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O NOVO, O VELHO, O PERIGOSO: RELENDO A CULTURA BRASILEIRA MARTA M. CHAGAS DE CARVALHO da Faculdade de EducagaolUSP RESUMO. © artigo anslisa a narrativa que Fernando de Azevedo ‘constréi sobre © movimento educacional nos anos 20 © 30, om A Cultura Brasileira, com a finalidade de propor algu- mas questdes 20s pesquisadores em Historia da Educagio Brasilolra. A partir da posig8o que o autor assume, num ‘campo de lutes @ conclllac6es, sua narrativa 6 tomada como prética discursiva que intervém naquele campo, efe- tuando uma determinada meméria hist6rice, onde se’ obs- curece a relevincia de alguns temas e questies que artigo procura apontar. Cad. Pesq., S40 Paulo (71):29-35, novembro 1989 SUMMARY The article analyzes Fernando de Azevedo's narrative cons- truction of the educational movement in Brazil's 20's and 20's (in his A Cultura Brasileira) with the purpose of rab- ‘sing some questions to researchers interested in the His- tory of Brazilian Education. Azevedo's narrative Is seen as f discourse practice acting upon a field of struggles and compromise which Instantlates a certain historical me- ‘mory in a8 much as the author's own position In regard to that field Is concerned. The narrative thus obliterates some lesues whose relevance the article wants to point out. 29 E de Fernando de Azevedo a observagdo de que, nos anos que se seguiram & Revolugio de 1930, as novas Idéias que vinham agitando os circulos educacionais foram engolfadas numa “zona de ‘pensamento peri- goso’ * que, existente em qualquer sociedade, ten- deria a “ampliar-se, nos periodos criticos, de mudan- 2 ¢ transformagbes socials” (Azevedo, 1943, p.402). © relato que Azevedo faz do movimento educacional nos anos 20 e 30, em A Cultura Brasileira, obra de ‘que foi extraida a observacio, 6, ele proprio, eximio na arte de evitar essa zon: ‘A Intensa agitago que marcara 0 movimento de renovago educacional nos anos 20 tinha se traduz- do na organizagéo da Associagso Brasileira de Edu- cago (ABE), promotora das notérias Conferéncias Nacionals de Educacéo. |A convergéncia de projetos de construgio da nacionalidade através da educagéo possibllitou forte coeséo do movimento, neutralizan- do divergéncias que aflorarlam na década de 30.) Ao referir-se a essas divergéncias como “zona perigo- sa", Fernando de “azovedd.inimiza-0- significado politico do confronto que se instaura a partir de 1930. Neste artigo proponho-me a problematizar a nar- rativa de Fernando de Azevedo, procurando apontar Para questdes que ola obscurece, ao expulsar do ‘campo da investigagéo em histéria educacional todo tum debate que remete para aquela zona perigosa. Escrita durante o Estado Novo, \A Cultura Bra- sileira conduz seu leitor a acompanhar, nos capitulos Il e IV de sua Terceira Parte, o que 6 descrito como marcha gloriosa e avassaladora do "novo", batendo- se em diversas frentes contra o “velho", o “tradicio- nal", 0 “arcaico”. Ter-seia estabelecido no pais “um novo estado de coisas, sob a pressdo das causas eco- némicas, socials, politicas” © dessa “fermentagéo de idéias" que, depois da guerra de 1914, se “alas- trava por todos os dominios culturais"; desse “esta. do de cosas” eram “sintomas” o movimento de re- novacéo educacional, a Semana de Arte Moderna & as revoltas tenentistas. Espraiava-se por toda parte “um sentimento cada vez mais vivo de desconfianga fem relago 20 antigo estado de coisas © as idéias estabelecidas © uma aspiragéo, vaga ainda quanto 20 contetido e ao sentido das reformas, mas nem por isso menos vigorosa quanto & vontade de destruigéo e de mudangas econdmicas, sociais ¢ politicas” (Aze- vedo, 