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‘ql ‘ OT Ns) f wi . 7 ee 4 A acumulagao via espoliacgao Ras Luxemburgo alega que a acumulacao do capital apresenta um duplo aspecto: Um deles concerne ao mercado de bens e ao lugar em que é produzida a mais-valia — a fabrica, a mina, a propriedade agricola. Vista desta ética, a acumulagao é um_processo-econdmico puro, tendo-como fase mais importante uma transa¢ao entre o capitalista e o trabalhador assalaria- do... Aqui, a0 menos formalmente, a paz, a propriedade e a igualdade prevalecem, e foi necessdria a aguda dialética da andlise cientifica para revelar que o direito de propriedade se transforma, no curso daacumu- lagao, em apropriagao da propriedade alheia, que a troca de mercadorias se-torna exploragao e a igualdade vem a ser regime de classe, O outro aspecto da acumulacdo do capital se refere as relacGes entre o capitalis- mo e modos de producao nao-capitalistas, que comecam a surgir no cenério internacional. Seus métodos predominantes sao a politica colo- nial, um sistema internacional de empréstimos — uma politica de esfe- ras de interesse — €'a guerra, Exibem-se abertamente a forca, a fraude, a opressio, a pilhagem, sem nenhum esforco para oculté-las, e € preciso esforco para discernir nesse emaranhado de violéncia politica e lutas pelo poder as leis férreas do processo econémico'. 1. R. LUXEMBURG, The Accumulation of Capital, trad. A. Schwarzschild, New York, Monthly Review Press, ed. de 1968. 116 | 0 novo mreRausmo sses dois aspectos da acumulacio, alega Luxemburgo, estao “organi: camente vinculados” e “a carreira hist6rica do capitalismo s6 pode ser avaliada mediante sua consideragao conjunta Subconsumo ou sobreacumulacao? Rosa Luxemburgo sustenta sua andlise numa compreensao particular das tendéncias de crise do capitalismo. O problema, alega ela, € 0 subconsumo, uma falta geral de suficiente demanda efetiva para absor- ver o crescimento da producao que o capitalismo produz. Essa dificulda- de advém da exploracao dos trabalhadores, que, por definicao, recebem bem menos valor para gastar do que aquilo que produzem, e os capttalis- tas séo obrigados ao menos em parte a reinvestir em vez de consumir. “Tendo considerado devidamente as varias maneiras pelas quais se poderia transpor o suposto hiato entre oferta e demanda efetiva, dla conclui que co comércio com formagées sociais no-capitalistas proporciona a unica maneira sistematica de estabilizar o sistema. Se essas formagoes socials ou territérios relutarem em comerciar, tem de ser compelidos a fazé-lo pela forca das armas (como ocorreu no caso das guerras do 6pio na Chi- na). Esse é para ela o proprio cerne do imperialismo. Um posstvel corolétio desse argumento (embora Luxemburgo nao o extraia diretamente) € que, para o sistema durar qualquer intervalo de tempo, tem-se de manter 0s territorios nao-capitalistas (& forca se necessdrio) em condigéo nao-capl- talista. Isso poderia explicar as qualidades implacavelmente repressivas que muitos dos regimes coloniais desenvolveram na segunda metade do século XIX. Poucos aceitariam hoje a teoria do subconsumo de Luxemburgo como explicagao das crises’. Em contrapartida, a teoria da sobreacumulacao iden- tifica a falta de oportunidades de investimentos lucrativos como © pro- blema fundamental. De quando em vez, a falta de suficiente demanda efetiva da parte do consumidor pode ser parte do problema — de ce decorre o amplo recurso em nossos dias a algo chamado Soens lo consumidor” (também conhecido como a incapacidade dos consumido- res compulsivos de manter seus cartées de crédito na carteira) como in- dicador da forca e da estabilidade da economia. O hiato que Luxemburgo julgava ver pode ser facilmente transposto pelo reinvestimento, que gera n, Methuen, 1976; 2. Ver, por exemplo, M. BLEANEY, Underconsumprion Theories, pee ste ‘A. BREWER, Marxist Theories of Imperialism, London, Routledge & Ke A ACUMULAGAO VIA ESPOLIAGAO | TTF sua propria demanda de bens de capital e outros insumos. E, como vimos no caso das ordenagGes espaco-temporais, a expansao geografica do.capi- talismo que est na base de boa parte da atividade imperialista € bastante itil para a estabilizagao do sistema precisamente por criar demanda tan- to de bens de investimento como de bens de consumo alhures. Podem com efeito surgir desequilibrios entre setores e regides, bem como ser produzidos ciclos de negécios e recesses localizadas. Mas também é possivel acumular diante de uma demanda efetiva em estagnacao se os custos dos insumos (terra, matérias-primas, insumos intermedirios, for- cade trabalho) sofrerem um declinio acentuado. Logo, 0 acesso a insumos mais baratos é tao importante quanto 0 acesso a mercados em ampliagao na manutengao de oportunidades lucrativas. A implicagdo é que os terri- térios nao-capitalistas deveriam ser forgados nao s6 a abrir-se ao comér- cio (0 que poderia ser titil), mas também a permitir que o capital invista em empreendimentos lucrativos usando forga de trabalho e matérias- primas mais baratas, terra de baixo custo e assim por diante. O impeto geral de toda légica capitalista do poder nao é que os territérios se man- tenham afastados do desenvolvimento capitalista, mas que sejam conti- nuamente abertos. Dessa perspectiva, as represses coloniais do tipo que sem dtivida ocorreu no final do século XIX tém de ser interpretadas como um tiro no préprio pé, um caso em que a ldgica territorial inibe a légica capitalista. O medo da emulaco levou a Inglaterra, por exemplo, a evitar que a india desenvolvesse uma dinamica capitalista vigorosa, frustrando assim as possibilidades de ordenag6es espago-temporais na regio. A di- namica aberta da economia atlantica favoreceu muito mais a Inglaterra do que o império colonial reprimido na {ndia, de que 0 pafs por certo conseguiu extrair excedentes, mas que nunca funcionou como campo importante para semear o capital excedente britanico. Da mesma ma- neira, porém, foi a dinamica aberta do comércio atlantico que abriu a possibilidade da substituicdo da Inglaterra pelos Estados Unidos como a poténcia hegeménica global. Se Arendt estiver certa — a acumulagao interminavel do capital requer a acumulagéo intermindvel de poder politico —, nao sé é impossivel evitar essas mudangas como tentar fazé- lo produz o desastre. A formacdo de impérios fechados depois da Pri- meira Guerra Mundial quase com certeza foi um fator de causagao da incapacidade de resolver o problema da sobreacumulagao nos anos 1930, tendo preparado o terreno econémico para os conflitos territoriais da Segunda Guerra Mundial. A légica territorial dominou e frustrou a 16- gica capitalista, langando assim esta tiltima numa crise quase terminal por meio do conflito territorial. 418 | © novo iPeRiausmo O peso dos dados hist6rico-geogréficos do século XX adapta-se am- plamente ao argumento da sobreacumulagao. Todavia, ha muita coisa interessante no argumento de Luxemburgo. Em primeiro lugar, a idéia de que o capitalismo tem de dispor perpetuamente de algo “fora de si mesmo” para estabilizar-se merece exame, em particular por fazer eco & concepedo de Hegel, que vimos no capitulo 3, de uma dialética interna do capitalismo forcando-o a buscar solucées externas a si. Considere-se, por exemplo, o argumento de Marx quanto 4 criagao de um exército industrial de reserva’. A acumulacdo do capital, na auséncia de fortes correntes de mudanca tecnolégica poupadora de trabalho, requer o aumento da forca de trabalho, que pode acontecer de varias maneiras. O aumento da populacdo é importante (e a maioria dos analistas esque- ce convenientemente os cuidados que o préprio Marx tomou quanto a isso). O capital também pode se apropriar de “reservas latentes” de um campesinato ou, por extensao, mobilizar m4ao-de-obra barata de colonias ¢ outros ambientes externos. Se isso nao der certo, o capitalismo pode usar seus poderes de mudanca tecnolégica ¢ investimento para induzir ao desemprego (dispensas), criando assim, diretamente, um exército industrial de reserva de trabalhadores desempregados. Esse desemprego tende a exercer uma pressdo de baixa sobre as taxas de saldrio e abrir assim novas oportunidades de emprego lucrativo do capital. Ora, em todos esses casos, 0 capitalismo requer efetivamente algo “fora de si mesmo” para acumular, mas neste tiltimo ele expulsa de fato trabalhadores do sistema num dado ponto do tempo a fim de té-los 4 mao para propési- tos de acumulacéo num periodo posterior do tempo. Na linguagem da teoria politica pos-moderna contempordnea, poderfamos dizer que 0 capitalismo cria, necessariamente e sempre, seu proprio “outro”. A idéia de que algum tipo de “exterior” € necessario a estabilizagao do capita- lismo tem por conseguinte relevancia. Mas 0 capitalismo pode tanto usar algum exterior preexistente (formag6es sociais nao-capitalistas ou algum setor do capitalismo — como a educagao — que ainda nao tenha sido proletarizado) como produzi-lo ativamente. Proponho-me a levar a sério, no que segue, essa dialética “interior-exterior”. Vou examinar de que maneira a “relagao organica” entre reproducao expandida, de um lado, e os processos muitas vezes violentos de espoliagao, do outro, tem moldado a geografia hist6rica do capitalismo. Isso nos ajuda a melhor entender o que é a forma capitalista de imperialismo. 3. K, MARX, Capital, trad. B. Fowkes, New York, Viking, 1976, v. I, cap. 25. ‘A ACUMULAGAO via EsPOLIAGAG | 119 Arendt, 0 que é interessante, apresenta um argumento que segue li- nhas semelhantes. As depresses dos anos 1860 e 1870 na Inglaterra, ale- ga ela, foram o catalisador de uma nova forma de imperialismo: A expansao imperialista viu-se afetada por um curioso tipo de crise eco- némica, a sobreacumulacao do capital e o surgimento de dinheiro “su- pérfluo”, resultado do excesso de entesouramento, que jé nao podia en- contrar investimentos produtivos dentro das fronteiras nacionais. Fela primeira vez na historia, o investimento de poder nao abria caminho ao investimento de dinheiro, mas a exportaco de poder seguia humilde- mente a locomotiva do dinheiro exportado, dado que investimentos nao- controlados em pafses distantes ameagavam transformar amplos seg- mentos da sociedade em jogadores, transformar toda a economia capita- lista de um sistema de produgdo num sistema de especulagao financeira e substituir os lucros da producao pelos lucros das comissoes. A década imediatamente anterior a era imperialista, os anos 70 do século passado | [século XIX], testemunhou um aumento sem paralelo de fraudes, esc&n- dalos financeiros e especulagao fraudulenta no mercado de acées Esse cendrio nos parece demasiado familiar, dada a experiéncia dos anos 1980 e 1990. Mas a descrigao arendtiana da reagdo burguesa é ainda mais impressionante. Os burgueses perceberam, alega ela, “pela primeira vez, que 0 pecado original do simples roubo, que séculos antes tornara possfvel ‘a acumulacao do capital’ (Marx) e dera inicio a toda a acumu- lacdo ulterior, tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulacéo nao morresse de repente”. Os processos que Marx, seguindo Adam Smith, chamou de acumula- ¢4o “primitiva” ou “original” constituem, ao ver de Arendt, uma impor- tante e continua forca na geografia histérica da acumulacao do capital por meio do imperialismo. Tal como no caso da oferta de trabalho, o capitalismo sempre precisa de um fundo de ativos fora de si mesmo para enfrentar e contornar presses de sobreacumulagao. Se esses ativos, como a terra nua ou novas fontes de matérias-primas, nao estiverem 4 mao, o capitalismo tem de produzi-los de alguma maneira. Marx, no entanto, no considera essa possibilidade exceto no caso da criacdo de um exército industrial de reserva mediante o desemprego induzido pela tecnologia. E interessante examinar por qué. 4, ARENDT, Imperialism, 15, 28. 