© Copyright 2023 Nathany Teixeira
Capa: Layce Design
Revisão: Artemia Souza
Preparação de texto: Tici Pontes
Diagramação: Tici Pontes
Imagens: Designed by rawpixel.com / Freepik
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios -
tangível ou intangível – sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
1ª. Edição / 2023
Sumário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 18
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Epílogo
Recado da Autora
Outras Obras
Este é um livro único com início, meio e fim.
Trata-se do terceiro livro da série Guarda-costas e pode ser lido
separadamente, mas se você quiser conhecer melhor a família Holder, pode
ler também “Sob a proteção do Lobo”, que é o primeiro livro da série, e
“Na sombra do Fantasma”, que é o segundo. No final do livro trago
algumas informações sobre todos os próximos títulos da série, que serão
livros únicos e que contarão histórias de outros personagens e pelas quais
torço para que se apaixonem.
Boa leitura, com amor e gratidão de uma autora ansiosa para
apresentar o Malvadão dos Holder!
Seja bem-vindo, Snake!
#TeamHoldete
Não é adorável estar completamente sozinha?
Coração feito de vidro, minha mente de pedra
Lovely – Billie Eilish
Winnie Petrova
— Mãe! Mãeeeeee! — chamei, desesperada, enquanto a figura
esguia e de cabelos longos, desarrumados, e estupidamente escuros, me
encarava de braços cruzados da beirada da nossa varanda.
— Há limites até para suas mentiras, Winnie. — Ela trincou os
dentes, furiosa.
— Eu não menti. Mamãe, eu juro! — solucei, e gritei com todas as
minhas forças, mas ela me deu as costas e entrou na casa grande, de paredes
de tijolos amarelos desbotados, enquanto Bóris, meu padrasto, um homem
no qual um dia eu confiei, mas que no fim se mostrou cruel e sem
escrúpulos, me arrastava pelo rancho, que minha mãe herdou do meu pai,
que, diferente do seu marido atual, era um homem bom, honrado e muito
carinhoso.
Um homem do qual eu sentia falta todos os dias.
Chorei, tentando conter a vontade de gritar pela ajuda do meu pai.
Da última vez que fiz isso, apanhei tanto que desmaiei. Bóris o odiava,
mesmo depois de muitos anos do seu falecimento, e eu não fazia ideia do
motivo, mas sentia fundo em meu coração que eu pagava todos os dias por
aquele ódio.
— Tira a mão de mim! ME SOLTA! — Esperneei.
Era pequena para minha idade, magra demais, e fraca na mesma
proporção, mas não conseguia ser a submissa que tanto ele quanto minha
mãe queriam que eu fosse. Nunca aceitei muito bem receber ordens dele,
por esse motivo comecei a apanhar, mas nem mesmo o medo das surras que
ele me dava me fazia ficar calada, principalmente depois que ele tentou
tocar em mim.
Fazia alguns meses que ele me olhava de um jeito diferente, de um
jeito esquisito e assustador. Passei a fugir dele com mais frequência do que
a habitual, mas não tive êxito, e foi quando ele tentou me agarrar dentro do
meu quarto que decidi reagir. Dei um chute bem no meio das suas pernas e
corri, gritando e procurando por minha mãe, na esperança de que ela fosse
me ajudar, mas, diferente do que imaginei, ela sequer acreditou em mim.
Ainda assim, usei todas as minhas forças para continuar gritando e
implorando por sua ajuda.
— Cala a boca, sua mentirosa desgraçada! — Ele me segurou pelo
braço e me sacolejou até meu ombro arder, como se estivesse prestes a ser
arrancado.
— Ai, para, por favor, para! — Comecei a me debater, quando vi
que ele estava me levando para o pequeno casebre na beirada de um
desfiladeiro, que fazia divisa com o rancho.
Tinha tanto medo daquele lugar que quase fiz xixi nas calças quando
vi qual seria meu destino. Meninas de 13 anos não deviam fazer xixi na
roupa, mas duvidava que todas elas tinham que ficar presas naquele lugar,
que era tão frio que chegava a doer os ossos, as tábuas rangiam como se
houvesse fantasmas andando por todos os lados, e a sensação de que o
vento levaria o casarão pela ribanceira me deixava apavorada. O som era
terrível e eu sentia tanto medo do escuro que me sentia paralisada e sem ar.
— Sua mãe sabe que você só aprende na porrada, garota estúpida. E
eu vou te ensinar a não me desafiar — ele vociferou, e continuou me
puxando.
A dor em meu braço se espalhou pelo ombro e parecia descer até o
estômago.
Ele abriu a pequena porta do lugar e me arremessou lá dentro com
força. Caí de joelhos e bati as duas mãos no chão.
— Por favor, não me prende aqui — implorei, estava tão
desesperada que uni as mãos em frente ao rosto e aquilo pareceu enfurecê-
lo ainda mais.
Bóris entrou no pequeno cômodo e agarrou meus cabelos até que
nossos rostos estivessem colados. Fechei os olhos, não queria encará-lo, seu
rosto me dava medo.
— Tudo isso porque você me chutou e abriu a porra dessa boca
maldita, sua desgraçada — ele xingou em russo, o único idioma permitido
em nossa casa, e puxou meu cabelo para trás.
Chorei alto, e senti quando ele puxou a gola da minha blusa até o
limite para encarar o que tinha embaixo dela.
— Não! — Agarrei sua mão para que se afastasse dali e me senti
suja, imunda pelo olhar estranho com o qual ele me encarava.
— Eu só queria ver essa merdinha. O que está pensando, garota? Só
porque seus peitos estão crescendo não significa que você precisa escondê-
los de mim. Tenho direitos, sabia? Você e sua mãe vivem à custa do meu
dinheiro, não acha que tem que retribuir de alguma forma, sua peste? — Ele
puxou meus cabelos, que eram de um ruivo intenso, idênticos aos do meu
pai.
— Não! — rugi. — Não me toque. A minha mãe... — Solucei,
tentando criar algum tipo de ameaça que me protegesse, mas eu só estava
ali porque contei tudo a ela.
— Sua mãe nunca vai acreditar em você. — Ele me empurrou, e me
encolhi no canto do pequeno galpão, cobrindo os pequenos seios, que
começaram a crescer desde a minha primeira menstruação, um ano atrás, e
solucei, tremendo de frio e de medo.
Ele me deu as costas e fechou a porta. Escutei o barulho da corrente
sendo passada, e fechei os olhos com força quando um relâmpago cortou o
ar. Ia chover.
Meus lábios tremeram, e tudo que desejei foi poder encontrar uma
fada madrinha, daquelas que resgatavam as mocinhas dos livros que lia
quando papai ainda era vivo, mas bem sabia que aquelas histórias eram
fictícias e ninguém ia me encontrar no fim de mundo onde morava com
aqueles dois.
Eu era diferente das garotas que vez ou outra eu encontrava no
centro da cidade. Elas não tinham preocupações além de acordar cedo para
ir à escola, algo que por sinal tive que parar depois que papai faleceu. Meu
pai era americano, e prezava pelos meus estudos. Foi ele que notou que eu
era mais inteligente que a maioria das crianças da minha idade e logo me
tornei a melhor aluna da escola. Mas depois que ele se foi, e minha mãe se
casou com Bóris, tudo mudou e ter um QI alto não fazia diferença alguma.
Meu padrasto era russo, assim como minha mãe, e dizia que as
escolas americanas não prestavam, que era necessário que eu crescesse
cercada pela cultura da minha mãe e dele. Foi assim que passei a estudar em
casa e só podia falar em russo, um idioma que eu falava muito bem, por
sinal, e crescer me comunicando assim tinha total influência no sotaque que
eu não conseguia controlar, afinal, era muito pequena quando tudo aquilo
começou.
Mais um relâmpago cortou o ar, e me encolhi ao lado das
ferramentas do rancho, que deixavam aquele pequeno casebre ainda mais
assustador.
Chorei, completamente ciente de que daria qualquer coisa para sair
dali, qualquer coisa para, como as garotas da cidade, ter que me preocupar
apenas com o horário de ir à escola, mas minha vida era diferente da delas,
enquanto elas escolhiam o uniforme, eu só calculava porcentagens e
chances de chegar ao final de semana sem levar uma surra do meu padrasto.
Encolhi-me, já sentindo a respiração falhar à medida que escutava os pingos
grossos baterem contra a madeira e o vento balançar com força as madeiras
do casebre.
Passei horas congelada pelo mais puro pânico, mal me movia e já
nem mesmo sentia os pés de tão gelados que estavam. A chuva só
aumentou, e agora caía em um torrencial forte e constante. Pensei que o
pavor que estava sentindo não pudesse piorar conforme a madrugada
chegava, mas em certo momento ouvi as correntes da porta serem puxadas
violentamente do lado de fora, e me obriguei a ficar de pé quando vi a
sombra de Bóris entrando pelo casebre.
Meu Deus, o que ele estava fazendo ali de novo?
— Você... — Ele apontou para mim, os olhos vidrados estavam mais
arregalados, como se ele estivesse possuído. — Vou ensinar a quem você
pertence. — Ele abriu um sorriso e logo o cheiro forte de bebida tomou o
pequeno cômodo.
Abri os olhos em pânico, quando ele tirou o cinto da calça, e prendi
o ar, imaginando que ele ia me bater, mas, diferente disso, ele abriu o botão
da calça e, antes que descesse o zíper, eu já sabia o que ele ia tentar fazer
comigo.
Minha mente automaticamente começou a calcular. Entre o medo e
o desespero, meu cérebro parecia lutar para encontrar uma saída. Foi então
que me lembrei das ferramentas no canto do casebre e agarrei uma picareta
e apontei em direção a ele.
— Não se aproxime de mim — eu disse, tremendo dos pés à
cabeça.
Ele gargalhou, e me encarou como se eu fosse um pedaço de lixo
que ele queria chutar.
— Vou fazer você pagar por isso, vagabundinha. — E veio para
cima de mim com tudo.
Foi então que percebi que eu tinha coragem, mas não tinha força.
Bóris me arremessou na parede com um soco. Caí sem ar, a cabeça
rodando, e ele veio por cima de mim, prendendo-me com força embaixo
dele.
— Nãooooo! Mãe, mãe! — berrei com toda minha força, tentando
sair debaixo dele, mas sequer consegui me mover.
De repente, eu despenquei em um filme de terror. Os trovões rugiam
do lado de fora e pareciam cavalos do inferno correndo sobre a chuva e
premeditando o meu fim.
— Vou te amansar, garota. Você vai aprender a me obedecer! — ele
disse, e soltou uma das mãos para abrir melhor a calça.
Respirei, aflita. Minha mente não parava nem por um segundo, foi
quando me lembrei que Bóris não saía sem sua faca embainhada. Desci os
olhos e a vi presa em sua cintura, enquanto ele descia a calça, e não pensei
duas vezes.
Puxei a faca com a mão livre e cravei em seu estômago sem nem
mesmo enxergar de tanto chorar.
— DESGRAÇADA! — ele urrou.
— Me solta! — Eu o chutei, e ele caiu para o lado.
Coloquei-me de pé em um instante e fiquei paralisada ao ver o
sangue escorrer de sua barriga.
— Eu vou te matar, vagabunda! — xingou em russo. — Vou te
esfolar viva! — urrou, e tentou agarrar meu pé.
Dei um salto para desviar de sua mão. Todo o meu corpo doía.
Solucei, perdida, e olhei para fora do casebre, onde uma tempestade terrível
varria tudo pelo caminho.
O que farei agora?, pensei.
Não podia voltar para casa, tanto quanto não tinha para onde ir. E foi
então que percebi que estava sozinha, e agora tinha que escolher: Ficar e
enfrentar a fúria de Bóris, que provavelmente ia me matar, ou encarar a
tempestade escura e barulhenta lá fora e fugir do rancho para sempre.
— Papai, por favor, me ajude! — Chorei, e encarei a chuva, como se
de alguma forma ele pudesse me ouvir.
Comecei a correr e entrei na tempestade, completamente apavorada
e sem rumo. Fugi com as roupas do corpo naquela madrugada, com a
sensação de que nunca mais ia parar.
Chicago
Treze anos depois
Caminho por uma estrada solitária
A única que já conheci
Não sei para onde vai
Mas é um lar para mim
Boulevard of Broken Dreams - Green Day
Snake
Do alto de uma torre, o centro de Chicago parecia uma montanha de
prédios brilhantes e imponentes. Olhei para o vácuo à minha frente formado
por uma beirada reta e mortal. Bem diante dos meus pés estava uma queda
livre de quase 100 metros, em direção à morte rápida. Aquilo não me
assustava, pelo contrário.
Gostava da sensação de sentir que minha vida estava nas pontas dos
meus dedos, e subir na beirada daquela torre, onde uma gárgula de pedra
horrorosa me fazia companhia, e o vento frio revirava a cidade e tocava
meu rosto, foi uma das formas que encontrei para reencontrar minha calma
e limpar meus pensamentos.
Aquele tinha sido um dia especialmente difícil, e se não conseguisse
colocar minha mente no lugar, acabaria cedendo ao ódio que estava
sentindo. Já bastava ter que lidar com minha raiva crônica todos os dias.
— Ó, humanidade, escutem só, eu encontrei o Batman! — Ouvi
uma voz às minhas costas e me virei, encarando a figura vestida de preto,
assim como eu, saindo das sombras. — Ah, que pena, creio ter me
enganado. É só o Snake, o amigo mais mal-humorado de todos vigiando a
cidade caótica que chamamos de lar.
Jack Kane, um dos meus amigos, e que por acaso também era um
dos clientes VIP da minha empresa de segurança armada, era dono de uma
rede de boates e herdeiro de uma das gangues mais poderosas da cidade, e
se aproximou com seu humor inabalável.
— Por que sempre vem aqui em cima, caro amigo? A vista da
cidade compensa essa provável queda mortal? Gosto de vê-lo respirando.
Então, será que pode, pelo amor à minha frequência cardíaca, descer daí?
— Ele parou ao meu lado, inquieto, e eu bufei. — Sei que está nervoso,
Snake, mas ele vai pagar. Sabe disso, não é?
— Nada do que acontecer vai desfazer o que ele fez. — Trinquei os
dentes. — Nem a morte vai ser castigo o bastante.
— Você me conhece há anos demais para saber que não foi esse o
castigo que pensei. — Jack me encarou, sério, por trás dos óculos
quadrados. — Confie em mim, ele vai sofrer, Snake. Olho por olho, sabe
como é.
Jack comandava o submundo de uma parte de Chicago, a Zona
Norte e parte da Zona Sul, e certos crimes cometidos na sua região também
eram responsabilidade sua.
A vida que ele escolheu era carregada de perigos e ameaças, mas há
duas semanas aquilo se intensificou e Jack começou a receber algumas
mensagens estranhas, com recados que mais pareciam zombar dele, e passei
a escoltá-lo pessoalmente em todos os eventos que ele precisava
comparecer, no entanto, naquela noite tinha ido até a boate para beber com
meu amigo, já que não fazíamos isso há algum tempo. Mas, quando cheguei
lá, ele estava ao lado de uma moça muito machucada e que chorava
compulsivamente, algo que de fato me tirava do sério. Odiava ver uma
mulher chorando, principalmente quando eu não podia fazer nada a respeito
ou quebrar a perna de alguém.
Ela tinha vindo fazer uma denúncia, o que era comum acontecer
entre membros da gangue pertencente à família de Jack. Eles não buscavam
a polícia, e sim a justiça das ruas. Seu irmão mais velho, que era um
soldado de Jack, quebrou uma das regras mais absolutas da família Kane e
abusou da própria irmã, mantendo-a presa em sua própria casa, enquanto
cometia o abuso. Pelo visto, o desgraçado percebeu que libertar a irmã
depois daquilo seria o seu fim. Então começou a cavar uma cova no terreno
da família, mas a mulher conseguiu escapar antes de ser enterrada viva, e
veio correndo até Jack, que a recebeu de braços abertos.
Nunca ia me esquecer da expressão em seu rosto. Era como se a luz
em seus olhos tivesse se apagado. A jovem era uma casca vazia. A situação
deixou todos nós possessos.
Naquele instante, a noite deixou de ser sobre beber e se tornou uma
madrugada de vingança. Fomos atrás do desgraçado, e depois de varrer todo
o bairro, Jack o encontrou escondido em um barracão, e ele foi capturado e
entregue às leis de julgamento da gangue. Um julgamento que eu faria
questão de acompanhar.
— Ele vai preferir ter morrido — Jack disse baixo, atento às luzes lá
embaixo, assim como eu.
— Queria que isso fosse o suficiente — retruquei, amargo, e desci
da beirada da ponta do prédio.
Três dos meus homens aguardavam no corredor do edifício, prontos
para descer ao subsolo onde uma das boates favoritas de Jack ficava.
— Que tal aquela bebida agora? — Ele abriu um sorriso, mas seus
olhos não escondiam a raiva que também sentia.
— Quero um uísque da sua adega pessoal, nada menos que isso —
resmunguei, ajeitando o terno e a arma em minha cintura, e o acompanhei
para dentro do prédio.
— Tem razão, a noite merece um bom porre. — Ele respirou fundo,
e entramos no elevador.
Deixei que os guarda-costas entrassem na boate primeiro. Jack
seguiu no meio e eu fiquei às suas costas. Ainda estava puto e pensativo
quando reparei em uma jovem sentada próxima ao bar. Tudo nela destoava
do ambiente caótico, escuro e coberto por nuvens de charuto da boate de
Jack. Ela parecia um animal silvestre perdido na cidade, não só pelos
cabelos, de um tom laranja vivo e que desciam em cascata até a cintura. Os
olhos, inquietos, não paravam em um lugar só, pareciam vasculhar cada
canto do bar, enquanto bebericava um drinque, ou fingia bebericar...
As costas eretas deixavam claro que não estava à vontade. Então ela
se virou e seus olhos recaíram brevemente sobre Jack. Mesmo de longe,
pude ver que ela arregalou mais os olhos, como se estivesse esperando Jack
chegar a noite toda, mas logo deu um jeito de disfarçar, o que me deixou em
alerta.
Quem era aquela mulher?
— Parece que também notou a laranjinha no canto do bar — Jack
sussurrou. — Por que será que sinto que ela não se encaixa aqui?
— Porque não se encaixa, porra. — Dei um passo para trás, quando
a vi se levantar. — Fiquem atentos. Aproximação suspeita à frente —
alertei os guarda-costas pelo comunicador, e já estava pronto para
interceptá-la caso se aproximasse de Jack, quando ele meneou um aceno
sutil com a cabeça e disse:
— Não, deixe. Quero ver o que ela vai fazer.
Estava claro que a jovem mulher não estava acostumada com o
ambiente, e pela postura rígida e temerosa talvez fosse uma infiltrada
inexperiente, o que deixou Jack e eu atentos, mas por algum motivo sentia
que ela não estava ali para machucá-lo, mas, diante das ameaças recentes e
sem pé nem cabeça que ele vinha enfrentando, não poderia arriscar, então
comecei a ler suas expressões corporais, afinal, era especialista no assunto e
estaria pronto, caso ela resolvesse atacar, antes mesmo que a jovem se desse
conta daquilo.
Petrova
Tentei respirar fundo e manter uma fachada simples de
tranquilidade, que na verdade era tão falsa quanto à identidade que eu
estava usando naquela noite fria do cão. Não queria estar ali. Na verdade,
estava quase certa de que morreria antes da noite acabar. Um pouco de
exagero? Sim, mas o medo era real. Não era uma agente de campo, mas
minha especialidade me obrigou a ir até ali.
Mataram um dos agentes da minha equipe, e mais dois de nós que
estavam trabalhando disfarçados corriam perigo, e aquilo mudava tudo, das
prioridades até meu nível de coragem. Passei as mãos pelo conjunto preto,
sexy e muito colado que escolhi para a noite. Algo que eu trocaria
facilmente pelo meu conjunto de moletom favorito, mas tinha certeza de
que aparecer em um bar conhecido por ser de um dos maiores nomes do
submundo na cidade de moletom não era lá uma boa ideia. Precisava
parecer corajosa e perigosa, que Deus me ajude.
Dei um gole em minha bebida e olhei ao redor. Alguns homens,
esquisitões, mal-encarados em sua maioria, fumavam charutos enquanto
conversavam baixo em um canto do bar, como se sua conversa fosse revelar
um mapa para o tesouro, e eu não duvidava que de fato fosse. Outros
faziam apostas perto da pista de dança, onde algumas mulheres
apresentavam um show de dança sensual. As luzes coloridas salpicavam o
ar. Enfiei a mão em minha bolsa, onde eu tinha escondido uma arma
minúscula de polímero que passava despercebida em revistas e detectores
de metal, e saquei o celular. Precisava prepará-lo antes que o dono do lugar
chegasse.
Estava em uma das boates de Jack Kane, aparentemente a sua
favorita. O homem, que era um gângster conhecido, estava sob ameaça.
Pelas nossas fontes, o senhor Kane recebeu uma ameaça do mesmo homem
que atacou um dos nossos agentes, e era por aquele motivo que eu estava
ali. Para hackear o celular de Jack, um dos pilares do submundo de
Chicago, para confirmar uma pista.
Detestava realizar missões fora da base. Minha especialidade
sempre foi o trabalho digital. Era ali que meu mundo girava, na tecnologia,
no entanto, era a única capaz de acessar qualquer dispositivo em segundos e
sem causar suspeita. Meu tempo era recorde no setor de inteligência e vez
ou outra se fazia necessário em campo, principalmente quando se precisava
coletar informações.
Coletar era uma forma mais graciosa de descrever o que um agente
da CIA costumava fazer. Éramos especialistas em roubar informações, seja
elas quais forem, para manter a ordem e segurança do país.
Preparei meu acesso no celular e dei mais um gole no drinque que
tinha pedido no bar da boate. Estava nervosa, e não era para menos. Se
alguém me pegasse, seria o meu fim. Virei o restante da bebida. Eu me
perguntava que tipo de maluco tentava comprar briga com um homem
como Jack, mas era difícil entender a linha de pensamento de um
criminoso.
Uma pequena agitação se formou na entrada do lugar, e suguei o ar
com força.
Ele chegou.
Bocejei, e me levantei, como se estivesse entediada demais para
ficar ali. Estreitei os olhos para a tela do celular, assim poderiam tirar
algumas conclusões; que eu estava levemente bêbada, por exemplo, e ativei
meus códigos na tela. Meus dedos trêmulos dificultaram um pouco a ação,
mas respirei fundo e obriguei minhas pernas a funcionarem. Virei-me para a
entrada, onde passaria ao lado dele, e teria exatos cinco segundos para
ativar os códigos e acessá-los. Do contrário, tudo teria sido em vão e nossa
pista esfriaria. Engoli em seco, a vida de dois agentes do governo
dependiam daquilo. Eles dependiam da minha coragem.
Endireitei os ombros e jurei que nada me surpreenderia quando
ficasse cara a cara com Jack, mas eu não esperava que ele entrasse em sua
própria boate com uma comitiva de guarda-costas atrás dele. Era o dobro,
se não o triplo de proteção que ele costumava usar naquele local, que por
sinal, era um dos mais seguros para ele.
— Que droga — deixei escapar. Ia ser mais difícil do que imaginei.
Equilibrei-me com certa dificuldade em cima dos saltos finos, o que
ajudou a fingir o papel de alcoolizada. Meu coração acelerou um pouco
mais quando vi o famoso triângulo formado pelos guarda-costas, que mais
pareciam armários, bem diante de Jack. Teria que dar um jeito de passar por
eles, senão a distância ia quebrar a invasão.
Que Deus me ajude, de novo...
Caminhei em direção a eles, os olhos voltados para a tela do celular,
até chegar onde queria. Perto do primeiro guarda-costas à direita. Trombei
nele e rodopiei para dentro do triângulo, aproveitando para apertar o botão
que liberaria meus códigos de acesso no celular de Jack. O que só me dava
cinco segundos para me aproximar dele.
— Se afaste, senhorita! — Fui interceptada por um dos guarda-
costas, que tentou me desviar do caminho de Jack.
— Desculpa, moço bonito. Acho que passei da conta e não consigo
controlar meus pés direito. — Ri baixo, e levei a mão à boca.
— Senhores, deixem a moça passar.
Contive um arquejo quando a voz baixa e poderosa de Jack ecoou
no pequeno aglomerado de guarda-costas, e comecei a rir de um jeito
estridente.
— Uhhhhh, obrigada.
— Talvez deva pedir um táxi, não está em condições de dirigir. —
Ele me encarou.
Os olhos escuros estavam escondidos atrás de um par de óculos
quadrados, que davam a ele uma expressão intelectual charmosa, mas eu
bem sabia que ele poderia ser um homem perigoso e assustador, mas pior
que ele era o olhar escrutinador de um dos guarda-costas que estava atrás de
Jack, como uma sombra que eu demorei a notar.
Engoli em seco quando seus olhos muito azuis se fixaram nos meus.
O homem tinha tatuagens em todas as partes de pele que o paletó preto e
alinhado deixava à mostra. Os músculos pareciam contidos embaixo do
tecido. Ele era estranhamente lindo, mesmo diante da pouca luz da boate.
Mas havia alguma coisa naquele olhar felino, quase selvagem, algo que me
dizia para sair dali o mais rápido possível. Ele até poderia ser um guarda-
costas, mas tinha mais cara de mafioso do que o próprio Jack.
Àquela altura, meu programa de invasão e cópia já deveria ter
absorvido todas as informações relevantes de acordo com a margem de
busca que implementei. Então, meneei um aceno, e me virei para a saída
com o coração batendo rápido, prestes a sair pela boca.
A tensão me deixou mais atenta e tive a sensação de estar sendo
vigiada enquanto me dirigia para fora da boate. Passei pela primeira saída e
entrei no corredor escuro que levava à rua, contendo a vontade de correr. Já
estava quase saindo de lá quando uma mão enorme segurou meu ombro
com força e me puxou para trás.
Reagi instintivamente e dei uma cotovelada em seu estômago, sem
nem saber quem era. Tentei correr para fora, ele nunca me pegaria se eu
conseguisse acesso às ruas de Chicago, mas o estranho não estava disposto
a desistir. Ele agarrou meu braço, obrigando-me a me debater com ele. Dei
mais duas cotoveladas e um soco que acertou seu maxilar.
— Que porra! — ele praguejou, e veio para cima de mim com tudo.
Chutei seu joelho e saquei a arma, mas senti uma dor aguda no
punho quando ele desferiu um golpe rápido e preciso que a arremessou
longe. Vi quando ele levou a mão à cintura e corri em sua direção, girei o
corpo e acertei um golpe em sua cintura. Não gostava de brigas físicas, mas
nunca disse que não era boa em uma.
O golpe foi fraco, perto da composição de músculos que o maldito
possuía, mas sua arma, assim como a minha, caiu na escuridão do corredor.
Ele tentou me segurar, mas usei da minha única vantagem, a de ser menor
do que ele, para poder me aproximar, e acertei seu pescoço.
Ele se afastou, sem ar. O som alto da boate escondia a guerra que
estava acontecendo no corredor e eu bem sabia que se não fugisse dali
acabaria em um saco preto antes mesmo do dia amanhecer. Corri em
direção à saída, mas o ordinário agarrou meus cabelos e me puxou para ele.
Me debati contra o grandalhão, até que ele jogou o peso do corpo contra
mim em uma velocidade impressionante, impedindo-me de respirar direito.
Ele me pressionou contra a parede e me obrigou a encará-lo. Um feixe de
luz fino era a única coisa que clareava o lugar, e eu consegui ver de relance
o ódio que emanava através dos olhos azuis e da feição dura e raivosa. Só
então vi as tatuagens na base do seu pescoço e soube que era o mesmo
sujeito que tinha visto atrás de Jack. O mais puro medo me açoitou, ele ia
me matar.
Tentei me livrar dos seus braços, e engoli em seco ao notar que era
inútil. Eu parecia uma formiga perto daquela montanha de músculos.
— Quem é você? — ele rosnou, irado. A respiração entre jatos se
encontrava com a minha.
— Não é da sua conta — retruquei, e bati a cabeça em seu nariz.
Ele recuou com a dor, e mais uma vez tentei fugir, mas aquele
tatuado odioso era movido pelas forças do inferno e me cercou com os
braços até que eu me visse imobilizada mais uma vez.
— Escuta, garota, não vou perguntar de novo. — O grandalhão me
rodou e me empurrou contra a parede, sua mão grande se fechou ao redor
do meu pescoço. Mal conseguia respirar. Como aquele maldito suspeitou de
mim? — Vai acabar morta se sair por aquela porta. Sua única chance é me
dizer o que está fazendo aqui. Se não disser, não vou permitir que saia.
— Não sei do que está falando, quem diabos é você? — eu disse
entre arquejos.
Ele afrouxou o aperto e imediatamente busquei uma arfada de ar.
— Não minta para mim. — Ele me segurou com um pouco mais de
força, mas não o bastante para de fato me machucar, era mais como um
aviso, e passou a mão no nariz, limpando o rastro de sangue que ficou ali
depois da cabeçada que eu dei nele. — Consigo ler você, sua diaba, e não
sou o único. Tem um segundo para ser sincera. É policial?
— Não sou da polícia. — Segurei seu braço com ambas as mãos,
mas percebi que qualquer esforço para libertar meu pescoço do aperto
daquele urso seria em vão.
— É o que vamos descobrir. — Ele deu um passo à frente e ficou
perigosamente maior. — Por que se aproximou de Jack hoje? Sei que não
está bêbada, assim como percebi sua aproximação repentina e calculada.
Você queria estar lá. Queria esbarrar nele. Não passa da porra de uma
mentirosa. Então diga, o que está fazendo aqui? Para quem trabalha?
— Não vim aqui prejudicar Jack Kane — admiti, assustada. Pelo
visto, certa verdade se faria necessária se quisesse sair dali viva. — Estou
procurando quem quer matá-lo.
O homem sondou meu rosto, como se estivesse analisando alguma
coisa.
— Para quem você trabalha? — ele rosnou, e aproximou o rosto
curiosamente felino bem perto do meu.
Notei que ele tinha uma pequena tatuagem no canto do seu rosto,
abaixo dos olhos, mas era muito fina para que conseguisse identificar o
desenho naquele corredor mal iluminado, mas minha nossa, uma coisa eu
consegui notar. O estranho ficava ainda mais lindo de perto.
Inferno de deus grego psicótico do caralho!
— Posso garantir que, se quer proteger o Jack, sua melhor chance é
me deixar sair daqui. Seu protegido é um peixe pequeno perto de quem
estamos procurando.
Ele varreu meu rosto novamente. Um vinco se formou entre as
sobrancelhas grossas e ele afrouxou ainda mais o toque em meu pescoço.
— Quem é você? — insistiu, entredentes.
— Vai acreditar se eu disser?
— Se disser a verdade, sim, mas saberei se mentir. Já disse, consigo
ler você.
Ele estreitou os olhos, como se fosse o próprio rei Salomão, o poço
da sabedoria e inteligência. Fiquei irritada com a possibilidade de um
estranho de caráter duvidoso realmente ser capaz de me ler com tanta
facilidade.
— Você não sabe nada sobre mim. — Tentei empurrá-lo, mas ele
nem mesmo se moveu.
— Você não é uma assassina de aluguel. Seus olhos são puros.
Duvido que já tenha matado alguém. Sua postura é muito rígida, controlada
e bem treinada, mas tem dificuldade de se equilibrar nos saltos, a única
verdade desse seu disfarce ridículo. — Ele passou a mão livre pelo nariz.
Devia estar doendo. — E, apesar de quase ter quebrado meu nariz, estou
disposto a te dar uma maldita chance de me dizer a porra da verdade. Cada
um dos seus movimentos me diz que pertence à polícia. — Prendi a
respiração. — Está aqui por algo relacionado à justiça, mas não é do FBI,
aqueles ali gostam de deixar claro quem são, e é melhor abrir o bico. Se for
o que suspeito, pode acabar sendo de grande ajuda, se souber quem está
ameaçando Jack.
— Ajuda?
Estreitei os olhos, e encarei o ponto de comunicação que ele usava
no ouvido. Que tipo de guarda-costas perseguia uma desconhecida para
proteger alguém como Jack Kane? Que tinha sua própria gangue como
proteção e...
Ah, não!
Abri a boca quando um pensamento me jogou no mais profundo
abismo. Olhei para as tatuagens, o rosto feroz, a postura impecável e seu
senso de proteção que era conhecido por ser impenetrável.
— E quem é você?
Ele ponderou minha pergunta, e por algum motivo decidiu
responder.
— Sou conhecido como Snake, e acredito que você seja algo como
uma espiã. Agente da CIA, talvez.
Abri mais os olhos. Que inferno, eu estava certa. Era ele!
Já tinha ouvido falar naquele codinome, mas não imaginei que ele
estaria ali naquela noite, já que não havia nenhum evento importante na
agenda de Jack. Eu tinha conferido. Duas vezes, para ter certeza de que não
me encontraria com aquele sujeito. Como não o reconheci antes?
Snake era o guarda-costas dos mafiosos. O homem era conhecido
por ser o queridinho dos três principais nomes do mundo do crime de
Chicago. Imbatível, principalmente por uma de suas principais
características: Ele era um especialista comportamental. Era praticamente
impossível mentir para ele, que era um cão farejador da verdade. Foi ali,
quando ele revelou seu codinome, que me dei conta de que minha vida
estava nas mãos dele.
— Tem mais a ganhar se ficar ao meu lado, Snake. Não estou
mentindo quando digo que Jack não é meu alvo.
Tentei ignorar sua atenção intensa sobre mim. Agora entendia seu
olhar perspicaz, ele estava procurando mentiras.
— Como posso confiar em você?
— Não pode, mas só tem duas opções. Me deixar ir, e quem sabe
impedir o homem que quer a cabeça do seu cliente, ou me entregar a Jack.
Socorro, Deus... Ajude-me só mais uma vez!
Foi tudo que consegui pensar, enquanto ele me analisava
novamente.
— Qual é o seu nome?
— Petrova — eu disse, meio engasgada. — E você está certo. Sou
uma agente da CIA, agora será que pode soltar o meu pescoço?
Foi ali que começou o meu inferno pessoal. Eu o detestava, e sabia
que ele sentia o mesmo em relação a mim. A aliança mais improvável e
consideravelmente poderosa de todos os tempos.
Era fascinante como almas condenadas pareciam destinadas a se
encontrar, e a se odiar.
Dois anos depois
Chicago
Você fica graciosa pra
caralho quando sorri
Bazzi - Mine
Snake
Estacionei meu carro, um Alfa Romeo vermelho imponente, que se
destacava na viela escura e mal-iluminada. A noite fria deixava rastros de
uma névoa cinza no ar, mas nem o ar gélido conseguia esconder o odor
fétido daquelas ruas, que ficavam na divisa da cidade. Um lugar
abandonado, e eu só conseguia me perguntar o motivo pelo qual ela sempre
escolhia aquele tipo de ambiente. Era óbvio que não queria ser notada,
como sempre, mas precisava mesmo me fazer despencar até os confins do
mundo só para que eu não soubesse de onde ela vinha?
Balancei a cabeça e recostei o corpo no veículo, enquanto a
esperava, impaciente. As luzes dos postes reluziam um amarelo fraco e
apático. Um tom que refletia um pouco da loucura pela qual Chicago estava
passando.
A cidade estava calma, segura. Pelo menos a parte que os cidadãos
comuns enxergavam. Mas eles só viam a superfície, como a cobertura de
um bolo. Por baixo das camadas coloridas e cheias de açúcar existia um
mundo um pouco mais amargo. O mundo do crime, e este sim estava
desmoronando. Algo que, por sinal, também interferia em meus próprios
negócios.
A lei e o crime andavam juntos, apesar de não estarem do mesmo
lado. Eram com uma linha paralela; um existia para o outro, uma atração
mútua. E, muito raramente, aqueles caminhos se cruzavam e até coexistiam,
como um mal necessário. No meu caso, aqueles encontros não eram tão
raros assim, e ter uma agente secreta da CIA perambulando por Chicago
não podia significar nada bom.
Levei a mão à cintura, quase que inconscientemente, como se
quisesse conferir que minha arma estava mesmo ali. Sentia aquela
necessidade toda vez que estava prestes a encontrá-la. Como se aquela
mulher fosse a preceptora do apocalipse. E eu não podia ignorar que nossos
encontros precediam ao caos.
Tirei o celular do bolso, desliguei e tirei o chip. Petrova, além de
uma agente secreta encrenqueira, era uma hacker especialista e eu não
confiava naquela raposinha ardilosa mais do que ela confiava em mim.
Descobri do que ela era capaz dois anos atrás, quando, com apenas
um acesso, ela derrubou um sistema criptografado, rastreou e expôs
informações que levaram à prisão de um nome procurado pela CIA e pelo
FBI, e que estava tentando assassinar Jack, um dos meus VIP que, por
acaso, também era um grande amigo meu. Ela não precisava mais do que
um celular para deixar um rastro de destruição, e eu devo admitir que aquilo
me fascinava.
Endireitei o corpo quando o som de saltos finos ecoaram pela noite
em um toc-toc constante. Contive um sorriso ao imaginar a cena que veria a
seguir. Winnie Petrova raramente usava saltos, porque tinha dificuldade de
se equilibrar neles, e costumava caminhar como um pato desanimado, uma
cena muito cômica, que a fazia evitar aquele tipo de sapato. Olhei sobre o
ombro e procurei a baixinha invocada, que geralmente me fazia sair pelas
madrugadas ao encontro de algum problema, e quase engasguei quando a
encontrei. Não era bem a cena desajeitada que eu havia imaginado.
Abri mais os olhos e encarei a visão exuberante vindo em minha
direção. Diferente do habitual traje preto, e muito justo, que sempre me
dizia que ela estava pronta para uma guerra a qualquer momento, Petrova
estava usando um vestido vermelho que desenhava cada detalhe do seu
corpo. Da curva empinada dos seios, ornamentados por um decote
profundo, à cintura fina. Os cabelos, ruivos bem clarinhos, desciam em
cascata pelos ombros nus e reluziam com o brilho das luzes amareladas. A
maldita era uma visão extraordinária, parecia uma miragem, pronta para me
arremessar no inferno. Nunca imaginei que ela ficaria tão bem de vestido.
Era uma visão quase angelical, se não fosse pela arma que ela
provavelmente escondeu na fenda daquele vestido.
Petrova veio caminhando em minha direção como se carregasse o
mundo na ponta dos dedos. O nariz empinado no rosto fino e gracioso não
escondia o olhar perspicaz, astuto, como a raposa que era. Percebi que ela
mantinha uma concentração exagerada no asfalto à sua frente. Estava se
esforçando para não tropeçar.
— Por que está me olhando desse jeito? — Ela ergueu as
sobrancelhas desenhadas e certo espanto a fez abrir um pouco mais os olhos
verdes e intensos.
— Eu só... não sabia que também usava vestidos. — Tentei me
recompor da surpresa.
Seria um desgraçado mentiroso se dissesse que Petrova não era a
mulher mais bonita que já conheci, com todo aquele mistério por trás de
cada uma das suas ações e olhares, os cabelos cor de fogo, as poucas sardas
que se espalhavam pela maçã do seu rosto, como se tivessem sido
desenhadas ali, uma a uma. Os olhos, ferinos e levemente puxadinhos, até o
sotaque, que ela conseguia disfarçar muito bem, menos quando estava
nervosa. Era uma russa delicada e ao mesmo tempo feroz. A diaba era bela
de um jeito singular, mas a versão parada diante de mim, com um olhar
arredio, confuso e bravo era ainda mais deslumbrante. O que tornava difícil
me lembrar do quão irritante ela era.
— Quase não a reconheci sem seu traje de “Missão Impossível” —
provoquei, quando ela se aproximou.
A agente estreitou os olhos verde-escuros em minha direção.
— Tenho uma variedade de vestidos e até poderia te emprestar um,
mas... — ela desceu os olhos por todo o meu corpo, como se avaliasse
alguma coisa — ... não acho que algum deles vá caber em você.
— Engraçadinha — rosnei.
Ela passou por mim com aquele nariz arrebitado, abriu a porta do
carro e se sentou no carona. Assumi a direção do veículo e dirigi para nosso
destino.
— Por que diabos sempre escolhe esses lugares esquisitos para se
encontrar comigo? Sabe que está segura…
Estreitei os olhos quando senti um cheiro adocicado tomar o interior
do veículo. Flores, muitas delas, com um final cítrico, chamativo e
instigante. Nunca tinha notado aquele aroma nela antes. Desde quando
Petrova usava perfume?
— Gosto de lugares como aquele porque ninguém nunca vê nada
por lá. Mas não é a exposição que me preocupa.
— Então o que a preocupa? Por que me chamou hoje? — Tentei
sondá-la, algo que nunca deu certo, porque ela sabia que para mim era fácil
identificar uma mentira e acabava não dizendo nada para não se
comprometer, ainda assim, tinha que tentar.
— Só você conseguiria acesso àquela festa. Preciso estar lá como
sua protegida.
— Devo temer pela vida de um dos meus VIP?
— É claro que não, faz parte do nosso acordo não prejudicar
nenhuma das partes. Não se preocupe, é uma visita muito amigável. Só
quero que mantenha meu pescocinho intacto enquanto estivermos lá,
cercados por um amontoado de bandidos. — Ela suspirou fundo. — Parece
promissor, não? — Estreitou os olhos, sarcástica.
Sondei o tom em sua voz e cada um dos seus sinais motores em
busca de algum traço de mentira, que por sinal ela escondia muito bem.
Petrova sabia mais de mim do que eu dela, e aquilo me
incomodava.
Desde muito novo tive que aprender a me virar sozinho em um
mundo que era, em sua grande maioria, mentiroso. E aquilo me ajudou a me
tornar quem eu era hoje. CEO de uma das unidades da maior empresa de
guarda-costas no país, e especialista em reconhecimento motor, o que me
tornou capaz de identificar com precisão se uma pessoa estava mentindo ou
não.
E Petrova sabia daquilo. Talvez melhor do que ninguém, o que
tornava mais difícil decifrá-la, mas nem ela era capaz de escapar de anos de
treinamento incisivo. Havia pelo menos 28 sinais que me permitiam
identificar uma mentira, como se eu a sentisse em minhas veias. Só
precisava de um gatilho para acionar nela alguma resposta que me
interessasse.
— Por que quer estar nesse evento? Sei que detesta as pessoas que
conheço.
— Não detesto, só... não os chamaria para um jantar onde alguém
provavelmente terminaria morto, e não quero ser essa pessoa. Mas às vezes
é necessário se misturar no meio desse pessoal agitado…
Quase ri do jeito que ela chamava alguns dos bandidos mais
perigosos de Chicago.
— E o que um exímio falsificador de artes tem para te oferecer que
a faça despencar da sua redoma de proteção da CIA para se misturar com
gente como ele?
— Ninguém pergunta, ninguém responde. Lembra disso? — ela
recitou parte do nosso acordo, e abriu a bolsa. Tirou de lá um gloss
vermelho, um lápis, um pente e não parou mais.
Mal pisquei e meu carro se tornou um depósito das maquiagens
dela. Bufei, irritado, como era bagunceira.
— Você me deve um favor, e está pagando por ele. Se sua família
fosse mais convencional, talvez eu não estivesse aqui, neste carro caro,
retocando a maquiagem extremamente elaborada e que demorei uma longa
hora para fazer. — Ela sorriu com aquele ar de deboche que vez ou outra
me fazia querer esganá-la. Torci os lábios, ciente de que ela tinha razão.
Estava em dívida com a agente depois de usar todos os seus acessos,
que não eram poucos, e seu talento indescritível para localizar e estourar um
cativeiro depois de uma denúncia feita por meu irmão caçula e minha
cunhada, onde várias mulheres foram salvas de um destino terrível, o tráfico
humano. O fato é que sem a ajuda de Petrova e seus contatos pelo país,
inclusive no FBI, eu não teria conseguido.
Olhei para ela pelo canto dos olhos. Petrova encarava a rua que
passava rápido pela janela. A perna cruzada deixava à mostra parte do
coldre que ela escondia embaixo do vestido. Ela era uma incógnita para
mim. A mulher era basicamente o cão farejador do seu setor na CIA. Não
havia nada no meio digital que ela não fosse capaz de descobrir, ela se
sentia segura atrás de um computador, e pela nossa experiência juntos a
pequena raposa detestava missões em campo, o que não a impedia de
realizá-las. Aquilo, deveria admitir, me fascinava. O medo não parava seu
senso de justiça.
Petrova emanava um poder estranho, sombrio e doce ao mesmo
tempo, do tipo que chamava minha atenção. Talvez por aquele motivo nossa
aliança funcionasse tão bem. Ela era certinha demais para uma agente da
CIA, e eu, errado demais para um CEO de uma empresa de guarda-costas.
Minha maldade se equilibrava na bondade dela. Éramos a parceria
perfeita. Ela a luz, eu a escuridão.
Ela fez biquinho, quase que inconscientemente, e eu podia não
conhecer nada sobre sua vida pessoal, mas conhecia cada uma de suas
expressões, e as sobrancelhas arqueadas, unidas ao semblante sério, eram
um indicativo de que estava preocupada. O que automaticamente me deixou
intrigado.
Nada parecia capaz de incomodar aquela mulher a ponto de ela ser
surpreendida, como se sempre estivesse esperando pelo caos. Desde que
conheci a agente Petrova, em um fatídico dia que iniciou uma rede de
favores intermináveis, nunca a vi hesitar. Ela era inteligente, de um jeito
irritante. Seu QI era tão alto que ela às vezes se confundia com coisas
simples, como apontar esquerda e direita. Várias vezes virei o caminho
errado porque ela dizia: Entre à direita! E no fim das contas se tratava da
porra da esquerda. Fora isso, ela se assemelhava a uma máquina. Pensava
rápido demais, e apesar de o confronto físico não ser uma de suas maiores
especialidades, ela era bem dura na queda.
Meu nariz que o diga!
Aquela mulher era como uma Uzi Submachine, uma arma pequena,
mas muito letal, e com um senso de dever e moral que quase sempre me
irritavam. E toda aquela preocupação só podia significar que alguma coisa
grande estava acontecendo. Precisava descobrir o que ela estava
escondendo.
Parei o carro quando nos aproximamos do sinal vermelho e a olhei
por um breve momento. A sombra preta e marcante deixou seus olhos
verdes ainda mais intensos, e a boca... Tentei me lembrar desde quando
Petrova tinha uma boca carnuda como aquela. Chegava a ser indecente,
ainda mais destacada pelo batom tão vermelho quanto o vestido.
— Está me encarando de novo. — Ela se virou de repente, e me
flagrou a observando. Bati o piercing da língua contra os dentes no susto e
me virei para frente em um átimo de segundo, tentando escapar do seu
semblante inquisidor. — Não vou prejudicar nenhum dos seus amigos
esquisitos, Snake. Fique tranquilo. — Ela bufou e voltou a encarar a rua.
— Como se você não fosse nem um pouco encrenqueira. Jack nunca
vai perdoá-la por ter feito com que quebrasse o braço. — Acelerei pelas
ruas de Chicago.
— Que culpa eu tenho se foi ele quem me atacou primeiro? — disse
baixo e inocente, a dissimulada.
— O que você chama de atacar, na civilização nós costumamos
chamar de cumprimento. Ele tocou no seu ombro e você o empurrou de
uma escada.
— Ele tocou de um jeito meio... — Estreitei os olhos para a cara de
pau agressiva ao meu lado e ela crispou os lábios com força, segurando um
sorriso que, por sinal, eu quase nunca a via dar. Não um que fosse
inteiramente verdadeiro. — Eu me assustei. Sempre me assusto quando
estou em algum lugar onde possa acabar morrendo. Gosto de viver, sabe?
— Ela torceu os lábios e sussurrou, culpada: — Acho que deveria me
desculpar com ele.
— Ele vai gostar disso. É um cara sensível.
— Não é ele que adora arrancar a mão dos rivais?
— Ele arranca sensivelmente.
Ouvi um som estranho e engasgado, parecia uma risada baixinha,
mas ela logo deu um jeito de escondê-la com uma tosse indisfarçada.
Entrei no estacionamento do local onde a festa estava acontecendo e
paramos em uma cancela onde alguns dos seguranças do lugar solicitavam a
identificação de cada um dos convidados, além de verificar os veículos,
como de costume, afinal, não era uma festa comum, cada convidado
naquele lugar tinha um motivo plausível para se sentir ameaçado.
— Boa noite, senhor. Identificação, por gentileza. Peço que abaixe
os vidros e abra o porta-malas…
Ergui os olhos e encontrei um rapaz um pouco mais jovem do que
eu. Usava um terno impecavelmente alinhado, unido à arma em sua cintura
e o ponto de comunicação tão familiar à Holder Security e suas sedes, uma
das quais eu era o dono. Ele estava distraído anotando a placa do meu carro
e demorou a me encarar de fato.
— Jeromi! — alguém rosnou ao seu lado e então ele se virou para
mim.
— Presidente Holder! — ele grasnou, como um animal ferido. —
Não tinha visto que era o senhor. Pode passar, chefe. — Ele liberou a
entrada, meneei um aceno, e entrei.
O lugar estava abarrotado de guarda-costas, todos eles tinham sido
contratados na minha empresa, a única que homens como Baylor confiava.
Sendo conhecido como um falsificador altamente cotado, o homem era tão
poderoso quanto cético, e só confiava em um tipo de pessoa: que fosse
parecida com ele. O que era um critério que eu preenchia de diversas
formas.
Desci do veículo e fomos recebidos por um manobrista alto e
esguio. Dei a volta no carro e abri a porta para que Petrova descesse.
— Boa noite, senhor.
O manobrista se aproximou e me afastei de Petrova por menos de
um minuto para entregar as chaves do carro ao rapaz. Quando me virei,
estreitei os olhos ao notar que um dos convidados da festa estava parado
bem perto dela.
O homem, que por sinal eu não conhecia, parecia ter perdido o
raciocínio quando colocou os olhos na ruiva de beleza exótica. Seu olhar
indiscreto desceu direto para o decote exposto e não parou por aí. Ela se
virou para analisar a entrada do evento, alheia ao idiota, e o safado encarou
sua bunda, que parecia ainda maior e muito redonda naquele tecido justo.
Certa raiva me tomou. Quem ele pensava que era para secar minha
companheira daquele jeito? Aproximei-me e dei um esbarrão no ombro do
sujeito.
— Perdeu alguma coisa ali? — eu disse baixo, feroz, e o encarei.
— Que porra é…
Ele abriu mais os olhos e ergueu o rosto para me encarar. Os olhos
redondos e saltados como os de um peixe ficaram levemente mais
esbugalhados ao se dar conta de quão perto dele eu estava.
— Sinto muito, Snake. Não sabia que era sua acompanhante. — Ele
engoliu em seco e abaixou o olhar.
Não me surpreendi com o fato de ele saber quem eu era, acabei me
tornando um nome muito conhecido, tanto no meu ramo quanto no
submundo de Chicago.
— Some daqui — rosnei.
— S-sim, senhor.
Ele desapareceu no meio dos convidados.
Aproximei-me de Petrova, que nem sequer tinha notado a cena, e
consegui entender o choque daquele homem. Ela era mesmo uma visão
estarrecedora. Mas era tão pequena que, mesmo sobre os saltos finos, ainda
parecia um bichinho de estimação andando ao meu lado.
— A CIA não tem um tamanho mínimo para recrutar? Tem certeza
de que eles sabem sua altura verdadeira? — sussurrei rente ao seu ouvido, e
ela deu um pulinho engraçado com a proximidade.
— Cala a boca, Snake! — rosnou entredentes, e olhou sobre o
ombro. As bochechas corando de raiva. Um dos poucos sentimentos que ela
não conseguia controlar muito bem, ao menos não perto de mim. — Vou
arrancar sua língua se alguém o escutar. O que fariam se soubessem que
tem uma agente aqui? Tem noção de quantos homens adorariam me enfiar
uma faca?
Ri, ciente de que nenhum deles tinha culhão o suficiente para sequer
pensar em machucar minha acompanhante.
— Não há ninguém por perto. Acha que eu arriscaria sua segurança?
— Ela estreitou os olhos, confusa. — Eu protejo os meus, Petrova, sabe
disso.
A raposa bufou e se virou para a entrada da festa.
— Conferi a lista de convidados, uma que a Interpol adoraria ter
acesso. — Riu, nervosa. — Mas, no geral, não há ninguém, além de alguns
dos seus homens, que já tenha me visto antes.
— Não se preocupe com eles, qualquer um que já a tenha visto
fingirá que não a conhece, eles sabem como devem agir. São bem treinados
e dariam a vida para nos proteger.
— Acredito em você. — Ela respirou fundo, como se estivesse se
concentrando. — Então, essa será nossa história: Somos um casal. Sou a
mulher que escolheu para passar esta noite. Não vai ser muito difícil, é só
fingir a normalidade da sua motivação diária e me manter viva até sairmos
daqui — avisou, séria, mas os pés inquietos sobre os saltos me diziam que
ela estava inquieta e preocupada.
— O que quer dizer com motivação diária? — Encarei a ruiva.
— Está insultando a minha inteligência, Snake. Sabe muito bem que
investiguei sua vida antes de trabalhar com você. Sei que se encontra com
uma mulher diferente a cada noite, e hoje serei uma delas diante dos
convidados. Não era novidade que sempre busquei transas ocasionais.
Nunca fiz sexo com a mesma mulher por mais de uma noite, tanto
quanto nunca dormi com nenhuma delas. Era a minha regra principal.
Dormir significava confiar, e eu não confiava em ninguém que não
pertencesse à minha família.
— Quem está insultando a inteligência de quem? Acha que alguém
lá dentro vai acreditar que eu escolheria uma mulher como você para passar
a noite? Basta nos olharem juntos. Nunca seríamos um casal. Íamos nos
matar antes disso.
Nossos encontros geralmente terminavam com Petrova tentando não
atirar em mim, enquanto eu usava de todo o meu autocontrole para não
acabar apertando aquele pescoço fino.
— Eu farei com que eles acreditem. Hoje serei uma acompanhante
feliz e apaixonada, mesmo que vomite depois.
Ela cutucou meu braço por cima do terno e agarrou a minha mão. O
toque quente dos seus dedos nos meus causou uma sensação estranha, que
me assustou.
— Está maluca? — Dei um tapinha na sua mão e desfiz o laço dos
nossos dedos. — Quer mesmo fingir que estamos juntos?
— É um mal necessário. Pode colaborar ou não? — Balancei a
cabeça. Agora quem estava confuso era eu. — Devo lembrá-lo de que já
fingi ser sua cunhada em um baile em que estavam tentando matá-la?
Aquele doido quase me esfaqueou com uma faca envenenada. Fico
apavorada só de lembrar. Ah, e também tive que me espremer em um
vestido naquela ocasião, mas parece que se esqueceu. — Ela ergueu um
biquinho atrevido.
— Eu não chamaria aquilo de usar um vestido, você estava
praticamente fantasiada de avestruz. — Segurei uma risada ao me lembrar
da roupa cheia de penas, mas a lembrança engraçada desapareceu ao
perceber que não poderia negar seu pedido, então aceitei aquela situação
embaraçosa e absurda. — Que inferno, Petrova. Que seja, mas me dê o
braço, nem pense em segurar minha mão. — As tatuagens da mão que ela
agarrou pareciam queimar sobre a pele.
— Certo, então vamos entrar no mar de bandidos procurados.
Êeeeee! — Ela comemorou, desanimada, agarrando meu braço, e o sorriso
gigantesco que abriu quase me fez cair duro.
Já disse que nunca a vi abrir mais do que um meio sorriso antes?
Apesar de ser um sorriso falso, os dentes muito brancos davam contorno ao
rosto delicado e a deixavam ainda mais bela, como se aquilo fosse possível.
— Preciso de dez minutos perto do bar quando Baylor estiver por lá,
não mais que isso, querrrido. Vamos?
Ela deixou um leve sotaque russo escapar e arranhou o R,
balançando a cabeça assim que notou o erro em sua compostura, e respirou
fundo.
Ela sempre fazia aquilo quando estava nervosa. O som intenso fez
um arrepio transpassar minha coluna e tentei afastá-la do enlace novamente,
aquela mulher devia ser radioativa.
Nunca nos tocamos além de um comprimento frio vez ou outra, sem
contar o soco que ela me deu quando nos conhecemos e que quase quebrou
o meu nariz, fora isso, todo aquele contato era estranho e me deixava
confuso. Mas Petrova não estava disposta a desistir e me apertou ainda
mais.
— Para de espetáculo, isso vai ser rápido. Ou não consegue se
controlar perto de mim? Não vai terminar a noite apaixonado, não é, Snake?
— ela sussurrou bem perto do meu rosto, e mordeu aqueles lábios
desenhados e tingidos de vermelho. — Olha só, acho que está ficando
vermelho. Será que é de raiva ou de...
— Petrova... — Enlacei sua cintura de uma vez só e puxei seu corpo
delicado para perto do meu, ela deu um gemido de surpresa e uma raiva
atípica subiu por meu pescoço ao perceber que ela quase estava certa, por
um momento me deixei enganar pelo rosto angelical à minha frente, mas eu
a faria pagar por tentar me pregar uma peça. Inclinei-me até estar a
centímetros da sua boca e senti seu corpo pequeno se retesar em meus
braços. Se ela achava que podia brincar de sedução, que estivesse
preparada, afinal, eu praticamente inventei aquele jogo. — É melhor não
me provocar. Por enquanto, prefiro detestá-la, mas posso mudar de ideia em
questão de segundos, e eu garanto, Raposinha, que quem não vai resistir
será você... — soprei em sua boca, provocando-a.
— O-o... O que diabos está fazendo? — Ela bateu em meu peito.
— O que você queria. Vamos fingir — rosnei, e mantive meu braço
em sua cintura de forma possessiva quando passamos pela porta.
Se contato era o que ela queria, então era exatamente o que daria a
ela. Cada maldito homem dentro daquela festa acreditaria que Petrova
pertencia a mim e eu tentaria ignorar a pontada estranha que sentia ao ter
seu corpo tão perto do meu, como se não fosse o cúmulo do absurdo
estarmos nos tocando.
Passei pela porta de entrada do evento e notei a mudança repentina
em toda a expressão corporal de Petrova. Ela se transformou bem diante dos
meus olhos, quase como mágica. Sua voz se tornou mais gentil, os ombros
relaxaram e seu olhar alcançou um nível de inocência que me chocou.
— Como pode caber tanta falsidade em um corpo tão pequeno? —
sussurrei, perplexo.
Se eu não conhecesse tão bem cada mínima menção dos seus
movimentos, poderia até mesmo acreditar naquela mudança.
— Ora, querido, você está tão amargo hoje. Quer que eu alegre sua
noite? — Ela deu uma risadinha histérica e se encolheu, fazendo a tímida
inocente.
Contive a vontade de abrir a boca de surpresa e estreitei os olhos
para sua atuação digna de um Oscar.
— Vamos acabar logo com isso, antes que eu me mate. — Revirei
os olhos.
— Que Deus me ajude a não enfiar uma garrafa na sua garganta.
Ah! Que ótimo, chegamos à ala dos traficantes, tão queridos... Que fofo
aquele ali com a cicatriz no rosto — disse a falsa, sorrindo, quando nos
aproximamos de um grupo de homens mal-encarados que me
cumprimentaram com respeito, mas não me passou despercebido o
nervosismo fundo em sua voz e as mãos pequenas que se fecharam ao redor
do meu braço com mais força.
Ela continuou a caminhar enquanto apertava meu braço, estava
muito nervosa, e tropeçou nos próprios saltos poucos metros depois. Ali
estava a agente da CIA desastrada que eu conhecia.
— Devia ter escolhido algo mais baixo — ressaltei o óbvio.
— Só... cala a boca e me segura, certo? Ainda estou aprendendo. Se
me deixar cair, farei com que engula um desses saltos. — Parei por um
momento e olhei para ela. — Não está considerando a ideia de aceitar uma
sapatada na cara em troca de me deixar cair aqui, né? Você não seria tão
perverso.
— Está desacreditando do meu potencial, Petrova. — Abri um
sorriso. — Não me provoque e garanto que não permitirei que caía de
forma alguma, mas me irrite e eu mesmo te jogo dentro daquele aquário. —
Apontei para o gigantesco aquário que ornamentava parte do salão.
— Babaca — ela cantarolou baixinho, com um sorriso, para que
ninguém ao nosso redor notasse a pequena tensão entre nós.
Entramos na festa abarrotada de gente, e que era de longe um dos
lugares que eu mais detestava frequentar. Cheio de luzes, pessoas agitadas,
ricas e intrometidas, e uma música ambiente que parecia se repetir
infinitamente, além de muita sofisticação.
Eu era famoso no meio, devo admitir, e a cada passo que dávamos,
homens poderosos, e geralmente grosseiros, faziam questão de vir me
cumprimentar. Me surpreendi ainda mais com a forma com que Petrova se
comportava diante deles. A safada conseguiu fazer com que cada um
daqueles imbecis comesse na palma da sua mão. A voz fina era delicada e
baixa, ela fazia contato visual por poucos segundos, piscava os cílios
grossos e pesados e logo se aconchegava em meu braço e desviava o olhar
do homem à sua frente, tendo a petulância de corar, como se fosse tímida
demais para estar ali. Além daquilo, não havia um assunto que eles falavam
que ela não tivesse algo a considerar, o que os deixou fascinados. Seu jeito
meigo e muito intelectual era adorável, para quem não conhecia a pequena
raposa ardilosa que ela era.
— Snake, por que ainda não buscou uma bebida para a moça? Devo
pegar algo para a senhorita? — Joseph, que trabalhava no ramo de cassinos
clandestinos, na zona Leste de Chicago, questionou.
Seu senso de perigo o mantinha afastado de Petrova, mas podia ver
pelo dedo que ele deslizava pela beirada do seu próprio copo que ele
claramente gostaria de ter a chance de tocar nela. Seus olhos estavam
vidrados, como se tivesse caído em um encanto. Por algum motivo aquilo
me irritou. Não que eu me importasse se ele queria ou não transar com
Petrova, que Deus o ajudasse, no entanto, o que me indignava era ele pensar
naquilo bem diante de mim. Era uma farsa, sim, mas só para nós dois.
— Se tentar se aproximar da minha acompanhante com um copo de
bebida, vai acabar engolindo cada gota pelo nariz. Eu mesmo vou garantir
isso. — Dei um passo em direção a ele, que arregalou os olhos, e por fim
pareceu se dar conta de que eu estava ali e do risco que corria.
— Sinto muito, Snake, pensei que não fosse se importar. Parece que
me enganei — ele sussurrou para que somente eu escutasse, e saiu aos
tropeços.
Petrova me lançou um olhar confuso.
— Não era para parecer real? — Empurrei os ombros dela em
direção ao bar. — Se Joseph te oferecer alguma bebida, não aceite. Na
verdade, nunca aceite bebidas de estranhos. Não se sabe o que pode conter
nelas. — Pisquei ao perceber que estava realmente preocupado.
— Snake, eu sei me cuidar — ela chiou baixinho. — Junte-se aos
seus amigos e pareça distraído enquanto vou até o bar, certo? Mas, por
favor, só não... me perca de vista.
— Pensei que soubesse se cuidar.
— E sei, mas esses homens são perigosos para alguém na minha
profissão. Só quero ter a certeza de que posso ter a conversa que preciso
sem ser surpreendida.
— Não se preocupe, estarei de olho em você.
Ela concordou, e a vi se afastar com um incômodo latente.
Mas com que diabos eu estava preocupado? Ela era uma agente
treinada, tão mortal quanto a minha arma, talvez até mais. Ela sabia se
cuidar, mas por algum motivo nem ela mesma acreditava muito naquilo, e
não consegui desviar minha atenção das suas costas enquanto ela
caminhava para um destino perigoso e incerto. Tive que me segurar para
não segui-la de perto e passei os próximos 15 minutos inquieto, enquanto
alguns conhecidos conversavam ao meu redor.
Petrova se aproximou do bar, e Baylor, aquele velho safado, a
escrutinou dos pés à cabeça. Dei um gole em minha bebida e jurei que
acompanharia a cena apenas o suficiente para mantê-la segura, mas não
resisti.
Observei quando ela sorriu para ele e pareceu apontar para as
bebidas, um dos assuntos que fascinavam Baylor, e assim ela conseguiu sua
atenção. Os dois começaram a conversar e aquele bode velho não perdeu
tempo. Sua mão foi parar no ombro de Petrova, e apesar de parecer um
toque inocente, o rosto faminto que ele estampava me dizia o contrário.
Petrova
Podia sentir o olhar de Snake em minhas costas. Estava sendo
especialmente mais difícil ignorar a presença dele naquela noite. Olhei
sobre o ombro só para constatar seu olhar altivo, preso em mim. As
tatuagens subiam pelo pescoço largo e passavam por trás da orelha,
terminando no início do corte social. O cabelo, liso e escuro,
impecavelmente alinhado, contrastava com os olhos profundos, de um azul
límpido e perigoso.
Nunca estive tão feliz pelo fim de um contrato. Há muitos meses
tinha notado certo desconforto em estar perto dele, e aquela sensação se
confirmou quando toquei sua mão mais cedo, que também era coberta por
tatuagens. Foi como encostar em algo proibido, algo que me deixou
inquieta, estranha. E todo aquele jeito imperial e magnético que ele possuía
não facilitava em nada.
Ficava cada vez mais difícil ignorar a forma astuta e única de como
ele andava; as pessoas abriam espaço quando ele se aproximava e faziam de
tudo para chamar sua atenção. Ele era um evento ambulante, se achava o
dono da razão e era incontestavelmente atraente. Todas as mulheres do
lugar, até as que estavam acompanhadas, davam um jeito de passar os olhos
pelo seu corpo marcante. Snake deixava uma sensação de poder no ar, uma
que vez ou outra me fazia engolir em seco, por mais que o detestasse.
Não gostava de me sentir assim, então agiria o mais rápido que
pudesse e daria um jeito de sair logo do caminho dele. Snake me estressava,
ao mesmo tempo que me instigava a dar o melhor de mim. Ele me
desafiava. Mal podia suportar sua voz rouca e fria quando o conheci, mas
agora aquele timbre baixo, calmo e perigoso me incomodava de um jeito
diferente, e muito preocupante.
Fechei mais as pernas, a fim de sentir melhor o peso da arma entre
elas. Aquela era minha realidade, minha única segurança, e eu estava ali por
um objetivo simples, mas que poderia custar a minha vida. Detestava
missões em campo, mas aquela era mais que necessária, e se havia alguém
que poderia me proteger dos incontáveis bandidos daquele lugar, era ele.
Diferentemente do que Snake pensava, a CIA não fazia ideia de que
eu estava ali, e precisava manter aquele segredo dele, o que não era nada
fácil considerando que o homem era especialista em identificar mentiras,
mas tinha que tentar. Havia muito mais em jogo daquela vez, então
precisava afastar o tatuado de quase 2 metros de altura da minha mente. E
foi o que fiz. Passei os próximos minutos conversando com Baylor
enquanto movia minha mão para lá e para cá, despretensiosamente, até que
meu anel, que continha um dispositivo de luz transparente, passasse pelas
íris dos olhos do homem.
Estreitei os olhos quando percebi que havia um traço de luz azul,
quase imperceptível a olhos nus, e que seria impossível de notar sem o
reflexo causado pelo meu anel. Era a informação que eu precisava.
Baylor era um dos nomes de uma lista que descobri por acaso em
um drive de segurança do meu chefe. A curiosidade, unida à sensação de
estar diante de algo grande, acabou me deixando mais corajosa do que o
normal e invadi o sistema do meu chefe para descobrir do que se tratava.
Acabei em posse de um documento que revelava uma lista de componentes
químicos, um deles deixava um rastro de luz azul nas íris. Aparentemente
era uma fórmula, algum tipo de droga nova estava sendo criada e meu chefe
estava envolvido, e estudei tudo o que pude sobre o drive, mas no final das
contas não fazia muito sentido.
Pela lista que encontrei dentro dele, e que não estava completa, com
toda certeza aquela combinação de componentes levaria à morte certa.
Então por que diabos Baylor estava ali, do meu lado, vivíssimo? Pelo que
entendi, ele tinha sido um dos usuários da droga fatal.
— Senhor Baylor…
O bartender se aproximou e sussurrou alguma coisa para Baylor, que
olhou sobre o ombro. Fiz o mesmo, e encontrei Snake nos fuzilando com o
olhar.
— A senhorita está acompanhada pelo Snake esta noite? — ele
inquiriu, visivelmente preocupado.
— Sim, ele é um...
— Ele é o tipo de homem com o qual não quero problemas. Tenha
uma boa noite. — O homem nem mesmo me deixou terminar, levantou-se e
foi embora.
Estreitei os olhos para Snake. Não foi aquilo que eu quis dizer
quando pedi que não me perdesse de vista. Por que aquele imbecil tinha que
ficar nos encarando daquele jeito ameaçador? E se eu não tivesse
conseguido a porcaria da informação?
Levantei-me, furiosa. Ele estava cercado por homens, que o
observavam com um misto visível de admiração e medo. O idiota parecia o
dono do lugar, emanando uma aura poderosa e irritante. Mas agora que eu
tinha o que precisava, ia me livrar daquele tatuado desagradável para
sempre. Respirei fundo. Nunca mais precisaria vê-lo.
Aquilo tinha que ser um alívio, mas eu bem sabia que não era.
Eu sou o super-homem
Ela é a Lois Lane
Love the Way you lie - Eminem & Rihanna
Snake
Soube que Baylor tinha descoberto que estávamos juntos no minuto
em que ele fugiu pela lateral do bar e Petrova me lançou um olhar sorrateiro
e nervoso. Tentei não sorrir ao vê-la marchando em minha direção,
equilibrando-se nos saltos, quase como um ganso tentando voar.
— Querido, podemos ir embora? Não estou me sentindo bem — ela
disse baixo, controlando a raiva, e piscou mais devagar. Um dos seus
poucos indicativos de que estava mentindo.
— Falsa! — provoquei, baixinho, ao oferecer meu braço a ela, e me
despedi dos homens ao nosso redor.
— Você quase estragou tudo — reclamou, quando peguei o carro
com o manobrista.
— Não esperava que eu fingisse desimportância na frente de
homens que me respeitam, não é? Ninguém toca no que é meu, ainda que
por uma noite. É um respeito que não estou disposto a perder por causa das
suas investigações.
Ela bufou e não disse mais nada. Petrova sabia como as leis ali
funcionavam. Respeito era muito mais exigido do que dinheiro naquele
meio.
— Onde devo deixá-la? E pelo amor de Deus, guarde logo esse
monte de coisa — falei, irritado, ao rever a bagunça dentro do meu carro.
— Aqui mesmo. — Ela apontou para um acostamento aleatório,
enquanto recolhia as maquiagens espalhadas pelo painel.
Estreitei os olhos para a rua vazia. Não gostei da ideia, mas cedi
mesmo assim, e parei o carro antes que ela decidisse abrir a porta e saltar do
veículo em movimento.
— Da próxima vez, que tal nos encontramos na boate do Jack? Já
que gosta de lugares escuros e mal frequentados, creio que seja uma opção
razoável. — Virei-me para ela, e lá estava novamente a expressão incômoda
em seu rosto.
— Não haverá uma próxima vez, Snake — ela disse, séria, e me
encarou. Os olhos marcados pela sombra preta pareciam maiores, mais
brilhantes e infinitamente mais tristes.
— O que quer dizer? Não é isso que estamos fazendo há dois anos?
— Eu o suporto, você me tolera e a gente tenta não se matar pelo
bem de algo maior. — Ela abaixou os olhos para o colo. — Mas uma hora
todos os contratos têm um fim. O nosso chegou. Você estará livre de
ligações com pedidos estranhos no meio da madrugada, pelo menos de
mim. É hora de encerrarmos, sabe que não posso dizer mais do que isso. —
Ela respirou fundo. — Sei que você sentiu tudo o que eu não disse.
Engoli em seco, uma sensação estranha e dolorosamente fria se
espalhou pelo meu peito. Sabia que aquele momento chegaria, e deveria
estar feliz por isso, mas então por que parecia que eu estava perdendo algo?
Petrova tinha razão. Eu senti o que ela não disse. A distância entre
nossos mundos. A faísca estranha que me impelia a odiá-la, mas ao mesmo
tempo desejar tê-la por perto, como uma dor viciante. Ela me assustava. A
raposa parecia me ler de dentro para fora, por mais que o especialista
naquele assunto fosse eu. Era a única que me irritava na mesma proporção
que me causava admiração; a única que eu atendia de madrugada, fora meus
irmãos, e apesar de ter desejado o fim daquele arranjo por muito tempo, não
sabia por que maldição não estava certo sobre isso agora.
— Ok, então hoje colocaremos um ponto-final nessa história —
concordei.
— Obrigada por tudo até aqui, e vê se se cuida. Tome cuidado com
suas companhias, sei que, apesar de ser um chato arrogante e insuportável, é
um homem bom e justo. — Ela mordeu o lábio vermelho e fiquei sem
palavras por um momento. Não esperava por sua despedida, tanto quanto
não esperava por aquele elogio esquisito. — Adeus, Snake. — Ela abriu a
porta, sem despedidas prolongadas, sem olhar para trás, e quando a bateu,
um nó se fechou ao redor da minha garganta.
Mas por quê? Por que infernos eu queria descer do carro e ir atrás
dela?
Não fazia ideia, mas mesmo sem entender abri a porta do veículo e
chamei a raposa radioativa.
— Petrova... — Ela olhou sobre o ombro, a escuridão da noite
camuflou parte da beleza quase mística que ela possuía. Naquele canto
escuro ela parecia um pouco menor e indefesa, apesar da arma em sua
perna. Não me agradava deixá-la ali sozinha. — É a nossa última vez
juntos, e apesar de ter sido mais como um teste de resistência, foi uma
parceria muito útil. Vamos beber, é assim que nos despedimos por aqui.
— Beber? — Ela estreitou os olhos, desconfiada, mas visivelmente
interessada. — Faz tempo que não bebo — disse, mais para si mesma,
considerando a opção.
— Tem um bar na colina. Lá é...
— Vazio? — ela completou, quase como se lesse minha mente.
— Exatamente.
