e indeformada, surgindo
a neurose como uma reação a uma situação externa pejada
de conflitos. Após examinarmos a natureza de alguns proces­
sos psicológicos básicos, voltaremos a isto para dlscutir ligei­
ramente a estrutura dessas simples neuroses de situação ( 1).
Não estamos agora muito interessados nelas porque não reve­
lam uma personalidade neurótica, mas tão-somente uma mo­
mentânea desadaptação a uma determinada situação difícil.
Quando falo de neuroses, quero referir-me à neurose de cará­
ter, isto é, a condições em que - embora o quadro sinto­
mático possa ser exatamente igual ao de uma neurose de
situação - o principal distúrbio jaz nas deformações do cará­
ter( 2). Elas são o efeito de um insidioso processo crônico,
_em regra-"iriiciado na infância e abarcando maiores ou meno­
. res porções da personalidade com maior ou menor intensi­
jla®. Numa visão superficial uma neurose de caráter tam-
bém pode provir de um conflito de situação real, mas uma
história da vida da pessoa meticulosamente compilada talvez
mostre que os traços difíceis do caráter estavam presentes
muito antes do aparecimento de qualquer situação confusa;

( 1) As neuroses de situação coincidem, grosso modo, com o que J, H.


ScuuL"rz denominou Exogene Fremdneurosen.
( 2) F'llANz ALEXANDER alvitrou o nome "neuroses de carãter'' para as neuroses
que não apresentam sintomas clínicos. Não creio que isso seja defensável, p&sto
que a aus&cia ou presença de sintomas é, muitas vêzes, irrelevante para a natu­
reza da neurose.
28 A Personalidade Neurótica

que o embaraço momentâneo se deve, em grande parte, a ·

dificuldades pessoais previamente existentes; e, outrossim, que


a pessoa reage neuràticamente a uma situação vital que, para
o indivíduo sadio comum, não subentende conflito algum. A
situação simplesmente denuncia a presença de uma neurose
que talvez existisse há já algum tempo.
Em segundo lugar, não estamos tão interessados no qua­
dro sintomático da neurose. Nossa atenção volta-se mais para
os próprios distúrbios de caráter, porquanto as deformações
da personalidade são uma constante das neuroses, ao passo
que os sintomas, na acepção clínica, podem diferir ou sim­
plesmente estar ausentes. Igualmente sob o ponto de vista
cultural, a formação do caráter é mais importante do que os
sintomas, porquanto é o caráter, e não sintomas, que influi
na conduta humana. Graças a um maior conhecimento da
estrutura das neuroses e à percepção de que a cura de um
sintoma não significa obrigatoriamente a cura da neurose, os
psicanalistas em geral transferiram seu interêsse e deram maior
atenção às deformações de car�ter _que os sintomas. Falando
figuradamente, podemos dizer que os sintomas neuróticos não
são o próprio vulcão mas antes as erupções dêste, enquanto
que o conflito patogênico, tal como o vulcão, está profunda­
mente oculto no indivíduo, desconhecido por êle mesmo.
Uma vez aceitas essas restrições, podemos formular a per­
gunta: será que as pessoas neuróticas hoje em dia possuem
traços comuns tão essenciais a ponto de podermos falar em
uma personalidade neurótica do nosso tempo ?
Quanto às deformações de caráter que acompanham os
diferentes tipos de neuroses, o que mais nos impressiona são
as diferenças e não as semelhanças. O caráter histérico, p. ex.,
é decididamente diverso do caráter compulsivo. As diferen­
ças que nos causam mossa, porém, são diferenças de meca­
nismos ou, em têrmos mais gerais, diferenças nas maneiras
eelas quais os dois distúrbios se manifestam e pelas quais
eles são resolvidos, tal como o grande papel da projeção no
tipo histérico em contraste com o da intelectualização dos con­
flitos no tipo compulsivo. Por outro lado, as semelhanças a
'}llC me refiro não dizem respeito a manifestações ou a ma­
neiras pelas quais se originaram, mas sim ao conteúdo do pró­
p1'io conflito. Para ser mais precisa, as semelhanças não resi­
d Pm tanto nas experiências que geneticamente instigaram o
Razões t1a Discussão do Problema 29

distúrbio, porém nos conflitos que realmente impulsionam a


pessoa. .
Para elucidar a natureza das fôrças motivadoras e suas;
subdivisões, faz-se mister uma premissa. Freud e a maioria
dos analistas dão o maior destaque ao ,Princípio de que a
missão da análise é descobrir, seja as ra1zes sexuais ( p. ex.,
as zonas erógenas específicas ) de um impulso, seja os padrões
infantis de conduta de que êste é, por hipótese, uma repe­
tição. Malgrado eu aceite que não é possível compreender
inteiramente uma neurose sem remontar até a situação infantil,
penso que a técnica genética, empregada unilateralmente, se
presta mais a confundir do que a esclarecer o problema, já
que leva a negligenciar tendências inconscientes realmente
existentes e suas funções e interações com outras tendências
presentes, tais como impulsos, mêdos e medidas protetoras.
A compreensão das origens só é útil quando facilita a com­
preensão funcional.
Animada por esta crença, através da análise das mais
variadas espécies de personalidades pertencentes a .diferentes
tipos de neuroses, idades, temperamentos e interêsses e oriun­
das de diferentes camadas sociais, constatei que os conteúdos
dos conflitos dinâmicamente centrais e suas inter-relações eram
fundamentalmente análogos em tôdas elas ( a ) . Minhas expe­
riências na prática psicanalítica foram confirmadas pela obser­
vação de pessoas fora da minha atividade clínica e de per­
sonagens da literatura corrente. Se os problemas que se
repetem nas pessoas neuróticas forem despojados do caráter
fantástico e obscuro com que muitas vêzes se apresentam,
não nos pode escapar o fato de que êles só diferem quanti­
tativamente dos problemas que molestam a pessoa normal em
nossa cultura. A grande maioria de nós tem de debater-se
com problemas de competição, mêdo de fracassar, isolamento
emocional, falta de confiança nos outros e em si mesmo, para
.só mencionar alg_uns dos problemas que podem estar presentes
·
em uma neurose.
O fato de que, via de regra, a maioria dos indivíduos de
uma cultura têm de enfrentar os mesmos problemas sugere a
( 3 ) O destaque dado às semelhanças não quer dizer, de forma alguma, que
se desdenhem os esfori;os científicos realizados para aperfeiçoar o conhecimento
de tipos especiais de neuroses. Pelo ccntrário, estou seguramente convicta de que
a psicopatologia conseguiu um progresso notável no aelineamento de descrições
definidas de perturbações psíquicas, de sua gênese, estrutura especial e manifes­
taçlles peculiares.
80 A Personalitlade Neurótica

conclusão de que tais problemas foram criados por condições


específicas de vida existentes nessa cultura. Que êles não
representam problemas comuns à "natureza humana", parece
atestado pelo fato de as fôrças motivadoras e de os conflitos em
outras culturas serem diferentes dos da nossa.
Por conseguinte, ao falar de uma personalidade neuró­
tica de nosso tempo, não só quero dizer que há pessoas neu­
róticas com peculiaridades essenciais comuns, mas também que
essas similaridades básicas são intrinsecamente produzidas
pelas dificuldades existentes em nosso tempo e em nossa cul­
tura. Tanto quanto me permitirem meus conhecimentos socio­
lógicos, procurarei demonstrar, adiante, quais as dificuldades
de nossa cultura que são responsáveis por nossos conflitos
psíquicos.
A validade de minha pressuposição atinente à relação
entre cultura e neurose deve ser verificada pelos esforços com­
binados de antropólogos e psiquiatras. Os psiquiatras não
deverão apenas estudar as neuroses conforme aparecem em
culturas definidas, segundo tem sido feito por meio de cri­
térios formais como freqüência, gravidade ou tipo das neuro­
ses, mas particularmente sob o ponto de vista de quais os
conflitos básicos latentes. O antropólogo deverá estudar a
Jnesma cultura sob o ponto de vista de quais as dificuldades
p s�quic�s q� e sua estrutura cria para os indivíduos. Uma for­
ma pela qual a similaridade dos conflitos básicos se expressa
é a analogia de atitudes visível ao observador superficial. De­
nomino observação superficial aquela que pode ser levada a
cabo por um bom observador sem se valer dos instrumentos
da técnica psicanalítica, no que toca a pessoas com quem se
acha perfeitamente familiarizado, tais como êle próprio, seus
amigos, membros de sua família ou seus colegas de trabalho.
Principiarei por um rápido perfil transversal dessas observa­
ções tão freqüentemente possíveis.
As atitudes assim observáveis podem ser classificadas con­
forme se segue: 1.ª atitudes relativas a dar e obter afeição;
2.ª ) atitudes relativas à avaliação do próprio eu; 3.ª ) atitudes
relativas à auto-afirmação; 4.ª ) agressividade; 5.ª ) sexualidade.
Quanto às primeiras, um dos traços predominantes nos
neuróticos de nosso tempo é sua excessiva dependência da
nprovação ou afeição dos outros. Todos queremos ser esti­
mados e sentir-nos apreciados, mas nas pessoas neuróticas a
Razões da Discussão do Problema 81

dependência da afeição ou aprovação é desproporcional ao


verdadeiro valor que outras pessoas tenham para suas vidas ..
Apesar de todos querermos ser estimados por pessoas de quem
gostamos, nos neuróticos há uma fome indiscriminada de apre­
ciação ou afeição, quer êles se interessem ou não pela pessoa
em questão e quer a o� inião dessa pessoa tenha ou não qual­
quer significação para eles. O mais comum é não se aperce­
berem d.essa ânsia irrefreada, traindo sua existência por meio
de uma sensibilidade exagerada quando não recebem a aten­
ção com que contam. Podem sentir-se magoados, p. ex., se
alguém não aceita um convite seu, não lhes telefona durante
algum tempo, ou mesmo se discorda dêles em algum assunto.
Essa sensil:iilidade pode aparecer camuflada sob uma atitude
de "pouco-me-importa".
Ademais, há uma contradição acentuada entre seu desejo
de afeição e sua própria capacidade de possuir ou dar afeto.
Exigências excessivas de consideração para seus próprios dese­
jos podem ser acompanhadas de uma igualmente grande falta
de consideração para com os outros; a contradição nem sem­
pre se mostra à superfície. O neurótico pode, por exemplo,
ser ultra-atencioso e ávido de ajudar a todos, mas, se fôr o
caso, poder-se-á notar que êle age compulsivamente e não
devido a uma cordialidade espontânea.
A insegurança interior manifestada por meio dessa depen­
dência dos demais é o segundo aspecto que chama nossa aten­
ção nos neuróticos, à simples observação superficial. Senti­
mentos de inferioridade e de inadequação são característicos
que nunca deixam de existir. Podem aparecer sob diversas
formas - como uma convicção de incompetência, de estupidez,
de fealdade - e podem existir sem nenhuma justificativa real.
Idéias sôbre sua própria obtusidade podem ser encontradas
em pessoas que são incomumente inteligentes, ou sôbre a pró­
pria falta de atrativos nas mais lindas mulheres. Esses senti­
mentos de inferioridade podem aparecer abertamente na super­
fície sob a forma de queixas ou preocupações, ou os supostos
defeitos podem ser aceitos como algo tão natural que é supér­
fluo estar-se pensando a respeito. Por outro lado, podem estar
encobertos por necessidades compensadoras de auto-engran­
decimento, por uma propensão compulsiva para o exil:iicio­
nismo, procurando imEressionar a si mesmo e aos demais com
tôda sorte de atributos que ?oncedem prestígio em nossa cul-
32 A Personalidade Neurótica

tura, como dinheiro, posse de quadros ou móveis antigos,


mulheres, contatos sociais com pessoas eminentes, viagens, ou
conhecimentos elevados. Uma ou outra dessas tendências pode
aparecer francamente em primeiro plano, mas o mais comum
é a gente perceber distintamente a presença de ambas.
O terceiro grupo de atitudes, as referentes à auto-afirma­
ção, abrange inibições explícitas. Por auto-afirmação eu me
refiro ao fato de a pessoa impor ou defender suas pretensões,
e não tem em mente os esforços descomedidos para pro­
gredir. A êste respeito, os neuróticos revelam um conjunto
bem amplo de inibições. :E:les têm inibições quanto a mani­
festar seus desejos ou a pedir alguma coisa, a fazer alguma
coisa em seu próprio proveito, a expressar uma opinião ou
crítica justa, a dar ordens a alguém, a escolher as pessoas
com quem gostariam de se associar, a travar relações com pes­
soas, e assim por diante. Também há inibições referentes ao
que podemos descrever como sendo a manutenção da posição
da pessoa: os neuróticos muitas vêzes são incapazes de se
defenderem contra ataques, ou de dizerem "não" se não que­
rem concordar com os desejos de outros, como, p. ex., a uma
vendedora que lhes quer vender algo que êles não desejam
comprar, ou a uma pessoa que os convida para uma festa, ou
a uma pessoa que os queira namorar. Há, por fim, as inibi­
ções quanto a saber o que querem : dificuldades para tomar
decisões, formar opiniões, atrever-se a expressar desejos que
só dizem respeito a seu próprio interêsse. Tais desejos têm de
ser disfarçados : uma amiga minha registra, em sua escritu­
ração particular, "cinema" sob o título "educação" e "bebidas"
sob o de "saúde". Particularmente importante neste último
grupo é a incapacidade para planejar ( 4 ) , quer se trate de
uma viagem ou de um p�ano de vida : os neuróticos deixam-se
levar, mesmo em decisões importantes como a escolha de pro­
fissão ou casamento, em vez de conceberem claramente o que
desejam da vida. São impelidos exclusivamente por determi­
nados mêdos neuróticos, como vemos nas pes soas que amon­
toam dinheiro porque receam ficar pobres ou nas que vivem
às voltas com intermináveis "casos" amorosos porque temem
enfrentar um trabalho construtivo qualquer.

(4) Sc11t1LTZ-HBNc1CB, em Schicksal und Neu>"oae, IJ um dos pouao1 autores


pslcanalfticos, que dedicou suficiente atenção a êste ponto.
Razões da Discussão do Problema 88

No quarto grupo de atitudes, as atinentes à agressividade,


em contraste com as atitudes de auto-afirmação, incluo as
ações dirigidas contra outrem, ataques, desdém, abuso de
direitos, ou qualquer forma de conduta hostil. As perturbações
desta espécie revelam-se sob duas maneiras inteiramente dis­
tintas. Uma delas é uma propensão para ser agressivo, domi­
nador, excessivamente severo, mandão, trapaceiro ou estar sem­
pre ralhando. Eventualmente as pessoas que assim agem perce­
bem que estão sendo agressivas; mais freqüentemente, porém,
nem se dão conta disso e estão subjetivamente convencidas de
que estão apenas sendo honestas ou expressando uma opinião,
ou mesmo sendo moderadas em suas reivindicações, apesar de
na realidade serem desagradáveis e molestas. Em outras, con­
tudo, essas perturbações apresentam-se de maneira oposta.
Percebe-se, na superfície, uma atitude de fàcilmente sentir-se
burlado, dominaáo, repreendido, imPortunado ou humilhado.
Essas pessoas, também_, muitas vêzes não percebem que essa
é a sua própria atitud�, mas crêem, tristemente, que o mundo
inteiro se coloca sôbre elas, tirando proveito delas.
Peculiaridades da quinta espécie, as do campo sexual,
podem ser classificadas aproximaâamente como uma necessi­
dade compulsiva de atividade sexual ou inibições de exercer
essa atividade. As inibições podem surgir em qualquer passo
que conduza à satisfação sexual : podem manifestar-se à apro­
ximação de pessoas do sexo oposto, durante o namôro, durante
as relações sexuais ou na hora do prazer. Tôdas as peculia­
ridades descritas nos grupos anteriores também aparecerão
nas atitudes sexuais.
Pode-se descer a maiores minúcias na descrição das
atitudes que mencionei. Terei de voltar a cada uma delas mais
tarde, contudo, e uma exposição mais exaustiva agora pouco
acrescentaria à nossa compreensão. A fim de entendê-las me­
lhor, teremos de apreciar os processos dinâmicos que lhes dão
origem. Conhecendo os processos dinâmicos implícitos, vere­
mos que tôdas essas atitudes, incoerentes como parecem ser,
estão, na realidade, estruturalmente inter-relacionadas.
,
CAPITULO I I I

A nsiedade

A NTEs DE ENTRAR em maiores minúcias a respeito das neu­


roses da atualidade, tenho de tomar uma das conclusões que
deixei indefinidas no primeiro capítulo e esclarecer o que
tenho em mira ao falar em ansiedade. � importante fazê-lo
porque, segundo já disse, a ansiedade é o centro motriz das
neuroses e, assim, teremos que estar sempre lidando com ela.
Empreguei anteriormente o têrmo como sinônimo de
mêdo, indicando, destarte, certo parentesco entre ambos. Com
efeito, ambos são reações emocionais ante o perigo e podem
ser acompanhados de sensações físicas como tremores, trans­
piração, oatimento acentuado do coração, que podem ser tão
intensos a ponto de um mêdo forte e súbito poder acarretar
a morte. Contudo, há uma certa diferença entre os dois.
Quando uma mãe teme que seu filho morra, e o que
êste tem é somente uma espinha ou um ligeiro resfriado, fala­
mos em ansiedade; porém, se ela se mostra receosa quando
o filho está seriamente doente, damos à sua reação o nome
de mêdo. Se alguém se sente amedrontado sempre que se
encontra em um fugar alto ou quando tem de falar sôbre um
assunto que não conheça bem, denominamos a sua reação
de ansiedade; se alguém teme perder-se bem no alto das mon­
tanhas durante uma tempestade violenta, é o caso de falarmos
em mêdo. Até aqui tem sido simples e nítida a distinção : o
mêdo é uma reação proporcional ao perigo que a pessoa tem
de enfrentar, ao passo que a ansiedade é uma reação despro­
porcional ao p erigo, ou até mesmo uma reação ante um perigo
imaginário( 1 ) .
Essa distinção tem, entretanto, uma falha: a da classifica­
ção da reação como proporcional depender dos conhecimen-
( 1 ) F'lmtm, em suas New Introductory Letfers, no capítulo sllbre "Ansiedade
e Vida Instintiva", faz uma distinção análoga entre ansiedade "objetiva" e "neu­
rótica", descrevendo a primeira como uma "compreensível reação ao perigo",
36 A Personalidade Neurótica

tos médios existentes na cultura considerada. Mas mesmo que


êsses conhecimentos proclamem como infundada uma determi­
nada atitude, um neurótico não terá dificuldade em dar à sua
reação uma base racional. De fato, podemos ver-nos envolvidos
em uma discussão interminável se àissermos a um paciente que
seu mêdo de ser atacado por um lunático furioso é uma ansie­
dade neurótica. :Ele diria que seu mêdo é real e referir-se-ia a
casos do gênero que receia. Os primitivos mostrar-se-iam igual­
mente obstinados se considerássemos algumas de suas reações
de mêdo como desproporcionadas ao perigo concreto. Por
exemplo, um homem primitivo de uma tribo onde haja tabus
proibindo comerem-se certos animais, fica mortalmente ame­
drontado se acidentalmente comer a came proibida. Como
observador estranho, um de nós chamaria a isso de reação
desproporcional, deveras absolutamente injustificável. Conhe­
cendo, porém, as crenças da tribo acêrca da carne proibida,
teria que compreendei: que a situação representa um perigo
concreto para o homem, perigo de ver arruinados os campos
de caça ou locais de pesca ou perigo de contrair uma doença.
Há uma diferença, todavia, entre a ansiedade encontrada
entre os primitivos e a que consideramo s neurótica em nossa
cultura. O conteúdo da ansiedade neurótica, ao contrário da
do primitivo, não se conforma com opiniões comumente espo­
sadas. Em ambas, a impressão de uma reação desproporcio­
nada desvanece-se logo que é entendida a significação da
ansiedade. Há pessoas, por exemplo, que estão permanente­
mente ansiosas ante a idéia da morte; por outro fado, devido
a seus sofrimentos, elas têm um desejo secreto de morrer. Os
vários mêdos da morte, combinados com seus desejos ocultos,
geram uma forte apreensão de perigo iminente. Conhecedores
dêsses fatôres, não podemos senão considerar sua ansiedade
quanto à morte como uma reação adequada. Outro exemplo,
mais simples, é o das pessoas que ficam aterrorizadas quando
se vêem perto de um precipício ou de uma janela ou ponte
alta. Aí também, para quem está de fora a reação parece des­
proporcional; essa situação, porém, pode constituir para elas,
ou agitar nelas, um conflito entre o desejo de viver e a ten­
tação, por uma razão ou outra, de pular do lugar alto. �
êsse conflito que pode ocasionar a ansiedade.
Tôdas essas considerações recomendam uma alteração na
definição. O mêdo e a ansiedade são, ambos, reações propor-
Ansiedade 87

cionais ao perigo, mas, no caso do mêdo, o perigo é manifesto


e objetivo, e, no da ansiedade, êle é oculto e stibjetivo. Quer
dizer, a intensidade da ansiedade é proporcional ao signifi­
cado que a situação tem para a pessoa interessada, e as razões
por que ela fica assim ansiosa lhe são essencialmente desco­
nhecidas. ,A conseqüência prática da distinção entre mêdo e
_ansiedade é que a tentativà de arrancar o neurótico à sua
ansiedade por meio de arrazoados - o método da persuasão
- é inútil. A sua ansiedade não se prende à situação real do
momento, mas à maneira pela qual êle encara a situação, Con­
seqüentemente, o trabalho terapêutico pode, apenas, consistir
em descobrir o significado que certas situações têm para o
neurótico.
Tendo precisado o significado que emprestamos ao têrmo
ansiedade, ficamos com uma idéia do papel que ela representa.
Na nossa cultura, o homem tem pouca consciência da impor­
tância que a ansiedade tem na sua vida. Usualmente, êle ape­
nas se lembra de que experimentou alguma ansiedade quando
criança, de que teve um ou alguns sonhos ansiosos, de que
fica um pouco mais apreensivo do que deveria quando se
defronta com uma situação que foge da rotina quotidiana como,
por exemplo, quando tem de conversar com uma pessoa impor­
tante, ou quando tem de prestar exames.
As informações que a êste respeito podemos obter dos
indivíduos neuróticos não são uniformes. Afguns neuróticos têm
plena consciência de serem afogados pela ansiedade, mas os
sintomas apresentados variam imensamente: às vêzes asseme­
lham-se a uma ansiedade difusa, que se apresenta sob a forma
de ataques de ansiedade; outras, os sintomas se prendem a
situações ou atividades bem precisas, tais como lugares altos,
ruas, espetáculos públicos; ou, ainda, os sintomas podem
apresentar um conteúdo bem definido, tal como sentir
mêdo de ficar louco, ter câncer, ou engasgar com um
espinho. Os outros percebem que ficam ansiosos de vez em
quando, sabendo ou não quais as condições que provocam
essa ansiedade, mas não llie emprestam maior importância.
Finalmente, há pessoas neuróticas que só têm consciência de
terem depressões, sentimentos de inadaptação, perturbações na
vida sexual e coisas semelhantes, mas mantêm-se absoluta­
mente alheias à existência da ansiedade no presente ou no
passado, Uma investigação mais minuciosa, sem embargo,
88 A Personalidade Neurótica
geralmente demonstra que sua primeira afirmação foi inexata.
Ao analisar essas pessoas, invariàvelmente encontramos tanta
ansiedade sob a superfície quanto no primeiro grupo, senão
mais ainda. A análise toma essas pessoas neuróticas cons­
cientes de sua ansiedade anterior e elas podem recordar-se de
sonhos ou situações ansiosas em que se tenham sentido apre­
ensivas. Todavia, o grau de ansiedade acusado por elas, via
de regra, não ultrapassa o normal. Isso alvitra a possibilidade
de têrmos ansiedades sem o sabermos.
Quando colocado desta maneira, o significado do problema
aí implícito não se patenteia; êle faz parte de um problema
mais amplo. Temos sentimentos de afeição, raiva e descon­
fiança tão fugazes que mal penetram em nossa consciência e
tão transitórios que dêles nos esquecemos. il:sses sentimentos
podem realmente ser efêmeros e carecer de importância, mas
também podem esconder uma grande fôrça motriz. O grau
de consciência de um sentimento nada indica a respeito de
�ua fôrça ou importâ.ncia ( 2 ) . No que toca à ansiedade, isso
não quer dizer apenas que podemos tê-la sem o saber: a
ansiedade pode cliegar a ser o fator decisivo de nossas vidas
sem disso tomarmos consciência.
Deveras, parece que nos entregamos a enormes esforços
para fugir à ansiedade ou para evitar senti-la. Há muitas
razões para isso, sendo a mais geral o fato da ansiedade intensa
ser um dos maiores tormentos que se pode ex_perimentar.
Pacientes que atravessaram uma crise de ansiedade aguda
dizem que preferiam morrer do que enfrentar a repetição dessa
experiência. Além disso, alguns dos elementos que npnrecem
nos efeitos da ansiedade, podem ser particularmente insupor­
táveis para o indivíduo. Um dêles é a sensação de inutilidade.
A gente pode ser ativa e corajosa em face de um grande peri­
go, mas em um estado ansioso a gente se sente, de fato,
inerme. Ficar reduzido à impotência é particularmente into­
lerável para as pessoas para quem o poder, a ascendência, a
idéia de ser o senhor em qualquer situação é um ideal pre­
dominante. Impressionadas pela aparente desproporção da
sua reação, elas se indignam com esta, como se fôsse uma
demonstração de fraqueza ou covardia.
Outro elemento da ansiedade é sua aparente irraciona­
lidade. Para algumas pessoas é mais penoso que para outras
( 2 ) Isto é apenas uma paráfrase de um ª5.Pecto da descoberta fundamental
elo Freud no tocante à importância dos fatôres inconscientes.
Ansiedade 89

o deixar que qualquer fator irracional as governe. Isso é par­


ticularmente difícil para as que secretamente se sentem amea­
çadas de serem subjugadas por fôrças irracionais que se entre­
chocam em seu íntimo e que se adestraram para exercer
automàticamente um rigoroso contrôle intelectual. Assim, elas
não suportarão conscientemente nenhum elemento irracional.
Além de conter motivações individuais, esta última reação
abrange um fator cultural, já que a nossa cultura dá muito
destaque ao raciocínio e à conduta inteligente, encarando a
irracionalidade, ou o que possa assim parecer, como algo
inferior.
Ligado até certo ponto a isso, há o último elemento da
ansiedade: por sua própria irracionalidade, a ansiedade cons­
titui uma advertência implícita de que há algo desarranjado
em nosso íntimo e, por conseguinte, é um incentivo a inspe­
cionar algo dentro de nós mesmos. Não quer dizer que con­
sideramos isso conscientemente como um desafio; implicita­
mente, porém, êle o é, quer nos decidamos a aceitá-lo como
tal ou não. Nenhum de nós gosta de um desafio assim; pode­
se dizer que nos opomos, mais do que a qualquer outra coisa,
à idéia de que devemos modificar uma atitude nossa. · Quanto
mais, porém, a pessoa se sente desesperadamente enredada na
intrincada teia de seu mêdo e de seus mecanismos de defesa,
e quanto mais tem de apegar-se à ilusão de que está certa e
é perfeita em tudo, tanto mais instintivamente rejeitará qual­
quer insinuação - ainda quando apenas indireta ou subenten­
dida - de que há algo errado nela e de que uma modificação
se torna necessária.
Em nossa cultura, há quatro maneiras principais de esca­
par à ansiedade: racionalizando-a; negando-a; narcotizando-a;
evitando pensamentos, sentimentos, impulsos e situações que
possam despertá-la.
O primeiro método - racionalização - é a melhor expli­
cação para a fuga à responsabilidade. Consiste em transfor­
mar a ansiedade em um mêdo racional. Se o valor psíquico
de uma modificação dêste tipo fôr pôsto de lado, podemos
imaginar que a alteração não foi grande. A mãe super-solí­
cita, com efeito, está igualmente preocupada com os filhos,
quer admita estar ansiosa ou quer interprete sua ansiedade
como um mêdo justificado. Pode-se, contudo, experimentar
uma porção de vêzes dizer a essa mãe que sua reação não
40 A Personaliclade Neurótica

é um mêdo racional mas sim uma ansiedade, subentendendo


que é desproporcional ao perigo existente e que sofre a influ­
lincia de fatôres do passado. Como resposta, ela refutará essa
insinuação e empregará tõda a sua energia para provar que
nosso julgamento está totalmente equivocado. A Maria não
pegou essa moléstia infecciosa no quarto das crianças ? O
Zézinho não quebrou a perna trepando em árvores ? Um
homem não tentou seduzir as crianças com balas, recentemen­
te ? A conduta dela não é ditada inteiramente por sua afeição
e seu sentimento de dever ? ( 8 ) .
Sempre que deparamos com uma defesa tão enérgica de
atitudes irracionais, podemos ficar certos de que a atitude
defendida exerce funções importantes para a vida do indi­
víduo. Ao invés de sentir-se uma prêsa fácil de suas emo­
ções, essa mãe acha que pode fazer alguma coisa ativamente
quanto à situação. Ao invés de reconhecer uma fraqueza, ela
pode orgulhar-se de seus elevados padrões. Ao invés de admi­
tir que ná elementos irracionais em sua atitude, ela se con­
sidera inteiramente racional e justificada. Ao invés de ver e
aceitar um desafio para modificar algo em seu próprio íntimo,
ela pode continuar transferindo a responsabilidade para o
mun<Io exterior e, assim, fugir às suas próprias motivações.
:€ claro que ela tem de pagar um certo preço por essas van­
tagens momentâneas, qual o de nunca libertar-se de suas
preocupações : e as crianças, sobretudo, têm de pagar o preço.
Mas ela não percebe isso e, em última análise, não quer per­
cebê-lo, porque, bem no fundo, aferra-se à ilusão de que nada
pode mudar em si mesma e, assim, deixa de beneficiar-se de
tudo o que resultaria de uma tal modificação.
O mesmo princípio aplica-se a tõdas as tendências que
crêem ser a ansiedade um mêdo racional, qualquer que seja
o seu conteúdo : mêdo do parto, de doenças, de erros na dieta,
de catástrofes, de empobrecimento.
A segunda maneira de fugir à ansiedade é negar sua exis­
tência. Com efeito, nesses casos nada se faz com relação à
ansiedade, a não ser negá-la, isto é, excluí-la da consciência.
Tudo o que aparece são os concomitantes físicos do mêdo
ou da ansiedade, como arrepios, suor, taquicardia, falta de
ar, vontade freqüente de urinar, diarréia, vômitos e, na esfera
mental, uma sensaç�o de desassossêgo, de estar sendo apres-
( 3) Cf. SANDOll R.6.DO, An Oosr-Solicltot11 Mother.
Ansiedade 41

sado ou paralisado. Podemos ter tódas essas sensações e per­


·

turbações quando estamos com mêdo, e sabemos disso; elas


podem, também, ser exclusivamente a expressão de uma ansie­
dade presente que está recalcada. No último caso, tudo o
que o indivíduo sabe d� seu estado são os indícios aparentes,
como o fato de ter de urinar constantemente em certas con­
dições, de ficar enjoado no trem, de às vêzes ter suores notur­
nos, e sempre sem qualquer causa física.
Contudo, também é possível opor-se conscientemente à
ansiedade, isto é, fazer uma tentativa consciente para supe­
rá-la. Isto se aproxima do que sucede no plano normal, quan­
do alguém tenta ver-se livre de um mêdo, desprezando-o im­
prudentemente. O exemplo mais familiar, no terreno da nor­
malidade, é o do soldado que, movido pelo impulso para
dominar o mêdo, pratica feitos heróicos.
O neurótico, igualmente, pode tomar uma decisão cons­
ciente para subjugar sua ansiedade. Uma môça, por exemplo,
que vivia atormentada pela ansiedade até perto da puberdade,
particularmente em relação a ladrões, resolveu conscientemente
desdenhar a ansiedade, dormindo sozinha no sótão e andando
sozinha pela casa vazia. O primeiro sonho que ela contou
na análise revelou diversas variações dessa atitude; continha
várias situações, que eram de fato atemorizadoras, mas que
de cada vez foram enfrentadas bravamente. Em uma delas,
ela ouviu passos no jardim, à noite, saiu para a varanda e
perguntou: "Quem está aí ?" Ela conseguiu perder o mêdo
a ladrões, mas como nada fôra modificado nos fatôres res­
ponsáveis por sua ansiedade, persistiram outras conseqüências
da ansiedade ainda existente; continuou retraída e tímida, sen­
tindo-se desprezada e sem poder dedicar-se a nenhum trabalho
útil.
Muito amiúde não há uma decisão consciente assim nos
neuróticos e o processo prossegue automàticamente. A dife­
rença da normalidade, todavia, não está no grau de cons­
ciência da decisão, mas no resultado obtido. Tudo o que o
neurótico pode obter ao "controlar-se", é perder uma certa
manifestação especial da ansiedade, como a môça que per­
deu o mêdo aos ladrões. Não quero subestimar êsse resul­
tado; êle pode ter valor prático e pode ter valor psicológico
por fortalecer o respeito próprio. Mas, desde que �sses resul­
tados são usualmente superestimados, é necessário mostrar o
42 A Personalidade Neurótica

lado negativo ( 4 ) . Não só permanece imutável a dinâmica


essencial da personalidade, quando o neurótico perde uma
manifestação patente de seus distúrbios; igualmente êle perde
um estímulo vital para atacá-los.
O processo de transpor implacàvelmente uma ansiedade
desempenha papel importante em muitas neuroses e nem sem­
pre é devidamente identificado. A agressividade, por exem­
plo, que muitos neuróticos exibem em certas situações, muitas
vêzes é tomada como uma manifestação direta de uma hos­
tilidade real, quando pode ser principalmente uma transpo­
sição inexorável duma timidez existente, ante a pressão de
sentir-se atacado. Conquanto geralmente esteja presente uma
certa hostilidade, o neurótico pode exagerar grandemente
agressividade que deveras sente, pois sua ansiedade o induz
a superar a timidez. Se não se prestar atenção a isso, há o
risco de confundir-se o descuido com a verdadeira agressi­
vidade.
A terceira maneira de libertar-se da ansiedade é narcoti­
zá-la. Isso pode ser feito consciente e literalmente, por meio
de bebidas alcoólicas ou de entorpecentes; há, enb·etanto,
muitos modos de fazê-lo, sem que a ligação seja óbvia. Uma
delas é engolfar-se em atividades sociais por causa do mêdo
de ficar sozinho; em nada altera a situação o fato de o mêdo
ser identificado como tal ou aparecer apenas como uma sen­
sação vaga de desconfiança. Outro modo de narcotizar a
ansiedade é afogá-la no trabalho, um processo que pode ser
reconhecido pela natureza compulsiva do traballio e pela in­
tranqüilidade observável nos domingos e feriados. O mesmo
fim pode ser atendido por uma necessidade irrefreada de sono,
malgrado em geral a pessoa não se sinta muito descansada
depois de dormir. Finalmente, as atividades sexuais podem
servir como válvula de segurança para dar vazão à ansiedade.
Sabe-se, de longa data, que a masturbação compulsiva pode
ser provocada pela ansiedade, mas o mesmo pode ser dito
quanto a tôda sorte de relações sexuais. As pessoas para quem
as atividades sexuais servem preponderantemente como um
meio de mitigar a ansiedade, ficam extremamente inquietas e
irritáveis quando não têm oportunidade para obter satisfação
sexual, mesmo que seja por um prazo curto.

(4) Freud sempre salientou isso, ao assinalar que o desaparecimento de


sintomas nllo 6 indicio suficiente de cura.
An s i ed ad e 48

A quarta maneira de escapar à ansiedade é a mais radi­


cal : consiste em evitar tôdas as situações, pensamentos ou
sentimentos que possam despertá-la. Isso pode ser um pro­
cesso consciente, tal como a pessoa que tem mêdo de mer­
gulhar ou de escalar montanhas evita fazer essas coisas; falando
com maior exatidão, uma pessoa pode estar a par da exis­
tência da ansiedade e do fato de evitá-la. Ela pode também,
sem embargo, só perceber vagamente ou não perceber abso­
lutamente que tem ansiedade ou que a evita. Pode, por exem­
plo, procrastinar em questões que, sem ela o saber, estão liga­
das à ansiedade, como tomar decisões, ir ao médico ou escre­
ver uma carta. Ou pode, "fazer de conta", isto é, acreditar
subjetivamente que certas atividades que ela tem em mente
- como participar de uma discussão, aar ordens a emprega­
dos, separar-se de outras pessoas - não têm importância. Ou
pode, então, "fingir" não gostar de determinadas coisas e des­
fazer-se delas por isso. Assim, uma môça para quem ir a
festas pressupõe o mêdo de ver-se desdenhada, pode evitar
isso, de todo, convencendo-se de que não gosta de reuniões
sociais.
Se dermos um passo à frente, até o ponto em que essa
esquivança age automàticamente, depararemos com o fenôme­
no da inibição. Uma inibição vem a ser uma incapacidade
para fazer, sentir ou pensar certas coisas, e sua função é evi­
tar a ansiedade que surgiria caso a pessoa tentasse fazer, sen­
tir, ou pensar aquelas coisas. Não se percebe nenhuma ansie­
dade, nem se é capaz de superar a inibição por meio de
qualquer esfôrço consciente. As inibições estão presentes, em
sua forma mais espetacular, nas perdas de função rotuladas
como histéricas : cegueira, mudez ou paralisia de um membro.
Na esfera sexual, a frigidez e a impe>ftAncia representam essas J
inibições, conquanto possa ser muito complexa a sua estrutura.
Na esfera mental, são fenômenos bem conhecidos as inibições
de concentração, de formar ou expressar opiniões e de estabe­
lecer contato com outras pessoas.
Poderia valer a pena gastar várias páginas na mera enu­
meração das inibições, de modo a dar uma impressão total
da variedade de suas formas e da freqüência com que ocorrem.
Penso, todavia, que posso deixar ao leitor o encargo de reca­
pitular suas próprias observações a êsse respeito, pôsto que
hoje em dia as inibições s ão um fenômeno assaz conhecido,
44 A Pe1·sonalidade Neurótica
' ... •.l :IJl.' : ·:,if ' ''f" "'f�" ' ; . , "! '�'"' "'"'�!
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., ,,.

·: esen- ..

v , Não obstante, é conveniente apreciar


. ' · ente ·

'pré-condições necessárias para se perceber a eia de .

ini6ições; do contrário, seriamos levados a subestimar ·sua fre-:


qüência, já que usualmente não temos noçã o de quantas inibi­
ções realmente possuímos.
Em primeiro lugar, devemos ter consciência do desejo
de fazer rugo para que possamos perceber nossa incapacidade
para fazê-lo. Por exemplo, é mister têrmos consciência de que
possuímos ambições para que possamos compreender que
temos inibições nessa direção. Pode ser perguntado se, em
geral não sabemos, pelo menos, o que é que queremos; deci­
didamente a resposta é negativa. Consideremos, por exemplo,
uma pessoa ouvindo a leitura de uma tese e pensando em
criticá-la. Uma pequena inibição consistiria em uma timidez
para expressar as críticas; uma inibição mais forte impedi-la-ia
ae pôr em ordem suas idéias, daí resultando que elas só lhe
ocorreriam depois de terminados os debates, ou só na manhã
seguinte. Mas, a inibição pode ir tão longe a ponto de não
permitir que os pensamentos críticos aflorem de forma algu�
ma, e, nesse caso, presumindo que ela realmente tivesse Uina
atitude de crítica, ver-se-á inclinada a aceitar cegamente , o
que foi dito ou até mesmo a admirar tudo, ficando perfei�­
mente inconsciente de haver tido quaisquer inibições. ·Por
outras palavras, se uma inibição vai ao ponto de conter desejos
ou impulsos, a pessoa não pode apercelier-se de sua existência.
Um segundo fator que po_de obstar a percepção, ocorre.
quando uma inibição tem uma função tão importante na vida
da pessoa, que esta prefere insistir em que se trata de um
fato irremediável. Se, por exemplo, há uma ansiedade avas­
saladora de certo tipo, associada a qualquer espécie de trabalho
de competição, produzindo uma fadiga acentuada após tõda
tentativa para trabalhar, a pessoa pode insistir em que não
é bastante forte para realizar qualquer trabalho; essa crença
protege-a, mas se ela admitisse uma inibição ver-se-ía obri­
gada a retornar ao trabalho e, em conseqüência, expor-se à
temida ansiedade.
Uma terceira possibilidade leva-nos de volta aos fatôres
culturais. Pode ser impossível tomar-se consciência de inibi­
ções pessoais se estas coincidirem com formas culturalmente
sancionad as de inibições ou com ideologias existentes. Um
Ansiedade 45
, !j.'!��·.:v:l!f�i:.\�. �··t:�·. · ·t·(�· ··: ·. ·y tJ· · t .1.•· :';. . .:.. , .. .. .: ··t ": · ·· ·· . · j· . _, · �. ! ··•:-:··. .�· \ :·. · t·· · . . .; · ·{'i.
pa . . �.t�bl!tíâ 'de s �
U:iil:Hção . ao apro�âr�é ' $lia
lhei'
.: . pêrcebia estar inibido porque via sua condni'. :'.:�
luz dà. idéia consagrada da santidad� das mulheres. Uma inibi-.!·
Ção no sentido de fazer exigências pode fàcilmente apoiar-se
no dogma de que o recato é uma virtude; uma inibição no
sentido de fazer críticas aos dogmas vigentes da política, da
religião ou de qualquer determinado campo de interêsse pode
passar despercebida, e podemos ficar completamente alheios
à existência de uma ansiedade referente a vermo-nos subme­
tidos à punição, crítica ou reclusão. A fim de julgar a situação,
contudo, é claro que precisamos conhecer os fab�res individuais
com grande minúcia. A ausência de idéias críticas não implica
forçosamente na existência de inibições, pois pode ser devida
á uma preguiça mental generalizada, à obtusidade ou a con­
vicções que realmente coincidem com os dogmas dominantes.
· Qualquer dêsses três fatôres pode responder pela inca2
pacidade para identificar inibições existentes e para o fato
de até psicanalistas experimentados poderem ter dificuldades
em assinalá-las. Porém, mesmo pressupondo que pudéssemos
identificar tôdas, nossa estimativa da freqüência das inibições
ainda seria muito baixa. Teríamos que levar em conta tôdas
as reações que, malgrado não sendo ainda inibições plena­
mente desenvolvidas, estão caminhando para chegar a êsse
ponto. Nas atitudes a que me refiro, ainda somos capazes de
fazer certas coisas, mas a ansiedade nelas implícita exerce certa
influência sôbre as próprias atividades.
Em primeiro lugar, exercer uma atividade a cujo respeito
alimentamos uma ansiedade, provoca um sentimento de esfôrço
excessivo, fadiga ou exaustão. Uma paciente minha, por exem­
plo, que se estava recuperando de um mêdo de andar na rua,
mas ainda tinha bastante ansiedade a êsse respeito, sentia-se
completamente exausta quando saía para dar uma caminhada
aos aomingos. O fato dessa exaustão não se dever a nenhuma
deficiência física é evidenciado porque ela podia realizar can­
sativos trabalhos domésticos sem a menor fadiga. Era a ansie­
dade ligada à idéia de andar ao ar livre que causava a exaus­
tão; a ansiedade estava bastante diminuída, de modo a per­
mitir-lhe andar fora de casa, mas ainda era suficiente para
deixá-la extenuada. Muitas dificuldales comumente atribuídas
ao trabalho excessivo, na verdade não são causadas pelo tra_.
46 A Personalidade Neurótica

balho em si, mas sim pela ansiedade referente ao trabalho


ou às relações com os colegas.
Em segundo lugar, a ansiedade relacionada com certa
atividade terá como resultado um prejuízo para essa função.
Se existe, por exemplo, uma ansiedade ligada à necessidade
de dar ordens, estas serão dadas de forma numilde e ineficaz.
A ansiedade em montar a cavalo ocasionará uma incapaci­
dade para dominar o animal. O grau de consciência varia :
a pessoa pode ter consciência de que a ansiedade a impede
de realizar suas tarefas de forma satisfatória, ou pode ter ape­
nas a noção de que é incapaz de fazer bem qualquer coisa.
/
Em terceiro lugar, a ansiedade associada a uma atividade
qualquer tirará todo o prazer que esta atividade poderia pro­
porcionar. Isso não se aplica a ansiedades ligeiras; pelo con­
trário, estas podem até acrescentar um certo encanto. Um
passeio na "montanha russa", quando cercado de certa apre­
ensão pode tornar-se mais emocionante, ao passo que se con­
verterá em uma tortura quando fôr grande a ansiedade. Uma
ansiedade violenta no que diz respeito a relações sexuais im­
pedirá desfrutar-se de qualquer prazer nestas e, se a pessoa
não se der conta da ansiedade, terá a impressão de que as
relações sexuais não valem nada.
t:ste último tópico pode gerar confusões, pôsto que eu
dissesse, linhas atrás, que a impressão de desagrado pode ser
usada como um meio de evitar a ansiedade, e agora estou
afirmando que o desagrado pode ser um corolário da ansie­
dade. De fato, ambas as afirmações são verídicas : o desa­
grado pode ser o meio de evitar a ansiedade e a conseqüên­
cia de se sentir esta. Eis aí uma pequena ilustração da difi­
culdade que existe na compreensão dos fenômenos psicológicos.
:f;;les são entrelaçados e complicados, e a menos que nos resol­
vamos a levar em conta as inúmeras interações ligada entre
si, não conseguiremos progredir em nosso conhecimento psi­
cológico.
A finalidade de discutirmos como podemos defender-nos
da ansiedade é fornecer um quadro exaustivo de tôdas as
defesas possíveis; de fato, daqui a pouco veremos modos mais
drásticos para impedir o aparecimento da ansiedade. Meu
objetivo principal é substanciar a assertiva de que uma pessoa
pode ter muito mais ansiedades do que se dá conta ou estar
Ansiedade 47

ansiosa sem absolutamente o perceber, e também mostrar


alguns dos casos mais comuns que se pode encontrar.
Assim, em resumo, a ansiedade pode estar oculta sob
impressões de desconfôrto físico, como taquicardia e fadiga;
pode estar disfarçada por detrás de diversos mêdos que pare­
çam irracionais ou injustificados; pode ser a fôrça latente que
nos impele a beber ou a submergir em tôda sorte de distra­
ções. Muitas vêzes, verificaremos que ela é a causa da im­
possibilidade de se realizar ou apreciar determinadas coisas, e
âescobriremos que é ela sempre o elemento fomentador das
inibições.
Devido a razões que examinaremos posteriormente, a
nossa cultura gera uma grande dose de ansiedade nos indi­
víduos que nela vivem; por conseqüência, pràticamente todos
n6s desenvolvemos uma ou mais das defesas mencionadas.
Quanto mais neurótica fôr a pessoa, tanto mais a sua persona­
lidade se apresentará impregnada e condicionada por essas
defesas; tanto maior será, também, o número de coisas que
ela não poderá fazer ou nem pensará fazer, conquanto fôsse
lícito esperar que as fizesse, em face de sua vitalidade, capa­
cidade intelectual ou formação educacional. Quanto mais
grave a neurose, tanto maior o número de inibições presentes,
quer sutis, quer gritantes ( 11 } .

