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Er ag. ee Pe ee Gachimbo = aBh ah Chamava-se Oduvaldo, trabalhava na Bolsa, parece que de operador de pregiio; de qualquer forma, um daqueles rapazes vestidos de colete de cor viva que ficam no salao gritando e ges- ticulando como doidos. Era sério ¢ aplicado e morava em Santo Cristo, exatamente na rua Vidal de Negreiros, o que era motivo de brincadeiras maldosas, sem graga repetitivas dos compa- nheiros de trabalho por ser ele negro. Mas Oduvaldo nao ligava; se ligava, esforgava-se por mostrar que nao — € convencia. Nao se pode dizer que os chefes de Oduvaldo na corretora estivessem tranquilos com o trabalho dele, Contentes estavam, mas tranquilos... Se ele nao fosse negro, quem sabe a imagem da corretora seria melhor, ¢ consequentemente também 0 volu- mne de negécios? Oduvaldo trabalhava mal, fazia traficdncias, Berava reclamagoes? Isso nao. Os clientes confiavam nele e 0 ¢logiavam em conversas por telefone ¢ por memorandos. Entio © qué? Pois 6, o qué? var is que Oduvaldo nao farejava 0 clima seria enone igéncia e a sensibilidade dele. Ele bem que perce 27 Digitalizado com CamScanner comportava-se como operidor compelente ¢ nh em preacupagie de se destaeay Nalin i thy, os olhares convergiam pari ele, esperando a meni ih ul Hy Por isso também ele linha o maior cnidadn jo yp ics spalhafatosas nem clegantes dems. A iyie ti Nag, da Marinha, aehava que ele devin ina Hp " es com a idade, em ver de we APHESEH AT eM yg Mis mas naturalidade, 8 de roupas ¢ pension! ridas, condizent parte como doutor advogado. — Vio acabar chamando voce de preto pernisticy — 4, cla um dia, quando tomavam 0 café da manha, We soniy cup tinuou passando mantelga numa torrada, para depois pasyay yp leia por cima. Parecia nfio ter dado importincia ib observayin 4g mie. Preparada a torrada meticulosamentle, como era 4 joy dele, sem lambuzar os dedos, Oduvaldo falou: — D. Gercina, parece que 4 senhora pensa que roupa de negro tem que ser diferente de roupa de branco, Ii me vestinds discretamente de cinza ou azul, sapato preto engraxado nvas ni lustroso para ndio chamar atengilo, corro 0 risco de ser prety yet néstico. Se me vestisse como esses jovens brancos € nepIos tan bém, calga jeans apertadinha caindo sobre aqueles horas ténis importados, que mais parecem sapalas de robb, eamivda de universidade americana feita em Vilar dos Teles, ¢ respert” bonezinho, seria fichado como preto exibido, — Também nao ¢ assim, meu filho — disse a mae querel do led justificar, — Nem tanto ao mar, nem tanto A terra, 600? dizia o sargento seu pai que Deus o tenha, _— Que Deus o tenha, Ii quanto A comida? lst coms eet omnis braneo, como se vé alé no cinema ole 8, cereais, ou sfarial, como dizen amet canos; torrada, geleia o A ida H , ia ou mel, Ou pve Ker eI ony ; Qual deve ser entiio a cor — Ah, Valdo, ew fi Passa de alhos a buga a ilo Numa coisa, vooe ven CoH ult 08, © Rs : 8, como dizia o sargento seu pale 272 | vn J Digitalizado com CamScanner _— Que Deus 0 tenha. 80, estou puxando, — Puxando 0 qué, meu? “— Maneira de dizer. Puxando 0 corpo para o trabalho, coisa de americano, Negros C brancos. —Ah, entendi, Americano. iio, até de noite, Mas comporte-se, heim, d. Gercina. —Ent Nao faca da que cu nao fiz — Ah, vai, vai, negrinho perndstico. Oduvaldo era fumante. Fumava Hollywood desde meados do curso no colégio militar, ou naval, mas nunca chegara a quei- mar um maco por dia, Até pensara em parar, mas sempre foi adiando a decisao. Afinal fumava pouco € 0 cigarro o ajudava a pensar nos momentos de tensiio, que so muitos na vida de um operador de pregao. Uma tarde, depois de um pregio excepcio- nalmente nervoso, ele aceitou convite de uns companheiros pa- ra tomarem um drinque relaxante num bar da praga Quinze. Nao estava muito a fim, mas se recusasse — olha af o negrinho pernéstico pensando que ¢ 0 tal. Aceitou, ¢ telefonou para a mae avisando que ia se atrasar. O bar era frequentado por grandes investidores, desses que ganham ou perdem fortunas num pregiio. A maioria fumando, uns fumavam