120 | O novo meeniausmo A reticéncia de Marx A teoria geral da acumulacao do capital de Marx € construfda com base em certos pressupostos iniciais crucials correspondentes em termos amplos aos da economia politica classica. Sao eles: mercados competiti- vos de livre funcionamento com arranjos institucionais de propriedade privada, individualismo juridico, liberdade de contrato e estruturas legais @ governamentais apropriadas, garantidas por um Estado “facilitador” que também garante a integridade da moeda como estoque de valor e meio de circulacdo. O papel do capitalista como produtor e comerciante de mer- cadorias ja est4 bem estabelecido, e a forga de trabalho tornou-se uma mercadoria em geral trocada por seu valor apropriado. A acumulacao “primitiva” ou “original” jé ocorreu, e seu processo agora tem a forma de reproducio expandida (embora mediante a exploracao do trabalho vivo na produicao) em condigoes de “paz, propriedade e igualdade”. Esses pres- supostos nos permitem ver 0 que sucede se 0 projeto liberal dos econo- mistas politicos classicos ou, em nossa época, © projeto neoliberal dos economistas se realiza. O brilho do método dialético de Marx, reconhe- cido por exemplo por Arendt, consiste em mostrar que a liberalizacao do mercado — o credo dos liberais e neoliberais — nao produz uma situacao harmoniosa em que a condi¢ao de todos é melhor. Produz em vez disso niveis ainda mais elevados de desigualdade social (como de fato tem sido a tendéncia nos Ultimos trinta anos de liberalismo, particularmente em paises como a Inglaterra e os Estados Unidos, que seguiram mais estrita- mente essa linha politica). E também produz, como Marx prevé, sérias € crescentes instabilidades que culminam em crises cr6nicas de sobreacu- mulacio (do tipo que ora testemunhamos) ‘A desvantagem desses pressupostos é que relegam a acumulacao ba- seada na atividade predatéria ¢ fraudulenta-e-na violéncia a.uma “etapa original” tida como nao mais relevante ou, como no caso de Luxemburgo, como de alguma forma “exterior” ao capitalismo como sistema fechado. Uma reavaliacdo geral do papel continuo e da persisténcia das praticas predatérias da acumulacdo “primitiva” ou “original” no Ambito da longa geografia historica da acumulacéo do capital € por conseguinte muito necessdria, como observaram recentemente varios comentadores’. Como 5M, PERELMAN, The Invention of Capitalism: Classical Political Economy and the Secret History of Primitive Accumulation, Durham, NC, Duke University Press, 2000. Ha ainda um amplo debate em The Commoner () sobre os cercamentos [ex- propriacdo de terras dos camponeses] e sobre se a acumulagao primitiva deve ser enten- dida como processo puramente histérico [de um dado periodo da historia] ou continuo DeANGELIS () apresenta um bom resumo. ‘A ACUMULACAO VIA. ESPOLIACAO. (a2) parece estranho qualificar de “primitivo” ou “original” um processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito de “acumu- lagdo por espoliacao”. Acumulagao por espoliacao _ Um exame mais detido da descrigao que Marx faz\da acumulacéo imitiva revela uma ampla gama de processos®. Esto ares eaheatengi da terra ea expulsdo violenta de populagdes camponesas; a converséo de virias formas de direitos de propriedade (comum, coleti- \ va, do Estado ete.) em direitos exclusivos de propriedade privada; a st- \presso dos direitos dos camponesés is terras comuns [partilhadas]; a ercadificagao da forca de trabalho e hes de formas alternativas (autéctones) de producaa e de consumo; processos coloniais, neocoloniais pumpea de apropriaga@ de ativos (inclusive de recursos naturais); a jonetizacao da troca e\a taxacao, particularmente da terra; o comércio de escravos; ea tsura, a divida nacional e em tiltima andlise o sistema de crédito como meios radicais de acumulacao primitiva. O Estado, com seu monopélio da violencia e suas definig6es da legalidade, tem papel crucial no apoio e na promogao desses processos, havendo, como afirmei no capitulo 3, consideraveis provas de que a transicao para o desenvolvimen- to capitalista dependeu e continua a depender de maneira vital do agir do Estado. O papel desenvolvimentista do Estado comegou ha muito tem- po, e ver mantendo as légicas territorial e capitalista do poder sempre interligadas, ainda que nao necessariamente convergentes. Todas as caracteristicas da acumulagao primitiva que Marx mencio- na petmanecem fortemente presentes na geografia histrica do capitalis- mo até os nossos dias. A expulséo de populagdes camponesas e a forma- or) de um /proletariado sem terra tem se acelerado em paises como o Méxica e a India nas trés ultimas décadas; muitos recursos antes parti- Ihados, tomo a Agua, tém sido privatizados (com freqiiéncia por insistén- a do Banco Mundial) e inseridos na légica capitalista da acumulagao; ‘ormas alternativas (autéctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, Eee de fabricagdo caseira) de produgdo e consumo tém sido su- primidas. I duistrias nacionalizadas tém sido privatizadas. O agronegécio substituiu a agropecudria familiar. E a escravidao nao desapareceu (parti cularmente no comércio sexual). ~ ~ 6. MARX, Capital, v. I, parte 8. 4122 | O novo ivpeniausMo ‘A aceitagdo critica, a0 longo dos anos, do relato que faz Se da acumulacdo primitiva — que de qualquer maneira foi antes ae ogo que uma exploracdo sisteméatica — sugete ser preciso preencher algumas lacunas. O processo de proletarizacao, por exemplo, envolve um ane to de coergoes € apropriagées de capacidades, relacdes sociais, con est mentos, habitos de pensamento e crengas pré-capitalistas da parte dos ue sio proletarizados. Estruturas de parentesco, organizacoes familiares e domésticas, relagdes de genero e autoridade (incluindo as pee por meio da religido e de suas instituigdes) — tudo isso tem seu papel a de- sempenhar. Em alguns casos, as estruturas preexistentes tém de ser vio- lentamente reprimidas como incompativeis com o trabalho sob ° ed lismo, porém miltiplos relatos sugerem hoje que ha a mesma es abili- de serem cooptadas, numa tentativa de forjar alguma Base con: m vez-de-coercitiva, de formacao-da Classe- trabalhadora: Em acumulacao primitiva envolve a apropriacao e a cooptagao de realizagées culturais e sociais preexistentes, bem.como 0 Eons ea “supressio. As condigoes de luta e de formagao da classe trabalha lora variam amplamente, havendo portanto, como 0 insistiu Thompson, en- tre outros, um sentido no qual a classe trabalhadora “se faz a si mesma’ : ainda que nunca, é claro, em condigées de sua escolha’. oO resultado € muitas vezes deixar vestigios de relacdes sociais pré-capitalistas na a macdo da classe trabalhadora, assim como criar diferenciagdes geografi- cas, hist6ricas e antropol6gicas no modo de definir a classe trabalhadora. Por mais universal que seja 0 rae de proletarizacio, 0 resultado nao é a criacdo de um proletariado homogéneo®. : ‘Algans dos ee da acumulagao primitiva que Marx ae foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado. O sistema de crédito e o capital financeiro se eer como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no comeco do ceil XX, grandes trampolins de predacio, fraude e roubo. A forte onda de financializacéo, dominio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatorio. } sensual, ) suma, 7.E.P. Thompson, The Making ofthe English Working Class, Harmondsworth, Penguin, "S Etnografias contempordneas da proletarizagdo, muitas das quals acentuam 9 ih: portancia de quest6es de genero, ilustram muito bem parte da diversidade, ee plo, A. ONG, Spits of Resistance and Capitalist Discipline: Factory Women in Malays, Nica State University of New York Press, 1987; C. FREEMAN, High Tech and High ae Global Economy, Durham, NC, Duke University Press, 2000; C. K. LEE, Gender and the Ane China Miracle: Tivo Worlds of Factory Women, Berkeley, University of California Press, A ACUMULACAO VIA EsPOUACAO | 123 Valorizag6es fraudulentas de agdes, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruigao estruturada de ativos por meio da inflagao, a dilapidacdo de ativos mediante fusées e aquisigdes € a promocao de niveis de encargos de divida que reduzem populacées inteiras, mesmo nos pai- ses capitalistas avancados, a prisioneiros da divida, para nao dizer nada da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidagao de recursos de fundos de pensio e sua dizimaco por colapsos de agdes e corporacées) decorrente de manipulagées do crédito e das agdes — tudo isso sao carac- teristicas centrais da face do capitalismo contemporaneo. O colapso da Enron privou muitos de seus meios de vida e de seus direitos de pensio. Mas temos de examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes instituicées do capital financeiro como a vanguarda da acumulacdo por espoliacdo em épocas recentes. Foram criados também mecanismos inteiramente novos de acumula- 40 por espoliacao. A énfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociagdes da OMC (0 chamado Acordo TRIPS) aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e licenciamento de material genético, do plas- ma de sementes e de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populagées inteiras cujas prdticas tiveram um papel vital no desen- volvimento desses materiais. A biopirataria campeia e a pilhagem do esto- que mundial de recursos genéticos caminha muito bem em beneficio de umas poucas grandes companhias farmacéuticas. A escalada da destruigéo dos recursos ambientais globais (terra, ar, Agua) e degradacées proliferantes de habitats, que impedem tudo exceto formas capital-intensivas de produ- co agricola, também resultaram na mercadificagdo por atacado da nature- za em todas as suas formas. A transformagdo em mercadoria de formas culturais, historicas e da criatividade intelectual envolve espoliagdes em larga escala (a indtistria da mtisica é notéria pela apropriagao e exploracéo da cultura e da criatividade das comunidades). A corporativizagdo e privatizacao de bens até agora publicos (como as universidades), para nao mencionar a onda de privatizagoes (da 4gua e de utilidades publicas de todo género) que tem varrido o mundo, indicam uma nova onda de “ex- propriacao das terras comuns”. Tal como no passado, o poder do Estado é com freqiiéncia usado para impor esses processos mesmo contrariando a vontade popular. A regressdo dos estatutos regulatérios destinados a pro- teger o trabalho e o ambiente da degradacio tem envolvido a perda de _lireitos. A devolucéo de direitos comuns de propriedade obtidos gracas a anos de dura luta de classes (0 direito a uma aposentadoria paga pelo Esta- do, ao bem-estar social, a um sistema nacional de cuidados médicos) ao dominio privado tem sido uma das mais flagrantes politicas de espoliagao implantadas em nome da ortodoxia neoliberal. 