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J.P.
O selo DIALÓGICA da Editora InterSaberes
faz referência às publicações que
privilegiam uma linguagem na qual o autor
dialoga com o leitor por meio de recursos
textuais e visuais, o que torna o conteúdo
muito mais dinâmico. São livros que criam
um ambiente de interação com o leitor –
seu universo cultural, social e de
elaboração de conhecimentos –,
possibilitando um real processo de
interlocução para que a comunicação se
efetive.
Rito, mito e símbolo
como fenômenos
religiosos e
sociológicos

Luiz Alexandre Solano Rossi


Ildo Perondi
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rossi, Luiz Alexandre Solano


Rito, mito e símbolo como fenômenos religiosos e sociológicos/Luiz Alexandre
Solano Rossi, Ildo Perondi. Curitiba: InterSaberes, 2020. (Série Panorama
das Ciências da Religião)

Bibliografia.

ISBN 978-65-5517-770-1

1. Fenômenos 2. Pluralismo religioso 3. Religião e sociologia 4. Ritos


5. Símbolos I. Perondi, Ildo II. Título III. Série.
20-42536 COD-306.6

índices para catálogo sistemático:

1. Religião sociologia 306.6

Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

1ª edição, 2020.

Foi feito o depósito legal.

Informamos que é de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos.

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia
autorização da Editora InterSaberes.

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Código Penal.
SUMÁRIO

7 | | Apresentação
10 | | Como aproveitar ao máximo este livro

14 | 1 Ritos: aproximação ao tema


17 | 1.1 Rito e ação simbólica
21 | 1.2 Rito e solidariedade social
27 | 1.3 Ritos de passagem, ritos de iniciação e ritos de morte

34 | 2 Rito e compreensão do ser humano


38 | 2.1 A fluidez dos ritos
40 | 2.2 Rituais e sociedade de consumo
44 | 2.3 Ritos em uma sociedade multicultural

54 | 3 Mitos: aproximação ao tema


55 | 3.1 A Bíblia e seus mitos: leituras
73 3.2 A abordagem dos mitos da criação

82 | 4 Mito como ferramenta de investigação sociológica


85 | 4.1 Relatos místicos
94 | 4.2 Considerações finais sobre os mitos analisados
99 | 5 Símbolos: aproximação ao tema
103 | 5.1 O símbolo como linguagem
106 | 5.2 O sinal visível de uma realidade invisível
109 | 5.3 Simbologia bíblica

117 | 6 Símbolo como linguagem da fé


118 | 6.1 O mundo desde o seu reverso
125 | 6.2 O símbolo como poder nas relações pessoais e
estruturais

134 | | Considerações finais


136 | | Referências
140 | | Bibliografia comentada
143 | | Anexos
159 | | Respostas
160 | | Sobre os autores
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APRESENTAÇÃO

É por meio da linguagem que as mais diferentes tradições religiosas se


comunicam tanto com seus seguidores quanto com o sagrado inerente a cada
uma dessas mesmas tradições. Todavia, trata-se de uma linguagem que
adquire características específicas a fim de se traduzir em sentidos profundos.
Por isso, a linguagem que gravita ao redor do fenômeno religioso é
profundamente simbólica e, para traduzi-la, é necessário o uso tanto do
sentimento quanto da racionalidade. Schlögl (2009, p. 115) acrescenta:

A linguagem simbólica toca o ser humano em sua totalidade,


mobilizando energias em seu interior que se manifestarão por meio de
sua atitude face à vida, a si mesmo e ao mundo. Os mitos, histórias
elaboradas a fim de comunicar os sentidos que, de outro modo seriam
incomunicáveis, servem- se de expressões simbólicas, pois, para
comunicar o incomunicável, é preciso criar meios e não fins

Devemos pensar que a atitude religiosa presente no ser humano não é


algo episódico ou, ainda, uma atitude primitiva do ser humano diante da
realidade, desconhecida ou não. É uma atitude permanente e, nesse sentido, é
a relação do ser humano com o conjunto de sua experiência (Bouyer, 1967). É
justamente pela experiência, ou experiências, que se descobre no mundo uma
totalidade que é também uma unidade compreendida simultaneamente como
imanente e transcendente. E, quando se volta à experiência, faz-se necessário
sublinhar os quatro critérios desta elaborados por Wach (citado por Bouyer,
1967), a saber: em primeiro lugar, trata-se de uma resposta do ser humano à
realidade última de todas as coisas, que, certamente, é transcendente e, mesmo
em
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sua transcendência, entra em relação com ele; em segundo lugar, a


proximidade do transcendente provoca e exige do ser humano que vive a
experiência religiosa uma resposta total, que envolve a totalidade de seu ser;
em terceiro lugar, a experiência religiosa é vivida de uma maneira tão intensa e
indizível – qualitativamente superior a quaisquer outras experiências –, que se
torna impossível qualquer comparação; e, finalmente, em quarto lugar, a
experiência altera o sujeito de tal maneira que ele não pode continuar mais do
mesmo modo em que se encontrava; ou seja, a transformação há de ser
completa.
Rito, mito e símbolo como fenômenos religiosos e sociológicos é
composto de seis capítulos. Nesta obra, você encontrará não só rigor
metodológico na definição e na exposição de cada um dos temas tratados, mas,
também, a percepção de como cada um desses pontos são importantes para a
compreensão do ser humano e da sociedade – desde as sociedades antigas até
as atuais. Nesse sentido, estudar ritos, mitos e símbolos vai além de um
mergulho em tempos imemoriais com intuito de conhecer o passado. Do
passado é necessário que voltemos ao presente para verificar como os
múltiplos sentidos da vida proposta pelo homo religiosos (homem religioso)
podem ser explicitados nas diversas formas da sociedade contemporânea. O
campo religioso brasileiro é amplo e por demais complexo. Por isso,
precisamos refletir a respeito dos ritos, mitos e símbolos em todos os possíveis
campos religiosos presentes na sociedade brasileira, além de ter ciência de
como eles ajudam a entender a própria sociedade. Ademais, o estudo da
tríplice temática de ambientes religiosos distintos pode, de certa forma,
contribuir para um melhor diálogo inter-religioso.
Nesse contexto, dedicamos os capítulos 1 e 2 ao estudo dos ritos.
Procuramos apresentar o conceito de rito e a maneira como o tempo, ao ser
fragmentado, pode assumir novas possibilidades de interpretação de acordo
com o rito investigado. Também
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é importante observar que os ritos têm uma forte densidade que permite
refletir sobre a função social que carregam, uma vez que não são realizados no
vazio, isto é, alienados das experiências do cotidiano de homens e de mulheres.
Nesse sentido, os grupos humanos expressam a própria identidade, sobretudo,
pelos ritos.
Nos capítulos 3 e 4 trazemos à luz reflexões a respeito do mito.
Enganam-se aqueles que concebem o mito como fantasia. Trata-se, sim, de
uma maneira de interpretar o mundo e de dar-lhe sentido. Com base em
histórias sagradas para os mais diversos povos, o cotidiano de cada um deles é
interpretado e entendido. Portanto, compreender os mitos é também
compreender formas distintas de conhecer e apreender o mundo e a existência.
Nos capítulos 5 e 6, por sua vez, abordamos especificamente o tema do
símbolo. Evidenciamos que os seres humanos são os únicos que podem criar
símbolos e dar-lhes sentido. E, mais do que isso, o símbolo traz em seu DNA a
polissemia, ou seja, o fato de poder assumir indefinidas possibilidades de
significado. É possível também verificar a formação de certa unidade
relativamente àqueles sentidos que se inserem no mesmo gradiente de um
símbolo.
A fim de permitir uma percepção mais estética e prática dos temas
analisados – ritos, mitos e símbolos este livro traz, ao final, como anexo,
alguns relatos míticos, ritos e símbolos de várias culturas religiosas. São
informações relevantes para que o interessado em Ciências da Religião perceba
que essas diversas culturas religiosas produzem mitos, ritos e símbolos
significativos para dar sentido e finalidade à estrutura do próprio mundo.
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1 RITOS:
APROXIMAÇAO AO TEMA

Toda manifestação do sagrado, ou seja, a hierofania, provoca a fragmentação


do espaço e do tempo. Como resultado dessa fragmentação, encontramos as
denominadas áreas sagradas e áreas profanas. Em consequência disso, seguem
os tabus que delimitam a área do sagrado, evitando-se possíveis
contaminações, e, para regular a passagem de uma esfera para outra, surgem
os ritos, formas fixas, repetitivas e prescritas de atitudes para com o sagrado.
Compreendemos, nesse sentido, o rito tanto como um texto quanto como um
itinerário. De fato, é possível conceber o rito como um símbolo em ação.
Ao pesquisar a respeito do rito (religioso ou profano), precisamos seguir
alguns princípios metodológicos. Rivière (1997, p. 322-323) apresenta estes
oito princípios metodológicos que devem ser seguidos para bem compreender
os ritos:
▪ recolocar o mito em seu contexto de expressão;
▪ não isolar os elementos rituais de seu encadeamento, nem os detalhes da
sequência;
▪ levar em consideração todos os atores de um rito;
▪ estudar a influência do rito, a curto e médio prazo, sobre o comportamento
dos que participam dele;
▪ apreender o núcleo principal de valores e referências ético-sociais que se
exprimem no rito ou permitem explicá-lo;
15 Ritos: aproximação ao tema

▪ esclarecer a força de uma adesão aos valores pela frequência, estabilidade e


respeito mais ou menos rigorosos das práticas;
▪ analisar os meios reais e simbólicos acionados no rito, suas significações e
funções na eficácia sui gene ris do rito;
▪ colocar em evidência os conteúdos, formas e causas e efeitos das
comunicações, inerentes a qualquer rito, cuja lógica é a interação.

Resumidamente, poderíamos definir o rito com base nas pesquisas de


Croatto (2010) e de Rivière (1997). Para Croatto (2010, p. 330): “O rito aparece
como uma norma que guia o desenvolvimento de uma ação sacra. O rito é uma
prática periódica, de caráter social, submetida a regras precisas”. Por sua vez,
na definição de Rivière (1997, p. 10), que se mostra um pouco mais geral, o rito
é um

conjunto de condutas individuais e coletivas, relativamente codificadas,


com base corporal (verbal, gestual, postural), de caráter mais ou menos
repetitivo, com forte carregamento simbólico; condutas essas
fundamentadas numa adesão mental, muitas vezes inconsciente, a
valores relativos a escolhas sociais consideradas como importantes, e
cuja eficácia não depende de uma lógica puramente empírica que se
esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação entre causa e efeito.

Todas as religiões e sociedades têm ritos de renovação periódicos que


relembram importantes valores do grupo e renovam o ânimo desses valores.
Croatto (2010, p. 329) considera quer do ponto de vista dos fatos religiosos, é
justamente a expressão ritual a característica que mais se sobressai em toda a
religião: “os ritos têm uma repercussão social enorme, seja pelo elemento
gestual, que é mais visível, seja pela organização que implicam”. O rito é,
portanto, simultaneamente a ação do ser humano onde este se percebe como
ser religioso, tanto na ação quanto na palavra que o acompanha. Por isso,
Bouyer (1967, p. 59, tradução nossa) deduz
16 Ritos: aproximação ao tema

para o rito a mesma consequência que para a palavra: “O rito é precisamente


esta ação na qual o homem se sente atuando no agir divino: o que o homem faz
com ele é uma ação divina, é uma ação que Deus faz por ele, nele, tanto quanto
ele faz em Deus e por Deus.”
No entanto, é preciso enfatizar que a linguagem supõe não somente o ser
que fala em oposição ao mundo em que fala. Supõe um Outro, ou seja, é
necessário alguém para falar. A palavra, nesse sentido, necessita de certa
consciência incoativa de si, bem como da certeza de outro eu. A palavra,
certamente, não é unicamente pessoal; é claramente interpessoal, isto é, o
diálogo é inerente à intencionalidade de toda palavra. Eliade (1986, p. 119-120)
aprofunda a discussão nos seguintes termos:

O valor apodítico do mito é periodicamente reconfirmado pelos rituais.


A rememoração e a reatualização do acontecimento primordial ajudam
o homem “primitivo” a distinguir e a reter o real. Pela repetição
contínua de um gesto paradigmático, qualquer coisa se revela fixa e
durável no fluxo universal. Pela repetição periódica daquilo que foi feito
in illo tempore, impõe-se a certeza de que qualquer coisa existe de uma
maneira absoluta. O ritual anula o tempo profano, cronológico, e
recupera o tempo sagrado do mito. O homem torna-se contemporâneo
das ações que os Deuses realizaram in illo tempore. A revolta contra a
irreversibilidade do tempo ajuda o homem a construir a realidade e, por
outro lado, liberta-o do peso do tempo morto, dá-lhe a garantia de que é
capaz de abolir o passado e recomeçar a sua vida e de recriar o seu
mundo.

Portanto, é possível chegar à conclusão de que os ritos tendem a abolir o


tempo, particularmente em razão de seu caráter repetitivo e de seu arcaísmo.
Além disso, o local sagrado onde os rituais se realizam tornam- se, por
analogia, o lugar de origem de todo espaço, ou seja, o centro do universo.
17 Ritos: aproximação ao tema

1.1 Rito e ação simbólica


O rito pressupõe que o participante se faça presente em tempos imemoriais, ou
seja, in illo tempore, justamente no momento em que a performance ritual
teve sua gênese. Mas não devemos pensar o rito como uma ação realizada
somente pelo ser humano. Um olhar mais apurado perceberia que o rito, de
alguma forma, é também uma ação divina, isto é, uma imitação do que os
deuses fizeram. Eliade (1988, p. 36) afirma que “todos os rituais têm um
modelo divino, um arquétipo”. Consequentemente, todos os atos religiosos
foram, de alguma forma, inaugurados pelos deuses ou por algum antepassado
mítico. E Eliade (1988, p. 49) arremata dizendo: “um objeto ou uma ação só se
tornam reais na medida em que imitam ou repetem arquétipos. Assim, a
realidade só é atingida pela repetição ou pela participação; tudo o que não
possui um modelo exemplar é desprovido de sentido, isto é, não possui
realidade”.
Em razão disso, o rito deve ser repetido como se fosse uma ação divina.
É lógico que essa compreensão do ritual humano-divino possibilita a
comunhão com o transcendente. É durante o ritual, afirma Schlögl (2009), que
o fiel interage com o transcendente. Uma interação e/ou participação “efetiva
de seu corpo como instrumento que comunica seus desejos e que cumpre, na
realização de seus ritos, o destino último de sua experiência na participação
mística” (Schlögl, 2009, p. 118). Eliade (1988, p. 37) acrescenta: “toda ação
humana adquire significado na medida em que repete exatamente uma ação
realizada no princípio dos tempos por um deus, um herói ou um antepassado”.
O rito é uma grande ação simbólica, com base na qual os grupos ou os
indivíduos revivem experiências fundamentais, geradoras de sentido e de
certeza para sempre. O cotidiano é vivido também pelos ritos. Os ritos são
procurados porque, em épocas marcadas por incertezas, há necessidade de
regras infalíveis de
18 Ritos: aproximação ao tema

ação coletiva. Trata-se de uma atividade repetitiva que pode ser aplicada tanto
em cerimônias relacionadas com o sobrenatural quanto nos hábitos, usos e
costumes sociais. Rito, portanto, pode ser compreendido como repetição de
algo feito anteriormente pelos deuses ou ações a serem empreendidas a mando
deles para conseguir certos resultados, inclusive o de penetrar em espaços e
tempos dominados pelo sagrado invisível. Há, por assim dizer, uma força
operativa no rito.
O ser humano religioso sente que, na ação ritual, algo é produzido, razão
pela qual se sobressai a convicção de que o que é feito no rito não pode ser
reduzido a uma ação puramente humana, uma vez que é uma ação dos deuses
e, por isso, necessariamente eficaz. O que torna o rito eficaz, assim, é a ação
primeira dos deuses repetida ritualmente pelos seres humanos religiosos. Na
lógica demarcada pelo fenômeno religioso, seria possível inferir que o que é
instaurado pelos deuses é reinstaurado pela repetição ritual. Acredita-se,
então, que a divindade realmente age no rito, e, portanto, os ritos são ações
religiosas e devem ser compreendidos como tais. Eliade (1988, p. 53) recupera
a intensidade do rito em diferentes culturas:

No Egito, nos últimos séculos, o poder do rito e da palavra que os


sacerdotes possuíam devia-se à imitação do gesto primordial do Deu
Tote, que criara o mundo pelo poder do seu Verbo. Segundo a tradição
iraniana, as festas religiosas foram instauradas por Ohrmazd para
comemorar as etapas da Criação do Cosmos, que durou um ano. No fim
de cada período representando respectivamente a criação do céu, das
águas, da terra e das plantas, dos animais e dos homens, Ohrmazd
descansava cinco dias, criando assim as principais festas masdeístas. O
homem não faz mais do que repetir o ato da Criação; o seu calendário
religioso comemora
19 Ritos: aproximação ao tema

no espaço de um ano todas as fases cosmogônicas que tiveram lugar ab


origine. De fato; o ano sagrado retoma constantemente a Criação, o
homem é contemporâneo da cosmogonia e da antropogonia, porque o
ritual o projeta na época mítica do princípio.

A relação que se constrói com os ritos não são aquelas marcadas pela
indiferença, como se tai relação fosse casual. Os ritos são ações significativas
por si mesmas e jamais podem ser apontados como um produto tardio de
alguma religião intelectualizada. Justamente por isso é que os ritos são
considerados como obra dos deuses. E, consequentemente, os sujeitos que
celebram os ritos não o fariam se tivessem a mínima consciência de que eles
eram os próprios autores dos ritos. Assim, os ritos existem como ritos porque
se crê que se alguém, em algum momento, teve condições de instituí-los; foram
os deuses que o fizeram e, dessa forma, os deuses devem ser percebidos como
seus verdadeiros agentes. Veja a clara explicação que Bouyer (1967, p. 68)
oferece:

O rito é rito vivo. Não é uma composição elaborada friamente para


traduzir em uma mímica expressiva certas concepções religiosas que
começaram na tranquilidade de um escritório. É uma reação imediata,
primordial, da humanidade religiosa, onde ela realiza em ato sua
relação efetiva com a divindade, antes de explicara si mesma esta
relação.

CURIOSIDADE

A valorização do rito pelo neopentecostalismo é um exemplo relevante: por


intermédio do rito, estabelece-se um conjunto de modelos que garante a
repetição correta de formas de sucesso para a aproximação e a captura do
sagrado. A predominância da prática é decorrência direta da desintegração da
doutrina.
20 Ritos: aproximação ao tema

Isambert (citado por Rivière, 1997, p. 96-99), a respeito da discussão


sobre a eficácia do rito, apresenta algumas possíveis proposições:
▪ o rito seria eficaz em razão de um poder imanente e de uma certa força
espiritual que seria fornecida pelo mana irrepresentável;
▪ o rito opera uma manipulação psicológica com objetivo regulador apoiado na
fé;
▪ a eficácia se relaciona à repercussão e à intensidade do protagonista e à
firmeza do suporte coletivo de adesão ao rito;
▪ o rito se apresenta como práxis, como ação sobre o mundo e ação sobre
outras pessoas;
▪ o rito tem um poder de estruturação dos comportamentos, de representações
e de atitudes. Nesse sentido, quem controlar o rito, controlará o que o rito
controla;
▪ o rito suscita nos participantes um compromisso decisivo, uma prática
constante, ao mesmo tempo em que domestica as emoções.

Eliade (1988, p. 50) reforça um dado que é de extrema importância para


o entendimento do rito:

O tempo profano e a duração são suspensos pelo paradoxo do rito. A


repetição de gestos paradigmáticos confere realidade a um ato (ou
objeto) e é nessa medida que há uma abolição implícita do tempo
profano, da duração da história; aquele que reproduz o gesto exemplar é
transportado assim para a época mítica em que o gesto exemplar foi
revelado. A abolição do tempo profano e a projeção do homem no
tempo mítico só se produzem em intervalos essenciais, ou seja, naqueles
em que o homem é verdadeiramente ele próprio: no momento dos
rituais ou dos atos importantes – alimentação, geração, cerimônias,
caça, pesca, guerra, trabalho etc. O resto de sua vida passa-se no tempo
profano e desprovido de significado.
21 Ritos: aproximação ao tema

Percebemos, assim, que o rito pressupõe a abolição do tempo profano –


aquele que se vive rotineiramente – para que o tempo mítico se instale.

1.2 Rito e solidariedade social


O rito não é, como afirmado anteriormente, apenas um centro produtor de
significado e de certezas. É também um produtor de solidariedade social.
Podemos dizer que uma das funções do rito é dotar de um sentido o caos da
vida cotidiana. A produção coletiva do rito produz, simultaneamente, uma rede
de solidariedade entre os participantes. O rito ao mesmo tempo é visual e
socioespacial. É por isso que todo ritual exige um grupo de pessoas, um lugar
sagrado, objetos, instrumentos e vestes. O rito é uma ação humana que se
sintoniza com a ação dos deuses. Ao fazer uma aproximação de rito com mito,
é possível afirmar que, no primeiro, os seres humanos fazem o que, no
segundo, fazem os deuses. O próprio ato de participar dos ritos é um ato de
renovação da cidadania do grupo e de pertença ao grupo.
A Um conjunto de ritos forma o ritual, e, no caso dos ritos religiosos, há
a liturgia que prescreve as maneiras pelas quais os fiéis se articulam entre si,
quando em situação de relacionamento com o sagrado. Contudo, precisamos
salientar que os ritos incluem ações e palavras.

CURIOSIDADE
Um rito ou festival permite que um grupo vivencie a si mesmo de uma forma
ideal. Cada sociedade tem ocasiões importantes nas quais a comunidade
demonstra sua melhor natureza e consolida seus laços grupais. Isso pode ser
feito mediante observâncias [pelo pesquisador] como festivais elaborados,
trocas de presentes, visitas a parentes ou locais ancestrais, dramatizações
religiosas
22 Ritos: aproximação ao tema

compartilhadas, demonstrações públicas ou modos especiais de trajar-se. Os


tempos de festas expõem ao grupo os valores-chave da comunidade, tais
como a boa vontade no Natal, o espírito de reconciliação no Yom Kipur, e até
mesmo a dureza e a beleza masculinas na iniciação dos guerreiros Masai.
(Paden, 2001, p. 71)

Na composição do rito encontramos gestos, palavras e, às vezes,


música, mas nem sempre a interação entre essas partes é pacífica. Na
liturgia dos protestantes históricos (por exemplo, calvinistas e luteranos), há
uma supervalorização da palavra sobre os demais elementos, ao passo que,
no neopentecostalismo, a palavra falada é subjugada pelos gestos e pela
música.

FIQUE ATENTO
As pessoas, muitas vezes, estão acostumadas com os ritos que são inerentes
à própria confissão religiosa. E, com isso, acabam esquecendo de que todas
as outras tradições religiosas operam com o rito. Sair da zona de conforto de
“segurança” dos próprios ritos e conhecer os de outras culturas religiosas
viabiliza não somente a aquisição de novos conhecimentos, mas também a
produção de tolerância.

No entanto, uma situação singular nasce e pode ser explicada por meio
da segmentação do mercado religioso. Nesse sentido, conforme o campo
religioso vai sendo ocupado por diferentes culturas religiosas, a competição
se potencializa, razão pela qual se tornam necessárias a banalização e a
desclassificação dos ritos religiosos ofertados pelas agências concorrentes.
Para determinada agência religiosa, os ritos das demais igrejas, seitas e
denominações tradicionais são ineficazes, e não produzem resultado algum
se comparados à eficácia dos próprios ritos. Os ritos católicos e todas as
tendências dos cultos afro-brasileiros são demonizados
23 Ritos: aproximação ao tema

a priori, combatidos pelos ritos puros e funcionais presentes nas


denominações pentecostais e neopentecostais. O critério é a funcionalidade
do sistema. No rito se encontra a eficácia do gesto. É importante esclarecer
que aos rituais pode ser acrescentada a sacralidade da pessoa oficiante. Trata-
se do rei, do sacerdote ou qualquer outro equivalente, que precisará ser
revestido de uma sacralidade especial para garantir a eficácia ritual. Van
Gennep (citado por Rivière, 1997) associa o funcionamento dos ritos à
utilidade social destes. Assim, o rito parece eficaz não pelo que exprime e
significa, mas porque ele próprio opera uma mudança de forma real, e não
simbólica.

CURIOSIDADE

Você sabia que pessoas sagradas existem em todas as religiões? Em algumas


delas, predomina o xamã, que é capaz de experiências extáticas; em outras,
predomina o pajé; em outras ainda, encontramos os dervixes; e em religiões
diversas, aparece o sacerdote como celebrante principal. Todos eles são,
objetivamente, iguais. Cada um deles, nos respectivos espaços sagrados,
celebram a experiência do sagrado. Seria imprescindível que o pesquisador
fizesse uma visita técnica às mais diferentes agências religiosas a fim de
conhecer e entrevistar a experiência do sagrado experimentada pelos
respectivos sacerdotes.

Segundo Eliade (1986), por meio da execução dos ritos, ocorrem a


reversão do tempo e a volta do homem àquele tempo mítico primordial, aos
momentos fundadores, o que o torna um “contemporâneo dos deuses”, mitos e
heróis. É como se as pessoas participantes daquele ritual retornassem no
tempo e vivessem, com isso, a experiência primordial e geradora de sentido
para todo o tempo e espaço. Bazán (2002, p. 51), em sua análise do fenômeno,
reafirmou que “o rito constitui o aspecto mais característico
24 Ritos: aproximação ao tema

da religião”. Nele, portanto, no rito, se assim fizeram os deuses, assim fazem os


homens.

CURIOSIDADE
De acordo com Croatto (2010, p. 333): “Um gesto ou um rito são por si só
polissêmicos. Mergulhar no rio Ganges é um rito homólogo a mergulhar no rio
Jordão. Mas a cosmovisão da índia impõe ao rito de submersão no rio Ganges
uma intenção diferente da intenção do batismo no rio Jordão”.

O ser humano, como um ser histórico, relaciona-se com os outros e


também com o sagrado, dentro de estruturas de espaço e de tempo. Os ritos
constituem, nesse sentido, moradas do sagrado, construídas no tempo
mediante gestos, palavras e músicas. Ao significar outra realidade, o rito
teatraliza a relação com o sagrado. Esse tempo sagrado é percebido pelo
homem como indestrutível, isento de contradições, desordem e misérias.
Consequentemente, voltar a ele nos rituais e nas festas é mergulhar na força
primitiva, geradora de ordem, lógica, coerência.
É possível afirmar que os ritos são portadores de uma chave usada para
abrir espaços temporais que, muitas vezes, residem apenas no imaginário das
pessoas.
Os ritos sagrados, realizados em determinado espaço, transformam esse lugar
em um espaço sagrado. Está, portanto, no rito, a garantia de sacralidade do
templo, e o templo, por sua vez, reforça – em razão da influência que tem sobre
os seguintes elementos – a sacralidade de objetos, de atos e de atores. Bázan
(2002, p. 51-52) complementa:

O rito, à medida que procura repetir com cuidadosa veneração


comportamentos paradigmáticos e de qualidade extraordinária, torna
esta atividade contemporânea de um tempo pleno, sem deslocamento
interno ou exterior, rompe com a indiferença de
25 Ritos: aproximação ao tema

um espaço sem localizações e apenas organizado pelas necessidades


mutáveis e se translada para um âmbito impregnado de significação
sagrada e que assim outorga localização ao orientar-se a partir de um
polo estável e, permite, desvanecendo as relações das causas e efeitos
que se desenvolvem no movimento contínuo e sucessivo, extenso,
anterior e posterior, do espaço e do tempo, alcançar imediata e
diretamente um nível de realidade invisível e metaempírico , que é a
própria vida dos deuses.