— Gostei da ideia. — Petrova pinçou o vestido com as pontas dos
dedos, ergueu as barras e voltou, meio saltitando, meio cambaleando, em
minha direção. Era quase cômico como ela variava de “mulher fatal” para
“garota desajeitada” de um segundo para o outro. — Depois de passar a
noite fazendo aquela vozinha insuportável, preciso de um pouco de álcool
para me purificar. Algumas doses, certo?
Levei a bagunceira para um dos bares que ficava no entorno de uma
das colinas que cercavam a cidade. Geralmente eram lugares rústicos e
ermos, onde se podia ter uma bela vista do céu estrelado e experimentar
uma bebida de qualidade ao mesmo tempo.
— Senhor Snake, senhorita, sejam bem-vindos! Por aqui... —
Fomos recepcionados assim que chegamos no lugar e um dos hostess do bar
nos levou até uma mesa reservada.
Os funcionários que trabalhavam ali me conheciam bem, já que
costumava ir com frequência beber sozinho. Sabiam que eu apreciava a
privacidade como nenhum outro. Nos sentamos nos fundos, onde uma
grande vidraça deixava o céu exposto bem diante de nós. As luzes estavam
estrategicamente espalhadas, para dar a impressão de que o ambiente era
mal-iluminado, mesmo que não fosse de fato. Era como uma taberna
moderna.
— Não pretendo beber mais do que duas ou três doses, o que temos
aqui? — ela disse, mais para si mesma, enquanto passava os olhos pelas
opções da cartela de bebidas.
— Você parece fraca para bebidas. Posso te indicar algo leve e que
não vai fazer com que caia com esses saltos e quebre o pescoço.
Ela me fuzilou com os olhos verdes, e contive um sorriso.
— Não sou fraca para bebidas. — Notei o quanto a palavra a
incomodava. — Consigo beber o mesmo tanto que você, mas o álcool em
excesso pode reduzir a concentração, além de prejudicar a memória e a
capacidade de julgamento. Sem contar a visão borrada, fala arrastada,
tempo de resposta retardada. Em média, 85 mil pessoas morreram devido ao
consumo exagerado de álcool entre os anos de 2013 e 2015 no nosso país.
Agora, se multiplicarmos e subtraímos... a porcentagem de chances que
uma mente superdesenvolvida tem de ter algum prejuízo é de...
— Essa é a desculpa mais NERD que eu já ouvi — a interrompi. —
Você só não aguenta beber, é melhor se conformar. — Cruzei os braços e a
vi fazer um biquinho invocado, que eu conhecia bem.
— Com toda certeza consigo beber mais do que você.
— Eu duvido. — Abri um sorriso de lado.
— Então vamos apostar! — Ela empinou o nariz fino.
— Tem certeza? — Ergui as sobrancelhas e a encarei.
— Vou mostrar do que sou capaz — vociferou.
— O que quer apostar?
— O seu carro.
— O quê? — Quase caí da cadeira. — Tá maluca? Esse é um Alfa
Romeo. Tem noção de quanto custa?
— O que foi? Está com medo? — A raposa estreitou os olhos e se
inclinou sobre a mesa, deixando à mostra o vale profundo entre os seios
muito redondos.
Desviei os olhos assim que me dei conta do que diabos estava
encarando e pisquei aturdido por um momento. Está certo que eu não era
nenhum santo e, se fosse qualquer outra mulher ali, com toda certeza já
estaria tocando em cada canto acessível do seu corpo, mas não era.
Aquela pequena ali era ninguém mais, ninguém menos do que
Winnie Petrova, e eu me recusava a olhar qualquer tanto que fosse para
aquela diaba, que dirá tocá-la.
— Medo? Não. Estou empolgado. — Abri um sorriso, que a
confundiu por um momento. — Se quer o meu carro, me dá direito de pedir
algo bem interessante.
— O que você quer? Lembre-se de que sou uma agente, não uma
fada madrinha.
— Quero um rifle Vo Vapen, edição falcão de 1977.
— O quê? Esse é o rifle mais caro do mundo! Quem é que está
maluco agora? — ela disse alto, mas logo em seguida tampou a boca e
olhou sobre o ombro para conferir se alguém tinha escutado.
— Você é uma agente, consegue isso mais fácil que uma fada
madrinha, e nós dois sabemos que você não precisa pagar — provoquei, e a
vi mordiscar os lábios vermelhos. — E aí? Está com me...
— De jeito nenhum — ela me interrompeu. — Só não sei por que
infernos quer uma arma tão simples e cara.
— Ela não é simples. — Encarei-a, ofendido. — Aquele é um rifle
especial. Ele é feito de uma joia rara, com pintura clássica e aço damasco.
Os modelos de 1977 estão no meu radar faz tempo, mas não consegui
nenhuma venda autorizada. Já disse que todos os rifles dessa empresa são
feitos à mão?
— Quem é o nerd agora? — Ela empinou o nariz.
— E aí, vai entrar nessa ou não?
Ela me encarou e suspirou fundo.
— Fechado. Até um dos dois ceder. — Ela esticou a mão em minha
direção.
— Até um dos dois ceder — concordei, e apertei sua palma.
— O que vamos beber?
— Uma das melhores tequilas envelhecidas em barris de carvalho
de Chicago.
— Você está muito ferrado — ela ameaçou, e desconfiei da sua
empolgação, até que os jogos começaram.
Pedimos alguns shots especiais de tequila e brindamos o primeiro
copo. Petrova virou o líquido âmbar ao meu sinal e precisei segurar uma
risada quando ela conteve uma tossidinha, mas seu rosto muito vermelho a
entregou. Não estava acostumada a destilados como fazia parecer.
— Quer continuar mesmo assim? É sua última chance de pular fora.
A raposa me encarou e abriu um sorriso de lado, que soou como um
desafio, e ela pegou mais um dos copos, que foram cuidadosamente
colocados em fileira na nossa mesa.
— Se pensa que vou desistir, pode esquecer. Aquele carro lá fora vai
ser meu. — Ela brindou comigo e virou o copo, parecia determinada, mas
ela não era páreo para mim.
Ao menos era o que eu pensava.
— Mais uma rodada! — ela pediu, quando encerramos a quarta
rodada, e por um momento temi que estivesse enganado sobre sua
resistência ao álcool.
Eu mesmo já estava enxergando uma Petrova mais laranja do que o
normal. Não, ela não era laranja, o cabelo dela que era.
— Olha, não me responsabilizo se você vomitar até a sua próxima
geração de Petrovinhas encrenqueiras.
— Por que está falando tão devagar?
— Não estou.
— Está sim! — Ela gargalhou, e me vi paralisado pelo som
delicioso e tão incomum vindo dela. Quem era aquela pessoa laranja
sentada na minha frente e o que fez com a agente Petrova? — O que foi? —
ela disse, com um sorriso enorme preso no rosto, e se inclinou em minha
direção, cercou a boca com ambas as mãos e sussurrou: — Se quiser
desistir, eu jurrrro que guardo o seu segrrrredo.
Ela abriu um sorriso enorme. Daquele jeito que me dizia muito e
nada ao mesmo tempo, de um jeito que me virou do avesso sem que eu me
desse conta. Engoli em seco quando vi que dois buraquinhos encantadores
surgiram em sua bochecha. Duas covinhas. A diaba ficava ainda mais linda
sorrindo.
— Mais uma rodada! E você está falando com sotaque — acusei, e
desviei os olhos com a sensação de ter sido enfeitiçado.
Não demorou um segundo para que eu buscasse seus olhos verdes
mais uma vez, como se ela fosse desaparecer a qualquer momento.
— Estou? — ela repetiu, a língua meio presa e puxadinha, de um
jeito encantador, e até engraçado.
Petrova tinha o sotaque russo forte, mas ele só aparecia quando ela
perdia o controle das emoções. Todas as vezes que ouvi ela estava com
raiva, mas agora ele parecia muito mais sensual do que me lembrava.
Viramos a próxima rodada entre conversas supérfluas que não
davam brechas para descobrirmos qualquer coisa um do outro. Constatei,
irritado, que estava confortável em ouvir suas mentiras. Contanto que eu
continuasse a escutar sua voz, ela podia continuar a contá-las. E como
mentia bem, a safada.
Os shots começaram a esquentar minhas veias e aquela boca
mentirosa ganhou formas mais marcantes. O arco em seus lábios parecia se
destacar mais a cada copo que eu virava. A forma como ela se movia era
graciosa, os olhos grandes acentuavam certa inocência no rosto fino. Ela era
um misto de poder e virtude. Uma nerd, com certeza. Uma daquelas bem
gostosas, e me sentia inclinado a beber mais, apenas para não me sentir
culpado por encarar a pequena raposa daquele jeito, como se quisesse
devorá-la.
— Termineiiiiiiiiii! — ela gritou e ergueu o copo acima da cabeça,
como se fosse um troféu. Então, me olhou de soslaio, com as bochechas
muito vermelhas, agarrou minha gravata por cima da mesa e me puxou para
perto, como se quisesse contar um segredo, só que quase me sufocou no
caminho. — Se eu beber mais um golezinho que seja, vou morrer. Sei disso,
meu fígado me avisou agorinha.
Prensei os lábios com força, mas assim que senti meus olhos
arderem eu percebi que tinha perdido a batalha. Joguei a cabeça para trás e
gargalhei alto, meu Deus, eu ri pra caralho.
— Seu fígado te avisou? — Ri mais alto. A bebida com toda certeza
era o combustível para aquela inexplicável sensação de júbilo e prazer
apenas por vê-la bêbada, mas que se foda, eu só queria rir, e ela também.
Rimos tanto que Petrova começou a chorar. Peguei o lenço em meu terno e
lhe entreguei, ainda com um sorriso no rosto, ambos alterados pela bebida.
— Desistiu?
— Desistir? Não! Vou renunciar, é diferente. — Ela torceu o nariz,
orgulhosa. — Vou dar um jeito de que seu rifle idiota chegue até você, mas
me faça o favor de não matar ninguém com ele, certo?
— Combinado. — Bati na mesa, eufórico. Estava louco por aquela
arma fazia meses, mas não tinha encontrado um vendedor autorizado, não
do ano que eu queria. Ela completaria parte da minha coleção favorita, a de
armas raras e não comercializáveis. — Parabéns por ouvir seu fígado. —
Ergui a mão e pedi um refrigerante gelado. Empurrei um copo com a bebida
acrescida de gelo e limão para ela assim que ele foi servido. — Tome, vai
ajudar a conseguir voltar para casa.
— Certo. — Petrova segurou o copo com ambas as mãos, parecia
uma criança com medo de derrubar tudo pelo caminho.
Passei os próximos minutos observando-a bebericar o líquido com
calma, enquanto eu também tomava um pouco de água. Afinal, precisava
seguir seu táxi assim que ela resolvesse ir embora.
Tinha prometido que não faria tal coisa, mas em que planeta eu seria
capaz de deixá-la bêbada como estava dentro de um veículo com um
estranho? Petrova podia me odiar se um dia descobrisse, mas ao menos me
detestaria da segurança do seu lar.
Voltei a encará-la. Seus olhos claros vagavam pelas sombras do bar,
como se estivesse bem longe de mim naquele momento e desejei poder
ouvir seus pensamentos e descobrir aonde ela tinha ido parar. As
sobrancelhas arqueadas demonstravam certa atenção, talvez preocupação.
— Está se sentindo bem, Petrova?
Ela piscou, e ergueu os olhos para mim.
— Se eu não morrer em 5 minutos, talvez eu fique. — Riu.
O sorriso alegre e descontraído a deixava mais linda. Passei os
próximos minutos sondando cada detalhe do seu rosto e demorei a me dar
conta de que estava tentando guardar alguma lembrança dela em minha
mente. Mas a verdade era que Petrova iria embora e se tornaria parte de um
dos tantos passados que me obriguei a enterrar. Tentei esquecer o fato de
que não a veria nunca mais depois que ela passasse por aquela porta, mas
por algum motivo maldito não conseguia.
Por que diabos ela queria encerrar a parceria logo agora? Sem
nenhum motivo aparente? Será que fiz algo? Quer dizer, algo além do
normal?
— Por que está me encarando de novooooo? — ela cantarolou, e
apontou para o próprio rosto. Tossi, por ter sido pego em flagrante, e falei a
primeira coisa que me veio à cabeça.
— Só estava calculando... como uma mão tão fina e pequena quase
quebrou meu nariz quando nos conhecemos — menti.
— É só bater do jeito certo. E ajuda você ser grandão assim, porque
não tem como errar. — Dei risada. — Mas não gosto de brigas. Na
verdade, não gosto de nada que possa me machucar. Como já deve
imaginar, confronto físico não é minha especialidade. Tenho medo de
alguém me acertar de jeito um dia — admitiu, e deu mais um gole no
refrigerante.
A possibilidade de que alguém sequer tocasse em Petrova me
deixou nervoso, irritado, furioso, para dizer a verdade.
— Sei que não precisará mais de mim depois de hoje, mas se um dia
se meter em confusão, não hesite em me ligar, certo? Uma ajudinha não faz
mal, apesar de sempre ter se mostrado uma adversária à altura — falei,
sincero.
— Deveria dizer isso para meus superiores — soltou.
— Eles não acreditam em você?
— Acham que meu lugar é atrás de um computador. E obviamente é
onde prefiro estar, mas também sou boa em outras coisas. Treino muito
mais do que qualquer um dos meus colegas, para compensar meu tamanho,
caso precise. Tenho meus talentos, mas não gosto de precisar usá-los. —
Meneei um aceno e tentei desviar os olhos do decote profundo e redondinho
que parecia me instigar mais a cada segundo. — Minha mira é excelente,
tenho a percepção aguçada de perigo, isso sem falar na minha principal
característica. Sou uma das melhores hackers que a CIA já contratou na
última década, tenho orgulho disso, e consigo acessar tudo o que puder
imaginar.
— Até a NASA? Sempre quis saber o que eles escondem naquele
lugar.
— Tive a mesma curiosidade. — Ela mordeu os lábios, sapeca.
— Vai ou não me contar o que viu por lá? Eles já acharam algo
estranho? Vida fora da terra?
— Snake, está mesmo me perguntando se ETs existem? —
sussurrou, as bochechas reluzindo um tom coral gracioso.
— Não finja que não procurou saber sobre.
— Aparentemente, a NASA guarda registros que deixariam a
população de cabelo em pé, mas nada substancial, tudo como fonte de
estudo. São espertos, uma das agências mais difíceis de invadir. — Ela se
inclinou em minha direção, os seios ficaram mais expostos, e dei tudo de
mim para desviar o olhar, mas não tive êxito daquela vez, e engoli em seco,
imaginando como seria tocá-los, se seriam tão macios quanto aparentavam,
como seria o biquinho e qual som ela faria quando eu o mordesse. — Só
consegui abrir um pedacinho dos arquivos deles e não encontrei seus ETs,
se quer saber.
Ri, em meio a uma tosse, e ela me encarou com os olhinhos verdes
vagamente menores. Parecia uma boneca de porcelana, com os cabelos
ruivos intensos caindo em ondas por seus ombros nus. Engoli em seco
quando me dei conta de que estava duro de desejo. Duro por uma mulher
que horas atrás eu cogitei esganar. Que diabos estava acontecendo com meu
cérebro?
Só podia estar ficando louco. Aquela ali era a Petrova.
Pe-tro-va... O pé no saco que me atormentou por 2 anos, que roubou
as minhas senhas e alterou todos os meus cadastros só para me provocar,
além de já ter me causado mais do que uma dúzia de dores de cabeça.
Aquela raposa bagunceira era meu tormento, mas a bebida parecia ter
diminuído a raiva que eu sentia, e naquele momento eu só conseguia
perceber o quanto ela era linda pra caralho.
— Que porra tinha nesses shots? — resmunguei, e pressionei a testa
com a ponta dos dedos, indignado pela percepção de coisas que sempre
ignorei.
— Como?
— Não, é... quer dizer... Afinal, o que você queria com o Baylor?
Sua conversa foi tão rápida, conseguiu alguma informação útil? —
obriguei-me a falar para tentar prestar atenção em qualquer coisa que não
fosse ela. Estreitei os olhos e tentei manter minha mente focada na
conversa.
— Não preciso de muito tempo, sabe? Um agente da CIA em geral é
um funcionário que investiga através de conversas que, em sua grande
maioria, nem tem nada a ver com o assunto que queremos saber. Nas mãos
da pessoa certa, poucas informações bastam.
Ela passou o dorso da mão nas bochechas, que estavam
vermelhinhas. Pela primeira vez senti que ela estava prestes a baixar a
guarda perto de mim. A primeira e última, pelo visto.
— Por isso nunca quis me dizer nada sobre você? Tem medo de que
eu seja capaz de descobrir muito com pouco?
— Não posso correr esse risco. Por isso, optei por não confiar em
ninguém, e sei que pensa como eu. Por qual outro motivo seu celular estaria
desligado?
— Para que você não destrua minha vida?
— Não sou tão má! — disse baixo.
— Não foi o que eu quis dizer. Você é perigosa, mas sei que é
incapaz de ser má, nem mesmo com os vilões.
Ela abriu um sorriso lento, que fez uma pontada quente esquentar
meu peito.
Lá estavam as covinhas novamente, e não resisti, precisava tocá-las
de alguma forma. Algo em minha mente me dizia para correr no sentido
oposto, mas decidi ouvir uma voz diferente, a voz que geralmente me
impulsionava a fazer alguma merda.
Ergui a mão e resvalei os dedos no seu rosto delicado. O contato
das nossas peles me deixou quente, abatido, e pior que aquilo foi ver que
ela não se afastou, pelo contrário, pareceu gostar tanto quanto eu, e piscou
devagar, como se a carícia a impelisse a fechar os olhos.
— Que merda! — Afastei a mão de repente, como se sua pele
queimasse a minha, e ela quase tombou para o lado com o movimento
repentino, mas apoiei seu ombro antes que ela caísse, e respirei fundo.
Calor. Era exatamente o que eu estava sentindo. Uma pressão
urgente que me obrigou a engolir em seco e me afastar dela. Meu paletó
parecia mais pesado em meus ombros. Puxei a gola da camisa social e virei
mais um pouco da minha água. Precisava retornar à sobriedade antes que
cometesse uma loucura.
— Você é bem irritante — a loucura, quer dizer, Petrova pontuou,
encarando-me com os olhos pequenos, confusa com o que tinha acabado de
acontecer.
— Sinto muito, não sei no que estava pensando quando toquei seu
rosto e...
— Shhh! — Ela se inclinou e pinçou minha boca com a ponta dos
dedos, os olhos estreitos em minha direção.
— Hum, o que... o que está fazendo?
Ri quando me livrei dos seus dedos.
— Calado, só fique calado. Sua voz está... — Ela sacudiu a cabeça,
como se quisesse afastar o pensamento.
— Minha voz está…? — insisti, mesmo sabendo que não deveria. O
que eu podia fazer? A linha tênue entre a razão e o perigo era a minha
favorita.
— Você está entrando na minha mente com essa voz rouca e baixa, e
esse... esse monte de tatuagens. Por que tem tantas delas?
— Não gosta? — Ela desceu os olhos pela pele exposta em meu
pescoço, até parar na cruz fina no canto do meu rosto.
— Eu mais do que gosto. — Engoli em seco, ciente de que sóbria
ela não teria dito aquilo, o que deixava tudo ainda pior. Bêbados geralmente
diziam a verdade. — Quer dizer, eu não gosto. Detesto como fica tão
ridiculamente perfeito com elas e enfiado nesse terno. Tem certeza de que
ele é do seu tamanho? Esses músculos estão sempre prestes a rasgá-lo e...
— Ela cutucou meu bíceps com a pontinha do dedo e o toque inocente
irradiou uma onda de sensações por meu peito. Petrova arregalou os olhos
quando se deu conta de que tinha fechado ambas as mãos ao redor do meu
braço. — Caramba, eu bebi demais. Preciso ir embora. — Ela soltou meu
braço e se agitou como um passarinho preso em uma gaiola. A mulher se
ergueu em um salto, os fios dos cabelos voaram para todos os lados e
alguns pregaram em sua boca. — Ui! — ela deu um gritinho quando perdeu
o equilíbrio, e me coloquei de pé em um átimo de segundo.
— Petrova! — Segurei seus ombros. — Você está mesmo
acostumada a beber assim? — questionei, preocupado.
— Posso te contar mais um segredo? — Ela segurou a beirada do
meu paletó, que antes estava perfeitamente alinhado, e aproximou o rosto
de mim. — Faz tempo que não me permitia beber. Tinha me esquecido qual
era a sensação de coceirinha na ponta do nariz, de estar andando mais leve.
Ela começou a pular ao meu redor, como se quisesse me mostrar
sobre o que estava falando, mas a falta de equilíbrio a atacou novamente e
ela cambaleou na direção da mesa oposta. Saltei sobre ela e agarrei sua
cintura, puxando-a para mim.
— Está cheia de revelações hoje, Raposinha. O que acha de só...
andar em linha reta até a saída? O ar fresco vai ajudar.
— Ah, meu Deus, amarrotei seu terno caro. — Ela passou as mãos
pelo meu peito, onde as marcas dos seus dedos finos tinham ficado
acentuadas, e começou a alisá-las. Sentir seu toque subir e descer por meu
peito me deixou ainda mais inquieto, e segurei seus dois pulsos.
— É, amarrotou. Agora, já para a saída — rosnei, no limite do
autocontrole.
— Certo! Andar reto até a saída. Vamos lá, presidente.
— Não me chame assim, sabe que eu detesto.
— Mas é o que você é. O CEO da Holder Sincerity — cantarolou,
depois de fazer referência à empresa que eu presidia no ramo de guarda-
costas, uma das unidades pertencentes à minha família. — É muito chique.
Prrrresidente Snake!
Puta que pariu! Se já estava difícil não prestar atenção nela, com
aquele sotaque enrolado e sensual era ainda mais difícil.
— Quer que eu comece a gritar um ressonante “agente Petrova”
aqui no meio deste bar?
Os olhos dela se arregalaram, apesar do lugar estar praticamente
vazio.
— Não! — ela gritou, e tapou minha boca com ambas as mãos.
Olhei para baixo e vi que ela estava na ponta dos pés, equilibrando-
se nos saltos para alcançar minha boca, e segurei um sorriso. Inferno, desde
quando ela era tão fofa?
— Então, calada. Venha comigo, vou te levar até um lugar seguro
onde poderá pedir um táxi.
— Certo, mas prometa que não vai me seguir. — Ela apontou o
dedo para mim e, droga, eu odiava mentir, era uma das coisas que
raramente fazia, mas se tratava da segurança dela, então que se foda.
— Não vou segui-la. Vamos? — Olhei para ela, que bebia mais um
copo de água que pedi ao bartender.
— Да — ela disse sim, só que em outro idioma.
— Agora estamos falando em russo? — respondi no mesmo idioma.
Dos quatro que conhecia, aquele era meu favorito.
— Minha nossa, não posso. — Ela tentou tapar a boca, como se
fosse capaz de retirar as próprias palavras com o gesto. — Eles vão
descobrir que sou diferente se me ouvirem falando — ela sussurrou em
russo sobre o ombro.
— Quem vai descobrir? — eu quis saber, repentinamente curioso e
preocupado.
— Todo mundo. As pessoas fogem de mim quando descobrem que
tecnicamente sou russa. Sei bem que alguns dos meus colegas de trabalho
não vão com a minha cara. Como se eu tivesse pertencido à droga da KGB.
— Ela riu, mas o toque de tristeza naquele sorriso não me passou
despercebido.
— Tudo isso porque você não nasceu nos Estados Unidos?
— É difícil explicar, mas tenho cidadania americana, sou
amerrricana. — Contive um sorriso ao vê-la se empenhar para esconder o
sotaque que a bebida pareceu soltar de vez. E eu permiti que falasse, já que
nunca tinha ouvido tanto sobre Petrova na vida. — Só não pareço por causa
da obsessão que as pessoas que me criaram tinham pela Rússia.
— Pessoas que te criaram? Sua família?
— Não. Eu não os chamo disso. — Ela piscou, e seu semblante foi
tomado por uma sombra estranha, como se de repente se lembrasse de algo
muito ruim. Estreitei os olhos quando a vi piscar e empurrar o que quer que
tenha sentido para debaixo do tapete. — Meu pai era americano. Conheceu
minha mãe na Rússia por acaso e acabaram se relacionando. Eu nasci na
América, o que oficialmente me transforma em uma cidadã americana, mas
voltamos a morar por um tempo na Rússia, meu pai morreu poucos meses
depois de retornarmos aos Estados Unidos. Minha mãe logo se casou de
novo. Tentei melhorar meu inglês, mas eles não me permitiam ir para a
escola com as outras crianças e por um tempo eu só podia falar em russo.
Estudei escondida até aprender, já te contei que meu QI é 130? — Não
precisava dizer. Pensei em responder. Petrova era a pessoa mais inteligente
que conheci. Estava tatuado em sua testa. — Meus colegas não acreditam
na verdade, acham que sou mentirosa porque meu sotaque é genuíno. Mas
sou americana, você acredita em mim, certo? Olha, olha para mim, não
estou mentindo, consegue ver?
Ela parou, segurou o meu rosto e me obrigou a encará-la. Os olhos
brilhantes estavam mais abertos, concentrados em me provar sua verdade.
Era óbvio que não estava mentindo.
— Não precisa me provar nada, acredito em você. Mas... o que quis
dizer quando contou que eles não permitiam que fosse à escola? Seu
padrasto te proibia? — eu quis saber, preso em uma preocupação que
beirava à loucura.
Ela era tão inteligente que sempre imaginei ter sido criada em berço
de ouro, com trilhões de tutores correndo atrás dos seus passos por aí.
— É que... — Ela parou de andar, como se tivesse percebido que
falou demais. — Ei, você está quebrando a regra! — Ela empinou o nariz.
— Ninguém pergunta, ninguém responde — bufou, indignada.
— Certo, encrenca. — Tentei ignorar sua afirmação estranha.
Guiei Petrova para fora do bar com um braço e fui usando a outra
mão para cobrir as quinas pontiagudas das mesas nas quais ela teimava em
esbarrar. Ia ficar toda roxa se eu não interviesse de alguma maneira e a
culpa ainda ia ser minha depois.
Amor, me puxe para mais perto
No banco de trás do seu Rover
Closer – The Chainsmokers
Snake
Saímos do bar e fomos para o estacionamento que ficava na encosta
da montanha cheia de árvores, que escondiam parte do meu carro, em um
lugar escuro e muito vazio, decorado por um céu cheio de estrelas
brilhantes.
— Que vista lindaaaaaa! Olha, é cheio de estrelas. — Ela saiu
correndo em direção à encosta, gritando a plenos pulmões.
— Petrova! — Alcancei-a em poucas passadas e enlacei sua cintura
no instante em que a maluca virou o pé. Seu corpo pequeno bateu contra o
meu.
— Não é lindo? É LINDO! — ela disse, ofegante, e nem um pouco
preocupada em cair e quebrar o pescoço.
Um vento forte jogou seus cabelos para trás e ela se encolheu,
arrepiada.
— Vai acabar estourando os meus tímpanos com essa gritaria. —
Afastei-me brevemente dela e retirei meu casaco. — Teve sorte, pensei que
hoje fosse chover.
— Não vai. Olhei a meteorologia.
Crispei as sobrancelhas, lembrando-me que quase sempre Petrova
comentava sobre ter conferido a meteorologia.
— Sempre olha a previsão do tempo quando vamos nos encontrar?
— Cobri seus ombros com o tecido e voltei a apoiar a lateral do seu corpo
para que se equilibrasse sem esforço.
— Sim, não gosto de chuvas, nem um pouquinho. — Ela me
encarou sobre o ombro e seu rostinho corado sustentava uma expressão
surpresa. — Vai me emprestar esse seu paletó caríssimo?
Ela abriu mais os olhos, como se estivesse diante de um milagre.
Seu choque me deixou chateado, era óbvio que eu não iria deixá-la sentir
frio. Na verdade, a ideia me incomodava ao extremo, mas Petrova parecia
ter outra visão sobre mim.
— É só um terno idiota, Petrova. Não é algo que mereça tanta
surpresa.
— Ah, é sim. Obrigada. — Ela sorriu de um jeito leve e delicioso.
Parecia mais feliz com a porra do paletó do que ficou com minha presença a
noite toda. Casaco idiota! — Ele é tão macio. Tem certeza de que quer me
emprestar? — Ela tentou tirá-lo, mas segurei sua mão com a minha.
— Só o aceite, sim. E que tal tirar esses saltos?
— É uma boa ideia. — Ela olhou para os próprios pés. — Talvez
não seja uma tarefa muito fácil. É melhor eu me sentar e... AH! — Petrova
gritou quando cerquei sua cintura e a ergui no colo.
O susto a fez enlaçar meu pescoço com os braços, e engoli em seco
com a sensação de estar sendo abraçado por uma nuvem de fogo líquido.
Não demorou um segundo para que eu me arrependesse. O toque da
sua pele na minha era perturbador e viciante, como um entorpecente
alucinógeno. Fechei os olhos por um momento e enfiei o nariz nos fios
laranjinhas dos seus cabelos. Inspirei devagar, enquanto experimentava
novamente aquela fragrância doce e delicada, que me fazia querer um
pouco mais. Desejei poder me afogar naquele perfume doce como seus
olhos, queria tocar Petrova e marcá-la, assim como ela estava fazendo
comigo.
Pisquei, aturdido, e afastei o rosto do seu cabelo ao perceber o que
estava sentindo. Mas que porra...
— Vou ajudá-la a se livrar deles — eu disse rápido, aflito, e
caminhei com ela em meu colo até alcançar meu carro, que estava atrás de
uma árvore de tronco grosso. Era o único naquela parte do estacionamento a
céu aberto.
Coloquei Petrova sentada no capô e dediquei toda a minha atenção
às fivelas minúsculas dos seus saltos. Uma pontada estranha atravessou meu
peito e eu lutei para afastá-la, mas por algum inferno não consegui. Será
que ela também conseguia escutar aquele retumbar esquisito que meu
coração estava fazendo?
— Alguns minutos aqui fora vão te deixar um pouco mais sóbria —
comecei a falar, e notei quando ela tombou o rosto e cheirou o meu paletó.
— É tão cheiroso... Ei! — Ela me lançou um olhar arredio e
preocupado quando terminei de retirar as duas sandálias. — Por que está
sendo tão bonzinho? Pensei que ficaria mais feliz se tivesse a oportunidade
de me enforcar com esse paletó.
Dei risada, gostando cada vez mais daquela versão de Petrova
bêbada e relaxada.
— Sou responsável pela sua segurança quando está comigo. Se
adoecer e morrer, a culpa será minha, e eu não vou nem saber que morreu.
— Tentei soar bravo, mas certa tristeza tomou meu peito ao perceber o que
tinha dito, e me esforcei para expulsar aquele sentimento ridículo pelos
próximos minutos.
— Eu gostei da sua nova tatuagem — ela disse, risonha, e
automaticamente levei a mão ao pescoço, onde o pequeno nome estava.
— Você notou.
— É claro. Era um dos poucos pedaços de pele sem nenhuma
tatuagem. Mas eu amei o que tatuou. Hope... — Ela tocou o nome com a
ponta do indicador e a pele sob seu dedo pareceu queimar. — Sua sobrinha,
certo?
— Sim. É ela.
Petrova riu.
— O que aconteceu com o homem completamente avesso a
crianças? Agora tatua o nome delas?
— Sabe como é, eu ainda não as tolero, mas Hope é minha sobrinha,
sou obrigado a amá-la. — Ri, com a inverdade que tinha se tornado uma
brincadeira interna na minha família.
Se eu fosse capaz de amar uma mulher, com certeza seria minha
sobrinha, aquela bolinha de fofura. Muito mais do que me sentia capaz de
admitir. Pensar em Hope era o suficiente para fazer meu coração acelerar de
um jeito estranho, mas naquele momento ele estava batendo rápido por um
motivo ainda mais esquisito e não consegui ficar calado por muito tempo.
Aquele era o mal de beber, ficávamos propensos a falar e fazer idiotices.
— Este é mesmo nosso último encontro?
— Sim. — Ela suspirou, como se também estivesse incomodada
com aquilo, e se virou para mim. Seu rosto estava menos vermelho e os
olhos mais focados. Ainda estava alterada, mas agora poderia jurar que ela
ao menos se lembraria daquela conversa. — Foi uma boa parceria, Snake.
Obrigada.
— É, foi sim. — Abri um sorriso forçado. — Mas, se eu estivesse
um pouco mais bêbado, com certeza estaria pulando de alegria. Já estava
cansado de ter que quebrar isso toda vez que nos encontramos. — Petrova
arregalou os olhos verdes quando apoiei os braços no capô do carro, um de
cada lado do seu corpo, prendendo-a entre minhas pernas. Levei a mão até
sua orelha e então ela pareceu perceber o que eu ia fazer e ergueu o braço
para tentar me impedir. — Petrova — agarrei seu punho e chamei baixo.
Demorei a notar que estava prendendo a respiração enquanto a
pressionava contra o capô. Uma sensação de posse quase me deixou cego
ao segurá-la daquele jeito e precisei de todo meu autocontrole para
continuar.
A pressionei mais contra o veículo, seu corpo pequeno se encaixou
no meu e deslizei a mão livre pelo seu pescoço, que era comprido, gracioso.
Subi os dedos por ali até alcançar seu brinco e o retirei com um único
movimento e ela me lançou um olhar assassino que eu conhecia muito
bem.
— Vai guardar as conversas de hoje na sua memória, Raposinha, é
melhor assim. — Bati o dedo de leve em sua têmpora e joguei o brinco com
a escuta no chão, pisoteando-o logo em seguida. — Devo fazer o mesmo
com o anel? Sei que não é algo comum...
— Seu insuportável! — Ela puxou o pulso nervosa, soltando o ar em
rajadas. — O anel é só um acessório, o máximo que faz é refletir luz, nada
mais do que isso. — Ela empinou o nariz, estava sendo sincera. — Como
sempre sabe onde coloco as escutas? Precisa me dizer. Sempre, sempre sabe
onde elas estão.
Ela ergueu o rosto e fez um biquinho gracioso. Petrova era delicada
como uma flor, mas tão perigosa quanto o veneno de um espinho. Tão
diferente de mim, mas ao mesmo tempo tão igual. Sempre nos entendíamos
com um simples olhar, ainda que fosse raivoso, como o que ela estava me
lançando naquele momento.
Então me inclinei em sua direção e abri mais suas pernas com a
minha até colar a boca bem perto do seu ouvido.
— Eu te conheço faz dois anos, Petrova. — Ela prendeu a
respiração, o calor entre nós pareceu aumentar. Eu me sentia prestes a
queimar, bem ali diante dela.
— Não sabe nada sobre mim — ela respondeu na defensiva, mas
sua voz trêmula a denunciou, e um sorriso dançou em minha boca.
Que inferno, estava duro só pelo contato dos nossos corpos e aquilo
me irritou profundamente.
Aquela maldita! Como ousava me deixar louco daquele jeito? Louco
por uma raposa manipuladora e traiçoeira.
— Acha que eu queria lembrar do seu jeito de andar? Como se
estivesse marchando para uma guerra com a certeza de que vai ganhar? Ou
o jeito que fala, como se desafiasse alguém a contradizê-la?
— Eu não desafio!
— Desafia a mim! — Toquei seu rosto com o polegar e o deslizei
por todo o seu maxilar, gravando cada um dos seus traços em minha mente,
ainda que lutasse com todas as minhas forças contra aquele sentimento
estranho e avassalador, que parecia me puxar para ela, em um misto de
raiva e desejo. — Sei exatamente como se move, com delicadeza e
precisão, pelo menos quando não está usando saltos altos. Neste caso você
parece uma pata, mas vale a visão, é bem engraçado. — Ela abriu um meio
sorriso, que logo morreu quando seus olhos pararam em minha boca. —
Além de ser astuta como um animal silvestre. Mal acredito que já hackeou
meu celular tantas vezes, é uma nerd maldita da tecnologia. — Ri, amargo.
O cheiro doce daquela bruxa tomou meus sentidos. — Ah, não vamos
esquecer o quanto consegue ser bagunceira; bagunceira pra caralho e…
Seus olhos verdes e profundos se fixaram nos meus, e esqueci
completamente o que estava pensando.
— E?
— Você nunca sorriu como hoje.
— Você já me viu sorrir antes. — Ela piscou devagar. Os lábios
entreabertos pareciam um convite ao pecado.
— Não eram reais. — Soltei o ar, exasperado. — A verdade é que
eu te conheço mais do que gostaria, se quer saber. Você é um livro aberto
para mim, agente Petrova — falei.
Todo o meu corpo reagia à presença dela e comecei a me perguntar
como seria beijá-la.
— Está querendo me seduzir, Snake? Porque já adianto que não vai
funcionar. Sou vacinada contra o vírus do tatuado malvadão. — Gargalhei
quando ela ergueu os olhos e me encarou com aquele biquinho atrevido. —
Aparentemente, sou a única soldado sobrevivente. — Riu. Os olhos
piscavam sem parar, um grande indicativo de que estava mentindo, o que
chamou minha atenção.
— Você não entendeu, não é? Ainda que tente, não consegue mentir
para mim. — Sondei seu rosto. Éramos diferentes em vários aspectos, mas
havia algo que nossa essência combinava. Quando envolvia alguma
competição e aquela raposa estava me desafiando, então decidi fazer o
mesmo. — Aposto que não resistiria um segundo sequer se eu a tocasse. —
Desci os olhos para aqueles lábios carnudos, onde um arco delicado
formava um coração. Parecia delicioso, e proibido.
— Você é bem convencido para alguém tão insuportável —
vociferou, o que só me instigou mais. — Nem em um dia ruim eu cairia na
sua lábia. — Abriu um sorriso convencido e bateu na própria têmpora. —
QI alto, lembra? — provocou.
— Petrova... — soprei seu nome e subi a outra mão para a base do
seu pescoço fino e delicado. Enfiei os dedos em sua nuca e a obriguei a me
encarar. Seus olhos eram donos de um verde intenso, tão vívido quanto um
dia ensolarado. — Se eu desejasse ter você para mim, então seria minha.
— Convencido.
— Posso provar minha teoria. — Toquei as laterais do meu paletó
que ela usava e abri o botão que ela tinha fechado minutos antes. Resvalei o
dedo no limite do seu decote, tomado por um desejo estranho e forte. Ela
entreabriu os lábios e inspirou devagar, parecia assustada, e tão afetada
quanto eu. — Se em dois minutos não estiver molhada e louca de desejo,
não me deve nada pela aposta do bar.
Ela jogou a cabeça para trás e riu alto.
— Você abriria mão de uma arma de colecionador para testar se
resisto a você?
— Neste momento eu abriria mão de qualquer coisa para te beijar,
Winnie. — Joguei baixo, chamando-a pelo primeiro nome, algo que nunca
fiz, e ela abriu mais os olhos e engoliu em seco, surpresa.
— Pelo visto, o cronômetro já começou a correr — ela disse
baixinho e pelo jeito delicioso que falava, podia jurar que já estava toda
molhada.
— Você topa? — Ela fechou os olhos quando desci o polegar pelo
tecido do vestido e resvalei sobre o seio durinho que me enlouqueceu a
noite toda.
Engoli em seco ao constatar que aquilo estava mesmo acontecendo.
Eu estava atraído por ela, e para minha maior surpresa ela também estava.
— Apenas dois minutos, e se resistir, vai se livrar de ter que cometer
um crime para completar minha coleção de armas.
— Dois minutos, e-e você vai descobrir que não é tão irresistível
assim — garantiu, determinada, mas não sem gaguejar no caminho, e então
olhou sobre o ombro, preocupada.
— Ninguém vai nos ver aqui. — Ergui o punho direito e
cronometrei no relógio o tempo certo. — Confia em mim?
— Não! — Ela riu, e eu também.
— Garota esperta…
Dedilhei seu braço e subi para os contornos dos malares delicados.
Tinha pouco tempo para provocá-la ao extremo, mas não imaginei que ia
enlouquecer no processo.
Passei o braço por sua cintura e a puxei sobre o capô, até que
estivesse com as pernas ao redor da minha cintura. Segurei a base do seu
pescoço, apreciando sua respiração entrecortada, e a beijei antes que
pudesse me arrepender.
Ela arfou com o susto e estremeceu quando penetrei sua boca com a
língua, de um jeito tão inocente que me deixou louco. Contive um rosnado
quando senti seu gosto doce misturado ao cheiro fraco da tequila. Tomei sua
boca com força, vontade, tonto. Fui tomado por um tesão forte enquanto
brincava com meu piercing em sua boca. Não sabia se era pela bebida ou
por estar beijando aquela mulher.
Desci os dedos por seu vestido e parei nos seios, acariciando os
mamilos rijos por cima do tecido sem deixar de beijá-la com força, tomando
tudo que estava disposta a me dar. Desci o decote do vestido e notei quando
ela arfou em minha boca, com um gemidinho leve quando circundei a carne
pesada dos seios redondinhos com uma das mãos e belisquei o mamilo
intumescido, louco de vontade de colocá-lo na boca, de ver como ela era.
Afastei nossos lábios e beijei seu maxilar, alternando entre beijos e
mordidas que começavam a arrancar suspiros baixos e entregues. Ela não ia
resistir, como imaginei. Mas não fazia ideia de que vê-la ali, entregue sobre
o capô do meu carro, com a face muito corada, os olhos semiabertos em
uma linha fina, que variava entre a surpresa e o desafio, fosse me
desestabilizar tanto.
Passei o polegar por seus lábios úmidos, inchados pelo beijo. Estava
fascinado pela visão. Os seios redondos eram cheios, lindos, os bicos
rosadinhos estavam durinhos, prontos para mim. Passei o dedo pela
tatuagem que ela tinha bem ao lado do seio, um desenho delicado, oval e
com asas douradas, parecia uma bolinha voadora e por um instante desejei
saber o que significava para ela, mas logo abandonei o pensamento. Assim
era mais fácil.
— Gostosa — rosnei, e ela corou um pouco mais quando deslizei o
polegar pelos seus mamilos. Petrova gemeu, contra sua própria vontade, e
comprimiu as pernas ao meu redor. — Avisei que não resistiria.
— Seu tempo está acabando, quer mesmo me superestimar? Isso vai
ser um erro — sussurrou, mas seus olhos quase se fecharam quando
coloquei um pouco mais de pressão.
— Talvez seja isso que eu quero. Um erro. — Voltei a beijá-la,
desesperado, aflito, enquanto beliscava e a torturava com os dedos.
Petrova gemeu baixinho, tentando resistir, mas decidi deixar mais
difícil para ela e desci os lábios por seu pescoço, abocanhando um dos
mamilos.
— Porcaria! — ela xingou, e enfiou os dedos nos fios dos meus
cabelos, em um gesto que quase me fez sorrir. Suguei com força, batendo o
piercing da língua sobre o mamilo sensível vez ou outra e alternando entre
mordidas que eu sabia que deixariam marcas, algo que me deixou ainda
mais excitado. — O tempo... está acabando…
Ela rebolou sobre o capô, quase sem se dar conta disso, e a instiguei
um pouco mais, mamando e mordendo os mamilos que agora estavam ainda
mais pontiagudos. E, de repente, o som baixo do meu relógio apitou,
encerrando os dois minutos de teste.
Parei de chupá-la no mesmo instante. Ela subiu a mão trêmula e a
apoiou em meu peito. Sua respiração descompassada me jogou no inferno
de vez. Tudo que conseguia imaginar era como ela ia gemer com meu pau
dentro dela.
Ergui o rosto e encarei o mar esverdeado em seus olhos e, olhando
para eles, percebi que não conseguiria deixá-la ir, não sem antes possuí-la.
Aquela mulher tinha que ser minha. Por uma noite, por um momento
apenas.
— Será mesmo que resistiu? — Ela mordeu os lábios, tímida,
quando abri suas pernas. Toquei sua arma no coldre preso em sua coxa, que
era torneada, firme e deliciosa. Dedilhei a arma, apreciando a visão
perigosa, e a retirei dali, colocando-a em minha própria cintura. Aproximei
nossos lábios o bastante a ponto de sentir sua respiração irregular tocar meu
rosto, e sussurrei: — Está arrepiada com um simples toque.
Ela não respondeu, mas arfou baixinho quando subi a mão por sua
coxa grossa, entrei no vale entre suas pernas e toquei sua calcinha, que
estava encharcada.
Um rugido estranho, quase animalesco, subiu por minha garganta
quando afastei o tecido e senti o quão quente ela estava.
— Snake, ah, minha nossa... eu perdi, droga, perdi muito!
Ela tombou a cabeça quando abri as camadas da sua boceta com os
dedos e belisquei seu clitóris. Todo o seu corpo tremeu sob o meu toque e
aquilo era fascinante. A forma como ela parecia não saber o que eu faria
com ela, como estava surpresa e tímida a cada toque, de um jeito inocente e
curioso.
E foi ali que eu percebi que apostei uma batalha, mas tinha perdido
a porra da guerra.
Petrova
Ali, naquela noite fria, me permiti ser tocada por um homem
perigoso e sombrio, e minha nossa, eu estava perdida!
Nunca tinha sentido nada daquele jeito. Não era mais virgem desde
os 16 anos, quando cometi o erro de confiar em alguém que não deveria,
sem ideia do que aconteceria a seguir. Desde então, fui soterrada pela vida e
todas as responsabilidades que tive que equilibrar sozinha, além do trabalho
intenso, que não deixava brechas para encontros casuais, que só
aconteceram duas vezes, mas nenhum deles se comparava ao que estava
acontecendo ali. Ninguém nunca me tocou como Snake. Como se estivesse
disposto a roubar um pedacinho da minha alma com a ponta dos dedos.
Sabia que deveria ter negado a aposta, pelo menos meu lado consciente,
porque o resto do meu corpo implorava para ser tomada por ele.
Snake me abriu e deslizou o dedo pela extensão da minha
intimidade. O toque firme, e ao mesmo tempo delicado, mexeu com minhas
estruturas, tanto quanto a imagem de um Snake todo amarrotado entre as
minhas pernas. Os cabelos escuros estavam um pouco desalinhados e os
olhos famintos se mantinham presos em mim.
Ele era tão chamativo quanto uma armadilha, mas não podia ser
diferente se tratando de Snake. O homem tinha sido criado para provocar e
destruir. O único jeito de não me machucar era nunca me aproximar por
mais de uma noite.
Só hoje!, pensei.
Só hoje e nunca mais.
Toquei as tatuagens do seu pescoço com ambas as minhas mãos,
deslizando os dedos pela flor escura que ficava bem no centro e subia em
chamas escuras até os malares bem definidos, e não resisti. Chiei, trêmula,
com seus dedos bagunçando o pouco de sanidade que me restava.
— Você perdeu, raposa.
Ele pinçou minha boca com os dentes. Sua língua deslizou por meus
lábios de um jeito possessivo. O piercing rodando e rodando, provocando-
me a cada segundo. Já tinha visto o acessório que ele usava na língua, mas
nunca imaginei que beijá-lo com aquilo poderia ser tão delicioso.
Só então me dei conta de que nunca quis ganhar aquela aposta.
— E agora, o que acontece? — falei baixo, e levei a mão ao seu
peito, que era ainda mais duro do que imaginei. As dobras dos músculos
resvalaram em meu dedo e senti dois pontos mais durinhos nos mamilos.
— Agora eu vou te foder — disse seco, de uma única vez, e senti
meu rosto queimar. — A menos que não queira. — Abriu um sorriso
indecente, provocante. Seus dedos me viravam do avesso e me sentia
incapaz de me mover. Ele continuou provocando, torcendo o clitóris com
vontade e, de repente, penetrou a ponta de um dedo na minha intimidade e
começou a pressionar apenas aquele ponto junto ao clitóris. Engoli em seco,
tremendo da cabeça aos pés. O que diabo era aquilo? — Me responda,
Petrova... o que você quer?
Ele roçou a boca na minha. Cada centímetro de pele estava trêmulo.
Agarrei-me a sua blusa e ele continuou a tortura, provocando o ponto
pulsante, que estava me enlouquecendo, enquanto me penetrava com o
dedo. O calor foi me consumindo pouco a pouco, e quando me dei conta um
gemido alto escapou por meus lábios enquanto todo o meu corpo era
varrido por uma descarga elétrica constante.
Ele me beijou com força. Enlacei sua cintura com as pernas e ele me
ergueu no ar, sem afastar nossos lábios. Snake abriu a porta do carro, e
quando me dei conta estava dentro do veículo, sentada em seu colo, com o
vestido no meio da barriga e lutando contra os botões da camisa dele.
Ele jogou minha arma no banco e fez o mesmo com a dele.
Desabotoei sua blusa e perdi meu olhar na complexidade das tatuagens
espalhadas por ali. Estava escuro, então não consegui ver direito os
desenhos, mas eram tantos que juntos pareciam formar uma obra de arte.
Snake também tinha piercing em ambos os mamilos, o que completava todo
aquele visual exótico e viciante.
Desci os dedos pelo peito esculpido e o vi respirar ruidosamente
quando toquei os piercings.
— Tem mais algum? — sussurrei, inebriada por seus dedos
passeando por minha bunda, devagar, como se preparasse a presa para ser
devorada, e ele meneou um aceno, concordando. — Onde?
Snake não respondeu, apenas enfiou a mão nos cabelos em minha
nuca e me puxou para um beijo como quem reclamava uma herança, firme,
irredutível, e possuiu minha boca com a sua sem dar trégua. Ele segurou
minha calcinha e a rasgou com apenas um puxão.
— Snake! — Ri, sendo atacada novamente por sua boca. Abri o
zíper da sua calça e engoli em seco quando a ereção, muito grossa e pesada,
tombou sobre minha barriga. — Ah, meu Deus! — Arregalei mais os olhos
ao perceber onde ele tinha colocado o último piercing. Bem abaixo da
glande redonda.
— Vai senti-lo fundo dentro dessa sua bocetinha gostosa.
Ele me penetrou com dois dedos, e fincou a outra mão na carne em
minha bunda. Senti-me corar dos pés à cabeça, mas era errado estar
pulsando de desejo por aquelas palavras obscenas?
Toquei sua ereção com cuidado, sem saber o que fazer com aquele
membro enorme e o piercing que brilhava com os reflexos das luzes do
estacionamento, que agora pareciam mais quentes e distantes. Fechei as
mãos ao redor e acariciei a glande, que babava e me deixava ainda mais
desesperada para sentir como seria ser preenchida por ele. Snake gemeu
rouco e alcançou o porta-luvas do carro, tirando de lá um preservativo.
Minha nossa, ia mesmo acontecer!
Baby, serei seu predador esta noite
Te caçarei, te comerei viva
Animals - Maroon 5
Snake
— Quero que coloque — ordenei, mantendo-a em meu colo.
O rosto corado a deixava ainda mais graciosa, e a forma como
olhava para o meu pau, em um misto de curiosidade, desejo e medo, me
deixou ainda mais excitado.
Petrova rasgou o pacote devagar e não resisti aos lábios inchados,
assim como os seios. Inclinei-me até ela e suguei o mamilo.
— Aiiiii, Snake... — Ela estremeceu, e tombou a cabeça sobre
mim.
— Não pare, abra a camisinha — mandei, e voltei a mamar nela
com vontade.
Espalmei o meio das suas pernas e senti meu pau pulsar quando
toquei o líquido entre elas. Ergui os olhos, louco para ler cada uma das
reações dela e vi o espanto ceder ao mais puro desejo quando a penetrei
com a metade de um dedo e pressionei o ponto G.
A pontinha do seu nariz ficou mais vermelhinha e ela quase fechou
os olhos, rebolando em minha mão e escorrendo ainda mais. Contive um
rosnado quando ela cercou meu pau com uma das mãos, acariciando
devagar, como se não soubesse o que fazer, e guiou a camisinha até a
glande, encaixando-a devagar.
— Vem, raposa, senta aqui. — Belisquei seu mamilo e continuei
provocando seu clitóris. Queria Petrova à beira de outro orgasmo antes de
penetrá-la, queria deixá-la louca, marcada.
— Snake... isso é...
— Quente? Indecente? Te foder vai ser delicioso. — Pressionei a
cabeça do meu pau em sua entrada molhada. Ela comprimiu a bocetinha
quando ouviu o que eu disse, e rosnei baixo, perdendo o controle aos
poucos.
Beijei seu pescoço e busquei sua boca, prendendo-a entre meus
braços. Não suportaria nem mais um pouco. Deslizei devagar, sabia que era
grande para ela e não queria machucá-la, mas tudo estava tão intenso que
enfiei mais um pouco, mas foi o bastante para me arremessar no inferno e
levá-la a mais um orgasmo. Petrova enfiou as mãos em meus cabelos e
começou a pulsar, podia sentir sua boceta se fechando ao redor de mim. Ela
rebolou, inquieta, e acabei saindo de dentro dela sem querer. Senti a
camisinha escapar com a movimentação repentina e nem mesmo tive tempo
de avisá-la, Petrova se sentou no meu colo e foi descendo pela extensão de
um jeito puro, cru.
Naquele instante, quando senti a cabeça do meu pau deslizar por sua
entrada quente, enquanto a penetrava devagar, apreciando como seu interior
parecia me puxar, tive a completa ciência de que estava cometendo o maior
erro da minha vida, mas não queria parar.
— Ahh! — ela gemeu, e quicou no meu colo, rebolando para se
adaptar ao tamanho. Os cabelos suados se prendiam no rosto delicado e
vermelhinho. — A camisinha saiu. AHH, que droga, que delícia!
Ela abriu mais os olhos e xingou, mas tinha visto a surpresa
estampada em seu olhar. O piercing roçou em seu interior e causou um
frenesi em nós dois, uma sensação de delírio e prazer inexplicável. Era
como estar sonhando, e talvez estivesse. Em qual realidade estaria
transando com uma agente da CIA no banco de trás do meu carro?
— Porra, Petrova! — rosnei, perdido de tesão.
Não transava sem camisinha desde a adolescência. Me tornei um
adulto prevenido, sabia os riscos que corria se fizesse diferente, mas
naquele momento, quando estoquei mais uma vez e a senti me apertar,
molhando tudo pelo caminho, não resisti.
— Snake…
— Eu não transo sem camisinha, e é a primeira vez que sai desse
jeito. Mas já que saiu… Quero te foder assim, gostosa. — Ela me apertou
ainda mais. — Vai, princesa, senta pra mim.
— Como sabe que também estou limpa? Aaaaaaaaaaa! — Mordi o
biquinho do seu peito para que se calasse, e ela estremeceu com a dor
misturada ao prazer.
— Você fala demais. — Sorri contra sua pele, com a sensação de
que cada centímetro do meu corpo estava fervendo. — Eu sei que não tem
muita experiência, pelo jeito que olha para mim, como me toca. Com uma
incerteza quase inocente, apesar da boceta gostosa pra caralho.
— Boca suja! — reclamou, antes de deixar um gemidinho escapar.
— Você gosta. Acha que não percebo que me aperta toda vez que
falo da sua boceta? Tá na hora de jogar a toalha, Raposinha… — Meti mais
forte e comecei a aumentar a pressão sobre o clítoris muito inchado. —
Estou te fodendo, e você está gostando.
— Você é um babaca… Snake! Aiiii, minha nossa. Não vou
suportar. Aaaaaa!
Ela me apertou tão forte que não resisti. Pareceu insano, viciante, a
coisa mais importante do mundo. Nada mais existia além daquele momento
em que Petrova deixou de lado a agente da CIA para se entregar para mim.
Aquela ali, gemendo e rebolando em meu colo, com o rosto vermelho e os
lábios entreabertos, era uma versão dela que eu não conhecia, mas que
agora estaria fadado a me lembrar.
Inclinei-me sobre ela e mordi a lateral do seu seio durinho, capturei
o mamilo e suguei com força. Ela choramingou e estremeceu, agarrando-me
como podia.
Apoiei sua bunda com ambas as mãos e estoquei mais algumas
vezes antes de gozar forte dentro dela. Rosnei, e enfiei a cabeça no vão em
seu pescoço, cravando os dentes em seu ombro enquanto meu pau pulsava,
derramando tudo.
Puta que pariu!, quis xingar. Ela ainda me apertava, como se
quisesse me puxar para dentro dela.
Nossas respirações inconstantes embaçaram os vidros do carro.
Ergui o rosto e olhei para Petrova, que estava de olhos fechados, lábios
entreabertos, o cabelo suado levemente pregado no rosto delicado, o
vestido, que só agora me dei conta de que em algum momento também
tinha rasgado e, puta que pariu, ela era uma visão e tanto. Só de olhar para
Petrova daquele jeito no meu colo uma vontade louca de continuar ali, com
ela engolindo meu pau, me abateu.
Comecei a sair devagar, e engoli em seco quando ela deu uma
gemidinha baixa e gostosa. Girei ela no meu colo com cuidado e a coloquei
sentada no banco.
Petrova tentava recuperar o controle da respiração, enquanto eu só
conseguia ver meu gozo escorrendo da boceta rosada e descendo entre suas
pernas semiabertas. Aquela visão era perfeita.
Pisquei, assustado com meus próprios pensamentos, e peguei um
lenço para limpá-la, mal conseguindo encará-la depois de tudo aquilo. Não
pelo fato de termos transado, mas por ter certeza de que nem pelo inferno
conseguiria esquecer o que aconteceu ali. Estava arrependido, sim. Por ter
feito uma escolha da qual não poderia mais voltar atrás.
— Não se preocupe — ela disse, e pegou o lenço das minhas mãos,
sem permitir que eu a limpasse. — Estava certo quando disse que não
costumo ser uma máquina transante. Estou limpa e vou tomar a pílula do
dia seguinte. — Ela arrumou o vestido como podia e não voltou a olhar em
meus olhos. Uma sensação estranha tomou conta do meu peito.
— Permita que eu cuide disso. Farei com que o remédio seja
entregue em suas mãos logo pela manhã e...
— Não é uma opção, Snake. Sabe que é a última vez que vamos nos
ver. — Ela me ergueu um olhar estranho, triste, um que me deixou
inquieto.
— Tem razão — concordei, mesmo sem querer. Isso não me deixava
muito à vontade, já que também tinha culpa no que aconteceu e gostaria de
poder ajudar de modo mais efetivo, mas no fim das contas era melhor que
ela cuidasse disso, assim não precisávamos nos rever.
Desci os olhos pela lateral do vestido, tentando ver se tinha rasgado
ou desfiado em mais alguma parte, e só então me dei conta de um broche na
lateral da peça, que parecia torto. Levei o dedo até ele e, quando toquei o
objeto, senti uma dor tomar a ponta do meu dedo, como se tivesse levado
uma agulhada.
— Mas que porra é essa? — Imediatamente senti meu corpo ficar
mais pesado.
— Snake, seu idiota! — Petrova arregalou os olhos e subitamente se
tornou um borrão manchado.
Perdi os movimentos dos braços e pernas e só me restou fechar os
olhos, enquanto lutava para manter minha mente acordada.
— O que fez comigo, sua raposa ardilosa?
Petrova
— Idiota, idiota, idiota! — Pulei no banco e me inclinei sobre ele
com um grito de aflição. — Não era para você tocar nisso. É um objeto
especial caso eu tivesse algum problema hoje. — Ele tentou manter os
olhos abertos, mas de repente diminuiu bruscamente os movimentos.
Aquele objeto era conhecido como “O botton da fera”. Bastava uma
espetada para que uma quantidade efetiva de paralisante fosse aplicada. O
efeito era imediato. Não apagava a pessoa completamente, mas paralisava e
causava uma confusão mental seguida de um leve cansaço, que impedia
qualquer ataque. Uma porcaria recentemente implementada na agência e
que por algum motivo irracional eu tinha decidido experimentar.
Mas que merda, esqueci completamente que ele estava no meu
vestido.
— Como infernos eu ia saber que estava usando isso? Não acredito
que me drogou, sua peste atrevida! — Ele deu risada, já atordoado, e
recostou a cabeça no banco. — Vou matá-la.
— Eu sei, sinto muito, a culpa foi minha, eu... esqueci que estava
usando isso. — Gemi, e me encolhi ao seu lado. — Snake? Meu Deus, está
me escutando? Olha só, vai ficar tudo bem. — Inclinei-me sobre ele, que
mantinha um sorriso estranhamente lindo e tenebroso. Estava grogue. —
Porcaria! Ele vai arrancar minha cabeça. — Ainda estava trêmula, e já não
sabia se era pelo que tínhamos feito ou por medo do que ele seria capaz de
fazer quando acordasse.
Ele conseguiu abrir os olhos e nos encaramos por um breve instante.
A profundidade em seus olhos azuis me fez vacilar. Senti uma súbita
vontade de chorar. Aquele homem era completamente diferente de mim.
Para ser sincera, Snake era singular em todos os sentidos, não havia outro
como ele, e aquela certeza me deixou fraca.
Minha pele estava marcada, meus seios ardiam de um jeito gostoso,
um que eu sabia que jamais esqueceria. Olhei para ele, que parecia um
pecado ambulante. Que tipo de homem era tão... perfeito? Que tipo de
homem era lindo como Snake?
— Petrova... — Ele fechou os olhos. Sua voz estava mais arrastada
do que o normal, ao que tudo indicava, o sonífero ia apagá-lo a qualquer
momento.
— Sim, estou aqui. — Segurei sua mão grande entre as minhas.
— Sua maldita... — ele praguejou, e começou a rir sem se mover.
Mordi os lábios, e me esforcei para não rir, mas não resisti.
Gargalhei, observando aquela tragédia cómica. O tipo de coisa que só
acontecia comigo. Ele se esforçou para abrir os olhos e os estreitou,
piscando devagar, parecia indignado por eu estar rindo.
— Snake, não o droguei por querer. — Tentei me controlar, e ele
continuou me encarando, agora com o semblante confuso.
— Não deveria ter beijado você — confessou, sério. O sorriso em
meus lábios morreu no mesmo instante. — Isso foi um erro. A... porra de
um erro maldito. — Fechei seu paletó ao redor dos meus ombros, como se o
tecido muito caro fosse capaz de me proteger do gelo em sua voz.
Suas palavras sinceras rasgaram parte do meu coração, e foi ali que
me lembrei do motivo pelo qual não queria me aproximar dele.
— Escuta só, malvadão, você não foi agarrado à força. Quis isso
tanto quanto eu — retruquei na defensiva.
Será que ele não tinha gostado? Porque, para mim, parecia
humanamente impossível não gostar do toque dele, mas e se ele não tivesse
gostado do meu? Era inexperiente, fazia muitos anos que não ia a nenhum
encontro, já Snake... parecia uma máquina de sexo ambulante.
Que inferno, estava me sentindo uma idiota, tentando recuperar o
controle das minhas emoções.
Já havia alguém na minha vida que precisava da minha melhor
versão. Era por ele que eu tinha que descobrir o que estava acontecendo
dentro do meu setor na CIA, era por ele que eu precisava manter meu
coração intacto, e Snake sempre foi uma grande ameaça para os meus
planos, e era doloroso saber que no fim eu tinha razão.
Para Snake, eu não passava de um erro.
— Sei que tem medo do que isso pode se tornar. Um problema,
cobranças sentimentais e coisas do tipo. Por isso nunca dorme com a
mesma mulher duas vezes. Não quer criar nenhum tipo de laço. Assim
como eu. Mas prefiro que finja que isso nunca aconteceu do que me colocar
na prateleira de mulheres das quais você não se lembra nem do nome. —
Ele riu, e aquilo me deixou ainda mais triste e irritada. Não éramos
estranhos, e saber que ele me veria assim dali em diante despontou uma dor
esquisita em meu peito. — Do que está rindo? Devo lembrar-lhe de que está
prestes a desmaiar por causa de um calmante amador? Não tem graça...
— Onde está aquele seu QI de raposa quando preciso dele… —
disse, devaneando. — Como acha que vou conseguir esquecer o que
aconteceu aqui? — Ele abriu os olhos, mas tive a certeza de que não me
viu. As duas esferas azuis estavam se perdendo aos poucos no delírio do
calmante, que pelo visto, não era tão forte quanto imaginei. — Ter você
bem longe de mim vai ser mesmo um presente. — Engoli em seco com sua
afirmação, sabendo que estava sendo o mais verdadeiro possível.
Snake odiava mentiras, por isso se tornou especialista em desvendá-
las. Era um inferno tentar mentir para ele ou esconder alguma coisa, porque
ele sempre descobria. No entanto, era também uma das suas características
que eu mais admirava, secretamente, óbvio. Não daria a ele o gostinho de
saber como a sinceridade estampada em suas íris claras me impressionava,
e o quanto doía em meu peito ter que mentir para ele.
Sondei seu rosto que, geralmente, parecia ter apenas duas
expressões. A de tédio e a de bravo. Nenhuma das duas diminuía a
perfeição dos seus traços. Ele era um homem de beleza perturbadora. Havia
um contraste interessante entre sua elegância e todas as tatuagens
espalhadas por sua pele. Seu rosto tinha traços marcantes, felinos, como um
puma à espreita. O semblante, sempre fechado, me deixava irritada,
principalmente por ele ficar ainda mais atraente assim.
— Raposinha... — chamou, fraco, pouco antes de apagar de vez.
Meu coração pulou no peito e tive que resistir à vontade de chorar.
Agora sabia que ele estava delirando pelo calmante.
— Snake, você me faz desejar mais do que eu poderia querer. —
Fechei seu paletó ao redor do meu corpo, peguei minha arma e a encaixei
no coldre da perna. Olhei para ele uma última vez antes de sair do carro.
Estava imerso em um sono pesado. — Foi melhor assim. — Suspirei. — Eu
também o conheço, Snake, agora muito mais do que poderei esquecer. Você
ia me seguir. — Passei a mão em seu rosto desacordado. Sabia que não
conseguiria escapar do seu modo instintivo natural. Snake era um homem
de paciência limitada e poucas restrições morais, mas era um protetor nato
acima de tudo.
E ele me queria longe. Ia ser melhor assim. Empinei o nariz, em um
misto de tristeza e vergonha, e chamei um táxi.
— Vou ficar com seu paletó chiquérrimo, já que rasgou meu vestido
— sussurrei, antes de sair do veículo.
Entrei no táxi com meu coração batendo descompassado. Tinha sido
marcada por ele e temia que nunca mais fosse a mesma. Mas uma coisa era
certa, nunca mais veria Snake na vida. Talvez por aquele motivo comecei a
chorar.
Desci do táxi quase uma hora depois, prestes a pegar outro veículo
para chegar em casa, como tinha costume, para camuflar meu caminho.
Meus olhos inchados de tanto chorar começaram a arder. Estava louca para
chegar em casa, tomar um banho, dar um beijo em Colin e cair na cama, na
tentativa de dormir um pouco, mas um pressentimento estranho pareceu
soprar em meus ouvidos.
A sensação de que tinha alguém me observando fez um arrepio subir
por minha coluna. Acelerei os passos, ciente de que minha intuição nunca
falhava.
E eu estava certa. Tinha alguém me seguindo, e foi aí que tudo
mudou.
Ela vai voltar?
Ninguém sabe
Eu percebo, sim
Que era apenas um sonho
Just A Dream – Nelly
Snake
A maldita me apagou e desapareceu, junto com o meu paletó.
Quase dois meses se passaram depois do dia em que acordei dentro
do carro sem ter certeza de como ela tinha partido. Sabia que a ordinária
tinha me apagado sem querer, e a raiva que me corroeu todos os dias desde
então não tinha nada a ver com aquilo.
Estava puto por não ter tido mais notícias de Petrova. Não que eu
me importasse, afinal, ela sempre foi algo passageiro. Aquela mulher entrou
na minha vida como uma tempestade vinda do nada e partiu do mesmo jeito
imprevisível, mas não conseguia entender o motivo pelo qual ficava
nervoso toda vez que pensava nela. Talvez fosse a certeza de que se ela
desejasse, realmente nunca mais a veria.
Tentei ligar para ela no instante em que acordei no estacionamento
do bar, com o dia já clareando. Apesar de saber que, pelo bem da
humanidade, não manteríamos mais contato, queria ter certeza de que ela
estava bem, mas foi direto para a caixa postal. Tentei de novo na noite
seguinte, e na próxima depois dela. A procurei mais vezes do que gostaria
de admitir.
Não achei que ela fosse desaparecer daquela maneira. Esperei algum
contato desaforado no meio da madrugada, ou alguém me seguindo pelas
ruas escuras de Chicago, mas tudo que recebi de volta foi silêncio, e me
sentia ainda mais idiota toda vez que ouvia passos atrás de mim e me
virava, com a breve esperança de colocar os olhos naquela raposa mais uma
vez.
Estava preocupado, porra!
Petrova estava incomodada com algo e... havia também o fato de
que tínhamos transado. Algo que nunca imaginei que fosse acontecer, algo
que eu tentava esquecer com todas as minhas forças, mas bastava me
distrair para relembrar da sua voz baixinha, entregue, gemendo comigo
dentro dela.
Seu cheiro, seu beijo, as curvas do seu corpo, absolutamente tudo
parecia ter se impregnado em mim. Era a primeira vez que me sentia assim,
em um misto de estupidez e delírio. No entanto, nada daquilo importava, ela
sumiu. Não se importou nem mesmo de avisar que estava viva por aí,
infernizando a vida de alguém.
Alguém que não era eu, e tinha que me sentir feliz por aquele
martírio ter saído da minha vida. Deveria aceitar sua partida e esquecê-la.
Ela era só mais uma. E foi o que fiz durante os dois meses seguintes, transei
com um número significativo de mulheres, que com certeza não iriam
invadir meu celular e destruir minha vida, que não falavam pelos cotovelos
e muito menos ficavam se gabando de um QI insuportavelmente alto.
Também bebi como de costume, participei de duas brigas e aproveitei para
ameaçar uma boa quota de pessoas que andavam me irritando. No fim, fui
viver a minha vida, sem me preocupar mais com ela.
Ao menos era o que eu pensava até Jack me ligar, já no fim da noite.
— Acho que tropecei em algo que você está procurando.
Ele conseguiu uma informação sobre ela e não precisou dizer mais
nada para que eu corresse até sua boate. Larguei tudo que estava fazendo e
atravessei a cidade o mais rápido possível, tudo por causa de uma mulher
que eu deveria esquecer.
— Maldita... — sussurrei, ao entrar em uma das boates de Jack.
— O que disse, senhor?
Virei-me para Sullivan, um dos guarda-costas que estava na última
fase de treinamento e costumava me acompanhar de perto.
— Não é nada.
O rapaz abriu mais os olhos. Tinha saído do reformatório há pouco
mais de dois anos, mas ainda trazia consigo os trejeitos desconfiados,
sempre pronto para a ação.
Damon Sullivan era jovem, tinha algumas tatuagens pelos braços,
escondidas sob o terno preto, e uma cicatriz pequena na lateral do rosto. Os
olhos de águia vasculharam o bar escuro, e muito grande, em busca de
algum sinal de perigo.
— Ei, olhe por onde anda, o presidente está passando. — Ele abriu
os braços, como se fosse uma águia, quando um dos bartenders passou ao
seu lado.
— Sem exageros, Sullivan. Pretende voar com esses braços abertos?
— Não, senhor. Desculpe. — Exagerado, sim, mas o garoto era
muito dedicado. Uma das características que eu sempre buscava nos
guarda-costas que trabalhavam para mim.
A maioria era ex-presidiário; muitos tinham marcas de brigas pelo
corpo, muitas tatuagens e um passado que a sociedade não estava disposta a
esquecer. Eram homens com histórias de vida diferentes, mas todos estavam
em busca de uma chance de voltar ao mercado. Eles eram o que eu estava
precisando. Homens que davam medo, leais, e que fariam qualquer coisa
sob o meu controle.
Eles eram como eu.
E agora, com a nova filial da Holder Security sob meu comando,
meu pai insistia para que eu andasse com seis sombras no meu encalço,
assim como ele, mas bem sabia que não havia necessidade daquilo. Meu
tamanho já costumava assustar, além de ter quase uma formação
especializada em brigas de rua, mas, para acalmar o velho, às vezes eu saía
com um ou dois deles. Afinal, nossas sedes ficavam cada vez mais
conhecidas e requisitadas, principalmente agora que o índice de mortes no
submundo aumentou, e muitos dos assassinos de aluguel ou chefes de
gangues menores em Chicago não ficavam felizes com nossa atuação e
proteção aos seus inimigos. Por outro lado, ser amigo dos três chefes das
maiores gangues da cidade me deixava em uma posição confortável. Sentia-
me tranquilo no submundo, era como estar em casa, e Jack era um deles.
Caminhei sob as luzes néon do lugar, que geralmente vivia
abarrotado, com muita música eletrônica; pessoas de todas as idades
bebendo e consumindo todo tipo de porcaria; mulheres dançando em pistas
convidativas, e uma névoa que os charutos deixavam no ar junto com toda
aquela fumaça artificial.
— Boa noite, senhor Snake. É sempre bom vê-lo. — Uma das
atendentes passou por mim e acenou, sorridente. Meneei um aceno sério e
repeti o movimento quando passei por alguns dos homens de Jack, que me
cumprimentaram com respeito.
Não havia uma só pessoa que trabalhava para o homem que não me
conhecesse. Jack administrava um terço da cidade, a zona norte, e parte da
zona sul, e era um dos maiores gângsteres de Chicago, com sua rede de
boates espalhada pela cidade. Era um homem extremamente justo e
inteligente, uma de suas características que eu mais admirava. Adorava
conversar com Jack e passava mais tempo ali do que na minha própria casa.
Também gostava do ambiente caótico, o cheiro de charuto queimando no ar
com um toque de uísque puro ao fundo, unidos à música baixa e indecente,
era o paraíso.
Atravessei a boate e fui até uma porta nos fundos, que daria acesso à
boate dentro da boate. Era ali que eu queria estar, e não precisei me
apresentar para que os dois seguranças de quase 2 metros de altura e
correntes pesadas de ouro puro no pescoço abrissem passagem.
Atrás daquela porta existia uma festa mais controlada e segura.