cigarros importados, outros charutos idem, ¢ um fumava cachimbo, Esse foi reconhecido ¢ apontado como 0 in- crivel Osmar das Quantas, grande operador das bolsas do Rio € Sio Paulo, fumava cachimbo com uma naturalidade que dizem Ser caracterfstica de lorde inglés, exceto os antitabagistas. E 0 fumo! Que aromal Que fumaga tio level fe, ae foi que dias depois, ali m taieaig, a lo comprou um cachimbo ing m o do investidor, e um pacotin esmo na praga Quin- és de raiz de torga, ho de fume também 273 Digitalizado com CamScanner inglés recomendado pelo eel mesmo dia en, ay pois do jantar, ele iniciou 0 aprend izado Por conta Pr6prig c vagar, apalpando. O segundo passo ele ja sabia de absent Osmar. Por exemplo, quando Osmar voltou a encher 9 cae bo depois de manté-lo apagado e emborcado no cinzeiry mn gum tempo, ¢ apalpou os bolsos 4 procura dos f6sforo: a na mesa ofereceu-lhe um isqueiro. Ele recusou, dis chimbo se acende com fésforo, e s6 depois que a p se queimou e a chama passou para a madeira; a cha leo afeta o gosto do fumo. Da primeira vez Oduvaldo nao conseguiu tirar fumaga do cachimbo por mais que chupasse, até descobrir 0 motivo: havia comprimido demais 0 fumo no fornilho, dificultando a passa. gem do ar. Tirou um pouco do fumo, afofou o restante com a ponta de uma tesourinha, acendeu. Agora sim, dé boa fumaga, Mas ainda nao podia se considerar fumante de cachimbo por- que o danado teimava em se apagar. O aprendiz gastou quase metade de uma caixa de f6sforos para fumar uma carga até 0 fim. E ficou com a lingua ardendo, apesar de o fumo ser “sua- ve”, segundo dizia o fabricante, Messts Ogden’s de Liverpool. Achando que por enquanto chegava, deixou a segunda ligdo pa- Ta a noite seguinte. Mas uma decisio ele j4 havia tomado: mes mo depois que amansasse 0 cachimbo, que dominasse a técnica, jamais fumaria em publico. Cachimbo s6 em casa. Ao fim de um més se tanto, se ele ainda nao fumava como © grande Osmar, chegara tio perto que ninguém notaria qual quer diferenga. Aprendeu a limpar 0 cachimbo, comprou limp dores ¢ um canivetinho de lamina serrilhada para raspat a crosta de carvao que se forma no fornilho. E aprendeu também we um cachimbo s6 nao basta; € preciso varios, para se fazer iol Uma noite, quando ele e a mae viam televisio, ele expe! 4 Bola ea fumo novo indicado por outro cachimbeir? fe disse em tom casual: 8, alge SE que oq. arte quimicg ma do pets. 274 Digitalizado com CamScanner 4 __ bom pitar isso, Valdo? _— Eu gosto. Incomoda a senhora? _— Nao, nao. E muito cheiroso. Cheira aimburang — kum fumo novo que o Davite indicou, Cost — Sabe, quando vocé comegou com essa novidade d r cachimbo, tive receio que vocé fizesse bobagem, “nm — Bobagem? — Ih. Safsse por af pitando cachimbo. Ja pensou? — Tanto pensei que tomei a decisao de s6 furmar em casa. — Ainda bem — disse a mie aliviada. mat E ficou assim. Oduvaldo fumando seus cachimbos depois do jantar e durante o dia nos fins de semana. J4 tinha quatro, entre eles um Dunhill e um francés de tubo curvo em forma de interrogaciio se fosse posto de pé com o fornilho para cima. Comprara também um umedecedor de latao patinado com for- P’ Pi pa um mineral irradiador de umi- to do furno. Era jé um cachim- ado no sofa com 0 cachimbo sem que a saliva escorresse inda nao tinha coragem de os brancos e os negros que 10 interno de cortiga, e na tam) dade para impedir 0 ressecamen bista consumado. Podia ler recost na boca sem que ele se apagasse ¢ para fazer choror6 no fundo. Mas a cachimbar em publico, como fazem nao se incomodam de parecer pernésti Mas uma decisao de comportame que a pessoa d4 a si mesma. E quem dé uma 0 i i com 64a ou suspendé-la temporariamente. E Oduvaldo ee imprudéncia de suspender por uma hora ou duas @ 4¢ “ motivo, reconheg@se- nao fumar cachimbo em publico. Tinha oP anes Depois de um almogo de sabado, de maooots ae ado com um que d. Gercina preparava muito bem, acompan@ @ um pote molho de horteld com malagueta, Oduvaldo deitows (cos. nto 6 como uma ordem dem pode revo- teu a 275 — Digitalizado com CamScanner co para ajudar a