1943, p.383). Este sentimento e esta aspiracio constituiramse como Ingredientes prlaeipals de Uma ‘mentalidaderevolueiondria que 80. vinhe formando ni cidade", que “te- rla de desfechar, em 1930, numa revolugéo de maior envergadura” (Azevedo, 1943, p83), ‘Ainda segundo Azevedo (1943), 0 Estado Novo, herdeiro da Revolugéo de 1930, ‘serio ratifrio. om que desaquariam, depuradss por uma politica de con- ciliagéo e compromissos, as 4 a Desfecho do movimento ascensional pelo “novo”, Revolucdo de 30 teria concretizado algumas aspira- es daquele movimento: *jé se havia criado uma conscléncia educacional; alumas aspiracées de cul- tura, como a criagéo de um Ministério de Educagéo, 4 reorganizacéo do ensino secundério © superior © @ 4 30 instituiggo de universidades, jé se integravam no programa de uma corrente bastante forte para deixar de Influir sobre 0 governo revolucionério, @ encon- travam, no novo ambiente, as condig6es mais favo- réveis & sua execugdo" (p.395). Por outro lado, fruto de_uma ‘alianga de grupos as mais razendo “um programa de politica escolar nitidamente formulado”\a Revolugo te 8 culturals. No campo edu cacional, com isto, teria feito -SrTS dias -mentalidades, inaugurando um “pariodo~ itico, profundamente conturbado, mas renovador ¢ fecundo, que sucedera a um longo perfodo organico de dominio da tradlglo. 6 da0 labios estabelecidas™ cas" e “arrefecendo as paixSes" (p.401). Se, com isto, 0 movimento pela renovagdo educacional arre- feceu, “alguns de seus principios foram consagrados nna nova ConstituicSo, promulgada pelo Presidente da Republica e assinada por todo o Ministérlo" (p.4t1 Particularmente, as medidas que, na nova ordem ins- tituida, facilitevam o implemento de uma politica na- ional de educagéo, so festejadas como “seqiiéncia dessa marcha para a unidade que 6 toda a histéria da revolueéo de 30, que “teve o seu ponto culm- nante no golpe de estado e na Gonstituicéo de 1937" (p.414). No passado assim interpretado 6 que 0 lugar do movimento educacional nos anos 20 ¢ 30 6 cons- truido. Unificado como marcha ascensional pelo *no- vo", no periodo anterior a 1930,/0 movimento 6 ex rado de suas implicagoes politicas, como se depreen- de da seguinte passagem: “Nao se pode (...) circunscrever 0 dominio des- ee ager eeu Se nares politica de educag&o que adotava, como pontos de Cae ee eaten cai ree como a coeducagdo e a laicidade do ensino. Essas Se eee ae Serre a a eee ale ee classe, raga ou nag&o, um Estado totalitario (. desencadeadas pela reacéo da Igreja contra algumas das idé reformadora: ea eee ore tremadas e de tentativas de infiltracdo de partidos Seater ae eee See eee SE ee eee ec ma resale ase ne Cad. Pesq. (71) novembro 1989 as circunsténcias favordvels as represélias © as re- sisténcias” (Azevedo, 1943,p.401). [Nola 20 18 que “doutrings etromades” «um “corflito de ideologias” importado terlam turvado as cristalinas 4guas de um embate, cujo teor é captado como oposi¢ao entre “novos” e “velhos”, “fato nor- mal e constante em todas as sociedades”) Os agen- tes da contenda so diluidos: a politica escolar da lgreja 6 apenas fator desencadeador de um embate, que se deu num campo ideolégico mais amplo, como conflito entre posigBes de esquerda e de direita. Mas, também este conflito 6 esvaziado: tais “doutri- nas ‘extremadas” terlam sacudido e turvado, sem conseguir desvié-la de seu curso, a contenda entre “tradicionalistas” ¢ “renovadores”. [0 leitor que se perguntar pelo contetdo real do embate entre “novos” e “velhos" n&o encontraré, entretanto, resposta satisfatéria. Talvez porque o “perfodo critico, profundamente cOnturbado, mas re- novador e fecundo”, que sucede & Revolucao