Cerca de dez homens faziam a segurança de Jack; homens da sua própria
gangue, pertencentes à família Kane, e que estavam espalhados pelo
cômodo muito espaçoso, onde um bar estava disposto com assentos
confortáveis em frente ao balcão, e algumas mesas individuais com quatro
cadeiras, preparadas para noites de jogatina e negócios. Aos fundos, estava
um homem de estatura mediana, cabelos escuros, impecavelmente
penteados para o lado, e óculos redondos no rosto fino, que combinavam
com seu terno verde de grife. Jack era, em sua grande essência, um nerd
jovial, perspicaz e esforçado. O homem estava em frente ao seu habitual
notebook e conferia uma lista quando me viu.
— Snake! — Jack acenou.
Fui até ele quase sem conseguir conter o tremor nas pontas dos
meus dedos. Estava nervoso.
Sullivan seguia no meu encalço, atento. Ele, diferente de mim, não
estava acostumado a frequentar lugares assim, apesar de ter se envolvido
em uma grande quantidade de confusões na vida. Ver os homens de Jack o
encararem com curiosidade deixou o jovem ainda mais agitado, como se
estivesse sendo provocado.
— Beba alguma coisa, Sullivan, e saia um pouco do meu pé —
ordenei baixo. — Não precisa se preocupar aqui.
— Tem certeza, senhor? Acho que vi um doidão ali escondendo uma
navalha.
— Ignore-os.
— Certo. — Ele obedeceu.
— O que tem para mim? — Sentei-me diante de Jack, que me
encarou por trás dos óculos.
— Faz quase uma semana que não aparece, Snake. Pensei que não o
veria mais. — Jack afastou o notebook, e pude sentir a chateação em sua
voz. Ele sempre desviava o olhar quando estava incomodado. O homem,
apesar de ter que lidar com coisas que até o diabo duvidava, tinha um
coração estranhamente emotivo. O que muitas vezes me irritava. — Só veio
me ver porque tenho notícias da sua ruiva.
— Sentiu minha falta, Jack? — zombei, e escondi a sensação
estranha que me assolou ao ouvir sobre ela.
— Tsc! — ele resmungou, e apontou para um baralho abandonado
na beirada da mesa. — Sinto falta de quando você me deixava ganhar no
pôquer. Onde está seu respeito por nossa amizade? — Dei risada.
— Há respeito em ganhar algo sem lutar?
— Não sei quanto ao Jack, mas eu seria bem mais feliz se você
nunca mais viesse jogar conosco. — Lamar, o primo e braço direito de Jack,
ergueu os olhos claros e transparentes em minha direção, com um sorriso
torto. — Nunca vi um sortudo tão desgraçado quanto você, Snake.
— Lamar, traga o envelope — Jack pediu.
— Sim, chefe. — Ele saiu, e logo a bartender me serviu uma dose
de uísque, já ciente de como eu gostava do drinque. Virei a bebida de uma
só vez e não consegui me conter muito mais.
— O que descobriu? É mesmo sobre Petrova?
Jack empurrou os óculos pela extensão do nariz fino, uma mania
que ele tinha.
— Isso é você quem vai confirmar quando Lamar voltar com o
envelope. Mas sinto que é mais do que isso, tem alguma coisa acontecendo.
Fico arrepiado só de pensar. — Ele torceu os lábios. — Ouviu as notícias
sobre os índices de morte terem aumentado?
— Sim. — Pedi mais um drinque, e o virei tão rápido quanto o
primeiro.
— Ando mais preocupado do que gostaria de admitir.
— E tem razão. Isso não é normal, nem para vocês.
— E com você, como estão as coisas? — Jack perguntou, uns
segundos depois. — Quer dizer, além de toda essa loucura pelas ruas de
Chicago. Está se adaptando às novas funções?
— Sim, apesar de trabalhar umas cinco vezes mais. Tivemos um
aumento considerável nas solicitações de proteção, quase não tenho mais
vaga. Isso também tem me deixado inquieto. Tem ideia do que pode estar
acontecendo?
Jack era um dos meus clientes, e assim como ele, vários gângsteres
menores ou membros de máfias camufladas pelo estado estavam se
sentindo diretamente ameaçados com a onda repentina de mortes que
tomava a cidade. Todos os dias noticiavam membros de gangues mortos de
forma brutal, outros sofriam de uma overdose estranha e não identificada e
alguns simplesmente desapareciam. Sem explicação, sem motivo, e aquilo
era estranho até mesmo para os bandidos. Afinal, o crime era organizado
por uma razão. Até ali havia regras, que pelo visto alguém estava disposto a
quebrar.
— Nada, não sei de absolutamente nada, e isso está me
enlouquecendo. — Jack fechou o notebook com raiva. — Ouvi boatos,
Snake.
— De que tipo?
— Ouvi dizer que viram o Parada na cidade.
— O quê? — Arregalei os olhos, e me inclinei, surpreso com a
informação.
Parada era como uma lenda, ninguém que conheci tinha de fato
colocado os olhos no homem, que era como o poderoso chefão da
atualidade para todas as gangues da cidade. Como um prefeito que
mantinha a ordem. Era temido, mais do que os monstros dos contos de
terror, afinal, ele era a própria história. Bastava tentar encontrá-lo para que a
pessoa nunca mais fosse vista. Ele era a última parada, foi assim que seu
apelido surgiu.
Geralmente seus homens resolviam qualquer questão que o
envolvesse. Sua última aparição tinha sido em uma chacina no noroeste da
cidade, muitos anos atrás. Eu mesmo não o tinha visto, mas ainda me
lembrava perfeitamente do caos que foi aquele dia. Parada e sua gangue
exterminaram uma família rival de forma cruel. Uma que eu sabia que eles
mereceram e que me deixou muito feliz na época.
Eu tinha dois irmãos que eram bem diferentes de mim, além da
aparência, éramos o completo oposto em questões morais. Meus irmãos
seguiam um instinto bom e justo, já a minha moral era mais distorcida. Me
tornei um homem cético, que acreditava em poucas coisas, e a vingança era
uma delas e se destacava em uma das minhas tatuagens. A frase: Olho por
olho, dente por dente.
Parada sempre era responsável por grandes feitos, todos justos, de
acordo com a lei do crime. Sua família era a maior, mais brutal e mais
poderosa gangue de todos os tempos, e só podia haver um motivo para ele
resolver aparecer em meio ao caos que a cidade estava se tornando.
— Seu poder pode estar sendo ameaçado — sugeri, e Jack ergueu os
olhos astutos para mim. — É só uma questão de raciocínio.
— Mortes misteriosas, famílias inteiras sendo executadas, Parada
andando ao redor da cidade, assassinos de aluguel... quando foi que viemos
parar em Gotham? — Lamar brincou quando retornou.
— Assassinos de aluguel? — Estreitei os olhos, preocupado. — O
que mais está acontecendo, Jack?
— Não sabemos ainda, mas metade dos meus homens está na rua
neste momento em busca de mais informações. Parece que uma guerra de
gangues está prestes a estourar e ninguém sabe quem está por trás de toda
essa merda. — Ele passou as mãos pelos cabelos escuros e lisos. — O
prefeito estava ignorando as mortes até a noite passada. — Ele se inclinou e
pegou um jornal abandonado na mesa ao lado. — Até isso aqui virar
notícia. — Ele jogou o jornal em minha direção. Encarei as páginas e abri
mais os olhos para a notícia estampada na capa:
“Homem é encontrado morto e esquartejado na lixeira do prefeito da
cidade. O prefeito negou qualquer envolvimento com a vítima.”
— Se tratava de um dos homens do Vance.
— Mas que porra... — Arregalei os olhos.
Chicago tinha três pilares no mundo do crime. Jack era o terceiro
mais poderoso entre eles, com sua rede de boates. Acima dele, estava
Stelvio, da família Trevino, outro VIP que trabalhava com o ramo de lutas
clandestinas e era dono do subsolo de Chicago, e em primeiro lugar,
perdendo poder apenas para o próprio Parada, estava Vance Vogel. Com
cassinos clandestinos por toda cidade, ele movimentava uma ampla e
perigosa rede, talvez a mais impiedosa entre todos os meus VIP. Mexer com
ele era quase que começar uma guerra. Nenhum dos três se adorava, mas se
respeitavam, como uma equipe. Um dependia do outro para sobreviver e
manter seu poder, mas todo mundo sabia que só um louco poderia desafiar
Vance.
— Estão tentando passar um recado — eu disse, e olhei a notícia
com mais atenção.
— A polícia está investigando. Meu contato lá dentro está me
atualizando das novidades, mas sabe como são lentos.
— Eles estão tão preparados para essa guerra quanto a polícia do
Japão está preparada para enfrentar a Yakuza — zombei.
— Levando em consideração que mais da metade da população do
Japão pertence à Yakuza, dá para entender o desespero do prefeito. Ele está
com medo de que Chicago se transforme em algo parecido. Ainda mais
depois de um recado como aquele, tão direto. Na verdade, todos estão
preocupados.
— Mas onde entra o assassino de aluguel? — sondei, preocupado
com a resposta.
— Talvez você saiba mais sobre isso do que qualquer outro. — Jack
se recostou na cadeira macia do lugar. — Ele estava atrás da sua ruiva.
Aquela rata que quebrou o meu braço.
— O quê? — Tentei manter a voz neutra, mas ficava cada vez mais
difícil controlar meu nervosismo.
— Deveria ter vergonha de sair com uma mulher que quase
arrancou um membro de um dos seus amigos. — Ele empinou o nariz,
dramático como sempre.
— Não seja exagerado, foi você quem a surpreendeu, e você nem
mesmo quebrou o braço, apenas o deslocou.
— Dói para o inferno, sabia? Fora o susto de despencar escada
abaixo — ele devaneou, e tive que me controlar para não puxá-lo pela
beirada do paletó.
— Que porra aconteceu, Jack? — Trinquei os dentes, já no meu
limite.
— Aqui, caro amigo, veja. — Ele fez um sinal para Lamar, que se
aproximou novamente e entregou um envelope pardo, pequeno, e muito
amassado, nas mãos de Jack, que o abriu e tirou de lá um pedaço de papel,
uma foto, que ele arremessou sobre a mesa, e bateu o dedo indicador sobre
a mecha de cabelos alaranjados. — Eu conheço esse cabelo aqui, assim
como reconheceria esses olhos de coiote de longe. É ela, não é? — ele
bufou, irritado.
Peguei o pedaço de papel como se ele estivesse prestes a explodir
bem na minha mão, mal conseguia respirar. A foto tinha sido rasgada ao
meio, mas a parte ainda visível mostrava uma mulher de costas, olhando
para o lado, metade do rosto delicado à mostra, e uma sensação estranha
bateu forte em meu peito ao perceber que era ela. Era a minha raposa.
Minha parceira, quer dizer.
— Quem estava com esta foto? — Meu tom baixo e tranquilo
deixou Jack em alerta. Ele me conhecia muito bem.
— O cara estava com uma pasta de documentos, rondando os becos
no norte da cidade. Meus homens o interceptaram. Na confusão, ele acabou
deixando parte dessa foto para trás e fugiu logo depois. Parecia muito bem
treinado. Talvez seja mais do que um assassino de aluguel.
— Pode ser um espião. — Torci o nariz, mal conseguindo raciocinar
de preocupação.
Caralho, fazia dois meses que não tinha notícias dela e pensei que a
maldita não quisesse me ver. A possibilidade de que algo tivesse acontecido
a ela me deixou abatido, desesperado, e ao mesmo tempo muito puto da
vida. Eu sabia que tinha algo errado. Senti em cada um dos seus
movimentos que alguma coisa estava acontecendo, e mesmo assim ignorei.
Por que Petrova não me pediria ajuda se estivesse encrencada? Ainda mais
com a porra de um espião no pé dela?
— Que dia o interceptaram?
— Vai querer se envolver nisso? — ele inquiriu, curioso, e até
mesmo esperançoso.
Raramente eu me envolvia nos negócios de algum dos meus VIP.
Havia apenas uma coisa que eu gostava de participar, algo que era
especialidade de Vance. Os julgamentos, o tribunal do crime, verdadeiro e
justo. Também era uma boa vantagem para ele ter um especialista em
mentiras presente, e aquilo sempre abriu todo e qualquer tipo de porta para
mim. Quem não me respeitava, geralmente me temia, e era por minha causa
que Petrova, uma agente da CIA, transitava livremente pelo submundo de
Chicago.
Apenas Jack sabia sobre sua profissão, e depois do nosso fatídico
primeiro encontro, ela se tornou minha protegida, e somente aquele fato já
garantiria segurança em qualquer lugar que pisasse. Pelo menos contra as
principais gangues da cidade, no entanto, também havia o boato de que ela
tinha sido a responsável pela prisão de um dos homens que estava tentando
tirar a vida de Jack. Uma história que eu mesmo fiz questão de reforçar,
então sim, ela estava segura quando se tratava dos meus. Mas se havia
algum assassino de aluguel, ou espião, em seu encalço, alguma coisa estava
errada e completamente fora do meu controle.
Mas a pergunta de Jack ainda reverberava em meu subconsciente.
Eu ia me meter naquilo?
Tentei lembrar que eu não tinha nada a ver com aquela história.
Petrova já saía por aí bagunçando o mundo muito antes de me conhecer, e ia
saber se virar sem mim. Mesmo que em algum lugar do meu cérebro uma
parte mais racional me mandasse ficar longe dela, bem sabia que não
conseguiria. Um pulsar latente e incômodo se abateu sobre meu peito ao
pensar no que poderia acontecer a ela.
— Bem que eu queria não me envolver nessa bagunça, mas temo
que não será uma opção. — Soltei o ar, exasperado.
— Ele foi abordado hoje, quando o dia estava prestes a nascer.
Aquilo era uma ótima notícia. Se ele estava procurando por ela nos
arredores de Chicago, significava que Petrova estava viva, e por perto.
Precisava pensar em um jeito de encontrá-la.
— Nos vemos depois, Jack. — Coloquei-me de pé, e Sullivan surgiu
atrás de mim como se tivesse brotado de um buraco no chão. Atento.
— Não vai nem terminar sua bebida? — Jack ergueu o próprio
copo.
— Depois. Se souber de algo, me avise imediatamente.
Passei a mão na arma em minha cintura, quase como se pressentisse
algo ruim, e sai de lá com Jack gritando às minhas costas:
— E ainda diz que não gosta dela!
Dispensei Sullivan e outro guarda-costas, que estava nos esperando
do lado de fora, e pedi que fosse embora levando o segundo carro consigo.
Ele ainda insistiu bastante, mas desistiu pouco antes de eu amarrá-lo com o
cinto de segurança.
Entrei no carro que usava para trabalhar e passei as mãos pelos
cabelos.
Passei aqueles últimos dois meses odiando Petrova, por, assim como
muitos que já entraram em minha vida, ter desaparecido do nada, mas agora
as coisas tinham mudado de figura e os pensamentos que me atingiram me
deixaram ansioso e inquieto. Peguei a foto que Jack havia me entregado e
passei o dedo pela imagem.
Ela me pediria ajuda se precisasse, certo? Sempre deixei claro que
poderia contar comigo. Não deixei?
Talvez não devesse ter ameaçado matá-la tantas vezes. Assim ela
saberia que eu preferia mil vezes que ela vivesse. Ainda que me
atormentasse no caminho, faria qualquer coisa para ter a certeza de que ela
estava em segurança. Engoli em seco, temendo que já fosse tarde demais
para que ela conseguisse me pedir ajuda.
E se Petrova tivesse sido capturada? Se estivesse sofrendo naquele
exato momento?
— Mas que porra! — Joguei a foto de lado e soquei o volante,
procurando alguma forma de aliviar o nervosismo latente que parecia entrar
por meus ouvidos e tomar todo corpo.
Sempre sabia o que fazer e raramente era levado pelas emoções, que
há muito tempo aprendi a controlar, mas ali, sentado naquele carro com os
pensamentos fervilhando em todas as infinitas possibilidades ruins que
poderiam estar acontecendo com ela, eu me senti de mãos atadas. Não fazia
ideia de como achá-la.
Tinha que ter uma saída, alguma forma de encontrá-la. Talvez
tivesse que acionar alguns dos contatos dos meus irmãos, ou até mesmo do
meu pai. Quem sabe Jasmin, minha cunhada, não conhecesse alguém
importante, já que sua empresa prestava serviço para o exército?
Liguei o carro e acelerei, cantando pneus pelas ruas escuras de
Chicago com uma única certeza no peito.
Que se foda, pretendia revirar o mundo e acionar até o Papa se
aquilo me desse uma pista de onde aquela raposa encrenqueira tinha se
enfiado.
Dirigi pela noite, com os pensamentos fervilhando. Subi a colina
privativa que levava até minha casa, a última, bem no topo da montanha, e
estreitei os olhos, quando fiz a curva que deixava a civilização para trás, e
vi algo estranho pouco antes da barreira que dava acesso aos poucos
moradores do lugar e que era protegida 24 horas por meus homens.
Cresci sendo observador e precavido, então não demorei nem um
instante para notar a sombra escura que estava escondida entre as árvores,
longe o suficiente para não ser vista pelos seguranças.
Diminui e saquei a arma. O carro era blindado, mas não pretendia
me esconder nele. Se algum filho da puta teve a ousadia de tentar me
abordar na porta de casa, ia se arrepender, principalmente por ter me pegado
em um dia desgraçado como aquele.
Olhei ao redor para conferir que era apenas um, freei o carro e abri a
porta num rompante, já mirando sem nem pensar direito, enquanto o
veículo me servia de escudo.
— Levanta a porra das mãos, ou vou acertar sua cabeça daqui! —
gritei, e trinquei o maxilar quando vi dois braços finos se erguerem no ar.
Certa curiosidade me sondou, quem seria o maluco?
— Não atire, não atire. Sou eu. — A voz baixa e trêmula me atingiu
em cheio.
Arregalei os olhos quando a figura saiu devagar das sombras. Não
podia ser.
Era ela!
Eu nunca vou te deixar se aproximar de mim
Mesmo que você signifique tudo para mim
Porque toda vez que eu me abro, dói
Too good at goodbyes – Sam Smith
Petrova
Estava apavorada. O medo do que poderia acontecer a qualquer
momento quase me cegou. Tentei manter a mente sã depois de tudo, mas
tinha chegado ao meu limite. Sabia que não resistiria por mais tempo, e
saber que não estava sozinha, que precisava ser forte e dar um jeito de
proteger meu bem mais precioso era o que ainda me mantinha de pé.
— Mamãe, tem certeza de que seu amigo vai nos ajudar? — Colin
perguntou com a voz baixa e fraca.
Estava quase dormindo em pé, de exaustão, e engoli em seco para
não começar a chorar ali mesmo. Estava conseguindo manter meus
sentimentos presos e seguros dentro do peito, mas sentia que a qualquer
momento desabaria e não poderia me permitir fazer isso na frente dele.
— Ele vai, querrrido. Com cerrrteza ele vai — menti
descaradamente.
— Se ele não puder, não fique triste, certo? Vamos dar outro jeito.
Meu coração se partiu em milhões de pedacinhos quando percebi
que ele estava tentando me acalmar.
Colin sabia que eu arranhava os ‘erres’ quando estava nervosa ou
com as emoções fora de controle, e saber que ele se preocupava comigo
daquele jeito me jogou em um poço profundo de dor.
Funguei, e desviei os olhos para a rua. Se encarasse o olhar gentil e
preocupado do meu filho naquele momento, seria o fim. Não ia resistir.
Engoli em seco e sondei a rua vazia e escura. De onde estava podia
ver ao longe uma mansão protegida no topo da montanha, bem depois da
barreira de seguranças que dava acesso à entrada da colina privativa, um
lugar seguro e quase impossível de invadir, ainda mais considerando a
quem ela pertencia.
Prometi a mim mesma que nunca mais veria Snake depois da nossa
última noite juntos, e apesar de ter sonhado com ele por tantas vezes que
cogitei processar meu cérebro por desvio de atenção moral, pretendia me
manter firme em minha decisão. Era o melhor para nós dois. Mas fui
surpreendida logo após me separar dele.
Naquela noite, fui abordada por um assassino de aluguel cruel, um
que eu conhecia muito bem, porque o maldito trabalhava para uma das
agências da CIA e foi deposto do cargo por praticar uma sequência de
torturas em pessoas que ele julgou culpadas, e que resultou em vários
corpos de inocentes acumulados na conta da agência.
Pierre era um sádico psicopata, que por sinal quase nunca trabalhava
sozinho. Ele tinha um irmão conhecido como Dipa Pietro, e que era tão
assustador quanto o próprio. Era difícil sair do radar dos dois quando se
uniam em busca de alguém, mas por sorte eu me livrei dele por muito
pouco, apenas porque senti sua presença antes que ele pudesse de fato me
apagar de vez.
Fugi, mas soube no instante em que o vi que aquilo não seria o
bastante. Ele era um rastreador e não desistiria até conseguir o que queria.
Peguei Colin e seu cachorro e fugimos sem olhar para trás. Mas não
adiantou. Havia mais de um assassino de aluguel atrás de mim e não tive
um minuto de paz nos últimos dois meses.
Eles me achavam aonde quer que eu fosse, não sabia quando foi a
última vez que dormi mais do que três horas, até que nos escondemos em
uma cidade pequena e sutil, bem nos limites de Chicago. Consegui ficar lá
por dois dias e esperei a madrugada estar perto do fim para ir até Chicago
comprar algumas coisas para Colin.
Optei por dar uma longa volta pelo trajeto, temendo que
encontrassem a casa onde ele estava. Fiz as compras em um mercado 24
horas e peguei um atalho por um beco vazio, tentando não chamar a
atenção, mas fui surpreendida por Dipa Pietro, irmão de Pierre, e um dos
assassinos de aluguel mais procurados pela Interpol. E, pelo que soube, um
dos mais caros no ramo, e então tive duas certezas: A primeira delas era que
havia alguém com muita grana disposto a me matar, e a segunda, e mais
aterrorizante, era que seria difícil sair dali com vida.
Foi quando me vi encurralada que decidi que, se sobrevivesse,
pediria ajuda ao único homem que parecia perigoso o suficiente para
conseguir me proteger. E foi assim que fui parar na porta da casa de Snake,
com Colin, meu filho de 10 anos, que ele sequer fazia ideia da existência, e
seu cachorro, desmaiado por um sedativo em uma gaiola de transporte.
Uma combinação perfeita.
Respirei fundo, e encarei a estrada vazia. Quase morri naquele beco
e a sensação de desespero latente ainda ameaçava me sufocar. O que seria
de Colin se minha vida tivesse chegado ao fim? Levei a mão ao lenço que
estava usando e engoli em seco, segurando um gemido de dor que o
movimento simples causou em minha garganta machucada. Toda a minha
alma me pedia para correr para longe de Snake, mas estava disposta a
colocar o meu orgulho e meus sentimentos de lado para proteger meu filho.
Encarei a colina, que descia em S e dava alguns vestígios se havia
ou não um carro subindo por ela, e prendi a respiração quando vi os faróis
iluminando o caminho.
— Colin, quero que vá para o canto e fiquei ali quietinho, certo? —
Estava tão nervosa que todo o meu corpo tremia.
Não sabia se era Snake, ou um daqueles malditos que estavam
tentando me matar, e certo alívio me tomou quando o carro se aproximou
um pouco mais e pude reconhecer o rosto felino e intenso atrás do volante.
Eu o vi, mas quando ele parou o carro, estreitou os olhos e mudou
completamente a postura, percebi que não tinha me reconhecido. Em um
instante, Snake estava dentro do veículo, mas no segundo seguinte o
homem abriu a porta em uma rapidez impressionante, e quando pisquei
tinha uma arma apontada para minha cabeça.
— Levanta a porra das mãos, ou vou acertar sua cabeça daqui! —
ele gritou, e todo o meu corpo reagiu de medo.
— Não atire, não atire. Sou eu. — Ergui as mãos sobre a cabeça
para que me visse. — Petrova.
Snake arregalou os olhos, que de noite pareciam como os de um
gato atento, como se estivesse diante de um fantasma.
— Mas... como infernos... — Ele abaixou a arma e balançou a
cabeça. Seu semblante foi de confuso para irritado num piscar de olhos.
— Aquele não era o último favor, no final das contas — eu disse
baixo, e engoli em seco. Não imaginei que fosse ser tão difícil revê-lo.
— Sua... maluca dos infernos, onde se meteu, caralho? Pensei que
estivesse morta uma hora dessas e... o que é aquilo?
Ele comprimiu os olhos e encarou um ponto atrás de mim. Soube
pela expressão gélida que tomou seu rosto que Snake tinha visto Colin.
Seus olhos ficaram ainda maiores quando notou a bola de pelos desmaiada
dentro da caixinha de transporte perto do meu filho.
Mordi os lábios, sem saber por onde começar a explicar.
— Petrova... — Sua voz saiu baixa. — O que está acontecendo
aqui?
Ergui os olhos e o encarei. Snake moveu a mão devagar e percebi
que estava tentando esconder a arma que segurava dos olhos atentos e
preocupados de Colin. Parecia mais bonito desde a última vez que o vi. A
roupa formal e bem alinhada realçava a aura de poder que ele exalava, e
bastou colocar os olhos nas mãos tatuadas para lembrar de como era ser
tocada por elas. Engoli em seco. Ele era insuportavelmente lindo, e naquele
momento parecia querer me matar.
— Snake, sei que eu disse que nunca mais entraria em seu caminho,
mas as coisas fugiram do meu controle e você é o único em quem eu posso
confiar agora. — Tentei não tremer, mas era difícil estar diante dele e fingir
que nada tinha mudado.
Estava exausta! Fazia quase dois meses que estava fugindo, sem um
mísero dia de paz. Mal conseguia dormir, com medo do que poderia
acontecer se me pegassem de guarda baixa. Tentei todas as minhas opções
antes de perceber que só me restava buscar ajuda no único homem que
nunca me traiu.
— Preciso da sua ajuda — repeti, quase sem conseguir respirar, com
medo que ele negasse. Não tinha mais para onde ir depois dali e sentia que
faltava muito pouco para desmaiar de cansaço.
Mas, diferente do que imaginei, ele nem mesmo pensou direito antes
de ordenar:
— Entrem no carro, rápido. — Ele olhou para os dois lados da rua,
como se buscasse algum sinal de perigo.
Peguei a pequena mala que trazia comigo, agarrei a caixa
transportadora do cão e fui seguida por meu filho, que estava com tanto
sono que não teve forças para dizer nada, só me acompanhar. Passei por
Snake empurrando Colin à minha frente, enquanto puxava nossa única
mala, além da mochilinha que Colin trazia consigo, mas logo senti o peso
da mala sendo tirado das minhas mãos.
— Se preocupe em entrar logo — Snake resmungou ao meu lado, e
prendi a respiração quando uma mistura conhecida de perfume e uísque
caro me invadiu. Ele abriu a porta do passageiro e coloquei o cão no banco
de trás.
— Tem muita coisa para explicar — ele rosnou, antes de abrir a
porta do carona para que eu entrasse.
Quase gemi em um misto de dor e prazer quando me sentei na
poltrona macia. Todo o meu corpo ficou bambo por encontrar paz, mesmo
que por um minuto.
— Obrigada — sussurrei.
Minha nossa, ia ser mais difícil do que imaginei. Mas eu precisava
dele. Talvez nossas vidas dependessem da ajuda de Snake.
Ele acelerou até a barreira. Os seguranças, que provavelmente
trabalhavam para sua empresa, sondaram o carro brevemente e liberaram a
entrada quando viram que era Snake. Ele dirigiu até a mansão em silêncio.
Meu coração estava batendo mais rápido, de um jeito esquisito, como se só
fosse me sentir segura depois que passássemos pela fortaleza de aço puro
que era o portão da casa dele.
Podia sentir o olhar de Snake, atento a cada um dos meus
movimentos, ainda assim, suspirei fundo quando ouvi o peso do portão
fechando às nossas costas. Entramos em uma garagem coberta,
impenetrável. Snake estacionou o veículo ao lado do seu Alfa Romeo
vermelho, o mesmo que me meteu em uma confusão ainda maior no nosso
último encontro.
Descemos do veículo em um silêncio incômodo. Colin tinha
cochilado nos poucos minutos em que gastamos para chegar até ali, e
quando se levantou, mal conseguia manter os olhos abertos de novo.
— Ele está exausto. — Encolhi-me quando senti uma rajada de ar
gelada percorrer meu corpo. — Não dormimos direito desde que...
— É melhor entrarmos. — Ele agarrou minha mala e estreitou os
olhos quando pegou a caixinha de transporte do cachorro de Colin, como se
ela fosse explodir em sua mão a qualquer instante.
— Posso levá-lo...
— Só entra, Petrova — rosnou de volta, sem me encarar direito.
Respirei fundo, e fui guiando Colin atrás de Snake, enquanto o
homem se movia com a precisão que sempre me encantou, como se
estivesse andando no meio de uma guerra.
Subimos por uma escadaria curta na lateral e entramos em uma
espécie de túnel, com pequenas luzes espalhadas pelo chão que nos
conduziram por um caminho muito sofisticado. No final do túnel havia uma
porta de ferro grossa, com uma sequência numérica na lateral e um leitor
digital. Snake encostou a mão sobre o sensor e ela se abriu depois de um
bipe seco e uma voz estranhamente sexy disse:
Seja bem-vindo, Snake.
Abri a boca para perguntar se a porta dele estava mesmo falando,
mas Snake foi mais rápido.
— Nem um pio — ameaçou.
Quase gargalhei, mas estava fraca demais até para isso, e o segui
pelo túnel com a sensação de estar atravessando um portal para outro
mundo. Aquela era mesmo uma casa de alta proteção, como imaginei.
O túnel terminava em uma porta de vidro que se abriu quando nos
aproximamos.
— Jade, aqueça a casa. — Ele ordenou, quando entramos em uma
sala superchique, e seja lá qual entidade fosse essa tal de Jade,
imediatamente o frio que sentia começou a diminuir. Talvez ele tivesse um
sistema mais avançado de tecnologia artificial, um que nem cheguei a
conhecer, talvez era uma Alexa de classe alta. — Traga-o para um dos
quartos — pediu, sem me olhar nos olhos, e o segui com Colin entre os
braços, que caminhava sem nem ver por onde estava indo, mal conseguindo
absorver todas as coisas estranhas e tecnológicas que encontrava pelo
caminho.
Entramos em um cômodo escuro, mas quentinho, onde havia uma
cama de solteiro forrada. Uma cortina gigantesca que deixava apenas uma
parte do que pareceu ser uma imensa janela de vidro à mostra.
— Querrrido, durma um pouco, sim? — pedi, enrolando a língua,
nervosa.
Ele meneou um aceno, e nem mesmo quis saber onde estava. Se
jogou na cama e apagou quase que instantaneamente. Snake colocou o cão
no chão e empurrou a caixinha para dentro do quarto com a ponta do pé,
como se não quisesse se arriscar a chegar perto o suficiente de Colin.
— As cobertas estão naquele closet. — Apontou com a cabeça, e fui
até o móvel, que era espaçoso, como tudo no quarto, e tinha alguns
travesseiros, lençóis e cobertas extremamente macias. Peguei uma delas e
cobri Colin, feliz por vê-lo aquecido, seguro e descansando.
Olhei sobre o ombro e encontrei Snake nos encarando. Os olhos
pareciam prestes a saltar das órbitas e eu, bem, se não desmaiasse nos
próximos cinco minutos, achava que tudo ficaria bem.
— Precisamos conversar — sussurrei, e ele me encarou como se eu
tivesse me transformado em um Alien bem diante dos seus olhos. Ajeitei o
lenço, incomodada.
Snake tinha o poder de ver tudo o que eu não queria mostrar.
— Sim. S-sim. Venha comigo — ele disse, aparentemente em
choque. O rosto meio pálido estava começando a me deixar apavorada.
Segui o homem por um corredor que aparentemente era pequeno
para seus braços muito largos. Pequenas luzes se acendiam conforme
caminhávamos e percebi que havia paredes totalmente de vidro pelo
caminho, que davam vista para um céu estrelado e a mata escura. Logo
entramos em uma cozinha luxuosa, toda mobiliada nas cores cinza, branco e
preto, como o resto da casa. Snake foi até um aparador em um silêncio
preocupante e serviu duas doses de uísque.
— Não, não, obrigada — dispensei, quando ele me ofereceu um dos
copos, e assisti Snake virar um deles, depois o outro.
— Certo, agora talvez eu seja capaz de perguntar. Que porra está
acontecendo, Petrova? Por que diabos tem uma criança dormindo na minha
casa?
— Eu...
— Não! — Ele ergueu um dedo em riste. — Fica quieta!
— Mas você perguntou...
— É, eu tenho muitas perguntas. — Ele abriu mais os olhos, e mordi
os lábios, na tentativa de controlar uma crise nervosa de risos. Elas eram
mais frequentes do que gostaria de admitir e estavam ficando cada vez mais
incontroláveis. — E você vai ouvir cada uma delas — ele rosnou, e se
manteve do lado oposto da bancada da cozinha, como se quisesse manter
distância de mim, mesmo assim eu conseguia sentir sua presença me
cercando por cada canto daquele cômodo, como se ele estivesse me tocando
com o olhar. Estremeci.
— Vou começar com o mais óbvio. — Snake passou a mão pelos
cabelos escuros e lisos e bagunçou os fios. Quase gemi quando ele me
encarou. Os olhos azuis brilhavam no rosto muito sério e o perfil marcado
por tatuagens combinava com o estilo desleixado e perigoso. Snake era um
Bad Boy da aparência à essência. — Onde você estava? E por que infernos
desapareceu depois de me drogar no nosso último encontro? Sabe quanto
tempo fiquei confuso com aquela porra? Ah, tem mais, por que caralhos
você está fugindo com uma criança e um cachorro? — ele disparou sem
nem parar para respirar. — Vamos, responda! — Snake deu um passo
rápido em minha direção, e saltei no lugar de susto.
— Achei que era para ficar calada — gritei, confusa.
— Agora é para responder!
Não resisti. Explodi em uma risada alta e tapei o rosto com as
mãos.
— Você. Está. Rindo? — Ele pontuou cada palavra e fechou os
punhos. Tinha certeza de que queria me esganar.
— D-desculpa... só estou nerrrvosa demais.
Ele passou a mão pelo rosto, e respirou fundo. Sabia que eu estava
dizendo a verdade.
— Vamos, me diga qualquer coisa, porra. Você desapareceu,
Petrova! — vociferou entredentes, e pressionou os olhos com as pontas dos
dedos. Seu peito subia e descia, e quando voltou a me encarar havia um
traço de decepção em seus olhos, uma sombra triste que despertou uma dor
insistente em meu peito. — Por que nunca retornou nenhuma das minhas
ligações? Você sumiu por dois meses. DOIS MESES!
— Você disse que ficaria melhor se eu sumisse da sua vida. Não
achei que estava esperando um cartão postal.
Me arrependi no mesmo instante em que fechei a boca. Queria ser
capaz de não afrontá-lo, mas parecia mais forte do que eu.
Ele atravessou a cozinha em duas passadas, contornou a bancada e
parou a poucos centímetros de mim. Os olhos azuis fumegando do que
pensei ser um misto de raiva, confusão e... algo mais. Algo que me fez
engolir em seco.
— Eu estava dopado quando disse isso, mas parece que mesmo
drogado meu juízo manteve meus pensamentos em ordem. Você é
problema, Petrova, um que eu não preciso na minha vida, mas se eu te
liguei é porque queria ser atendido, porra! Queria saber como infernos você
estava só para não me sentir culpado por você ter, sei lá, morrido em algum
acostamento depois de sair alcoolizada do meu carro. — Agarrei as
beiradas da bancada atrás de mim para conseguir me manter de pé sem
tremer.
Sua proximidade me lembrou de tudo que tentei esquecer a caminho
dali. Tudo que tentava apagar da minha memória desde aquela noite, mas
dois meses se passaram e eu ainda me lembrava de cada mísero detalhe. Da
sensação da sua boca na minha, da sua pele, seu cheiro, a forma como ele se
movia, o calor que sua respiração na minha pele causava.
Pior... Lembrava todas as manhãs de que Snake queria ter comprado
a pílula do dia seguinte, mas eu não deixei. Não sabia que minha vida
viraria uma roda-gigante de perseguições dali em diante, não fazia ideia de
que me esqueceria completamente de tomar o remédio. Mas esqueci,
enquanto tentava sobreviver com meu filho. Sabia que tinha feito algo que
ele jamais perdoaria, mas Snake era minha única esperança naquele
momento, eu precisava dele, Colin também. Então eu tinha que dar um jeito
de conseguir olhar nos olhos dele e esconder aquele segredo até poder sair
da vida daquele homem de vez.
— O que aconteceu, Petrova? — ele sussurrou, de repente, a voz
grave mexeu com todas as minhas estruturas. Fazia tanto tempo que não
tinha ninguém para desabafar que quase ruí de vez ali mesmo, diante da
fera tatuada. — Seja sincera.
— Não é como se eu pudesse mentir, né? — brinquei, mas ele
continuou me encarando sério. Meu rosto começou a arder. — Eu... —
Tentei respirar fundo e me acalmar, o que só me fez tremer mais. Ficar
perto dele era um erro que eu jurei não cometer novamente, mas a vida
tinha um humor ácido quando se tratava de mim. — Fui interceptada assim
que nos despedimos naquela noite.
— Assim que nos despedimos? É essa palavra que vai usar para
descrever o que aconteceu lá?
— Qual outra eu usaria? — respondi no automático.
Snake pressionou os lábios e cresceu para cima de mim, encarando-
me tão de perto que seu nariz quase tocou o meu.
— Tenho algumas sugestões — ele rosnou. — Drogar, sedar, sei lá...
entorpecer? Qual delas você acha que cabe melhor no que você fez comigo?
Eu acordei naquela porra de carro sem saber o que diabos tinha acontecido.
Demorei dias para lembrar com clareza sobre o calmante que você injetou
em mim. — Se afastou abruptamente. Só então percebi que estava
prendendo a respiração.
— Não fiz aquilo por querer, talvez sua memória tenha sido afetada
pelo sonífero, mas foi você quem apertou aquele maldito dispositivo.
— Por que não me avisou sobre ele antes que eu tivesse a chance de
apertar?
— Eu esqueci. — Desviei os olhos e torci os lábios com o rosto
prestes a derreter de vergonha. — Fui desatenta, mas em minha defesa eu
não tinha tanta experiência com aquilo, era algo novo, que nunca tinha
usado. Não foi minha intenção apagá-lo daquele jeito. — Ele torceu os
lábios e manteve os olhos pregados em mim.
— Aposto que riu do que aconteceu.
— Certamente. — Cravei os dentes na carne da minha boca quando
ele me encarou e estreitou os olhos como um puma raivoso. — Você faria o
mesmo se fosse o contrário. — Ele quase abriu um sorriso, mas logo seu
semblante ficou sério novamente.
— Depois de me apagar, poderia ao menos ter me avisado que
estava bem.
— Ficou mesmo preocupado comigo?
— Não — disse sério, rápido. — Só acho que tem muito a explicar.
— Apoiei-me na bancada de granito puro que dividia a cozinha e encarei o
chão, sem saber por onde começar. — Olhe dentro dos meus olhos, Petrova.
Não vai mentir para mim. Não hoje. — Snake segurou meu braço com
firmeza e me virou até que nossos olhos se encontrassem. — Não depois de
tanto tempo. — Seus olhos, de um azul límpido e sério, desceram para
minha boca e senti uma pontada no estômago.
— Estou sendo procurada. — Minha boca ficou seca, e uma tontura
me assolou. As pontas dos meus dedos ficaram dormentes e pisquei
devagar, odiando aqueles sintomas que eu conhecia bem e tentava a todo
custo ignorar. Respirei fundo.
— Você está pálida! — ele disse, subitamente aflito, pegou uma
cadeira alta, que me deixava bem diante dos seus olhos e me puxou até que
estivesse sentada nela. — O que está sentindo? Devo chamar um médico?
Vou chamar um médico...
— Não! — Agarrei seu pulso antes que ele sacasse o celular. — Eu
só estou exausta, minha pressão deve ter caído. — Meu coração começou a
bater na garganta. Snake sondou meu rosto com cuidado e tirou minha mão
do seu pulso, foi até a bancada e retornou com um copo de água.
— Tome um pouco, vai ajudar. — Ele ainda mantinha a feição brava
e carrancuda, mas seus olhos se suavizaram e consegui respirar melhor.
— Sei que o que estou pedindo é muito, mas não tenho outra opção.
Só posso confiar em você. Quer dizer, nós só podemos confiar em você. —
Beberiquei o copo de água, mas minhas mãos tremiam tanto que derramei
um pouquinho do líquido na blusa de frio. Suguei o ar com força quando
senti as mãos firmes de Snake cercarem as minhas.
— Calma. Beba devagar, e respire fundo. Vocês estão seguros agora,
ninguém consegue entrar aqui. — Ele continuou segurando minhas mãos, e
o calor da sua palma parecia aquecer todo o meu corpo. — Esta é uma casa
de segurança máxima. A colina é privatizada, são meus homens barrando a
portaria lá embaixo, e minha equipe chega aqui antes mesmo que alguém
consiga passar pela primeira porta de entrada.
Contive um soluço de desespero e alívio e bebi a água
pausadamente. Snake esperou que eu me acalmasse em silêncio, mas podia
sentir seu olhar sobre mim e então decidi começar a responder seus
questionamentos.
— Aquele no quarto é meu filho, Colin. E o cachorro dele.
— Seu filho... Você tem um filho. — Ele passou a mão pelos olhos e
cruzou os braços. — É claro que é seu filho, parece uma xerox de você. —
Soltou o ar, exasperado, e seu olhar pensativo me confundiu.
Engoli em seco, temendo que Snake não fosse conseguir suportar a
presença de uma criança por muito tempo. Sabia que paciência não era uma
de suas qualidades.
— Por que eu não sabia que você tinha um filho? Eu acho que
deveria saber que estava levando a mãe de alguém para dentro de uma festa
cheia de bandidos.
— Não é como se não fizesse parte do meu trabalho. Você não
poderia negar, era um acordo. E não falo dele para ninguém.
— Eu não sou ninguém — rosnou de volta.
Estava puto, mas tentava manter o controle em uma fachada de
calma, mas eu podia ver a verdade pelas veias que estavam pulando na base
desenhada do seu pescoço.
— Colin é meu ponto fraco, Snake. Ele é meu tudo. Não podia
correr o risco de ele se machucar por simplesmente ser meu filho. O meu
mundo é muito cruel, e parece ser ainda pior para pessoas como eu. — A
náusea que estava sentindo aumentou e me apoiei na bancada, tentando a
todo custo manter o controle e não vomitar ali mesmo.
— Mas que porra! — Snake me alcançou no mesmo instante e
espalmou a mão na base das minhas costas. — Está claro para mim que
você não está bem, Petrova. Se não quer evoluir para um estado mais
mórbido, deve aceitar a indicação do meu médico. Sabe que tenho contatos
não rastreáveis. Seja lá o que tiver acontecido, para de ser teimosa e aceite
ajuda. Não é o que veio procurar? Então me deixe ajudá-la, inferno.
— Não preciso de um médico para me dar um calmante. Só preciso
de um dia sem ninguém tentando me matar — menti, e endireitei a postura
no instante em que recuperei o controle do meu estômago rebelde.
— O que está acontecendo, Petrova? Por que tem assassinos de
aluguel no seu pé?
— Como sabe disso? — Arregalei os olhos e vi Snake tirar um
pedaço de papel do bolso e arremessá-lo na minha direção. Agarrei o papel
e notei que era uma foto minha.
— Os homens de Jack interceptaram um suspeito que estava em
posse de uma foto sua. Estava te procurando.
— Eles o pegaram? — Abri mais os olhos, a pequena esperança que
se acendeu em meu peito não passou despercebida pelos olhos de Snake, e
eu me odiava por aquilo; por querer que o mundo do crime fizesse por mim
o que a justiça pela qual lutava diariamente não foi capaz.
— Não, ainda. Mas é só questão de tempo. Ele não é dos mais
inteligentes, se quer saber. — Abri um sorriso desanimado. — Então, no
que se meteu?
Respirei fundo, e ergui os olhos para os dele. A pequena cruz no
canto do rosto era um detalhe que o deixava ainda mais lindo e perigoso.
Torci os lábios, observando-o.
Snake era tão incontrolável quanto um desastre natural. Não podia
contar cada detalhe da operação para não colocar a vida daquele teimoso
em risco.
— Eu vi o que não deveria — comecei, ponderando as palavras.
— Como assim?
— Minha unidade na CIA faz parte da inteligência, e é um dos
setores principais da agência. Nada é resolvido se não passar por nós e,
quinze dias antes de irmos àquela festa, tivemos uma tentativa de invasão
no sistema. O protocolo inicial é resetar todas as máquinas, mas o bug
trocou alguns dos nossos documentos e acabei encontrando uma pasta
criptografada e excluída. Então resolvi ver o que era. — Passei as mãos
pelos cabelos, incomodada com o olhar fixo de Snake em cima de mim. —
Demorei uma tarde para conseguir abrir. Um feito e tanto se quer saber, já
que nenhum dos outros especialistas conseguiria em menos de três dias.
— Estou ciente da rata ladra de informações que você é.
— Vai querer ouvir o resto ou não? — bufei.
— Prossiga. — Ele se serviu de mais um copo de uísque e ficou me
observando.
— Revirei todas as informações e descobri que o drive pertencia ao
meu chefe, Duncan. Tinha muita coisa esquisita lá dentro. Parecia um
projeto químico com várias outras salas criptografadas. Como uma fórmula
distribuída em um quebra-cabeça. Então fiz uma cópia em um Pen Drive,
apaguei a original e saí de lá com o arquivo. Quando cheguei em casa,
tentei abrir o restante e só consegui acesso a mais uma pasta. Era mesmo
um componente químico, similar a Metanfetamina, mas com uma fórmula
alterada.
— Uma droga nova? — ele inquiriu baixo.
— Encontrei relação com outros três tipos de drogas, e ao mesmo
tempo não consegui definir a composição correta, mas um dos agentes
químicos deixa um rastro azulado na pupila, quase imperceptível a não ser
que use a luz certa.
Balancei meu anel, o mesmo que estava usando no dia em que
fomos àquela festa e pressionei o objeto até que Snake pudesse ver a luz
transparente e quase imperceptível que saía da pequena pedrinha anelar.
— Foi esse anel que usou quando foi se encontrar com Baylor.
— Sim, ele identifica uma quimiluminescência. Que é quando uma
reação química gera luz. Como a reação de oxidação entre o luminol e o
peróxido de hidrogênio. O luminol perde átomos de nitrogênio e hidrogênio
e ganha átomos de oxigênio...
— Dá pra falar na minha língua? — ele me interrompeu, e bufei,
irritada.
— Essa é uma luz que identifica o rastro desse componente em
específico. Ela é quase invisível a olho nu, mas se entrar em contato com
esse componente deixa um rastro brilhante. Decidi ir até aquela festa
porque o nome de Baylor apareceu em uma das listas de compra da
substância. Pensei que talvez ele tivesse ingerido a droga, mas se fosse não
fazia sentido ele ainda estar vivo. — Engoli em seco, tentando aplacar a dor
que sentia ao pensar em Duncan, meu ex-chefe.
— Então decidiu ir lá conferir se ele tinha o rastro que você
identificou. — Balancei a cabeça, concordando. — E qual foi o resultado?
— Positivo. Ele usou a droga, e por algum milagre ainda está por aí,
vivo e cometendo crimes como se não houvesse amanhã. Tinha provado
minha teoria, mas não sabia que Duncan estava rastreando meus passos.
Descobri que ele colocou assassinos de aluguel no meu pé, além de emitir
um comunicado à CIA sobre mim. — Uma revolta efervescente tomava
meu peito toda vez que me lembrava de ter perdido tudo que construí por
anos a fio por causa de um criminoso disfarçado de agente da CIA e, que
por sinal, eu admirava como chefe.
— O desgraçado te incriminou — Snake vociferou.
— Sim, e está tentando recuperar o arquivo que roubei. Mas se eu
conseguir tempo para quebrar a criptografia do restante das pastas do
arquivo, vou ter provas suficientes para denunciar Duncan, tirá-lo do poder
e limpar meu nome. — Respirei fundo, e abaixei o rosto, ainda descrente
que aquilo estava mesmo acontecendo comigo. — Só quero minha vida de
volta, mesmo que nunca mais volte à CIA. É tudo que posso contar por
enquanto. — Respirei, aflita, e o encarei. Snake estava pensativo. — Não
pode procurar Baylor para saber nada. Eles descobririam que eu sei dele e
podem matá-lo, ou pior.
— O que quer dizer com pior? Essa porra não pode piorar.
— Eles podem vir atrás de você, Snake.
Como isso não era piorar?, eu quis gritar, mas me contive quando
ele deu uma risada colérica.
— Esse seu chefe de merda não é maluco de colocar os pés na
minha cidade. Meto uma bala na cabeça dele antes que tenha a chance de
chegar perto de você. — Ele trincou os dentes e um misto de medo e
segurança tomou meu peito.
— Só... me dê mais alguns dias com essa pesquisa e conto tudo o
que quiser saber. — Ele ponderou a hipótese em um silêncio que me deixou
aflita. — E então, vai nos ajudar?
Snake passou a mão pelos cabelos novamente. Os olhos incisivos
me observavam com cautela enquanto ele pensava na resposta.
— E esconder uma agente da CIA procurada? É claro, eu gosto do
caos. — Ele respirou fundo. Quando voltou a me encarar, certo alívio
estampava os olhos muito azuis. — Que tipo de parceiro eu seria se a
abandonasse agora? Depois de ser enganado e ilegalmente sedado, me
parece uma ideia formidável ter você dentro da minha casa, junto com seu
projeto mirim e com aquele saco de pulgas lá no quarto. É formidável. —
Ri. — Pode ficar, Raposa, mas sem gracinhas, tá ouvindo? Não vai hackear
absolutamente nada na minha casa, e mantenha seus sedativos bem longe de
mim.
— Eu prometo! — Ergui a mão como uma boa escoteira.
— Quero que tome um banho, durma e descanse. Amanhã vou dar
uma olhada nesse Pen Drive.
Ele pegou o copo em minhas mãos. O toque sutil dos seus dedos
deixou um rastro quentinho, e me odiei pelo tremor insistente que parecia
começar no meu coração e se espalhar pelo corpo, como uma doença.
Sempre fui tão controlada, tão resistente, mas por que infernos Snake mexia
tanto comigo daquele jeito?
— Tem certeza de que não vai desmaiar?
— E te dar a oportunidade de me ver descabelada? Não, obrigada.
Eu não desmaio.
— Sei. — Ele revirou os olhos. — Quer comer alguma coisa? Não
sou bom cozinheiro, mas posso pedir o que quiser, deve estar com fome. O
que as crianças comem? Além de insetos...
— O quê? De onde você tirou que crianças comem insetos?
— E não comem?
— De forma acidental, e muito raramente, sim. Quando são
menores.
— Ou seja, comedores de insetos. Com toda certeza ele vai gostar
de pizza.
— Não precisa se preocupar, comemos no caminho para cá. Tudo
que precisamos é dormir um pouco.
Me coloquei de pé, mas o movimento fez meu lenço escorregar e
deixou meu pescoço à mostra. Tentei cobrir a pele exposta novamente, mas
a mão de Snake se fechou ao redor do meu pulso.
— O que é isso? — Ele encarou a marca estampada na base do meu
pescoço, de ambos os lados, e seu rosto compenetrado foi tomado por uma
expressão assustadora. Os olhos brilharam de um jeito frio, feroz e tentei
cobrir o pescoço novamente. — Me deixe ver.
— Não é algo que eu gostaria de mostrar.
Ele puxou o cachecol e o tirou completamente. Seus olhos desceram
pelos hematomas e ele ergueu os dedos até tocar a pele ao redor das marcas,
com cautela. Era uma visão horrenda, tinha completa ciência disso, assim
como ainda doía bastante.
— Quem fez isso com você? — ele perguntou, baixo, controlado.
— Isso não importa!
— Quem foi o desgraçado que te marcou desse jeito, Petrova? Foi a
porra do seu chefe?
— Não! — Quase gritei, temendo que quem tinha me atacado
colocasse Snake em perigo.
— Quero um nome, agora! — ele rosnou entre os dentes. Estava
possesso, ódio e fúria transpassaram seu olhar e podia sentir o tremor nas
pontas dos seus dedos.
Nunca o vi tão furioso.
É isso, o apocalipse, oh!
Radioactive - Imagine Dragons
Snake
Minhas mãos estavam tremendo. Que maldito desgraçado teve a
ousadia de tocá-la daquela forma? Meu sangue parecia prestes a ferver em
minhas veias. Petrova estava fugindo, mas até então não fazia ideia de que
tinha sido interceptada.
Toda a extensão do seu pescoço, que era fino e delicado, estava
tomada por marcas roxas e escuras, sinais que eu conhecia muito bem.
Eram hematomas de estrangulamento. Tinham tentado enforcá-la, mas se eu
pegasse o desgraçado...
— Responda! — pressionei, precisava de algo, qualquer coisa que
me ajudasse a revirar o mundo atrás do maldito.
Ela engoliu em seco, antes de dizer; estava com medo, podia notar
pelos olhos verdes profundos e levemente mais abertos.
— Dipa. Ele se chama Dipa Pietro — ela gaguejou.
Petrova estava diferente, parecia menor e mais vulnerável dentro do
moletom velho com o emblema do Harry Potter que usava. Estava
assombrada por alguma coisa. Algo que nunca vi em seu olhar. Sondei seu
rosto, tentando descobrir se ela dizia a verdade, e o que vi foi um misto de
medo e tristeza que me deixou puto da vida.
— Foi depois de ter um encontro inesperado com ele que decidi vir
procurar ajuda. Não conseguiria sozinha. Dipa é um assassino de aluguel
perspicaz e cruel, sem nenhum pudor ou regra. — Trinquei o maxilar.
Talvez tenha sido ele que os homens de Jack interceptaram. — E, como
você já sabe, sou especialista em tudo que acontece atrás de uma mesa de
computador. Apesar de ser bem treinada para brigas corporais, não sou tão
eficiente quando se trata de alguém como Dipa, e ele... ele quase me matou.
Chegou bem perto de conseguir. — Sua voz foi ficando mais baixa, os
olhos verdes marejaram, mas ela não chorou.
Era forte, minha pequena raposa. O que só aumentou minha vontade
de esfolar Dipa Pietro vivo, seja lá quem aquele demônio fosse.
— Agora você está segura, e ele não vai se aproximar enquanto
estiver aqui. — Ergui a mão e parei quando estava prestes a tocá-la
novamente. — Seu pescoço... está doendo? — Apoiei a mão na bancada ao
seu lado e ela negou com um aceno. Os olhos se desviaram dos meus por
um segundo. Estava mentindo, mas por algum motivo não quis dizer a ela
que eu sabia. — Vou te dar um analgésico mesmo assim, vai ajudá-la a
relaxar um pouco, certo? Sempre tomo um, quando treino com meus
irmãos, para conseguir trabalhar no outro dia.
Ela tentou sorrir, mas não conseguiu, e aquele mísero detalhe
incendiou ainda mais meu coração. De puro ódio.
Peguei o comprimido e lhe entreguei.
— Então, temos nessa equação mais de um assassino de aluguel.
Um agente da CIA perseguidor e psicótico, a miniatura que você chama de
filho, o cachorro dele e você, a bagunceira.
— Sei que não gosta de crianças, e de cachorros...
— E de qualquer coisa que invada o meu espaço? Sim, está certa,
mas também sei reconhecer uma situação de emergência. Tem o tempo que
precisar para resolver essa loucura e ficar segura de novo, depois disso
pretendo expulsar todos vocês — avisei, e me senti estranho.
Era como abrir as portas para o apocalipse, mas Petrova era o meu
caos preferido. Não podia abandoná-la. Ainda que ela viesse com uma
coisinha estranha a tiracolo.
— Você é tão gentil.
Ela revirou os olhos e respirou fundo. O rosto delicado estava
marcado por olheiras profundas e só consegui me perguntar quando foi a
última vez que ela tinha dormido uma noite inteira.
— Chega de conversa, você precisa descansar e não quero que
morra de exaustão dentro da minha casa.
— Minha alma ia te atormentar para todo o sempre.
— É, eu sei. Então vamos logo. Tenho três quartos livres em casa,
além do meu, mas cada um possui uma cama de solteiro. Podem juntar os
colchões ou dormir em quartos separados.
— Não seria incômodo ocuparmos dois quartos? Colin adoraria
poder dormir sozinho.
— Não seria nenhum problema. Pode ficar com um dos quartos,
enquanto o outro cômodo fica com seu...
— Filho?
— Isso — resmunguei sem encará-la.
Por que infernos era tão difícil dizer aquilo? Por algum motivo eu
me sentia traído por ela ter escondido a existência do seu filho de mim.
Tudo bem que nosso acordo era exatamente sobre não saber da vida um do
outro, ainda assim, tentava assimilar aquela nova informação e ela não fazia
parte de tudo que já pensei sobre Winnie Petrova.
— Snake, você precisa saber que Colin não é uma criança comum.
Ergui as sobrancelhas para a afirmativa esquisita dela.
— Como assim? Ele não roí os móveis, certo? Minha mobília é cara
demais.
— Não, seu idiota. Eu me pergunto que tipo de referência você tem
sobre crianças. — Ela riu, e o aperto que se apoderou do meu peito ao ver
os hematomas em sua pele começou a diminuir. — Sabe que eu sou
inteligente. Acima da média, com um QI de...
— Cento e trinta. Eu me lembro do seu QI exemplar. — Revirei os
olhos. — Você já me disse isso umas mil vezes. Fora que está escrito na sua
testa e nesse moletom horroroso que você é 100% nerd.
Ela torceu o nariz e enrolou o cachecol ao redor do pescoço, por
cima do moletom, cobrindo a marca de vez.
— Estimam que o QI do Colin chegue a 180 com o passar dos anos.
— Quer dizer que ele é um tipo de gênio? — Dei risada. O que mais
aconteceria naquela noite?
— É quase isso. Ele tem a mente muito evoluída, mas sua inocência
combina com sua idade fisiológica, ele é só uma criança. Tem 10 anos, mas
sabe coisas que um mestre nunca ouviu falar. Tem memória fotográfica,
guarda cada detalhe de tudo, e não gosta que estranhos toquem nele. Então,
talvez precise de um pouco de paciência para lidar com ele, mas vai
descobrir que Colin é um menino incrível. Prometo que não vai te
incomodar. — Ela mordiscou o lábio inferior e apontou para o corredor. —
Por falar nisso, vou ver como ele está antes de dormir.
— Te encontro lá em um minuto — disse, e a vi sair da cozinha,
deixando-me sozinho com meus pensamentos.
Petrova estava insegura e aquela sua versão me deixava estranho.
Preferia quando ela estava me provocando ou quase atirando na minha
cabeça. Vê-la com a guarda baixa me levava às poucas lembranças que
restaram da noite que passamos juntos, quando ela estava entregue em meus
braços. Balancei a cabeça, na tentativa de arremessar aquela lembrança no
inferno de vez, e torcia para que ela não saísse de lá.
— Por que ela não me promete que manterá o cão sob controle
também? — reclamei, sozinho, tentando evitar meus próprios pensamentos
em relação a ela.
Peguei o celular, ciente de que havia outros problemas para resolver,
e tinha certeza de que me arrependeria daquela decisão em algum momento,
mas que se foda.
Liguei para Jack.
— Caro amigo... — ele saudou, animado. — Novidades?
— Jack, tenho o nome do assassino de aluguel que seus homens
perderam.
— Que notícia maravilhosa. Quem é o safado escorregadio?
— Ele se chama Dipa Pietro. Preciso que encontrem esse
desgraçado com vida. Não me importa quem tenham que quebrar no
caminho. Quero ter uma conversa com o maldito.
— Vou espalhar meus homens atrás desse rato imundo. — Ouvi o
som da sua arma sendo carregada. — Ligo quando tiver notícias, e vamos
ter.
Desliguei, ciente de que Jack logo o encontraria. Era só questão de
tempo até que eu colocasse as mãos no merda que a machucou. Servi mais
uma dose de uísque e virei de uma vez. Abaixei a cabeça e respirei fundo
por um instante.
Que porra estava acontecendo comigo? Ver Petrova ali, prestes a
virar minha vida de cabeça para baixo me trouxe um alívio estranho. Um
que precedia a mais pura destruição, e pelo inferno, eu gostava daquilo. Não
fazia ideia do tamanho da confusão que ela se meteu, mas aceitaria protegê-
la; e quem quer que tentasse tocar naquela mulher pagaria com a porra da
própria vida.
Fui até a sala e peguei a mala de Petrova, que por sinal era bem
pesada, e segui pelo corredor que levava até a área dos quartos. Cheguei a
tempo de vê-la fechar a porta do cômodo onde o garoto estava dormindo
junto com a bola de pelos, e uma dúvida permeou minha mente.
— Tem certeza de que aquele cachorro ainda está vivo?
— É só o calmante que demos antes de pegarmos a estrada. Parece
que só fez efeito agora. De qualquer forma, ele deve dormir a noite toda.
Vou deixá-lo no mesmo quarto que Colin.
— Espero que ele não acorde destruindo tudo que vê pela frente.
— Eu também — ela sussurrou.
— O quê?
— Nada! — ela disse rápido.
— Sei — bufei. — Seu quarto é aqui. — Apontei com a cabeça para
o cômodo ao lado. — E que porra você trouxe nesta mala?
— Tudo que eu precisava para sobreviver. — Deu de ombros, como
se não fosse nada de mais.
— Certo, meu quarto fica no final do corredor, caso precise falar
comigo. Amanhã eu te mostro o resto da casa, e o subsolo.
— Devo me preocupar de que seja algum assassino em série? Não
tem ninguém preso nesse subsolo não, né?
— Vai ter se não calar a boca — retruquei, e a safada riu. — Aquele
é outro quarto extra. — Apontei para o quarto ao lado do que Colin estava
dormindo. — São confortáveis, mas nenhum além do meu tem suíte. Podem
usar o banheiro do corredor. Há toalhas limpas, cobertas e travesseiros no
closet de cada quarto e... que cara é essa? — Parei de falar quando notei que
ela olhava para dentro do quarto que ia dormir com os olhos arregalados.
— Você tem quatro quartos deste tamanho numa casa em que mora
sozinho?
— Eles não são todos do mesmo tamanho. O meu e o que você vai
dormir são um pouco maiores. Por quê? Acha o quarto pequeno?
— Tá maluco? Caberia toda a minha casa dentro deste quarto. —
Ela abriu um sorriso fraco. — Obrigada, é mais do que eu poderia pedir.
— Olha, eu nunca tive nenhum hóspede, além dos meus irmãos, e
como sabe eles são quase como ratos. Sobrevivem de qualquer jeito, não
faço ideia de como ter... visitas na minha casa. Tem certeza de que não
precisa de mais nada?
— Acho que o susto de saber que tenho um filho mudou a
configuração do seu cérebro. Está bonzinho demais. Devo desconfiar?
— Ah, com certeza. Não estou fazendo nada além de cuidar do
patrimônio que contém as respostas para as minhas perguntas. E, caso tenha
esquecido, são muitas. Quero saber tudo o que tem naquele pen drive.
Ela empinou o nariz fino e me lançou um olhar desaforado.
— Tudo bem — bufou. — Terá todas as respostas que quiser.
Então ela piscou, e bastou aquele pequeno segundo de distração para
que Petrova deixasse escapar um olhar triste, exausto e preocupado. Algo
que me deixou inquieto.
— Não pense nisso agora. Só... trate de descansar e acordar viva. —
Tossi, e desviei o olhar do seu. Que inferno era aquele agora? Eu já estava
me preocupando além do necessário. — Quer dizer, se morrer, eu fico sem
saber da fofoca da CIA, porque com toda certeza existe uma.
— Fofoqueiro!
— Portador da informação. É diferente. — Deixei que ela
acreditasse que estava apenas curioso, mas a verdade é que comecei a
suspeitar que a guerra que estava prestes a estourar no submundo tinha
alguma relação com aquela história maluca no instante em que ela disse que
seu chefe estava custeando a produção de algum tipo de droga. — Agora
vai!
Coloquei a mão na testa de Petrova e a empurrei para dentro do
quarto. A raposa chiou, mas não resistiu.
Mal a porta se fechou, um tremor estranho transpassou meu corpo.
Como se só agora minha ficha tivesse caído. Aquilo estava mesmo
acontecendo.
Apoiei-me na parede, bem no final do corredor, e fiquei encarando a
porta do quarto de Petrova como se ela fosse começar a pegar fogo a
qualquer instante.
Puta que pariu! Em qual realidade paralela existia uma equação que
coubesse Petrova, o filho dela e eu sem resultar em uma catástrofe? Isso
sem contar o monte de pelo que eles chamavam de cachorro.
Passei a mão pela testa. A história ficava cada vez pior, mas por
mais esquisita que aquela situação fosse, era real; não podia simplesmente
ignorar, apesar de me sentir à beira de um colapso.
Petrova
Fechei a porta do quarto às minhas costas e precisei de mais de um
minuto para voltar a respirar normalmente, como se os olhos de Snake
ainda estivessem em mim, observando cada passo que eu dava.
Subi a mão pelo lenço em meu pescoço e parei na pele machucada.
O semblante que ele fez quando viu aquela marca não sairia da minha
cabeça tão cedo. Era como se ele realmente se importasse e a hipótese me
arremessou em um mar de desespero.
Se Snake descobrisse o que eu fiz, ou melhor, o que não fiz...
Engoli em seco e cambaleei até o closet preto que ficava bem no
canto, perto da janela. Tirei de lá uma coberta e um lençol, e obriguei meus
pés a irem até a cama. A exaustão ameaçava levar a pouca razão que ainda
me restava. Tirei o cachecol, o par de tênis, que estava usando, e a calça,
então engatinhei pelo tecido macio e quase gemi de prazer quando me deitei
sobre o colchão macio e puxei as cobertas.
Fechei os olhos com a breve esperança de que conseguiria dormir
imediatamente, mas uma náusea insistente me lembrou um dos motivos do
meu desespero por estar ali.
Meu Deus, aquilo não podia estar acontecendo!
Abri os olhos, agarrando-me à súbita esperança de que talvez, por
acaso do destino, estivesse errada. A menstruação costuma atrasar quando
uma mulher está passando por um período de estresse, certo? A náusea
constante e falta de apetite pela manhã poderia ser causada pelo mesmo
motivo. Eu mal me alimentava direito, mas... O que eu faria se fosse
verdade? Ou pior, o que faria se fosse verdade e ele descobrisse?
Snake não tolerava mentiras, tanto quanto não suportava crianças.
Mal sabia como seria a convivência entre Colin e o Malvadão do quarto ao
lado, mas tinha absoluta certeza de que se ele descobrisse a verdade nos
abandonaria à própria sorte. Afinal, eu estava mentindo, algo que prometi
não fazer.
Mas como explicaria a ele? Como diria ao homem mais impetuoso e
irritável que eu conhecia que engravidei dele sem querer?
Comecei a sentir os sintomas um mês depois, quando estávamos em
fuga. Mal tinha me dado conta de que minha menstruação estava atrasada,
mas não pude ignorar as náuseas constantes, a tontura matinal, a pressão
baixa, o cheiro de frutas que se tornou insuportável. Temi tanto saber a
verdade que evitei o teste de farmácia, diante dos índices altíssimos de erros
que eles apresentavam, e adiei o exame de sangue. Apesar do meu coração
gritar uma resposta, eu ainda tinha esperanças de que pudesse estar
enganada.
Então, consegui realizar um exame em um laboratório pequeno, nos
confins da cidade. Usei uma identidade falsa porque sabia que meu antigo
chefe estaria de olho em tudo. Quando peguei o papel entre os dedos, não
tive coragem de abrir. Pensei que talvez mais tarde fosse deixar de ser
covarde e seria capaz de encarar o que quer que o resultado dissesse, mas
fui abordada antes mesmo que conseguisse chegar ao novo esconderijo.
Consegui fugir, o que de fato vinha se tornando minha
especialidade, mas o desgraçado do Dipa Pietro ficou com minha pasta e
acabou levando o exame e meus documentos. Tanto os verdadeiros quanto
os falsos. Nem mesmo tive a chance de olhar o resultado, e precisei voltar a
fugir.
Mordi os lábios e senti meus olhos arderem. Meu coração andava
descompassado já fazia tempos, mas naquela noite, enquanto sentia o aroma
delicado dos lençóis da casa de Snake, ele parecia doer mais. Como se
soubesse que eu estava prestes a desmoronar de vez.
Perdi meu emprego, fui traída pelo homem que considerei como pai
por muitos anos, meu filho e eu estávamos fugindo sem um pingo de
descanso fazia dois meses, e agora... acreditava estar grávida de um homem
que sempre deixou muito claro que nunca desejou ser pai. E, que por sinal,
acreditava fielmente que eu tinha tomado a maldita pílula do dia seguinte e
nem mesmo corria o risco de estar grávida.
Respirei fundo e me encolhi na cama. O cansaço deixou minha
mente mais leve, mais devagar, e comecei a recitar frases baixas, como se
aquilo fosse capaz de parar meus pensamentos acelerados.
— Ele não precisa saber — sussurrei.
Não seria a primeira vez que eu teria que lidar com aquilo sozinha,
não precisava do ódio de Snake me atrapalhando no caminho.
Ficaria em sua casa até conseguir o que precisava para recuperar
minha vida e garantir a segurança do meu filho, depois disso Cedric nunca
mais nos veria.
— Cedric... — repeti seu nome baixinho. Era forte e lindo, como
ele.
Suspirei, sentindo-me sozinha e perdida, mas sabia que seria melhor
assim. Foi do que tentei me convencer, mas uma lágrima solitária, que
desceu pelo meu rosto, parecia discordar.
Snake
Estava tão aceso que não consegui pregar os olhos nem por um
segundo, pelo contrário, já passava das duas da manhã e eu estava sentado
no sofá da sala, completamente imóvel. A luz da pequena luminária que
deixei acesa lutava para clarear parte do ambiente e minha cabeça parecia
prestes a explodir.
Demorei para entender o que significava permitir que Petrova
ficasse na minha casa. Vê-la me causava um incômodo latente, como um
espinho. Nossa convivência nunca foi fácil e não começaria a ser logo
agora. Ela era justa, e eu, vingativo. Ela adorava seguir uma lista de regras
estressantes, enquanto eu era especialista em quebrar cada uma delas. Em
que planeta sobreviveríamos vivendo sob o mesmo teto?
Isso sem contar com todo o combo destruição que ela trazia consigo.
Ela tinha um filho, já eu nunca me dei bem com crianças. Era uma
catástrofe anunciada!
Baguncei os cabelos com os dedos, indignado, revoltado e com
medo. Sim, fazia muitos anos que eu não sentia medo de alguma forma.
Aquilo era culpa daquela raposa descarada da Petrova. Tudo começou
quando ela simplesmente desapareceu. Morreria antes de admitir, mas foi a
primeira vez que senti medo em muitos anos. E agora, meu Deus, eu estava
apavorado, em pânico. Porque, por mais que eu quisesse detestar a
raposinha a cada segundo, não era exatamente isso que eu sentia. Tudo nela
parecia diferente e igual ao mesmo tempo. Sua boca continuava delicada e
afrontosa, mas depois de beijá-la eu sabia que além disso ela também era
doce, macia e gostosa pra caralho.
Balancei a cabeça e espantei o pensamento de vez. Tinha que
esquecer o que aconteceu a qualquer custo, porra. Foi o que sempre fiz, e
vou continuar a fazer.
Bufei, irritado. Fazia dois meses que eu repetia aquela porra.
Petrova era uma doença; uma contagiosa e que me infectou. Precisava me
livrar dela antes que me consumisse de vez.
Tombei a cabeça no encosto do sofá e pretendia ficar ali, pensando
na existência da humanidade e em todos os prováveis problemas que
estavam prestes a bater à minha porta atrás daquela mulher, quando uma
questão mais urgente me incomodou.
Fui até a cozinha e revirei alguns armários. Não costumava cozinhar
em casa, bem, na verdade não sabia cozinhar, e quando não comia na rua
pedia algum fast-food no meio da noite. Mas sabia que aquela criança
precisava de muito mais do que enlatados e vodca. Ele tinha que comer
alguma coisa saudável, e o que diabos aquilo significava? Ovos cozidos?
Não... Isso é coisa de pré-treino.
— Que inferno! — resmunguei sozinho quando percebi que nem se
eu me esforçasse conseguiria chegar a alguma conclusão.
Então, peguei meu celular, e liguei para a única pessoa que eu
imaginava saber a resposta.
— Snake? — Zion, meu irmão caçula, atendeu com a voz sonolenta
e preocupada.
— O que uma criança come?
— O quê... espera, que porra tá acontecendo, Snake? Já viu que
horas são? — ele reclamou em um sussurro.
— É uma urgência! — eu disse, aflito. — Preciso saber o que uma
criança come. Você tem uma filha, deve saber.
— Pelo amor de Deus, me diga que você não sequestrou nenhuma
criança.
— Não é nada disso. Preciso que confie em mim; sem perguntas.
— Que merda, Snake. Quantos anos a criança tem?
— Dez, eu acho.
— Você sabe que minha filha é um bebê, certo? Como vou saber o
que dar para uma criança dessa idade?
— Eles não têm uma comida específica? Tipo uma seção de comida
para crianças?
— Que idiota! — Ele respirou fundo. — Fica na linha, caralho.
Estrela vai nos ajudar. Vou acordá-la, mas a culpa é toda sua.
— Não conseguimos mesmo resolver a situação sem envolver a
cunhada? Ela vai aparecer aqui na porta, se achar que tem uma criança na
minha casa.
— TEM UMA CRIANÇA NA SUA CASA? — Fantasma, como era
conhecido por ser extremamente silencioso, deu um berro que poderia ter
acordado a casa toda.
— Fala baixo, porra! — vociferei. — E não, não tem nenhuma
criança aqui. Não tem ninguém aqui além de mim e da minha raiva crônica,
então pare de fazer suposições. Só quero ajudar um amigo — menti, algo
que odiava fazer, mas conhecia a família participativa que eu tinha, e se não
os quisesse ali antes mesmo do sol nascer, teria que ocultar meus
convidados inesperados. — Quer saber, deixa que eu me viro.
— Espera...