digestao, como era seu hi Abito no ; i Quando acordou, o radinho que tinha ficado ag i de Semang seiro tocava uma miisica que ele achava linda, ¢ im do traves, HC até a cantar, uma de Gilberto Gil, “Se eu quiser fala: “ " x TC Ouviu-a até o fim, cantando também, a Cus", Levantou-se, tomou um café que a mie es ora de dar u badas. Enquanto enchia o cachimbo chegou que dava para um patiozinho florido Por artes de d. Gere Uma tarde linda lé fora, 0 sol dando uma festa de claidade st e alegria nas drvores, nas paredes, no céu, Oduvaldo Mien convidado. Por que nao fumar o cachimbo na praca ali to pee to, frequentada por gente conhecida, que os tratava bem, a clee a mae? Nao estaria ele sendo radical demais na decisio de nig fumar em ptiblico? Estou com vontade vou, pensou. Vestiu uma calga jeans, que s6 usava nos fins de semana, calgou uma sandalia de calcanhar fechado, propria para sair no verao, pds uma camiseta amarela de meia manga sem nenhum desenho nem inscrigao. Para nao ficar sentado num banco da praga s6 fumando e olhando o tempo, pegou o ntimero recém- -chegado da revista Exame, que assinava. — Mie! — Estou aqui, filho. No tanque. Quer alguma coisa? — Nao, mie. Vou dar uma volta na praga. — V4, filho. E bom pra espantar o mofo. Ah, se lembrar, passa no japonés e traz massa de tomate. . Valdo despejou o fumo do cachimbo no pacotinho, jé que nao ia acendé-lo por enquanto, e saiu. No caminho encontrou varias pessoas brancas e negras ane o cumprimentaram cordialmente, algumas até com deferéne i" outras, principalmente mulheres, perguntaram por d. Geren im qu Um senhor muito sorridente, negro, dono de um botequ ‘qentou no ni mas boas Cachimn. a janela da Sala cro-ondas, e achou que estava na h 276 | Digitalizado com CamScanner rr na esquina da rua da América com a praca, perguntou se afi- al ele tinha satdo da toca. "_ Seria um pecado se nao safsse numa tarde linda como esta, heim, seu Frutuoso? _ Falou e disse, menino. Como vai d. Gercina? Qualquer gia vou ld de supetio filar aquele mocot6. _ Devia ter ido hoje, seu Frutuoso. _— Nao perde por esperar. Levo as cervejas. _— Serao bem recebidas. — Falou e disse. Gente boa. Por isso gosto do Santo Cristo. Mudar daqui s6 para— no. Mudar de casa, pode ser. De bairro nunca. A praca estava quase deserta, a nao ser por umas trés ou quatro criangas que tentavam andar de patins no pavimento es- buracado. Os homens deviam estar em casa ainda jiboiando o almogo ou j4 nos botequins, biritando ¢ falando mal dos patrGes ¢ dos politicos. Oduvaldo sentou-se num banco & sombra preca- ria de um coqueiro-anao. Encheu 0 cachimbo, acendeu-o € abriu a revista. Estava ainda folheando-a para avaliar antes de decidir que matéria ler primeiro, quando apareceram trés jovens negros, que ficaram andando para Id e para c4 na frente dele. Oduvaldo no- tou-os, mas nao prestou atengio, estava mesmo interessado na evista. $6 os olhou focalizando quando dois se sentaram um de cada lado dele no banco, € 0 terceiro ficou em pé na frente. To- dos usavam jeans ¢ tenis sem amarrar e camisetas de meia man- % com figuras de cantores negros que Oduvaldo nao identifi- £04. Os que estavam dos lados dele no banco tinham eabelo pr o outro usava boné do Flamengo. Pensando que * ter ee conversar, ele fechou a revista para nao pal lenhoso ou posudo. 277 ee —t Digitalizado com CamScanner oo" Os rapazes nada diziam, s6 olhavam, Agora co dor. E essa agora. Que sera que cles querem? Odin ao, em levantar-se e deixd-los, mas achou que serig re Pengo, fraco ou de culpado, fosse 14 do que. Finalmente wen de el ao lado inclinou-se para olhé-lo de frente ¢ — Estéo vendo, irmaos? O broder af se trata, pleibéi, cachimbinho no bico, fuminho cheiroso, —E. Nem parece negro. — Vai ver nao é mesmo. E pintado — disse 9 terceito, — Primeiro vamos admirar 0 cachimbinho, Deve ie. trangeiro — falou o primeiro, e puxou o cachimbo da Oduvaldo. — Espere af, seu. Que negécio é esse? — reclamou Odu- valdo, levantando-se ¢ tentando recuperar o cachimbo, 0 queo outro evitou com um movimento de ombro. 