de 1930 wntago do pense. mento pedagégico, a principio, numa dualidade de Corretes 6, depots, uma pluralldade © confusto de doutrinas, que mal se encobriam sob a denominagéo genérica de ‘educagéo nova’ ou de ‘escola nova’, suscetivel de acepgies muito diversas” (Azevedo, 1943, p.402). Numa leitura mais atenta, poderd re. gistrar, contudo, que as_acop6es do “novo” disse- mminadas pelo texto entrecruzamm-se de forma a enfet xar_seu significado naquilo “marcha resoluta para uma politica nacional de edu- cago", cujo objetivo principal seri pel dos sistemas de conservagéo €@ difusdo de tipos de ensino tradicionais e das ve- thas culturas. Na narrativa de Azevedo, a a das_u que @ politica cent Estado Novo fecilitava, se expande retrospectivamen- te para 0 enaltecimento da campanha de renovaco escolar dos anos 20, que tera tido naquelas medi- das, sua concretizagaéo e sua significagao itl fragmentagéo do movimento educacional no a pluralidade de doutrinas que “mal se encobriam sob a denominacéo genérica de ‘educacdo nova’ ou de ‘escola nova’ néo 6 tomada como campo aberto 20 mapeamento das posigdes em conflto, mas ret da enquanto “confuséo" doutrindria, destinada & Tata de lixo da historia. Convém & nerrativa de Azevedo, que se prope © desobstruir a rota da “marcha reso: luta para uma politica nacional de educagdo", dis- solver o confto na generalidede de uma confuséo doutrindria, Aquela politica, obra de unificagio dos ‘sistemas educativos estadt através da “unidade fundamental de diretrizes", era um dos melos, “cer. tamente 0 mals poderoso e eficaz”, com que 0 Estado Novo realizava “obra de_assimilagéo © re- construgao nacionais" (Azevedo, 1943,p.415) '. Frente. magnitude de_ontem se esvanaciam ‘9 ariguador_do-Estado Novo. como fro de im ipreensdes reciprocas. O campo de lutas perma- nece, entretanto, demarcado por dupla conveniéncia © novo, o velho, o perigoso: relendo. .. A polarizagio novo X velho homogeneiza cada um {08 grupos em conflito e, por outro lado, assinala ‘os vildes e os herdis da estr distribuig&o dos “fatos” relatados por séries marcadas diferencial- mente pelas rubricas *novo" e “velho" 6 operagéo ‘suficiente para amalgamar iniciativas dispares, cons- tituindo-se seja como “renovadoras”, seja como “tra, dicionalistas".|Com tal procedimento, a narrative ‘opera com a Indeterminagéo seméntica dos termos “novo” e “velho", de modo a neles capturar a signi- ficagdo produzida no relato apologético da historia tentéo recente do pafs._) Teria havido, leu-se hé pouco, uma simples coin- cidéncla temporal entre 0 “movimento de reformas pedagégicas” e a “propagagao de doutrinas extremis- fas". A "zona de ‘pensamento perigoso' * referida no inicio deste artigo seria, a0 que tudo indica, fruto também desta simples coincidéncia temporal. De qualquer forma, dela faria parte uma série de temas caros & moderna pedagogia, cuja simples mencSo seria marcada pelo sinal do perigo indicando, segun- do 0 mesmo Azevedo, que “a sociedade ou os ele- tmentos que a dirigem” os consideram “téo vitais , por conseguinte, tio sagrados que néo toleram ‘ejam profanados pela discussio” (Azevedo, 1943, 403). Nio 6, efetivamente, pela retomada e pela ex- ploragao desses temas que Azevedo monta sua nar- Tativa sobre 0 movimento educacional. O leltor fica apenas sabendo que a laicidade, a coeducagso e 0 chamado “monopélio estatal no’ campo educacional foram alguns deles. Além disso, fica informado de que a luta se espraiou no campo especifico da peda- gogla em torno do ideério da chemada “Escola No- va". Para além disto, tudo se dissolve. As alusdes_ que faz as iniclatives rubricadas como “renovadoras” depuremenae de seus