( 5) H . SCBULTZ-HBNCKE, em Einfuchrung in die Paychoanalise, 1allentoa


particularmente a importAncia capital dos Luecken, isto é, dos hiatos obsenráveis
na vida e na p enonalidade dos neuróticos.
,
CAPITULO IV

Ansiedade e Hostilidade

A o DISCUTIRMOS a diferença entre mêdo e ansiedade, nossa


primeira conclusão foi que a ansiedade é um mêdo em que
existe implícito essencialmente um fator subjetivo. Qual é,
pois, a natureza dêsse fator subjetivo ?
Principiemos descrevendo o que um indivíduo sente quan­
do prêso de ansiedade. �le tem a impressão de um perigo
poderoso e inexorável, contra o qual se sente totalmente im­
potente. Quaisquer que sejam as manifestações ansiosas, quer
se trate de um temor hipocondríaco ao câncer, quer uma
ansiedade com relação a trovoadas, quer uma fobia de luga::
res altos ou outro mêdo semelhante, os dois fatôres -:-.. P.e.i:�go
esmagador e incapacidade para enfrentá-lo - estão sempre
presentes. Ãs vêzes, êle peide sentir como vinda de fora a
fôrça ameaçadora contra a qual se considera impotente -
trovoadas, câncer, acidentes, e coisas semelhentes; às vêzes,
o perigo parece ameaçá-lo por intermédio de seus próprios
impulsos incontroláveis - medo de ter de pular de um lugar
alto ou de cortar alguém com uma faca; outras vêzes, o perigo
é completamente vago e intangível, como sucede freqüente­
mente em um acesso de angústia.
Tais sensações não são por si mesmas, contudo, caracte­
rísticas sõmente de ansiedade; podem estar presentes, as mes­
mas, em qualquer situação que envolva um perigo irresistível
concreto e uma impotência concreta ante êfe. Imagino que
a experiência subjetiva das pessoas durante um terremoto ou
de uma criancinha de menos de dois anos de idade exposta
a brutalidades, não seja de maneira alguma diferente da de
quem se sinta angustiado por causa de trovoadas. No caso
de mêdo, o perigo está realmente presente e a sensação de
50 A Personalidade Neurótica

impotência é condicionada pela realidade; no caso da ansie­


daae, o perigo é gerado ou aumentado por fatôres intra-psí­
quicos e a incapacidade é condicionada pela atitude da pró­
pria pessoa.
A questão atinente ao fator subjetivo da ansiedade reduz­
se, assim, a uma interrogação mais definida: quais são as
condições psíquicas que criam a sensação de um perigo imi­
nente e intenso e geram uma atitude de incapacidade para
enfrentá-lo ? De qualquer forma, esta é uma pergunta que
tem de ser formulada pelo psicologista. O fato de condições
químicas do organismo poderem também criar a sensação e
os concomitantes físicos aa ansiedade é de tão pouca relevân­
cia psi� ológ�ca C_?mO o de que as condições químicas podem
produzrr ammaçao ou sonol�nc1a. .
Ao abordar os problemas da ansiedade, e bem assim
muitos outros, Freud mostrou-nos a direção a seguir. :Ele con­
seguiu isso graças à sua descoberta crucial de que o fator
subjetivo implícito na ansiedade, jaz em nossos próprios impul­
sos instintivos; em outras palavras, tanto o perigo antecipado
pela ansiedade como a sensação de impotência ante êle são
evocados pela fôrça explosiva de nossos próprios impulsos.
Examinarei mais pormenorizadamente as o:einiões de Freud
a êste propósito no fim dêste capítulo, assinalando igualmente
em que minhas conclusões diferem das dêle.
Em princípio, qualquer impulso tem a capacidade poten­
cial de produzir ansieaade, uma vez que sua descoberta
ou busca de satisfação signifique uma violação de outros
interêsses ou necessidades vitais e desde que êle seja
suficientemente imperioso ou veemente. Nas épocas em que
existiram tabus sexuais definidos e severos, como na era vito­
riana, a submissão a impulsos sexuais muitas vêzes traduziu-se
por sujeição a perigos reais. Uma môça solteira, por exemplo,
tinha de enfrentar um perigo real sob a forma de consciência
atormentada ou desgraça social, e os que se entregavam ao
ímpeto da masturbação viam-se sujeitos a ameaças de cas­
tração ou obrigados a enfrentar a advertência dos danos físi­
cos fatais ou aoenças mentais de que viriam a ser vítimas.
O mesmo se aplica, hoje em dia, a certos impulsos sexuais
pervertidos, como os de exibicionismo ou os que se focali­
zam em crianças. Em nossa época, todavia, no que toca aos
impulsos sexuais "normais", nossa ·atitude tomou-se tão indul-
Ansiedatle e Hostilidade 51

gente que, seja aceitando-os intimamente ou concretizando-os,


envolvemo-nos em perigo sério muito menos freqüentemente;
por conseguinte, há menos razões objetivas para apreensão a
êsse respeito.
De acôrdo com minha experiência, a mudança da ati­
tude cultural com relação ao sexo pode ser altamente res­
ponsável pelo fato de os impulsos sexuais serem apenas excep­
cionalmente . a fôrça dinâmica produtora de ansiedade. Esta
afirmação talvez pareça exagerada, por que a ansiedade, sem
dúvida alguma, está ligada aparentemente aos desejos sexuais.
Muitas vêzes verifica-se que pessoas neuróticas se mostram
angustiadas face às relações sexuais ou têm inibições nesse
setor como conseqüência da ansiedade. A análise mais acura­
da revela, entretanto, que a base da ansiedade comumente não
está nos impulsos sexuais como tais, mas sim em impulsos hos­
tis a êles associados, tais como o de humilhar ou magoar o
parceiro através do ato sexual.
Com efeito, im�ulsos hostís de várias espécies constituem
a principal fonte de que promana a ansiedade neurótica.
Receio que esta nova asserção pareça também uma generali­
zação injustificada do que pode ser verdadeiro apenas para
uns quantos casos. Os casos, porém, em que se pode traçar
uma conexão direta entre a hostilidade e a ansiedade dela
decorrente, não constituem a base exclusiva de minha afir­
mativa. ll: bem sabido que um impulso hostil agudo pode
ser a causa direta da ansiedade, caso a busca de sua satis­
fação signifique a frustração das intenções da pessoa. Podemos
citar um exemplo entre muitos. F. sai numa excursão pelas
montanhas com uma jovem a quem é muito afeiçoado; não
obstante, êle está extremamente furioso com ela porque, de
certo modo, o fêz ficar enciumado. Ao passar com ela por
uma trilha junto a um precipício, êle sofre uma crise grave
de angústia, com taquicardia e respiração opressa, por causa
de um impulso consciente para empurrá-la no abismo. A
estrutura àe ansiedades como esta é a mesma indicada nas
de origem sexual: um impulso imperativo que, se seguido,
implicaria em uma catástrofe para o eu.
Na grande maioria das pessoas, contudo, não é nada evi­
dente a conexão causal entre a hostilidade e a ansiedade neu­
rótica. A fim de esclarecer, portanto, porque eu declaro que
nas neuroses de nosso tempo os impulsos de hostilidade são
52 A Personalidade Neur6tica

a principal fonte psicológica da ansiedade, é necessário exa­


minar agora, com certa minúcia, as conseqüências psicológicas
da repressão da hostilidade.
Reprimir uma hostilidade significa "fazer-de-conta" que
tudo está bem e, assim, abster-se de lutar quando se deve
ou, pelo menos, quando se deseja. Conseqüentemente, o pri­
meiro corolário inevitável dessa repressão é ela originar uma
sensação de inépcia, ou para ser mais exato, reforçar uma
sensação já existente de inépcia. Se a hostilidade fôr repri­
mida quando os interêsses da pessoa estiverem sendo deveras
atacados, tornar-se-á possível a outros tirar proveito dela.
A experiência de um químico, C., representa uma ocor­
rência cotidiana dêste gênero. C. sofria do chamado esgota­
mento nervoso por excesso de trabalho. :e:le era excepcional­
mente dotado e muito ambicioso, e não o sabia. Por motivos
que deixarei de lado, reprimira os impulsos de sua ambição
e parecia, assim, modesto. Quando entrou para o laboratório
de uma grande firma de produtos químicos, um colega, G.,
um pouco mais velho e seu superior, tomou-o sob sua pro­
teção e deu-lhe tôdas as provas possíveis de amizade. Em vir­
tude de uma série de fatôres pessoais - dependência do afeto
dos outros, intimidação anterior com �elação a comentários
críticos, não-identificação de sua própria ambição e conse­
qüentemente incapacidade de vê-la nos demais - e. ficou
contente em aceitar a cordialidade do colega e não reparou
que, na realidade, G. não ligava a mais nada que não fôsse
a sua própria carreira. Impressionou-o, porém só ligeiramen­
te, o fato de numa ocasião G. apresentar como sua uma idéia
de importância para uma possível invenção, que era de fato
idéia de C. e que êste lhe transmitira durante uma conver­
sação amigável. Por um momento C. ficou desconfiado, mas
como sua própria ambição realmente atiçasse uma enorme hos­
tilidade em seu íntimo, êle imediatamente reprimiu não só essa
hostilidade mas também, com ela, as críticas e a desconfiança
plenamente justificáveis. Por isso, continuou convencido que
G. era seu melhor amigo. Em conseqüência, quando G. o
aconselhou a desistir de prosseguir num certo trabalho, êle
aceitou o conselho tàcitamente. Quando G. produziu um
invento que e. poderia ter feito, e. achou apenas que os dotes
e a intellgência de G. eram bem superiores aos seus, e sen­
tiu-se feliz por ter um amigo tão formidável. Assim, por ter
Ansiedade e HostiUdade 53

reprimido sua desconfiança e sua ira, C. deixou de notar que


em questões importantes G. era seu inimigo ao invés de seu
amigo. Por ter-se apegado à ilusão de que era estimado, C.
renunciara à disposição para lutar em defesa de seus próprios
interêsses. ll:le nem mesmo percebia que um interêsse vital
seu estava sendo atacado e, por isso, não podia lutar por êle,
mas deixava o outro aproveitar-se da sua fraqueza.
Os mêdos subjugados pela repressão também podem ser
superados conservando-se a hostilidade controlada consciente­
mente. Não depende de escolha, porém, uma pessoa repri­
mir ou controlar a hostilidade, pois a repressão é um
processo reflexo. Ela ocorre se em determinada situação tor­
nar-se intolerável para a pessoa reconhecer sua própria hosti­
lidade. Num caso dêsses, é claro, não há possibilidade de
contrôle consciente. As principais razões por que a consciên­
cia da hostilidade pode ser intolerável ligam-se ao fato de
podermos amar ou precisar de uma pessoa ao mesmo tempo
que a hostilizamos; de não querermos perceber as razões, como
inveja ou vontade de dominar, que desencadearam a hosti­
lidade; ou de que pode ser assustador identificarmos em nós
mesmos uma hostilidade generalizada contra qualquer pessoa.
Em tais circunstâncias, a repressão é o caminho mais curto
e mais rápido para uma imediata renovação da confiança em
si mesmo; graças a ela, a hostilidade ameaçadora desaparece
da consciência ou é impedida de penetrar nesta. Quero repe­
tir esta frase com oufyas palavras, porquanto mal �rado tôda
sua simplicidade é uma das afirmativas psicanahticas rara­
mente compreendidas : se a hostilidade é reprimida, a pessoa
não tem a mais loi:ig!nqua idéia 9-e que é. hosfil.
O meio mais ráp�do de reafirmação, sem embargo, não
é necessàriamente, no final das contas, o mais seguro. Pelo
processo da repressão à hostilidade - ou, para indicar sua
natureza dinâmica, seria melhor usar aqui o têrmo raiva - é
afastada da percepção consciente, mas não é abolida. Sepa­
rada do conteúdo da personalidade do indivíduo, e portanto
fora do alcance do contrõle, ela fica ruminando dentro dêle
como uma paixão altamente explosiva e eruptiva, e, por isso,
tende a ser descarregada. O pcider explosivo da paixão repri­
mida é ainda maior porque àevido ao seu próprio isolamento
assume dimensões maiores e muitas vêzes fantásticas.
54 A Personalidade Neurótica

Enquanto a pessoa percebe sua animosidade contra


outrem, a expansão da mesma pode ser restringida de três
modos. Primeiramente, a consideração das circunstâncias de
cada situação mostra-lhe o que pode e o que não pode fazer
contra um inimigo ou um suposto inimigo. Em seguida, se a
ira se dirige contra alguém que, a não ser por isso ela admi­
ra, estima ou necessita, essa ira mais cedo ou mais tarde se
integrará na totalidade de seus sentimentos. Por fim, tendo
em vista que o homem desenvolveu um certo senso do que é
ou não apropriado fazer e sendo a personalidade o que é,
isso também limitará os impulsos hostis.
Se a zanga fôr re_primida, corta-se o acosso a estas pos­
sibilidades de limitação, resultando daí que os impulsos hostis
ultrapassam as restrições de dentro e de forn, conquanto
somente na imaginação. Se o químico por mim citado tivesse
seguido seus impulsos, teria querido contar aos outros como
G. abusara de sua amizade, ou teria participado a seu superior
que G. lhe roubara a idéia ou o imped ira ele soguf-la. Como
sua ira foi reprimida, ela se tornou di ssociada e exp an di u se, -

conforme deve ter aparecido provàvelmente em seus sonhos;


é provável que em sonhos êle cometesse assassinatos de uma
forma simbólica ou se tornasse um gênio admirado, enqu anto
outros se desmoronavam.
Por sua própria dissociação, a hostilidade recalcada, com
o decorrer do tempo, será intensificada por causas extrínse­
cas. Por exemplo, se um empregado de categoria elevada ficou
encolerizado contra seu chefe por ter êsto tomado decisões
sem primeiro consultá-lo sôbre o assunto e reprimiu a cólera,
nunca reclamando contra o procedimento do sup er i or, êste
certamente continuará "passando por cima dêle", e com isso
a cólera irá sempre se renovando ( 1 ) .
Outra conseqüência de se reprimir a hostilidade provém
da pessoa registrar em si mesma a existência do uma paixão
altamente explosiva que foge a seu contrôlo. Antes ele discutir
as conseqüências disto, temos de examinar uma questão por
ela alvitrada. Por definição, o resultado da repressão de um
sentimento ou impulso é o indivíduo não mais se dar conta
( 1) F. KUENKEL, em Einfuchrung in dia Chnrnktarkuntlu, chamou a a ten ção
para o fato da atitude neurótica atrair uma ronçfto cio ambiento, graças à qual
a quela atitude é reforcada; daf a pessoa ver-se c11c111 voz muls onrod n cla e com
dificuldades crescentes para escap ar. Kuonkcl donomlnn ésse fenômeno de
Teufelskreia,
Ansiedade e Hostilidade 55

de sua existência, de modo que em sua mente consciente êle


não sabe que tem quaisquer sentimentos hostis contra outrem.
Como, então, posso dizer que êle "registra" a existência do
sentimento reprimido em si mesmo ? A resposta está no fato
.de não haver uma alternativa rigorosa entre consciente e
inconsciente, mas de haver - conforme H. S. Sullivan assi­
nalou em uma conferência - vários níveis de consciência. O
impulso reprimido não só é ainda eficaz --: um dos desco­
brimentos fundamentais de Freud - mas, também, em um
nível mais profundo da consciência, o indivíduo tem noção
de sua presença. Reduzido à expressão mais simples possível,
isso quer dizer que bàsicamente não nos podemos enganar,
que de fato nos observamos melhor do que pensamos fazer,
tâl e qual usualmente observamos os outros melhor do que
percebemos estar fazendo - conforme se vê, por exemplo, na
exatidão da primeira impressão que temos de uma pessoa -
mas podemos ter razões convincentes para não tomarmos
conhecimento de nossas observações. Para não ter de repe­
tir explicações, empregarei o têrmo "registrar" quando quiser
indicar que sabemos o que está havendo em nosso íntimo sem
disso nos darmos conta.
Essas conseqüências da repressão da hostilidade podem
ser suficientes por si mesmas para a criação da ansiedade,
desde que a hostilidade e sua ameaça potencial para os inte­
rêsses de outros sejam suficientemente grandes. Vagos esta­
dos de angústia podem formar-se dessa maneira. Mais fre­
qüentemente, porém, o processo não pára nesse ponto, por­
que há uma necessidade imperiosa de livrar-se do sentimento
perigoso que de dentro ameaça o interêsse e a segurança da
própria pessoa. Um segundo processo reflexo se instala: o
indivíduo "projeta" seus impulsos hostis sôbre o mundo exte­
rior. A primeira "simulação", a repressão, exige uma segunda:
êle "faz-de-conta" que os impulsos de destruição não provêm
dêle mas de alguém ou de algo no exterior. Logicamente,
, a pessoa em quem seus próprios impulsos hostis serão pro­
jetados, é a pessoa contra a qual êles se voltam. O resul­
tado é que essa pessoa agora assume proporções formidáveis
em sua mente, em parte porque se atribuem a essa pessoa
a mesma implacabilidade dos seus próprios impulsos repri­
midos, e em parte porque em qualquer perigo o grau de
potência depende não só das con âições objetivas, mas igual-
56 A Personalidm!e Neurótica

mente da atitude que se assume em relação a elas. Quanto


mais inerme a pessoa, tanto maior lhe parecerá o perigo ( 2 ) .
Como função secundária da projeção há, também, a jus­
tificação perante si mesmo. Não -� o próprio individuo que
quer ludibriar, roubar, explorar ou humilhar, mas outros que
querem fazer tais coisas contra êle. A espôsa que desconheça
seus ·próprios impulsos no sentido de arruinar o marido e
esteja subjetivamente convencida de ser profundamente dedi­
cada pode, devido a êsse mecanismo, considerar o marido
como um bruto que a quer magoar.
O processo de projeção pode ou não apoiar-se em outros
processos que visem ao mesmo fim : um mêdo retaliatório pode
apoderar-se do impulso reprimido. Neste caso, a pessoa que
queira ludibriar, lesar ou burlar aos outros também terá mêdo
de que êles lhe façam o mesmo. Até que ponto o mêdo reta­
liatório é uma característica geral entranhada na natureza
humana, até que ponto êle decorre das experiências primitivas
de pecado e punição e até que ponto êle pressupõe um im­
pulso de vindita pessoal, são coisas que deixo em suspenso.
Indubitàvelmente, elas exercem uma funçã.o importante na
mente das pessoas neuróticas.
:l!:sses processos suscitados pela hostilidade reprimida têm
como resultado o sentimento de ansiedade. Com efeito, a
repressão produz exatamente o estado que caracteriza a ansie­
dade : uma impressão de impotência ante o que se sente como
um perigo avassalador que nos ameaça do exterior.
Con�uanto os estágios de evolução da ansiedade sejam
em principio simples, na prática é geralmente difícil compre­
ender suas condições. Um dos fat6res que contribuem para
isso é que os impulsos hostis recalcados muitas vêzes não são
projetados sôbre pessoa afetada mas sôbre qualquer outra.
Em uma das histórias de casos relatados por Freud, por exem­
plo, o pequeno Hans não ficou angustiado em relação a seus
pais, mas sim em relação a cavalos brancos ( ª ) . Uma paciente
minha, normalmente muito sensível, após a repressão da hos-
( 2) Elu:CD: F'BOMM, em Autorltact und Familie, livro orpnizado por Maz
Horkheimer, do Instituto Internacional de Pesq_uisa Social ( N. 1'. - H& tradução
fmncesn, :ttude sur Z'Autorité et la Familie, Paris: Felix Alcan, 1936 ) , afirmou
claramente que a ansiedade com que rea�os a um perigo não depende mecA­
nlcnmcnte da grandeza real do perigo. 'Um indivíduo que tenha desenvolvido
umn utitude áe inép cia e passividade reagir& ansiosamente frente a um perigo
rol ativamente pequeno" .
( 3) SIOMUND F'l!E'UD, CoUected Papera, Vol. 3.
Ansiedade e Hostilidade 57

tilidade contra seu marido, SU.bitamente desenvolveu uma


ansiedade em relação a répteis na piscina revestida de azu­
lejos. Parece que nada, desde os germes até as trovoadas,
fica fora do alcance da ansiedade. As razões dessa tendência
para separar a ansiedade da pessoa afetada são bastante
óbvias. Se a ansiedade realmente afeta a um pai, mãe, marido
ou alguém de relações anàlogamente íntimas, julga-se incompa­
tível a aceitação da hostili<la.de com o vínculo existente de
autoridade, amor ou estima. A regra, em tais casos, é a nega­
ção total da hostilidade. Reprimindo sua própria hostilidaae,
a pessoa nega haver qualquer hostilidade de sua parte e, pro­
jetando sua hostilidade sôbre as trovoadas, nega qualquer
hostilidade por parte do outro. Muitas ilusões de casamentos
felizes repousam sôbre uma orientação assim, que lembra a
tática do avestruz.
O fato da repressão da hostilidade conduzir, segundo
lógica inexorável, à produção de ansiedade, não implica em
que deve manifestar-se ansiedade sempre que isso ocorrer. A
ansiedade pode ser instantâneamente afastada por um dos
artifícios defensivos que já examinamos ou que examinaremos
adiante. Uma pessoa em uma situação assim pode proteger-se
por meios tais como, por exemplo, criar uma necessidade
exagerada de horas de sono ou entregar-se à bebida.
Há uma infinidade de variações nas formas de ansieda­
de que podem decorrer de hostilidade reprimida. Para melhor
compreensão dos quadros resultantes, apresentarei esquemàti­
camente as diferentes possibilidades :
A ) A pessoa sente o perigo originar-se de seus próprios
impulsos;
B ) A pessoa sente o perigo provir do exterior.

Em vista das conseqüências da repressão da hostilidade,


o grupo A parece ser um efeito direto da repressão, ao passo
que o Grupo B pressupõe uma projeção. Tanto A como B
podem ser subdivididos em dois grupos :
1 - Sente-se o perigo como dirigido contra a pessoa.
II - Sente-se o perigo dirigido contra outros.

Teremos, então, quatro grupos principais de ansiedade :


58 A Personalidade Neurótica

A) 1 - A pessoa sente o perigo oriundo de seus pró­


prios impulsos e dirigido contra si mesma. Nesse
grupo, a hostilidade volta-se secundàriamente
contra o eu, processo que examinarei posterior­
mente. Exemplo : fobia de ter de pular de luga­
res altos.
A ) II - A pessoa sente o perigo emanado de seus pró­
prios impulsos e dirigido contra outros : Exem­
plo : fobia de ter de machucar outros com facas.
B) 1 - A pessoa se sente afetada pelo perigo provindo
de fora. Exemplo : mêdo de trovoadas.
B ) II - A pessoa sente o perigo provindo de fora e afe­
tando a outros. Neste grupo, a hostilidade é
projetada sôbre o mundo exterior e é conser­
vado o objeto original da hostilidade. Exemplo:
a ansiedade de mães super-solícitas em relação
a perigos que ameacem seus filhos.

� desnecessário dizer que é limitado o valor de uma clas­


sificação como esta. Ela pode ser útil para dar uma orien­
tação pronta, mas não aventa tôdas as eventualidades possíveis.
Não se deve deduzir, por exemplo, que pessoas que desenvol­
vem uma ansiedade do tipo A nunca projetem sua hostilidade
reprimida; pode-se apenas deduzir que nessa forma específica
de ansiedade há ausência de projeção.
A relação entre a hostilidade e a ansiedade não se esgota
com a capacidade de a primeira gerar esta. O processo tam­
bém funciona em sentido contrário : a ansiedade, por sua vez,
quando baseada em um sentimento de se estar ameaçado,
fàcilmente provoca uma reação defensiva de hostilidade. A
reação hostil também, se reprimida, pode criar ansiedade, e
assim estabelecer-se um ciclo. :Esse efeito de reciprocidade
entre hostilidade e ansiedade, uma sempre produzindo e refor­
çando a outra, habilita-nos a compreender porque encontra­
mos uma soma tão vasta de hostilidade implacável nas neu­
roses ( 4 ) . Essa influência recíproca também é a razão fun-

( 4 ) Qunn do a intensificação da hostilidade por intermédio da ansiedade


4t pnrcchldn, p arece desnecessário procurar uma origem biológica especial para os
lmp11lwo1 dcetrutlvos, conforme Freud fêz em sua teoria do instinto de morte.
Ansiedade e Hostilidade 59

damental porque as neuroses graves tão amiúde pioram sem


que aparentemente sobrevenha qualquer condição difícil no
meio exterior. Não importa se a ansiedade ou a hostilidade
foi o fator primordial; o que interessa, para a dinâmica de
uma neurose, é que a ansiedade e a hostilidade se acham
inextricàvelmente entrelaçadas.
I '
O conceito de ansiedade por mim proposto foi desenvol­
vido, de um modo geral, por métodos essencialmente psica­
nalíticos. 1!:le age com a dinâmica das fôrças inconscientes,
os processos de repressão, projeção e outros análogos. Se des­
cermos a maiores detalhes, todavia, êle difere em vários
aspectos da posição adotada por Freud.
Freud expôs duas opiniões sucessivas em tômo da ansie­
dade. A primeira delas, em resumo, dizia que a ansiedade
resulta duma repressão de impulsos. Isso se referia exclusi­
vamente ao impulso sexual e era uma interpretação puramente
fisiológica, pois baseava-se na crença de que se a energia sexual
fôr impedida de se manifestar produzirá uma tensão física no
corpo, que se converterá em ansiedade. Segundo opinião pos­
terior, contudo, a ansiedade - ou o que êfe chama de ansie­
dade neurótica - origina-se do mêdo dos impulsos cuja
descoberta ou busca de satisfação acarretará um perigo exter­
no ( 11 ) . Esta segunda interpretação, que é psicológica, refei:e­
se não só ao impulso sexual mas também ao de agressividade.
Nessa interpretação de ansiedade, Freud não se preocupa
absolutamente com a repressão ou não-repressão dos impulsos,
mas apenas com o mêdo dos impulsos cuja busca de satisfa­
ção implicaria em um perigo exterior.
Minha concepção apoia-se na idéia de que as duas opi­
niões de Freud devem ser integradas, para que se possa com­
preender o quadro total. Assim, despi o primeiro conceito de
seus fundamentos puramente fisiológicos e combinei-o com o
segundo. A ansiedade geralmente não resulta tanto de um
temor de nossos impulsos como do temor de nossos impulsos
reprimidos. Parece-me que o motivo que não deixou Freud
beneficiar-se completamente de seu primeiro conceito - em­
bora se baseasse em inteligente observação psicológica ..... resi­
de em ter êle dado uma interpretação fisiológica, ao invés de

( 5) Fmnm, New lntroductory Lettera, capitulo sõbre "Ansiedade e V:ida


Instúitiva", p. 120,
60 A Personalidade Neurótica

haver suscitado a questão psicológica do que sucede pslquica­


mente no íntimo de uma pessoa que recalca um impulso.
Um segundo ponto de desacôrdo com Freud é de menor
importância teórica, mas de máxima relevância prática. Con­
cordo plenamente com sua opinião de que a ansiedade pode
resultar de qualquer impulso cuja expressão possa acarretar
um perigo externo . . 9� . . impulsos sexuais . por certo podem ser
dêsse tipo, mas só quando um rígido tabu individual e social
nêles- baseaâo- os toma perigosos ( 6 ) . Sob êste ponto de vista,
a freqüência com que a ansiedade é proveniente de impulsos
sexuais depende largamente da atitude cultural prevalente face
1 à sexualidade. ��� �_!!Sid�i:Q_a sexualidade em si mesma como
! .
uma fonte f:lspec_Uíca de ansi�ade;- acredil:o, rio -éritanto, que
_ _

1 eXiste uma tal fonte especifica na hostilidade ou, mais preci-

samente, nos impulsos nostis reprimidos . Colocando em têr­


mos simples e práticos o conceito que apresentei neste capí­
tulo, direi : onde quer que eu encontre ansiedade ou indícios
desta, as perguntas que me vêm à mente são - qual o ponto
sensível que foi ferido, provocando conseqüentemente hosti­
lidade, e a que se deve a necessidade de repressão ? Minha
experiência é que a pesquisa nessas direções comumente leva
a uma compre�nsão satisfatória da ansiedade.
Um terceiro ponto em que me encontro em discrepância
com Freud é a sua suposição de que a ansiedade só é gerada
na infância, começando com a suposta angústia do nascimento
e prosseguindo com o temor à castração, e que a ansiedade
ocorrida ulteriormente . baseia-se em reações que permanecem
infantis. "Não há dúvida que pessoas a que chamamos de
neuróticas permanecem infantis em sua atitude com relação
ao perigo, não se havendo desvencilhado das condições arcaicas
da ansiedade" ( 7 ) .
Consideremos separadamente os elementos contidos nessa
interpretação. Freud assevera que durante a infância estamos
particularmente predispostos a reagir ansiosamente. Isso é um
fato incontestável, e para o qual há .razões boas e compre­
ensíveis, dada a comparativa incapacidade da criança ante

( 6) Quiçá em uma sociedade como a descrita por SAM11EL BVTLEJ\ em


l•:rMVl1on, em que qualquer espécie de doenca é severamente punida, um impulso
p11m cair doente daria lugar à ansiedade.
( 7 ) FllBUD, New lnt1'oductory Lactures, capítulo sõbre "Ansiedade e Vida
ln1Untlvn", pág. 123.
Ansiedade e Hostilidade 61

circunstâncias adversas. De fato, em neuroses de caráter sem­


pre se constata que a formação da ansiedade começou na
primeira infância, ou _pelo menos que naquela época foram
lançadas as fundações do que eu denominei ansiedade básica.
Além disso, sem embargo, Freud crê que a ansiedade nas neu­
roses de adultos está ainda prêsa às condições que a provo­
caram originalmente. Isso quer dizer, por exemplo, que um
homem adulto se sentiria tão perturbado pelo mêdo da cas­
tração, conquanto sob formas modificadas, como o fôra quando
menino. Sem dúvida, há casos raros em que uma reação
ansiosa infantil pode, dadas as provocações apropriadas, re­
emergir posteriormente sob a mesma forma( 8 ) . Como regra,
contudo, o que se vê é, não uma repetição mas um desenvo1vi­
mento. Em casos em que a análise nos permite compreender
completamente a evolução da neurose, poaemos encontrar uma
cadeia ininterrupta de reações da ansiedade infantil até as
peculiaridades adultas. Portanto, a ansiedade ulterior conterá,
entre outros, elementos condicionados pelas condições par­
ticulares existentes durante a infância. A ansiedade como um
todo, porém, não é uma reação infantil: considerá-la como
tal seria confundir duas coisas distintas e tomar por uma ati­
tude infantil o que é simplesmente uma atitude originada na
infância. Seria tão justificável dar o nome de reação infantil
à ansiedade quanto chamá-la de uma atitude precocemente
adulta em uma criança.

( 8 ) J, H. Scmn:rz, em Neurose, Lebensnot, Aerztliche Pflicht, registra um


caso dessa espécie. Um empregado estava constantemente mudando de emprêgo
porque certos patrões lhe causavam ira e ansiedade. A psicanálise revelou que
só o enfureciam os superiores que tinham determinado tipo de barba. A reação
do paciente demonstrou ser uma repetição exata da que experimentara com relação
a seu pai, aos três anos de idade, quando êste ameaçava sua mãe.
,
CAPITULO V

A Estrutura Básica das Neuroses

UMA ANSIEDADE pode ser cabalmente explicada pela situação


conflitiva real Se, contudo, encontramos uma situação cria­
dora de ansiedade em uma neurose de caráter, temos sempre
de levar em conta ansiedades previamente existentes a fim
de explicar porque naquele caso particular a hostilidade apa­
receu e foi reprimida. Averiguaremos, então, que essa ansie­
dade prévia foi, por sua vez, o resultado de uma hostilidade
anterior, e assim sucessivamente. Para entender como começou
o desenvolvimento todo, temos de remontar à infância ( 1 ) .
Esta será uma das poucas ocasiões em que tratarei da
questão das experiências infantis. A razão pela qual farei
menos referência à infância do que é costumeiro na literabu-a
psicanalítica não se deve a eu atribuir menor valor às expe­
riências infantis do que outros autores psicanalistas, mas sim
a neste livro eu estar inter��Jlg.11. ni;i. estrutura a!ni4_ da . !!��-- �
.�()I:lalidad� ne�tica e não nas experiências individuai� que
a produzrram. _ J
- · · · · Ao examinar as histórias da infância de um grande número
de pessoas neuróticas, verifiquei que o denominador comum
a tôaas elas é um ambiente em que aparecem as características
abaixo, combinadas de várias maneiras .
. O mal fundamental é sempre a falta de um autêntico calor
.humano e afeição. Uma criança pode agüentar um bocado
do que é geralmente considerado como traumático - tal como
desmame súbito, surras ocasionais, experiências sexuais desde
que intimamente se sinta desejada e amada. � desnecessário
dizer que a criança tem uma aguda percepção de quando o
amor é genuíno, não podendo ser ludiôriada por fingimentos.

( 1 ) Não me refiro aqui at.s que ponto da inflncia seri necess6rio rebo­
eeder na pista para fins terapêuticos.
64 A Personalidade Neurótica

A principal razão pela qual a criança não recebe suficiente


carinho e afeição consiste na incapacidade dos pais para lhe
darem isso, devido às suas próprias neuroses. O mais comum,
segundo a minha experiência, é parecer camuflada a ausên­
cia essencial de carinho, e os pais alegarem ter em vista o
interêsse da criança. Teoria sôbre educação, a super-solicitude
ou a atitude de renúncia de uma mãe "ideal", são os fatôres
básicos que contribuem para um ambiente que, mais do que
qu�quer ou�a coisa, lança as sementes de futuros sentimentos
de nnensa msegurança.
Outrossim, deparamo-nos com diversos atos ou atitudes por
parte dos pais que só podem despertar hostilidade, como sejam
a preferência por outros filhos, repreensões injustas, mudan­
ças imprevistas de indulgência excessiva para rejeição desde­
' nhosa, promessas não cumpridas, e, o g_ue não é menos im­
portante, uma atitude face às necessidades da criança que
varia desde a desconsideração temporária até a interferência
constante com seus desejos mais legítimos, incomodando seus
amigos, ridicularizando suas tentativas de pensar por si mesma
e tirando-lhe o prazer de suas iniciativas, quer sejam artísti­
cas, esportivas ou manuais, tudo isso constituindo uma atitude
dos pais que, mesmo sem essa, int�ção, têm como efeito
9uebrar a vontade do filho.
Na literatura psicanalítica concernente aos fatôres que
despertam a hostilidade da criança, dá-se predominância à
frustração de seus desejos, especialmente os da esfera sexual,
e ao ciúme. � possível que a hostilidade infantil surja em
parte por causa aa atitude proibitiva da cultura em relação
ao prazer em geral e à sexualldade infantil em particular, quer
esta se refira à curiosidade sexual, masturbação ou brincadei­
ras libidinosas com outras crianças. Mas a frustração não é,
certamente, a única fonte de uma hostilidade rebelde. A
observação patenteia que inegàvelmente as crianças, assim
como os adultos, podem aceitar um sem-número de priva­
ções desde que as reputem justas, necessárias ou tendo em
vista um determinado fim. Uma criança não se incomoda de
ser treinada nos hábitos de limpeza, por exemplo, se os pais
ni10 levam isso a extremos nem a coagem com crueldade sutil
0 1 1 flugrante. Nem tampouco a criança se incomodará com um

cnstigo ocasional, desde que se sinta certa de que é amada


ti considere o castigo como sendo eqüitativo e não destinado
A Estrutura Básica das Neuroses 65

apenas a humilhá-la ou machucá-la. A questão de saber se a


frustração por si mesma incita à hostilidade é de difícil jul­
gamento, põsto que em meios onde a criança sofre muitas pri­
vações há normalmente um grande número de outros fatôres
estimuladores da hostilidade. O que importa é o ânimo com
que são impostas as frustrações e não estas mesmas.
A razão que me leva a saUentar isto é que o destaqué
exagerado, muitas v�zes atribuído ao perigo de frustração, tem i
induzido inúmeros pais a levar a idéia b em além do pensa­
mento de Freud e a eximir-se de q ualquer interfe�ncia ;unto
"".
à criança para não prejudicá.-la ( • ) .
O ciúme pode ser, certamente, uma origem de ódio tre­
mendo, tanto nas crianças quanto nos adultos. Não há dúvida
quanto ao papel que o ciúme entre irmãos ( 2 ) e o ciúme com
relação ao pai ou à mãe pode desempenhar em crianças neu­
róticas, ou quanto à influência duradoura que essa atitude
pode exercer posteriormente em sua vida. São discutíveis, no
entanto, as condições de que se origina êsse ciúme. Será
natural aparecerem em tôda criança reações de ciúme obser­
vadas na rivalidade entre irmãos e no complexo de �dipo, ou
elas serão provocadas por determinadas condições ?
As observações de Freud sôbre o complexo de :e:dipo fo­
ram feitas em pessoas neuróticas. Nelas, êle apurou que as
reações agudas de ciúme em relação a um dos pais eram de
natureza suficientemente destruidora para produzir mêdo e
para exercer influências perturbadoras permanentes na forma­
ção do caráter e nas relações interpessoais. Observando êsse
fenômeno repetidamente em pessoas neuróticas de nosso tem­
po, êle o admitiu como sendo um fenômeno universal. .,Não
IB.. admitiu que o complexo edipiano era o próprio cerne
neuroses, como também procurou interpretar fenômenos

·plexos de outras culturas partindo dessa hipótese( 8 ) ssa •

generalização é que é discutível. Certas reações de ciúme apa­


recem fàcilmente em nossa cultura, nas relações entre irmãos
assim como nas entre pais e filhos, exatamente como ocorrem
em qualquer grupo que viva em ligação estreita. Não há

( 0 ) N. T. - No Brasil, êsse tem sido um dos supostos aspectos negativos


da psicanálise mais alegados por seus opositores; por isso é que resolvemos grifar
tM2 esta frase da autora.
( 2 ) DA.vm LBVY, HO&tlUty Patterm in SibHng Rivalry E:cperlmentl fn "Ame­
rlcan Joumal of Orthopsycbiatry", vol. 6 ( 1936 ) .
( 3 ) FBBtm, Totem e Tabu.
66 A Personalidade Neurótiaa

provas, porém, dessas reações de ciúme destrutivas e duradou­


ras - e é nessas que pensamos ao falarmos do complexo de
Jtdipo ou da rivalidade entre irmãos - serem tão comuns em
nossa cultura, para não falar de outras culturas, quanto Freud
imagina. Elas são, de modo geral, reações humanas, mas são
geradas artificialmente por intermédio do ambiente em que a
criança cresce.
( - O s fatôres específicos responsáveis pelo fomento d o ciúme
1serão compreendidos mais adiante, ao examinarmos as infe­
rências gerais do ciúme neurótico; basta mencionar aqui a
falta de carinho e o espírito de competição que contribuem
para tanto. Além disso, pais neuróticos que criam o tipo de
ambiente a que nos referimos, em regra estão descontentes
com suas vidas, não têm relações afetivas ou sexuais satisfa­
tórias e, por conseguinte, são propensos a fazerem dos filhos
o objeto único de seu amor. :Eles se valelD _dos filhos para
_dareni_ v_azão à sua necessidade de afeto; embora a expressão
dêste não seja sempre de fundo sexuâl, de qualquer forma
é de alta carga em<?cional. Duvido muito que as correntes
ocultas sexuais das relações entre filhos e pais cheguem a ser
bastante fortes para constituírem uma perturbação potencial.
Pelo menos, não sei de caso algum em que não tenham sido
os pais neuróticos que, por meio de terror e ternura hajam for­
çado a criança a ligações exaltadas, com tôdas as conseqüên­
cias de dominação e ciúme descritas por Freud ( 4 ) .
Estamos acostumados a acreditar que uma oposição hos­
til à família ou a algum de seus membros é desastrosa para
o desenvolvimento da criança. Será desastrosa, é natural, se
a criança tiver de lutar contra as ações de pais neuróticos. Se
houver boas razões para a oposição, contudo, o perigo para
a formação do caráter da criança não estará tanto em sentir
ou expressar seus protestos, mas antes em reprimi-los. Há
diversos perigos que derivam da repressão da crítica, do pro­
testo ou das acusações, e um dêles é que a criança poderá
assumir tôda a culpa e sentir-se indigna de ser amada; apre-
(4) Estas observações, apresentadas dum modo geral em desacbrdo com a
ooncepçllo freudiana do complexo de 1:dipo, pressupõem que êle não é um fen&­
mono hiol6gico admitido, mas sim condicionado culturalmente. Como êste ponto
do vista foi discutido por vários autores - Malinowski, Boem, From, ReiCh -
'11u me restrinj o a mencionar apenas os fatôres de nossa cultura capazes de gerarem
o oompl<'xo de 1:dipo: desarmonia no casal devido a relações conflitivas entre os
N"xo1; poder autoritário ilimitado por parte dos pais; tabus em todo e qualquer
m1•l11 <lo cxpressllo sexual da criança; tendências para conservar o filho em estágio
lnf11ntll o emocionalmente dependente dos pais, e a isolá-lo de qualquer outra
111n1111lrn.
A Estrutura Básica das Neuroses 67

clm·emos adiante as ilações de tal situação. O perigo que nos


in ttil'essn aqui é que a hostilidade reprimida pode criar ansie­
dudc e iniciar o círculo vicioso por nós já estudado.
São várias as razões, cuja eficácia varia em grau e em
combinação, para que uma criança criada em um ambiente
nsslm, reprima a hostilidade: incapacidade, mêdo, amor ou
soutlmentos de culpa.
A incapacidade da criança é muitas vêzes considerada
meramente como um fato biológico. Embora a criança depen­
dn realmente durante longos anos de seu ambiente para a
1mtisfação de suas necessidades ( por ter menor vigor físico e
menos experiência do que os adultos ) , tem sido dado realce
oxugerado ao aspecto biológico do problema. Após os dois ou
três primeiros anos de vida, há uma mudança decisiva da pre­
dominante dependência biológica para um gênero de depen­
dência que abrange a vida mental, intelectual e espiritual da
criança; isso continua até a criança atingir o início da vida
adulta e ser capaz de tomar sua vida em suas próprias mãos.
Há grandes diferenças individuais, sem embargo, no grau em
que os filhos continuam dependendo dos pais. Tudo é funç�
daquilo que os pais procuram conseguir na educação de seus
rebentos : se tornar o filho forte, corajoso, independente, apto

i!
a lidar com tôda sorte de situações, ou se a tendência prin'­
cipal é abrigar o filho, fazê-lo obediente, conservá-lo igno ' a
a respeito das realidades da vida, ou, em suma, infantil ·
até aos vinte anos de idade ou mesmo mais tarde. Em cria ça:'
que crescem sob condições adversas, a incapacidade é usual­
mente reforçada intimidando-as, apaparicando-as ou conservan­
do-as em um estado de dependência emocional. Quanto mais
inerme fizermos a criança sentir-se, tanto menos ela se atre­
verá a sentir ou demonstrar antagonismo, e tanto mais êste
será adiado. Nessa situação, o sentimento latente ( ou o que
odemos denominar o lema ) será : tenho _que rep!!�ir--�� �· !!
E� <!�--�?<:�·
�de �<].�� _.P.����-s�-
O mêdo pode ser despertado diretamente por meio de
ameaças, proibições e punições, e por explosões de cólera ou
cenas violentas testemunhadas pela criança; pode também ser
provocado por intimidação indireta, como seja impressionar a
criança com os grandes perigos da vida - germes, tráfego,
us tranhos, crianças malcriadas, trepar em árvores, etc. Quanto
muis apreensiva se sente, tanto menos a criança ousará mostrar,
68 A Personalidade Neur6tica
ou mesmo sentir hostilidade. Aqui, o lema é : tenho de repri­
mir minha hostilidade porque tenho mêdo de você.
O amor pode ser uma outra razão para se reprimir a hos­
tilidade. Quando está ausente a a fe i ç ão legítima, muitas vêzes
é exagerado verbalmente o quanto os p a is gostam do filho
e de como se sacrificariam por ôle atá a última gôta de san­
gue. A criança, particularmente qu an d o já intimidada por

outros mo os, pode apegar-se a llsse sucedâneo de amor e
recear mostrar-se reherde para não perder a recompensa por
ser dócil. Em tais situações, o lemu é : tenho de reprimir a
hostilidade por ter mêdo de perd er seu umor.
Até aqui examinamos situações em que a criança reprime
sua hostilidade contra os pais porque temo que q u alquer mani­
festação dela irá prejudicar suas relações com êles. Ela é
motivada pelo mêdo puro e simples de que nquêles poderosos
g ·gantes a desertarão, retirarão su a confortaé.lora benevolên­
cia ou se voltarão contra ela. Adem a is, om nossa cultura geral­
mente faz-se a criança sentir-se culpada p or quaisquer sen­
timentos ou expressões de hostilidade ou cm tn g o n l s m o ; isto é,
faz-se com que ela se sinta indigna ou des p rezível ante seus
próprios olhos, se manifestar ou sentir ressentimento contra
os pais ou se violar as regras por êstes estabelecidas. Essas
duas razões para sentimentos de culpa estão estreitamente
inter-relacionadas. Quanto mais culpada flzermos a criança
sentir-se por invadir terreno proibido, tanto menos ela se atre­
verá a sentir rancor ou a levantar acmmçõos contra os pais.
Em nossa cultura, a esfera sexual é umu clns em que são
mais freqüentemente estimulados os son timentos de culpa.
Quer as proibições sejam exprimidas por m e l o de um silên­
cio significativo ou de ameaças francas e c as t igos , a criança
vem a perceber, amiúde, que não só são proibfélus a curiosi­
dade e as atividades sexuais, como também gue ela será des­
prezível e sórdida se a elas se entregar. Se houver quaisquer
fantasias e desejos sexuais com r el a ç ã o a um elos pais, êstes
também, embora permanecendo n ão expressos como resultado
da atitude restritiva face à sexualidade om geral, propenderão
a fazer a criança sentir-se culpada. Nessa situação, o lema é :
tenho d e reprimir a hostilidaae porque ou seria uma criança
má se me sentisse hostil.
Em várias combinações, quaisquer dos fntôres citados po­
dem levar a criança a recalcar s u a hostilidade, e, finalmente,
podem gerar ansiedade.
A Estrutura Básica das Neuroses 69

Será, porém, que tôda ansiedade infantil necessàriamente


terá como resultado uma neurose ? Nossos conhecimentos não
são ainda suficientes para responder convenientemente a essa
pergunta. Minha crença é que a ansiedade infantil é um fator
necessário, mas não uma causa suficiente, para o desenvol­
vimento de uma neurose. . Parece que condições favoráveis,
somq_ _�-�!l��<;l_al_!Ç_l!_ de amfüente l()go no . coi:riêço da vida ou
�ºi·ª�-- n�utralizantesâe qualquer· espécie, podem deter
�.m... ci�s�ny_olvipieI1�<>. neurótico explícito� Se, contudõ, como
acontece muitas vêzes, as condições de vida não são de molde
l
a reduzirem a ansiedade, então não só esta oderá persistir
como - conforme veremos mais tarde - provável que
aumente e ponha em funcionamento todos os processos que
constituem uma neurose.
Entre os fatôres que podem influenciar o posterior desen­
volvimento da ansiedade infantil, há um que desejo examinar
em particular. Faz grande diferença saber se a reação
hostilidade e ansiedade restringe-se ao meio que levou a cr '

ça a adotá-la ou se evolui para uma atitude generalizada e
hostilidade e ansiedade para com as pessoas.
Se a criança tem a felicidade de ter, por exemplo, uma
avó carinhosa, uma professôra compreensiva, alguns bons ami­
gos, sua experiência com essas pessoas a impecfirá de só espe­
rar o mal de tôda gente. Poréin, quanto mais difíceis forem
as experiências da criança no seio de sua família, tanto mais
ela propenderá a desenvolver não só uma reação de ódio para
com os pais e outras crianças como uma atitude de desconfian­
ça ou desdém com relação a todos. Quanto mais a criança
fôr isolada e obstada em suas experiências próprias, tanto mais
será incentivado êsse desenvolvimento. E, finalmente, quanto
mais a criança disfarçar seu rancor contra a família ( como
por exemplo, conformando-se com as atitudes dos pais ) , tanto
mais ela projetará sua ansiedade sôbre o mundo exterior e
assim convencer-se-á de que o "mundo" em geral é perigoso
e assustador.
A ansiedade generalizada com relação ao "mundo", pode­
rá também aumentar ou diminuir gradativamente. A criança
que haja crescido no tipo de ambiente acima descrito não se
atreverá, em seus contatos com outras pessoas, a ser ativa e
pugnaz da mesma forma que elas o são. Ela terá perdido a
bem-aventurada certeza de ser querida e tomará a mais inócua
70 A Personalidade Neurótica

brincadeira como uma rejeição cruel. Será, também, menos


capaz de defender-se.
A condição fomentada ou acarretada pelos fatôres a que
me referi, ou por fatôres semelhantes, é um sentimento ins i­
diosamente crescente e difuso de estar-se isolado e indefeso
em um mundo hostil. As reações individuais agudas a provo­
cações individuais cristalizam em uma atitude de caráter. Essa
atitude Por si mesma não constitui uma neurose, mas é solo
fértil em que uma neurose bem definida poderá brotar a qual­
quer momento. Por causa do papel fundamental desempenha­
do por essa atitude nas neuroses, dei-lhe uma denominação
especial - ansiedade básica; ela está sempre inextricàvelmente
entrelaçada com uma hostilidade básica.
Em psicanálise, ao lidar com tôdas as diversas formas
individuais de ansiedade, aos poucos reconhece-se o fato de
que a ansiedade básica jaz sob tôdas as relações com outras
pessoas. Enquanto que as ansiedades individuais podem ser
estimuladas por causas cbncretas, a ansiedade básica continua
a existir mesmo quando não existe um estímulo particular na
situação concreta. Se o conjunto do quadro neurótico fôsse
comparado com um estado de inquietação política de uma
nação, a ansiedade e a hostilidade básicas seriam análogas às
insatisfações ocultas e aos protestos latentes contra o regime.
As manifestações aparentes podem estar completamente ausen­
tes em ambos os casos, ou podem revelar-se sob formas dife­
rentes. No Estado, elas pOdem revelar-se como motins, gre­
ves, reuniões, demonstrações; . no campo psicológico, também,
as formas de ansiedade Podem manifestar-se através de sin­
tomas de tôda sorte. Não importa qual seja a provocação
particular, tôdas elas emanam de uma base comum.
Em simples neuroses de situação, não há a ansiedade con­
flitiva concreta da parte de indivíduos cujas relações inter­
pessoais não estão perturbadas. O caso seguinte pode servir
de exemplo dêsse gênero, muito freqüente na prática psico­
terapêutica :
Uma mulher de quarenta e cinco anos queixava-se de
taquicardia e estados angustiosos à noite, com transpiração
profusa. Nada se encontrou fisicamente e todos os indícios
<iram de tratar-se de uma pessoa sadia; a impressão que dava
<ll'll de ser uma mulher bondosa e íntegra. Vinte anos atrás,
por motivos que não dependiam tanto dela quanto da situa-
A Estrutura Básica das Neuroses 71

ção, casara-se com um homem vinte cinco anos mais velho.


Fôra muito feliz com êle, tinha tido uma vida sexual satisfa­
tória, tinha três filhos excepcionalmente bem desenvolvidos.
Fôra sempre diligente e capaz como dona de casa. Nos últi­
mos cinco ou seis anos seu marido ficara um tanto ranzinza
e menos potente sexualmente, mas ela havia suportado isso
sem qualquer reação neurótica. A dificuldade começara uns
sete meses antes, quando um homem agradável e casadouro,
mais ou menos da idade dela, começara a prodigalizar-lhe
atenção pessoal. Acontecera qu e nessa senhora se havia criado
um ressentimento contra o encanecido espôso, que fôra repri­
mido por motivos muito fortes em vista de todos os antece­
dentes mentais e sociais e de uma relação conjugal funda­
mentalmente boa. Com um pouco de auxílio, após umas pou­
cas entrevistas, ela ficou em condições de enfrentar a situação
conflitiva e, assim, livrar-se de sua ansiedade.
Nada pode indicar melhor a importância da ansiedade
básica do que uma comparação das reações individuais em
casos de neurose de caráter com as de outros casos, como
o acima citado, que pertencem ao grupo de simples neuro�
ses de situação. :Estes últimos são encontrados entre pessoas
sadias que, por fôrça de razões compreensíveis, se acham inca­
pazes para resolverem conscientemente uma situação confli­
tiva, isto é, incapazes de enfrentar a existência e a naturey;a
do conflito e, portanto, de tomarem uma decisão definida.
Uma das diferenças marcantes entre os dois tipos de neuro­
ses é a grande facilidade na obtenção de resultados terapêu­
ticos nas neuroses de situação. Nas neuroses de caráter, o
tratamento tem de vencer grandes dificuldades e, por isso,
estende-se por um longo período de tempo, às vêzes dema­
siadamente longo para que o paciente aguarde a cura; a neu­
rose de situação, porém, é resolvida com relativa facilidade ..
Uma discussão compreensiva da situação é, muitas vêzes, não
apenas uma terapia sintomática, mas também das causas; em
outras, a terapia causal consiste na remoção da dificuldade
-
pela mudança de ambiente ( 5 ) .
Assim, enquanto nas neuroses de situação temos a impres­
são de uma relação adequada entre a situação conflitiva e a
reação neurótica, tal relação parece estar ausente nas neuro­
ses de caráter. Em virtude da ansiedade básica presente, a

(5) Nesses casos, a psicanálise não é necessária nem tampouco aconselhável.


72 A Personalidade Neurótica

mínima provocação pode trazer à tona a mais intensa reação,


conforme veremos adiante mais pormenorizadamente.
Apesar da gama de formas manifestas de ansiedade, ou
da proteção contra ela ser infinita e variar de um indivíduo
para outro, a ansiedade básica é mais ou menos a mesma
sempre, variando apenas em extensão e intensidade. Ela pode
ser descrita, a grosso modo, como uma sensação de se ser
pequeno, insignificante, indefeso, abandonado, ameaçado, em
um mundo disposto a abusar, ludibriar, atacar, humilhar, atrai­
çoar, invejar. Uma paciente minha exprimiu essa sensação
em um desenho que fêz espontâneamente, no qual ela apare­
cia sentada no meio de uma cena, representada por um bebê
minúsculo, nu e inerme, rodeado de tôda espécie de monstros
ameaçadores, humanos e animais, prontos para atacarem-na.
Em psicoses, é comum encontrar-se um grau razoàvel­
mente elevado de consciência da existência duma ansiedade
assim. Em pacientes paranóicos, essa ansiedade fica limitada
a uma ou a várias pessoas bem definidas; em pacientes esqui­
zofrênicos, muitas vêzes, há uma consciência acerba de hosti­
lidade potencial do mundo que os rodeia, tão intensa que êles
se mostram inclinados a considerar como hostilidade potencial
até uma delicadeza recebida.
Nas neuroses, todavia, raramente há a percepção da exis­
tência da ansiedade básica, ou da hostilidade básica, ou pelo
menos do pêso e valor que ela tem para a vida total do indi­
víduo. Uma paciente minha que se viu em um s onho como
um ratinho que tinha de se abrigar num buraco para não
ser pisado ( e, dêsse modo, deu uma imagem absolutamente
veráadeira de como agia em sua vida ) não tinha a menor
idéia de que realmente todos as assustavnm e declarou-me que
não sabia o que era ansiedade. Uma desconfiança básica de
todos pode ser disfarçada por uma convicção superficial de
que as pessoas em geral são bastante agradáveis, e pode
coexistir com boas relações maquinais com os outros; um
desprêzo profundo por todos pode ser camuflado pela pres­
teza em admirar os demais.
Malgrado a ansiedade básica dizer respeito a pessoas,
poderá ser inteiramente destitu ída de seu caráter pessoal e
transformada em um sentimento de sentir-se ameaçado por
trovoadas, acontecim�tos políticos, germes, acidentes, alimen­
tos enlatados ou de estar condenado pelo destino. Não é
A Estrutura Básica das Neuroses 78

difícil, para o observador experimentado identificar a base


dessas atitudes, mas é sempre indispensável um intenso tra­
balho psicanalítico antes que a própria pessoa neurótica reco­
nheça que sua ansiedade nada tem a ver de fato com germes
e coisas semelhantes, mas sim com gente, ou que não é só
uma reação ade<Juada e justificada a alguma provocação r.eal,
mas que o individuo se tomou bàsicamente hostil aos demais,
não confiando nêles.
Antes de descrever as conseqüências que a ansiedade
básica encerra para as neuroses, cumpre-nos discutir uma
questão que provàvelmente está no espírlto de muitos leitores.
Não será a atitude de ansiedade e hostilidade básicas com
relação às pessoas, descrita como uma componente essencial
das neuroses, uma atitude "normal" que todos nós temos
secretamente, conquanto em menor grau P Ao examinarmos
esta questão, é mister distinguir dois pontos de vista.
Se usarmos o nome "normal" na acepção de uma atitude
humana generalizada, poderemos dizer que a ansiedade básica
tem, deveras, um corólário normal no que a linguagem filo­
sófica e religiosa alemã denominou de Angat der Kreatur. O
que essa frase exprime é que de fato to áos nós somos inde­
fesos ante fôrças mais poderosas que nós mesmos, como a
morte, enfermidade, velliice, catástrofes da natureza, aconte­
cimentos políticos e acidentes. A primeira vez que percebe­
mos isso é na debilidade da infância, mas essa noção perma­
nece conosco a vida inteira. Essa ansiedade da Kreatur tem
em comum com a ansiedade básica o elemento da desproteção
em face das grandes fôrças, mas não sugere hostilidade por
parte de tais fôrças.
Se usarmos o nome "normal", entretanto, na acepção de
normal para nossa cultura, pl)deremos dizer o seguinte : em
geral, a experiência levará uma pessoa em nossa cultura, desde
que não esteja demasiadamente resguardada, a tornar-se retraí­
da com as pessoas à medida que vai atingindo a maturi­
dade e a ficar mais cautelosa ao depositar confiança nos demais,
a familiarizar-se com o fato de que muitas vêzes os atos das
pessoas não são leais mas ditados pela covardia e pelo oportu­
nismo. Se ela fôr honesta, incluir-se-á nessa regra; se não, verá
isso mais claramente ainda nos outros. Resumindo, ela adquire
uma atitude que é decididamente afim da ansiedade básica. Há
certas diferenças, todavia : a pessoa amadurecida e sadia não
74 A Personalidade Neur6tica

se sente inerme ante · essas fraquezas humanas e não há nela


nada do indiscernimento encontrado na atitude neurótica bási­
ca. Ela retém a capacidade de dar a algumas pessoas bastante
cordialidade e confiança legítim as. Quiçá as diferenças devam
ser explicadas pelo fato de que a pessoa sadia viveu a maior
parte de suas experiências des agra dáveis em uma idade em
que a�nda pôde integrá-las, ao passo que a neurótica as teve
quando não pôde dominá-Ias e, em conseqüência de sua inca­
pacidade, reagiu de forma ansiosa a elas.
A ansiedade básica tem rep ercu ssõ es precisas na atitude
da pessoa para consigo m e sm a e para com os outros. Signi­
fica isolamento emocional, tanto m a is difícil de suportar por­
que coincide com um sentimento de debilidade intrínseca do
eu. Significa um abalo nas próprias fundações da confiança
própria. Leva em si o germe do um conflito potencial entre
o desejo de fiar-se nos outros e a im possib i lidade de fazê-lo
por causa da vívida des con fi a n çn e host il i dade sentidas com
relação a êles. Significa que, em virtuclo ela fraqueza intrínse­
ca, a pessoa tem vontad e de confinr tôcln re sponsabilidade aos
demais, de ser protegida e cuidada, no que é i mpedida de levar
avante pela hostilidade básica, E, i nva r i àvelmente, a conse­
qüência disso é que a p ess o a tem de dedicar a maior parte
de suas energias procurando reafirmar-se,
Quanto mais intolerável fôr n ansiedade, tanto mais exaus­
tivas têm de ser as medi d as de proteçõo, Há, em nossa cultura,
quatro meios principais pelos quais a pessoa procura prote­
ger-se contra a ansiedade bás�ca: afeição, submissão, poder e
retraimento.
1.0 ) A conquista de afeição de q ualquer forma pode ser­
vir como uma forte proteção contra n ansiedade. O lema é :
se você m e ama, não me magoará.
2.0 ) A submissão pode ser mais ou menos subdividida,
conforme se refira ou não a pessoas ou instituições definidas.
Há uma focalização definida, por ex em plo, na submissão a
opiniões padronizadas e tradiciona i s , aos ritos de determinada
religião ou às exigências de certa p essoa poderosa. Obedecer
a essas regras ou ceder a essas exigências será o motivo deter­
minante de tôda a conduta. Essa atitu de pode assumir a for­
ma de ter de ser "bom'', malgrado a significação de "bom"
variar com as ordens ou regras com que se anui,
A Estrutura Básica das Neuroses 75

Quando a atitude de anuência não se prende a nenhuma


instituição ou pessoa, reveste-se da forma mais generalizada
de condescendência com as possíveis vontades de tôdas as
pessoas e abstenção de qualquer coisa suscetível de induzir
ressentimento. Em tais casos, o indivíduo recalca todos os seus
desejos próprios, reprime as críticas aos outros, está disposto
a deixar-se maltratar sem se defender e pronto a auxifiar a
quem quer que seja. Uma vez ou outra as pessoas se aperce­
liem do fato de que sob suas ações existe oculta a ansiedade,
mas como regra não se dão absolutamente conta disso e crêem
firmemente que agem assim por causa de um ideal de altruís­
mo ou abnegação, que vai ao ponto de renunciar à própria
vontade. Em ambas as formas de submissão, a definida e a
generalizada, o lema é : se eu ceder, não serei magoado.
A atitude submissa também pode atender ao propósito de
readquirir a confiança própria através da afeição. Se a afei­
ção fôr tão importante para a pessoa que seu sentimento de
segurança na vida dela dependa, então de bom grado pagará
qualquer preço por ela, o que sobretudo quer dizer concor­
dar com os desejos dos outros. Freqüentemente, contudo, a pes­
soa sente-se incapaz de confiar em qualquer afeição e, então,
sua atitude condescendente não mais se volta para obter essa,
mas sim para conseguir proteção. Há pessoas que só podem
sentir-se seguras por meio de uma submissão total : nelas, a
ansiedade é tão grande e a descrença na afeição tão completa,
que não cogitam absolutamente da possibilidade de merece­
�em o afeto de alguém.
\
Uma terceira tentativa para proteger-se contra a ansieda­
de básica vem a ser por intermédio do poder - o esfôrço para
lograr segurança através da obtenção de p oder ou sucesso
concreto, da posse, da admiração ou da superioridade inte­
lectual. Nessa tentativa, o lema é : se eu tiver poder, ninguém
poderá magoar-me.
� O quarto meio de proteção é o retraimento. Os grupos
anteriores de artifícios defensivos têm, em comum, a dlsposi­
ção de fazer face ào mundo, de enfrentá-lo de uma forma ou
de outra. No entanto, também se pode encontrar proteção fu­
gindo do mundo. Isso não significa ir para um deserto ou bus­
car o isolamento completo : implica em conseguir ficar indepen­
dente dos outros, no que êstes afetam as necessidades inter­
nas ou externas da pessoa. A independência relativamente às
76 A Personalitlade Neurótica

necessidades externas pode ser alcançada, por exemplo, amon­


toando posses. Essa motivação para a posse é inteiramente
distinta da motivação que visa ao poder ou à influência, e é
f_g ualmente diferente o emprêgo que se dá às posses obtidas.
Quando as posses são reunidas com mira à independência,
geralmente é demasiada a ansiedade resultante para que se
possa desfrutá-las, e elas são guardadas com uma atitude de
parcimônia porquanto o objetivo é ficar a salvo de quaisquer
eventualidades. Outro meio que atende à mesma finalidade
de ficar-se externamente independente dos outros consiste em
restringirem-se suas necessidai:les a um mínimo possível.
A independência no que toca às necessidades internas p ode
ser encontrada, por exemplo, na tentativa de ficar emocional­
mente alheada das outras p essoas de modo que nada possa
magoar ou desapontar: consiste em sufocar suas necessidades
emocionais. Uma expressão dêsse alheamento é a atitude de
nada levar a sério, inclusive o próprio eu, atitude encontra­
diça amiúde entre intelectuais. Não se levar a sério não deve
ser confundido com o não se considerar importante : com efeito,
estas atitudes podem ser reciprocamente opostas. ' . .