Os ritos, ao demarcarem o tempo, permitem que os fiéis separem sua


biografia pessoal em antes e depois de conhecer a figura religiosa principal. No
rito, “a repetição da ação divina é mimetizada como ato litúrgico. Os atos
divinos são atualizados na cena ritual.” (Croatto, 2010, p. 332). Assim, por
exemplo, podemos compreender os ritos de passagem que, justamente,
celebram as transições da vida. Esclarece Paden (2001, p. 73):

Os ritos de passagem – aqueles que celebram as transições da vida – são


meios de relacionar mudanças individuais ao domínio geral da
comunidade. Mesmo as sociedades seculares dispõem desse tipo de rito.
Sem o grupo, o status social permanece indefinido. Ritos de
nascimento, de entrada na vida adulta, casamento e morte situam o
indivíduo em novas e consolidadas relações com o grupo, em uma rede
de filiação. As novas lideranças ganham prestígio e legitimação por meio
de inaugurações públicas. Ao mesmo tempo, o que uma cultura pode
considerar como um momento significativo de mudança, outras podem
ignorar completamente. O primeiro animal abatido por um jovem pode
ser ritualmente celebrado em uma cultura, enquanto em outra o que
pode ser posto em destaque é o momento em que ele adquire o direito
de votar.
26 Ritos: aproximação ao tema

Rivière (1997), por sua vez, relembra que o rito de passagem institui uma
linha entre um antes e um depois, razão pela qual ele sanciona e santifica uma
ordem estabelecida. Diz Rivière (1997, p. 44) textualmente: “Ao notificar
alguém sobre o seu novo papel, o ato solene de investidura – rito de passagem
– produz o que designa e tem efeito de confirmação estatutária e encoraja o
promovido a viver segundo as expectativas sociais ligas à sua posição”.
Quando, no rito, é realizada uma ação que tenta produzir um efeito
especial (a saúde, a graça, a benção, a consagração de uma colheita), esse
efeito, produzido simbolicamente, é tão real nesse plano quanto é a
instauração de uma realidade segundo o mito. O que importa é compreender a
experiência religiosa como tal, sem preconceitos racionalistas. Caso se entenda
a eficácia ritual somente no nível profano, perde-se o essencial. Em outras
palavras, trata-se de uma eficácia simbólica que tem a ver com o sentido
da realidade: o que é instaurado pelos deuses (segundo o relato mítico)
também é reinstaurado pela repetição ritual. “O funcionamento dos ritos
encontra- se ligado à sua utilidade social”, e sua execução é imperativa para
recriar periodicamente a identidade moral da sociedade (Rivière, 1997, p. 11).
Uma precaução muito bem distinguida pelo pesquisador Croatto (2010,
p. 334) pode ser assim expressa:

O rito e a palavra do mito complementam-se mutuamente, sem


hegemonia de um sobre o outro. A palavra sozinha, sem mais nada, leva
para o intelectualismo, ou à ritualização de coisas secundárias. Apenas o
rito, sem mais nada, ou acompanhado de palavras incompreensíveis,
degenera em magia, ou perde diretamente seu valor simbólico.

Os ritos podem ser classificados de múltiplas maneiras em todas as religiões e


obedecem a estruturas da realidade. Vejamos atentamente o Quadro 1.1:
27 Ritos: aproximação ao tema

Além dos citados no Quadro 1.1, muitos outros podem ser elencados,
como: ritos de nascimento, matrimônio sagrado, ritos anuais, ritos do
sacrifício, ritos de passagem, ritos de participação na vida divina, ritos de
propiciação, ritos de construção e ritos de iniciação.

Ritos de passagem, ritos


1.3

de iniciação e ritos de morte


Rituais de iniciação e ritos de morte são presença constante no itinerário dos
povos. Ponto de início e ponto de partida levantam questões às quais a maioria
dos povos deseja responder. Ritos de iniciação e ritos de passagem indicam os
processos pelos quais o ser humano vai-se construindo até a chegada do
momento definitivo do qual não podem escapar. Tolra e Warnier (2003, p.
207) assim teorizam a respeito dos ritos de passagem e de iniciação:
28 Ritos: aproximação ao tema

Ritos de passagem são os que presidem às grandes “passagens” e que


marcam os tempos fortes da existência: nascimento, iniciação,
casamento, morte. Van Gennep mostrou que, apesar de sua diversidade,
obedecem a uma lógica universal. São empregados para separar
indivíduos de um status para lhes dar um outro status; entre estes dois
momentos, há um período intermediário de “margem” onde o
indivíduo, às vezes, segundo formas muito estranhas, experimenta uma
espécie de morte seguida de ressurreição. O rito cria, assim, um ser
novo, muitas vezes dotado de um novo nome, e munido de um segredo
iniciático cujo objetivo é, sobretudo, assegurar a solidariedade e a
submissão sociais. Partindo da experiência e que não se pode produzir
uma nova vida ou passar de uma vida a outra a não ser por uma morte,
o homem exprime também sua submissão às leis do ser. A iniciação é,
em termos gerais, o acesso a um conhecimento que só pode ser
transmitido através de um longo processo, iniciação a uma técnica, aos
arcanos de um saber. Numa acepção específica, por iniciação designa-se
o conjunto dos ritos que marcam (ou marcavam antigamente) em
numerosos grupos o acesso dos filhos à identidade social de adulto.

A análise de Tolra e Warnier (2003, p. 212) a respeito da morte como a


última das passagens realizadas pelo ser humano é essencial para
compreender as relações da vida com a morte inevitável e a maneira como as
construções de sentido podem ser equivocadas:

Em lugar algum a morte foi concebida como o fim da existência


humana, e sim como uma viagem cujas etapas devem ser respeitadas
para não se soldar aos vivos através de divagação nefasta. As
primeiras etapas ocorrem muitas vezes logo após a morte: o cadáver
pode participar do ordálio que serve para encontrar os responsáveis
por sua morte, ou o espírito do morto pode passar por uma iniciação,
dialogar com os seus, chamá-los da mata, aparecer em sonhos a seus
herdeiros etc. As mortes trágicas são,
29 Ritos: aproximação ao tema

geralmente, associadas ao crime. O término da viagem é um mundo


subterrâneo ou celeste mais ou menos inverso ao dos vivos, onde às
vezes o status social é o mesmo que o daqui (África, Peru antigo,
China) e onde às vezes o falecido é, ao contrário, julgado e
sancionado segundo seus méritos (hinduísmo, budismo, religiões
abraâmicas). Uma grande ambiguidade em relação ao espírito do
morto manifesta-se amiúde nos rituais e discursos fúnebres. Por um
lado, tenta-se de todos os modos afugentá-lo (exorcismo) com medo
de que ele venha atormentar os vivos; por outro lado, tenta-se
conciliar-se com ele, torná-lo favorável, uma vez que, chegado ao
mundo invisível (verdadeiro), ele tem muito mais poder que os
homens vivos.

FIQUE ATENTO
O que é o rito de iniciação?
O rito de iniciação pertence a uma categoria mais geral denominada rito de
passagem. Eles existem em todas as religiões, pois fazem referência a
momentos decisivos em que o indivíduo não somente nasce, mas também
renasce ou se inicia em uma nova forma de ser ou de agir. Iniciar-se é
morrer para voltar a nascer. De modo geral, os ritos de iniciação tentam
expressar uma nova forma de vida, religiosa e social. Uma expressão
simbólica da nova realidade é o nome outorgado na circuncisão ou no
batismo – ou o novo nome que a pessoa recebe quando ingressa em um
novo status ontológico, como por exemplo a entronização do rei, a coroação
de um novo papa, a consagração na vida religiosa mediante os votos.
(Croatto, 2010, p. 359-360)

O rito de passagem possui forte relação com a temporalidade justamente


porque expressa o ritmo da vida social. A combinação dos eventos que se
repetem nos ritos de passagem estabelecerá uma
30 Ritos: aproximação ao tema

fratura no tempo. Ou seja, a partir de um determinado momento, e por conta


do ritual, haverá uma visível separação entre um “antes” e um “depois” que
organizará não somente a percepção do tempo, mas também o modo como este
será preenchido. A percepção de Callois (1996) é a de que a iniciação faz dos
neófitos verdadeiros homens. o conjunto das cerimônias de iniciação confere a
eles as mais diferentes virtudes viris, especialmente o valor, a invencibilidade,
o direito e o poder de procriar.
Vilhena (2005), pedagogicamente, elenca uma série de características
comuns aos rituais que, possivelmente, incidem em todas as dimensões da vida
pessoal e coletiva. No Quadro 1.2 podemos observar as características por ela
nominadas em um quadro adaptado:

Os rituais são necessários à vida e, via de regra, ratificam a identidade de


seus sujeitos. Rituais não são exclusivos do âmbito
31 Ritos: aproximação ao tema

religioso, uma vez que também estão inseridos no cotidiano público de cada
pessoa.

SÍNTESE
I. Toda manifestação do sagrado, ou seja, a hierofania, provoca a
fragmentação do espaço e do tempo.

II. O rito aparece como uma norma que guia o desenvolvimento de


uma ação sacra. É uma prática periódica, de caráter social,
submetida a regras precisas.

III. Todas as religiões e sociedades têm ritos de renovação periódicos


que relembram importantes valores do grupo e renovam o ânimo
desses valores.

IV. O rito pressupõe que o participante esteja presente em tempos


imemoriais, ou seja, in illo tempore, justamente no momento em
que a performance ritual teve sua gênese.

V. Os ritos são procurados porque, em épocas marcadas por


incertezas, há necessidade de regras infalíveis de ação coletiva.

VI. O que torna o rito eficaz é a ação primeira dos deuses repetida
ritualmente pelos seres humanos religiosos.

VII. O rito opera uma manipulação psicológica com objetivo regulador


apoiado na fé.

VIII. Uma das funções do rito é dotar de um sentido o caos da vida


cotidiana.

IX. Na composição do rito, encontramos gestos, palavras e, às vezes,


música.

X. Por meio da execução dos ritos, ocorrem a reversão do tempo e a


volta do homem àquele tempo mítico primordial, aos momentos
fundadores, o que o torna um “contemporâneo dos deuses”, mitos e
heróis.
32 Ritos: aproximação ao tema

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. A hierofania provoca a fragmentação do espaço e do tempo em áreas
sagradas e profanas. Assinale a alternativa que define o termo hierofania:
A] Manifestação do sagrado.
B] Atividade ritual.
C] Rito de passagem.
D] Princípio metodológico.
E] Manifestação humana.

2. Todas as religiões e sociedades têm ritos de renovação periódicos, aqueles


que relembram os valores importantes de um grupo social. Qual é a
característica que mais se sobressai em toda religião?
A] O sagrado.
B] A expressão ritual.
C] As relações simbólicas.
D] A ação humana.
E] A relação entre causa e efeito.

3. O ser humano religioso, ao participar do rito, sente que algo é produzido e


está além da ação puramente humana. De acordo com essa premissa,
assinale a alternativa que contém o(s) protagonista(s) que age(m) no ritual:
A] O ser humano.
B] A comunidade.
C] Os deuses.
D] Os profissionais da religião.
E] Os teólogos.
33 Ritos: aproximação ao tema

4. Por que dizemos que um gesto ou um rito por si só são “polissêmicos”?


A] Porque se reduzem a um só significado.
B] Porque estão além do tempo e do espaço.
C] Porque são realidades imaginárias.
D] Porque apresentam muitos significados.
E] Porque reforçam a sacralidade dos objetos.

5. Qual é o nome dado a um conjunto de ritos religiosos que prescrevem as


maneiras pelas quais os fiéis se articulam entre si?
A] Mitologia.
B] Antropologia.
C] Teologia.
D] Eclesiologia.
E] Liturgia.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Questões para reflexão
1. Todas as religiões e sociedades têm ritos de renovação periódicos que
relembram valores do grupo e renovam o ânimo daqueles valores. Escolha
um rito de uma comunidade religiosa e um rito da sociedade civil e
compare-os, refletindo sobre suas diferenças e suas semelhanças.

2. Como acontecem os ritos de passagem em várias culturas e em várias


religiões?

Atividade aplicada: prática


1. Visite pelo menos três diferentes comunidades religiosas e descreva
pormenorizadamente um ritual de cada uma delas, anotando as diferenças e
as semelhanças entre eles.
2 RITO E COMPREENSÃO
DO SER HUMANO

Ao pensar o rito, também precisamos refletir sobre a função social que ele
carrega. Grupos humanos expressam a própria identidade, sobretudo, pelos
ritos. Por isso, todos os ritos inscrevem-se no marco social que lhes dá sentido
e que é reforçado pelo ambiente social. Assim, todos ritos são validados como
importantes por aqueles que os vivenciam:

O rito é uma das expressões coletivas mais naturais do sagrado. O culto


e o serviço a Deus/aos deuses não são fatos puramente mentais, mas
eminentemente corporais; e, além disso, mesmo podendo ser
individuais, sua forma característica é a comunitária. Portanto, sob
ambos aspectos, são essencialmente sociais. (Croatto, 2010, p. 342)

Existe uma diferença qualitativa entre teorizar e vivenciar rituais.


Quando falamos em teorizar, referimo-nos a uma conduta que é própria da
pesquisa científica e que se relaciona com a tomada de distância do objeto
pesquisado, com o exercício do método, da racionalidade e, para não
contaminar o objeto pesquisado, a neutralidade. Vivenciar rituais, por outro
lado, requer a plenitude das emoções, a adesão tal como a de um fiel, e, vez de
distanciamento, exige-se a vinculação. O rito não é simplesmente “um tipo de
ação entre outros muitos. É a ação humana típica, como realização do
35 Rito e compreensão do ser humano

homem no mundo” (Bouyer, 1967, p. 59, tradução nossa), que se apresenta de


forma imediata e fundamentalmente religiosa.
Ao estudar os ritos, conhecemos um pouco melhor sobre nós mesmos.
Entendemos, assim, o ser humano que os produz e neles atua. Não é um mero
exercício intelectual ou acadêmico, mas uma ferramenta para nos aproximar
de nós mesmos na multiplicidade de dimensões que nos constituem como
seres biológicos, psíquicos e sociais, dotados da capacidade de imaginar, criar,
significar e transcender. Ao afirmar que o ato de estudar os ritos
necessariamente conduz à compreensão um pouco melhor de si mesmo,
Vilhena (2005, p. 59) acrescenta que as capacidades próprias dos ritos nos
qualificam

como seres espirituais, ou seja, não somos prisioneiros da matéria, do


diretamente observável, do já dado, da programação fechada. Porque
essas faculdades humanas expressam-se e manifestam-se nos ritos,
podemos dizer que, mesclados a conteúdos e gestos profanos, os rituais
são portadores, em sua profundidade, de uma conotação religiosa.

Percebemos a relevância de acolher outras experiências, diferentes das


nossas, que são igualmente importantes, pois integrantes de mundos de
sentido e significado para tantos outros sujeitos. Assim é possível, no mesmo
ambiente, de forma inter-relacionai, articular de forma positiva tanto nossas
experiências rituais quanto aquelas que outras pessoas vivenciaram, sem a
necessidade imperiosa de hierarquizar as experiências entre as mais
importantes e as menos importantes, ou entre superiores e inferiores. Da
Matta (citado por Rivière, 1997, p. 7) afirma, com propriedade, que “o rito é
por excelência o meio e a ocasião do reconhecimento mútuo”.
Devemos observar que a busca pela ordem e o movimento são elementos
constitutivos dos rituais. Portanto, quando pensamos em rito, a referência
deve sempre ser à ordem prescrita, ou seja,
36 Rito e compreensão do ser humano

a algo que antecede, no tempo e no espaço, o próprio ritual realizado; assim, o


ordenamento ritual inclui a ordem do cosmo, das relações entre divindades e
seres humanos e, logicamente, dos seres humanos entre si. O antropólogo e
sociólogo George Balandier (1969, p. 58, grifo nosso) assim se expressa sobre o
assunto: “O rito age sobre os seres humanos por sua capacidade de emocionar;
o rito coloca-os em movimento. Explora o registro simbólico e o
conhecimento reservado. Conjuga linguagens: a sua própria, mas também a
música, a dança e o gesto”. Logicamente, por conta disso, podemos dizer que o
rito representa a sociedade em ato, ou seja, exprime o ritmo da vida social da
qual é resultado. É tão somente pela reunião que a sociedade pode reavivar a
percepção e o sentimento que tem de si mesma.
O ser humano não vive em um vazio. A história é própria do ser humano,
razão pela qual ele vive temporal e espacialmente localizado. Dessa forma, suas
ações estão inseridas, necessariamente, no tempo e no espaço.
Consequentemente, não há como estudar e compreender os ritos negando as
dimensões históricas deles. E, nessas dimensões, “o ritual representa um
drama para resolver uma crise e constitui, assim, um mecanismo de resposta
social às mudanças e conflitos” (Rivière, 1997, p. 54). E, se pensarmos pela
perspectiva da pressuposição de que o ser humano vive em um mundo inóspito
para o qual não nasce preparado, esse mundo torna-se perigoso e, nesse
sentido, o rito passa a ser um belo instrumento de organização do caos
primordial vivido pelo ser humano. Vilhena (2005, p. 138) faz uma
interessante observação:

Faz-se necessário que todo o tempo da vida humana seja enxertado,


organizado, significado e protegido por ritos especiais. Se tal acontece
durante todo o tempo da vida cotidiana individual e coletiva, mais
acentuadamente acontecerá naqueles momentos nos quais a
cotidianidade se vê fragilizada ou submetida a
37 Rito e compreensão do ser humano

transformações introdutórias de quebra de rotinas, de mudanças de


condições relativas a fases da existência, de assunção de novos papéis e
funções sociais, com suas perdas e ganhos, de fases onde se instalam
doenças e mortes. Para atender a essas necessidades do tempo da vida
biológica e social, os humanos, nas culturas, criam e desenvolvem
rituais específicos que os preparam, introduzem e fortalecem para a
vivência e o enfrentamento de condições novas.

Uma das principais funções dos espaços sagrados é transformar


substancialmente o espaço caótico e desordenado em um mundo ordenado e
significativo. Nos espaços sagrados, os ritos cumprem duas finalidades
específicas: (1) a entronização do sagrado, ou seja, no novo território acontece
a introdução do sagrado conhecido pelo grupo e, por consequência, seu
protetor; (2) a percepção de que os deuses viajam com seus fiéis e, por isso, há
necessidade de purificar e exorcizar os espaços já habitados que,
anteriormente, eram interpretados como carregados e povoados por espíritos
desconhecidos, ameaçadores, por deuses e entidades diferentes dos seus.
Limpam simbolicamente a terra de sua presença malévola. Para os que
invadem: o rito funda um novo mundo, fazendo-os partícipes e habitantes de
um espaço benévolo. Para os que tiveram seus espaços rituais destruídos: a
perda de referências espaciais simbólicas e de sentido instala o caos, a falta de
sentido, a não sobrevivência (não só simbólica).

CURIOSIDADE
Veja um relato de Eliade (1996, p. 126) sobre a influência dos ritos de
iniciação dos Nias e dos Mentawei na formação da função sacerdotal:

Entre os Nias, aquele que está destinado a se converter em sacerdote


desaparece repentinamente, arrebatado pelos espíritos
38 Rito e compreensão do ser humano

(é muito provável que o jovem tenha sido conduzido ao céu); ele volta
à aldeia depois de três ou quatro dias; caso contrário, inicia-se uma
busca por ele e, costumeiramente, ele é encontrado na copa de uma
árvore, conversando com os espíritos. Parece que ele se encontra
privado de razão e, por isso, é necessário que se faça [sic] sacrifícios
para a sua recuperação. A iniciação exige também uma marcha ritual
em um cemitério, em uma água corrente e em uma montanha. Entre
os Mentawei, por outro lado, o futuro xamã é levado ao céu pelos
espíritos celestes e ali recebe um corpo maravilhoso. Geralmente cai
enfermo e imagina que subiu ao céu. Após estes primeiros sintomas
um mestre efetua a cerimônia de iniciação. Em algumas ocasiões,
durante a iniciação ou imediatamente após ela, o aprendiz de xamã
perde o conhecimento e seu espírito sobe ao céu em uma barca
conduzida por águias, para conversar com os espíritos celestes e
pedir remédio a eles.

2.1 A fluidez dos ritos


Os ritos não são imutáveis, razão pela qual são fluidos. Os ritos não podem ser
classificados como estáticos justamente porque a dinâmica é própria deles.
Ritos, por conta de sua fluidez e de sua mobilidade, podem ser criados e até
mesmo ressignificados. Novos ritos podem ser criados ou recriados,
ressignificados e, conforme os múltiplos contextos em que estejam inseridos –
social, político, econômico e cultural –, podem até desaparecer, quando seu
sentido, que era pertinente a uma comunidade, deixa de ser eficaz. Desse
modo, o rito pode ser articulado com base em um padrão quaternário assim
disposto: tradição, memória, conservação e transformação.
39 Rito e compreensão do ser humano

CURIOSIDADE
Veja a seguir o exemplo de Vilhena (2005, p. 101) sobre o ritual do Shabat
judeu:

Provavelmente nenhuma instituição judaica é mais diretamente


responsável pela conservação da espiritualidade, das tradições, do
ethos judaico que os rituais do Shabat. O rito do Shabat revive o mito
de criação e fundação do mundo. Refere-se a um acontecimento
original, das origens do universo, que se deu in illo tempore, no
tempo fabuloso e esplendoroso dos princípios, feito pelo ritual um
tempo trans-histórico, no qual, pela imitação do descanso divino,
imitatio dei, o judeu religioso reatualiza o fato originário e regenera o
tempo atual, reintegra-se na criação, reencontra-se com a plenitude
primordial, vivendo com e na presença do Eterno.

Durante um ritual, é comum que nem todos os envolvidos


desempenhem os mesmos papéis e as mesmas funções. É o grupo que
estabelece e dá a conhecer essas regras. Temos, então, uma ordem de ações
internas aos ritos. E, em todo rito, encontramos os participantes e os excluídos.
Entre os participantes, nem todos atuam da mesma maneira. Nesse sentido, é
razoável afirmar que o rito significa, simultaneamente, reafirmação, ratificação
e manutenção da estrutura social, com todas as desigualdades e hierarquias.
Possíveis elementos constitutivos encontrados no rito podem assim ser
numerados: sucessão de fases ordenando a ação; expectativa de que cada qual
desempenhe o próprio papel; fixação de sentimento de pertença ao grupo;
identidade pessoal e coletiva reafirmada. Durkheim (1989, p. 77) salienta que
“o primeiro efeito do rito é o de aproximar as pessoas, de multiplicar o contato
entre elas e de torná-las mais íntimos”. Paden (2001, p. 72), por sua vez, é
muito explícito ao afirmar que o ritual permite que um grupo e seus indivíduos
desempenhem e vivenciem papéis que compensam ou complementam o status
social da rotina:
40 Rito e compreensão do ser humano

No rito, pode-se vestir a fantasia, mas também removê-la


completamente. Diversos momentos do calendário anual dão a cada
sociedade a oportunidade de expressar seriamente diferentes aspectos
de si mesma – ora sóbrios, limpos e contritos; ora carnavalescos e
animados; ora jubilosos e ora solenes. Desse modo, a sociedade constrói
ritos e festivais para dar à vida social sua gama completa de expressão.

Rivière (1997, p. 9) lembra, por exemplo, que no rito de aniversário nos


deparamos com o fato de as pessoas comerem e beberem juntas, ressaltando a
importância disso:

O momento chave da interação familiar e elemento da arquitetura da


vida social, a refeição, apresenta-se como ritualização da partilha da
comida, num cerimonial influenciado pelas preferências religiosas e que
se transmite através das gerações, respondendo à lei natural da aliança e
da troca representada pela comensalidade. No seio da família, a refeição
contribui para o aprendizado dos papéis, da solidariedade e da distinção
social. No seio do grupo de comensais, ela assegura a permanência dos
valores culturais e das regras socialmente definidas, a conformidade
com o modelo expressando a participação do indivíduo no grupo.

Se, por um lado, temos a refeição como símbolo de partilha e de


comensalidade, por outro, as lanchonetes de fast-food primam pela rapidez e
pela individualidade. Se a refeição em família reforça papéis e provoca
solidariedade, a realizada no fast-food cria afastamentos comunitários.

2.2 Rituais e sociedade de consumo


A sociedade contemporânea produziu o fenômeno 6o fast-food, que, por ser
um ato isolado, quebra o ritual. Ritzer (2002, p. 201) denomina esse fenômeno
de “processo de mcdonaldização”, que
41 Rito e compreensão do ser humano

atinge os mais variados espaços de coletividade, como restaurantes, igrejas,


museus, universidades etc.
O processo de mcdonaldização acarreta, entre outras consequências, o
rompimento das relações rituais acontece pela ação de quatro dimensões,
assim refletidas por Rossi (2017):
1. Eficiência: sistemas eficientes têm mais possibilidades de chegar a
resultados factíveis. Na eficiência, o conceito de utilidade também se
encontra inserido. Nesse caso, o que é útil permanece, e o que é inútil é
descartado. Necessidades são pensadas com base no que é limitado e
tangível (por exemplo, alimentação, habitação, saúde); por outro lado, o
desejo é caracterizado por aquilo que é ilimitado e intangível e, por isso
mesmo, recorrente. Desejos ilimitados geram insatisfação permanente e
uma consequente corrida frenética pelo consumo, inclusive o religioso.
Regras e regulamentos organizacionais também ajudam a assegurar um
trabalho de alta eficiência; uma dimensão que procura os melhores meios
para se atingir determinado fim.
2. Calculabilidade: observe que vivemos cada vez mais no reino perigoso da
economia de mercado que valoriza calcular, contar, quantificar e
multiplicar. A calculabilidade teológica, por sua vez, é uma maneira
particularmente estéril e irrelevante de sufocar a vida humana e os valores
de construção de uma sociedade saudável. A ênfase que é colocada sobre a
quantificação cria a ilusão da quantidade como critério de sucesso. A vida
humana é reduzida a números que indicam valor. Quanto mais números
uma pessoa obtém, mais valiosa ela se torna e, com isso, cresce seu grau de
honorabilidade e de espiritualidade nos espaços em que vive. O sucesso da
vida das pessoas passa a ser definido pela quantidade de objetos que elas
possuem ou podem comprar. Assim, a ênfase sobre a quantificação cria
42 Rito e compreensão do ser humano

a ilusão da quantidade como critério de sucesso. Fromm (citado por Rossi,


2017, p. 91) elabora uma consistente interpretação da calculabilidade como
definição do ser humano:

Enquanto a vida se caracteriza pelo crescimento de uma maneira estruturada,


funcional, o indivíduo necrófilo ama tudo o que não cresce e tudo o que é
mecânico. A pessoa necrófila é movida por um desejo de converter o orgânico e
inorgânico, de olhar a vida mecanicamente, como se todas as pessoas fossem
coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos de vida se
transformam em coisas. A memória, e não a experiência; ter, e não ser, é o que
conta. O indivíduo necrófilo pode se realizar com um objeto – uma flor ou uma
pessoa – unicamente se a possui; em consequência, uma ameaça a sua posse ê
uma ameaça a ele mesmo; se perde a posse, perde o contato com o mundo.

3. Previsibilidade: essa dimensão assegura que os produtos e serviços


adquiridos serão os mesmos em qualquer tempo e em todos os lugares. Com
o objetivo de obter previsibilidade, uma sociedade racionalizada enfatiza a
disciplina, a ordem, a sistematização, a rotina, a consistência e a operação
metódica. A previsibilidade faz da padronização um estilo de vida para que
tudo aconteça da mesma maneira, evitando, assim, quaisquer imprevistos.
Nesse sentido, do ponto de vista do cliente, ela traz muito mais paz à mente
para a vivência do cotidiano. No entanto, a previsibilidade estabelece uma
barreira intransponível com relação à criatividade e à inovação.
4. Controle: o conceito de controle relaciona-se com a redução da
possibilidade de variabilidade. Quanto mais se impõem o controle e, de
forma consequente, a passividade ao ser humano, tanto mais ingenuamente
este tende a se adaptar ao mundo e à realidade parcializada que lhe é
oferecida, em vez de transformá-la e de transformar a si mesmo.
Domesticação
43 Rito e compreensão do ser humano

e passividade são dois elementos derivados do controle que atingem em


cheio tanto o sujeito quanto a realidade em que ele vive. Podemos dizer que
é o controle que garante as demais dimensões. Portanto, programar o
próprio ser humano para aceitar resultados específicos, sem deixar espaço
para algo bem diferente, pode facilmente se tornar uma forma sutil de
controle.

Não há sociedade sem rito nem rito sem sociedade. Sendo inúmeras as
sociedades, são incontáveis os ritos que geram. Os ritos seriam conaturais ao
ser humano como dimensão expressiva de seu ser e sua realidade, permitindo
a criação de um espaço no qual os indivíduos transcendem. Paden (2001, p. 71)
assim explica esse processo de transcendência do sujeito que participa do
ritual:

O ritual também pode prover um espaço no qual os indivíduos


transcendem os papéis sociais fixos e vivenciam um senso de igualdade.
Os festivais e serviços podem ter esse efeito, como também as
peregrinações. O termo Hminaridade foi usado para descrever essas
situações, momentos e lugares em que os indivíduos se irmanam, livres
de um status designado. Aqui, independentemente da hierarquia social,
um novo companheirismo é conquistado, uma nova imagem de
socialidade é realizada. Onde as pessoas se reúnem “em espírito”, a
sociedade permite uma nova versão de si mesma, transcendendo as
distinções raciais, políticas, económicas e de gênero.