aspectze mals polémicos, € 0 ca50, por exemplo, das referénclas 3 reformas pro- movides por Anisio Telxelra no Distrito Federal, Ne~ las, nenhuma aluséo, por exemplo, & experiéncia: de introdugao do chamado self-government? nas escola: cariocas, experiéncia que foi um dos principais tivos das perseguigées sofridas por Anisio, e que fol ferozmente atacada pela militancia catélica como uma tentativa de “zelosamente” cultivar a indiscipli- na nos bancos escolares, no intento de “inocular nas criangas 0 espirito de revolta contra a ordem social existente” (Van Acker, 1936,p.14).,/Persiste, neste ca- 's0, apenas 0 elogio vazio dos “nov6s métodos de ad- ministragao escolar”, ou da “aplicacgo mals larga dos métodos cientificos aoe problemas de educacdo” (Azevedo, 1943,p.403).) do sis. tema de ensino, na narrativa de Azevedo, restringe-se praticamente a um problema de unificagéo das entio staduals num siste- Snfase de Anisio Telxeira, por exemplo, esté na supers: ‘elo da dicotomia trabalho manual x trabalho intelectual. 2 Uma questio que incomodaria 0 ponto de vista catélico ppelo néo-primado da hlerarquia e da autoridade ne re lago professor-aluno. 3t Com tais proces ents, ¢ disgurg. de Azevedo a zona de perigo referida por Azevedo, resgatando ‘no apenas os termos de um conflito, mas as préti- esvazia 0 embate politico que-Yeve curso no movi- Mento educacional, posicionando-se na mesma cas dos agentes nele envolvidos? da “politica de compromisso, adaptacdo € equilibr que ele atribula 20 5. Nao Taz referéncla alguma, por exemplo, ao exacerbamento do conflito que, por ocasio da Vi Conferéncia Nacional de Edu cago realizada em Fortaleza, em 1934, resultou num atentado contra a vida desse hole esquecide Edgar Sissekind de Mendonea. Nequela ocasiéo, por ter enfrentado uma assembiéia apinhada de militantes da Legido Integralista, opondo-se a uma mocéo em favor do ensino religioso, fol estigmatizado pela im- prensa coarense como um “estrangoiro de alma e de nome” que vinha “do Sul”, ‘a titulo de pedago- 0", contaminar "o povo cearense com doutrinas dis- solventes". Com sua intervenglo na Conferéncia, ‘que acaba resultando na suspenséo da sessio de 7 de fevereiro, o “comunismo”, segundo a mesma im- prensa, teria “arvorado sou estandarte rubro”, fazen- do emergit “imundicies precipitadas", “detritos pes- tilenciais", que jaziam latentes sob as “Aguas para. das” dos debates educacionais?. Sussokind — que, ‘um ano depois, iria amargar na priséo a “politica de compromissos, de adaptacéo ¢ de equllibrio” que re- sultou no Estado Novo — nfo era figura secundéria no movimento educacional. Fora um dos quatro fun- dadores da Associagao Brasileira de Educagéo, em 1924, um dos poucos militantes que desde entéo nela Permaneceu depois de 1932, quando o grupo de Fer- nando de Azevedo adquiriu’o controle da entidade, e foi um dos signatérios do Manifesto dos Pioneiros ‘da Educagao Nova. Pelo atentado sofrido em Forta- leza, ndo recebeu da ABE — a cujos quadros ainda Pertencia em 1934 — nem ao menos uma mogio de solidariedade. ‘A desmontagem da narrativa de Fernando de Azevedo sobre 0 movimento educacional, nos anos 20 @ 30, que se empreende neste artigo, no se pro- Pée, entretanto, apenas como questo de justica em relagéo aquoles educadores que, como Anisio Tel xelra e Edgar Sissekind de Mendonga, foram perse- guidos © marginalizados pela ago repressive do Estado, aliada & truculéncia de alguns inimigos © & omissdo de muitos parceiros‘. Téo longa incurséo tem, principaimente, 0 objetivo de langar algumas Perguntas provocativas para os pesquisadores em Histéria da Educacao Brasileira. No estaria o campo de pesquisa excessivamente