124 | © novo meniausmo O capitalismo internaliza praticas tanto canibais como Cae e fraudulentas. Mas, como observa certeiramente Luxemburgo, “€ preciso esforco para discernir nesse emaranhado de violéncia politica e lutas pelo poder as leis Férreas do processo econémico”. A acumulagao por espolia- fo pode ocorrer de uma variedade de maneiras, havendo em seu modus operandi muitos aspectos fortuitos e casuais. | ‘Assim sendo, como a acumulacao por espoliagao ajuda a resolver 0 problema da sobreacumulacao¢ A. sobreacumulacdo, lembremos, €é uma condigdo em que excedentes de capital (por vezes acompanhados de ex- cedentes de trabalho) esto ociosos sem ter em vista escoadouros lucra- tivos. O termo-chave aqui é, no entanto, excedentes de capital. Oo que a acumulacao por espoliacao faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo forca de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O ca- pital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-thes imediata- mente um uso lucrativo. No caso da acumulagao primitiva que Marx descreveu, isso significava tomar, digamos, a terra, cercé-la e expulsar a populacao residente para criar um proletariado sem terra, transferindo entao a terra para a corrente principal privatizada da acumulagao do capital. A privatizagao (da habitagao social, das telecomunicagées, do transporte, da 4gua etc. na Inglaterra, por exemplo) tem aberto em anos recentes amplos campos a ser apropriados pelo capital sobreacumulado. O colapso da Unido Soviética e depois a abertura da China envolveram uma imensa liberagdo de ativos até entéo nao disponiveis na corrente principal da acumulacdo do capital. O que teria acontecido com o capital sobreacu- mulado nos tiltimos 30 anos sem a abertura de novos terrenos de acumu- lag4o? Dito de outro modo, se o capitalismo vem passando_ por uma di- ficuldade crénica de sobreacumulagdo desde 1973, entao o projeto neoliberal de privatizacio de tudo faz muito sentido como forma de re- solver o problema. Outro modo seria injetar matérias-primas baratas (como o petréleo) no sistema. Os custos de insumos seriam reduzidos e 0s luctos, por esse meio, aumentados. Como observou 0 magnata dos jornais Rupert Murdock, a solugao de nossas atuais aflic6es econdmicas & 0 petrOleo a 20 délares, € nao a 30, o barril. Nao admira que os jornais de Murdock tenham dado tao 4vido apoio 4 guerra contra o Iraque’. O mesmo objetivo pode no entanto ser alcangado pela desvaloriza- G40 dos ativos de capital e da forga de trabalho existentes. Esses ativos desvalorizados podem ser vendidos a preco de banana e reciclados com lucro no circuito de circulagao do capital pelo capital sobreacumulado. 9. D. KIRKPATRICK, “Mr Murdoch’s War”, New York Times, 7 de abril de 2003, C1. A ACUMULAGAO A EsPOUACAO | 125 Mas isso requer uma onda anterior de desvalorizagao, o que significa uma crise de algum tipo. As crises podem ser orquestradas, administradas e controladas para racionalizar o sistema. A isso com freqiiéncia se resumem. os programas de austeridade administrados pelo Estado, que recorrem as alavancas vitais das taxas de juros e do sistema de crédito. Pode-se impor pela forca externa crises limitadas a um setor, a um territorio ou a todo um complexo territorial de atividade capitalista. E nisso que é grande especia- lista 0 sistema financeiro internacional (sob a lideranca do FMI), com o apoio do poder estatal superior (como 0 dos Estados Unidos). O resultado € a criacdo periddica de um estoque de ativos desvalorizados, e em muitos casos subvalorizados, em alguma parte do mundo, estoque que pode rece- ber um uso lucrativo da parte de excedentes de capital a que faltam opor- tunidades em outros lugares. Wade e Verenoso capturam a esséncia disso quando escrevem, falando da crise asiatica de 1997-1998: As crises financeiras sempre causaram transferéncias de propriedade e de poder a quem mantém intactos seus ativos e tem condigées de criar cré- dito, ea crise asidtica nao é excegao a isso... ndo hé dtivida de que corporacées ocidentais e japonesas sdo os grandes beneficiados... A combinacéo de desvalorizacées profundas, liberalizagGes financeiras impostas pelo FMI e recuperag6es facilitadas por este tiltimo pode até precipitar a maior trans- feréncia em tempo de paz de proprietdrios domésticos para proprietarios estrangeiros nos tiltimos 50 anos em todas as partes do mundo, superando em muito as transferéncias de proprietérios domésticos para proprietérios norte-americanos na América Latina nos anos 1980 ou no México a partir de 1994. Isso lembra a afirmagdo atribufda a Andrew Mellon’: “Numa depressao, os ativos retornam a seus legitimos proprietérios”"! Surgem crises regionais e desvalorizagées baseadas no lugar altamen- te localizadas como recurso primério de criagéo perpétua pelo capitalis- mo de seu préprio “outro” a partir do qual se alimentar. As crises finan- ceiras do Leste e do Sudeste da Asia em 1997-1998 foram um caso cldssico disso. A analogia com a criacéo de um exército industrial de reserva 10. Banqueiro norte-americano, republicano, que ocupou o cargo de secretério do Te- souro dos Estados Unidos entre 1921 ¢ 1982. (N.T) 11. R, Wade e F Veneroso, “The Asian Crisis: The High Debt Model versus the Wall Street-Treasury-IMF Complex”, New Left Review, 228, 1998, 3-23. 12, Ibid. Outros relatos dessa crise sao apresentados em HENDERSON, “Uneven Crises”; JOHNSON, Blowback, cap. 9; e a edi¢go especial de Historical Materialism, 8, 2001, “Focus on East Asia after the Crisis", particularmente P BURKETT e M. HART-LANDSBERG, “Crisis and Recovery in East Asia: The Limits of Capitalist Development”, 3-48. 126 | © novo meniausmo mediante a expulsdo das pessoas de seu emprego € perfeita. Valiosos ati- vos sao tirados de circulagao e desvalorizados. Ficam esvaziados ¢ ador- mecidos até que o capital excedente faca uso deles a fim da dar nova vida & acumulacdo do capital. O perigo reside no entanto no fato de essas crises poderem sair do controle e se generalizar, ou entéo que essa “cria- go do outro” [othering] provoque uma revolta contra o sistema que criou esse “outro”. Uma das principais fungdes das interven¢oes do Estado e das instituicées internacionais é orquestrar desvalorizac6es para permitir que a acumulacao por espoliacdo ocorra sem desencadear um colapso geral. Essa é a esséncia de tudo o que esté no programa de ajuste estrutural administrado pelo FMI. Para as principais poténcias capitalistas, como os Estados Unidos, isso significa orquestrar esses processos em seu beneficio especifico, ao tempo em que proclamam seu papel como o de um lider nobre que organiza “resgastes” (como no México em 1994) a fim de manter a acumulacdo do capital global nos trilhos. Como ocorre com toda mano- bra especulativa, hé contudo risco de perdas: o stibito panico evidente do Tesouro dos Estados Unidos e do Fundo Monetario Internacional em dezembro de 1998 depois de a Rtissia, que nada mais tinha a perder, ter simplesmente declarado faléncia e quando parecia que a economia sul- coreana (passados varios meses de duras barganhas) estava para quebrar e possivelmente desencadear uma react em cadeia global, ilustra quéo préximas da beira do abismo essas formulas de cdlculo podem chegar®. ‘A mistura de coercéo e consentimento no 4mbito dessas atividades de barganha varia consideravelmente, sendo contudo possivel ver agora com mais clareza como a hegemonia é construida por meio de mecanis- mos financeiros de modo a beneficiar o hegemon € ao mesmo tempo dei- xar os Estados subalternos na via supostamente régia do desenvolvimen- to capitalista. O cordao umbilical que une acumulagao por espoliagao e reprodugao expandida é o que lhe dao o capital financeiro e as institui- cées de crédito, como sempre com o apoio dos poderes do Estado. A contingéncia de tudo isso Como, entao, desvelar as férreas leis no Ambito das contingéncias da acumulacdo por espoliacio? Sabemos, é claro, que certo grau disso ocorre 0 tempo inteiro e pode assumir muitas formas, tanto legais como ilegais. Pensemos, por exemplo, num processo dos mercados de habitago norte- 13. GOWAN (The Global Gamble) oferece um convincente relato. Eo) \ ‘A ACUMULAGAO VIA ESPOUACAO | 127 americanos conhecido como “venda predatéria” [flipping]. Uma residén- cia em péssima condicao é comprada por quase nada, recebe algumas melhorias cosméticas e é vendida a um prego exorbitante, com a ajuda de um financiamento hipotecdrio conseguido pelo vendedor, a uma familia de baixa renda que pretender realizar o sonho da casa propria. Caso essa familia tenha problemas para pagar as parcelas ou resolver os graves pro- blemas de manutencdo que quase certamente surgem, a casa é retomada pelo vendedor. Nao se trata de algo propriamente ilegal (senhores com- pradores: cuidado!), mas 0 efeito é cair como ave de rapina sobre familias de baixa renda e privé-las da pouca poupanga que tém. Isso é acumulacio por espoliacao! Ha intimeras atividades (legais ou ilegais) desse tipo que afetam o controle de ativos por uma classe em vez de por outra. Mas como, quando e por que a acumulagao por espoliacao sai dessa condig4o clandestina e se torna a forma dominante de acumulagéo com respeito a reprodugao expandida?