Nesse mesmo sentido, Franco Junior (2010, p. 82) diz que “toda
ritualização – seja dirigida a uma divindade, a um líder político, seja a um time
de futebol – tende a construir uma identidade coletiva”. Por isso, ao expressar
valores coletivos, a vivência ritual dá aos seus participantes a sensação não
apenas de pertencer ao seu momento, mas também de fazer parte de uma
história. Graças aos ritos que um grupo social toma consciência de si e cria
outras formas imaginárias que ajudarão a consolidar a vida coletiva.
44 Rito e compreensão do ser humano

Humanos são diferentes de outros animais. Se estes trazem uma


programação genética fechada, aqueles precisam aprender a agir
permanentemente para sobreviver. Nesse sentido, como bem pontuado por
Vilhena (2005, p. 29),

os ritos são uma ação pedagógica na medida em que transmitem e


ensinam formas sociais de comportamento, veiculam conhecimento,
preservam e comunicam tradições, preferências morais e estéticas,
ensinam que atitudes devemos ter diante e durante a vida – e que são
esperadas pelo grupo do qual participamos – comunicam valores e
crenças tidos como preciosos, apontam para o que se pode esperar e
como devemos agir, oferecem exemplos de atuações relevantes e
meritórias – também daquelas consideradas indesejáveis e perigosas –,
estimulam, motivam e induzem adesões e formas comportamentais por
um tempo mais ou menos extenso.

O mundo dos ritos enraíza-se no mundo dos seres humanos. Assim,


nem o ser humano nem o rito podem ter existência, tampouco ser
compreendidos fora da cultura, que, por sua vez, é construção humana e
histórica. É necessário refletir a respeito da pluralidade dos mundos em que os
ritos se enraízam.

Ritos em uma sociedade


2.3

multicultural
O estudo dos fenômenos relacionados à cultura tem sido uma preocupação
central na atualidade. Na verdade, podemos falar sempre no plural: culturas.
Afinal de contas, quando absolutizamos e/ou dogmatizamos um caso
específico de cultura, sempre o fazemos em prejuízo de outra. Assim, se
conhecemos a expressão imperialismo aplicada a ações de nações
desenvolvidas sobre nações menos desenvolvidas, podemos também falar de
imperialismo cultural e, por que não, de colonialismo cultural – uma ação que
se torna vetor
45 Rito e compreensão do ser humano

de desestabilização e, em muitos casos, de dizimação de culturas autóctones.


Trata-se de uma ação que acaba por reduzir culturas específicas com base no
que chamamos de linguicídio, epistemicídio.
Todos os grupos têm o direito de falar de si mesmos com a própria voz e
de ter essa voz aceita como autêntica e legítima. O domínio do centro exprime-
se como subordinação linguística de toda pessoa gramatical à pessoa inclusiva,
porém, repressiva de um “nós” universal. O ponto final é o desejo de ser e ter
condições de falar nos próprios termos, e não como eco ventríloquo de algum
outro; é declarar: “Não sou uma potencialidade de alguma coisa. Sou por
inteiro aquilo que sou. Não tenho de buscar o universal. Minha consciência
negra/índia/pobre não se mantém como uma falta. Ela é. Ela segue a si
mesma”.
Estamos diante da possibilidade de falar de um novo conjunto de
movimentos sociais que têm potencial libertador e que se encontravam
dispostos perifericamente. Não obstante a periferia econômica, política e
cultural, vivemos um tempo em que novas vozes e projetos, antes impedidos de
revelar a própria razão de ser, mostram-se à sociedade na diferença e na
alteridade. Ser diferente não é mais sinal de inferioridade e de incapacidade.
Na diferença reside a riqueza do diálogo entre distintas epistemologias.
A diferença, portanto, apresenta-se como uma das maiores críticas a um
tipo de imperialismo que precisa absolutizar a voz daquele que se encontra em
posição de mandatário. Assim, a voz de todos aqueles colonizados, das
minorias de todos os tipos, de mulheres e de trabalhadores, é subsumida pela
voz absoluta que fala por aqueles que foram silenciados.
Mas aceitar a fragmentação, o pluralismo e a autenticidade de outras
vozes e outros mundos traz o agudo problema da comunicação e dos meios de
exercer o poder mediante o comando. Existem, afinal, vozes na periferia? Há,
desde as margens, a percepção
46 Rito e compreensão do ser humano

de alguma epistemologia distinta da presumida epistemologia “universal”?


Certo é que os centros determinados pelo discurso absoluto empurraram
múltiplas formas de existência para periferias silenciosas e invisíveis: resistir à
mortal universalização do sentido e explorar as várias possibilidades de
inverter mapeamentos e distribuições convencionais do poder. Apenas nas
margens, ou seja, perifericamente, ainda podemos chamar a atenção para
aquilo que o sistema “universal” deixa de fora. Nesse sentido, as
metanarrativas contribuem para que muitos discursos de verdade não
cheguem até a mesa do debate.
Assim, é possível a aproximação da cultura pela porta do cotidiano. É no
sentido das coisas, dos sentimentos, das pessoas, das ações de cada dia que se
desenvolve a cultura. O acontecer cotidiano é como uma síntese do universo
social, cultural, político e religioso. Estudar a cultura, então, implica um olhar
atento do cotidiano. Que é o cotidiano para as maiorias? É, pois, a
cotidianidade um exemplo claro e definitivo de uma anticultura de violência e
de morte? É por meio da cotidianidade que acontece a construção social da
realidade. Mas é necessária uma precaução: embora toda cultura seja uma
criação humana, quando determinada cultura se torna nossa segunda
natureza, temos muita dificuldade de perceber isso. Parece que é “a” realidade,
e não uma realidade “possível”. Isso ocorre porque nós vemos a realidade,
julgamos as ações humanas e damos sentido às nossas vidas com base nessa
cultura interiorizada – interiorizada não por um só eu, mas por todo um grupo
que compartilha dela. É esse fato que reforça a convicção desse eu de que nossa
maneira de interpretar a realidade é “a” realidade.
O ser humano não é programado pela natureza (instintos), nem pelo
destino, tampouco pela vontade divina. O mundo humano é um mundo aberto;
um mundo que deve ser modelado pela própria atividade humana. E, ainda
que estejamos em um mundo que é
47 Rito e compreensão do ser humano

anterior ao nosso aparecimento, precisamos organizá-lo a fim de superar o


caos e, dessa forma, construir o mundo e, também, construir a nós mesmos
individualmente.
Isso ocorre porque a vida social não é uma simples questão de objetos e
de fatos que ocorrem como fenômenos de um mundo natural. Ela também
pode ser considerada, segundo Santos (2004, p. 23), “uma questão de ações e
expressões significativas, de manifestações verbais, símbolos, textos e artefatos
de vários tipos, e de sujeitos que se expressam através desses artefatos e que
procuram entender a si mesmos e aos outros pela interpretação das expressões
que produzem e recebem”. Podemos dizer que o mundo humano construído
pelos próprios seres humanos é a cultura, que é entendida como a totalidade
dos produtos da atividade do ser humano, materiais ou espirituais.
A cultura não é simplesmente dada, ou seja, não pertence à natureza das
coisas. Nesse sentido, a cultura deve ser compreendida como uma criação
social. É como se o ser humano tivesse duas naturezas assim explicadas: a
primeira, a natureza biológica, isto é, aquilo que o ser humano é em si; e
segunda, a natureza cultural, que é representada por toda sorte de criações
realizadas pelo ser humano a fim de existir e de subsistir e que “funciona”
como uma segunda pele. O mundo humano construído pelos próprios seres
humanos é a cultura, entendida como a totalidade dos produtos da atividade
do ser humano, tanto materiais quanto espirituais, tais como instrumentos
para produzir: a sobrevivência na relação com a natureza; a linguagem para a
comunicação para guardar a memória coletiva; as leis e normas para regular a
convivência; e a religião para dar sentido ao mundo, à existência e à morte.
Como vimos até aqui, o rito não pode ser estudado de forma isolada. Ao
abordar o rito, precisamos refletir a respeito do ser humano que vivência o rito
e, para além disso, refletir sobre a cultura que abriga o ser humano. Todavia,
vale ressaltar e reafirmar
48 Rito e compreensão do ser humano

que a cultura é sempre múltipla, ampla e diversa. Por isso, ao estudarmos o


rito, é imprescindível que contemplemos diferentes cosmovisões, costumes,
sociedades e histórias, a fim de que tenhamos condições de nos aproximar de
forma consistente da pluralidade que caracteriza o mundo dos rituais.

CURIOSIDADE
O sacerdote é uma figura sagrada e, para chegar a sê-lo, deve se submeter a um
rito de passagem ou de consagração por meio do qual entra em outra esfera e
pode estar em contato com o sagrado, sem perigo algum (está protegido contra
o tabu). No plano simbólico, sua consagração e condição de pessoa separada
do resto expressam-se pelo uso de ornamentos especiais para a celebração dos
ritos. O simbolismo das vestes é um dos mais universais. (Croatto, 2010, p.
350)

O ritual pode ser considerado uma exibição, razão pela qual adquire uma
função pública e precisa, naturalmente, de assistência. Pois é justamente no
processo de exibição que é conferido um valor intensificado ao rito, pelo
simples motivo de que a exibição pública é coletivamente conduzida,
testemunhada e vivenciada. Na exibição pública, a visão de foco e de conjunto,
segundo Paden (2001, p. 69), “imprime a realidade e a validade do rito e seu
conteúdo nos participantes”. Nesse ambiente ritual, o tempo é intensificado. O
tempo ritual torna a fé plausível e real de um modo que o tempo desritualizado
não tem condições de fazer.
Da Matta (citado por Rivière, 1997, p. 18) aprofunda a questão:

Sabemos que não há sociedade, qualquer que seja sua escala, que não
sinta a necessidade de, periodicamente, reafirmar em comum seus
valores comuns. É daí que nasce o comportamento ritual, cujo protótipo
encontra-se no sacrifício, pouco importando que
49 Rito e compreensão do ser humano

a matéria deste sejam palavras, gestos, cantos, posições, danças,


objetos, animais, seres humanos ou o pensamento em sua forma mais
pura e decantada. Não há sociedade que, de um modo ou de outro,
próxima ou remotamente, fundada sobre o rito, não esteja
consequentemente baseada em alguma forma de dom e sacrifício.

Por fim, indicamos algumas percepções que podem servir como um


itinerário para refletir a respeito do rito. Todas as percepções são extraídas da
pesquisa de Claude Rivière (1997, p. 108-109):
1] A Metodologicamente, qualquer rito, seja ele considerado religioso
ou profano, pode ser apreendido e compreendido como estrutura de
ações sequenciais, papéis teatralizados, meios reais e simbólicos e
comunicações por sistema codificado.
2] Ao tornar visível uma certa ordem e determinadas relações sociais, o
rito atua como fator de renovação ou de manutenção dessas relações
sociais.
3] Não há rito sem negociação com algum Outro, presente ou
imaginado, do qual o sujeito aparece como interdependente em uma
situação de controle.
4] O rito, visto como linguagem, possui função denotativa, expressiva,
fática, estética, metalinguística e posicionai.
5] Qualquer fenômeno ritual possui uma tripla carga, a saber: uma
carga cognitiva; uma carga afetiva e uma carga conativa de
orientação da ação por manipulação psicológica.

VOCÊ SABIA?
Muitas vezes realizamos determinados rituais e não sabemos a origem deles –
apenas reproduzimos o que nos foi passado e não refletimos a respeito do
porquê. Conheça alguns exemplos interessantes:
50 Rito e compreensão do ser humano

A tradição das cinzas como sinal de penitência remonta à Bíblia


Hebraica. [...] Em sinal de arrependimento, o rei de Nínive proclama
um jejum. Ele e as pessoas em Nínive rasgam as vestimentas bonitas,
vestem-se de panos de saco e sentam-se sobre cinzas. [...] No
Primeiro Livro dos Reis (21.27) ocorre um rito semelhante: em sinal
de arrependimento, o rei Acabe rasga suas vestes, cobre-se de pano
de saco, jejua e dorme sobre panos de saco. Aqui, porém, as cinzas
não são mencionadas. Também Jó (1.20), após perder tudo o que
tinha, rasga seu manto, raspa a cabeça e se lança em terra. Mais
adiante (2.8) senta-se em cinzas. [...] A Igreja assumiu essa tradição.
A partir do século VII, já se conhece a Quarta-Feira de Cinzas como o
início da Quaresma [...] É tempo de penitência, em preparação à festa
da Ressurreição. Na Quarta-Feira de Cinzas, os penitentes são
vestidos com roupas penitenciais, cobertos de cinzas. A partir do
século X, passa-se a consagrar as cinzas. Mais tarde, em torno de
1090, clérigos e leigos são marcados na testa com uma cruz feita de
cinzas obtidas de ramos guardados desde o Domingo de Ramos do
ano anterior. [...] (Dreher, 2020, s. p.)

SÍNTESE
I. Todos os ritos inscrevem-se no marco social que lhes dá sentido e que
é reforçado pelo ambiente social.
II. Ao estudar os ritos estamos, conhecemos um pouco melhor sobre nós
mesmos. Entendemos, assim, o ser humano que os produz e neles
atua.
III. O rito representa a sociedade em ato, ou seja, exprime o ritmo da vida
social da qual é resultado.
IV. Não há como compreender os ritos negando as dimensões históricas
deles.
V. Nos espaços sagrados, os ritos cumprem duas finalidades específicas:
(1) a entronização do sagrado – ou seja, no novo
51 Rito e compreensão do ser humano

território acontece a introdução do sagrado conhecido pelo grupo e, por


consequência, seu protetor; e (2) a percepção de que os deuses viajam
com seus fiéis.
VI. Os ritos não podem ser classificados como estáticos justamente
porque a dinâmica é própria deles.
VII. O ritual permite que um grupo e seus indivíduos desempenhem e
vivenciem papéis que compensam ou complementam o status social
da rotina.
VIII. Não há sociedade sem rito nem rito sem sociedade.
IX. O ser humano não é programado pela natureza (instintos) nem pelo
destino, tampouco pela vontade divina.
X. Ao tornar visível certa ordem e determinadas relações sociais, o rito
atua como fator de renovação ou de manutenção dessas relações
sociais.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. O rito tem uma função social, ou seja, grupos humanos expressam sua
identidade, sobretudo, por meio dos ritos. Nesse sentido, é possível afirmar
que o rito é uma dimensão da vida:
A] coletiva.
B] aliénante.
C] individual.
D] para iniciados.
E] emocional.

2. O que significa dizer que os ritos não são imutáveis?


A] Que eles podem desaparecer.
B] Que novos deles podem ser criados, recriados ou ressignificados.
C] Que eles podem ser cristalizados.
D] Que eles repetem continuamente suas características.
E] Que eles são os mesmos em todas as épocas.
52 Rito e compreensão do ser humano

3. Diferentemente dos animais, os seres humanos não trazem uma


programação fechada, isto é, não são programados pela natureza, pelo
destino ou pela vontade divina. Nesse sentido, como deveríamos pensar o
ser humano?
A] Como um ser superior.
B] Como alguém que tem a plenitude do viver e do saber.
C] Como um ser inacabado.
D] Como um ser do passado.
E] Como um sonhador em relação ao futuro.

4. O ritual permite que um grupo e seus indivíduos desempenhem e vivenciem


papéis que compensem o status social da rotina. Assinale a alternativa que
indica o primeiro efeito do rito na concepção de Durkheim:
A] Afastar as pessoas.
B] Alienar as pessoas.
C] Emocionar as pessoas.
D] Aproximar as pessoas.
E] Completar as pessoas.

5. Assinale a alternativa que descreve a figura sagrada cuja consagração


expressa-se pelo uso de ornamentos especiais:
A] Psicólogo.
B] Médico.
C] Professor.
D] Policial.
E] Sacerdote.
53 Rito e compreensão do ser humano

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Questões para reflexão
1. Reflita sobre os comportamentos atuais de ritualização da vida, tais como o
fost-food, anotando as vantagens e desvantagens deles.
2. Vivemos inseridos em culturas diferentes a cada dia. Explique a importância
de nos referirmos sempre a “culturas”, no plural, em vez de nos referirmos à
“cultura”, no singular.

Atividade aplicada: prática


1. Visite três sacerdotes de tradições religiosas diferentes e converse com eles a
respeito do respectivo ritual de consagração. Identifique, então,
semelhanças e diferenças entre cada um deles.
3 MITOS:
APROXIMAÇAO AO TEMA

O mito, por ser um texto, pertence, naturalmente, à ordem literária e, por


conta disso, deve ser interpretado como um discurso. Como texto, o mito tem
como objetivo dizer algo a respeito de alguma coisa. É um discurso que
direciona os olhares para outro lugar. Na verdade, podemos dizer que o mito é
um instrumento de comunicação para cuja realização quatro elementos se
apresentam inter-relacionados: um emissor, o destinatário, uma realidade e o
que se diz sobre ela – que seria a interpretação do mito. Croatto (2010) explica
que o algo a respeito de alguma coisa, que é a vivência inicial do emissor, é
transferido para outros, manifestando a função social do discurso e de toda
palavra humana. Seguindo a afirmação de Schelling (citado por Franco Junior,
2010, p. 22), “não se pode conceber um povo sem mitologia”, ou seja, a
possibilidade de se pensar que as pessoas viviam de mitos e pelos mitos.
Mito não pode ser compreendido como algo falso, conforme o senso
comum pode concluir. Hilário Franco Junior (2010, p. 51) faz uma advertência
que devemos levar em consideração ao analisarmos o mito:
55 Mitos: aproximação ao tema

É preciso lembrar que na análise científica falar do caráter mítico de


algo ou de alguém não denigre o evento ou o personagem como sempre
julgou a cultura clerical cristã. A rigor, a pretensão de “não fazer passar
por mito aquilo que é realidade e por realidade aquilo que é mito” é
abordagem positivista que desconsidera a interpenetração profunda da
realidade sensível com a realidade interna. Não é porque, por exemplo,
Alexandre Magno ou Carlos Magno comprovadamente existiram que
eles deixaram de se tornar personagens míticos e merecem ser
estudados como tal. Ou, inversamente, não é porque o Éden ou a
Cocanha não existiram no plano concreto que deixaram de ser
sonhados, buscados, transformando-se assim em dados históricos. Para
uma análise histórica interessa bem menos o que era considerado mito
ou realidade, e sim como e porque era visto de uma ou outra forma pela
sociedade estudada.

Portanto, o mito conduz a explicações de determinados espaços sociais.


É justamente porque o mito jamais existiu concretamente que ele aponta para
as realidades vividas no cotidiano.

3.1 A Bíblia e seus mitos: leituras


A seguir encontramos um dos principais mitos bíblicos da literatura
judaico-cristã. Vamos lê-lo com atenção a fim de compreender esse gênero
literário com base na literatura bíblica:

1 1No princípio, Deus criou o céu e a terra. 2A terra estava sem forma e
vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre
as águas. 3Deus disse: “Que exista a luz!” E a luz começou a existir.
4Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: 5à luz Deus
chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”. Houve uma tarde e uma
manhã: foi o primeiro dia. 6Deus disse: “Que exista um firmamento no
meio das águas para separar
56 Mitos: aproximação ao tema

águas de águas!” 7Deus fez o firmamento para separar as águas que


estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento.
E assim se fez. 8E Deus chamou ao firmamento “céu”. Houve uma tarde
e uma manhã: foi o segundo dia. 9Deus disse: “Que as águas que estão
debaixo do céu se ajuntem num só lugar, e apareça o chão seco”. E
assim se fez. 10E Deus chamou ao chão seco “terra”, e ao conjunto das
águas «mar». E Deus viu que era bom. 11Deus disse: “Que a terra
produza relva, ervas que produzam semente, e árvores que deem frutos
sobre a terra, frutos que contenham semente, cada uma segundo a sua
espécie”. E assim se fez. 12E a terra produziu relva, ervas que produzem
semente, cada uma segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto com a
semente, cada uma segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom.
13Houve uma tarde e uma manhã: foi o terceiro dia. 14Deus disse: “Que
existam luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite e
para marcar festas, dias e anos; 15e sirvam de luzeiros no firmamento do
céu para iluminar a terra”. E assim se fez. 16E Deus fez os dois grandes
luzeiros: o luzeiro maior para regular o dia, o luzeiro menor para regular
a noite, e as estrelas. 17Deus os colocou no firmamento do céu para
iluminar a terra, 18para regular o dia e a noite e para separar a luz das
trevas. E Deus viu que era bom. 19Houve uma tarde e uma manhã: foi o
quarto dia. 20Deus disse: “Que as águas fiquem cheias de seres vivos e os
pássaros voem sobre a terra, sob o firmamento do céu”. 21E Deus criou
as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem na água, conforme a
espécie de cada um, e as aves de asas conforme a espécie de cada uma. E
Deus viu que era bom. 22E Deus os abençoou e disse: “Sejam fecundos,
multipliquem-se e encham as águas do mar; e que as aves se
multipliquem sobre a terra”. 23Houve uma tarde e uma manhã: foi o
quinto dia. 24Deus disse: “Que a terra produza seres vivos conforme a
espécie de cada um: animais domésticos,
57 Mitos: aproximação ao tema

répteis e feras, cada um conforme a sua espécie”. E assim se fez. 25E

Deus fez as feras da terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais
domésticos, cada um conforme a sua espécie; e os répteis do solo, cada
um conforme a sua espécie. E Deus viu que era bom. 26Então Deus
disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele
domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas
as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. 27E Deus criou o
homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem
e mulher. 28E Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam fecundos,
multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do
mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra”.
29E Deus disse: “Vejam! Eu entrego a vocês todas as ervas que produzem
semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos
que dão semente: tudo isso será alimento para vocês. 30E para todas as
feras, para todas as aves do céu e para todos os seres que rastejam sobre
a terra e nos quais há respiração de vida, eu dou a relva como alimento”.
E assim se fez. 31E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito
bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o sexto dia.

2 1Assim foram concluídos o céu e a terra com todo o seu exército. 2No
sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele
descansou de todo o seu trabalho. 3Deus então abençoou e santificou o
sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu
trabalho como criador. 4Essa é a história da criação do céu e da terra.
(Bíblia Nova Pastoral, 2016, p. 17-18)

A sagrada escritura judaica e cristã inicia-se com o texto ora citado. Esse
texto alimenta a fé de inumeráveis fiéis, bem como desencadeia os mais
acalorados debates tanto entre acadêmicos quanto entre leigos. Rossi (2003, p.
59) explica o debate:
58 Mitos: aproximação ao tema

via de regra se apresenta a partir do momento em que os debatedores


fazem uso do texto bíblico como instrumento apologético da fé ou da
ciência. Nesse sentido, fé e ciência estariam em ambientes
completamente eqüidistantes. Mas é possível e necessário
problematizar essa questão: haveria de fato um confronto entre a fé em
um Deus criador e os postulados científicos constituídos pela pesquisa
científica? O confronto entre fé e ciência precisa de fato assumir
contornos intermináveis? Reimer indica uma possível saída ao afirmar
que “fé e ciência formulam, cada qual a seu modo, as certezas de seu
credo sobre um problema concreto: a origem do cosmos e da vida”
(2006, p. 20). De fato, não precisamos criar conflitos onde eles não
existem. Os conflitos devem ser entendidos como geradores de
tentativas de impedir que o outro “e sua perspectiva diferente” se
manifeste. Na verdade, não precisamos pensar a ciência e a fé como
realidades que se anulariam mutuamente. Como se para um existir
fosse necessário, forçosamente necessário, que o outro desaparecesse.

No conjunto de textos de Gênesis 1 - 1 1 constam questões altamente


complexas, que produzem interpretações radicalmente diferentes. Talvez seja
essa a grande dificuldade da maioria daqueles que se aproximam dos textos
bíblicos. Aproximam-se como se estivessem diante de um livro de ciências,
razão pela qual, então, as questões ali apresentadas teriam valor científico.
Todavia, como podemos tratar um texto que não tem implicações científicas, e
sim religiosas, como científico? Isso não traria alguns problemas para todos
aqueles que têm contato com o texto bíblico?
Novamente Rossi (2003, p. 65) ajuda a responder às perguntas
anteriores:

É necessário salientar que a questão fundamental para se fazer a


abordagem da Bíblia a respeito da criação é eminentemente de gênero
literário. Mas para isso é preciso salientar que nenhum dos
59 Mitos: aproximação ao tema

escritos bíblicos traz como preocupação central apresentar uma


perspectiva necessariamente histórica dos fatos e dos personagens.
Pode-se dizer que os textos bíblicos se apresentam como promotores do
testemunho de um povo com o seu Deus. Nesse sentido os textos
bíblicos não teriam a preocupação de registrar objetivamente a história.
O interesse primeiro estaria no registro da experiência da divindade
com o seu povo. Pode-se dizer que a narrativa bíblica não tem intenção
de narrar história. Seu objetivo primeiro reside simplesmente em
transmitir o testemunho de fé. A Bíblia não é cientificamente ou
historicamente comparável e verificável. A Bíblia deve ser
compreendida como um objeto de fé. Um dos possíveis exemplos dessa
questão relativamente à Bíblia é que desde o fim da década de 1970 e
início da década de 1980 a falta de consenso assola a disciplina de
História de Israel. A já tradicional sequência patriarcas [sic], José do
Egito, escravidão, êxodo, conquista da terra, confederação tribal,
império davídico-salomônico, divisão entre norte e sul, exílio e volta
para terra se encontra despedaçada. Como resultado da integração entre
a cultura material da Palestina e o testemunho bíblico do passado de
Israel – tradicional meta da arqueologia bíblica – não pode ser mais
sustentada. Consequentemente, a pesquisa arqueológica no Levante,
conhecida agora como “arqueologia Siro- Palestinense” ou algumas
vezes como “nova arqueologia”, tem se tornado independente e cortado
muitos de seus laços com os estudos bíblicos. A construção de uma
História de Israel feita somente a partir da arqueologia e dos
testemunhos extra-bíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora.

Hoje, mais do que nunca, a pesquisa histórica e a arqueologia têm


apresentado um retrato muito diferente daquele descrito pelas narrativas
bíblicas. Podemos afirmar que o afastamento da confiança inicial no
testemunho bíblico entre muitos historiadores
60 Mitos: aproximação ao tema

alimentou um ceticismo radical que questionava o real empreendimento de


escrever a história de Israel. Esse ceticismo desenvolveu-se proporcionalmente
em relação à crescente tendência entre os estudiosos recentes de datar muito
do material bíblico, senão a maior parte, nos períodos persa e mesmo helénico.
E, quanto mais textos são datados em tempos pós- exílicos, mais temos de
imaginar, de formas diferentes, o espectro da vida, do pensamento e da crença
de Israel nesse tempo.
Diante disso, uma questão surge ameaçadoramente: É possível escrever
a história de Israel sem confiar na Bíblia Hebraica? A simples sugestão de não
considerar os textos bíblicos como fontes históricas causa estranheza não
somente para os estudantes de teologia, mas também para os leigos das mais
diversas igrejas. Afinal, o senso comum sedimentado ao longo de muitas e
inumeráveis gerações leva a pensar que todas as informações dadas pelos
textos bíblicos são rigorosamente históricas e exatas. Contudo, o consenso que
dizia que a Bíblia Hebraica era confiável para a reconstrução da história do
antigo Israel, dos patriarcas a Esdras, de que tudo era histórico, dissipou-se.
Então, qual deve ser a abordagem dos textos bíblicos? A maneira como o leitor
se aproxima de um texto sagrado pode definir de antemão o resultado dessa
leitura. Os relatos bíblicos, nesse sentido, não podem ser compreendidos como
crônicas nem como história no sentido moderno. Por essa razão, não poucas
vezes, os relatos diferem da história fática.
Para Arens (2007), o que encontramos nos relatos é uma história
nacional em chave religiosa e teológica. Nesse caso, precisamos ter um sério
cuidado com chaves de leitura fundamentadas no literalismo, que consiste
na interpretação de um texto sem levar em consideração o gênero literário
empregado.
O erro, segundo Rossi (2003), é que se torna possível ler um mito ou
uma lenda como se de fato fosse um dado histórico. O autor vai mais além em
sua explicação:
61 Mitos: aproximação ao tema

O leitor literalista entenderá, portanto, a criação do mundo em seis dias


ao pé da letra, tanto no que se refere a “seis” (nem mais nem menos)
quanto ao que se refere a “dias” e segundo a ordem expressamente
relatada. Eis, tipicamente, um fundamentalista! No entanto, é
significativo acrescentar que o fundamentalismo que nasceu em berço
religioso, [sic] ultrapassou o contexto onde nasceu. E não ultrapassou o
contexto apenas em relação a fronteiras territoriais, ou seja, alcançando
múltiplos outros países; expandiu- se também para outras áreas da vida
do ser humano, como por exemplo, a economia e a política, tornando-se
um tema relevante para também compreender a intolerância em alguns
âmbitos da sociedade. (Rossi, 2003, p. 66)

Aqui, é necessário mencionar uma corrente teológica de âmbito


fundamentalista que obstaculiza o modo acadêmico de se aproximar dos
textos. E, como veremos na próxima seção, todo fundamentalismo é sempre
uma distorção, porque o seguimento estrito do texto sagrado – quaisquer
que sejam os textos – nunca deixa de ser uma seleção e interpretação
interessada desse texto. Portanto, o cerne da questão, para nós, reside na
leitura acrítica dos textos ditos sagrados.