demarcado pela narra tiva de Azevedo? Nao tem ele funcionado como espé. cle de pano de fundo, sobre o qual se configuram os objetos de investigacdo? Sua énfase as disposicées legais, que teriam garantido a constituicéo de um sis- tema nacional de ensino, no tem desviado a inves. tigago de temas mais aptos para elucidar a historia da escola brasileira na Repdiblica? (Qual teria sido, por exemplo, o impacto da prética da geragdo de edu. cadores que atuou nas décadas de 20 e 30 — incluin- dose nela os militantes catdlicos — na constituigSo dos saberes produzidos na escola e sobre ela?/Quais seriam as consequéncias, para o conhecimento da escola brasileira, se nos dispuséssemos a percorrer 32 3 Estas acusacSes encontram-se em noticias de jorals constantes da pasta relativa & VI Conferénoia Nacional de Educagio, no acervo dos arquivos da Associacéo Brasileira de Educagio, no Rio de Janeiro. Os recortes arquivados no Identificam o jornal de origem. 4 Néo se pretende tampouco esgotar, nesse artigo, a com plexa questo do posicionamento pessoal de Fernando de Azevedo no confronto politico-pedagégico de sua ge ago, mas apenas evidenclar a posiedo que assume 0 ‘sujeito de enunciac8o no discurso que produz sobre o ‘movimento educacional Cad. Pesq. (71) novembro 1989 A geracao de educadores a que Azevedo perten! ceu teve, desde os anos 20, a ambicio, confessada por Lourengo Filho em 1935, de enfrentar os “pro: blemas de organizacdo nacional” por meio de uma “organizag3o da cultura", que promovesse “uma grande reforma de costumes”, imprimindo “sentido @ diregio” A vida nacional (Lourenco Filho, 1935, 22). No ignorava a importéncia da construcdo ¢ Consolldagéo de uma hogemonia cultural, que. garam tisse a eficécia do aparelho escolar na consecugao do projeto de sociedade que Ideava. Por isso se or- ganizou, propondo-se a desencadear um amplo mo- vimento de opinio piblica em favor da “causa edu cacional” através da ABE, a partir de 1924. Essa organizacao comecou a colher os primelros fritos a partir de 1928. Na Segunda Conferéncia Nacional de Educacao, realizada em Belo Horizonte em novembro desse ano, a ABE foi reconhecida pelo governo mi- neiro (na pessoa do presidente Antonio Carlos), co- ‘mo entidade que realizava “uma obra de governo, na qual o poder publico se supre de suas deficiéncias, nela se inspirando para suas decisdes” (Andrad 1928). Mas é com_a Revol ue 2 ABE al canga 0 statue politico elmejedo, passando HITS. ‘THre-nos anos" que Tmediatarentesucederam. Revolugso, como espécie de prolongamento do Mi nistério da Educagao, entéo criado, Na Quarta Con- feréncia, 6 consagrada: 0 Governo Provisério pede aos conferencistas nel reunidosque fornegam a “formula feliz", 0 ~conceito de educagao™que-wn= base sua politica educacional. A histéria € conheci ja: a recusa_da Conferéncia_em responder a0 Go- vernio_abre espaco politico para_o lancamento_do Wanlfesto dos Plonelros da Eaucagto Nova. O que ~poueo sabido é que; por ocaslio desta Conferénel eram 08 catélicos — que ebandonariam a ABE ano seguinte para organizar-se na Confederacao tolica Brasileira de Educacéo (CCBE) — que detinha © controle da entidade. E, também, que a Conferéncia rio respondeu ao Governo porque a intervengéo de Nébrega da Cunha no Congresso desarticulou a res- posta que vinha sendo preparada pelos seus organi- zadores de comum acordo com o Ministério da Edvcacao. Nos anos 20, a “causa educacional” aglutinou, numa campanha comum, os adversérios da década de 30.)Liderangas catdlicas do movimento no pés-30 — como Everardo Backeuser, Barbosa de Oliveira e Fernando Magalhées — foram das que mais se evi- denciaram na organiza¢ao da ABE nos anos 