Você está na página 1de 3

Chico Buarque, Leite Derramado

José Pimentel Teixeira


blog ma-schamba, 29.10.09

[Chico Buarque, Leite Derramado, Dom Quixote, 2009]

Eulálio de Assumpção, centenário moribundo em hospital público, deixa as suas


memórias em registo fragmentário e até balbuciante. Homem de velha estirpe,
descendendo até de "um doutor Eulálio Ximenez d'Assumpção, alquimista e médico
particular de D. Manuel I" (212), transposta para o Brasil na comitiva de D. João VI, aí
originando uma linha de Eulálios de Assumpção grandes proprietários. Através deste
Eulálio de Assumpção (com seus avatares geracionais) pode-se entrever certo percurso
do Brasil, em particular do Rio de Janeiro - até mesmo sob o ponto de vista urbanístico -
de XIX e XX. Mas mais do que referir a óbvia ligação ao registo das "Memórias
Póstumas ..." de Machado de Assis o que me chamou a atenção foi o fundo ideal do
livro.
O protagonista é o verdadeiro Eulálio da Assumpção final, o da inversão de sentido,
todos os que se lhe seguem (mas que morrerão antes dele) são tristes sequelas. Com ele,
assassinado que foi seu pai em finais dos anos 20, se inicia um longo e doloroso
processo de decadência. Económica, social, territorial (as deslocações das suas
residências acompanham a geografia histórica do Rio). Mas onde está a força motriz
dessa decadência? Na sua fragilidade pessoal, desprovido da verdadeira energia dos
Assumpções, do encanto estratégico de seu pai. Mas bem mais do que isso, radica a
decadência na incapacidade de resistir ao simples carnal. A morte do pai, o
desaparecimento do seu viril controle civilizacional, deixa de imediato o jovem Eulálio
à mercê da natureza desbragada, inconsequente, irracional - em pleno funeral de seu pai
descontrola-se com a visão de sua futura mulher Matilde, e tem que se retirar,
incumprindo a sua função social.

Nesse sentido a morte do pai empurra-o para uma distraída miscigenação: "Mas ora,
ora, papai, disse Maria Eulália, está na cara que esse aí puxou a minha mãe mulata. Não
sei quem abastecia minha filha com tantas maledicências, Matilde tinha a pele quase
castanha, mas nunca foi mulata. Teria quanto muito uma ascendência mourisca, por via
de seus ancestrais ibéricos, talvez algum longínquo sangue indígena." (172). Meio
século depois, já avô empobrecido, continuava incapaz de reconhecer o que a sua mãe
(e afinal todos os outros) identificara: "Minha mãe era de outro século, em certa ocasião
chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de
pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs, filhas de um deputado
correligionário de meu pai." (39). Distracção feita de falta de preconceitos com a qual
crescera: "No entanto garanto que a convivência com Balbino [com quem também
desejou relações sexuais] fez de mim um adulto sem preconceitos de cor. Nisso não
puxei ao meu pai, que só apreciava as louras e as ruivas, de preferência sardentas. Nem
à minha mãe, que ao me ver arrastando a asa para Matilde, de saída me perguntou se por
acaso a menina não tinha cheiro de corpo." (27). - [esta repetição, até estilisticamente
deselegante, do episódio do "cheiro de corpo" inquirido pela mãe salienta a sua
importância na economia da narrativa].

Todo o percurso deste Eulálio de Assumpção se marca na desgraçada relação conjugal


com esta, afinal, mulata. Que o trairá e abandonará, assim reforçando-lhe
o imobilismo existencial, condenando-o ao imobilismo afectivo. E que marcará
racicamente os seguintes Eulálios de Assumpção, cada vez mais negros, por herança
genética e hipotéticos cruzamentos, cada vez mais inconsequentes e falidos, mais
descentrados, culminando no último dos seus descendentes, o gigolo-traficante já negão.

Este típico evolucionismo decadentista brasileiro de XIX, o da miscigenação como


factor "natural" obstáculo à civilização, causa de decadência, surpreendeu-me em Chico
Buarque. Será que tresli? Ou é mesmo um manifesto antropológico em forma de ficção?

Você também pode gostar