CURIOSIDADE
Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares
cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi
repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo
os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da
vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubas, sociedade não
histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo,
é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra
vida. Como os iorubas não conheciam a escrita, seu corpo
62 Mitos: aproximação ao tema

místico era transmitido oralmente. Os iorubás acreditam que homens e


mulheres descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e
comum. Cada um herda do orixá de que provém suas marcas e
características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os
orixás vivem em luta uns contra os outros, defendem seus governos e
procuram ampliar seus domínios, valendo-se de todos os artifícios e
artimanhas, da intriga dissimulada à guerra aberta e sangrenta, da conquista
amorosa a traição. (Prandi, 2017, p. 24-25)

3.1.1 A leitura fundamentalista


Há várias maneiras de ler a Bíblia. Entre elas, uma das mais utilizadas
cotidianamente é a chamada leitura fundamentalista. Rossi (2009, p. 43, grifo
do original) faz a seguinte apresentação desse fenômeno:

O termo “fundamentalismo” é derivado de 12 opúsculos titulados The


Fundamentais, publicados nos Estados Unidos entre 1910 e 1915.
Refere-se a um movimento no interior do cristianismo que dá uma vital
importância à infalibilidade ou inerrância da Bíblia e que mantém, ao
mesmo tempo, uma forte hostilidade contra a teologia moderna,
métodos, resultados e implicações do estudo crítico moderno da Bíblia,
e está completamente seguro de que os que não participam de seu ponto
de vista religioso não são verdadeiramente cristãos.
Trata-se de um movimento antimoderno, que busca manter a
todo custo a certeza da cosmovisão pré-moderna que está sendo
questionada pelos descobrimentos das ciências modernas e pela própria
dinâmica da história. Uma leitura é fundamentalista quando nega a
historicidade dos textos bíblicos, reivindicando para os mesmos o
caráter de revelação direta de Deus, e de absoluta
63 Mitos: aproximação ao tema

inerrância. O que se busca no fundamentalismo é transformar a Bíblia


num livro sem história. A própria Bíblia aparece como um sujeito
absoluto, a-histórico e universal. Nega-se a história do próprio texto
bem como a história dos leitores atuais. Dessa forma, o modo de ler um
texto é absolutamente igual esteja o leitor no século oitavo ou na
atualidade.
Para o fundamentalismo, o Cristianismo está irrevogavelmente
unido à infalibilidade e a inerrância da Bíblia. Os escritores da Bíblia
foram inspirados por Deus de tal forma que foram preservados de
qualquer tergiversação ou erro ao registrar a Palavra para o homem. As
palavras da Bíblia seriam, infalivelmente, as palavras de Deus ou não
teríamos, segundo essa ordem de pensamento, base para a nossa fé. É a
lógica do tudo ou nada.

O fundamentalismo aproxima-se dos textos bíblicos de uma forma


quase mágica e mística, ou seja, adota um tipo de percepção que não faz parte
da preocupação desses textos quando foram produzidos. No entanto,
simultaneamente a esse verniz fantasioso, o fundamentalismo elaborou um
conjunto de características auxiliares para o ato de ler, que se apresentam
como características epistemologicamente redutoras e hermeneuticamente
inaceitáveis. Vejamos a descrição seguinte, baseada em Rossi (2009, p. 44-46).
A] Doutrinismo: a Bíblia torna-se fonte de confirmação das doutrinas já
acalentadas e mantidas pelos seus leitores; em vez de ser considerada a
Palavra de Deus, que fala e age na história dos seres humanos, é tida como
mero repositório de proposições doutrinais, as quais, de fato, não são
outras senão as doutrinas fundamentais já previamente definidas. Como
consequências dessa característica da leitura fundamentalista, a
diversidade de teologias e perspectivas existentes na Bíblia é
desconsiderada, perdendo a escritura seu caráter crítico e
64 Mitos: aproximação ao tema

profético; simultaneamente, leitores da Bíblia deixam de ser construtores


de saber teológico, permanecendo como meros reprodutores de doutrinas
já tornadas irrelevantes e ininteligíveis na maior parte dos casos.
B] Individualismo: outra característica fundamentalista é a redução
individualista do ato de ler e do próprio significado do texto. O que se
busca é o “que a Bíblia quer dizer para mim”, sendo completamente
ignorada a sociedade da qual o indivíduo faz parte. Esse individualismo,
por sua vez, também se remete aos próprios textos, considerados obra de
pessoas especiais, gênios religiosos direta e magicamente inspirados por
Deus para escrever a verdade eterna, a- histórica e descontextualizada.
Consequentemente, a Escritura perde seu caráter social, cultural e
histórico, e sua mensagem é reduzida aos interesses individuais e
egocêntricos de seus leitores.
C] Espiritualismo: sendo negado o caráter histórico e contextuai das
Escrituras, resta afirmar seu caráter espiritual. Na cosmovisão bíblica, o
espiritual é aquilo que vem de Deus e cria vínculos entre o ser humano e
Deus, ao passo que, na leitura fundamentalista, espiritual é o oposto de
material – este entendido como o que é histórico, social, cultural, em uma
palavra: humano.
D] Moralismo: por fim, a leitura fundamentalista da Bíblia confunde a
perspectiva ética da fé cristã com o moralismo típico da classe média
branca estadunidense, na qual surgiram os avivalismos evangélicos (século
XIX e início do século XX).

Leituras com viés fundamentalista não são uma novidade, argumenta Rossi
(2009). Alguns exemplos do passado e de um tempo mais recente nos ajudam
a bem compreender:

▪ O bispo irlandês James Ussher (1581-1656) somou a idade dos profetas e


fixou a criação do mundo na noite que antecedeu o dia 23 de outubro de
4004 a.C., um domingo, no calendário juliano.
65 Mitos: aproximação ao tema

▪ O mesmo bispo também calculou o dia da expulsão de Adão e de Eva do


paraíso (segunda-feira, 10 de novembro de 4004 a.C.) e a data em que a
Arca de Noé encalhou no Monte Ararat depois que as águas do dilúvio
baixaram (quarta-feira, 5 de maio de 2348 a.C.).
▪ O pioneiro da paleontologia moderna, Georges Cuvier (1769-1832),
identificou espécies de dinossauro fósseis, mas atribuiu sua extinção ao
fato de não terem conseguido entrar na Arca de Noé.
▪ Mais recentemente, encontramos a geóloga estadunidense Elaine
Kennedy, que defende que o tamanho exagerado de grandes carnívoros,
como o Tyrannosaurus rex, seria fruto de uma alteração decorrente dos
efeitos do pecado original.
▪ E, finalmente, a proposição estabelecida por ela: se havia morte e
decomposição no jardim do Éden, isso levaria os pesquisadores a
ponderar se os caroços de maçã se acumulavam eternamente no chão do
Paraíso.

Diante das questões colocadas anteriormente, é possível afirmar que a


leitura fundamentalista impede o uso apropriado dos instrumentos
arqueológicos para a investigação bíblica ou, quando muito, utiliza o que pode
ser denominado de arqueologia apologética com o objetivo único de
“comprovar” a veracidade dos textos bíblicos. Rossi (2009, p. 47) faz a seguinte
reflexão a respeito do fundamentalismo entranhado tanto em leituras
acadêmicas quanto no senso comum:

Talvez possamos dizer que para os fundamentalistas a razão humana


pode descobrir muita coisa, pode pesquisar e até mesmo raciocinar e
inventar. Mas existem verdades supremas que a razão não chega e nem
tem condições de conhecer. Essas verdades e
66 Mitos: aproximação ao tema

fatos estão na Bíblia. E, consequentemente, nunca uma verdade


descoberta pela razão pode opor-se às verdades reveladas. Nesse
sentido, o fundamentalista aceita a supremacia de um tipo de conceito
de revelação e de um tipo de conceito de fé sobre a razão. Pode- se dizer
que esse balanço pendular significa um verdadeiro retorno à cultura
medieval. Percebe-se, portanto, que os fundamentalistas tomam ao pé
da letra a linguagem, consideram-na sagrada e não levam a sério o fato
de que a linguagem é somente um meio e que, portanto, não deve
adquirir um caráter absoluto.

MÃOS À OBRA
Analise os possíveis conceitos fundamentalistas herdados em decorrência de
sua tradição religiosa e, de forma crítica, reflita a respeito de métodos de
superação desses conceitos para que novas epistemologias sejam
contempladas.

3.1.2 A leitura acadêmica do texto bíblico


O gênero literário faz parte do cotidiano das pessoas em todos os momentos
em que elas precisam comunicar algo a alguém. Toda mensagem a ser
comunicada encontra um gênero literário específico e mais adequado para que
o conteúdo a ser comunicado seja realizado com eficiência. De forma sintética,
é possível dizer que o gênero literário, ou seja, a linguagem, é o meio ou o
veículo de uma comunicação significativa. Contudo, é necessário reconhecer
que não existe apenas um gênero literário. A seguir apresentamos uma lista
com alguns desses gêneros.
67 Mitos: aproximação ao tema

▪ história; ▪ diários;
▪ lendas; ▪ itinerários;
▪ anedotas; ▪ genealogias;
▪ epopeias; ▪ listas;
▪ sagas; ▪ catálogos;
▪ mitos; ▪ apologias;
▪ fábulas; ▪ parábolas;
▪ etiologias; ▪ alegorias;
▪ narrações em forma de novela; ▪ oráculos;
▪ relatos paradigmáticos; ▪ visões;
▪ crônicas; ▪ advertências;
▪ anais; ▪ apocalíptica.

Portanto, cada um dos gêneros elencados apresenta sua própria


especificidade, ou seja, o objetivo do gênero literário história não é o mesmo
dos gêneros literários provérbio ou hino.
Dessa forma, nem todos os escritos da Bíblia têm o mesmo gênero
literário. E, entre tantos e possíveis gêneros, o texto de Gênesis 1: 1 -2,4a é
classificado como texto pertencente ao gênero mítico. É possível dizer que o
emissor sempre emprega o gênero literário adequado para expressar seu
propósito. O receptor, segundo Arens (2007), lê o gênero e determina o
propósito do emissor e de sua mensagem. Dessa forma, ambos conseguem
comunicar-se, pois recorreram a um gênero que conhecem.
Consequentemente, “o gênero literário, isto é, a linguagem, foi o meio ou o
veículo de uma comunicação significativa” (Arens, 2007, p. 98).
Mas o que se entende por mito? Trata-se de uma pergunta difícil,
principalmente diante das inúmeras possibilidades de origem já especuladas
pelos mais diferentes teóricos. O Quadro 3.1, a seguir, resume as
possibilidades.
68 Mitos: aproximação ao tema

Diante de tantas possibilidades de compreender a origem dos mitos, por


questões didáticas, adotamos aqui a definição de mito proposta por Croatto
(2010, p. 209, grifo do original): “um relato de um acontecimento originário,
no qual os deuses agem, e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade
significativa”. A seguir, vamos analisar o conceito de mito elaborado por Rossi
(2009, p. 48-49, grifo do original), em que a abordagem foi fragmentada e
detalhada:

1. O mito é um relato e, consequentemente, deve ser visto como um


texto. Pertence, portanto, à ordem literária e deve ser interpretado como
um discurso. Como texto, o mito pretende dizer algo para alguém a
respeito de alguma coisa, isto é, existem quatro elementos que se inter-
relacionam: um emissor e seu destinatário, uma realidade e o que se diz
sobre essa realidade (a sua interpretação). Essa situação manifesta a
função social do discurso, bem como de toda palavra humana.

2. O mito também se apresenta como um acontecimento originário:


trata-se de um relato a respeito das origens. Sua característica
69 Mitos: aproximação ao tema

primeira, portanto, é a de situar o acontecimento narrado em um


horizonte primordial. No entanto, o chamado “começo” do
acontecimento mítico não é cronológico. Nesse sentido, o mito não
costuma usar números para assinalar datas, mas utiliza, sim, expressões
difusas como, por exemplo, “em outro tempo”, “no princípio”. Pode-se
concluir que o tempo e o espaço do mito não são coordenáveis com o
tempo e o espaço de nossa experiência.

3. No mito também encontramos a ação dos deuses. Os deuses podem


ser considerados os verdadeiros protagonistas dos mitos. Eles são os
atores. Isto é, o mito ocupa-se do agir dos deuses. Tudo o que é
instaurado originariamente, o é pela força sagrada dos deuses.

4. O mito dá sentido à realidade. Tudo o que é significativo para um


povo precisa ser originado pelos deuses. Portanto, todo mito responde a
uma pergunta do ser humano religioso sobre seu ser no mundo. Diga-se
de passagem, não existem mitos sobre coisas banais.

Talvez pudéssemos acrescentar duas outras características que não


estão presentes na definição acima citada, mas que são carregadas de
importância:

5. O sentido do mito é local e não universal: um relato mítico, ainda que


se situe por definição nas origens de algo (por exemplo, o cosmos, o ser
humano, um costume, uma instituição), nunca fala de coisas universais,
mas sim de coisas concretas, significativas na prática ou na experiência
mais direta. Sendo assim, originário não significa universal. Se algo
nega o mito em sua intenção é o genérico, o falar da humanidade, do
mundo todo. O mito fala – busca sentido – das realidades mais vitais de
um grupo delimitado cultural ou religiosamente. Não há, portanto,
mitos universais. Cada povo tem seus próprios mitos, que são
conflitivos com outros povos, ainda que sejam parecidos ou tratem dos
mesmos temas.
70 Mitos: aproximação ao tema

6. O mito é uma experiência existencial porque, de fato, é uma


construção epistemológica derivada dos conflitos locais vividos por
determinadas comunidades, os quais precisam ser devidamente
respondidos. O relato mítico nasce, portanto, como resposta às
contradições do cotidiano que afetam a vida e o dia a dia dos sujeitos.]
Consequentemente, o mito não se baseia em acontecimento histórico.
Ele é um relato de algo supostamente ocorrido em um tempo
imemorial, que se expressa com personagens representativos e em
figuras simbólicas e coloridas, e, em geral, com intervenção de seres,
poderes ou forças que não são deste mundo. Reflete, portanto, a
maneira de compreender e de expressar-se do mundo que é pré-
científica e pré-filosófica. Fala-se de tempos e lugares remotos que são
cientificamente não comprováveis e historicamente não verificáveis. Os
mitos são mais acerca dos valores e condições presentes do povo que os
criou que sobre o passado obscuro e o futuro desconhecido.

CURIOSIDADE
Os mitos de criação do mundo estão presentes em muitas narrativas. Veja, a
seguir, uma das mais conhecidas dos orixás:

Exu ajuda Olofim na criação do mundo


Bem no princípio, durante a criação do universo, Olofim-Olodumare
reuniu os sábios do Orum para que o ajudassem o surgimento da vida
e no nascimento dos povos sobre a face da Terra. Entretanto, cada
um tinha uma ideia diferente para a criação e todos encontravam
algum inconveniente nas ideias dos outros, nunca entrando num
acordo. Assim, surgiram muitos obstáculos e problemas para
executar a boa obra a que Olofim se propunha. Então, quando os
sábios e o próprio Olofim já acreditavam que era impossível realizar
tal tarefa, Exu veio em auxílio de Olofim-Olodumare. Exu disse a
Elofim que para obter sucesso em tão grandiosa obra era
71 Mitos: aproximação ao tema

necessário sacrificar cento e um pombos como ebó. Com o sangue


dos pombos se purificariam as diversas anormalidades que
perturbam a vontade dos bons espíritos. Ao ouvi-lo, Olofim
estremeceu, porque a vida dos pombos está muito ligada à sua
própria vida. Mesmo assim, pouco depois sentenciou: “Assim seja,
pelo bem de meus filhos”. E pela primeira vez se sacrificaram
pombos. Exu foi guiando Olofim por todos os lugares onde se deveria
verter o sangue dos pombos, para que tudo fosse purificado e para
que seu desejo de criar o mundo assim fosse cumprido. Quando
Olofim realizou tudo o que pretendia, convocou Exu e lhe disse:
“Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternidade.
Sempre serás reconhecido, Exu, serás louvado sempre antes do
começo de qualquer empreitada”. (PRANDI, R. Mitologia dos
Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 44-45)

É necessária precaução para não correr o risco de afirmar


apressadamente que o mito é falsidade. Costumeiramente se associa o mito
àquilo que é fantasioso, equívoco esse que, justamente, provoca reticências nos
leitores que aprenderam a ler os textos como se fossem a mais absoluta
representação da verdade. O pesquisador bíblico Arens (2007) esclarece que a
expressão mito é empregada em múltiplos campos do conhecimento, entre os
quais o religioso, o filosófico, o antropológico e o sociológico, para se referir à
maneira pré-científica de compreender e de falar a respeito do mundo, que se
caracteriza pela presença de explicações de cunho religioso: onde intervêm
forças espirituais, divindades e demônios. Para a mentalidade pré-científica,
ou seja, pré-moderna, o pensamento mítico é o único caminho de que dispõe a
mente para abordar certos problemas que surgem precisamente fora do âmbito
da experiência sensível. Nesse sentido, a intuição de Cardini (citado por Franco
Junior, 2010, p. 18) é essencial: “não há dúvida de que qualquer coisa existe na
medida
72 Mitos: aproximação ao tema

em que se acredita na sua existência em alguma parte do universo mental e do


sistema imaginário de uma sociedade”.
Com base na definição de mito ora estabelecida, podemos seguir
algumas das implicações dessa definição, tal como pontuado por Croatto
(2010, p. 220-226):

▪ O mito é um acontecimento instaurador: o mito aparece como o


relato de um acontecimento instaurador e, por isso, narra o que os deuses
fizeram. E o que os deuses fizeram nas origens são as coisas como são na
atualidade. “Trata-se sempre do que agora é significativo, daquilo que se faz
ou se usa e necessita ser consagrado por uma orientação à fonte ontofânica”
(Croatto, 2010, p. 220). Portanto, o mito não se ocupa da gênese histórica
das coisas. O valor significativo está na vivência religiosa. Nesse sentido, os
mitos não têm qualquer valor científico.
▪ A gênese e o uso do mito: por trás da construção do mito encontra- se a
experiência da vida concreta. Somente o que é relevante merece o relato
mítico de origem e a intervenção de um Deus que se relaciona com essa
realidade e que, de algum modo, nela se manifesta.
▪ O componente etiológico do mito: o mito não tem a pretensão de
descrever como se originaram as coisas. Ele apenas diz, com sua especial
referência às origens, o que são e qual é seu sentido. Assim, o aspecto
etiológico torna-se secundário.
▪ O mito como negador da evolução: o mito é essencialmente fixista
(Croatto, 2010) e, dessa forma, não relata a evolução do que é instaurado ao
longo do tempo. O mito não se relaciona no mesmo plano de espaço e tempo
de nossa experiência, reafirmando seu caráter não científico. “A realidade
instaurada no acontecimento mítico deve coincidir harmonicamente com a
realidade presente, da qual a realidade mítica é o sentido e modelo”
(Croatto, 2010, p. 225).
73 Mitos: aproximação ao tema

PARA REFLETIR

As leis, para que tenham mais força, recebem uma “carga” mítica a fim de
evidenciar que elas existem desde sempre.

Um exemplo que ilustra o comportamento do mito tal como visto até


aqui é a instituição de leis em uma determinada cultura. Sabe-se que
os conjuntos de leis do Pentateuco pertencem a fontes ou tradições
diferenciadas entre si (Ex 21-23; Dt 12-26) e que eles refletem épocas
distintas e, portanto, uma evolução nas instituições civis ou
religiosas. Porém, todas as leis, todos os conjuntos jurídicos, referem-
se ao Sinai. Como é possível que leis diferentes tenham sido
promulgadas ao mesmo tempo e pelo mesmo legislador? Acontece
que, no nível da construção mítica, o importante é remontar cada lei
a uma revelação divina, imaginada no Sinai, que é como o arquétipo
da revelação de tudo o que é lei para Israel. No relato mítico não está
presente a suposição de um desenvolvimento das leis, pois
simplesmente deixariam de ser “do Sinai”. (Croatto, 2010, p. 226)

3.2 A abordagem dos mitos da criação


Mitos da criação não são um fenômeno literário exclusivo da Bíblia. Eles
também são conhecidos em todas as culturas que incluem a criação dos seres
humanos. Nesse sentido, a Criação na tradição bíblica é descrita com
metáforas e mitos semelhantes, em espécie, àqueles usados nas culturas do
Antigo Oriente Próximo, como das civilizações mesopotâmica, egípcia e
canaanita. Na Babilônia, por exemplo, narrava- se o mito da criação conhecido
como Enuma Elish (Croatto, 2010).
É necessário compreender que o mito e sua linguagem, tal como
dispostos nos textos bíblicos, trazem uma experiência histórica e
74 Mitos: aproximação ao tema

consequentes interrogações que precisam de respostas – ou seja, as perguntas


que emergem da complexidade da vida demandam a expressão de uma
verdade profunda. Portanto, na base do texto mítico está a articulação da fé,
que é dada ou mediada como resposta humana a um desafio histórico ou a
uma interpelação divina em processos históricos. Não é demasiado
acrescentar, em decorrência do já exposto, que as narrativas míticas
encontradas na Bíblia têm raízes na história, já que, afinal, é a história e toda a
sua complexidade alimentaram as sagradas escrituras tanto de judeus quanto
de cristãos.
Como demonstrado, é necessário “enxergar” o que está oculto (o pano de
fundo) texto mítico. Nesse sentido, é de bom tom buscar reconstruir a história
que se encontra por trás das palavras. A respeito de Gênesis 1,1- 2,4a, Rossi
(2009, p. 51) faz as seguintes afirmações à luz do possível contexto em que o
referido texto foi escrito:

é proveniente do tempo em que uma parte do povo de Deus se


encontrava exilada na Babilônia. O país dos judeus havia sido ocupado
pela superpotência da época. Estamos, provavelmente, entre os anos
587 e 539 a.C. A situação era totalmente nova e, por causa disso, havia a
necessidade de que eles articulassem a sua fé no novo contexto histórico
e, sobretudo, diante dos novos desafios religiosos e teológicos que se
impunham. Não poderiam apenas se acomodar a alguma zona de
conforto ou ainda se alienarem diante da catástrofe acometida. A
história que eles tinham para viver era aquela, mesmo que fosse de
alguma forma desconfortável e distante do que poderiam desejar.

O templo em Jerusalém havia sido destruído por Nabucodonosor II em


587 a.C, e a cidade ficou arrasada. Símbolos importantes para manter a
identidade espiritual (teológica) e política do povo de Deus já não mais
existiam. A partir desse momento, a expressão
75 Mitos: aproximação ao tema

babilônia, para os judeus, tornou-se o símbolo de toda superpotência que


oprimiu seu povo no curso dos séculos seguintes. Até mesmo no Novo
Testamento, ela continua sendo símbolo da cruel dominação dos romanos.
A narrativa da criação em Gênesis tem como alvo os camponeses e os
artesãos judeus exilados na Babilônia. Trata-se de um período marcado por um
estado caótico de ver a vida. Exilados em uma terra estranha, a Babilônia, uma
parte do povo entrou em contato direto e doloroso com a cultura
mesopotâmica e, sobretudo, com os mitos cosmogônicos e a religião
astrológica próprios de sua cultura. Exilados, sem-terra, sem templo e
subjugados pelo mais poderoso império da época, eles se viram diante da
necessidade de articular uma nova maneira de ver a vida e de representar a
própria fé.
Como, no entanto, apresenta-se esse mundo? O mundo cultural e
religioso babilônico foi marcado pelos cultos astrológicos. Um babilônico,
quando contemplava o sol, a lua e as estrelas no firmamento, tinha a firme
convicção de que estava diante de representações dos deuses do panteão
babilônico. Olhar para o céu, na verdade, representava um ato de adoração,
pois “os céus do mundo mesopotâmico estavam ocupados pelos deuses-ídolos
da religião oficial do império babilônico” (Reimer, 2006, p. 26).
A observação de Reimer (2006) permite intuir e construir o que se
configurava como o novo ambiente sócio-histórico que desafiava a fé dos
exilados judeus na Babilônia. Para a caracterização desse novo ambiente,
recorremos integralmente à análise realizada por Rossi (2009, p. 52-53):

1] A mitologia babilônica reservava aos governantes o direito de


serem chamados e venerados como imagem do Deus criador.
Uma primeira característica do projeto que está presente no texto
de Gênesis, e que se contrapõe ao babilônico, é que a imagem de
Deus está manifesta no coletivo de mulher e de
76 Mitos: aproximação ao tema

homem. Na narrativa mítica de Gênesis há um grande não à


redução do poder absoluto nas mãos de uma única pessoa. O
governante não é Deus e muito menos age como representante
dele. E, em hipótese alguma, foi feito segundo a imagem e
semelhança de Deus. Para os judeus no exílio babilônico esse é
um privilégio de todos, sejam homens ou mulheres. A
semelhança com o criador os faz iguais na ordem social e, dessa
forma, a escravização deixa de ser pensada como algo “natural”
ou ainda “divino”.
2] A criação dos seres humanos e a mão de obra para o trabalho. Na
mitologia babilônica, os humanos foram criados para executar
tarefas que os deuses se recusavam a fazer. A partir dessa
situação, o controle do corpo dos seres humanos era passível de
controle por parte do estado e com uma legitimação teológica. O
povo de Deus no exílio não se vê como escravos, mas sim como
seres que foram criados para a liberdade a partir de um Deus que
cria para a comunhão. Com a narrativa mítica de Gênesis,
portanto, temos uma leitura teológica que desautoriza a
escravidão e que favorece a fraternidade.
3] O poder militar e estratégico do império babilônico também era
ostentado por intermédio do símbolo do sol como divindade. O
exército que aterrorizava o mundo daquela época se fazia passar
por embaixador da divindade celeste. E diante da força bélica que
em seu avanço a tudo destrói entra o rigor e a serenidade do
pensamento teológico do texto bíblico da criação. Segundo
Schwantes (1989, p. 31), “para poder enfrentar está maquinaria
militar e imperial era, pois, necessário, desautorizar o sol como
divindade”. E não podemos deixar de ver a intuição teológica dos
autores do relato de Gênesis ao relatar que tanto o sol, quanto a
lua e as estrelas não são deuses. São, de fato e de verdade, “partes
da criação com tarefas específicas” (Schwantes, 1989, p. 31). A
partir do momento
77 Mitos: aproximação ao tema

em que se percebe que os astros não se caracterizam como


deuses, cai por terra todo edifício religioso que dava ares de
sagrado ao império. Dessa forma, a lógica simbólica que residia
no mito babilônico que animava o exército conquistador, é
desfeita. O exército babilônico por mais força e capacidade
militar que tenha não é invencível. A força militar não é divina e,
consequentemente, pode ser derrotada. E a derrota começa pela
teologia, a teologia de Gênesis. Jamais um exército havia sido
derrotado pela força de uma palavra criadora que impedia as
forças da morte de avançarem infinitamente como se fossem
deuses.

Conclusivamente, é possível afirmar que, para o estudioso que se


aproxima do texto bíblico, o fato de reconhecer o caráter mítico, por exemplo,
de Gênesis 1 não significa fazer uma afirmação sobre o caráter fantasioso do
texto estudado. Em vez disso, deseja-se afirmar que o conhecimento nele
exposto superpõe-se ao saber manifestado pelo
entendimento racional – sempre de uma forma complementar, e não
competitiva. O que deve sempre ocupar o centro da atenção é a verdade para a
qual o mito aponta, verdade que foi a razão pela qual ele foi composto e
relatado. O mito e sua linguagem expressam realidades que tocam o ser
humano mais profunda e existencialmente do que aquelas captadas pelas
ciências e pela lógica. Por isso, sua verdade é existencial, não científica ou
estritamente histórica. E nisso não há demérito em relação à narrativa mítica
bíblica.