-Em parte, isso se relaciona com como e quando se formam crises na reproducao expandida. Mas pode também refletir tentativas de empreendedores determinados e Estados desenvol- vimentistas no sentido de “integrar-se ao sistema” e buscar diretamente 08 beneficios da acumulacao do capital. Toda formacao social, ou territério, que é inserida ou se insere na légica do desenvolvimento capitalista tem de passar por amplas mudan- gas legais, institucionais e estruturais do tipo descrito por Marx sob a rubrica da acumulacdo primitiva. O colapso da Unido Soviética destacou exatamente esse problema. O resultado foi um violento episddio de acu- mulacdo primitiva a titulo da “terapia de choque” aconselhada pelas po- téncias capitalistas e pelas instituigdes internacionais. O sofrimento so- cial foi imenso, mas a distribuicao de ativos gerada pela privatizacao e pelas reformas de mercado nao sé foi bastante desequilibrada como nao propiciouw-muito.o tipo de atividade de investimentos que costuma surgi com a reproducao expandida. Bem mais recentemente, a virada para o capitalismo orquestrada pelo Estado na China envolveu sucessivas ondas de acumulacdo primitiva. Empresas estaduais e “municipais” até entao bem-sucedidas nas cercanias de Xangai (que fornecia pecas e componen- tes para grandes indtistrias da 4rea metropolitana) ultimamente foram forcadas a fechar ou a ser privatizadas, acabando com obrigagdes de bem- estar social e de pagamento de aposentadorias e criando um grande reser- | vat6rio de trabalhadores desempregados ou de situacao econdmica ruim. | Oefeito tem sido tornar as empresas chinesas remanescentes bem mais | ferozmente competitivas nos mercados mundiais, mas isso custou a-des- | valorizacao ea destruicao de meios de vida anteriormente vidveis. Embora’ 428 | O Novo impeniausmo os relatos permanegam esquematicos, © resultado parece ter sido muito sofrimento social localizado e episddios de luta de classes acirrada, e as vezes violenta, em dreas assoladas por esse processo"* A acumulacao por espoliagao pode ser aqui interpretada como 0 cus- to necessdrio de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista com o forte apoio dos poderes do Estado. As motivacoes po- dem ser internas (como no caso da China) ou impostas a partir de fora (como no caso do desenvolvimento neocolonial em zonas de processa- mento de exportacdes no Sudeste asidtico ou da abordagem de reformas estruturais que o governo Bush hoje propde como cldusula das conces- soes de ajuda externa a nacdes pobres). Na maioria dos casos, esta na base dessas transformac6es alguma combinacéo de motivacdo interna e pres- so externa. O México, por exemplo, abandonou suas protegGes ja em enfraquecimento das populacoes camponesas e indigenas nos anos 1980, em parte sob a pressao que fez seu vizinho do Norte para que adotasse a privatizagao e praticas neoliberais em troca de assisténcia financeira e da Abertura do mercado norte-americano ao comércio por meio do acordo NAFTA. E, mesmo quando a motivagao se afigura predominantemente interna, as condigdes externas sao importantes. A instalagio da OMC torna hoje para a China uma entrada no sistema capitalista global mais facil do que o seria nos idos de 1980, quando prevalecia a autarquia den- tro de impérios fechados, ou mesmo nos anos 1960, quando o sistema de Bretton Woods mantinha os fluxos de capital sob um controle mais estri- to. As condic6es pés-1973 — e essa foi a parcela mais saliente daquilo que se esperava conseguir com as pressOes norte-americanas de abertura dos mercados — tém sido bem mais favordveis a todo e qualquer pais ou complexo regional que deseje inserit-se no sistema capitalista global —o que explica 0 répido crescimento de territérios como Cingapura, Taiwan € Coréia do Sul, bem como de varios outros paises e regioes recém-industria- lizados, Essa abertura de oportunidades trouxe ondas de desindustrializagio a boa parte do mundo capitalista avangado (e mesmo para além dele, como vimos no capitulo 3), ao mesmo tempo em que tornou os paises recém- industrializados, tal como 0 fez a crise de 1997-1998, mais vulneraveis as manobras do capital especulativo, da competigao espaco-temporal e de ondas adicionais de acumulacéo por espoliacao. Eis como é construfda e se exprime a volatilidade do capitalismo internacional. 14. E, ECKHOLM, “Where Workers, Too, Rust, Bitterness Boils Over”, New York Ti- mmes, 20 de marco de 2002, Ad; E. ROSENTHAL, Workers’ Plight Brings New Militancy to China’, New York Times, 10 de marco de 2003, A8. ‘A ACUMULACAO ia EsPoLIAGéO | 129 As desvalorizacées infligidas no curso de crises costumam destruir de modo mais geral o bem-estar social e as instituigGes sociais. Isso acontece tipicamente quando o sistema de crédito é submetido a apertos, quando Nines eee eee lee eer tone neers ficam, sem condigées de manter seus ativos e tém de transferi-los a pregos bem baixos a capitalistas que dispdem da liquidez para assumi-los. Mas as circunstancias variam muito. A expulsao de populagGes rurais ocorrida durante a Dust Bowl [corrida da poeira] dos anos 1930 e a migracdo em massa dos “okies” para a Califérnia (eventos descritos tao dramatica- mente em As vinhas da ira, de John Steinbeck) foram um violento precur- sor do longo processo de substituigao nos Estados Unidos da agropecudria familiar pelo agronegécio. A principal forca motriz dessa transi¢ao sempre foi o sistema de crédito, porém talvez o aspecto mais relevante disso seja o fato de uma variedade de instituig6es do Estado, ostensivamente destina- das a proteger a | agropecuaria familiar, terem desempenhado um papel” subversivo ao facilitar a transigéo que deveriam conter. A acumulacdo por espoliagao se tornou cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte como compensacao pelos problemas crénicos de sobreacumulacao que surgiram no ambito da reprodugao expandida. O principal vefculo dessa mudanga foi a financializacao e a orquestragao em larga medida sob a direcao dos Estados Unidos, de um sisteme-finan- ceiro internacional capaz de desencadear de vez em quando surtos de bran- dos a violentos de desvalorizacao e de acumulacdo por espoliagao em certos setores ou mesmo em territérios inteiros. Mas a abertura de novos territorios ao desenvolvimento capitalista e a formas capitalistas de com- portamento de mercado também teve sua fungao, o mesmo ocorrendo com as acumulacées primitivas de pafses (como a Coréia do Sul, Taiwan e, agora, de maneira ainda mais dramética, a China) que procuraram inserit-se no capitalismo global como participantes ativos. Para que tudo isso ocortesse, era necessdrio, além da financializagéo e do comércio mais livre, uma abordagem radicalmente distinta da maneira como 0 poder do Estado, sempre um grande agente da acumulagao por espolia- ¢do, devia se desenvolver. O surgimento da teoria neoliberal e a politica de privatizagdo a ela associada simbolizaram grande parcela do tom geral dessa transigao. 15. Dust Bowl designa a migracao em massa de individuos da zona da seca e da poeira nos Estados Unidos (0 centro sul do pais). “Okies” foi a designagao dada aos migrantes porque o estado norte-americano de Oklahoma foi o mais atingido pelo problema das migracoes. (N.T.) ee 130 | O novo imeRiausmo Privatizacdo: o “braco armado” da acumulacao por espoliacao O neoliberalismo como doutrina politico-econédmica remonta ao fi- nal dos anos 1930. Radicalmente oposta ao comunismo, ao socialismo € a todas as formas de intervengao ativa do governo para além de disposi- tivos de garantia da propriedade privada, das instituigdes de mercado e da atividade dos empreendedores, ela comegou como um conjunto isolado e em larga medida ignorado de pensamento ativamente moldado na déca- da de 1940 por pensadores como Friedrich von Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman e, ao menos por algum tempo, Karl Popper. Seria neces- sAria, como previu prescientemente von Kayek, ao menos uma geracao para que as concepgées neoliberais passassem a ser a corrente principal de pensamento. Reunindo recursos oferecidos por corporagées que Ihe eram simpaticas e fundando grupos exclusivos de pensadores, o movimento produziu um fluxo constante mas em permanente expansao de andlises, textos, polémicas e declaracées de posigdo politica nos anos 1960 e 1970. Mas ainda era considerado amplamente irrelevante e mesmo desdenhado pela corrente principal de pensamento politico-econdmico. $6 depois de acrise geral de sobreacumulacao ter-se tornado aguda veio o movimento aser levado a sério como alternativa ao arcabouco keynesiano e a outras estruturas mais centradas no Estado de formulagao de politicas. E foi Margaret Thatcher quem, buscando uma estrutura mais adequada para atacar os problemas econdmicos de sua época, descobriu politicamente o movimento e voltou-se para seu corpo de pensadores em busca de inspi- racdo e recomendacées depois de eleita em 1979'°. Em unido com Reagan, ela transformou toda a orientagdo da atividade do Estado, que abando- noua busca do bem-estar social e passou apoiar ativamente as condicées “do lado da oferta” da acumulagao do capital. O FMI e o Banco Mundial mudaram quase que da noite para o dia seus parametros de politica, «em poucos anos a doutrina neoliberal fizera uma curta e vitoriosa marcha por sobre as instituicgGes e passara a dominar a politica, primeitamente no mundo anglo-saxao porém mais tarde em boa parte da Europa e do mundo. Como a privatizacio e a liberalizacéo do mercado foram o mantra do movimento neoliberal, o resultado foi transformar em objetivo das poli- \ ticas do Estado a “expropriacdo das terras comuns”. Ativos de propriedade do Estado ow destinados ao uso partilhado da populacao em geral foram entregues ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse inves- 16. D. YERGIN, J. STANISLAW, D. TERGIN, The Commanding Heights: The Battle Between Government and Market Place that is Remaking the Modern World, New York, Simon and Schuster, 1999, A ACUMULAGAO WIA ESPOUACAO | 134 tir neles, valorizé-los e especular com eles. Novos campos de atividade lucrativa foram abertos e isso ajudou a sanar o problema da sobreacu- mulagao, ao menos por algum tempo. Mas esse movimento, uma vez desencadeado, criou impressionantes presses de descoberta de um nti- mero cada vez maior de arenas, domésticas ou externas, em que se pudes- se executar privatizacées. No caso de Thatcher, o rande estoque de habitagées sociais foi um dos primeiros ativos a ser privatizados. A primeira vista, isso pareceu uma dadiva para as classes inferiores, que-poderiam agora passar de loca- tdrias a proprietdrias a um custo relativamente baixo, obtendo o controle de um valioso ativo e aumentando suas posses. Mas, téo logo essa mu- danga de condicéo ocorreu, teve inicio a especulacéo imobilidria, particu- larmente nos locais centrais mais valorizados, & qual se seguiram o trafi- code influéncia, a enganacdo pura e simples ou a expulsao de populacdes de baixa renda para as periferias de cidades como Londres, transforman- do antigos conjuntos habitacionais destinados a classe trabalhadora em centros de intensa ocupacao de iméveis pelas classes médias [gentrification]. A perda de habitagdes-a-precos.acessiveis levou ao surgimento de cida- daos sem-teto e da ao social em muitos ambientes urbanos. Na In- glaterra, a subseqiiente”privatizagao Ugs servicgos (Agua, telecomunica- Goes, eletricidade, energia, Ne de empresas ptiblicas ea moldagem de muitas outras instituigdes publicas (como as universi- dades) de acordo com uma légica comercial levaram a radical transforma- ¢40 do padréo dominante de relacdes sociais ¢ a uma redistribuicao de ativos que favoreceu cada vez mais antes as classes altas do que as baixas. O mesmo padrao de redistribuicao de ativos pode ser identificado toda parte onde houve privatizagdes. O Banco Mundial tratou a Abc) do Sul }6s-apartheid como amostra da maior eficiéncia que se pode alcan- gar com a privatizacdo e a liberalizagao dos mercados. Promoveu, por exemplo, eee eee a asta ae da “total recupe- de propriedade das municipalidades. Em vez de receber agua de graca, os consumidores pagavam pelo fornecimento. Com maiores receitas, esses recursos, segundo a teoria, gerariam lucros e financiaram sua propria ampliacdo. Contudo, nao podendo pagar as ta- tifas, muitas pessoas acabaram ficando sem esses servicos e, com receitas menores, as empresas aumentaram as tarifas e tornaram a 4gua ainda menos acessivel as populagdes de baixa renda. Um dos resultados disso, visto que as pessoas tiveram de recorrer a outras fontes de Agua, foi uma epidemia de cdlera que matou grande ntimero de pessoas. O objetivo declarado (administrar o uso da agua para fornecé-la a todos) nao pode 132 | O Novo IMPERIALISMO ser realizado devido