98 disse pi Sandalinha de Pintade lorde, boca de — Espere af vocé. Vocé me chamou de seu. Seu o qué? — Isso mesmo, Zezio. Pede explicagdo ao mocinho bem- -vestido. — Maneira de dizer — Oduvaldo tentou amenizar. — Vamos deixar isso pra 14. Por enquanto — disse o outro rastafari, — Xeu ver 0 cachimbo dele. Parece coisa fina. — Fe gou o cachimbo que o outro lhe passou, e examinou-o com entendido. — Hum. Nao falei? Coisa lorde, broder. Serf res* tente? — pegou o cachimbo pelo tubo, bateu-o com ar encosto do banco. O tubo quebrou rente a0 encaixe wat a nilho, que voou longe. — Nao é resistente — disse, ¢ 96% 0 tubo. | inho. — Agora o nosso chapa af ficou sem cachimbo. Fadia! Serd que vai chorar? . — Vai nao, ara. Perdeu o cachimbo mas ain - — disse um rastafiri, e piscou para os outros. Com' da tem fume i 278 Digitalizado com CamScanner a censaiado, 0S trés caminharam para Oduvaldo, © agatraray sentaram 2 forga no banco, am eo Nessa altura Oduvaldo, que nio era de briga drontado ¢ suava forte. Olhou em volta. As cri saparecido. Um mendigo esmolambado catava coisas no ¢ pontas de cigarro talvez, sem tomar Conhecimento dos rapazes, Um senhor gordo, de calgao e ¢. west ‘amiseta sem Mangas, passou a distancia com um bassé pela coleira. Um vendedor de algodio- -doce passou na beira da praga com a Sua carga colorida, ¢ nao vendo criangas nao parou. Oduvaldo estava sozinho. A tarde op- tara pela neutralidade. Parecia uma conversa de amigos, Oduvaldo sentado entre os dois rastas, cada um com a mao num ombro dele, o de boné em pé na frente. 4, Cstava ame. n¢as haviam de. — O fumo — disse o de boné. — Vamo vé se é bio mesmo ou se é mata-rato. Como autémato, Oduvaldo tirou com dificuldade de um bolso traseiro da calga o pacote de fumo, que um rasta pegou com safada delicadeza. — Hum, coisa fina, gente. Olhe s6, — Leu a marca. — Plaieres Navi Cut Mild. O nosso chapa s6 consome coisa boa. O pacotinho passou de mao em mio, cada um elogiando debochadamente. — Se ele nao tem mais cachimbo, pra que vai querer fumo? — disse um. . —Pois é. Nao precisa mais, Também ¢ pecado jogar no lixo um fumo tao cheiroso — falou outro, cheirando novamente ° fam e se fingindo de inebriado. — Alguém tem agua idea? — Xeu vé, xeu vé. Peraf — disse o de boné. — Acho qui tenho. Minha v6 mascava fumo. 4 em Carangola. —Aminha também — retrucou outro. — Liem 279 —— Digitalizado com CamScanner ~ Entio? Ele pode mascar Pra gente ve, fr4, é uma vovozinha, Assim a gente mata a saudade a (Coon, Com as pontas de duas facas, uma de cate las, Oduvaldo foi obrigado nao s6 a mascar inn alo das Cite, parte do fumo restante. Quando viram que cle imide comegava a vomitar, guardaram as facas ¢ safram te rindo. Oduvaldo arrastou-se como péde para casa, fiemdge do instante para vomitar e ouvir censuras de pessoas queotn, vam por bébado, Quando chegou em casa vomitou antes deen. trar para nio assustar a mae; mas logo que entrou nao deu cont de alcangar o banheiro e vomitou na sala, aos olhos da mie que descansava na cadeira de balango. — Com efeito, Valdo! Nunca esperei ver isso de vocé. Ele jogou-se no sofa sem nem tirar as sandalias, e chorou como crianga. A mae foi aos poucos perdendo a zanga, ¢ logo estava ajoelhada ao lado do sofa acariciando e consolando o f- Iho, mas pensando ainda que se tratava de bebedeira. De repen- te lembrou-se que no quintal tinha Josna. Pegou umas folhas ¢ fez um ché forte. — Bebe tudo que faz bem. Ele bebeu obedientemente a xicara toda, mas fazendo cae tas. Quando o choro passou € as Ansias também, respirou fundo e contou 0 que havia acontecido. A mie escutou tudo calada, a itores, Ue er alguma coisa, mesmo contra os malfeitores, 4° Nao é motivo pata choro. receava pudesse agravar o abatimento do filho. Quando acabou de contar, Valdo também ficou ‘ mie acariciando-o como se ele ainda fosse pequeno- te ele falou: m = , cat — Eram todos negros, mae. ‘Todos negros. Por que fize! isso comigo? A mie demorou a responder. Quando falou, que nao tinha resposta. foi para dizet 280 — Digitalizado com CamScanner

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