:Esses artifícios de retraimento assemelham-se aos de sub­


missão ou condescendência, já que envolvem também uma
renúncia aos desejos da pessoas. Mas, ao passo que no segun­
do grupo a renúncia está a serviço da idéia de ser "bom"
ou de concordar com os desejos dos outros a fim de sentir-se
seguro, no primeiro grupo a idéia de ser "bom" não entra em
consideração e o objeto da renúncia é a independência com
relação aos outros. Aqui, o lema é : se eu me retrair, nada
poderá magoar-me.
Para que se possa avaliar o papel desempenhado nas neu­
roses por essas várias tentativas de proteger-se contra a ansie­
dade básica, é mister perceber sua intensidade potencial. Elas
não são impulsionadas apenas pela vontade de satisfazer a
um desejo de prazer ou felicidaae, mas por uma necessidade
de reafirmação. Não quer isso dizer, sem embargo, que elas
sejam de qualquer modo menos potentes ou menos imperati­
vas que os impulsos instintivos. A experiência demonstra que
o impacto da ambição, por exemplo, pode ser igual ou mesmo
mnior que o de um impulso sexual.
Qualquer um dêsses quatro artifícios, adotados exclusiva
ou predominantemente, poae proporcionar a reafirmação dese-
A Estrutura Básica das Neuroses 77

jada, se a situação de vida permite sua adoção sem suscitar


conflitos - embora êsse unilateralismo geralmente seja pago
por um empobrecimento da personalidaae total.. Por exem­
plo, uma mulher que viva submissa pode obter paz e uma
grande dose de satisfações secundárias em uma cultura que
exija da mulher submissão à família ou ao marido e confor­
midade com as tradições. Se é um monarca que se vê domi­
nado por um anelo irresistível de poder e posse, o resultado
pode novamente ser reafirmação e uma vida coroada de
sucesso. Na realidade, porém, a busca inexorável de um obje­
tivo muitas vêzes fracassará em seu intento, visto como as
exigências impostas são tão excessivas ou tão impensadas que
implicam em conflitos com o meio ambiente. O mais comum
é a busca de reafirmação promovida por uma grande ansie­
dade oculta, processar-se não somente num sentido único, mas
em sentidos diversos que, ademais, são incompatíveis entre si.
Assim, a pessoa neurótica pode ao mesmo tempo ser movida
imperativamente a dominar todos e querer ser amada por
todos, a condescender com os outros e a impor-lhes sua von­
tade, a alhear-se das pessoas e a anelar por sua estima. São
êsses conflitos absolutamente insolúveis que o mais das vêzes
constituem o centro dinâmico das neuroses.
As duas tentativas que mais comumente colidem são ... o
anelo de afeição e a ambição de poder. Por isso, examiná­
las-ei com maior minúcia nos capítulos seguintes.
A estrutura das neuroses por mim exposta não contradiz,
em princípio, a teoria de Freud segundo a qual elas são
sobretudo o resultado de um conflito entre impulsos instin­
tivos e imposições sociais, ou sua representação no "super-ego".
Mas, conquanto eu concorde em que o conflito entre os im­
pulsos individuais e a pressão social seja um requisito indis­
pensável de tôda neurose, não creio que êle seja uma con­
aição suficiente. o choque entre os desejos individuais e as
exigências sociais não acarreta forçosamente neuroses, porém
pode simplesmente levar a restrições concretas na vida, isto
e, à supressão ou repressão de desejos ou, em têrmos mais
gerais, a um sofrimento concreto. A neurose só é produzida
se êsse conflito gera ansiedade e se as tentativas para afastar
esta conduzem, por sua vez, a tendências defensivas que, mal­
grado igualmente imperativas, sejam todavia incompatíveis.
,
CAPITULO V I

A Necessidade Neurótica de Afeição

N Ão PODE HAVER DÚVIDA que, em nossa cultura, êsses quatro


modos da pessoa proteger-se contra a ansiedade, podem exer­
cer um papel decisivo na vida de muitas pessoas. Há aquelas
cujo maior desejo é serem amadas ou apreciadas, e que, para
satisfazê-lo, fazem qualqu� coisa; aquelas cuja conduta é
caracterizada por uma tendência para se conformarem, para
cederem e para nada fazerem no sentido de se afirmarem;
aquelas cuja ambição única é o sucesso, o poder ou a posse,
e cuja tendência é para se apartarem das pessoas e conseguir
independência. Pode-se discutir, contudo se estarei certa ao
declarar que êsses anelos representam uma proteção contra de­
terminada ansiedade básica. Não serão êles uma expressão de
impulsos próprios da órbita normal de determinadas possibi­
lidades humanas ? O engano nessa forma de raciocinar reside
em formular a questão sob a forma alternativa. Na realidade,
os dois pontos de vista não são contraditórios nem tampouco
mutuamente exclusivos. o desejo de amor, a tendência a con­
formar-se, a ambição de influência ou sucesso e a tendência
para o retraimento acham-se presentes em todos nós, em várias
combinações, sem de longe indicarem uma neurose.
Outrossim, uma ou outra dessas tendências pode ser uma
atitude predominante em certas culturas, fato que aventaria,
uma vez mais, a possibilidade de elas serem potencialidades
normais da espécie humana. Atitudes de afeição, de cuidados
maternais e de condescendência ante os desejos dos outros
são predominantes na cultura Arapesh, conforme foi descrito
por Margaret Mead; a luta pelo prestígio, de uma forma assaz
brutal, é um padrão de conduta consagrado entre os Kwakiutl,
consoante Ruth Benedict assinalou; a tendência para alhear-se
do mundo é um traço dominante da religião budista.
80 A Personalidade Neurótica

Minha concepção não tem como fito negar o caráter nor­


mal de tais impulsos, mas, antes, sustentar que todos êles
podem servir para proporcionar à pessoa confiança em si pró­
pria contra uma ansiedade qualquer. Além disso, ao adqui­
rirem essa função protetora, os impulsos se modificam quali­
tativamente, tornando-se algo inteiramente diferente. � mais
fácil explicar essa diferença recorrendo a uma analogia. Po­
demos trepar em uma árvore porque queremos verificar n o sso
vigor e habilidade e ver o panorama lá de cima, ou pode­
mos fazê-lo porque estamos sendo acossados por um animal
feroz. Em ambos os casos, subimos na árvore; os motivos
para subir, porém, são diferentes. No primeiro, fazemo-lo por
uma questão de prazer, ao passo �ue no outro somos levados
a isso pelo mêdo e temos que faze-lo devido a uma necessi­
dade de segurança. No primeiro caso, somos livres para subir
ou não; no segundo, somos a isso compelidos por uma neces­
sidade premente. No primeiro caso, pademos escolher a árvo­
re mais apropriada ao nosso objetivo; no outro, não temos outro
recurso senão utilizar a primeira árvore ao nosso alcance, e
nem mesmo terá de ser forçosamente uma árvore : pode ser
um mastro ou uma casa, desde que atenda à finalidade de
proteção.
A diferença das fôrças motivadoras também ocasiona uma
diferença de sentimento e condu�. Se formos impelidos por
um desejo direto de satisfação de qualquer gênero, nossa ati­
tude terá uma característica de espontaneidade e discernimen­
to. Se formos movidos pela: ansiedade, no entanto, nossos s en­
timentos e ações serão cumpulsivos e confusos. Sem dúvida,
há situações intermediárias. Em impulsos instintivos, como o
da fome e o sexual, que são determinados em grande parte
por tensões. físicas decorrentes de privação, a tensão física pode
ter chegado a um ponto que se procura a satisfação com um
grau de compulsão e indiscriminação tal que, em outras con­
dições, caracteriza os impulsos determinados por estados
ansiosos.
O que é mais, há uma diferença na satisfação obtida, a
diferença entre prazer e reafirmação ( 1 ) A distinção, todavia,

é menos acentuada do que parece à primeira vista. A satisfa-

( l ) H. S. SULLIVAN em A Note on t'htJ lmplication of Psyc'hfafry, t'hfJ Study


of Inlorparsonal R1Jlations, fOf' lnofJStil:ation m t'hfJ Social Scümcu in "Amerlcan
Jm1rnnl of Soclology', vol. 43 ( 1937 ) mostrou que oa esforços em busca de
11lllfa11llo u seguranga patenteiam um princípio b.Wco regulador da vida.
A Necessidade Neur6tica da Afeição 81

çllo de impulsos instintivos, como · o da fome e o sexual, con­


siste em prazer; mas, se a tensão física tiver sido acumulada,
a satisfação alcançada é muito semelhante à resultante do alí­
vio da ansiedade. Em ambos os casos, há a libertação de uma
tensão insuportável. Quanto à intensidade, o prazer e a rea­
firmação podem ser igualmente fortes. Uma satisfação sexual,
malgrado diferente em espécie, pode ser tão forte quanto os
sentimentos duma pessoa que se veja subitamente livre de
uma angústia intensa; e, falando dum modo geral, os esforços
para reafirmar-se não só podem ser tão veementes quanto os
impulsos instintivos, como também podem · proporcionar uma
satisfação igualmente pronunciada.
Os esforços para obter afirmação própria, examinados no
capítulo precedente, também contêm outras fontes secundárias
de satisfação. Por exemplo, o sentimento de ser amado ou apre­
ciado, de ter sucesso ou influência, pode ser altamente satis­
fatório, independente do que se conseguir em matéria de se­
gurança. Ademais, conforme veremos oportunamente, os vários
processos de afirmação prÓJ>ria permitem uma considerável
descarga da hostilidade recalcada e, assim, contribuem com
um outro modo de aliviar a tensão.
Vimos que a ansiedade pode ser a fôrça motriz de cer­
tos impulsos e fizemos um reconhecimento dos impulsos mais
importantes assim gerados. Passarei agora a um estudo mais
pormenorizado dos dois impulsos que de fato exercem a fun­
ção capital nas neuroses : o anelo de afeição e o de poder e
contrôle.
A fome de afeição é tão freqüente nas neuroses, e tão
fàcilmente identificável pelo observador treinado, que pode
ser considerada como um dos indicadores mais seguros da
existência de ansiedade e de sua intensidade aproximaaa. Com
efeito, se a pessoa se sente intrl.nsecamente indefesa ante um
mundo sempre ameaçador e hostil, enmo lhe parecerá que
o meio mais lógico e direto de alcançar uma forma qualquer
de benevolência, ajuda ou estima será procurar afeição.
Se as condições psicológicas do indivíduo neurótico fôssem
o que comumente lhe parecem a si próprio, deveria ser-lhe
fácil conquistar afeição. Tentando expressar por palavras o
que êle muitas vêzes sente apenas vagamente, poderemos dizer
que suas impressões são as seguintes : é tão pouco o que êle
quer . . . só queria que as pessoas fôssem amáveis com êle;
82 A Personalidade Neurótica

que lhe dessem conselhos; que compreendessem que êle é uma


pobre alma solitária e inofensiva, ansiosa por agradar e ansiosa
por não ferir os sentimentos alheios. Eis tudo o que êle vê
ou sente. :E:le não percebe o quanto é sensível, não percebe
o caráter de suas próprias relações, nem tampouco está em
condições de julgar a impressão que causa em outros ou as
reações dêstes com relação à sua pessoa. Conseqüentemente,
não logra compreender por que suas amizades, casamentos,
relações amorosas ou profissionais süo tão amiúde insatisfa­
tórias. :E:le é levado a concluir que os outros é que estão erra­
dos, que são desatenciosos, deslcnis, mulvudos, ou que, por
uma razão insondável, êle carece do dom de ser popular.
Destarte, prossegue perseguindo o uspcctro do amor.
Se o leitor recordar nossa discussão cm tôr n o de como a
ansiedade é produzida por uma hostiliclndo recalcad a e como,
a seu turno, produz hostilidade ou, por outras palavras, como
a ansiedade e a hostilidade se acham i noxtricàvelmente entre­
meadas, poderá reconhecer o autod es pi s tu m o n t o do raci ocínio
do neurótico e as razões para seus frucnssos . Sem o saber, o
neurótico se vê ante o dilema de ser incupnz de amar e, no
entanto, ter uma grande necessidade do mn01· dos outros. Tro­
peçamos aqui em uma das perguntas que parecem tão simples
e que, entretanto, são de resposta tão d ifícil : o que é amor,
ou que significação tem em nossa cultnm ? Pode-se, às vêzes,
ouvir uma definição resumida de amor como sendo a capa­
cidade de dar e receber afeição. Conquunto haja nisso uma
certa dose de verdade, ela é por demuis geral para ajudar a
esclarecer as dificuldades em que cstumos interessados. A
maioria de nós pode ser ocasionalmente ufotuosa, mas esta é
uma qualidade compatível com uma uhsoluta incapacidade de
amar. A consideração relevante é 11 ntitude que se irradia da
afeição : é ela a expressão de uma atitude fundamental posi­
pva em relação aos demais, ou é, por exemplo, oriunda do
temor de perder-se a outrem ou do desejo de manter-se êsse
outrem sob seu domínio ? Por outras palavras, isso quer dizer
que não é lícito adotar como critérios de julgamento quais­
quer atitudes manifestas.
Embora seja muito difícil dizer o que é amor, podemos
seguramente dizer o que não é amor ou quais os elementos a
êle estranhos. Pode-se gostar muito de uma pessoa e, mesmo
assim, ficar às vêzes zangado com ela, recusar alguns de seus
A Necessidade Neurótica da Afeição 88

desejos ou querer ficar a sós. Há uma diferença, porém,


un trc tais reações limitadas de ira ou afastamento e a atitude
do neurótico que está constantemente em guarda contra os
ou tros, achando que qualquer interêsse que êstes tomem por
um terceiro revela pouco caso para com êle, e interpretando
qualquer solicitação como uma imposição ou qualquer crítica
como uma humilhação. Isso não é amor. Assim também, não .é
incompatível com o amor apresentar uma crítica construtiva
de certas qualidades ou atitudes, visando, se possível, a auxiliar
a corrigí-las; mas não é amor impor, como o neurótico muitas
vêzes faz, uma exigência intolerante de perfeição, u�a exi­
gência que implica um hostil "desgraçado de ti se não fôres
perfeito l".
Reputamos igualmente como incompatível com nossa idéia
de amor uma pessoa aproveitar-se de outra como um meio
para atingir determinado fim, ou seja, exclusiva ou principal­
mente porque ela preenche certas necessidades suas . 1: êsse
exatamente o caso quando a outra pessoa só é desejada :r ara
satisfação sexual ou, pelo casamento, só para dar prestigio.
Mas aí, também, a questão pode ser fàcilmente confundida,
sobretudo se as necessidades em fc;>co forem de natureza psí­
quica. Uma pessoa pode iludir-se a si própria de que ama
outra ainda que, por exemplo, esta só lhe seja necessária pel�
admiração cega que lhe devota. Em tais casos, contudo, é
provável que se abandone de repente a outra pessoa ou mes­
mo que se volte contra ela, logo que a mesma começar a fazer
críticas, fracassando d�starte na função de admiradora pela
qual era amada.
Ao discutir os contrastes entre o que é e o que não é
amor, entretanto, devemos acautelar-nos para não pecarmos
por falta. Apesar do amor ser incompatível como a utilização
da pessoa amada para obter-se qualquer gratificação, isso não
quer dizer que o amor deva ser inteira e exclusivamente carac-\
terizado pefo altruísmo e pela renúncia. . �em tampouco que
apenas mereça o nome de amor o sentimento que nada peça
para . si. As pessoas que manifestam tais convicções deixam
antes transparecer sua própria falta de vontade para dedicar
afeto do que uma convicção perfeitamente estabelecida. 1:
claro que queremos algo da pessoa de quem gostamos - que­
remos satisfação, lealdade, auxílio; podemos querer até sacri­
fício, quando necessário. E geralmente é um indício de s aúde
84 A Personalidade Neurótica

mental ser-se capaz de exprimir tais desejos ou mesmo de


lutar por sua consecução. A diferença entre o amor e a neces­
sidade neurótica de afeição reside no fato de que, no amor,
o sentimento de afeição é primordial, ao passo que no caso do
neurótico, o sentimento primário é a necessidade de alcançar
confiança em si mesmo, sendo meramente secundário o seu
pseudo-amor. J;: evidente que há uma grande gradação inter­
mediária.
Se uma pessoa necessita da afeição de outia só para rea­
firmar-se contra a ansiedade, a questão comumente ficará de
todo toldada em sua mente consciente, porquanto em regra
ela não sabe que está dominada pela ansiedade e que por
conseguinte luta desesperadamente para conseguir qualquer
espécie de afeto só com o fito de reafirmar-se. Tudo o que
ela sente é que há uma pessoa de quem ela gosta ou não,
ou de quem se sente enamorada. �as o que ela percebe como
amor espontâneo pode não ser mais que uma reação de gra­
tidão a alguma gentileza ou uma reação de esperança ou afe­
to despertada por uma pessoa ou situação. A pessoa que
explícita ou implicitamente nela desperta expectativas dessa
ordem será automàticamente investida de importância, e êsse
sentimento manifestar-se-á sob a ilusão de amor. Tais expec­
tativas podem ser provocadas pelo simples fato dela ser tra­
tada com bondade por uma pessoa poder os a ou importante,
ou por alguém que simplesmente dá a impressão de possuir
mais confiança própria. Podem ser suscitadas por tentativas
eróticas ou sexuais, embora estas possam nada ter a ver co m
o amor. Podem ser alimentadas por meio de vínculos quais­
quer existentes que implicitamente encerrem uma promessa
de ajuda ou apoio emocional : família, amigos, médico. Muitas
dessas relações são sustentadas sob o dislarce de amor, isto
é, sob uma convicção subjetiva de ligação, quando deveras
o amor é apenas o apêgo da pessoa a outra para lhe satis­
fazerem as suas necessidades próprias. A prova de que não
se pode confiar nisso como sinal de afeição legítima está na
pronta reviravolta que surge qu ando não são atendidos quais­
quer desejos. Um dos fat6res essenciais à nossa idéia de amor
- sentimento firme e digno de confiança - está ausente nesses
casos .
Uma última das características da incapacidade de amar já
ficou subentendida, mas desejo realçá-la em particular: menos-
A Necessidade Neurótica da Afeição 85

prêzo da personalidade, peculiaridades, limitações, necessida­


aes, desejos e desenvolvimento do parceiro. l!:sse menosprêzo
resulta, em parte, da ansiedade que impede o neurótico a ape­
gar-se a outras pessoas. Uma pessoa que se esteja afogando e
que se agarre a um nadador, normalmente não pensa na von­
tade ou capacidade do outro para salvá-la. l!:sse pouco caso,
por outro lado, é também uma expressão da hostilidade básica
para com as pessoas, cujos componentes mais comuns são o des­
aém e a inveja. Ela pode estar encoberta por esforços deses­
perados para mostrar-se atenciosa ou mesmo desprendida, mas
usualmente tais esforços não conseguem impedir o apareci­
mento de certas reações estranhas. Uma espôsa pode estar
subjetivamente convencida, por exemplo, de seu profundo de­
votamento ao marido, e no entanto mostrar-se ressentida, quei­
xosa ou deprimida quando êste dedica tempo ao trabalh.o, a
seus interêsses ou a seus amigos. Uma mãe superprotetora
pode estar convencida de que tudo faz em prol da felicidade
de seu filho e, sem embargo, mostrar uma desconsideração
fundamental pelas necessidades de desenvolvimento de com­
portamentos de independência no filho .

A pessoa neurótica cujo artifício protetivo é um açoda­


mento por afeição, dificilmente percebe sua incapacidade de
amar. A maioria das pessoas dêsse tipo confundirá a próprià
necessidade que sentem dos outros com uma inclinação para
o amor, quer por indivíduos quer pela humanidade em geral.
Há um motivo premente para conservar e defender essa ilusão :
renunciar a ela significa pôr à mostra o dilema de simul­
tâneamente sentir-se bàsicamente hostil às pessoas e, não obs­
tante, desejar sua afeição. Não se pode desprezar uma pes­
soa, desconfiar dela, querer destruir sua felicidade ou inde­
pendência, e, ao mesmo tempo, almejar seu afeto, ajuda e
apoio. Ao tentar conseguir ambos os objetivos, na realidade
incompatíveis, a pessoa tem de manter a propensão hostil
rigorosamente à margem da consciência. A ilusão de amor, por
outras palavras, conquanto seja o resultado de uma com­
preensível confusão entre estima autêntica e necess i dade tem
,

a função definida de tomar possível a busca de afeição .

Há, ainda, uma outra dificuldade fundamental que o neu­


rótico encontra ao procurar satisfazer sua fome de afeição.
Embora possa ter êxito, pelo menos temporàriamente, em obter
a afeição que deseja, na realidade é incapaz de açeitá-la.
86 A Personalidade Neurótica

Seria de esperar-se que êle recebesse de braços abertos qual­


quer afeição que lhe fôsse oferecida, tão àvidamente quanto
uma pessoa seaenta bebe água. Com efeito, tal sucede, porém
só transitoriamente. Todo médico conhece o efeito da bon­
dade e da consideração : tôdas as perturbações físicas e psí­
quicas podem desvanecer-se repentinamente, malgrado nada
se faça senão dispensar ao paciente cuidados hospitalares e
examiná-lo cuidadosamente. Uma neurose de situação, mesmo
grave, pode desaparecer totalmente quando a pessoa se sente
amada: Elizabeth Barret Browning é um exemplo famoso
dêsse tipo. Ainda em neuroses de caráter, essa atenção - quer
sob a forma de amor, interêsse ou cuidados médicos - pode
ser suficiente para liberar a ansiedade e, assim, melhorar a
condição.
Qualquer espécie de afeto pode dar-lhe uma reafirmação
superficiaf ou mesmo uma sensação de felicidade, mas lá no
íntimo o indivíduo se defronta com a descrença ou sente exci­
tados suas desconfiança e mêdo. :Ele não acredita no afeto
porque está firmemente convencido de que ninguém pode
amá-lo. E êsse sentimento de não se considerar suscetível de
ser amado é, amiúde, uma convicção consciente, que não pode
ser abalada por nenhuma experiência concreta em contrário.
Isso pode, deveras, ser aceito tão naturalmente que nunca
incomode conscientemente a pessoa, mas mesmo quando não
se revela é uma convicção irremovível quanto se fôsse per­
manentemente consciente. Pode igualmente estar disfarçado
sob uma atitude de "não ligo�', comumente ditada pelo orgu­
lho, e então é provável que se mostre de erradicação difícil.
A convicção de não se poder ser amado é bastante afim da
incapacidade de amar; é, com efeito, um reflexo consciente
dessa incapacidade. Uma pessoa que possa gostar sincera­
mente de outras não terá duvidas quanto ao fato de outras
poderem gostar dela.
Se a ansiedade fôr realmente profunda, qualg_uer afeto
demonstrado será recebido com desconfiança, e imediatamente,
tomado como portador de segundas intenções. Em psicanálise,
por exemplo, os pacientes dêssc tipo acham que o analista
quer ajudá-los apenas por causa de sua ambição pessoal ou
que lança mão de comentários elogiosos ou encorajadores so­
mente por motivos terapêuticos. Uma paciente minha consi­
derou liumilhação patente o fato de eu ter-me oferecido para
A Necessidade Neur6tica da Afeição 87
.,,

ir vê-la durante o fim-de-semana, numa ocasião em que ela


se achava emocionalmente transtornada. A afeição revelada
ostensivamente é fàcilmente encarada como escárnio. Se uma
jovem atraente revela francamente afeição por um homem
neurótico, êste pode considerar aquilo como uma caçoada ou
até como uma provocação deliberada, já que não pode con­
ceber que uma garôta assim possa realmente gostar dêle.
A afeição oferecida a uma pessoa nessas condições não só
pode ser · recebida com desconfiança, como pode também des­
pertar franca ansiedade. ];: como se ceder ante uma afeição
fôsse o mesmo que se ver apanhado em uma teia de aranha,
ou como se acreditar em uma afeição significasse deixar-se
apanhar desprevenido em meio a canibais. O neurótico pode
sentir-se aterrorizado ao chegar à conclusão de que lhe está
sendo oferecida uma estima genuína.
Finalmente, as provas de afeto podem fazer manifestar
o mêdo de dependênci�. A dependência emocional, consoante
veremos ligeiramente, é um perigo real para quem quer que
não possa viver sem o afeto de outrem, e qualquer coisa que
vagamente sugira isso pode provocar uma oposição desespe­
rada. Uma pessoa assim procura evitar a todo custo qual­
quer espécie de resposta emocional positiva de sua parte, já
que uma tal resposta imediatamente invoca o perigo da de­
pendência. Para poder evitar isso, ela precisa vendar seus
próprios olhos de modo a não perceber que os outros são
gentis ou prestativos, dando um jeito para descartar-se de
qualquer prova de afeição, reforçando insistentemente seus
próprios sentimentos de que os outros são indelicados, indi­
ferentes ou mesmo malvados. A situação assim criada é seme­
lhante à de uma pessoa que esteja morrendo de fome e no
entanto não se atreva a tocar na comida com receio de estar
envenenada.
Em suma, pois, para uma pessoa impelida por sua ansie­
dade básica e que, conseqüentemente, procure afeto para pro­
teger-se, as probabilidades de obter êsse tão desejado afeto
são bem precárias. A própria situação que cria a necessidade
interfere com sua satisfação.
CAPÍTULO VI I

Outras Características da Necessidade


Neurótica de Afeição

A MAIORIA DAS PESSOAS deseja ser estimada, desfrutando satis­


feita o sentimento de ser querida e ressentindo-se quando não
o é. Para a criança, segunao dissemos, a sensação de ser ama­
da é de importância vital para seu desenvolvimento harmo­
nioso. Quais são, porém, as características específicas de uma
necessidade de afeição que possa ser considerada como
neurótica ?
Creio que ao chamar arbitràriamente de infantil a essa
necessidade, não só caluniamos as crianças como também
esquecemos que os fatôres essencia� que constituem a necess�­
dade neurótica de afeição nada têm a ver com o infantilismo.
& duas necessidades, a neurótica e a infantil, só têm em
comum um único eleroento - sua importância - conquanto
esta tenha uma base diferente nos dois casos. À parte disso,
a necessidade neurótica desenvolve-se de acôrdo com condi­
ções prévias assaz diversas, e que são, reiterando : ansiedade,
não se achar digno de ser amado, incapacidade para acredi­
tar em qualquer afeição, e hostilidade contra tôdas as demais
pessoas.
A primeira característica, pois, que nos chama a atenção
na necessidade neurótica de afeição, é a sua natureza com­
pulsiva. Sempre que uma pessoa fôr impelida por uma ansie­
dade pronunciada, o resultado obrigatório será uma perda de
espontaneidade e flexibilidade. Simplificando, isso quer dizer
que para o neurótico a conquista de uma afeição não constitui
um Iuxo, nem uma fonte complementar de vigor ou prazer,
mas antes uma necessidade vital. A diferença vem a ser equi­
valente à que há entre "quero ser e gosto de ser estimaao"
90 A Personalidade Neurótica

e "tenho de ser estimado a qualquer custo", ou então à que


existe entre alguém que come porque tem bom apetite, po­
dendo apreciar os alimentos e escollier os que prefere, e uma
outra pessoa que está quase morrendo de fome e que tem
de comer qualquer coisa, sem olhar preço ou qualidade.
Essa atitude conduz forçosamente a uma supervalorização
da verdadeira significação do fato de se ser estimado. Não
é, deveras, tão terrivelmente impo1tante que as pessoas, de
um modo geral, gostem de nós; com efeito, pode ser impor­
tante apenas que certas pessoas nos apreciem - aquelas de
quem nós mesmos gostamos, aquelas com quem convivemos
ou trabalhamos juntos, ou aquelas a quem nos convenha cau­
sar boa impressão. Fora disso, pouco interessa sermos esti­
mados ( 1 ) . As pessoas neuróticas, todavia, sentem-se e com­
portam-se como se sua existência, felicidade e segurança
aependessem de serem estimadas.
Seus desejos podem ligar-se indiscriminadamente a qual­
quer pessoa, desde o cabeleireiro ou o estranho com quem trava
relações em uma festa até colegas e amigos, ou todos os
homens ou mulheres em geral. Assim, um cumprimento, um
telefonema ou um convite, conforme seja mais ou menos amis­
toso, pode modificar seu estado de espírito e todo o seu modo
de encarar a vida. M en cio narei um problema a êste propó­
sito : a incapacidade de ficar soz inho, qne varia desde a sim­
ples inquietação e desassossêgo aló um clcfinido terror pela
solidão. Não falo de pessoas que são, afinal de contas, real­
mente obtusas e que por isso ficam fàcilmente caceteadas
quando a sós, porém de pessoas inteligentes e atiladas e que
poderiam, doutra forma, desfrutnr de 11ma série de ativiaa­
des por si sós. Podem existir outros fatôrcs nessa necessidade
de companhia, mas o quadro gemi é ele uma ansiedade vaga,
de uma necessidade de afeto ou, para ser mais exato, de uma
necessidade de contato liumano. As pessoas assim, têm a im­
pressão de estar navegando à deriva e abandonadas no uni­
verso, e qualquer contato humano constitui para elas um alívio.
Pode-se observar, às vêzes, como em uma experiência, como
a incapacidade para ficar sozinho acompanha paralelamente
o incremento da ansiedade. Alguns pacientes conseguem ficar
( 1 ) Uma afirmação assim, quiçn nl\o Hl'jn bem aceita nos Estados Unidos,
onde entra em ação um fator cullurnl; o fnlo de uma pessoa ser popular con­
verteu-se nesse país em uma das metns de competição, alcançando, assím, um
signíficado que não possui em outros p11fscs.
pa Necessidade da Afeição 91

a sós enquanto se sentem abrigados por detrás das muralhas


defensivas com que se cercaram; logo, porém, que seus meios
de defesa são atacados afetivamente pefa análise, surgindo daí
uma certa ansiedade, sentem-se de repente incapazes de per­
manecer isolados por mais tempo. :Esse é um dos estágios
de transição em que a piora do paciente é inevitável, no
decurso da análise.
A necessidade neurótica de afeição pode focalizar-se em
uma única pessoa - marido, espôsa, médico, amigo. Se fôr
êsse o caso, o devotamento, interêsse, amistosidade e presença
da outra pessoa adquil'irão importância inusitada. Tal impor­
tância reveste-se de um caráter paradoxal, contudo. Por um
lado, o neurótico almeja o interêsse e a presença do outro,
teme não ser estimado e sente-se desprezado se o outro não
está perto; por outro lado, nunca está absolutamente feliz
quando se acha com seu ídolo. Se por acaso se aperceber
dessa contradição, geralmente ficará perplexo. Entretanto,
baseando-nos no que dissemos até aqui, é evidente que o dese­
jo da presença do outro não é a expressão de .um amor
genuíno, mas tão só de uma necessidade de reafirmação asse­
gurada pelo fato de poder dispor do outro. ( :€ claro que um
amor genuíno pode ser acompanhado da necessidade de um
afeto tranqüilizador, mas êles não coincidem necessàriamente ) .
A sêde de afeição pode restringir-se a certos grupos de
pessoas, quiçá aquêles que revelam interêsses em comum, como
grupo político ou religioso, ou limitar-se a um dos sexos. Se
a necessidade da renoyação da confiança própria se limita ao
sexo oposto, o estado pode parecer superficialmente "normal",
e a pessoa interessada usualmente o defenderá como tal. Há
mulheres, por exemplo, que se sentem desgraçadas e ansiosas
se não tiverem um homem "à mão"; iniciarão um "caso", para
terminá-lo em pouco tempo, sentir-se-ão de nôvo infelizes e
ansiosas, iniciarão outra aventura e assim sucessivamente. A
prova de que nisso não há uma aspiração legítima a um bom
relacionamento com homens está no fato das relações serem
conflitivas e insatisfatórias. Pelo contrário, 'essas mulheres
aceitam qualquer homem sem maior cuidado; querem apenas
ter um homem junto de si e não gostam de nenhum dêles. E,
via de regra, elas nem mesmo sentem satisfação física em
tais relações. Na verdade, é claro, a situação é bem mais
92 A Personalidade Neurótica

complexa: estou ressaltando aqui, apenas o aspecto que se


relaciona com a ansiedade e a necessidade de afeição ( 2 ) .
Pode-se observar um quadro semelhante em homens : êles
se sentirão compelidos a ser estimados por qualquer mulher
e não se sentirão à vontade na companhia de outros homens.
Se a necessidade de afeto estiver concentrada no mesmo
sexo, isso poderá ser um dos fab�res determinantes da homos­
sexualidade manifesta ou latente. A necessidade de afeto pode
voltar-se para o mesmo sexo se o acesso ao outro estiver obs­
truído por uma ansiedade excessiva. Não é preciso dizer que
essa ansiedade não precisa ser clara, podendo estar disfarçada
sob uma impressão de repugnância ou desinterêsse com relação
ao sexo oposto.
Já que obter afeto é de importância vital, daí se segue
que o neurótico pagará qualquer preço para obtê-lo, na maior
parte dos casos sem perceber que o está fazendo. Os modos
mais comuns de pagar êsse preço são uma atitude de con­
descendência e uma dependência emocional. A atitude con­
descendente pode revestir-se da forma de não ousar discordar
ou criticar a outra pessoa, de nada demonstrar senão devota­
mento, admiração e docilidade. Se pessoas dêste tipo se permi­
tem fazer observações críticas ou desairosas, elas se sentem an­
gustiadas ainda quando tais observações sejam inócuas. A atitu­
de condescendente pode ir até o ponto do neurótico suJ?rimir
não só os impulsos agressivos mas também tôdas as tendencias
de defesa dos próprios direitos, deixando-se maltratar e fazendo
qualquer sacrifício, por mais lesivo que seja. Sua abnegação
pode aparecer, por exemplo, com o desejo de ficar diaoético
porque a pessoa cujo afeto é desejado está interessada em pes­
quisas sôlire diabete, subentendendo-se que o fato de ter essa
doença conseguisse talvez atrair o interêsse do pesquisador.
Intimamente ligada à atitude de condescendência, a:Rarece
a dependência emocional que se origina da necessidade do
neurótico apegar-se a alguém que encerra uma promessa de
proteção. Essa dependência não só pode causar sofrimentos
infindáveis, como igualmente pode ser de todo destruidora.
Há relações, por exemplo, em que uma pessoa fica irreme­
diàvelmente dependente de outra, malgrado se dê perfeita­
mente conta de que tal relação é insustentável. Ela sente o

( 2 ) KARBN HORNBY, The Otlercaluaffon of Looe, a. Study of a. Common


l'r11u11t-'IJUfl F11m•mne TIJ1'•, iD P1fChoana.1,UC Qua.rt"111, vol. 3 ( 1934 ) , pp . 605-638.
Da Necessidade da Afeição 98

mundo prestes a cair em pedaços caso não consiga uma J?ala­


vra amável ou um sorriso; pode ter um acesso de angustia
tôda vez que aguarda um telefonema e sentir-se absoluta­
mente desolada se a outra pessoa não pode vê-la. Mas, não
consegue afastar-se dêsse mqdo de ser.
Usualmente, a estrutura de uma dependência emocional
é mais complicada. Eil} relações pessoais em que um indi­
víduo se torna dependente de outro, existe invariàvelmente
uma grande dose de ressentimento. A pessoa dependente
ressente o fato de estar escravizada; ressente o fato de ter de
condescender, mas continua :i fazê-lo por mêdo de perder
a outra. Não sabendo que é a sua própria ansiedade a res­
ponsável pela situação, fàcilmente ela imaginará que seu jugo
resultou do fato de a outra lho ter impôsto. O ressentimento
assim criado tem de ser reprimido, porque a afeição do outro
é dolorosamente necessária, e essa repressão, a seu turno, gera
nova ansiedade, com uma necessidade subseqüente de renova­
ção da confiança e, portanto, um impulso revigorado para se
aferrar à outra pessoa. Assim, em certos neuróticos a depen­
dência emocional cria um mêdo muito real, e até mesmo jus­
tificado, de que sua vida está sendo arruinada. Quando o
mêdo é muito grande, êles podem procurar proteção contra
essa dependência não se ligando a quem quer que seja. -.
Às vêzes, modifica-se a atitude da pessoa face à depen­
dência. Após ter passado por uma ou várias experiências
penosas dêsse gênero, ela poderá debater-se cegamente . contra
qualquer coisa que mesmo de longe sugira dependência. Por
exemplo, uma môça que havia tido uma série de casos amo­
rosos, todos êles levando-a a uma desesperada dependência
do homem em questão, criou uma atitude de isolamento em
relação aos homens em geral, desejando apenas submetê-los
ao seu poder sem que seus sentimentos se vissem envolvidos.
tsses processos também se evidenciam na atitude do
paciente durante a análise. l!: de seu próprio interêsse apro­
veitar a hora de tratamento para aumentar sua compreensão,
mas muitas vêzes êle se esquece de seu próprio interêsse e
procura agradar o analista e obter seu interêsse ou aprova­
ção. Apesar de existirem talvez razões suficientes para o cliente
querer progredir ràpidamente - p orque sofre, ou porque faz
sacrifícios para pagar a análise, ou porque só dispõe de tem­
po limitado para a mesma - ·êsses fatôres às vêzes parecem tor-
94 . A Personalidade Neurótica

nar-se totalmente irrelevantes. O paciente gastará horas con­


tando histórias compridas só para obter uma resposta favo­
rável do analista, ou tentará tornar cada sessão interessante
para o analista, mostrando-se divertido e demonstrando sua
admiração por êle. Isso pode chegar ao ponto das associações
e até os sonhos do paciente serem determinados por desejo
de interessar o analista. Ou então, pode apaixonar-se pelo
analista, julgando que nada mais lhe interessa senão o amor
dêste, buscando, então, impressioná-lo com a sinceridade de
seu sentimento. Aqui também aparece claramente o fator da
indiscriminação, a menos que se presuma que todo analista
seja um paradigma de valores ou que seja perfeitamente ade­
quado às expectativas de cada paciente. Naturalmente, é pos­
sível que o analista seja uma pessoa a quem o paciente amaria
em quaisquer condições, mas mesmo isso não explicaria o grau
de importância emocional que o analista adquire para o
paciente.
É a êste fenômeno que as l' essoas geralmente se refer�
quando falam em "transferência' . Sem embargo, o nome não
está muito certo, pois que a transferência deveria dizer res­
peito à soma de tôdas as reações irracionais do paciente rela­
tivamente ao analista, e não apenas à dependência emocional.
O problema, aqui, não consiste tanto em saber porque essa
dependência sobrevém durante a análise - pois que as pessoas
que necessitam de uma proteção dêsse tipo apegar-se-ão a qual­
quer médico, assistente social, amigo ou membro da família
- como em descobrir porque � particularmente forte e por­
que ocorre com tamanha frcqMncia. A resposta é relativa­
mente simples : o trabalho de análise implica, entre outras
coisas, atacar as defesas construídas para fazer face à ansie­
dade, e, por conseguinte, protetoras. lt essa exacerbação da
ansiedade que faz o paciente agarrar-se de uma forma qualquer
ao analista.
Vemos aqui, uma vez mais, uma diferença da necessidade
infantil de afeição : a criança carece de mais afeto ou ajuda
que o adulto, porque é mais incapaz, mas não existem fatô­
res compulsivos latentes em sua atitude. Só uma criança que
já estiver apreensiva se agarrará à saia da mãe.
Uma segunda característica da necessidade neurótica de
afeição, tam6ém inteiramente distinta da necessidade infantil,
é sua insaciabilidade. É verdade que a criança pode apoquen-
Da Necessidade da Afeição 95

tar, exigir atenção excessiva e demonstrações contínuas de


que é amada, mas nesse caso trata-se de uma criança neuró­
tica. Uma criança sadia, crescendo em um ambiente de cari­
nho e confiança, sente-se segura de ser querida, não exige
demonstração constante dêsse fato e satisfaz-se ao receber a
ajuda de que precisa no momento oportuno.
A insaciabilidade · do neurótico pode aparecer sob a for­
ma de avidez, como traço geral do caráter, revelado nos hábi­
tos de comer, comprar, especular vitrinas e impacientar-se. A
avidez pode ser reprimida durante a maior parte do tempo e
irromper subitamente, como, por exemplo, quando uma pessoa
narmalmente moderada na aquisição de roupas, ao sentir-se
angustiada compra quatro ternos novos de uma vez. Pode
aparecer sob a forma mais atenuada de viver "filando" coisas
ou então sob a forma mais agressiva de uma conduta seme­
lhante à de um polvo que tudo quer empolgar com seus
tentáculos.
A atitude de avidez, com tôdas as suas variações e subse­
qüentes inibições, é denominada uma atitude "oral" ( 3 ) e, como
tal, tem sido bem descrita na literatura psicanalítica. Con­
quanto tenham sido valiosas as idéias teóricas preconcebidas
subentendidas nessa terminologia, por terem permitido a inte­
gração de tendências até então isoladas nos síndromes, é
discutível o preconceito de tôdas essas tendências se origi­
narem de sensações e desejos orais. 1l:le se baseia na obser­
vação válida de que a avidez freqüentemente se exprime atra­
vés de exigências de alimento e de modos de comer, bem
como em sonhos, que podem manifestar as mesmas tendên­
cias sob uma forma mais primitiva, como no caso de sonhos
canibalescos. 1l:sses fenômenos não provam, entretanto, que se
trata aqui de desejos originais e essencialmente orais. Parece,
portanto, mais sustentável a suposição de que, via de regm,
o comer é meramente o meio mais acessível de satisfazer a
sensação de avidez, qualquer que seja sua causa, tal como em
sonhos o comer é o símbolo mais concreto e primitivo para a
representação de desejos insaciáveis.
A hipótese de que os desejos ou atitudes " orais" são de
caráter libidinoso, também carece ser substanciada. Não há
dúvida que uma atitude de avidez pode aparecer no campo
( 3) KABL ABllAHAM, Entwicklungsgeschichte der Libido :in Newe Arbeiten
wr aerztlichen Psychoanalyse, Helft .2 ( 1934 ) .
96 A Personalidade Neur6tica

sexual, tanto na insatisfação sexual real quanto em sonhos que


identificam as relações sexuais .com o ato de deglutir ou mor­
der. Porém, aparece igualmente na ganância com relação a
dinheiro ou roupas, ou então na ambição e sêde de prestígio.
Tudo o que se pode dizer em prol da hipótese libidinosa é
que a intensidade veemente da avidez é semelhante à dos im­
pulsos sexuais. A menos que se imagine, contudo, que todo
impulso arrebatado seja libidinoso, ainda resta provar que a
avidez, como tal, seja um impulso sexual, pré-genital.
O problema da avidez é complexo e ainda está por ser
solucionado; tal como a compulsão, a avidez é decididamente
fomentada pela ansiedade. O fato da avidez ser condicionada
pela ansiedade pode ser bastante evidente, como sucede amiú­
de, por exemplo, na masturbação excessiva ou no comer
demais. A conexão entre ambas também é encontrada no fato
da avidez poder diminuir ou desaparecer logo que a pessoa
se sinta de alguma forma tranqüila : ao sentir-se amaaa, ao
lograr êxito, ao realizar um trabalho construtivo. O sentimen­
to de ser amada, por exemplo, pode reduzir abruptamente a
fôrça de uma vontade compulsiva de comprar coisas. Uma
jovem que até então aguardara cada refeição com uma cupidez
insaciável, esqueceu-se de todo da fome e da hora das refei­
ções assim que começou a desenhar vestidos, numa ocupação
que muito Uie aprazia. Por outi·o lado, a avidez pode despon­
tar ou revigorar-se tão logo suba o nível de hostilidade ou
ansiedade : uma pessoa pode sentir-se compelida a fazer com­
pras antes de uma situação que receia ou a comer desbraga­
damente depois de ter-se sentido rejeitada.
Há muitas pessoas, no entanto, que sofrem de ansiedade
e não revelam avidez, fato que indica existirem ainda, certos
fatôres especiais envolvidos nisso. A respeito de tais fatôres,
a única coisa que se pode afirmar, com um grau razoável de
segurança, é que as pessoas sôfregas não têm confiança em
sua capacidade para criar qualquer coisa de seu e, assim, têm
de depender do mundo exterior para a satisfação de suas
necessidades, porém acham que ninguém está disposto a con­
ceder-lhes nada. Essas pessoas neuróticas, insaciáveis em sua
necessidade de afeição, c omumente mostram a mesma ganân­
cia com referência a coisas materiais, como sacrifício de tem­
po e dinheiro, conselhos úteis em situações concretas, ajuda
real em dificuldades, presentes, informações e satisfação sexual.
Da Necessiclade da Afeição 97

Em alguns casos, êsses desejos revelam expH.citamente um


desejo de provas de afeto; em outros, todavia, essa explica­
ção não é convincente. Nestes últimos casos, tem-se a impres­
são de que a p essoa neurótica simplesmente quer obter algo,
afeto ou não, e que a fome de afeto, quando p orventura pre­
sente, é tão-somente uma camuflagem para extorquir deter­
minados favores ou vantagens.
Essas observações levam-nos a perguntar se, quem sabe,
a cobiça de coisas materiais em geral não será o fenômeno
básico, representando a necessidade de afeição apenas um
modo de alcançar êsse objetivo. Não há uma resposta geral
para esta pergunta. O anelo de posses, conforme veremos
adiante, é uma das defesas fundamentais contra a ansiedade.
A experiência, porém, mostra também que em certos casos a
necessidade de afeição, embora seja o artifício protetor pre­
dominante, pode ser tão profundamente reprimida a ponto de
não se revelar à superfície. A cobiça de coisas materiais poderá
então, temporária ou permanentemente, tomar seu lugar.
No que toca a esta questão do papel da afeição, podem
distinguir-se, a grosso modo, três tipos de pessoas neuróticas.
No primeiro grupo não há a menor dúvida de que as pes­
soas anelam por afeição, sob qualquer forma que esta se apre­
sente e por quaisquer meios que possam consegui-la.
As do. segundo grupo esforçam-se por alcançar afeição,
mas se não logram obtê-la em alguma relação interpessoal -
e como regra tendem a fracassar - não procuram imediata­
mente outra pessoa, mas retraem-se ante tôdas as pessoas. Ao
invés de procurarem ligar-se a uma pessoa, elas se ligam com­
pulsivamente a coisas, tendo de comer, de comprar ou de ler
ou, de um modo geral, tendo de obter algo. Essa transfor­
mação pode assumir formas grotescas às vêzes, como nas pes­
soas que depois de se saírem mal numa aventura amorosa pas­
sam a comer tão compulsivamente que aumentam dez a quinze
<J_Uilos em pouco tempo; se tiverem um nôvo amor, perdem
esse pêso novamente, e se êste amor não der certo, aumen­
tarão de pêso uma vez mais. Às vêzes, pode-se observar a
mesma conduta em pacientes; após um desapontamento vio­
lento com o analista, começam a comer compulsivamente e
aumentam de pêso a ponto de ficarem irreconhecíveis, mas
perdem-no de nôvo quando a situação se esclarece. Uma avi­
dez assim por comida também pode ser reprimida, manifes-
98 A Personalidade Neurótica

tando-se então por uma perda de apetite ou perturbações


gástricas funcionais de qualquer espécie. Nesse grupo, as
relações pessoais são mais profundamente afetadas que no
primeiro : elas ainda desejam afeição e ainda ousam esforçar­
se por alcançá-la, mas qualquer decepção pode romper o fio
que as liga aos demais.
O terceiro grupo é de pessoas que foram tão severamen­
te maltratadas, no comêço àa vida, que sua atitude consciente
passou a ser de profunda descrença em qualquer afeição. Sua
ansiedade é tão extrema que ficam contentes quando não lhes
é feito nenhum mal concreto. Podem adquirir· uma atitude
cínica e zombeteira relativamente à vida afetiva e preferir
a satisfação de seus desejos tangíveis atinentes a auxílio mate­
rial, conselhos e vida sexual. So após muito de sua ansiedade
ter sido liberada, é que serão capazes de desejar afeição e
apreciá-la.
As atitudes diferentes dêsses três grupos podem ser assim
resumidas : insaciabilidade relativa à afeição; necessidade de
afeição alternando com avidez generalizada; nenhuma neces­
sidade manifesta de afeição, mas avidez generalizada. Cada
grupo revela um aumento tanto de ansiedade quanto de
hostilidade.
Retornando à trilha principal de n osso estud o , temos ago­
ra a considerar a questão dos modos especiais por que se
manifesta a insaciabilidade atinente à afeição. As expressões
mais notáveis são o ciúme e as exigências de amor incon­
dicional.
O ciúme neurótico, ao co n trá ri o do de uma pessoa nor­
mal, que pode ser urm� reação adequada ante o perigo de
perder o amor de alguém, é completamente desproporcional
em relação ao perigo. :€te é ditado por um mêdo constante
de perder a posse da pessoa ou seu amor; conseqüentemente,
qualquer outro interêsse que a pessoa tenha, aparece para o
neurótico como um perigo em potencial. :Esse tipo de ciúme
pode aparecer em qualquer relaçf10 humana - da parte de
pais para os filhos que querem fazer amizades ou casar-se;
da parte dos filhos para os pais; entre cônjuges; em qualquer
relação amorosa. A relação com o analista não constitui exce­
ção: é demonstrada por uma intensa sensibilidade acêrca do
analista ver outro paciente ou ante a simples menção de outro
paciente. O lema é: "você tem de me amar exclusivamente".
Da Necessidade da Afeição 99

O p aciente talvez diga: "Reconheço que você me h·ata deli­


cnclamente; não obstante, como você provàvelmcnte trata os
outros com a mesma delicadeza, eu, então, ni"lo estou sendo
nbsolutamente levado em conta". �!q_�1er ufcto que deva
ser compartjlhado com outras pessoas ou mterôsscs é imediat11:
e totalmente desvalorizado.