aos métodos nos quais se insistiu. Amplas pesquisas feitas na Africa do Sul por McDonald e outros mostram assim que “a recuperagao de custos de servigos municipals impée um enorme Onus a familias de baixa renda, contribui para haver um imenso ntimero de cor- tes de fornecimento e banimentos de familias do servico e prejudica o potencial de milhées de familias de baixa renda quanto a ter uma vida saudavel e produtiva””. — Essa mesma légica levou a Argentina a passar por uma ampla onda de privatizagoes (agua, energia, telecomunicag6es, transportes) que resul- tou num imenso influxo de capital sobreacumulado e numa substancial valorizagao de ativos, aos quais se seguiu um surto de empobrecimento de grandes massas da populagdo (tendo hoje alcancado a metade dos habitantes) quando o capital foi levado para outros Jugares, Outro exem- Jo a considerar é 0 caso dos direitos fundiarios noMéxico. A Constitui- cdo de 1917, promulgada pela revolucao mexicana, protegia os direitos legais dos povos indigenas, tendo consagrado esses direitos no sistema ejido [comunidades auto-suficientes], que permitia a posse € 0 uso cole- tivo da terra. Em 1991, o governo Salinas promulgou uma lei de reforma que tanto permitia como estimulava a privatizacio das terras do ¢jido. Como este proporcionava a base da seguranga coletiva entre grupos indi- genas, o governo na verdade estava se eximindo de suas responsabilida- des pela manutengdo dessa seguranga. ‘Além disso, essa medida era parte de um “pacote” de resolugées privatizantes propostas por Salinas, as quais desmantelavam a'seguridade social em geral e tinham impactos previst- veis e draméticos sobre a distribuicao da renda e da riqueza"*. Foi ampla a resisténcia a reforma do ¢jido, e o grupo camponés mais aguerrido aca- bou por apoiar a rebelio zapatista que eclodiu em Chiapas no mesmo dia de janeiro de 1994 em que se previa a entrada em vigor do acordo do NAETA. A subseqiiente reducao das barreiras A importagao deu mais um golpe, pois produtos importados baratos do agronegécio norte-america- no, altamente produtivo, mas fortemente subsidiado (cerca de 20 por cento do custo), derrubaram o prego. do milho e de outros produtos a tal ponto que impediam os pequenos produtores rurais de competir. Como estavam prestes a morrer de fome, muitos desses produtores acabaram perdendo a terra e foram aumentar 0 ntimero de desempregados de cida- des jd hiperpopulosas. Efeitos semelhantes se fizeram sentir sobre popu- — 17, D. McDONALD, J. PAPE, Cost Recovery and the Crisis of Service Delivery,in South Africa, London, Zed Books, 2002, 162. = 18. J. NASH, Mayan Visions: The Quest for Autonomy in an Age of Globalization, New York, Routledgé, 2001, 81-84. A AcUMULAGAO MIA EspouiNGAO | 133 lag6es rurais de todo 0 mundo. Importac6es baratas de legumes da Cali- fornia ede arroz da Louisiana, acertadas nos termos das regras da OMC, esto agord expulsando populagées rurais no Japéo'e em Taiwan, por exemplo. A-competigao externa sob as regras da OMC esto aa a vida rural indiana/De fato, relata Roy, “a economia rural da India, qu sustenta 700 milhoes de pessoas, est senclo sufocada, Produtores que te zem demais estao padecendo, produtores que produzem de menos estao padecendo, e trabalhadores agricolas sem terra estao desempregados, pois eepeeae ee eee eae oe aera eae a ee Grande ntimero de membros de todos esses grupos esta indo aes ci- dades em busca de colocagéo””. Na China, estima-se ser necessdrio ab- _sorver.ao menos meio bilhao de pessoas pela urbanizacao nos proximos dez anos para evitar 0 caos e a revolta rurais. Nao esta claro o que essas pessoas farao nas cidades, embora, como vimos, os-vastos projetos de infra-estruturas ptiblicas ora em execugao venham a contribui duzir 0 sofrimento sociat- . eae e —“* privatizacao, conclui Roy, é essencialmente “a transferéncia de ativos ptiblicos produtivos do Estado para empresas privadas. Figuram entre os ativos produtivos Os recursos naturais. A terra, as florestas, a Agua, 0 ar. Sa0 esses os ativos confiados ao Estado pelas pessoas a quem ele represen- ta... Apossar-se desses ativos e vendé-los como-se fossem estoques a empresas privadas € um proceso’ de despossesséo barbara-numa-escala —sem paralelo na histéria””. Era evidénte que a rebeliéo zapatista de Chiapas, no México, tinha muito a ver com a protecio dos direitos indigenas. E também o era o fato deo catalisador desse movimento ter sido a conjugagao das iniciativas de privatizacao das terras coletivas e de abertura do pais ao livre comércio por meio do NAFTA. Isso levanta, contudo, a questo geral da resisténci: & acumulacdo por espoliagao. i Combates relativos 4 acumulacdo por espoliacao __A acumulacao primitiva, tal como a descreve Marx, envolveu uma série de lutas episddicas e violentas. O nascimento do capital nada teve de tranqiiilo. Foi inscrito na histéria do mundo, como disse Marx, “em letras de sangue e de fogo”. Christopher Hill, em O mundo de ponta-cabeca, 19. A. ROY, r Polit 19 Re Y, Power Polis, Cambridge, Massachusets, South End ress, 2001, 16 134 | 0 novo mreniausmo oferece uma detalhada descrigao de como essas lutas se desenrolaram na Inglaterra do século XVII, quando as forcas do poder e da propriedade privada da terra entraram repetidas vezes em choque com miiltiplos ¢ Giversos movimentos populares que se opunham ao capitalismo ¢ & privatizacao e propunham formas radicalmente distintas de organizacao social e comunitaria, A acumulacéo por espoliacéo de nossa época também tem levado a batalhas politicas e sociais e a vastos golpes de resisténcia. Muitas dessas lutas formam hoje o nticleo de um movimento antiglobalizacao, ou de globalizacao alternativa, que, embora dispar e apa- rentemente em seus primérdios, € disseminado. QO fermento de idéias alternativas no interior-desses movimentos esta A altura da fecundidade de idéias geradas em outros perfodos hist6ricos em que ocorreram disrupgoes paralelas de modos_ de vida e de relacoes sociais (ocorrem-me {1640-1680jna Inglaterra [1830-1848 nz Franca). A énfase no Ambito desses \novimentos nore da“Téstituigaé dos bens comuns’ indica contudo profundas continuidades com batalhas de muito tempo atrds. Essas lutas impdem, nao obstante, graves dificuldades de andlise e 0, Nao é possfvel fazer omeletes sem quebrar ovos, diz 0 velho icou epis6dios ferozes, € com interpretaca ditado, e o nascimento do capitalismo imy freqiiéncia violentos, de destruicéo criativalEmbora a violencia de classe tynha sido tenebrosa, 61 indo postin ols lbolicdo das relacées feudais, a Nberacio de energias criadoras, a rtura da sociedade a fortes corren- tes de mudheca tecnolégica Sorganizacional ea superacao de um mundo eee na Superstigao e na ignorancia, substituido por um mundo de / jlustragdo cientifica potencialmente capaz de libertar as pessoas dos anseios Ie necessidades materiais. £ possivel afirmar, desse ponto de vista, que a acumulagdo primitiva foi uma etapa necessdria, ainda que tenebrosa, pela qual teve de passar a ordem social para chegar a uma condi¢ao na qual se tornassem possiveis tanto 0 capitalismo como algum socialismo alterna- tivo. Marx (em oposigdo a anarquistas como [o gedgrafo francés] Elisce Reclus e [o filésofo russo] Piotr Kropotkin, bem como a adeptos da ver- tente socialista de William Morris) valorizou pouco, quando o fez, as formas sociais destruidas pela acumulacao primitiva. De igual forma, nao defendeu a perpetuacio do status quo e sem divida nao foi favordvel a nenhuma reversao a relacdes sociais e formas de produgdo pré-capitalis- tas. Em sua opinido, havia algo de progressista no desenvolvimento capi- talista, inclusive no caso do imperialismo britanico na india (posigéo que nao angariou muito respeito no seio dos movimentos antiimperialistas 21. C. HILL, The World Turned Upside Down, Harmondsworth, Penguin, 1984 A ACUMULAGAO WIA ESpOUAGAO | 135 deren Pe : el Fer seynda Guerra Mundial, como demonstrou a fria recep: ebida pela obra de Bill Warren sobre i E oim, eee perialismo como 0 pionei- E A . ed yer eo tem fundamental importancia em toda andlise politica las praticas imperialistas conte A cele mporaneas. Embora os niveis ‘orga de trabalho em paises em d i K lesenvolviment sem dtvida altos, podend i i Sie a lo-se identificar abundant: A su o es casos de praticas abusivas 05 relatos etnogréficos das transformacées sociais et ive iretos ndi ee ees pelo desenvolvimento industrial e le produgao “exportados” em mui Peelers muitas partes do mundo edo bem mais complexo. E: . Em alguns casos, a posiga fe n F , a posicao das Fe ue eh ere a maior parcela de forca de Pmerer onderdveis modificagdes, ou mesmo ti f eee ¢ ,C 10 tem sido aprimoradas. Diante a mao-de-obra industrial e a vi i (ent ‘olta ao empob rural, muitas pessoas no 4mbi seers i ito do novo proletariad i eae o proletariado parecem exprimir por aqitela) Noutros casos, obteve ; , -se um poder de classe agents para obter ganhos Teais em termos de padroes de vida e para a ee “ti bem superior as circunstancias degradadas de ia rural precedente. E portanto diffcil di yee 2 ‘cil dizer se o problema da ‘ mplo, foi o impacto da rdpida industrializacao capi ee eee pida industrializagao capi- inidades de vida di ti é dad ida s décadas de 1980 e 1990 eo are a Pe eee provocadas pelas crises finan- -1998, que fizeram ruir boa parte das realizagées da i ee t Pe las realizagGes da industria . i, A luz disso, a maior dificuldade: a ee, , lade: a importagao e a insercdo capital por meio dazeproducd i E ‘40 expandida na - mia indonési¢ob)a total demolicao( deo dtividade per aa moligdo dessa atividad i eee of vidade por meio da acumu- poliagao? Embora seja dbvio que esta ultima foi 4 reed e 10. que esta tiltima foi um corolério , € que a verdadeira tragédia se trad i pees a ge aduz em atrair com gran- pidez (por vezes a forca) populagées para o proletariado e ia de- pois as descartar como mao-de-obra redundante, julgo igualmente plau- (2~ si j S A © segundo movimento prejudicou bem mais as esperangas, as- See z Piracoes e possibilidades de longo prazo das massas empobrecidas do que a , i oe A implicagao disso é que a acumulacéo primitiva que abre a 10 & reproducao expandida é[bei mtel da acumula¢ao por espoliagao, que faz ruir e destréi um caminho ja aberto. i Ia 3 a Samar oe ee que a acumulacao primitiva pode ser um precursor io de mudangas mais positivas levanta toda a questao da politica 22. Para escritos de Marx acerca da [i la [ndia, ver a coletanea K. MAI Cotoiaism, New York, Inernational Publisher, 1972; B, WARREN; Topafllsae BORE of Capitalism, London, Verso, 1981 dec nea anal ‘ 136 | © novo mrenausmo \ A ACUMULAGAO Via EsPOLIACAO | 137 de expropriagio sob o socialismo. Julgou-se com freqiiéncla 4rio, socialista. Isso por vezes decorreu de razées ideolégicas, mas em outras na tradicdo revolucionéria marxista/comunista, pen einer) foi apenas por motivos pragmaticos e organizacionais, advindos da pré- da acumulagao primitiva a fim de implementar programa: erniza- pria natureza daquilo que motivava e motiva essas lutas. Para comeo de cio de paises que nao houvessem passado pela iniciacao no desenvolvi- _ conversa, a