— E se pensar em abrir a boca sobre essa ligação com alguém, a
cunhada vai saber onde você enfiou aquela blusa pavorosa que o tio dela
deu pra Hope.
— SNAKE!
Desliguei antes que ele tivesse a oportunidade de procurar saber
mais alguma coisa.
Respirei fundo, e liguei para outra pessoa. Uma mulher que eu sabia
ter criado uma grande quantidade de crianças. A mãe de Stelvio, o rei das
lutas clandestinas no submundo de Chicago. Ele e seus 14 irmãos eram
mais do que eu poderia pedir de experiência com crianças.
Passei longos minutos no telefone com a mulher que, diferente de
Fantasma, não fazia perguntas nem suposições, e terminei com uma lista
enorme de compras na mão, que pediria para um dos meus homens comprar
antes do sol nascer. Mas antes de concluir a ligação lembrei que estava
faltando alguma coisa. Não era só Petrova e seu filho que precisavam tomar
um café da manhã reforçado.
Porra, onde foi que eu me meti? Fechei os olhos e soltei um longo
suspiro.
— A senhora também teria alguma experiência com cachorros?
Olhe nos meus olhos
É onde meus demônios se escondem
Não se aproxime muito
É escuro aqui dentro
Demons – Imagine Dragons
Snake
Onde é que eu estava com a cabeça quando concordei com aquela
loucura?
Soltei o ar e passei as mãos pelos cabelos. Não tinha conseguido
pregar os olhos, preso naquela pergunta, quando o sol começou a nascer no
horizonte. Tinha deixado as cortinas abertas e alguns raios de luz apáticos
começaram a transpassar a névoa da neblina e as duas paredes de vidro do
meu quarto, espalhando-se pela cama de cobertas escuras.
Sempre gostei da sensação de tranquilidade temporária que a
natureza transmitia, por isso minha casa era no meio de uma montanha e
tinha, em sua maioria, paredes de vidro, obviamente blindadas, afinal, não
era um homem comum, que podia se dar ao luxo de ser descuidado. Mas a
pouca calma que me restava foi embora de vez.
Tentei esquecer tudo que aconteceu no dia anterior; tentei ignorar a
preocupação latente que parecia se infiltrar por cada uma das minhas
tatuagens, mas não adiantou. Toda vez que fechava os olhos eu voltava ao
exato momento em que vi seu pescoço machucado e toda a raiva que eu
geralmente mantinha bem controlada sob uma fachada de sarcasmo agora
ameaçava me sufocar.
Estava bravo com ela por ter desaparecido, irritado por ter perdido o
controle da situação, algo que raramente acontecia, e furioso por estar me
sentindo tão preocupado. Odiava aquela mulher por me fazer sentir assim.
Por me preocupar, por permitir que se aproximasse o bastante para estar
dormindo no quarto ao lado. Mas a verdade é que só eu podia odiá-la, e a
vontade de matar quem quer que tenha a machucado só crescia a cada
minuto que passava.
— Que porra! — Chutei as cobertas.
Ficar ali, imaginando de quantas formas destroçaria o maldito que
colocou as mãos nela não ajudaria de nada. Então me levantei; mandei uma
mensagem para a minha secretária executiva e pedi que desmarcasse todos
os compromissos do dia. Sabia que tinha muito para entender de toda
aquela loucura, e ainda havia o pen drive que Petrova roubou da CIA. Se
tinha algo que eu precisava ver, era o conteúdo daquele objeto, e não daria
àquela raposa a oportunidade de esconder algo de mim.
Tomei um banho rápido, e entrei no closet do meu quarto. Encarei o
amontoado de roupas de tons sérios, pretos em sua maioria, e escolhi uma
camiseta larga, comprida, e uma bermuda, ambas pretas. Baguncei os
cabelos úmidos com os dedos e me preparei para sair do quarto.
Pensei que fosse ser fácil sair de lá e encarar o que quer que me
esperasse do lado de fora, mas eu não era o homem mais sociável do
mundo. Geralmente, pessoas comuns me entediavam. Já as interessantes,
como Petrova e toda sua astúcia e dom para confusão, me deixavam
intrigado e até mesmo interessado, mas aquilo nunca passou de uma noite.
Não conseguia me lembrar se alguma vez na vida tive que conversar com
uma mulher com quem transei no dia seguinte. Ainda mais na minha casa,
com a porra de um filho a tiracolo. Como infernos eu deveria agir?
Toquei a maçaneta, parei por um instante e mexi o piercing em
minha língua, perturbado. Por um breve momento, poderia até mesmo
parecer que eu estava sozinho em casa, com o silêncio que pairava do lado
de fora. Mas ainda que não pudesse escutá-la, cada célula do meu corpo
parecia muito ciente da presença de Petrova tão perto de mim, e aquilo me
deixou impaciente.
A verdade é que não sabia o que fazer, mas não podia ficar ali
dentro, ignorando o que estava acontecendo do lado de fora, então abri a
porta do quarto devagar e olhei de esguelha pelo corredor. Estreitei os
olhos, surpreso ao ver o pequeno xerox de Petrova abrir a porta do seu
quarto. Fiquei ali, parado como se de repente fizesse parte da decoração,
observando o que ele faria.
O garoto, que pelo visto acordava muito cedo, lutava para sair do
quarto por uma brecha pequena; Depois de muita luta, ele passou por ela e
fechou a porta atrás de si, deslizou a mão pelos cabelos ruivos e encarou o
pote de ração e água que deixei ao lado do seu quarto.
Na noite anterior, eu fiz uma lista com a ajuda da mãe de Stelvio, e
pedi que um dos meus homens comprasse tudo o que ela listou, o que
incluía os potes de água e ração para o pulguento que o garoto trouxe a
tiracolo. Continuei observando a cena. O filhote da raposa pegou o pote de
água. Era tão magro e pequeno que parecia se esforçar para conseguir
sustentar o pote sem deixá-lo cair e, devagar, pegou um pote de cada vez,
lutou para abrir a porta sem deixar o cão sair e entrou com cada um deles.
— Passarinho, se comporte, por favor! — Ouvi o garoto reclamar,
quando tentou sair do quarto, e crispei os lábios.
Que merda era aquela agora? Eles tinham trazido um passarinho
também?
— Shh! Quietinho — ele bradou para a greta aberta da porta do
quarto e apontou o dedo em riste, muito sério.
Colin saiu pelo corredor, observando tudo ao redor. As pequenas
mãos estavam bem rentes ao corpo, como se tivesse medo de esbarrar em
alguma coisa. Ele passou pelos quadros, que estavam distribuídos pela casa,
e parou em frente a cada um deles, analisando as imagens como se gostasse
delas. Parecia uma formiguinha olhando para o alto. O que será que estava
pensando?
Depois, seus olhos se expandiram um pouco mais quando chegou ao
corredor, onde uma parede de vidro dava vista para parte da floresta no
corpo da montanha. Era uma vista estonteante, principalmente de noite, e
notei que ele abriu os lábios, surpreso com a imagem.
O garoto continuou sua peregrinação até chegar à sala, e a
curiosidade me fez sair do quarto e segui-lo pelo corredor. Ele andava de
um jeitinho estranho, parecido com o da mãe, como se estivesse marchando
para uma batalha importante. O garoto parou na sala, bem em frente ao sofá
preto e comprido. Seus olhos claros varreram cada parte do cômodo,
passando pela mesinha de centro, até as janelas amplas e subindo pelas
cortinas muito altas com nítido interesse. Abri mais os olhos ao me lembrar
que havia uma arma escondida em pelo menos três móveis naquele
cômodo. Porra, tinha me esquecido completamente daquilo e teria que dar
um jeito nelas antes que ele as encontrasse sem querer.
De repente, o garoto pareceu se dar conta de algo e ficou encarando
o espaço vazio que ficava em frente ao sofá, como se tentasse desvendar
uma charada. Ele levou o dedo ao rosto e ficou ali por um longo minuto, só
olhando para a parede cinza, até decidir ir até ela.
Ele a analisou com o cuidado de quem estava investigando uma
cena de crime e se inclinou quando viu alguns recortes em gesso. Estreitei
os olhos, não tinha como ele saber...
— Meu Deus! Meu Deus do céu!
O menino saltou para trás quando tateou a parede e encontrou o
botão camuflado que acionava o jogo de TV que estava instalado ali na
sala.
A parede começou a se mover, e minha TV de 85 polegadas foi
exposta, junto com todos os eletrônicos que a acompanhavam. Colin perdeu
um pouco a cor do rosto ao olhar para o monumento que parecia maior que
ele, e levou a mão à boca, como se tivesse cometido um crime. Quase ri do
desespero do garoto por ter descoberto a TV.
— Ui, que susto!
Ele saltou no lugar e arregalou os olhos quando se virou e me
flagrou espionando seus movimentos.
— Senhor, sinto muito pela TV, eu só pensei que... Na verdade, não
pensei muito, só apertei e... ela saiu da parede. — Ele abriu mais os olhos,
que brilhavam em um misto de alegria e medo.
Estreitei os olhos e o encarei em silêncio. Para ser sincero, não fazia
ideia do que falar com aquele menino. Era estranho como ele se parecia
com ela. Dos cabelos ocres aos olhos muito verdes e inocentes. O nariz
salpicado de sardinhas era delicado como o da mãe. A postura ereta dava a
ele uma aparência séria, como se fosse um miniadulto. Ele era esquisito.
— O-o senhor deve ser o Snake, certo? E-u sinto muito, só... estava
curioso para testar minha teoria — ele gaguejou, nervoso, e deu um passo
em minha direção. Subitamente fui tomado por inquietação latente, como se
as chamas do inferno estivessem se aproximando de mim. — Ontem estava
com sono demais para conseguir cumprimentá-lo devidamente. Peço
desculpas por isso também e gostaria de agradecer por nos ajudar. O senhor
é muito bondoso.
— Eu não sou nem um pouco bondoso. — Quase rosnei, indignado,
e a criaturinha riu.
— Eu sou o Colin. — Ele esticou a mão minúscula em minha
direção e desejei poder virar um mosquito e sair dali voando.
Encarei a palma estendida. Cumprimentá-lo devidamente? Crianças
falavam aquele tipo de coisa? Bem que suspeitei que elas eram meio
extraterrestres.
Encarei seus olhos, ainda em dúvida se deveria arriscar algum
contato físico com aquele serzinho, mas quando o observei mais de perto, vi
que os olhos brilhantes não conseguiam esconder as olheiras e a expressão
de cansaço que o menino trazia consigo. Engoli em seco com um embrulho
estranho tomando meu estômago. Não gostava daquele garoto.
— Certo — resmunguei, e aceitei o cumprimento. Minha mão
praticamente engoliu a dele e era estranho; estranho pra caralho estar
cumprimentando uma criança que mais parecia um urso de pelúcia perto de
mim. — Só não... quebra nada, tá? — Ouvi um baque oco e alto vindo do
quarto em que ele estava hospedado e crispei os lábios, já imaginando o que
seria. — E mantenha o cachorro sob controle.
— Ele se chama Passarinho. É um pouco agitado e faz sons
estranhos às vezes, mas cuidarei para que ele não dê trabalho.
Meneei um aceno, querendo sumir logo dali, mas a porra da
curiosidade falou mais alto, e quando eu me dei conta já estava
perguntando:
— Como é que é? Seu cachorro se chama Passarinho? Que tipo de
nome é esse? Passarinho é passarinho!
— Ele se chama Passarinho porque quando era filhote vivia se
jogando dos lugares. Parecia querer voar, e fazia um som diferente, como se
estivesse assobiando; então eu o apelidei assim e acabou se tornando seu
nome.
Ele sorriu e torceu as mãos umas nas outras.
— E como sabia sobre a TV? Ninguém nunca a descobriu assim. —
Já que tinha começado a perguntar, agora ia terminar.
Quando estreei minha casa nova, no ano passado, tinha desafiado
meus irmãos a encontrarem todos os eletroeletrônicos que tinha escondido
pelas paredes do lugar. Eu era um homem de poucos vícios e a tecnologia
era um deles. Gostava de todo aquele ambiente futurístico em meio à
natureza.
— Quando olhei para a sala, fiquei intrigado, porque o formato da
parede em frente ao sofá é simetricamente quadrado, com pequenos pontos
retangulares. Parecem pontos de conexão, como se houvesse alguma coisa
dentro dela. Foi assim que percebi. E por que o senhor teria um sofá em
frente a uma parede se não tivesse uma TV escondida dentro dela? — Abri
a boca, perplexo. — Foi só uma questão de lógica. — Encarei o mini
Einstein diante de mim e abri mais os olhos, ainda descrente. Ele abriu a
boca para falar mais alguma coisa, mas seu estômago roncou alto e ele
imediatamente desviou os olhos dos meus. — Vou para meu quarto, sinto
muito pela TV, senhor.
Saiu encarando o chão e, pelos sinais que emitia, estava com
vergonha.
— Ei, garoto, quer comer alguma coisa? — Quando me dei conta, já
estava falando.
— Não, não se preocupe. Mamãe ainda não acordou porque está
muito cansada. Foi bem... difícil para ela. — Os olhos verdes foram
tomados por uma tristeza estranha, e torci os lábios. Não gostava dele,
muito menos de saber que aquela coisinha ficaria ali na minha casa por um
tempo, mas criança nenhuma deveria ter aquele tipo de preocupação. —
Vou esperar ela acordar, não quero dar trabalho.
Se virou, prestes a sair da sala. Contive a vontade de jogá-lo nas
costas e arrastá-lo até a cozinha. Não era assim que pessoas civilizadas
agiam, então usei outra técnica, que eu conhecia muito bem. A chantagem.
— Se esperar, o chocolate vai esfriar, e não se chama chocolate
quente à toa. Frio é uma merda.
Ele parou, e olhou sobre o ombro com os olhos mais abertos do que
o normal.
— Tem chocolate quente? — A pergunta parecia inocente, mas
estava carregada de uma esperança boba, que me fez torcer os lábios.
— Tem — menti, mas não me senti mal por isso —, e se não tomar
agora, vou ter que jogar fora.
— Oh, não! Seria um crime desperdiçar um chocolatizinho quente.
Não posso permitir isso.
Ele se aproximou e uniu as mãos em frente ao corpo.
Esquisito, sim, mas no fundo era só uma criança com fome, e aquilo
eu não podia ignorar. E ele estava certo, Petrova precisava descansar, não
permitiria que fosse acordada.
— Me espera na cozinha, filhote de raposa. Já te encontro lá —
pedi, pretendendo aproveitar aquele minuto longe dele para tirar as armas
que estavam escondidas pela sala.
— O senhor é engraçado.
O pequeno Einstein riu e eu bufei. Não, eu não era engraçado.
Antipático seria uma palavra mais assertiva para descrever meu humor, mas
ele não parecia ter notado.
E foi assim que eu terminei na cozinha, fazendo sabe-se Deus como,
um chocolate quente para uma criança.
UMA CRIANÇA!
Inacreditável!
A culpa é sua
Apenas uma dose de você
e eu soube que eu nunca seria a mesma
Never Be The Same - Camila Cabello
Petrova
Acordei assustada, e quase dei um salto na cama. Minha cabeça
girou um pouco antes de me dar conta de onde estava. Passei as mãos pelos
cabelos e engoli em seco.
Estava segura. Não precisava me preocupar; ainda assim, mal
conseguia respirar. Tinha tido pesadelos que me fizeram acordar durante
toda a madrugada, e todo aquele mar de emoções me deixou fraca e abatida.
Deixei que meu corpo tombasse novamente na cama, tentando acostumar
meu cérebro de que eu não estava mais fugindo.
Engoli em seco, e levei os dedos ao pescoço com a dor que
despontou ali enquanto encarava os pontos de luz que transpassavam as
cortinas muito compridas do quarto. Imaginei que Snake tivesse uma casa
um tanto quanto diferenciada, já que nada nele poderia ser considerado
normal, mas não esperava aquele misto de covil e sofisticação impecável.
A casa era isolada; entramos por um túnel naquela loucura, mas
cada detalhe parecia pensado para ser chique e muito caro. O quarto em que
estava tinha um pequeno armário de mobília preta de canto, um closet ao
lado e possuía também uma vidraçaria enorme onde deveria haver uma
parede. As luzes embutidas criavam um caminho sobre a cama que reluzia
contra os vidros e pareciam pontilhar a mata do lado de fora de um jeito
quase mágico.
Como será que aquele quarto ficava quando chovia? Foi um dos
primeiros pensamentos que me atingiu, e apertei os lençóis entre os dedos
com a aflição que ele me trouxe.
Precisava conferir a meteorologia para estar preparada. Não gostava
da chuva e do que ela fazia comigo, mas agora tinha preocupações mais
urgentes.
Colin devia estar faminto e preocupado. Empurrei as cobertas para
os pés e me levantei. Fui até minha mala e a abri. Tinha trazido poucas
peças de roupa. Um conjunto preto, que gostava de usar em missões da
CIA, e ocupava pouco espaço na mala. Duas calças, sendo uma de
moletom, três blusas, sendo uma a de frio do Harry Potter, alguns itens de
higiene pessoal, algumas calcinhas, um par de meias, touca e meu lenço.
Fora minha arma, quatro cartuchos, meu notebook e meus fones de ouvido;
infelizmente não era o meu favorito e não isolava o som exterior, aquele eu
tinha perdido na fuga, mas ao menos ele era capaz de me ajudar a manter
meus pensamentos em um único lugar.
Olhei para minha pequena mala, ciente de que Colin trazia uma
similar consigo. Saber que meu filho teve que deixar seus livros favoritos
para trás partia meu coração. Ele era um colecionador, amava passar os
dedos pequenos pelas lombadas dos livros na sua pequena estante, mas
estar ciente de que o maldito do meu chefe bloqueou todas as minhas contas
com a desculpa de que eu era suspeita de terrorismo me deixava ainda mais
irada e preocupada. Precisava retomar o controle da minha vida para poder
cuidar do meu filho. Para sobreviver.
Vesti a calça que usei no dia anterior e anotei mentalmente que
precisava descobrir como a lavanderia funcionava. Afinal, ia usar com
frequência e torcia para que Snake não se importasse.
Peguei o lenço e o enrolei no pescoço, para manter os olhos de
Colin longe daquelas marcas horrendas, e saí do quarto. Mais uma vez
fiquei impressionada com a estrutura daquela casa, que tinha várias paredes
de vidro. Era magicamente perfeito, mas me dava medo. Já era difícil lidar
com a chuva quando estava trancada em um quarto onde não podia vê-la.
Fui até o banheiro que ficava próximo ao quarto de Colin. O
cômodo era muito espaçoso e luxuoso, como todo o resto da casa. Havia
duas pias redondas de gesso em um tom cinza-escuro e um boxe de vidro
alto, com um chuveiro que eu poderia jurar que cobriria até um elefante
pela largura.
Quando terminei de lavar o rosto e escovar os dentes, dei uma boa
encarada no meu visual no espelho antes de ir acordar meu filho.
— Minha nossa!
Parecia um animal silvestre fugindo pela floresta. Meu cabelo, antes
laranja e vivo, estava tomado por um tom terroso e os fios iam para todos os
lados. Meus olhos fundos me deixavam com uma aparência triste e cansada,
e não podia negar que estava mesmo me sentindo assim.
Um nó doloroso se formou em minha garganta. Minha vida tinha
despencado de uma só vez e não fazia ideia se um dia voltaria a me sentir
feliz e segura. Mordi os lábios rachados e usei toda a minha força para não
chorar.
Abaixei a cabeça. Estava cansada disso também. Tudo que queria
era me jogar no chão em posição fetal e berrar que nem uma cabra. Queria
poder me dar ao luxo de chorar, e quem sabe expulsar aquela agonia latente
em meu peito.
Mas não podia. Nem mesmo Colin chorou. Ele simplesmente largou
tudo para trás no minuto em que eu disse que teríamos que ir embora. Não
me questionou, não reclamou, não quis ficar. Seu único pedido foi poder
levar o Passarinho junto. Tinha que mostrar a ele que tudo estava sob
controle, ainda que sentisse que o mundo estava se esvaindo por entre meus
dedos.
Saí do banheiro e fui para o quarto de Colin. Mal abri a porta e
Passarinho jogou todo o seu corpo contra a pequena abertura, dando-me um
impulso gigantesco para trás. Cambaleei, e me apoiei no corredor a tempo
de ver o cachorro passar que nem um raio por entre os móveis caros de
Snake. Nem precisei olhar para o quarto para saber que Colin não estava lá.
O cão só ficava quieto quando estava perto dele.
— Passarinho! — gritei, quando o vi avançar em direção à cozinha.
Corri atrás dele que nem uma maluca. Se ele quebrasse qualquer
coisa naquela casa, teria que vender minha alma para pagar. Aumentei a
velocidade, tentando agarrá-lo de alguma forma. Meus cabelos começaram
a voar para todos os lados e grande parte se embolou no meu rosto.
— Pelo amor de Deus…
Parei abruptamente, tentando afastar os fios de cabelo do meu rosto,
e congelei, sem ar, quando ergui os olhos e dei de cara com Snake e Colin...
e Passarinho. Todos eles na cozinha, enquanto a terceira guerra mundial
estava prestes a estourar.
— O quê...
Snake nem teve tempo de xingar. Mal piscou e o Husky Siberiano
passou por ele, atropelando suas pernas no caminho.
O homem balançou com o impacto inesperado e teve que se escorar
na bancada de granito para não cair. Passarinho se sentou ao lado de Colin,
e fez o que sabia de melhor: Jogou a cabeça para trás e começou a gritar.
Um hábito comum aos Huskies, e que por sinal Passarinho fazia muito bem.
Parecia estar sendo torturado. Colin saltou do banco e correu para acalmá-
lo.
— Que porra de cachorro maluco é esse? — Snake vociferou, e me
encarou como se de repente eu tivesse me transformado na própria medusa.
Não estava mesmo muito longe disso, com todo aquele cabelo para
o alto.
— Senhor Snake, essa não é uma palavra permitida. Deve um dólar
para o pote da regressão.
— Pote da regressão? Foi você quem ensinou essa merda para ele?
— Passarinho voltou a gritar, parecia empolgado. — E por que infernos
essa coisa esquisita está gritando desse jeito no meio da minha cozinha?
Passarinho se jogou embaixo da cadeira de Colin e virou de barriga
para cima, balançando o rabinho comprido.
— Fui eu que ensinei isso a ele.
— A gritar? Eu não duvido.
— Não, seu... argh, eu ensinei Colin sobre o pote da regressão. Não
podemos falar palavrão na frente de uma criança.
— E por trás pode? — ele vociferou.
Torci os lábios, ciente de que já tinha falado uma boa cota de
palavrões na frente de Snake, que agora me encarava em um misto de raiva
e julgamento. Só então eu olhei para ele de verdade.
O homem estava usando uma camiseta preta larga, que descia aberta
até sua cintura, e uma bermuda da mesma cor. Os dois braços estavam
expostos, assim como seu pescoço, e pareciam exibir as tatuagens, como se
fossem um troféu, e elas desciam em tons pretos e sombreados que
contornavam a pele clara, passando pelos ombros marcados por músculos,
que eu sabia serem firmes como rocha, até chegarem nas mãos, onde cada
dedo era tatuado.
O olhar feroz parecia fazer parte do combo que era Snake e sua
raiva contínua. Meu Deus, como ele era lindo. Como mexia com todas as
partículas do meu corpo, sempre tão fiel à lei e à justiça. Nunca imaginei
que um homem como ele fosse chamar minha atenção. Odiava tudo que
vinha do crime, e Snake tinha a alma de bandido. Tudo que eu não queria,
mas também era tudo o que eu não conseguia mais ignorar.
— As regras são óbvias. Não pode falar palavrão na frente das
crianças. Já são quatro dólares, senhor.
Colin esticou a mão para Snake, que o encarou como se ele fosse
uma baratinha que ele considerava começar a perseguir.
— Ei, eu só disse três palavras. Porra, merda e inferno.
Quase ri ao ver Snake contar cada palavra feia com os dedos.
— Agora são 7 dólares. Um dólar é a cotação dos impostos, e como
não temos pote da regressão, pode colocar bem aqui. — Meu filho abriu a
mão e bateu o dedo indicador no meio da palma.
— É mesmo um filhote de raposa!
Snake estreitou os olhos e se virou para mim com todo o julgamento
que cabia no par de olhos mais azuis que tive o desprazer de encarar um
dia.
— Pote da regressão... — disse baixo.
Ele ia me matar, tinha certeza.
— Vi em um filme, tá bom? Colin, não podemos cobrar do anfitrião,
querido.
Abaixei sua mãozinha.
— Desculpe, mamãe, tem razão. Só queria ajudar — Colin soltou de
repente.
— Ajudar com o quê? — Snake, como bom intrometido curioso que
era, questionou.
— É que mamãe teve as contas bloqueadas. Pensei em ajudar
arrecadando o pote da regressão. Sinto muito, senhor Snake, mas o senhor
me pareceu um cliente em potencial.
— Colin, já chega. Ele não precisa saber de tudo — praguejei
baixinho, torcendo para que ele não escutasse.
— Desculpe, mamãe.
Colin ergueu os olhos amorosos e preocupados em minha direção, e
na mesma hora a irritação se foi. Muito raramente eu precisava chamar a
atenção de Colin, que, assim como eu, sempre foi muito autodidata e
independente, além de entender que eu não tinha um emprego normal, e
com ele também não poderíamos ter uma vida normal.
— Está tudo bem, meu amor. — Sorri para ele, e juntei toda a minha
força de vontade para me virar e encarar Snake, que me observava de um
jeito diferente, profundo. — Sinto muitíssimo pela invasão do Passarinho.
— Abanei as mãos ao lado do corpo, nervosa. Não gostava quando ele me
olhava daquele jeito, como se pudesse ler minha mente. — A culpa foi toda
minha, abri a porta do quarto e ele saiu.
Abaixei-me, agarrei o cão, e tentei carregá-lo de volta para o quarto.
Passarinho, por sua vez, resolveu virar um furacão nos meus braços, e
começou a se contorcer e chorar alto de um jeito que só ele conseguia;
gritando a plenos pulmões.
Um drama digno de Oscar, enquanto eu tentava segurá-lo e manter o
lenço em meu pescoço no lugar para evitar que Colin visse os hematomas
que estavam ali.
— Pelo inferno, Petrova, parece que está torturando o cachorro.
Solte essa coisa pavorosa — Snake bradou.
Fiz como ele pediu, e soltei o cão, aliviada por não ter que controlar
Passarinho, que àquela altura pesava tanto quanto um filhotinho de
hipopótamo, e correu alegre de volta para os pés de Colin. Ajeitei o lenço
no pescoço e só então me dei conta de que Snake estava observando meus
movimentos com um vinco estranho entre as sobrancelhas.
— Ele só quer ficar perto de mim. É bonzinho, eu juro. — Colin
ergueu a mão direita no ar, como bom escoteiro que era.
Snake deu um passo na minha direção até estar perto o bastante a
ponto de me fazer engolir em seco.
— Mantenha-o fora de problemas e pode deixá-lo solto, mas se ele
quebrar qualquer coisa, vou prender você e seu miniprojeto no armário.
Apesar de saber que Snake não estava falando sério, eu deveria ficar
quieta, até mesmo temê-lo, mas ver sua cara de indignação pelo cachorro
esticado de barriga para cima bem no meio da sua cozinha chique era mais
do que eu poderia controlar. Mordi os lábios, dando o melhor de mim para
me controlar, mas quando ele estreitou os olhos, como se soubesse que eu
estava prestes a morrer de rir, não aguentei. Explodi em uma súbita crise de
risadas.
— Mamãe! — Colin me repreendeu, o que só me fez rir mais.
— Está me provocando, sua raposa safada?
— Pote da... Quer dizer... — Colin parou suas palavras no meio do
caminho quando Snake lançou a ele um olhar mortal. — Esse não é um
bom momento para isso, mamãe! — Meu filho me olhou com os olhos
arregalados, preocupado que Snake resolvesse mesmo me prender em um
armário. — É que ela ri quando está nervosa. Sinto muito.
Ele abriu um meio sorriso esquisito.
— D-desculpa, eu só... perdi o controle da situação.
— Ah, isso eu entendo — Snake rosnou. — Tome seu café. Depois
disso, vá ao escritório, quero continuar a conversa de ontem.
Ele se virou para sair da cozinha.
— Snake, espera. Quer dizer, podemos conversar agora? Preciso ir a
um lugar.
— Coma algo antes.
— Estou sem fome.
— De novo, mãe? — Colin interrompeu.
— É o estresse — menti, e demorei a me dar conta de que Snake
estava me encarando.
— É mesmo?
Droga, ele tinha percebido que menti.
— Para de ser enxerido. Podemos só... ir ao seu escritório logo? —
rosnei, baixo, irritada por não conseguir esconder nada dele.
Snake estreitou os olhos e meneou um aceno em direção ao
corredor.
Segui o homem, que tinha uma postura impecável, e de onde estava
conseguia ver suas costas largas e bem-marcadas, movendo-se sob as
tatuagens que pareciam não ter início, meio e fim, como se fossem uma
coisa só. Como se fossem sua essência e contassem uma história, que eu
gostaria de saber, se pudesse me dar a esse luxo.
— Por que não quer comer? Acaso está vivendo de ar agora? —
questionou, sarcástico, quando entramos no seu escritório, que era menor do
que os quartos, mas tinha uma das paredes de vidro, como toda a casa
parecia ter.
— Só... que droga, Snake, precisamos mesmo falar do meu apetite
quando estou prestes a pegar um dispositivo que pode me ajudar a entregar
meu chefe idiota, traidor e corrupto de bandeja para a CIA?
Ele piscou, confuso, e percebi que tinha conseguido distraí-lo, pelo
menos o suficiente.
Snake tinha um foco obstinado em qualquer ponta solta que o
incomodasse, e a única forma de mudar sua atenção era apresentando algo
mais interessante, ou até mesmo intrigante.
— O que quer dizer com isso? Pensei que tudo que precisasse estava
no pen drive. — Ele foi até um pequeno aparador onde havia uma garrafa
de Bourbon pela metade.
Passei os olhos pelo escritório bem masculino, marcado por uma
leve essência de charuto; talvez ele tivesse o costume de fumar ali. Parei os
olhos em uma estante de mogno perto da janela e ergui as sobrancelhas
quando notei as lombadas.
— Aquilo são revistas em quadrinhos? — Abri a boca, chocada com
aquela nova descoberta.
— Não ouse tocar nelas, são de colecionador e você é bem capaz de
arrancar alguma página só de olhar para elas.
Ele apontou para mim, serviu uma dose pequena e virou de uma só
vez.
Ergui as mãos e segurei o riso.
— Como consegue beber tão cedo?
— No momento tenho duas opções. Enforcá-la, ou virar um drinque.
— Espero que aprecie seu drinque. — Abri um sorriso, e ele revirou
os olhos.
— Não respondeu minha pergunta — ele rosnou de volta, e se
escorou na mesa de mogno pura que comportava um MacBook, uma
agenda e alguns papéis simetricamente empilhados.
— Sim, o pen drive vai me dar o que eu quero, mas ele está muito
bem codificado. Conseguiria abri-lo sozinha, mas demoraria meses. Não
tenho esse tempo, então consegui ajuda. Tem uma pessoa... — Temi falar
demais, mas não havia como ser diferente. Se não contasse tudo, ele não me
ajudaria. — É um hacker, tão bom quanto eu. Ele conseguiu decodificar
uma das sequências que preciso e criptografou tudo em um novo
dispositivo. Preciso me encontrar com ele apenas uma vez, só para receber
o arquivo. Pelo visto, o que tem naquilo pode me garantir segurança por um
tempo.
— Onde é o encontro?
— No oeste da cidade, em Lawndale.
— Sempre escolhe os melhores lugares, não é? — bufou.
— Prometo que darei um jeito de te recompensar. Posso até pagar
por sua escolta quando tiver acesso à minha conta. — Torci as mãos uma na
outra.
Desde os 13 anos que vinha me virando sozinha. Fazia muito tempo
que eu não esperava ou sequer precisava da ajuda de alguém, mas agora era
diferente. Não era só a minha vida que estava em perigo.
— Não quero seu dinheiro, Petrova — ele disse, duro. — Quando
permiti que entrasse aqui, pedi que fosse sincera, é a minha única maldita
condição, entendeu?
Engoli em seco, e tentei manter a respiração calma. Meneei um
aceno, implorando a Deus que a verdade que vinha tentando esconder não
estivesse escrita bem no meio da minha testa.
— Pedirei que dois dos meus homens venham ficar com sua raposa
mirim — ele continuou.
— Eles são confiáveis? — questionei, temendo quem quer que fosse
ficar com meu filho.
— Todos os meus homens são. E espero que saiba que só vou sair
com você desta casa quando comer alguma coisa. Depois você desmaia por
aí e a culpa ainda é minha.
Voltei para a cozinha, depois de prometer que ia comer algo e
explicar o local exato onde iria me encontrar com o hacker, mas antes não
consegui evitar de espiar dentro dos cômodos que tinha visto pelo caminho
e ainda não conhecia.
Perto do escritório do Snake tinha outra porta, que parecia nos
teletransportar para um lugar diferente. Um bar, para ser mais exata, com
uma mesa de sinuca gigantesca bem no meio e uma parede de bebidas aos
fundos, com direito a um balcão e tudo mais.
Também havia uma entrada para uma salinha pequena ao lado da
cozinha, que parecia ser a sala de jantar, era pequena, mas tão luxuosa
quanto tudo naquele lugar, e tinha uma das maiores paredes de vidro que vi
até agora. Saí de lá certa de que não poderia me impressionar com mais
nada, no entanto Snake era mestre em me deixar perplexa, e foi exatamente
assim que me senti quando vi que na lateral onde ficava havia uma porta de
vidro que dava para uma pequena varanda. Ao menos foi o que pensei, mas
quando me aproximei da abertura arregalei os olhos em choque.
De pequena aquela varanda não tinha nada. Na verdade, nem
mesmo era uma varanda. Parecia mais um campo de futebol na encosta da
montanha. A área verde era coberta por uma grama fina que se perdia ao
longe, até chegar a uma mureta de pedras que dava para um abismo sem
fim. Era uma visão colossal, linda demais, daquelas que te paralisam por
um momento enquanto você é abraçado pela beleza intrínseca da natureza.
Suspirei fundo, e me virei quando escutei o barulho de uma torneira
sendo ligada. Fui até a cozinha e recostei o corpo no batente da porta, e vi
Colin dando o seu melhor para alcançar a pia e lavar o copo que ele tinha
tomado chocolate quente com o cuidado de quem estava segurando uma
obra de arte frágil.
— Mamãe! — Ele ficou animado quando me viu. — Precisa ver o
monte de coisa legal que o senhor Snake comprou. Havia um pote de água,
além de um pote enorme de ração, que o Passarinho devorou de uma só vez.
Ele também foi muito gentil e fez um chocolate quente para mim. Acho que
eu o ouvi rosnar umas duas vezes, mas não tem problema, ele comprou
iogurte também, e disse que eu posso comer o que quiser.
— Espera, como é? Ele comprou ração para o Passarinho?
— Não é o máximo!? — Colin falou, encantado, e engoli em seco
ao notar como seus olhos brilhavam ao falar do Malvadão do cômodo ao
lado.
Meu filho tinha um coração de ouro e se apegava facilmente às
pessoas ao seu redor assim que passava a confiar nelas, o que me
preocupava. Snake era tão... imprevisível. Temia que ele machucasse o
coraçãozinho de Colin em algum momento, mas não podia evitar o
quentinho que tomou meu peito ao perceber que ele tinha cuidado do meu
filho e do cachorro dele, mesmo sem aparentemente gostar de nenhum dos
dois.
— É o máximo, filho. É sim. — Sorri. — Escuta só... — Peguei sua
mãozinha e o trouxe para um abraço. — Vou encontrar uma pessoa
importante. Enquanto isso, você vai ficar sob os cuidados dos amigos do
Snake. Cuide deles, certo? Devem ser malucos como o Malvadão.
Colin riu.
— Pode deixar, mamãe. Vou manter todos nós respirando.
— Isso aí, garoto.
Sorri, e suspirei. Colin era meu maior presente, não me sentia boa o
bastante para tê-lo como filho, mas passava todos os dias da minha vida
lutando para merecê-lo.
— Agora preciso encontrar algo comestível nesta cozinha. Snake
me condicionou a comer algo antes de sairmos.
— Está vendo? Ele é legal, só rosna às vezes. — Demos risada. —
Que tal um sanduíche? — ele ofertou.
— Me ajuda a preparar? — pedi.
— Certamente. Não quero que sejamos expulsos porque minha mãe
quebrou metade da cozinha. — Dei risada.
Ele passou as mãos pelos cabelos desalinhados, tentando organizá-
los. Outra coisa que ele adorava era andar com o cabelo cheio de gel, algo
que por sinal me lembrava Snake, que antes daquele dia nunca tinha visto
com os fios desalinhados.
— Não sou tão desastrada assim. — Estreitei os olhos para ele.
— Desculpe, mamãe — ele continuou —, a senhora é uma excelente
cozinheira, mas sua organização e coordenação podem acabar nos
matando.
— Olha só, seu menino bonito, eu vou te morder. — Agarrei ele,
que deu um gritinho eufórico.
Preparamos o sanduíche, eu sujando tudo pelo caminho, e Colin
tentando minimizar o prejuízo. No fim, deu tudo certo, e tentei comer
devagar, uma mordida de cada vez, e fiquei muito feliz por ter conseguido
segurar o alimento no estômago. Estava me adaptando e controlando os
sintomas, mas temia que, caso fosse verdade e eu realmente estivesse
grávida, aquilo piorasse muito.
Lavei os pratos sob a supervisão animada de Colin, tentando não
pensar no assunto, e fui tomar um banho rápido. Coloquei meu conjunto
preto e escondi minha arma em uma bolsinha pequena. Já estava pronta
quando ouvi o som da campainha tocando. Não com um alarme comum, o
som era mais delicado, quase como uma música clássica. Chique, como
tudo ao nosso redor.
Saí do quarto, e em menos de dois minutos Snake surgiu diante de
mim, vestindo um terno todo preto e com os cabelos alinhados, como de
costume. Ao seu lado estavam dois homens, que mais pareciam cópias dele,
com a mesma roupa preta, olhar desconfiado, e um deles também tinha
algumas tatuagens visíveis e até mesmo uma cicatriz no rosto.
Que ótimo. Ia deixar meu filho com dois donos de gangue.
— Petrova, estes são Damon Sullivan. — Ele apontou para o mais
jovem entre os dois e que nos encarava com visível animação. — E este é
Ethan James. Eles farão a cobertura interna da casa enquanto estivermos
fora. Também deixei uma equipe ao redor da mansão.
— E aí, moça, pode me chamar de Sullivan, é mais maneiro. — O
jovem riu. Os olhos claros e atentos eram quase tão azuis quanto os do
Snake, só não possuía toda a aura arredia e vingativa que meu anfitrião. —
Você que é a agente da CIA, não é? Diz aí, como é trabalhar para os mais
fodões?
— Você contou... — Abri um sorriso, que mais parecia um tiro na
direção de Snake.
— Na verdade, eu já sabia, até tenho um pouco de medo da
senhorita, mas estou tão curioso que nem me importo se quiser, sei lá, socar
minha cara. É verdade que são treinados para sobreviver a qualquer tipo de
veneno? Você é uma arma? Consegue desmaiar alguém com um só golpe,
não consegue? Me mostra... vai lá, James, precisamos de voluntários. —
Ele empurrou o parceiro, que revirou os olhos, impaciente.
— Cala a boca, idiota! — Snake deu uma cotovelada em Sullivan, e
ele se encolheu.
— Foi mal, chefe. Só fiquei empolgado.
— É melhor diminuir essa empolgação, caralho, está até vermelho
— Snake rosnou, e o jovem se desculpou mais uma vez. — Só mantenham
o garoto vivo, e o cachorro também. Ele ainda está de cabeça para baixo?
Snake arregalou os olhos ao ver Passarinho deitado de barriga para
cima perto dos novos visitantes.
— É assim que ele cumprimenta as pessoas e... — Colin nem
mesmo terminou de falar e o cachorro começou a gritar.
— Minha Nossa Senhora dos torturados, que diabo é isso? —
Sullivan deu um berro e arregalou os olhos.
— Passarinho também faz isso quando... bem, ele faz isso meio que
à toa. Quieto, Passarinho! — Ele sorriu, sem graça, e Snake passou a mão
no rosto.
— Passarinho?
James, que até então estava em silêncio, estreitou os olhos intensos e
tão escuros quanto seus cabelos em direção a Snake.
— Não pergunte. Vamos, Petrova.
Snake fez menção com a mão para que eu passasse. Fiquei meio
insegura e encarei Colin, que meneou um aceno positivo, mas que não me
aliviou em nada.
— Confia em mim? — Snake se aproximou e disse baixo, de um
jeito diferente e tão intenso que quase me engasguei.
Ergui o rosto e encarei o par de olhos azul-turquesa, tão furtivos
quanto os de um gato, e que estavam atentos em mim.
— Confio. — Era óbvio.
Quando meu mundo caiu, eu só podia correr em uma direção, e
mesmo que quisesse me manter longe, sabia fundo em meu coração que
Snake era um porto seguro, ainda que muito mal-humorado e levemente
fora da lei.
Ele analisou meu rosto, e seus lábios se ergueram só um pouquinho,
à sombra de um sorriso. Dei um beijo em Colin e segui o tatuado pelo
corredor.
— Você é um pacote premiado, garoto, então fique debaixo dos
meus olhos, certo? — Ouvi Sullivan dizer às nossas costas.
— Pacote? — Abri a boca, temerosa.
— Só anda, Raposa.
Snake brecou os passos e colou a mão na base das minhas costas.
Senti seus dedos firmes ali e prendi a respiração, inquieta com o toque
despretensioso. Snake afastou a mão assim que se deu conta de que estava
me tocando, e desviou os olhos dos meus. Será que também estava
incomodado com toda aquela proximidade repentina?
Caminhei como se estivesse indo para a forca até chegarmos ao
estacionamento, e fiquei surpresa quando ele foi direto para o portão em vez
de escolher um dos seus dois carros.
— Aonde está indo? — eu quis saber.
— Minha equipe está esperando lá fora.
— Espera... — pedi, lembrando-me de algo subitamente.
— O que foi?
— Seu celular, pode me emprestar por um momento só?
— Qual seria a doença que me faria entregar meu celular em suas
mãos por livre e espontânea vontade? — Ele arregalou os olhos e me
encarou como se eu estivesse maluca.
— Não vou fazer nada de mais, juro! Ainda não ativei meu novo
número, tive que me desfazer do antigo para não ser rastreada. Só preciso
fazer uma pesquisa rápida.
— O que quer pesquisar? — inquiriu, desconfiado.
Respirei fundo, e ergui o queixo, morta de vergonha, mas não
conseguiria sair pelo portão sem conferir antes.
— A meteorologia.
— O quê? — Ele riu. — Tá falando sério?
— Seriíssimo! Vai me emprestar ou não? — Desviei os olhos,
sentindo o rosto queimar.
— Está mesmo sendo sincera.
Ele parecia chocado. Tirou o celular, desbloqueou, e me entregou,
mas não sem parar ao meu lado para analisar o que eu estava mexendo.
Abri o navegador principal e pesquisei a meteorologia, analisando o
que estavam dizendo. Respirei aliviada quando vi que o tempo se manteria
estável o dia todo.
— Obrigada.
Devolvi o celular. Snake me encarava confuso.
— Por que isso toda vez?
— Não sou fã de chuva. Vamos? — Dei de ombros, antes que ele
questionasse mais do que deveria.
— Certo — disse, com um vinco entre as sobrancelhas, e comecei a
andar com a sensação de que seus olhos me fuzilavam.
Snake acionou o portão de ferro puro e ele foi subindo devagar.
Revelando a cada segundo parte da rua, que para minha surpresa estava
abarrotada de SUVs pretos.
— O que é isso, Snake?
Encarei a pequena comitiva de dez carros, todos com dois a três
guarda-costas armados em cada veículo, e ele simplesmente enfiou as mãos
nos bolsos da calça preta e discreta, e abriu um sorriso presunçoso, bem
ciente do poder que tinha.
— Não achou que eu ia permitir que saísse por aí com a cabeça a
prêmio sem uma escolta armada, não é mesmo? — Snake passou por mim e
abriu a porta traseira de um dos SUVs. — Disse que podia confiar em mim,
Raposa. Hoje você é minha VIP.
Queria tentar odiá-lo. Queria não sentir o coração batendo forte toda
vez que ele olhava para mim daquele jeito, como se eu fosse importante a
ponto de ele deslocar uma frota da sua equipe só para garantir minha
segurança. Queria não me iludir, mas a verdade é que, mais do que isso...
queria que nossa história fosse diferente.
Mas não era.
Eu me sinto estúpido e contagioso
Smells Like Teen Spirit – Nirvana
Snake
O final de março veio acompanhado de uma temperatura baixa. O ar
gelado era quebrado apenas pelo aquecedor do carro, que seguia em meio a
uma comitiva de veículos pretos e blindados em direção a Lawndale, um
dos bairros menos seguros de Chicago.
Comprimi os lábios e tentei manter minha atenção nos veículos à
minha frente, tanto quanto nos de trás. O ponto de escuta em meu ouvido
me possibilitava saber o que acontecia durante todo o percurso da breve
viagem, e era ali que minha atenção deveria estar. Mas por algum maldito
motivo toda vez que desviava do foco, ainda que por um segundo que fosse,
meus olhos buscavam os da raposa que estava sentada ao meu lado.
Petrova estava encolhida no banco atrás do motorista. Os grandes
olhos brilhantes se mantinham presos na paisagem, que passava
corriqueiramente pela janela, e vez ou outra ela passava a mão pela roupa
preta, colada demais para comportar sua arma, que estava escondida em
uma bolsinha escura e pequena. Os cabelos muito ruivos caíam em cascata
pelos ombros e contornavam o rosto delicado, que sustentava um narizinho
em pé e uma expressão pensativa. Estava preocupada, poderia dizer apenas
pelo vinco em suas sobrancelhas.
— Seu filho estará seguro com Sullivan e James. — Tentei distraí-
la. — Sullivan é jovem, cheio de energia, e às vezes fala demais, mas
James, pelo contrário, é mais velho, e além de ter mais experiência, é sério
e objetivo. Ele já foi soldado de uma gangue muito respeitada antes de
cumprir pena e mudar de vida. No fim, um equilibra o outro.
— Ah, que ótimo, tinha me esquecido sobre as referências ilustres
do passado dos seus homens. Meu Deus, Colin vai ter entrado para uma
gangue quando voltarmos.
Revirei os olhos, e ela abriu um sorriso fraco e respirou fundo,
inquieta, só então ela me encarou, ajeitando o lenço no pescoço. Os olhos
abatidos como os do filho não me passaram despercebidos.
— Mas não é isso que está te afligindo, certo? — Ela olhou para o
motorista com uma expressão estranha e logo imaginei que ela não se sentia
à vontade perto de pessoas desconhecidas. — É seguro falar aqui.
Considere cada um dos meus homens como parte de uma estratégia louca
de mantê-la viva. Pode confiar neles, e preciso saber o que a incomoda,
afinal, tenho que estar preparado para toda a confusão que você trouxe a
tiracolo.
Ela mordeu o lábio, ponderou por um momento, e então voltou a
falar quase em um sussurro, encolhendo-se um pouco no banco.
— Estou com medo de que ele me mate antes que eu tenha a chance
de pegar o dispositivo.
Entreabri os lábios, irritado, e me virei no banco para encará-la.
— Petrova, eu sou uma piada para você? — questionei, exasperado,
e abri mais os olhos.
— Você não é nem um pouco engraçado, se quer saber. Irritante e
mal-humorado são adjetivos que lhe caem bem melhor — ela provocou de
volta.
— Perigoso também. — Arrastei o corpo pelo banco de couro e
diminuí o espaço entre nós, encarando a raposa ousada nos olhos. — Por
que infernos acha que sou um dos melhores no meu ramo? Porque tenho
100% de êxito, porra. — Ela ergueu o rosto, encarando-me de volta, mas
notei que prendia a respiração pela minha súbita proximidade, e sussurrei
antes de me afastar: — Você sabe muito bem do que eu sou capaz. Ninguém
vai chegar perto de você hoje, mas seria interessante vê-los tentar.
Sorri, ciente da capacidade assertiva da minha equipe, que era tão
poderosa e bem treinada quanto a própria SWAT. Eu mesmo garanti que
fosse assim.
— T-tem razão — ela gaguejou, e endireitou a postura. — Estou
grata por ter deslocado tantos… homens de índole questionável para me
escoltar. Eles realmente dão medo — ela se inclinou, e sussurrou para que
apenas eu escutasse.
Contive um sorriso ao ver seus olhos grandes e atentos em mim.
Por algum motivo, gostava de olhar para eles, com a mesma
satisfação que apreciava encarar um lago profundo e silencioso. Com a
pequena diferença de que Petrova era mais barulhenta que uma passeata, e
eu já tinha visto algo naquele par de olhos que achava difícil esquecer e que
inconscientemente parecia buscar. A chama viciante que descobri no nosso
último encontro e que agora parecia um sonho erótico distante.
— Só estou preocupada. Não consigo evitar desde... você sabe. —
Ela tocou o lenço em seu pescoço e toda a breve calma que senti se desfez
completamente.
Não poderia culpá-la por sentir medo; bem sabia que aqueles
hematomas provavelmente quase custaram sua vida, e só de imaginar o que
ela passou sentia o próprio fogo do inferno descer por minha garganta.
— Colin só tem a mim, Snake. Não posso falhar, não posso deixá-lo
sozinho.
Havia um medo real e pulsante em cada um de seus movimentos,
como nunca tinha visto antes. Ela tentava manter uma fachada de
normalidade, mas sentia que estava prestes a desabar, e aquilo me
preocupou.
Um silêncio estranho se apoderou do interior do carro e percebi que
havia uma pergunta me incomodando desde que Petrova chegou a minha
casa no dia anterior.
— Onde está o pai da criaturinha?
— O quê? — Ela piscou, confusa.
— O pai do seu bichinho... O que não tem pelos e não costuma ficar
gritando que nem uma maritaca louca, caso tenha alguma dúvida, já que
trouxe duas coisas excêntricas para a minha casa.
Petrova deu uma risada e me encarou com um misto de choque e
repreensão.
— Meu Deus, Snake... o que devo fazer com você? — Ela
continuou rindo, e lá estavam as covinhas que eu achei que nunca mais
veria. Certo alívio tomou meu peito ao observá-las. — Dizer o nome dele
não vai fazer nenhum mal, eu garanto. — Ela passou as mãos pelos olhos.
— Não respondeu a minha pergunta — insisti, antes que ela tivesse
a chance de fugir, mas a interrompi assim que abriu a boca. — E nem vem
com essa de “ninguém pergunta e ninguém responde” que te jogo pela
janela antes que termine a frase. Isso era válido antes de você invadir minha
casa.
— Idiota... — Ela revirou os olhos verdes e voltou a encarar a
estrada lá fora. — Sou só eu — disse, simples, e estreitei os olhos para a
informação. — Engravidei aos 16 anos. Confiei na pessoa errada e terminei
sozinha com um bebê com o qual não sabia o que fazer. Fim! Essa é minha
história. — Deu de ombros. — Sou tudo que Colin tem, a única que vai
protegê-lo do mundo lá fora, e preciso ficar vivinha, entendeu?
— O babaca abandonou vocês? — Não consegui conter a fúria em
minhas palavras e percebi que até o motorista ficou tenso e apertou o
volante.
O idiota engravidou uma garota de 16 anos e simplesmente foi
embora?
— Sim. Não é uma história bonita, se quer saber. Me sinto idiota do
início ao fim, e desde então venho lutando para equilibrar meu trabalho e
cuidar de Colin por todos esses anos, e agora... — Ela soltou o ar e os
ombros tombaram para a frente por um breve momento, mas ela logo
endireitou a postura novamente. — Preciso quebrar a criptografia daquele
pen drive para minha vida voltar aos trilhos.
Meneei um aceno, observando toda a dor e verdade incrustadas nas
palavras que ela dizia.
Tinha orgulho de ser um especialista comportamental, estudei muito
para chegar aonde cheguei, e adorava ler as pessoas de dentro para fora,
mas ali, no interior daquele carro que se tornou subitamente mais sufocante,
desejei poder não enxergar o quanto Petrova estava sofrendo, e como aquilo
me incomodava.
Voltei minha atenção para a estrada. Precisava ajudá-la logo para
que aquela mulher desaparecesse da minha vida de vez, antes que a
preocupação latente que estava sentindo naquele momento se tornasse
rotineira.
Paramos em um bar pequeno e escondido entre duas vielas sujas e
mal frequentadas.
— Analisem o perímetro — ordenei pelo ponto de comunicação, e
os guarda-costas da minha equipe desceram e fecharam o círculo ao redor
do bar.
Quatro deles faziam a cobertura superior, impedindo que fôssemos
surpreendidos por um atirador, enquanto dois entravam no bar para verificar
se estava tudo certo, e os demais se espalharam ao redor do veículo que
Petrova estava.
Como ainda era de dia, alguns curiosos que caminhavam por ali
paravam para tentar espiar quem estava dentro do carro, provavelmente
pensando que era alguém famoso.
— Perímetro liberado, chefe! — um dos guarda-costas me
informou, e uma sequência parecida ecoou pelo rádio.
— Estamos saindo — avisei, e abri a porta do carro para que ela
descesse. — Quero que fique ao meu lado. Nem um passo à frente, nem um
atrás, está ouvindo?
— O hacker não vai confiar em mim se estiver perto de você,
precisa me dar espaço, ainda que pequeno.
Ela saiu do veículo e olhou ao redor, como se buscasse algo
suspeito, ajeitando a roupa muito justa no caminho. Desci os olhos para sua
bunda redonda e muito empinada e amaldiçoei o conjunto por destacá-la
ainda mais.
A roupa preta, unida à aura desconfiada e astuta dizia muito sobre
ela. Dava para ver que Petrova era um tipo de policial a distância. Bufei,
ciente de que ela deveria ter escolhido algo menos chamativo. Não
precisávamos de uma placa gritando que havia uma agente da CIA ali, mas
talvez não fosse uma opção.
O que Colin tinha dito na cozinha mais cedo não saía da minha
cabeça. Petrova tinha tido suas contas bancárias bloqueadas e fugiu com
uma mala pequena e uma mochila, o que não deveria caber nem metade do
que ela realmente precisava, mas já estava pensando em uma saída para
aquele problema.
A safada ia me dever a alma, mas teria que aceitar minha ajuda.
— Vamos acabar logo com isso — eu disse.
Acompanhei Petrova de perto e entramos no bar, que tinha pelo
menos metade das paredes encardidas e quase todas as mesas descascadas.
O lugar parecia prestes a cair aos pedaços, mas ainda tinha cerca de cinco
clientes sentados à beira do balcão. Alguns bebendo, outros tomando um
café de procedência duvidosa.
— Ali está ele. — Ela apontou com a cabeça para o fundo do bar,
onde uma figura magra ocupava uma cadeira. O rapaz usava um moletom
cobrindo a cabeça e estava focado no notebook à sua frente. — Me espere
aqui, volto em um minuto... ei! — ela reclamou, quando segurei seu braço,
e a puxei de volta para mim.
— Como sabe que é ele? — rosnei, irritado pela falta de senso que
Petrova tinha.
Que tipo de agente da CIA ela era, afinal?
— O moletom é preto, da cor do notebook. Ele disse que viria
assim, e não é à toa que estou segurando isso. — Olhei para baixo e vi que
ela estava com a mão dentro da bolsa, segurando sua arma engatilhada. —
Se não for ele, eu atiro sem dó. — Ela ergueu o nariz e fez cara de brava.
— Sem dó? Meu Deus, você não vai durar um minuto sem mim! —
Apertei os olhos com as pontas dos dedos.
— Será que devo encarnar o Malvadão tatuado provocador de
confusões? — Ela balançou a mão livre em frente ao rosto, como se fizesse
um truque de mágica, me provocando.
Odiava quando me chamava de malvadão. E de tatuado. Sem contar
o “provocador de confusão”.
— Que se foda, vai logo antes que eu mesmo atire em você. —
Empurrei Petrova em direção ao sujeito, e posicionei meus homens o mais
perto deles possível.
Ela se aproximou dele, que se virou para ela. Era um rapaz jovem, e
quando a viu ele logo abriu um sorriso cheio de dentes e se levantou para
abraçá-la. Estreitei os olhos para ela, que nem mesmo pensou antes de
soltar a arma dentro da bolsa e envolver o magrelo entre os braços.
— Sem dó... sei! — bufei sozinho, de olho nela.
Petrova parecia especialista em muitas coisas, mas estava escrito
bem no meio da sua testa que nunca matou ninguém. Apesar de
provavelmente já ter visto coisas pesadas demais enquanto trabalhava para
a CIA, faltava maldade em seus movimentos. Ela tinha o coração bom e
puro. Algo que eu admirava e odiava ao mesmo tempo, porque ela era
mestre em me julgar silenciosamente quando mal sabia cuidar do próprio
nariz.
O encontro não durou cinco minutos, e o jovem voltou a se
concentrar, ou fingir concentração, em seu notebook enquanto Petrova veio
até mim quase correndo.
— Consegui, vamos embora — disse rápido, eufórica.
— Atenção, estamos saindo — alertei no ponto de comunicação, e
imediatamente fomos cercados por meus guarda-costas.
— Eita, é famosa, é? — Um homem meio bêbado olhou sobre o
ombro quando estávamos prestes a sair.
— Ignore-o — pedi, e coloquei a mão na base de suas costas.
Um movimento que a fez paralisar no mesmo lugar, assim como
fizera quando estávamos prestes a sair de casa. Contive um sorriso. Gostava
de ver o quanto um toque meu parecia mexer com ela.
— Ou quer dar um autógrafo para o velho bêbado ali? — provoquei.
— É claro que não, vamos embora! — Ela voltou a caminhar,
arredia.
Passamos pelo portão da minha casa quase uma hora depois, e só
então Petrova pareceu relaxar. Entrei no túnel ao seu lado, mas ela me
chamou antes que pudesse de fato abrir a porta de entrada.
— Snake... — Seus olhos intensos se fixaram nos meus, e quase
sorri ao notar pela vigésima vez que precisava olhar para baixo para que ela
conseguisse me encarar. Petrova ergueu o dispositivo ao lado do rosto e
balançou o objeto. — Isso vai garantir um cessar-fogo enquanto eu reúno as
informações que preciso para derrubar meu antigo chefe. No entanto... é um
processo que pode demorar até duas semanas, no máximo. — Ela deu de
ombros, insegura. — Será que…
— Vou tentar suportar aquele cachorro escandaloso e com cara de
maníaco durante esse tempo, e quem sabe até a porra do pote da regressão...
— Revirei os olhos. — Aliás, onde infernos você viu isso? Deveriam banir
esse programa.
— Obrigada. — Ela abriu um sorriso enorme, cheio de esperança, e
lá estavam as covinhas novamente.
Petrova passou por mim saltitando, com a energia renovada por
estar em posse do dispositivo, e fechei as mãos em punhos, constatando em
choque o quanto gostaria de tocar naqueles furinhos em suas bochechas
novamente.
Mas que porra... Tinha sorte de que toda aquela loucura terminaria
dali a duas semanas, ou tinha certeza de que ela me contagiaria com alguma
doença terminal só por estar ao seu lado.
Vou sorrir, eu sei como enganar esta cidade
Eu farei isso até o sol se pôr
Unstoppable – Sai
Petrova
Snake colocou a mão na abertura digital da porta e novamente a voz
feminina e meio robótica o cumprimentou, se prolongando demais em cada
palavra, e contive uma risada.
— Está rindo do quê? — ele questionou, carrancudo.
Era sempre assim, ou Snake sustentava uma cara de bravo ou de
tédio, com pequenas variações entre raiva e impaciência, e ficava
insuportavelmente lindo em cada uma delas.
— Seja bem-vindo, Snake... — repeti, com a voz anasalada.
Ele revirou os olhos e conteve um sorriso.
Quase me esqueci, que às vezes ele também sorria.
Aquela, no entanto, era a expressão que eu menos gostava, porque
era difícil não encará-lo como se estivesse diante de um anjo rebelde,
perigoso e quase hipnotizante. O rosto felino, e geralmente muito feroz,
ficava mais intenso e marcante quando ele sorria, como se todo o combo
que ele era, unidos aos piercings e tatuagens, já não fosse demais para
qualquer mulher resistir.
Snake abriu a porta da sua casa e ouvimos um barulho agitado vindo
do seu interior. Pareciam gritos eufóricos, como se estivessem assistindo a
um jogo importante.
— Que barulho é esse? — Mal tive tempo de fechar a boca e vi um
pequeno furacão branco com orelhas pontudas e sombreadas de preto vindo
em nossa direção.
Passarinho veio saltitando como se sua vida dependesse daquilo e,
para minha surpresa, o cão se jogou nas pernas de Snake e começou a fazer
a maior festa para o Malvadão, que o encarava em choque.
— Sai daqui, seu monte de pelo escandaloso! — ele vociferou, mas
não se moveu, como se estivesse congelado, e mordi os lábios para não
começar a gargalhar da cena.
O cão, como de costume, depois de fazer uma algazarra ao redor de
Snake, se jogou no chão e virou de barriga para cima, ficando esticado pelo
piso escuro e elegante.
— Qual é o problema desse maluco?
— Mãe! Mãe, mãe, mãe, mãeeeee! — Colin veio correndo até nós,
repetindo as palavras como um papagaio acelerado. Arregalei os olhos. —
Tem que ver aonde cheguei na fase, senhor Snake, tem um monte de
zumbis. Venham, rápido!
Ele me agarrou pela mão, e fez o mesmo com Snake, que arregalou
ainda mais os olhos, como se fosse ter um troço, e me encarou.
— Faça alguma coisa! — rosnou.
— Colin, querido, por que está tão agitado? — Tentei conter meu
filho, que ainda nos arrastava pela sala.
— É incrível, mãe. Você tem que ver, mãe. Olha, mãe! — ele
repetiu incansavelmente, e começou a pular no mesmo lugar.
Então apontou para uma das incontáveis portas da casa de Snake,
uma das quais eu ainda não tinha entrado.
— Achei ele, tá vivo! — Sullivan atravessou a porta e gritou sobre o
ombro quando viu Colin nos arrastando para o cômodo onde eles estavam.
— Vamos, garoto, a próxima rodada é sua — ele chamou, e Colin pulou de
alegria.
Segui meu filho, que estava superagitado, e entrei no cômodo, que
parecia a réplica de um cinema luxuoso e particular. A parede sustentava
uma TV gigantesca, e algumas poltronas reclináveis, que pareciam mais
confortáveis do que todas as camas que eu tive na vida. Ao lado da tela
plana, havia pequenas entradas na parede, como um móvel planejado onde
uma sequência de manetes ficava. Uma luz azul néon reluzia por trás do
móvel, e nas extremidades do cômodo, que também exibia uma estante
branca, onde vários apetrechos de jogos estavam distribuídos.
Foi quando notei dois sacos de bala abertos e alguns copos de
chocolate quente.
— Quantas balas você comeu, Colin? — perguntei.
Mas, em vez de me responder, ele soltou a mão do Snake, que
encarou a própria palma como se ela fosse cair a qualquer momento, e saiu
correndo para ocupar a poltrona vazia ao lado de James, que segurava uma
manete, e meneou um aceno em nossa direção quando nos viu.
— Mãe, mãe, mãe... olha só! — Colin olhou sobre o ombro e
apontou para o jogo. — Aqui tem fones gamers de várias cores, óculos de
realidade virtual, consoles de jogos portáteis, além de incontáveis jogos
diferentes e quase todos os lançamentos. Olha essa parede, mãe! Aqui tem
literalmente de tudo. Senhor Snake, senhor Snake! — Colin disparou com
um sorriso gigantesco no rosto. — É a sala mais legal de todos os tempos.
ZUMBI À DIREITAAAA! — ele gritou para James, que também estava
jogando na mesma tela que ele, e os dois partiram para cima do tal zumbi.
— Temos que achar a doze, parceiro, caso contrário eles vão nos encurralar,
vão sim. Já, já aparece o moço da serra elétrica. — Seus olhinhos brilhavam
de alegria.
Sorri.
— Onde desliga? — Snake se inclinou em minha direção.
— O videogame?
— Não, seu projeto de raposa mirim — ele resmungou, baixo, e
levei a mão à boca, segurando o riso.
— Colin, quero que beba um pouco de água e chega de balas e
chocolate quente por hoje, certo?
Fui até eles e peguei o saco de bala sobrevivente, ciente de que se
fosse chocolate, eu mesma daria cabo da vida dele. Quer dizer, do pacote.
— Mãe, mãe, mãe... — Não aguentei e comecei a rir; Snake
estreitou os lábios e percebi que lutava para não cair na risada também.
Colin estava tão elétrico que parecia incapaz de me chamar uma vez só. —
Posso jogar só mais um pouquinho, se beber água? Posso, senhor Snake?
Posso?
Ele se empoleirou na cadeira, e um silêncio se fez na sala. Enquanto
Colin aguardava uma resposta, percebi que Sullivan também ansiava pelo
que o Malvadão diria.
— Que seja, só... não deem mais nada doce ao garoto ou vou socar a
cara dos dois. — Ele apontou de James para Sullivan. — E você… — Ele
apontou para mim. — Vamos guardar o dispositivo em um lugar seguro.
Meneei um aceno, concordando.
— Senhor Snake, senhor Snake, obrigado! — Colin balançou a
manete em direção a Snake, que parecia prestes a ter uma síncope.
— O garoto parece o papa-léguas — ele disse, assim que saímos do
cômodo, que ficava bem ao lado da sala.
— É o açúcar em excesso, isso o deixa mais agitado do que o
normal.
Snake me pegou pelo ombro de repente e me puxou, obrigando-me
a desviar o caminho quando estava prestes a topar com uma mesinha
pontiaguda que ficava na sala.
— Você não olha por onde anda? — rosnou, e me soltou logo em
seguida.
— Obrigada, eu acho.
— Espero que sua criaturinha seja mais atenta do que você.
— Ele é. Colin tem poucos interesses em comum com outras
crianças. Ama ler, estudar as estrelas e correr. Fora isso, é apaixonado por
videogame... até tinha um que dei a ele ano passado, mas tivemos que
deixar para trás na fuga. — Dei de ombros, e notei que ele me observava
pelo canto dos olhos.
— Que seja. — Snake encerrou o assunto. — Pegue seu notebook e
venha comigo.
Fiz como ele pediu e aproveitei para trocar de roupa, vestindo o meu
moletom largo, quentinho e confortável.
— Voltou a usar o conjunto trombadinha? — ele zombou, quando
me viu.
— Isso aqui é sinônimo de conforto, viu? — Empinei o nariz.
— De qualquer forma, acho melhor esconder minha carteira.
— Babaca! — Revirei os olhos e torci os lábios.
— O que acha de comprar umas roupas novas para você e o filhote
de raposa ocupando minha preciosa sala de jogos neste exato momento?
— O quê? — Tombei a cabeça para o lado, confusa.
— Já que fui obrigado a ter hóspedes nesta casa, prefiro que eles
estejam menos parecidos com um assaltante e mais como convidados. —
Snake tirou um cartão preto do bolso da calça e o ergueu em minha direção.
— Quero que fique com este cartão e peça tudo que precisarem. Eles
entregarão aqui, é seguro.
— Tá maluco? — Dei risada, e empurrei sua mão com cartão e tudo.
— Já estou ficando na sua casa, uma que por sinal você abasteceu com tudo
que eu, meu filho e até nosso cachorro precisamos para sobreviver. É tudo
que eu preciso, não posso aceitar absolutamente mais nada.
— Não me lembro de ter te dado nenhuma opção além de trocar
essas roupas, e rápido. — Ele apontou para meu moletom surrado do Harry
Potter, que era estampado com lema de Hogwarts. “Nunca desperte um
dragão adormecido.”, só que ele estava tão velho que não dava mais para ler
a palavra dragão, mas ainda era quentinho.
— Obrigada, Snake, mas temos que cuidar de coisas mais urgentes
no momento... — Balancei meu notebook, e ele revirou os olhos, ciente de
que eu não cederia.
Segui o idiota até atravessar o corredor e chegarmos em uma escada
lateral bem no final dele, no lado oposto dos quartos.
Desci os degraus em espiral e dei de cara com dois novos ambientes.
Do lado esquerdo, havia uma academia muito completa, com parte das
paredes de vidro, que também davam vista para a mata, e do lado direito
havia uma porta esquisita, parecia de aço puro, como a da entrada, e
também tinha um acesso através de digital.
— O que tem nesse cômodo? — questionei, quando ele se
aproximou da porta, e encostou a mão no leitor digital.
— É o lugar mais seguro da casa. As paredes são reforçadas com
aço, impenetráveis. — Ele deu de ombros quando a porta se abriu e as luzes
do cômodo se acenderam.
Entrei no lugar logo atrás dele e encontrei uma parede com algumas
câmeras conectadas e que mostravam pontos estratégicos da casa, mas
principalmente as entradas e saídas. Havia também uma pequena estante
com rádios, coletes à prova de balas, material de primeiros socorros e duas
caixas fechadas que eu poderia apostar que se abrisse encontraria uma
variedade de enlatados e estoque de água.
— Esse é seu quarto do pânico? — Encarei Snake, que desviou os
olhos claros.
— É um mal de família. — Ele torceu o piercing na língua,
inconscientemente, e me peguei presa àquele movimento. — O que foi? —
Só então me dei conta de que estava encarando o homem.
— N-nada!
Apertei meu notebook contra o peito e busquei com os olhos
qualquer coisa que me distraísse do seu olhar sondando meus movimentos.
Pisquei quando notei que havia uma porta bem aos fundos daquele cômodo.
— O que tem ali? — prossegui, mudando de assunto.
A expressão de Snake foi de confusa à irritada num piscar de olhos.
— Nada que seja da sua conta. Fique longe daquela porta.
— Não acha mesmo que terei um minuto de paz se não me disser,
não é? Vou morrer de curiosidade! — Me sacodi, indignada. — Vamos lá,
me diga, o que tem ali?
— Não me faça pendurá-la no lustre, Petrova. Sabe que vontade não
me falta, só preciso de uma desculpa plausível.
— O que poderia ser importante o suficiente para estar em um
quarto do pânico dentro de outro quarto do pânico?
Torci os lábios, pensativa, e ele rosnou algum xingamento enquanto
acessava o computador que, pelo visto, controlava a base de acessos e
segurança da casa, e então uma ideia me veio à mente.
Sempre foi fácil negociar com Snake. Apesar de vez ou outra
desejar afogá-lo em uma poça de água, ele sempre queria coisas que eu
conseguia com facilidade; armas raras em sua grande maioria.
Sorri, já sabendo o que tinha lá dentro.
— São suas armas de coleção, não é? — Caminhei até a porta e me
escorei nela. — Deve ter todos os tipos e tamanhos possíveis. Ah, Snake,
me deixe vê-las, vai, só um pouquinho — pedi, e fiz bico.
Ele se virou, abandonou o computador, e deu alguns passos em
minha direção, crescendo para cima de mim.
— A resposta é não — rosnou, e torci o nariz quando ele me
empurrou para o lado oposto e pegou minha mão. — E se ousar tentar
entrar aí…
— Já sei, vai me pendurar no lustre.
Revirei os olhos e bufei. Queria ver a porcaria das armas, mas daria
um jeito naquilo depois. Agora precisava manter meu foco no dispositivo e
em como ele poderia me ajudar a retomar minha vida.
— Não diga que não avisei quando estiver presa lá em cima —
vociferou, e puxou uma bandeja digital debaixo do computador de acesso
principal.
— O que está fazendo?
— Cometendo o maior erro da minha vida, com certeza. — Mordi
os lábios, quando ele me encarou com as duas esferas azuis que pareciam
enxergar até minha alma. — Vou dar a você alguns acessos na casa.
— O quê? Pode repetir, acho que meu cérebro desmaiou de surpresa
por um momento.
Ele bufou, e pressionou minha mão no leitor, logo uma luz verde
desceu e leu minha biometria.
— Não sou louco de permitir que tenha acesso a tudo, mas vai
conseguir acessar a Jade, abrir quase todas as portas e mudar a temperatura
da casa, além de acessar os eletrônicos escondidos por aí, entrar e sair...
enfim, o básico para a sobrevivência — explicou, enquanto configurava os
acessos. — Devo lembrá-la que não me provocar também é um pré-
requisito básico para continuar respirando?
Foi a minha vez de resmungar.
Snake começou a mexer minha mão de um lado para o outro,
coletando todas as digitais. Meus olhos desceram para sua mão sobre a
minha. Cada um dos seus dedos da mão direita era tatuado por um símbolo
que descia por cada uma das falanges, como um mapa a ser descoberto. O
dorso da mão era tomado por desenhos que se encaixavam com as outras
tatuagens de um jeito complexo, feroz e lindo. Respirei fundo, sentindo a
pele da minha própria mão queimar sob a dele. Um toque simples, mas que
começou a incendiar meu corpo.
Era um inferno ficar perto daquele homem!
— Pronto, está cadastrada tanto na porta de entrada, quanto na porta
deste cômodo, mas não se esqueça... — disse sério, soltou a minha mão,
mas não se afastou. Seus olhos varreram meu rosto com cautela. — Sem
gracinhas, sem invadir nenhum dos meus sistemas, sem me irritar porque,
como sabe, eu não sei brincar e vou fazer você pagar. — Seus olhos
desceram até minha boca e um comichão subiu pela base da minha coluna,
como se ele estivesse me tocando com o olhar. — Não vai querer me
provocar…
O alerta surgiu baixo, intenso, como tudo nele parecia ser. Dos olhos
de águia profundos e rebeldes como um mar revolto, às tatuagens na base
do seu pescoço, que pareciam incendiar por sua pele, desaparecendo pelos
músculos rijos embaixo daquele terno preto e impecavelmente alinhado.
— Não vou invadir nada.
— Sabe que posso ver quando está mentindo, sua... descarada — ele
rosnou, e dei risada.
— Sim, Malvadão, eu sei.