O ciúme desprop orcional muitas vêzes é encarado como


sendo condicionado pelo ciúme sentido na infância relativa­
mente a outros irmãos ou a um dos pais. A rivalidude entre
irmãos, conforme ocorre entre crianças sadias - o ciúme de
um bebê recém-nascido por exemplo - desvanece-se sem dei­
xar marca alguma, logo que a cri'1nça se certifica de que não
perdeu nada do· amor e da atenção de que até então clesfru­
tara. Segundo minha experiência, o ciúme excessivo manifes­
tado na infância e nunca sobrepujado se deve a condições neu­
róticas da criança análogas às no adulto, conforme foi atrás
descrito. Já existia na criança uma necessidade insaciável de
afeição, derivada de uma ansiedade básica. Em literatura psi­
canalítica, a relação entre as reações infantis e adultas de
ciúme, aparece amiúde expressa de forma ambígua, pois que
o ciúme adulto é chamado de "repetição" do ciúme infantil.
Se o têrmo é empregado com a idéia de que uma mulher adul­
ta tem ciúmes de seu marido porque igualmente tivera ciúmP-S
da mãe, não me parece defensável. O ciúme intensificado que
encontramos nas relações de uma criança com os pais ou
irmãos não é a causa original do ciúme posterior: ambos
provêm das mesmas fontes.
Talvez uma expressão da necessidade insaciável de afeição
ainda mais poderosa que o ciúme seja a procura de amor in­
condicional. Esta busca se apresenta mais comumente à mente
consciente sob a forma de : "quero ser amado pelo que sou
e não pelo que faço". Até aqui, nada de extraordinário neste
desejo, pois certamente não é estranho a nenhum de nós o
desejo de sermos amados pelo que somos. O desejo neurótico
de amor incondicional, entretanto, é muito mais lato que o
normal e em sua forma extrema é impossível de ser satisfeito.
];: uma exigência de amor, pràticamente sem qualquer condi­
ção ou restrição.
Essa exigência abrange, desde logo, um desejo de ser ama­
do a despeito de qualquer conduta insultuosa. O desejo é
necessário como segurança, porque a pessoa neurótica secre-
100 A Personalidade Neurótica

tamente tem noção de estar carregada de hostilidade e de


exigências demasiadas e, por conseguinte, tem um receio com­
preensível e proporcional · de que o outro possa retrair-se ou
ficar zangado ou retaliativo se sua hostilidade tornar-se visí­
vel. O paciente dêsse tipo exporá a opinião de que é muito
fácil e nada vale amar-se a quem é afável, e que , o amor
deveria provar sua capacidade para agüentar qualquer espécie
de conduta desagradável. Qualquer crítica é considerada como
uma retratação do amor. No decurso da análise, pode ser
despertado seu ressentimento por uma insinuação de que êle
deva modificar alguma coisa em sua personalidade, malgrado
isso seja a finalidade da análise, porque para o paciente uma
insinuação dessas é uma frustração em sua necessidade de
afeto.
A exigência neurótica de amor incondicional compreende,
a seguir, um desejo de ser-se amado sem qualquer retribuição.
:Esse desejo é necessário porque a pessoa neurótica se sente
incapaz de qualquer carinho ou de dar qualquer afeto e
reluta em fazê-lo.
Sua exigência abrange, ainda, um desejo de ser amado
sem que daí advenha qualquer vantagem para o outro. Tal
desejo é necessário devido ao fato de qualquer vantagem ou
satisfação derivada da situação, para o outro, imediatamente
suscitar a suspeita do neurótico de que o outro gosta dêle só
visando vantagens ou satisfações. Nas relações sexuais, as pes­
soas dêsse tipo verão com maus olhos o prazer que a outra
pessoa alcança, porque imaginam que só são amadas em vir­
tude dêsse prazer causado. Na análise, êsses pacientes melin­
dram-se com a satisfação que o analista obtém em ser-lhes
útil : ou bem desmerecerão a ajuda dada pelo analista ou,
embora intelectualmente a reconheçam, não serão capazes de
sentir qualquer gratidão, ou então, mostrar-se-ão inclinados a
atribuir qualquer melhora a uma outra causa, a um remédio
que tomaram ou a uma observação feita por um amigo. É
claro que também resmungarão a respeito dos honorário que
têm de pagar : conquanto intelectualmente possam admitir que
os honorários são uma compensação pelo tempo, energia e
conhecimentos do analista, emocionalmente considerarão o pa­
gamento como uma prova de que o analista não está interes­
sado nêles. Pessoas dêsse tipo normalmente não têm natu-
Da Necessidade da Afeição 101

ralidade para dar presentes, porque êstes .ae- deixam inseguras


quanto ao fato de serem amadas.
A exigência de amor incondicional, finalmente, inclui o
desejo de ser amado com sacrifícios. Só se a outra pessoa sacri­
ficar tudo pelo neurótico é que êste poderá ter certeza de
ser amado. :Esses sacrifícios podem dizer respeito a dinheiro
ou tempo, mas também podem prender-se a convicções e à
integriàade pessoal. Tal exigência compreende, por exemplo,
a expectativa de que o outro deva tomar seu partido, ainda
que com conseqüências desastrosas. Há mães que bastante
ingênuamente se julgam com razão ao esperar aevotamento
cego e sacrifícios de tôda sorte dos filhos porque elas "lhes
deram vida com dores". Outras mães reprimiram seu desejo
de amor incondicional de modo que podem dar aos filhos
uma grande soma de auxílio e apoio positivo, mas uma tal mãe
não obtém satisfação nas relações com os filhos porque sente,
como nos exemplos já mencionados, que os filhos a amam
somente porque recebem tanto dela e, assim, secretamente
ressentem tudo que lhe dão.
A busca de amor incondicional, em suas inferências de
p
desprêzo desapiedado e sem contem lações por todos os outros,
mostra, mais claramente que qualquer outra coisa, a h ostilidade
latente nas exigências neuróticas de afeição.
Em contraste com o tipo comum de "vampiro", que pode
estar conscientemente resolvido a explorar ao máximo os
demais, a pessoa neurótica, via de regra, nem de longe per­
cebe quão exigente é. Ela tem de manter-se alheia à cons­
ciência de suas exigências por ponderáveis motivos de ordem
tática. Ninguém jamais poderia dizer com tôda a franqueza :
"Quero que você se sacrifique por mim sem receber nada
em retribuição". Ela é obrigada a dar uma certa base jus­
tificável a suas exigências, tal como a de que está doente e
por isso requer todo sacrifício. Outra razão poderosa para
não reconhecer suas exigências é que é difícil desistir delas
uma vez estabelecidas, e a compreensão de que elas são irra­
cionais é o primeiro passo para desistir delas. Elas se firmam,
além das bases já mencionadas, na profunda convicção do
neurótico de que não pode viver com seus próprios recursos,
de que tudo de que carece tem de ser-lhe dado, de que tôda
responsabilidade por sua vida repousa nos outros e não nêle
102 A Personalidade Neurótica

mesmo. Portanto, desistir de suas exigências de amor incon­


dicional pressupõe uma transformação total de sua atitude face
à vid a.
Tôdas as características da necessidade neurótica de afei­
ção têm em comum o fato das próprias tendências conflitivas
do neurótico barrarem o caminho a essa afeição. Quais são,
pois, as suas reações a uma satisfação parcial de suas exigên­
cias, ou à sua rejeição completa ?
,
CAPITULO VI I I

Maneiras de Conseguir Afeição


e Sensibilidade à Rejeição

Ao APBECIAR quanta falta faz a afeição a essas pessoas neu­


róticas, e concomitantemente quão difícil lhes é aceitá-la,
poder-se-ia ser levado a crer que elas se dariam melhor em
um ambiente de calor afetivo moderado. Aqui, porém, entra
outro elemento que complica o quadro : essas pessoas são ao
mesmo tempo dolorosamente sensíveis a qualquer rejeição ou
contrariedade, por mínima que seja. E embora um ambiente
moderado, de certa forma tranqüilize, é também encarado
como repulsa.
:€ difícil descrever o grau de sensibilidade dessas pessoas
à rejeição. A mudança auma hora de encontro, o fato de
ter de esperar, a demora de uma respo sta, o desacôrdo com
suas opiniões, qualquer não atendimento de seus desejos, em
suma, 9.ualquer omiss�o em satisfazer suas exigências à sua
moda, e considerada como uma repulsa. E uma repulsa não
só os atira de volta à sua ansiedade básica, mas é igualmente
tomada como equivalente a uma humilhação. Explicarei,
adiante, porque êles a sentem como humilhação. Pelo fato
de uma repulsa ter êsse conteúdo de humilhação, desperta
uma raiva tremenda, que pode vir à tona; por exemplo, uma
môça cujo gato não correspondia a seus carinhos ficou enfu­
recida e jogou o gato de encontro à parede. Se as fazem
esperar, essas pessoas julgam que são consideradas tão insigni­
ficantes que não é necessário ser pontual com elas ; isso pode
estimular explosões de hostilidade ou resultar em um alhea­
mento completo de todos os sentimentos, de modo que se
mostram frias e insensíveis, ainda que, poucos minutos atrás,
estivessem aguardando ansiosamente o encontro.
104 A Personalidade Neurótica

Mais amiúde, a conexão entre sentir-se repelido e ficar


irritado permanece inconsciente. Isso ocorre mais fàcilmente
porquanto a repulsa pode ter sido tão ligeira a ponto de
passar desperceliida ao consciente. A pessoa, então, sentir-se-á
irritadiça ou mostrar-se-á rancorosa e vingativa, ou sentir-se-á
cansada ou deprimida, ou terá uma dor de cabeça, sem sus­
peitar nem de longe a causa disso. Outrossim, a reação hostil
pode ocorrer não só ante uma rejeição, ou do que é sentido
como sendo uma rejeição, mas também à antecipação da
mesma. Uma pessoa, par exemplo, pode fazer uma pergunta
em tom zangado, só porque em sua mente ela já previu uma
recusa. Pode abster-se de mandar flôres para uma jovem p or­
que prevê que ela vá atribuir segundas intenções ao presente.
Pode, pela mesma razão, ficar extremamente receosa de ma­
nifestar qualquer sentimento positivo - ternura, gratidão, apre­
ciação - e por isso parecer, a si e aos outros, mais fria e mais
calejada do que realmente é. Ou pode fazer pouco das mulhe­
res, vingando-se assim de uma repulsa que antevê.
O mêdo de rejeição, se forte men te desenvolvido, pode
levar uma pessoa a evitar expor-se a qualquer possibilidade
de repúdio. Essa abstenção pode ir desde o simples fato de
não pedir um copo com águ a ao tomar um cafezinho até a
não candidatar-se a um emprêgo. As pessoas que temem
qualquer rejeição possível evitarão cnrtejar um homem ou
mulher de quem gostam, enquanto não estiverem absoluta­
mente certas de não se terem que defrontar com uma rejeição.
Os homens dêsse tipo usualmente não gostam de convidar
môças para dançar, porque receam . que a jovem só aceite
por uma questão de polidez, e acham que as mulheres têm
mais sorte nisso, já que não precisam tomar a iniciativa.
Por outras palavras, o mêdo à repulsa pode conduzir a
uma série de inibições graves, enquadradas na categoria de
timidez. A timidez serve como àefesa contra o expor-se a
repulsas. A convicção de não se ser digno do amor é utili­
za<la anàlogamente como uma defesa. :e como se as pessoas
dêsse gênero se dissessem a si mesmas : "As pessoas não gostam
mesmo de mim, de modo que é melhor eu ficar num canto e
assim proteger-me contra qualquer possibilidade de rejeição".
O mêdo à repulsa, pois, é um sério entrave ao desejo de afei­
ção, porquanto impede a pessoa de deixar que outras sintam
pu saibam qu� �la go!!taria de receber certa atenção. Além
Afeição e Sensibilidade à Re;eição 105

disso, a hostilidade provocada pela sensação de ser repelido


contribui bastante para manter a ansiedade alerta ou mesmo
Eara robustecê-la. J;: um fator importante no estabelecimento
de um "círculo vicioso'', de que é difícil sair.
l!:sse círculo vicioso, formado pelas várias ilações da neces­
sidade neurótica de afeto, pode ser esquematizado aproxima­
damente da seguinte forma: ansiedade; necessidade excessiva
de afeto, inclusive exigências de amor exclusivo e incondicio­
nal; sensação de repulsa se essas exigências não são atendi­
das; reação à repulsa com hostilidade intensa; necessidade de
reprimir a hostilidade devido ao mêdo de perder o afeto;
tensão causada por uma raiva difusa; aumento da ansiedade;
aumento da necessidade de reafirmação . . . Assim, o próprio
meio que serve para reafirmar-se contra a ansiedade, cria,
por sua vez, nova hostilidade e nova ansiedade.
A formação de um círculo vicioso é típica não só do con­
texto em que foi aqui examinada; falando de um modo geral,
podemos dizer que êste é um dos processos mais importantes
nas neuroses. Qualquer artifício protetor pode possuir, além
de sua qualidade tranqüilizadora, a peculiaridade de gerar
nova ansiedade. Uma pessoa pode dar-se à bebida a fim de
mitigar sua ansiedade e depois ficar com mêdo de que a
bebida também a esteja prejudicando. Ou pode masturl:iar-se
a fim de liberar sua ansiedade, e depois ficar com mêdo de
que isso a faça ficar doente. Ou pode submeter-se a um tra­
tamento para curar a ansiedade e, dentro em pouco, ficar
apreensiva de que o tratamento venha a prejudicá-la. A for­
mação de círculos viciosos é a principal razão por que as neu­
roses graves tendem a piorar, mesmo que não haja mudança
nas condições exteriores. Uma das tarefas mais importantes
da psicanálise consiste em desvendar os círculos viciosos, com
t8das as suas conseqüências : o próprio neurótico não pode
entendê-los. l!:le só percebe seus resultados sentindo-se apa­
nhado em uma situação desesperada, e essa sensação é sua
resposta a confusões que não consegue atravessar: qualquer
caminho que parece o_ferecer uma saída arrasta-o para novos
perigos. .
Quais serão, então, os caminhos disponíveis, a despeito de
tMas as dificuldades internas, para o neurótico obter a afei­
ção gue está resolvido a conseguir ? Na realidade, há dois
problemas a &olucionar: primeiro, como obter o afeto neces-
106 A Personalidade Neurótica

sário; segundo, como justificar, perante si mesmo e perante


os demais, a exigência dêsse afeto. Podemos descrever, mais
ou menos, os vários meios possíveis de conseguir afeto, como
sendo : subôrno; apêlo à piedade; apêlo à justiça; ameaças.
Essa classificação, é natural, como tôdas as enumerações
semelhantes de fatôres psicológicos não obedece a categorias
rígidas sendo apenas uma indicação . de rumos gerais. Esses
diversos meios não se excluem uns aos outros : vários dêles
podem ser empregados simultânea ou alternadamente, depen­
dendo tanto da situação quanto ela totalidade da estrutura
de caráter e igualmente do grau de hostilidade. Com efeito,
a . seqüência em que são citados êsscs quatro meios de obter
afeição, indica um grau crescente de hostilidade.
l Quando um neurótico tenta obter afeição por meio de
subôrno, seu lema pode ser descrito como : Amo-te fervoro­
..

samente; portanto, deves amar-me cm retribuição, e desistir


de tudo por amor ao meu amor". O fato de na nossa cultura
essas táticas serem empregadas mais freqüentemente por
mulheres do �ue por homens, decorro das condições em que
as mulheres tem vivido. Durante séculos, o amor não tem
sido somente o domínio espocinl das mulheres na vida, mas
de fato seu único ou principal acesso para alcançar o que
desejam. Ao passo que os h o m e n s crcs C'eram com a convicção
de que tinham de realizar algo nn vida caso quisessem che­
gar a ser alguém, as mulherns perceberam que por intermédio
do amor, e somente dêste, p o deria m alca nçar felicidade, segu­
rança e prestígio. Essa dif er�nça de posições culturais exer­
ceu uma séria influência no desenvolvimento psicológico do
homem e da mulher. Seria inop or tu no discutir essa influên­
cia, mas uma de suas conseqüências é que nas neuroses as
mulheres recorrem 'mais freqüentemente ao amor como arma
do que os homens. E, ao m e smo tempo, a convicção subjetiva
do amor serve como justific ativ a para fazer exigências.
Pessoas dêsse tipo correm o risco particular de cair em
uma penosa dependência em suas relações amorosas. Supo­
nha-se, por exemplo, que uma mulher com uma necessidade
neurótica de afeição apegue-se a um homem de tipo seme­
lhante, que se retraia, contud o , tão logo ela se aproxime dêle;
a mulher reage a tal rejeição com uma hostilidade intensa, que
reprime por mêdo de perdê-lo. Se ela experimentar retrair-se,
êle começará novamente a cortejá-la. Aí ela não só reprimirá
Afeição e Sensibilidade à Rejeição 1 07

sua hostilidade como também a disfarçará com uma devoção


intensificada. Será novamente rejeitada e outra vez reagirá,
eventualmente com amor acrescido. Assim, aos poucos ela se
convencerá de que está possuída de uma incontrolável "grande
paixão" .
Outro expediente que pode ser considerado como uma
forma de subôrno é a tentativa de conquistar afeição pro­
curando compreender a pessoa, auxiliando-a em seu progresso
intelectual ou profissional, solucionando suas dificuldades, e
coisas do mesmo jaez. Isso é de uso comum por parte de
homens e mulheres.
Um segundo meio de obter afeição consiste em apelar
para a piedade. O neurótico chamará a atenção dos outros
para seus sofrimentos e seu desamparo, adotando o lema:
"Deves amar-me porque sofro e estou desamparado". Ao mes­
mo tempo, o sofrimento serve como justificativa do direito
de fazer exigências excessivas.
Ãs vêzes, êsse apêlo será feito assaz francamente. Um
paciente salientará o fato de ser o paciente mais . doente e
fazer jus, portanto, à máxima atenção do analista. Poderá
mostrar-se desdenhoso em relação a outros pacientes que apa­
rentem melhor saúde e ressentirá quando outros tiverem mais,
êxito que êle nessa estratégia. '·
!
Nesse apêlo à piedade poderá haver, mesclado, maior ou
menor dose de hostilidade. O neurótico pode simplesmente
apelar para nosso lado bom ou pode extorquir favores por
meios radicais, como o de se envolver em uma situação cala­
mitosa que imponha nossa ajuda. Todos que têm de lidar
com neuróticos, como médicos ou assistentes sociais, conhecem
a importância dessa estratégia. Há uma grande diferença
entre o neurótico que explica seus apuros em linguagem tri­
vial e o que procura despertar piedade por uma demonstração
teatral de suas queixas. Podemos encontrar as mesmas incli­
nações em crianças de tôdas as idades, com as mesmas varia­
ções : a criança pode querer ser consolada por alguma lamen­
tação ou pode tentar extorquir atenção desenvolvendo incons­
cientemente uma situação aterradora para os pais, como a
incapacidade para comer ou para urinar.
O uso do apêlo à piedade pressupõe uma convicção de
incapacidade de conseguir amor por qualquer outro meio. Essa
convicção pode ser racionalizada como uma descrença geral
108 A Personalidacle Neurótica

na afeição> ou então pode assumir o aspecto de uma crença


de que naquela situação particular a afeição não pode ser
alcançada áe outra maneira qualquer.
No terceiro meio de obter afeição - o apêlo à justiça
- o lema pode ser descrito com : "Fiz isto por ti; o que farás
por mim ?" Em nossa cultura, muitas vêzes as mães alegam
haverem feito tanto pelos filhos que têm direito a uma dedi­
cação inquebrantáve[ Nas relações amorosas, o fato de ter
cedido aos galanteios pode ser usado como base para reivin­
dicações. Pessoas dêsse tipo muitas vêzes mostram-se ansiosas
por fazerem . coisas para os outros, alimentando a expectativa
secreta de que em troca receberão tudo que quiserem e ficando
seriamente aesapontadas se os outros não estiverem igualmen­
te dispostos a fazer algo em seu proveito. Refiro-me não
às pessoas que s ão conscientemento interesseiras, mas às que
não têm a menor idéia consciente de contarem com uma pos­
sível recompensa. Sua generosidade compulsiva talvez seja
descrita com mais exatidão como um gesto mágico : fazem aos
outros o que querem que os outros llies façam. t a extraor­
dinàriamente pungente ferroada do desapontamento que indi­
ca que realmente esperavam uma retribuição. Ãs vêzes, elas
mantêm em dia uma espécie de escrita mental, em que se
atribuem um crédito exagerado por sacrifícios comumente
inúteis, tais como passar a noite tõda acordada, mas depre­
ciam ou mesmo ignoram o que foi feito por elas, deturpando
dessarte a situação de modo n sentirem-se c om direitos a exi­
gir atenção especial. Essa atitude provoca repercussões no
próprio neurótico, pois êle pode tornar-se extremamente re­
ceoso de incorrer em obrigações. Julgando instintivamente os
outros por si, teme ciue os demais possam explorá-lo se aceitar
quaisquer favores dêles.
O apêlo à justiça também pode ser pôsto na base do
que o neurótico gostaria de fazer pelos outros se lhe fôsse
dada oportunidade para tanto. :E:le alegará quão amoroso ou
abnegaao seria se estivesse na situação do outro, e sente que
súas exigências são justificadas pelo fato de não pedir aos
outros mais do que êle próprio faria. Na realidade, a psicolo­
gia dessa �ustificativa é mais intrincada do que o próprio neµ­
rótico percebe. Essa imagem que êle faz de suas próprias
qualidaaes é, sobretudo, uma usurpação inconsciente da espé­
cie de conduta que exigiria dos demais. Não é de todo uma
Afeição e Sensibilidade à Refeição 109

impostura, contudo, pois de fato êle tem certas tendências


à âbnegação, derivadas de fontes tais como sua falta de auto­
afirmação, sua identificação com os oprimidos, seu impulso
para ser indulgente com os outros do modo que desejaria que
êles o fôssem para êle mesmo.
A hostilidade que pode estar pres�nte no apêlo à justiça
aparece mais nitidamente quando as exigências são feitas sob
o pretexto de reparação de uma suposta ofensa. O lema é :
"Fizeste-me sofrer o u prejudicaste-me, e portanto é s obrigado
a auxiliar-me, cuidar de mim ou amparar-me". Essa estratégia
é análoga à empregada nas neuroses traumáticas. Não possuo
experiência pessoal com neuroses traumáticas, mas pergunto
a mim mesma se as pessoas que adquirem uma neurose trau­
mática não pertencerão a esta categoria, valendo-se de seu mal
como base para exigências que provàvelmente fariam em
qualquer hipótese.
Citarei uns poucos exemplos que mostram como um neu­
rótico pode despertar sentimentos de culpa ou de obrigação
de mofde a que suas próprias exigências possam parecer jus­
tas. Uma mulher fica doente como reação à deslealdade de
seu espôso. Ela não faz nenhuma censura e quiçá nem mes­
mo a sinta conscientemente, mas sua doença é impllcitamente
como que uma censura viva, destinada a provocar sentimentO,s
de culpa no marido e a torná-lo disposto a dedicar-lhe tôda
sua atenção.
Outra neurótica dêste tipo, uma mulher com sintomas
obsessivos e histéricos, insistia às vêzes em ajudar suas irmãs
no trabalho doméstico. Após um dia ou dois ela inconscien­
temente ressentia amargamente o fato de terem aceitado sua
ajuda e tinha de ficar aeitada, com um agravamento dos sin­
tomas, obrigando assim as irmãs não só a se arranjarem sozi­
nhas como também a trabalharem mais por terem de cuidar
dela. Aí, também, a piora de seu estado exprimia uma acusa­
ção e conduzia a reparações forçadas por parte dos outros.
A mesma pessoa certa vez desmaiou quando uma de suas
irmãs a criticou, demonstrando assim seu ressentimento e
extorquindo tratamento compassivo.
: Uma paciente minha, em um certo período de sua aná­
lise, ficou muito pior e criou a idéia fantástica de que a aná­
lise a deixaria inutilizada, além de despojá-la de todos os seus
haveres, e que por isso no futuro eu seria obrigada a cuidar
110 A Personalidade Neurótica

dela completamente. Reações dêsse gênero são freqüentes em


tôda sorte de tratamento médico, e vêm muitas vêzes acom­
panhadas de ameaças declaradas ao médico. Em menor grau,
são comuns ocorrências como a seguinte : o estado do paciente
revela uma piora acentuada quando o analista tira uns dias
de férias; imr,lícita ou explicitamente êle afirmará que foi culpa
do analista ele ter piorado e que, por isso, tem direito espe­
cial à atenção do mesmo. :f!:sse exemplo pode ser fàcilmente
transferido para as exigências da vida quotidiana.
Conforme os exeIJ!plos acima indicam, as pessoas neuró­
ticas dêsse tipo estarão dispostas a pagar o preço do sofri­
mento - mesmo de �ofrimento intenso - porquanto dessa
maneira ficarão aptas a expressar acusações e fazer exigên­
cias sem se darem conta de fazê-lo e, portanto, sentir-se-ão
capazes de conservar seu sentimento de retidão.
Quando uma pessoa usa ameaças como estratégia para
obter afeição, estas podem ser contra si própria ou contra
outrem. Poderá ameaçar cometer um ato desesperad o, como
o de arruinar uma reputação ou de exercer violência contra
sua própria pessoa ou outrem. Ameaças de suicídio, ou até
tentativas de suicídio, são um exemplo familiar. Uma pacien­
te minha conseguiu dois maridos sucessivamente, graças a êsse
gênero de ameaça. Quando o primeiro dêles deu mostras de
estar prestes a afastar-se, ela pulou dentro dum rio, numa
parte bem visível e movimentada da cidade; quando o segundo
pareceu relutar em casar-se, ela abriu o gás, numa hora em
que estava certa de ser descoberta. Sua intenção manifesta era
demonstrar que não poderia viver sem o homem em questão.
Como o neurótico espcru, com suas ameaças, obter aquies­
ciência às suas exigências, não us porá em prática enquanto
tiver esperança de conseguir seus fins por outra forma. Se
perder essa esperança, poderá concretizá-las sob a tensão do
desespêro e do desejo de vingança.
,
CAPITULO I X

O Papel da Sex-ualidade na Necessidade


Neurótica de Afeição

A NECESSIDADE NEURÓTICA de afeição, muitas vêzes assume


a forma de paixão sexual ou de desejo sexual incontentável. �
o caso, então, de perguntar-se se todo o fenômeno da neces­
sidade neurótica de afeição não será instigado pela insatisfa­
ção na vida sexual; se tôda essa sofreguidão de afeto, de liga­
ção, de estima, de apoio, não será motivada antes por uma
libido insatisfeita do que por uma necessidade de reafirmar-se.
Freud mostrar-se-ia inclinado a ver as coisas assim. ll:le
observou que muitas pessoas neuróticas têm ânsia de ligarem­
se a outras e tendem a se lhes apegarem; descreveu tal atitq­
de como resultante de uma libido insatisfeita. Essa concep­
ção, contudo, baseia-se em certas premissas : imagina que tôdas
as manifestações que não são propriamente sexuais, como o
desejo de receber conselhos, aprêço ou apoio, exprimem neces­
sidades sexuais que foram atenuadas ou "sublimadas"; ade­
rnais, pressupõe que a ternura seja urna expressão inibida ou
"sublimada" de impulsos sexuais.
Tais hipóteses carecem de provas . As conexões entre sen­
timentos de afeto, expressões de ternura e sexualidade não são
tão estreitas quanto às vêzes supomos. Antropólogos e histo­
riadores dizem-nos que o amor individual é um produto de
evolução cultural. Briffault ( 1 ) alvitra que a sexualidade esteja
mais de perto ligada à crueldade do que à ternura, embora
suas afirmações não sejam assaz convincentes. Através de
observações feitas em nossa cultura sabemos, sem embargo,
que a sexualidade pode existir sem afeição ou ternura, assim

( 1) ROBERT Bllil"FAVLT, The Mothers. London and New York, 1927.


112 A Personalidade Neurótica

como estas podem existir sem sentimentos sexuais. Não há


provas, por exemplo, de que a ternura entre mãe e filho seja
de natureza sexual. Tudo que podemos notar - e isso como
conseqüência da descoberta de Freud - é que podem estar
aí presentes elementos sexuais. Podemos observar muitos elos
entre a ternura e a sexualidade : aquela pode ser a precursora
desta e pode-se ter desejos sexuais quando apenas se tem cons­
ciência de sentimentos ternos; os desejos sexuais podem esti­
mular ou converterem-se em sentimentos temos. Malgrado tais
transições entre a ternura e a sexualidade indiquem nitida­
mente uma estreita relação entre ambas, nem por isso é menos
conveniente ser mais cauteloso e presumir a existência de duas
categorias distintas de sentimentos, que podem coexistir, trans­
formar-se um no outro, ou substit'!J.ir. um ao outro.
Outrossim, se aceitarmos a premissa de Freud de que a
libido insatisfeita é a fôrça motriz da sêde de afeição, seria
difícil compreender porque encontramos o mesmo anelo, com
tôdas as complicações descritas - cobiça, amor incondicional,
sentir-se menosprezado, e!c. - em pessoas cuja vida sexual
é inteiramente satisfatória sob o ponto de vista físico. Como
não há dúvidas, no entanto, de que existem cas os assim, a con­
clusão iniludível é que a libido insatisfeita não é a respon­
sável pelo fenômeno nesses casos e que os motivos escapam
à esfera sexual ( 2 ) .
Finalmente, se a necessidade neurótica de afeição não
fôsse mais que um fenômeno sexual, teríamos dificuldades
sérias para explicar os vários problemas implícitos, como a
cupidez, o amor irrestrito e a impressão de rejeição. t ver­
daae que êsses diversos problemas foram identificados e des­
critos pormenorizadamente : o ciúme, por exemplo, é consi­
derado oriundo da rivalidade entre irmãos ou do complexo de
tdipo; o amor irrestrito, do erotismo oral; a cobiça é expli­
cada como erotismo anal etc. Não foi percebido, todavia, que
na realidade tôdas as atitudes e reações expostas nos capíttilos
anteriores são da mesma natureza, partes constitutivas de uma
estrutura total. Sem reconhecer na ansiedade a fôrça dinâ­
mica oculta por detrás da necessidade de afeição, não é pos-

( 2) Casa1 como &ses, com perturbaclles visíveis na esfera emocional coe­


:dstindo com a capacidade de plena satisfação semal, constituíram sempre um
quebra-cabeças para OI analistas. O fato, porim, dêles nlo 1e enquadrarem na
teoria da h'bido não os fmpilde da exutir.
Sexualidade e Afeição 118

sível entender a s condições exatas em que essa necessidade


aumenta ou diminui.
Jl: possível, no decurso da análise, graças ao engenhoso
método de Freud de livre associação, observar com preci­
são a relação entre a ansiedade e a necessidade de afeição,
particularmente prestando-se atenção às flutuações desta ne­
cessidade no paciente. Após um período de construtivo tra­
balho cooperativo, êle pode abruptamente modificar sua con­
duta e demandar mais tempo da parte do analista, implorar
sua amizade ou admirá-lo cegamente, ou então tomar-se exa­
geradamente ciumento, dominador, melindrado por não pas­
sar de "'um mero paciente". Simultâneamente, há um incre­
mento na ansiedade, demonstrado seja em sonhos, seja na
impressão de estar sendo explorado, seja por sintomas físi­
cos como diarréia ou vontade freqüente de urinar. O paciente
não admite a existência da ansiedade ou que seu apêgo cres­
cente ao analista seja condicionado por sua ansiedade. Se
o analista identificar o nexo e apontá-lo ao paciente, ambos
descobrirão juntos que antes da súbita perturbação haviam
sido abordados problemas que incitaram ansiedade no pacien­
te; pode, por exemplo, ter sentido uma interpretação feita
pelo analista como sendo uma acusa ção injusta ou como uma
humilhação.
A seqüência de reações parece ser a seguinte : surge um
problema, cuja discussão provoca uma intensa hostilidade con­
tra o analista; o paciente começa a odiar o analista, a sonhar
que êste está morrendo; reprime imediatamente seus impulsos
hostis, fica assustado e devido a uma necessidade de tran­
qüilizar-se, apega-se ao analista; após terem sido exploradas
essas reações, a hostilidade, a ansiedade, e com elas a neces­
sidade aumentada de afeição, retrocedem. Jl: tão regular o
aparecimento dêsse acréscimo da necessidade de afeição como
resultado da ansiedade, que se pode tomá-lo acertadamente
como um sinal de alarma indicando que certa ansiedade acer­
cou-se da superfície e exige ser acalmada. O processo des­
crito, de maneira alguma se limita ao curso da análise : rea­
ções idênticas ocorrem nas relações pessoais. Na vida con­
jugal, por exemplo, o marido pode apegar-se compul­
sivamente à espôsa, ser ciumento e mandão, idealizá-la e
admirá-la, ao mesmo passo que, no íntimo, a odeia e teme.
114 A Personalidade Neurótica

];: lícito falar-se de uma dedicação exagerada, superposta


a um ódio secreto, como uma "supercompensação", desde que
se compreenda que o têrmo corresponde apenas a uma áes­
crição aproximada e nada nos diz da dinâmica do processo.
Se, ante tôdas as razões apresentadas, recusarmo-nos a
1
aceitar uma etiol ia sexual da necessidade de afeição, então
cabe perguntar se é apenas incidentalmente que a necessida­
de neurótica de afeição vem às vêzes conjugada com desejo
sexual ou se pareça inteiramente com êste, ou ainda se há
certas condições sob as quais essa necessidade seja sentida e
expressa por meios sexuais.
Até certo ponto, a expressão sexual da necessidade de afe­
to depende das circunstâncias externas favorecerem-na ou não.
Até certo ponto, depende de diferença em cultura, em vitali­
dade e em temperamento sexual. E, por fim, depende da
vida sexual da pessoa ser satisfatória, pois se não o fôr é
mais provável que ela reaja de uma forma sexual do que as
que estão satisfeitas nesse particular.
Embora todos êsses fatôres sejam evidentes por si mesmos
e tenham uma influência definida nas reações pesosais, não
bastam para explicar diferenças individuais básicas. Em dado
número de pessoas que revelam necessidade neurótica de afei­
ção, essas reações variam de um indivíduo para outro. ];: assim
que vemos alguns cujos contatos com outros assumem imedia­
tamente, e quase compulsivamente, um colorido sexual de maior
ou menor intensidade, no passo que em outros a excitabili­
dade sexual ou as atividnc.lcs · sexuais ficam dentro dos limites
normais de sentimento e cone.luta.
Pertencem ao primeiro grupo, homens e mulheres que
passam ràpidamente c.lumn relação sexual para outra. Um
conhecimento mais profundo ele suas reações patenteia que
êles se sentem inseguros, desprotegidos e bastante caprichosos
quando não estão tendo relações nem percebendo probabili­
dades imediatas de tê-las. Ainda no mesmo grupo, malgrado
com maiores inibições, há homens e mulheres que de fato têm
poucas relações sexuais, mas que criam um ambiente erótico
abrangendo a si mesm o s e a outras p essoas, quer se sintam
ou não atraídos por elas. Finalmente, um terceiro tipo de pes­
soas cabe nesse grupo, ainda mais inibidas sexualmente, mas
que são fàcilmente excitáveis sob êsse ponto de vista e que
vêem compulsivamente um parceiro sexual em qualquer homem
Sexualidade e Afeição 115

ou mulher. Neste último subgrupo, a masturbação compulsiva


pode, embora não deva forçosamente, tomar o lugar das rela­
ções sexuais.
Há grandes variações nesse grupo, quanto ao grau de
satisfação física alcançada. O que o grupo tem em comum,
à parte da natureza compulsiva de suas necessidades sexuais,
é uma absoluta falta de critério na escolha dos parceiros; suas
características são as mesmas citadas em nossa apreciação geral
em tôrno das pessoas que têm uma necessidade neurótica de
afeição. Ademais, é de causar espécie a discrepância entre
sua facilidade para ter relações sexuais, concretas ou imagi­
nárias,. e o profundo distúrbio de seu relacionamento emocio­
nal com outras pessoas, distúrbio êsse que é mais pronunciado
do que o da pessoa comum acossada por uma ansiedade básica.
Não se trata apenas dessas pessoas não poderem acreditar em
afeto, mas de realmente ficarem profundamente perturbadas
4 �uí no caso de homens, impotentes - quando lhes é ofere­
cido amor. Podem perceber sua prÓEria atitude defensiva ou
podem mostrar-se inclinados a inculpar os parceiros; neste
último caso, convencem-se de que nunca deparam com um
homem ou mulher digno de ser amado.
As relações sexuais, para gente assim, representam não
só a descarga de suas tensões sexuais propriamente ditas, mas
igualmente a única maneira de conseguirem comunicar-se· com
sêres humanos. Se uma pessoa convenceu-se de que é pràti­
camente inconcebível para ela conseguir afeição, então o con­
tato físico pode servir como um sucedâneo para as relações
emocionais. Nesse caso, a sexualidade é a principal, senão a
única, via de acesso a outras pessoas e, por isso, assume uma
importância descome�da.
Em algumas pessoas, a fal.�a de critério mostra-se com
referência ao sexo do possível parceiro; procurarão ativamente
relações com ambos os sexos, ou sujeitar-se-ão passivamente
a solicitações sexuais, que provenham de uma pessoa do mes­
mo sexo ou do sexo oposto. O primeiro tipo não nos interessa
aqui, visto como, embora nelas a sexualidade seja posta a ser­
viço do estabelecimento de contatos humanos, difíceis de obter
doutra forma, a causa imediata não é tanto uma necessidade
de afeição quanto o empenho para conquistar, ou mais preci­
samente, para submeter outros. ltsse empenho pode ser tão
imperioso que as diferenças de sexo se tornem relativamente
116 A Personalidade Neur6tica

sem importância; tanto homens como mulheres têm de ser sub­


jugados, sexualmente ou de qualquer outro modo As do se­
gundo grupo, porém, que são prop_ensas a ceder a propostas
sexuais de qualquer sexo, são impelidas por uma necessidade
infinita de afeição, em especial pelo temor de perderem uma
outra pessoa com sua recusa a satisfazer-lhe os pedidos de
ordem sexual ou pelo fato de se defenderem contra quaisquer
pedidos, quer sejam justos ou injustos. Elas não querem per­
der a outra pessoa, porque a ligação com esta lhes é tão
pungentemente necessária.
Explicar o fenômeno das relações indiscriminadas com
ambos os sexos baseando-se em uma suposta bissexualidade,
é para mim uma interpretação falsa. Não há, em tais casos,
indícios de uma atração genuína pelo mesmo sexo. As apa­
rentes inclinações homossexuais desaparecem logo que uma
auto-afirmação perfeita haja tomado o lugar da ansiedade, tal
e qual desaparece igualmente a indiscriminação relativamente
ao sexo oposto.
O que foi dito de atitudes bissexuais também pode lan­
çar alguma luz no problema da homossexualidade. Com efeito,
há muitos estágios intermediários entre o referido tipo "bis­
sexual" e o tipo nl.tidamente homossexual. Na história dêste
há. fatôres definidos que explicam o fato de êle excluir as pes­
soas do sexo oposto como parceiros sexuais. Evidentemente, o
problema da homossexualfüade é por demais intrincado para
que possa ser compreendido sob um único ponto de vista.
Basta dizer aqui que nunca vi uma pessoa homossexual em
que também não se achassem presentes os fatôres menciona­
dos no grupo "bissexual".
Nos últimos anos, tem sido assinalado por diversos auto­
res psicanalíticos que os desejos sexuais poaem ser exacerba­
dos sem inconveniente, porque a excitação e satisfação sexuais
servem como uma válvula ae escapamento para a ansiedade
e para as tensões psíquicas recalcadas. Talvez seja válida essa
explicação mecanicista. Acredito, no entanto, que também haja
processos psíquicos dérivados da ansiedade que conduzem ao
aumento das necessidades sexuais e que êles são suscetíveis de
identificação. Esta opinião fundamenta-se na observação psi­
canalítica e no estudo da história dêsses pacientes, conjugado
com o dos seus traços de caráter alheios à órbita sexual.
Sexualidade e Afeição 117

Pacientes dêsse tipo podem apaixonar-se ardentemente


pelo analista a princípio, exigindo impetuosamente uma retri­
buição de seu amor. Podem, também, manter-se consideràvel­
mente alheados durante a análise, transferindo sua necessida­
de de intimidade sexual a uma terceira pessoa que, segundo
demonstra o fato de ser parecida com o analista ou dos dois
serem identificados em sonhos, é tomada como substituta.
Finalmente, a necessidade dessas pessoas de estabelecer um
contato sexual com o analista pode aparecer exclusivamente em
sonhos ou em excitação sexual durante a entrevista. Os paci­
entes freqüentemente ficam de todo estupefatos ante êsses
sinais inconfundíveis de desejo sexual, porque nem se sentem
atraídos pelo analista nem de modo algum gostam dêle. De
fato, a atração sexual provinda do analista não exerce papel
perceptível, nem o temperamento sexual de tais pacientes é
mais impetuoso ou incontrolável do que o de outros, nem
tampouco sua ansiedade é maior ou menor que a de outros
pacientes : o que os caracteriza é um ceticismo entranhado
quanto a qualquer espécie de afeição genuína. 1!:les estão abso­
lutamente convencidos de que o analista, se está interessado
nêles, o está por outros motivos, e que no fundo do coração
êle os despreza, e provàvelmente lhes fará mais mal do que
bem.
Por causa da hipersensibilidade neurótica, reações de des­
peito, raiva e desconfiança ocorrem em tôda psicanálise, mas,
nesses pacientes de necessidade sexuais particularmente vigo­
rosas, elas constituem uma atitude permanente e rígida, criando
a impressão de que há um muro invisível, embora impenetrá­
vel, entre o analista e o paciente. Quando confrontados com
um problema pessoal diflcil, seu primeiro impulso é desistir,
interrompendo a análise. O quadro que apresentam nesta é
uma réplica exata do que têm feito durante tôda sua vida : a
diferença está somente em que, antes da análise, êles conse­
guiam evitar dar-se conta de quão frágeis e intrincadas eram
aeveras suas relações pessoais, e o fato de êles tão fàcilmente
se deixarem envolver sexualmente contribuía para confundir a
situação, levando-os a crer que sua facilidade para estabelecer
contatos sexuais significava que estavam tendo boas relações
hrlmanas em geral.
As atitudes que mencionei são tão regularmente encontra­
das juntas que, quando quer que um paciente, no início da
1 18 A Personalidade Neurótica

psicanálise, começa a mostrar desejos, fantasias ou sonhos


sexuais referentes ao analista, estou em condições de desco­
brir distúrbios profundos em suas relações pessoais. Segundo
tôdas as observações a êsse respeito, é relativamente secun­
dário o sexo do analista. Pacientes que trabalharam proveito­
samente com analistas masculinos e femininos, podem ter apre­
sentado uma curva idêntica de reação perante êles. Em casos
dêsses, por conseguinte, poderá ser grave êrro aceitar sem
maior exame como tais, desejos homossexuais manifestados em
sonhos ou sob outra forma.
Assim, falando dum modo geral, tal como "nem tudo o
que brilha é ouro", igualmente "nem tudo o que parece, é
sexualidade". Grande parte do que parece sexualiâade, de
fato pouco tem a ver com ela, sendo antes uma expressão do
desejo de reafirmação perante si mesmo e perante os demais.
Se não se levar isso em conta, poder-se-á superestimar o papel
da sexualidade.
O indivíduo cujas necessidades sexuais são acirradas sob
a pressão não identificada da ansiedade, tende ingênuamente
a atribuir a intensidade delas a seu temperamento inato ou ao
fato de estar liberto dos tabus convencionais. Ao fazê-lo,
comete o mesmo êrro dos que superestimam sua necessidade
de sono, imaginando que sua constituição imponha dez ou
mais horas de sono, q u a nd o realmente 8sse aumento pode ser
determinado por d iversas e m o çõ es recal cadas : o sono pode ser­
vir como um meio ele escapar n to d o s os conflitos. O mesmo
aplica-se ao co m e r ou beber co m p u l s i v os
. Comida, bebida,
sono, sexo - todos são n cccssiclndes vitais; sua intensidade varia
não apenas com a consti tuição elo indivíduo, mas com muitas
outras condições, como cl i m a , ausência ou presença de outras
satisfações, ausência ou p re s e n ça <lc estímulos externos, grau
de exaustividade do t rab a lh o e condições físicas existentes.
Tôdas essas necessidades, po rém podem ser agravadas por
,

fatôres inconscientes.
A conexão entre a sexualidade e a necessidade de afeição
vem esclarecer melhor o problema da abstinência sexual.
Quanto de abstinência sexual po d e ser bem tolerado, varia
com a cultura e com o indivíduo. No indivíduo, pode depen­
der de diversos fatôres psíquicos e físicos; é fácil entender, não
obstante, que um indivíduo que precisa da sexualidade como
válvula de escape para mitigar sua ansiedade, será particular-
Sexualidade e Afeição 1 19

mente incapaz de suportar qualquer abstinência, ainda que


de curta duração.
Essas considerações conduzem a certas reflexões em tôrno
do papel desempenhado p ela sexualidade em nossa cultura.
Temos a tendência de encarar com certo orgulho e conten­
tamento a nossa atitude liberal face à sexualiaade. J;: inegá­
vel que houve uma mudança para melhor desde a era vito­
riana: dispomos de maior liberdade nas relações sexuais e de
uma maior capacidade para encontrar nelas satisfação. Este
último ponto é particularmente verdadeiro no tocante às
mulheres; a frigidez não mais é considerada um estado nor­
mal nas mulheres, mas sim reconhecida em geral como defi,
'
ciência. A despeito da mudança, todavia, o aperfeiçoamento \
não é tão extenso quanto se poderia pensar, porquanto uma ,
boa soma de atividade sexual hoje em dia é mais um sangra­
douro para as tensões psíquicas do que um impulso sexual
)
·

legítimo, e deve ser olhado, portanto, antes como um sedativo


do que como prazer ou felicidade sexual legítima.
A situação cultural reflete-se, também, nas concepções
psicanalíticas. Uma das grandes realizações de Freud foi
haver êle tanto contribuído para dar à sexualidade sua devida
importância. Pormenorizanao, no entanto, são aceitos como
sexuais muitos fenômenos que na realidade exprimem condi­
ções neuróticas complexas, sobretudo a necessiaade neuróti.ca
de afeição. Por exemplo, desejos sexuais referentes ao analista
são comumente interpretados como repetições de uma fixação
sexual no pai ou na mãe, mas muitas vêzes não são de modo
algum desejos sexuais legítimos, mas apenas um esfôrço no
sentido de buscar um contato tranqüilizador para aliviar a
ansiedade. O paciente, sem dúvida, freqüentemente relaciona
associações ou sonhos - expressando, por exemplo, um desejo
de ficar no seio materno ou de retornar ao útero materno -
o que sugere uma "transferência" para pai ou mãe. Não deve­
mos esquecer, porém, que uma aparente transferência dêsse
tipo pode representar somente, sob a forma manifesta, um
desejo presente de afeição ao abrigo.
Mesmo que os desejos atinentes ao analista fôssem inter­
pretados como repetição direta de desejos semelhantes refe­
rentes ao pai ou à mãe, isso não provaria que o vínculo infan­
til com os pais fôsse, por si mesmo, um vínculo sexual genuíno.
Há muitas provas de que nas neuroses de adultos todos os
120 A Personalidade Neurótica

característicos de am or e ciúme, que Freud descreveu como


inerentes ao complexos edipiano, podem ter existido na infân­
cia, mas isso é menos freqüente ao que êle suspeitara. Con­
forme já mencionei, creio que o complexo edipiano, ao invés
de um processo primário, é o produto de diversos processos
de diferentes espécies. Pode ser a resposta, bem pouco com- ·

plicada de uma criança provocada por pais que lhe fazem


carícias com certa tonalidade sexual, ou de uma criança que
presencia cenas de atividade sexual, ou ainda de uma criança
cujo genitor faça dela o alvo de seu devotamento cego. Pode
ser, por outro lado, o resultado de um processo muito mais
intrincado. Segundo eu já disse, nas situações familiares que
proporcionam um solo fértil para o desenvolvimento de um
complexo edipiano, geralmente muito mêdo e hostilidade são
despertados na criança e sua repressão provoca nesta o apa­
recimento de ansiedade. Parece-me provável que, nesses casos,
o complexo de Édipo é acarretado pelo fato de a criança apegar­
se a um dos pais com o fito de tranqüilizar-se. Com efeito,
um complexo de Édipo plenamente desenvolvido, consoante
foi descrito por Freud, mostra tôdas as tendências - como exi­
gências excessivas de amor incondicional, ciúme, dominação,
6dio devido à rejeição - que são típicas da necessidade neu- ,
rótica de afeição. O complexo de Édipo, em tais casos, não '
�. é, pois, a origem da neurose, mas sim, êle próprio, uma for­
f. mação neurótica.
CAPÍTULO X

A Busca de Poder, Prestigio e Posses

A PROCURA DE AFEIÇÃO é uma maneira freqüentemente usada


em nossa cultura para conseguir-se tranqüilidade interior em
face da ansiedade; outra, é a luta pela conquista de poder,
prestfgio e posses.
Talvez caiba aqui explicar porque englobo o poder, o
prestígio e as posses como aspectos de um único problema.
Descendo-se a pormenores, por certo faz grande diferença para
a personalidade o fato de a tendência preaominante orientar-se
para um ou outro dêsses objetivos. Qual dêstes será o pre­
valente no afã do neurótico para obter tranqüilidade, vai
depender tanto de circunstâncias externas quanto de diferen­
ças de possibilidades individuais e estrutura psíquica. Se os
abordo como unidade é porque todos têm algo em comum
que os distingue da necessidade de afeição. A obtenção de
ãfeto significa conseguir reafirmar-se por meio de contato
intensificado com outras pessoas, ao passo que a busca do
poder, do prestígio e de posses implica em con seguir-se rea­
firmação afrouxando o contato com os outros e fortalecendo
sua própria posição pessoal.
O desejo de dominar, de alcançar prestígio, de adquirir
riqueza, não é certamente, em si mesmo, um traço neurótico,
exatamente como não o é também o desejo de afeto. Para
que se possa entender as características dos esforços do neu­
rótico nessa direção, é mister compará-los com os do homem
normal. O sentimento de poder, por exemplo, numa pessoa
,normal, pode nascer da consciência de sua própria superio­
ridade, seja em vigor ou destreza físicos, capaciaade intelec­
tual, maturidade ou sabedoria. Ou então poaerá estar ligado
a uma determinada causa particular: família, grupo profissio-
122 A Personalidade Neurótica

nal ou político, terra natal, idéias religiosas ou científicas. Pelo


contrário, a sêde de poder do neurótico brota da ansiedade,
do ódio e de sentimentos de inferioridade. Para sermos mais
explícitos : a aspiração normal ao poder nasce da fôrça e a
aspiração neurótica, da fraqueza.
Há, ainda, um fator cultural subentendido, pois o poder,
o prestígio e as posses pessoais não s ão igualmente valiosos
em tôdas as culturas. Entre os índios PueI>lo, para citar um
caso, são terminantemente reprovados os esforços para alcan­
çar poder e é mínima a diferença de posses individuais, de
modo que êste anelo também é de pouca monta; nessa cul­
tura seria fútil qualquer tentativa de mandar nos outros como
maneira de reafirmar-se. O fato de os n euróticos, em nossa cul­
tura, escolherem tal maneira, decorre de nossa estrutura social,
pois o poder, o prestígio e as posses podem dar impressão de
maior segurança.
Ao pesquisar as condições que levam o indivíduo a empe­
nhar-se na consecução dessas metas, torna-se evidente que
êste empenho usualmente só se manifesta quando ficou paten­
teada a impossibilidade de conseguir tranqüilizar a ansie­
dade oculta por meio da afeição. Citarei um exemplo que
mostra como pode desenvolver-se êsse empenho, sob a forma
de ambição, quando a necessidade de afeição é frustrada.
Uma menina era extremamente ligada ao il'mão, mais velho
que ela quatl'o anos. Entrcguvum-se a carícias de caráter mais
ou menos sexual, porém quando ela estava com oito anos o
irmão de repente repeliu-a, dizendo que agora já estavam
muito crescidos paru aquela espécie de brincadeira. Pouco
·

depois, a menina revelou uma súbita e violenta ambição na


escola, certamente prnvocnd n pel a decepção em sua busca de
afeto, tão mais dolorosa pol' tratar-se de uma criança gue não
tinha muita gente a quem se upc � ar. O pai era indl.ferente
aos filhos e a mãe manifestava vis1vel preferência pelo irmão.
Não foi, porém, só decepção o que ela sofreu, mas igualmente
um terrível choque em seu orgulho. Ela não compreendia
que a modificação na atitude elo irmão fôra ditada simples­
mente pela chegada da puberdade; por isso, sentiu-se enver­
gonhada e humilhada, e ainda mais porque sua confiança em
si própria havia repousado em uma base demasiadamente
instável. Antes de mais nada sua mãe não a havia desejado,
e ela se sentia insi gnificante porque a mãe, uma bela mulher,
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 128

era muito admirada por todos; além do mais, o irmão não só


era preferido pela mãe como também servia de confidente
a esta. A vida conju gal dos pais não era feliz e a mãe dis­
cutia tôdas as suas dificuldades com o filho. Assim, n menina
sentia-se completamente abandonada. Fêz, contudo, mais uma
tentativa para obter o afeto de que carecia : apaixonou-se por
um menino a quem conheceu numa viagem, logo depois de
sua experiência penosa com o irmão; ficou bastante alvoroçada
e começou a engendrar maravilhosas fantasias acêrca dêsse
menino. Quando êste desapareceu, ela reagiu ao nôvo desa­
pontamento apresentando-se deprimida.
Como sucede amiúde em situações dêsse gênero, os pais
e o médico da família atribuíram seu estado a achar-se ela
numa turma por demais adiantada na escola. Tiraram-na desta,
mandaram-na para um lugar de veraneio para se divertir, e
depois puseram-na numa turma de série imediatamente infe­
rior a em que tinha estado antes. Foi então, aos nove anos
de idade, que a menina revelou uma ambição assaz desme­
dida. Não podia conceber senão a ser a primeira da classe
e suas relações com outras meninas, anteriormente amistosas,
sofreram consideràvelmente.
:Esse exemplo ilustra os fatôres típicos que concorrem para
produzir uma ambição neurótica : desde o comêço ela se sen­
tia insegura porque se julgava indesejável; criou-se um forte
antagonismo, que não podia ser manifestado porque a mãe, a
figura dominante da família, exigia admiração cega; o ódio
recalcado gerou uma grande ansiedade; seu respeito próprio
nunca tivera oportunidade para desenvolver-se; humilhada em
diversas ocasiões, a menina sentia-se definitivamente estigma­
tizada pela experiência com o irmão; falharam também as
tentativas para conseguir afeição como meio tranqüilizador.
Os esforços neurótico s em busca de poder, prestígio e pos­
ses servem não só como defesa contra a ansiedade, mas tam­
bém como um canal de descarga para a hostilidade reprimida.
Examinarei inicialmente como cada um dêsses esforços ofe­
rece uma defesa especial contra a ansiedade e, a seguir, como
servem à expansão de hostilidade par meio de processos
, especiais.
O anelo de poder serve, em primeiro lugar, como defesa
contra a impressão de desvalia, que vimos ser um dos ele­
mentos básicos da ansiedade. O neurótico é tão avês so a qual-
124 A Personalidatie Neurótica

quer semelhança longínqua de incapacidade ou fraqueza que


fugirá a situações que a pessoa normal considera corriqueiras,
tais como : aceitar orientação, conselho ou ajuda, qualquer
espécie de dependência de pessoas ou circunstâllcias, qualquer
ensejo de concordar ou de transigir com outras pessoas. :Esse
protesto contra a incapacidade não surge imediatamente em
tôda a sua intensidade, mas vai aumentando gradativamente;
quanto mais o neurótico se sente de fato embaraçado por suas
inibições, tanto mais árduo lhe será afirmar-se. Quanto mais
fraco êle fica de fato, tanto mais ansiosamente tem de evitar
qualquer coisa que de longe lhe lembre sua debilidade
Em segundo lugar, essa fome neurótica de poder serve
como proteção contra o perigo de sentir-se ou ser considerado
insignificante. O neurótico desenvolve um ideal rígido e irra­
cional de fôrça que o faz crer que deve ser capaz de con­
trolar, sem perda de tempo, qualquer situação, por mais difícil
que seja. l!:sse ideal associa-se ao orgulho e, conseqüente­
mente, o neurótico encara a fraqueza não só como uma amea­
ça mas também como uma desgraça. :E:le classifica as pessoas
em "fortes" ou "fracas", admirando aquelas e desprezando
estas. :e: também exagerado no que considera como fraqueza :
desdenha mais o u menos a todos o s que com êle concordam
ou que cedem a seus desejos, que têm inibições ou que não
controlam suas emoções tão bem de modo a m o strar sempre
uma fisionomia impassível. Tem raiva dessas mesmas carac­
terísticas quando as encontra em si próprio, sentindo-se humi­
lhado se tiver de admitir a existência de uma ansiedade ou
inibição nêle mesmo e, por iss o , despreza-se por ter uma neu­
rose e mostra-se ansioso por fozer disso um segrêdo; também se
despreza por não ser capaz de resolver sozinho êsse problema.
As formas especiais de que se revestirá tal anelo de poder
dependerão da áeficiência de poder que foi mais temida ou
desdenhada. Mencionarei aqui algumas manifestações mais
freqüentes.
O neurótico deseja exercer contrôle sôbre os outros assim
como sôbre si mesmo. Não quer que aconteça coisa alguma
<\ue não tenha sido por êle começada ou aprovada. :Esse inte­
resse em controlar pode assumir a modalidade atenuada de
conscientemente permitir ao outro ampla liberdade, insistindo,
porém, em saber de tudo o que êle faz e sentindo-se irritado
quando algo é conservado em segrêdo. As tendências para
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 125

controlar podem ser reprimidas a tal ponto que não só a pró­


pria pessoa, como também as gue a cercam, fiquem conven­
cidas de sua grande generosidade em dar liberdade aos demais.
Se a pessoa reprimir completamente o seu desejo de controlar,
todavia, poderá ficar deprimida, ou ter dores de cabeça, ou
distúrbios gástricos graves, tôda vez que a outra tiver um
encontro com um amigo ou imprevistamente chegar tarde em
casa. Não conhecendo a causa dos distúrbios, poderá atribui­
las ao tempo, a um êrro na alimentação ou a semelhantes cau­
sas triviais. Muito do que se parece com curiosidade é deter­
minado por um desejo secreto de controlar a situação.
Tôdas as pessoas dêsse tipo inclinam-se a quererem sem­
pre estar certas e irritam-se quando alguém prova que estão
enganadas, mesmo quando se trata do detalhe mais insigni­
ficante. Têm que saber tudo melhor do que qualquer outro,
uma atitude que às vêzes pode tomar-se embar açante de tão
conspícua. Pessoas que, a não ser por isso são honestas e
dignas de confiança, quando confrontadas com uma questão
cuja respostas desconhecem, podem fingir saber ou inventar
algo, ainda quando a ignorincia nesse caso particular em
nada possa desacreditá-las. Ãs vêzes, a pessoa acentua . a neces­
sidade de saber com antecedência o que vai suceder, ante­
cipando e prevendo tôdas as possibilidades. Essa atitude pode
ser acompanhada de má vontade para enfrentar quafquer
situação em que haja fatôres incontroláveis : "não se deve cor­
rer qualquer risco" . Quando a proeminência cabe ao auto­
contrôle, manifesta-se uma relutância em deixar-se arrastar
pelos sentimentos. A atração que uma mulher neurótica sente
por um homem pode subitamente converter-se em desdém se
êste apaixonar-se por ela. Pacientes dêste tipo têm dificulda­
des em ficar à vontade no decurso de sessões de livre associa­
ção, porquanto isso implicaria em perder o contrôle e deixar-se
arrastar para terreno desconheciáo.
Outra atitude que pode caracterizar o neurótico em seus
anelo de poder é o desejo de impor sua vontade. Pode ser
uma fonte constante de irritação aguda o fato dos outros não
fazerem exatamente o que espera dêles e exatamente na hora
em que conta com isso. A atitude de impaciência está ligada
de perto a êsse aspecto de sêde de poder. Qualquer demora,
qualquer espera forçada, mesmo que seja só pelo sinal do
tráfego, tomar-se-á uma causa de irritação. Na maior parte
126 A Personalidade Neurótica

das vêzes o próprio neurótico não se dá conta da existência,


ou pelo menos da extensão, de sua atitude mandona. � de
todo seu interêsse não a reconhecer nem modificar, pois ela
exerce importantes fu)Ilções defensivas; os outros tapipouoo
devem percebê-la, pois se o fizerem há o perigo dêle perder
sua afeição.
Essa falta de consciência tem repercussões importantes
nas relações amorosas. Se um namorado ou marido não cor­
responde exatamente às expectativas, se se atrasa, se não tele­
fona ou sai da cidade, a mulher neurótica acha que êle não
a ama. Em vez de perceber que o que ela sente é urna sim­
ples reação de raiva ante uma desobediência aos desejos dela,
que o mais das vêzes nunca foram manifestados por palavras,
ela interpreta a situação como uma prova de não ser querida.
Essa falácia é deveras muito freqüente em nossa cultura, con­
tribuindo poderosamente pam o sentimento de não se ser que­
rida que é, amiúde, um fator crucial nas neuroses. Via de
regra, aprende-se isso com os pais. Uma mãe dominadora, ao
sentir-se ressentida devido a urna desobediência do filho, acre­
ditará e afirmará que o filho nüo a ama. Uma estranha con­
tradição nasce reiteradas v8zes dessa base e pode frustrar con­
sideràvelmen te quaisquur rdnçfü•s umornsas. Môças neuróticas
não podem amar um homem "fraco" devido a seu desprêzo
por qualquer forma do fruquczu, mas tamp ouco podem dar-se
bem com um homem "forte" porque esperam que o parceiro
sempre se dê por vencido. Por isso, o que elas procuram
secretamente é o herói, o homem supcrforte, que ao mesmo
tempo seja tão fraco que so dobre unte tôdas as suas vontades
sem titubear.
Outra atitude no anelo de poder é a de nunca ceder. Con­
cordar com urna opinião ou aceitar conselho, ainda quando jul­
gados certos, é considerado fraqueza, e a mera idéia de incor­
rer nela provoca revolta. As pessoas para quem esta atitude
é importante, tendem a ser "do contra" e, só de mêdo de ceder,
compulsivamente adotam sempre uma opinião antagônica. A
manifestação mais generalizada desta atitude é a insistência
secreta do neurótico de que o mundo devia adaptar-se a êle
em vez dêle adaptar-se ao mundo. Uma das dificuldades
básicas da terapêutica psicanalítica provém dessa causa. A
razão decisiva da análise do paciente não é conseguir conhe­
cimento ou discernimento, mas sim usar êste discernimento de
A Busca do Poder, P1·estígio e Posses 127

modo a modificar suas atitudes. A despeito de reconhecer que


uma modificação viria em seu próprio beneficio, o neurótico
dêste tipo detesta a possibilidade de modificar-se porque para
êle, isso significaria uma transigência definitiva. tste tipo de
incapacidaae também tem conseqüências nas relações amoro­
sas. O amor, qualquer que seja o seu conteúdo, sempre implica
em entregar-se, em ceaer aos sentimentos da pessoa amada
assim como aos próprios. Quanto mais a pessoa, homem ou
mulher, fôr incapaz de uma tal capitulação, tanto mais insatis­
fatórias serão as suas relações amorosas. ���� J.!lesmo fator
pode ser aplicável igualmente à frigidez, já que o fato de che­
gar ao . orgasmo pressupõe exatamente essa capacidade de
�bandonar-se completamente.
A influência que, segundo vimos, o anelo de poder exerce
nas relações amorosas, habilita-nos a compreender melhor
muitas das implicações da necessidade neurótica de afeição.
Grande número das atitudes subentendidas na busca de afei­
ção não podem ser bem interpretadas sem se levar em conta o
papel que nelas desempenha a ânsia de poder.
A busca do poder, segundo vimos, é uma proteção con­
tra a impressão de desvalia e de insignificância. Esta última
função é compartilhada na busca de prestígio. ,
O neurótico compreendido neste grupo desenvolve uma
necessidade coerciva de impressionar outras pessoas, de ser
admirado e respeitado. tle sonhará impressionar outros com
sua beleza, inteligência ou com algum feito notável; gastará
dinheiro perdulàriamente e de modo a ser notado; terá que
estar em condições de falar a respeito dos mais recentes livros
e peças e de conhecer pessoas eminentes. Não poderá aceitar
que pessoa alguma - amigo, cônjuge, empregado - não o
aclinire. Todo o seu respeito próprio repousa nêle ser admi­
rado e reduz-se a nada se não receber provas dessa admira­
ção. Devido à sua sensibilidade excessiva, e a sentir-se cons­
tantemente alvo de humilhações, a vida lhe é um tormento
constante. Muitas vêzes não perecebe que se sente humilhado,
pois a consciência disto lhe seria por demais dolorosa; per­
cebendo ou não, porém, êle reage a qualquer sentimento assim
com uma raiva proporcional à dor sentida. Por isso, sua ati­
tude propende a gerar constantemente nova hostilidade e nova
ansiedade.
128 A Personalidade Neur6tica