variedade dessas lutas foi e é simplesmente estonteante, sen: mento capitalista. Isso muitas vezes significou niveis-de-tenebrosa vio- x _ do dificil até mesmo imaginar vinculos entre elas. As lutas do pov Og léncia semelhantes aos da acumulagao primitiva, como foi o caso da contra a degradacao de suas teryas pela Shell Oil Company; os prolonga: Ge ao forcada da agricultura na Unido Soviética (a liquidagao dos dos combates contra os projetos de construcéo de represas patrocinados kulaks [médios agricultores]), bem como na China e em outras partes do pelo Banco Mundial na India e na América Latina; movimentos campo- Leste Europeu. Dificilmente se pode considerar essas politicas grandes neseq contra/a biopirataria; batalhas em oposigao a alimentos genetica” histérias de sucesso, tendo elas desencadeado uma resisténcia politica em mente modificados e em favor da autenticidade dos sistemas locais de alguns casos impiedosamente esmagada, Em todos os lugares em que foi producao; lutas em favor da preservacao do acesso Ee indige- implantada, essa abordagem criou seus problemas peculiares. As dificul- nas a reservas florestais, que envolvem coibir a agao das madeireiras; dades dos sandinistas com os indios Mesquito na Costa Atlantica da combates politicos a Pala ae 0; movimentos de defesa de direitos tra- Nicaragua, ao planejarem o desenvolvimento socialista na regido, criou balhistas pte mulheresém paises em camy tars campanhas de um Cavalo de Tréia por meio do qual a CIA pode promover sua bem- protecao-da biodiversidade e de ena acne do habitat, sucedida ofensiva dos Contras [sic] em oposicao & revolucao. movimentos camponeses em favor do acesso~ terra; protestos contra’a Logo, enquanto os combates 4 acumulagao primitiva pudessem pro- construgao ae expressas € aeroportos; centenas, literalmente, de pro- porcionar a fonte do descontentamento aos movimentos insurgentes, in- testos contra programas de austeridade impostos pelo FMI — tudo isso clusive os do Ambito do campesinato, o fulcro da politica socialista ndo era s4o componentes de uma volétil combinagao de movimentos de protes- proteger a antiga ordem, mas atacar diretamente as relagoes de classe e as tos que tém varrido o mundo e se tornado cada vez mais topico das formas de poder do Estado que estavam tentando transformé-la, para che- manchetes durante a década de 1980 e a partir dela. Esses movimentos gar assim a uma configuragao totalmente diferente das relagées de classe e e revoltas foram muitas vezes esmagados com feroz violéncia, o mais das dos poderes do Estado. Essa idéia foi central para muitos dos movimentos vezes da parte de poderes do Estado que agiam em nome da “ordem e da revolucionrios que varreram o mundo em desenvolvimento na esteira da estabilidade”. Estados-clientes, com apoio militar ou em alguns casos de Segunda Guerra Mundial. Eles combateram o imperialismo capitalista, mas forgas especiais treinadas pelos grandes aparatos militares (liderados pe- we © fizeram antes em nome de uma modernidade alternativa do queem defesa los Estados Unidos, tendo a Inglaterra e a Franca como parceiros menos. da tradicéo. Assim agindo, com freqiiéncia encontraram a oposicao de, e importantes), assumiram posicgéo de proa num sistema de repressdes € lopuseram-se a, quem buscava proteger, se 2 ndo revitalizar, sistemas de pro- liquidag6es destinado a suprimir impiedosamente movimentos ativistas jucdo, normas culturais e relac6es sociais tradicionais. que ameacassem a acumulagdo por espoliacao. “1 Movimentos insurgentes contra a acumulagao por espoliacao nao tém Tem-se pois de adicionar a essa complicada situagao a extraordinaria particular predilecdo por ser cooptados pelo desenvolvimentismo socia- proliferagao de organizac6es no-governamentais (ONGs) internacionais, lista. O registro inconstante de sucesso da alternativa socialista (as pri- particularmente a partir de mais ou menos 1970. A maioria dessas orga- meiras conquistas cubanas nos campos da assisténcia a satide, da educa- nizagoes se dedica a questdes politicas especificas (0 meio ambiente, a go e da agronomia primeiro inspiraram, mas depois levaram & acomoda- condigao da mulher, os direitos civis, os direitos trabalhistas, a elimina- G40), aliado ao clima de politica repressiva largamente orquestrado pela cdo da pobreza e assim por diante). Embora algumas delas advenham de politica da Guerra Fria, tornou cada vez mais dificil para a esquerda tra- tradig6es religiosas e humanistas do Ocidente, outras foram criadas em Gicional reivindicar uma posigao de lideranga, em vez de dominacao co- nome da luta contra a pobreza, mas foram fundadas por grupos que erciva, com respeito a esses movimentos sociais. Na Os movimentos insurgentes contra a acumulagao por espoliagao tém 28. B. GILLS (org.), Globalization and the Politics of Resistance, New York, Palgrave, 2001, seguido em geral outro caminho, em alguns casos deveras hostil 4 politica € uma excelente coletanea que reflete parte dessa diversidade. 138 | © novo impeniauismo ON GS buscam ativamente-promover’a proliferagéo das praticas de troca de mercado. E dificil nado sentir vertigem diante da abrangéncia e da diversida- de das questées envolvidas ou da gama de objetivos. Uma ativista como Roy o exprime da seguinte maneira: “O que ocorre com nosso mundo é praticamente demasiado colossal para ser assimilado pelo entendimento humano. Trata-se contudo de algo muitfssimo terrivel. Contemplar suas dimensées e seu alcance, tentar defini-los, tentar lutar contra todos os seus aspectos ao mesmo tempo €é tarefa impossivel. A Gnica maneira de combaté- lo consiste em travar guerras especificas de maneiras especificas Mas esses-movimentos nao apenas sdo incipientes como muitas ve- fai contradig6es internas, como é 0 caso em que-as-populagoes fin digenas reivindicamr a devolucao de direitos de propriedade a areas que ( os ecologistas consideram crucial manter fechadas para proteger a biodiver- “sidade e evitar a destruicéo do habitat. E> emrparte devido-as-condicaes peculiares que fazem surgir esses movimentos, sua orientagao politica e suas formas de organizacéo também se afastam ponderavelmente das que se organizavam tipicamente em torno da reprodugéo expandida. A rebeliao zapatista, por exemplo, nao se interessava pela tomada do poder do Estado nem pela realizacéo de uma revolucao politica. Seu alvo foi antes uma politica mais inclusiva que envolvesse toda a sociedade civil numa busca mais aberta e fluida de alternativas capaz de atender as ne- cessidades especificas dos diferentes grupos sociais, permitindo a melhoria da parte que lhes cabe. Organizacionalmente, apresentou tendéncia a evitar o vanguardismo e recusou-se a tomar a forma de partido politico. Preferiu antes permanecer como movimento no ambito do Estado, ten- tando formar um bloco politico de poder no qual as culturas indigenas seriam centrais em vez de periféricas. Logo, o movimento zapatista bus- cou realizar algo semelhante a uma revolucéo passiva no ambito da légi- ca territorial do poder governada pelo aparelho estatal mexicano”. O efeito de todos esses movimentos, in toto, foi afastar o terreno da organizacdo politica da organizacao partidaria e operdria tradicional e leva-lo para o que estava fadado a ser, no agregado, uma dinamica polf- tica de agao social os concentrada que atravessa todo o espectro-da > BASIS Gue ooh jew em foco, o movimento ganhou em termos de relevancia e de insergdo na politica da vida cotidiana. Extraiu suas forcas dessa insercdo, mas ao fazé-lo encontrou grandes dificuldades para 24, ROY, Power Politics, 86. 25. NASH, Mayan Visions; A. MORTON, “Mexico, Neoliberal Restructuring and the EZLN: A Neo-Gramscian Analysis’, em GILLS (org.), Globalization, 255-279 ‘A ACUMULACAO WIA ESPOLIACAD | 139. distanciar-se do local e do particular para compreender a macropolitica do eixo em torno do qual girou e gira a acumulacao por espoliagao. O perigo é no entanto ver todas essas lutas contra a espoliagao como “progressistas” por definigao, ou, o que é pior, colocd-las sob algum estan- darte homogeneizante como 0 é a “multidao”, de Hardt e Negri, que ha de se levantar magicamente para herdar a terra®. Creio ser esse 0 ponto em que reside a real dificuldade politica. Porque, caso Marx esteja ao menos parcialmente certo ao afirmar que em certas circunstancias pode haver algo progressista na acumulacdo primitiva, que é preciso quebrar alguns ovos para fazer a omelete, temos de enfrentar frontalmente diffceis esco- Ihas. E essas escolhas sao as que tém diante de si hoje o movimento antiglobalizagao ou de globalizacao alternativa, escolhas que ameacam desfazer um movimento que se mostra tao promissor no tocante a luta anticapitalista e antiimperialista. Passo a desenvolver esse aspecto. Os dominios duais da luta anticapitalista e antiimperialista A concepgao classica da esquerda marxista/socialista era a de que o proletariado, definido como o conjunto de trabalhadores assalariados privados do acesso aos meios de produgdo ou de sua propriedade, era o agente privilegiado da mudanga histérica. A contradicao central separava capital e trabalho no e em torno do eixo da produgao. Os instrumentos primordiais da organizagao da classe trabalhadora eram os sindicatos ope- ratios e os partidos politicos cujo fim era buscar a conquista do poder do Estado a fim de regular ou suplantar o domfnio de classe capitalista. O foco eram, por conseguinte, as relacées de classe e as lutas de classes no campo da acumulacao do capital, entendida como reprodugao expandi- da. Consideravam-se subsididrias, secunddrias ou mesmo intiteis, por periféricas ou irrelevantes, todas as outras formas de luta . Havia natural- mente intmeras nuangas e variagdes desse tema, mas no cerne de tudo prevalecia a idéia do proletariado como 0 agente privilegiado da transfor- magdo histérica. As lutas travadas nos termos dessa prescrigao geraram notdveis frutos durante boa parcela do século XX, particularmente nos paises capitalistas avancados. Apesar de nao ter havido transformagoes revolucionarias, o crescente poder das organizacées e dos partidos politi- cos da classe trabalhadora obtiveram ponderdveis melhorias dos padrdes materiais de vida associados com a institucionalizaco de uma ampla 26. HARDT, NEGRI, Empire 140 | © novo mrenausmo gama de protegées sociais. Os Estados democraticos do bem-estar social que surgiram, particularmente na Europa Ocidental e na Escandinavia, puderam ser considerados, apesar de seus problemas ¢ dificuldades ine- rentes, modelos de desenvolvimento progressista. E eles nao teriam vin- do a existir sem a organizacéo proletdria razoavelmente restrita no am- bito da reproducao expandida tal como vivida na nagdo-Estado. Julgo importante reconhecer a relevancia dessa conquista. Embora produtiva, essa restricdo implicava numerosas exclus6es. Por exemplo, iniciativas de incorporagao de movimentos sociais urbanos no programa politico da esquerda malograram exceto, como é natural, nas partes do mundo em que prevalecia a politica comunitaria. A politica deri- vada do local de trabalho e do eixo da produc¢io dominava a politica do espago de