20, che- gando mesmo a deter 0 controle da entidade no periodo 1929-1931. (0 projeto que amalgamou, na [ABE dos anos 20, catélicas e os chamados “liberals teve sua formulagao Ideoldgica inais acabada no am- bito do nacionalismo que contamina toda a produgio: intelectual do periodo.Neste ambito, o papel da edu- aco era hiperdimensionado: tratava-se de dar forma a0 pais amorfo, de transformer seus habitantes em Povo, constituindo a “nagéo” (Carvalho, 1986; 1988). Tal projeto formulava-se como programa de discipli- narizagao das populagoes, capaz de implantar habitos © novo, o velho, 0 perigoso: relendo de trabalho @ cultivar a operosidade como valor civi- co. Mas no se esgoteva nisso, pois era preciso, como pontificava Lourengo Filho na Primeira Conte réncia Nacional de Educacéo, em 1927, garantir a unidade politica do pais, inculcando, “em todas as criangas brasileiras, idéias e sentimentos necessé- rios @ propria existéncia da nacionalidade” (Louren- Go Filho, 1928:p.8-10).(Cabia & escola a “homogenei zaco necesséria dos individuos como membros de uma comunhao nacional” i(Lourengo Filho, 1928:p.10), Se isto ndo significava, para Lourenco Filho, a de- fesa de um “padrdo rigido de escola’, as principais liderangas catélicas do movimento propugnavam Uuniformizagéo da escola priméria. Fernando Maga- Ihdes © Barbosa de Oliveira repetiam Afranio Peixo- to, propondo uma escola que funcionasse como “usina em série da formaggo dos mesmos.brasilel- ros, educados e cultos (Oliveira, 1928). © intento de homogeneizar e disciplinar as po- pulagdes — amplamente disseminado entre os re- formadores socials sediados na ABE dos anos 20 — trazia para o centro dos debates 0 que se entendia (Como problema relative 8 formaeso das “elites. dre- toras” — em particular, a dos professores, propostos como “organizadores da alma popular”. Antes de 1930 parecia possivel, aos -eformadores sociais aglutinados na ABE, 0 consenso quanto a um traba- tho de homogeneiza¢ao ideolégica dos professores ‘A Segunda Conferéncie chegou mesmo a aprovar, sob aplausos, a realizagio de um congress espe- cialmente voltado para a viabilizagéo de um acordo entre 08 governos estaduais e federal, que assentas- se “um plano de educacéo moral tedrica ¢ pratica em todas as escolas normais brasileiras, integrando as _mesmas finalidades humanas © nacionais" (Se- ‘gunda Conferéncia, 1928). As doutrinas escola-novis tas — que néo deixam de ser, em certo sentido, re- ceituérios de comportamento exemplar dirigidos 20s; professores — constituiamse ainda, aos olhos da- queles reformadores, num emaranhado de propostas, convergentes cuja virtude principal era tornar mais. eticiente o trabalho escolar. A partir da enciclica Divini Iiius Magistri — que, em 1929, fixava os principios a que qualquer peda- gogia (catdlica) deveria subordinar-se — essa per cepcao se alterou radicalmente.| Quando, com a Re- 5A Intervencio de Nobrega da Cunha consistiv, basica- mente, em evidenciar aos conferencistas que o governo @ 08 organizadores da Conferéncia partilhavam a co copcio educacional dualista, segundo a qual existir ‘uma escola para 0 povo e outra para as elites. Sua es- tratégia fol a de dirigir, & Conferéncia, a questéo pre rminar: devia esta responder ao governo? Defendendo a projecao de uma resposta negativa, Nobrega da Cunha argumentava que o tema central da Conferéncia — as ‘grandes diretrizes da educagao popular — vinha sendo fentendido apenas no sentido rastrito que se atribuia nto & “educacdo para 0 povo". Ver, a respelto, Cat valho (1986) e Cunha (1932). 