Somente para fins descritivos, uma tal pessoa poderia ser


chamada de narcisista. Encarado dinâmicamente, contudo, êsse
nome pode dar margem a erros, pôsto que, embora essa pes­
soa esteja constantemente preocupada em inflar seu ego, não
o faz essencialmente por amor-próprio, mas para proteger-se
contra um sentimento de insignificância e humilhação ou, mais
e"Pllcitamente, faz isso para ressarcir seu respeito próprio
alquebrado.
Quanto mais remotas forem suas relações com outras pes­
soas, tanto mais poderá interiorizar-se sua sêde de poder; ela
aparece, então, com uma necessidade de ser infalível e mara­
vilhosa ante seus próprios olhos. Qualquer deficiência, quer
seja reconhecida como tal ou apenas vagamente sentida, é
considerada humilhação.
Em nossa cultura, a proteção contra a desvalia, a insigni­
ficância ou a humilhação também pode ser procurada por
meio da busca de posses, partindo-se do princípio de que
riqueza dá poder e prestígio. A procura irracional de have­
res acha-se tão difundida em nossa cultura que só fazendo
comparações com outras culturas é que se pode concluir que
ela não constitui um instinto geral da humanidade, quer sob
a forma de um instinto aquisitivo quer sob a de uma subli­
mação de impulsos biológicos. Mesmo em nossa cultura, a
procura compulsiva de bens desvanece-se logo que diminuem
ou são afastadas as ansiedades que a determinam.
As posses servem de proteção contra o mêdo específico
de empôbrecimento, miséria, dependência de outros. O temor
ao empobrecimento pode agir como um acicate, obrigando a
pessoa a trabalhar incessantemente e a nunca perder uma opor­
tunidade de ganhar dinheiro. O caráter defensivo dessa pro­
cura é patenteado por sua incapacidade em utilizar o dinheiro
para aproveitar melhor a vida. A busca de haveres não pre­
cisa voltar-se unicamente para o dinheiro ou coisas materiais,
mas pode aparecer como uma atitude dominadora em relação
a outras pessoas, · servindo como proteção contra a perda de
afeição. Como êsse fenômeno de dominação é assaz conhe­
cido, particularmente através de sua ocorrência na vida con­
jugal, em que a lei fornece uma base legal para essas reivin­
dicações, e como suas características são bem semelhantes as
descritas no estudo do anelo de poder, não citarei exemplos
especiais aqui.
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 129

.
Os três anelos que descrevi servem, segundo á disse, não
J
só como meio de tranqüilizar-se contra a ansieda e, mas tam­
bém como meios para expandir a hostilidade. Dependendo do
anelo predominante, essa bostilidade pode revestir-se do aspec­
to de uma tendência para oprimir, uma tendência para humi­
lhar ou uma tendência para despojar outras pessoas.
A característica opressora do anelo neurótico de poder
não precisa aparecer necessária e abertamente como hostili­
dade contra os outros. Pode estar disfarçada sob formas social­
mente apreciadas ou humanísticas, como por exemplo uma ati­
tude de dar conselhos, gostar de dirigir a vida de outras pes­
soas, tomar a iniciativa ou pôr-se à frente dos outros. Porém,
se houver hostilidade oculta nessas atitudes, as outras pessoas
- filhos, cônjuge, empregados - sentirão e reagirão, seja sub­
metendo-se, seja opondo-se. O próprio neurótico geralmente
não se apercebe da hostilidade latente; ainda que fique enfu­
recido quando as coisas não correm a seu gôsto, continua sus­
tentando sua crença de que é essencialmente uma pessoa deli­
cada, apenas aborrecida porque as demais se lhe opõem de
forma tão cruel. O que ocorre de fato, no entanto, é que a
hostilidade do neurótico amolda-se sob formas civilizadas e
explode quando êle não consegue impor sua vontade. As opor­
tunidades que dão origem a essa irritação não suscitariam em
outras pessoas a idéia de oposição, mas sim uma simples diver­
gência de opinião ou uma desatenção a seus conselhos. En­
tretanto, banalidades assim podem produzir uma ira conside­
rável. Pode-se olhar a atitude opressora como uma válvula
de segurança graças à qual pode ser liberada uma certa dose
de hostilidade sob forma não destruidora. Já que ela é, em
si mesma, uma expressão atenuada de hostilicfade, constitui
um meio de controlar impulsos puramente destruidores.
A raiva que nasce do antagonismo pode ser reprimida
e, como vimos, a hostilidade reprimida pode então ter como
resultado uma nova ansiedade, manifestada através de depres­
são ou fadiga. Como as oportunidades que dão margem a
essas reações são tão inexpressivas, a ponto de passar desper­
cebidas, e como o neurótico não se dá conta de suas pró­
prias reações, êsses estados de depressão ou ansiedade podem
parecer desprovidos de estímulos externos. Só a observação
meticulosa pode, aos poucos, desvendar a ligação entre os
incidentes estimuladores e as reações subseqüentes.
130 A Personalidade Neurótica

Outra peculiaridade, decorrente da compulsão para opri­


mir, é a incapacidade da pessoa para estabelecer qualquer
relação em têrmos de igualdade : ou bem ela dirige ou então
sente-se inteiramente perdida, dependente e inerme. lt tão
autocrática, que tudo que não seja· domínio absoluto é visto
como subjugação. Se sua raiva fôr recalcada, isto fará com
que se sinta deprimida, desencorajada e cansada. O que é
percebido como incapacidade, contudo, pode ser uma maneira
tortuosa de assegurar seu domínio ou de exprimir hostilida­
de por não poder comandar. Uma mulher, para citar um
exemplo, estava dando uma volta com o marido em uma cidade
estranha. Até certo ponto ela havia estudado o mapa com
antecedência e assumiu a direção. Quando, porém, chegaram
a lugares e ruas que tila não havia estudado no mapa, e onde,
por isso, sentia-se insegura, teve de deixar-se orientar pelo
marido. Conquanto tivesse estado alegre e ativa até então, re­
pentinamente sentiu-se esmagada pelo cansaço e mal podia
aar um passo. A maioria de nós conhece relações entre casa­
dos, irmãos e amigos, cm que a pessoa neurótica age como um
condutor escravo, usando sua debilidade como chicote para
obrigar o outro a atend<lr às suas vontades, de modo a exigir
atenção e auxílio permu11cntes . lt c ara cter ís t ico dessas situa­
ções que a pessoa neuróticn nunca se beneficie dos esforços
feitos em prol dela, mas corresponde apenas com novas quei­
xas e exigências, ou o que é pior, com acusaç6es de estar sendo
negligenciada e explorada.
A mesma conduta pode ser observada no curso da aná­
lise. Pacientes dêsse tipo solicitam aju da desesperadamente,
mas não só deixam de seguir qualquer sugestão como também
se queixam de não estar recobcnôo auxílio. Se conseguem
ajuda para chegar à compreensão de certa particularidade,
imediatamente retrocedem para sua aflição anterior e, como
se nada tivesse sido feito, dão um jeito de anular o discerni­
mento que resultara de duras penas do analista. Aí o paciente
obriga o analista a empregar novos esforços que, uma vez
mais, estarão fadados ao insucesso.
O paciente pode receber uma dupla satisfação dessa situa­
ção : mostrando-se indefeso, êle alcança um sabor de triunfo
ao conseguir forçar o analista a servi-lo como escravo; ao mes­
mo tempo, essa estratégia tende a evocar sentimentos de im­
potência no analista, e assim, já que seus próprios enreda-
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 131

1 11011 tos o impedem de dominar de uma forma construtiva, êle


u11cu11 lra uma possibilidade de dominação destruidora. Não
6 m ister dizer que a satisfação assim obtida é inteiramente
l ncousciente, da mesma maneira que a técnica utilizada para
c o 1 1 s u gui-la é aplicada inconscientemente. Tudo que o pró­
p1·Jo paciente percebe é que precisa muito de ajuda e não
u ob tém. Por conseguinte, o paciente não só se sente comple­
tnmente justificado perante si próprio em agir como age, mas
tnmbém se sente com todo o direito de ficar zangado com
o analista. Ao mesmo tempo, êle não pode deixar de regis­
trar o fato de estar empenhado em uma brincadeira pérhda
o, conseqüentemente, teme ser descoberto e punido. Portanto,
l lnra detender-se, acha necessário fortalecer sua posição e o
nz invertendo as posições. Não admite que êle secretamente
esteja realizando uma agressão destrutiva, mas sim acredita
que o analista é que está; negligenciando-o, tapeando-o e mal­
tratando-o. Essa posição, todavia, só pode ser imaginada e
sustentada com convicção se êle se sentir realmente como
vitima. Uma pessoa nesse estado não tem interêsse em admi­
tir que está sendo maltratada; pelo contrário, apresenta um
forte interêsse em manter sua convicção. Sua insistência de
que está sendo sacrificada dá muitas vêzes lugar à impressão
de que quer ser maltratada. Na realidade, ela não quer isso
mais do que qualquer um de nós, mas sua crença de o estar
sendo adquiriu uma função excessivamente importante para
ser fàcilmente abandonada.
A atitude opressiva pode conter tanta hostilidade latente
que esta passa a criar nova ansiedade. Isso pode dar, então,
como resultado, inibições como a incapacidade para dar ordens,
para ser resoluto, para exprimir uma opinião peremptória,
fazendo com que o paciente dê freqüentemente uma impres­
são inexata de ser condescendente. Por sua vez, isto leva-o a
confundir suas inibições com brandura inata.
· · As pessoas em que predomina o anelo de prestígio, a
hostilidade comumente se apresenta como um desejo de humi­
lhar os outros. :Esse desejo tem primazia nos indivíduos cujo
1·cspeito próprio foi ferido por humilhações, tornando-os, p or
Jsso, vingativos. Normalmente, êles passaram por uma serie
do experiências humilhantes na infância, experiências essas
rulacionadas seja com a situação social em que cresceram -
como fazer parte de uma minoria ou ser pobres tendo paren-
182 A Personalidade Neurótica

tes ricos - seja com sua própria situação individual, como ser
desfavorecido em benefício de outros filhos, repelido com des­
prêzo, tratado como joguete pelos pais, ser às vêzes mimado
e outras tratado àsperamente ou de maneira a ficar envergo­
nhado. Freqüentemente, experiências dêsse gênero são esque­
cidas por serem dolorosas, mas retornam à consciência se
forem esclarecidos os problemas atinentes à humilhação. Em
neuróticos adultos, sem embargo, nunca podem ser observa­
dos os resultados diretos dessas situações infantis, mas somente
os indiretos, resultados que foram reforçados através de um
"círculo vicioso" : um sentimento de humilhação; · um desejo
de humilhar outros; incremento da sensibilidade à humilhação
devido ao mêdo à retaliação; incremento do desejo de humilhar
outros.
As tendências para humilhar são veementemente repri­
midas, em regra porque o neurótico, sabendo por sua pró­
pria experiência como se sente ferido e vingativo quando humi­
lhado, fica instintivamente receoso de reações análogas nos
outros. Não obstante, algumas dessas tendências podem emer­
\
gir sem que êle delas tenha consciência : em um desca so irre­
fletido pelos outros ( como deixá-los à e � era ) , em deixar
involuntàriamente os outros em situação em Jbaraçosa, em dei­
xar os outros sentirem-se dependentes. Mesmo que o neurótico
esteja completamente alheio a seu desejo de humilhar os outros
ou a tê-lo ,fito, suas relações com êles serão tomadas por uma
ansiedade cTIIusa que se revela em uma permanente anteci­
pação de reprimenda ou humilhação para si mesmo. Voltarei
adiante a tais temores, ao examinar o mêdo de fracassar. Ini­
bições oriundas dessa sensibilidade à humilhação aparecem
reiteradas vêzes sob a forma de uma necessidade de evitar
qualquer coisa que possa parecer humilhante para outros;
assim, um neurótico, por exemplo, pode ser incapaz de criti­
car, de recusar um of�recimento, de despedir um empregado,
daí resultando êle parecer excessivamente indiferente ou polido.
Finalmente, a tendência para humilhar pode estar oculta
sob a capa de uma tendência para admirar. Como infligir
humilhação e conferir admiração são coisas diametralmente
opostas, esta oferece o melhor meio de erradicar ou disfar­
çar tendências para aquela. Tal é a razão porque êsses dois
extremos são amiúde encontrados na mesma pessoa. Diversas
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 188

11 n o n11 m aneir a s de p ossível distribuição das duas atitudes e


YlU'lnm com o indivíduo. Podem aparecer separados em dife­
rt111 l rn1 períodos de vida, sucedendo-se a um desdém geral pelas
llt1NNOIHI uma idolatria de heróis; quiçá, haja admiração pelos
1 1 1 1 1 1 tm11 e desprêzo pelas mulheres, ou vice-versa; ou então,
podo h aver uma admiração cega por uma ou duas pessoas e
u m cfosprêzo igualmente cego pelo resto do mundo. :e: no
processo da análise que se pode observar como as duas atitu­
'1 1111 runlmente coexistem. Um paciente pode, a um só tempo,
ndmirar e desprezar cegamente o analista, seja eliminando um
dos sentimentos seja oscilando entre ambos.
Na luta pela conquista de posses, a hostilidade usualmente
apresenta-se como uma tendência para espoliar outros. O
desejo de burlar, roubar, explorar ou frustrar outros não é por
Ni mesmo neurótico. Pode ser condicionado pela cultura ou
justificado pela situação do momento, ou então ser normal­
mente considerado uma questão de conveniência. No neu­
rótico, contudo, essas tend.;ncias contêm uma alta carga emo­
tiva. Ainda que as vantagens concretas que lhe advenham
disso sejam negligíveis ou irrelevantes, êle se sentirá jubiloso
o triunfante quando obtiver êxito; para conseguir uma pechin­
cha, por exemplo, talvez desperdice tempo e dinheiro abs o­
lutamente desproporcionais à soma economizada. Sua satis:­
fação com o sucesso tem duas origens : a impressão de ter
sido mais esperto que os outros e o sentimento de havê-los
prejudicado.
Essa tendência para despojar outros reveste-se de múlti­
plas formas. O neurótico sentir-se-á ressentido com um médico
se não fôr tratado gratuitamente ou por menos do que pode
pagar. Zangar-se-á com os empregados se não quiserem tra­
balhar horas extraordinárias sem receber a gratificação cor­
respondente. Nas relações com amigos e com os filhos, a
tendência para explorar é muitas vêzes justificada alegando que
l\les lhe devem obrigações. Os pais podem destruir realmente
as vidas dos filhos exigindo sacrifícios sob êsse pretexto; mes­
mo ·que a tendência não apareça de forma tão destrutiva, qual­
quer mãe que proceda convencida de que os filhos existem
para proporcionar-lhe satisfações, propende a explorá-los emo­
cionalmente. Um neurótico dêsse tipo também pode tender
n denegar coisas aos outros, recusando-se a dar dinheiro que
deve pagar, informações que pode dar ou satisfação sexual
184 A Personalidade Neurótica

que êle levou outros a esperarem. A presença de inclinações


predatórias pode ser indicada pela repetição de sonhos a res­
peito de roubos, ou então pode revelar-se por impulsos cons­
cientes para furtar, que são controlados; a pessoa pode ter
sido, ?e fato, cleptomaníaca em determinada época de sua vida.
Pessoas que pertencem a êsse tipo geral, muitas vêzes não
se apercebem de que propositadamente despojam outros. A
ansiedade associada ao desejo de fazê-lo pode ter como resul­
tado uma inibição sempre que se espera alguma coisa dessas
pessoas, de modo que, por exemplo, esqu ecem-se de comprar
um presente de aniversário que está sendo aguardado ou ficam
impotentes quando uma mulher está desejando entregar-se.
Essa ansiedade, entretanto, nem sempre leva a uma inibição
concreta; pode, porém, aparecer sob a forma de um mêdo
rec6ndito de estarem explorando ou esbulhando outros, como
deveras estão, conquanto conscientemente repudiariam com
indignação qualquer insinuação nesse sentido. O neurótico
pode até ter êsse mêdo relativamente a certas de suas ativi­
dades em que essas tendências não se acham presentes, ao
mesmo passo que permanece inconsciente ao fato de em outras
êle explorar ou espoliar os outros.
Essas tendências para espoliar outros são acompanhadas
por uma atitude emocional de inveja rancorosa. A maioria de
nós sentirá certa inveja qunndo outros obtêm determinada van­
tagem que nós mesmos gostaríamos de alcançar. Na pessoa
normal predomina o fato dela desejar obter essas vantagens ·
para si; na neurótica, predomina seu rancor contra os outros,
mesmo que ela absolutamente não se interesse por tais van­
tagens. Mães dessa espécie costumam mostrar má vontade
ante a alegria dos filhos, dizendo-lhes que "quem ri hoje cho­
rará amanhã".
O neurótico tentará disfarçar a rudeza de suas atitudes
antagónicas sob a capa de uma inveja razoável A superio­
ridade dos outros, quer quanto a uma boneca, uma namorada,
lazer ou emprêgo, parece tão magnífica que êle se sente ple­
namente justificado em sua inveja Tal justificação somente
se toma possível graças a uma adulteração irrefletida dos fatos :
uma subestimativa do que êle próprio possui e uma falsa im­
pressão de que as vantagens que os outros têm s6bre êle são
realmente desejáveis. A auto-sugestão pode chegar ao ponto
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 185

<lo fazê-lo crer deveras que está em situação miserável por


não possuir aquela determinada superioridade em que a outra
pessoa lhe leva vantagem, esquecendo-se completamente que,
sob todos os demais pontos de vista, êle não quereria trocar
sua situação pela do outro Q _preço que o neurótico tem que
pagar por essa adulteração é a bicapacidade para fruir e apre­
ciar as possibilidades de felicidade que estão ao seu dispor.
Essa incapacidade, no entanto, serve para protegê-lo contra
a tão temida inveja dos outros. Não é que êle se abstenha
deliberadamente de satisfazer-se com o que tem, conforme o
fazem muitas pessoas normais que têm boas razões Eara se
defender contra a inveja de outras, e que, por isso, iludem­
nas a respeito de sua verdadeira situação; o neurótico recorre
a extremos, renunciando a todo e qualquer prazer. E, assim,
anula seus próprios objetivos : quer ter tudo, mas devido a seus
impulsos e ansiedades destruidores, acaba, no fim, de mãos
vazias.
É óbvio que a tendência para espoliar ou explorar, como
t8das as outras de caráter hostil que examinamos, não só nasce
de relações pessoais transtornadas, como apresenta como resul­
tado novos transtornos. Particularmente se f8r mais ou menos
inconsciente, como é a regra, essa tendência forçosamente
deixa a pessoa contrafeita ou mesmo tímida diante das outras.
Poderá comportar-se e sentir-se livre e natural ante pessoas . de
quem nada espera, mas ficará constrangida sempre que hou­
ver qualquer possibilidade de beneficiar-se de alguém. O bene­
fício pode dizer respeito a coisas materiais, como uma informa­
ção ou recomendação, ou então algo bem menos tangível, qual
seja a mera possibilidade de favores futuros. Isso se aplica às
relações eróticas como a t8das as demais. Uma neurótica dêsse
tipo pode ser franca e natural perante homens que não a
interessam, ao mesmo tempo que se sentirá embaraçada e
constrangida diante de um cujo afeto ela deseja, porque, a
seus olhos conseguir o afeto dêle significa tirar algo dêle.
Pessoas dessa espécie podem ter uma capacidade excep­
cional para ganhar dinheiro, o que orientará seus impulsos para
rumos lucrativos. Mais comumente, p orém, apresentam inibi­
ções no tocante a ganhar dinheiro, de modo que hesitam ao
exigir remuneração ou trabalham muito sem remuneração ade­
quada, aparentando, assim, maior generosidade do que real­
mente p ossuem. Prop enderão, pois, a fica:r descontentes c;:om
186 A Personalidade Neurótica

seus proventos insuficientes, muitas vêzes sem perceberem a


razão de seu descontentamento. Se as inibições do neurótico
tomarem-se tão multiformes a ponto de alastrar-se por tôda
sua personalidade, a conseqüência será uma incapacidade geral
para sustentar-se a si mesmo, e êle passa a ter que ser sus­
tentado por outros. Levará, então, uma vida parasitária, satis­
fazendo dessarte suas tendências para explorar. Tal atitude
parasitária não precisa apresentar-se necessàriamente sob a
forma grosseira de que "o mundo me deve sustentar"; pode
assumir formas mais sutis como a de esperar que os outros
lhe façam favores, tomem a iniciativa, dêem-lhe idéias para seu
trabalho : em resumo, êle passa a esperar que outros assumam
a responsabilidade por sua vida. Daí provém uma atitude
curiosa face à vida em geral : não tendo uma noção clara de
que a vida é sua e que dêle depende fazer algo para melhorá-la
ou prejudicá-la, passa a viver como se tudo que lhe aconte­
cesse não lhe disesse respeito, como se o bem e o mal viessem
do mundo exterior, não tendo êle nada a ver com isso, como
se êle tivesse direito de esperar boas coisas dos outros culpan­
do-os pelo que aparece de mau. Como nessas circunstâncias
normalmente ocorrem mais coisas más do que boas, é qua­
se inevitável uma crescente amargura contra o mundo. Essa
atitude parasitária pode ser encontrada também na necessidade
neurótica de afeição, especialmente quando essa necessidade
se une a uma forma de sofreguidão por favores materiais.
Outro fruto comum da tendência neurótica para despojar
ou explorar é a angústia de vir a ser logrado ou explorado por
outros. O neurótico pode viver ·com o mêdo constante de que
alguém se aproveitará dêle, de que lhe serão roubados dinheiro
ou idéias, e agirá com tôdns as pessoas com que lidar ani­
mado do receio de que elas possam estar querendo alguma
coisa dêle. Uma dose de ira, aparentemente desproporcional,
é liberada quando êle é realmente burlado, quando por exem­
glo, um motorista de táxi não segue o caminho mais curto ou
um garção lhe cobra preços excessivos. O valor psíquico de
projetarem-se as próprias tendências abusivas nos outros é evi­
aente. lt muito mais agradável a gente sentir-se justamente
indignada contra os outros do que enfrentar um problema de
ordem interna. Outrossim, pessoas histéricas repetidamente
recorrem a acusações como um meio de intimidação, ou então
procuram intimidar o outro de modo a fazê-lo sentir-se cul-
A Busca do Poder, Prestígio e Posses 137

pado e deixar-se maltratar. Sinclair Lewis descreveu brilhan­


temente essa tática no caráter da Sr.ª Dodsworth ( • ) .
As metas e funções da busca neurótica de poder, prestí­
gio e posses foram esquematizadas, bem a grosso modo, no
quadro abaixo :

REAFIRMAÇÃO HOSTILIDADE SOB


M E T A S
CONTRA A FORMA DE

poder . . . . . . . . . insegurança . . . . . . tende.oda para oprimir

prestigio . . . . . . . humilhação . . . . . . tendência para humilhar

posses . . . . . . . . . indigência . . . . . . . . tendência para espoliar


outros.

Credite-se a AHred Adler ter percebido e ressaltado a


importância dessas pretensões, o papel que elas desempenham
nas manifestações neuróticas e os disfarces sob que se apre­
sentam. Adler, todavia, presume que essas ânsias constituem
o traço supremo da natureza humana, carecendo por si mes­
mas de qualquer explicação ( 1 ) ; sua intensificação nos neuró�
ticos é por êle atribuída a sentimentos de inferioridade e a
insuficiência de ordem física ( • ) .
Freud também viu muitas das ilações dessas disposições,
porém não as considerou pertencentes à mesma classe. ltle
considera a busca de prestígio como uma expressão de ten-

( • ) N. T. - HAlllY l. SINCLAIR LEWIS ( 1885-1954 ) . Um dos maiores roman­


cistas norte-americanos, que alcançou fama na segunda década d&te século por
suas sátiras mordazes contra a fatuidade, hipocrisia, intolerAncia e vulgaridade da
vida das p equenas cidades dos Estados Unidos, especialmente do Centro-Oeste. Suas
obras maJS famosas, onde claramente se assinala a influência de H. L. MBNCKEN,
silo Main S t..eet ( 1920 ) , Babbitt ( 1922 ) , Arrowamith ( 1 925 ) e Elmer GantJy
( 1927 ) . A partir de 1930, procurou exaltar as instituições da familia, o nego­
ciante da classe média e a cidade pequena, que antes satirizara : Work of Art ( 1934 ) ,
The Prodig,al Parenta ( 1938 ) , DOOiworth ( 1929 ) , Ann Vickers ( 1933 ) , It Can't
Happen líere ( 1936 ) , Cass Timberlane ( 1945 ) , Kingsblood Royal ( 1947 ) , foram
os principais. Em 1930, foi o primeiro escritor norte-americano a receber o
Prêmio Nobel. Várias de suas obras foram publicadas em tradução brasileira pela
Editôra Globo de Pôrto Alegre.
( 1 ) A mesma avaliação unilateral da vontade de poder é encontrada em
NJB'IZSCHB, Der zur Macht.
( • ) N. T. - Para maiores pormenores, ler uma das mais interessantes obras
de Ai>LEB, A CUncia de Vitier, tradução de Thomas Newbands Neto, publicada
pela Livraria José OHmpio Edltôra, Rio de Janeiro. ( 5.• edição, 1956 ) .
188 A Personalidade Neurótica

dências narcisistas. Originalmente, considerou a busca de


poder, a busca de posses e a hostilidade nelas implícita como
aerivativos da ..fase anal-sádica"; posteriormente, porém, admi­
tiu que tais hostilidades não podiam ser restringidas a uma
base sexual e imaginou-as como uma expressão do "instinto
de morte", continuando assim fiel à sua orientação biológica.
Nem Adler nem Freud reconheceram o papel desempenliado
pela ansiedade na efetivação dêsses impulsos, nem tampouco
divisaram as inferências culturais das formas pelas quais êles
se exprimem.
,
CAPITULO XI

Competição Neurótica

Üs MEIOS DE OBTER PODER, prestígio e posses variam com a


cultura. Podem advir por direito de herança ou do fato do
indivíduo possuir certas qualidades valorizadas por seu grupo
cultural, como coragem, astúcia, capacidade para curar aoen­
tes ou para comunicar-se com fôrças sobrenaturais, instabili­
dade mental, e assim por diante. Podem também ser adqui­
ridos por atividades extraordinárias ou coroadas de sucesso,
realizadas graças a determinadas qualidades ou a circunstân­
cias fortuitas favoráveis. Em nossa cultura, à herança de posi­
ção e fortuna sem dúvida cabe certo papel. Se, no entanto, o
poder, prestígio e posses têm de ser adquiridos pelos esforços
do próprio indivíduo, êle se vê compelido a entrar em com­
petição com outros. Partindo de seu centro econômico, a com­
petição dissemina-se por tôdas as demais atividades e impregna
o amor, as relações sociais e a recreação. Por conseguinte, a
competição constitui um problema para todos em nossa cul­
tura, e não é de surpreender que seja um foco infalível de
conflitos neuróticos.
Em nossa cultura, a competição neurótica difere da nor­
mal em três aspectos. Primeiramente, o neurótico constante­
mente compara-se com os outros, mesmo em situações onde
isso não seja o caso. Conquanto o anelo de ultrapassar outros
seja essencial em tôda situação competitiva, o neurótico com­
para-se com pessoas que não são de maneira alguma seus com­
petidores e que não partilham de seus objetivos. A questão
ae saber quem é o mais inteligente, mais atraente, mais popu­
lar, é indiscriminadamente aplicada a todos. Seu sentimento
face à vida pode ser comparado ao de um jóquei em uma cor­
rida, para quem só importa uma coisa - estar à frente dos
demais. Essa atitude conduz forçosamente a uma perda ou
140 A Personalidade Neurótica

diminuição de interêsse real em qualquer causa. Não interessa


tanto o que êle está fazendo como o fato de quanto sucesso,
impressão ou prestígio poderá conseguir com isso. O neuró­
tico pode dar-se conta dessa atitude de cotejar-se com outros
ou pode fazê-lo automática e inconscientemente; raramente
percebe, de fato, tudo o que essa atitude representa para si.
A segunda diferença em relação à competição normal é
que a ambição do neurótico não é só realizar mais do que
outros ou ter maior êxito que êles, mas igualmente ser ímpar
e excepcional. Malgrado possa raciocinar no comparativo, sua
meta está sempre no superlativo. Pode perceber perfeitamen­
te que é impelido por uma ambição inexorável; mais comu­
mente, porém, reprime inteiramente sua ambição ou encobre-a
em parte. Neste último caso pode acreditar, por exemplo, que
não liga ao sucesso, mas só à causa em que está empenhado;
pode acreditar que não quer ficar em primeiro plano, mas
apenas manejar os cordéis dos bastidores; ou pode reconhecer
que outrora foi ambicioso, em certo período da vida - que,
quando menino, fantasiava acêrca de ser Cristo ou um segun­
do Napoleão ou de salvar o mundo da guerra, ou, se menina,
desejava casar-se com o Príncipe de Gales - mas asseverará
que desde então sua ambição amainou totalmente. Pode até
queixar-se dela ter declinado excessivamente e de que seria
conveniente reaver algo de sua antiga ambição. Se o indivíduo
a tiver reprimido inteiramente, propenderá a achar que a
ambição sempre lhe foi estranha. Só depois que algumas defe­
sas tiverem sido abaladas pelo analista é que êle se recordará
de haver imaginado coisas grandiosas a seu respeito ou
de pensamentos fugazes de ser o melhor em sua atividade,
de ser excepcionalmente inteligente ou bonito, de ter-se sur­
preendido sentindo-se espantado de que qualquer mulher pu­
desse apaixonar-se por outro homem quando êle estava por
perto, e, mesmo retrospectivamente, ressentir isso. Na maior
parte dos casos, sem embargo, ignorante da poderosa função
exercida pela ambição em suas reações, não dá nenhum valor
particular a pensamentos dêsse j�ez.
Uma ambição assim focaliza-se, às vêzes, em uma deter­
minada meta : inteligência, encanto, realizações de certa natu­
reza, ou moralidade. Outras vêzes, porém, a ambição não é
definida, difundindo-se por tôdas as atividades da pessoa: ela
tem de ser o supra-sumo em todo e qualquer setor de que se
Competição Neur6tica 141

aproxime. Pode querer ser simultâneamente um grande inven­


tor, um médico insigne e um músico incomparável. Uma mu­
lher pode querer ser não só a primeira em seu ramo de tra­
balho como igualmente uma perfeita dona de casa e a mulher
mais bem vestida. Adolescentes dêsse tipo talvez encontrem
dificuldades em escolher ou seguir uma carreira, visto como
a escolha de uma significa a renúncia a outras, ou, no mínimo,
a renúncia a uma parte de seus interêsses e atividades predi­
letas. Para a maioria das pessoas, seria deveras difícil conhe­
cer a fundo arquitetura, cirurgia e violino. �sses adolescentes
também podem iniciar seu trabalho com espetanças excessivas
e fantásticas : pintar como Rembrandt, escrever peças como
Shakespeare, ser capaz de fazer uma pedeita c ontagem de
glóbulos sanguíneos assim que começarem a trabalhar no labo­
ratório. Como sua ambição excessiva os induz a esperar
demais, ao ficarem aquém disso em suas realizações, áesen­
corajam-se e desapontam-se fàcilmente, sendo logo levados a
desistir de seus propósitos e a principiar outra coisa qualquer.
Muitas pessoas Eem dotadas dispersam dessa forma suas ener­
gias a vida inteira. Têm, de fato, grandes potencialidades para
realizar algo em diversos campos, mas, tendo interêsses e sub­
seqüentemente ambições em todos êles, são incapazes de
empenhar-se com persistência por qualquer objetivo; no fipl,
nada conseguem e deixam suas belas aptidões se desperdiçarem.
Quer haja ou não consciência da ambição, sempre há uma
grande sensibilidade a qualquer frustração da mesma. Até
mesmo um sucesso pode ser considerado como um desapon­
tamento, porquanto não corresponde exatamente às expectati­
vas mirabolantes. Por exemplo, o sucesso obtido graças a uma
tese científica ou a um livro pode, não obstante, ser um desa­
pontamento, visto como o mundo não parou nem "o comércio
fechou", tendo suscitado apenas um interêsse limitado. Uma
pessoa dêsse tipo, depois de ter passado num exame difícil,
depreciará o s eu sucesso alegando que outros também pas­
saram. Essa tendência persistente a mostrar-se desapontado é
uma das razões pelas quais as pessoas assim não conseguem
desfrutar o prazer do sucesso. Adiante examinarei outras
razões. Naturalmente, elas são também extremamente sensíveis
a qualquer crítica. Muitas pessoas nunca conseguiram passar
de seu primeiro livro ou de seu primeiro quadro, porque se
sentiram profundamente desenconrajadas pelas mais brandas
142 A Personalidade Neurótica

críticas. Muitas neuroses latentes manifestaram-se pela primeira


vez ante a crítica de um superior ou a responsabilidade por
um fracasso, ainda quando a crítica ou o fracasso tenha sido
banal, ou, de qualquer modo, assaz desproporcional ao dissa­
bor mental resultante.
A terceira diferença com referência à competição normal
é a hostilidade implícita nas ambições neuróticas, cuja atitu­
de é a de que "ninguém senão eu deve ser bonito, capaz, vito­
rioso". A hostilidade é inerente a tôda competição intensa,
pôsto que a vitória de um dos competidores pressupõe a der­
rota do outro. Com efeito, é tamanho o grau de competição
destruidora em tôda cultura individualista que se hesita em
classificar isso, considerado isoladamente, como uma caracte­
rística neurótica : é quase um padrão cultural. Na pessoa neu­
rótica, porém, o aspecto destruidor é mais forte que o cons­
trutivo : é mais importante, para ela, ver outras derrotadas do
que se ver vencedora. Mais precisamente, a pessoa neurotica­
mente ambiciosa age como se lhe fôsse mais importante derro­
tar outros do que vencer. Na realidade, seu próprio sucesso é
da máxima importância para si, mas como sofre intensas ini­
bições de sucesso - conforme veremos posteriormente - o
único caminho que permanece aberto é ser, ou pelo menos
sentir-se, superior: prostrar os outros, abatendo-os até trazê­
los ao seu nível, ou melhor, abaixo.
Nas porfias competitivas de nossa cultura, muitas vêzes
é vantajoso procurar prejudicar um concorrente ou conter um
rival em potencial de modo n favorecer a própria situação
ou glória. O neurótico, todavia, é movido por um impulso
cego, indiscriminado e compulsivo a rebaixar os outros. Pode
fazer isso mesmo quando percebe que os outros não lhe podem
realmente causar dano, ou ainda quando sua derrota é per­
feitamente contrária aos próprios interêsses dêle. Seu senti­
mento pode ser descrito como uma convicção nítida de que
"só êle pode ter êxito", o que é uma outra maneira de expres�
sar a idéia de que "ninguém senão êle deverá ser vitorioso".
Pode haver uma dose enorme de intensidade emocional suben­
tendida nesses impulsos destruidores. Por exemplo, um homem
que escrevia uma peça foi tomado de fúria insensata ao saber
que um amigo seu também estava escrevendo uma peça.
:Esse impulso para anular ou frustrar os esforços de outros
pode ser encontrado em muitos tipos de relações interpessoais.
Competição Neurótica 1 43

l i 111jovum excessivamente ambicioso pode ficar subjugado por


11111 c l usejo de invalidar todos os esforços que os pais fazem
por ôlc. Se os pais instam com êle a respeito de procedi­
mc111to e sucesso social, desenvolverá um gênero de conduta
Hocfnlmente escandaloso. Se êles concentram esforços no de­
Htmvolvimento intelectual do filho, êste talvez apresente inibi­
i.:õcs no estudo tão veementes que possa parecer apatetado. Re­
col'<lo-me de duas jovens pacientes que me foram trazidas
como suspeitas de imbecilidade, malgrado ulteriormente se
demonstrassem bastante capazes e inteligentes. O fato de esta­
rem motivadas pelo desejo de frustrar os pais evidenciou-se em
suas tentativas para fazer o mesmo com relação ao psicanalista.
Uma delas fingiu, durante algum tempo, não me entender,
levando-me a titubear em minha opinião acêrca de sua inte­
ligência, até perceber que ela estivera sustentando contra mim
um jôgo idêntico ao que haviam usado contra os pais e pro­
fessôres. Ambas as jo".'ens tinham ambições vigorosas, mas no
início do tratamento estas se achavam completamente engol­
fadas por impulsos de destruição.
A mesma atitude pode aparecer face a lições ou a qual­
quer espécie de tratamento. Ao receber lições ou submeter­
se a um tratamento, é de todo interêsse para a pessoa tirar
proveito. Para o neurótico dêste tipo, contudo, ou falando
com maior exatidão, para a sua parte competitiva, toma-se
mais importante invalidar os esforços ou opor-se ao possível
sucesso do professor ou médico. E se êle pode lograr tal
objetivo por uma simples demonstração com sua própria pes­
soa de que nada foi conseguido, pagará de bom grado até o
preço de continuar ignorante ou doente, provando aos outros,
assim, que êles não são competentes. Não é preciso frizar
que êsse processo decorre inconscientemente; em sua mente
consciente essa pessoa está convencida de que o professor, ou
o médico, é de fato incapaz, ou não indicado para o seu caso.
Por isso, um paciente dêsse tipo terá um mêdo desco­
medido de que o analista tenha êxito consigo. Fará tudo para
anular os esforços do analista, apesar de com isso estar
obviamente prejudicando-se a si próprio. tle não só procurará
desorientar o analista ou esconderá dêste informações impor­
tantes, como pode mesmo permanecer nas mesmas condições
ou ficar dramàticamente pior, tanto quanto lhe fôr possível.
tle não contará ao analista a respeito de quaisquer melhoras
144 A Personalidade Neurótica

ou, se o fizer, será com relutância, queixando-se ou atribuindo


qualquer nova compreensão ou progresso a um fator externo,
como uma mudança de temperatura, o fato de ter tomado uma
aspirina ou algo que leu. :Ele não seguirá nenhuma orientação
dada pelo analista, tentando assim aemonstrar que êste está
absolutamente equivocado. Ou então apresentará como sua,
uma sugestão do analista que de início repelira violentamente.
:Este último procedimento pode ser observado amiúde na vida
quotidiana; constitui a dinâmica �o plágio inconsciente e
muitas disputas pela prioridade têm aí sua fundamentação
psicológica. Uma pessoa dessas não pode suportar a idéia de
que outra qualquer que não ela possa ter uma opinião nova.
Detratará francamente qualquer sugestão que não parta de si:
por exemplo, não gostará ou recusará um filme ou livro que
seja aconselhado por uma pessoa com que esteja competindo
·

na ocasião.
Quando tôdas essas reações, no decurso da análise, são
trazidas à consciência, o neurótico pode ter acessos indisfar­
çados de raiva após uma boa interpretação : vontade de que­
brar alguma coisa do consultório ou de dizer palavras insul­
tuosas ao analista. Ou então, após terem sido esclarecidos cer­
tos problemas, imediatamente lembrará que há ainda muitos
outros por solucionar. Mesmo que haja melhorado conside­
ràvelmente e reconheça isso intelectualmente, lutará contra
quaisquer sentimentos de gratidão. Há outros fatôres envol­
vidos no fenômeno da ingratidão, como o mêdo de incorrer
em obrigações, mas um elemento importante nêle é freqüen­
temente essa humilhação que o neurótico sente par ter de dar
crédito a alguém por alguma coisa.
Há muita ansiedade associada aos impulsos frustradores
devido ao fato do neurótico supor automàticamente que os
outros, após um malôgro, se sentirão tão magoados e vinga­
tivos quanto êle. Por conseguinte, êle fica ansioso quanto a
magoar outros e abstém-se de tomar conhecimento de suas
tendências frustradoras acreditando e insistindo que elas são
de fato justificáveis.
Se o neurótico tiver uma atitude fortemente depreciativa
terá dificuldade em formar uma opinião categórica, adotar uma
posição positiva ou tomar uma decisão construtiva. Uma opi­
nião terminante a respeito de uma pess o a ou de um assunto
poderá esboroar-se ante a mais ligeira contradita de outrem,
Competição Neur6tica 145

porq ue basta uma ninharia para por em jôgo sua vontade de


fnzer pouco.
Todos êsses impulsos destrutivos, implícitos na ânsia neu­
rótica de poder, prestígio e posses entram na luta competi­
tiva. Na porfiada competição geral que se processa em nossa
cultura, até a pessoa normal pode revelar essas tendências,
mas na neurótica elas se tornam impartantes por si mesmas,
independente de quaisquer desvantagens ou sofrimentos que
possam acarretar. A habilidade para humilhar, explorar ou
burlar outros converte-se em um triunfo de sua superioridade
ou, se falhar, em uma derrota. Muito da raiva manifestada
pelo neurótico quando incapaz de tirar proveito dos outros
aeve-se a êsse sentimento de derrota.
Se em determinada sociedade predomina um espírito de
competição individualista, êste tende a prejudicar as relações
entre os sexos, a não ser que estejam rigorosamente separados
os campos de atribuições do homem e da mulher. A com­
petição neurótica, sem embargo, produz estragos ainda maiores
que a comum, por causa de seu caráter destrutivo.
Nas relações amorosas, as tendências do neurótico para
vencer, subjugar e humilhar o parceiro desempenham vasto
papel. As re1ações sexuais convertem-se em um meio, quer
ae subjugar e degradar o parceiro, quer de ser subjugado 'e
degradado por êle, característica que é certamente de todo
alheia à natureza dessas relações. � comum criar-se uma
situação que Freud descreveu como uma partilha nas relações
amorosas do homem : um homem pode sentir-se atraído sexual­
mente só por mulheres abaixo de seu nível, não tendo desejo
nem potência com mulheres a quem ame e admire. Para uma
pessoa nessas condições, o intercurso sexual apresenta-se indis­
soluvelmente ligado a �endências para humilhar, de modo que
imediatamente recalca os desejos sexuais referentes a quem
ame ou a quem possa amar. Essa atitude muitas vêzes pode
ter suas origens ligadas à figura materna, por quem êle foi
humilhado e a quem em troca quis humilhar, mas por mêdo
ocultou êsse impulso sob a capa de um devotamento exage­
rado - situação freqüentemente chamada de fixação. No pros­
seguimento de sua vida êle encontra esta solução de dividir
as mulheres em dois grupo; a hostilidade remanescente contra
as mulheres a quem ama assume a forma de efetivamente
frustrá-las.
146 A Personalitlade Neurótica

Se um homem dêsse tipo trava relações com uma mulher


de posição ou personalidade igual ou superior, muitas vêzes
sente-se secretamente envergonlíado dela ao invés de orgulho­
so. Pode sentir-se extremamente perplexo ante essa reação,
visto como conscientemente não acha que uma mulher diminui
o valor por ter relações sexuais. O que êle ignora é que sua
vontade de rebaixar uma mulher por meio de relações sexuais
é tão forte que emocionalmente ela se lhe torna abjeta. Por­
tanto, ter vergonha dela é uma reação 16gica. Uma mulher,
também, pode sentir-se irracionalmente envergonhada de seu
amante, demonstrando-o através do fato de não querer ser
vista com êle ou de não perceber suas boas qualidades, esti­
mando-o assim menos do que realmente êle merece. A aná­
lise revela que ela possui a mesma tendência inconsciente
para aviltar o parceiro ( 1 ) . Normalmente ela tem essas ten­
aências igualmente com referência a mulheres, mas razões indi­
viduais fazem com que sejam mais acentuadas em suas rela­
ções com homens. Tais razões individuais podem ser de
diferentes gêneros : ressentimento contra um irmão preferido,
desdém por um pai fraco, convicção de não ser atraente e
por isso antecipar a rejeição masculina, etc. Outrossim, ela
pode sentir mêdo demasiado às mulheres para permitir que
se manifestem suas tendências para humilhá-las.
As mulheres, assim como os homens, podem estar perfei­
tamente a par de sua intenção de sujeitar e humilhar o outro
sexo. Uma môça pode principiar um namôro com a motivação
declarada de colocar o hompm sob seu guante, ou pode atrair
os homens e largá-los logo que correspondam com afeição.
Geralmente, no entanto, o de�cjo ele humilhar não é consciente,
podendo revelar-se sob muitas formas indiretas. Pode, por
exemplo, tomar-se patente por um riso compulsivo ante as
investidas do h omem. Pode assumir a forma d� frigidez, modo
pelo qual ela mostra ao homem que êle é incapaz de satis­
fazê-la e consegue assim humilhá-lo, particularmente se por
sua vez êle tiver um mêdo neurótico de ser humilhado por
mulheres. O reverso da medalha - muitas vêzes encontrado
na mesma pessoa - é uma impressão de estarem abusando
( 1 ) DomAN FE1GENll AUM registrou um caso dêstes em um trabalho que
ser! publicado no "Psychoanalytic Quartely'', sob o titulo Mm"bid Shane ( Vergonha
Mórbida ) . Sua interpretação, contudo, difere da minha, pois em última anlllise
&le atribui a vergonlia à inveja do pênis. Muito do que n a literatura psicanalítica
6 encarado como tendência castradora das mulheres , e cuja oril'jem é atn'bufda
à inveja do pênis, em minha opinião resulta de um desejo de humilhar os homens.
Competição Neurótica 147

1 lnl11, l'Cbnixando-a e humilhando-a por meio de relações sexuais.