IMPORTANTE!
Existem duas maneiras inadequadas de ler e interpretar o mito. Uma
primeira leitura nega ao mito a pretensão de ser uma “história verdadeira”.
E uma segunda leitura, mais ingênua, assume a literalidade do que o relato
mítico expressa, imaginando-o como
78 Mitos: aproximação ao tema

um acontecimento específico no passado. É de vital importância refletir a


respeito dessas duas possibilidades. Ao apresentar o mito como “história” e
ao narrar um fato como instaurador de alguma realidade, o fato em questão
é captado na imediatez da experiência religiosa como algo realmente
acontecido na história humana. Trata- se, dessa forma, de uma leitura que
se faz do mito no âmbito sagrado, em seu lugar de manifestação. Mas, por
outro lado, o estudioso deve saber que o acontecimento contado no mito é
imaginário, que é uma construção do homo religiosus. Uma leitura
fundamentalista do mito assume como realmente acontecido o fato
“imaginário” nele encontrado, mais para defender uma “veracidade” mal-
entendida do texto sagrado do que para apontar corretamente sua intenção
profunda.

Para resumir, valemo-nos da percepção de Schlögl (2009, p. 116), para


quem

os mitos são histórias sagradas. Seu texto é construído para tornar


dizível o indizível; portanto, utiliza-se de metáforas e dos símbolos, a
fim de exprimir suas ideias que, mais do que simples palavras, são
compostos que mobilizam uma ampla gama de energias emocionais
direcionada aos indivíduos para os quais o mito se apresenta.

Os mitos são histórias sagradas, mas dizem respeito à história profana.


Antes de falar a respeito de deuses e deusas, os mitos querem, na verdade,
interpretar o cotidiano.

SÍNTESE
I. O mito, por ser um texto, pertence, naturalmente, à ordem literária e,
em razão disso, deve ser interpretado como um discurso.
II. O mito é “um relato de um acontecimento originário, no qual os
deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade
significativa” Croatto (2010, p. 209, grifo do original).
79 Mitos: aproximação ao tema

III. o mito aparece como o relato de um acontecimento instaurador e, por


isso, narra o que os deuses fizeram. E o que os deuses fizeram nas
origens são as coisas como são na atualidade.
IV. Por trás da construção do mito está a experiência da vida concreta.
V. O mito é essencialmente fixista e, dessa forma, não relata a evolução
do que é instaurado ao longo do tempo.
VI. Por trás do mito e da linguagem mítica que encontramos na Bíblia,
devemos descobrir a experiência-base e as interrogações para as quais
buscavam dar uma resposta, ou seja, a verdade profunda que
desejavam expressar.
VII. O mito e sua linguagem expressam realidades que tocam o ser
humano mais profunda e existencialmente do que aquelas captadas
pelas ciências e pela lógica.
VIII. A verdade do mito é existencial, não científica ou estritamente
histórica.
IX. A realidade instaurada no acontecimento mítico deve coincidir
harmonicamente com a realidade presente, da qual a realidade mítica
é o sentido e o modelo.
X. Não há dúvida de que qualquer coisa existe à medida que se acredita
em sua existência em alguma parte do universo mental e do sistema
imaginário de uma sociedade.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Assinale a alternativa que descreve os três elementos de comunicação
presentes no mito:
A] Emissor, destinatário e realidade.
B] Introdução, desenvolvimento e conclusão.
C] Tese, síntese e antítese.
D] Passado, presente e futuro.
E] Sujeito, destinatário e emissor.
80 Mitos: aproximação ao tema

2. Quais das características faz parte da leitura fundamentalista?


A] Doutrinismo.
B] Coletivismo.
C] Individualismo.
D] Libertacionismo.
E] Alegorismo.

3. Os mitos da criação são encontrados também fora da Bíblia e, por


pressuposto, são mais antigos. Entre eles podemos citar o Enumo Elish.
Assinale a alternativa que apresenta a procedência desse mito:
A] Assíria.
B] Edom.
C] Babilônia.
D] Israel.

E] Grécia.

4. De acordo com a teoria estudada neste capítulo, qual é a classificação dada


ao texto bíblico de Gênesis 1,1-2,4a?
A] História.
B] Ficção.
C] Narrativa.
D] Mito.
E] Poesia.

5. A análise dos textos bíblicos vivenciou enormes mudanças após novas


percepções da arqueologia. Assinale a alternativa que apresenta a
nomenclatura dada à nova maneira de abordar a arqueologia:
A] Arqueologia fundamentalista.
B] Arqueologia apologética.
C] Arqueologia independente.
D] Arqueologia bíblica.
E] Arqueologia siro-palestinense.
81 Mitos: aproximação ao tema

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Questões para reflexão
1. Qual a natureza do fundamentalismo? Quais os limites para bem
compreender o gênero literário mitológico?
2. “O mito não é uma falsidade”. Apresente teses contundentes que ratifiquem
o mito como uma forma legítima de epistemologia.

Atividade prática: aplicada


1. Pesquise outros relatos de “mitos da criação” do Antigo Oriente Próximo,
bem como mitos da criação dos povos originários da América latina, África e
Oceania. Compile os dados de forma comparativa.
4 MITO COMO FERRAMENTA
DE INVESTIGAÇÃO
SOCIOLÓGICA

Ao ousar a senda dos mitos como ferramentas que proporcionam investigação


sociológica, apresentaremos pistas, indicações e sugestões que, se bem
trabalhadas, podem permitir ao leitor um ótimo campo de reflexão.
Inicialmente, propomos a tese de que as complexas necessidades sociais e as
contradições históricas estão na origem das tradições e dos relatos míticos da
humanidade. Parece-nos razoável presumir a presença de relatos míticos que
acompanham a história humana, marcam seu presente e, ao mesmo tempo,
impulsionam o grupo social que gerava o mito em direção ao futuro.
Considerando que todos os grupos humanos podem ser localizados de
forma social, econômica, histórica e cultural, podemos também evocar a
possibilidade de que o mito, como expressão epistemológica das necessidades
próprias de determinado povo-clã-tribo, tem a função de explicar problemas e
situações conflituosos do ponto de vista social, econômico, histórico e cultural.
A mesma percepção encontramos em Schaden (1989, p. 16), segundo o qual
“Tanto na sua origem como em seus significados, os mitos são compreensíveis
somente dentro da configuração cultural em que nasceram ou estão
integrados”, o que provavelmente indica que os mitos são dinâmicos em sua
relação com a atualidade social do grupo em que estão integrados. Podemos
concluir que os
83 Mito como ferramenta de investigação sociológica

mitos estão vivos e ativos nos mais diferentes grupos humanos e sempre
presentes no espírito de seus membros, desempenhando importante função.
Com certeza estamos, como precisamente nos conduz Schaden (1989), na
esfera de uma “sociologia dos mitos”.
Do ponto de vista da sociologia e da antropologia social, é possível seguir
a proposta matizada por Schaden (1989, p. 19) de que os textos míticos podem
ser encarados quanto a três aspectos mais ou menos distintos:

1) a expressão ou reflexo da sociedade que, condicionando a elaboração


dos temas ou assimilando os mitos, neles se inscreve com as suas
formas próprias; 2) o seu significado ou valor representativo para os
membros da sociedade de cujo patrimônio fazem parte, ou seja, o
conjunto de associações despertadas pelo mito e 3) a sua função que
corresponde ao papel que lhes cabe na perpetuação da configuração
sociológica.

As observações de Schaden (1989) possibilitam conceber o mito como


expressão das formas peculiares de uma sociedade. Além disso, e exatamente
por isso, o mito há de se apresentar como tradição histórica que revela não
somente a organização social do grupo no presente, mas também uma série de
transformações sociais ocorridas na comunidade em épocas talvez
remotíssimas. Nesse sentido, vale enfatizar o caráter social do mito desde a sua
origem, isto é, desde o momento em que as forças sociais criam personagens
míticos até quando o próprio mito é compartilhado por homens e mulheres
que vivem em sociedade. O próprio Schaden (1989, p. 2) ressalta que “o mito é
a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas”.
Todavia, convém destacar que o mito não é social apenas em origem, mas
igualmente em função. Contudo, como podemos descrever a função do mito? A
resposta não pode ser outra senão contribuir para a construção da
solidariedade social.
84 Mito como ferramenta de investigação sociológica

A origem da formulação da função social do mito pode ser encontrada


nos trabalhos de Preuss. Foi ele quem expressou pela primeira vez, e com
suficiente clareza, a função social do mito, ao acentuar o seguinte:

Não há apenas na narração mítica uma simples intenção explanatória


para mostrar a origem das instituições, valores e representações
existentes na sociedade, mas uma garantia necessária e suficiente da
eficácia de ritos e cerimônias, da legitimidade das instituições e da
validade dos valores morais e dos padrões de comportamento
reconhecidos e aceitos pela tribo. (Preuss, citado por Schaden, 1989, p.
23)

Rossi (2003, p. 56), por sua vez, salienta que

os mitos se encontram intimamente ligados ao contexto sociocultural,


determinando e exprimindo a organização social de determinando povo,
tribo ou clã como também suas atividades socioeconômicas. Ao abordar
o assunto do ponto de vista tanto da sociedade quanto da cultura e suas
inter- relações, estaremos preocupados em indagar de que maneira os
mitos se ligam à estrutura social. Pois de fato o mito não é simples
fantasia, como sempre nos quiseram fazer crer, mas sim a transmissão
de mensagens de um profundo valor social.

A percepção de Keen e Valley-Fox (citados por Schlögl, 2009, p. 118-119)


é elucidativa para bem compreender o exposto até agora:

O mito organizador de qualquer cultura funciona de maneira criativa,


saudável ou patológica. Por proporcionar uma descrição do mundo e de
um conjunto de histórias que explicam por que as coisas são como são,
ele estabelece consenso, sanciona a estrutura social e dá ao indivíduo
um mapa autorizado do percurso da vida. Um mito cria o traçado que
organiza as diversas experiências de uma pessoa ou comunidade numa
história singular.
85 Mito como ferramenta de investigação sociológica

Diante desse contexto, podemos inferir que o mito apresenta um


elemento que produz, de certa forma, uma organização social. Trata-se de uma
organização social que é única e singular a cada povo, que gera os próprios e
específicos mitos.

4.1 Relatos míticos


Com base na perspectiva exposta anteriormente vamos analisar três mitos: um
do contexto latino-americano (o relato mítico do tesouro do Condor), um do
Antigo Oriente Próximo (Atrahasis) e, por fim, um da conjuntura bíblica (a
Torre de Babel).

4.1.1 El Condor
Nos Andes colombianos, ouvem-se relatos sobre o Condor. Nesse mito, o
Condor é uma das possíveis formas que, às vezes, um espírito dos tesouros
assume quando é muito perseguido, manifestando cólera e provocando
desmoronamento e transbordamento de rios e lagos – uma manifestação que
tem como objetivo impedir a saída dos tesouros dos povoados aborígenes da
América Latina. Observamos, ainda, nos relatos míticos recolhidos nessa
região, que está presente a recordação de fatos históricos específicos que se
relacionam com a sobrevivência do povo, fazendo com que este reviva com
horror a sangrenta investida dos conquistadores. Rossi (2003, p. 57), salienta
que “na memória coletiva identifica-se o conquistador como seres
monstruosos, metade homem e metade animal, que irrompiam ferozmente nas
aldeias deixando somente desolação e morte”.
86 Mito como ferramenta de investigação sociológica

4.1.2 Atrahasis
O mito de Atrahasis, ou Inuma ilu, tem enorme valor sociológico. Trata-se de
um mito babilônico, provavelmente, dos anos 1150-1015 a.C. Nesse mito, os
deuses se reúnem e decidem criar os seres humanos para que estes sejam
colocados a serviço dos deuses menores (Artuso, 2018).
De acordo com Rossi (2003, p. 60), o tema principal do mito é “o da
rebelião do trabalhador oprimido, os deuses menores primeiro, os seres
humanos depois. O motivo da criação do ser humano é essencial, porém
sujeito precisamente ao trabalho”, ou seja, o ser humano é criado
objetivamente para substituir os deuses que se achavam oprimidos. No
entanto, é preciso fazer uma ressalva: se os deuses se rebelaram e exigiram
mudança e foram atendidos, quando o próprio ser humano se rebela, suas
reivindicações não são escutadas. Ao contrário, só há repressão para dizimar a
humanidade (fome, peste, dilúvio e criação de mulheres estéreis). A conclusão
sociológica do mito parece presumida, isto é, o ser humano foi criado para
livrar os deuses de seu castigo. Vejamos uma transcrição parcial do mito de
Atrahasis:

Tábua I
A revolta dos deuses
Quando (alguns) deuses eram homens
Trabalhavam em demasia, suportavam o
trabalho,
Grande era o trabalho dos deuses,
Pesado o trabalho, grande a angústia.
Os grandes Anunnaki, os sete
Iguigui quiseram fazer suportar o trabalho
Anu, seu pai era o rei.
Seu conselheiro era Enlil, o guerreiro,
Seu ajudante era Ninurta
87 Mito como ferramenta de investigação sociológica

E seu vigia Ennugui.


Os deuses haviam assumido o controle do jogo,
Haviam tirado a sorte (e) repartido aos deuses:
Ao céu Anu havia subido;
Enlil (¿) havia recebido a terra, seus súditos;
O ferrolho, a fossa do mar...
Ao príncipe Enki lhe haviam dado.
Depois que Anu havia subido ao céu,
E Enki desceu ao Apsu,
(as linhas 19-36 estão ilegíveis e aparecem apenas menções dos Iguigui,
de escavações, do Tigre (trabalho de canalização), do levantar de sua
cabeça e contar os anos de seu penoso trabalho (e) Excessivo [...] por
quarenta anos
[...] dia e noite suportavam o trabalho
Eles se queixavam, acusavam,
Murmuravam na escavação:
“Apresentemo-nos diante do nosso [...], o vigia
Para que nos tire (de) de sobre nós o pesado trabalho:
[...] o conselheiro dos deuses, o Herói,
Vamos tirá-lo de sua residência,
a Enlil, conselheiro dos deuses, o Herói,
vamos tirá-lo de sua residência”.
[...] abriu sua boca,
E se dirigiu aos deuses, seus irmãos,
(linhas 49-56 ilegíveis)
Ao conselheiro dos deuses, ao Herói;
Vamos tirar Enlil de sua residência, o conselheiro dos deuses, o Herói;
Vamos tirá-lo de sua residência.
Agora, proclamai a guerra,
Vamos para a batalha e para o combate.
Os deuses escutaram seu pedido:
88 Mito como ferramenta de investigação sociológica

Puseram fogo em seus utensílios


Queimaram suas enxadas,
Queimaram seus cestos
Tomaram uns aos outros e se aproximaram
Da porta do santuário de Enlil, o Herói.
A criação do ser humano
Está (presente)
Que a deusa do nascimento produza descendência;
Que o ser humano leve consigo o trabalho dos deuses.
Chamaram e interrogaram a deusa,
A parteiro dos deuses, a sábia Mami:
“És tu, oh deusa do nascimento! Da humanidade criadora
Cria o homem; que ele carregue o jugo,
Que carregue o jugo imposto por Enlil,
Que o homem assuma o trabalho dos deuses”. (Rossi, 2003, p. 60--62,
tradução nossa)

É explícito o valor sociológico das expressões contidas no mito de


Atrahasis, as quais direcionam os olhares do pesquisador/leitor para
considerar o valor pedagógico do mito relativamente à função social. Rossi
(2003, p. 62-63 , grifo do original) apresenta de forma metodológica uma
possibilidade de divisão das palavras com base em seus contextos específicos e
a maneira como tais grupos de palavras podem ser interpretados.

Grupo 1 de palavras (em relação ao trabalho) [que traz como


consequência o clamor e a revolta dos deuses menores:]

▪ Trabalho
▪ excediam o trabalho (hora extra)
▪ suportavam o trabalho
▪ grande era o trabalho
89 Mito como ferramenta de investigação sociológica

▪ pesado o trabalho
▪ excessivo (por 40 anos)
▪ dia e noite
▪ o trabalho nos tem matado
[...]

Grupo 2 de palavras (pré-reação dos deuses) [que expressam a


maneira como o clamor provoca incômodo e apressa a libertação dos
deuses menores:]

▪ grande angústia
▪ queixavam-se (clamar)
▪ acusavam
▪ murmuravam
[...]

Grupo 3 de palavras (reação dos que detêm o poder) [que revelam a


apreensão dos deuses que se encontram encastelados:]

▪ escutaram o clamor de fora


▪ armaram-se
▪ preparam os guardas com a porta fechada
[...]

Grupo 4 de palavras (em relação a ação dos revoltosos) [que


possibilita verificar a presença de uma certa organização para a
libertação; clamor e ação são aproximados a fim de contestar o trabalho
excessivo:]

▪ cercam a casa
▪ desejo de mudar a situação
[...]

Grupo 5 de palavras (resultado):

▪ há o reconhecimento do trabalho excessivo


90 Mito como ferramenta de investigação sociológica

Em relação à criação do ser humano [podemos perceber os seguintes


grupos:]

Grupo 1:

▪ homem carregue a tarefa dos deuses


▪ carregue o jugo imposto por Enlil

Grupo 2:
“Eu suprimi vosso trabalho pesado e vosso duro labor, ao homem o
tenho imposto. O clamor foi transferido para a humanidade: para vós
desatei o jugo e estabeleci a liberdade”.

Grupo 3:
“Os homens se multiplicaram. O país bramava como um touro. Deus
estava perturbado por seus gritos. Enlil escutou seu grito... Demasiado
pesado é para mim o clamor da humanidade”. Enlil não consegue achar
tranquilidade.

O atrevimento e a rebelião em razão do clamor trazem consigo inúmeras


consequências negativas para o ser humano, enumeradas e apresentadas em
forma de pragas: “1ª praga = a peste propriamente dita; 2ª praga = os
alimentos são reduzidos; 3ª praga = a inundação; 4ª praga = mulheres
estéreis” (Rossi, 2003, p. 63).
A análise final de Rossi (2003, p. 63-64) permite bem visualizar a função
social do mito de Atrahasis:

Enki surge no mito como aquele que desata o jugo e estabelece a


verdade. Em relação ao dilúvio, Enki adverte a Atrahasis. É a salvação.
Na disputa dos deuses entre Enlil e Enki, este último opta pelo ser
humano em rebelião. Praticamente todos os grupos de palavras nos
levam a um trinômio: trabalho em excesso-clamor-libertação. Busco ver
no clamor o elemento catalizador [sic] que causa a instabilidade na
sociedade onde o mito está inserido. A criação do ser humano com o
intuito de substituir os deuses
91 Mito como ferramenta de investigação sociológica

menores no trabalho forçado é, sem dúvida alguma, argumento


legitimador de sistema e estruturas que promovem o bem-estar
somente daqueles que possuem o poder. As pragas servem como um
expediente para neutralizar a ação revoltosa dos homens trabalhadores.
A vida se encontra ameaçada através das pragas. O clamor e a
organização da humanidade são como fermento a causar ebulição nos
governos que produzem anti-vida e opressão.

Mitos, portanto, devem também ser compreendidos como narrativas que


produzem a libertação dos povos subjugados e a autonomia destes.

4.1.3 Torre de Babel


O relato da Torre de Babel é bastante conhecido nos círculos cristãos e pode
também ser lido com base em sua função social. Apesar de ser um relato muito
conhecido, muitas interpretações contemporâneas são feitas sob uma
perspectiva fundamentalista, que reivindica que a “melhor” leitura da narrativa
seria a respeito do orgulho humano. Claro está que, a partir do momento em
que se aproxima de um relato mítico como se fosse um relato historiográfico,
como é realizado pela leitura fundamentalista, a força social que o texto
apresenta deixa de existir. No entanto, é preciso buscar outros olhares sobre o
mesmo texto.
Vamos, portanto, ao texto:

O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras. Ao


emigrar do oriente, os homens encontraram uma planície no país de
Senaar, e aí se estabeleceram. E disseram uns para os outros: Vamos
fazer tijolos e cozê-los no fogo. Utilizaram tijolos em vez de pedras e
piche no lugar de argamassa. Disseram: Vamos construir uma cidade
com uma torre que chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos
dispersarmos pela superfície da terra. Então Javé desceu para ver a
cidade com a torre que os homens
92 Mito como ferramenta de investigação sociológica

estavam construindo. E Javé lhes disse: Eles são um povo só e falam


uma língua só. Isso é apenas o começo de seus empreendimentos.
Agora, nenhum projeto será irrealizável para eles. Vamos descer e
confundir a língua deles, para que um não entenda a língua do outro.
Javé os espalhou daí por toda a superfície da terra e eles pararam de
construir a cidade. Por isso, a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi
aí que Javé confundiu a língua de todos os habitantes da terra e foi daí
que ele os espalhou por toda a superfície da terra. (Bíblia Nova Pastoral,
2016, p. 37)

Uma possível melhor tradução do texto bíblico nos leva a pensar em uma
“cidade com uma torre ou um forte”. No Antigo Oriente Próximo, as cidades
eram os espaços privilegiados onde habitavam os que tinham o controle da
sociedade, ou seja, um espaço onde havia concentração de poder: reis,
príncipes e comerciantes ali se refugiavam, e as palavras deles eram
consideradas como se fossem leis.
Rossi (2003, p. 64) enfatiza que a cidade no mundo antigo era tida como

o centro de dominação e coerção pelo uso da força. A cidade exercia


domínio sobre o campo e as pessoas que ali viviam não tinham como se
defenderem. Eram obrigados a pagar tributos e a trabalhar na corveia,
ou seja, trabalho forçado. Enquanto construíam a cidade com uma
torre, ao mesmo tempo estavam construindo um sistema de anti-vida.
Eles edificavam a cidade que seria o fator de domínio sobre eles. Uma
cidade com uma torre indica concentração de poder: cultural, militar e
político. É pelo poder militar – das armas presentes na torre – que se
impunha o domínio sobre o campo.
93 Mito como ferramenta de investigação sociológica

Há domínio político e econômico e, também, imposição cultural. A


pretensão de um projeto político imperial, em que todos falem a mesma língua,
todos pensem do mesmo modo e ninguém tenha um comportamento
subversivo mesmo diante da violência estrutural, é claro sinal de que se
objetiva que o domínio seja completo.

A ideologia dos dominantes: uma análise do mito


de Babel
O império, em seu desejo de dominação, jamais se contenta com o que
conquista e possui. Possivelmente em razão disso, é necessário construir um
nome, uma vez que fazê-lo equivale a organizar um império invencível e
eterno, um forte destacamento militar que venha a crescer e, posteriormente, a
ditar ordens para os grupos menores. Ao se edificar um nome também se
constrói uma ideologia. Com isso, os dominadores deixam claro que tudo o que
eles fizerem tem uma razão de ser. Um nome sempre é construído às custas de
outras pessoas. Por isso, podemos afirmar que fazer um nome é um projeto
opressor e marginalizador.
Por outro lado, Javé age para que a construção da cidade seja
interrompida. A cidade está fora da realidade de Deus e causa, por isso mesmo,
forte indignação na divindade que é apresentada como libertadora. Ao passo os
que têm poder querem reunir para dominar com maior facilidade, Javé quer
dispersá-los para que não haja dominação. Para os que detêm o poder político,
a dispersão dos povos e a divisão das línguas são uma maldição, mas para os
grupos minoritários e explorados, isso é a salvação. Javé invade a história para
impedir que um projeto opressor tenha conclusão. Javé intervém e opta pelo
grupo mais fraco, como sempre fez ao longo da história.
94 Mito como ferramenta de investigação sociológica

Considerações finais sobre


4.2

os mitos analisados
Ao analisarmos os três mitos selecionados, tínhamos em mente salientar o
valor deles para a pesquisa social. Todos eles refletem um modo de ver a
sociedade e sinalizam os conflitos que são inerentes ao fazer histórico.
Resumidamente, temos o seguinte esquema:

El Condor – aborígenes versus conquistadores


Atrahasis – liberdade versus trabalho forçado
Torre de Babel – campo versus cidade

Nesse contexto, surgem duas perguntas finais, pois, de certa forma, elas
possibilitam refletir sobre o alcance social dos mitos:

1. Em meio aos conflitos, o mito se posiciona de qual lado?


2. Diante das forças sociais a serem enfrentadas, qual a posição do mito?

Assim, é possível problematizar as relações do discurso mítico com base


nas observações de Harari (2018, p. 143-144):

Os hindus que aderem a um sistema de castas acreditam que forças


cósmicas fizeram uma casta superior a outra. De acordo com um famoso
mito da criação hindu, os deuses criaram o mundo a partir do corpo de
um ser primitivo, Purusha. O Sol foi criado dos olhos de Purusha; a Lua,
do cérebro de Purusha; os brâmanes (sacerdotes), de sua boca; os
xátrias (guerreiros), de seus braços; os vaixás (camponeses e
mercadores), de suas coxas; os sudras (criados), de suas pernas. Aceite
essa explicação, e as diferenças sociopolíticas entre brâmanes e sudras
passam a sertão naturais e eternas quanto as diferenças entre o Sol e a
Lua. Os antigos chineses acreditavam que, quando sua deusa Nu Kua
criou os
95 Mito como ferramenta de investigação sociológica

humanos a partir da terra, ela fez os aristocratas com uma bela argila
amarela, enquanto os homens comuns foram moldados com barro
marrom. [...]

[...] Repetidas vezes, as pessoas estabeleceram a ordem em uma


sociedade classificando a população em categorias imaginadas, como
homens superiores, homens comuns e escravos; brancos e negros;
patrícios e plebeus; brâmanes e sudras; ricos e pobres. Essas categorias
regulamentaram as relações entre milhões de seres humanos ao tornar
algumas pessoas superiores a outras em termos jurídicos, políticos ou
sociais.

CURIOSIDADE
No universo dos orixás, encontramos muitos relatos míticos que procuram
explicar a realidade. Um deles relata como Ogum extraiu o poder das
mulheres repassando-o para os homens:

Ogum conquista para os homens o poder das mulheres


No começo do mundo, eram as mulheres que mandavam na
Terra e eram elas que dominavam os homens. A mulher
manejava o homem com o dedo mindinho. As mulheres tinham
o poder e o segredo, lansã tinha inventado o mistério da
sociedade dos egunguns, a sociedade de culto aos antepassados,
e os homens estavam sempre submissos ao poder feminino.
Quando as mulheres queriam humilhar seus maridos, elas se
reuniam com lansã debaixo de uma árvore, lansã tinha um
macaco ensinado. Ela o fazia aterrorizar os homens. Sim,
mandava que ele fizesse coisas para assustar os maridos.
Quando viam ali na árvore o macaco fazendo coisas a mando de
lansã, os homens se apavoravam e se submetiam ao poder
feminino. Finalmente, um dia os homens resolveram acabar
com aquela humilhação de estarem sempre
96 Mito como ferramenta de investigação sociológica

submissos ao poder de suas mulheres. Os homens consultaram


Orunmilá e ele mandou fazer um ebó. O sacrifício era de galos,
uma roupa, uma espada, um chapéu. Ogum era quem deveria
levar o sacrifício, a ser oferecido sob a árvore das mulheres.
Ogum foi bem cedo â arvore, antes da chegada das mulheres. Ali
ofereceu os galos, vestiu a roupa e o chapéu e empunhou a
espada. Quando as mulheres chegaram e viram aquele homem
forte vestido como um poderoso e armado até os dentes,
exibindo aos quatro ventos seu porte de guerreiro, elas saíram a
correr e a correr num pânico incontrolável. A vista do homem
assumindo o poder era terrificante. As mulheres não
suportaram tal visão, lansã foi a primeira a fugir de espanto.
Uma das mulheres, de medo, correu tanto que desapareceu da
face da Terra para sempre. Desde esse dia o poder pertence aos
homens. E os homens expulsaram as mulheres das sociedades
secretas. Porque a posse do segredo agora é dos homens, lansã,
no entanto, ainda é a rainha do culto dos egunguns. (PRANDI,
R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2017. p. 106-107)

SÍNTESE
I. o mito visto como expressão das formas peculiares de uma sociedade
apresenta-se como tradição histórica, o que significa que a
interpretação dele pode revelar não somente a organização social do
grupo no presente, mas também uma série de transformações sociais
ocorridas na comunidade em épocas talvez remotíssimas.
II. O mito é social não apenas em suas origens, mas igualmente em sua
função.
III. O mito organizador de qualquer cultura funciona de maneira criativa,
saudável ou patológica.
97 Mito como ferramenta de investigação sociológica

IV. Por meio da análise de três mitos de origens distintas, realizada com
base em uma chave de leitura sociológica e libertadora, foi possível
evidenciar que as narrativas mitológicas apresentam densidade
histórica e procuram, com isso, responder às contradições do
cotidiano.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Schaden (1989) ensina que os textos míticos podem ser refletidos sob vários
aspectos distintos com base em duas ciências. Quais são elas?
A] Sociologia e antropologia.
B] Teologia e psicologia.
C] Política e antropologia.
D] Psicologia e filosofia.
E] Teologia e filosofia.