6 A expressio de Alba Cafizares Nascimento, em tese sntada & Segunda Conferéncia Nacional de Educa- que fol aplaudida e aprovada de pé. volugéo de 30, abrem-se possibilidades efetivas de (© movimento educacional influir na prética estatal, Instala-se, aberta, a luta pelo controle do aparelho colar-) NBo parece, entretanto, que as vitérias alar- deadas “por Fernando de Azevedo em sua narrativa ‘tenham sido derrotas para os catdlicos. Estava efeti- vamente em curso, desde os anos 20, 0 que ele chama de “marcha resoluta por uma politica nacional de educagdo". As divergéncias existentes quanto a uma maior ou menor centralizacdo administrativa, Por exemplo, tinham apenas importancia secundaria um projeto de unificagao e homogeneizacao nacio- ral, que se montava preponderantemente através da constituicgo © da consolidacéo de uma hegemonia cultural 7. As divergéncias medravam por outras ins tancias. Uma delas, a mais importante, talvez, dava- ‘se no campo doutrinério da pedagogia, no qual se disputava 0 controle ideolégico do professorado. Catélicos ¢ os chamados “liberais” sediados na ‘ABE nos anos 20 estavam convecidos de que a org nizagdo do cotidiano escolar e a regulagdo das rela- Bes sociais no interior da escola eram questdes relevantes para seu intento de reforma social. Em. consonancia com essa convicodo, utilizavam-se de todos os meios disponiveis para conformar a escola sous fins. Ocupar posigées estratégicas no apare- Iho de Estado, influir nas decisées governamentais, organizar-se com a finalidade de difundir teorias © preceitos pedagégicos, firmar-se na imprensa e no ‘mercado editorial eram estratégias de extrema rele- vancia na luta pelo controle do aparelho escolar. Pouco se sabe, efetivamente, das dimensdes © dos resultados dessa luta. Temo-nos acostumado a acreditar que a militéncia catélica foi apenas respon- svel por barrar 0 avango dos chamados Pionelros da Educacao Nova. Sabemos pouco da pritica des- tes “pioneiros", na reorganizagao e remodelago dos servigos educacionais que foram chamados a gerir ‘no p6s-30. Mas sabemos muito menos a respelto do trabalho insidioso e minudente que a Confederacao Catélica Brasileira de Educagdo realizou junto ao professorado. Ignoréncia injustificada, se admitirmos que, na luta pelo controle do aparetho escolar, o confronto doutringrio no campo pedagégico tinha pa- pel central, por nele estarem sendo normativizadas as préticas escolares. A nao ser que pudéssemos apostar que aquele confronto esgotou-se em si mes- mo, sem deixar suas marcas na constitui¢go daque- las préticas, em momento téo importante na cons- trugdo @ expansio do sistema escolar brasileiro. (© movimento catélico contava, em seus qua- dros, com especialistas em questdes educacionais que militavam de longa data na ABE./Alguns deles, imo ago doe bres an sacle Miomo. nos anos"Z0 Backouer que sera posits de CEE new snes 20, quando tonal tamper ineraliste havi sds mh cow quate pimelos fo dadores da ABE e colaborador de Azevedo na refor- Imo de 1908 no Dstt Feder. Tendo sho.0 funda dor e organizador da Cruzada pela Escola Nove Backeuser foi um dos militantes catdlicos que, per- 34 manecendo adepto das novas doutrinas pedagégicas na década de 30, passou a depurélas, através de intensa militancia intelectual: de tudo quanto fosse incompativel com @ doutrina fixed na Divini Iius Magistri. Quando, sob o influxo desta, ¢ na nova correle- ‘go de forcas inaugurada com a Revolugo de 1930, ‘© movimento educacional se fratura e 08 antigos aliados se transformam em adversérios, 0 que esté ‘em jogo 6 mais do que a disputa em torno de topl- fe um programa ou de inofensivas teo- rias pedagégicas. € um projet de~organizacéo_na- etonal por eo Seana ae tao poitcas Fivals, Sediment ran do comic. Bee @ Interessse