— Que bom…
Ele deu mais um passo, ficando perigosamente perto de mim. Prendi
o ar quando ele subiu a mão e tocou o lenço em meu pescoço, devagar, até
que o tecido escorregasse em minha pele e fosse parar em suas mãos.
Quase caí durinha quando senti seus dedos deslizando devagar pela
pele cheia de hematomas em meu pescoço. Snake acariciou a pele com o
polegar tão de leve que mal podia senti-lo, o que não evitou que uma onda
de calor se propagasse por todo o meu corpo no mesmo instante. Prendi a
respiração, enquanto ele analisava a marca com uma expressão estranha, em
um misto de frieza e raiva que fez meu coração bater forte. Cada parte de
mim parecia muito ciente do quanto ele estava próximo. Perto demais, mas
não o suficiente.
Constatei pela primeira vez que era doloroso ser tocada por ele,
porque Snake tinha o poder de se infiltrar em minha pele como uma droga,
totalmente viciante, e eu não fazia ideia daquilo até experimentá-lo pela
primeira vez.
Ele segurou meu lenço entre os dedos e me entregou.
— Fique sem ele quando estiver trabalhando aqui. Vai ajudar a pele
a se recuperar.
Ele ergueu o rosto e toda a raiva que vi ali segundos antes
desapareceu quando nossos olhares se encontraram. Snake me encarou por
um longo minuto, que fez cada canto do meu corpo se arrepiar. Entreabri os
lábios, ansiosa de um jeito que mal sabia explicar, e quando notou que seu
corpo estava quase me pressionando na parede, ele deu um passo para trás e
piscou.
— O... o que tem nesse dispositivo? — Ele se afastou
repentinamente, parecendo confuso, e foi parar do outro lado da sala.
— É... — Respirei fundo, com a sensação de que tinha perdido a
linha de raciocínio. — Ele é um condutor seguro, que vai permitir que eu
consiga abrir mais abas em tempo recorde junto com o hacker que conheceu
hoje. — Corri até a mesa onde tinha colocado meu notebook e puxei uma
cadeira de rodinhas que estava abandonada no canto do cômodo. — Assim
que eu conectar o dispositivo, parte da lista de nomes dos compradores da
droga que te falei vai surgir, e Duncan vai saber. Aí é só esperar. Estou
acessando a página que ele abriu na Deep Web colocando minha cabeça a
prêmio. Acho que isso será o suficiente para que ele tire aquela merda do ar.
Liguei o notebook e notei que o tremor em meus dedos começou a
aumentar ao me lembrar do anúncio que ele tinha feito.
— Ele te colocou na porra da Deep Web? — Snake se aproximou de
mim e meneei um aceno, confirmando.
— Vou te mostrar.
Entrei no submundo da internet e abri o site, que por sinal era muito
difícil de acessar sem ser hackeado de volta, mas aquela era uma das
minhas especialidades e não demorou muito até que eu abrisse o fórum.
— Puta que pariu! — ele praguejou, e apoiou as mãos na cadeira
atrás de mim para encarar a tela melhor. — O filho da puta colocou sua foto
nesse caralho dos infernos!
O anúncio era bem específico:
Contrata-se assassino de aluguel com finalização efetiva
Mulher de 26 anos. Alvo potencialmente perigoso. Ex-agente da
CIA, treinada. Solicita-se serviço limpo e rápido. Necessário mostrar a
prova de finalização. Paga-se 300 mil dólares.
— Anúncios que geralmente encomendam assassinatos de aluguel
geralmente cobram em torno de 5 mil dólares. Ele resolveu oferecer uma
pequena fortuna, além de contratar mais dois idiotas à parte. — Soltei o ar,
triste até os ossos. — Dediquei todos os segundos livres da minha vida
àquela agência. Treinei mais do que todos no meu setor para não ser inferior
a eles, salvei o pescoço de cada um naquele lugar enquanto eles estavam em
campo e eu dava cobertura da sede, liberando tudo pelo caminho. E hoje
todos pensam que não passo de uma traidora procurada. — Meus olhos
arderam.
Só eu sabia o quanto me esforcei para merecer meu lugar na CIA.
Snake sondou meu rosto e fechou o notebook no mesmo instante.
— Derrube essa página. Não acho que seja um obstáculo para você.
Um sorriso fraco ergueu o canto dos meus lábios, mas logo se
desfez.
Snake nunca duvidou do meu potencial, pelo contrário, ele era
sempre precavido quando estava perto de mim porque ele acreditava nas
minhas habilidades, e depois de crescer vencendo obstáculos e tendo que
provar meu valor para todo idiota que cruzava meu caminho, o que nem
sempre adiantava, saber que ele tinha fé em mim me deixava muito feliz, se
é que ainda restou um pouco de felicidade nesse meu coração que parecia
cada dia mais quebrado.
— A Deep Web era um dos motivos pelos quais meu trabalho se
fazia necessário na CIA. Conseguia rastrear e até derrubar alguns deles,
mas, nesse caso, quando eu derrubo um aparece outro e acaba tendo mais
visibilidade que o anterior. Então comecei a rastrear e achei um endereço de
IP que acredito estar sendo usado pelo Duncan. Vou testar agora.
— Onde esse cuzão mora? Me deixe tentar ajudá-la de modo mais
efetivo. — Ele rodou a cadeira, que rangeu sob as rodinhas, e me colocou
diante dele. — Duvido que uma visita surpresa não vá mudar a forma como
ele ameaça uma mulher inocente.
A fúria em suas palavras era quase palpável, e meu coração, que já
andava batendo de um jeito esquisito, pareceu perder o compasso de vez.
— Vai pendurá-lo no lustre como disse que faria comigo se eu o
irritasse? — Tentei brincar, enquanto lutava para manter a voz
calma.
— Não, Raposa. Se eu tiver a chance de colocar as mãos em quem
fez isso com você, não vai restar pedaço algum para pendurar no lustre. —
Arfei baixinho, sem reação. Um calor estranho tomou meu peito e por um
breve momento pensei que tinha me perdido nas íris claras e muito
brilhantes focadas em mim. — Vai, me diz. Onde ele mora? Deve saber o
endereço — ele sussurrou, devagar e atraente demais.
Era uma armadilha, mas minha nossa, como ele era bom naquilo,
porque naquele momento eu estava me sentindo a pessoa mais especial do
mundo. Alguém que ele faria de tudo para proteger, mas bem sabia que era
mentira. Não passava de um contratempo na vida de Snake, e quanto antes
ele resolvesse aquilo, melhor.
— N-não, na verdade, ele se muda com frequência, mas mesmo que
conseguisse o endereço, é arriscado demais. Se acontecer algo com ele,
outros agentes infiltrados poderiam apagar os rastros. Não sabemos quem
está nisso, e você já percebeu que grande parte dessa droga pode ter sido
destinada a Chicago, talvez tenha alguns dos seus conhecidos envolvidos
nisso também.
Fui sincera, e ele, como detector de mentiras humano que era,
captou cada palavra que eu dizia com o olhar.
— Tem razão. Esse imbecil é como uma Hidra, ele não conseguiria
manter tudo isso sozinho, e assim que cortarem sua cabeça mais duas
aparecerão no lugar.
— Só me resta continuar tentando. Ele vai parar a perseguição por
um momento quando descobrir que abri parte do dispositivo e posso expô-
lo, mas apenas por tempo o suficiente para recalcular a rota. É só isso que
preciso. Uma única chance. — Suspirei.
— Então faça como achar melhor, mas me deixe a par de
absolutamente tudo.
— Certo. — Endireitei o corpo, estiquei as mãos e me virei para o
notebook novamente.
Digitei tudo muito rápido, não tinha tempo a perder, o que exigia
muita concentração; e ter Snake atrás de mim com os olhos focados em
tudo que eu fazia não estava facilitando em nada.
Ainda assim, consegui abrir meu novo dispositivo e acessar mais
algumas pastas do pen drive, o que, pelos meus cálculos, enviaria um alerta
de segurança para Duncan, meu antigo chefe. Ele teria a confirmação de
que, àquela altura, eu já sabia demais, apesar de não saber o quanto eu de
fato consegui abrir.
— Terminei! — gritei, e pulei na cadeira.
O movimento brusco fez com que a cadeira tombasse de lado, e
suguei o ar com força, já me preparando para cair no chão com tudo, mas
Snake foi mais rápido e segurou as laterais do objeto.
— Eu realmente não sei como você sobrevive sozinha — ele
praguejou, e endireitou a cadeira. Agradeci baixinho, sentindo o rosto arder
de vergonha, e voltei a atenção para a tela, ansiosa. — E agora?
— Agora esperamos. Não deve demorar. — Comecei a batucar os
dedos e poucos minutos depois recebi a notificação, que parecia trazer
minha paz anexa.
— Cessar-fogo! — Li o aviso que o remetente e antigo dono do pen
drive reenviou para todos os destinatários relacionados à conta que eu
invadi para ter acesso. — Ai, meu Deus... — Abri de novo o site da Deep
Web e contive outro grito ao perceber que o anúncio sobre mim não estava
mais lá. — Deu certo, deu certo mesmo! — Fiquei tão eufórica que me
levantei e quando me dei conta já tinha tacado um abraço em Snake.
Meus braços cercaram o grande corpo do homem e todo o seu
cheiro gostoso e intenso me envolveu como em uma nuvem de fumaça do
mal. Afastei-me dele, como se de repente estivesse em chamas, e soltei o ar
com força.
— Deu certo. — Ele me encarava de um jeito estranho, ainda
paralisado pelo abraço repentino. — Agora vou conseguir ao menos respirar
um pouco mais aliviada. Ainda tem uma mira na minha cabeça, mas ele vai
pensar duas vezes antes de atirar. — Passei as mãos pelos olhos,
verdadeiramente aliviada. — Obrigada, Snake. Sem sua ajuda eu não teria
conseguido. Esse é o início de tudo.
— Sei que teria dado um jeito de se virar sem mim, mas fico feliz
que decidiu me procurar. — Ele desviou os olhos dos meus por um
instante.
— Pensei que ia preferir atirar em mim a ter que morar comigo.
— Ah, claro que eu preferia. Mas pense só no tamanho da dívida
que você vai ter comigo por essa ajuda inusitada? Acesso a que tipo de
armas? Nem consigo imaginar. — Ele riu, e acabei fazendo o mesmo.
Tatuado idiota!
— Temo estar escondida na casa de um maluco.
Seus olhos procuraram os meus, e o humor que vi ali cederam lugar
a algo diferente, e um vinco surgiu em sua sobrancelha.
— Pode confiar no hacker que te deu aquele dispositivo?
— Sim. — Dei de ombros, certa da minha resposta. — Ele é como o
Vaticano, só guarda segredos, com uma pequena diferença: Você pode
comprar pelo preço certo.
— Imagino que ele não precise de dinheiro. Seja lá o que ele estiver
cobrando, vale a pena que seja você a entregar?
— Sou capaz de fazer negócio com o próprio demônio, se isso me
ajudar a proteger meu filho e destruir aquele maldito — desabafei, disposta
a tudo.
Ele desceu os olhos para minhas mãos e depois voltou a me encarar.
— Não precisa descer no inferno quando eu já estou passeando por
lá, Petrova. Posso ajudá-la a lidar com isso. Não precisa sujar as mãos, sei o
quanto se sente triste quando precisa escolher entre a lei e a justiça das ruas.
Uma emoção inquietante abraçou meu coração, que bateu forte,
atento a cada uma daquelas palavras que ninguém nunca me disse.
Nas últimas semanas, andava mais sensível do que o normal, e
aquele dia estava sendo especialmente mais comovente.
Cresci fugindo, sem apoio de ninguém, completamente sozinha, e
até quem eu pensei que podia confiar tinha enfiado uma faca em minhas
costas, então sim, estava emocionada pelo homem que mais me irritava na
face da terra estar disposto a tomar minhas dores para si. Por ele
simplesmente ter notado o quanto aquilo de fato me incomodava, mas
aquela era minha batalha. Cheguei até ali, e não iria parar agora.
— Agradeço por tentar me ajudar, mas isso é algo que eu mesma
preciso fazer. — Engoli em seco, e voltei a encará-lo, sentindo-me
subitamente mais fraca. — Não se engane, Snake. Eu cresci no inferno. Não
tenho medo dele.
Todos nós precisamos daquele alguém
Que te entende mais do que ninguém
Alone, Pt. II - Alan Walker (With Ava Max)
Petrova
Naquela noite comemos pizza na companhia dos guarda-costas mais
estranhos que já vi. James, o mais mal-encarado, quase não abria a boca, já
Sullivan conversava pelos dois e não parava de falar um minuto sequer.
— Senhorita Petrova, pode me dizer como entrou para a CIA? —
ele questionou, quando estávamos na mesa de jantar de Snake, que me
encarou e estreitou os olhos, esperando minha resposta.
— Eu fui selecionada — eu disse, como se o jeito que me levou a
ser escolhida fosse a coisa mais normal do mundo.
— Mamãe teve seu dom descoberto pelo chefe dela — meu filho
disse, empolgado com a possibilidade de contar a história a alguém.
Colin já tinha me feito aquela mesma pergunta assim que entendeu
com o que eu trabalhava, e fui sincera ao contar como tinha acontecido, ou
quase.
— O mesmo que está atrás de vocês? — Sullivan inquiriu, e Snake
lhe lançou um olhar de aviso.
— Ele mesmo. Aquele... argh! — resmunguei, e enfiei um pedaço
de pizza na boca.
— Isso não foi nada legal da parte dele, por sinal. — Colin
endireitou a postura e entrelaçou os dedos, unindo as duas mãos, como um
bom advogado faria. — Não se deve machucar as meninas. Não é nada
cavalheiro, e também é contra a lei. Devemos respeitar a lei, não é mesmo?
— Ele desfez a postura e atacou mais um pedaço de pizza, alheio a troca de
olhares entre os guarda-costas, que de apreciadores da lei não tinham nada.
— É estranho conversar com um homem preso no corpo de um
garotinho — Sullivan sussurrou para Snake, que deu uma cotovelada no
jovem.
Segurei uma risada.
— Então é essa a sua história? — Snake quis saber.
— Sim. Fui descoberta por acaso, quando acidentalmente invadi um
servidor que pertencia à CIA.
— Porra! — Sullivan abriu mais os olhos.
— Vê se fala direito, caralho. Tá na frente da criança — James
chamou sua atenção, e franzi a testa.
— E caralho não é palavrão? — Sullivan retrucou, indignado.
— Que falta faz o meu pote da regressão... — Colin balançou a
cabeça, consternado.
— Calem a boca, os dois — Snake mandou.
— Sinto muito, chefe. — Ele se virou para mim. — É que... a
senhorita é assustadoramente incrível!
Sullivan abriu mais os olhos, e senti meu rosto arder ao notar a
admiração neles, mas por algum motivo o Malvadão ao meu lado bufou
com o comentário.
— Eu era meio rebelde na época. — Tentei sorrir, mas aquela foi
uma das fases mais difíceis da minha vida. Era inquietante tentar me sentir
meramente feliz ao lembrar dela. — Dei o meu melhor para aproveitar a
oportunidade.
Snake me encarou, sabia que tinha mais a ser dito, mas fiquei feliz
por ele não ter questionado nada sobre a história.
— Todas as mulheres lá são bonitas como a senhorita? — Sullivan
disse na maior naturalidade, e quase me engasguei com o refrigerante que
estava bebendo. Meu rosto começou a arder.
— Que tipo de pergunta é essa? — Snake vociferou.
— É que…
— Você já falou demais, seu idiota, quer ficar sem a língua, porra?
— Ia mesmo ser um jantar lucrativo... — Colin estava indignado por
não estar com seu pote da regressão, enquanto Snake estava prestes a
desmembrar Sullivan no meio da sala de jantar.
— Sullivan não disse nada de mais. — Revirei os olhos para o
escândalo digno de Oscar do Malvadão. — Você está sendo um ranzinza
com tendências homicidas à toa.
— E também não menti. O senhor não acha a senhorita Petrova
bonita? Ai!
Snake deu um cutucão no rapaz.
— Já está tarde, estão dispensados por hoje. Boa noite! — O
Malvadão empurrou o jovem pelos ombros, que foi se despedindo pelo
caminho.
— Eles são legais, senhor Snake — Colin disse, quando o homem
voltou e parou no batente da porta da sala de jantar.
— Ah, com certeza. Quando estão calados, principalmente —
vociferou.
Comecei a recolher os pratos e Colin tentou me ajudar, mas acabou
derramando um pouco de ketchup em sua blusa verde. Uma das poucas que
tínhamos trazido, e bem sabia que as outras já estavam sujas.
— Colin!
Peguei um guardanapo e fui ajudá-lo a se limpar.
— Sinto muito, mamãe. Vamos lavar isso e nem vai parecer que
sujou — disse, certo da solução, e saiu correndo para o banheiro, sendo
seguido de perto por Passarinho, que estava relaxadamente deitado de
barriga para cima perto da porta.
Comecei a recolher os pratos e Snake se aproximou para me ajudar.
Aproveitei para pedir mais um favor. Tinha que encontrar outra
saída, se não quisesse ter que aceitar seu cartão de crédito para comprar
roupas novas. Me sentia estranha tendo que depender dele para
simplesmente sobreviver, mas não havia outra opção.
— Snake... Por acaso tem alguma máquina de lavar por aqui? —
Virei-me para o homem, que tinha acabado de empilhar o restante dos
pratos.
— Posso te dar a chave da lavanderia se me contar como foi que
realmente entrou para a CIA.
— Está me chantageando? — Arregalei os olhos, surpresa, mas não
chocada. Era bem a cara dele fazer aquilo.
— Não vejo outra forma de saber mais sobre você. Pode enganar os
meus guarda-costas, mas sabe muito bem que nada passa batido por mim.
Vamos, estou curioso.
— Você parece uma idosa procurando fofoca dos vizinhos.
— Acho que esse será meu destino. — Ele riu, e fiz o mesmo.
— Pois me recuso a falar. A senhora vai ter que se contentar com a
versão que contei — zombei.
— Acho que não precisa lavar as roupas tanto assim, não é mesmo?
— Ele me deu as costas, e revirei os olhos, irritada, enquanto encarava os
ombros largos.
Como ele podia ser tão... Snake daquele jeito?
— Não menti — me rendi, ciente de que precisava mesmo lavar
nossas roupas. — Não totalmente.
Ele se virou, a atenção voltada para cada palavra que eu dizia. Olhei
para a porta por onde Colin tinha acabado de sair, temendo que ele ouvisse
aquela conversa.
— Então?
— Tinha 16 anos quando fui abandonada pelo pai do Colin, como já
sabe. — Desviei os olhos dele. Não queria ter que encará-lo enquanto ele
guardava pedaços de uma história que eu nem mesmo queria contar. —
Gosto de pensar que sou uma pessoa boa, odeio transgressões da lei e não
era muito diferente na época. Tentava me comportar, mesmo passando por
muita dificuldade, mas meu mundo saiu dos trilhos quando percebi que o
pai do meu filho não voltaria. Você não faz ideia do que é ser uma
adolescente grávida e sozinha. Sem ter a mínima ideia de como ser uma boa
mãe. — Voltei minha atenção para os pratos, e demorei a perceber que
minha voz estava estranha, triste e pesada.
— Petrova, eu só estava brincando sobre a lavanderia. Não
precisa…
— Agora eu comecei e vou terminar. — Ergui os olhos e encontrei o
azul dos dele.
Snake me encarava com um semblante contido, sabia que ele não
queria descobrir tanto de mim daquele jeito. Ele sempre fugia de qualquer
coisa que contivesse emoções demais, mas agora que me obrigou a falar, ia
ter que escutar até o fim.
A lembrança ainda era amarga e profunda. Foi desesperador
descobrir que estava grávida, quando nem trabalho eu tinha. Pior que
aquilo, foi entender tarde demais que Matt só estava me usando. Ele tirou
minha virgindade e se aproveitou de mim. Quando viu que as coisas tinham
ficado sérias, ele simplesmente sumiu depois de me humilhar.
Lembrava de vomitar por horas a fio, de não ter forças para sequer
fazer uma sopa. De chorar de medo, de me sentir sozinha, abandonada à
própria sorte. Eu vivia em um barracão onde não havia janelas, apenas um
basculante, e eu ficava ali, olhando através do espelho amarelado pelo
tempo, esperando que ele virasse a esquina, como sempre fazia, mas nos 9
meses que se passaram, ele nunca voltou.
— Matt foi o que pensei ser meu primeiro amor. Mas na verdade foi
só mais uma das decepções que eu tive na vida. Ele sabia da gravidez, então
esperei que voltasse para me ajudar a cuidar do Colin, mas nunca
aconteceu. Eu quase morri quando ele nasceu, foi naquele dia que percebi
uma coisa…
— O quê? — Para minha surpresa, Snake estava atento a cada
palavra que eu dizia, mesmo contra sua vontade.
— Que eu não podia morrer e deixar Colin no mundo sozinho. Eu
sei o que é estar só, não podia permitir que ele crescesse órfão. Sei que você
entende.
— Ninguém deveria ter que passar por isso. — Aquela foi a resposta
de quem, assim como eu, sabia o que era ser obrigado a crescer sozinho em
um mundo de dor e tormenta.
— Então eu surtei. Todo mundo surta um dia, certo? — Dei de
ombros. — Estava com raiva e triste, além de desesperada por ter um bebê
com o qual eu não sabia lidar, então decidi me vingar.
— Onde você escondeu essa sua versão vingativa e interessante? —
Ri e bati o cotovelo nele. — E aí, o que fez para se vingar? Fez um post no
Facebook?
— Não, idiota. — Balancei a cabeça com um sorriso leve no rosto,
ciente de que ele estava me provocando para me distrair do real sentimento
que toda aquela história trazia à tona.
Snake conseguia salpicar qualquer assunto sério com certa graça.
Para ele, tudo não passava de um jogo, onde o ganhador era quem
trapaceava melhor. Ainda assim, conseguia ver a força com que ele estava
segurando na bancada. Também estava irritado com a história.
— Invadi todos os eletrônicos que ele possuía. Derrubei os sistemas
que usava, causei uma confusão gigantesca no trabalho dele, que por sinal,
descobri tarde demais que se tratava da CIA.
— O arrombado era da CIA? — Snake disse naquele tom contido e
calmo, que sempre usava quando estava puto de raiva.
— Era.
— Aposto que o imbecil batia no peito se achando o próprio
representante da justiça, enquanto abandonava a mulher grávida em algum
fim de mundo — vociferou. — Por isso não gosto de homens da lei, são uns
merdas fingidos. Bando de cuzão do caralho!
— Um ou outro destoa desse padrão, mas infelizmente a maioria
dos homens não são conhecidos por reconhecer suas responsabilidades. O
índice de mulheres que foram abandonadas após confessarem que estão
grávidas é altíssimo. — Engoli em seco, e desviei os olhos para o chão,
lembrando-me tarde demais de que não deveria tocar naquele assunto.
— É uma pena que não tenha conhecido um homem com princípios,
Raposa. A lei que tanto defende esconde esse tipo de covarde. — Ele
cruzou os braços e deu um sorrisinho estranhamente assustador. — As leis
que eu sigo são diferentes. Elas iriam garantir que ele se arrependeria por
deixar um filho à própria sorte. Isso não se faz.
— E se ele não soubesse da existência desse filho? — eu disse
rápido, e arregalei os olhos, virando-me para a mesa ao me dar conta do que
tinha perguntado.
— Mas ele sabia! — Snake retorquiu, bravo. — É um erro
imperdoável. Onde está o bastardo agora?
— Ele desapareceu em uma missão. Foi dado como morto.
— Que queime no quinto dos infernos — disse com naturalidade.
— O chefe dele me localizou através da bagunça que eu fiz no
sistema e acabou percebendo que tinha algo valioso nas mãos. Ninguém
nunca invadiu o sistema da CIA daquela forma. Minha vingança me deu um
emprego para sustentar Colin, pelo menos.
Ele ficou em silêncio por um momento, só me observando. O
semblante contido dizia muito e nada ao mesmo tempo. Ele parecia bravo e
confuso. Não sabia o que ele estava pensando e aquilo me deixava inquieta.
Preferia quando estava me provocando.
— Vai ficar me encarando? Diga alguma coisa... o que está
pensando? — Embolei o pano de prato entre os dedos, aflita.
— Você não quer saber o que eu estou pensando, Petrova.
— Por que não?
Snake descruzou os braços e deu um passo em minha direção,
cercando-me com o corpo enorme.
— Seu instinto de justiça não combina com a minha mente
vingativa. — Ele estreitou os olhos e ergueu a mão, tirando com cuidado
um fio de cabelo que pendia rebelde em meu rosto, o colocou atrás da
minha orelha e soltou o ar devagar. De repente, o cômodo ficou
infinitamente mais quente. — Mesmo depois de tudo o que passou, você
não faria com esse desgraçado um terço do que minha mente sugeriu alguns
segundos atrás, quando estava me contando essa merda. Então não... Me
recuso a dizer o que estou pensando. Não quero que tenha pesadelos à noite.
Engoli em seco, e Colin passou saltitando pela porta, alheio ao ar
pesado que pairava devagar pela cozinha.
— Mamãe, posso secar os pratos? — ele perguntou, distraído.
— S-sim... obrigada, querido. — Tentei manter o tom de voz calmo.
Snake, que ainda me encarava de perto, pareceu acordar de uma
hipnose.
— A lavanderia fica ao lado da academia. Pode usá-la sempre que
precisar, só... tente não explodir minha casa no caminho. — Ele desviou os
olhos dos meus e percebi, com certa irritação, que ele não diria mais nada
sobre o assunto. — Não precisa se preocupar com as vasilhas, tenho duas
funcionárias que mantêm minha casa alinhada e…
— Não! — Abri mais os olhos e me aproximei dele repentinamente.
— Não me sentiria segura se outras pessoas entrassem aqui, eles podem...
— Tentei respirar devagar. — Podem se infiltrar. Não faz ideia do que
aquelas pessoas são capazes.
Snake suavizou a expressão contida que sustentava desde que contei
a história.
— Você não faz mesmo ideia de quem eu sou, não é? Acha mesmo
que alguém que não fosse de minha confiança passaria por aquela porta?
— Não é isso...
— Então o que é? — ele disse baixo, e ergui os olhos para encará-lo.
— Vinte por cento dos casos de assassinatos encomendados vêm de
pessoas do bem, que são chantageadas a fazerem coisas que jamais teriam
coragem, a não ser que seja para salvar a vida de quem mais amam. Só
estou com…
— Medo?
Soltei o ar, que parecia preso em meus pulmões, e Snake me
encarou com um semblante um pouco mais leve.
— É — concordei. — Posso eu mesma arrumar sua casa.
— Mamãe... — Colin puxou a barra da minha blusa e colocou a
mão sobre a boca, inclinando-se como se estivesse prestes a contar um
segredo. — Talvez essa não seja a melhor ideia do mundo. Há várias coisas
caras e quebráveis nesta casa — ele sussurrou, e estreitei os olhos para o
pequeno delator, visto que Snake estava bem em cima de nós e
provavelmente tinha escutado tudo com aquela audição infalível.
— Está aí um grande motivo para manter minhas funcionárias
trabalhando. Se não percebeu... — Snake pegou um pedacinho de farelo de
pizza que estava preso no capuz do meu moletom e o arremessou longe.
Senti o rosto queimar de vergonha. Como diabos aquilo foi parar ali? —
Odeio bagunça. Prefiro manter a ordem, o que aparentemente não faz muito
o seu estilo. — Torci os lábios. — Mas... posso trazer apenas uma delas,
diminuir a frequência para um dia na semana e mantê-la sob a vigilância
dos guarda-costas, se isso te tranquilizar.
— Tranquiliza, muito na verdade. Obrigada. — Sorri, aliviada por
Snake ter considerado minhas preocupações.
— Tudo pelo bem-estar da minha casa... agora, se não se importam,
preciso me enclausurar no quarto, enquanto finjo que vocês não estão mais
aqui.
— Boa noite, senhor Snake! — Colin riu, divertido pelo humor
ácido do nosso anfitrião, que desapareceu logo em seguida, como se fosse
enlouquecer se suportasse nossa presença por mais um segundo que fosse.
— Ele só parece mau, mamãe — Colin disse, enquanto me ajudava
a recolher os talheres. — Estamos invadindo seu hábitat natural, ainda
assim, ele se preocupa. É um homem inusitado, mas devemos ser gratos.
— Sim, querido, e somos. — Respirei fundo, e olhei para a porta
onde Snake tinha acabado de passar.
Ele não fazia ideia do quanto.
Snake
Um dia. Só um maldito dia... e eu já me sentia contaminado por toda
onda de sentimentos insuportáveis que vinha com o combo Petrova de
destruição em massa, e que por sinal aceitei por livre e espontânea vontade.
Caralho, já estava ficando maluco!
Dormi e acordei pensando na história que ela tinha me contado, que
foi de longe a mais longa que consegui arrancar da raposa escorregadia, e a
mais triste também. Conseguia imaginar o que uma garota da idade dela
devia ter passado sozinha com uma gravidez. Com toda certeza, Petrova
conhecia o inferno. Raiva e indignação me tomavam toda vez que eu
pensava no que devia ter acontecido, principalmente quando ela contou que
quase morreu.
Era bem mais fácil ignorar a presença de Petrova e fingir que ela
nem mesmo existia quando eu sabia que ela estava do outro lado do país,
segura e atormentando a vida de alguém por aí, mas tê-la debaixo do meu
teto e saber o que ela sofreu até chegar ali estava começando a me corroer.
Ela precisava ir embora rápido, antes que eu começasse a passar meus dias
preocupado com os problemas dela.
Tomei um longo banho, na tentativa de esquecê-la, ao menos por um
breve momento que fosse. Penteei os cabelos e os deixei perfeitamente
alinhados, coloquei uma roupa leve, liguei para minha secretária e pedi que
ela enviasse todos os novos contratos para minha residência, inventando
uma desculpa qualquer para não deixá-la preocupada com minha ausência
repentina.
Então, depois de me preparar psicologicamente para enfrentar a
família furacão, toquei a maçaneta do quarto, prestes a abri-la, mas olhei
sobre o ombro antes disso e passei os olhos pelas cortinas em tons escuros
que contrastavam com a beleza rústica do lado de fora até chegar na minha
cama, meu lugar sagrado de cobertas pretas e confortáveis. Era ali que eu
fingia que nada daquela loucura estava acontecendo e me sentia feliz por
ainda ter um canto na casa que não tivesse sido maculado pela presença dos
meus invasores... visitantes, quer dizer.
Abri a porta, sentindo-me pronto para qualquer coisa, menos para o
diabo da tasmânia que passou correndo pelo vão da porta assim que eu abri
uma gretinha.
— Mas que porra... Ah, seu maldito! — praguejei, quando
Passarinho usou de toda a sua astúcia e invadiu o quarto antes mesmo que
eu tivesse tempo de piscar.
O cão começou a correr pelo meu quarto... MEU QUARTO! E não
parou nem mesmo para respirar, rodopiando de um lado para o outro até
parar perto da cama.
— Não! Seu pulguento destrambelhado, nem ouse subir na...
MINHA CAMA! — gritei, quando ele simplesmente se jogou nos meus
lençóis limpinhos e começou a se esfregar neles.
Meu corpo começou a esquentar, minhas células pareciam ferver
enquanto o cão se transformava em um redemoinho em cima dos lençóis.
Mas como para um homem como eu toda desgraça parecia pouca demais, o
maldito simplesmente resolveu gritar. Motivado pelas forças do inferno, o
ordinário jogou a cabeça para trás e começou a fazer um escândalo.
Sempre fui muito resistente à dor, mas já começava a me perguntar
quanto daquela tortura um homem como eu era capaz de aguentar.
— Que merda, seu cão maluco dos infernos, cala a porra da boca, se
controle! — xinguei, prestes a arrancá-lo dali.
— Passarinho! — Uma cabecinha laranja surgiu do vão da porta do
meu quarto. Colin arregalou os olhos quando viu a cena. — Minha nossa,
com licença, senhor Snake. — O menino entrou no quarto e correu na
direção do cão. — Saia já daí! — ordenou, sério.
O monte de pelos pareceu entender quão perto estava de ser
arrastado para longe dos meus lençóis de seda pura e então do nada se
jogou de barriga para cima bem em cima dos meus travesseiros de penas de
ganso.
— Qual é o seu problema? — bradei com o cão, mas o alerta só fez
com que ele abanasse mais o rabo.
— Venha, Passarinho, ou vai acabar virando um enchimento de
almofada — Colin pediu, desesperado, mas empinou o nariz cheio de
pontinhos laranjas e parou ao lado dele com uma postura adulta até
engraçada.
Ele estava usando uma blusa de frio branca, que parecia muito
quente para o ar da casa, e que realçava mais a cor dos seus cabelos. Era
uma pequena raposinha frienta, ao que tudo indicava.
O cão se levantou e abandonou minha cama para correr até ele, que
se abaixou e sussurrou, como se eu não fosse capaz de escutá-lo:
— O que conversamos? Sua vida será mais longa se ficar quietinho.
Quer que o senhor Snake nos expulse daqui? — disse, sério, e crispei os
lábios.
Tudo bem, aquela era mesmo a minha vontade, mas não faria tal
coisa. Não enquanto ele mantivesse os dentes longe da mobília da minha
casa.
— Pronto, senhor Snake. Agora está livre. — Colin passou a mão
pela testa e me encarou. Parecia um pontinho brilhante perto de mim.
Magrelo e laranja. — O café está pronto. Mamãe fez panquecas, o senhor
precisa provar — disse, eufórico, mas percebi que ele só queria me distrair
do incidente com o cão. — É a melhor de toda a face da terra, apesar de não
ter conhecimentos técnicos para basear minha afirmação e minha pesquisa
estar relacionada ao fato de amar a comida da minha mãe, garanto que será
a melhor que já comeu. Sabia que existem umas 30 receitas de panqueca
que mamãe sabe fazer? — ele tagarelou, e se virou para o corredor,
deixando-me sozinho no quarto.
Estreitei os olhos, sem saber se deveria segui-lo ou não. O pequeno
Einstein não sabia ficar calado.
Olhei sobre o ombro e percebi que minha segunda opção era ir
descobrir quantos pelos aquele cão maldito tinha deixado nas minhas
cobertas, e para o bem de todos naquela casa era melhor fazer o caminho
contrário.
— E onde está a especialista em panquecas? — Respirei fundo, já
entrando na cozinha.
— Mamãe está na lavanderia, lavando nossas roupas — ele
explicou, enquanto se servia de duas panquecas.
O cheiro doce e delicioso que pairava no ar me atingiu em cheio.
— Por isso está usando essa blusa de frio, mesmo com a
temperatura da casa estando alta? — Quando me dei conta, já tinha
perguntado, mesmo sabendo que não era problema meu se aquela miniatura
de Petrova assasse de calor.
— Trouxemos só o básico, como o senhor deve saber. Mas eu não
me importo com as roupas. Estou feliz de poder dormir sem ter medo.
O menino se empoleirou na cadeira mais próxima e atacou uma das
panquecas sem perceber que suas palavras me atingiram como um trem
desgovernado.
Por um momento senti uma fúria tão grande que congelei no lugar.
Ouvir que um garoto de 10 anos, cuja única preocupação deveria ser
esfregar suas notas impecáveis na cara dos alunos da sua escola, estava feliz
por poder dormir em segurança depois de abandonar tudo o que tinha e
conhecia era devastador.
O ódio parecia entrar pelos meus poros e se fixar em meus ossos.
Poderia facilmente arrancar a pele do desgraçado que estava atrás deles
naquele momento.
Respirei fundo, e fiquei ali, em pé, no meio da cozinha, me
acalmando enquanto encarava o garoto que parecia verdadeiramente feliz
em comer sua panqueca, e comecei a me perguntar o que ele deveria ter
passado até chegar à minha casa. Tinha praticamente a mesma idade que ele
quando precisei me virar sozinho e sabia o quanto era difícil, triste e
doloroso.
Trinquei o maxilar ao lembrar que tudo aquilo foi causado por um
dos desgraçados que atuavam do lado da lei: o maldito do chefe dela.
Nem o garoto, e nem a mãe dele deveriam pagar por um corrupto
usar o poder do governo para fins próprios e ilícitos. Quer ser bandido?
Então entra para o crime, porra!
— É melhor o senhor comer logo, senão vai esfriar. — Ele apontou
para outro prato, onde várias delas estavam empilhadas ao lado de uma
calda que eu poderia jurar que era de caramelo.
Pisquei, saindo daquele devaneio de ódio.
— Eu já volto — bufei, ainda furioso com toda aquela situação.
Fui até meu quarto, desacreditando que estava mesmo fazendo
aquilo, e entrei no meu closet.
Pelo inferno, não podia deixar o garoto suando em um blusão de
moletom só porque não tinha outra blusa para usar. As outras duas opções
eram: diminuir o ar-condicionado, que poderia facilmente deixá-lo doente,
ou pedir que ficasse sem blusa, que também não me parecia uma opção
viável, já que o garoto era tímido dos pés à cabeça. Então, revirei o closet
até achar uma camisa preta, como quase todas as que eu tinha, e que, muito
provavelmente, ia parecer uma camisola nele, e voltei à cozinha, ignorando
minha cama, antes tão imaculada.
— Tome. Use isto enquanto sua mãe lava as suas roupas.
Entreguei a blusa para o garoto, que ergueu as sobrancelhas e
encarou minha mão parada diante de si com o garfo a caminho da boca.
— Essa blusa é do senhor? — Ele abriu mais os olhos.
— É, pega logo!
Ele soltou o garfo e ergueu as duas mãos, como se estivesse sendo
rendido pela blusa.
— Não senhor, não posso aceitar. Estou bem — mentiu
descaradamente.
Percebi pelos olhos que piscavam rápidos demais.
— Você está suando — devolvi.
— O senhor já está nos ajudando demais. Não posso dar mais
trabalho, mamãe ficaria uma fera.
— Deixe a fera comigo, certo? Só aceite a blusa logo. É só um
pedaço de pano.
Ele ponderou por um momento, mas devia estar sentindo tanto calor
que não tentou negar o empréstimo e pegou a blusa.
— Muito obrigado, senhor. Vou colocá-la assim que terminar o café.
— Certo — resmunguei, e cruzei os braços.
Bichinho teimoso da porra!
— Deveria fazer o mesmo, está uma delícia. — Ele colocou a blusa
dobrada ao seu lado, com cuidado, como se fosse um bem valioso, e torci os
lábios quando o vi sorrir para o tecido.
Como ele podia ficar feliz assim por causa de uma blusa velha?
Olhei para a mesa posta e encarei os talheres. Não costumava tomar
café em casa, então tudo era novidade. Tinha utensílios de cozinha ali que
nem fazia ideia de possuir. Olhei para as panquecas douradas, exalando uma
fumaça quase transparente e decidi prová-las, afinal, Petrova parecia
mesmo muito boa na cozinha.
Sentei-me diante da criaturinha, que me observava atentamente,
esperando pela minha reação. O cão do mal jazia aos seus pés e me
encarava de cabeça para baixo, já que mais uma vez tinha se jogado no chão
de barriga para cima e agora parecia assobiar enquanto choramingava por
carinho. Estreitei os olhos, realmente parecia o canto de um passarinho, no
caso, um passarinho sendo estrangulado.
Comi um pedaço da panqueca e tive que conter o gemido de prazer
ao sentir o gosto se espalhar pelo meu paladar. Era adocicado, quente,
macio e tinha gosto de casa.
— Gostou? — Colin perguntou, os olhos verdes pareciam maiores.
— É comestível — retruquei, mas tratei de comer tudo que estava
em meu prato, e ele sorriu.
— Sim, é supercomestível.
Tinha acabado de comer o último pedaço de uma das panquecas
mais deliciosas que já provei na vida quando meu telefone começou a tocar.
Estreitei os olhos para o nome de Jack piscando na tela e saí da cozinha
para atendê-lo.
— Fala, Jack... — atendi, ansioso. — Tem notícias do nosso
procurado?
— Ah, meu amigo, sinto dizer que ainda não capturamos aquele
rato. Na verdade, estou ligando para relatar um acontecimento estranho e
trágico.
— O que houve? — Endireitei o corpo, preocupado.
— Baylor foi encontrado morto no início da madrugada.
Arregalei mais os olhos e olhei sobre o ombro, só para ter certeza de
que o pequeno Einstein não estava por perto.
— Que porra aconteceu com ele? — eu quis saber.
Baylor era um homem poderoso e esperto, tinha metade da cidade
guardada no bolso. Não fazia inimigos além da polícia em si, era um alvo
muito atípico.
— Está pronto para se sentir tão chocado quanto eu? — Jack
devaneou.
— Fala logo. Não me enrola.
— Sinto falta dos admiradores de um bom suspense. — Continuou
protelando, e suspirou de um jeito dramático. — Bem, ele morreu de
overdose nos territórios do Stelvio. Tinha ido assistir a uma das lutas e
morreu antes que a primeira delas chegasse ao final.
— Overdose? — Minha cabeça começou a rodar e imediatamente
lembrei do que Petrova tinha me dito. Baylor estava na lista de compradores
da tal substância desconhecida que o ex-chefe dela estava comercializando.
— Não é estranho? Baylor não era esse tipo de usuário. Não faz
sentido.
— Jack, precisamos nos encontrar. Acho que sei o que pode ter
causado a morte do Baylor. Vou visitar o Stelvio para conferir algumas
coisas e depois vou para a boate te encontrar.
— De jeito nenhum. Primeiro um dos homens de Vance é
encontrado morto, agora um dos principais nomes da tabela de Stelvio
sofreu uma overdose misteriosa. Sabe quem pode ser o próximo na lista?
Eu! — disse, irritado. — Vou com você.
— Se garantir manter a neutralidade na reunião, tudo bem. Mas se
começar a provocá-lo, eu mesmo tiro você de lá pelos cabelos.
— Logo pelos cabelos? Sabe que odeio andar descabelado.
Soltei o ar, exasperado.
Jack, Stelvio e Vance eram homens poderosos, os principais nomes
do submundo de Chicago, o que não significava que eles se gostavam, pelo
contrário, os três se toleravam em prol de inimigos em comum.
— Chego em meia hora — avisei, e desliguei.
Pressionei os olhos com a ponta dos dedos, ciente de que não
poderia contar para Petrova sobre a morte de Baylor, ao menos não agora,
ou ela acabaria se colocando em perigo em busca de respostas.
Desconfiei desde o início que deveria haver alguma ligação entre o
que estava acontecendo na CIA e a loucura que tomou as ruas de Chicago, e
agora ficou ainda mais nítido que havia muito mais a ser descoberto.
Liguei para James, meu guarda-costas, e pedi que viesse para minha
casa com uma equipe externa, além de trazer Sullivan a tiracolo. O garoto
falava pelos cotovelos, mas era de confiança, e pelo visto Colin estava se
dando bem com ele, o que facilitava todo o processo.
Troquei de roupa, coloquei um terno de corte reto e selecionei um
dos meus coletes à prova de balas, deixando-o escondido embaixo do
paletó. Afinal, era uma reunião com dois dos três maiores gângsters da
cidade, tinha que estar preparado para qualquer tipo de situação.
Terminei de me arrumar e já estava prestes a ir buscar minha arma,
que tinha deixado na escrivaninha do quarto, quando um som gutural e
agudo ecoou pela casa. Por um instante pensei que meu coração tivesse
parado quando percebi que o grito era de Petrova.
Saltei sobre a cama, abri a escrivaninha, saquei a arma e a
empunhei. Atravessei a sala correndo e desci as escadas saltando os degraus
pelo caminho. Vários cenários passaram pela minha cabeça e havia sangue
em todos eles. Mal conseguia respirar quando cheguei à porta da lavanderia.
A abri em um rompante e entrei no cômodo com tudo.
Nem pela minha alma que naquele momento parecia queimar no
inferno eu poderia imaginar o que estava acontecendo ali dentro.
Passei pela porta apressado e entrei em uma nuvem de espuma
gigantesca.
NA PUTA QUE PARIU DE UMA NUVEM DE ESPUMA!
— Snake, socorro! Como é que desliga essa coisa?
Travei a arma e a guardei no paletó quando vi que a pequena raposa
estava escondida entre a espuma branca que parecia jorrar de um chafariz.
O blusão preto, que era grande demais para ela, estava todo sujo de
espuma. Os cabelos estavam molhados e deixavam à mostra o rosto
angelical e muito vermelho atrás de um par de óculos redondos que, por
sinal, eu nunca tinha visto e que a deixavam com um ar sexy de nerd do
governo.
Mas que inferno! Como que a porra de uma agente da CIA não sabia
usar uma máquina de lavar roupa?
— Que merda aconteceu aqui?
Mal fechei a boca e senti o impacto de 20 quilos de pura gordura
canina batendo com tudo nas minhas pernas. Escorreguei sem controle e
desapareci na espuma.
— Snake! Saí de cima dele, Passarinho! — Petrova gritou, enquanto
o cão-hipopótamo se remexia descontroladamente em cima do meu peito.
Não conseguia enxergar nada além de espuma misturada a uma raiva
insana.
— MÃE DO CÉU! — Colin gritou às minhas costas.
— Eu te ajudo! — Petrova mergulhou no amontoado de bolhas e
sabão líquido e agarrou minha mão, mas acabou escorregando e veio com
tudo para cima de mim.
O cão, que tinha se tornado uma grande bola de espuma, se jogou
sobre nós dois e viramos uma confusão de mãos, pernas e patas.
— EU NÃO ACREDITO NESSA MERDA! — praguejei, puto da
vida, enquanto tentava me equilibrar, e me arrependi de abrir a boca no
instante em que senti o gosto de sabão tomar meu paladar.
A raposa safada começou a rir enquanto patinava em cima de mim e
demorei quase um minuto para encontrar algum ponto de apoio que não nos
derrubasse no chão de vez.
Empurrei o cachorro, que saiu deslizando e parecia se divertir com a
nova brincadeira, e encarei o par de olhos verdes que causou tudo aquilo e
agora estava de joelhos bem no meio das minhas pernas, gargalhando como
se não houvesse amanhã.
Poderia até ficar excitado com a posição indecente em que ela
estava, de quatro em cima de mim, mas a vontade de afogá-la naquela
espuma era tanta que nem pensei direito.
— Sua raposa bagunceira do caralho! — praguejei, e a vi tirar os
óculos que estavam cobertos de sabão.
Passei as mãos pelo meu cabelo, antes perfeitamente alinhado e
agora coberto de espuma, e trinquei os dentes.
— Eu sinto muitíssimo, eram muitos botões e eu pensei que fosse
ser fácil. Era para ser fácil, mas... AAAAAAA! — ela gritou quando passei
a mão por sua cintura e a ergui, jogando-a sobre meu ombro assim que
consegui estabilidade novamente. — Não foi por querrrer, eu juro!
Levei a gata borralheira até a máquina de lavar e a segurei de cabeça
para baixo, dando-me conta de como era leve, prestes a enfiá-la dentro da
máquina. Olhei para a arruaceira, que me encarava de cabeça para baixo
enquanto se acabava de rir, repetindo um mantra de que foi tudo sem
querer.
Bufei, irritado, e ciente de que não foi aquela a educação que meu
pai me deu.
Reid Holder, meu pai adotivo e dono de uma das maiores empresas
de segurança privada do país, abominava todo e qualquer tipo de maus-
tratos destinados a crianças e mulheres, e aquela era uma das coisas que eu
mais admirava nele. Proteger os inocentes era seu principal objetivo e,
mesmo que meus protegidos não fossem tão livres de culpa assim, eu
prezava por aquele princípio tanto quanto ele, e foi essa linha de caráter que
me levou a seguir Petrova pelo corredor da boate de Jack quando a vi pela
primeira vez.
Ela era pequena demais e dona de olhos puros, os mesmos com os
quais me encarava agora, e eu já era bom em ler seus trejeitos dois anos
antes, sabia que ela estava escondendo alguma coisa na noite em que a
conheci, mas era inocente, algo que os homens de Jack não iriam
considerar. Por isso eu intervi. Para proteger uma estranha.
No fim das contas, eu jamais a machucaria. Mas será que seria tão
ruim assim deixá-la presa de castigo dentro da máquina de lavar por pelo
menos meia hora?
— Senhor Snake, por favor, não a prenda na máquina — uma
vozinha irritante gritou da porta.
Olhei sobre o ombro e Colin, que já tinha trocado de roupa e agora
estava usando minha blusa preta, encarava a cena com o rosto vermelho de
tanto que se esforçava para não rir, diferente de Petrova, que irrompeu em
mais uma torrente de gargalhadas.
Estreitei os olhos e encarei seu rosto cheio de espuma e culpa.
Estava ainda mais fofa de cabeça para baixo, com os cabelos ruivos
bagunçados e cheios de pontinhos brancos.
— M-me d-desculpe. — Ela riu tanto que até gaguejou.
— Que inferno, Petrova! — Dei a vida para segurar uma risada,
vendo a cena ridícula que nós três nos tornamos.
Eu, de terno, todo sujo, como se tivesse sido atingido por uma
bomba de espuma. Petrova, de cabeça para baixo, prestes a ir parar dentro
da máquina de lavar, e Passarinho, que parecia estar em uma piscina
olímpica, escorregando de um lado para o outro.
Era o inferno na terra!
— Sua cabeça de vento, desordeira. — Soltei a bagunceira no chão.
— Tem sorte da sua miniatura estar por perto — e de eu ter medo do meu
pai descobrir que enfiei uma mulher na minha máquina de lavar —, do
contrário...
— O que é isso? — Ela tocou o colete em meu peito com as pontas
dos dedos e seu sorriso se desfez, cedendo lugar a um semblante
preocupado.
— Isso aqui era a minha tentativa inútil de sair com o Jack, mas até
a porra do colete está coberto de sabão.
— Você não usa colete em uma visita casual. Está acontecendo
algo? — Ela passou a mão pela testa, limpando o resto de espuma que
escorria por seus cabelos, e torci os lábios, irritado por ela parecer uma
imagem linda e safada embaixo de todo aquele sabão.
— Nada de mais. Só dois nomes importantes no mesmo lugar.
Agora, limpe tudo isso, está ouvindo? Inclusive o cachorro.
Apontei para o chão e Petrova escondeu o olhar preocupado em um
biquinho delicado e endireitou a postura.
— Senhor, sim, senhor! — Ela ergueu a mão e bateu continência.
Crispei os olhos para ela e saí de lá com Petrova gritando às minhas costas:
— Eu sinto muitíssimo, e tome cuidado!
Subi as escadas pingando sabão, possesso de ódio.
Pensei que ela tivesse se machucado quando a ouvi gritar e só então
me dei conta de que era melhor ter entrado em uma piscina de sabonete
líquido do que de fato ter encontrado a raposa baderneira machucada.
Peguei meu telefone e liguei para Jack.
— Tive um imprevisto, chegarei atrasado.
Não sou de obedecer, nem de seguir
Entre na fila, se adeque
Sente-se no corredor, pegue sua senha
Eu era o relâmpago antes do trovão
Thunder – Imagine Dragons
Snake
— Ela o quê? — Jack mal conseguia respirar quando cheguei na sua
boate e contei o motivo pelo qual me atrasei, e mesmo depois de um banho
ainda cheirava a flores e lavanda.
Encarei meu amigo, enfiado em um terno de grife azul, me
observando com um semblante perplexo, mas prestes a gargalhar.
— Se você rir eu juro que vai viajar no porta-malas.
Ele pressionou os lábios e ajeitou o terno elegante, tentando se
controlar, mas logo caiu na risada.
— Sinto muito. — Puxou o ar, enquanto sufocava de tanto rir.
Tentei agarrar seu ombro, mas Jack foi mais rápido e desviou de
mim, rindo ainda mais alto.
— Idiota! — Revirei os olhos, e vi duas SUVs pretas, e que eu sabia
que eram tão blindadas quanto meu carro, se aproximarem. — É melhor
não contar essa história para Stelvio, tá ouvindo? Ele vai me atazanar pela
eternidade.
Jack riu mais.
— Ah, com certeza ele adoraria replicar essa história fascinante no
meio dos ogros com quem trabalha. Mas não se preocupe, seu segredo está
seguro comigo, e é melhor agradecer aquela criaturinha selvagem. Você está
bem mais cheiroso agora. Ai! — Dei uma cotovelada nele. — Tudo bem...
parei! — Ele ergueu as mãos em rendição. — Vamos encontrar o não tão
querido, e potencialmente agressivo, Stelvio. Faz tempo que não o vejo.
Entrei em uma das SUVs de Jack, para acompanhá-lo durante a
breve viagem, e saímos em uma comitiva de quatro carros, dois deles sendo
guiados e escoltados por dois dos meus. Apesar de saber que não precisaria
me preocupar com a visita, os acontecimentos recentes me deixaram
inquieto e não poderia estar sem segurança em um encontro entre os dois
nomes principais do submundo de Chicago. Pela segurança dos meus VIP,
que também eram meus amigos.
Chegamos à região oeste da cidade e a paisagem urbana do lado de
fora ia mudando conforme nos aproximávamos do local. Toda a agitação
fustigante de Chicago foi dando lugar a uma área cinza e mais erma.
Paramos em um dos galpões pertencentes a Stelvio e descemos dos
veículos, sendo acompanhados de perto tanto pelos meus guarda-costas
quanto pelos soldados de Jack.
Dois homens parrudos vigiavam a porta do lado de fora da entrada
principal do galpão. Não precisei me identificar, eles se afastaram no
instante em que me aproximei, nos dando passagem. Um deles meneou um
aceno, me cumprimentando, enquanto o outro encarava Jack com o
semblante irritadiço.
Os homens de Jack ficaram do lado de fora, enquanto entrávamos
com os meus. Era uma das muitas regras que eu mesmo implementei para
manter a paz entre meus três amigos.
Quando um visitava o território do outro, era necessário entrar no
local sem seus homens de proteção pessoal, já que os soldados do crime
eram homens fiéis e tinham um temperamento tempestivo. Qualquer
movimento brusco poderia terminar em alguma confusão entre os pilares de
Chicago e ninguém queria aquilo, nem eles. Então, em encontros raros
como aquele, a segurança ficava por conta dos meus homens, que eram
imparciais.
Entramos no galpão e descemos por uma escada em espiral até
chegarmos a uma das incontáveis quadras de luta subterrânea que
pertenciam a Stelvio. O lugar era enorme, tinha uma arquibancada de ferro
batido muito largo e que comportava apostadores durante a madrugada, mas
agora estava quase vazia. A não ser pelos homens que lutavam sem pausa
no centro de um ringue cercado por cordas de contenção, onde Stelvio
trocava socos com um dos membros da família Trevino, a gangue que ele
comandava.
O homem, que estava sem camisa, expondo os músculos no peito,
sujo por algumas gotas de sangue, era grande e tinha boa parte do corpo
tatuado, assim como eu. Os olhos claros e experientes se estreitaram quando
ele nos viu e logo fez um sinal com a mão, pausando a luta com seu primo,
que parecia animado e, assim como Stelvio, estava com o nariz sangrando.
— Ora, ora! A que devo o prazer dessa visita ilustre? — Ele se
aproximou das cordas e saltou do ringue. — O inferno deve ter congelado
para Jack Kane aparecer aqui com esse terno de grife.
— Um momento épico, devo admitir. Você me parece muito bem,
Stelvio. Não mudou nada, sempre tão... limpo — Jack retrucou, e crispou o
nariz.
Um dos soldados de Stelvio rosnou atrás de mim e eu revirei os
olhos com a implicância insistente dos dois.
— Tem certeza de que sua mãe não vai achar ruim se você se sujar
por aqui?
— Já chega, vocês dois — interrompi, dando uma de irmão mais
velho, assim como fazia com Lobo e Fantasma quando éramos
adolescentes. — Temos algo sério para tratar e precisamos conversar,
depois vocês dão um jeito de se matar.
— Que seja, então. Creio que estamos à porta de alguma guerra,
para ter os dois aqui do nada.
— Não estamos longe disso — Jack concordou.
— Vamos ao meu escritório. — Seguimos Stelvio pela quadra e
entramos em um cômodo pequeno, que fedia a mofo e a cigarros baratos.
Jack parecia prestes a sacar um álcool em gel e espalhar pelo lugar, mas
conteve seus comentários sarcásticos. — Achei que ia aparecer aqui ontem,
Snake. Teve uma luta dos caras da Oeste. Foi sangrento, do jeito que você
gosta.
— Que animador — Jack disse baixo.
— Eu estava ocupado. — Se ocupado tivesse virado sinônimo de
atolado de invasores até o pescoço. — Soube sobre Baylor. — Ele deu um
soco na mesa e Jack deu um pulo do meu lado.
— Ora, que susto! — Jack apertou as mãos, indignado. Notei que
ele quase sacou a arma. — Controle-se, homem. Quer me matar do
coração? — Stelvio soltou o ar e se reclinou na cadeira.
— Baylor era um homem fiel. Um imbecil, às vezes, mas era dos
nossos. Não entendo como chegou a isso. Não faz nenhum sentido.
— Não acho que tenha sido de fato uma overdose — comecei.
— O que quer dizer com isso? — Stelvio se inclinou e ergueu um
dos cantos dos lábios com um palito de dentes, deixando seu canino de ouro
à mostra.
Comecei a explicar tudo para Stelvio, que ouvia atento a cada um
dos fatos que eram pontuados por Jack. As mortes sem sentido, o ataque ao
soldado de Vance, o recado passado ao prefeito, o aparecimento do Parada
na cidade e até mesmo o envolvimento de assassinos de aluguel na região, e
agora, a morte de Baylor.
— Mas que desgraça! Uma sequência de desgraças. Quem é o filho
da puta envolvido nisso? Deve haver alguém que possa explicar essa
loucura. — Stelvio passou as mãos pelos cabelos castanhos, e muito lisos,
que estavam meio úmidos de suor.
— Fica pior, meu amigo — avisei, e o vi abrir mais os olhos. — O
que você e Jack não sabem é que eu tenho uma informante que testou
Baylor em um encontro. Ela estava rastreando uma substância química,
aparentemente era o indício de uma nova droga com base de
metanfetamina.
— Meta? — Jack estreitou os olhos. — Baylor não usava isso.
— Não, mas seja lá qual for essa nova droga, parece que ainda está
em fase de testes e é fatal. Baylor testou positivo para o consumo dois
meses atrás.
— Dois meses? — Stelvio gritou. — Como em nome de Cristo ele
teria uma overdose dois meses depois de usar a droga? Isso é impossível!
— Pelo visto, impossível é uma palavra que não se aplica para essa
nova substância. Ela não mata imediatamente. — Cruzei os braços. —
Preciso que me conte se viu algo de diferente acontecendo com ele nos
últimos meses, ou alguma atividade suspeita. Trouxe Jack comigo porque
preciso que entendam que algo grande está por vir e que se quiserem
sobreviver precisam se unir.
Stelvio começou a contar tudo sobre a rotina de Baylor e fui fazendo
anotações mentais que talvez pudessem ser importantes.
— Vance já sabe sobre isso? — Jack questionou um tempo depois.
— Vai saber, mas antes precisamos reunir todo tipo de informação
que conseguirmos. Quero saber com quem Baylor andou se comunicando
nesses últimos dias, consegue isso Stelvio?
— Claro, colocarei meus homens nisso imediatamente. Podemos
estar lidando com alguém que está implementando uma nova droga para
tomar o poder.
— Ou o responsável pode estar testando a droga em membros das
nossas famílias. — Jack se levantou, impaciente, e começou a andar de um
lado para o outro, enquanto pensava. — Assim, constroem um cavalo de
tróia e…
— Nos destruiriam de dentro para fora — Stelvio completou, e Jack
anuiu. — Malditos, arranco a espinha deles antes disso!
— Vamos ver quem os captura primeiro. Se for eu, prometo deixar a
coluna para você, mas as mãos ficarão na zona norte. — Jack citou a região
da cidade que ele comandava, e Stelvio sorriu.
— Que se foda quem vai ficar com que parte, precisamos encontrá-
los, e vivos. Qualquer pista já é um avanço. — Levantei-me, disposto a ir
embora. Temia que se demorasse demais minha casa acabaria aos pedaços.
— Me avise se tiver novidades, Stelvio.
— Certo!
Cumprimentei meu amigo e pedi que tomasse cuidado dali em
diante, já que aparentemente tinha um alvo nas costas dos mafiosos da
cidade. Já estava quase saindo de lá quando me lembrei de uma coisa.
— Stelvio, ainda tem daquela pomada para hematomas?
— Tenho sim. — Ele se inclinou e abriu a gaveta da escrivaninha,
tirou de lá um tubo meio amarelo e estranho e me entregou. — Não fico
sem ela. Ajuda a desaparecer com os hematomas em uma velocidade
impressionante. É uma receita da minha avó.
— Agradeça a ela por mim. Ah, também vou ficar com esse pote. —
Peguei um pote vazio que estava em cima da mesa e saímos de lá em
seguida.
— Qual parte do corpo pretende infectar com essa pomada? — Jack
quis saber quando voltamos ao seu SUV e acabei rindo da cara de nerd do
meu amigo, que me encarava por trás dos óculos quadrados de um jeito
curioso.
— Não é para mim. É para Petrova.
— Ah, meu Deus, Snake, não me diga que não resistiu e…
— Eu não bati nela, tá maluco, porra? Parece que não me conhece!
— Era capaz de arrancar minhas duas mãos antes de tocar em um fio do
cabelo dela.
— Vai saber, ela quase te afogou com espuma. — Ele tentou manter
o tom de voz sério, mas bastou se lembrar do que aconteceu que toda a
preocupação que ele estava sentindo pelo alvo em suas costas se foi.
— Para de rir, idiota. Isso aqui é para o pescoço dela. Aquele filho
da puta do Dipa a enforcou. Está muito marcado, não quero ficar olhando
para aquela porra.
Jack anuiu e seu rosto subitamente ficou mais sério.
Enfiei a mão no bolso e peguei minha carteira, tirando de lá cerca de
300 dólares.
— Quanto em dinheiro vivo você tem aí? — questionei, ciente de
que Jack andava com bem mais do que isso em sua SUV, e abri o pote que
peguei na mesa de Stelvio. Ele era pequeno, mas ia servir.
— Sei lá, mil dólares? Dois mil?
— Cinco mil, senhor. Para ser exato. — O motorista respondeu, e
Jack assentiu.
— Ótimo. Encha esse pote de dinheiro.
— Acho que você contraiu algum vírus naquela espelunca do
Stelvio. — Jack encarou o pote como se ele estivesse prestes a se
transformar em uma bactéria gigante. — Por que estou sendo assaltado a
uma hora dessas?
— Para de reclamar. Sabe que não gosto de andar com muito
dinheiro, vou transferir o valor ainda hoje.
— Não é o empréstimo que me preocupa. — Ele tirou uma bolsinha
de couro de um dos braços do estofado do sofá e a abriu, revelando várias
notas de cinquenta e cem dólares. — Adoraria saber o motivo pelo qual
estou enfiando esse dinheiro nesse pote imundo. — Ele encarou o pote, que
comportou apenas metade do valor que ele tinha.
— É só... uma ideia que tive.
Jack abriu a boca, prestes a me questionar sobre aquela insanidade,
quando de repente o rádio do seu carro começou a chiar.
— Que loucura é essa, Ronald? Desligue isso — ele ordenou ao
motorista, que olhou para Lamar, o braço direito de Jack, que ocupava o
banco do carona com a expressão assustada.
— Mas que porra... — Lamar também tentou desligar o rádio, mas
não conseguiu.
— Olá, garotos. Espero não ter assustado vocês. — Uma voz
melodiosa ecoou pelo rádio, e abri a boca, perplexo, ao notar que eu
conhecia bem aquele som.
— Puta que pariu! — O motorista se assustou tanto quanto cada um
de nós dentro do veículo, que se sacudiu com um tranco que fez os pneus
cantarem.
— Petrova? — questionei, aturdido, e meu telefone celular começou
a tocar.
— Encoste o carro antes que você acabe nos matando — Jack
ordenou, e eu atendi o número desconhecido.
— Consigo falar pelo rádio, mas não posso ouvi-los por lá — ela
explicou, como se aquilo ao menos fizesse sentido. — Coloque no viva-
voz, por favor — disse, alheia a síncope em conjunto que estávamos tendo
dentro daquele veículo.
Encarei Jack, que estava com os olhos arregalados, e fiz como ela
pediu.
— Como diabos conseguiu invadir o rádio deste carro, Petrova? —
rosnei, chocado, puto e assustado.
— Eu invadi seu celular e acessei o rádio do carro através de um
sinal criptografado. Você saiu de colete, fiquei preocupada — ela se
explicou.
— E precisava aparecer que nem uma entidade demoníaca? Bastava
me ligar, inferno. Quase nos matou do coração — praguejei, ignorando a
batida estranha que pulsava em meu peito ao ouvir que ela estava
preocupada comigo.
— Uma ligação não revelaria o que uma invasão no sistema de
rastreamento é capaz de fazer. Também os acompanhei pelas câmeras de
segurança que encontrei pelo caminho.
— Você invadiu todo o meu sistema, sua coiote ardilosa? — Jack
quis saber. Os olhos arregalados estavam prestes a saltar das órbitas.
— Olá, Jack. Quanto tempo... e sim, apesar de ser um sistema muito
bem construído, entrei através de uma brecha e descobri que vocês estão
sendo vigiados.
— O quê? — dissemos em uníssono.
— Quando entrei no seu sistema, vi a linha de segurança marcando
o território de Jack.
— Uma linha que inclusive foi construída para evitar ataques
hackers como o seu — Jack rosnou.
— Ela é boa, mas não o bastante quando se trata de alguém como
eu. — Contive um sorriso. A safada era mesmo muito boa no que fazia. —
Querem ou não saber o resto?
— Vai, fala — Jack disse a contragosto.
— Eu estava vigiando o sinal quando vocês saíram da boate de Jack
e fui atropelada por um segundo emissor. Era algum tipo de rastreador, um
que desapareceu por um momento, até que vocês foram para outro lugar e
ele pareceu interligar os dois pontos.
— As quadras de Stelvio — concluí.
— Então não é só o Jack que está sendo vigiado. Existe um
triângulo monitorando vocês, mas só consegui rastrear dois deles.
— Já até imagino quem completaria a terceira base do triângulo. —
Jack me encarou, preocupado.
— Vance — continuei.
— Estou bloqueando o sinal das boates de Jack e do Stelvio. Não
poderão mais ser rastreados. Então só... voltem em segurança, sim?
E desligou, deixando-nos com a cara de quem tinha visto um
fantasma.
— Como ela consegue esse tipo de coisa? — Jack me encarou com
um misto de descrença e admiração. Olhei para o meu celular e sorri.
— É a Petrova, Jack. Não há nada que aquela mulher não consiga.
E, pelo visto, estávamos certos. Tudo está interligado, estão vigiando os três
nomes principais da cidade.
— Isso não é nada bom. Podemos ter infiltrados. — Ele nem mesmo
tinha terminado a frase quando seu celular tocou. — Um instante... —
pediu, e atendeu a ligação. Seu semblante foi tomado por uma surpresa
eufórica. — Estou a caminho. Não permitam que ele saia de lá.
Ele desligou. Minha cabeça ainda estava fervilhando com tudo o que
tinha acontecido segundos antes, que demorei a me dar conta de que Jack
sorria.
— O que foi?
— Encontramos ele.
— Quem? — quis saber, confuso.
— Dipa Pietro. Meus homens o cercaram no armazém da ponte.
Fechei os punhos e abri mais os olhos, subitamente sentindo uma
alegria estranha e quase masoquista crescendo em meu peito. Um sorriso
brotou no canto dos meus lábios e encarei Jack com a certeza de que aquela
seria uma das melhores noites que tinha em muito tempo.
— Olha, se um dia eu fosse ter pena de algum idiota, eu teria desse
tal de Dipa quando chegarmos lá. Conheço bem essa sua expressão…
— Guarde sua pena, Jack. Dipa já é um homem morto. Ele só não
sabe disso ainda. Vamos logo!
Mal conseguia respirar, sufocado pela raiva, quando chegamos aos
galpões, que ficavam em cima de uma das pontes que cruzavam a cidade e
era uma das menos movimentadas. Algumas estrelas brilhavam na noite
fria, e tudo que eu mais ansiava era o momento em que colocaria a mão no
desgraçado.
— Senhor, ele está em um dos últimos galpões. Nossos homens já
cercaram a área. Ele não vai a lugar algum — um dos soldados de Jack
avisou, quando nos aproximamos. — Ele deixou a arma cair na fuga. — O
rapaz, que era jovem e atento, entregou uma nove milímetros nas mãos de
Jack.
— Vamos acompanhá-lo, senhor! — Ford, um dos meus guarda-
costas, parou ao meu lado, bem em frente aos galpões.
O homem tinha uma estatura que impunha respeito, alto e
corpulento; o ex-detento tinha cumprido pena por tráfico de drogas e gestão
de quadrilha organizada, e agora era o chefe de uma das minhas equipes
mais eficientes de guarda-costas, e que sempre estavam comigo em missões
como aquelas. Era um homem extremamente fiel e perigoso, disposto a
tudo para proteger os seus.
— Quero que me esperem aqui, em segurança. Isso não é problema
de vocês.
Ajustei o colete e saquei minha Glock prateada, sentindo o peso frio
do metal contra meus dedos. Sempre a usava quando saía com um VIP do
porte de Jack, mas estava ciente de que não poderia atirar sem pensar
naquela noite. Dipa tinha que sair daqueles galpões vivo, mas não precisava
estar inteiro.
— Desculpe, senhor, mas não podemos permitir. — Harris, um
homem esguio e dono de uma tatuagem na lateral do rosto, de quando ainda
pertencia a uma gangue, se colocou bem a minha frente e abriu os braços.
— A segurança do senhor é nosso problema, presidente. Entraremos em
formação e garantiremos que…
— Prestem atenção. — Virei-me para meus quatro guarda-costas,
que me encaravam aflitos, preocupados com o que poderia acontecer. — Se
tem alguém que precisa ficar preocupado é o desgraçado que está lá dentro.
Hoje eu pretendo fatiá-lo. — Conferi o pente da arma.
— Mas, senhor…
— Quero que cubram as saídas — interrompi Ford, que estava
prestes a me contestar, mas acabou anuindo. — É a minha maior
preocupação. Aconteça o que for, mantenham o desgraçado dentro dos
galpões.
— Sim, senhor! — Uma onda de confirmação ecoou pela noite fria.
— Está pronto para se divertir? — Jack parou ao meu lado. —
Vamos ter que persegui-lo, e pela cara amassada do Many ali, ele é bom de
briga. — Jack apontou para um homem que estava com o nariz torto,
quebrado e sangrando.
— Ele me pegou desprevenido, senhor. O desgraçado é rápido como
um peixe.
— Então vamos pescá-lo. — Sorri, e sondei o lugar.
Os galpões ficavam espalhados ao lado de um desfiladeiro. Não
havia como fugir, a não ser para uma morte certa. Jack sacou a arma, já
prestes a entrar comigo.
— Não. Ele é meu — falei.
— Tem certeza? Ele vai dar trabalho…
Olhei para meu amigo, e abri um sorriso lento.
— É exatamente o que eu espero.
— Certo. Estarei na retaguarda com meus homens — Jack disse,
taciturno, e entrei no lugar.
Segurei a arma com força e sondei todo e qualquer movimento ao
meu redor. Sabia exatamente como encurralar alguém em locais como
aquele e não demorou muito até que uma sombra passasse correndo no fim
do corredor.
— Achei o desgraçado! — Corri em direção à figura alta e forte que
se espremia para passar entre os vãos dos galpões. — Perdeu, filho da puta!
— gritei, e o maldito virou o rosto em minha direção.
Ele abriu um sorriso de escárnio, como se me desafiasse a pegá-lo,
mas o semblante preocupado não me passou despercebido.
O desgraçado sabia o que aconteceria dali em diante, e quase dei
risada ao me dar conta de que tinha conseguido encontrar o maldito que a
machucou.
Dipa evadiu pela direita e deu a volta no galpão. Comecei a
persegui-lo, feroz, irado. Ele empurrou uma das portas dos galpões e me
atingiu em cheio. Sacodi o rosto, sentindo o ardor tomar a pele e continuei a
persegui-lo. Tinha que colocar minhas mãos nele antes que o maldito se
escondesse em meio aos galpões.
Parei por um instante, ciente de que a raiva estava prestes a me
cercar e não era assim que eu trabalhava. Sempre me orgulhei da
capacidade de usar aquele sentimento a meu favor e precisava me
concentrar. Respirei fundo, estreitei os olhos e mapeei o lugar ao meu redor,
ignorando qualquer som externo. Foquei nos passos do meu alvo e me dei
conta de que ele estava jogando conosco. A disposição dos galpões formava
um labirinto e em breve, tanto eu quanto os homens de Jack, não
saberíamos qual caminho ele tinha tomado, e Dipa só precisaria de tempo
até conseguir fugir.
Subi em cima de um dos galpões, ignorando o alerta de Jack às
minhas costas, e comecei a contar.
Um... dois... três…
Minha atenção se ampliava a cada número que contava e não
demorou até ver a saída que o filho da puta tinha encontrado. Comecei a
saltar sobre os galpões, perseguindo-o sem descanso. Sem parar sequer para
respirar.
Cerquei Dipa em uma curva e ele fugiu, entrando em um beco sem
saída. Encarei o homem, que passava os olhos por todas as possíveis rotas
de fuga sem se dar conta de que não havia para onde ir.
Trinquei o maxilar ao lembrar do estado em que Petrova chegou a
minha casa. O tremor em seu corpo, o hematoma estampado em sua pele
clara, o medo em seus olhos, tudo, absolutamente todas as lembranças
daquele dia voltaram com força e meu corpo começou a ser tomado pelo
mais puro ódio.
Tirei o pente da minha arma e a abandonei em cima do galpão,
contendo a vontade de matá-lo. Pulei no beco, encarando-o. Ele apoiou as
duas mãos na parede do galpão e começou a rir. Era alto, corpulento e
musculoso.
— Só pode ser um idiota se pretende me enfrentar desarmado — ele
zombou.
— Sei que está desarmado e não quero correr o risco de matá-lo, já
que precisa ser interrogado... Sorte a minha que não tem que estar inteiro
para isso — respondi.