N11 t'l'll vitoriana, o padrão cultural para uma mulher era sen-
1 h• us relações sexuais como uma humilhação, sentimento êsse
111 1 0 ora atenuado se a relação fôsse legalizada e decentemente
Mglclu. Essa influência cultural tomou-se mais débil nos últi­
mos trinta anos, mas ainda é suficientemente robusta para res-
\loncler pelo fato das mulheres mais cornamente do que os
1omons julgarem gue as relações sexuais ferem sua dignidade.
I Hso também pode resultar em frigidez ou em manter os
homens completamente afastados, a despeito dos desejos de
con tato com êles. A mulher pode achar satisfação secundá­
rln nesta atitude graças a fantasias ou perversões masoquistas,
mus, nesse caso, gerar-se-á nela uma grande hostilidade con­
tra os homens por causa da humilhação antecipada.
Um homem que se sinta profundamente inseguro quanto
n sua masculinidade, fàcilmente desconfia de que s6 é aceito
p01·que a mulher tem necessidade de satisfação sexual, ainda
que haja provas suficientes de que ela gosta sinceramente
d ôle; por isso, revelará ressentimento achando que estão abu­
sando dêle. Ou então, pode sentir a falta de receptividade
por parte da mulher como uma humilhação intolerável e ficar
hiperansioso por satisfazê-la. A seus próprios olhos, esta gran­
de preocupação parece apenas uma prova de consideração�
sob outros aspectos, porém, êle pode ser grosseiro e descor­
tez, revelando, pois, que seu zêlo pela satisfação da mulher é
somente uma defesa para êle mesmo não se sentir humilhado.
Há duas formas principais de encobrir os impulsos frus­
tradores ou depreciativos : disfarçando-os sob uma atitude de
ndmiração ou intelectualizando-os por meio de ceticismo. O
ceticismo, está claro, pode ser a expressão autêntica de diver­
gências intelectuais existentes; s6 se tais dúvidas genuínas
puderem ser definitivamente excluídas é que se justifica a pro­
cura de motivos ocultos. 1l:stes podem estar tão à flor da
su,P erfície que s6 o fato de questionar-se a validade das
duvidas pode provocar um ataque de ansiedade. Um paciente
meu procurava menoscabar-me rudemente em tôdas as nossas
entrevistas, conquanto não o percebesse. Posteriormente, quan­
do lhe perguntei se realmente acreditava nas suas dúvidas
referentes à minha competência em certos assuntos, êle reagiu
ontrando em um estado de ansiedade grave.
1 48 A Personalidade Neur6tica

O processo é mais complicado quando os impulsos depre­


ciativos ou frustradores são encobertos por uma atitude de
admiração. Homens que secretamente desejam ferir e repelir
desdenhosamente as mulheres, em seus pensamentos conscien­
tes podem colocá-las em um pedestal elevado. Mulheres que
inconscientemente procuram sempre derrotar e humilliar
homens, podem ser dadas ao culto de "mocinhos". No culto
de "mocfuhos" do neurótico, tanto quanto no da pessoa nor­
mal, pode haver um sentimento genuíno em relação ao valor
e à grandeza, mas a característica especial da atitude do neu­
rótico reside no fato disso ser um acomodamento de duas
tendências : adoração cega do sucesso, sem levar em conta o
seu valor, por causa de seus desejos pessoais nesse sentido, e
uma camuflagem para seus desejos de destruição contra qual­
quer pessoa que se saia bem.
Certos conflitos matrimoniais típicos devem ser assim com­
preendidos. Em nossa cultura, os conflitos dizem respeito mais
amiúde às mulheres, porque para os homens há mais incen­
tivos externos ao sucesso e mais possibilidades para conse­
gui-los. Suponha-se que uma mulher do tipo que adora "moci­
nhos" case-se com determinado homem porque o sucesso po­
tencial ou real dêste a atrai. Como em nossa cultura a espôsa
participa em certo grau do sucesso do marido, isso pode pro­
porcionar-lhe alguma satisfação, enquanto o sucesso perdura.
Mas ela se vê em uma situação conflitiva : ama o marido por
seu sucesso e ao mesmo tempo odeia-o por isso; ela quer des­
truí-lo mas sente-se inibida ·porque, por outro lado, frui vicà­
riamente dêsse sucesso por participar dêle. Uma espôsa assim
pode trair seu desejo àe destruir o sucesso do marido pondo
em risco sua segurança financeira por meio de extravagã"ncias,
destruindo sua serenidade por meio de brigas irritantes, sola­
pando sua confiança em si mesmo por meio de uma insidiosa
atitude depreciativa. Ou então pode revelar seus desejos des­
trutivos impelindo-o incessantemente a buscar cada vez mais
sucesso, sem se incomodar com o bem-estar do marido. �sse
ressentimento propende a tomar-se mais evidente ante qual­
quer indício de declínio e, malgrado durante o sucesso i:lêle
ela possa ter-se mostrado uma espôsa amorosa sob todos os
aspectos, agora se voltará contra o marido em vez de ajudá-lo
e estimulá-lo, porque a vindita que estivera encoberta enquan­
to ela pôde pa;i:ticipar do sucesso dêle vem à tona logo que êle
Competição Neurótica 149

1 11011 1 !·11 11lnais de derrota. Tódas essas atividades destrutivas


poc ltim processar-se camufladas sob a · cap a do amor e da
1uh 11 ll'llçilo.
Pode ser citado outro exemplo familiar p ara mostrar como
11 nmor é empregado para compensar os impulsos frustrado-
1·1111 q u o nascem da ambição. Uma mulher foi sempre dotada
c l t1 J(l'llnde confiança em si própria, capaz e bem sucedida.
Ap6H o casamento ela não só desiste de seu trabalho como
tnmhém apresenta uma atitude de dependência e parece renun­
c•lnr inteiramente à ambição - tudo o que se costuma des­
urr.vor como "tornar-se verdadeiramente feminina". O marido
uornumente fica desapontado, pois esperava encontrar uma boa
companheira e, ao invés disso, vê-se com uma espósa que não
coopera mas coloca-se abaixo dêle. Uma mulher que sofra
1 1 1 1m tal transformação tem receios neuróticos a respeito de
11 11 us próprias potencialidades. Vagamente acha que será mais
11oguro conseguir os objetivos de sua própria ambição - ou
nmsmo apenas segurança - casando-se com um homem bem
1111ccdido ou em quem ela pelo menos percebe capacidade para
tnl . Até aí a situação não provoca necessàriamente nenhum
distúrbio, podendo, pelo contrário, ter êxito. Entretanto, a
mulher neurótica secretamente não concorda em renunciar à
sua ambição, sente-se hostil contra o marido e, em obediênci.(l
no princípio neurótico de tudo-ou-nada, mergulha em sentimen­
tos de insignificância e eventualmente torna-se uma nulidade.
Segundo afirmei antes, a razão dêsse tipo de reação ser
mais encontradiço nas mulheres do que nos nomens pode ser
ntribuída à nossa situação cultural, que qualifica o sucesso
como provativo da órbita masculina. Quanto a isto não ser
um traço inerentemente feminino, é atestado pelo fato de os
homens reagirem anàlogamente quando a situação se inverte,
isto é, quanao ocorre a mulher ser mais forte, mais inteligente,
mais bem sucedida. Por causa da crença de nossa cultura
na superioridade masculina em tudo que não seja o amor,
uma atitude dessas da parte de um homem é menos freqüen­
temente dissimulada pela admiração; comumente aparece bas­
tante indisfarçada, como uma sabotagem direta dos interêsses
e do trabalho da mulher.
O espírito de competição não só influi nas relações exis­
tentes entre homens e mulheres, como igualmente afeta a esco­
lha de um companheiro. Neste tocante, o que se vê nas neu-
150 A Personalidade Neurótica

roses é apenas uma imagem aumentada do que é muitas vêzes


normal em um� cultura competitiva. :€ comum a escolha de
companheiro ser determinada p ela ânsia de prestígio ou pos­
ses, ou seja, por motivos estranhos à esfera erótica. Na
pessoa neurótica essa determinação pode ser absolutamente
predominante, por um lado devido aos anelos de dominação,
prestígio e apoio serem mais compulsivos e inflexíveis do que
na pessoa comum, e, por outro, porque suas relações com
outras pessoas, inclusive do sexo oposto, estão por demais
perturbadas para possibilitarem-lhe uma escolha adequada.
A competição destrutiva pode fomentar os pendores
homossexuais de duas maneiras : primeiramente, fornece a um
sexo o impulso para afastar-se inteiramente do outro de modo
a evitar a competição sexual com seus iguais; em segun­
do lugar, a ansiedade que ela produz exige reafirmação, e
consoante foi já assinalado, a necessidade de uma afeição tran­
qüilizadora é muitas vêzes a razão para apegar-se a um com­
panheiro do mesmo sexo. :Este nexo entre a rivalidade des­
trutiva, a ansiedade e os impulsos homossexuais {> ode ser obser­
vado repetidamente no processo da análise, quando o paciente
e o analista são do mesmo sexo. Um paciente assim pode
atravessar um período em que se vanglorie de suas próprias
realizações e faça pouco do analista; a princípio, faz isso sob
tais disfarces que não se dá absolutamente conta de o estar
fazendo. A seguir, percebe sua atitude mas ainda está sepa­
rado de seus sentimentos e não tem consciência de quão pode­
rosa é a emoção que o impele. Depois, quando aos poucos
começa a sentir o impacto de sua hostilidade contra o ana­
lista e, ao mesmo tempo, começa a sentir-se cada vez mais
apreensivo - subitamente tem um sonho em que o analista
o abraça e dá-se conta das fantasias e desejos por um con­
tato mais estreito com o analista, assim revelando a necessi­
dade de acalmar sua ansiedade. Essa seqüência de reações
pode repetir-se diversas vêzes antes que o paciente acabe
sentindo-se capaz de enfrentar o problema de seu espírito de
competição tal como é.
Portanto, sintetizando, a admiração ou o amor pode ser­
vir como compensação para impulsos frustradores da seguinte
forma: impedindo que os impulsos destrutivos aflorem à cons­
ciência; eliminando totalmente o espírito de competição graças
Competição Neurótica 151

i\ cri a ção de uma distância intransponível entre si próprio e


o competidor; proporcionando um meio vicariante áe desfru­
tnr o sucesso ou àêle .participar; apaziguando o competidor e
precavendo-se, assim, contra sua vingança.
Embora estas observações referentes à influência da com­
petição neurótica nas relações sexuais estejam longe de esgotar
o assunto, bastam para mostrar como aquela pode prejudicar
ns relações entre os sexos. Isso é tanto mais sério porque o
próprio espírito de competição, gue em nossa cultura arruina
insidiosamente a possibilidade de se conseguirem boas rela­
ções entre os sexos, é ao mesmo passo uma fonte de ansiedade,
tornando ainda mais desejáveis, por conseguinte, essas boas
relações.
CAPÍTULO XI I

F uga à Competição

D EVIDO A SEU CARÁTER DESTRUTIVO, o esp írito de competição


nas pessoas neuróticas dá lugar a uma ilimitada ansiedade e,
conseqüentemente, leva-as a fugir à competição. Resta saber
de que provém essa ansiedade.
Não é difícil compreender que uma causa é o mêdo de
retaliação contra a sêde implacável da ambição. Quem mor­
tifica os outros, humilha-os e esmaga-os quando quer que
tenham ou desejem obter sucesso, deve temer que os outros
desejem derrotá-lo com a mesmíssima intensidaâe. Mas, um
tal mêdo à retaliação, conquanto se faça sentir em qualquer
um que consiga sucesso à custa de outros , não é nem pQ.r
sombras a única razão para o aumento da ansiedade do . neu­
rótico e para sua conseqüente inibição para competir.
A experiên cia indica que o mêdo à r etaliação só por si
não leva necessàriamente a inibições. Pelo contrário, pode ter
só como resultado um ajuste de contas a sangue frio com a
inveja, a rivalidade ou a malícia, imaginária ou real, dos outros,
ou então uma tentativa para ampliar o poder do indivíduo
considerado, de modo a defender-se contra qualquer malôgro.
Há um tipo de pessoa bem sucedida que tem como único
objetivo a aquisição de poder e riqueza - mas, se a estrutura
de sua personalidade fôr comparada com a de pessoa indu­
bitàvelmente neurótica, as diferenças são notáveis. O perma­
nente caçador-de-sucessos não liga ao afeto dos outros. Não
quer ou espera nada dos outros, não ajuda nem tampouco
revela indícios de qualquer generosidade. Sabe que pode alcan­
çar o que deseja sômente com seus próprios recursos e esfor­
ços. Está claro que se valerá das pessoas, porém, só se inco­
modará com o bom conceito destas no que lhe fôr útil para
154 A Personalidade Neurótica

a consecução de suas próprias metas. O afeto per se nada


significa para êle. Seus desejos e suas defesas seguem uma
linha reta: poder, prestígio, posses. Mesmo aquêle que é im­
pelido a êste gênero de conduta por conflitos internos não
apresentará as costumeiras caracter1sticas neuróticas se nada
houver em seu íntimo que interfira com seus anseios. O mêdo
o fará realizar maiores esforços para ser mais bem sucedido
e mais invencível.
A pessoa neurótica, todavia, segue dois caminhos incom­
patíveis : um anelo agressivo por uma dominação do tipo "nin­
guém senão eu" e, simultâneam6nte, um desejo exagerado de
ser amado por todos. Essa situação de ver-se apanhado entre
a ambição e a afeição é um dos conflitos centrais das neu­
roses. A principal razão pela qual o neurótico teme suas pró­
prias aml:iições e exigências, chegando a nem sequer admití­
Ias ou mesmo a refreá-las, afastando-as inteiramente de si
mesmo, é o temor de perder o afeto dos outros. Por outras
palavras, a razão pela qual o neurótico contém seu espírito
de competição não é por submeter-se a "imposições do super­
ego" particularmente severas, que se contrapõem a uma agres­
sividade demasiada, mas é o ver-se em um dilema entre duas
necessidades igualmente imperiosas : sua ambição e sua carên­
cia de afeição.
O dilema é pràticamente insolúvel. Não se pode espe­
zinhar pessoas e, ao mesmo tempo, ser amado por elas. Sem
embargo, a pressão é tão grande no neurótico que êle de fato
procura solucioná-la. As duas maneiras pelas quais geralmente
procura uma solução, vêm a ser : justificar seu impulso de
mando e os agravos resultantes da insatisfação dêste, e con­
ter sua ambição. Podemos ser breves no atinente aos esforços
para justificar suas reivindicações agressivas, porquanto elas
têm as mesmas características já discutidas a propósito das
maneiras de obter afeto e sua justificação. Aqui como lá, a
justificação é importante como conceito estratégico : ela é bus­
cada para tomar as reivindicações incontestáveis, de molde
a não obstruir o acesso à possibilidade de ser amado. Se o
neurótico rebaixa outros com o fito de humilhá-los ou esma­
gá-los em uma luta de competição, fica plenamente persua­
dido de que está sendo deveras objetivo . Se quiser explorar
outros, acreditará e procurará fazê-los acreditar que precisa
muito de sua ajuda.
Fuga à Competição 155

Jl: essa necessidade de justificação que, m ais do que qual­


quer outra coisa, contribui com um elemento de sutil insin­
ceridade furtiva que impregna a personalidade, ainda que a
pessoa possa ser fundamentalmente honesta. Ela explica tam­
bém o farisaísmo inexorável que é uma freqüente orientação
elo caráter das pessoas neuróticas, às vêzes conspícuo e de
outras escondido por detrás de uma atitude complacente ou
mesmo auto-recriminatória. Essa atitude hipócrita é bastante
confundida com uma atitude "'narcisista". Na verdade, nada
tem a ver com qualquer espécie de amor-próprio; nem mesmo
contém qualquer traço de complacência ou presunção, porque,
ao contrário das aparências, nunca existe uma convicção real
de estar certo, mas tão só uma constante e desesperada neces­
sidade de justificar-se ( 0 ) Jl:, em outros têrmos, uma atitude

defensiva imposta pela sofreguidão de resolver certos proble­


mas que, em última análise, são gerados pela ansiedade.
A observação dessa necessidade de justificação, foi pro­
vàvelmente um dos fatôres que inspiraram Freud em sua con­
cepção das exigências particularmente severas do "super-ego",
a que o neurótico se submete como reação aos impulsos des­
trutivos. Há outro aspecto da necessidade de justificação que
sugere especialmente essa interpretação. Além de ser indis­
pensável como um recurso estratégico para lidar com os outr�s,
a justificação também é, em muitas pessoas neuróticas, um
meio de satisfazer a necessidade de parecer irrepreensível a
seus próprios olhos. Retornarei a esta questão quando examinar
o papel dos sentimentos de culpa nas neuroses.
O produto direto da ansiedade latente na competição neu­
rótica é o temor ao fracasso e ao sucesso. O temor ao fra­
casso é, em parte, uma expressão do mêdo de ser humilhado :
qualquer falha converte-se em catástrofe. Uma môça que dei­
xara de saber algo que lhe cumpria saber na escola, não só
se sentiu descomunalmente envergonhada como também achou
que as outras colegas de turma a desprezariam e voltar-se-iam
contra ela. Essa reação tem mais pêso pelo fato de serem
freqüentemente percebidas como fracassos ocorrências que de
fato nada têm a ver com tal coisa ou que, no máximo, são

( º ) N. T. - A pr!>J>6sito dos fascinantes problemas do "narcisismo", do


"egoísmo" e do "amor-proprio", ver as obras de Eiucn F'ROMM, particularmente
EBCape From Freetlom, Nova York: Rinehart, 1941, pp. 1 13-117; Man for Bimaelf,
London : Routledge & Kegan Paul, 1949, .PP• 1 19-134; The Sane Society, Nova
York : Rinehart, 1955, pP. 34-36; The Art of Loving, Nova York; Harper & Brothers,
1956, pasrim.
156 A Personalidade Neur6tica

inexpressivas - como não conseguir as notas mais altas na


escola, errar em uma parte dum exame, dar uma festa que
não constitua um sucesso extraordinário ou não ser brilhante
na palestra: em suma, qualquer coisa que fique aquém de
expectativas exorbitantes. Um vexame de qualquer espécie,
a que, consoante vimos, o neurótico reage com hostilldade
intensa, é anàlogamente experimentado como um fracasso e,
portanto, como uma humilhação.
:esse mêdo da I>essoa neurótica pode ser muito exacerbado
por sua apreensão de que os outros irão exultar com um fra­
casso seu, porque estão a par de sua ambição implacável.
O que êle receia mais do que o próprio fracasso, é um insu­
cesso após ter demonstrado de qualquer modo que está com­
petindo, de que deveras quer obter sucesso e de ter feito
esforços para tanto. :ele acha que uma simples falha pode
ser perdoada, quiçá mesmo desperte compaixão em vez de
hostilidade, mas desde que haja expos to interêsse pelo sucesso,
vê-se acossado por uma horda de inimigos, que estão de tocaia
para esmagá-lo ao primeiro sinal de fraqueza ou revés.
As atitudes resultantes variam de acôrdo com o conteúdo
do mêdo. Se predomina o mêdo do próprio fracasso, êle redo­
brará os esforços ot.i chegará mesmo a ficar desesperado em
suas tentativas para evitá-lo. Pode aparecer uma ansiedade
aguda antes de provas cruciais para seu vigor ou habilidade,
tais como exames ou apresentações em público. Se, contudo,
predomina o mêdo de que os outros identifiquem sua ambi­
ção, o quadro resultante é exatamente o oposto. A ansiedade
que êle experimenta fará com que pareça desinteressado e
leva-lo-á a não fazer esfôrço algum. O contraste dêsses dois
quadros é digno de nota, pois mostra como dois tipos de mêdo,
que afinal de contas são p arecidos, podem produzir dois con­
juntos de características completamente distintas. Uma pessoa
enquadrada no primeiro caso estudará freneticamente para os
exames, ao passo que no segundo lidará muito pouco e talvez
se entregue ostensivamente a atividades sociais ou passatem­
pos, mostrando assim6.o mundo sua falta de interêsse.
Via de regra o neurótico não tem conhecimento de sua
ansiedade, percebendo apenas suas conseqüências. Pode, por
exemplo, ser 'incapaz de concentrar-se no trabalho; pode ter
mêdos hipocondríacos, como o de transtornos cardíacos devido
a esforços físicos ou de um esgotamento nervoso devido a
Fuga à Competição 157

excessivo trabalho intelectual; pode ficar exausto depois de


qualquer tarefa - quando a ansiedade está presente em qual­
quer atividade é provável que esta se tome exaustiva - e
recorrerá a esta exaustão para provar que os esforços são
prejudiciais à sua saúde e que por isso devem ser evitados.
Ao abster-se de qualquer esfôrço, o neurótico pode dei­
xar-se absorver por tôda sorte de divertimentos, desde jogar
solitário até dar festas, ou pode adotar uma atitude que sugira
preguiça ou indolência. Uma mulher neurótica pode vestir­
se mal, preferindo dar a impressão de que não Iaz questão
de vestir-se bem do que tentar fazê-lo, porque acha que a
tentativa a exporia ao ridículo. Uma môça que era invulgar­
mente bela, mas estava convencida de ser do tipo doméstico,
não ousava empoar o nariz em público porque esperava que
as pessoas pensassem : "Como é ridículo aquêle patinho feio
tentando parecer atraente I "
Assim, d e u m modo geral o neurótico considerará mais
garantido não fazer as coisas que quer fazer. Sua máxima é :
Fique n o cantinho, seja modesto, e, sobretudo, não chame
atenção. Como Veblen( • ) ressaltou, a notoriedade - óci o
visível, consumo conspícuo - desempenha papel importante
na competição. Conseqüentemente, uma fuga à competição
tem de ressaltar o oposto, o abster-se de chamar a atenção.
Isso implica em ater-se aos padrões convencionais, ficar fora
do palco, não ser diferente aos outros.
Se essa tendência para evitar a competição é uma carac­
terística predominante, faz com que não se corram riscos de
qualquer espécie. 1: desnecessário dizer que uma atitude assim
traz consigo um grande empobrecimento da vida e um desvir­
tuamento das potencialidades. Pois, salvo se as circunstâncias
forem extraordinàriamente favoráveis, a conquista da felici­
dade ou qualquer tipo de realização obriga a gente a correr
certos riscos e a fazer determinados esforços.
Até aqui examinamos o mêdo de um possível fracasso.
Mas essa é só uma das manifestações da ansiedade implícita
na competição neurótica; esta pode igualmente apresentar-se
sob a forma de mêdo do sucesso. Em muitos neuróticos, a
( • ) N. T. - THOllSTBJN BtrNDB VEBLEN ( 1857-1929 ) . Famoso soci6logo e
escritor norte-americano, que lecionou na New School for Social ReseMch de Nova
York, desde 1919 até sua morte. Suas obras mais destacadas foram The Theory
of the :f.� _Cliµ• ( 1899 ) , The Theoru of Bu.rineas Eme1'JllÜ• ( 1904 ) e Th•
Vmiia lnter111t1 and the State lradudrlal ÀIV ( 1919 ) .
158 A Personalidade Neurótica

ansiedade referente à hostilidade dos outros é tão enorme que


temem o sucesso, mesmo estando certos de consegui-lo.
:Esse mêdo do sucesso decorre do receio da inveja ran­
corosa dos demais e, portanto, da perda de sua afeição. Às
vêzes, é um mêdo consciente. Uma talentosa escritora, que
era minha paciente, desistiu completamente de escrever por­
que sua mãe começou a escrever e logrou êxito. Quando, após
um longo intervalo, recomeçou sua atividade, hesitante e apre­
ensivamente, ela não tinha receio de escrever mal mas sim
de escrever bem demais. Por um longo período essa senhora
foi incapaz de realizar fôsse o que fôsse, principalmente por
causa de seu temor excessivo a que os outros lhe invejassem
tudo; em compensação, dedicou tôdas as suas energias a pro­
curar fazer as pessoas gostarem dela. O temor pode aparecer
também como uma simples apreensão vaga de que se perderão
os amigos caso se logre sucesso.
Nesse mêdo, no entanto, como em muitos outros, a pessoa
neurótica tem consciência, mais comumente, não do temor mas
das inibições dêle oriundas. Quando uma pessoa assim joga
tênis, por exemplo, pode sentir que está prestes a vencer mas
que algo a contém e a impossibilita de alcançar a vitória. Pode,
também, esquecer-se de um encontro de importância decisiva
para seu futuro. Se tem algo interessante a dizer em uma
aiscussão ou conversa, fala em voz tão baixa ou em palavras
tão descoloridas que não causa impressão. Pode, ainda, deixar
outros serem aclamados pelo trabalho que realizou. Pode notar
que consegue conversar fluentemente com determinadas pes­
soas, enquanto que com outras se mostra obtusa; que com
algumas pode tocar um determinado instrumento com mes­
tria, ao passo que com outras toca como se fôsse um princi­
piante. Apesar de sentir-se intrigada por uma tal inconstAn­
cia, não consegue mudar as coisas. Só quando tiver discernido
sua tendência para renunciar a competir é gue descobrirá que
ao conversar com uma pessoa menos inteligente, vê-se com­
pulsivamente obrigada a agir ainda menos inteligentemente,
ou quando tocando com um mau músico tem de tocar pior,
impelida pelo temor de que sobressaindo irá magoar e humi­
lhar o outro.
Finalmente, se consegue mesmo um sucesso, não só é
incapaz de desfrutá-lo como nem ao menos o sente como uma
experiência pessoal sua. Ou então, o apoucará, atribuindo-o a
Fuga à Competição 159

1 11 1 1 1 IH q ucr circunstâncias fortuitas ou a um insignificante estí-


1 1 1 1 1 !0 ou auxílio estranho. Após um sucesso. contudo, ela tem.
11 prnpensão para sentir-se deprimida, em parte por causa do
ml!tlo e em parte por causa de um desapontamento não iden­
tlficndo decorrente do sucesso real sempre ficar bastante
nquém de suas secretas e descomedidas expectativas .
Destarte, a situação conflitiva da pessoa neurótica deri­
va-se de um desejo frenético e compulsivo de ser a primeira
nn corrida e, ao mesmo tempo, uma compulsão igualmente
grande para refrear-se tão logo tenha dado uma boa saída ou
feito qualquer progresso. Se ela foi bem sucedida em algo,
é certo que o fará mal da vez seguinte: uma boa lição é
seguida por outra má, uma melhora durante um tratamento
por uma recaída, uma boa impressão causada nas pessoas por
uma desfavorável. Essa seqüencia continua a repetir-se, dan­
do-lhe a impressão de que está empenhada em uma luta sem
esperanças, em condições de inferioridade acabrunhadora. Ela
é como Penép2!e ( 0 ) que desfiava tôda noite o que tecera.
durante . o dià.
As inibições podem estabelecer-se, pois, em cada fase do
caminho : o neurótico pode reprimir seus desejos tão comple­
tamente que nem ao menos tenta realizar qualquer espécie de
trabalho; pode experimentar fazer alguma coisa, mas sentir-se
incapaz de concentrar-se ou de levá-la a cabo; pode realizar
um esplêndido trabalho, mas recear qualquer evidência de
sucesso; e, por fim, pode atingir um sucesso eminente e ser
incapaz de apreciá-lo ou siquer de senti-lo.
Entre os muitos modos de fugir à competição, quiçá o
mais importante seja aquêle pelo qual o neurótico cria em
sua imaginação um tal afastamento entre sua p essoa e o seu
competidor real ou suposto, que pareça absurda qualquer com­
petição, eliminando-a, portanto, conscientemente. :tl:sse afas­
tamento pode ser obtido, seja colocando a outra pess oa num
i>edestal tão elevado que fique fora de alcance, seja colocan­
ao-se tão abaixo dos demais que pareça impossível ou ridícula
qualquer veleidade de competição. :tl:ste último processo é o
que apreciaremos sob o nome de "subestimação".
Subestimar-se a si mesmo pode ser uma estratégia cons­
ciente, adotada meramente por uma questão de conveniência.

( º ) N. T. - Espôsa de Ulisses, no poema épico Odi8sdia, atri'bufdo ao


poeta grego HOMEBO.
160 A Personalidade Neurótica

Se o discípulo de um grande pintor fêz um belo quadro, mas


tem razões para temer, a má vontade do mestre, pode menos­
cabar sua obra a fim d:e mitigar a inveja dêste. A pessoa neu­
rótica, entretanto, só tem uma vaga noção de sua tendência
para desvalorizar-se. Se ela executou um bom trabalho, acre­
ditará piamente que outros o teriam feito melhor, ou que seu
êxito foi um aciaente provàvelmente incapaz de repetir-se.
Ou, tendo-se saído bem, pode destacar uma imperfeição, como
a de ter sido muito vagarosa, e aproveitar-se disso para apou­
car o valor do conjunto de sua realização. Um cientista pode
julgar-se ignorante quanto a questões relativas à sua especia­
lidade, de tal modo que amigos seus tenham de lembrar-lhe
que êle próprio já escreveu a êsse respeito. Quando lhe fazem
uma pergunta néscia ou irresponsável, mostra-se inclinado a
reagir como se êle mesmo se sentisse obtuso; ao ler um livro
do qual discorda vagamente, ao invés de refletir com espí­
rito crítico, propende a considerar-se estúpido demais para com­
. preendê-lo. Pode, talvez, alimentar a crença de que conseguiu
preservar uma atitude crítica e objetiva a respeito de si próprio.
Uma pessoa assim não só toma seus sentimentos de infe­
rioridade ao pé da letra como insiste sôbre sua validade. A
despeito de queixar-se dêles e dos sofrimentos que lhe infligem,
longe estará de aceitar qualquer coisa que prove sua falsidade.
Se a considerarem altamente competente em seu trabalho, afir­
mará que está sendo superestimada ou que conseguiu tapear os
outros. A môça a que me referi páginas atrás, que apresentou
uma ambição invulgar na escola após a experiência humilhante
com o irmão, era sempre a primeira aluna da turma e enca­
rada por todos como brilhante estudante, mas, mesmo assim,
em seu íntimo estava convencida de que era pouco inteligente.
Malgrado uma olhadela no espelho ou a atenção recebiáa dos
homens possam ser suficientes para convencer uma mulher de
que é atraente, ela pode aferrar-se ainda assim à crença de
que não possui encantos. Uma pessoa pode ter a convicção
até os quarenta anos de que é môça demais para fazer valer
suas opiniões ou assumir uma iniciativa, e depois dos quarenta
passará a ter a impressão de que está velha demais para isso.
Um famoso erudito vivia constantemente admirado com o res­
peito com que era tratado e aos olhos dos próprios sentimen­
tos insistia em considerar-se uma mediocridade. Os cumpri·
mentos são refugados como lisonja fútil ou como sendo fei1:os
Fuga à Competição 1 61

com segundas intenções, podendo mesmo deixar a pessoa


zangada.
Observações dêste gênero, que podem ser levadas quase
que até o infinito, mostram que os sentimentos de inferiorida­
de ( quiçá o mal mais comum de nosso tempo ) desempenham
uma função saliente e que, por isso, são conservados e defen­
didos. Seu valor consiste no fato de que ao rebaixar-se aos
seus próprios olhos, colocando-se por conseguinte, abaixo dos
demais e, debelando assim a própria ambição, apazigua-se
a ansiedade associada ao espírito de competição ( 1 ) .
Diga-se de passagem que não deve ser esquecido que os
sentimentos de inferioridade podem efetivamente debilitar a
posição do indivíduo, pôsto que a subestimação do eu con­
duz a um abalo da confiança em si próprio. Uma certa dose
de confiança em si é indispensável a qualquer realização, quer
se trate de . modificar a receita corriqueira do môlho de salada,
vender mercadorias, defender uma opinião ou causar boa
impressão em um possível futuro parente.
Uma pessoa fortemente prop ensa a subestimar-se pode ter
sonhos onde sobressaem seus competidores ou em que ela
mesma enfrenta situações desvantaj osas. Visto como não há
dúvida de que subconscientemente ela deseja triunfar de seus
competidores, êsses sonhos poderiam parecer uma contradição
à tese de Freud de que os sonhos representam a realização
de desejos. Todavia, essa opinião de Freud não deve ser
tomada em sentido muito restrito. Se a realização direta dos
desejos envolve demasiada ansiedade, será mais importante
acalmar essa ansiedade do que satisfazer diretamente o desejo.
Assim, quando uma pessoa ciue teme sua ambição, tem sonhos
em que é vencida, seus sonhos não constituem a expressão do
desejo de fracassar mas de uma preferência pelo fracasso por
ser êste um mal menor. Uma paciente tinha uma conferência
programada durante um período de seu tratamento em que
lutava encarniçadamente para sobrepujar-me. Sonhou que eu
( 1 ) D. H. LAWll.ENCB ( N. T. ) - Famoso romancista inglês, cuja obra mais
difundida é O Amante de Lady Chatterley ) fêz uma descrição admirável dessa
reação em The Rainbow ( pág. 254 ) : ":l!:sse estranho senso de crueldade e feal­
dade sempre iminente, prestes a apossar-se dela, êsse sentimento da capacidade
de inveja da turba à espreita dela, que Bt'a a exceçllo ( o grifo é meu ) , constituiu
uma das influências mais profundas em sua vida. Onde quer que estivesse, na
escola, entre amigos, na rua ou no trem, ela instintivamente se encolhia, fazia-se
menor, fingia ser menos do que era, por mêdo de que seu eu desconhecido pudesse
ser visto, empolgado e atacado pelo brutal ressentimento da vulgaridade, do Eu
comum••.
162 A Personalidade Neurótica

estava fazendo uma conferência com muito sucesso e que ela


estava sentada no auditório, admirando-me humildemente. De
outra feita, um professor ambicioso sonhou que um aluno seu
era o professor e que êle não soubera a lição.
Até que ponto a auto-subestimação serve como impedi­
mento às ambições, evidencia-se também pelo fato de que as
capacidades subestimadas são comumente aquelas em que o
indivíduo mais ardentemente deseja sobressair. Se sua ambi­
ção é de ordem intelectual, a inteligência é seu instrumento e,
por conseguinte, é subestimada. Se a ambição é de natureza
erótica, a aparência e o fascínio pessoal são seus instrumentos
e, por isso, são subestimados. Essa conexão é tão usual que
se pode presumir, segundo a focalização da tendência subes­
timadora, para onde se volve sua maior ambição.
Os sentimentos de inferioridade analisados até agora, nada
tiveram que ver com qualquer inferioridade real, tendo sido
discutidos meramente como efeitos de uma tendência para
fugir à competição. Será, então, que êles não dizem respeito
a deficiências existentes, à percepção de efeitos concretos ?
mes são, de fato, o resultado tanto de insuficiências verda­
deiras quanto de imaginárias : os sentimentos de inferioridade
são, na verdade, uma combinação de tendências subestima­
doras motivadas pela ansiedade aliadas à percepção de falhas
existentes. Conforme salientei várias vêzes, não podemos nos
iludir indefinidamente, conquanto possamos alcançar êxito em
obstar o acesso de certos impulsos à consciência. E, portanto,
uma pessoa neurótica da espécie que vimos examinando, sabe­
rá, no fundo, que tem tendências anti-sociais que deve ocultar,
que está bem longe de ser sincera em suas atitudes, que suas
simulações são bastante diferentes das correntes que fluem sob
a superfície. O fato de ela registrar tôdas essas discrepâncias
é uma causa importante de seu sentimentos de inferioridade,
ainda que nunca identifique claramente a fonte das discre­
pâncias, porquanto estas nascem de impulsos recalcados. Não
identificando a fonte, as razões apresentadas a si mesma, para
sentir-se inferior, raramente são as verdadeiras, não passando
de meras racionalizações.
Há um outro motivo para julgar que os sentimentos de
inferioridade são a expressão direta de uma deficiência exis­
tente. Baseado em suas ambições, o indivíduo engendra idéias
fantásticas a respeito de seu próprio valor e importància. Não
Fuga à C o m p et i ç ã o 163

pod ti tluixar de comparar seus feitos reais com essas op1moes


t•l l l <JUO se tem de ser um gênio ou um ser humano perfeito,
ti nussn comparação seus atos ou possibilidades reais mostram­
No inferiores.
O resultado final de tôdas essas tendências para encolher­
Nllé que o neurótico incorre em fracassos reais, ou no mínimo
nl\o se sai tão bem quanto deveria, quando levamos em conta
N lll\ S oportunidades e seus predicados. Outros que principia­
rum com êle passaram-lhe à frente, fazem melhor carreira,
obtêm maior sucesso. 1l:sse atraso não se refere apenas a êxi­
tos externos : quanto mais velho fica, mais sente a dispari­
tl n<le entre suas potencialidades e suas realizações. Sente pun­
gontemente que seus dotes, quaisquer que sejam, estão sendo
esbanjados, que êle está tolhido no desenvolvimento de sua
personalidade, que não amadurece à medida que o tempo
p a s s a ( 2 ) . E êle reage, ao aperceber-se dessa disparidade, com
um descontentamento impreciso que não é masoquista mas
sim real e proporcionado.
Uma discrepância entre potencialidade e realizações pode
11or devida, como já indiquei, a circunstâncias extrínsecas. A
que surge na pessoa neurótica contudo, e que é uma carac­
terística infalível das neuroses, deve-se a conflitos interiores.
Seus fracassos reais e a conseqüentemente crescente dispari­
dade entre potencialidades e realizações inevitàvelmente refor­
ça ainda mais os sentimentos de inferioridade já existentes.
Assim, ela não só se considera inferior ao que poderia ser,
mas o é de fato. O impacto dêsse incremento é ainda maior
porque fornece uma base real aos sentimentos de inferioridade.
Entrementes, a outra divergência que mencionei - entre
ambições extravagantes e a realidade relativamente mesquinha
- torna-se tão intolerável que exige um corretivo : para isto,
apresenta-se a fantasia. Cada vez mais o neurótico substitui
os objetivos atingíveis por idéias grandíloquas . O valor que
elas encerram para êle é patente : encobrem seu insuportável
sentimento de nulidade; permitem-lhe sentir-se import ante sem
ter de entrar em qualquer competição e, assim, sem correr o
risco de derrota ou vitórias; possibilitam-lhe construir uma
grandiosidade fictícia muito além de tudo o que conseguiria

( 2 ) C. G. Jmro enunciou claramente o problema das pessoas por volta dos


guarenta anos que ficam tolhidas em seu desenvolvimento. Não obstante, deixou
\
dn Identificar as condições que concorrem para essa situação e, portanto, não
oncontrou nenhuma solução satisfatória.
164 A Personalidade Neurótica

alcançar na realidade. li; êsse caráter de bêco-sem-saída das


fantasias grandiloqüentes que as toma perigosas, visto c omo
o bêco-sem-saída tem vantagens nítidas para o neurótico
quando comparado com a estrada desimpedida.
Essas idéias neuróticas de grandeza devem ser distingui­
das das da pessoa normal e das do psicótico. Mesmo a pessoa
normal de vez em quando se considerará formidável, atribuirá
importância imereciâa ao que estiver fazendo ou se entregará
a devaneios quanto ao que poderá vir a fazer. �sses deva­
neios e idéias, porém, permanecem como ornatos decorativos
e ela não os leva muito a sério. O psicótico com idéias de
grandeza está na outra extremidade da linha: êle está con­
vencido de que é um gênio, o imperador do Japão, Napoleão,
Cristo, e repelirá qualquer indício real que tenda a desmentir
sua convicção; será absolutamente incapaz de compreender
quem quer que tente esclarecê-lo lembrando que êle não passa
de um pobre porteiro ou de internado em um hospício ou
de alvo de irreverências e ridículo. Caso consiga perceber a
disparidade, decidirá.' a favor de suas idéias de grandeza, e
acreditará que os outros são tolos ou que o estão tratando
desrespeitosamente de propósito para magoá-lo.
O neurótico situa-se algures entre êsses dois extremos. ' Se
chega a perceber sua excessiva autovalorização, sua reação
consciente é provàvelmente a de uma pessoa sadia. Se em
sonhos aparece como rei ou rainha disfarçado, talvez ache isso
engraçado. Mas suas fantas�as grandfloquas, apesar de cons­
cientemente serem postas de lado como irreais, têm para êle
um valor emocional de realidade, semelhante ao que têm para
o psicótico. Em ambos os casos, a razão é a mesma: possuem
uma função indispensável. Malgrado tênues e duvidosas, cons­
tituem a coluna sôbre o quaf repousa seu amor-próprio e,
portanto, êle precisa apegar-se a elas.
O perigo existente nessa função manifesta-se em situações
em que é desferido algum golpe contra o respeito próprio.
Aí a coluna tomba, êle cai, e não consegue recuperar-se da
queda. Por exemplo, uma jovem que tinha bastante razões
para crer que era amada, percebeu que o rapaz estava hesi­
tando em casar-se com ela. Durante uma conversa êle lhe
disse que se achava jovem e inexperiente demais para casar
e que achava mais aconselhável conhecer outras môças antes
de ligar-se definitivamente. Ela não pôde recuperar-se dêsse
Fuga à Competição 165

choque, ficou deprimida, começou a sentir-se insegura em seu


trubalho, ficou com um mêdo enorme de errar e com um
clusojo ulterior de afastar-se de tudo, tanto das pessoas como
cio trabalho. �sse mêdo era tão avassalador que mesmo acon­
tuc i m entos capazes de encorajá-la, como a decisão pos terior
c io rapaz de casar-se com ela e a oferta de um emprêgo melhor
onde seriam mais lisonjeiramente apreciadas suas capacidades,
nl\o a tranqüilizaram.
O neurótico, ao contrário do psicótico, não pode deixar
do registrar, com uma penosa exatidão, todos os mil e um
lmquenos incidentes da vida real que não combinam com sua
lusão consciente. P or conseguinte, êle oscila, em sua autova­
)Ol'ização, entre sentimentos de grandeza e de desvalia. A
q u alquer momento pode mudar de um pólo ao outro. Ao
mt�smo tempo que se sente mais do que convicto de seu valor
uxcepcional, pode espantar-se de que alguém o leve a sério.
Ou então, ao mesmo tempo que se sente desgraçado e espe­
zinhado, pode ficar furioso por alguém achar que êle está
precisando de auxílio. Sua sensibilidade pode ser comparada
à de uma pessoa que está com o corpo todo dolorido e enco­
lhe-se ao mais leve toque. Fàcilmente sente-se magoado, des ­
prezado, negligenciado1 esquecido, e reage com ressentimento
vingativo proporcional.
-,
Aqui vemos, uma vez mais, um "círculo vicioso" em ação.
Conquanto as idéias grandíloquas tenham nítido valor tran­
qiiilizante, mesmo que só de uma forma imaginária, elas não
NÓ reforçam a tendência para o retraimento como também,
por intermédio da sensibilidade, �eram maior raiva e, por isso,
mnior ansiedade. �ste é, sem duvida, o quadro das neuroses
grnves, mas em menor grau pede ser visto também em casos
1 mmos sérios, onde nem talvez a própria pessoa possa iden­
tificá-lo. Por outro lado, no entanto, uma espécie de círculo
í111fz pode iniciar-se assim que o neurótico consegue realizar
nlgum trabalho construtivo; graças a isso, cresce sua confiança
c u n si, ficando menor, assim, a necessidade de idéias de
�l'llncleza.
A falta de sucesso do neurótico - o fato de êle ficar para
1 rful com relação aos outros, quer se trate de carreira ou casa­
m 1 •n to, s eg urança ou felicidaâe - toma-o in vej os o e reforça
11 u t ft ude de má vontade produzida por outras causas. Diver­
NUll fotôres podem levá-lo a reprimir sua atitude invejosa, fatô-
166 A Personalidade Neur6tica

res tais como uma nobreza de caráter intrínseca, uma sincera


convicção de que não tem direito a exigir coisa alguma para
si, ou simplesmente o não reconhecimento de sua infelicidade.
Porém, quanto mais ela fôr reprimida, tanto mais poderá ser
projetada nos outros, resultando às vêzes em um mêdo quase
paranóico de que os outros lhe invejam tudo. Essa ansieaade
pode ser tão grande que êle se sente positivamente incomo­
aado se alguma coisa de bom lhe sucede - um nôvo em­
prêgo, uma atenção lisonjeira, uma aquisição feliz, sorte em
uma relação amorosa. Por iss o, pode reforçar de muito suas
tendências para abster-se de ter qualquer coisa ou de ser bem
sucedido.
Sem descer a minócias, as linhas gerais do "círculo vicioso"
que surge do anelo neurótico por poder prestígio e posses
podem ser aproximadamente indicadas da seguinte form a :
ansiedade, hostilidade, respeito próprio abalado; anelo pelo
poder e coisas semelhantes; aumento da hostilidade e de ansie­
dade; tendência para esquivar-se à competição ( associada a
tendências para subestimar-se ) ; fracassos e discrepâncias entre
potencialidades e realizações ( acompanhados de inveja ) ; incre­
mento das idéias de grandeza ( com mêdo da inveja ) ; sensi­
bilidade exacerbada ( com tendência renovada para retrair-se ) ;
aumento da hostilidade e da ansiedade, que reinicia novamente
todo o ciclo.
Tendo em vista compreender completamente o papel de­
sempenhado pela inveja nas neuroses, todavia, temos de enca­
rá-lo sob um prisma mais global. O neurótico, quer ou não
o sinta conscientemente, não é só d everas uma pessoa bas­
tante infeliz, como ainda não vê nenhuma oportunidade para
escapar ao seu tormento. O que o observador de fora des­
creve como círculos viciosos que se originam das tentativas
para conseguir reafirmar-se, o próprio neurótico sente como
se estivesse irremediàvelmente prêso em uma rêde. De acôrdo
com o que um paciente me descreveu, êle se sente capturado
em uma adega onde existem muitas portas e, qualquer que
seja a porta utilizada, êle só encontra trevas - e durante todo
o tempo sabe que outros estão andando lá fora, à luz do sol.
Não creio que se possa compreender qualquer neurose grave
sem reconhecer a desesperança paralisadora que nela se con­
tém. Algumas pessoas neuróticas exprimem sua exasperação
em têrmos nada indefinidos, mas em outras ela se acha pro-
Fuga à Competição 167

fundamente soterrada sob a resignação ou sob uma ostentação


de otimismo. Pode ser difícil perceber que através de tôdas
us muitas vaidades, exigências e hostilidades há um ser humã­
no que sofre, que se sente excluído para sempre de tudo o
que toma a vida apetecível, que sabe que mesmo quando
consegue o que quer não pode encontrar prazer. Quando se
reconhece a existência de tôda essa desesperança, não deve
ser difícil entender o que aparece como uma excessiva agres­
sividade ou até mesmo ruindade, inexplicável em face da situa­
ção considerada. Uma pessoa tão impedida de tôda possibi­
lidade de felicidade teria de ser um verdadeiro anjo para não
sentir ódio contra um mundo ao qual não pode pertencer.
Voltando ao problema da inveja: essa desesperança que
se avoluma gradualmente é a base sôbre a qual está em cons­
tante geração a inveja. Não é tanto uma inveja de algo em
particular, mas aquilo que Nietzsc�e exJ:>licou como Lebens­
neid, uma inveja assaz generalizada de todos os que se sentem
mais seguros, mais firmes, mais felizes, mais coerentes, mais
confiantes em si mesmos.
Se um tal sentimento de desesperança formou-se em uma
pessoa, não importa que êle esteja próximo ou afastado de
sua percepção, ela tentará explicá-lo. Ela não o vê - tal como
o observador analítico - como o produto de um processo ine­
xorável. Pelo contrário, vê-o como sendo causado quer pefos
outros quer por si mesma. Muitas vêzes culpará ambas as
causas, embora comumente se destaque uma delas. Quando
põe a culpa nos outros, assume uma atitude acusatória que
pode voltar-se contra o destino em geral, as circunstâncias ou
determinadas pessoas : pais, profess6res, cônjuge, médico. As
exigências neuróticas feitas aos outros, conforme mostramos
reiteradamente, devem ser interpretadas sobretudo sob êste
ponto de vista. � como se o pensamento do neurótico seguisse
llste curso : "Já que vocês todos são responsáveis pelo meu
sofrimento, é seu dever ajudarem-me e tenho o direito de con­
tar com isso da parte de vocês". Quando, porém, êle busca
cm si próprio a fonte de seus males, acha que mereceu o
tormento.
Falar da tendência do neurótico para pôr a culpa em
m 1 tros pode dar margem a mal-entendidos. Pode parecer que
ns suas acusações sejam injustificadas. Na verdade, êle tem
rnzõcs suficientes e explícitas para assumir a posição de acusa-
1 68 A Personalidade Neurótica

dor, porquanto de fato tratado injustamente, mormente


durante a infância. Mas há igualmente elementos neuróticos
em suas acusações : freqüentemente elas substituem esforços
construtivos visando a oojetivos e via de regra são cegas e
indiscriminadas. Podem dirigir-se, por exemplo, contra pessoas
que querem ajudá-lo, enquanto que o neurótico pode ser com­
pletamente incapaz de sentir e formular acusações contra as
pessoas que realmente lhe fizeram mal.
CAPÍTULO X I I I

Sentimentos de Culpa Neuróticos

Üs SENTIMENTOS DE CULPA parecem exercer papel saliente no


quadro aparente das neuroses. Em algumas, êsses sentimentos
manifestam-se aberta e abundantemente; em outras aparecem
disfarçados, porém sua presença é indicada pela concfuta, ati­
tudes e maneiras de pensar e reagir. Abordarei inicialmente,
em descrição sumária as várias manifestações que sugerem a
existência de sentimentos de culpa.
Segundo mencionei no capítulo precedente, a pessoa neu­
rótica mostra-se inclinada, muitas vêzes, a considerar-se res­
ponsável por seus sofrimentos, julgando que não merece mesmo
ter melhor sorte. Esta impressão pode ser bastante imprecisà
e indefinida, ou então ligada a pensamentos ou atividades
socialmente condenados, como masturbação, desejos incestuo­
sos, vontade de ver morto um parente, etc. Uma pessoa nessas
condições comumente tende a sentir-se culpada pelas mais
mínimas coisas. Se alguém pede para vê-la, sua primeira rea­
ção é a de esperar ser recriminada por algo que tenha feito.
Se amigos não aparece� ou não escrevem durante algum tem­
po, ela se pergunta em que os terá ofendido. Se qualquer
coisa não sai certa, imagina logo que foi por sua causa. Mesmo
quando outros estejaJll flagrantemente errados ou a tenham
inequivocamente ofen�do, ela ainda consegue pôr a culpa em
si própria. Quando há qualquer choque de interêsses ou dis­
cussão, inclina-se a presumir cegamente que os outros é que
estão com a razão.
Não há senão uma diferença muito tênue entre êsses sen­
l'Jmcntos de culpa latentes, prestes a revelarem-s e a qualquer
momento, e o que costuma ser interpretado como sentimentos
tlo culpa inconscientes, patentes nos estados depressivos. tl:stes
1 70 A Personalidade Neurótica

últimos assumem a forma de auto-acusações que, amiúde, são


fantásticas ou no mínimo crassamente exageradas. Igualmen­
te, os esforços infindáveis do neurótico para aparecer justifi­
cado perante seus próprios olhos e os dos outros, sobretudo
quando não clarament� identificado o enorme valor estraté­
gico de tais esforços, insinuam a existência de sentimentos de
culpa flutuantes que têm de ser mantidos em estado jacente.
A existência de sentimentos de culpa difusos é ainda alvi­
trada pelo mêdo obsedante do neurótico de ser desmascarado
ou de ser censurado. Em suas discussões com o analista, pode
agir como se a relação entre ambos fôsse igual à que há entre
criminoso e juiz, dificultando assim, para si próprio, mostrar­
se cooperativo na análise. Tôda interpretação que lhe fôr
apresentada, será recebida como um reproche. Se o analista
tiver mostrado, por exemplo, que há uma ansiedade oculta
por detrás de certa atituáe defensiva sua, êle replicará: "Eu
sabia que era covarde". Se o analista explicar que êle não
tem ousado aproximar-se das pessoas temeroso de ser repelido,
porá a culpa sôbr� os próprios ombros por ter tentado, assim,
de acôrdo com o que interpreta, tornar sua própria vida mais
fácil. O anelo compulsivo de perfeição brota, em grande parte,
dessa necessidade de evitar qualquer condenação.
Por fim, a pessoa neurótica pode sentir-se inegàvelmente
mais à vontade, e até mesmo perder alguns de seus sintomas
neuróticos, se ocorre uma adversidade, como por exemplo, per­
der seus bens ou ser vítima de um acidente. A observação
dessa reação, e também o fato de que às vêzes a pessoa parece
arranjar ou provocar acontecimentos infaustos, ainda que inad­
vertidamente, pode levar à suposição de que nela se dete­
nham sentimentos de culpa tão fortes que deram origem à
necessidade de ser punida com o fito de livrar-se dos mesmos.
Isto pôsto, parece haver indícios veementes não só da
existência no neurótico de sentimentos de culpa particularmen­
te acerbos, como também do paderio que êles exercem sôbre
a sua personalidade. A despeito dêsses indícios aparentes,
porém, resta saber se os sentimentos de culpa conscientes da
pessoa neurótica são realmente genuínos e se atitudes sinto­
máticas que insinuam a presença de sentimentos de culpa
inconscientes não autorizam outra interpretação. Vários são
os fatôres que dão margem a essa dúvida.
Os sentimentos de culpa, assim como os de inferioridade,
não são de modo algum indesejáveis; a pessoa neurótica mos-
Sentimentos de Culpa Neuróticos 171

tra-se bem longe de querer livrar-se dêles. De fato, insiste em


sua culpa e resiste vigorosamente a tôda tentativa para isen­
tá-la dos mesmos. Essa atitude por si só bastaria para indicar
que, por trás de sua insistência em sentir-se culpada, deve
haver, tal como nos sentimentos de inferioridade, uma tendên­
cia importante.
Há outro fator que se deve ter em mente. lt doloroso
sentir-se sinceramente arrependido ou enver�onhado de algu­
ma coisa, e mais doloroso ainda manifestar esse sentimento a
outrem; com efeito, a pessoa neurótica, mais ainda que as
outras, abster-se-á de fazê-lo, devido a seu temor à repreensão.
Aquilo a que damos o nome de sentimentos de culpa, todavia,
ela consegue expressar com grande facilidade.
Outrossim, as auto-recriminações, tão amiúde interpreta­
das como indício de sentimentos de culpa ocultos do neurótico,
caracterizam-se por elementos decididamente irracionais. Não
só em suas auto-acusações específicas, mas também em seus
sentimentos difusos de não fazer jus a qualquer delicadeza,
elogio ou sucesso, o neurótico tende a cliegar a extremos de
irracionalidade, desde os exageros crassos à mais completa
fantasia.
Outro fator que faz pensar que as auto-recriminações não
são necessàriamente a expressão de sentimentos de culpa ge­
nuínos, é o fato de, inconscientemente, o próprio neurótico não
estar de modo algum convencido de - sua falta de mérito. Ainda
quando parece estar soterrado sob sentimentos de culpa, êle
pode ficar bastante ressentido se outros mostrarem-se propen­
sos a levar a sério as suas exprobrações.
Esta observação conduz a um último fator, assinalado por
Freud ao discutir as auto-acusações que aparecem nos esta­
dos melancólicos ( 1 ) : a contradição entre os sentimentos de
culpa manifestados e a ausência da humildade que deveria
acompanhá-los. Ao mesmo tempo que proclama sua desvalia,
o neurótico fará maiores exigências de consideração e admi­
ração, bem como relutará nitidamente para aceitar a mais
insignificante crítica. Esta contradição poae estar saltan_-ªo aos
olhos, como no caso de uma mulher que se sentia vagamente
culpada de todo crime registrado nos jornais e até mesmo