2. Assinale a alternativa que corretamente indica o pesquisador que, pela


primeira vez, expressou com clareza a função social do mito:
A] Frazer.
B] Preuss.
C] Eliade.
D] Jung.
E] Campbell.

3. O tema principal do relato mítico do Condor serve como chave de leitura


para a correta interpretação desse texto. Trata-se:
A] da alienação.
B] da desolação.
C] da força histórica de libertação.
D] dos sonhos/devaneios.
E] da esperança.
98 Mito como ferramenta de investigação sociológica

4. No mito babilônico de Atrahasis, o tema principal é a rebelião do


trabalhador oprimido. Qual é o motivo da criação do ser humano conforme
esse mito?
A] Libertação.
B] Comunhão.
C] Solidariedade.
D] Trabalho escravo.
E] Alienação.

5. Com base na leitura do mito bíblico da Torre de Babel, assinale a alternativa


que apresenta o significado de edificar uma cidade com uma torre:
A] Domínio religioso na região.
B] Concentração de riqueza.
C] Aumento do número de escravos.
D] Ponto estratégico para o comércio internacional.
E] Concentração de poderes cultural, político e religioso.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Questões para reflexão
1. Quais são as possíveis conclusões em chave hermenêutica de libertação, ao
se comparar os mitos do Condor, de Atrahasis e da Torre de Babel?
2. Qual a importância dos mitos na sociedade contemporânea?

Atividade prática: aplicada


1. Identifique um mito de populações originárias do Brasil e procure
interpretá-lo sociologicamente.
5 SÍMBOLOS:
APROXIMAÇÃO AO TEMA

Símbolos são um produto do ser humano e, mais especificamente, o ser


humano é o único capaz de criar símbolos e sistemas simbólicos. Por isso, não
é estranho reconhecer que as culturas são “o berço de onde provém toda a
criação humana e a expressão de suas formas de vivência espiritual, que se dão
a conhecer por intermédio de uma linguagem bastante peculiar e quase sempre
metafísica, constituída por símbolos” (Schlögl, 2009, p. 117). Nesse contexto, é
fundamental reiterar, aqui, que a palavra cultura tem sido utilizada no plural.
Por isso, é necessário recuperar a compreensão de que nosso lugar é hoje
“multicultural”, um lugar que exerce uma constante hermenêutica de
suspeição contra supostos universalismos ou totalidades. “Estamos tão
habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as
coisas que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como
princípio de solidariedade”, afirma Santos (2000, p. 30). Ademais, sob a capa
dos valores universais autorizados pela razão, foi de fato imposta a razão de
uma “raça”, de um “sexo” e de uma “classe social”. A questão, portanto, que se
coloca, derivada de Santos (2000, p. 30), pode assim ser formulada: “como
realizar um diálogo multicultural quando algumas culturas foram reduzidas ao
silêncio e as suas formas de ver e conhecer o mundo se tornaram
100 Símbolos: aproximação ao tema

impronunciáveis?”. Trata-se de uma questão emergencial e urgente, na medida


em que não é mais possível qualquer tipo de diálogo quando a mente de outros
grupos e povos é colonizada.
Do ponto de vista da fenomenologia da religião, acompanhamos a
reflexão de Eliade (1988, p. 26) a respeito do simbolismo do centro:
“paralelamente à crença arcaica nos arquétipos celestes das cidades e dos
templos, encontramos uma outra série de crenças, mais bem documentadas
ainda, e que se referem à sua investidura do prestígio do Centro”. Seguindo a
mesma reflexão, o centro é a zona do sagrado por excelência e, nesse sentido,
distante da periferia, que é considerada região profana. Aplicados à geografia
dos espaços humanos, há espaços muito bem determinados entre sagrado e
profano, puro e impuro, ricos e pobres, sadios e doentes, sábios e ignorantes.
Com base no simbolismo arquitetônico do centro, é possível imaginar as
consequências sociais. Eliade (1988), mais uma vez, enumera-as da seguinte
maneira: (a) a Montanha Sagrada, onde se encontram o céu e a terra, está no
centro do mundo; (b) qualquer templo ou palácio, qualquer cidade sagrada ou
residência real, é uma montanha sagrada, tornando-se assim um centro; (c)
sendo um Axis Mundi, a cidade ou templo sagrado são considerados como
ponto de encontro entre o céu, a terra e o inferno.
A religião, qualquer que seja ela, pode ser vivida e conhecida pelos ritos.
Segundo Tolra e Warnier (2003), os ritos precisam ser compreendidos como
procedimentos elaborados, compostos por atos e símbolos que se manifestam
com frequência por objetos e palavras provenientes de um passado distante.
De forma esclarecedora, afirmam que os ritos podem ser segmentados em:

proibições e prescrições; em ritos de controle, compreendendo


interditos e receitas mais ou menos mágicas, e em ritos comemorativos
ou celebrações, formados pelos mitos cuja situação ou estrutura
produzem; os ritos tentam, pela repetição, criar uma
101 Símbolos: aproximação ao tema

espécie de temporalidade específica, e talvez mesmo escapar do correr


do tempo. O próprio sistema de relações entre o homem e a esfera do
sagrado seria, então, expresso pelos mitos e vividos nos ritos. Mas o rito
deve ser considerado em si como formando um sistema que desenvolve
segundo o movimento das estações ou da existência e segundo as
provações experimentadas pelo indivíduo ou pela comunidade. (Tolra;
Warnier, 2003, p. 206)

Girard (2005, p. 26-30), pedagogicamente, divide os símbolos em quatro


grandes áreas:

▪ Símbolos usados nas ciências exatas, ou seja, química, matemática e


física;
▪ Símbolos relacionados a emblemas tidos como convencionais, por
exemplo, as bandeiras nacionais;
▪ Símbolos relativos a valores morais, ao poder e ao conhecimento e
▪ Símbolos relacionados à religião.

“O símbolo pode ser considerado como linguagem originária e fundante


da experiência religiosa, a primeira e a que alimenta todas as demais”, assim se
expressa Croatto (2010, p. 81) a fim de determinar a importância do estudo do
símbolo. O símbolo deve ser considerado a linguagem básica da experiência
religiosa, que funda todas as outras experiências. Por conseguinte, o símbolo
tem uma reserva de sentido. Ele faz pensar e sempre diz mais do que diz.
Na reserva, que se encontra oculta, há uma fonte à procura de ser desvelada.
Consequentemente, os símbolos – principalmente os religiosos – nunca podem
ser completamente explicitados ou esgotados. Há sempre algo que precisa ser
revelado, indicando, dessa forma, sua inesgotabilidade. Na definição de Bazán
(2002, p. 16), “o símbolo é uma linguagem simultaneamente encobridora e
descobridora de sentidos à primeira vista escondidos”.
102 Símbolos: aproximação ao tema

A perspicácia de Eliade (1996, p. 177) ao explicar a reserva de sentido do


símbolo é admirável e merece ser transcrita:

O símbolo não pode ser o reflexo dos ritmos cósmicos enquanto


fenômenos naturais, porque um símbolo sempre revela alguma coisa a
mais, além do aspecto da vida cósmica que deve representar. Os
simbolismos e os mitos solares, por exemplo, revelam-nos também um
lado “noturno”, “mau” e “fúnebre” do Sol, o que não é evidente à
primeira vista no fenômeno solar como tal. Este lado de um certo modo
negativo, não percebido no Sol enquanto fenômeno cósmico, é
constitutivo do simbolismo solar; o que prova que, desde o começo, o
símbolo aparece como uma criação da psique. Isto se torna ainda mais
evidente quando lembramos que a função de um símbolo é justamente
revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios de
conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão
abundantemente e simplesmente expressada pelos símbolos, não é
visível em nenhum lugar do Cosmos e não é acessível à experiência
imediata do homem, nem ao pensamento discursivo.

O simbólico, como temos visto, pode ser considerado o domínio do


sentido. As significações compreendem um mínimo de ordem e repousam
sobre um código. Nesse sentido, as palavras de Tolra e Warnier (2003, p. 48)
são esclarecedoras:

O desenvolvimento do neocórtex ao longo da filogênese humana abre


uma vasta esfera de liberdade que permite a iniciativa individual e
coletiva, assim como a civilização, em outras palavras, a instauração de
regras sociais de comportamento e a invenção ou a descoberta de
significações. A sociedade investe a vida cotidiana e o meio ambiente
humano de sentido, isto é, de direções e intencionalidades, de traços
culturais normativos, ou valores, e de organizações nos domínios
morais, religiosos e filosóficos. A função que desempenha este papel é
denominada, em sentido muito amplo, função simbólica.
103 Símbolos: aproximação ao tema

O ser humano, em seu mundo, é dominado pelos símbolos e com eles


interage. Dia após dia, o símbolo revela uma nova realidade para o ser
humano, que, também dia após dia, continuará a construir símbolos.

5.1 O símbolo como linguagem


O símbolo apresenta-se como a linguagem do profundo e da intuição, da
poesia, dos sonhos e da experiência religiosa. Eliade (1996, p. 5) acrescenta
que é preciso compreender “o símbolo como modo autônomo de
conhecimento”. Para o autor, o símbolo pertence à substância da vida
espiritual e, em razão disso, jamais poder ser eliminado: “que o símbolo, o
mito, a imagem pertence à substância da vida espiritual, que podemos
camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los”
(Eliade, 1996, p. 7). Nesse sentido, os aspectos mais profundos da realidade
são revelados pelo símbolo. No símbolo, o ser humano pode mediar uma
compreensão com o sagrado. O sagrado interage com o ser humano de forma
incondicional e, por isso, é expresso por meio de símbolos.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que a linguagem das expressões de
fé de todas e quaisquer culturas religiosas é simbólica ou, como escreve Tolra e
Warnier (2003, p. 192), “o domínio de aplicação do símbolo, domínio enorme
e diverso, compreende a religião, os mitos, os ritos, os fenômenos de
classificação, as línguas, os gestos, a semântica, a arte o pensamento, as
ideologias, as crenças etc., na maneira pela qual influenciam o comportamento
humano”.
Portanto, é verossímil afirmar que o pensamento simbólico precede a
linguagem bem como a razão discursiva. Precede, mas não como se indicasse
inferioridade. A precedência é apenas temporal, e não valorativa e
hierarquizadora. As palavras de Eliade (1996, p. 9) são esclarecedoras:
104 Símbolos: aproximação ao tema

Quando um ser historicamente condicionado, por exemplo um


ocidental dos dias de hoje, deixa-se invadir pela sua própria parte não
histórica, não é necessariamente para retroceder ao estado animal da
humanidade, para descer às origens mais profundas da vida orgânica:
inúmeras vezes, ele reintegra pelas imagens e símbolos que utiliza um
estado paradisíaco do homem primordial (qualquer que seja a
existência concreta deste último, pois esse “homem primordial”
apresenta-se sobretudo como um arquétipo impossível de “realizar-se”
plenamente em qualquer existência). Escapando à sua historicidade, o
homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na
“animalidade”; ele reencontra a linguagem e, às vezes, a experiência de
um “paraíso perdido”. Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas
nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos, etc., tantas forças que
projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo
espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado de seu
“momento histórico”

IMPORTANTE!
Confira, a seguir, como se caracteriza o símbolo para Croatto (2010, P-117):

O símbolo se refere à união de duas coisas que se encontravam


separadas. Na antiguidade, era um costume que, ao se fazer um
contrato, um pedaço de cerâmica fosse quebrado em duas partes;
dessa forma, as duas pessoas envolvidas no contrato ficavam cada
uma delas com um dos pedaços da cerâmica. Uma reclamação
posterior era legitimada pela reconstrução da cerâmica destruída,
cujas metades deviam coincidir. A união das partes permitia
reconhecer que a amizade permanecia intacta. Esse devia ser um
costume muito praticado, pois o livro de Tobias (escrito na
Mesopotâmia) conta que o ancião Tobit encarregou o jovem Tobias
105 Símbolos: aproximação ao tema

de recuperar um dinheiro emprestado na Média, a um tal Gabael,


mas Tobias pergunta-lhe: “Como poderei recuperar o dinheiro? Nem
Gabael me conhece, nem eu o conheço! Que sinal posso apresentar
para que Gabael me reconheça, acredite e me entregue o dinheiro?”
(5,2). Tobit respondeu: “Ele me deu seu documento e eu lhe dei o
meu; eu o dividi em dois para que cada um de nós ficasse com a
metade. Tomei uma e deixei outra com o dinheiro”.

O exemplo citado no box “Importante!” ajuda a compreender que, nos


símbolos, aparecem duas coisas separadas, mas que se complementam. E uma
parte necessariamente remete à outra. Logo de início, é importante prestar
atenção nas duas orientações dadas por Croatto (2010, p. 86-87) para o estudo
dos símbolos (1) “O segundo sentido não é algo objetivado nas coisas, mas se
trata de uma experiência humana e singular de cada ser humano”; e (2) “as
coisas não são simbólicas em si mesmas e nem sempre chegam a sê-lo. Elas são
constituídas simbolicamente por algum tipo de experiência humana”. Dessa
forma, o símbolo é remissivo, ou seja, ele envia para outra realidade aquilo que
importa existencialmente. Rigorosamente falando, o pensamento simbólico
não pode ser considerado uma área restrita da criança ou do poeta. Eliade
(1996, p. 8-9) é esclarecedor nesse sentido:

O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos –


que desfiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os
símbolos e os mitos são criações irresponsáveis da psique; elas
respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as
mais secretas modalidade do ser. Por isso, seu estudo nos permite
melhor conhecer o homem, o homem simplesmente, aquele que ainda
não se compôs com as condições da história.

Os símbolos remetem, portanto, às realidades mais profundas do


conhecimento humano.
106 Símbolos: aproximação ao tema

O sinal visível de uma realidade


4.2

invisível
É necessário compreender a infinita variedade de símbolos e a
heterogeneidade do fenômeno religioso. Assim, o sagrado sempre é percebido
como refletido na multiplicidade de coisas e fenômenos do mundo. Schlögl
(2009, p. 12) diz que “Há algo invisível que se faz representar por meio do
símbolo”; percepção confirmada por Kast (citado por Schlögl, 2009, p. 12): “é
um sinal visível de uma realidade invisível”. É exatamente por isso que, na
interpretação dos símbolos, busca-se uma realidade invisível, que se encontra
atrás de algo invisível e de suas possíveis conexões. Todavia, é necessário
prestar atenção ao alerta de Croatto (2010, p. 88):

O sagrado é percebido fragmentariamente, mas isso não é essencial. O


relevante é o fato de que se capta e vive analogicamente nas coisas deste
mundo, que por algum motivo são elevadas ao plano simbólico. Tudo
pode ser transfigurado em hierofania, mas isso não supõe que de fato o
seja. É preciso haver uma vivência do sagrado em relação com tal ou
qual elemento mundano. Nem toda pedra é sagrada. A pedra que se
torna sagrada não o é necessariamente para todas as pessoas. É
necessário mediar uma experiência do transcendente em relação a esse
objeto.

Podemos considerar o símbolo como uma lente que permite ver o que
sem ela não se vê. Na visão de Eliade (1996), se os objetos não são convertidos
em símbolos, apaga-se a própria percepção do sagrado na forma como se
experimenta, e muito menos é possível expressá-la. Os exemplos dados pelo
autor são significativos:

Veja o seguinte exemplo elucidativo: a água que se utiliza no banho


ritual é o âmbito no qual se hierofaniza o sagrado como força de
purificação. Mas, se em lugar de água fosse utilizado o
107 Símbolos: aproximação ao tema

azeite, o sentido do gesto mudaria e modificaria o aspecto do sagrado


vivido no primeiro caso. O azeite, de fato, não expressa purificação, mas
consagração ou alimento substancial. (Eliade, 1996, p. 152-154)

CURIOSIDADE
Muitas são as possibilidades para explicar o simbolismo do mal. Vejamos
algumas a seguir:

A concepção do adversário sob a forma de um ser demoníaco,


verdadeira encarnação das forças do mal, também sobreviveu até
nossos dias. A psicanálise dessas imagens míticas que ainda agitam o
mundo moderno poderá nos mostrar, talvez, até que ponto
projetamos sobre nossos “inimigos” nossos próprios desejos
destruidores. Para o mundo arcaico em geral, os inimigos que
ameaçavam o microcosmos eram perigosos não tanto enquanto seres
humanos (em si), mas porque encarnavam as forças hostis e
destruidoras. É bem provável que as defesas dos lugares habitados e
das cidades tenham começado como defesas mágicas; isto porque
essas defesas – fossos, labirintos, muralhas, etc. – eram dispostas
para impedir muito mais a invasão dos maus espíritos do que o
ataque de humanos. Até mais tarde na história, na Idade Média por
exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como
uma defesa contra o Demônio, a doença e a morte. Aliás, o
simbolismo arcaico não encontra nenhuma dificuldade em identificar
o inimigo humano ao Demônio e â Morte. Afinal, o resultado desses
ataques, sejam eles demoníacos ou militares, é sempre o mesmo: a
ruína, a desintegração e a morte. (Eliade, 1996, p. 34)
108 Símbolos: aproximação ao tema

Croatto (2010) aponta cinco características do símbolo, as quais


descrevemos resumidamente a seguir:

1. O símbolo é polissêmico (e falar de símbolo também é falar dele


como polissêmico): se as coisas do mundo, quaisquer coisas, podem ser
elevadas à função simbólica pelo que são e como são sua capacidade de
remeter para um segundo sentido também deve ser compreendida como
plural. Um exemplo clássico é o modo pelo qual se vive a experiência
humana do que é o fogo – ou seja, o fogo pode ser experimentado como
algo destruidor ou como algo purificador. A polissemia do símbolo é
reafirmada por Schlögl (2009, p. 115): “Símbolos são vivos, nunca
podendo ser enrijecidos e encapsulados em interpretações únicas”.
Afinal, o problema da interpretação única e absoluta, como se fosse uma
metanarrativa, conduz ao desejo de manipular os comportamentos e as
consciências.
2. O símbolo é relacional: por meio do símbolo, o homem religioso se
solidariza com o cosmo, com os outros seres humanos e, especialmente,
com o Outro.
3. O símbolo é permanente: manifesta uma modalidade do sagrado
pelo que é como é. Assim, o sol, a terra, a água, por exemplo, têm o
mesmo valor simbólico no decorrer dos séculos.
4. O símbolo é universal: os mesmos símbolos, com iguais significados,
podem aparecer, simultaneamente, em culturas isoladas entre si e, até
mesmo, sem conexão histórica. A maioria dos símbolos fundamentais é
patrimônio de toda a humanidade.
5. O símbolo é pré-hermenêutico: a condição de signo aberto e
sugestivo do símbolo é enfatizada, e sua significação é inserida nele por
seu produtor, sendo captada mediante ato posterior de interpretação.
109 Símbolos: aproximação ao tema

CURIOSIDADE
A água cotidiana recebe muitas explicações simbólicas, entre as quais podemos
observar as seguintes:

Em qualquer grupo religioso em que se encontrem, as Águas


conservam invariavelmente sua função: elas desintegram, eliminam
as formas, “lavam os pecados”, são ao mesmo tempo purificadoras e
regeneradoras. Seu destino é o de preceder a Criação e de reabsorvê-
la, incapazes que são de ultrapassar sua própria modalidade, ou seja,
de manifestar-se em formas. As águas não podem transcender a
condição do virtual, dos germes e dos estados latentes. Tudo o que é
forma se manifesta acima das águas, desprendendo-se delas. No
entanto, a partir do momento em que se desprendeu das águas, que
cessou de ser virtual, toda forma está sujeita à lei do Tempo e da
Vida; ela adquire limites, participa do destino universal, insere-se na
história, corrompe-se e acaba por esvaziar-se da sua substância, a
menos que ela se regenere através de imersão periódicas nas águas, e
repita o “dilúvio” com seu corolário cosmogônico. As lustrações e as
purificações rituais com água têm como objetivo a atualização
fulgurante do momento intemporal (in illo tempore) em que
aconteceu a criação; elas são a repetição simbólica do nascimento dos
mundos ou do “homem novo”. (Eliade, 1996, p. 152)

5.3 Simbologia bíblica


Não é possível ignorar os múltiplos símbolos que são próprios aos textos
bíblicos, ou seja, do Antigo Testamento e do Novo Testamentos. A imagem,
quando não é decodificada, perde-se na possibilidade de sentidos possíveis.
Assim, a simbologia bíblica se reveste de importância como um tema que
possibilita melhor compreender o que se encontra por trás das palavras
simbólicas.
110 Símbolos: aproximação ao tema

Na sequência, analisaremos alguns pontos importantes para a compreensão da


simbologia bíblica.
Basta um simples olhar para os mais diversos ambientes em que
vivemos, seja o ambiente da cidade, das escolas, do trabalho, que logo se
perceberá a importância da imagem. Talvez seja plausível afirmar que não é
possível vivermos dissociados da quantidade exponencial de imagens a que
somos expostos diariamente. A impressão, muitas vezes, é a de que a imagem
ocupou o lugar do discurso e se tornou muito mais valiosa e que, por conta
disso, assume um lugar maior do que a própria realidade. O provérbio popular
é bem conhecido: “uma imagem vale/fala mais do que mil palavras”. Portanto,
a vida de todas as pessoas e em todas as culturas é marcada por símbolos.
Símbolos que existem para expressar as realidades não materiais que nos
acompanham na cotidianidade. Um simples exercício de olhar para os lados,
pelos mais diferentes ambientes em que estivermos, nos levará a contemplar e
a refletir a respeito de algum símbolo e sua respectiva mensagem. Podemos,
dessa forma, considerar os símbolos como sinais que indicam tanto os
caminhos a seguir assim como os caminhos que devem ser evitados. Os
símbolos se apresentam, portanto, como sinais que orientam e facilitam a vida
de todos.
A simbologia nas Sagradas Escrituras tem grande relevância. Uma
leitura atenta faz o leitor encontrar uma quantidade expressiva de símbolos e
seus significados, tais como: cores, números, animais, nomes de lugares e de
pessoas, pedras preciosas, metais, corpo humano, e tantos outros. Rossi (2018,
p. 17) nos insere nesse mundo do simbolismo bíblico ao afirmar que

Assim como no dia a dia precisamos conhecer o significado dos


símbolos para não cometermos algum equívoco – pense, por exemplo,
em quais são os prejuízos de alguém que, ao interpretar incorretamente
uma placa de trânsito que indique “parar”,
111 Símbolos: aproximação ao tema

continuar a dirigir o próprio carro – também na Bíblia é necessário


utilizar de uma chave de leitura a fim de conhecer os símbolos que
foram utilizados num passado tão distante por pessoas que viviam
geograficamente distante de nós e imersos numa cultura específica. O
símbolo pode ser considerado um ser ou objeto que representa um
conceito abstrato por alguma semelhança ou correspondência. Logo
vem â mente a palavra cachorro quando falamos, por exemplo, do
animal que corresponde à fidelidade; se trazemos à memória a palavra
balança, junto com ela, e imediatamente, vem à mente ideia de justiça.
Assim, podemos dizer que um símbolo é uma realidade que nos
aproxima de outra realidade mais profunda – ou seja, ao vermos algo
material, somos levados, rapidamente, a um conceito não material.
Porém, precisamos ter consciência de que o símbolo não tem a
capacidade de definir a realidade que aponta. Diríamos que o símbolo
apenas sugere caminhos e abre novas perspectivas. Não possui, nesse
sentido, função definidora, mas de fruição. Ele representa algo sem
desejar apreender todas as suas possibilidades.

Nas Sagradas Escrituras, a linguagem simbólica deve ser compreendida


como um instrumento eficaz para que as realidades chamadas espirituais, bem
como as múltiplas expressões de fé, sejam mais bem compreendidas. Algumas
décadas atrás, Tillich (citado por Rossi, 2018, p. 15) afirmou que a linguagem
da fé é o símbolo, dizendo que a “fé, como a condição em que se está tomado
por aquilo que nos toca incondicionalmente, não conhece outra linguagem a
não ser a do símbolo”. Assim, a compreensão e a expressão da fé acontecem
quando um indivíduo faz uso das coisas visíveis para demonstrar o invisível,
faz uso da referência do que é presente para se referir ao que se encontra
ausente, faz uso da referência explícita do humano para se relacionar com o
divino e, enfim, faz uso das coisas relacionadas à terra para falar
112 Símbolos: aproximação ao tema

da realidade divina. São duas as perguntas mais importantes que podem ser
feitas diante de um símbolo. Vamos a elas: “qual o seu significado”; “o que ele
quer dizer?'. Tomemos a cruz como exemplo. A cruz é um símbolo que se
reveste de altíssima importância para o cristianismo. Mas, para outras pessoas
que vivem experiências e realidades diferentes das experiências e realidades
dos cristãos, a cruz assume significados diferentes. Para um indivíduo que vive
uma experiência religiosa distinta do cristão, a cruz poderia ser considerada
algo de menor importância e para um soldado romano do primeiro século,
acostumado à prática da crucificação, a cruz seria considerada um instrumento
de tortura utilizado contra aqueles iam contra a nova ordem mundial proposta
pelo Império Romano. Os símbolos, portanto, ganham sentido a partir de
experiências muito específicas. Assim, os símbolos religiosos de uma confissão
religiosa distinta do cristianismo poderiam ser considerados, aos olhos de um
cristão, justamente por ele não conhecer e não conseguir decodificar o símbolo,
algo de menor importância. Qual a razão desse comportamento? A resposta a
considerar é que é o lugar social de cada pessoa que define a maneira pela qual
ela interpretará e que sentido dará aos símbolos que estão ao seu redor.
Vejamos um exemplo de um símbolo extraído das Sagradas Escrituras
que pode ser manipulado inadequadamente quando o leitor não conhece
adequadamente seu sentido original. No livro do Apocalipse, último livro do
Novo Testamento, em seu capítulo 13, verso 18 nos deparamos com o número
seiscentos e sessenta e seis (666), que é considerado por muitos como o
número da besta. Todavia, deixando o senso comum de lado e suas
interpretações fantasiosas, sabe-se que em grego, idioma em que o Novo
Testamento foi escrito, cada letra possuía um valor numérico e, mais ainda,
que o número de um nome próprio era o total do valor
113 Símbolos: aproximação ao tema

numérico de suas letras. A partir dessa premissa do idioma grego, o número


666 encontrado em Apocalipse 13,18 corresponderia ao nome César-Deus,
justamente o valor das letras gregas.
Uma informação adicional se faz necessária: simbolicamente, o número
666 era apresentado como um numeral que representava o limite da maior
imperfeição, ou seja, o numeral “seis” não atinge o numeral “sete” que era
considerado simbolicamente o número da perfeição e, isso, por três vezes, ou
seja, 666. Temos, assim, no primeiro século de nossa era, um número que
possuía uma representação simbólica que era conhecida por aqueles e aquelas
que integravam as primeiras comunidades cristãs e que reconheciam nesse
número a acumulação do que é imperfeito, incompleto e que jamais será
perfeito. Contemporaneamente, o mesmo número recebe um valor simbólico
distinto daquele atribuído no primeiro século e passa a ser interpretado como
um número cujo significado produz medo e terror e, mais do que isso, um
número associado a um indivíduo ou a alguma tecnologia que poderia causar
toda sorte de violência e medo.
Vale ressaltar que, se os relatos míticos tenham existido ou
desaparecido, os ritos continuam a desempenhar a mesma função de
integração da sociedade. A atualidade do rito, portanto, tem uma força que o
extrapola. E, de acordo com Tolra e Wanier (2003, p. 206):

O que constitui a força do rito não é realmente o seu sentido intrínseco,


sua eficácia prática, ou a segurança subjetiva que proporciona, mas o
fato de que transforma a situação reforçando a solidariedade do grupo
que o executa. A chuva talvez não venha apesar da realização do ritual,
mas a mobilização dos participantes lhes permitirá enfrentar melhor a
seca.
114 Símbolos: aproximação ao tema

CURIOSIDADE
Símbolos têm importância desde o mundo antigo. Com base neles, procurava-
se compreender o mundo:

Na antiguidade grega, vários elementos poderiam ser denominados de


símbolo, como os contratos jurídicos, senhas nas guerras e nos
mistérios, ou mesmo o voo de um pássaro lido como uma previsão
futurística. O Bispo Cipriano de Cartago, em meados do século III, foi
quem pela primeira vez utilizou o termo símbolo com um sentido de
confissão de fé. Os estoicos viam no símbolo algo que portava verdades
filosóficas ou teológicas. (Schlögl, 2009, p. 122)

SÍNTESE
I. Símbolos são um produto do ser humano, e, mais especificamente, o ser
humano é o único capaz de criar símbolos e sistemas simbólicos.
II. O símbolo pode ser considerado como linguagem originária e fundante
da experiência religiosa, a primeira e a que alimenta todas as demais.
III. O símbolo apresenta-se como a linguagem do profundo e da intuição, da
poesia, dos sonhos e da experiência religiosa.
IV. Por meio do símbolo, o ser humano pode mediar uma compreensão com
o sagrado. O sagrado interage com o ser humano de forma incondicional
e, por isso, é expresso por meio de símbolos.
V. O símbolo é remissivo, ou seja, ele envia para outra realidade aquilo que
importa existencialmente.
VI. Na interpretação dos símbolos, busca-se uma realidade invisível, que se
encontra atrás de algo invisível e de suas possíveis conexões.
115 Símbolos: aproximação ao tema

VII. O problema da interpretação única e absoluta, como se fosse uma


metanarrativa, conduz ao desejo de manipular os comportamentos e as
consciências.
VIII. O símbolo é permanente, já que manifesta uma modalidade do sagrado
pelo que é e como é.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. As culturas são o berço de onde provêm toda a criação humana e a expressão
de suas formas de vivência. Com base nessa premissa, assinale a alternativa
que indica o sujeito produtor do símbolo:
A] O ser humano.
B] Deus.
C] Sistemas religiosos.
D] Os animais.
E] Sistemas filosóficos.