— Acha mesmo que é capaz de me pegar vivo, seu merda? — Dipa
deu risada, mas eu podia sentir o cheiro de medo impregnado no ar.
Dei um passo em sua direção, e continuei caminhando, enquanto
observava sua postura.
— Deveria me tratar com mais respeito. Não faz ideia do quanto eu
desejei encontrá-lo. — Sorri, e ele me encarou confuso.
— Vai se arrepender de estar protegendo a Petrova — ele rosnou
entredentes. — A vadia tem um alvo caro nas costas e...
Avancei contra ele e acertei um murro na sua boca com tanta força
que um dente saiu voando e se perdeu na escuridão.
— Desgraçado! — ele praguejou, com a boca sangrando, e veio
para cima de mim e acertou um chute em meu dorso, que me desequilibrou
por um momento.
Ele aproveitou a breve vantagem para armar um cruzado, mas
desviei do soco que ele deu e o arremessei contra o galpão com mais um
golpe curto, que acertou seu plexo e o deixou completamente sem ar.
— Não ouse dizer o nome dela, seu merda! — rugi, possesso, e
acertei um chute em seu estômago, que o arremessou para o lado oposto do
galpão.
Senti as pontas dos meus dedos formigarem, como se meu
subconsciente implorasse para que eu atirasse logo na cabeça do
desgraçado.
Avancei contra ele novamente, disposto a quebrar o maldito na
porrada, e já tinha me aproximado quando vi algo prateado reluzir contra as
luzes fracas que irradiavam um amarelo opaco pelos galpões.
Só então me dei conta de que o filho da puta esperou que eu me
aproximasse para tentar me esfaquear, mirando bem na minha carótida.
Esquivei-me da sua mira e senti a navalha da faca cravando em alguma
parte da minha pele.
— Desgraçado! — rosnei, jogando seu corpo para cima com uma
cotovelada, enquanto uma dor ardida tomou parte do meu ombro.
Ele cambaleou pelo galpão, e se encostou na parede oposta.
Puxei a faca, que tinha sido desviada pelo colete, e a arremessei na
escuridão, enquanto o encarava.
— Não vai conseguir nada de mim, se eu não matá-la, alguém fará
isso em meu lugar. Não há como fugir; Petrova já está morta, e você
também.
Ele riu, e limpou um rastro de sangue que escorria pelo canto da sua
boca.
Suas palavras surgiram como um furacão de fogo. Ódio, raiva e a
mais pura sede de sangue me tomaram com a hipótese de que ele tocasse
em Petrova novamente, e avancei com tudo para cima dele. Dipa me deu
um soco, mas meu sangue estava tão quente que nem mesmo senti. Ele
continuou atacando com toda força e percebi que aquele homem era um
adversário à altura, mas ele não tinha chance de ganhar de mim. Dipa era
motivado pelo dinheiro, já eu... por vingança.
Agarrei o desgraçado pelo pescoço e o homem me encarou com um
semblante frio e calculista e tudo que pensei foi em como ela se sentiu
quando foi atacada covardemente por ele.
O que minha raposa passou quando aquele maldito fez o mesmo
com ela? Quando ele quase a matou?
— Vou levá-lo até Vance — eu disse em um sussurro, prendendo
seu pescoço entre meus dedos até sentir as batidas do seu coração ressoando
em minha palma. — E você vai nos contar tudo, começando com por onde
anda seu irmão. Mas antes disso vou garantir que sinta exatamente o que ela
sentiu!
— Seu... merda. Nunca vai... encontrar meu irmão.
— Quero que repita isso quando Vance começar a te abrir no meio.
— Sorri, e comecei a apertar seu pescoço com a mão direita enquanto
observava com certo fascínio o homem sufocar.
O padrão respiratório começou a se alterar e ele se debateu, tentando
afastar minha mão. Era um homem grande, mas eu era maior e estava
infinitamente mais motivado. Cada som de engasgo veio acompanhado de
um prazer satisfatório, a sombra do medo da morte que transpassou seu
olhar foi só a cereja do bolo.
— Por que não reage, Dipa? — provoquei, sentindo a glote do
homem se contrair sob minha mão. Ele estava desesperado em busca de ar.
— É mais fácil lidar com uma mulher inocente, não é?
Ele desmaiou, mas eu não conseguia soltá-lo. Queria matá-lo como
nunca desejei em toda a minha vida. Queria que ele soubesse que tocou na
mulher errada e que eu o faria pagar. Apertei com mais vontade e ouvi
passos ressoando atrás de mim.
— Que glorioso! — Jack falou, e tocou meu ombro. — Agora, que
tal soltá-lo, caro amigo? Precisamos do rato vivo, lembra? — Jack tentou
me trazer de volta à racionalidade.
Respirei fundo, e joguei o corpo dele no chão.
Sabia que Petrova não aprovaria aquele comportamento. Ela seria a
favor de levá-lo à justiça, de entregá-lo ao Estado, que poderia muito bem
deixá-lo escapar. Eu não cometeria aquele erro.
Algemei o filho da puta e esperei pacientemente que ele acordasse.
Afinal, nenhum de nós carregaria um lixo como aquele. Ele ia andar com as
próprias pernas até um caminho muito pior que um pesadelo.
— Olha só quem está de volta — Jack zombou, quando ele abriu os
olhos e começou a tossir até começar a cuspir sangue.
Vi em seus olhos que agora ele entendia o quão irritado eu estava.
— Vamos, Bela Adormecida, tá na hora de começar a andar... —
Puxei seus braços pelas algemas.
Ele tentou gritar pela dor nos punhos, mas não conseguiu emitir
nenhum som, já que eu quase quebrei seu pescoço.
Dei um empurrão e comecei a arrastá-lo pelos punhos na direção de
uma das vans dos homens de Jack.
— Opa! — eu disse, quando bati a cara dele na quina de um dos
galpões. — É melhor olhar por onde anda, Dipa, ou não vai restar muito
para quando chegarmos lá.
— Ah, como eu adoro essa sua versão. — Jack deu risada, e fiz o
mesmo, ciente de que àquela altura eu já tinha perdido o controle da raiva
que sentia e facilmente esfolaria aquele homem antes de chegarmos à van.
— Você... — ele cuspiu um bocado de sangue — … não vai
conseguir pegar meu irmão.
Pensei em retrucar e dizer que era só uma questão de tempo, mas
Dipa foi mais rápido e bateu o cotovelo na boca do meu estômago, usando o
resto da força que tinha para correr até a beirada do precipício que era
transpassado pela ponte. Todos os homens de Jack apontaram suas armas,
mirando na cabeça do homem.
— Não atirem! — ordenei, e ergui a mão, ciente de que precisava
dele vivo. — Vai voar, por acaso? — eu quis saber, curioso.
— Perdi o jogo no momento em que me encurralaram aqui. Estou
tão morto quanto a desgraçada da Petrova. — Ele riu, e simplesmente se
jogou no abismo, que culminava em uma queda mortal nos rochedos, bem
rente ao mar.
Minha cabeça começou a rodar, como em um pesadelo, a diferença
era que eu sabia que não estava sonhando.
— Puta que pariu, o maluco se jogou — Lamar gritou.
Corremos em direção aos rochedos, só para ver a sombra do corpo
de Dipa, estraçalhado em meio às pedras, caído bem ao lado da única
esperança de realmente ajudar Petrova e descobrir o que estava acontecendo
na cidade.
E a culpa era toda minha.
Onde existe desejo, vai existir uma chama
Onde existe uma chama, alguém vai acabar queimado
Try – Pink
Petrova
Acordei assustada, com a sensação de estar despencando em um
abismo. Levei a mão ao peito, e então me lembrei do motivo pelo qual
quase não consegui dormir.
A noite chegou e Snake não voltou.
Estava preocupada desde o instante em que ele saiu. Sabia que
Snake raramente usava colete à prova de balas, mas sempre que o fazia era
porque o risco o deixava em alerta, e como, em nome de Deus, eu poderia
ficar calma se havia algo preocupando um dos homens mais perigosos que
eu conhecia?
Passei o dia inteiro tentando entender o motivo pelo qual Duncan
estava cercando os principais nomes do crime de Chicago e só consegui
chegar a uma conclusão: Busca por poder.
Ele estava planejando algo que provavelmente derrubaria Jack,
Stelvio e o tal do Vance. Os três melhores amigos do Snake, o que só me
deixou ainda mais aflita, e toda aquela perturbação piorou quando ele não
retornou.
Mordi os lábios e chutei as cobertas da cama, levantando-me em
seguida. Estava usando uma camiseta preta e uma calcinha da mesma cor,
então coloquei o short de tecido que tinha trazido comigo, e que parecia
ficar menor a cada dia, e decidi ir beber um pouco de água, ciente de que
aquela era uma desculpa esfarrapada para conferir se havia algum sinal de
que o Malvadão tinha chegado.
Saí do quarto e imediatamente senti um cheiro estranho no ar.
Parecia algum tipo de cigarro, mas era diferente, mais forte, talvez. Torci os
lábios, imaginando que só havia uma pessoa capaz de fumar dentro daquela
casa.
Encarei a porta de madeira do quarto de Colin, que estava fechada,
assim como a do quarto de Snake. O que significava que ele não estava lá.
Continuei caminhando pelo corredor e não demorou muito até que notasse
de onde o cheiro estava vindo: do bar.
Aproximei-me do batente da porta e olhei lá dentro. A mesa de
sinuca cortava o cômodo em dois. Em um dos cantos havia uma espécie de
bar, com uma parede coberta de vários tipos de bebidas, e um balcão
comprido.
Engoli em seco quando vi Snake de costas, sem blusa, sentado em
uma das cadeiras altas que ficavam rente ao balcão. Os músculos expostos
pareciam me desafiar a quebrar o silêncio, deixando à vista o tapete de
tatuagens que aquele homem tinha pelo corpo. Havia uma caveira enorme
cobrindo suas costas, metade do braço esquerdo era tomado por escamas de
uma cobra que envolvia seu braço e entrava pelo peito afora, misturando-se
a outras tatuagens em seu peito. Seus cabelos estavam úmidos e
bagunçados, parecia ter acabado de sair do banho.
Ele virou um copo com um líquido âmbar, que eu poderia jurar que
era uísque, sem se dar conta de que eu estava ali, observando cada um dos
seus movimentos com um fascínio que me deixou irritada. Ele encarou o
copo quase vazio e ergueu a outra mão, tragando devagar um charuto que
deixou um rastro grosso de fumaça no ar.
Ele era uma visão estarrecedora de poder e perigo.
— Snake? — chamei baixo, já entrando no bar, e ele virou o rosto
em minha direção, mas não chegou a me encarar nos olhos. — O que
você... Ai, meu Deus! — Só então me dei conta de que havia um corte
enorme em seu ombro. Corri até ele sem pensar duas vezes. — Você...
minha nossa, o que aconteceu? — Prendi o ar, vendo o machucado de
perto.
Ele girou o corpo na cadeira e só então ergueu os olhos, que
pareciam perdidos, irritados, e ao mesmo tempo tristes.
— Snake... — chamei, mas ele continuou me olhando em silêncio.
Havia uma caixa de primeiros socorros bem ao seu lado, uma que pelo visto
ele tinha trocado pela garrafa de uísque. — Cedric, RESPONDA! O que
houve? — rugi, e vi seus olhos ficarem maiores e mais azuis, como o mar à
beira da manhã.
— Nunca me chamou assim antes... — ele sussurrou, e abandonou o
charuto sobre um cinzeiro sem desviar os olhos dos meus. Sua voz lenta me
chamou atenção, estava tão bêbado que seus olhos pareciam perdidos.
— Você não estava respondendo.
Sempre optei pelo codinome do Snake, era mais impessoal, distante
e profissional, mas vê-lo machucado e abatido daquela forma me deixou
nervosa e preocupada.
— Quem fez isso com você? Foi o Jack? Vocês brigaram? Me diga!
Se ele tiver sido o responsável por isso eu acabo com a vida cibernética
daquele... nerd aspirante a mafioso.
Snake deu uma risada alta, verdadeira, que pareceu estremecer o ar
ao meu redor.
— Que eu me lembre, você é tão dona de um par de óculos quanto
ele. — Ele arrastou a voz, apoiando-se na bancada, subitamente tonto. —
Seria uma guerra intelectual irritante, mas com certeza você ganharia. Fica
muito sexy de óculos, Jack não teria nem chance de raciocinar direito. —
Ele estreitou os olhos subitamente. — Melhor não deixar que ele a veja de
óculos. Não... é melhor evitar os olhos de qualquer homem com ou sem
eles. Não entendo o motivo pelo qual você tem que ser tão... — Ele
balançou a mão em frente ao meu rosto. — Infernalmente bonita. Que
droga! — Ele bufou, e virou mais um shot de uísque. Meu rosto esquentou,
e mordi os lábios, tentando conter um sorriso.
— Estou começando a ficar preocupada com o quanto você bebeu.
Isso é um elogio, Malvadão?
— Para queeee tantas perguntas, Raposa? Você é cheia delas... —
Ele apontou para o meu rosto, ou pelo menos foi o que tentou fazer, já que
estava uns cinco centímetros para a direita, apontando para o ar.
— Minha nossa, por que bebeu tanto assim? — praguejei, tentando
decifrar o que ele dizia, e alcancei o kit de primeiros socorros.
— Eu faço... — ele devaneou, e segurou a maleta de primeiros
socorros.
— Com a sua capacidade mental reduzida pelo álcool creio que vai
amputar o braço antes de conseguir fazer o curativo. — Empurrei sua mão
para longe da maleta.
— Se não esterilizar esse ferimento, vai infeccionar.
— Joga um pouco de uísque e tá tudo resolvido. — Ele tentou pegar
a garrafa, mas o impedi.
— Fica quieto ou juro por Deus que vou pegar um taco de sinuca e
bater na sua cabeça até te apagar — xinguei, irritada, tomada pela agonia de
ver aquele machucado aberto em seu ombro.
— Você fica tão gostosa quando está brava. — Ele tocou a beirada
da minha blusa.
— Ah, que ótimo! O uísque corroeu seu cérebro. Eu te avisei que
isso poderia acontecer. — Bati na mão dele, e o idiota riu, enquanto eu dava
tudo de mim para ignorar o formigamento que subiu pela base do meu
pescoço com aquela frase. — Então foi seu amigo quem literalmente te
esfaqueou pelas costas?
— Não — disse, sucinto, e alcançou a garrafa de uísque, que já
estava quase vazia.
— Nada disso, já disse! — Tomei a garrafa dele e a empurrei pela
bancada, afastando-a de nós.
— Raposa irritante — ele resmungou, indignado por ter sido
privado de uma cirrose.
— Você parece um gambá de tão bêbado. Aposto que se ficar de pé
vai cair e nem duas de mim aguentariam segurar um homem do seu
tamanho. — Torci os lábios, já pegando os itens necessários para começar o
curativo.
— Se tivesse duas de você morando aqui eu não ia beber até
desmaiar, ia beber até morrer.
— Engraçadinho. — Revirei os olhos, e peguei algumas gazes,
embebi em antisséptico e já estava quase começando a limpar o ferimento
quando ele voltou a falar, arrastando as palavras.
— Foi o Dipa Pietro — disse baixo.
— O quê? — Arregalei os olhos, e ele rodou mais a cadeira,
fazendo-me ficar entre suas pernas.
— Acharam o desgraçado hoje e eu fui atrás dele. — Tentei prestar
atenção em cada uma das palavras que ele arrastava. Minhas pernas
começaram a tremer.
— Ele... te atacou e fugiu? — Respirei fundo, e olhei para o corte,
enquanto meus olhos ardiam com uma súbita vontade de chorar.
Dipa tinha machucado Snake!, constatei.
Puxei o ar com força, mas por algum motivo ele não chegava aos
pulmões. Era como sufocar em terra firme. Sabia que Dipa era
completamente maluco, talvez fosse um perseguidor incansável como o
irmão, Pierre, e agora Snake também seria um alvo.
— Não deveria ter ido atrás dele, Snake. Agora aquele maldito não
vai parar. Nunca! Meu Deus, sinto muito, sinto muitíssimo que ele tenha te
machucado assim. — Olhei para o ferimento, sentindo o nó em minha
garganta ficar cada vez mais apertado.
— Não... Petrova, pare. — Ele segurou meus braços com firmeza.
Os olhos distantes pareciam lutar para encontrar um pouco de sobriedade e
disse: — Não quero que se sinta aflita por causa daquele filho da puta.
Dipa está morto — avisou, subitamente, e abri a boca, em choque.
— O quê? Você o matou? — Minha voz surgiu trêmula.
— A culpa foi minha. Eu... — Ele ergueu os olhos, que estavam
frios, melancólicos, e novamente perdidos. — Acabei perdendo a cabeça
quando o vi. — Seus olhos desceram pelo meu rosto até chegar ao pescoço,
que ainda estava marcado. Ele ergueu os dedos e resvalou o polegar na base
do hematoma. — Queria tanto que ele pagasse por ter tocado em você que
me esqueci do foco principal; mantê-lo sob custódia. — Soltei o ar devagar,
minha cabeça estava rodando. A situação e o toque suave dos dedos de
Snake não ajudavam em nada. — Ele acabou dando um jeito de se afastar
de mim e foi em direção ao precipício. Não pensei que um assassino de
aluguel tinha tendências suicidas, mas…
— Ele se jogou do penhasco?
Ele meneou um aceno, e piscou devagar.
— Não pensou duas vezes. — Passou a mão pelos cabelos úmidos e
os bagunçou, assumindo uma postura desleixada e ainda mais linda.
— Ele morreu mesmo? — eu quis confirmar, como se estivesse
vivendo um sonho estranho e distante.
— Sinto muito, Petrova. Sinto tanto que mal consigo pensar direito,
e eu odeio essa porra. Odeio como me sinto incapaz. — Ele abaixou a
cabeça e comprimiu os olhos com as pontas dos dedos, baixando a guarda
bem diante de mim.
— Não foi culpa sua — eu disse, aflita por vê-lo se incriminar
daquele jeito.
— Como não? Eu atrapalhei a única chance de termos um
informante nas mãos porque eu queria me vingar daquele maldito,
desgraçado…
— Você sobreviveu a um encontro com um assassino de aluguel.
Um que quase me matou, Snake — sussurrei, e toquei seu ombro devagar.
— É tudo que importa para mim. Conseguiremos as informações de outro
jeito e... por mais horrível que eu me sinta admitindo isso, estou aliviada
por ele estar morto. — Ele estreitou os olhos, como se fizesse um esforço
imenso para prestar atenção ao que eu dizia. — Amanhã você poderá me
contar todos os detalhes que sua mente alcoolizada pode não estar se
lembrando, mas agora... vou começar o curativo. Fique parado, por favor —
pedi, e ele magicamente me obedeceu, enquanto encarava um ponto fixo no
chão. — Estou aliviada que não foi você quem o matou.
— Não se engane, Raposinha... — Ele voltou a enrolar os dedos na
beirada da minha blusa, brincando despretensiosamente com o tecido. — Só
me faltou oportunidade. Precisava que o desgraçado continuasse respirando
até tirar tudo dele. Depois disso…
— Você não tem jeito, né? — bradei, e torci os lábios. — Eu não ia
levar cigarros para você na cadeia, tá ouvindo? — bufei. Snake abriu um
sorriso lento e subiu os olhos pelo meu corpo, que estava perigosamente
perto do seu. Inclinei-me e comecei a limpar o ferimento. — Não acredito
que ele te machucou — disse chateada.
Meus olhos varreram os braços e as costas de Snake, cobertas de
tatuagens até a base do pescoço, subindo por cada um dos músculos rijos e
marcados. Ele era uma obra de arte, atraente, poderoso e até mesmo o
machucado parecia ter encontrado o seu lugar no quadro pitoresco que o
corpo de Snake formava.
Prendi o ar, observando a caveira que cobria suas costas. Os olhos
escuros desenhados na pele clara pareciam me encarar.
— Não precisa fazer isso — Snake disse, com a voz arrastada, e
tocou na minha mão, tentando afastá-la, e só então notei que estava
congelada em cima dele, encarando as tatuagens como se estivesse
hipnotizada.
— É o mínimo que posso fazer depois da sua caveira levar uma
facada por minha causa. Q-quer dizer, depois de você levar uma facada. —
Um sorriso de lado tomou seu rosto felino, e engoli em seco. — Só... me
deixe terminar isso.
Foquei no curativo, tentando ignorar o pulsar insistente que parecia
prestes a fazer meu coração explodir dentro do peito. Mal podia acreditar
que ele tinha mesmo encontrado Dipa, assim como prometeu que faria.
Certa alegria eufórica fez um tremor percorrer meus dedos.
— Obrigada, Snake — falei, quando terminei o curativo. — Por me
acolher na sua casa e por enfrentar tantos... problemas para me proteger.
Não sei o que seria de mim se esbarrasse em Dipa novamente. Então...
muito obrigada.
— Só havia um jeito dele conseguir tocar em você de novo… — ele
soltou o ar — … se eu estivesse morto, e posso garantir que pretendo ficar
bem vivo, pelo menos por mais alguns anos — ele disse devagar e baixo.
— O que quer dizer com pelo menos por mais alguns anos?
— Eu sou uma carta marcada, Petrova. Qualquer dia eu vou ver a
morte de perto, e talvez eu vá abraçá-la. É o destino de homens como eu. —
Ele ergueu os olhos, muito azuis e sinceros, para mim, e um medo absurdo
começou a tomar cada uma das minhas células. De que inferno ele estava
falando? — Sei desde quando tinha a idade do seu filho que já havia um
destino reservado para mim, mas você? Não. Você é meu oposto mais belo.
Não veio de onde eu vim, não entregou sua alma para isso... como eu. —
Ele abriu os braços. — Você é pura, justa, inocente. — Ele ergueu o dorso
da mão cheia de símbolos e tocou meu rosto devagar. — Vai ter uma vida
muito longa, uma vida que eu torço para que seja tão linda quanto você...
tão preciosa quanto seu coração, e não me importo de matar qualquer um
que quiser atrapalhar esse futuro.
— Você está errado. — Minha voz surgiu trêmula e certo pavor me
corroeu ao notar o quanto estava assustada com a possibilidade de ele estar
certo. — Me recuso a aceitar que isso seja verdade.
— Porque é uma mulher insuportavelmente teimosa. — Ele sorriu.
— Eu sou o vilão, Raposinha. Nasci para caçar outros como eu. Essa
estrada só leva a um destino.
Havia uma certeza profunda em seu olhar. Uma marca, mais
permanente que as tatuagens no seu corpo, e que parecia lhe causar tanta
dor que me vi prendendo a respiração, desejando ser capaz de alcançar o
que quer que fosse aquilo que estava vendo nos seus olhos e arrancá-lo de
lá.
— Você sempre foi o meu herói, seu idiota — eu disse, com a voz
instável, sentindo certa fraqueza se apossar de cada parte do meu corpo.
Estava torcendo para que ele não se lembrasse daquilo no outro dia,
mas não podia ficar calada diante de tanta maluquice infundada.
— Desde que te conheci, tudo o que fez foi me proteger e azucrinar
minha vida no caminho, mas não era tão ruim assim, sabe? Eu me divertia
enquanto o provocava e posso garantir que você não é nenhum Lord
Voldemort. Está mais para o Severo... — devaneei, lembrando da minha
série de filmes favorita: Harry Potter.
— Pode traduzir? Estava em ‘nerd’ e eu não falo esse idioma.
Dei risada.
— Só quis dizer que nem todo mundo te compreende. Talvez nem
mesmo você. Mas garanto que não, você não é o vilão. Eu já conheci uma
boa cota de homens maus, tenho uma longa base científica para comprovar
minha tese.
— Esqueça isso, sim? — Ele acariciou meu rosto devagar. — Não é
nada que mereça sua preocupação.
— Snake...
— Pode dizer de novo? — pediu, e enlaçou minha mão na sua de
repente.
— O quê? — Arfei com o toque repentino, mas tentei manter a
postura, ainda que todo meu corpo gritasse que sim, eu diria qualquer coisa
que ele pedisse.
— Meu nome.
Ele passou a mão pela minha cintura, e me puxou em sua direção,
até que eu estivesse colada ao seu corpo seminu. Engoli em seco, sentindo
as ondulações dos músculos rígidos do seu corpo friccionados contra meus
seios.
— Você usou algum tipo de droga? — soprei, confusa, e abri mais
os olhos, sentindo um calor forte e impulsivo subir pelas minhas pernas até
parar em meu ventre. Minha respiração oscilou quando ele se inclinou e
roçou os lábios pelo decote da blusa, subindo o tecido devagar, só o
bastante para deslizar a mão pela base da minha barriga.
Estremeci, e fechei os olhos, apreciando a rigidez dos seus dedos
tocando minha pele, da sua respiração entrecortada tocando a carne dos
meus seios. Ele ergueu o rosto e eu abri os olhos a tempo de vê-lo me
encarar com um sorriso lento e safado estampado no rosto marcante.
— A única droga em minha vida é você, Raposa, e quanto mais eu
digo que não estou viciado, mais vontade eu tenho de usá-la. — O safado
subiu a mão por debaixo da minha blusa e tombou um pouco a cabeça de
lado, observando minha reação enquanto dedilhava a lateral do meu seio
livre de sutiã. — Agora diga... quero que fale meu nome.
Estremeci, presa na sensação de que estava bem pertinho de um
abismo.
Ele era o abismo e eu queria me jogar, sim.
— Cedrrrric — repeti, tão nervosa que acabei arranhando os erres.
Ele deu uma risada fraca e abriu um sorriso de lado.
— Porra, Petrova… com essa voz gostosa fica difícil — soprou
baixo, em uma intensidade típica dele, que parecia um imã prestes a me
arrastar para dentro do olho de um furacão.
Ele enfiou a mão na minha nuca e me puxou para um beijo forte,
duro, intenso, com gosto de uísque e cigarro, e nunca imaginei que aquela
mistura poderia ser tão deliciosa.
Ofeguei baixinho, confusa, e subitamente entregue ao desastre que
ele era. Seus dedos, que agora resvalavam devagar a lateral do meu seio,
pareciam capazes de controlar meus pensamentos e um gemido vergonhoso
dançou em meus lábios quando ele beliscou um dos mamilos por baixo da
blusa. Todo meu corpo estremeceu nos braços dele e por um instante fui
arremessada em uma lembrança, dois meses atrás. As imagens de como era
tê-lo dentro de mim começaram a me afogar. Apoiei-me nele, com as
pernas trêmulas e louca por mais.
Ele mordeu minha boca e voltou a me penetrar com a língua,
provocando-me com o piercing.
Minha nossa, aquilo não podia continuar!
Tinha que me lembrar do que aconteceu da última vez, precisava
saber o motivo pelo qual eu estava mentindo para ele desde que cheguei à
sua casa. Mas como me afastar daqueles braços fortes que me mantinham
cativa, como se eu pertencesse a ele?
— O-o que pensa que está fazendo? — Ofeguei, perdida, resistindo
ao desejo que parecia me engolir.
— Cometendo mais um erro.
Ele mordeu a curva do meu rosto, mas nem o arrepio que se
espalhou pela minha pele fez diminuir a pontada que senti no peito ao ouvir
aquelas palavras.
— É isso que sempre serei para você? Um erro? — Quando me dei
conta já tinha falado, e seu semblante se manteve inalteravelmente sedutor
quando respondeu.
— Sim.
— Escuta só, quem quis me beijar foi você — retruquei, aborrecida.
— Eu nem mesmo tinha pensado nisso.
— Ousa tentar mentir para mim? — Ele escorregou os lábios pelos
malares do meu rosto e mordiscou o lóbulo da minha orelha devagar.
Como o maldito conseguia ser uma máquina da verdade mesmo
bêbado?
— P-posso muito bem resistir aos seus encantos, e aproveito para
ressaltar que não são muitos. — Tentei me afastar, mas suas mãos se
mantiveram firmes ao redor da minha cintura.
— Você é meu erro, Raposinha. Sempre vai ser. O único que eu não
poderia cometer, mas não consigo abandonar — falou bem pertinho do meu
ouvido, e comprimi as pernas, sentindo meu ventre se contrair de desejo. —
E eu sou o pecado que você queria evitar, mas não consegue.
— Você é um babaca, arrogante, mal-humorado e...
— E você gosta pra caralho!
— Gosto! — Arregalei os olhos quando percebi o que tinha dito, e
senti seu sorriso se abrindo bem rente à pele do meu pescoço. — Que
merda... — soprei, e fechei os olhos com a sensação deliciosa de estar
sendo tocada por algo proibido.
— Eu te disse que não pode mentir para mim. Você quer isso tanto
quanto eu.
— E o que você quer?
— Te foder — ele disse, o semblante assumindo um tom misterioso,
profundo e atraente. Ele enfiou o nariz na curva do meu pescoço e puxou o
ar com calma. — Quero ouvir você gemendo de novo, enquanto eu marco
cada parte do seu corpo delicado. Quero vê-la me amaldiçoar enquanto te
chupo. Quero castigá-la de um jeito que afetaria sua inocência. — Ele me
puxou para seu colo e subiu a mão por minha panturrilha, pressionando os
dedos com força cadenciada até chegar à beirada do short. Passei um braço
pelo seu pescoço e fechei os olhos quando ele empurrou o tecido do short
para o lado e tocou o centro do meu corpo com a ponta do dedo. — Sua
boceta não mente pra mim. Você está molhada, minha gostosa. — Ele
sorriu, deslizando o dedo devagar pelas camadas da minha intimidade,
brincando como se eu não estivesse prestes a explodir.
Minha gostosa...
Como duas palavras tinham o poder de me deixar bamba de tanto
desejo?
— Ela é uma traidora, se quer saber — balbuciei, com a respiração
entrecortada. — E você é um... boca suja incurável.
Mordi os lábios, na tentativa de conter um gemido quando ele
beliscou meu clitóris e o girou. A dor e o prazer pareciam ter se tornado
parte da receita de um bolo, e agora tudo o que eu queria era me entregar
àquela sensação latente e deliciosa.
— Amo o quanto você odeia ficar excitada por mim.
Ele estava certo. Eu odiava me sentir daquele jeito; tão entregue,
louca de desejo, como se cada centímetro do meu corpo implorasse para ser
tocado por ele. Eu detestava estremecer a menção do beijo daquele homem,
porque ele me fazia querer mais. E eu sabia que não podia. Snake nunca
seria meu, como eu desejava secretamente pertencer a ele.
Ele continuou me provocando, e não demorou um instante até que
aqueles pensamentos desaparecessem e só restasse uma névoa de prazer que
ameaçava me afogar. Meu rosto esquentou tanto que temia entrar em
ebulição a qualquer instante.
— Ah! — gemi, baixinho, sentindo seus dedos me abrindo devagar
enquanto sua língua descia por meu pescoço, passando pelo vale entre os
seios bem devagar.
Então ele parou, segurou meu seio com uma mão e aproximou o
lábio da aréola. Estremeci, antecipando o contato, já pulsando de desejo
contra seus dedos. Afundei a mão nos seus cabelos quando ele fechou os
dentes ao redor do mamilo.
— Annnnnnn! Cedric… — choraminguei. Ele comprimiu com um
pouco mais de força, batendo a língua em movimentos lentos, enquanto
brincava com os dedos, entrando e saindo de dentro de mim, penetrando-me
devagar.
Senti um tremor delicioso, quente, eufórico, transpassar cada
centímetro do meu corpo. Snake me tomou em um beijo profundo.
Chupando, mordendo, sugando…
Comecei a rebolar em cima da ereção rija embaixo de mim e ele
rosnou algo que não entendi.
— O que disse?
— Vou te comer — falou, simples, e firmou minhas pernas,
erguendo-me da cadeira presa em sua cintura. Ele me beijou com uma
vontade forte e intensa, e caminhou comigo em seus braços até me colocar
sobre a mesa de sinuca.
De repente, seu rosto ficou um pouco mais lívido e ele se apoiou na
mesa de sinuca, segurando as beiradas ao lado de onde eu estava sentada.
— Você… está bem? — eu quis saber, já levando a mão a sua testa,
que estava fria.
— Depende. Qual de vocês duas quer saber? — Ele apontou para
dois lugares distintos, e percebi que a bebida subiu de uma vez quando ele
ficou de pé. — Eu já disse: duas Petrovas é demais para qualquer um, eu
vou abandonar a casa. Criem um mundo de raposas e…
Comecei a gargalhar, e ele me encarou, confuso, o que só me fez rir
ainda mais.
— Qual é a graça, palicinha… — prosseguiu.
— Espero que não esteja me xingando em outra língua. — Já que
ele, assim como seus irmãos, falava em torno de quatro idiomas.
Desci da mesa de sinuca com as pernas bambas, mas apoiando
Snake que parecia prestes a cair.
— Acho melhor te levar para o quarto antes que você caia. —
Respirei fundo, na tentativa de me acalmar e conseguir ao menos raciocinar
depois do que tinha acontecido ali.
Ele me beijou. Ele me tocou!
E eu estava perplexa com o desejo que sentia para irmos mais além.
Talvez tenha sido um aviso. Com certeza era melhor assim.
Foi o que tentei dizer a mim mesma enquanto cambaleava com ele
pela casa.
Entrei no quarto de Snake e o levei até a cama. O homem tombou
sobre o colchão e, para minha surpresa, me puxou junto com ele,
envolvendo-me em um abraço de urso que quase me sufocou.
— O que está fazendo, seu doido?
Ele passou a mão pela minha cintura, abraçando-me de conchinha.
— Não quero que vá embora — sussurrou rente ao meu ouvido, a
voz ainda mais arrastada do que antes.
Fechei os olhos, tomada pela sensação deliciosa que era estar nos
braços dele. Como se a força daqueles músculos fosse capaz de me proteger
do mundo lá fora.
— Promete? — pediu baixinho.
— O que quer que eu prometa?
— Todas elas se vão. Sempre vão, e eu não quero que você vá.
— Quem foi embora, Cedric? — Ele não respondeu, e me apertou
um pouco mais entre os braços, espalmando a mão em minha barriga.
O toque me deixou apavorada. Engoli em seco, e senti meus olhos
arderem. Meu Deus, do que ele estava falando?
A cada dia que passava eu tentava me concentrar em esquecê-lo.
Tentava não pensar na possibilidade de estar grávida, ao menos não até sair
da casa do homem que eu sabia que preferia sair no soco com a morte a ter
um filho, mas quanto mais eu tentava, menos conseguia, e ficava mais
difícil quando ele dizia aquelas coisas estranhas, sem sentido, mas com
tanto sentimento que ficava difícil ignorar.
Esperei mais alguns minutos e deslizei pela cama até conseguir me
livrar do seu abraço apertado. Encarei o homem coberto por tatuagens,
pequenas cicatrizes, e agora um curativo, com os olhos quase transbordando
de lágrimas.
Estava ficando cada vez mais difícil não chorar.
Será que eu passei dos limites?
All The Things She Said – T.A.T.U
Snake
Não quero que vá embora!, o pensamento me invadiu com tudo.
Todas elas vão. Sempre vão. E eu não quero que você vá.
Mas que porra! Porra desgracenta!
O que diabos tinha naquela bebida?
Estava me perguntando a mesma coisa há mais de uma hora,
congelado com a mão na cara como se tivesse visto uma assombração,
enquanto encarava as cortinas escuras do meu quarto.
Ainda estava puto pelo que tinha acontecido com Dipa, e sabia que
Petrova merecia uma explicação completa, mas como infernos eu ia encará-
la depois do surto da noite anterior?
Uma das coisas das quais sempre me orgulhei era de não sofrer de
coma alcoólico. Eu podia beber um barril de uísque que se sobrevivesse,
com toda certeza, me lembraria de cada segundo da noite anterior, ainda
que fossem lembranças meio nubladas, mas naquele momento eu desejei
por tudo que era mais sagrado sofrer de alguma amnésia temporária. No
entanto, para meu tormento, a memória estava lá, límpida como água.
Recordei com precisão o momento em que a vi entrar no meu bar,
com um shortinho minúsculo, que realçava a bunda redonda e gostosa, de
quando enfiei meus dedos dentro daquela boceta apertadinha, e quente para
caralho, dos malditos gemidos, que pareciam entrar fundo em meu
subconsciente, até a hora em que aparentemente meu cérebro deu curto-
circuito e acabei falando um monte de asneira.
Tentei assimilar o que tinha acontecido por mais uma hora inteira, e
quanto mais pensava, mais calor eu sentia. Como se meu corpo tivesse sido
arremessado em um caldeirão dos infernos.
— Que droga! — Não tinha muitas opções, senão encarar Petrova e
tudo o que tinha acontecido na noite anterior.
Tomei um banho rápido, e coloquei uma bermuda jeans rasgada
preta e uma camiseta muito larga do meu time de beisebol, o Chicago Cubs.
Ia passar o dia trabalhando em casa, então só baguncei os cabelos com as
mãos e reuni toda a porra de coragem que sobrou da noite anterior para sair
do quarto.
Passei pelo corredor sem encontrar ninguém pelo caminho, mas
bastou chegar à cozinha para que a minha paz acabasse de vez.
Petrova estava recostada na bancada de granito, distraída com uma
xícara de café nas mãos. Parecia perdida nos próprios pensamentos. Os
cílios compridos estavam escondidos atrás do par de óculos, que tinham a
capacidade de deixá-la ainda mais linda, como se a imagem de Petrova se
completasse com ele, e me lembrei, ainda que contra a minha vontade, de
que ela era a visão mais exuberante que eu já tinha colocado os olhos, com
os cabelos cor de fogo presos em um coque alto e bagunçado, o narizinho
empinado, e o corpo que eu sabia ser cheio de curvas escondido embaixo de
um moletom velho que parecia ideal para fazer um assalto.
Ah, e tinha também o maldito short preto da noite anterior... que
parecia menor a cada segundo, sendo engolido pelas curvas da bunda
redonda e deliciosa.
Engoli em seco com a lembrança de deslizar minha mão para dentro
dele e pressionei os olhos com as pontas dos dedos, desesperado para
desaparecer com aquele pensamento.
Precisava voltar à realidade e corrigir o erro que a noite anterior
tinha se tornado.
— Petrova... — chamei baixo.
— AAAAAHH! — Ela se assustou, e a xícara com café rodou em
suas mãos, respingando para tudo que é lado.
A alcancei em duas passadas e segurei o objeto. Ela me encarou
com aqueles olhos grandes e verdes. Tão perto que sua respiração
entrecortada tocou meu rosto. A boca em forma de coração se abriu em um
O perfeito, delicioso, e me assustei com a súbita vontade de beijá-la que
pareceu entrar fundo em meu subconsciente. Soltei a xícara e praticamente
voei para o outro lado da cozinha.
— Você quase me matou do coração — reclamou, pontuando as
palavras devagar, e levou a mão ao peito.
— Sinto muito, não foi minha intenção. Essa é uma especialidade do
meu irmão caçula — expliquei, ciente do quanto Fantasma era
insuportavelmente silencioso ao caminhar e vivia dando sustos em toda a
família.
O que vez ou outra quase causava sua morte, principalmente quando
ele assustava Jasmin sem querer. Minha cunhada era... temperamental.
Talvez por isso nós dois brigávamos com frequência. Éramos igualmente
descontrolados. O que poderia explicar o breve tremor que eu estava
sentindo nos dedos, ou era só a vontade de tocá-la que estava quase me
sufocando.
— Tome, vai ajudar com a ressaca. — Ela serviu uma xícara de café
e deslizou em minha direção por cima da bancada. — Eu tenho que...
trabalhar, mas antes gostaria de saber... — Prendi a respiração sem saber o
que viria depois. — O que houve com Dipa? — ela quis saber sem me
encarar.
Certa confusão permeou minha mente. Pensei que ela fosse falar
algo da noite anterior. Queria saber o que ela estava pensando, o que estava
sentindo depois do que aconteceu, mas não fazia nem ideia de por onde
começar, e Petrova parecia disposta a ignorar o assunto tanto quanto eu.
Expliquei tudo que havia acontecido, evitando apenas a parte em
que eu quebrei o filho da puta na porrada. Ela ouviu com demasiada
atenção, e quase podia escutar as engrenagens girando em seu cérebro
superdesenvolvido. Petrova me encarou e empinou o nariz depois de um
tempo, deixando mais aparente as pequenas sardas que ficavam espalhadas
graciosamente pela sua face. Encarei as pintinhas com uma vontade
assustadora de tocar cada uma delas com a ponta dos dedos.
Caralho dos infernos!
— E foi isso. Ele acabou se jogando. — Praguejei mentalmente e
desviei o olhar rápido, apavorado.
O que, inferno, estava acontecendo comigo?
— Faz sentido. Dipa e Pierre são uma parceria. No entanto, Pierre é
a cabeça. Dipa faria qualquer coisa para proteger o irmão mais velho. —
Ela soltou o ar, e torceu os lábios.
— Sinto muito por ter perdido aquele desgraçado. Sei que já disse
isso antes, mas não consigo me perdoar. Espero que você possa.
— Snake... — ela disse devagar, e empurrou os óculos redondos
para encaixá-los melhor no rosto.
Parecia uma boneca delicada e mais uma vez me perguntei como
alguém teria coragem de tentar machucá-la. Só a ideia já me deixava louco.
— Não há palavras que eu possa usar para descrever o quão grata
sou por tudo o que fez por mim. E olha que sou praticamente um dicionário
ambulante.
— É mesmo. — Dei risada, e ela fez o mesmo. Engoli em seco ao
ver as covinhas marcando as laterais do seu sorriso e o quanto me senti
calmo apenas de olhar para elas.
— Não precisamos dele. Vou trabalhar nisso hoje. Acho que posso
rastrear os sinais que cercavam a boate do Jack e quem sabe invadir o
celular de algum infiltrado.
— Pode fazer isso?
— Só há um jeito de saber. Vou me esforçar para descobrir.
— Certo. Me diga se precisar de qualquer coisa — pedi, e ela
meneou um aceno, fugindo de mim na primeira oportunidade que
encontrou.
Minha garota esperta…
Sacudi a cabeça, cada vez mais em choque e confuso com meus
próprios pensamentos, que pareciam ter adquirido vida própria.
Passei os dedos pelos olhos, atônito. Que porra era aquela agora?
Meu cérebro aparentemente estava funcionando bem e me mantinha ciente
o tempo todo de que não podia me aproximar de Petrova, mas meu coração
com toda certeza estava com defeito e não parava de bater descompassado
com a simples presença da mulher.
Saí da cozinha irritado, disposto a me livrar daquela sensação
estranha, seja ela qual fosse.
Passei longas horas trancado no meu escritório, tentando focar no
trabalho e ocupar a minha mente com a resolução dos novos contratos que a
Holder Sincerity recebia. O pote de dinheiro que tinha pegado com Jack
jazia na ponta da minha mesa e parecia me encarar com uma pontada de
acusação. Então, depois de finalizar uma leva de assinaturas e fazer
algumas ligações, peguei o pote e decidi ir até o quarto da raposinha mirim.
A porta estava entreaberta, e parei ao lado do batente, observando a
cena pitoresca que era Colin deitado de bruços com um exemplar de algum
livro de estudos na mão, enquanto Passarinho estava deitado bem ao lado
dele, de cabeça para baixo, para variar.
O cão me viu e deu um latido alto e agudo.
— X-9 — acusei o monte de pelos.
— Bom dia, senhor Snake! — Colin se sentou em um átimo de
segundo e endireitou a postura.
— Eu... posso entrar? — quis saber, incomodado por invadir seu
espaço tão subitamente.
Ele abriu um sorriso no rosto salpicado de sardas e ajeitou a blusa
polo azul que combinava com seu jeitinho intelectual.
— Mas é claro, entre, por favor — pediu. — O que traz o senhor
aqui? Algum problema? Algo que eu possa ajudar? — O garoto parecia
ansioso para fazer qualquer coisa importante, então ergui o pote de dinheiro
e lhe entreguei.
— O que me trouxe até aqui é a teimosia da sua mãe. — Ele
encarou o pote com um vinco entre as sobrancelhas. — Tentei emprestar
meu cartão para que ela comprasse o que quer que precisassem, mas a
teimosa quase me fez engoli-lo.
— Mamãe jamais aceitaria. Já estamos incomodando demais,
senhor. — Ele soltou o ar, exasperado, como se carregasse parte do mundo
nas costas pequenas, e trinquei o maxilar.
Não gostava de me lembrar do quanto Colin era excepcionalmente
consciente dos problemas ao seu redor. Ele era a porra de uma criança,
deveria estar brincando por aí, rindo e se divertindo, mas em vez disso o
menino estava ali, preocupado em solucionar todos os contratempos que
surgiam ao seu redor.
— Sua mãe pode não aceitar, já você, por outro lado... — Apontei
para o pote cheio de notas de procedência inconclusiva. — Quero que aceite
isso como um adiantamento para o pote da regressão. — Eu mal podia
acreditar que estava mesmo dizendo aquilo.
Que nome ridículo, meu Deus!
— Bem, sendo assim, aceitarei, partindo da filosofia de Friedrich
Nietzsche, que diz que “Fazer grandes coisas é difícil; mas comandar
grandes coisas é ainda mais difícil.” — Ele meneou um aceno, como se eu
tivesse entendido.
— Traduza — pedi, e crispei os olhos para o minigênio.
— O que quero dizer, senhor, é que com certeza vou aceitar, já que
teve tanto trabalho para nos ajudar. — Ele encarou o pote. — Aqui tem
muito dinheiro! Acho que equivale a um ano de convivência com o senhor.
— O garoto abriu um sorriso enorme, e ergueu o pote no ar.
— Seis meses, no máximo. Sejamos sinceros. — Revirei os olhos.
— Talvez menos. — Ele gargalhou, e não consegui conter um
sorriso.
— Bem menos. — Dei risada, ciente de que precisava mudar aquilo
com urgência. Não era certo ficar falando palavrão na frente de uma
criança, por mais que fosse ela a invadir meu espaço.
— Mamãe talvez aceite o pote da regressão, mas o senhor tem que
estar preparado para o caso de ela resolver jogar isso na sua cabeça. — Ele
balançou o pote.
— Deixe que eu lido com ela — falei, como se ao menos
conseguisse encará-la por mais de um minuto sem desejar tocá-la de alguma
forma insana e completamente inapropriada. — Só faça sua parte como
portador do pote mais ridículo de toda a história, e a faça aceitar. Implore,
ou sei lá, se jogue no chão e esperneie. Não é isso que as crianças fazem?
— Mamãe estava certa… — ele gargalhou, e ergui as sobrancelhas,
confuso — … o senhor tem um conceito peculiar de como as crianças são.
Mas não se preocupe, senhor. Posso até mesmo encenar uma pirraça, se isso
ajudar a mamãe, e talvez ela se compadeça, afinal, como diria Simone de
Beauvoir: “O que é um adulto? Uma criança de idade.” — Ele sorriu,
empolgado, e desci os olhos para o livro abandonado no colchão.
— É dali que você tira esse monte de frase esquisita?
— Não, senhor, este é um livro sobre anatomia humana. Um resumo
muito breve, na verdade. Não deu para trazer nada muito grande, e este era
o livro mais fino que eu tinha, gostava de colecioná-los, sabe... — Ele
baixou os olhos para o papel, e a tristeza que estampou seu rosto causou um
incômodo latente e contínuo em meu peito.
— Você gosta tanto assim de livros?
— Muito, mas não só os de estudos. Meus favoritos são os que
contam histórias. Mamãe sempre me dava alguns de presente e eu
economizava na mesada para comprar mais. Estava montando uma pequena
biblioteca. Era muito legal vê-los lá, um ao lado do outro. — Ele suspirou,
com ar de saudade. — Sei que continuam no mesmo lugar e que um dia eu
voltarei para ler os que ainda faltavam, mas...
— Sente falta deles?
— Sim — admitiu —, mas enquanto não voltamos à nossa rotina,
estou me distraindo com este livro e aprendendo mais sobre o corpo
humano para conseguir entender como posso melhorar minha performance
na corrida. Eu... amo correr e ler, sabe. Então pensei em juntar os dois para
que um ajude o outro.
Era difícil olhar para Colin, tão pequeno, sustentando aquele ar de
sabedoria, usando palavras tão maduras, e não sentir uma admiração latente.
Ele era fascinante, mas eu morreria antes de admitir aquilo ao pequeno
gafanhoto.
— Você sabe o que é um mangá? — Ele piscou, e olhou para o alto,
como se buscasse a resposta em algum lugar do cérebro.
— Mangá é o nome dado às histórias em quadrinhos japonesas —
ele disse, pragmático, como um robô.
— Tá bom, mini Wikipédia, mas você já leu algum?
— Não, senhor. Nunca li uma revista em quadrinhos.
— Porr... — Tossi, interrompendo o palavrão no meio do caminho.
— Quer dizer, como infernos uma criança nunca leu uma revistinha?
Levante, precisamos corrigir esse erro lastimável.
Ele abriu um pouco mais os olhos, e saltou da cama, animado,
abandonando o pote da regressão, e Passarinho desceu da cama em um salto
meio desequilibrado.
— O senhor teria alguma revistinha? — ele quis saber, e sua
empolgação genuína me deixou animado.
— Vem comigo, vou te mostrar uma coisa. — Ele me seguiu até o
escritório. — Você fica bem aí. Não quero seus dentes na minha coleção. —
Apontei para o cão, que se sentou diante da porta do escritório e tombou a
cabeça de lado, como se tentasse entender o motivo pelo qual estava sendo
deixado de fora.
Entramos no escritório e parei diante da pequena divisória que
dividia o cômodo em dois e mantinha escondido de olhos curiosos uma das
minhas coleções quase que secretamente favoritas.
— Aqui atrás tem algo com o qual você poderá passar o tempo, mas
precisa ter cuidado e respeito, está ouvindo? São edições de colecionador.
— Estou lisonjeado pelo senhor confiá-las a mim, seja o que for. —
Ele uniu as mãos diante do corpo, parecendo um pequeno pastor prestes a
ministrar um culto. Podia ver a alegria cintilar em seus olhos verde-
escuros.
Torci os lábios, irritado com a inquietação súbita que me tomou com
a expectativa do que ele acharia da minha coleção.
— Estão aqui. Essa é a minha coleção de mangás do Naruto. —
Abri os braços, e entrei no pequeno espaço destinado à obra de arte que era
aquele anime.
— Uau! — Ele abriu a boca em um O perfeito, e rodopiou no
mesmo lugar assim que viu o que tinha por trás da divisória. — Que
incrível!! — exclamou, animado, e abriu um sorriso enorme. Demorei a me
dar conta de que fazia o mesmo.
— Já viu algum dos desenhos? — eu quis saber, curioso.
— Nunca, mas já ouvi falar. Tinha uns garotos na minha escola que
de vez em quando corriam com os braços para trás e falavam sobre esse
anime, deve haver algum sentido — ele disse, sério. — Não imaginei que o
senhor gostasse de mangás. É surpreendente, e peculiar. Essa coleção é
perfeita, tem até funkos. — Ele abriu mais os olhos verdes,
verdadeiramente fascinado com o pequeno Funko do Itachi, um dos meus
personagens favoritos, e aquilo me deixou elétrico.
Naruto era a única coisa mais próxima de algo nerd que eu me
permitia amar. Era fã do mangá e do anime desde antes de ser adotado, e
fiquei ainda mais fanático depois que ganhei uma nova família e me
identificava com vários personagens.
— Pode ler todos eles, se quiser.
— Eu quero! Com toda certeza, senhor. — Ele pulou no mesmo
lugar. — Terei muito cuidado.
— Acho bom manter a boca enorme daquele saco de pulgas lá fora
bem longe dessas páginas, caso não queira que ele vire uma coxinha
gigante.
Ele riu.
— Confie em mim, senhor, não há nada que eu preze mais do que o
bem-estar dos livros.
— Isso é preocupante. — Torci o nariz para a menor criatura que já
entrou no meu escritório. — Mas... se por acaso gostar, também tem o
anime. Tenho a coleção completa, tanto do Naruto quanto do Shippuden.
— Eles não são a mesma coisa?
— Não! — Abri a boca, perplexo. — Como é que sua mãe te
ensinou a porcaria do pote da regressão, mas não te mostrou o melhor
anime da história da humanidade? — Passei a mão pelos olhos, e ele deu
risada. — Não se preocupe. Teve a sorte de encontrar um cara como eu.
Vou te ensinar. — Ele manteve a atenção em cada palavra que eu dizia. —
Naruto é o início do mangá... enquanto o Shippuden é a continuação, que se
passa dois anos depois, dono de uma batalha épica…
Passei longos minutos devaneando sobre todas as lições de vida que
Colin encontraria naquelas páginas, e quando terminei o garoto parecia
ansioso para começar.
— Sinto que será uma aventura fascinante!
— Talvez você também queira correr com os braços para trás depois
de ler e assistir tudo, mas não recomendo. Se cair pode quebrar os dentes ou
cortar o rosto.
— O senhor já fez isso? Correu como os meninos da minha escola?
— Ele abriu mais os olhos, encantado com a possibilidade.
— De jeito nenhum, tá maluco? — menti, ciente de que jamais
contaria a ninguém o motivo pelo qual tinha uma cicatriz pequena e fina
bem embaixo do queixo.
— Não sei não. Acho que o senhor não me contaria se tivesse
corrido assim... — Ele estreitou os olhos, encarando-me como se fosse
capaz de ver a verdade estampada em meu rosto.
— Consegue imaginar um homem como eu fazendo uma tolice
dessas?
Ele torceu os lábios e pensou um pouco antes de responder.
— Não, senhor, mas não conseguia imaginá-lo sendo fã do Naruto
nem mesmo em duas vidas, e olha só isso... parece um santuário! — Ele
encarou as prateleiras com fascínio. — Deve ter dado um trabalhão juntar
todos os exemplares.
— Eu sonhava em colecioná-los desde quando tinha a sua idade e
comecei a ver o anime. — Era o único desenho que passava na TV do
orfanato, quis completar, mas me contive. Não queria contar a ele a história
triste e pesada que eu chamava de passado. —Então escute a voz da
experiência: Se não quiser terminar com um machucado enorme, é melhor
não tentar imitá-los, ou sua mãe vai me fazer engolir cada uma dessas
revistas.
Ele gargalhou, e o som leve e contagiante pareceu irradiar pelo
escritório sempre tão silencioso. Comprimi os lábios, sentindo certa calma
tomar meu peito ao perceber que ele estava feliz, como toda criança deveria
se sentir.
— Combinado, não farei nada que possa me machucar.
— Bom garoto!
— O senhor faria sucesso na minha escola. Muito mais do que eu —
ele disse, distraído, enquanto passava os dedos pelas capas dos mangás com
fascínio.
— Não gosta da sua escola?
— Eu amo. Só... não tenho muitos amigos lá.
Ergui as sobrancelhas, surpreso.
— Como assim, não tem amigos? Os nerds são sempre muito
unidos.
— Teoricamente, sim, mas...
— Mas o quê, garoto? — insisti, e apoiei meu braço em uma das
estantes. Agora que ele tinha começado, ia ter que terminar de contar.
— Os meninos da minha escola não gostam quando encontram
alguém mais inteligente do que eles, e ter os professores reforçando isso em
toda aula não me deixou muito popular.
— Ser o mais inteligente da escola não é nada vergonhoso. As
pessoas deviam pagar seu lanche para ter alguma ajuda nas provas — bufei,
irritado.
— Talvez seja o meu tamanho. Sou o menor da turma, e se me
permite dizer, ser grande faz diferença. Com certeza as crianças eram legais
com o senhor sendo tão... enorme desse jeito. Se não por medo, por querer
ser amigo do senhor. — Ele suspirou ruidosamente, e tive a breve sensação
de que algo estava comprimindo a minha garganta quando me dei conta de
que sim, ele estava certo.
Sempre fui muito popular por onde passava. Chamava atenção de
qualquer garota que quisesse e sempre fazia parte da turma que as pessoas
respeitavam, por medo principalmente.
— Deve haver algo que o faça se enturmar. É só ter um pouco mais
de confiança que certamente vai conseguir.
Colin continuou encarando as lombadas, os olhos enormes agora
estavam um pouco mais perdidos.
— Eu tentei me aproximar, mas não adiantou. Acredite quando digo
que eles não gostam de mim. Percebi na primeira vez que me prenderam no
armário do zelador.
— O quê? — rugi, alarmado, e ele virou rápido em minha direção.
Os olhos arregalados me diziam que Colin não pretendia contar aquilo. —
Eles já te bateram?
— Senhor, é melhor encerrarmos esta conversa aqui. Preciso
começar a colocar essa leitura primorosa em dia. — Ele pegou alguns
mangás, já prestes a fugir do escritório.
— Se não me contar, eu te deduro para sua mãe — ameacei, jogando
baixo. — Vou contar que alguém te prendeu no armário, e terei o maior
prazer de acompanhá-la quando ela for botar fogo nessa merda de escola.
— O senhor seria capaz de chantagear uma criança? — Ele abriu a
boca, surpreso.
— Você já sabe a resposta.
O filhotinho de raposa estreitou os olhos verdes e acusatórios em
minha direção.
— Certo — bufou, rendido —, mas o senhor tem que prometer que
não vai contar para minha mãe, e nem vai incentivá-la a atear fogo em canto
algum. — Meneei um aceno, confirmando, e ele soltou o ar, resignado. —
Meus colegas fazem parte da equipe de corrida, e até que são legais, mas
quase não conversamos, só corremos. Geralmente sou ignorado pela
maioria dos alunos, principalmente os do clube de teatro, dança e música —
explicou com calma. — Mas com os meninos do futebol é diferente. Eles
me pregam peças, às vezes.
— Peças?
— Sim. Nada que mereça seu olhar de pena, senhor, por favor. Sou
forte como a mamãe. — Ele empinou o narizinho cheio de sardas,
orgulhoso da própria convicção, como se fosse capaz de carregar o mundo
nas costas, quando na verdade seria facilmente levado por um vento mais
forte, de tão pequeno que era.
Ali eu percebi que, apesar da postura adulta e da mente avançada
demais para sua idade, havia uma criança desesperada para orgulhar a mãe,
mesmo que sofresse sozinho pelo caminho.
— O que eles faziam, pequeno Einstein? Seja mais específico.
— Bem... não me orgulho muito de contar que eles já me prenderam
em um dos boxes do banheiro e no armário do zelador uma vez, já que lá
não tinha câmeras. Também já roubaram meu lanche, colocaram um pouco
de terra dentro da minha mochila, enquanto eu não estava vendo... — Cada
palavra que ele dizia parecia mais uma navalha afiada passando por minha
pele.
Quando me dei conta, estava tremendo por dentro, tamanho ódio.
— As coisas ficam um pouco mais difíceis toda vez que ganho o
prêmio do ano como melhor aluno da escola. Mas fora essa época é fácil
lidar com eles e fingir que não existem.
— Quantos anos essas pestes têm? — questionei entredentes.
— Alguns têm 14, outros 16. Eu pulei alguns anos na escola,
então... — Ele deu de ombros, sem ter ideia do quanto eu estava prestes a
explodir de raiva e fúria.
— Por que nunca contou isso para sua mãe? Ela... eles... — Tentei
falar uma frase que não contivesse nenhum palavrão, mas estava tão puto
que não consegui dizer nada muito racional por um longo momento. — Que
merda, como ousam perseguir o filho de uma agente da CIA? Você tem que
contar a ela. Alguém tem que arrancar alguns dentes desses idiotas.
— Senhor Snake, minha mãe não pertence à máfia. Os dentes deles
estão seguros. — Arregalei os olhos, quando me dei conta do que tinha
falado, e o pior era que ele tinha mesmo entendido sobre o que eu estava
falando.
— Como você…
— Já vi alguns filmes escondidos. Nada pesado, classificação 14
anos, mas ouvi a menção de algo do tipo. Já que me mantém cativo por
chantagem, não vejo problema em falar.
— Você deveria ter contado a ela. Não tem que lidar com isso
sozinho. — Crispei os olhos para o pequeno.
— Mamãe é muito ocupada, senhor. Ela mal tem tempo para a
própria vida. Tudo isso só para garantir que eu tenha condições de estudar
no melhor colégio da nossa região. Ninguém faz ideia de que o trabalho
dela é manter todo mundo bem vivinho, ainda assim ela continua
carregando o mundo nas costas e nem mesmo posso ajudá-la. Então o
mínimo que devo fazer é suportar. — Deu de ombros, como se aquilo fosse
a coisa mais fácil do mundo. — Mamãe é uma pessoa gentil e muito
amorosa, mas tenho medo do que ela faria se descobrisse sobre isso. E se
ela socasse um deles? Poderia até mesmo perder o emprego. E eu, em
contrapartida, seria eternamente o fracote que ninguém tolera porque fala
esquisito. O que tem de errado com meu modo de falar? Este não é o nosso
idioma, afinal? — Ele ficou adoravelmente nervoso, e respirou fundo para
se acalmar.
Um garoto que carregava a mesma dor e o mesmo fardo da mãe, um
que por sinal parecia pesar demais para os ombros pequenos e infantis.
Senti um gosto amargo tomar meu paladar só de imaginar o que ele
passou e quão quebrado o coração da minha raposa ia ficar se ela soubesse
que o filho sofria bullying por ser a estrela da escola. Então cheguei a uma
conclusão simples e bastante eficaz:
— Quatorze anos é uma idade ótima para levar uma surra. Onde é
sua escola?
— Senhor Snake, não acho que essa seja uma boa ideia. — Ele
gargalhou, achando graça do meu estado de pânico raivoso.
Malditos adolescentes punheteiros do caralho, como ousaram
aterrorizar um menino como Colin?
Ele endireitou a postura.
— Como o senhor vê, tenho uma lista de motivos consideráveis para
não contar nada à minha mãe. Não quero que ela resolva os meus
problemas na escola. Eu dou conta. — Ele se virou para mim e estreitou os
olhos. — Contei tudo, agora o senhor, por favor, prometa que não contará a
ela.
— Já disse que não vou contar, tem minha palavra. Mas... me diga
uma coisa. Gosta de beisebol?
— Já vi os meninos da minha escola jogando e parece ser bem
divertido.
— Eles também são pestes perseguidoras? — eu quis saber, ansioso
por apertar o pescoço de qualquer um deles.
— Não, não! — Colin deu risada, balançando a cabeça. — Na
verdade, os garotos do beisebol fazem parte da turma dos caras legais e
socialmente bem-comportados. Não mexem com ninguém, e uma vez já até
me defenderam, mas eu não tinha tamanho o suficiente para entrar no time
e não havia espaço para treinar beisebol na minha antiga casa.
— Tem vontade de aprender?
— Sim, era incrível ver a animação deles quando tinha um jogo. As
meninas também gostavam bastante de ir vê-los jogar. — Dei risada.
Daquela idade e já pensando na atenção das meninas. Garoto esperto! —
Não era o mesmo quando eu ia correr, mas eu amo corrida mesmo assim.
— Posso ensiná-lo a jogar beisebol. — Quando me dei conta, já
tinha falado.
— Sério? — ele gritou, subitamente empolgado.
— Não se anime tanto. Não é como se fosse entrar para um time,
mas pode ser o primeiro passo. — Encarei um dos mangás em sua mão,
tentando ignorar a própria animação que comecei a sentir com a ideia. —
Aprender beisebol vai ajudar na sua formação, principalmente contra esses
valentões do caralh... — Arranhei a garganta, na tentativa de disfarçar o
palavrão.
— Que tipo de ajuda, senhor? — Ele piscou os olhos verde-folha-
seca e me encarou, em expectativa.
— Uma que o ajude a ficar em pé numa ventania, para começar. —
Colin gargalhou, achando graça de tudo, mas a verdade era que seus
músculos de pernilongo não ajudavam muito. — E, no fim das contas, se
tudo der errado, você dá uma surra neles com o taco de beisebol. Tenho
uma cunhada que é especialista nessa arte.
— Eu aceito, senhor, seria uma honra!
Passei o dia todo mergulhado em trabalho, na tentativa de esquecer
toda a conversa que tive com Colin, e a vontade absurda de ir até sua escola
e dar uma surra em cada um dos moleques que o perseguiu só parecia
aumentar. Por mais que eu tentasse me acalmar, minha mente só girava em
torno de cenas onde o garoto era atormentado. A raiva era tanta que parecia
apunhalar meu peito.
— Que porra! — praguejei, tentando focar nos contratos espalhados
pela mesa do meu escritório, mas com a sensação de que tinha contraído
algum vírus.
Sim... era isso!
Aqueles dois estavam me deixando doente. Meu coração batia tão
rápido que eu mal conseguia raciocinar, só escutar o tum-tum agitado que
parecia ressoar em meus ouvidos.
Caralho!
Eu sempre me orgulhei de ser dono de um autocontrole frio e
obstinado. Mas bastou ouvir uma história idiota de um garotinho esquisito
para que perdesse o controle da situação.
— Dá pra parar de espetáculo? — eu disse, como se meu coração
fosse capaz de ouvir e diminuir os batimentos acelerados, aflitos e
carregados de raiva.
A verdade era que eu estava indignado e possesso, imaginando o
que aqueles malditos fizeram Colin passar.
Porra, o menino só queria estudar, caralho!
Passei a mão pelo rosto, louco de vontade de poder pendurar cada
um daqueles valentões em uma viga na beirada de um prédio. Abri os olhos
quando me dei conta do que estava sentindo.
Desespero, raiva, impotência. Eu me sentia desorientado, apático, e
era tudo culpa daqueles dois. Petrova e sua miniatura magrelinha.
Eles me faziam mal, sim. Começava a me sentir doente diante da
possibilidade de ver um deles sofrendo.
O chão sob meus pés está aberto
Eu tenho me segurado com muita força
Story of my life – One Direction
Petrova
Passei o dia tentando focar no trabalho, o que de fato foi bem difícil
depois de passar a noite tentando esquecer o que tinha acontecido naquele
bar, e pior do que a lembrança era ter que continuar lutando contra a
vontade de que aquilo se repetisse.
Só podia estar ficando louca!
Pensei que fosse conseguir fingir que nada aconteceu entre nós, mas
aquela certeza desapareceu quando vi Snake naquela manhã e todo o meu
corpo reagiu à mera lembrança do seu toque.
O maldito conseguia me excitar apenas com aquele olhar de caçador
impiedoso.
— Que ódio — reclamei sozinha, e passei a mão pelo rosto. — Jade,
diminua a temperatura ambiente — pedi para a inteligência artificial que
controlava o ar-condicionado, com a esperança de que uma sala um pouco
mais fria me ajudasse a controlar o mal-estar que me atingiu subitamente e
estava me deixando mais fraca.
Uma batidinha ecoou pelo cômodo e abri a porta, encontrando Colin
parado ao lado de Passarinho.
— Olá, mamãe. Tem um minuto?
— Sim, querido…, mas o que... Colin, de onde veio isso? —
Estreitei os olhos para o pote cheio de dinheiro que meu filho estava
segurando.
— Precisamos fazer uma reunião de emergência, e este pote faz
parte dela. — Engoli em seco, já ciente de onde tinha vindo aquele
dinheiro. — O senhor Snake me fez um adiantamento do pote da regressão,
mamãe. Tome, pode comprar o que precisar.
Ele ergueu o pote, segurando-o firme com as mãozinhas pequenas, e
respirei fundo ao perceber o quanto ele desejava que eu aceitasse.
— Querrrido... — Me abaixei para ficar diante dele. — Não
podemos aceitar isso. Você sabe…
— Mas ele insistiu, mamãe. Quer nos ajudar de alguma forma.
Meu coração mole estremeceu com aquela informação, e ter a
certeza de que Snake estava fazendo por mim o que nunca fez por outra
pessoa me deixava eufórica e triste ao mesmo tempo. Sabia o quanto
custava para ele baixar a guarda, mas também tinha ciência de que tudo
aquilo era passageiro e eu não podia dever mais nada a ele, já que pretendia
nunca mais vê-lo na vida depois que tudo aquilo acabasse.
— Existe algo que precise comprar agora, querido? — perguntei
baixo, com um pulsar doloroso latejando em meu peito, e Colin pensou um
pouco.
— Não, na verdade, não estou precisando de nada. Só gostaria que a
senhora não tivesse que lavar nossas roupas dia sim, dia não. — Ele
abaixou o rosto, ainda segurando o pote. — Vejo o quanto está cansada.
Ergui os lábios em um sorriso melancólico. Colin estava
preocupado, assim como eu. Sempre fomos nós dois por toda a sua vida e
ele sempre teve a percepção dos sentimentos que eu tentava esconder. Doía
em meu peito saber que não conseguia esconder meus sentimentos do meu
filho. Ele sofria junto comigo, e daria tudo para que fosse diferente.
— Colin, meu anjo, não é trabalho algum lavar nossas roupas, mas
se o deixa mais tranquilo, eu aceitarei o pote da regressão para caso
tenhamos uma emergência, tudo bem?
Ele abriu um sorriso enorme e genuíno.
— Sim, mamãe. Então deve guardá-lo para uma emergência, certo?
— Certo, agora vem me dar um beijo.
Apertei meu filho por longos minutos, apreciando seu abraço
carinhoso, e voltei ao trabalho, agora encarando o pote cheio de notas com
uma vontade avassaladora de enfiar cada uma delas na garganta daquele
tatuado teimoso e ardiloso.
Snake sabia que eu não poderia negar um pedido de Colin e o usou
para me convencer. Bufei para o dinheiro, ciente de que não o usaria.
— Malvadão idiota... — Torci os lábios, confusa. — Por que insiste
em fazer até mesmo o que não pedi?
Como eu conseguiria esquecê-lo, se a cada dia ele me surpreendia
de alguma forma? Do jeito do Snake, claro. Que sempre envolvia algum
tipo de chantagem, ameaça e mais uma lista de delitos. Aquele homem era
capaz de tudo para conseguir alcançar seus objetivos, e eu, que sempre
prezei pela lei e a justiça, me sentia uma traidora da nação por estar tão
fascinada com o esforço que ele fazia para me ajudar.
Respirei fundo, e afastei o pote para longe, sentindo-me enjoada
novamente.
Bebi um gole de água devagar, tonta pela náusea, mas não podia
parar. Espalhei as páginas de rascunho pela mesa larga do quarto do pânico,
que tinha transformado em escritório, e amontoei mais alguns pedaços de
um bloco de notas por cima, tentando encaixar algumas peças do quebra-
cabeça que aquele pen drive tinha se tornado, enquanto ignorava o motivo
pelo qual talvez estivesse passando mal.
Como eu conseguiria lidar com um teste de gravidez positivo
enquanto estava na casa do homem que me engravidou sem a mínima
possibilidade de ele ficar sabendo?
Balancei a cabeça e joguei aqueles pensamentos para baixo do
tapete. Tinha que focar minha atenção no trabalho, se quisesse sair dali na
próxima semana, e ter coragem de encarar o resultado dos meus exames.
Estava em pânico, sim. Um medo que chegava a doer em meus
ossos, mas tinha que continuar, e por mais que quisesse negar, aquela era
uma das minhas especialidades: Continuar caminhando, mesmo que cada
passo fosse extremamente doloroso.
A noite caiu e eu permaneci ali, tentando manter o foco enquanto o
frio aumentava quase o mesmo tanto que a náusea.
Depois de um tempo, acabei descobrindo uma forma de rastrear o
código que foi usado na boate de Jack. Havia algum espião vigiando cada
um dos amigos de Snake, mas no meio de tantos traidores, para minha
sorte, também havia um espião da CIA do nosso lado.
Peguei meu celular, que estava criptografado para fornecer uma
localização na Antártica, caso fosse rastreado, o que era bem improvável, já
que também era especialista em camuflar os sinais de telefonia, tanto
quanto localizá-los, e tentei contato com o homem que poderia me ajudar
naquela situação.
Liguei, um pouco mais ansiosa que o normal, enquanto uma festa
acontecia no meu estômago, revirando tudo pelo caminho. Respirei
devagar, tentando ignorar a vontade de deitar que me abateu. Não podia
desistir, já que se tratava de um homem peculiar e extremamente perigoso,
além de dono de um arsenal de disfarces característicos de um psicopata,
mas era um dos poucos com quem eu poderia contar.
O telefone começou a tocar, e ele atendeu sem dizer uma única
palavra sequer, como protocolo.
— Sierra Eco Lima — repeti o código que havíamos combinado,
alguns meses antes, e esperei a resposta de Ethan Reacher, espião
consagrado da CIA e popularmente conhecido como Sombra.
— Sierra Delta Bravo — respondeu. — Onde você se enfiou, agente
Petrova?
Abri um sorriso e coloquei no viva-voz.
— Olá, Sombra. Como vai? Ainda se fantasiando de Padre?
— Você nunca vai esquecer isso?
— De modo algum! Está na lista de coisas que eu não acredito que
você fez — brinquei, e ouvi sua risada ecoar pelo telefone.
Ethan se tornou um grande e peculiar amigo dentro da CIA. Suas
missões eram recheadas de ação e sempre de alta periculosidade, então eu
raramente o via, já que estava sempre envolvido em alguma viagem, mas já
o ajudei a invadir alguns sistemas, o que acabou nos tornando mais
próximos, e ele foi o único a quem confiei a descoberta que fiz sobre o pen
drive do meu antigo chefe.
O homem era, acima de tudo, um agente de corpo e alma, e com
toda certeza escolheria a morte antes de trair a organização, o que
transformou Duncan em seu inimigo declarado, e estava disposto a ajudar
com o que fosse necessário para derrubá-lo.
Sombra estava em uma viagem quando tudo aconteceu, e mal sabia
em que ponto a investigação se encontrava.
— Onde esteve? — ele quis saber.
— Bem... é uma longa história. É que…
Empurrei uma pilha de papéis para o canto e ouvi o som da porta
eletrônica abrir atrás de mim. Olhei sobre o ombro quando Snake estava
passando por ela.
— Meu Deus, Petrova! Você vai acabar soterrada no meio desse
monte de papel. — Ele encarou a bagunça em minha mesa com os olhos
azuis arregalados.
— Shh! — pedi que ele fizesse silêncio, e Snake ergueu as
sobrancelhas grossas assim que notou que eu estava ao telefone.
— Petrova? — Sombra chamou.
— Não se preocupe. Estou segura — eu disse, e endireitei a postura.