( 1 ) SIGMUNJ> F'BEUD, Moumlng and Melancholia em Collected Papen, voL


4, pp. 152-170, J>.sychoanalytischer Verlag. Karl Abraham, Venuch einer Enttoi­
cklungageschichte dér Ubidó, PsychomiaJYtischer Verlag.
1 72 A Personalidade Neurótica

se inculpava de tôdas as mortes ocorridas na família, mas que


ficava tão assoberbada por um acesso agudo de raiva a ponto
de desmaiar, quando sua irmã a repreendia com bastante mo­
deração por exigir consideração excessiva. A contradição,
porém, nem sempre é tão evidente; ela está presente com fre­
qüência muito superior a aparente. O neurótico pode con­
fundir sua atitude de auto-acusação com uma de sadia auto­
crítica. Essa sensibilidade face à crítica pode estar mascarada
pela crença de que aceita muito bem as críticas que lhe são
feitas, desde que o sejam de forma amigável ou construtiva;
esta convicção,, contudo, nada mais é do que um mero disfar­
ce, e os fatos contradizem-na. Mesmo conselhos claramente
amigáveis podem provocar uma reação de ira, pois qualquer
espécie de conselho implica em crítica por não ser absoluta­
mente perfeito.
Assim, se se examinarem cuidadosamente os sentimentos
de culpa e verificar-se sua legitimidade, torna-se claro que
muito âo que aparece como tal é apenas uma expressão de
ansiedade ou de defesa contra ela. Em parte, isso também
se aplica à pessoa normal. Em nossa cultura, é considerado
mais nobre temer a Deus do que aos homens, ou falando em
têrmos não-religiosos, a abster-se de algo devido à consciên­
cia e não por mêdo de ser apanhado. Muito marido que
pretexta ser fiel por causa de sua consciência, na realidade
o é por temor à espôsa. Devido à grande dose de ansiedade
presente nas neuroses, o neurótico mostra-se inclinado, mais
freqüentemente do que o indivíduo normal, a dissimular a
ansiedade sob sentimentos de culpa. Ao contrário da pessoa
normal, êle não só teme as conseqüências prováveis, como
igualmente antecipa conseqüências completamente despropor­
cionais à realidade. A natureza dessas antecipações àepende
das circunstâncias. :2le pode ter idéias exageradas de punição,
retaliação ou deserção iminente, ou então seus receios podem
ser totalmente vagos. Mas, qualquer que seja sua natureza,
todos êsses mêdos tê� um ponto comum de inflamação, que
pode ser descrito como o mêdo de reprovação ou, se êste chega
a constituir uma convicção, como o mêdo de ser desmascarado.
O mêdo de reprovação é muito comum nas neuroses.
Quase todo neurótico, ainda que ao observador desprevenido
aparente estar completamente seguro de si e indiferente à opi­
nião alheia, receia excessivamente ou mostra-se super-sensível
Sentimentos de Culpa Neuróticos 1 78

a ser reprovado, criticado, acusado, desmascarado. Conforme


já mencionei, êste mêdo de reprovação é comumente inter­
pretado como um indício de sentimentos de culpa latentes;
em outras palavras, êle é considerado uma resultante de tais
sentimentos. A. observação crítica faz duvidar dessa conclu­
são. Na análise, o paciente muitas vêzes achará extremamente
difícil falar acêrca de determinadas experiências ou pensamen­
tos - aquêles, por exemplo, referentes a desejos de ver alguém
morto, a masturbação, a desejos incestuosos - porque {de se
sente muito culpado, ou melhor, porque acha que se sente
culpado. Depois que tiver adquirido suficiente confiança para
falar a respeito dêles e perceber que não são recebidos com
censuras, os "sentimentos de culpa" desvanecem-se. :E:le se
sente culpado porque, como resultado de suas ansiedades, de­
pende, mais do que as outras pessoas, da opinião pública, con­
fundindo esta, por conseguinte, com seu próprio julgamento.
Além disso, sua sensibilidade geral à reprovação subsiste fun­
damentalmente imutável, mesmo que seus sentimentos de culpa
especiais se dissipem após ter êle conseguido falar das expe­
riências que lhes deram origem. Esta observação leva-nos a
concluir que os sentimentos de culpa não são a causa, mas
antes o efeito do mêdo de reprovação.
Já que o mêdo de reprovação é tão importante, tanto 11a
formação quanto na compreensão dos sentimentos de cul­
pa, intercalarei aqui uma apreciação de algumas de suas
implicações.
·

O mêdo desproporcional de reprovação pode estender-se


cegamente a todos os sêres humanos ou apenas aos amigos
- conquanto, via de regra, o neurótico seja incapaz de dis­
tinguir claramente amigos de inimigos. A princípio, êle se
refere apenas a o mundo exterior, e permanece sempre, até
certo ponto, relacionado com a reprovação por outras pessoas,
mas a reprovação também pode ser interiorizada. Quanto mais
repetido o fato, tanto menos importante se torna a reprovação
do mundo exterior comparada à do próprio eu.
:E:sse mêdo pode revelar-se sob várias formas. Às vêzes,
é um receio constante de incomodar os outros; o neurótico
pode temer, por exemplo, recusar um convite, discordar de
uma opinião, manifestar qualquer desejo, deixar de obedecer a
quaisquer normas, chamar a atenção de qualquer maneira.
Pode também aparecer como um mêdo permanente das pes-
1 74 A Personalidade Neurótica

soas descobrirem alguma coisa a respeito dêle; mesmo quando


se sente querido, sua inclinação é P. ara o retraimento, de modo
a impedir que descubram o que ele é e o abandonem. Pode,
ainda, surgir como uma relutância descomedida em deixar os
outros saberem qualquer coisa acêrca de sua vida particular,
ou como uma ira desmesurada ante quaisquer perguntas ino­
fensivas sôbre sua pessoa, porque jufga que essas perguntas
são tentativas de intromissão em sua privacidade.
O mêdo de reprovação é um dos principais fatôres que tor­
nam o processo analítico difícil para o analista e doloroso para
o paciente. Embora cada análise individual seja diferente das
outras, tôdas têm em comum o fato de que o paciente, ape­
sar de desejar a ajuda do analista e chegar a uma compreensão
de si mesmo, ao mesmo tempo tem de combater o analista
como um intruso perigosíssimo. t êste mêdo que induz o
paciente a agir como se fôsse um criminoso perante um juiz
e, à semelhança do criminoso, secretamente âecidido a todo
custo negar e a desorientar.
Esta atitude pode aparecer em sonhos, em que se vê impe­
lido a confessar e reage com um esfôrço desesperado. Um
paciente, numa ocasião em que estávamos prestes a desvendar
algumas de suas tendências recalcadas, teve um devaneio muito
significativo a êste propósito. Imaginou ter visto um rapaz
que tinha o costume de procurar refúgio, de vez em quando,
numa ilha fantástica. Nela, o rapaz tornava-se parte de uma
comunidade em que uma lei proibia qualquer revelação da
existência da ilha e impunha a pena de morte a qualquer
intruso eventual. Uma pessoa que o rapaz amava, e que repre­
sentava a analista sob uma forma disfarçada, descobriu por
acaso o caminho até a ilha; de acôrdo com a lei, deveria sofrer
a pena de morte. O rapaz po�eria salvá-la, contudo, compro­
metendo-se, êle mesmo, a nunca mais voltar à ilha. Essa era
uma expressão artística do conflito que, desde o comêço até
o fim da análise, estêve presente sOb uma forma ou outra,
um conflito entre a amizade e o ódio à analista porque queria
intrometer-se em seus pensamentos e sentimentos ocultos, um
conflito entre o impulso do paciente de defender seus segredos
e a necessidade de desvencilhar-se dêles.
Se o mêdo da reprovação não é causado por sentimentos
de culpa, pode-se perguntar, então, porque o neurótico se pre­
ocupa tanto com o ser descoberto e rejeitado.
Sentimentos de Culpa Neuróticos 175

O fator principal é a grande discrepância que existe entre


a fachada( 2 ) que o neurótico apresenta tanto ao mundo quanto
a si mesmo e as tendências recalcadas <Jue jazem escondidas
por detrás de tal fachada. Conquanto ele sofra, ainda mais
do que percebe, por não estar integrado em si mesmo e por
todos os fingimentos que tem de sustentar, não obstante defen­
de êsses fingimentos com tôdas suas fôrças, porquanto repre­
sentam a amurada que o protege contra sua sorrateira ansie­
dade. Se admitirmos que essas coisas que êle tem de ocultar
constituem a base de seu mêdo de reprovação, poderemos
entender melhor porque o desaparecimento de certos "senti­
mentos de culpa" não podem absolutamente libertá-lo de seu
mêdo. Há algo mais a ser modificado : falando sem rodeios,
é a insinceridade tôda de sua personalidade, ou antes da parte
neurótica de sua personalidade, que é responsável por êsse
mêdo de reprovação, e é essa insinceridade que êle teme ver
descoberta.
Quanto ao conteúdo particular de seus segredos, êle quer,
em primeiro lugar, encobrir tudo aquilo que é geralmente en­
globado no têrmo agressividade. :Este têrmo é empregado
abrangendo não só sua hostilidade reativa - cólera, vingança,
inveja, desejo de humilhar, e coisas análogas - mas tôdas as
exigências secretas que faz aos demais. Como já examinei isso
em minúcia, basta aqui dizer sucintamente que êle não quer
depender de si próprio, que não deseja esforçar-se pessoal­
mente para obter o que quer; em vez disso, insiste, em seu
íntimo, em viver das vidas de outras pessoas, seja dominan­
do-as e explorando-as, seja através de recursos como afeição,
"amor" ou submissão. Assim que suas reações hostis ou suas
exigências são afetadas, surge a ansiedade, não porque êle se
sinta culpado mas porque percebe que estão ameaçadas suas
possibilidades de arranjar o apoio de que carece.
Em segundo lugar, êle quer esconder o quão fraco, inse­
guro e inerme se sente, quão pouco é capaz de afirmar-se,
quanto a ansiedade nêle existe. Por essa razão, constrói uma
fachada de fôrça. Porém, quanto mais seus anelos particulares
de segurança são focalizados na preponderância, e assim tanto
mais o seu orgulho fica também ligado à idéia de fôrça, tanto
mais completamente êle se despreza. Não só sente que há
perigo em sua fraqueza, como também a considera abjeta,
( .2 ) Correspondendo ao que C. G. J<JNG denomina "penona".
1 76 A Personalidade Neurótica

tanto em si quanto nos outros, e classifica como fraqueza qual­


quer insufici�ncia, quer se refira ao fato de não ser o sellhor
em sua própria casa, à incapacidade de vencer obstáculos den�
tro de si, ao fato de ter de aceitar ajuda ou mesmo de ser
vítima da ansiedade. Por conseguinte, desde que êle des­
preza qualquer "fraqueza" em si mesmo, e desde que não
pode deixar de acreditar que outros o desprezarão igualmente
se descobrirem suas fraquezas, faz esforços desesperados para
escondê-las, mas sempre com o receio de que mais cedo ou
mais tarde será desmascarado: daí, a ansiedade contínua.
Pôsto isso, os sentimentos de culpa e as concomitantes
auto-recriminações não só são resultado, ao invés de causas
do mêdo de reprovação, mas também uma defesa contra êsse
mêdo. tles preenchem a dupla finalidade de fomentar a tran­
qüilidade e de obscurecer o problema real. Esta última é
por êles satisfeita, seja desvianao a atenção daquilo que deve
ser ocultado, seja exagerando tanto que os faça parecer irreais.
Citarei dois exemplos que podem servir como ilustração
de muitos casos. Um dia, um paciente acusou-se amargamente
de estar sendo ingrato, de ser um fardo para o analista, de
não apreciar suficientemente o fato do analista estar cobran­
do-lhe honorários reduzidos. No fim da entrevista, contudo,
êle verificou haver-se esquecido de trazer o dinheiro que ten­
cionava pagar naquele dia. Essa foi somente uma das muitas
provas de seu desejo de obter tudo em troca de nada. Suas
acusações profusas e generalizadas contra si mesmo tinham
tido nisso, como em tudo o mais, a função de toldar o pro­
blema concreto.
Uma mulher amadurecida e inteligente sentia-se culpada
por haver tido crises de nervos em criança, conquanto sou­
besse, intelectualmente, que elas haviam sido provocadas pela
conduta absurda de seus pais e apesar de já se haver libertadC!
�a crença de que a gente deve considerar nossos pais como
�iri µnes â censuras. Não obstante, seus sentimentos de culpa
·

a propósito disso persistiam tão fortemente que ela propen­


dia a encarar seu fracasso em ter relações eróticas com homens
como uma punição por sua hostilidade contra os pais. Incul­
pando uma ofensa infantil de sua presente incapacidade de
estabelecer tais relações, ela dissimulava os fatôres realmente
responsáveis, tais como sua própria hostilidade contra os
Sentimentos de Culpa Neur6ticos 177

homens e o ter-se retraído como conseqüência do mêdo de


ver-se repelida.
As auto-recriminações não só protegem contra o mêdo de
reprovação, mas também induzem uma reafirmação positiva,
provocando afirmações tranqüilizadoras em sentido contrário.
Mesmo quando não há outrem envolvido, elas proporcionam
certo sossêgo incrementando o respeito próprio do neurótico,
pois pressupõem que êle tenha uma capacidade tão aguda
de discernimento moral que se repreende por faltas que outros
não percebem e, assim, em última análise, fazem-no consi­
derar-se uma pessoa realmente formidável. Ademais, elas lhe
propiciam alívio, porquanto raramente dizem respeito ao ver­
dadeiro problema de seu descontentamento consigo mesmo e
deixam aberta uma porta secreta para a crença de que, afinal
de contas, êle não é tão mau assim.
Antes de prosseguirmos, para discutir as demais funções
das tendências auto-recriminatórias, temos de considerar outros
meios de evitar a reprovação. Uma defesa, que é diametral­
mente oposta à auto-recriminação e, no entanto, satisfaz a
mesma finalidade, consiste em frustrar qualquer crítica pelo
fato de estar sempre certo ou perfeito, não deixando ponto �
vulneráveis em que a crítica possa apoiar-se. A conduta e1*
que predomina êste tipo de defesa, apesar de nltidamerite
errada, será justificada com um mundo de sofismas digno do
mais hábil e competente advogado. Tal atitude pode chegar
ao ponto de tornar obrigatório sentir-se com a razão nos por­
menores mais insignificantes e banais - estar sempre com a
razão a respeito do tempo, por exemplo - porque, para uma
pessoa nessas condições, estar erraào em qualquer detalhe
como que abre a porta à possibilidade de estar errado em tudo.
Geralmente a pessoa dêsse tipo é incapaz de suportar a menor
divergência de opinião, ou até mesmo uma diferença de gra­
dação emocional, porque, a seu ver, um desacôrdo ainda que
mínimo equivale a uma crítica. Tendências dessa espécie
explicam, em grande parte, o que é chamado de pseudo-adapta­
ção. Isso é encontrado em pessoa que, a despeito de uma
neurose grave, conseguem manter aos próprios olhos, e às
vêzes também aos dos que a rodeiam, a impressão de serem
"normais" e bem adaptadas. Em neuróticos dêsse tipo, difi­
cilmente a gente se equivocará ao predizer a existência de
um mêdo imenso de ser desmascarado ou reprovado.
1 78 A Personalidade Neurótica

Uma terceira maneira pela qual o neurótico pode pro­


teger-se contra a reprovação vem a ser a procura de refúgio
na ignorância, na doença ou na incapacidade. Encontrei um
exemplo translúcido disso em uma môça francesa a quem tra­
tei na Alemanha. Ela era uma das jovens já referiáas e que
me foram enviadas com � suspeitas de oligofrenia. Durante
as primeiras semanas de análise, tive dúvidas acêrca de sua
capacidade mental; ela não parecia entender nada do que eu
dizia, embora compreendesse perfeitamente o alemão. Expe­
rimentei dizer as mesmas coisas em linguagem mais simples,
sem melhores resultados. Afinal, dois fatôres esclareceram a
situação. Em alguns de seus sonhos, meu gabinete aparecia
como uma prisão, ou então como o consultório de um médico
que a examinava sob o ponto de vista físico. Ambas as idéias
denunciavam sua ansiedade de se ver desmascarada, e o últi­
mo sonho devia-se ao seu terror de ser examinada fisicamente.
Outro indício foi um incidente de sua vida consciente. Ela
esquecera de apresentar seu passaporte em determinada data,
de acôrdo com as prescrições legais; quando, por fim, com­
pareceu perante o funcionário encarregado, fingiu não enten­
der alemão, esperando escapar, destarte, à punição - um inci­
dente que ela me contou debaixo de risadas. Admitiu, então,
que havia estado recorrendo à mesma tática com relação a
mim e pelos mesmos motivos. Daí em diante mostrou ser uma
jovem bastante inteligente; havia estado abrigando-se por
detrás da obtusidade e ignorância para fugir ao perigo de ser
acusada e punida.
Em princípio, essa estratégia é a seguida por qualquer
um que sinta e aja como criança irresponsável e galhofeira
que não deva ser levada a sério. Alguns neuróticos adotam
permanentemente tal atitude, ou então, mesmo que não se
comportem como crianças, talvez se recusem a levar a sério
seus próprios sentimentos. A função dessa atitude pode ser
observada no decurso da análise. Pacientes na iminência de
terem de reconhecer suas próprias tendências agressivas podem,
repentinamente, sentir-se incapazes, agirem como crianças, não
desejando mais do que proteção e afeto. Ou podem ter sonhos
em que se vejam pequenos e inermes, sendo carregados pela
mãe em seu ventre ou em seus braços.
Se a incapacidade não é eficaz ou aplicável em uma dada
situação, a doença pode servir à mesma finalidade. � assaz
Sentimentos de Culpa Neuróticos 1 79

Hubldo que a enfermidade pode servir como fuga a dificulda­


dtis; simultâneamente, porém, ela serve ao neurótico como uma
vonda contra a percepção de que o mêdo está fazendo-o
rucuur ante uma situação que deveria ser enfrentada. Uma
possou neurótica que esteja tendo dificuldades com um supe­
rior, por exemplo, pode refugiar-se num ataque agudo de
indigestão; a tentação da incapacidade numa ocasião dessas
roside no fato dela criar uma impossibilidade de agir 1 um alibi,
por assim dizer - e, por conseguinte, desobriga-a de ter de
l'llconhecer sua covardia ( 3 ) .
Uma última e muito importante defesa contra qualquer
gênero de reprovação é a impressão de estar sendo vítima.
Sentindo-se maltratado, o neurótico guarda-se contra as censu­
rus por suas próprias tendências para abusar dos outros; sen­
tindo-se miseràvelmente negligenciado, impede as censuras por
suas tendências para dominar; achando que os outros não o
ujudam, afasta a possibilidade de reconhecer suas tendências
pura vencê-los. Essa estratégia de sentir-se como vítima é
tão freqüentemente empregada e tão tenazmente sustentada
por ser, de fato, o mais eficaz meio de defesa. Ela capacita
o neurótico não só a precaver-se contra as acusações, como,
ao mesmo tempo, a pôr a culpa nos outros. -.
Voltando de nôvo às atitudes auto-recriminatórias, note­
mos que um outro papel delas, além de defesa contra o mêdo
ele reprovação e de provocação de reafirmação positiva, é o
de evitar que o neurótico perceba a necessidade de modificar­
.se e, de fato, constitui um substitutivo para a modificação.
t extremamente difícil para qualquer um, já com personali­
dade desenvolvida, ter de modificar-se. Mas, para a pessoa
neurótica, isso é duas vêzes mais árduo, não só porque ela
tem maior dificuldade em reconhecer a necessidade de m odi­
ficação, como igualmente porque muitas de suas atitudes lhe
süo impostas pela ansiedade. Conseqüentemente, fica mortal­
mente assustada perante a possibilidade de ter de modificar-
( 3 ) Se êsse desejo fllr inte?pretado - conforme o fêz Fl.uNz ALBXANDEll
om P8!fchoanallsis o/ the Total PBf'sonallfU - como uma necessidade de punição
por ter impulsos agressivos contra o superior, o paciente ficarã muito contente
om aceitar semelhante explicação, visto como dessa forma o analista o auxilia
11flclentemente a abster-se de enfrentar os fatos de que lhe é necessãrio afirmar-se,
do que teme fazê-lo, de que estã Irritado consigo próprio por ter mêdo. O ana­
ll1tn permite ao paciente sentir-se amparado na imagem que faz de si mesmo
omno uma pessoa tio nobre que se sente enormemente molestada por ter desejos
ruins contra seu superior e, assim, reforça seus impulsos masoquistas, jã presentes.
u11lorlndo-se com os tons magnlficos de padrões morais elevados.
180 A Personalidade Neurótica

se e esquiva-se a admitir a necessidade de fazê-lo. Um dos


meios de eximir-se à consciência disso, consiste em crer secre­
tamente que pelo fato de recriminar-se conseguirá sempre
"safar-se" : êste procedimento pode ser observaào amiúde na
vida cotidiana. Se uma pessoa está arrependida por ter feito
ou ter deixado de fazer qualquer coisa, e por isso quer fazer
uma reparação ou modificar a atitude responsável pelo insu­
cesso, não se deixará engolfar em sentimentos de culpa; se
ela fizer isto, quer dizer que se está esquivando à difícil tarefa
de modificar-se. :€, deveras, muito mais fácil ter remorsos do
que modificar-se.
Diga-se de passagem que outra maneira pela qual o neu­
rótico pode enganar-se quanto à necessidade de modificaçãb
é a de intelectualizar seus problemas. Os pacientes a isso pro­
pensos encontram uma grande satisfação intelectual em adqui­
rir conhecimentos psicológicos, inclusive acêrca de si mesmos,
mas não passam daí. A atitude intelectualizante é usada, assim,
como uma defesa que os impede de experimentar o que quer
que seja emocionalmente, e, portanto, de perceberem que têm
de modificar-se. :€ como se êles se contemplassem a si pró­
prios e exclamassem : mas que interessante 1
As auto-recriminações também podem servir para afastar
o perigo de acusar outros, pois pode parecer mais seguro car­
regar a culpa nos próprios ombros. As inibições para criticar
e acusar outros, destarte reforçando as tendências para acusar­
se a si mesmo, desempenham um papel tão eminente nas neu­
roses que devem ser examinadas com mais minúcia.
Via de regra, essas inibições representam uma história. Uma
criança que cresça em um ambiente de mêdo e ódio e que
restrinja sua auto-estima espontânea tem sentimentos profun­
dos de acusação contra o meio; entretanto, ela não só fica
incapaz de exprimi-los como, se suficientemente intimidada,
nem ao menos se atreve a dar-se conta dêles em seus senti­
mentos conscientes. Deve-se isso em parte ao simples mêdo
de punição e em parte ao mêdo de perder a afeição de que
ela precisa. Essas reações infantis têm uma sólida base na
realidade, desde que os pais que criam um tal ambiente difi­
cilmente serão capazes de aceitar críticas, por causa de suas
próprias sensibilidades neuróticas. A ubiqüidade dessa atitu­
de de que os pais são infalíveis provém, contudo, de um fator
Sentimentos de Culpa Neuróticos 181

cultural ( • ) . A posição dos pais em nossa cultura baseia-se


no poder autoritário em que sempre pode confiar-se para exi­
gir obediência. Em muitos casos, a benevolência rege as rela­
ções no lar e não há necessidade para os pais de porem em
evidência seu poder autoritário. Não obstante, desde que esta
utitude cultural existe, de certo modo produz uma sombra nas
relações, ainda quando fique em segundo plano.
Quando uma relação se baseia na autoridade há uma
tendência para a crítica ser proibida, porquanto solaparia
'
aquela. Ela pode ser claramente proibida e o interdito ser
concretizado graças a punições, ou, com muito mais eficácia,
u proibição pode ser mais tácita, e fazendo-se sentir através
de premissas de ordem moral. Assim, a crítica dos filhos é
contida não só pelas sensibilidades individuais dos pais, como
também pelo fato de que êstes, imbuídos da atitude cultural
de que é pecado criticar os pais, influem nos filhos, explícita
e impllcitamente, para que sintam a mesma coisa. Em tais ,
condições, uma criança menos intimidade pode manifestar cer- 1
tn revolta, mas em troca fazem-na sentir-se culpada. Uma
criança mais intimidada não ousa mostrar ressentimento algum
e, aos poucos, nem mesmo se abalança a pensar que os pais
possam estar errados. Ela sente, no entanto, que alguém deve
ostar errado, e chega, pois, à conclusão de que, como os pais
ostão sempre certos, ela é quem deve estar em falta. Não é,
mister dizer que êste processo geralmente não é intelectual,
mns sim emocional; não é determinado pelo raciocínio, porém
pelo mêdo.
Dessa maneira, a criança principia a sentir-se culpada, ou
mais exatamente, desenvolve uma tendência J>ara procurar e
oncontrar defeitos em si mesma, ao invés de calmamente pesar
nmbos os lados e encarar objetivamente a situação total. Suas
<lxprobrações podem levá-la a sentir-se inferior em vez de cul­
puda; são apenas flutuantes as diferenças entre as duas coisas,
<lependendo inteiramente do destaque implícito ou explícito
hubitualmente dado à moral no ambiente em que ela vive.
Uma menina que é sempre subordinada à irmã e se conforma
com êsse tratamento injusto por puro mêdo, abafando as
ucusnções que sente realmente, pode dizer-se a si mesma que
o tratamento desigual é justificaao por ser ela inferior à irmã

( 4 ) Cf para isto e o restante do parâgrafo, o estudo de ERICH FlloMM em


A111nrlt/lt und Familie, organizado por M ax Horkheimer, 1934. ( N. T. - Ver a
l ri11l 110Ao francesa: :ttude 8Uf' IUAutiirité et la Familie, Paris : Felix Alcan, 1936 ) .
182 A Personalidade Neurótica

( menos bonita, menos inteligente ) ou pode crer que isso se


justifica por ela ser urna menina má. Em ambos os casos, sem
embargo, ela assume a culpa em vez de perceber que estão
agindo mal consigo.
�sse tipo de reação não persiste forçosamente; poderá
mudar, se não estiver demasiadamente enraizada, se fõr mu­
dado o ambiente em que a criança vive, ou se entrarem em
sua vida pessoas que a apreciem e lhe dêem apoio emocional.
Se não tiver lugar uma tal mudança, a inclinação para trans­
formar acusações em _auto-acusações toma-se, com o tempo,
mais forte. Ao mesmo tempo que o ressentimento contra todo
mundo vai-se acumulando gradativamente, oriundo de causas
diversas, também vai crescendo o rnêdo de manifestar ressen­
timento, devido ao crescente temor de se ver desmascarada e
a suposição de que outros tenham a mesma sensibilidade.
Entretanto, a identificação da causa histórica de uma a�­
f:tJ.dê não é suffoiente para explicá-la. Tanto prática quanto
dmfunicamente, a questão mais importante é saber quais os
fatc�res que a atitude contém no momento presente. Há vários
fatôres determinantes de sua personalidade adulta que expli­
cam as dificuldades extraordinárias do neurótico para criticar
e formular acusações.
Em primeiro lugar, essa incapacidade é uma das expres­
sões de sua falta de auto-afirmação espontânea. A fim de com­
f
preender essa deficiência, im õc-se não só comparar sua
atitude com a forma pela qua uma pessoa sadia sente-se e
comporta-se, em nossa cultura, no que se refere a fazer e
exprimir acusações, ou falando de um modo mais geral, no
que se refere a atacar-se e defender-se. A pessoa normal é
capaz de defender sua opinião em urna discussão, de refutar
urna acusação, insinuação ou imposição infundada, de reclamar
interna ou externamente contra quem a desconsidera ou burla,
de recusar um pedido ou uma oferta se não concorda com êle
e se a situação a autoriza a tal. Ela é capaz de sentir e fazer
críticas quando necessário, de sentir e manifestar acusações,
ou de propositadamente afastar-se ou mandar embora uma pes­
soa se tem vontade de fazê-lo. Ademais, ela é capaz de
defender-se ou atacar sem uma tenção emocional despropor­
cionada, adotando um rneio-têrmo entre as auto-recriminações
exageradas e uma agressividade excessiva que a conduziriam a
acusações violentas e indefensáveis contra o mun do. Por eon-
Sentimentos de Culpa Neuróticos 188

seguinte, para ser capaz de adotar o meio-têrmo adequado


são necessárias certas condições, ausentes em maior ou menor
grau nas neuroses : a liberdade relativa de uma hostilidade ge­
neralizada inconsciente e uma auto-estima relativamente firme.
Quando não existe essa auto-afirmação, a conseqüência
inevitável é uma sensação de fraqueza e desamparo. ./y. pessoa
que saiba - quiçá sem jamais ter pensado nisso - que se a
situação exigir ela poderá atacar ou defender-se, é e sente-se
forte; a pessoa que registra o fato de que provàvelmente não
poderá fazê-lo, é e sente-se fraca. Nós registramos tão preci­
samente quanto um relógio elétrico se evitamos uma discussão
por mêdo· ou por prudência, se aceitamos uma acusação por
fraqueza ou por um senso de justiça, mesmo que consigamos
iludir nosso eu consciente. Para a pessoa neurótica êsse registro
de fraqueza é uma fonte constante de irritação; muitas depres­
sões surgem logo após a pessoa não ter conseguido defender
seus pontos de vista ou exprimir uma opinião crítica.
Outro impedimento importante à crítica e às acusações
liga-se diretamente à ansiedade básica. Se a gente considera
o mundo exterior como hostil e se sente inerme face a êleji ,
então parece uma temeridade louca correr o risco de aborrecer
as outras pessoas. Para o neurótico, o perigo parece ainda maior,
e quanto mais seu sentimento de segurança estiver baseado
na afeição dos outros tanto mais êle temerá perder esta. Para
êle, aborrecer uma outra pessoa tem uma implicação comple­
tamente distinta da que tem para a pessoa normal. Já que
suas relações interpessoais Jão tênues e frágeis, êle não pode
crer que as relações dos outros consigo sejam em nada melho­
res. Daí êle sentir que o fato de aborrecê-los implica o risco
de um rompimento · definitivo; êle espera ser pôsto de lado,
ser desdenhado ou odiado. Além disso presume, consciente
ou inconscientemente, que os outros estejam taÕto aterrorizados
quanto êle de serem desmascarados e criticados, e, por con­
seguinte, inclina-se a tratá-los com tanta delicadeza quanto
desejaria que tivessem para consigo. Seu intenso mêdo de
fozer ou mesmo de pensar em acusar outros deixa-o ante um
dilema especial porquanto, conforme vimos, êle está cheio de
ressentimentos recalcados. Com efeito, como sabem todos quan­
tos estão familiarizados com o comportamento neurótico, muitas
acusações encontram expressão, às vêzes de forma velada e
outras aberta e agressivamente. Como, não obstante, eu afir-
184 A Personalidad,e Neurótica

me que há uma resignação essencial ante as críticas e acusa­


ções, vale a pena examinar resumidamente as condições em
que tais acusações se manifestam.
Elas podem ser manifestadas sob o impacto do desespêro,
ou mais especificamente quando o neurótico sente que nada
tem a perder com isso, quando sente que de qualquer forma
será rejeitado, não importa qual seja sua conduta. Uma oca­
sião assim surge, por exemplo, quando seus esforços particula­
res para ser delicado e atencioso não são imediatamente retri­
buídos ou são mesmo repelidos. O fato de suas acusações
serem descarregadas explosivamente em uma "cena" ou pro­
longarem-se, depende da duração de seu desespêro. me pode,
numa única crise, lançar sôbre os outros tudo que tem acumu­
lado contra êles, ou suas acusações podem estender-se por um
longo período. :Ele realmente sente o que diz e espera que
os outros o levem a sério - com a esperança secreta, contuao,
de que perceberão a profundidade ae seu desespêro e, por
isso, o tolerarão. Mesmo sem desespêro existe uma situação
análoga quando as acusações dizem respeito a pessoas a quem
o neurótico odeia conscientemente e de quem êle nada espera
de bom. Em outra situação, todavia, que examinaremos daqui
a pouco, falta completamente o ingrediente sinceridade.
O neurótico pode também mostrar-se acusatório, com
maior ou menor veemência, se sente que está sendo, ou corre
o risco de ser, desmascarado e acu s ado. O perigo de indispor
outrem pode parecer aí como o mal m'enor comparado com
o perigo de se ver reprovado. . :Ele se sente face a uma emer­
gência e contra-ataca, como um animal de natureza apreensiva
que ataca quando ameaçado. Os pacientes podem desferir
violentas acusações contra o analista numa ocasião em que
estejam mais receosos de algo ser descoberto, ou quando fize­
ram alguma coisa que prevêem que será censurado.
Ao contrário das acusações feitas sob a tensão do deses­
pêro, os ataques dêste tipo são feitos às cegas. São mani­
festados sem qualquer convicção de se estar com a razão, pois
nascem simplesmente da necessidade de afastar um perigo
imediato, sem olhar aos meios usados. Conquanto elas possam
fortuitamente conter censuras que se considerem reais, de um
modo geral são exageradas e fantásticas. No fundo, o próprio
neurótico não acredita nelas, não espera que sejam levadas a
· Sentimentos de Culpa Neuróticos 185
' '

R6rfo e fica muito espantado quando o são, quando, por exem-


plo, n outra pessoa alterca consigo ou revela estar magoada.
Quando percebemos o mêdo à acusação, inerente à estru­
t11rn neurótica, e quando percebemos, outrossim, as maneiras
por que é tratado, podemos então compreender porque na
npnrência o quadro é muitas vêzes contraditório a êsse res­
peito. A pessoa neurótica freqüentemente é incapaz de expri­
mir uma crítica justificada, mesmo quando esteja empolgada
por acusações intensas. Tôda vez que perde alguma coisa,
pode ficar convencida de que a empregada roubou-a, mas sen­
te-se incapaz de acusá-la, ou sequer de protestar porque ela
não serviu o jantar na hora certa. As acusações que manifesta,
nmiúde têm um certo caráter de irrealidade, não são precisas,
tôm um falso colorido, são infundadas ou completamente fan­
tásticas. Como paciente, poderá insensatamente acusar o ana­
lista de estar arruinando-a, e, no entanto, ser incapaz de fazer
uma objeção sincera à preferência do analista em questão de
cigarros.
Essas expressões declaradas de acusações não são normal-(
mente suficientes para dar vazão a todo o ressentimento recal- 1
cado que existe nêle. Para isso são necessários meios indiretos,
meios que permitam ao neurótico exprimir seu ressentimento
sem se dar conta disso. Um tanto sai sem querer, enquanto
o restante é transferido das pessoas a quem êle realmente quer
acusar para pessoas relativamente indlferentes - uma mulher
pode descompor a criada, por exemplo, quando está zangada
com seu mariao - ou a circunstâncias ou ao destino em geral.
Essas são válvulas de segurança que por si mesmas, não são
características das neuroses. O método especificamente neu­
rótico de exprimir acusações indireta e inconscientemente é
recorrer ao sofrimento. Sofrendo, o neurótico pode apresen­
tar-se como uma censura viva. Uma espôsa que fica doente
porque o marido chega tarde em casa, manifesta seu rancor
mais eficazmente do gue se fizesse uma cena, e a isso adi­
ciona a vantagem de aparecer ante os próprios olhos como
um mártir inocente.
O grau de eficácia com que o sofrimento traduz acusa­
ções depende das inibições para formular estas. Quando o
mêdo não é por demais intenso, o sofrimento pode ser demons­
trado teatralmente, com francas censuras do teor geral de
"olha como você me fêz sofrer". Esta, com efeito, é a ter-
186 A Personalidade Neurótica
ceira condição para as acusações poderem ser feitas, porque
o sofrimento lhes dá uma aparência de justificativa. Há tam­
bém, uma conexão íntima aqui com os processos empregados
para conquistar afeto, que já estudamos; o sofrimento incri­
minatório serve ao mesmo tempo como um apêlo para alcan­
çar comiseração e como uma extorsão de favores em paga do
mal causado. Quanto maior a contentação para fazer acusações,
tanto menos expansivo será o sofrimento; isso pode chegar ao
ponto de o neurótico nem ao menos chamar a atenção dos
outro s para o fato dêle estar sofrendo. Em suma, é enorme
a variedade das demonstrações de sofrimento do neurótico.
Devido ao mêdo que o assedil! de todos os lados, o neu­
rótico está completamente oscilando entre acusações e auto­
recrirninações. Disso resulta uma incerteza permanente e de­
sesperançada de saber se está certo ao criticar ou em consi­
derar-se injustiçado. :E:le registra, ou sabe por experiência pró­
pria, que muito amiúde suas acusações não encontram apoio
na realidade, sendo provocadas por suas próprias reações irra­
cion ais. :E:sse conhecimento também toma difícil para êle per­
ceber se está ou não de fato sendo injustiçado, e, conseqüente­
mente, impede que tome uma atitude firme quando necessário.
O observador vê-se propenso a aceitar ou interpretar tôdas
essas manifestações como expressões de sentimentos de culpa
parti cularmente agudos. Não quer isso dizer que o observador
seja neurótico, mas implica em que os seus modos de pensar
e de sentir, tal e qual os do neurótico, estão sujeitos a influ­
ências culturais. Para compreender as influências culturais que
dete:rminam nossa atitude com relação a sentimentos de culpa,
deverí amos considerar questões de ordem histórica, cqltural
e fil osófica que ultrapassariam de longe as finalidades \iêste
livro . Ao deixar de lado inteiramente ,
o problema, contudo,
é necessário pelo menos mencionar a influência das concepções
cristãs nas questões morais.
�ste estudo de sentimentos de culpa pode ser sintetizado
muito rapidamente. Quando uma pessoa neurótica se acusa
ou l"evela sentimentos de culpa de certa espécie, a primeira
pergunta não deve ser "De que é que ela está de fato sentin­
do-s e culpada ?", mas sim "Quais podem ser as funções desta
atitude de auto-recriminação ?" As principais funções que
encontramos são : expressão de seu mêdo de ver-se reprovaaa;
Sentimentos de Culpa Neur6ticos 187

uma defesa contra êsse mêdo; uma defesa contra a formulação


de acusações.
Quando Freud, e com êle a maioria dos analistas, tende
a encarar os sentimentos de culpa como uma motivação pri­
mária, reflete apenas a opinião de sua época. Freud reconhece
que os sentimentos de culpa originam-se do mêdo, J?, Ois supõe
que o mêdo contribui para a criação do "super-ego ', em que
êle vê o responsável por tais sentimentos; mas êfo se inclina
a crer que as exigências da consciência e os sentimentos de
culpa, uma vez estabelecidos, funcionam como uma agência
irrevogável. A análise ulterior indica que, mesmo depois de
havermos aprendido a reagir com sentimentos de culpa à
pressão da consciência e dos padrões morais consagrados, a
motivação que jaz por detrás dêsses sentimentos - malgrado
possa mostrar-se apenas por meios sutis e indiretos é um -

temor direto das conseqüências. Uma vez aceito o fato de


que os sentimentos de culpa não são por si mesmos a fôrça
motivadora primária, toma-se mister rever certas teorias ana­
líticas que foram construídas partindo da hipótese de que os
sentimentos de culpa - particularmente os de caráter difuso,
a que Freud deu o nome provisório de sentimentos de culpa
inconscientes - são da máxima importância na geração das
neuroses. Mencionarei aqui somente as três mais importantes
dessas teorias : a da "reação terapêutica negativa'', que s11s­
tenta que o paciente prefere continuar doente por causa de
seus sentimentos de culpa inconscientes ( 11 ) ; a do super-ego
como uma estrutura interior que inflige punições ao eu; e a
do masoquismo moral, que explica o sofrimento impôsto a si
próprio como resultante de , uma necessidade de ser punido.

( 5 ) Cf. KABEN HOllNEY, The Problem of the Negative 7'11ert1peulfc Heactlon,


ln "Psychoanalytic Quarterly", voL 5, 1936, pp. 29-43,
,
CAPITULO XIV

O Significado do Sofrimento Neurótico


( O Prnblema do Masoquismo ) .

V IMOS QUE AO DEBATER-SE com seus conflitos, a pessoa neu­


rótica arrasta uma soma enorme de sofrimento, e que, além
disso, ela amiúde recorre a êste como um meio de atingir cer­
tas metas que, devido aos dilemas presentes, são difíceis de
alcançar de outra maneira. Embora possamos distinguir em
cada situação individual as razões por que o sofrimento é
utilizado e os fins a que se propõe, ainda é de espantar por­
que há pessoas que se dispõem a pagar um preço tão formi­
dável. Parece como se o uso pródigo do sofrimento e a pres­
teza para recuar ante qualquer maneira de governar sua vida,
provenham de um impulso fatente que pode ser descrito, grosso
modo, como uma tendência para tomar o eu mais fraco ao
invés de mais forte, desgraçaao ao invés de feliz.
Como essa tendência contrapõe-se à concepção geral a
respeito da natureza do homem, tem constituído um grande
enigma, senão mesmo um �mpecilho ao progresso da psicolo­
gia e da psiquiatria. O têrmo masoquismo originàriamente
referia-se a perversões e fantasias sexuais, em que a satisfa­
ção sexual é obtida por intermédio de sofrimento, em que a
pessoa apanha, é torturada, violentada, escravizada, humilhada.
Freud reconheceu que essas perversões e fantasias sexuais são
afins de tendências generalizadas para sofrer, isto é, aquelas
sem qualquer base sexual aparente; estas últimas foram clas­
sificadas como masoquismo moral". Considerando que nas
perversões e fantasias sexuais o sofrimento visa a uma satis­
fação concreta, concluiu-se que todo sofrimento neurótico é
determinado por um desejo de satisfação, ou de linguagem
mais simples, que o neurótico quer sofrer. A diferença entre
190 A Personalidade Neurótica

as perversões sexuais e o chamado masoquismo moral é, por


hipótese, uma diferença no grau de consciência. Naquelas,
tanto a busca de satisfação quanto esta são conscientes; neste,
ambas são inconscientes.
A obtenção de satisfação por meio do sofrimento é um
grande problema mesmo nas perversões, mas torna-se mais
intrincado ainda nas tendências generalizadas para sofrer.
Têm sido feitas muitas tentativas para explicar os fenô­
menos masoquistas, a mais brilhante das quais é a hipótese de
Freud sôbre o instinto de morte ( 1 ) . Segundo ela, há duas
fôrças biológicas capitais em ação dentro do homem : o instinto
de vida e o instinto de morte. Esta última fôrça, que visa
à autodestruição, quando associada a impulsos libidinosos, pro­
duz o fenômeno do masoquismo.
Uma questão de imenso interêsse que quero propor aqui
é a de saber se a tendência para sofrer pode ser compreendiâa
psicologicamente, sem se recorrer a uma hipótese biológica.
Para começar, temos de nos haver com um equívoco, que
consiste em confundir o sofrimento real com a tendência para
sofrer. Não há razão para se concluir desde logo que se existe
sofrimento, corolàriamente deve existir uma tendência para
expor-se a êle ou até para gostar dêle. Por exemplo, não
poâemos, com H. Deutsch ( 2 ) , interpretar o fato de que em
nossa cultura as mulheres tenham dores de parto como prova
de que elas secretamente gostem masoquisticamente dessas
dores, conquanto isso possa ser verdade em casos excepcionais.
Muito do sofrimento que ocorre nas neuroses nada tem a ver
com um desejo de sofrer, mas é somente a conseqüência ine­
vitável dos conflitos existentes : êle aparece tal e qual apa­
recem dores quando se quebra uma perna. Em ambos os casos,
as dores aparecem quer a pessoa as queira ou não, e ela em
nada se compraz com o sofrimento por elas acarretado. A an­
siedade manifesta ger�da por conflitos existentes é o mais
notável, porém não o único exemplo de sofrimento dêsse tipo
nas neuroses. Outros gêneros de sofrimento neurótico também
devem ser assim entendidos - como o sofrimento que acom­
panha a percepção de uma discrepância crescente entre as
potencialidades e as realizações concretas, o sentimento de
( 1 ) SIGMtlND F'REVD, Beyon4 the Pleasure Principie in "Intemational Psycho­
Analytical Li'brary", N ° 4. ( N. T. - Ver em Obms Completall, "Além do Prin­
cípio do Prazer" ) .
( 2 ) H . DEtJTSCB, Motherhood and Sexuallif!f in "Psychoanalytic Quartely",
vol. 2 ( 1933 ) , pp. 476-488.
O Sofrimento Neur6tico 191
tis tal' irremediàvelmente enredado em <letcl'lninados dilemas,
u hipersensibilidade às menores ofensas, o <l espl'êzo de si pró­
p1·io . por ter uma neurose. Esta parte do sofrimento neurótico,
por ser bastante discreta, é muitas vêzes negligenciudu quando
se enfrenta o problema partindo da hipótese de que o neu­
rótico quer sofrer. E quando isso é feito, a gente às vêzes
se espanta ao ver até que ponto os leigos, e mesmo alguns
psiquiatras, inconscientemente partilham da atitude de menos­
prêzo que o próprio neurótico tem para com sua neurose.
Tendo eliminado os sofrimentos neuróticos não causados
por tendências para sofrer, passemos agora aos que são cau­
sados por estas e que, por isso, recaem na categoria de impulsos
masoquistas. Nestes, a impressão superficial é que o neurótico
sofre mais do que é autorizado pela realidade. Pormenorizando,
êle dá a impressão de que algo em seu íntimo apega-se àvida- 1

mente a tôda oportunidade para sofrer, de que êle pode dar um


jeito para transformar até circunstâncias fortuitas em algo
doloroso, de que êle reluta bastante em abrir mão do sofri­
mento. Aqui, porém, a conduta que produz essa impressão é
em grande parte explicada pelas funções que o sofrimento
neurótico desempenha para a pessoa considerada.
Quanto a estas funções do sofrimento neurótico, posso
resumir o que vimos nos capítulos precedentes. O sofrimento
pode ter o valor de uma defesa direta para o neurótico, e pode
amiúde ser, com efeito, o único modo pelo qual êle pode pro­
teger-se contra perigos iminentes. Por meio da auto-recrimi­
nação, evita ser acusado e acusar outros; mostrando-se doente
ou ignorante, evita censuras; diminuindo-se, evita o risco da
competição - mas o sofrimento que por isso acarreta para si
mesmo é, simultâneamente, uma defesa.
O sofrimento também é um meio de obter o que êle quer,
de levar a cabo eficientemente suas exigências e de dar uma
base justificada a estas. No que toca a seus desejos com rela­
ção à vida, o neurótico vive num dilema. Seus desejos são, ou
tornaram-se, imperativos e incondicionais, em parte porque
são instigados pela ansiedade e em parte porque não são
refreados por nenhuma consideração real pelas outras pessoas.
Por outro lado, todavia, sua própria capacidade para impor
suas exigências é grandemente prejudicada devido à sua falta
de auto-afirmação espontânea, ou, em têrmos mais gerais, de­
vido ao seu sentimento básico de incapacidade. O resultado
dêsse dilema é ficar esperando que os outros se encarreguem
192 A Personalidade Neurótica
de satisfazer os desejos dêle; dá a impressão de que sob suas
ações existe a convicção de que os outros são responsáveis por
sua vida e que a êles deve caber a culpa se algo sair errado.
Isso colide com sua convicção de que ninguém lhe dá nada,
e a conseqüência é que êle tem de coagir outros a satisfazer
seus desejos. J;: aí que o sofrimento vem em seu socorro : o
sofrimento e a incapacidade tomam-se seus principais meios de
obter afeição, auxílio, contrôle e, ao mesmo tempo, permitem­
lhe esquivar-se a tôdas as exigências que os outros façam dêle.
Finalmente, o sofrimento tem a função de exprimir acusa­
ções contra outros sob uma forma velada mas muito importante.
Foi isto que nós vimos com certa minúcia no capítulo anterior.
Quando se identificam as funções do sofrimento neuró­
tico, o problema fica despido de algo de seu caráter miste­
rioso, mais ainda não está completamente solucionado. A des­
peito do valor estratégico do sofrimento, há um fator que
apóia a idéia de que o neurótico queira sofrer: muitas vêzes
êle sofre mais do que pode ser explicado por seu objetivo estra­
tégico, tende a exagerar sua desgraça e a mergulhar em sen­
timentos de incapacidade, infelicidade e desvalia. Embora
saibamos que suas emoções propendem a ser exageradas e
que não podem ser tomadas por seu valor facial, choca-nos o
fato de os desapontamentos resultantes das suas tendências con­
flitivas lançarem-se em um abismo de infortúnio despropor­
cional ao significado que a situação tinha para êle. Quando
seu êxito foi apenas moderado, exagera dramàticamente seu
insucesso como uma desgraça definitiva. Quando somente
deixou de afirmar-se, sua auto-estima cai como um balão vazio.
Quando, durante a análise, tem de enfrentar a possibilidade
desagradável de explorar um nôvo problema, entrega-se a um
desespêro absoluto. Temos ainda de examinar o porquê, dessa
forma, na aparência voluntàriamente, êle aumenta seu sofri­
mento além das necessidades estratégicas.
Nesse sofrimento não há vantagens aparentes a serem
obtidas, nem uma platéia que possa ser impressionada, nem
compaixão a ser conquistada, nem um triunfo secreto ao impor
sua vontade a outros. Não obstante, há um lucro para o neu­
rótico, mas de espécie diferente. Incorrer em um insucesso
amoroso, derrota numa competição, ter de reconhecer uma
fraqueza ou deficiência sua é insuportável para uma pessoa
que tenha noções grandiloqüentes de sua superioridade. Assim,
quando ela se reduz a nada ante seus próprios olhos, as cate-
O Sofrimento Neurótico 198

gorias de sucesso e fracasso, de superioridade e inferioridade,


aeixam de existir; exagerando sua dor, deixando-se avassalar
por um sentimento generalizado de atribuição ou desmereci­
mento, a experiência irritante perde um pouco de sua reali­
dade e a ferroada daquela dor particular é narcotizada e apla�
cada. O princípio que opera nesse processo é dialético, enccr�
rando a verdade filosófica de que em um certo ponto a quanj
tidade se converte em qualidaâe. Particularizando, isso quer
dizer que embora o sofrimento seja penoso, o abandono do eu a
um sofrimento excessivo pode servir de anestésico contra a dor.
Um romance dinamarquês faz uma descrição magistral
dêsse processo ( 8 ) . A história diz respeito a um escritor cuja
adorada espôsa havia sido assassinada por um tarado sexual
dois anos antes. :e:le havia estado evitando a dor insuportá­
vel, só sentindo vagamente o que acontecera. Para fugir à
compreensão de sua aflição, êle se absorvera no trabalho, es­
crevendo um livro em que trabalhara dia e noite. A narra­
tiva começa no dia em que o livro foi acabado, isto é, no
momento psicológico em que êle teria de fazer face à sua dor.
Encontramo-lo primeiro no cemitério, onde seus passos o
haviam levado sem querer. Vemo-lo entregar-se às mais hor­
rendas e fantásticas elucubrações em tôrno de pensamentos tais
como de vermes devorando a morta e de pessoas enterradas
vivas. Exausto, regressa à sua casa, onde prossegue sua tor­
tura; sente-se impeüdo a recordar minuciosamente o que acon­
tecera. Talvez não tivesse havido o assassinato se êfe tivesse
ido com a espôsa na noite em que ela foi visitar pessoas ami­
gas, se ela o tivesse chamado pelo telefone para ir buscá-la,
se ela tivesse ficado com os amigos, se êle tivesse saído para
dar uma volta e a tivesse encontrado por acaso na estação . . •

Obrigado a imaginar detalhadamente como ocorrera o assas­


sinato, vê-se suomerso em um paroxismo de dor, até final­
mente perder a consciência. Até aqui a história é de particular
interêsse para o problema que estamos estudando. O que acon­
tece depois é que tendo voltado a si, após sua orgia de tor­
mento, êle ainda tem de enfrentar o problema de como se
vingar, e acaba por ser capaz de defrontar-se realisticamente
com sua dor. O processo apresentado nessa história é o mesmo
que pode ser visto em certos costumes de velório que servem