2. De acordo com Croatto (2010), existem cinco características aplicadas ao


símbolo. Assinale a alternativa que apresenta três delas:
A] É invariável, é permanente, é sagrado.
B] É polissêmico, é relacional, é permanente.
C] É hermético, é relacional, é psicológico.
D] É monolítico, é polissêmico, é profano.
E] É fluído, é contínuo, é polissêmico.

3. Qual é o sentido do conceito reserva de sentido aplicado ao símbolo?


A] Irredutibilidade.
B] Parcialidade.
C] Inesgotabilidade.
D] Imparcialidade.
E] Neutralidade.
116 Símbolos: aproximação ao tema

4. Qual é o idioma de origem da palavra símbolo?


A] Egípcio.
B] Hebreu.
C] Babilônico.
D] Grego.
E] Assírio.

5. É possível considerar o símbolo como uma lente que permite ver o que sem
ela não se vê. O que, de fato, busca-se na interpretação do símbolo?
A] Uma realidade fática.
B] Uma realidade passada.
C] Uma realidade futura.
D] Rituais.
E] Uma realidade invisível.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM
Questões para reflexão
1. “O ser humano é o único criador de símbolo.” Reflita e discorra a respeito de
algumas teses que ratifiquem esse enunciado.
2. O símbolo é, por natureza, polissêmico. Defina polissemia e faça uma
reflexão sobre a maneira pela qual ela é aplicada ao símbolo.

Atividade aplicada: prática


1. Visite espaços religiosos diferentes e faça uma relação dos símbolos da fé
utilizados com os respectivos significados. Em seguida, indique as
semelhanças e as diferenças entre eles.
6 SÍMBOLO COMO
LINGUAGEM DA FÉ

O símbolo também deve ser compreendido como um gerador de vínculo entre


os seres humanos, o qual dá sentido à vida humana. Há um mal-estar
provocado pela globalização, pelo advento do que os sociólogos chamam de
sociedade de risco, tomada pela insegurança ontológica e pelo desamparo. Um
enorme desamparo que provoca uma desesperança tal que as pessoas passam a
buscar soluções messiânicas (a volta às religiões insere-se aqui). Na pós-
modernidade, as narrativas universais da modernidade se liquefizeram. Há um
relativismo extremado, em virtude do qual as pessoas tendem a revisitar certos
discursos antigos em busca do universalismo perdido.
O mundo moderno, por meio da razão e do mito do progresso, prometia
progresso econômico, igualdade social, libertação da miséria e paz. Na falta
disso, as pessoas hoje têm razão de perguntar por que enfrentam tanta
pobreza, desigualdade, fome, doenças e discórdia civil. Foi com base em
Bauman (2001) que a expressão modernidade líquida seconsagrou. Segundo
esse autor, o mundo contemporâneo está sob seu influxo, razão pela qual,
portanto, tanto as relações pessoais quanto as instituições são marcadas pela
liquidez. É uma época que pode ser caracterizada por fluidez, volatilidade,
incerteza e insegurança. Se a modernidade (à qual Bauman acrescenta o
adjetivo sólido) traz consigo a fixidez e a
118 Símbolo como linguagem da fé

plenitude dos referenciais morais, a modernidade líquida a expulsaria do palco


a fim de que impere a lógica do consumo, do gozo e da artificialidade.
O mundo do sujeito pós-moderno passa por um processo de
fragmentação. Basta perceber que as grandes promessas da modernidade não
foram cumpridas ou, quando concretizadas, redundaramem efeitos perversos.

6.1 O mundo desde o seu reverso


A pós-modernidade está relacionada a uma pergunta essencial: “o mundo
moderno ainda oferece realisticamente o que prometeu por tanto tempo?”
(Lemert, 2000, p. 25).
As sombrias realidades do mundo moderno no início deste milênio são
difíceis de evitar. Vejamos alguns dados publicados por Santos (2000, p. 23-
24):

Relativamente à promessa de igualdade, os países capitalistas


avançados com 2i% da população mundial controlam 78% da produção
mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia
produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo, do setor têxtil ou da
eletrônica, ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e
da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma
produtividade. Desde que a crise da dívida arrebentou no início da
década de 8o, os países devedores do Terceiro Mundo têm contribuído
em termos líquidos para a riqueza dos países desenvolvidos pagando a
estes em média por ano mais de 30 bilhões de dólares do que o que
receberam em novos empréstimos. No mesmo período a alimentação
disponível nos países do Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de 30%.
No entanto só a área de produção de soja em nosso país daria para
alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e
feijão. Mais pessoas morreram de fome no nosso século que em
119 Símbolo como linguagem da fé

qualquer dos séculos precedentes. A distância entre pessoas ricas e


pessoas pobres no mesmo país não tem cessado de aumentar. No que
diz respeito à promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos
em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem
proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças trabalham em
regime de cativeiro na índia; a violência policial e prisional atinge o
paroxismo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes raciais na
Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996, a violência sexual
contra as mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os
milhões de vítimas de minas antipessoais, a discriminação contra
toxicodependentes, os portadores de HIV ou os homossexuais, as
limpezas étnicas e o chauvinismo religioso são apenas algumas
manifestações da diáspora da liberdade. No que diz respeito à promessa
de paz perpétua, enquanto no século XVIII morreram 4,4 milhões de
pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de
pessoas em 237 guerras. Entre o século XVIII e o século XX a população
mundial aumentou 3,6 vezes, enquanto os mortos na guerra
aumentaram 22,4 vezes. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim
da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se
uma cruel miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos
conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos
Estados. A promessa da dominação da natureza foi cumprida de modo
perverso sob a forma de destruição da natureza e da crise ecológica.
Apenas dois exemplos: nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de
um terço da sua cobertura florestal. Apesar da floresta tropical fornecer
42% da biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta
mexicana são destruídos anualmente. As empresas multinacionais
detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da
floresta amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas
que já afetam os países do Terceiro Mundo. Um quinto da humanidade
já não tem hoje acesso a água potável.
120 Símbolo como linguagem da fé

Nessa mesma direção segue a reflexão de Jung (citado por Eliade, 1996).
Para ele, o processo de autorrealização do ser individido encontra impulso
justamente na dinâmica dos símbolos. E acrescenta “que os símbolos conferem
unidade àquilo que aparentemente encontra-se separado” (Jung, citado por
Eliade, 1996, p. 180). A crítica de Paul Tillich (1996) ao processo de
“demitização” é, no mínimo, interessante. Para o teólogo da cultura, é um
equívoco expulsar mitos e símbolos. Ele mesmo esclarece por que considera o
expurgo um equívoco: “nunca será bem- sucedido, porque símbolo e mito
revelam formas de pensamento e de intuição que estão inseparavelmente
ligados à estrutura da consciência humana” (Tillich, 1999, p. 36). O papel dos
símbolos religiosos é dar significação à vida do ser humano.
“Os índios pueblos acreditam que são filhos do pai Sol, e esta crença dá a
suas vidas uma perspectiva (e um objetivo) que ultrapassa a sua limitada
existência: abre-lhes espaço para um maior desdobramento de suas
personalidades e permite-lhes uma vida plena como seres humanos” (Jung,
citado por Schlögl, 2009, p. 127).
Em razão dessa função, “sua própria existência representa um ato social”
(Croatto, 2010, p. 113). O simbolismo, portanto, é considerado um
acontecimento social; ou, como afirma Mauss (citado por Croatto, 2010, p.
114), uma vez que “as coisas sagradas são coisas sociais [...] considera- se
sagrado tudo aquilo que qualifica a sociedade por meio do grupo e de seus
membros”. Com base nas pesquisas de Schlögl (2009, p. 119), podemos
perceber que diferentes imagens, estátuas, objetos, vestimentas, posições,
entre outras possibilidades, são, muitas vezes, expressões simbólicas
importantes nas várias culturas religiosas. Só após o estabelecimento de
contato com essa linguagem, e depois de ser atingido por ela, intelectual e
emocionalmente, é que o sujeito poderá buscar significações. Schlögl (2009)
sugere que o símbolo sempre é
121 Símbolo como linguagem da fé

maior do que si mesmo. Nesse caso, ele funciona como um farol lançando
luz para algo mais distante. Vale destacar os aspectos importantes da
linguagem simbólica que são fundamentais para o sentido da vida e que se
expressam de maneira comunitária na celebração religiosa. Silva (2013, p. 18-
19) faz referência a cinco possíveis características, apontadas como essenciais
tanto em Campbell quanto em Tillich, assim sumarizadas:

a ação e fé comunitária têm como base os ritos simbólicos e sua


natureza é expressa em símbolos-míticos. A fé é inexistente sem sua
expressão simbólico-mítica. Os símbolos-míticos tocam e estimulam
centros vitais que estão fora do alcance dos vocabulários da razão e da
coerção. Outra característica é que o culto e as expressões míticas só
fazem sentido a partir daquilo que ele indica por meio do símbolo, ou
seja, o culto só faz sentido quando se toma a linguagem simbólica como
o meio de expressar o Divino, se isso não acontece a tendência é trocar o
mito por uma filosofia da religião e o culto por práticas moralizantes.
Em terceiro lugar, para que a fé comunitária e pessoal possa desfrutar
de experiências com o sagrado se faz necessário formas visíveis
expressas por símbolos-míticos a fim de sentir a presença do Divino.
Em quarto lugar, o mito seria responsável pela origem de toda
comunhão religiosa. Em quinto, os símbolos-míticos são mantenedores
da fé sem estes [sic] a vida comunitária, o culto e a fé perdem o sentido
ou desaparecem. E, por último, o símbolo-mítico promove comunhão, fé
comunitária e pessoal, por isso o símbolo-mítico é prático, pois leva à
ação.

Aqui, é necessário lembrar uma das mais importantes declarações de


Eliade (1986): as imagens constituem “aberturas” para um mundo trans-
histórico e permitem que a presença dos símbolos conserve as culturas
“abertas”.
122 Símbolo como linguagem da fé

A partir de qualquer cultura, tanto a australiana quanto a ateniense, as


situações-limite do homem são perfeitamente reveladas graças aos
símbolos que sustentam essas culturas. Se negligenciarmos esse
fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais, a filosofia da
cultura estará condenada a permanecer um estudo morfológico e
histórico, sem nenhuma validade para a condição humana como tal. Se
as imagens não fossem ao mesmo tempo uma “abertura” para o
transcendente, acabaríamos por sufocar qualquer cultura, por maior e
admirável que a supuséssemos. (Eliade, 1986, p. 174)

O símbolo não ilumina a si mesmo. Seu objetivo é sempre a


possibilidade do que está mais além. Ele, o símbolo, ao não se fechar em si
mesmo, “abre-se a um diálogo entre significado e significante. No símbolo está
presente algo particular que aponta para algo maior” (Eliade, 1986, p. 121). A
maioria das vezes, por exemplo, uma xícara representa apenas uma xícara. Há
momentos, porém, em que se transfere para ela um valor adicional altamente
subjetivo; valor este que se relaciona com a experiência pessoal de
determinado sujeito. E, assim, aquela xícara se transforma, de simples xícara,
em uma xícara com um sentido que a transcende e a faz especial entre tantas
outras parecidas. Mas, perceba, o sentido transcendental é limitado ao
alcance da experiência que a gerou. Se a história dela for narrada, a
possibilidade de seu sentido ser compreendido por outros é maior.
Dessa forma, podemos inserir a discussão a respeito das funções
fundamentais do símbolo para a vida religiosa. A seguir apresentamos seis
funções do símbolo, conforme propõe Eliade (2010):

1. Transforma objetos comuns em incomuns.


2. Torna-se portador de uma revelação do sagrado.
3. Cria um vínculo solidário e permanente entre o sujeito da fé e o sagrado.
123 Símbolo como linguagem da fé

4. Anuncia o imperativo da necessidade do sujeito da fé em perpetuar as


manifestações divinas.
5. Ao abolir a fragmentação da tríade formada por ser humano- sociedade-
cosmo, o símbolo age como unificador de uma só realidade.
6. O símbolo é sempre comunicante e hermenêutico do sagrado.

MÃOS À OBRA
Símbolos são polissêmicos, e o sentido deles é produzido com base em seus
lugares específicos. Procure conhecer os símbolos de outras tradições
religiosas e a maneira como eles ajudam a interpretar melhor o mundo e o
cotidiano pelas relações com o sagrado.

Tillich (1996) e Armstrong (2011) parecem concordar que a linguagem


da fé que se manifesta no símbolo apresenta uma legitimidade epistemológica.
Trata-se de uma forma legítima de compreensão que, de forma alguma,
contrapõe-se à razão. Atuam, portanto, em dimensões diferentes. Se a razão
revela uma dimensão pragmática, a linguagem simbólica, que está relacionada
de forma intrínseca à existência e ao significado da vida humana, procura,
objetiva mente, dar sentido e finalidade ao fato de existir.
Por sua vez. Silva (2013, p. 18) chama a atenção para a experiência
profunda e marcante com o sagrado:

Nos símbolos-míticos o ser humano pode mediar uma compreensão


com o divino. O ser humano desde sua gênese procura um sentido para
sua vida e se utilizou da linguagem religiosa para poder expressar sua fé,
ou seja, o sentido que pudesse corresponder com suas expectativas
existenciais, ou seja, últimas. Nas comunidades religiosas esta
expressão toma sua forma no culto com os seus ritos.
124 Símbolo como linguagem da fé

FIQUE ATENTO
Você sabia que uma das formas de anular o símbolo é a leitura historicista de
qualquer texto religioso? Vejamos.
Considerar, por exemplo, a serpente do Gênesis 3 um animal real não é
apenas criar um ser prodigioso que nunca existiu, mas também esvaziar
totalmente o “segundo sentido” que o narrador busca estabelecer como
mensagem. Esvaecido o símbolo, o texto converte-se em uma fábula
interessante. A própria figura do demônio é um símbolo poderoso em diversas
religiões; quando é “historicizado” e explicado como um ser vivente concreto,
nesse exato momento mata-se o símbolo: a origem do mal, então, é projetada
no ser real extraordinário, e não é buscada onde verdadeiramente pode estar.
O demônio como símbolo remete ao mistério do mal; se alguém consegue
“explicar” esta ou aquela manifestação do mal como tal, não precisa remeter
para ele simbolicamente.

Os símbolos cumprem a função de comunicantes e, no âmbito religioso,


a linguagem direta não dá conta de exprimir o mistério (Schlögl, 2009).
Importa, pois, compreender a linguagem simbólica livre das teses
fundamentalistas que, grosso modo, esgotam a polissemia e a riqueza de um
texto ou de um símbolo sagrado e, simultaneamente, criam verdadeiros
dogmas que impossibilitam interpretações contextualizadas. No Capítulo 3,
discorremos mais amplamente a respeito do fundamentalismo. Neste
momento, apresentamos novas características não demonstradas naquela
oportunidade. Dessa forma, seguimos Rossi e Dietrich (2017, p. 55), segundo
os quais o fundamentalista:

▪ “exige uma forte adesão a atitudes doutrinárias rígidas,


▪ recusa todo questionamento e toda pesquisa crítica,
125 Símbolo como linguagem da fé

▪ não concede nenhuma importância às formas literárias e às


maneiras humanas de pensar presentes nos textos,
▪ torna histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade.”

Eliade (1996, p. 178) esclarece a reflexão, chamando a atenção para a


importância do símbolo:

O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação,


sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Aplicado a
um objeto ou a uma ação, o simbolismo os torna “abertos”. O
pensamento simbólico faz “explodir” a realidade imediata, mas sem
diminuí-la ou desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é
fechado, nenhum objeto é isolado em sua própria existencialidade: tudo
permanece junto, através de um sistema preciso de correspondências e
assimilações. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si
mesmo em um “mundo aberto” e rico de significados. Resta saber se
essas “aberturas” são meios de fuga ou se, ao contrário, constituem a
única possibilidade de alcançar a verdadeira realidade do mundo.

O símbolo acrescenta um novo valor ao objeto. Todo objeto, em virtude


da simbologia nele impressa, transcende sua própria realidade e materialidade.

O símbolo como poder nas relações


6.2

pessoais e estruturais
Poder, poder simbólico e discurso religioso estão mais próximos do que
podemos imaginar. Contudo, é necessário apresentar algumas possíveis
definições de poder que aparecem no decorrer desta seção. Valemo-nos da
definição de três autores que indicam o ambiente em que nossa reflexão deve
realizar-se.
126 Símbolo como linguagem da fé

Poder, segundo Orlandi (1987, p. 55), no ambiente religioso e, portanto,


sagrado, pode ser assim definido:

Como a relação com o sagrado revela, entre outros fatores, a relação do


homem com o poder, no caso, com o poder absoluto, a ilusão da
reversibilidade toma apoio na vontade de poder. Essa vontade aponta
para a ultrapassagem das determinações (basicamente de tempo e
espaço): ir além do visível, do determinado, daquilo que é
aprisionamento, limite. Ter poder é ultrapassar. E ter poder divino é
ultrapassar tudo, é não ter limite nenhum, é ser completo.

Por sua vez, Boff (1982, p. 33) elabora a seguinte representação do


poder: “o poder, indiferentemente o signo sob o qual ele vem exercido, seja
cristão ou pagão, sagrado ou secular, segue imperturbável a mesma lógica
interna de querer mais poder, de ser um dinossauro insaciável e de submeter
tudo e todos aos próprios ditames do poder”.
Oterceiro autor de que lançamos mão é o filósofo francês Michel
Foucault (1990). Segundo ele, o poder não pode ser considerado algo que se
detém, como se fosse uma coisa, uma propriedade, um objeto que ora se possui
e ora não. Dessa forma, não existiria, de um lado, os que têm o poder e, de
outro, aqueles que estão sem poder (Foucault, 1990). Rossi (2017, p. 95),
seguindo as reflexões de Foucault, afirma que “o poder não existe; existem sim
práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se
exerce, que se efetua, que funciona. Não é um objeto, uma coisa, mas uma
relação”.
Para os cientistas sociais, é preciso trabalhar com a reflexividade das
pessoas, porque os atores constroem a realidade social, e o fazem por meio de
práticas da linguagem, pois as práticas sociais, em seu conjunto, já são
delineadas por aquelas. E, segundo Júlia Miranda (1999, p. 57),
127 Símbolo como linguagem da fé

embora nem toda a realidade social seja discurso, essa orientação


permite chamar a atenção, inclusive, para o discurso cotidiano (every
day speech) na análise da construção dos sujeitos coletivos. Nesse nível,
é possível acompanhar a construção do sentido que as pessoas de um
determinado grupo ou classe conferem à realidade, contribuindo para a
identificação e objetivação do próprio grupo.

A percepção de Foucault (1990, p. 87) acerca do poder é fundamental:

o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de


verdade. O poder possui uma eficácia produtiva, uma positividade. E é
justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo
humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-
lo. O que interesse basicamente ao poder não é expulsar os homens da
vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos
homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável
utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando
um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades.
Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de
seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma
utilidade econômica; diminuição de sua capacidade de revolta, de
resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, isto é,
tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade
econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar
a força econômica e diminuir a força política.

Contrariamente ao entendimento de Foucault, a compreensão da


maioria das pessoas a respeito do poder é aquela que o reduz à “coisa”. Trata-
se de uma concepção inadequada porque toma o poder como um fetiche,
gerando uma reificação ou uma fetichização ideológica do poder. Em razão
disso, faz-se necessário perceber o
128 Símbolo como linguagem da fé

poder a partir do modo como ele nasce, examinando-o como um processo, e


não como uma substância estática.
Com base em Foucault (1990), a conclusão mais óbvia parece ser de que
o poder não é uma coisa, mas uma relação. Rossi (2017, p. 96) propõe a
seguinte reflexão a respeito do poder como relação:

Uma relação entre pessoas que convivem em uma mesma sociedade. É a


própria relação social que é uma relação de poder. De fato, toda relação
social é uma relação de poder. E o poder aqui toma a forma de uma
influência mútua. Desse modo, o poder está situado originariamente na
base da sociedade, ele nasce ao pé de toda relação social e humana em
geral.

Penso que a pergunta de Foucault [...] se ajusta perfeitamente ao


discurso teológico: qual é esse tipo de poder capaz de produzir discursos
de verdade que são, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos
tão potentes?

Para Foucault (2002, p. 85), é justamente na sociedade em que vivemos


que nos deparamos com

múltiplas relações de poder que perpassam, caracterizam e constituem


o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem se estabelecer, nem
funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um
funcionamento do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem
uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse
poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção
da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da
verdade.

Afinal de contas, as pessoas são julgadas, condenadas, classificadas,


obrigadas às mais diversas tarefas, destinadas a certa maneira de viver ou a
determinada forma de morrer, em razão de discursos verdadeiros, ou
pretensamente verdadeiros.
129 Símbolo como linguagem da fé

Mais uma vez, Foucault (2002) faz uma grave advertência a fim de não
tomar o poder como se fosse um fenômeno maciço e homogêneo, isto é, como
se fosse uma dominação de um indivíduo sobre outros, de um grupo sobre
outros, de uma classe sobre as outras. A orientação dele é precisa nesse
aspecto:

ter em mente que o poder, exceto ao considerá-lo de muito alto e de


muito longe, não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e que o
detêm exclusivamente, e aqueles que não o têm e que são submetidos a
ele. O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou
melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está
localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é
apossado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. O poder se
exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão
sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-
lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre
seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos
indivíduos, não se aplica a eles. (Foucault, 2002, p. 85)

É preciso, necessariamente, entender o poder com base na


comunidade religiosa, e não ao contrário. A comunidade é o horizonte e o
contexto do poder. Não é só nem antes de tudo o objeto do poder. A
comunidade é o sujeito primeiro do poder e fonte originária dele. Em primeiro
lugar, quando se trata de ontologia e de valor, vem a comunidade e, só depois,
o poder. A comunidade é a realidade primária e principal. o poder é uma
realidade secundária, derivada e relativa.
O testemunho de Clodovis Boff (citado por Libânio, 1996, p. 87) é
apropriado:

No passado, eu não aceitava a expressão “teologia popular”. Achava que


era possível salvar esta expressão só no sentido de
130 Símbolo como linguagem da fé

uma teologia feita a partir da ótica do povo. Eu, teólogo, é que iria
pensar, refletir em favor dele. Agora vejo que eu era vítima de
preconceito academicista, que afirma só fazer discurso crítico quem
passou pela universidade. Aí eu confundia criticidade com
academicismo. Um bom teólogo profissional é apenas um servidor do
teólogo verdadeiro – que é a comunidade.

Relações interindividuais tóxicas que nutrem relações íntimas com o


poder devem ser descartadas. o filósofo Hobbes, nesse sentido, está superado:

Assinalo, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens


um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa
apenas com a morte. E a causa disso nem sempre é que se espera um
prazer mais intenso, [...] mas o fato de não se poder garantir o poder
[...] sem adquirir mais poder ainda. (Hobbes, 1987, p. 111)

Não podemos falar, por consequência, que o poder como tal


enlouqueceu. Não é o poder que vive ensandecido e louco, e sim o ser humano
– arrogante, que se considera poderoso – que está possuído por uma
compulsão, por um desejo imoderado – a libido dominandi – , que, ao possuir
e dominar o ser humano, o transforma em agressividade desequilibrada,
dividida e machucada.

SÍNTESE

I. O símbolo deve ser compreendido como um gerador de vínculo entre os


seres umanos, o qual dá sentido à vida humana.
II. O símbolo sempre é maior do que si mesmo.
III. As imagens constituem “aberturas” para um mundo trans- histórico que
permite que a presença dos símbolos conserve as culturas “abertas”.
131 Símbolo como linguagem da fé

IV. A O símbolo não ilumina a si mesmo. Seu objetivo é sempre a


possibilidade do que está mais além. Ele, o símbolo, ao não se fechar em
si mesmo, abre-se a um diálogo entre significado e significante.
V. A Se a razão revela uma dimensão pragmática, a linguagem simbólica,
que está relacionada de forma intrínseca à existência e ao significado da
vida humana, procura, objetivamente, dar sentido e finalidade ao fato de
existir.
VI. A Os símbolos cumprem a função de comunicantes, e, no âmbito
religioso, a linguagem direta não dá conta de exprimir o mistério.
VII. A O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação,
sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos.
VIII. A É preciso entender o poder pela comunidade religiosa, e não ao
contrário. A comunidade é o horizonte e o contexto do poder.
IX. A É necessário compreender a linguagem simbólica livre das teses
fundamentalistas, que, grosso modo, esgotam a polissemia e a riqueza
de um texto ou de um símbolo sagrado e, simultaneamente, criam
verdadeiros dogmas que impossibilitam interpretações contextualizadas.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. “O papel dos símbolos religiosos é dar significado à vida do ser humano” é
uma tese ligada a qual pesquisador?
A] Jung.
B] Campbell.
C] Croatto.
D] Schlögl.
E] Frazer.
132 Símbolo como linguagem da fé

2. Como é conhecido o processo de expurgo dos mitos e dos símbolos?


A] Alegoria.
B] Demitização.
C] Narrativa.
D] Poesia.
E] Mitologia.

3. Quais autores concordam que a linguagem da fé, que se manifesta no


símbolo, apresenta legitimidade epistemológica?
A] Frazer e Campbell.
B] Eliade e Jung.
C] Tillich e Armstrong.
D] Croatto e Freud.
E] Paden e Harari.

4. Assinale a alternativa que se refere a uma das funções fundamentais do


símbolo:
A] Conduzir o sujeito da fé para processos de alienação.
B] Proporcionar segurança e bem-estar.
C] Indicar direções não seguras de se caminhar.
D] Transformar objetos comuns em incomuns.
E] Promover isolamento entre as pessoas.

5. Existem formas de anular o símbolo e sua força, reduzindo o símbolo a uma


fábula interessante. Assinale a alternativa que se aplica a uma das formas de
se anular o símbolo:
A] A leitura maximalista.
B] A leitura minimalista.
C] A leitura exegética.
D] A leitura alegórica.
E] A leitura historicista.
133 Símbolo como linguagem da fé

Questões para reflexão


1. O símbolo é um gerador de vínculos entre os seres humanos, o qual dá
sentido à vida humana. Como, na prática, a percepção dos símbolos ajuda
em processos de solidariedade na coesão de grupos?
2. Tudo pode ser sagrado e tudo pode ser simbólico. De que forma a
experiência individual é capaz de “transformar” experiências do cotidiano
em experiências simbolicamente diferenciadas?