— É bom ouvir sua voz. Por que não me ligou antes? Fiquei
preocupado…
— Quem é esse? — Snake ralhou, e eu dei um pulo no lugar quando
ele se aproximou em duas passadas.
Peguei o celular e tirei do viva-voz.
— O que está fazendo? — sussurrei, e o encarei, confusa, e ele
piscou devagar, como se só agora se desse conta de que estava praticamente
em cima de mim, prestes a pegar o celular da minha mão.
Ele balançou a cabeça, e deu um passo para trás, recostando o corpo
ao lado do meu, acompanhando de perto cada palavra que eu dizia.
— Quem disse isso? — Sombra quis saber.
— É um amigo. Estou escondida na casa dele. — Snake bufou ao
meu lado, e revirou os olhos. Não parecia feliz com minha resposta.
Respirei fundo, tentando ficar calma com ele tão perto. Sua presença
era tão forte que pareceu preencher cada centímetro de espaço naquela sala
e a náusea que sentia aumentou com o pulsar insistente do meu coração,
que agora com toda certeza estava batendo bem nos meus tímpanos.
— Por que não me ligou antes? Quando nos falamos pela última vez
você ainda estava na agência. Depois disso, tudo que deixou para trás foi
um rastro de “procurada”. Temi por sua vida. — Podia sentir a preocupação
na voz de Sombra, e me senti aliviada e feliz por poder contar com um
amigo justo e leal como ele.
— Tive que fugir, é uma história bem longa. Aquele idiota do
Duncan colocou os homens dele atrás de mim, mas agora estou segura. —
Ergui os olhos e vi que Snake encarava o meu celular como se ele estivesse
prestes a explodir bem diante dos seus olhos profundos e... por Deus, tão
lindos.
Soltei o ar devagar, sem saber como me portar diante dele.
— Eu não quero atrapalhar, na verdade, estou ligando para pedir um
favor.
— O que quiser. É só dizer. Me coloquei à sua disposição, lembra?
Sorri.
— Certo. Você ainda consegue acesso a um roteador de sinal
criptografado?
Conversei com Sombra por um breve momento e expliquei tudo que
tinha descoberto. Ele estava voltando de mais uma das suas viagens e
entraria em contato ainda naquela semana para me entregar o roteador.
— Obrigada.
— Tem certeza de que está segura?
— Sim, estou. — Virei-me para Snake, e ele estava me fuzilando
com o olhar. — Eu acho.
— Não me convenceu.
— Não se preocupe, é sério. Nos vemos depois, e obrigada mais
uma vez, está literalmente ajudando a salvar a minha vida.
Mal desliguei o telefone e o Malvadão rugiu:
— Quem era esse cara, Petrova?
Ele cruzou os braços, deixando os músculos rígidos mais expostos
na camiseta, que parecia feita para exibir o amontoado de tatuagens em sua
pele, e me encarou com a costumeira fixação de quando estava procurando
por alguma mentira.
— É um amigo da CIA — falei baixo, sentindo-me fraca demais até
para falar.
Temia que começasse a vomitar a qualquer momento, e ter Snake ali
para assistir à cena era a última coisa que eu queria na vida.
— Você não pode mesmo estar cogitando a ideia de confiar em
alguém daquele antro de traidores, não é? — reclamou, nervoso, e sua
postura ereta parecia mais perigosa. — E o que quis dizer com “Nos vemos
depois?”. Que história é essa?
— Eu…
Rodei na cadeira e encarei o notebook, fugindo dos seus olhos
enquanto tentava resistir à súbita vontade de vomitar, que me atingiu com
tudo, mas aquele ali era o Snake... o homem mais insistente da face da terra.
Snake
— Nem ouse tentar fugir de mim. — Segurei os braços da cadeira e
girei o objeto até ter a raposa cativa entre meus braços, que seguravam
ambos os lados do objeto com força.
Estava puto. Ouvir que algum desgraçado sentia falta dela me
deixou possesso de ódio. Demorei a me dar conta do quanto aquilo me
incomodou, e até consegui fingir calma enquanto ele dizia sabe-se lá o que
para ela, mas não mantive o personagem por muito tempo. Não conseguiria,
nem se quisesse. Meu sangue estava fervendo de ódio, até ver que ela
estava pálida e trêmula.
— Petrova, o que foi? — questionei, preocupado, e ela puxou o
lenço, revelando o pescoço marcado, que, por sinal, me deixava mais
irritado a cada dia, e começou a respirar mais rápido, o que me deixou
apavorado.
Ela me encarou. Os olhos verdes estavam tomados de... pânico?
— Snake, saia daqui!
— O que está sentindo? Qual o problema, por favor... me diga algo.
O que devo fazer? — falei rápido, segurando-a firme entre meus braços.
No entanto, mal tive tempo de raciocinar e entender o que estava
acontecendo e a mulher me empurrou para o lado, cambaleou pelo cômodo
e se jogou dentro do pequeno banheiro do lugar. Ela caiu de joelhos em
frente ao vaso e colocou tudo para fora.
— Petrova! — Corri até ela, e segurei a onda de cabelos laranjas
que iam para todos os lados enquanto ela vomitava.
A pele pálida estava gelada e demorou alguns segundos para que ela
conseguisse respirar novamente.
Ou era eu quem estava prendendo a respiração?
Não fazia ideia, não sabia o que fazer, então envolvi sua testa com a
palma da mão e fiquei ali, amparando-a, e já calculando quanto tempo um
dos médicos que trabalhavam para Jack demoraria para chegar à minha
mansão.
Tentei pegar o celular, mas a raposa foi mais rápida e agarrou minha
mão. Parecia já saber o que eu estava prestes a fazer.
— Não preciso de um médico. — Petrova tombou o corpo no chão
do banheiro e apoiou as costas na parede, tão descorada quanto um pedaço
de mármore.
— Está com um pé na cova bem diante de mim e não precisa de um
médico? Para de ser tão obstinada, inferno de raposa teimosa.
— Obstinada... está melhorando seu vocabulário. — Ela tentou me
distrair, mas a voz fraca e os lábios sem cor eram como uma solda quente
em minha pele, impossível de ignorar.
— Estou ficando nerd por osmose. Preciso me livrar logo de vocês.
— Peguei uma toalha pequena e tentei entregar a ela. Seus olhos estavam
marejados e a preocupação estampada neles pareceu ter enfiado uma faca
bem no meio do meu peito.
— Não quero que veja isso, Snake. — E se inclinou, vomitando
mais uma vez, e repeti o que tinha feito. Segurei seus cabelos e a apoiei,
mesmo contra sua vontade. — Que merda. Tem como ficar mais
humilhante? Acho que vou morrer de vergonha neste exato instante — ela
disse, um pouco mais aliviada.
— Mas que puta que pariu é essa agora? Não há motivos para ter
vergonha. Tem ideia da quantidade de vezes que eu já testemunhei essa
cena com as bestas que eu chamo de amigos? — insisti, disfarçando a
preocupação latente em meu peito, e quase soltei o ar de alívio quando a vi
abrir um sorriso fraco, mas ainda estava trêmula.
— É revigorante a capacidade que você tem de adaptar palavrões
em todas as suas frases. — Ela pegou a toalha da minha mão, ainda
relutante, e desviou os olhos dos meus. — Obrigada.
— Será que vai me fazer amarrá-la na cama para que veja um
médico? Geralmente gosto de algemas para outras coisas, mas não vou
negar o prazer que vai ser te deixar presa à cabeceira enquanto é
devidamente atendida.
O rosto delicado, que antes estava pálido, adquiriu um tom
vermelho-vivo, radiante, que quase me fez rir.
— Idiota! — Ela me deu um cutucão.
— Já está me batendo. Acho que se sente melhor. — Acariciei seu
rosto, incapaz de não tocá-la de alguma forma. — Quando foi a última vez
que comeu algo?
— No almoço — ela respondeu, fraca, e respirei fundo para não
xingar mais uma torrente de palavrões.
— Já são oito da noite, Petrova — vociferei, bravo. — Você está
trabalhando por muitas horas no dia, precisa se alimentar ou vai desmaiar e
me deixar sozinho com o mini Einstein lá em cima.
Ela riu, e respirou fundo. Só então me dei conta de que estava
segurando sua mão.
Pensei em me livrar do enlace, mas o medo de que, ao me mover,
ela voltasse a vomitar me deixou paralisado no mesmo lugar.
— Acho que acabei exagerando — falou com um pesar profundo,
como se estivesse sendo encarcerada em uma prisão nos Alpes Suíços.
— Vou levá-la para o quarto. Segure-se em mim.
— Não precisa, eu já estou... SNAKE! — ela berrou, quando eu a
ergui no colo. Seu corpo pequeno e delicado se encaixava perfeitamente nos
meus braços. — Eu consigo andar!
— Você pesa o mesmo que uma pomba, até se parece com uma, se
quer saber — brinquei. — Não é trabalho nenhum. — Ela deu um soquinho
fraco em meu peito e suspirou, relaxando o corpo em meus braços.
— Não pareço uma pomba, seu bobo — sussurrou.
— Parece, sim, olha o tamanho desse bico. — Encarei o formato
delicado da sua boca, enquanto ela se esforçava para não rir. — Também
não podia arriscar que você vomitasse no meu piso caro, então só fica
quieta e aproveite a viagem. Sua raposinha está tomando banho, vou levá-la
ao banheiro do meu quarto para que lave o rosto.
Saí com Petrova pelo cômodo e a sombra de um sorriso ergueu o
canto dos meus lábios quando notei o pote da regressão sobre sua mesa.
— Nem pense que vou aceitar aquele dinheiro. Só o deixei ali para
que Colin não se preocupasse tanto. Não vou usá-lo! — Ela torceu o nariz.
— Você é uma birrenta insistente! — praguejei pelo caminho,
secretamente apreciando sua respiração quente e continua resvalando na
pele do meu pescoço.
— E grata — disse. — Obrigada pela ajuda, mas estou falando
sério. Já temos tudo o que precisamos.
— Sabe que posso ser mais teimoso do que você?
— Ah, isso é um fato! — Ela riu.
— Fico satisfeito que saiba. — Era só questão de tempo até que eu a
convencesse de alguma forma.
Levei Petrova até o banheiro, que ficava na suíte do meu quarto, e a
sentei no pequeno deque da hidromassagem. A raposa percorreu com os
olhos todo o ambiente, que era muito espaçoso, em tons cinza, claros e
escuros, e ergueu as sobrancelhas.
— Eu sei que você é grande, mas precisava mesmo de uma hidro
desse tamanho? Cabe umas cinco pessoas aqui dentro. A não ser que... —
Ela torceu os lábios e abri a boca para falar, mas ela ergueu a mão antes que
eu pudesse dizer qualquer coisa. — Não, deixa pra lá, não quero saber com
quantas mulheres você já entrou aqui.
Abaixei-me diante dela e encarei os olhos verdes tão expressivos.
Toquei o lenço, que estava pendurado em seu pescoço, e o retirei com
cuidado.
— Você é a única mulher que já dormiu na minha casa. Este é meu
lugar sagrado, não trago minhas transas para cá — contei, e percebi que ela
desviou os olhos dos meus.
O assunto parecia incomodá-la tanto quanto a mim. Ainda tentava
apagar a lembrança da última noite, mas ignorá-la e fingir que nada
aconteceu não estava funcionando.
— Aqui só entra quem eu confio, ou no máximo uma maluca
fugindo de algum assassino de aluguel. — Ela revirou os olhos, e me
coloquei de pé, afastando-me dela. — Agora, lave o rosto, vai se sentir
melhor — ordenei, e ela estreitou os olhos, fuzilando-me.
Quase dei risada, porque sabia o quanto Petrova odiava que eu
mandasse nela, o que só me deixava ainda mais animado a fazê-lo.
— Seu pedido é uma ordem, dono do mundo e de todas as coisas —
rosnou de volta, e fiquei verdadeiramente feliz, porque se ela estava
implicando comigo significava que se sentia melhor. — Mas pode me dar
um minuto sozinha? Acho que já esgotei a capacidade de intimidade
humilhante que sou capaz de ter diante de você.
— Posso te esperar no meu quarto com uma condição. — Apontei
para ela.
— Qual é?
— Se voltar a se sentir mal, quero que me chame imediatamente.
Não vou ser eu quem vai dizer ao ratatouille ruivo do quarto ao lado que a
mãe dele morreu no meu banheiro luxuoso.
— Só... sai daqui! — Ela riu, e consegui respirar melhor ao ver a cor
voltar ao seu rosto.
Voltei para o quarto, depois de entregar a ela uma escova de dentes
extra e um antisséptico para que ela se livrasse do gosto ruim na boca, uma
técnica que me ajudou por muitos anos a disfarçar a ressaca quando
precisava trabalhar com meu pai.
— Me sinto nova em folha. — Ela saiu do banheiro alguns minutos
depois, esforçando-se para fingir que estava bem, mas o rosto estava pálido
novamente e a entregava, tanto quanto os olhos profundos.
— Melhorou rápido. — Fingi acreditar.
— Olhar para sua cara me ajudou muito. Rapidinho minha pressão
subiu de raiva e voltei ao normal.
— Engraçadinha! — Levantei-me, encarando a marca roxa em seu
pescoço. — Sente-se. — Apontei para a minha cama, e ela arregalou os
olhos, como se eu tivesse empurrado a garota para o corredor da morte.
— Acho que quem precisa de um médico é você. Quer que eu me
sente na sua cama?
— Ela deixou de ser imaculada por causa daquele pardal de quatro
patas lá fora, você é o menor dos problemas, senta logo — vociferei, e a
agarrei pelos ombros, empurrando-a devagar até que se sentasse.
Ela me fitou, tímida, e disse o que me pareceu a primeira coisa que
passou por sua mente agitada.
— Acho que posso rastrear os sinais que estão cercando seus
amigos, e quem sabe, roubar as informações de todos eles. Isso ajudaria a
criar um cavalo de tróia até Duncan e obter informações importantes para
terminar de abrir o pen drive…
— E onde aquele sujeito que você estava conversando e toda a porra
de preocupação desnecessária dele se encaixam? — a cortei, irritado só de
me lembrar do que o maldito disse.
— Ele só estava preocupado porque não teve notícias minhas desde
que comecei a fugir.
— Ele não tem uma vida para cuidar? Algum terrorista para matar?
Por que está se preocupando com a sua? Você não precisa da proteção dele,
já tem a mim. — Ela ergueu as sobrancelhas e me encarou em um misto de
surpresa e confusão. — O que foi? Você está sob minha proteção e eu não
seria um dos nomes mais respeitados do mercado se permitisse que meus
protegidos se expusessem ao perigo.
— Sombra é um espião muito conceituado, que quer justiça tanto
quanto eu. E é um bom amigo, Snake. Ele só estava preocupado, e eu
preciso mesmo de ajuda.
— Por que ligou para ele? Sabe que eu deixei tudo que tenho à sua
disposição — eu disse, odiando a chateação latente em meu peito. — Basta
me dizer o que precisa e eu trago até você. Não tem que procurar esse
idiota.
— Se você não fosse um poço de frieza e safadeza, eu poderia jurar
que está com ciúmes. — Ela torceu os lábios, e me encarou com um
semblante curioso e engraçado.
— Não sei o que esse sentimento significa, mas sei como fazê-la
continuar respirando. Deveria me agradecer — vociferei.
— Sei que pode me ajudar, mas só um agente da CIA conseguiria o
que preciso agora. Sombra vai me entregar um roteador capaz de encontrar
o sinal que quero captar na boate de Jack. Por isso vou me encontrar com
ele em alguns dias.
— Que merda! — praguejei, e fiquei de pé, ciente de que demoraria
um século até que eu conseguisse algo do tipo para ela.
— Por que está tão irritado por causa de uma ligação?
— Porque a senhorita parece incapaz de ver a maldade nas pessoas.
E se esse maluco armar pra você? Como pode confiar cegamente em um
espião, porra? Eu... — Parei e apontei o dedo para ela. — Vou com você e
não quero ouvir nenhuma contestação que seja. Quero ver esse idiota vir
com esse papinho de preocupação para cima de mim.
— Snake, não precisa agir como um comandante da SWAT
descontrolado. — Ela abriu um pequeno sorriso no rosto, que ficou
levemente mais coradinho. — O que preciso dizer para tranquilizá-lo?
— Nada. Você não sabe se cuidar sozinha — acusei.
— Sei, sim! — Ela abriu a boca, chocada e irritada. — Quase
quebrei seu nariz quando nos conhecemos, ou já se esqueceu?
— Você está prestes a desmaiar porque passou o dia todo sem
comer. Contra fatos não há argumentos, você precisa de mim! — Quase
gritei, indignado pelo desespero pungente que senti ao cogitar que ela de
fato não precisasse de mim. — Considere seu expediente de trabalho
encerrado por hoje, o que inclui ligações para prováveis assassinos em
série.
— Ele não é um assassino em série.
Ela deu uma gargalhada.
— Você não pode garantir isso — reclamei, encarando os olhos
puxadinhos e muito verdes.
Ela era tão inocente e... preciosa. Jamais veria o mal, mesmo se
estivesse diante dela, como eu estava.
Fui até o móvel que ficava ao lado da minha cama e peguei a
pomada que Stelvio me deu mais cedo.
— O que é isso?
— Uma pomada para ajudar a desaparecer com esse hematoma.
Abri o frasco e passei um pouco da ponta no dedo. Ajoelhei diante
dela, ficando na altura da linha dos seus olhos claros e astutos, que naquele
momento me encaravam arregalados.
— P-posso fazer isso sozinha.
— Você pode explodir o mundo sozinha, Petrova. Não tenho
dúvidas disso, mas não faz mal receber ajuda. Fica. Quieta — mandei,
quando ela fez menção de pegar o tubo da minha mão.
— Tá. T-tudo bem — gaguejou, e parei por um momento,
observando seus traços, secretamente adorando o quanto ela parecia
inquieta perto de mim, como se eu fosse capaz de mexer com suas
estruturas.
Respirei fundo, ciente de que devia desculpas pela loucura que
aconteceu entre nós. Não havia como fugir daquela conversa.
— Petrova, sobre ontem à noite... — Ai caralho, não sabia por onde
começar a me desculpar, já que raramente fazia aquilo. — Bem... eu queria
me desculpar por ter passado dos limites. Não sei o que deu em mim. Sinto
muito por ter... que merda, não sei o que dizer.
Ela soltou o ar, parecia tão aflita quanto eu.
— Você sente muito mesmo? — ela questionou em um sussurro, e
ficou ainda mais corada, como se tivesse dito algo indecente, e foi a minha
vez de sorrir.
— Na verdade, não, por isso não sei o que dizer. Como posso falar
que me arrependo de te fazer gozar na minha mão? Foi uma delícia. —
Imediatamente me senti aliviado por dizer a verdade.
— Snake! — Ela arregalou os olhos verdes e levou a mão à boca. —
Eu não acredito que disse isso, seu degenerado sem-vergonha. — A
raposinha tapou o rosto com ambas as mãos, escondendo-se. Uma das
coisas que mais gostava nela era o quanto se tornava transparente diante de
mim, e mesmo que não devesse, segurei suas mãos e as afastei do seu
rosto.
A mulher me encarou com um misto de vergonha, apreensão e
desejo. Respirei devagar, tentando controlar a vontade de derrubá-la
naquela cama e repetir tudo o que tinha feito na noite anterior, daquela vez
sem quase desmaiar em um coma alcoólico no processo.
— O que quer que eu diga? — soprei, e subi os dedos para seu
rosto, acariciando os malares delicados. — Eu não presto, Raposinha, você
sabe.
— Infelizmente, eu sei. — A sombra de um sorriso quase tomou sua
boca delicada, mas ela comprimiu os lábios e me encarou. — Isso significa
que você se lembrrra de tudo o que aconteceu? — disse, arranhando o
sotaque de tão nervosa.
Nunca me senti um covarde, a não ser por aquele breve momento
em que desviei os olhos e menti:
— Só de estar com você no bar.
— Não se lembra de quando o levei para o quarto? — Balancei a
cabeça em negativa, evitando seus olhos profundos como se fosse ela a
especialista comportamental e não eu. — Não conheço ninguém que se
lembre de tudo depois de uma garrafa de uísque, faz parte do processo
cortar uma parte importante da noite. Fiz algo que não deveria?
— Não, não fez — gaguejou.
Sim, Pequena, eu fiz…, quis dizer, mas como poderia explicar a
vontade de continuar a repetir aquele mesmo erro?
Ergui os olhos para encará-la, e Petrova parecia ainda mais corada,
as bochechas vermelhinhas destacavam as poucas sardas espalhadas por ali.
Engoli em seco ao ver o quanto ela estava abalada, enquanto eu ignorava
veementemente as batidas fortes em meu peito.
Abri a pomada e espalhei um pouco nos dedos.
— Vou aplicar a pomada e depois farei uma sopa para você. Quero
que tome e descanse.
— Posso cozinhar algo, não precisa...
— Não gosta de sopas? Faz bem quando colocamos tudo para fora.
Ela mordiscou os lábios grossos e concordou.
— Na verdade, eu adoro sopa.
— Então está decidido.
— Não sabia que cozinhava.
— E não cozinho, mas com toda certeza tem algum tutorial no
YouTube. — Ela gargalhou. — Não ria, você será meu objeto de
experimento. Agora fique parada, e calada — pedi, com um sorriso
descarado, tentando distraí-la da lembrança do que eu tinha dito na noite
anterior, e Petrova revirou os olhos, esquecendo o assunto.
“Não quero que você vá.”
Só um louco diria aquilo!
Um louco bem idiota e ensandecido.
Afastei aqueles pensamentos e ergui o dedo com a pomada. Toquei
sua pele clara, marcada por hematomas, bem devagar, temendo machucá-la
de alguma forma.
Petrova ficou paradinha, algo que muito raramente acontecia e temi
que nem mesmo estivesse respirando enquanto eu deslizava os dedos por
toda a extensão da pele ferida.
Subitamente, a lembrança da minha mão se fechando ao redor do
seu pescoço delicado me veio à mente, tanto quanto do prazer intenso que
senti ao me imaginar pressionando ali até vê-la gozando, quase sem ar. Meu
pau pulsou de desejo. Talvez ela tivesse medo depois do que passou, mas eu
poderia ensiná-la a não temer, poderia possuí-la de um jeito que Petrova
jamais esqueceria.
— Ah, que porra! — xinguei, de repente, e me coloquei de pé num
solavanco, revoltado por não conseguir controlar meus pensamentos perto
dela.
— O que foi? — Ela arregalou os olhos.
— Nada! Só... acabei de passar a pomada — falei, em pânico, com o
desejo forte que parecia queimar minhas veias.
— Está tão ruim assim? — Ela se levantou e foi até o espelho lateral
do meu quarto, que ia de ponta a ponta, e ficava de frente para a cama, e se
inclinou para ver melhor, deixando a bunda redonda e empinada na minha
linha de visão.
Bufei, irado.
— Não tem nada de novo aqui, a não ser essa marca idiota — ela
sussurrou, e ergueu os dedos, parando pouco antes de tocá-la.
Uma sombra do que achei que fosse tristeza tomou seus olhos e todo
o desejo que estava me sufocando começou a ceder para algo inquietante.
Um sentimento desconhecido, inexplicável.
Não era raiva por ela ter sido marcada, aquele sentimento eu já
sentia a cada segundo do dia, e conhecia muito bem. Pelo contrário, era
algo que doía mais do que a raiva, que me deixava aflito, inconformado.
Soltei o ar com força, e me aproximei dela.
— Essa pomada vai ajudar. Logo vai desaparecer completamente —
disse, parando as suas costas.
— Obrigada, Snake. Não sei onde conseguiu…
— Com o Stelvio.
— O das lutas clandestinas? — Ela torceu o nariz, quando
concordei. — Bem, o fato é que ele entende de hematomas. — Deu de
ombros. — Obrigada.
— Sua lista de favores só aumenta.
— Não faço ideia de como vou pagar tudo isso. Terei que penhorar
minha alma.
— Pagam bem por almas nerds. — Ela gargalhou, e o som
reverberante pareceu invadir meu peito e estremecer o que quer que tivesse
lá dentro.
Nos encaramos pelo reflexo do espelho, os olhos dela tão profundos
quanto um lago, arredios, teimosos. Pareciam cheios de histórias marcantes,
algumas das quais gostaria de morrer sem saber, porque não havia a mínima
possibilidade de eu permitir que Petrova deixasse algum rastro para trás.
Uma hora ela ia embora e levaria a corja de problemas que trouxe
junto consigo, e eu não precisava ter mais detalhes sobre ela para esquecer,
ainda assim, não consegui desviar os olhos dos seus. A sensação era
estranha, como se meu fôlego se esvaísse a cada segundo que a encarava,
sentia-me sem ar.
Me dei conta, talvez tarde demais, de que não era uma boa ideia ter
uma mulher como aquela perto de mim e de uma cama ao mesmo tempo.
Transar com Petrova era um erro que eu não estava disposto a
cometer... de novo. Mas antes que eu abrisse a boca para expulsá-la dali,
uma voz robótica conhecida ecoou pelo corredor do lado de fora.
“Seja bem-vinda, Estrela!”
— Ai, meu Deus, que barulho foi esse? — Petrova arregalou os
olhos, e imediatamente foi em direção à porta. Segurei seu pulso e a puxei
para trás.
— Espera — pedi, e abri a porta do quarto, encarando o corredor no
instante em que todo o combo de irmãos e cunhadas que eu tinha passavam
pela porta.
— Puta. Que. Pariu! — sussurrei, enquanto tentava pensar em como
me livrar deles antes que vissem Petrova, seu filho, e a porra do cachorro.
— Snake? — A voz de Estrela ressoou pelo corredor e engoli em
seco com a sensação de ter recebido um murro na cara quando Colin saiu
do banheiro de toalha, bem na frente da pequena plateia que estava
invadindo minha casa.
— Minha nossa! — Em um piscar de olhos, o menino correu em
direção ao quarto, sem se dar conta dos olhares petrificados sobre ele.
— Que ótimo, um combo de desgraceira — vociferei, e voltei para o
quarto. Tranquei a porta quando ouvi os passos rápidos ecoarem pelo
corredor. Precisava ganhar alguns segundos.
Petrova se virou para o banheiro, prestes a se trancar lá dentro, mas
a segurei antes que se afastasse de mim.
— Já era, eles viram o Colin. Não dá mais para se esconder.
— Snake, nem pense em fugir! De quem é aquela criança?
Snakeeeeee! — Jasmin, a minha cunhada mais maluca, começou a bater na
porta.
— O que a sua família está fazendo aqui? — Petrova me encarava
com os olhos arregalados, enquanto os protestos do lado de fora ficavam
mais intensos. — Não era só você que tinha acesso àquela porcaria de porta
de última geração?
— Não vou mover o pé daqui enquanto não me explicar de onde
tirou aquele menino, Snake, e juro por Deus que é melhor não o ter
sequestrado — Jasmin ameaçou, sem parar de bater na porta. Era uma
especialista em atazanar a vida alheia.
— Caralho, me esqueci completamente... por mil infernos! —
Passei as mãos pelos cabelos, puto da vida.
Era dia de encontrar meus irmãos, igualmente acompanhados das
minhas cunhadas, para assistirmos ao jogo do Chicago Cubs, o time de
beisebol pelo qual torcíamos. Um compromisso que aparentemente tinha
ido parar no quinto dos infernos da minha memória.
— Estrela costuma assistir aos jogos do Cubs comigo toda semana,
e na terça anterior eu me atrasei e ela acabou ficando tempo demais com
minha sobrinha, esperando do lado de fora — expliquei para Petrova,
enquanto procurava seu lenço. — Então, a primeira coisa que fiz foi dar
acesso à entrada principal da casa para ela. O que era para ser temporário,
mas…
— Se esqueceu de revogar o acesso e agora eles estão todos aqui...
do lado de fora da porta do seu quarto, enquanto nós dois estamos aqui
dentro — rosnou baixo, e apontou de mim para ela. — Como infernos vai
explicar isso?
— Vou dar um jeito. — Agarrei seus ombros, pincei o lenço que
estava sobre a cama com uma das mãos e comecei a enrolá-lo ao redor do
seu pescoço. — Fica quieta. Se algum dos meus irmãos sonhar que eu fiz
isso com você, serei um homem morto. — Apertei o lenço ao redor do
pescoço de Petrova sem perceber e quase a enforquei.
— Tá querendo me matar? — Ela me deu uma cotovelada no
estômago para se livrar do aperto.
— Ai! Sinto muito... Você está bem? Quer dizer…
— Não vou vomitar de novo, Snake, apesar de sentir que estou
prestes a desmaiar.
— Talvez um desmaio nos salve. Sim, é isso, se joga no chão
quando eu der o sinal e...
— Você não pode estar falando sério! — Ela estreitou os olhos e
abriu a boca, em choque com a ideia, mas acabou mordendo o lábio na
tentativa de não rir.
— Vou me livrar deles, não se preocupe. De qualquer forma, você
precisa mesmo comer e descansar.
Olhei sobre o ombro e fiz a única coisa que podia.
Abri a porta, e me deparei com o caos... puro e simples, mais uma
vez causado pela presença daquela raposa na minha vida.
Você está em meus pensamentos
Sempre, sempre
Always – Gavin James
Petrova
Pânico!
Era a única coisa que conseguia pensar enquanto encarava a família
de Snake, que por sinal eu conhecia muito bem. Tinha analisado por horas a
fio a ficha de cada um.
Cedric Holder, meu tormento pessoal, era o irmão mais velho, e com
toda certeza o mais problemático. Depois dele, vinha o irmão do meio,
Christopher Holder, igualmente doido, conhecido como Lobo por causa dos
olhos bicolores que, naquele momento, pareciam prestes a saltar do seu
rosto enquanto ele me encarava segurando um fardo de latas de cerveja.
Depois, vinha o irmão mais novo, Zion Holder, o Fantasma, famoso
por seus pés leves e movimentos silenciosos. De longe o meu favorito,
afinal, também era o mais intelectual e sociável; mas, assim como os
irmãos, até ele escondia um lado obscuro e que geralmente vinha à tona
quando sua esposa, Alena, também conhecida como Estrela, ou sua filha,
Hope, corriam algum tipo de perigo. E também tinha ela, o furacão loiro
que me encarava naquele instante como se fosse capaz de ler meus
pensamentos.
— Ai, meu Deus! Petrova? — A loira me agarrou pelos ombros,
cercando-me com um abraço forte. — Como é bom revê-la!
Jasmin Cahill era namorada do Lobo; astuta e espontânea, ela era a
agitação em pessoa, e foi por causa dela que eu precisei me vestir de cisne
em uma festa onde um assassino de aluguel estava à procura do pescocinho
da moça. Tudo bem que não era um cisne, mas o vestido tinha penas.
Muitas delas. Já disse que odeio vestidos? Snake me pagou uma gama longa
de favores depois daquilo, mas o passado não importava. Já o presente…
Respirei fundo quando vi que eles me encaravam enquanto eu saía
do quarto do Snake, como se estivessem diante de um show de circo.
Talvez a ideia de fingir um desmaio não fosse tão ruim assim.
— Vamos querer saber o que está acontecendo aqui? — Estrela deu
um passo à frente, com a bebê mais fofa do mundo no colo, enquanto ela
brincava com os fios do seu cabelo, que era longo e escuro.
Hope era muito parecida com a mãe, mas também tinha traços
marcantes do pai, o Fantasma, ou Zion, ou sei lá, o anormal que não fazia
barulho quando andava. A menina era uma bolota de fofura envolvida em
um conjunto rosa espalhafatoso. Parecia uma boneca. Uma que me fez
engolir em seco.
— É claro que vamos querer saber por que tem uma agente da CIA
e uma criança na sua casa. Estou prestes a morrer de curiosidade. — Jasmin
encarou Snake, que parecia ligeiramente mais pálido.
— Irmão... acaso foi isso que quis dizer com “Não tem uma criança
na minha casa”? — Fantasma inquiriu, e colocou duas caixinhas de cerveja
na bancada da cozinha, em um misto de confusão e graça.
— Acho que ele está em choque! — Lobo zombou, e deu uma
gargalhada. — Estão tendo um caso? — Uma onda sonora se espalhou pela
sala com a surpresa de todos com aquela suposição maluca. — Ora, eles
estavam no quarto, não tem muita surpresa aí.
— Isso não faz sentido algum!
Jasmin abriu a boca em um O perfeito.
— É chocante! — Lobo completou.
— Sinto que estou diante de um quebra-cabeça enigmático. —
Fantasma abriu mais os olhos. — Snake e Petrova. Eu nunca imaginaria
uma combinação tão... peculiar. — O irmão caçula dos Holder parecia em
choque, enquanto eu assistia à cena paralisada, aparentemente sofrendo um
derrame.
— Eu e Petrova? Nunca, jamais, nunca mesmo!
Snake foi cirúrgico e me encolhi ao sentir uma pontada estranha na
boca do estômago quando notei o quanto ele parecia ofendido pela menção
de que talvez estivéssemos juntos.
Ergui os olhos e flagrei Estrela me observando com um vinco
preocupado entre as sobrancelhas.
— Isso é um mal-entendido, eu garrranto — falei, e dei tudo de mim
para abrir um sorriso.
A quem eu queria enganar? Sabia que Snake preferia tomar um tiro
na orelha a se relacionar com qualquer pessoa, principalmente se fosse eu, e
aquilo não me importava.
Ao menos tentava me convencer daquilo.
— Petrova só precisava de um lugar seguro para ficar enquanto
termina uma investigação.
— Eu não diria a ninguém que o seu quarto é seguro... — Fantasma
deu de ombros, e Snake rosnou em um aviso nada sútil.
— E a criança? — Estrela quis saber.
— É-é meu filho. — Engoli em seco, quando a atenção da sala
inteira recaiu sobre mim, e Snake deu um passo em minha direção.
— Seu filho? — perguntaram em uníssono, semelhante a um coral
da igreja.
— Não sabia que tinha um filho, Petrova. Ele é lindo. Pelo menos
era um vulto laranja lindo, que corre muito rápido. — Jasmin se aproximou
de mim, tentando me deixar mais à vontade.
— Obrigada.
— Estou muito feliz que esteja bem. Sempre penso em você e em
como me ajudou naquela noite. Saiba que sou muito grata, e também pode
contar comigo, caso precise. — Ela abriu um sorriso.
— Hoje é o dia mundial dos ajudadores de plantão? — Snake
rosnou baixo atrás de mim, e soltei o ar quando me dei conta de que ele
ainda estava incomodado com Sombra.
— Obrigada, Jasmin, mas já tenho tudo que eu preciso para finalizar
minha missão.
Meu rosto ardeu de vergonha ao perceber a forma como eles me
encaravam, como se vissem um milagre bem diante dos olhos, mas a
timidez não durou nem um segundo, porque Passarinho resolveu chamar a
atenção de todos para si e parou na porta da cozinha, jogou a cabeça para
trás e começou seu show particular. Uma gritaria sem precedentes.
— O que é isso, gente? — Fantasma deu um salto e levou a mão ao
peito.
— É um cachorro que parece estar sofrendo uma síncope. — Estrela
abriu mais os olhos grandes e brilhantes.
— Meu Deus! — Jasmin deu um pulo no mesmo lugar e encarou o
cão com os olhos arregalados. — UM CACHORRO! UM CACHORRO! —
A mulher, que era herdeira e estava quase se tornando CEO de um dos
maiores conglomerados de armamento militar, se jogou no chão com sua
roupa supercara e agarrou Passarinho pelo pescoço, sufocando-o em um
abraço.
— Um cachorro, Snake? O que mais tem nesta casa? — Lobo
grunhiu. — Você vai ser o responsável por dizer a ela que não vamos ter um
cachorro, está ouvindo?
Dei risada, chegando ao meu limite do nervosismo.
Todos olharam para mim, e então perdi o controle de vez. Comecei a
rir tanto que os irmãos Holder não aguentaram e fizeram o mesmo.
— Que caos do caralho! — Snake passou a mão pelos cabelos
quando Passarinho esgoelou mais uma vez.
— Ele é muito fofo e ainda grita! — Estrela riu.
— Parece você, Lobo. Deveria mesmo ter um desses — Fantasma
provocou, e recebeu um cutucão acompanhado de um rosnado baixo vindo
do irmão.
— Amor, não é uma má ideia. Vamos ter um cachorro, vamos?
Sinto que não posso mais viver sem um — Jasmin fez drama.
— Vamos falar sobre isso depois, Coração. Agora solte o cão, vai
sufocá-lo. — Lobo levantou a namorada com gentileza, como se fosse
capaz de quebrá-la ao meio, e fuzilou Snake com o olhar.
— Como ele se chama, Petrova?
— Passarinho.
Mais uma onda de risadas.
— É sério? — Fantasma parecia descrente. — Em que confusão
você se meteu? — Ele se virou para o irmão mais velho, que só bufou em
contrapartida.
— Ele pensava que podia voar quando era pequeno. — Dei de
ombros, simplificando a explicação.
— Deixa eu ver se entendi. Petrova precisava de abrigo, junto com o
filho e o cachorro, que também é Passarinho, e você, meu irmão mais
gentil, cedeu sua casa de bom grado? — Lobo disse, sarcástico. — Seja
sincero, isso é dívida de jogo? Ela está te ameaçando? — Ele riu.
— Cala a boca, caralho. É só uma troca de favores, nada mais. E já
está na hora de vocês irem. Petrova não está se sentindo muito bem e
precisa descansar.
— Há algo que possamos fazer para ajudá-la, Petrova? — Jasmin
quis saber, preocupada.
— N-não, na verdade, foi um mal-estar passageiro, já estou me
sentindo melhor.
— Seu rosto está pálido, Petrova. Você trabalhou o dia inteiro sem
pausa, precisa descansar. Não seja teimosa — Snake parou ao meu lado, e
rosnou baixinho, sem se dar conta do misto de choque e assombro com o
qual sua família nos encarava.
Abri a boca para retrucar, mas Estrela foi mais ágil e disse:
— Vamos deixá-la descansar e, por favor, me ligue se precisar de
qualquer coisa, inclusive de um resgate. — A jovem encarou Snake e
estreitou os olhos para o tatuado.
— Somos especialistas — Fantasma brincou, e passou o braço pela
cintura da esposa.
Snake se aproximou de Estrela e parou de repente, abrindo mais os
olhos azuis quando viu que Hope estava usando uma pulseirinha de ouro.
— Você colocou! — Seu humor mudou completamente e ele
encarou a cunhada com um sorriso enorme no rosto.
— É claro que sim, foi um presente do padrinho mais estranho que
ela tem. — Estrela revirou os olhos, e riu quando Snake se aproximou da
bolinha de fofura.
Hope piscou os olhos dourados como os da mãe, só então
encontrando Snake em seu caminho, e no mesmo instante a menina
começou a se remexer e rir de um jeito delicioso, animada pela presença do
Malvadão, que não pegava a coitada no colo de jeito nenhum, mas não
resistiu a brincar com suas mãozinhas pequenas, que balançavam tentando
alcançar os dedos dele.
Aproximei-me, quase sem me dar conta, como se estivesse
hipnotizada.
— Quer segurá-la? — Estrela perguntou, com um sorriso, e meneei
um aceno, confirmando.
Ela então me entregou Hope no colo.
A bebê tinha um cheirinho floral característico de xampu de bebê
que me fez engolir em seco com a breve lembrança de carregar Colin
daquele mesmo jeito. Encarei seu rostinho angelical, que me sondava com
cautela, os olhos muito grandes como os da mãe pareciam carregar a
essência de uma alma pura. Era linda, perfeita.
Respirei fundo, sentindo meus olhos arderem com uma súbita
vontade de chorar, temendo que em alguns meses eu tivesse um bebê para
lidar. Tentava não pensar naquilo em nem um segundo do meu dia, não
enquanto não resolvesse toda aquela situação com a CIA, mas com Hope
em meus braços, tranquila e segura, tudo que quis foi poder chorar de
medo.
Medo por não saber se era verdade. Medo por não saber se daquela
vez eu sobreviveria.
— O que foi? Está se sentindo mal? — Snake perguntou baixinho, e
balancei a cabeça, negando sem o olhar nos olhos.
— Estou bem, não se preocupe. — Tentei sorrir. — Quer segurá-
la?
— De jeito nenhum. Não pego em bebês, já percebeu como eles
parecem feitos de vidro? Não estou nem um pouco inclinado a quebrá-la no
meio.
— Ele é um idiota, eu sei. — Fantasma parou ao lado de Snake do
nada, como se tivesse brotado do chão e o Malvadão ficou branco de susto.
— Seu merda silencioso do caralho! Puta que pariu, Fantasma! —
praguejou, com os olhos arregalados.
— Desculpa, irmão, achei que tivesse me visto. Estava bem ao seu
lado.
— Eu estava distraído, seu... argh!
Snake torceu o nariz, como sempre fazia quando ficava puto, e
entreguei Hope para o pai sem conseguir conter uma risada da cara de
revoltado que ele fazia naquele momento.
— Boa noite! — Ouvi uma vozinha atrás de mim e olhei sobre o
ombro.
Colin estava encolhido perto da porta do quarto, usando seu
conjunto marrom, um dos poucos que trouxemos e o que ele achava mais
formal. Percebi que ele começou a embolar as mãos umas nas outras, um
sinal de que estava nervoso. Dei um passo em sua direção para ampará-lo,
mas Snake, para minha completa surpresa, foi mais rápido do que eu e se
colocou ao lado de Colin, evitando qualquer tipo de contato físico.
— Esse é o Colin, filhote da Petrova.
— Filho, irmão. Se fala filho. Usamos filhote para cachorro, se quer
saber — Fantasma corrigiu, com um suspiro resignado, e Snake revirou os
olhos, ignorando-o.
— Fica tranquilo, pequeno Einstein — Snake sussurou. — Eles são
legais, pelo menos na maior parte do tempo.
Colin respirou fundo e relaxou os ombros.
Só então meu filho deu um passo à frente e esticou a mãozinha,
sempre tão diplomático, em direção à Estrela.
— Peço desculpas pela visão que tiveram mais cedo, eu não estava
preparado para visitas — disse devagar. — Me chamo Colin.
— Posso apertar você? Só um pouquinho? — Jasmin quis saber,
quando foi sua vez de segurar a mão de Colin.
— Ele não gosta de apertão, oh maluca, sai fora! — Snake
empurrou a loira de lado.
— É um prazer, Colin! — Estrela disse, completamente derretida
pela fofura que ele era.
— Ele sempre fala assim? — Lobo me perguntou baixo, enquanto
Colin cumprimentava os outros membros da família Holder.
— Ele tem um QI muito alto — tentei explicar.
— O garoto é um supergênio. Parece que enfiaram um velhote pela
garganta dele — Snake completou, animado, e dei cutucão em seu dorso.
— Já estamos de saída, mas seria uma honra se vocês dois nos
acompanhassem no próximo jogo de beisebol — Estrela convidou. — Tem
mais um no final do mês.
— Seria incrível. — Jasmin deu um pulinho, animada.
— É uma reunião de família, não queremos atrapalhar. — Tentei
declinar do convite.
— Tsc! A cara emburrada do Snake é o que costuma atrapalhar,
principalmente quando o Cubs não ganha. Aí ele surta de um lado e Estrela
chora do outro, preciso de reforços para suportar, por favor! — Jasmin
pediu.
— Vai ser legal, mamãe. Assistir aos jogos pode me ajudar, já que o
senhor Snake vai me ensinar a jogar beisebol.
— Você vai O QUÊ? — Lobo gritou, tão perplexo quanto eu.
— Ele vai tentar jogar, só isso. É um passatempo. Já disse que o
garoto é um gênio, precisa exercitar o corpo junto com a mente. — O
Malvadão desviou o olhar do rosto inquisidor dos irmãos e enfiou as mãos
nos bolsos da bermuda.
— Isso vai ser divertido — Estrela sussurrou, pensativa.
Ou perigoso, eu quis completar.
— Não acho que deveríamos deixar essa missão nas mãos do Snake.
Ele pode pisar no garoto sem querer e...
— Zion! — Estrela chamou a atenção do marido, que segurou uma
risada.
— Estou verdadeiramente preocupada. — Passei a mão pelo rosto, e
crispei as sobrancelhas quando me dei conta do gosto amargo que subiu
pela minha garganta.
Então percebi que, sim, era uma ótima ideia ter todos os Holder, ou
quase todos, longe dali nos próximos minutos, caso voltasse a passar mal.
— Você não sabe nada sobre beisebol, garoto? — Lobo quis saber.
— Para ser coerente com a verdade…
— Coerente com a verdade! — Jasmin repetiu, e me encarou. —
Vou sequestrar seu filho.
— Não se eu levar ele antes. — Estrela suspirou ao meu lado, e eu
bem sabia que era aquele efeito que Colin causava nas pessoas.
— Não tínhamos espaço o suficiente para jogar beisebol e eu
sempre fui muito pequeno para jogar com os meninos da escola. Então não,
senhor. Não sei nada sobre o assunto.
— Vamos ensiná-lo — Lobo sugeriu, e pensei que Snake fosse ter
um colapso.
— Vamos é uma palavra coletiva. Eu vou ensiná-lo. Vocês, por
outro lado, vão embora. Foi bom vê-los! — Snake agarrou Lobo pelos
ombros e começou a empurrar o irmão em direção à saída.
— Até logo, Petrova, e não hesite em bater nele se precisar — Lobo
gritou, e Fantasma os seguiu logo depois de se despedir de nós e pegar sua
filha no colo.
— Espero revê-lo, garoto — ele disse a Colin, que ficou radiante.
Estrela parou à minha frente com Jasmin ao seu lado e segurou
minha mão com carinho.
— Nunca tive a oportunidade de agradecê-la pessoalmente, afinal,
você é como uma lenda. Eu só ouvia falar... — A mulher abriu um sorriso
cauteloso.
Minha história com a família de Snake não se resumia a tentativa de
assassinato que Jasmin sofreu. Estrela foi sequestrada e vendida ao tráfico
humano, uma das realidades mais tristes que combatíamos diariamente no
país, e através de informações que ela e Fantasma conseguiram reunir,
fizemos uma ação policial que salvou muitas garotas em cativeiro.
— Obrigada. Por tudo.
— Não precisa agradecer, só fiz meu trabalho, e fico muito feliz em
vê-la bem. — Sorri para ela, que me abraçou logo em seguida, assim como
o pequeno furacão loiro, e menos de um minuto depois todos eles tinham
ido embora.
— Gostei deles, mamãe. — Colin sorriu, encantado.
Por um momento, desejei que ele não tivesse gostado daquelas
pessoas, tanto quanto eu não queria gostar. Mas era impossível não adorar
um Holder. Eles eram excêntricos, agitados, engraçados e fiéis.
Era difícil não desejar uma família unida como aquela. Era difícil
saber que estava sozinha.
Snake
Levei minhas visitas repentinas até o estacionamento onde mais dois
carros além dos meus estavam estacionados.
— Não quero ouvir um pio sequer — vociferei, quando Fantasma
abriu a boca para falar.
— E um latido, pode? — Jasmin provocou, e uma onda de risadas
ecoou pela noite.
— Idiotas — reclamei, sem conseguir conter um sorriso.
— Estou verdadeiramente feliz que tenha aberto sua casa para
aqueles dois. — Fantasma bateu em meu ombro.
— Não é nada de mais. Só estou retribuindo tudo o que ela já fez
pela nossa família.
— Sei... — Lobo revirou os olhos, já abrindo o carro, mas antes que
pudessem ir embora, puxei Jasmin e Estrela para perto de mim.
— Quero pedir um favor.
— Não vamos desconvidá-los, Snake. Viu como o garotinho ficou
feliz quando falamos sobre o jogo de beisebol no final do mês? — Estrela
saiu em defesa do clã das raposas sem nem ao menos ouvir o que eu tinha
para dizer.
— Não é isso que eu quero, estresse — xinguei, e olhei sobre o
ombro para ter certeza de que Petrova não estava por perto com sua
miniatura.
— Então, o que você quer de nós? Além de testar nossa paciência
frequentemente? — Jasmin quis saber, e Estrela riu.
Eram duas malas sem alça, mas eu era capaz de arrancar um dos
meus próprios membros por aquelas duas doidas. Uma verdade que elas
jamais saberiam.
— Não é para mim, é para Petrova e o mini Einstein. Preciso de um
horário livre na agenda das duas. Tentei persuadir Petrova a aceitar minha
ajuda, mas ela é mais teimosa que duas Jasmins juntas.
— Ei! — A loira me deu um cutucão e pensou por um instante. —
Tem razão, eu sou bem teimosa. — Ela abriu um sorriso, e revirei os olhos.
— Eu sei disso. Mas Petrova consegue ser pior e... — Soltei o ar,
sem saber por onde começar a explicar.
— Snake, o que está acontecendo? Por que sinto que está
escondendo algo? — Jasmin perguntou, baixo. Os olhos azuis carregados de
preocupação.
— Petrova precisou fugir e não trouxe muita coisa consigo —
comecei. — Já tentei emprestar meu cartão e ela não aceitou. Enfiei uma
boa grana em um pote ridículo, mas ela também o rejeitou, e eu não posso
ficar parado enquanto aquela mulher inflexível tem que lavar roupa todo dia
para ter o que vestir.
— Minha nossa! — Jasmin abriu mais os olhos, que subitamente
ficaram cheios de lágrimas.
— Coração? — Lobo chamou, preocupado, sondando o rosto da
namorada. — Tudo bem?
— Sim, Lobinho! Estamos resolvendo uma emergência. — Ela
fungou, e endireitou a postura, como se estivesse prestes a entrar em uma
guerra, e se virou para mim. — Faremos o que for preciso.
— Sim, amanhã mesmo! — Estrela abriu mais os olhos.
— Quero que comprem algumas coisas. Não faço ideia do que ela
precisa, e vocês estarão encarregadas de me ajudar. Com os dois. — Mal
fechei a boca e as duas se entreolharam. — Sem sorrisinhos, isso não é nada
de mais.
— Imagina o Colin em uma roupa de bichinho? Ele vai ficar muito
fofo! — Jasmin deu um pulo, eufórica.
— Nada de bichinhos — briguei. — Por isso estou enviando as
duas. Estrela, preciso que interfira e nos poupe de um zoológico. — Minha
cunhada deu risada.
— Nem unzinho? — Jasmin fez beiço.
— Você nunca seria capaz de escolher apenas um — retruquei.
— Que absurdo. Não sou exagerada. — Jasmin torceu o nariz.
— Eu me lembro de você encher a casa do Fantasma de roupas de
bichos quando ele te pediu para fazer o mesmo por Estrela…
— Ele não está mentindo. — Estrela sorriu para a amiga. — Vamos
fazer escolhas práticas. Sequestre um par de roupas de cada um deles e nos
envie o tamanho. Colocaremos nossa missão Petrova em andamento.
— Certo, mas teremos algumas estampas de bichinhos. É minha
única condição.
— Uma para cada, é o máximo que vai passar por aquela porta. —
Entreguei meu cartão de crédito nas mãos de Estrela.
— Combinado! — Jasmin parecia animada. — Nos vemos amanhã.
Olhei sobre o ombro e flagrei Fantasma e Lobo cochichando,
enquanto o primeiro balançava uma Hope adormecida no colo. Estreitei os
olhos quando eles notaram que eu estava observando a cena.
— Estávamos só comentando como a noite foi... surpreendente. —
Fantasma abriu um sorriso.
— Um inocente não dá explicações quando não é questionado. —
Bufei para o cínico, que deu risada. Obviamente estavam falando de mim.
Ignorei-os e encarei Estrela. — Talvez Fantasma possa ajudar e escolher
algo para Colin, já que eles parecem nerds do mesmo universo.
— E se comprarmos algo que a faça atirar na gente? — Estrela
encarou Jasmin com os olhos arregalados e quase dei risada.
— Não tem como errar com o meu bom senso de moda, amiga, não
se preocupe. — E puxou o cartão da mão de Estrela.
— Jasmin, se você ousar encher essa casa de bicho de pelúcia…
— Tá, eu sei. Sem bichinhos, sem alegria, sem felicidade... entendi.
— E revirou os olhos.
— Não exagere. E mais uma coisa... — Torci os lábios, ciente de
que precisava de ajuda com outro assunto. As duas me encararam, atentas.
— Alguma de vocês sabe fazer uma sopa?
Elas se entreolharam.
— Como sabem, Petrova não está se sentindo muito bem. Ela anda
nervosa por causa do caso que está trabalhando — tentei me explicar. —
Não podemos arriscar a pedir algum alimento fora, então eu disse que faria,
mas temo fazer com que a saúde dela piore ainda mais. Então, se puderem
me ajudar a não matá-la de intoxicação alimentar com alguma dica, eu
agradeço.
— Posso fazer uma sopa para ela agora mesmo — Estrela se
ofereceu.
— Amiga, eu já comi da sua sopa e, não me leve a mal, é um
pouco... diferente. — Estrela abriu a boca em um misto de surpresa e graça.
— Você disse que não quer dar motivos para que a Petrova atire na gente,
não é? — A loira sacou o celular imediatamente. — Rute pode nos ajudar.
— É uma excelente ideia. A sopa dela é a melhor de todo o universo
— Estrela concordou.
— Vou pedir que ela faça, e um dos meus guarda-costas entregará
aqui de forma segura.
— Obrigado — agradeci uma última vez antes deles irem embora.
Petrova teria que aceitar minha ajuda, querendo ou não.
Quando entrei em casa, flagrei Petrova sentada no sofá, enquanto
encarava o nada com um semblante pensativo e fechado, um vinco marcava
o meio de sua testa
Algo estava incomodando minha pequena raposa.
Tentei conter a aflição que despontou em meu peito e desejei ser
capaz de não me preocupar, mas depois de vê-la vomitando mais cedo,
sabia que aquela expressão contida no seu rosto não era comum. Ela parecia
estar sentindo dor. E, quando me dei conta, já estava me sentando ao lado
dela.
— Petrova? — Ela piscou rápido demais e me encarou, como se só
agora se desse conta de que eu estava ao seu lado. — Tudo bem? — eu
disse baixo, e desci os olhos para suas mãos, que seguravam a beirada do
sofá com força demasiada.
— S-sim. Estou ótima — mentiu, e segurei sua mão na minha, só
para conferir sua temperatura corporal. O pequeno movimento a fez
arregalar os olhos.
— Não gosto quando mente para mim — avisei, e a vi arregalar
ainda mais os olhos verdes em minha direção. — Já disse que consigo ler
você. O que está sentindo?
Ela engoliu em seco e encarou o chão.
— Só me sinto fraca. — Sua voz surgiu baixo. — Sinto muito ter
mentido, não queria preocupá-lo.
— Você não comeu. Precisa se alimentar melhor. Rute, a governanta
de Jasmin, fará uma sopa que chegará em breve. Quero que coma e durma,
sim?
— Rute? — Ela estreitou os olhos, confusa. — Não era você que ia
fazer a sopa?
— Preferi não correr o risco de matá-la por acidente. — A safada
riu, e o som gostoso reverberou por meu peito.
— Não acredito que pediu isso para Jasmin.
— É o que fazemos nesta família. Cuidamos um do outro. Não é
problema algum.
— Você tem uma família maravilhosa — sussurrou.
O tom triste combinava com seus olhos profundos.
— O que está acontecendo? Não é só a fraqueza, estou certo?
Ela ergueu o rosto delicado para me encarar, os olhos estavam
marejados, como se ela travasse uma luta terrível para não chorar.
Ergui as sobrancelhas, sem a mínima ideia do que faria se ela
realmente começasse a chorar, e segurei sua mão com um pouco mais de
pressão, como se o toque a impedisse de desabar a qualquer momento.
— Não é nada... só estou preocupada com o pen drive. — Ela
expulsou as lágrimas com uma mentira deslavada acompanhada de um
sorriso fraco. Muito bem treinada para fingir, tanto quanto eu para descobrir
sua farsa. — É sério, está tudo bem.
— Por um momento pensei que fosse chorar.
Aproximei-me um pouco mais dela, quase colando meu corpo ao
seu naquele sofá, que parecia pequeno demais para nós dois, como se
quisesse coletar suas palavras mentirosas com minhas próprias mãos.
— Eu não choro, nunca! — Ela empinou o nariz fino.
— É claro que não. — Acariciei sua mão, que cabia dentro da palma
da minha. — Onde está Colin?
— Foi dormir. — Ela mordiscou a ponta dos lábios e ergueu os
olhos puxadinhos em minha direção. — Ele me disse que precisa renovar as
energias porque amanhã vai começar uma maratona de mangás que você o
emprestou.
— Garoto esperto! — disse, contente com sua dedicação e interesse.
— Mas por quê? Por que emprestou isso a ele? Por que disse que ia
ensiná-lo a jogar beisebol, Snake? — Seus olhos marejaram novamente, e
me vi perdido, sem saber o motivo pelo qual Petrova parecia triste.
— Não deveria? Fiz algo de errado?
Ela respirou fundo, como se a resposta também causasse algum tipo
de dor.
— Pelo amor de Deus, Petrova, diga algo. O que eu fiz? —
questionei, verdadeiramente preocupado. — Nunca estive tão perto de uma
criança, não faço ideia do que fazer e de como fazer, então preciso que me
diga. Por favor... — Odiei o terremoto que pareceu dominar meu peito e se
espalhar pelo corpo a mínima menção de que eu, de alguma forma, tinha
errado com Colin.
Ela me observou com uma interrogação estampada no meio da sua
testa.
— Na verdade, eu só queria entender por que se aproximou dele. —
Sondei seu rosto. Os olhos grandes e tristes me diziam muito e nada ao
mesmo o tempo. O que estava acontecendo? — Colin é diferente, Snake.
Ele não tem muito em que se apegar, já você, é o oposto. Não quer se
apegar. É diferente, e tenho medo…
— De que eu acabe magoando o menino?
Ela uniu as mãos no colo e não voltou a olhar em meus olhos, mas
meneou um aceno afirmativo, cheio de medo e incertezas.
— Sinto muito, eu sei o quanto está nos ajudando e não quero de
forma alguma parecer ingrata, mas... — ela disparou.
— Petrova — a interrompi. Levantei-me do sofá e me abaixei diante
dela até que nossos olhos se encontrassem. — Nunca farei nada que possa
feri-lo de alguma forma. — Ergui a mão e dedilhei seu rosto delicado. Abri
um sorriso quando imediatamente suas faces ficaram coradas. Era gracioso
ver o quanto ela era transparente diante de mim. — Sei que é difícil, mas
pode confiar em mim? Só mais um pouco? — Ela meneou um aceno,
concordando, e se inclinou em minha direção.
— Por favor, cuide para que ele não se machuque. Nem o corpo,
nem o coração — sussurrou, quase como uma oração.
— Farei isso.
Com vocês dois!, eu quis dizer, mas quando a madrugada chegou eu
me vi de pé, em frente a porta do quarto de Petrova, conferindo se ela
estava bem e me questionando se era mesmo capaz de cumprir aquela
promessa.
Eu quero ser alguém
Alguém para você
Someone To You – Banners
Snake
Acordei poucos minutos antes do meu despertador tocar. No exato
momento em que Cérbero, o cão do inferno, começou a gritar como se sua
vida dependesse daquilo. Sabia que o animal estava na minha sala, antes
mesmo de abrir os olhos, pela distância do eco do som.
— Cachorro escandaloso do caralho! — Empurrei as cobertas,
tentando ignorar a lembrança daquela confusão de quatro patas se jogando
em cima da minha cama, o que me obrigou a trocar todas as cobertas.
Levantei-me decidido a conferir meu celular e ignorar o cão mais
escandaloso do universo e notei que tinha recebido várias mensagens da
minha secretária executiva.
Não ia ter jeito, eu precisaria ir até minha empresa solucionar
algumas pendências. Não havia como adiar, por mais que não me sentisse
tão confortável com aquilo.
Poderia mentir e dizer que temia que minha casa fosse totalmente
destruída na minha ausência, mas a verdade era que estava preocupado com
o bem-estar de Petrova. Aquela mulher era teimosa e obstinada. Duvidava
que seria capaz de tirar um dia de folga e descansar. Algo que sugeri, talvez
mais como uma ordem, na noite anterior. Contive um sorriso ao lembrar
que em vez de me dar uma resposta desaforada, a pequena raposa
concordou comigo sem reclamar. Um feito histórico.
Tomei um banho, selecionei um dos meus ternos pretos de grife e
saí do quarto.
Passei em frente ao quarto de Petrova e percebi que a porta estava
fechada, o que significava que a raposa ainda estava dormindo, o que era
bom. Bom demais, para falar a verdade.
Não sabia o que estava acontecendo comigo, mas toda vez que
colocava os olhos naquele tormento ruivo alguma coisa parecia sair do
lugar. Ao menos estava livre de uma das minhas atormentações diárias por
um momento. Mas qual a chance de conseguir sair completamente ileso
tendo mais duas delas soltas pela casa?
— Bom dia, senhor Snake.
Quase pulei no mesmo lugar quando o filhotinho de raposa parou
bem na minha frente com uma xícara de café em mãos. O cão também não
perdeu tempo e veio correndo até pular nas minhas pernas.
— Seu pulguento desrespeitoso. Barulhento do caralh... — Parei
antes que começasse a xingar palavrão na frente do garoto e bufei. — Bom
dia, pequeno Einstein.
— O dia está maravilhoso, então tomei a liberdade de fazer este café
na cafeteira para o senhor.
O menino tentou me distrair do monte de pelos, que agora estava
jogado de barriga para cima na sala, e abriu um sorriso enorme. Só então
me dei conta de que havia um buraco entre eles.
— O que aconteceu com o seu dente? Tentou roer algum dos meus
móveis, não foi? Sei que crianças fazem isso. Não adianta o que sua mãe
diga... — Aceitei a xícara de café, meio desconfiado.
— Não, senhor. Por mais interessante que sua mobília possa parecer,
não tenho interesse em roê-la. — Ele riu, se divertindo, e abanou a mão. —
Ele caiu agora de manhã. — Sorriu de novo.
Quase dei risada. Agora ele se parecia mais com uma criança do que
com um gênio, que provavelmente descobriria a cura para o câncer.
— E não dói? Quer dizer... não lembro de quando perdi meus
dentes.
A única lembrança que tinha em relação a isso era a de testemunhar
Vance arrancando alguns dentes de um delator, e pelo visto doía pra
caralho. Por um momento fiquei preocupado que a raposinha mirim tivesse
passado por alguma dor similar.
— Nadinha.
— E o que fez com ele? Guardou para a tal da tia fada buscar? —
Colin mordeu os lábios e subitamente começou a ficar mais vermelho, até
não aguentar mais e explodir em uma gargalhada alta. O moleque começou
a rir e não parou mais. Riu tanto, que teve que se encostar na pilastra para
se equilibrar. — Qual é a graça, criaturinha?
— Não é “Tia Fada”, senhor Snake; se diz “Fada dos dentes”. —
Riu ainda mais.
— Ela tem asas, não tem? Não importa qual profissão ela resolveu
seguir — resmunguei. — Guardou ou não?
— Sempre guardo pra mamãe pensar que eu acredito em coisas que
as crianças comuns deveriam ter fé.
— Mas você não é um catarrento comum — afirmei, admirando-o
cada vez mais.
— Bem, a minha concepção de valores equivale a de um banqueiro.
Como o senhor explicaria para o dono da casa da moeda que elas
simplesmente aparecem embaixo do travesseiro porque uma fada ladrona as
trocou por dentes?
Agora foi a minha vez de rir.
O ratinho era engraçado.
— Ele iria me enfiar em um sanatório.
— Exatamente. Mas mamãe não precisa se lembrar toda hora que eu
não sou como as outras crianças.
Encarei-o, chocado.
Não havia a mínima possibilidade de eu me acostumar com aquilo.
Ver uma criança com uma mente tão evoluída era quase como testemunhar
um milagre bem diante dos meus olhos. O menino cuidava dos sentimentos
da mãe quando mal entendia os seus próprios, baseando-se em fundamentos
científicos.
Era incrível, e triste ao mesmo tempo.
Ele era muito interessante, deveria admitir, mesmo contra minha
vontade.
— Então guardou o dente?
— Não. Desta vez, não guardei. Não seria de muita utilidade neste
momento. Guardarei os próximos, mas agora... é melhor o senhor provar o
café, ou vai esfriar. — Ele mudou de assunto subitamente, e percebi pelo
arquear das sobrancelhas marrons que ele estava fugindo da resposta
completa.
Colin, com sua consciência adulta, sabia que Petrova não
conseguiria trocar o maldito do dente por uma moeda ou nota, porque era
uma raposa teimosa que não queria aceitar a porra do meu dinheiro.
Assenti, fingindo que aquilo não me incomodava, e olhei para a
xícara de café, já imaginando que ele tinha usado a máquina para café em
cápsulas, já que era mais fácil de manusear.
Beberiquei o café e abri mais os olhos, surpreso por estar enganado.
O moleque tinha usado a cafeteira de grãos e poderia até mesmo dizer que
fui eu quem fiz aquele café. Estava exatamente do jeito que eu gostava.
— Como diabos conseguiu fazer esse café? Está incrível! — Bebi o
restante.
— Eu vi o senhor fazendo outro dia.
— Só tive tempo de fazer esse café uma única vez. — Arregalei
mais os olhos, certo de que ele não conseguiria me surpreender mais do que
já vinha fazendo.
— Talvez não se lembre, senhor, mas tenho memória fotográfica.
Não preciso ver nada mais do que uma vez para me lembrar da cena para
sempre. É como ter um súper HD na cabeça. Eu gravo tudo, mas tento
arquivar as informações e usar só as que eu preciso.
Pisquei, perplexo.
— E por que decidiu usar esse seu poder fascinante e preocupante
para me fazer um café? — Estreitei os olhos, desconfiado.
— É que o senhor pareceu mais feliz quando o tomou pela manhã, e
pensei que... talvez ficasse mais fácil te pedir um favor.
— Negociador como sua mãe... Tal raposa, tal raposinha. O que é
que você quer? — Tentei ignorar certo orgulho que tomou meu peito. O
garoto era bom, ia se tornar um excelente negociador.
— Passarinho anda estressado. — Ele suspirou, e levou a mão ao
peito com pesar. Mordi a ponta da língua para não dar risada da
preocupação genuína em seu rosto. — Ele é um cão agitado, precisa se
exercitar e... eu também. Gostaria de saber se posso ir ao terraço correr com
ele. Garanto que Passarinho vai parar de latir pelas manhãs. Ele era
acostumado a correr, e acho que sente tanta falta quanto eu; se não for um
problema, é claro.
— Escuta só, garoto, você tem jeito para negociação, mas precisa
aperfeiçoar isso. Poderia ter pedido acesso ao terraço e um saco de balas em
troca desse café, já que eu não teria tempo de fazê-lo antes de ir trabalhar.
Eu pagaria fácil! — disse com a maior cara lavada, como se não fosse
liberar o terraço a troco de nada caso ele pedisse.
— Não quis abusar, pareceria chantagem. — Ele deu de ombros,
tímido.
— Você precisa de umas lições. Negociação e chantagem andam
juntas, você só precisa saber como esconder uma dentro da outra.
Fui até a porta que dava acesso ao terraço sendo seguido por ele e
pelo cão, que parecia pressentir o que estava prestes a acontecer.
Abri a trava de segurança, que ficava na lateral da porta de vidro, e
coloquei minha digital, abrindo a porta que dava acesso a um campo
particular muito longo, a perder de vista, que terminava nas muretas de
pedra, bem na encosta da montanha.
— Ora, seu maluco! — xinguei quando Passarinho passou entre as
minhas pernas correndo e disparou a correr pelo campo.
— Uau, é grande mesmo!
Colin deu um passo à frente e tropeçou nos próprios pés, já que os
olhos pareciam ocupados, enquanto varriam o lugar de ponta a ponta até
parar no céu cheio de nuvens e que parecia pairar bem próximo, acima de
nós.
— Olhe por onde anda. Ou quer ficar sem outro dente? — praguejei,
apoiando o montinho de ossos para que não caísse.
— Sinto muito, senhor, é que fiquei impressionado demais. Nunca
vi um lugar tão lindo e tão grande. Diria que é possível ver uma gama de
constelações quando a noite cair. — Ele sorriu.
— A noite aqui é fascinante. Gosto deste espaço para jogar beisebol.
É aqui que vou começar a te treinar.
— Mal posso esperar. — Ele pulou, subitamente empolgado, e já
estava prestes a sair correndo atrás do Passarinho quando segurei seu
ombro.
— Espera, Colin — pedi, sondando o terraço que, até aquele exato
momento, parecia o lugar mais calmo e seguro do universo. Até eu me dar
conta de que estava soltando uma criança ali, completamente sozinha.
Então tudo começou a mudar. A árvore de galhas grossas se tornou
pontiaguda demais, alta demais, a pequena fonte seca na lateral da casa
tinha muitas pedras pontiagudas. E se ele caísse ali? Poderia facilmente se
ferir, caralho, e a mureta? Ela era alta exatamente para evitar uma queda
fatal, mas ouvi dizer que algumas crianças conseguiam fazer o impossível, e
não duvidava que ele pudesse subir nela de alguma forma.
Meu coração gelou, e mal consegui respirar quando imaginei Colin
pendurado naquela mureta dos infernos.
— Este lugar é perigoso para uma criança brincar sozinha —
adverti. — Vou deixar um guarda-costas aqui para te acompanhar e...
— Senhor Snake, não há com o que se preocupar. — Ele sorriu,
mostrando-me o buraquinho entre os dentes.
— Não quero ter que dizer “Eu te avisei”, enquanto sua mãe tenta
me assassinar. Guarda-costas para você. — Apontei para o garoto. — Sem
direito a apelação.
— Se isso for tranquilizá-lo, tudo bem. — Ele deu de ombros,
animado. — Posso correr enquanto o espero? Quero terminar logo para
voltar a ler os mangás que o senhor me emprestou — disse animado.
— Sim, mas use sua memória fotográfica e grave esse aviso: Fique
longe da mureta a qualquer custo! Ouviu?
— Sim, senhor! — Ele bateu continência e sorriu. — Ah, senhor
Snake! Já estava me esquecendo. Mamãe deixou seu café da manhã na
bancada da cozinha. Ela disse que ficar sem comer só vai deixá-lo ainda
mais... — Ele parou subitamente, como se percebesse algo de errado em sua
frase.
— Ainda mais o quê, garoto?
Ele comprimiu a boca.
— Irritante. Sinto muito, não deveria ter dito isso.
Dei risada.
Aquela raposa safada!
— Quando ela fez isso?
— Hoje cedo, antes que o senhor acordasse. Ela estava cansada,
então voltou a dormir logo depois. Não o esqueça, por favor.
— Certo. — Tossi, como se houvesse algo preso em minha
garganta. — Diga... a sua mãe que não pretendo demorar.
Deixei o garoto no campo depois de pedir que um dos meus homens
ficasse de olho nele e fui até a cozinha, onde havia um pacote marrom bem
embrulhado sobre a bancada.
Encarei o pacote como se ele fosse criar vida bem diante dos meus
olhos. Por que ela fez aquilo? Por que acordou cedo para preparar meu
café? Não conseguia entender, mas levei o pacote comigo e o coloquei no
banco do carona.
Liguei o carro e comecei a organizar meus pensamentos. Se quisesse
que o garoto tivesse tempo para treinar beisebol, teria que começar o mais
rápido possível a traçar um plano. Tinha que esquematizar o método que
usaria para ensiná-lo.
Para que alguém gostasse de um esporte, ele precisava ser bem
apresentado. Talvez pudesse começar mostrando alguns vídeos da final do
Cubs.
— Não... é melhor começar pela prática — sussurrei sozinho dentro
do carro, e só então me dei conta do quão animado eu estava com toda
aquela história.
Quanta idiotice... era só um garoto que queria aprender beisebol
comigo. A empolgação em meu peito pareceu triplicar e fiquei irritado ao
perceber que estava tomado de ansiedade.
— Que caralho, ele é só uma coisinha. Nada muito interessante, e
pequeno demais.
Pequeno demais...
Nenhum dos meus tacos de beisebol serviria para ele. As luvas
muito menos, lembrava perfeitamente dos dedos minúsculos que ele tinha.
Melhor comprar um equipamento novo no caminho. Um que
comportasse um garoto de 10 anos.
Petrova
Havia uma música baixinha tocando ao fundo. Parecia “Love
Yourself”, uma das minhas favoritas do Justin Bieber.
Caminhei pelo salão, que se abria em um caminho de tecidos
brancos e que desciam do teto até tocar o chão. Sorri, estava me sentindo
feliz e calma, como se a paz do mundo formigasse nas pontas dos meus
dedos. Rodopiei em meio aos tecidos, acompanhando a melodia leve até
que o caminho terminou bem em frente a um grande espelho. Abri os lábios
quando encarei meu reflexo. Os cabelos ruivos caíam por meus ombros e
pareciam mais cheios, mais vivos, decorados pelo vestido longo, tão branco
quanto tudo ao meu redor, destacando a barriga enorme e muito redonda.
Levei a mão até ali.
Um bebê... eu ia ter mais um filho e naquele momento pareceu tão
certo, tão lindo e perfeito que meus olhos marejaram, mas quando os ergui
vi uma figura grande surgir atrás de mim.
— Que porra é essa? Você está grávida? — A figura balançou a
cabeça devagar e uma risada baixa e maldosa ecoou pelo ar.
Abri a boca para falar, mas tudo que consegui foi cambalear até cair
no chão. Por um mísero momento eu parei de respirar e tudo ao meu redor
desapareceu, jogando-me em um vácuo escuro onde eu só conseguia ver os
olhos dele.
Azuis, frios como o gelo, carregados do mais puro ódio.
— Você acha que me engana? Essa coisa pode ser filho até do
demônio, mas não meu. Não vou cair nesse golpe ridículo, sua maldita. Não
se atreva a me procurar, se não quiser que eu desapareça com esse lixo. —
O homem apontou para a minha barriga, e eu soube que era ele.
A voz fria, firme e sempre tão decidida...
Era ele.
Meu Snake, que não queria a mim, que não queria o nosso filho.
Arfei, desesperada, enquanto toda a felicidade que senti se esvaia
entre meus dedos. Não havia paz ali, era só dor pela rejeição estampada em
seus olhos.
Olhos pelos quais eu me apaixonei.
Olhos para os quais eu me entreguei!