( 3 ) MGB VON KOHL, Der Weg durch dle Nacht ( traduzido do dinamarqujs
para o alemão ) .
194 A Personalidade Neurótica

para aliviar a dor da perda por meio de uma intensificação


aguda que induz a pessoa a entregar-se-lhe completamente.
Quando êsse efeito narcotizante da dor exagerada é reco­
nhecido, temos um outro auxílo para descobrir motivações
compreensíveis nos impulsos masoquistas. Resta ainda, porém,
a questão de saber porque êsse sofrimento pode propiciar satis­
fação, conforme evidentemente sucede nas perversões e fan­
tasias masoquistas e conforme suspeitamos que suceda nas
tendências generalizadas do neurótico para sofrer.
Para podermos responder a essa pergunta, é necessário
identificar inicialmente os elementos que tôdas as tendências
masoquistas têm em comum, ou mais exatamente a atitude
básica face à vida que se oculta sob essas tendências. Quando
elas são examinadas sob tal ponto de vista, o denominador
comum aparece claramente como sendo um sentimento de fra­
queza intrínseca. E:ste sentimento aparece na atitude para com
o eu, para com outros, para com o destino em geral. Pode
ser descrito, em poucas palavras, como um sentimento pro­
fundo de insignificância, ou melhor de nulidade; uma impres­
são de ser como um bambu que pode ser fàcilmente vergado
pelo vento; uma sensação de estar na dependência dos outros,
às ordens dêles, revelada em uma tendência para excessiva
condescendência e em uma exagerada importância defensiva
de tudo o que signifique contrôíe e em nunca ceder; depen­
dência da afeição e da opinião dos outros, a primeira demons­
trada por uma necessidade incomum de afeto e a última por
um temor incomum à reprovação; um sentimento de não ter
direito a opinar sôbre sua própria vida, tendo de deixar aos
outros a responsabilidade por ela e p or tôdas as decisões; um
sentimento de que o bem e o mal vem de fora, de que a pes­
soa nada pode fazer contra a sorte, revelado negativamente em
um senso de uma sentença iminente e positivamente na expec­
tativa de que surja algum milagre sem que a pessoa mova um
único dedo; um sentimento face à vida em geral de que não
se pode respirar, trabalhar ou desfrutar de qualquer coisa sem
que outros forneçam o incentivo, os meios e os objetivos; um
sentimento de não se passar de massa de modelar nas mãos do
mestre. Como poderemos interpretar êsse sentimento de debi­
lidade intrínseca ? Será, em última análise, a expressão de
uma carência de fôrça vital ? Talvez seja, em alguns casos,
mas de um modo geral as diferenças de vitalidade entre os
neuróticos não são absolutamente maiores do que em outras
O Sofrimento Neu1'6tico 195
pessoas. Será mera conseqüência da ansiedade básica ? Cer­
tamente a ansiedade tem algo a ver com isso, mus só por si
ola tem o efeito contrário de incitar a pessoa n csforçur-se por
obter cada vez mais fôrça e poder a fim de pôr-se a salvo.
A resposta é que, antes de mais nada, êssc sentimento de
debilidade intrínseca não é de modo algum real; o qu o é sen­
tido como debilidade, e aparece como tal, é tão só o fruto de
uma propensão para a debilidade. :Esse fato pode ser reconheci­
do através de características que já estudamos : em seus próprios
sentimentos, o neurótico inconscientemente exagera sua fra­
queza e insiste tenazmente em ser fraco. Não é só por dedu­
ção lógica, contudo, que se pode descobrir essa propensão para
n fraqueza; muito comumente, pode-se vê-la operando. Os
pacientes podem, com grande imaginação, lançar mão de tôda
possibilidade para acreditar que têm uma doença orgânica.
Um paciente, sempre que surgia qualquer dificuldade, dese­
java bem conscientemente estar tuberculoso, para ficar deitado
em um sanatório onde cuidariam dêle. Se fôr feita qualquer
exigência, o primeiro impulso de uma pessoa assim será para
submeter-se; depois, passará para o extremo oposto e recusar­
se-á a todo custo a ceder. Na análise, as auto-recriminações
do paciente são muitas vêzes o resultado dêle adotar como su a
própria idéia uma crítica antecipada, mostrando assim sua
facilidade para render-se de antemão a qualquer opinião. A
tendência para aceitar cegamente quaisquer afirmações auto­
ritárias, para apoiar-se em alguém, para sempre retroceder ante
ns dificuldades com um desamparado "Eu não posso" em vez
de enfrentá-las como um desafio, é mais uma prova da incli­
nação para a fraqueza.
Geralmente os sofrimentos vinculados a essas tendências
para a fraqueza não proporcionam satisfação consciente; antes
pelo contrário, independente da finalidade a que atendem,
constituem rutidamente uma parte da consciência geral que
o neurótico tem de seu infortúnio. Não obstante, essas ten­
dências visam à satisfação, mesmo quando não conseguem, ou
não parecem conseguir, chegar a ela. Ocasionalmente pode
ser notado êsse objetivo e, às vêzes, torna-se patente haver
sido atingido. Uma paciente que foi visitar uns amigos que
viviam na zona rural ficou desapontada por ninguém estar
à sua espera na estação e por vários dos amigos não estarem
cm casa quando ela ali chegou. Até êsse ponto, disse ela, a
experiência foi completamente penosa. A seguir, porém, per-
196 A Personalidade Neurótica
cebeu estar mergulhando em uma sensação de abandono e de­
solação total, sentimento que, pouco mais tarde, reconheceu ser
inteiramente desproporcional à provocação. Essa submersão
na angústia não só aplacou a dor como foi sentida claramente
como coisa agradável.
A consecução de satisfação é muito mais freqüente e mais
óbvia nas perversões e fantasias sexuais de caráter masoquista,
como a imaginação ou o fato de estar sendo estuprada, espan­
cada, humilliada ou escravizada. Com efeito, elas são apenas
uma outra manifestação da mesma propensão geral para sen­
tir-se fraco.
A obtenção de satisfação através da submersão na angús­
tia é uma expressão do princípio geral de encontrar satisfação
em perder o eu em algo maior, em dissolver a invidualidade
em libertar-se do eu com tôdas as suas dúvidas, conflitos, dores,
limitações e isolamento( 4 ) . :€ a isso que Nietzsche denominou
liberação do principium individuationis. :€ o que êle designa
como tendência "dionisíaca" e considera como um dos anelos
básicos dos sêres humanos, oposta ao que chama de tendência
apolínea, que procura modelar e dominar a vida. Ruth Bene­
dict fala de inclinações dionisíacas ao referir-se a tentativas
para induzir experiência extática, tendo mostrado quão gene­
ralizadas se acham essas tendências entre as várias culturas e
quão múltiplas são suas expressões ( 11 ) •

O têrmo "dionisíaco" vem dos rituais de Dionísio na Gré­


cia. :Estes, tanto quanto os rituais anteriores dos trácios ( 11 ) ,
tinham como objetivo o estimulo extremo de todos os sentimen-
1 tos até levá-los ao paroxismo visionário. Os meios de produzir
; êxtase eram a música, rítmo uniforme das flautas, danças fre­
) néticas à noite, bebidas inebriantes, devassidão sexual, tudo
j contribuindo para a excitação fervilhante e o êxtase. (9. ���9
êxtase significa literalmente "estar fora de si" ) . No mundo
llítêrro- hã coshlnfelf-e ritos que seguem êsse mesmo princípio :
em grupo, entregar-se a festivais e ao êxtase religioso, e indi­
vidualmente buscar o esquecimento por meio de drogas. A dor
também tem um papel na produção do estado dionisíaco. Em
( 4) Esta interpretação do tipo de satisfação alcançada no masoquismo 6
bàsicamente a mesma de que fala ERICH F°ROMM, op. cit., organização de Mu:
Horkheimer. (N T. - Sem interessante meditar, a &te prop, 6sito, sc'lbre certas
concepções da filosofia oriental, particularmente a do "nirvana' ) •
C º ) Pattema of Cultu.-e, Nova York: 1935. Ver tamb6m Gn.BBB.TO FREnm,
Problemaa Bt'tl8Ueiro8 de Antropologia. Rio : Editc'lra da Casa do Estudante do
Brasil, 1943, particularmente pp. 163-169.
( 5) EBWIN BORDE, PB!Jtihe, o culto das almas e a crença na imortalidade
entre os gregos ( 19ll5 ) .
O Sofrimento Neur6tico 197

algumas tribos, os índios das Planícies ( • ) procuram ter visões


recorrendo ao jejum, ao corte de um pedaço do corpo, a ficar
amarrado em posição penosa. Nas Danças do Sol, uma das
mais importantes cerimônias dêsses índios, a tortura física era
um meio muito comum de estimular experiências extáticas ( º ) .
Os flageladores d a Idade Média usavam pancadas para pro­
duzir o êxtase; os penitentes do Nôvo México recorriam a
espinhos e pancadas e ao transporte de pesadas cargas.
Conquanto essas expressões culturais de tendências dioni­
síacas estejam longe de ser experiências padronizadas de nossa
cultura, não nos são inteiramente estranhas. Até certo ponto,
todos conhecemos a satisfação de "perder-nos a nós mesmos".
Sentimo-la ao pegar no sono, após livrarmo-nos de uma
tensão física ou mental, ou ao sermos anestesiados. O mesmo
efeito pode ser induzido pelo álcool; no uso dêste, certamente
um dos fatôres envolvidos é a perda de inibições e outro é
o apaziguamento da aflição e da ansiedade, mas aqui, também,
a satisfação buscada é a do esquecimento e do abandono. E
são poucas as pessoas que não conheçam a satisfação de dei­
xar-se perder em um sentimento elevado, quer seja o amor,
a natureza, a música, o entusiasmo por uma causa ou o aban­
dono sexual. Como poderemos explicar a aparente universa­
lidade dêsses anelos ?
Malgrado tôda a felicidade que a vida pode propiciai:,
ela é ao mesmo tempo pejada de certa dose inevitável de
tragédia. Mesmo que não haja nenhum sofrimento em par­
ticular, sempre existem fatos como a velhice, a doença e a
morte; em têrmos ainda mais gerais, sempre existe o fato, ine­
rente à vida humana, do indivíduo ser limitado e isolado -
limitado naquilo que pode compreender, realizar ou desfrutar;
isolado, porque é uma entidade única, separada de seus seme­
lhantes e da natureza que o rodeia. De fato, é essa limitação
e isolamento individual que a maioria de nossas tendências
para o esquecimento e o abandono procuram vencer. A mais
pungente e bela expressão dêsse anelo é encontrada no Upa­
nishad ( • ) , na imagem em que rios fluem e, ao desaparecerem
( º ) N. T. - tndios das Grandes Planlcies do Oeste norte-americano.
( 6) LBSLIE SPIER, The Sun Dance of the Plains Indlans: Ita DeoelOf)fllBtlt
and Diflmion in Anthf'07J0loglcal PapBf'B of the Amerlcan Mmoum of Natural
Hútory, vol. 16, part 7 ( Nova York, 1921 ) .
( • ) N . T. - A mais antiga literatura especulativa dos hindus, consistindo
de uma coleção de tratados sõbre a natureza do homem e do universo, e que
faz parte dos documentos Vedas, de que o primeiro data talvez do século VI a. C.
O nome 6 1Anscrito e significa "doutrina esotérica" ou "conversa confidencial".
198 A Personalidade Neurótica
no oceano, perdem nome e forma. Dissolvendo o eu em algo
maior, tornando-se parte de uma entidade superior, o indi­
víduo sobrepuja até certo ponto as suas limitações; conforme
diz o Upanishad : "Desvanecendo-nos em nada, tornamo-nos
parte do princípio criador do universo". :E:ste parece ser o
grande consôlo e gratificação que a religião tem a oferecer
aos sêres humanos; ao perderem-se, êles podem unir-se a Deus
ou à natureza. A mesma satisfação pode ser alcançada pela
dedicação a uma grande causa; entregando o eu a uma causa,
sentimo-nos integrados numa unidade maior.
Em nossa cultura, é mais evidente a atitude contrária
com relação ao eu, a atitude que realça e valoriza enorme­
mente as particularidades e originalidades do indivíduo. O
homem, em nossa cultura, sente claramente que seu próprio
eu é uma unidade independente, distinta do mundo exterior
ou a êle imposta. :E:le não só insiste em sua individualidade,
como igualmente dela deriva uma grande satisfação, encontra
felicidade ao desenvolver suas potencialidades próprias, gover­
nando-se e ao mundo através de uma conquista diligente, exer­
cendo ação construtiva e realizando trabalho criador. Falando
dêste desenvolvimento pessoal, Goethe disse: "Hoechtes Glueck
der Menchenkinder ist doch die Persoenlichkeit".
Porém, a tendência contrária que examinamos - a de rom­
per através da concha da individualidade e descartar-se de
suas limitações e de seu isolamento - é igualmente uma atitude
humana profundamente arraigada, com uma grande carga de
satisfação potencial. Nenhuma dessas tendências é por si mes­
ma patológica; tanto a preservação e o desenvolvimento da
individualiaade quanto o sacrifício desta, são metas legítimas
na solução dos problemas humanos.
Rara é a neurose em que a tendência para desfazer-se do
eu não aparece sob uma forma direta. Pode aparecer em fan­
tasias acêrca de abandonar o lar e de converter-se em um
pária ou perder a sua identidade; em uma identificação com
uma pessoa a respeito de quem se está lendo; em uma sen­
sação, conforme um paciente exprimiu, de estar abandonado
em meio às trevas e às ondas, de estar integrado nas trevas
e nas ondas. A tendência está presente em desejos de ser
hipnotizado, em uma inclinação para o misticismo, em impres­
sões de irrealidade, em uma necessidade imoderada de sono,
na sedução da doença, da demência e da morte. E, segundo
mencionei antes, nas fantasias masoquistas o denominador
O Sofrimento Neurótico 199

comum é um sentimento de se ser como massa de modelar nas


mãos do mestre, de se ser desprovido de tôda vontade e de
todo poder, de se estar absolutamente sujeito ao domínio de
outrem. Cada manifestação diferente, é claro, é determinada
de forma especial e tem suas implicações peculiares. O sen­
timento de estar escravizado, por exemplo, pode fazer parte
de uma tendência generalizada para se sentir como vítima e,
como tal, constituir uma defesa contra impulsos para escra­
vizar outros, além de uma acusação contra os outros por não
se deixarem dominar. Entretanto, ao mesmo passo que isso tem
êste valor de exprimir defesa e hostilidade, também tem o
valor positivo secreto de submissão.
Quer o neurótico sujeite-se a uma pessoa ou ao destino,
e qualquer que seja a espécie de sofrimento que êle deixa
avassalá-lo, a satisfação por êle buscada parece ser o enfra­
quecimento ou a extinção de seu eu individual. Cessa, então,
de ser o elemento ativo das ações e torna-se um objeto, sem
vontade própria.
Quando os anelos masoquistas são assim integrados nos
fenômenos gerais de uma ânsia para renunciar ao eu indivi­
dual, a satisfação procurada ou atingida pela fraqueza e pelo
sofrimento perde seu vigor; ela é colocada em uma estrutura
de referência que é familiar ( 7 ) . A tenacidade dos anelos ma­
soquistas nos neuróticos é, pois, explicada pelo fato de que
ao mesmo tempo servem de proteção contra a ansiedade e
proporcionam uma satisfação potencial ou real. Conforme
vimos, esta satisfação raramente é real, salvo nas fantasias ou
perversões sexuais, muito embora a ânsia por ela seja um ele­
mento importante nas tendências gerais para a fraqueza e a pas­
sividade. Assim, desponta uma última questão, tocante a saber
porque o neurótico tão raramente alcança o esquecimento e
abandono, e conseqüentemente a satisfação, por ele buscados.
Uma circunstância ponderável que obsta a uma satisfação
definida vem a ser o fato dos impulsos masoquistas serem
contrariados pelo excessivo realce dado pelo neurótico à sin­
gularidade de sua individualidade. A maioria dos fenômenos
masoquistas partilham, com os sintomas neuróticos, a carac-
( 7 ) W. RE1cH, em Psychi8cher Korrelat and oegetatloa Stt'oeming e em
Uebtlf' Charokteranalyse fêz uma tentativo semelhante para encontrar uma solução
para o problema do masoquismo. itle também argumenta que as tendências maso­
quistas não se opõem ao principio do prazer. Dà-lhes, no entanto, uma base semal,
e o que eu descrevi como o anelo por uma dissolução das fronteiras :individuais
êJe concebe como uma Ansia de orgasmo.
200 A Personal.idoàe Neurótica
terística de serem uma solução compromissória de anelos
incompatíveis. O neurótico propende a sentir-se uma prêsa
fácil para a vontade de todos, mas ao mesmo tempo insiste
em que o mundo deve adaptar-se a êle. li:le tende a sentir­
se escravizado, mas ao mesmo tempo insiste em que não deve
ser questionado seu poder sôbre os outros. tle quer ser iner­
me e ser cuidado por outrem, mas ao mesmo tempo insiste.
não só em ser inteiramente auto-suficiente como, de fato, oni­
potente. li:le tende a imaginar que não é nada, mas irrita-se
quando não é considerado como um gênio. Não há absolu­
tamente uma solução satisfatória que possa conciliar tais extre­
mos, particularmente porque ambos os anelos são intensos.
O impulso para o esquecimento é muito mais imperioso
no neurótico do que na pessoa normal, visto como aquêle quer
livrat-se não só aos mêaos, limitações e isolamentos que são
universais à existência humana, mas também de um sentimento
de que se acha à mercê de conflitos insolúveis e de seus con­
seqüentes sofrimentos. E seu impulso contraditório para o
poaer e para o auto-enaltecimento é igualmente imperioso e
ae intensidade acima da normal. Naturalmente êle procura
realizar o impossível, de ser de uma só feita tudo e nada; êle
pode, por exemplo, viver em uma dependência total e simul­
tâneamente exercer uma tirania sôbre outros graças à sua
debilidade. Tais compromissos podem ser tomados errônea­
mente por êle mesmo como uma capacidade para submissão.
Com efeito, às vêzes mesmo os psicologistas sentem-se incli­
nados a confundir os dois, e a presumir que a submissão é
em si mesma uma atitude masoquista. Na realidade, a pes­
soa masoquista é, pelo contrário, totalmente incapaz de entre­
gar-se a quem quer ou ao que quer que seja; ela é incapaz,
por exemplo, de pôr tôdas as suas energias a serviço de uma
causa ou de entregar-se inteiramente por amor a outra pessoa.
Ela pode sujeitar-se ao sofrimento, mas nisto é completamente
passiva, e o sentimento ou o interêsse da pessoa que causa
o seu sofrimento só é utilizado como um meio de desperso­
nalizar-se pela satisfação de fazê-lo. Não há uma reciproci­
dade ativa entre ela e a outra pessoa, mas só sua absorção ego­
cêntrica nos próprios fins. }1. sujeição genuína a uma pesso�
ou causa é uma manifestação de fôrça interior; a sujeição
masoquista é, em última ànálise, uma manifestação de fraqueza!
Outra razão pela qual a satisfação buscada poucas vêzes
é alcançada reside nos elementos destrutivos inerentes à estru-
O Sofrimento Neurótico 201
tura neurótica que foi por mim descrita, e que não estão pre­
sentes nos impwsos cwturais "dionisíacos". Nestes, não há
nada comparável à destrutividade neurótica de tudo que cons­
titui a personalidade, de tôdas suas potencialidades para lograr
realização e felicidade. Comparemos o rito dionisíaco dos gre­
gos, por exemplo, com as fantasias do neurótico a respeito de
ficar demente. Naquele, o desejo era uma experiência extática
transitória destinada a incrementar a alegria de viver; neste,
o mesmo impulso para o esquecimento e abandono não serve
nem como uma imersão temporária seguida de reemersão, nem
como um meio de tomar a vida mais rica e plena. Seu objetivo
é desfazer-se de todo o eu atormentador, sem levar em conta
os seus valores, e, portanto, a parte intacta da personalidade
reage com mêdo. De fato, o mêdo das possibilidades desas­
trosas para que uma parte da personalidade impele o todo
desta, é usualmente o único fator dêsse processo que se faz
notar. Tudo o que o neurótico sabe a respeito é que êle tem
mêdo de ensandecer. Só quando o processo é dividido em
suas partes componentes - um impulso para a renúncia de
si próprio e um mêdo oposto a isso - pode-se compreender
que êle está ansiando por uma satisfação explícita, mas é
impedido de atingi-la por seus mêdos.
Um fator peculiar à nossa cultura contribui para incre­
mentar a ansiedade associada às propensões ao alheamento.
Na civilização ocidental, são poucas, se as houver, as confi­
gurações culturais em que essas propensões, mesmo sem ser
fevado em conta o seu caráter neurótico, podem ser satisfeitas.
A religião, que oferecia uma tal possibilidade, perdeu s.:ua. fôrça
,\
; :
e atrat�vo para a maioria. Não só não existem meios culturais
eficãzes para obter essa satisfação, como ainda seu desenvol­
vimento e vivamente desencorajado, pois em uma cultura indi­
vidualista espera-se que o indivíduo assuma suas resJ:>onsabi­
lidades, afirme-se e, se necessário, abra caminho lutando. Em
nossa cultura, ceder realmente a tendências para renunciar a
si próprio acarreta o perigo de levar o indivíduo ao ostracismo.
Em virtude dos mêdos que comumente privam o neurótico
das satisfações específicas pelas quais anseia, é possível com­
preender o valor que para êle encerram as fantasias e perver­
sões masoquistas. Se seu pendor para renunciar a si próprio
fôr expresso por intermédio de fantasias ou práticas sexuais,
talvez êle possa escapar ao perigo de auto-eliminação total.
À semelhança dos cultos dionisíacos, essas práticas masoquistas
202 A Personalidade Neurótica

proporcionam um esquecimento e abandono temporários , com


relativamente risco de lesar o eu. Em regra, elas se infiltram
por tôda a estrutura da personalidade; às vêzes, concentram­
se nas atividades sexuais apenas, deixando relativamente livres
os demais setores da personalidade. Há homens capazes de
serem ativos, agressivos e bem sucedidos em seu trabalho, mas
de tempo em tempos são impelidos a entregarem-se a per­
versões masoquistas, como as de vestirem-se como mulheres
ou de fazerem travessuras e deixarem-se espancar. Por outro
lado, os mêdos que impedem o neurótico de encontrar uma
solução satisfatória para suas dificuldades, também podem
imiscuir-se em seus impulsos masoquistas; se êstes forem de
natureza sexual, então êle, a despeito de suas intensas fan­
tasias masoquistas no tocante a relações sexuais, abster-se-á de
tôda sexualidade, demonstrando repugnância em relação ao
sexo ou, pelo menos, sérias inibições sexuais.
Freud encara os impulsos masoquistas como um fenômeno
essencialmente sexual, tendo apresentado teorias para explicá­
los. Inicialmente êle olhou o masoquismo como um aspecto
de uma fase definida e determinada biologicamente do desen­
volvimento sexual, a chamada fase anal-sádica. Mais tarde,
acrescentou a hipótese dos impulsos masoquistas terem uma
afinidade inerente à natureza feminina e implicarem em algo
parecido como uma manifestação da vontade de ser mulher( 8 ) .
Sua última suposição, segundo já foi citado, é que as tendências
masoguistas são uma combinação de impulsos sexuais e de
autodestruição, cabendo-lhes o papel de evitar que os impulsos
de autodestruição causem danos ao indivíduo.
Meu ponto de vista, por sua vez, pode ser sintetizado da
seguinte forma : os impulsos masoquistas não são um fenômeno
essencialmente sexual nem tampouco a resultante de processos
determinados biolàgicamente, mas sim originam-se de conflitos
personalógicos. Sua meta não é o sofrimento; o neurótico
aeseja tão pouco sofrer quanto qualquer outra pessoa. o sofri­
mento neurótico, considerando-se que atende a certas funções,
não é o que a pessoa quer, porém o que ela paga, e a satis­
fação a que busca não é o sofrimento em si mesmo mas sim
uma renúncia do eu.
( 8 ) S. FREUD, The Economfc Principie• of Masochlsm in Collected Papen,
vol • .2, pp . .255-.268. e New Inh'oductory Lecturea on PaychoanalyriB. Ver, também,
KAREN HORNBY, The Problem of Femmnie Maaochlsm in "Psyclioanalytic Review'',
vol. ll.2 ( 1935 ) .
,
CAPITULO XV

Cultura e Neurose

CADA ANÁLISE INDIVIDUAL apresenta novos problemas, mesmo


para o mais experimentado analista. Cada nôvo paciente con­
fronta-o com dificuldades nunca dantes encontradas, atitudes
difíceis de identificar e ainda mais difíceis de explicar, rea­
ções que estão bem longe de poderem ser devassadas à pri­
meira vista. Volvendo nossos olhos para o enredamento da
estrutura de caráter neurótico descrita nos capítulos preceden­
tes, e para múltiplos fatôres em jôgo, vemos que essa varie­
dade não é de surpreender. Diferenças de herança e das
experiências por que a pessoa passou no decurso da vida, par­
ticularmente em sua infânca, produzem uma variação ilimi­
tada da elaboração dos fatôres envolvidos.
Porém, conforme foi assinalado logo de comêço, malgrado
tôdas essas variações individuais, os conflitos cruciais em tômo
dos quais cresce uma neurose pràticamente são sempre os
mesmos; de um modo geral, são os mesmos conflitos a que
também se vê sujeita uma pessoa sadia em nossa cultura. :€
mais ou menos um lugar-comum dizer que é impossível dis­
tinguir claramente entre o que é neurótico e o que é normal,
mas talvez convenha repeti-lo uma vez mais. Muitos leitores,
confrontados por conflitos e atitudes que percebem em sua
própria experiência, talvez se interroguem : Sou ou não neu::
rótico ? .. 9 critério de maior validade é saber se o indivíduo .1
se �!l.t� ou 11ão tolhido por seuS--conflitos, se êle pode ou nãoj
enfrentá-los e lidar diretamente com êles .
. .. _ .

Quando reconhecemos que as pessoas neuróticas, em nossa


cultura, são instigadas pelos mesmos conflitos latentes a que
204 A Personalidade Neurótica

em menor grau a pessoa normal também se vê sujeita, defron­


tamo-nos novamente com a pergunta formulada no início dêste
livro : quais as condições de nossa cultura responsáveis pelo
fato das neuroses estarem concentradas em tôrno dos con­
flitos particulares que eu descrevi e não de outros P
Freud deu muito pouca atenção a êste problema; o anver­
so de sua orientação biológica é uma ausência de orientação
sociológica e, assim, êle tende a atribuir fenômenos sociais
sobretudo a fatôres psíquicos e êstes sobretudo a fatôres bio­
lógicos ( teoria da libido ) . Essa tendência levou autores psi­
canalíticos a acreditarem, por exemplo, que as guerras são cau­
sadas pela atuação do instinto de morte, que nosso atual sis­
tema econômico acha-se radicado em impulsos erótico-anais,
que a razão por que a era da máquina não se iniciou há
dois mil anos deve ser encontrada no narcisimo daquele
. período.
Freud vê a cultura, não como o resultado de um complexo
1 processo social, mas primordialmente como o produto de im­
l pulsos biológicos reprimidos ou sublimados, de que resultam,
, como reação, formações contrárias a êles. Quanto mais com-
pleta fôr a suJ>ressão dêstes impulsos, tanto maior será o desen­
volvimento cultural. Desde que a capacidade para sublimação
é limitada e desde que a supressão intensiva de impulsos pri­
mitivos sem sublimação pode levar à neurose, conClui-se que
o aumento de civilização tem de implicar inevitàvelmente em
um aumento de neuroses : estas são o preço que a humanidade
tem de pagar pela evolução cultural.
A pressuposição teórica implícita nesse raciocínio é a
crença na existência de uma natureza humana biologicamente
determinada, ou mais exatamente, a crença de que existem
impulsos orais, anais, genitais e agressivos em todos os sêres
humanos, em doses aproximadamente iguais. As variações na
formação do caráter de um indivíduo para outro, assim como
de uma cultura para outra, são devidas, portanto, à intensidade
variável da supressão necessária, com o caracterlstico adicional
de que essa supressão afeta em grau variável as diferentes
espécies de impulsos.
As conclusões da história e da antropologia não confirmam
uma tal relação direta entre o grau de cultura e a supressão
de tendências sexuais ou agressivas. O êrro consiste essencial­
mente em supor unia relação quantitativa ao invés de
Cultura e Neurose 205

qualitativa. A relação não é entre quantidade de supressão e


quantidade de cultura, porém entre qualidade de conflitos
individuais e qualidade de dificuldades culturais. O fator quan­
titativo não pode ser descurado, mas só pode ser avaliaao à
luz da estrutura total.
Há certas dificuldades típicas inerentes à nossa cultura
que se refletem como conflitos na vida de todo indivíduo e
que, acumuladas, podem suscitar a formação de neuroses.
Como não sou socióloga, limitar-me-ei a indicar resumida­
mente as principais tenaências gerais que se relacionam com
o problema de neurose e cultura.
A cultura moderna baseia-se econômicamente no princí­
pio da competição individual. Cada individuo tem d� lutar
com outros indivíduos do mesmo grupo, tem de ultrapassá-los
e, freqüentemente, tem de repeli-los. A vantagem de alguém
é comumente a desvantagem de outrem. O resultado psíquico
dessa _ situação é uma tensão difusa de hostilidade entre _os
indivíduos : todos são competidores reais ou potenciais uns dos
outros. A situação é bem patente entre membros dum mesmo
grupo ocupacional, não importando seus esforços para agirem
com eqüiáade ou suas tentativas para dissimularem a hostilida­
de sob uma certa capa de polidez. Deve ser ressaltado, contu­
do que a competição, assim como a hostilidade potencial que
a acompanha, está entranhada em tôdas as relações humanas.
O espírito de competição é um dos fatôres predominantes nas
relações sociais : embebe as relações dos liomens entre si e
das mulheres entre si, e quer o ponto em disputa seja popu­
laridade, competência, atração ou qualquer outro valor s ocial,
ela reduz enormemente as possibilidades de amizade sincera.
Igualmente, como já foi mostrado, ela perturba as relações
entre homens e mulheres, não só na escolha do parceiro mas
em tôda a luta com êle empós da superioridade. Avassala a
vida escolar e, quiçá mais decisivo do que tudo, impregna a
vida em família, de modo que, via de regra, a criança é
inoculada com seu germe desae os mais tenros anos. A riva­
lidade entre pai e filho, mãe e filho, mãe e filha, um filho
e outro, não é um fenômeno humano generalizado, mas sim a
resposta a estímulos culturalmente condicionados. Persiste de
pé, como um dos grandes feitos de Freud, o ter visto o papel
da rivalidade na família, tal como foi expresso em sua con­
cepção do complexo de Edipo e em outras hipóteses. Deve-se
206 A Personalitiade Neurótica

: aditar, todavia, que essa mesma rivalidade não é biolàgica­


, mente condicionada, porém o resultado de certas condições
culturais e, outrossim, que a vida em família não é a única a
fomentar rivalidade, mas sim que os estímulos � ara competir
se fazem sentir ativamente desde o berço até o túmulo.
A tensão potencial de hostilidade entre indivíduos gera
r um mêdo constante - mêdo da hostilidade potencial dos outros,
· reforçado pelo mêdo de retaliação contra as suas próprias hos­
: tilidades. Outra fonte importante de mêdo no indivíduo nor­
, mal é a perspectiva do insucesso. O mêdo de fracassar é rea­
:Iista, porquanto, em geral, as probabilidades de falhar são
muito maiores do que as de obter sucesso, e porque, numa
sociedade competitiva, os fracassos acarretam uma frustração
real das necessidades. Elas não significam apenas insegurança
econômica, mas também perda de prestígio e tôda sorte de
frustrações emocionais.
Outra razão por que o sucesso é uma imagem tão sedu­
tora vem a ser os seus reflexos sôbre nosso amor-próprio. Não
é só pelos outros que somos valorizados de acôrdo com o grau
de sucesso; queiramos ou não, seguimos idêntico critério ao nos
avaliarmos a nós mesmos. Segundo ideologistas existentes, o
sucesso não se deve a nossos méritos próprios, ou seja, em têr­
mos religiosos, êle é um sinal visível da graça de Deus ( 0 ) ;
na verdade, êle depende de uma série de fatôres alheios ao
nosso contrôle - circunstâncias fortuitas, ausência de escrú­
pulos etc. Não obstante, ante a pressão da ideologia em vigor,
até a pessoa mais normal é forçada a achar que ela vale afgu­
ma coisa quando tem sucesso e que não vale nada se não se
sai bem. Não é necessário dizer que isso oferece uma base
assaz instável para a auto-estima.
Todos êsses fatôres reunidos - o espírito de competição
e as hostilidades potenciais entre os semelhantes, mêdos, amor­
próprio diminuído - fazem com que o indivíduo se sinta psi­
cologicamente isolado. Ainda quando tenha muitos contatos
com outros, ainda quando seu casamento seja feliz - êle se
sente emocionalmente isolado. O isolamento emocional é difí­
cil de aturar, para qualquer pessoa; toma-se, entretanto, uma

( •) N. T. - Isso ê aplicâvel sobretudo à ideologia protestante, e particular­


mente aos luteranos e calvinistas. Ver, a propósito. Emcu FlloM,M: Eaeape fn>m
Fr.: •dom, New York: Rinehart &: Compan)', 194 1, particularmente pp. 40-63, e
MAX WEBER, The Proteatant Ethic and the Spúit of CapUaliam, New York: Charles
Scn'lmer's, Sons, 1930, pllS8fm.
Cultura e Neurose 207

calamidade, se coincide com apreensões e incertezas acêrca de


si próprio.
� essa situação que provoca, no indivíduo normal de nos­
so tempo, uma necessidade intensificada de afeto à guiza de
remédio. Obtendo afeto, êle se sente menos isolado, menos
ameaçado pela hostilidade e menos inseguro a respeito de si
mesmo. Pelo fato de corresponder a uma necessiaade vital,
o amor é supervalorizado em nossa cultura. :Ele se transforma
em um fantasma - como o sucesso - que ilude como se fôsse
a solução para todos os problemas. O amor não é, em si mes­
mo, uma Ilusão - conquanto em nossa cultura êle seja mais
freqüentemente um disfarce para a satisfação de desejos que
naáa têm a ver com êle - mas é convertido em uma ilusão
por dêle esperarmos muito mais do que realmente é capaz.
E o relêvo iaeológico que atribuímos ao amor serve para enco­
brir os fatôres que criam nossa exagerada necessidade dêle.
Por conseguinte, o indivíduo - e ainda me refiro ao indivíduo
normal - fica ante o dilema de necessitar de uma grande
soma de afeto ao mesmo passo que se vê em dificuldades para
consegui-lo.
A situação, até êste ponto, representa terreno fértil para
o desenvolvimento de neuroses. Os mesmos fatôres culturais
que afetam a pessoa normal - levando-a a uma auto-estima
instável, tensão hostil potencial, apreensão, espírito de compe­
tição acarretando mêdo e hostilidade, necessidade exacerbada
de relações pessoais satisfatórias - afetam o neurótico em maior
grau e, nêle, os mesmos resultados são meramente intensifi­
cados - um amor-próprio esmagado, espírito de destruição, an­
siedade, espírito de competição agravado ocasionando ansieda­
de e impulsos destruidores, e uma necessidade excessiva de
afeto. 11
Quando nos lembramos que em tôda neurose há tendên­
cias contraditórias que o neurótico não consegue conciliar, per­
guntamo-nos se não haverá, anàlogamente, certas condições
explícitas em nossa cultura, que formem a base dos conflitos
neuróticos típicos. Cabe ao sociólogo estudar e descrever tais
�ontradições culturais; para mim, bastará indicar, rápida e
esquemàticamente, algumas das mais notáveis dessas tendên­
cias contraditórias.
A primeira a ser mencionada é entre a competição e o
sucesso de um lado, e entre o amor fraternal e a humildade de
208 A Personalidade Neurótica

outro. Por um lado, tudo é feito para nos instigar em busca


do sucesso, o que quer dizer que não devemos apenas nos
afirmar, mas também ser agressivos, capazes de forçar os
outros para fora do caminho. Por outro lado, estamos profun­
damente imbuídos de ideais cristãos que declaram ser egoísmo
querer tudo para nós, que devemos ser humildes, oferecer a
outra face, ser dóceis. Para esta contradição, há duas soluções
ao alcance da pessoa normal : tomar a sério um dêsses anelos
e desfazer-se ào outro, ou tomar ambos a sério e ficar seria­
mente inibida em ambos os sentidos.
A segunda contradição é entre o incentivo de nossas neces­
sidades e as frustrações ao tentar satisfazê-la. Por motivos
econômicos, as necessidades são constantemente estimuladas
em nossa cultura, por meios tais como anúncios, "consumo
conspícuo", o ideal de não ficar abaixo dos vizinhos. Para a
grande maioria, sem embargo, a satisfação concreta dessas
necessidades é parcimoniosamente restrita. A conseqüência
psíquica para o indivíduo é uma discrepância permanente
entre seus desejos e o atendimento dos mesmos.
Outra contradição é a que existe entre a alegada liber­
dade do indivíduo e suas limitações reais. O indivíduo, segun­
do lhe diz a sociedade, é livre e independente, pode decidir
sua vida de acôrdo com seu livre arbítrio; "o grande jôgo da
vida" está aberto para êle e pode conseguir o que quiser se
fôr eficiente e ativo. Na verdade, para a maior parte das
pessoas tôdas essas possibilidades são limitadas. O que foi dito,
de forma humorística, a respeito da impossibilidade da pessoa
escolher seus pais, pode ser estendido à vida em geral -
escolha e êxito em uma ocupação, escolha de meios de recrea­
ção, escolha de um cônjuge. O resultado é que o indivíduo
titubeia entre um sentimento de poder ilimitado para deter­
minar sua própria sorte e o de incapacidade total.
Essas contradições, entranhadas em nossa cultura, são jus­
tamente os conflitos em que o neurótico se debate para recon­
ciliar: suas tendências para agredir e para condescender; suas
exigências excessivas e seu temor de nunca conseguir nada;
seu anelo por se engrandecer e seu sentimento de incapaci­
dade pessoal. A diferença com relação ao normal é simples­
mente quantitativa. Enquanto a pessoa normal é capaz de
fazer face às dificuldades sem danificar sua personalidade, no
Cultura e Neurose 209

neurótico todos os conflitos são intensificados a um tal grau


que se toma impossív�l qualquer solução satisfatória.
Parece que a pessoa que tem probabilidades de tornar-se
neurótica é a que experimentou as dificuldades decorrentes
da cultura de uma forma acentuada, máxime através de expe­
riências durante a infância e que, conseqüentemente, foi inca­
paz de solucioná las, ou que, então, só as solucionou à custa
-

de muito sacrifício para sua personalidade. Podemos chamá-la


·- ·

de enteada de nossa cultura.


lndice de Assuntos e de Nornes
ABRAHAM, Karl, 95, 171. Amor, e infância, 10, 20; Inca­
Abstinência sexual, e ansiedade, pacidade de amar, 82, 84, 8lS ·
1 18 e seg. oer81J8 necessidade neurótlcn d�

Acusações, papel das inibições, afeição, 82 e seg.; clccon ílanç1t


180 e seg.; e autoridade dos no, 85; perigo de dependência,
pais, 180 e seg. ; e ansiedade 87; mêdo de dependêncln, 93
básica, 183 e seg. ; e sofrimento e seg.; supervalorização neuró­
neurótico, 185 e seg., 192. tica do, 93; como uma com­
pensação por causa de Impul­
ADLER, A., 136, 137.
sos frustradores, 150 e seg.;
Admiração e tendências a humi­ supervalorização do, 207.
lhar os outros, 132 e seg.; como
um disfarce de tendências frus­
Amor incondicional e erotismo
tradoras, 147, 148; e culto de oral, 85.
"mocinhos", 148 e seç. Agst der Kreatur, 73.
Afeição, fome de, como um indí­ Ansiedade, o seu papel central
cio de neurose, 8 1 ; necessidade .nas neuroses, 22; 1'Br8U8 mêdo,
de, e homossexualidade, 92; 35; nos primitivos, 36; cura da,
necessidade infantil de afeição
37; racionalização da, 39, ne­
oer81J8 necessidade neurótica
gação da, 40; e masturbação
de, 94 e seg. ; insaciabilidade
compulsiva, 42; e atividades
na necessidade neur6tica de 92
sexuais, 42; e prejuízo de fun­
e seg.; dificuldades de obter,
102; e mêdo de rejeição, 103,
ções, 46; e desagrado, 46; causa
104; maneiras de obtenção, 105 última de inibições, 47; carac­
e seg.; necessidade de afeição terísticas da, 49; e tabus sociais,
e necessidade sexual de, e an­ 50, 5 1 ; suas causas, 5 1 ; e re­
lliedade, 114; necessidade neu­ pressão da hostilidade, 55; e
rótica de afeição e masturbação desamparo, 56, 74; deslocamen­
compulsiva, 1 15; e relações to da, 57; e hostilidade, re­
sexuais compulsivas, 1 15. fôrço mútuo, 58; concepção
Agressão, sensação de ser obri­ freudiana da, 59 e seg., 69;
gado a fazer algo, 32. questões importantes do ponto
de vista terapêutico, 60; na
Ax.ExANDER, F., 20, 27, 178.
infância, 69; e compulsividade,
Ambição, neurótica, 123; na ado­ 80; e avidez, 96 e seg.; e ne­
lescência, 141 e seg.; excessiva, cessidade de afeição, 114; e
nos neuróticos, 153 e seg.; espírito de competição, 144;
oer81J8 afeição, 153 e seg. ; e
como conseqüência do espírito
tendências auto-subestimadoras, neurótico de competição, 82;
1 62 e seg. 155; e mêdo do fracasso, 155;
Ameaças, como um meio de obter e mêdo do sucesso, 155; e mê­
afeição, 1 10. do da desaprovação, 175.
214 A Personalidade Neurótica

Ansiedade básica, 60, 69, 70, 71, Bases biológicas das característi­
72, 74; e isolamento emocional, cas mentais, 20.
74; e tentativa de reafirmação,
Bases biológicas das peculiarida­
74; como causa de inibições,
des, 19.
183.
Antropologia, 17; redescobrimen­ BENEDicr, Ruth, 17, 79, 194.
to do normal, 17; importância Bissexualidade, discusão da, 116
emprestada às diferenças cultu­ e seg.
rais, 1 6, 17; modificação da
nossa atitude em relação à na­ BoEHM, Felix, 66.
tureza humana, 18. BmFFAULT, Robert, 18, 1 1 1 .
Associações livres, 1 13. BUTLER, Samuel, 60.
Atitudes, em relação ao assassi­
nato, 18; entre primitivos, 18.
Atitudes de submissão, 75. Características das neuroses, não­
Atividades sexuais, necessidade consciência das tendências em
compulsiva, 32; inibições das, conflito, 25; soluções concilia­
32; como um alívio para a tórias, 25.
ansiedade, 42; compulsivas, Caráter libidinoso dos impulsos,
114 e seg. 95, 96.
Auto-abnegação, 92.
Círculo vicioso, 105, 132, 165,
Auto-afirmação, definição ele, 30; 1 66.
neurótica, 32; ausência ele, 109;
ausência de, e sentimento de Ciúmes, interpretação dos antro­
não ser capaz de se d efend e r ,
pologistas, 17; os seus funda­
183. mentos biológicos, 17; como
Autoconfiança, ausência de, 74; uma fonte de ódio na infância,
65; e Complexo de l!:dipo, 65;
e reafirmação, 89; e tendências
a causar humilhações devido n 66, e insaciabilidade em rela­
mna auto-estima exagerada, ção à afeição, 98 e seg.; exces­
132; vacilação da, 1 64, 165. so de, 98 e seg. ; e amor incon­
dicional, 98 e seg., 101.
Autodesprêzo, 124.
Complexo de l!:dipo, 20; discussão
Auto-engano e neurose, 81.
208.
Auto-engano no neurótico, 81.
Complexo de l!:dipo, 20; discussão
Auto-estima, ausência de, 132; e
do, 65, 66, 1 12, 1 19, 120, 145,
humilhação, 132; dependência
205.
da obtenção de sucesso, 142.
Auto-irrepreensividade, 155. Compulsividade, e ansiedade, 80,
89, 90, 92.
Auto-observação, subconsciente,
55. Consciência, níveis de, 55.
Auto-recriminações, 66; e repres­ Cultura, e estrutura do caráter,
são da hostilidade, 66; e mêdo 19; e neurose, 16, 203 e seg. ;
da reprovação, 171; funções discussão da teoria freudiana,
das, 176, 177, 179, e seg.; reas­ 202; mêdo do fracasso na cul­
segurar-se contra as, 177. tura, 206; supervalorização do
Avidez, necessidade neurótica de amor na cultura moderna, 2'11 ;
afeição, 97, 97. e competição, 208.
1ndice de Assuntos e de Nomes 215

Deformação do caráter, 28; dife­ Estrutura do curátor, o cultura,


renças versus semelhanças, 28. 20.
Desagrado, e ansiedade, 46. Excesso de conslclomçllo dos neu­
róticos, 31.
Desejo de vingança, no suicídio,
1 10. Excesso de proteçfio, 8lS.

Desesperança, papel nas neuroses, Exigências excessivos dos nour6°


166; e resignação, 167; e ticos, 30 e seg.
agressão, 1 67. Exploração, e impulsos do npro·

DEUTSCH, H., 190.


priação, 136; mêdo de ,
136; o
projeção, 136.
Diferenças sexuais anatômicas, e
ciúmes, 17, 18.
Dificuldades, na mudança de ati­ Fatôres básicos responsáveis polo
tudes, 179. sentimento de insegurança na
Dificuldades neuróticas criadas infância, 63 e 64.
pelas condições culturais, 29; Fatôres culturais, desprezados
30. por Freud, 147.
Dinâmica das neuroses, 59. FEIGENBAUM, Dorian, 146.

Discrepância entre potencialida­ FENICHEL, Otto, 19.


des e realizações, característica Fiu:uCHEN, Pter, 18.
das neuroses, 21; fuga das FREUD, 17, 18, 19, 20, 25, 29,
competições, 163. 35, 38, 42, 48, 56, 59, 60,
DoLLARD, John, 20. 61, 65, 66, 77, 1 1 1 , 1 12, 1 13,
1 19 e seg., 137, 145, 155, 161,
171, 187, 189, 200, 202, 204,
205.
Erotismo anal, discussão do, 1 12,
Frigidez, 1 19 e seg.; e humilha­
137, 138, 202; e fenômenos
ção, 146; e cultura, 147; e fan­
econômicos, 204. tasias masoquistas, 147.
Erotismo oral, discussão do, 95 e F'RoMM, Erich, 19, 56, 66, 181,
seg.; e amor incondicional, 1 12. 196.
Espírito de competição, como Fundamentação biológica do ciú­
uma tendência humana geral, me, 17.
18; e cultura, 139 e seg. ; ca­
:iia cterísticas da competição neu­
rótica, 138 e seg.; e sensibili­ GOETHE, Johann W., 198.
dade à crítica, 141 e seg.; e
hostilidade, 141 e seg.; e ingra­
tidão, 144; e vida amorosa, 145;
e casamento, 148 e seg.; e es­
HALLOWELL, A. s., 17.
colha do parceiro amoroso, 150; HEALY, William A., e A. Bn<>N­
e homossexualidade, 150 e seg.; NER, 20,
e relações entre os sexos, 151 Homossexualidadei neccssiclndo do
e seg. ; diminuição do, 153 e afeição, 91; discusslío dns, 116
seg., 157; e mêdo de retaliação, e seg. ; noção crrômm <ln, 1 18 ;
153 e seg. e competição destrutivu, 150 e
Estágios pré-genitais como causa seg.
das características mentais, 20. HoRNEY, Korcn, 92, 187, 202.
216 A Personalidade Neurótica

Hostilidade, desenvolvida na crian­ Infantilismo, noção errônea de,


ça pelos pais, 64 e seg. ; e frus­ 89.
tração de desejos, 64; e sexua­ Inibições, definição, 43; função
lidade, 64. das, 43; dificuldades para so­
Hostilidade básica, explicação da, brepujá-las, 43; não-consciência
70; discussão da, 85; e inveja, das, 43-4; e rnêdo de rejeição,
85. 104; das tendência de opres­
Humilhação e ferimentos da auto­ são, 131; versus tendências a
estima, 131; e vida amorosa, humilhar, 132; e impulsos pos­
145; e frigidez, 146; e consi­ sessórios, 133 e seg.
deração excessiva, 147. Insaciabilidade na necessidade
neurótica de afeição, 94 e seg.
Insegurança, neurótica, 31.
Idéias grandiosas, corno um subs­ Instinto de morte, 58, 138, 200.
titutivo de realizações, 163 e Intelectualização, corno medida
seg. protetora, 180.
Impulsos hostis, fonte principal Inveja, e hostilidade básica, 85;
de ansiedade, 51. e tendências a privar os outros,
Incapacidade discriminatória, neu­ 164, 1 65; repressão da, 1 65;
projeção da, 166; papel nas
rótica, 73, 75, 90, 91, 94, 115
neuroses, 166.
1 16.
Isolamento, importância na infân­
Incapacidade para amar, 82, 84
cia, 69; isolamento emocional,
e seg.
74; na cultura moderna, 206 e
Incompatibilidade dos desejos seg.
contraditórios, 57, 76, 85.
Inconsciência da ansiedade das
neuroses, 37 e seg.; razões da, JUNc, e. e., 163, 175.
37, 38. J ustiça, apêlo de, 108 e seg.
Inconsciência da incapacidade de
amar, 85.
KARDINER, A., 20.
Inconsciência das tendências em
conflito, corno urna caracterís­ KuENKEL, F., 54.
tica da neurose, 25.
Inépcia, e ansiedade, 55, 56, 74;
LASSWELL, H. D., 20.
das crianças, discussão da, 67,
68; importância exagerada em­ LAWRENCE, D. H., 161.
prestada à, 67; e intimidação, LEVY, David, 65.
67; e característica das neuro­ LEWIS, Sinclair, 137.
ses, 89; corno meio de expressão Libido, teoria da, e perturbações
de hostilidade, 129; corno ineio emocionais, 1 1 2 e seg. ; e ne­
de contrôle, 130. cessidade de afeição, 1 13.
Infância, influência do amor, 19,
63; origem das neuroses, 63;
e insegurança, 63; repressão da MALINOWSKI, Bronislaw, 66.
hostilidade, 66, 67; e isolamen­ Masoquismo, 189 e seg. ; discussão
to, importância do, 69; e neu­ das teorias do, 189 e seg., 202;
rose, 208. e tendências para a fraqueza e
lndice de Assuntos e de Nomes 21 7

miséria, 194 e seg.; e tendên­ Negação da ansiedade, 40; dife­


cias de descartar-se do "eu,. rentes formas da, 156; e fuga
individual, 198 e seg., 201 ; e da notoried ade, 157.
import!ncia emprestada à indi­ Neurose, e cultura, 16; e tempo,
vidualidade, 199, 200; e sub­ 16; desvio quantitativo e qua­
missão, 200, 201 ; _ e esfera litativo do normal, 24; dos pais,
sexual, 202 e seg. importância, 66; nllo-consclên­
Masturbação compulsiva, 42, 43, cia da, 72; origem da, 77; gra­
1 14 e seg. vidade, 165.
Neurose de situação, 27, 70, 85,
MEAD, Margaret, 17, 79.
86.
Mecanismo de defesa e timidez, Neurose do caráter, 27, 28, 71.
104, 105. Neur6tico ver8US indivíduo nor­
Mêdo da desaprovação e anelo mal, 15, 1 6, 73, 79, 207.
de perfeição, 170 e seg. ; e auto­ Normal versus indivíduo neur6-
recriminações, 171 ; e sentimen­ tico, 15, 1 6, 73, 79, 207.
tos de culpa, 172 e seg., e
insinceridade, 175; e pseudo­
adaptação, 177; e a pretensão OPLER, M. E., 1 6.
de ser ignorante, 178; e a pre­
tensão de ser incapaz, 178, 179;
e doença, 178, 179; e senti­
Padrões, normal, 17, 18; varia­
mento de ser vítima de algo,
ções de acôrdo com as circuns­
179.
tâncias, 18, 19.
Mêdo do fracasso, e ansiedade,
Piedade, apêlo à, 107 e seg.
155 e seg. ; diferentes formas
Plágio, 144.
do, 156; e fuga da notorieda­
Poder, luta pelo, como um meio
de, 157.
de obter segurança, 75, 121 e
MEYER, Adolf, 20. seg., 123, 124; anelo normal
Mêdo do sucesso, e ansiedade, versus anelo neur6tico, 121; e
155; e inibições, 158 e seg. ; cultura, 121; e auto-asserção,
e auto-aviltamento compulsivo, 121 e seg., 123; o rígido ideal
158; depressão posterior, 158 e de fôrça e as suas conseqüên­
seg., e sonhos e auto-subesti­ cias, 124; expressões do, 124 e
mação, 161 e seg. seg.; e impaciência, 125 e seg.;
e relações amorosas, 120 e seg.;
e auto-estima, 128; e sensiti­
Narcisismo, discussão do, 137, vidade, 128; e sentimento de
138, 155. humilhação, 128; e hostilidade,
129 e seg. ; e repressão da hos­
Narcotização, da ansiedade, 42,
tilidade, 129; e impulso com
43; das dores, os seus efeitos,
pulsivo para a obtenção do,
194.
129; anelo do, e sent i m e nto de
Necessidade compulsiva de ati­ ser vítima, 130, 131.
vidades sexuais, 33; inibições
Ponto de vista sociol6gico e psi­
das atividades sexuais, 33.
col6gico, necessário para enten­
Necessidade de punição, discussão der as neuroses, 24.
da, 170. Posse, impulsos de, 121 e seg.,
Necessidade neur6tica de afeição, 127, e seg. ; e an s iedade, 1 15;
81 e seg. e mêdo de dependência, 1 15;
218 A Personalidade Neurótica

e hostilidade, 129 e seg.; e ten­ Relações sexuais; 1 15; como um


dência de espoliar os outros, substitutivo para relações emo­
133 e seg. ; e inibições, 134; e cionais, 1 17, 118; e ansiedade,
inveja, 134; e auto-espoliação, 1 1 6 e seg.
134, 135; e tendências parasi­ Rendição, masoquista e normal,
tárias, 136; e tendências a ex­ 200.
plorar, 136.
Repressão da hostilidade, conse­
Prejuízo do prazer, como resul­ qüências da, 52 e seg., 54, 132;
tado da ansiedade, 46. motivos de, 53; como um meio
Prestígio, anelo de, 121, 122, 123, de obter segurança, 53; e an­
127; e cultura, 122; e impres­ siedade, 55, 56, 57; na infân­
são de desvalia, 123, 124; e cia, 66, 67; razões, 67.
auto-estima, 128; e hostilidade, Retraimento, como um meio de
128 e seg. ; e ansiedade, 128; obter segurança, 75, 76; reli­
e mêdo de humilhação, 128; e gião budista, 79.
segurança contra a ansiedade,
129; e tendências a humilhar, Rigidez, como uma característica
129, 131 e seg. ; e vingança neurótica, 21; explicação da, 21.
contra a humilhação, 131, 132; Rivalidade entre irmãos; como
e inibições, 132; e admiração, uma tendência humana geral,
132 e seg.; e inveja, 134 e scg.; 18; e Complexo de Jl:dipo, 1 12,
e projeção, 136; e narcisismo, 113 .
137, 138. ROHDE, Eiwin, 196.
Projeção, dos impulsos hostis, 54;
e autojustificação, 54; e mêdo
de retaliação, 56; de hostilida­
SAPm, Edward, 17.
de reprimida e deslocamento,
56. ScHLTZ, J. H., 27, 61.
ScnuLTZ-1-IENKE, 32, 47.
Psicanálise, descarte dos fatôres
culturais, 20; importância de­ ScUDDER, Mekeel H., 16.
masiada emprestada aos fatôr{'S Sensibilidade da criança, 69, 70.
infantis, 29. Sentimentos de culpa, nas crian-
Psicologia, psicologia não-normal, ças, 68; aparecimento dos, 109;
19. manifestação dos, 168 e seg. ;
Psicologia feminina, 106, 107. manifestações do, e perda da
humildade, 171, 172; e ansie­
dade, 172.
Sexualidade, mudança da atitude
Racionalização da ansiedade, 39- geral em relação à, 5 1 ; e ansie­
40. dade, 118; e cultura, 119 e seg.
R.U>o, Sandor, 40. Situação psicanalítica, observações
Reafirmação, 53; maneiras de na, 70, 109, 1 10, 1 13 e seg.,
conseguir a, 74, 177; e retrai­ 1 17 e seg., 125, 126, 130, 131,
mento, 75, 76. 144, 1 69, 170, 173.
RE1CH, Wilhelm, 19, 66, 199. Sociologia, Psicologia do normal,
Rejeição, sensibilidade à, 103; 19.
mêdo de, 193, 104; resultados Sofrimento neurótico, 107, 109,
do mêdo de, 104; mêdo de, e 130, 131; e inibições para fa­
afeição, 104. zer acusações, 185 e seg.; fun-
1ndice de Assuntos e de Nomes 21 9

ções do, 185, 191, 192; e o Tendências dionisín ca s , 196 o sug.


efeito narcotizante da dor, 194 Tendências universais cln nnturcza
e seg. humana, ncnhumn, 19.
Soluções conciliatórias, como uma Teufelskreis, 54.
característica neurótica, 25. Transferência, discussüo dn, 94,
SPIER, Leslie, 197. 1 19.

SULLIVAN, Harry Stack, 19, 55,


80. VEBLEN, Thorstein, 157.

Suspeita, normal( 21; neurótica,


21. WIDTE, William, A., 20.

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