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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS - PORTUGUÊS


DISCIPLINA: PRÁTICAS DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO

RENATA BEATRIZ DE OLIVEIRA VIEIRA RA: 115703


CARLA YONARA DE CARVALHO RA: 130613
ISABELY DETROS DIAS RA: 130611
ISADORA MARIA SANTOS GRUNNDEMANN RA: 130615

LITERATURA E DIREITOS HUMANOS NO CAPÍTULO “O VERGALHO”

MARINGÁ
2022
“As cenas onde entram escravos condenam a ordem social do país, fixam
ver os traços de caráter perniciosos, em que é patente a impregnação
escravista da classe alta (...)” — Roberto Schwarz

Antes de adentrar a questão em sua especificidade machadiana, é preciso expor


pontos de partida gerais acerca das produções literárias do nosso ponto de vista. Primeiro,
sobre o seu caráter mediador com relação ao ser humano (individual) e ao mundo (coletivo).
A literatura, portanto, não seria explicada somente em si, mas como uma realização social,
numa dinâmica de dependência com a realidade objetiva, embora não como um mero reflexo
desta, sendo possível, assim, a capacidade de fabulação defendida por Candido (2004).
Levando em conta que a literatura é uma produção humana, tem-se como proposta, aqui, que
essa produção partiria de individualidades, como a própria construção do personagem. Assim,
em Machado e, a saber, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos essa individualidade
presente tanto nos personagens quanto na situação específica que vivenciam. Ademais, é um
particular que encontra maior sentido quando elevado ao típico, isto é, aos elementos do
coletivo, da realidade social e, resultando dessa tipicidade do individual e tendo em vista que
o movimento histórico é o movimento de contradições: o privado é, portanto, na nossa
análise, político. É dessa forma que podemos, por exemplo, compreender o que Engels quis
dizer quando citou que aprendeu com Balzac (autor do século XIX, monarquista, tal qual
Machado, embora não excluindo as grandes diferenças entre ambos, inclusive na forma)
“mais do que com os livros de todos os economistas, historiadores e estatísticos profissionais
daquele período em seu conjunto”, por suas produções que tanto caracterizavam os tipos
sociais relacionados à burguesia francesa em ascensão quanto demonstravam as contradições
entre e dentro das classes.
Sendo assim, para compreender o particular, é preciso compreender de qual caráter
histórico-social — possuindo forte influência em todo o decorrer do livro — o capítulo
LXVIII, “O vergalho”, foi resultado (aqui, ressaltando o que já foi dito sobre particularidades
do individual e, ademais, da liberdade e escolhas do processo de produção). De acordo com
Eduardo Galeano (2010, p.19), falando sobre a América Latina:

Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza
sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e
seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se
transfigura em sucata, os alimentos em veneno.
E ainda:

Ao infortúnio dos indígenas dos impérios aniquilados na América hispânica


deve-se somar o terrível destino dos negros arrebatados às aldeias africanas
para trabalhar no Brasil e nas Antilhas. A economia colonial
latino-americana valeu-se da maior concentração de força de trabalho até
então conhecida, para tornar possível a maior concentração de riqueza com
que jamais contou qualquer civilização na história mundial. (GALEANO,
2010, p. 64)

Assim, era a partir da exploração do negro escravizado, humilhado e reprimido que