vida. Movimentos sociais como o feminismo eo ambientalismo permaneciam fora do angulo de visio da esquerda tradicional. E a relacao entre as lutas internas em favor da melhoria social e os deslocamentos caracterfsticos do imperialismo tendia a ser ignorada (0 que levou grande parte do movimento operario nos pafses capitalistas avangados a cair na armadilha de agir como a aristocracia do trabalho para preservar seus proprios privilégios, se necessdrio mediante o imperialismo). Lutas con- tra a acumulacao por espoliacéo eram consideradas irrelevantes. Essa concentracao obstinada de boa parcela da esquerda de inspiragao marxis- ta e comunista nas lutas proletarias, com a exclusao de tudo o mais, pro- vou ser um erro fatal. Porque, se as duas formas de luta se acham organi- camente ligadas no ambito da geografia hist6rica do capitalismo, a es- querda nao apenas se privava de poder como também prejudicava suas capacidades analiticas e programéticas ao ignorar por completo um dos lados dessa dualidade. Na longa dinamica da luta de classes depois da crise de 1973, os movi- mentos da classe trabalhadora em todo o mundo foram postos na defen- siva. Embora houvesse uma consideravel heterogeneidade no modo de desenvolvimento dessas lutas (a depender da forca de resisténcia), 0 efeito consistia em geral em reduzir a capacidade desses movimentos no senti- do de afetar a trajetéria do desenvolvimento capitalista global. A répida expansao da produgao no Leste da Asia e no Sudeste Asidtico ocorreu num mundo em que, com a tinica excecao da Coréia do Sul, movimentos sindicais independentes (em oposigao a corporativos) ou inexistiam ou eram vigorosamente reprimidos e em que movimentos politicos socialis- tas e comunistas eram violentamente suprimidos (0 banho de sangue indonésio de 1965, quando Suharto derrubou Sukarno e talvez tenha havido a morte de um milhdo de pessoas, foi o caso mais brutal). Noutras i ‘A ACUMULAGAO via EsPOUIAGAO | 141 partes do mundo, por toda a América Latina e tanto na Europa como na América do Norte, a ascensdo do capital financeiro, do comércio mais livre e do disciplinamento do Estado por fluxos suprafronteiras em mer- cados de capital liberalizados tornaram as formas tradicionais de organi- zacao do trabalho menos apropriadas e, em conseqiiéncia, menos bem- sucedidas: Movimentos revolucionarios e mesmo reformistas (como no Chile de Allende) foram violentamente reprimidos pelo poder militar. Porém, a intensa dificuldade de manter a reprodugdo expandida tam- bém gerava uma énfase muito maior numa politica de acumulacéo por espoliagao. As formas de organizacao desenvolvidas para combater a re- producao expandida nao se transpuseram bem quando se tratava de com- bater a acumulagao por espoliacdo. Numa generalizagao esquemiatica, as formas de organizacao politica esquerdista instauradas no perfodo 1945- 1978, quando a reproduc&o expandida estava na ascéndente, eram impr6- pias ao mundo pos-1973, quando a acumulagao por espoliacao passou a ocupar o primeiro plano como a contradigéo primériano Ambito da orga—_ nizagéo-imperialista da acumulacdo do capital. — ~ Dissoresultou o surgimento de um novo tipo de politica da resisténcia, equipada, em certos casos, com um tipo de visao alternativa distinta do socialismo ou do comunismo. Essa diferenga foi identificada bem cedo por, para dar um exemplo, Samir Amin, especificamente com relacao a lutas travadas naquilo que ele denominou zonas periféricas do capitalismo: © desenvolvimento desigual imanente 4 expansao capitalista trouxe a pauta da hist6ria outro tipo de revolucéo, a dos: povos (ou seja, nao de classes especificas) da periferia. Essa revolugdo é anticapitalista no sen- tido de ser contraria ao desenvolvimento capitalista em sua atual forma, por ser esta intolerdvel para esses povos. Mas isso nao quer dizer que essas revolugées anticapitalistas sejam socialistas... Por forga das circuns- tAncias, essas lutas tém natureza complexa. A expressdo de suas contra- digdes, que s4o novas e especificas, expresso ndo imaginada pela pers- pectiva classica da transigdo socialista concebida por Marx, confere aos regimes p6s-capitalistas seu real contetido, que € o de uma construgdo nacional popular em que as trés tendéncias, a do socialismo, a do comu- —hismo e a do estatismo, se combinam € entram em conflito. Infelizmente, como alega Amin em seguida, muitos movimentos contemporadneos se alimentam de uma revolta popular espontanea contra as inaceitaveis condigoes criadas pelo capitalismo periférico; nao obstante, eles até o 142 | © novo ireniausmo momento néo foram capazes de exigir a dupla revolugdo mediante a qual a modernizacao e a libertacao popular tém de vir juntas; por isso, sua dimensao fundamental, ao alimentar-se do mito do olhar retrospec- tivo, continua a exprimir-se numa linguagem em que a preocupacao metafisica permanece exclusiva em toda a visao social”. Embora eu nao julgue que a acumulagao por espoliacao esteja exclu- sivamente na periferia, é indubitavel que algumas de suas manifestacoes mais viciosas e desumanas ocorrem nas regides mais vulnerdveis e degra- dadas do Ambito do desenvolvimento geografico desigual. Contudo, as batalhas em torno da espoliagao sao travadas numa variedade de escalas. Muitas sao locais, outras regionais e outras ainda globais, de modo que o dominio do aparelho de Estado — o objetivo primordial dos movimentos socialistas e comunistas tradicionais — pare- ce cada vez menos relevante. Quando essa transigao se associa com um crescente sentimento de desilusdo com aquilo que o desenvolvimentismo socialista logrou realizar, afiguram-se ainda mais fortes as condicées de base para a busca de uma politica alternativa. Os alvos e objetivos dessas lutas s40 também, como observa Amin, difusos, o que decorre principal- mente das formas difusas, fragmentarias e contingentes que.a acumula- do por espoliagao assume. Destruigéo do habitat aqui, privatizacao de servicos piblicos ali, expulsdes da terra acolé, biopirataria em outro do- minio — cada qual cria sua dinamica propria. Logo, a tendéncia é recorrer as formas organizacionais ad hoc porém mais flexiveis que se pode criar no ambito da sociedade civil para atender as necessidades dessas lutas Em conseqiiéncia, todo o campo da luta anticapitalista, antiimperialista e antiglobalizagao foi reconfigurado, tendo-se acionado uma dinamica politica totalmente diferente. Para muitos comentadores, esses novos movimentos, com suas qua- lidades especiais, ganharam a designacéo “pés-modernos’. Assim tem sido caracterizada com freqiiéncia a rebelido zapatista. Apesar de as descricées desses movimentos terem sido sem dtvida adequadas, o epiteto “pés- moderno” é infeliz. Pode parecer tolice uma disputa em torno de um termo, mas as conotac6es substantivas sao importantes. Hé antes de tudo certa dificuldade advinda da periodizagao e do historicismo inerentes inevita- velmente associados ao prefixo “pds”. Tem havido, como ja assinalei, 27. S. AMIN, “Social Movements as the Periphery”, in P WIGNARAJA (org.), New Social Movements in the South: Empowering the People, London, Zed Books, 1993, 95. Trata- se de coletanea de que varios textos refletem argutamente sobre esses temas. A acumutacdo WA espouacéo | 143 muitos episddios de acumulagao primitiva e de acumulagao por espolia- cao na geografia histérica do capitalismo. O estudo de Eric Wolf Peasant Wars of the Twentieth Century [Guerras camponesas do século XX] faz uma anlise comparada de uma das dimensées dessa luta sem de modo algum recorrer a idéia de pés-modernidade. £ pois um tanto surpreendente que June Nash, cujas descrig6es do estado de coisas mutante de Chiapas ofe- recem um exemplar documento comprobatério, concorde com a designa- Gao “pés-moderno” para aquilo que os zapatistas desejavam e desejam, quando sem dtivida faz mais sentido ver essa luta contra o pano de fundo de uma longa linhagem desse tipo de combate movido por populaces indigenas e camponesas contra as investidas predatérias do imperialismo capitalista e a constante ameaga de expropriacao de todos os ativos por elas controlados mediante o recurso a aces lideradas pelo Estado. No caso Zapatista, € a meu ver particularmente importante que a luta tenha comegado nas florestas das terras baixas, em que elementos indigenas deslocados firmaram uma alianga com mestizos, com base em seu empo- brecimento paralelo e sua exclusdo sistemética de todos os beneficios que obtinham da extracao de recursos (primordialmente de petréleo e madeira) da regiao que habitavam. A subseqiiente apresentagao desse movimento como restrito a “povos indfgenas” pode ter mais relagéo com a reivindi- cacao de legitimidade no tocante aos dispositivos da Constituigéo Mexi- cana que protege os direitos indigenas do que com uma real descrigao de sua origem”. Mas, do mesmo modo como descartar o “vinculo organico” entre a acumulacéo por espoliagao e a reproducdo expandida enfraqueceu e limi- tou a visdo da esquerda tradicional, assim também recorrer ao conceito de luta pés-moderna tem o mesmo impacto sobre os movimentos recém- surgidos de oposigéo a acumulacao por espoliacao. A hostilidade entre as duas linhas de pensamento ¢ os dois estilos de organizacdo j4 se mostra bem saliente no 4mbito do movimento antiglobalizagéo. Toda uma ala deste considera a luta pelo dominio do aparelho do Estado nao sé irrelevante mas um ilus6rio desvio de rota. A resposta esta, dizem seus membros, na “localizagéo” de tudo””*°. Essa ala também tende a desde- 28. E. WOLE Peasant Wars of the Twenthieth Century, New York, HarperCollins, 1969; NASH, Mayan Visions; Morton, “Mexico” : 29. Uma verséo particularmente forte desse argumento € apresentada em C. HINES, Localization: A Global Manifesto, London, Earthscan, 2000. Ver também WIGNARAJA (org.), New Social Movements 30. Localizacao aqui vai entre aspas por designar “tornar local”, “conferir cardter local”, em vez de “identificar a posicao”, (N.T.) 144 | 0 novo iPeRiAUsMo nhar o movimento sindical como uma forma modernista, rergenens a a é ibstituir pelas formas i zago que € preciso su! opressiva fechada de organi: “ : posmodernas mais fluidas e abertas de movimento social. Os movimeny tos sindicais nascentes na Indonésia ¢ na Tailandia, digamos, que estao lutando contra exatamente as mesmas forgas neoliberais de opresséo que os zapatistas combatem, ainda que em circunstancias bem oe a al bem distinta, veem-se excluldos. artir de uma base cultural e social b : ee lado, muitos socialistas tradicionais julgam os ue movimentos é i 0 se nao houvesse nada de inter: ingénuos e autodestrutivos, com: ouve t a een com eles. Clivagens desse tipo sao divisivas, one naan ulti 6 als nos tltimos Féruns Sociais Mun alguns dos debates travados aoe ae do Estado pelo Partido dos Tral Porto Alegre. A chegada ao poder a i res trasileic, que obviamente tem bases “trabalhistas' ebusca otter oe em parte por meio de meios esquerdistas tradicionais, torna 0 de ate i i te. mais estridente e mais premente. ' ‘Mas também nio é possivel ocultar as diferengas sob algum pa conceito de “multidéo” em movimento. Cumpre enfrenté-las tanto Po . ca como