Atividade aplicada: prática


1. Muitos são os símbolos comuns a uma comunidade. Identifique apenas um
símbolo que seja comum em sua comunidade – religiosa ou civil – e
descreva como, do ponto de vista prático, ele ajuda na construção da coesão
interna entre os vários integrantes dessa comunidade.
134

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ritos, mitos e símbolos provocam a reflexão de que o ser humano pode ser
considerado um ser “religioso ou simbólico”. No entanto, o homo religiosus
não se resume, necessariamente, a uma ou a outra religião em particular. Essa
expressão revela, de fato, que ele é um ser de vivências, ou seja, um ser que se
apresenta no mundo como um experimentador da dimensão do sagrado
conforme a própria consciência. A religiosidade, nesse sentido, pode ser
pensada como algo inerente ao ser humano.
Assim, ao analisarmos ritos, mitos e símbolos, recuperamos uma parte
do patrimônio de sabedoria que existe em cada ser humano e que, por alguma
razão, encontrava-se esquecida. Olhar para o passado ajuda, nesse caso, a
interpretar o ser humano no presente. Nesse contexto, o fenômeno religioso
nos faz olhar para o passado e, ao mesmo tempo, ponderar o presente. Passado
e presente se apresentam como necessários e simultâneos. Ao ser humano não
é permitido viver nas brumas do passado e, muito menos, vivenciar o presente
desconectado com a tradição. Podemos afirmar, então, que o fenômeno
religioso, nesse caso, auxilia o ser humano a assumir a função de hermeneuta,
isto é, de intérprete da realidade.
Os valores presentes no ser humano desde milênios são, claramente,
também fatores de renovação de nossa visão de mundo e, sem dúvida, têm a
capacidade de dar um novo sentido à vida. Na denominada sociedade do
conhecimento, os ritos, mitos e símbolos não devem ser pensados como
acessórios descartáveis após certo tempo de uso.
135

O ser humano, longe de estar preso ao tempo e ao espaço, é o único ser


vivo capaz de “criar7' um substrato religioso e simbólico por excelência. Em sua
capacidade de conceber significado externo às coisas que são e não são, ele
também produz sentido internamente, ou seja, para si e para a coletividade na
qual se insere.
Ritos, mitos e símbolos, mais do que a simples elaboração de teorias,
precisam e devem ser vistos e refletidos com base na construção da identidade
do ser humano. E, para tanto, a totalidade das religiões ajuda a promover essa
edificação da identidade humana, sem deixar de observar suas específicas
ritualizações, mitologias e simbologias.
136

REFERÊNCIAS

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VILHENA, M. A. Ritos: expressões e propriedade. São Paulo: Paulinas, 2005.

WACH, J. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990.


140

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

BAZÁN, F. G. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.


Bazán é um famoso catedrático de filosofia e da história das religiões. Nesse
livro, o autor trata das diferentes expressões do sagrado que se manifestam em
fenômenos próprios da mentalidade arcaica e atual. Para Bazán, o mito e a
história não se apresentam como opostos. Ao contrário, são dois modos
complementares da forma como os seres humanos foram capazes de viver
finita e temporalmente a realidade do sagrado.

CROATTO, J. S. As linguagens da experiência: uma introdução à


fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010.

O livro de Croatto é leitura sine qua non para o estudante e leitor interessado.
Com estilo e profundidade, o autor consegue demonstrar que todas as culturas
e todos os povos têm uma expressão religiosa. Após definir a fenomenologia da
religião, analisa a experiência religiosa em si e, então, aborda as linguagens
próprias e interfaciais do mito, do rito e do símbolo.

ELIADE, M. O conhecimento sagrado de todas as eras. São Paulo:


Mercuryo, 1995.

Eliade é considerado um dos melhores historiadores da religião do mundo, e


muitos de seus livros foram publicados no Brasil. Nesse livro em particular, o
autor apresenta a diversidade das crenças e culturas do ser humano, bem como
os fios universais que unem a humanidade. Trata-se, antes de mais nada, de
uma antologia que reúne textos do Japão, da Mesopotâmia, da Grécia Antiga,
141

da índia, da Austrália, da Ásia, das Américas do Norte e do Sul. São textos


relativos a mitos cosmogônicos, iniciação, especialistas do sagrado, conceitos
da morte e da vida futura, além de ilações sobre o ser humano e Deus.

PADEN, W. E. Interpretando o sagrado: modo de conceber a religião. São


Paulo: Paulinas, 2001.

O autor dessa obra procura expor e analisar com clareza as diversas maneiras
como a religião foi e é entendida do ponto de vista dos diversos campos do
saber moderno. Temas como interpretação crítica da religião, perspectiva
comparada das religiões e interpretações religiosas são desenvolvidos pelo
autor.

PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Trata-se de um livro essencial para conhecer a mitologia na religião dos orixás


no Brasil, o candomblé. São 301 os mitos africanos e afro- americanos
reunidos e recontados, sendo, na forma da apresentação, a maior coleção
organizada até hoje. Um glossário acompanha o livro para ajudar na
compreensão de nomes, palavras e expressões de origem africana cujo
significado é corrente entre o povo de santo, ou parte dele, mas desconhecido
dos demais.
142

RIVIÈRE, C. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1997.

Rivière, professor renomado da famosa Sorbonne, nesse livro magistral,


apresenta as múltiplas formulações do rito para além do ambiente religioso.
Com base em uma antropologia do cotidiano, ele revela como nossos
costumes, usos e hábitos cristalizam-se em uma sequência de papéis e ações,
tanto com repercussão afetiva quanto com acentuada carga simbólica. Assim,
desde o nascimento até a morte, a vida é marcada por comportamentos
repetitivos, parcialmente padronizados, que teatralizam as relações com as
demais pessoas. Em razão disso, o autor examina, entre outros, ritos da
adolescência, ritos do esporte, ritos dos atos de comer e ritos iniciáticos de
calouros.

VILHENA, M. A. Ritos: expressões e propriedade. São Paulo: Paulinas, 2005.

O livro integra uma coleção mais ampla, denominada Temas do Ensino


Religioso, e dedica-se, especificamente, ao estudo do rito. Para alcançar seu
objetivo, Vilhena aborda o rito como ritmo e expressão da vida social; ritos
com conotação religiosa; ritos no contexto da finalidade e operatividade; ritos
conforme a espacialidade e a temporalidade; e, por fim, os ritos chamados de
ambulatórios.
143

ANEXOS

A) MITOS
1) Mitos da criação babilônico e judaico-cristão comparados
Enuma Elish (Tábua I) Gênesis 1
A criação do universo A criação do universo

“Quando no alto o céu ainda não havia sido “No princípio, Deus criou o céu e a terra.
nomeado, e, abaixo, a terra firme não havia Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas
sido mencionada com um nome, só Apsu, cobriam o abismo, e um sopro de Deus
seu progenitor, e a mãe, Tiamat, a geradora agitava a superfície das águas. Deus disse:
de todos, mesclavam juntos suas águas: 'Haja luz', e houve luz. Deus viu que a luz era
ainda não se haviam aglomerado os juncos, boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus
nem os canaviais tinham sido vistos. Quando chamou a luz 'dia' e as trevas 'noite'. Houve
os deuses ainda não haviam aparecido, nem uma tarde e uma manhã: primeiro dia.”
tinham sido chamados com um nome, nem (Bíblia de Jerusalém, Gênesis, 2002,1:1-5)
fixado nenhum destino, os deuses foram
procriados dentro deles.” (Tábua 1, linhas 1-
9)

A criação do firmamento A criação do firmamento

“Voltou atrás em direção a Tiamat que ele “Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio
havia abatido. O Senhor pôs seus pés sobre das águas e que ele separe as águas das
a parte inferior de Tiamat e com sua arma águas', e assim se fez. Deus fez o
inexorável, despedaçou- lhe o crânio. Depois firmamento, que separou as águas que
cortou as artérias de seu sangue, e deixou estão sob o firmamento das águas que estão
que fossem levadas a lugares secretos pelo acima do firmamento, e Deus chamou ao
vento do norte. Ao ver isto, seus pais se firmamento ‘céu'. Houve uma tarde e uma
alegraram jubilosos e os mesmos levaram- manhã: segundo dia. Deus disse: ‘Que as
lhe dons e presentes. Com a cabeça águas que estão sob o céu se reúnam num
repousada, o senhor contemplava o cadáver só lugar e que apareça o continente', e assim
de Tiamat. Dividiu (logo) a carne monstruosa se fez. Deus chamou ao continente ‘terra' e
para fabricar maravilhas, a dividiu em duas à massa das águas chamou ‘mares', e Deus
partes, como se fosse um peixe (destinado) viu que isso era bom.” (Bíblia de Jerusalém,
a secagem, e dispôs uma metade, com a Gênesis, 2002,1:6-10)
qual fez o céu, em forma de abóbada.
Esticou a pele, e pôs uns guardiões,
mandando-lhes que não permitissem sair
suas águas.” (Tábua 4, linhas 128-140).

(CONTINUA)
144

(CONCLUSÃO)
Enuma Elish (Tábua I) Gênesis 1
“Oh Marduk, tu és o mais importante entre “Deus disse: 'Que haja luzeiros no
os grandes deuses! Teu destino não tem firmamento do céu para separar o dia e a
igual, teu mandato é como o de Anu! Desde noite; que eles sirvam de sinais tanto para as
este dia tuas ordens serão irrevogáveis, festas quanto para os dias e os anos; que
exaltar ou rebaixar dependerá de tua mão. À sejam luzeiros no firmamento do céu para
sua palavra, segundo sua ordem, a iluminar a terra', e assim se fez. Deus fez os
Constelação desapareceu e a uma nova dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como
ordem a Constelação ficou restaurada. poder do dia e o pequeno luzeiro como
Quando os deuses, seus pais, viram a poder da noite, e as estrelas. Deus os
eficácia de sua palavra o saudaram colocou no firmamento dos céus para
alegremente: ‘Só Marduk é o rei!'.” (Tábua iluminar a terra, para governar o dia e a
4, linhas 5-8.25-28). noite, para separar a luz e as trevas, e Deus
viu que isso era bom. Houve uma tarde e
uma manhã: quarto dia.” (Bíblia de
Jerusalém, Gênesis, 2002,1:14-19).

A criação do homem A criação do homem

“Quando [Marduk] ouviu as palavras dos “Deus disse: ’Façamos o homem à nossa
deuses, seu coração o empurrou a criar imagem, como nossa semelhança, e que eles
maravilhas; e [abrindo] sua boca dirige sua dominem sobre os peixes do mar, as aves do
palavra a Ea para comunicar-lhe o plano que céu, os animais domésticos, todas as feras e
havia concebido em seu coração: 'vou juntar todos os répteis que rastejam sobre a terra'.
sangue e formar ossos; farei surgir um Deus os abençoou e lhes disse: ’Sede
protótipo humano que se chamará 'homem'! fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
Vou criar este protótipo, este homem, para submetei-a; dominai sobre os peixes do mar,
que lhe sejam impostos os serviços dos as aves do céu e todos os animais que
deuses e que eles estejam descansados'.” rastejam sobre a terra'. Deus disse: ’Eu vos
(Tábua 6, linhas 1-8). “Ataram-no (Kingu) e o dou todas as ervas que dão semente, que
mantiveram coagido diante de Ea. Infligiram- estão sobre toda a superfície da terra e
lhe seu castigo: cortaram-lhe o sangue. E todas as árvores que dão frutos que dão
com seu sangue (Ea) formou a humanidade. semente: isso será vosso alimento...'.”
Impôs sobre ela o serviço dos deuses, (Bíblia de Jerusalém, Gênesis, 2002,1: 26-29)
liberando a estes.” (Tábua 6, linhas 31- 34)
2) Mitos dos povos originários do Brasil
[Um mito] indígena nheengatu, da Amazônia, assim registra a origem do mundo
No princípio, contam, havia só água, céu.
Tudo era vazio, tudo noite grande.
Um dia, contam, Tupana desceu de cima no meio de vento grande,
quando já queria encostar na água saiu do fundo uma terra pequena,
pisou nela.
145

Nesse momento Sol apareceu no tronco do céu, Tupana olhou para ele.
Quando Sol chegou no meio do céu seu calor rachou a pele de Tupana, a
pele de Tupana começou logo a escorregar pelas pernas dele abaixo.
Quando Sol ia desaparecer para o outro lado do céu a pele de Tupana
caiu do corpo dele, estendeu-se por cima da água para já ficar terra
grande.

No outro Sol [no dia seguinte] já havia terra, ainda não havia gente.

Quando Sol chegou no meio do céu Tupana pegou em uma mão cheia de
terra, amassou-a bem, depois fez uma figura de gente, soprou-lhe no
nariz, deixou no chão. Essa figura de gente começou a engatinhar, não
comia, não chorava, rolava à toa pelo chão. Ela foi crescendo, ficou
grande como Tupana, ainda não sabia falar.

Tupana, ao vê-lo já grande, soprou fumaça dentro da boca dele, então


começou já querendo falar. No outro dia Tupana soprou também na
boca dele, então, contam, ele falou. Ele falou assim:

Como tudo é bonito para mim! Aqui está água com que hei de esfriar
minha sede. Ali está fogo do céu com que hei de aquecer meu corpo
quando ele estiver frio. Eu hei de brincar com água, hei de correr por
cima da terra; como o fogo do céu está no alto, hei de falar com ele aqui
de baixo.

Tupana, contam, estava junto dele, ele não viu Tupana. (Martins, 1994,
p. 5)

Mito Tupi Guarani de Criação do Mundo1


No começo de tudo, quando não havia tempo ainda, havia Yamandu.
Yamandu é “o silêncio que tudo ilumina”, é o ancestral de todos os
ancestrais. Num determinado dia, dentro da própria luminosidade,
Yamandu, que é mais que qualquer sol, Yamandu quis conhecer a
dimensão de si mesmo. Foi quando ele se encolheu, dentro do Grande
Início, se recolheu dentro de si mesmo e viu que
_______________
1 Contado por Kaká Werá Jecupé, transcrito por Oficina Escola de Arte Granada (2020).
146

era vasto. Yamandu quis conhecer toda a dimensão de si, então se


transformou numa coruja. Não essa coruja que nós vemos agora, mas a
coruja primordial. E como coruja Yamandu se viu dentro da Grande
Noite e viu que era vasto. Yamandu queria conhecer a sua altura, o seu
comprimento, então se transformou num colibri: Mainu, na língua
guarani. E como Mainu, o colibri, Yamandu conseguiu voar velozmente
em todas as dimensões de si: voou acima, abaixo e ao centro. E viu que
era vasto. Então Yamandu, o silêncio sagrado, luminoso, quis conhecer
a totalidade de si, foi quando se recolheu dentro de si mesmo e se
transformou num gavião real, Macauã. E com Macauã ele voou na mais
longe das alturas e viu a totalidade de si. Então ele pensou: “Precisamos
criar mundos”.

Foi então que ele cantou e do seu canto as estrelas começaram a nascer.
E ele cantou, cantou e cantou, até quando num determinado momento
ele disse:

– Os mundos todos estão criados.

Foi então que ele se recolheu dentro de si mesmo e se transformou num


Grande Sol. E do ventre desse Grande Sol, Coaracy, é que nasceu Tupi.
Tupi, nascido do próprio coração de Yamandu, começou a cantar
ajudando Yamandu a criar os mundos.

Mas um dia Tupi sonhou com a nossa Mie Terra. Foi quando ele criou
do seu próprio pensamento um petenguá. Petenguá é um cachimbo
sagrado. E através do petenguá ele soprou o espírito da futura Mie
Terra. E o espírito da futura Mie Terra ficou viajando pelo espaço, se
alongando, se transformou numa serpente luminosa e prateada. Até o
momento em que ela escolheu um lugar e disse:

- É aqui.

E naquele lugar ela se enrodilhou e adormeceu. Ela se transformou


numa tartaruga, um imenso jabuti.
147

Algum tempo depois Tupi foi seguindo o rastro do espírito da Terra que
havia sido deixado pelo espaço, no grande céu, até chegar ao lugar onde
havia escolhido para adormecer e sonhar. Tupi olhou e no casco da
grande tartaruga desenhou as futuras montanhas, os futuros vales, os
futuros rios, desenhou as futuras cachoeiras. E pensou:

“É preciso pôr alguém ali para continuar a Criação. Eu tenho muitas


tarefas para fazer”.

Então Tupã, do seu próprio coração, criou o nosso primeiro ancestral,


handerovussu, o primeiro ser humano. Só que naquele tempo ele era
alado. Nós o chamamos também de Avadiquaquá, “o primeiro
adornado”. E quando Tupi disse: “Vai, vai continuar a criação lá na
Terra”, nosso primeiro ancestral não sabia como andar na Terra, não
sabia habitar na Terra. Foi então que ele retornou a Tupi e disse:

– Mas eu não sei viver na terra.

E Tupã falou:

– Procure as quatro direções. Em cada direção você encontrará um


“nhendejara”, um professor, um guia

E Tupã foi embora.

Nhanderovussu, nosso primeiro ancestral, então voltou à Terra e foi em


direção ao Sul.

E no Sul ele viu uma palmeira azul, Endovidju. Nhanderovussu, nosso


primeiro ancestral, foi até a palmeira azul e disse:

– Ei, você! Você pode me ensinar alguma coisa sobre viver aqui na
Terra?

Endovi disse:

– É claro que eu posso, entra em mim e você vai aprender a viver na


Terra.
148

Então Nhanderovussu entrou na palmeira e se tornou a própria


palmeira.

Foi quando sentiu pela primeira vez, através das raízes, o que era estar
na Terra. E viu que era muito bom. E foi ficando, foi ficando, foi
ficando...

Até que um dia Endovidju disse:

– Você já aprendeu muito comigo. Pode ir embora.

– Nhanderovussu, nosso primeiro ancestral, saiu da palmeira e foi em


direção ao Norte. E no Norte encontrou uma rocha. Ele olhou para
rocha e disse:

– Você pode me ensinar alguma coisa sobre viver aqui na Terra?

A rocha disse:

– Claro. Entra em mim que você vai aprender.

Então Nhanderovussu entrou na rocha e se tornou a própria rocha. E


ficou meditando, olhando os poentes e os nascentes. Muito, muito,
muito tempo depois a rocha disse:

– Você já aprendeu comigo o que tinha que aprender. Pode continuar a


sua jornada. Sai.

Nhanderovussu saiu. E foi em direção ao oeste. Foi quando ele


encontrou a primeira onça ancestral, Yauaretê. Ele disse pra ela:

– Você pode me ensinar alguma coisa sobre viver aqui na Terra?

Ela disse:

– Claro. Entra em mim.

Foi quando pela primeira vez Nhanderovussu sentiu o cheiro da Terra,


olhou a Terra com os olhos de onça, pisou na Terra com quatro patas.
Andou, depois correu. E viu que era muito bom estar aqui na Terra.
Então Yauaretê, a onça ancestral, disse:
149

– Pronto, você já aprendeu comigo, agora sai.

E deixou Nhanderovussu no pé de uma montanha, ao leste.


Nhanderovussu olhou para o alto da montanha e viu que ali tinha uma
gruta, bem no alto, e dessa gruta saía uma luz que lhe chamou a
atenção. E ele subiu...Quando chegou no interior da gruta ele viu que
essa luz saía de uma serpente prateada, que estava sentada, enrolada no
chio, e o mirava silenciosamente. Nhanderovussu perguntou:

– Quem é você?

Ela disse:

– Eu sou o Espírito da Terra.

– Ah! Então você pode me ensinar alguma coisa sobre viver aqui.

– Mas é claro que eu posso.

– Então me mostre.

Então o Espírito da Terra foi recolhendo do próprio chão a poeira e o


barro, e foi formando um assento: os dois pés ... foi formando um
tronco, um corpo, uma cabeça, todo de barro. Colocou dois cristais no
alto da cabeça, umedeceu com as gotas que caíam do alto da caverna e
disse para Nhanderovussu:

– Entra aqui que você vai aprender sobre a Terra.

Nhanderovussu entrou naquele corpo de barro, naquele assento, e foi a


primeira vez que ele conseguiu andar sobre dois pés. Ele saiu em
direção à entrada da gruta porque o sol brilhava lá fora e ele viu pela
primeira vez, com os olhos de cristal, todo o horizonte, e disse:

– Isso é muito bonito. Isso é muito bonito.

Foi então que Nhanderovussu percebeu que a Terra era maravilhosa e


seu coração entoou um canto.
150

A mãe Terra, que nós chamamos de Nhandessi, disse para ele:

– Eu preciso te falar algumas coisas. Você tem o poder que vem da


própria Terra, a qual você está portando. Você também tem o poder das
águas, você tem o poder das pedras e tem o poder das plantas. Presta
atenção nisso. Esse é um presente que eu te dou, quando eu teci esse
assento que você porta. Agora você também tem um poder maior, você
tem o poder de Tupã. Preste atenção em cada palavra. Tudo que sair da
sua boca é um espírito vivo.

Nhanderovussu agradeceu os ensinamentos da Mãe Terra e ficou


pensando em tudo aquilo enquanto caminhava olhando toda a criação
que Tupã havia deixado: as montanhas, o céu, o chão. Então de repente
ele olhou para o céu azul e disse:

– Arara!

E da palavra “arara” nasceu a primeira arara, o primeiro pássaro azul.


Ele ficou espantado e disse.

– Nossa! Araraí!

E nasceu uma arara pequena.

– Arararuna!

E nasceu a arara vermelha.

E começou a falar coisas que lhe vinham na cabeça: -Tucano! Mainu!


Mainuí! Araponga!

Da sua boca nasceram muitos pássaros. E os pássaros nasciam e


voavam. E ele continuou andando e experimentando aquela sensação.
Ele olhou então para o rio e disse:

– Pirarucu!

E nasceu o primeiro peixe.

– Tambaqui!
151

E outro peixe nascia.

E foi falando muitos nomes que viraram peixes. Muitos e muitos nomes.
Ele olhou para o chão e falou:

– Djacaré!

E ele olhou para o lado e disse:

– Panambi!

Nasceu a primeira borboleta.

E ele foi cantando nomes:

– Paca! Tatu! Cotia ...

E ele foi cantando, cantando, cantando nomes. Até o dia que ele olhou
para os e viu que estavam todos os seres criados: os seres das águas, os
seres do céu, os seres da terra.

Ele voltou até aquela gruta e encontrou novamente com o espírito da


Terra e disse:

– Nanhandessi – que é “a Sagrada Mãe” – eu vim te devolver o corpo


que você me emprestou, porque eu aprendi a viver na Terra e porque eu
aprendi a criar na Terra.

A mãe Terra disse:

– Não precisa me devolver, fica contigo. É seu para sempre.

Nhanderovussu falou:

– Não! Mas eu devolvi para a palmeira quando a palmeira me ensinou.


Eu devolvi para a rocha quando a rocha me ensinou. Eu devolvi para a
onça quando a onça me ensinou.

Nhandessi, a nossa mãe Terra, falou:

– Não, não precisa me devolver.


152

Precisa, não precisa. Até que a mãe Terra disse:

Olha, faz o seguinte: anda mais um pouco pelo mundo, vive mais um
pouco a sua experiência nesse chão, depois quando você realmente
cansar você não precisa mais vir até mim; abre um espaço em qualquer
lugar e entregue esse manto que eu te dei.

Então assim foi feito. Nhanderovussu desceu e continuou a cantar.


Cantou durante muito tempo, cantou muitas coisas. Muitas vidas
nasceram. E as vidas que foram nascendo foram fazendo amizade umas
com as outras e também com Nhanderovussu. Até um dia em que ele
disse:

– Agora eu vou.

Abriu um espaço numa clareira na floresta, entregou o manto que a mãe


Terra havia lhe dado nesse espaço e ficou somente o seu espírito. E voou
e se transformou no Sol. Esse Sol que nós vemos hoje é Nhanderovussu,
nosso primeiro ancestral

B) Ritos
1) Rituais fúnebres no budismo

No centro dos rituais fúnebre [sic] budistas está a crença de que


enquanto o corpo estiver presente ainda é possível ganhar méritos que
beneficiem o falecido, ajudando-o a chegar ao Nirvana, ou pelo menos a
reencarnar numa condição mais favorável.

Por essa razão, entre a morte e a cremação [...], há uma série de rituais,
como a recitação de textos sagrados e a doação de esmolas aos monges
que vêm presidir ás cerimônias, que são indispensáveis.

[...]. (SNPC, 2010, s.p.)


153

2) Rito australiano para fazer chover


Abre-se uma veia do braço de um dos homens e deixa-se o sangue gotejar
dentro de um pedaço de casca seca de árvore até formar uma pequena poça.
Junta-se aí uma quantidade de gesso bem fino e agita-se até a mistura adquirir
consistência de uma pasta grossa. Acrescentam-se alguns fios de barba do
mesmo homem e a mistura é então posta entre dois pedaços de casca de árvore
e isto é colocado sob a superfície da água em algum rio ou lagoa, preso ao
fundo por meio de estacas pontiagudas. Quando a mistura for totalmente
dissolvida, dizem os aborígenes que se formará uma grande nuvem, trazendo
chuva. Desde o momento inicial desta cerimônia até a chegada da chuva, um
tabu exige que os homens afastem-se de suas esposas, caso contrário o encanto
será desfeito. Dizem os velhos que, se essa proibição fosse devidamente
respeitada, a cerimônia sempre traria chuva. Durante uma estiagem, quando a
chuva é muito necessária, a tribo inteira se reúne e executa essa cerimônia.
(Eliade, 2005, p. 139)

3) Rito de iniciação tribal australiana


A cerimônia de iniciação australiana compreende as seguintes fases: a
preparação do terreno sagrado, onde os homens ficarão isolados
durante o festival; a separação dos noviços de suas mães e, em geral, de
todas as mulheres; a segregação desses noviços no sertão australiano ou
num arraial isolado especial, onde eles receberão ensinamentos das
tradições religiosas da tribo; e certas operações executadas nos noviços,
geralmente circuncisão, extração de um dente, mas às vezes deixar uma
cicatriz no indivíduo ou arrancar-lhe os cabelos. Durante todo o período
da iniciação os noviços devem comportar-se de maneira especial,
submeter-se a uma série de provas e ficar sujeitos a vários tabus
dietéticos e proibições. Cada elemento deste complexo cenário de
iniciação tem um significado religioso. (Eliade, 2005, p. 161)
154

4) Ritos de esquimós
Os esquimós dedicam-se à caça e à pesca. O ambiente ártico em que
vivem lhes fornece necessariamente os bens essenciais à vida: comida,
vestuário, combustível. São obrigados a adaptar seu estilo de vida ao
modelo determinado pelo seu meio ambiente. As mudanças de estação e
a escolha de regiões para a caça obrigam-nos a contínua migrações. Seu
interesse vital em animais, tão essencial para a sua existência, reflete-se
na mitologia, no culto, nas proibições, ritos e organização.
Particularmente interessante é oculto da deusa do mar (Sedna), a
guardiã dos animais marinhos, que é muito popular entre os esquimós
do centro. Os numerosos espíritos, com que os esquimós, com sua fértil
imaginação povoam seu meio ambiente, devem ser constantemente
aplacados, a fim de garantir sua cooperação na consecução do
necessário suprimento de animais de caça. Os nativos acreditam que só
se os adequados ritos propiciatórios forem observados é que as almas
dos animais por eles mortos não perecerão, mas retornarão à terra em
novos corpos. Amuletos eficazes e fórmulas são avidamente procurados.
Um sistema de proibições muito rígido controla as atividades destes
povos – como fixação em determinada localidade e alimentos. A caça
satisfaz praticamente a todas as necessidades materiais dos esquimós,
consequentemente, em sua maioria, as interdições visam aos espíritos
ou ás divindades protetoras dos animais. Espera-se que o “angelok”, o
sacerdote esquimó, profeta ou feiticeiro, que se comunica com os
espíritos em sessões especiais, dê boa sorte e êxito ao caçador. Se o
“angelok” for tão infeliz a ponto de faltar com seu dever religioso, ele é
então punido de maneira apropriada. (Wach, 1990, p. 268)
155

sreewing/Shutterstock
Foi fundamental para a difusão do cristianismo. A palavra peixe, do
grego Ichthys, representa o acrônimo lesous Christos, Theou Yios Soter, que
156
157
158
159

RESPOSTAS

Capítulo 1 Capítulo 4
1. a 1. a
2. b 2. b
3. c 3. c
4. d 4. d
5. e 5. e

Capítulo 2 Capítulo 5
1. a 1. a
2. b 2. b
3. c 3. c
4. d 4. d
5. e 5. e

Capítulo 3 Capítulo 6
1. a 1. a
2. a 2. b
3. c 3. c
4. d 4. d
5. e 5. e
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SOBRE OS AUTORES

Luiz Alexandre Solano Rossi tem pós-doutorado em História Antiga pela


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller
Theological Seminary, na Califórnia. É doutor em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e mestre em Teologia pelo
Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos (Isedet), em Buenos
Aires. Autor de mais de 90 livros publicados no Brasil e no exterior, é professor
no Programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR) e no Centro Universitário Internacional
(Uninter).

Ildo Perondi é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestre em Teologia Bíblica pela
Universidade Urbaniana de Roma. É professor no Programa de Mestrado e
Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-
PR) e autor de inúmeros livros e artigos.
161

Os ritos, mitos e símbolos são formas de


Linguagem Que as tradições religiosas utilizam
para se comunicar com seus seguidores.
Neste livro, analisaremos a percepção
de como cada um desses elementos é
importante para a compreensão do ser
humano e da sociedade em que vivemos –
desde as antigas até as atuais. Nesse sentido,
estudar ritos, mitos e símbolos vai além de
um mergulho em tempos imemoriais com
intuito de conhecer o passado.

Compreender os mitos é também entender


maneiras distintas de conhecer e apreender
o mundo e a existência.

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