Portugal concentrava suas riquezas contra o Brasil colônia, assim como o Império utilizou-se
disso para o mesmo fim e, mais tarde, a precarização do trabalho deu continuidade ao
processo, em novas dinâmicas. Dessa forma, mesmo o escravo liberto do século XIX, antes
(comprando a sua liberdade) e após a Lei Áurea de 1888, deparava-se com um mercado de
trabalho que ele não conhecia, com poucas oportunidades, sem nenhuma assistência, tendo
como único “consolo” o título de não-escravo. Mas a elite, tanto do colonizador quanto do
Império, não poderia fazer uma escravidão sem precedentes, era preciso “coadunar, de uma
maneira ou de outra, seus interesses com sua virtude” (BARTHES, 2005, p. 16). Assim, era
preciso destituir do corpo negro o seu caráter humano e torná-lo mercadoria, através tanto de
justificativas da Igreja Católica quanto biológicas. Não sendo tido como humano, os valores
da elite não precisariam ser aplicados aos colonizados e escravizados. É nesse território que
caminhou o processo de mistificação à cultura e ao corpo negros, mitos estes que impactaram
(impactam) diretamente na imagem que a pessoa negra tem de si mesma, em um movimento
que Fanon chamará de colonização das mentes. Com isso, também emprega-se a ideia do
colonizado buscar uma identificação com o seu colonizador, que tem como resultado também
o desejo do oprimido de ser o opressor, para usar as palavras de Freire.
Diante disso, Memórias Póstumas. Como a obra, situada em 1881, com seus
personagens homens livres, dependentes e latifundiários, pode relacionar-se em sua
individualidade com o momento típico? Isso pode ser constatado nas personagens da obra,
reverberado, em cada uma delas, situações em que o tipo é manifestado através das ações e
anseios dos sujeitos do romance. Constataremos isso, como dois exemplos, no próprio
Prudêncio e no Brás Cubas, ou seja, nos próprios personagens do capítulo supracitado no
trabalho. Primeiramente, o que é um tipo em Brás Cubas, conceito para uma análise da
prática que se diz realista? Seria a tomada típica de um personagem, na sua individualidade,
para a universalidade, assim, fazendo com que seu modo de ação seja particular. Em outros
termos, o real, em Machado de Assis, se assinala como realidade transformada em ficção
sobre o real, isto é, não há uma identidade entre realidade e ficção, mas um terceiro excluído,
mesmo que, sob a forma literária, esteja ali um tecido de transfiguração (a transformação da
realidade em figura vai ser realista, ou seja, mimeticamente realizada nos limites daquele tipo
forma do romance, nos anos 80 do século XIX).
Assim sendo, usando de situações dentro do livro, temos a construção típica do que
seria Prudêncio: ex-escravo da família do personagem principal, o personagem escravizado
só pode ser explicado a partir de Brás Cubas (porque a consciência do oprimido só pode ser
explicada com a do opressor). O sentido de suas ações estando no Outro, para usar um
conceito fanoniano, se limitando à sua existência enquanto indivíduo, não só no que concerne
às suas atitudes em consonância com o discurso dominante (como a do capítulo), mas
também pela sua particularidade tanto histórica quanto fictícia. O significado que se tira disso
só pode ter seu corpo na exterioridade do texto, não apenas pelo fato de Prudêncio ter sido
pouco falado, mas pela própria situação que nasce no desenvolvimento da história dos
descendentes de pessoas escravizadas no Brasil. Por isso, não há nada imanente, cristalizado
no romance, de tal forma que seu devir, enquanto ficção, só pode surgir na elaboração real, no
meio societário, o que abre porta para o mistério textual, a particularidade de Prudêncio, que
supera tanto sua universalidade enquanto pessoa libertada quanto sua individualidade,
logicamente alienada pelo discurso de dominação, algo já dito aqui.
Podemos, assim, analisar algumas coisas na construção formal do texto, isto é, na
escolha de termos, para, depois, elucidarmos sua proposta particular: por exemplo, quando
Brás Cubas era criança e fazia Prudêncio agir como um cavalo, seguido de um “cala a boca,
besta!”:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as


mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepavalhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e
outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem
dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu
retorquia: — “Cala a boca, besta!” (ASSIS, 1994, p. 15)

Adiante, isso seria enfatizado no momento da divisão da herança do pai de Brás


Cubas com sua irmã:

— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.


— O Prudêncio está livre.
(...)
— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a
ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata?
(ASSIS, 1994, p. 54)

Ao fazer as relações Prudêncio-cavalo, Prudêncio-besta e Prudêncio-coisa, mesmo


comparando ironicamente a situação de liberdade com uma suposta “liberdade” da prata,
esses termos de associação do personagem são o que podem criar o sentido de
desumanização. Prudêncio, durante grande parte do livro, é mais um cavalo, uma besta e uma
coisa, do que um ser humano. Daí que, no capítulo O vergalho, ao conquistar a sua liberdade,
o personagem ainda sofra de um complexo de inferioridade — especialmente, para nós, ao ter
sido destituído de qualquer possibilidade de processo de descolonização da mente, aqui
sabendo que as interações sociais do personagem eram centradas na família a qual ele servia
e da suposta internalização desses preconceitos — ao seguir chamando o protagonista do
mesmo termo que o identificava como o seu senhor: “Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não
pede”, corroborando com o fato de que “nhonhô”, historicamente falando, ter sido um
chamamento comum na época do escravo com relação ao senhor de escravos. Coisas como
essas sugerem que tanto a universalidade quanto a individualidade de Prudêncio estejam
alienadas, tendo como medium as mesmas opressões discursivas inerentes a ele, que essas
alienações só podem ser retiradas, em resumo, quando sua consciência deixa de ser a
consciência da dominação, que sua liberdade não seja meramente liberdade vinda de cima.
Não é uma situação, assim, tão clara, mas sugestiva, coisa que a ficção requer.
Já em Brás Cubas, as situações irônicas que o envolvem durante o livro são decisivas
para entender o seu tipo e vão desde o fato de se tratar de um defunto-autor (isto é, um
defunto que passa a escrever, não um escritor que morreu), com foco narrativo em primeira
pessoa, que faz a sua dedicatória aos próprios vermes e foge da linearidade que esperava-se
em romances até as situações específicas ocorridas entre os personagens. Para nós, a ironia
que será mais acentuada a compreender o que foi o percurso do protagonista para entendê-lo
no capítulo em análise será sobre a relação trabalho-estudo. Como parte de uma elite que não
precisava trabalhar por não ter a necessidade de sustentar-se sozinha, restava o estudo, não no
propósito de enriquecimento, mas como uma prática de ascensão intelectual ao olhar público.
Apesar disso, diz o protagonista em uma passagem:

— Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.


— Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.
— Trabalhando, concluí eu.
Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão
cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele,
escarranchando-se diante de mim. (ASSIS, 1994, p. 67)

A ironia, aqui fortalecida por uma suposta menção de um mendigo a Proudhon


(“ensinar-lhe a minha filosofia da miséria”), está no incentivo que Cubas faz ao trabalho
manual como sendo um meio de ascensão social, enquanto o próprio conselheiro não só não
precisa de seu conselho como vive uma vida de ócio, evitando o trabalho tanto em sua forma
manual quanto intelectual — o último tendo em vista que, embora graduado, não devotava-se
à advocacia.
Tudo isso pode ser usado de modo a contrastar a imagem de Prudêncio à de Brás
Cubas: um, sendo ex-escravo, não tendo acesso à educação, à cultura, com uma possível
visão de mundo pautada em um complexo de inferioridade e levando em consideração que as
pessoas que foram libertas da escravidão não recebiam um tratamento de direitos humanos,
mesmo que tenhamos, na visão de Cubas, que Prudêncio “era livre, dispunha de si mesmo,
dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição”
(ASSIS, 1994, p. 76); é possível dizer, levando em consideração o que foi exposto, que ele
não alcançou, portanto, uma liberdade substancial, mas formal. O resultado disso é observado
no capítulo O vergalho, onde os valores do opressor foram repassados de modo contínuo ao
oprimido, que, por sua vez, repassa adiante a opressão vivenciada, inclusive reprimindo seu
escravo com as mesmas palavras que recebeu: “cala a boca, besta!”, algo notado pelo próprio
Brás Cubas no mesmo capítulo: “exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente (...): comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera” (ASSIS, 1994, p. 76).
Por fim, dizemos que, levando em consideração a classificação de Candido (inspirada
no padre Lebret), sobre a literatura encaixar-se no conceito de bem incompressível, tendo em
voga seu caráter humanizador, definido por Candido (2004, p. 180) como:

Entendo aqui por humanização (...) o processo que confirma no homem


aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante.
A obra Memórias póstumas, acuradamente em O vergalho (aqui mantendo os sentidos
de uma distância respeitável entre a obra e o autor como ser empírico), pode ser relacionada
com a visão de Candido na medida em que promove esses aspectos através de uma exposição
desses tipos em situações não-idealizadas, em diálogo também com as situações irônicas, que
promovem, levando em consideração toda a dinâmica humana, ou melhor, de desumanização,
envolvida e explicada no percurso do trabalho, os traços essenciais do homem, como a
possibilidade de reflexão, de penetração nos problemas da vida, a complexidade de mundo
etc. A própria concepção de Prudêncio não ter tido acesso à cultura da literatura e à educação,
pode ter contribuído, seguindo no sentido de Candido, para a perpetuação da visão limitante
do personagem em ver o mundo pelos olhos do senhor de escravos, por exemplo, o que
coincidiria com a necessidade, pontuada pelo autor, em ampliar para os direitos humanos,
inalienáveis, o acesso à literatura como bem incompressível e, mais a fundo, a importância
(salientamos: urgência) da reivindicação de uma sociedade igualitária (para usar o enunciado
de Candido) que combata efetivamente, adicionamos, a lógica colonial, exploratória e
capitalista de necessidade da existência de um oprimido, cuja existência é dada em nome da
opressão, e um opressor que perpetua o ciclo.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

BARTHES, Roland. Inéditos, vol. 4: Política. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2004.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sérgio Faraco. RS: Porto
Alegre: L&PM Pocket, 2010.

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