amplamente partlInados, tal, peo- pootastinhem na questo do ensino religioso epenae tim de seus ponies: propranitens. “Delismies per favor de Deus", adverla Leonardo. Van Acker, "20 questlinculas scbre 0 bebe, Nem nos salvaré-urna horinha de ensino religioso, se o resto do sistema educaconel for socalista ou comunista ‘bem inte Glonado’ Il Sera um balde. de égua doce no mar” (Van Acker, 1936;p.16) *. Deemontar eo estratéglas com que se constut- ram a acusaploe reciprocas, bern como ea narrath ao sobre oe eplaédloe que marcaram o debate po tieo trevedo no dominio educaclonel, pode. vir © evidenciar que a linha que demarca o campo de con- tenda, constituindo os oponentes e seu objeto, os vencidos e os vencedores pode ser sinuosa, passan- do a dividir os que se apresentam como parceiros e a unit 06 que se declaram adversérios. Este Gesloca mento pode vir a abrir novas,perepectives para os studos de Historia da Educogdo Brasileira, Pode st, eventualmente, vir a revelar que a realidade da escola Iresllara eet’ monce ditante dos propdsitos efor mistas dos que a slegeram como ebjeto de Interven to. Man fazto supse um amplo programa de Dee Guloas. Um programa que implica em considerar nar rativae como a de Fernando de Azevedo como inte vengées que efetuam uma determinada memoria his- térlee parti de uma posigao determinada, EnvoWve topleitar 0 recorte que efetuam, fazendo falar equl fo que sllenciam pete cotelo com documenteggo mais ample. Envolve também eviderciar 06 escolhas que ts organizam, estabelecendo nexos narratives que determinam @pertingncia de narrr isso ou saul, fcsim como. a\melor ou menor relevéncia Je coda fépico arrado. A partir dat, seré possivel reevaliar to praticas des agentes envolvidos na contende, En- tte cle, a0 prices dlocursivas que recortaram_¢ reordenaram © campo doutrnario da pedagog tmades também ‘como Intervengbes num campo de rena 7 Ver, a respeito, Carvalho (1989). 8 No relato de Nobrega da Cunha sobre a Quarta Confe- réncia Naconal de Educagéo, também se evidencia que pelo menos alguns dos defensores da escola leiga reje ‘tavam a proposta pedagégica catdlica, enquanto propos- ta politica de regulacko das relagdes humanas na ordem civil. Ver, a respelto, Cunha (1932) e Carvalho (1987). Cad. Pesq. (71) novembro 1989 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDRADE, A. C. R. Discurso. In: CONFERENCIA NACIO- NAL DE EDUGAGAO, 2. Anais. Belo Horizonte, 1928, AZEVEDO, F. A cultura brasileira. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geograifa e Estatistica, 1943. CARVALHO, M. M. C. Molde nacional @ forms civica: hi ‘lene, moral @ trabalho no projeto da Associaggo Bra sileira de Educagao (19241931). Sao Paulo, 1986, Tese (Goutor.) FE/USP, (© nacional e o regional nos debates promovidos ela Associacao Brasileira de Educago nos anos 20, Cadernos ANPED (nova fase). Rio de Janeiro, (2):239, 19 Notas para reavaliago do movimento educacio- nal brasileiro (1820-1990). Cadernos de Pesquisa, Sho Paulo, (66): 4-11, ago. 1988. elo ensino pablico lelgo e gratuito. Revista de Universidade de Séo Paulo. $60 Paulo, (6), jul./set. 1987. CONFERENCIA NACIONAL DE EDUCAGAO, 2. Anais, Belo Horizonte, 1928. CONFERENCIA NACIONAL DE EDUCAGAO, 6, Rilo de J neiro. [Pasta no Arquivo da ABE] Rio de Janeiro, ABE, od. CUNHA, N. A revolugéo @ @ educagéo. lo de Janeiro, Dié- rio de Noticias, 1932 LOURENGO FILHO, M. B. Discurso na abertura, In: CON: FERENCIA NACIONAL DE EDUCAGAO, 7. Anais. Rio de Janeiro, ABE, 1935. A uniformizago do ensino no Brasil. Educagéo. ‘So Paulo, 2(1), jan. 1928. VAN ACKER, L. Escola nova e comunismo. In: CORREA, A. 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