analiticamente. Neste Ultimo plano, a formulagao de Luxem| pe tem extrema utilidade. A acumulacao do capital tem de fato caret _ Mas os dois aspectos, 0 da reproducdo aul ° 2 ea lato Ee iaga amente ligados, entrelacados cla : espoliagao, se acham organic t a es i da reproducao expandida (que Segue-se pois que as lutas no plano da 1 eb Se énfase da esquerda tradicional) tém de ser vistas em. relacao ees com os combates a acumulagao por espoliacdo, que oe , ° ae mordial dos movimentos sociais que se abrigam no ambito oe por mentos antiglobalizacao e pela globalizacao alternativa. Seo oe i do tem visto a mudanga de énfase passar da acumulacao mediant oe producao expandida para a acumulacdo por espoliacao, cl Bee 4 A listas, conclui-se que o balango est4 no cerne das praticas imperia! , conclu e eo ae resses no interior do movimento antiglobalizacao € pré-globalizacao al nativa tem de reconhecer na acumulacao por espoliacao a contradigao pri-— méria a ser enfrentada. Nao deve ele porém jamais fazé-lo ae are: Jacio dialética com as lutas no plano da reproducao Ce en Isso, contudo, evoca novamente O problema que € o fato ay todas as lutas contra a espoliagdo serem igualmente progressistas. Das “i i s, OU Nos sentimentos ento das milfcias norte-americanas, i B De hier sean cursdes “externas A terra. Espreita © antimigrantes em enclaves étnicos que combatem int naquilo que julgam ser direitos antigos € veneraveis ae perigo de que uma politica de nostalgia pelo que se perdeu ; Pp a ‘busca de melhores maneiras de atender as necessidades materiais de pop’ Miele tentang cane eethltaealeciccats ih alls 1 cnt lagdes empobrecidas e reprimidas, de que a politica excludente do local assuma a primazia sobre a necessidade de construcao de uma globalizagao alternativa numa variedade de escalas geogrdficas, de que a reversdo a antigos padrées de relac6es sociais e de sistemas de producao venha a ser proposta como solugao num mundo que nao parou no tempo. Nao pare- ce haver respostas faceis para essas dtividas. Nao obstante, é relativamente facil buscar certo-grau de reconcilia- cdo. Pensemos, por exemplo, nos argumentos de Roy contra os amplos investimentos na construgdo de represas no vale indiano de Narmada. Roy é favordvel ao fornecimento de energia barata as populacées rurais empobrecidas. Ela nao é antimodernista. Seus argumentos contra as re- presas sao: (a) a eletricidade é cara em comparacao com outras formas de geracao de energia, ao mesmo tempo em que parecem minimos os bene- ficios agricolas (raramente medidos) advindos da irrigacdo; (b) os custos ambientais parecem muito altos (mais uma vez, nao hé um esforgo sério de avaliacao, para nao falar de mensuragao, desses custos); (c) um vasto montante do dinheiro alocado para o projeto beneficia uma pequena elite de consultores, engenheiros, empresas de construgao, produtores de tur- binas etc. (muitos deles estrangeiros, incluindo a igndbil Enron), e esse dinheiro poderia ser melhor gasto em outros lugares; (4) todo o risco recai sobre o Estado, visto que as empresas participantes contam com a garan- tia de uma taxa de retorno; e (e) as centenas de milhares de pessoas deslocadas de sua terra, de sua histéria e de seus meios de vida sdo prin- cipalmente membros de populagées indigenas ou marginalizadas (dalit) que no recebem absolutamente nenhuma compensacao ou beneficio dos projetos. Elas nem sequer foram consultadas ou informadas, e acabaram. ficando cercadas de gua & altura da cintura em seus lugarejos quando o governo encheu de repente a represa na €poca da mongao. Ainda que esta seja uma batalha especffica num local particular e precise ser travada com recursos especificos, seu carater geral de classe é bastante claro, tanto quanto 0 € 0 “barbaro” processo de expropriacéo™. O fato de cerca de 30 milhées de pessoas terem sido deslocadas pelos projetos de represas ape- nas na India nos tiltimos cinqiienta anos prova tanto o grau como a bru- talidade do processo. Mas a reconciliagao depende de modo crucial do reconhecimento do papel polftico Fundamental da acumulagao por espo- liagdo como o fulcro daquilo em torno de que se constréi e se deve cons- truir a luta de classes. Minha concepgao pessoal, valha o que valer, é que os movimentos politicos, para ter algum impacto macro e de longo prazo, tém de sair da 31, ROY, Power Politics. alll 146 | © novo menausmo nostalgia com relacdo ao que se perdeu e, do mesmo modo, preparar-se para reconhecer os ganhos positivos a ser obtidos da transferéncia de ativos que se pode conseguir por meio de formas limitadas de expropriacao (como, por exemplo, a reforma agréria ou a implantagao- de novas stay aree decis6rias como a administracao conjunta de florestas). Outra tarefa desses movimentos é a busca da discriminagao entre os aspectos progressistas € regressivos da acumulacao por espoliagio, empenhando-se em poe 0s primeiros rumo a uma meta politica mais generalizada dotada de mae valéncia universal do que os muitos movimentos locais, que o mais das vezes se recusam a abandonar sua propria particularidade Para tal, tem-se no entanto de encontrar maneiras de reconhecer a relevancia das miltiplas identificag6es (baseadas na classe, no género, no local, na cultura etc.) exis- tentes no seio das populacées, os vestigios da historia e da tradigao que advém das formas pelas quais essas identificac6es se constitufram em res- posta a incursées capitalistas na medida em que as pessoas se vem como seres sociais dotados de qualidades e aspiragGes distintivas e muitas vezes contraditérias. Se isso nao acontecer, corre-se 0 risco de recriar as lacunas do relato que Marx fez da acumulacao primitiva e deixar de peeve ° potencial criativo que reside naquilo que alguns consideram desden josa- mente relacées sociais e sistemas de produgéo “tradicionais € nao-capita- listas. Tem-se de encontrar uma maneira, tanto terica como politicamen- te, de ir além do amorfo conceito de “multidéo” sem cair na armadilha do “minha comunidade, meu local ou meu grupo social acima de tudo”. Tem- se principalmente de cultivar assiduamente a conectividade entre pas no interior da reproducao expandida e contra a acumulacao por espol peste, Felizmente, no tocante a isso, o cordéo umbilical entre as duas formas de luta que esté nos arranjos institucionais financeiros apoiados pelos poderes do Estado (intrinsecamente integrados no EMI e na OMC e por eles sim- bolizados) tem sido reconhecido com clareza. Esses arranjos se tornaram muito acertadamente 0 principal foco dos movimentos de protesto. Estan- do o nticleo do problema politico reconhecido com tanta nitidez, deve ser possivel iniciar um movimento centrifugo quanto as ereeaatcaerey e centrfpeto rumo a uma politica mais ampla de destruicao criativa mobili- zada contra o regime dominante de imperialismo neoliberal imposto ao mundo pelas poténcias capitalistas hegem6nicas. O imperialismo como acumulacao por espoliacao Quando Joseph Chamberlain fez a Inglaterra entrar na Suerte Béeres por meio da anexagao de Witwatersrand no comego do século XX, A ACUMULACAO via EspouAcAO | 147 estava claro que a motivagao primordial eram as reservas de ouro e dia- mantes. Nao obstante, como j4 vimos, a conversio de Chamberlain a uma l6gica imperialista surgiu da incapacidade de descobrir solucées in- ternas para 0 crdnico problema da sobreacumulacao do capital na Ingla- terra. Essa incapacidade tinha tudo a ver com a estrutura de classes inter- na, que bloqueava toda aplicagéo em larga escala de capital excedente na reforma social e em investimentos de infra-estrutura no plano doméstico. O impulso do governo Bush no sentido de intervir militarmente no Ori- ente Médio também tem muito a ver com garantir um controle mais firme sobre as reservas de petréleo médio-orientais. A necessidade de exercer esse controle disparou consistentemente desde que o presidente Carter enunciou pela primeira vez que os Estados Unidos estavam pron- tos a empregar meios militares para garantir o fornecimento ininterrupto de petréleo do Oriente Médio a economia global. Assim como as recessoes se correlacionam na economia global com disparadas dos precos do pe- trdleo, a baixa geral dos precos do mineral pode ser considerada uma tatica de enfrentamento dos crénicos problemas da sobreacumulagao que tém surgido nas trés tiltimas décadas. Tal como sucedeu com a Inglaterra ao final do século XIX, o bloqueio das reformas internas e dos investi- mentos infra-estruturais pela configuragao dos interesses de classe nesses anos também teve um papel crucial na conversao da politica norte-ame- ticana a uma adogao cada vez mais declarada do imperialismo. £ portan- to tentador ver a invasdo norte-americana do Iraque como 0 equivalente ao envolvimento britanico na Guerra dos Béeres, ambos os eventos ocor- tidos no comeco do fim da hegemonia Contudo, as intervencées militares so a ponta do iceberg imperialis- ta. O poder hegeménico do Estado costuma ser empregado para garantir € promover arranjos institucionais internacionais e externos por meio dos quais as assimetrias das relacGes de troca possam funcionar em favor do poder hegeménico. E por meio desses recursos que, na pratica, se ex- trai um tributo do resto do mundo. O livre mercado e os mercados de capital abertos tornaram-se o meio priméri de criar vantagem para os poderes monopolistas com sede nos paises capitalistas avancados que jé dominam 0 comércio, a-produgao, os servicos e as financas no mundo capitalista. O veiculo primério da acumulacao por espoliagao tem sido Por conseguinte a abertura forgada de mercados em todo o mundo medi- ante pressdes institucionais exercidas por meio do FMI e da OMG, apoia- dos pelo poder dos Estados Unidos (e, em menor grau, pela Europa) de negar acesso ao seu proprio mercado interno aos paises que se recusam a desmantelar suas protegées. a aa 148 | © novo inreriausmo Nada disso teria entretanto assumido a importancia que hoje tem caso no tivessem surgido problemas crénicos de sobreacumulagao de capital por meio da reproducao expandida, a que se associou uma recusa politica de tentar uma solucdo pata esses problemas por meio da reforma interna. O aumento de importancia da acumulacao por espoliagéo como resposta a isso, simbolizado pela ascensao de uma politica internacionalista de neoliberalismo e privatizacdo, se acha vinculado com a visitagao de surtos periédicos de desvalorizagao predatéria de ativos numa ou noutra parte do mundo. E esse parece ser o cerne da natureza da prdtica impe- rialista contemporanea. Em suma, a burguesia norte-americana redescobri aquilo que a burguesia britanica descobriu nas trés dltimas décadas do século XIX, redescobriu que, na formulacao de Arendt, “o pecado original do simples roubo”, que possibilitara a acumulacao original do capital, “tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulagao nao morresse de repente”®. Se assim é, o “novo imperialismo” mostra nao pas- sar da revisitacdo do antigo, se bem que num tempo e num lugar distin- tos. Resta examinar se essa é uma conceptualizacao adequada das coisas. 82. ARENDT, Imperialism, 28.

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