Queria gritar, queria me levantar, mas não conseguia me mover,
enquanto ele gritava cada vez mais alto e apontava o dedo para meu rosto
com escárnio, gritando todo tipo de absurdo, humilhando-me e marcando
minha alma.
— Você está sozinha. Sempre vai estar.
Acordei assustada, com um gosto metálico na boca. Comecei a
piscar para expulsar as lágrimas, o ar mal entrava em meus pulmões.
— Meu Deus... — Apertei o lençol entre os dedos quando me dei
conta de que era um pesadelo, ou quase.
Na verdade, era a droga de uma lembrança.
— Não, não, não, não! Não lembre... não lembre — repeti, e enfiei a
cabeça entre os joelhos, incapaz de me mover.
Minhas mãos começaram a tremer e eu me abracei.
Tentei respirar, mas parecia ter esquecido como se fazia aquilo.
Demorou anos para conseguir superar as coisas que Matt disse
quando contei que estava grávida, demorou anos para entender que eu não
merecia ser abandonada, e ainda doía em minha alma lembrar que aquele
desgraçado achava que Colin não passava de um lixo a ser descartado.
Não queria me lembrar. Não queria... meu Deus!
Vi-me incapaz de conter o passado, que parecia disposto a me
afogar.
Da dor de cabeça constante que sentia nos primeiros meses, dos
vômitos e enjoos que iam eliminando as opções de comida que eu tinha em
casa, e Deus sabia o quanto eu desejei poder ter condições de comprar
alguma coisa que não me causasse tanto enjoo e mal-estar, mas não tinha
emprego, vivia de bicos que mal davam para me sustentar, e já não
conseguia mais realizá-los, já que mal parava de pé.
Era uma jovem inteligente, forte e capaz. Já tinha enfrentado muitas
coisas para chegar no lugar onde estava; morando de aluguel em uma vila
simples, mas segura; começando a me reerguer com pequenos trabalhos,
enquanto adquiria alguma experiência, e de repente tudo mudou e perdi
toda a pequena estabilidade que tinha adquirido. Estava grávida e sozinha,
depois de ser abandonada pelo único homem em quem decidi confiar. Não
sabia o que fazer para sobreviver. Consegui me manter forte e viva por um
único motivo: tinha uma vida crescendo dentro de mim.
E eu amei Colin imediatamente, mesmo com todo o medo que
sentia. Foram os piores e melhores momentos da minha vida, e era por isso
que estava apavorada por me imaginar passando por tudo aquilo de novo.
Suportei a dor naquela época e ela passou, ou quase toda ela. Ainda sentia
uma pontada de dor no meu coração. Não por Matt, aquele idiota, mas por
mim.
Tive que presenciar alguém que eu amava me virar as costas vezes
demais para não temer.
Engoli em seco e levei a mão ao peito. Eu estava com medo. Medo
de estar mesmo grávida, medo de contar a Snake e ele ter a mesma reação
que Matt. Estava aterrorizada porque não queria ter que passar por tudo de
novo, principalmente por sentir que com Cedric seria diferente. E se eu não
conseguir me reerguer?
Uma batidinha sutil ecoou pelo quarto e logo a cabeça de Colin
apareceu entre o vão da porta.
— Bom dia, mamãe! — Ele entrou correndo no quarto e veio até
mim com Passarinho em seu encalço.
— Olá, querido! — Beijei seu rosto e chamei a atenção de
Passarinho para que o cão, que já encarava o meu colchão com um
semblante animado, ficasse no chão.
— A senhora não foi tomar café da manhã. Fiquei preocupado.
— Estou sem apetite, meu amor. — Tentei focar em seus olhinhos
brilhantes e inocentes, que agora me encaravam preocupados, e notei um
buraquinho no canto dos seus lábios. — O que houve aqui? Minha nossa,
quando caiu o dentinho?
— Hoje cedo, e não doeu nada. — Ele endireitou a postura,
orgulhoso de si mesmo.
— Você o guardou?
— Não, mamãe. — Ele tapou a boca com uma das mãos e se
inclinou em minha direção, como se contasse um segredo: — Não acho que
a Fada do Dente consiga nos encontrar agora, a senhora nos protegeu muito
bem.
Sorri.
Sabia que Colin não acreditava em Fada do Dente, tanto quanto
estava ciente de que ele fingia crer para tentar me agradar, algo que não era
necessário. Eu gostava que ele fosse do jeitinho dele. Meu pequeno
geniozinho...
— Você comeu o café que preparei para você? — Mudei de assunto,
ainda observando com certo encanto a fofura do seu sorriso com um
buraquinho.
— Sim, estava delicioso. O senhor Snake levou o dele.
Abri um sorriso, sentindo-me vagarosamente estranha.
Snake passou boa parte da noite comigo naquela sala, enquanto
esperava a sopa que sua cunhada nos enviaria, e que por sinal parecia ter
sido feita pelos anjos. Ele observou enquanto eu comia e a preocupação
genuína em seu olhar me deixou inquieta e sem palavras. Queria retribuir de
alguma forma e resolvi usar meu método favorito de gratidão: pagamento
em comida.
— Deveria descansar, mamãe — Colin disse subitamente. — Está
com o semblante abatido.
— Você e Snake combinaram? — vociferei, e levei as mãos até
meus malares em concha, como se pudesse tocar a exaustão que sentia.
— O senhor Snake deixou um guarda-costas aqui e tenho certeza de
que há uma dezena deles lá fora. Tudo bem se quiser dormir até mais tarde,
estaremos de olho — ele disse, como se ele mesmo fizesse parte da equipe
de seguranças, e não resisti.
Puxei-o para um abraço.
— Farei isso, querido. Vou descansar por hoje.
Só hoje! Relembrei inconscientemente. Precisava de algumas horas
de sono, longe de toda aquela loucura.
— Preciso voltar à leitura, mamãe. Naruto me aguarda, mas volto no
almoço. A senhora mesmo me disse que uma boa refeição é capaz de
renovar a alma.
— Pode voltar à sua leitura, mas só se me der um beijo antes.
Meu menino sorriu, e se jogou em meus braços, depositando um
beijo de cada lado do meu rosto, fazendo meu coração se apertar de tanto
amor dentro do peito. Depois, meu pequeno endireitou a postura e saiu
correndo pela porta, sendo seguido de perto por Passarinho, que parecia tão
animado quanto ele.
Matt nunca saberia o quanto perdeu ao rejeitá-lo como filho. Ele
nunca saberia o que era ser amado por Colin.
Suspirei, ciente de que ele era meu maior presente.
Um menino simples e determinado, que me enchia de orgulho. Que
não se importava em usar a mesma camiseta do dia anterior, uma que por
sinal eu teria que lavar para que ele usasse no dia seguinte. Que não se
importava em ser a voz da minha razão, ou em me ajudar a organizar toda a
bagunça que eu geralmente deixava para trás.
Olhei para o meu notebook, abandonado sobre a mesinha ao lado da
cabeceira da cama. Bastava uma pesquisa, uma invasão, e talvez quebrar
duas ou três leis estaduais e poderia invadir o sistema do laboratório onde
fiz o exame de sangue que me diria logo de uma vez se eu estava grávida ou
não. Mas pegar o resultado significava descobrir a verdade, uma que eu não
sabia se estava pronta para encarar agora.
Até o momento, a possibilidade de estar grávida não passava de um
medo constante e latente. Um medo que aumentou muito depois de ver
Hope na noite anterior.
A bebê rosada e alegre parecia feliz, cercada de amor, de tios e tias
dispostos a mover céus e terras para mantê-la segura, além de saber que ela
tinha um avô poderoso e um pai que mataria facilmente qualquer um que
ameaçasse se aproximar dela. A bebê tinha tudo que era necessário para
viver em segurança, mas aquela não era nem de longe a realidade que eu
poderia dar a Colin. Meu filho só tinha a mim, e sabia que se meu exame
desse positivo, estaria só confirmando que mais uma vez eu estaria sozinha
naquela jornada, afinal, Snake nunca quis ser pai. Temia que ele nos jogasse
bem no meio da rua assim que descobrisse alguma coisa.
Engoli em seco. Invadir o laboratório talvez fosse um grande erro.
Certa vez, Snake me disse que a única forma de extrair a verdade da
mentira era se a pessoa realmente acreditasse naquela informação.
E se ele me perguntasse algo sobre aquilo? Como eu conseguiria
mentir para aquela máquina da verdade cheia de músculos, tatuagens e
raiva?
Se eu descobrisse uma gravidez agora, não conseguiria manter o
segredo de Snake caso ele desconfiasse de algo, mas enquanto eu mesma
não soubesse a resposta, ele não teria acesso à verdade.
Colin e eu estávamos vivendo uma vida difícil; o pouco de
segurança que conseguimos veio de um homem que eu não deveria ter me
aproximado, mas eu não poderia colocar tudo em risco agora.
Se fosse verdade, se eu realmente estivesse grávida, teria que sair
dali antes que Snake tivesse a chance de descobrir. E se ele me culpasse? E
se me abandonasse como todos sempre fizeram? Ia doer, doer muito, porque
eu sentia por Snake algo que nunca senti por Matt: admiração.
Tinha que proteger meu coração e o do Colin. Tinha que abrir
aquela droga de dispositivo logo para que pudéssemos retomar nossa vida
bem longe dali.
Longe daquela casa escura e impecavelmente luxuosa; longe do
tatuado temperamental que parecia entrar cada vez mais em nossas vidas.
Mas agora eu só precisava dormir um pouco.
Dormi a manhã inteira e acordei renovada, mas disposta a seguir a
recomendação do meu anfitrião, que por sinal deixou claro que me
prenderia no quarto se me visse trabalhando pelas câmeras de segurança.
Deveria admitir que estava precisando mesmo de um dia à toa e,
depois do almoço, resolvi assistir a uma comédia romântica, esticada no
sofá daquela sala luxuosa com um pequeno balde de pipoca e um copo de
suco de morango bem geladinho.
— Tem certeza de que não quer um pouco de pipoca para comer
enquanto lê? — questionei Colin, que já se preparava para hibernar no
quarto na companhia dos mangás de Snake.
— De forma alguma! Imagine só, mamãe, expor uma relíquia em
forma de papel à sal e manteiga? — Ele balançou a cabeça, inconformado
com minha sugestão, e desapareceu no corredor.
Dei risada, e ativei o móvel que era conjugado com a TV e a vi sair
de dentro da parede de um jeito teatral e dramático, com várias caixas de
som ao seu redor. Puxei uma pequena coberta e me acomodei no sofá, que
era de um cinza-claro, quase gelo. Apoiei o suco no encosto do sofá, ajeitei
a pipoca, e apertei o botão que pensei ser o que ligaria a TV.
De repente, um som alto ecoou por toda a casa e algo estilo RAP
ecoou pelos incontáveis Home Theaters daquele lugar.
MINHA ANACONDA NÃO...
MINHA ANACONDA NÃO ENTRA, SE VOCÊ NÃO TIVER UM
BUNDÃO!
Pulei no sofá com o susto que levei ao sentir as paredes do lugar
tremerem, enquanto a música tocava em alto e bom som, e acabei
esbarrando no copo de suco, que caiu com tudo, sujando de vermelho o
encosto do sofá hipercaro do Malvadão.
— Não! NÃO! — gritei, quando o líquido começou a descer e, no
desespero, cobri o suco com a coberta, tentando diminuir o desastre
enquanto a música continuava.
MINHA ANACONDA...
— Como é que desliga essa merdaaaaaaaaaa?
Comecei a entrar em pânico quando apertei vários botões e não
achei qual daqueles malditos desligava aquela música, então me lembrei
que talvez só precisasse pedir.
— JADE, DESLIGUE A MÚSICA, PELO AMOR DE DEUS! —
implorei para a inteligência artificial, e soltei o ar quando o som cessou de
vez.
— Nada é seguro nesta casa, nada — falei para mim mesma,
agradecendo por Colin estar com a porta fechada, o que ajudava a abafar o
som. — Aquele safado, sem-vergonha. Argh! — rosnei.
Encarei a câmera que ficava na quina da cozinha e pegava parte da
sala, desejando que ele pudesse ouvir os dez palavrões que xinguei logo em
seguida, ainda trêmula pelo susto que tinha levado.
Então me dei conta de que aquele objeto gravou muito mais do que
meu susto e minha fúria raivosa. Tinha registrado o acidente no sofá.
Praguejei sozinha, agora me preocupando com a mancha enorme e
que parecia mais vermelha a cada segundo. Passei a próxima hora
pesquisando todas as composições que alegavam retirar mancha de sujeira
no sofá, mas graças ao meu breve conhecimento em química, notei que
nenhuma delas me pareceu boa e segura o bastante. Não podia arriscar
piorar a situação, então peguei tudo que encontrei nos armários de limpeza
e esfreguei aquele sofá até sentir as pontas dos dedos ficarem dormentes.
— Droga de suco pigmentado.
Tombei a cabeça entre as mãos, quase uma hora depois, enquanto
encarava uma mancha enorme e que parecia até mesmo brilhar.
Talvez nem mesmo precisasse me preocupar em abrir aquele pen
drive idiota. Snake ia me matar muito antes disso.
Qual é o problema eu não sei
Bem, talvez eu esteja apaixonado
Penso nisso todo tempo
Accidentally in love - Counting Crows
Snake
Passei pela portaria da minha empresa, a Holder Sincerity, uma das
filiais da Holder Security, especialista em segurança armada para clientes
especiais, com certa pressa. Minha arma pendia em minha cintura, enquanto
trazia comigo o pacote marrom que comportava o café da manhã preparado
por Petrova, e deveria admitir, estava louco para saber o que a raposa tinha
preparado.
— Presidente! — Um dos funcionários, um rapaz alto e magro, com
os cabelos muito cacheados, arregalou os olhos quando me viu passar pela
entrada do prédio sendo seguido por outros dois guarda-costas que
pretendia deixar na empresa antes de ir embora. — Não estávamos
esperando o senhor hoje. — Ele liberou a passagem e me seguiu até o
elevador executivo.
— Bom dia, senhor presidente!
— Olá, presidente, como vai?
— Senhor presidente!
Cinquenta e nove cumprimentos depois, eu consegui entrar no
elevador enquanto a palavra “presidente” ainda rodava na minha cabeça.
Talvez não conseguisse fugir dela. Como imaginei, teria que assumir que
agora eu era dono daquela porra toda e deveria ser tratado como tal.
O elevador começou a se mover em direção ao último andar, onde
ficava a sala presidencial. O prédio de 9 andares era tingido de várias
tonalidades de preto, uma das cores base da sede, e ficava em um bairro
movimentado no centro de Chicago, a poucas quadras das filiais que
pertenciam aos meus irmãos.
Meu pai nomeou as sedes conforme a inicial dos nossos codinomes
e cada um de nós atuava em um ramo. A Holder Loyalty pertencia ao Lobo,
meu irmão do meio. A Holder Family pertencia ao meu caçula, Fantasma, e
a Holder Sincerity, era minha, e, fora isso, nosso sobrenome era conhecido
em todos os confins do país e fora dele. As pessoas pensavam duas vezes
antes de atacar alguém protegido pela Holder, mas vez ou outra um maluco
testava nossa paciência.
— Senhor Presidente! — Ava se levantou da mesa de escritório
assim que me viu. A jovem que trabalhava como minha secretária era muito
dedicada e responsável, e possuía grandes experiências, apesar de ser um
pouco mais jovem do que eu. — Que alegria revê-lo por aqui. Estava
prestes a enviar os novos contratos para sua casa, devo encaminhar para o
escritório?
— Deixe-os comigo. Não vou demorar aqui hoje, continue a
encaminhá-los para meu endereço.
— Sim, senhor. — Ela meneou um aceno e começou a organizar os
contratos para que eu levasse.
Entrei em meu escritório e me sentei na cadeira macia de couro puro
que ficava atrás da mesa de mogno que carregava uma placa de prata com a
palavra: Presidente. Coloquei a embalagem do lanche sobre a mesa e a
encarei, em expectativa. Abri mais os olhos assim que rasguei o pacote e
encontrei uma cartinha escrita à mão onde dizia:
“Este é um agradecimento pela sopa. Considere créditos a mais, já
que diferente de você fui eu mesma que fiz. — Emoji rindo, Emoji rindo
muito.”
— Ela sabe desenhar Emojis?
Estreitei os olhos, e sorri quase sem me dar conta, ansioso para ler o
restante da carta de agradecimento mais atrevida que já vi.
“Coma tudo com um pouco de café forte e quente. A combinação
deliciosa vai expulsar seu mau humor de vez. Confie em mim, faz dois anos
que me tornei especialista em lidar com você, Malvadão, e às vezes dá
certo. — Emoji de piscadinha.”
Emoji de piscadinha?
— O que isso significa?
Torci os lábios para o bilhete, tentando conter a alegria eufórica que
invadiu meu peito, e terminei de abrir o pacote.
O cheiro de waffles caseiros tomou conta do ar e se misturou ao
aroma de bolinhos de chocolate. Meu estômago roncou alto quando percebi
que ela também tinha feito uma embalagem menor com ovos mexidos e
duas fatias grandes de bacon.
Alcancei o telefone que ficava sobre a mesa.
— Ava, pode me trazer um café forte, por favor? — pedi, encarando
os waffles suculentos.
Tomei o melhor café da manhã que tive em muito tempo. Tinha
gosto de carinho e cuidado, algo que há muito não experimentava.
Não demorei mais que uma hora no escritório e saí de lá na mesma
pressa com a qual entrei.
Não me agradava muito deixar uma agente da CIA procurada
vagando pela minha casa sozinha. Ainda que meus homens estivessem
fazendo sua proteção, não era como se eu mesmo estivesse lá. Ao que tudo
indicava, eu era o único que suportava o furacão Petrova.
Dispensei os guarda-costas que estavam me seguindo desde cedo
quando saí da empresa e fui me encontrar com Estrela no estacionamento
do futuro pub que minha cunhada iria inaugurar.
Seu grande sonho sempre foi abrir seu próprio negócio, e depois de
tudo que ela passou eu me sentia grato e feliz por vê-la realizá-lo. Talvez eu
não admitisse com frequência, mas Estrela se tornava cada vez mais parte
essencial da minha racionalidade. Trocávamos farpas constantemente e vez
ou outra eu ameaçava prendê-la em algum lugar, mas a verdade é que
nossos encontros eram sagrados. Ansiava por cada dia em que assistiríamos
às partidas do Cubs juntos.
Nenhum dos meus irmãos era tão fã do time quanto ela, nenhum
deles xingava como aquela mulher, e por algum motivo ela acabou se
tornando indispensável. O jeito que ela parecia entender o que eu dizia,
mesmo que através de alguma grosseria… A forma como guardava, até
mesmo do meu irmão, as preocupações e problemas que vez ou outra eu lhe
confessava, e como sempre parecia disposta a me aconselhar, mesmo que eu
não estivesse disposto a ouvir…
Estrela era minha melhor amiga.
— Veio montado em um burro, por acaso? — ela quase gritou,
quando me viu, e atravessou o estacionamento brava, batendo os pés,
deixando dois guarda-costas para trás, esperando-a na entrada do pub, que
ainda estava em reforma.
— Tão cedo e já está rosnando? Parece promissor... o que
aconteceu?
— Você aconteceu, seu idiota! — Ela riu, e deu um soco em meu
ombro, apontando para o seu carro, que estava ao lado do meu. Ela foi até
ele e abriu o porta-malas, revelando um amontoado de sacolas. — Estou
indecisa! Você nos deixou com uma bomba nas mãos, não sei se a agente
Petrova vai gostar das roupas que escolhemos. E se ela ficar brava?
— Estou contando que fique. Adoro vê-la espumando de raiva.
— Ah, que ótimo, eu vou levar um tiro, porque você só sabe
expressar suas emoções provocando as pessoas.
Abri a boca para contestar, mas Fantasma foi mais rápido e
interrompeu nossa conversa.
— Você disse tiro?
A voz do meu irmão ecoou pelo estacionamento, e contive um
pequeno salto com o susto que levei ao ouvi-lo surgir bem ao meu lado.
— Seu maldito silencioso dos infernos — praguejei, encarando-o.
— Também é bom vê-lo, irmão. — O idiota sorriu. — Mas admito
que estou preocupado. Sobre o que estão falando?
— Não é nada, amor.
— Não acho que “tiro” e “nada” tenham o mesmo significado,
Estrela.
— É só um palpite que estou sentindo. Temo que Petrova não goste
tanto assim das roupas que Jasmin e eu selecionamos para ela e o filho.
— Petrova não vai atirar em você. Ela vai atirar em mim. — Dei
risada.
— Snake mal sabia as medidas da Petrova, dá pra acreditar?
Ela abraçou Fantasma e se recostou em seu peito, fuzilando-me com
os olhos dourados.
— Por que eu saberia as medidas dela?
— Deveria, já que está dormindo com ela — Fantasma provocou.
— De onde tiraram essa ideia maluca?
— Talvez porque ela estava no seu quarto quando chegamos? Ou
quem sabe é porque ela está morando na sua casa, com o filho dela...
— E o cachorro — Fantasma completou.
— Já cansei de falar que só estou ajudando.
O desgraçado riu, e comecei a pegar as sacolas do carro de Estrela e
transferi-las para o meu.
— Vou fingir que acredito. E espero de coração que eles gostem.
— Obrigado por isso e... Prepare seu uniforme. Colin e eu
jogaremos na semana que vem. É melhor estarem preparados.
— Vai ser incrível! — Estrela gritou, eufórica. — Ah, Snake, que
gesto lindo está fazendo por ele. Estou tão orgulhosa.
Desviei os olhos dela e encarei um ponto distante.
— Só estou fazendo um favor, você viu o garoto. Ele vai sair
voando a qualquer momento, precisa de resistência. Só isso.
— Talvez ele não se adapte ao beisebol, é melhor estar preparado.
Ele pode preferir algo como tocar piano — Fantasma opinou.
— Piano garante as garotas nerds, algo que ele já é. Faz as contas:
nerd com nerd é um desastre, ele tem que atrair algumas variações de vez
em quando, até saber do que gosta.
— Talvez esse não seja o desejo dele — Fantasma insistiu, e percebi
que aquilo já estava virando uma competição; uma que eu ia adorar ganhar.
— Eu aposto 100 dólares que o garoto vai gostar de beisebol —
comecei os lances.
Se tinha uma coisa que meus irmãos e eu nunca deixávamos barato
era uma aposta.
— Aceito a aposta — Fantasma concordou.
— Posso apostar também? — Estrela quis saber, e meneei um
aceno, autorizando. — Então quero apostar no beisebol.
— Alena! — Fantasma a chamou pelo nome, em choque.
— Desculpe, querido, não posso perder a chance de jogar beisebol.
— Estou cercado de traidores! — Fantasma fez drama. — Então que
os jogos comecem e, Snake, já aviso que não pode arremessar o garoto do
terraço quando for treiná-lo, ouviu?
— Vai pro inferno, Zion.
Dei risada, e me despedi dos dois, agradecendo mais uma vez pela
ajuda.
Atravessei metade da cidade e parei na loja oficial do Chicago Cubs.
Descrevi para a vendedora qual era o tamanho e a idade de Colin e comprei
um taco adequado, um par de luvas, uma blusa do time e um boné.
— Vai ser só isso, senhor? — a mulher quis saber, enquanto
embalava tudo, e olhei para o boné com a sensação de que estava faltando
algo.
— Embale mais um desse. — Apontei para o boné.
— Tamanho infantil como o primeiro?
— Não, esse é para uma mulher.
Soltei o ar. Aquela raposa tinha que servir ao menos para dar sorte.
Saí da loja do Cubs e passei em frente a uma loja que vendia todo
tipo de roupões e toalhas personalizadas. Parei por um instante em frente ao
mostruário de vidro e abri mais os olhos quando vi um par de roupões
diferentes.
Talvez estivesse maluco, porque naquele dia não foi a minha
cunhada Jasmin quem comprou mais bichinhos do que era permitido.
Saí de lá levando dois roupões de raposa, feliz da vida porque
Petrova ia querer socar minha cara, mas teria que usar aquela coisa
orelhuda.
Entrei no estacionamento coberto da minha casa e dispensei os
guarda-costas que faziam a vigia do local. Peguei as sacolas de compras,
que eram muitas, por sinal, e entrei na casa equilibrando-as, ignorando a
ansiedade que veio me consumindo pelo caminho.
Será que o filhote de raposa ia gostar do boné?
A pergunta era idiota, eu sabia, mas por algum motivo me
incomodava. A única certeza que tinha era a de que Petrova ia ficar puta
com as roupas, e até esperava por aquele momento, já que adorava
contrariá-la de alguma forma, mas a ideia de que Colin não gostasse de algo
me deixava inquieto.
Entrei na sala e estranhei o silêncio repentino que pairava no ar
ambientado e quentinho. Nenhuma criança repetindo meu nome mil vezes,
nenhum cão causando arruaça.
Estranho.
Estreitei os olhos e fui em direção ao sofá, para deixar as sacolas
sobre ele, e abri a boca quando pensei ter visto uma mancha no estofado do
meu Seccional Bliss. Um sofá importado, e muito caro.
Parei diante do móvel, ainda em dúvida se estava mesmo vendo
aquela mancha avermelhada. Só poderia estar ficando louco. Inclinei-me e
toquei a marca.
— Mas que porra aconteceu aqui? — praguejei ao sentir o tecido
molhado. — Aquela raposa bagunceira do caralho! — vociferei, puto de
raiva.
Coloquei as compras de lado, disposto a vasculhar a casa atrás da
safada, e logo o som de risadas animadas chamou minha atenção.
Segui o barulho e encontrei Colin correndo pelo campo com
Passarinho atrás dele. Observei a cena por um momento. O menino parecia
prestes a levantar voo, de tão veloz. Era rápido, deveria admitir. Talvez,
pesar o mesmo que um pernilongo ajudasse. Os cabelos ruivos iam
balançando à medida que ele corria, os braços finos se moviam de acordo
com as pernas, equilibrando o corpo e impulsionando-o para a frente. A
velocidade não impedia que sua cadência continuasse constante.
Poderia até apostar que o garoto fazia uma grande quilometragem
sem parar. Ele não perdia o foco, mesmo rindo das tentativas de Passarinho
de alcançar suas pernas. O menino levava jeito.
Aquela habilidade seria de grande utilidade quando ele fosse treinar
beisebol. Já até podia vê-lo correndo pelas bases do meu campo
improvisado e a cara do Fantasma quando um garoto de 10 anos passasse
por ele voando e marcasse um ponto. Ia ser épico, mas antes disso eu tinha
que achar a mãe dele e descobrir que raios aconteceu com meu sofá.
Dei as costas ao garoto e saí de lá disposto a encontrar Petrova.
Imaginei que ela estivesse trabalhando, já que a agente era uma teimosa
incorrigível e parecia disposta a dedicar todos os segundos da sua vida
àquele dispositivo. O bastante para se esquecer de comer e, quem sabe, até
respirar.
Por mais que a ideia de enforcá-la naquele momento me agradasse,
não queria que ela morresse no meu quarto do pânico.
Comecei a descer as escadas e ouvi um som atípico. Contínuos e
firmes, em uma cadência repetitiva. Constatei, surpreso, que Petrova não
estava no quarto do pânico, e sim treinando na academia.
Os cabelos ruivos estavam presos em um coque alto, que àquela
altura já estava bambo e graciosamente desorganizado. Ela estava usando o
par de luvas reservas que eu deixei na academia e atacava o saco de areia
pendurado no canto como se sua vida dependesse daquilo. Estava tão
focada que não viu que me aproximei e, por algum motivo, em vez de
pendurá-la pelos pés enquanto exigia uma satisfação, eu fiquei ali, parado,
admirando como ela era veloz e assertiva. Seus golpes eram curtos e
rápidos, feitos para serem fatais.
Petrova tinha dúvidas sobre sua própria capacidade e eu não fazia
ideia do porquê. A mulher era como uma pequena amostra de cianeto;
mortífera e inevitável. Naquele momento, ela encarava o saco de pancada
como se ele tivesse traído sua confiança; ela batia, recuava e atacava
novamente.
Ainda que não acreditasse no seu próprio potencial, ela continuava
tentando, nunca desistia, jamais abaixava a cabeça. Engoli em seco,
odiando a admiração que parecia aumentar cada vez que eu colocava os
olhos nela. Petrova era uma arma, pequena e sutil. A única arma que eu não
podia colecionar. A única da qual eu deveria me manter afastado.
— Por que está me encarando que nem um psicopata? — Sua voz
me trouxe de volta à realidade, e abri mais os olhos ao perceber por onde
infernos meus pensamentos estavam me guiando. — Ai. Meu. Deus. Você
viu! — ela gaguejou, de repente, e então me lembrei do verdadeiro motivo
pelo qual a estava procurando.
— Foi você. Como imaginei!
Entrei na academia e ela começou a desviar de mim, usando o saco
de areia como obstáculo.
— E-em minha defesa, foi sem querer e... eu limpei. Vai ficar
novinho em folha logo, logo — ela gaguejou.
— Novinho em folha? Novinho em folha, Petrova!? Sabe o preço
daquele sofá, sua... — ela tentou fugir pela direita, mas fui mais rápido do
que a safada e a cerquei — … bagunceira dos infernos! — rosnei.
— Foi sem querer! Eu jurrro! E foi você quem sugeriu que eu
descansasse hoje, foi o que fiz. — Ela arregalou os olhos e arrancou as duas
luvas.
— Você jurrra que descansar e atacar um sofá inofensivo significam
a mesma coisa? — Imitei a descarada, e a persegui pela academia, enquanto
a raposa usava tudo que encontrava pelo caminho para escapar das minhas
mãos. — Aquele sofá custa mais do que todas as suas parafernálias
tecnológicas, sua... desalmada. Como pôde?
— Foi um acidente! — Ela deu um gritinho quando a encurralei em
um ponto da academia.
Foi quando vi o moletom horroroso do Harry Potter que ela tanto
adorava jogado sobre algumas manilhas de treino.
— Não! Não ouse...
— Afaste-se, eu tenho um refém. — Ergui o moletom esquisito e
agarrei a gola como se fosse rasgá-lo.
Ela arregalou os olhos, verdadeiramente assustada. Também notei
que seu pescoço estava menos arroxeado do que antes, e certo alívio
misturado à raiva me preencheu. Era inevitável, sentia o mais puro ódio
toda vez que colocava os olhos naquela marca idiota.
— Essa é uma blusa rara, de um grupo de fãs que nem existe mais.
Não há preço para ela, por favor... e-eu vou pagar pelo sofá — disse em
pânico, tentando se aproximar para salvar a droga de moletom que eu nem
tinha me dado conta de que era tão importante para ela.
— Eu não quero pagamento. Quero vingança! — rosnei, e ela
avançou em minha direção, tentando alcançar a blusa.
Ergui a mão no alto e ela bateu com tudo contra meu peito e olhou
para cima, encarando a blusa, que agora pairava acima dela.
Contive um sorriso. Petrova era tão pequena perto de mim. Como
uma baratinha ruiva irritante.
— Por que não pega de volta? Não alcança? — Ela olhou para
minha mão estendida acima da sua cabeça e estreitou os olhos. — Merda!
— praguejei, quando ela deu um tapa com o dorso da mão no meu plexo.
O susto, junto com a leve falta de ar, me fez abaixar a mão, mas
reagi antes que ela conseguisse pegar o tecido com uma risada.
— Quer jogar sujo? Tudo bem, mas já aviso que é minha jogada
favorita.
A sorte foi lançada.
Nenhum de nós virava as costas para um desafio.
— Não dá pra jogar limpo com alguém como você. — Ela tentou
pegar a blusa novamente, esquivei.
— Alguém como eu? — Abri um sorriso, provocando-a.
— Grande e forte. Com homens como você, só me resta usar toda e
qualquer tipo de trapaça.
Ela se lançou em minha direção, e quando pensei que fosse me
atacar de frente, a bandida jogou o corpo para o lado e acertou a lateral do
meu dorso, fazendo-me cambalear pela academia. Era fascinante observá-la
em ação e ver como Petrova parecia dançar enquanto tentava me matar.
— É melhor tirar esse terno caro, ou ele vai acabar em pedaços. —
Ela abriu um sorriso lento e tentador.
— Se é o que deseja…
Tirei o paletó do terno e fiquei apenas com a blusa social, e uma
pequena luta começou.
Ela batia, tentando acertar minha mão, e eu revidava bloqueando seu
golpe. Começamos a rodar pela academia e percebi que cada vez que ela se
aproximava, ficava mais difícil deter seus golpes.
Então era isso, ela queria usar meu tamanho contra mim.
Raposa esperta!
Bloqueei um dos seus golpes e segurei seu braço, um erro que eu
demorei a perceber. Petrova agarrou minha gravata e a passou pelo meu
pescoço tão rápido que mal me dei conta do que estava acontecendo. Em
um segundo eu estava prestes a dominá-la, e no instante seguinte ela tinha
feito um nó ao redor do meu pescoço que poderia facilmente me enforcar.
Raposa esperta, gostosa e safada!
— Devolva o moletom, agora! — Ela puxou o nó e senti o tecido se
comprimir ao redor da minha garganta, começando a me sufocar.
Caralho, a maldita me fez tirar o blazer para ter fácil acesso a minha
gravata e eu nem me dei conta. Comecei a rir, sentindo seu corpo
pressionando o meu, enquanto as mãos pequenas seguravam a gravata com
toda força.
— Por que está rindo... AAAAA! — ela gritou, quando sentiu
nossos corpos rodarem juntos.
Usei de um segundo da sua distração para desfazer o nó da gravata e
a rodei nos braços até que ficasse de costas para mim. Fechei um mata leão
ao redor do pescoço fino e a empurrei contra o vidro da academia.
— Seu... idiota... — falou entre arquejos, e a mantive presa entre
mim e o vidro.
— Você foi boa, raposa. Só não é melhor que eu — provoquei, e a
rodei até que estivesse diante de mim.
Ela se debateu; mas, como eu não era louco, continuei segurando
seus braços e preservando a integridade do meu nariz, enquanto o moletom
jazia em algum canto da academia, completamente esquecido.
— Eu o detesto! — praguejou entre arfadas.
Alguns fios de cabelo caíram em seu rosto que, por sinal, estava
muito corado. Desci os olhos para sua boca e, puta que pariu, os lábios
entreabertos, arfando em busca de ar, me pareceram a visão do paraíso. Os
seios redondos subiam e desciam, conforme tentava respirar, e até tentei
ignorar a porra da ereção que estava pulsando entre minhas pernas, mas não
havia como esquecer o quanto Petrova era deliciosa, ainda mais quando me
encarava daquele jeito arredio e bravo.
— Você é insuportável, agente — eu disse, e descolei nossos
corpos.
Ela arfou, e empinou o nariz, virando-se para sair, mas havia algo...
no jeito que ela respirava, na gota de suor que descia por seu pescoço fino e
delicado e se perdia no meio dos seios fartos, nos olhos muito verdes, que
pareciam capazes de me incinerar. Algo que não consegui ignorar.
Segurei seu pulso e a puxei de volta. Ela cambaleou e a segurei
antes que se desequilibrasse, daquela vez a empurrei para o vidro com mais
delicadeza e menos controle sobre meus neurônios e minhas ações. Seus
olhos profundos como um rio se expandiram quando me aproximei e
resvalei o polegar na curva polida dos seus malares.
Petrova era tudo o que eu não queria, mas por que eu me sentia
incapaz de não puxá-la para mim? Por que eu me sentia excitado até os
ossos enquanto a encarava? Incapaz de não tocá-la... dedilhei seu rosto até a
boca carnuda e que eu sabia ser igualmente gostosa. Enfiei a mão em sua
nuca e ela estremeceu, os olhos foram da raiva à confusão e eu não
conseguia parar. Por mil infernos, gostaria, mas tudo que consegui foi
fechar minha mão ao redor do seu pescoço e me inclinei, até resvalar minha
boca na sua em um toque simples, mas que ateou fogo em cada partícula do
meu corpo.
De repente, eu me lembrava de tudo que tentei esquecer. De como
era beijá-la, de como era foder com Petrova gemendo em cima de mim,
como era quente e apertada, caralho.
Como a maldita era inesquecível!
— O que está fazendo? — ela sussurrou trêmula, tão fraca quanto
eu.
— Errando, de novo. — E a beijei com força, louco, tomado pelo
desejo mais insano de todos os tempos.
Enfiei a língua em sua boca e ela conteve um gemidinho gostoso,
que entrou fundo em meu subconsciente e de repente nada mais me
importava. Puxei sua cintura até que meu pau pressionasse seu ventre.
Dedilhei a lateral do seu corpo, resvalando nos seios inchados e deliciosos.
Poderia apostar que estava molhada e saber que ela estava com raiva por
estar excitada me deixava ainda mais faminto.
Faminto por ela!
Aprofundei o beijo, dançando com a língua naquela boca gostosa,
ousada e nerd pra caralho. Poderia fodê-la bem ali, em cima do tatame da
minha academia até que não aguentasse mais, até marcar cada pedacinho
daquele corpo curvilíneo.
Não sabia o que ela tinha, mas desde a primeira vez que
experimentei aquele beijo arredio e tímido, desde quando ouvi aqueles
gemidinhos baixinhos, que ela não queria deixar escapar, um novo vício
parecia ter se desenvolvido em meu organismo. Era extasiante possuir sua
boca como agora, em um misto de prazer e raiva que me fez engolir em
seco.
De repente, o som de passinhos apressados descendo pela escada
ecoou pela academia. Petrova se assustou em meus braços e deu um pulo,
acertando uma joelhada bem no meio das minhas pernas.
— Ah, meu Deus, sinto muito! — ela gritou quando caí de joelhos
bem diante da...
— Mal-di-ta! — Falei entre arfadas e a safada começou a gargalhar
sem parar, enquanto eu quase morria de dor bem diante dela.
— Senhor Snake? Está tudo bem? — Colin quis saber, e como se a
humilhação não fosse o bastante, o cão dos infernos viu que eu estava no
chão e decidiu se jogar em cima de mim.
— Passarinho! — Petrova agarrou as patas do Husky siberiano
desajeitado e insistente.
— Ele está bem, mamãe? — A voz de Colin surgiu preocupada de
algum ponto racional e sem dor no meu cérebro.
— Sim, querrrido, me espere lá em cima um minuto, sim? A pressão
do Snake caiu de repente.
— Certo, deixe comigo, sei o que fazer em casos em que a pressão
arterial tem uma queda significativa. Seria bom se ele se sentasse em uma
posição confortável, e ingerir uma boa quantidade de água, mas em
pequenos goles... Eu ajudo! — ele se ofereceu, preocupado e quase dei
risada.
— Eu juro que te mato — praguejei quando Petrova se abaixou
diante de mim, segurando uma risada.
— Devo ficar feliz por você não conseguir se levantar? AH! — Ela
deu um gritinho histérico e engraçado quando tentei agarrar suas pernas.
Fiquei de pé e notei que ela pareceu mais tensa.
— Você ficou maluco de vez? Acaso me beijar está na sua lista de
castigos? — Ela arfou, o rosto corado era um convite ao pecado e sim, eu só
podia ter perdido completamente a minha sanidade mental.
— Eu... — comecei a pensar na desculpa que daria para justificar o
motivo pelo qual eu me sentia incapaz de não tomá-la para mim, quando
Colin surgiu tagarelando do alto da escada com um copo de água nas mãos
pequenas.
— Tem que beber devagar, senhor Snake...
— Não corra! — gritei junto com Petrova, mas foi tarde demais.
Colin errou um dos degraus e virou o pé, já na metade do caminho.
Por um instante me vi congelado pelo mais puro pavor quando o vi
despencar pela escada. O copo voou longe e se partiu em vários pedaços,
enquanto ele rolava pelos degraus com um grito fino e único.
Corri, sem me dar conta do que acontecia ao redor, sem nem mesmo
conseguir respirar.
— Colin! — Petrova gritou atrás de mim, tentando alcançá-lo, a voz
embargada rasgou meu peito ao meio e sequer pensei antes de abraçar o
corpo pequeno de Colin, que começou a chorar.
— Te peguei, garoto! Te peguei! — sussurrei, já subindo as escadas
com ele no colo. — Cuidado. — Abracei Petrova pela cintura e a segurei ao
meu lado antes que pisasse nos cacos de vidro.
Corri com o menino nos braços até o sofá com Petrova e Passarinho
em meu encalço. Empurrei as sacolas para o chão e o coloquei sentado
sobre o sofá, sondando seu corpo até ver um ralado feio em um dos joelhos.
Ele abaixou a cabeça e o soluço que deu arrancou um pedaço do
meu coração. Vê-lo chorar baixinho, assustado, me paralisou por um
instante.
— Onde está doendo, querrrido? Diga para mim, sim? Vamos fazer
um curativo... — Petrova tentava acalmá-lo e respirar ao mesmo tempo,
mas as mãos trêmulas me diziam que ela estava apavorada, assim como eu.
Peguei meu celular e liguei para Jack, pedi que enviasse um dos
seus médicos à minha casa com urgência e expliquei brevemente sobre o
acidente de Colin.
— Vou pegar o kit de primeiros socorros. O médico já está a
caminho. — Petrova não respondeu, apenas continuou analisando Colin
com uma agonia desconsolada.
Segurei seus ombros com cuidado e sussurrei bem perto do seu
ouvido:
— Vai ficar tudo bem. Estou aqui, vou cuidar dele. Vou cuidar de
vocês dois. — Ela soluçou e levou a mão à boca. Estava tentando não
chorar e eu podia entendê-la, sim. Também sentia que parte da minha alma
ficou no andar debaixo, no instante em que vi Colin tropeçar.
Ele podia ter se machucado. Poderia ter sido fatal. Só a ideia já me
deixou doente.
— Está tudo bem — repeti, tentando confortá-la.
Peguei o kit de primeiros socorros correndo e me sentei ao lado de
Colin e Petrova, que o abraçava como se o garoto fosse desaparecer a
qualquer momento. Colin, por outro lado, estava em um silêncio estranho e
incomum. Os olhos pareciam perdidos e ele encarava um ponto no chão,
quase sem se mover.
Engoli em seco, preocupado por vê-lo assim e sem a mínima ideia
do que eu poderia fazer. Mal comecei a tirar os itens da maleta e meu
telefone começou a tocar. Agradeci mentalmente quando vi que era uma
ligação do médico, que estava trabalhando na região e chegou em poucos
minutos.
— O que houve? — Javier, o médico da família Kane, quis saber.
— Colin caiu da escada! — Fiz menção de que me acompanhasse
até a sala e ele abriu mais os olhos ao notar o pânico que estremeceu minha
voz.
— Devo presumir que é grave?
— Deve presumir que estamos apavorados!
— Senhorita... — Javier cumprimentou Petrova, que ainda parecia
em choque e meneou um aceno. O rosto pálido deixava claro o quanto
estava abalada. — Olha o que temos aqui. Um joelho de jogador! — Javier
brincou, o que fez Colin piscar os olhos e encarar o homem, que era uns
bons quarenta anos mais velho que eu e, apesar de lidar até com o que Deus
duvidava na família Kane, tinha uma leveza familiar, com jeito de avô que
transparecia uma calma necessária. — É exatamente assim que os jogadores
ficam depois de uma queda. Vi que gostam de beisebol... — Ele apontou
para o quadro que ficava bem no meio da sala, onde havia uma bandeira do
Chicago Cubs.
— O senhor Snake vai me ensinar a jogar — Colin fungou,
baixinho, encarando tudo que o homem tirava da maleta preta com
desconfiança.
Sentei-me ao seu lado, enquanto Petrova ocupava o lado oposto e
Passarinho nos encarava do meio da sala de um jeito preocupado.
— Ora, que notícia incrível! Mas para jogar, precisa me contar tudo
o que houve e onde está doendo. — Ele crispou as sobrancelhas e desviou o
olhar do médico. Sentei-me ao seu lado
— Meu joelho dói. E meu cotovelinho. — Ele fungou e torci os
lábios.
Quem falava cotovelinho? E por que diabos era tão fofo?
— Certo, vamos examiná-lo.
Fiquei ao lado do garoto, enquanto Javier verificava cada
machucado com calma.
— Foi só um susto — o médico disse depois de um tempo. — Ele
ralou o joelho e o cotovelo, farei um curativo e pedirei que entrem em
contato em qualquer evolução ou novo sintoma, mas as articulações estão
ótimas.
— Vai doer? — Colin quis saber, ainda encarando o chão.
— Nem um pouco. Vamos limpar o ferimento e fazer um curativo.
— Tem certeza de que é indolor, doutor? — Quis saber, sem
nenhuma disposição para permitir que Colin sofresse qualquer tanto a mais.
— Sim, senhor Snake. Posso parecer um homem vivido, mas ainda
quero me aposentar e viver por longos anos em uma ilha com minha esposa,
então sim, tenho certeza de que não pretendo mentir para um homem como
o senhor — ele brincou, animado e estava prestes a limpar o machucado. —
Ele pode sentir algum tipo de desconforto quando eu começar a limpar, mas
nenhum dos medicamentos arde ou dói.
— Você vai conseguir, garoto. Você é forte! — disse para incentivá-
lo e congelei no lugar quando Colin passou os bracinhos pequenos ao redor
da minha cintura e enfiou a cara em meu peito, escondendo o rosto do
médico que começou a limpar o ferimento.
Petrova me encarou com os olhos um pouco mais abertos que o
normal, enquanto acariciava as costas do filho como se pudesse transmitir
algum tipo de força pelo toque. Engoli em seco e dei um tapinha nas costas
do garoto, mas toda a armadura que eu tentei erguer caiu de vez quando
percebi que ele estava tremendo.
Colin estava com medo e saber que ele confiava em mim o bastante
para tentar encontrar abrigo encheu meu peito de uma emoção violenta,
intensa e ao mesmo tempo dolorosa. Passei o braço pelas costas do garoto,
que me apertava mais conforme o médico ia limpando.
— Seja gentil, por favor — pedi a Javier e observei o homem
finalizar o curativo enquanto eu me afogava em aflição.
O médico foi embora algum tempo depois e o levei até a porta, após
agradecê-lo por tudo e efetuar o pagamento da consulta.
— Ele vai ficar bem, não se preocupe tanto — o homem disse antes
de partir.
Só então entendi a profundidade da frase “Falar é fácil!”. Meu corpo
parecia prestes a sucumbir a um medo que nunca senti antes e aquilo já
estava me deixando louco.
Voltei para a sala, ainda meio perdido. Petrova tinha colocado Colin
deitado no sofá, o mesmo que ela tinha assassinado com o líquido vermelho
e ela endireitou a postura quando me viu. Os olhos fundos eram o reflexo de
toda a força que ela fazia para não chorar. Abri a boca para perguntar como
ele estava se sentindo, mas a mulher atravessou a sala em um instante, antes
que eu fosse capaz de dizer qualquer coisa.
Arregalei os olhos quando senti o corpo pequeno se chocar contra o
meu em um abraço apertado.
— Obrigada! — ela sussurrou, aflita.
— Eu disse que cuidaria de vocês. — Passei o braço por sua cintura
e fechei os olhos por um instante, apreciando secretamente aquele abraço
entregue.
— Eu mal consegui pensar quando o vi tropeçar. Em momentos
assim eu... — Ela se afastou e subiu os olhos para meu rosto. — Sempre é
tão difícil ser a pessoa que precisa se controlar para ajudá-lo. Essa foi a
primeira vez que tive alguém ao meu lado — ela disse baixo para que Colin
não escutasse e a voz trêmula me fez puxá-la novamente para um abraço.
— Como ele está?
— Calado. Ele fica assim porque não gosta de chorar na frente dos
outros e... bem, acho que ele quer parecer forte diante de nós dois.
— Certo, vamos dar um jeito nisso. — Espalmei as costas de
Petrova e a guiei de volta para a sala.
Colin estava encolhido no sofá e mal conseguia me encarar. O rosto
cheio de pequenos pontos de sardas parecia um pouco mais vermelho.
Sentei-me perto dos seus pés no sofá, enquanto Petrova se
empoleirava exatamente no lugar onde a safada tinha manchado. Puxei seus
shorts até que ela despencasse no sofá e sussurrei:
— Não teste a minha paciência. — Ela mordeu o lábio, segurando
um sorriso e senti que enfim poderia voltar a respirar.
Virei-me para a criança, que era pequenino demais ao meu lado e
percebi o quão frágil poderia ser a vida dele. Como era fácil se machucar,
e... que Deus me ajude, até morrer. Uma fincada transpassou meu peito com
a mera hipótese e tive que respirar fundo para afastar aquela sensação
ridícula de estar me afogando em terra seca. Não sabia o que dizer a ele, até
começar a falar exatamente o que gostaria de ouvir se estivesse em seu
lugar. Não gostava que sentissem pena de mim, pelo contrário, adorava
quando as pessoas reconheciam algum feito meu, seja ele bom ou ruim.
— Colin, cair é fácil. Difícil é cair e não se machucar para valer,
você foi brilhante — elogiei e ele me olhou pelo canto dos olhos.
— Mas eu chorei — disse, sentido, e mais uma vez a realidade de
que ele não se permitia ser uma criança me abraçou e desejei mais que tudo
conseguir libertá-lo de toda preocupação que o obrigava a ser mais daquele
jeito.
— Meu amor, homens também podem chorar. Todo mundo pode,
até o Snake. Ele é um chorão — a raposa mentiu descaradamente.
— O senhor chora mesmo? — Ele estreitou os olhos, como se
duvidasse.
— Olha só, ele vai chorar agora! — Petrova agarrou um tufo dos
meus cabelos e puxou com força.
— Ai, merda! Tá maluca? — Colin gargalhou e não consegui evitar
a risada que subiu por minha garganta com a surpresa que senti ao ser
atacado daquela forma.
— Sinto muito, eu só... queria provar minha teoria. — Ela
mordiscou os lábios, sapeca e revirei os olhos, virando-me para o filhote de
raposa.
— Não recomendo que puxe o cabelo de ninguém, Colin, ainda
mais de um homem que pode facilmente te prender dentro da geladeira. —
Estreitei os olhos para a safada. — Mas pode chorar o quanto quiser. Isso
não muda quem você é — disse a ele. — E vai ganhar uma cicatriz. Isso é
tão legal quanto uma tatuagem. — Continuei a puxar assunto, sem fazer
ideia do que dizer, então só me restava improvisar.
— Sério? — ele murmurou, olhando em minha direção. A ponta do
nariz estava muito vermelha e os olhos marcados pelo choro.
— É claro. Elas contam a sua história.
— Como as tatuagens do senhor?
— Exatamente. Cada uma delas tem uma história. Faço uma sempre
que algo importante acontece. Como essa. — Apontei para a pequena
palavra em meu pescoço, “Hope”. — Fiz quando minha primeira sobrinha
nasceu. Foi um momento épico.
— O senhor parece ser cheio de momentos épicos. — Ele apontou
para as tatuagens que desciam por meu braço. — Deve ser cheio de
histórias.
— E você também. Agora você pode dizer que rolou por uma
escada e sobreviveu.
— Só quero deixar claro que isso não deve ser um motivo de
incentivo a novas cicatrizes — Petrova interveio e Colin abriu um sorriso
pequeno.
— Ainda bem que foi o joelho, o que faríamos se fosse a mão? Você
não conseguiria abrir isso. — Puxei a sacola do Chicago Cubs e a ergui.
— O que é isso, senhor? — Ele piscou devagar e sondou a sacola
com curiosidade.
— Disse que queria jogar comigo, então pensei que talvez
precisasse de um uniforme. — Puxei mais uma sacola. — E um taco novo.
— Uau! — Ele arregalou os olhos quando ergui o taco de madeira.
— O senhor comprou isso para mim?
— Não é nada demais, abra. — Ele agarrou o pacote com uma das
mãos e o taco com a outra.
A tristeza em seus olhos cedeu lugar para um entusiasmo radiante e
assisti com certa euforia o garoto rasgar a embalagem e abrir mais os olhos
quando se deparou com o boné.
— Minha nossa, olha, mamãe! É o boné mais lindo de todos! — Ele
enfiou o boné grande na cabeça e ele ficou largo, rodando. — Talvez seja o
maior de todos também. — Gargalhou, e respirei fundo, aliviado por ouvir
o som da sua risada.
— Este não é o seu. — Ri e apontei para o segundo boné na sacola.
É o da sua mãe.
— Meu? — Petrova arregalou os olhos.
— Aceite esse boné e seja útil. — Enfiei o boné em sua cabeça e
não consegui evitar um sorriso quando vi o quanto ela ficou ainda mais
linda usando o emblema do CUBS.
— Como que usar um boné pode ser útil para alguma coisa? — Ela
tirou o boné e encarou a logo azul do time, torcendo os lábios em seguida.
— Reza a lenda que quantos mais torcedores o Cubs tiver, mais
jogos vão ganhar.
— Por que vocês são tão loucos por esse time? — Ela quis saber,
ainda analisando o boné como se ele fosse explodir bem na sua mão.
— Não é um time. É o melhor time de todos os tempos. Você e o seu
filhote precisam assistir a história do Cubs para entender como ele é
espetacular.
— Snake, passei o dia descansando como agressivamente sugeriu e
aproveitei para pesquisar sobre seu time. — Ela encarou o boné e franziu o
narizinho em minha direção. — Sinto ser a portadora desta notícia, mas
nem um milagre poderia aumentar significativamente a quantidade de
vitórias que esse time tem. Mas... já que gosta de sofrer, eu sofrerei com
você. — Ela colocou o boné novamente, me provocando com um sorriso
zombeteiro naquela boca desenhada e carnuda.
Boca afrontosa do caralho!
— Quer saber, você não merece usar esse boné! — Puxei-o de sua
cabeça.
— Ei, não se deve tomar um presente! Devolva, agora! — Ela pulou
e alcançou o boné como se fosse um puma feroz.
Por um momento, a sombra de preocupação que vi em seus olhos se
desfez. Obviamente me enfrentar era sua prioridade e eu não me importava,
contanto que a expressão triste que vi alguns minutos atrás não voltasse ao
seu rosto.
— Tá, pode ficar com ele. Não precisa morder! — provoquei e
rimos os três juntos.
Olhei para ela, que agora estava um pouco mais descabelada, com
fios laranjas para todos os lados, tão bagunçada e tão linda que me fez
engolir em seco. Não conseguia parar de encarar sua boca, muito menos era
capaz de controlar a vontade louca de penetrá-la com minha língua.
Porra, não devia ter feito aquilo. Por que eu a beijei, inferno? Agora
não conseguia me afastar da sensação de que algo estava faltando, como
uma abstinência.
Nunca fui tão impulsivo, aquela sensação de querer tomar o que não
me pertencia era novidade.
Minha mente confusa parecia rodar. Aquela casa e a presença dela a
tão poucos metros de mim estava prestes a me sufocar. E tinha também o
garoto e o palpitar estranho que sentia toda vez que via aquela alegria
verdadeira em seu rosto. Eu me sentia bem em fazê-lo feliz, eu me sentia
bem pra caralho cuidando dos dois.
Aquilo me assustou. Coloquei-me de pé em um rompante.
— Eu... tenho um compromisso — menti. — As sacolas...
— O quê? — Petrova piscou, confusa e obriguei-me a organizar os
meus pensamentos para não parecer um maluco de vez.
— Comprei algumas coisas, já que você se recusou a fazê-lo. —
Apontei para o amontoado de compras ao lado do sofá e Petrova arregalou
os olhos verdes, só então se dando conta delas.
— Que monte de sacolas são essas, Snake?
— Roupas e mais alguns itens que talvez possam precisar.
— O quê? — ela vociferou e ficou de pé. — Você... eu não acredito
que fez isso, seu teimoso!
— Ah, olha quem fala. A fundadora da teimosia.com! — Revirei os
olhos, sem de fato encará-la. — É melhor considerar usá-las, minha
máquina de lavar já não suporta vê-la todos os dias.
— Isso é uma orelha? SNAKE, ISSO É UMA ORELHA?
— É sim, mamãe! — Colin gargalhou e Petrova começou a me
xingar em russo.
Olhei para a cena com um aperto estranho se fechando ao redor do
meu coração. Não sabia o motivo, mas subitamente me senti triste. Aqueles
dois... eles eram uma realidade da qual não podia me aproximar.
Deixei Petrova me xingando, peguei minhas chaves e saí de lá o
mais rápido que pude, garantindo que os guarda-costas retomassem suas
posições e me avisassem de cada passo que os dois dessem.
Precisava me desintoxicar de toda a preocupação que senti ao ver o
garoto caindo e que parecia ter se fixado em minha pele junto com minhas
tatuagens. Agora ele estava bem, não havia com o que me preocupar. Era só
convencer minha mente daquilo com uma boa dose de uísque.
Mas como ia me livrar da lembrança daquele beijo e de tudo que
gostaria de ter feito com a ruiva no subsolo mais cedo? Como?
Não podia tocá-la.
Não queria tocá-la, inferno!
Então dirigi até a boate de Jack, disposto a beber até esquecer tudo o
que mais queria naquele momento de insanidade louca.
Diga-me, como eu devo respirar sem ar?
Não posso viver, não posso respirar sem ar
É assim que eu me sinto
quando você não está aqui. Não há ar
No Air – Chris Brown
Petrova
Fiquei longos minutos encarando a pilha de roupas que ficava cada
vez maior com um vinco nas sobrancelhas. Estava confusa.
Confusa não, brava, possessa e completamente perdida.
Snake era como um daqueles labirintos ridículos que pessoas ricas
insistiam em colocar no meio do jardim, não fazia sentido algum.
Primeiro ele me provocou até me levar ao limite, depois me beijou e
para piorar, me ajudou a cuidar de Colin, e aquele último era infinitamente
mais difícil de esquecer do que qualquer outra coisa.
Entrei em um estado de pânico quando vi meu filho cair e fui
assolada por um milhão de pensamentos ruins, não sabia o que fazer, para
dizer a verdade, eu nunca sabia ao certo o que fazer, o que me deixava em
dúvida se eu realmente sabia o que era ser mãe. Não davam muitos cursos
sobre aquilo, mas podia garantir que ficar paralisada não fazia parte do
combo. Sempre tive que lidar com coisas daquele tipo sozinha, mas hoje,
quando Snake disse que cuidaria de nós, eu tive que me esforçar muito para
não chorar.
Foi a primeira vez que alguém me ajudou com aquela missão tão
difícil que era ser mãe e naquele momento, eu sentia um misto de gratidão
por ele ter estado ao meu lado e culpa, por ter percebido o quanto eu
ansiava por algum apoio desde o dia que Colin nasceu.
— Disse que não precisava, malvadão idiota! — praguejei ao erguer
um macacão de panda, com orelhinhas felpudas e uma versão menor para
Colin, muito fofa por sinal, tentando conter a emoção que embargava minha
voz.
Agora minha dívida para com ele tinha aumentado uns bons mil
dólares, ou dez vezes mais que aquilo, a julgar pelas marcas estampadas nas
sacolas de compra.
— Olha, mãe! — Colin, diferente de mim, parecia se divertir com
cada nova peça e agora erguia uma camisa polo verde que ficaria um
charme nele. Os olhos brilhantes me fizeram sorrir. — Eu gostei de todas
elas. — Apontou para os três montinhos de roupas, que incluíam um pouco
de tudo. — Minha nossa, tem mais orelha! — Colin começou a rir quando
pinçou mais uma peça com a ponta dos dedos e arregalei os olhos para o
pedaço de tecido marrom.
Entre as camisas, shorts e calças, estava um pijama felpudo de
Raposa, com direito a orelhas e rabo.
— É fofo. — Apoiei, tentando não rir, sem saber como Snake
arrumou aquela coisa, isso sem contar os dois pandas.
— Tem um para você também!
— O quê? — Minha voz saiu esganiçada. Arregalei os olhos quando
vi a versão adulta do pijama gigante, com as mesmas orelhas de raposa
caídas para os lados. — Ele só pode estar brincando com a minha cara. —
Acabei rindo. — Nunca vou entrar nessa coisa.
— Não vai me fazer companhia, mamãe? — Colin vestiu o pijama
por cima da roupa. Os cabelos laranjas combinavam com as orelhinhas
pontudas e dei risada vendo-o pular de um lado para o outro, o joelho ralado
foi temporariamente esquecido, tanto quanto o susto que todos nós levamos.
Passarinho também não perdeu tempo e começou a correr ao redor
de Colin.
— Vou lavar essas peças enquanto vocês se ocupam em pular sem
parar.
— Mamãe... — Colin parou de saltitar e seu semblante se tornou
mais sério.
— O que foi, querido?
— Pode ser um pouco mais gentil com o senhor Snake? —
Arregalei mais os olhos com o pedido inusitado e certo nervosismo me
tomou.
— Gentil? Aquele homem é um... irritante! — Um irritante
beijoqueiro e cheio de dedos.
— Mamãe, sejamos sinceros e justos, sim? Ele nos recebeu nesta
casa enorme e segura, forjou o pote da regressão para tentar nos ajudar e
quando você não aceitou, e sim, eu soube que a senhora não aceitaria no
instante que o viu pela primeira vez... — ele parou para respirar e
continuou: — ... ele decidiu comprar tudo por conta própria. — Colin
passou as mãos pelos cabelos ruivos e endireitou a postura. Daria um ótimo
advogado, o pequeno defensor dos ogros injustiçados. — Ele pode ser
teimoso, grosseiro e às vezes pode até dar medo, mas eu sinto que ele
realmente só está tentando nos ajudar. Vamos decretar a paz enquanto
estudamos as estratégias deste time? — Ele se inclinou e pegou o boné. —
Preciso entender melhor cada uma delas.
— Não tem o que aprender. A estratégia deles é perder. — Bufei e
cruzei os braços, ainda chateada por saber que Snake mexia tanto comigo
ao ponto de me deixar trêmula.
— Mamãe! — Colin chamou minha atenção e balançou a cabeça,
segurando um sorriso.
— Tudo bem. Não vou provocá-lo, a menos que ele o faça primeiro.
Aquele... Tatuado Malvadão gostoso dos infernos. Argh!
— Que ótimo, ouviu isso, Passarinho? — Ele se virou para o cão,
que tombou a cabeça de lado como se conseguisse entender o que ele dizia.
— Vamos ter que lidar com uma guerra em breve.
Passei o restante do dia ocupando minha mente. Não queria pensar
em mais nada além das roupas que pretendia lavar, e na decodificação mais
difícil que já enfrentei na vida e, depois de trabalhar duro, fiz o jantar com a
ajuda de Colin, que por sinal estava exausto por ter voltado a correr, ainda
assim, tinha desistido de jantar e dormir cedo porque queria esperar Snake
chegar.
Mas ele não chegou.
Deveria admitir que vez ou outra eu também me pegava olhando
para a porta, como se a qualquer momento ele fosse passar por ela.
Estava preocupada, afinal, conhecia bem os alcances da CIA.
Àquela altura, eles já sabiam que Snake estava nos abrigando. Ele poderia
se tornar um alvo, mas havia também a breve lembrança do seu rosto
conturbado poucos minutos antes de sair. Alguma coisa o incomodou e não
saber o que era estava me deixando inquieta.
— Acho que não vou conseguir esperar pelo senhor Snake. — Colin
piscou devagar e se sentou em uma das cadeiras ao redor da mesa de jantar,
usando nada mais, nada menos, que o pijama de raposinha.
Algo que só foi possível por causa da máquina de lavar de última
geração que o Malvadão tinha na lavanderia, onde a roupa já saía seca e
prontinha para uso.
— Estou muito cansado, acho que cheguei perto da fadiga física de
tanto correr. Estou fora de forma.
— Está em ótima forma para eu te apertar todinho! — Agarrei Colin
em um abraço e o apertei por alguns segundos, o tempo máximo que
geralmente não o incomodava, já que não gostava muito de ser sufocado
por um abraço de urso. — Não chegue a exaustão, filho. Lembra do que
sempre te falei?
— Descanso também é treino. — Ele bocejou.
Óbvio que se lembrava.
— Pois bem, vamos jantar e depois quero que vá dormir e descanse
bem. Amanhã pegue leve com a corrida, certo? — Ele meneou um aceno e
levou uma garfada à boca. Tinha feito uma carne de panela com legumes
suculenta, uma receita antiga e deliciosa. Uma das favoritas de Colin e uma
alegria latente me atingiu ao vê-lo comendo, e mesmo com sono, ficava
nítido sua satisfação a cada garfada.
Ele tinha razão. Deveria ser mais grata a Snake por ter nos abrigado.
Se não fosse por ele e sua proteção, eu não teria onde me esconder com
Colin e meu coração doía só de imaginar o que poderia ter acontecido.
Terminamos o jantar e acompanhei meu filho até o quarto com
Passarinho na nossa cola e nem precisou de muito para que o cão pulasse na
cama e se aconchegasse no cantinho de Colin.
— Boa noite, meu amor. — Depositei um beijo na sua cabeça.
— Mamãe...
— Sim?
— O senhor Snake é como eu? — Ele parou, pensando na palavra
que deveria usar.
— Inteligente? Olha eu tenho minhas dúvidas...
— Não, mamãe! — Ele deu risada e me lançou um olhar de
repreensão. — Ele não tem pai? — Uma fisgada atingiu meu coração. —
Um dos irmãos dele disse que a família toda assiste aos jogos do Cubs
juntos, mas a mãe e o pai dele não estavam aqui. — Ele ergueu as
sobrancelhas, como se fosse uma dedução óbvia.
Colin era sempre muito literal com as palavras.
Sentei-me na beirada da cama e segurei a mão de Colin, pensando
por onde começar a explicar. Minhas pernas estavam bambas, como sempre
ficavam quando ele tocava em algum assunto que poderia levar até seu pai.
Tinha dito a Colin que Matt morreu a trabalho, antes mesmo de saber que
eu estava grávida. Odiava ter que mentir para ele, no entanto, mais do que
aquilo, não tinha coragem de dizer que ele foi rejeitado pelo seu genitor.
Afinal, Matt nunca soube o que era ser pai.
— Notou como os irmãos Holder são diferentes? — Comecei a falar
sem saber por onde começar.
— Sim! — Ele abriu mais os olhos, como se um leque de novas
informações tivesse se aberto bem diante dos seus olhos.
— Os irmãos Holder são adotados, querido.
— Os três? — Ele abriu a boca e meneei um aceno, confirmando. —
Como não percebi isso antes? Não são diferenças comuns entre irmãos
biológicos, como cor dos olhos, cabelos e até mesmo o tom de pele. Os
traços deles são completamente distintos.
— Sim. E você está certo, Snake não tem mãe, e também não tinha
pai, até ser adotado pelo senhor Reid Holder. Não o conheço pessoalmente,
mas já o vi de longe e perto dos filhos, ele parece ser um pai muito
amoroso.
— Então eu estava certo, no fim das contas. O senhor Snake é como
eu. Também não tenho pai, mas um dia isso pode mudar não é, mamãe? —
Seus olhos esverdeados brilharam sob a luz do abajur e senti um nó forte se
prender ao redor da minha garganta, como se um abismo se abrisse bem
diante dos meus olhos.
Abracei Colin em um impulso doloroso, incapaz de dizer qualquer
coisa e escondi dele todo o meu temor. Não queria que ele, de alguma
forma, visse o medo que eu estava sentindo, temendo estar grávida
novamente. De mais uma vez ter que lidar com o papel de pai e de mãe, e
ver a decepção no rostinho deles por terem uma família diferente das outras
crianças. De vê-los desejar a única coisa que eu não posso dar:
A porcaria de um pai!
Fui me deitar alguns minutos depois, ainda aflita por Snake não ter
voltado. Mas o que eu poderia fazer? Não havia como rastrear o homem
toda vez que ele decidisse viver sua própria vida. Estávamos morando ali de
favor, ele não me devia nada. E não entendia por que meu coração estava
disposto a acreditar no contrário.
Rolei na cama por longos minutos, sem sono, quando de repente
uma gota atingiu a parede de vidro do quarto. Tinha deixado parte da
cortina aberta e foi através da pequena brecha que consegui, constatar em
choque, que tinha começado a chover.
Saltei entre as cobertas e arregalei os olhos quando mais uma gota
enorme atingiu o vidro e desceu escorrendo até se perder no escuro da
noite. Engoli em seco, sentindo a mais pura angústia se espalhar por cada
uma das células, tanto quanto o ar parecia se esvair dos meus pulmões.
Coloquei-me de pé em um salto e cambaleei até a cortina olhando
para o chão, incapaz de erguer os olhos e encarar a chuva que começava a
ficar mais forte. Fechei a cortina e corri para a cama. Um trovão rasgou o
céu e contive um grito que ficou preso em minha garganta, tanto quanto
minha respiração.
— É só chuva... — disse baixo, trêmula e puxei o ar novamente. —
É... só... — resfoleguei, sentindo uma mão se fechar ao redor do meu
pescoço.
Estava prestes a cair em um abismo e o som da chuva reverberando
pelo teto estava me empurrando ainda mais em direção a ele.
Puxei o ar, apavorada, enquanto a torrente de água do lado de fora
aumentava e parecia capaz de entrar no quarto e invadir meu coração.
Tateei a cama de olhos fechados e demorei a me lembrar que tinha deixado
os fones no quarto do pânico. De qualquer forma, eles não seriam de grande
ajuda naquele momento.
Nem meu cantor favorito me livraria dos tremores que começaram a
dominar cada um dos meus membros.
Empurrei meu corpo contra a cabeceira da cama, suando enquanto
tentava respirar. Precisava resistir, meu Deus... Gemi quando minha mente
começou a ser tomada por flashes de uma tempestade dolorosa, forte,
invencível e que só tinha um objetivo: me machucar.
Não consegui me controlar e comecei a tremer. De medo, de
desespero, de pavor.
Mais um trovão reverberou pelo céu e estremeceu o ar ao meu redor.
O som estava tão perto que parecia bem acima de mim, como se toda a casa
tivesse sido sugada para dentro de uma nuvem carregada. Levei a mão ao
peito com a sensação de que meu coração tinha se partido ao meio. Era
como ser puxada para dentro de um pesadelo.
Tentei resistir, mas não consegui. Fui sugada pelo mais puro pânico,
enquanto tudo desmoronava ao meu redor.
Snake
Passava da meia noite quando decidi voltar para casa. Não estava
com pressa de rever todo o combo alucinante que tinha deixado para trás.
Encarei a chuva que reluzia através dos faróis do carro em uma
constância forte e agressiva, enquanto uma sequência de trovões clareava o
céu de uma Chicago fria e vazia, assim como eu.
Descobri desde pequeno que ignorar todo e qualquer sentimento era
o caminho mais fácil para sobreviver. Sentir causava estresse demais.
Expulsar as emoções te deixava mais forte, confiante, no entanto,
igualmente vazio e eu gostava de ser assim. De dedicar todos os meus
sentimentos bons à minha família e os ruins aos meus inimigos, não existia
meio termo.
Não existia essa coisa ridícula queimando dentro do meu peito.
Talvez por isso aquele dia de merda tenha me assustado tanto. Quase
tinha perdido o controle com aquela diaba ruiva mais cedo e ainda me
sentia indignado. Tinha também aquele filhote de raposa dos olhos grandes,
que quase me causou um infarto quando caiu da escada. Depois do furacão
de medo e preocupação que me atingiu, restou apenas a alegria estampada
no rosto do garoto depois de ganhar um taco de beisebol e um boné.
Por que aquelas lembranças estavam me incomodando tanto?
— Que merda! — Apertei o volante, sóbrio o suficiente para ainda
sentir aquele retumbar estranho e inquieto em meu peito.
Balancei a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos. Passei
pela barreira do condomínio e subi a colina focado em chegar à minha casa
e desmaiar no quarto enquanto ignorava a realidade paralela que eu estava
vivendo, isso se conseguisse desviar da arara louca que eles chamavam de
cachorro. Bufei, irritado. Aquela situação parecia pior a cada dia.
Estacionei o carro e desci, ouvindo os trovões cortando o céu como
se estivessem a centímetros de mim. Minha casa ficava no topo da colina e
toda vez que chovia era como ter uma nuvem especial bem em cima da
minha cabeça. Entrei em casa e estranhei não ser recebido pelo cão de
Satanás. Pela hora, talvez estivesse dormindo com Colin.
Entrei no corredor e estreitei os olhos ao notar uma sombra muito
grande na porta do quarto de Petrova.
— Que porra é essa? — Encarei a figura que lembrava um animal e
levei a mão até a arma em minha cintura, temendo o que quer que fosse
aquilo. Era grande demais para ser o Passarinho. Dei mais um passo
devagar em direção à figura e de repente, ela ganhou um rabo e uma cabeça
laranja.
— Senhor Snake! — Saltei de susto, fazendo com que as luzes do
corredor acendessem automaticamente com o movimento e guardei a arma
que já estava em punho em uma velocidade impressionante.
— Colin? — Pisquei, tentando entender que diabos estava
acontecendo ali e encarei o menino que parecia abatido.
Deveria admitir que a visão daquele garoto dentro do pijama de
raposa era a coisa mais fofa que eu já vi na face da terra. Uma fofura que
aqueceu meu peito de um jeito incomum e embaraçoso.
— O que está fazendo sentado no chão? — Ele estava enrolado em
uma manta junto com Passarinho, que se levantou e veio cheirar meu pé
como se me desse as boas-vindas.
— Não é nada, senhor. Só estou fazendo companhia para a minha
mãe.
— De que porr... — Parei de falar ao notar que, mais uma vez,
estava prestes a despejar um palavrão na frente do menino. — Do que está
falando? É Petrova? Ela passou mal de novo? — Fiz menção de abrir a
porta, subitamente tomado de preocupação.
— Não! — Ele se levantou e segurou minha mão. — O senhor não
pode entrar lá.
— Por que não? O que está acontecendo, Colin? — Abaixei-me
diante do garoto e olhei em seus olhos, sondando desde as sardinhas no alto
do seu nariz até os olhos muito verdes como os da mãe. — Se disser que
não é nada, vou entrar lá dentro com você pendurado no ombro.
— Minha nossa, o senhor sabe mesmo negociar, não é? — Ele
suspirou dramaticamente. — Mamãe não gosta de chuvas. É isso, agora se
me der licença, tenho que voltar ao trabalho. — E se virou, puxando uma
revistinha do mangá que eu o havia emprestado.
— Você vai pegar uma gripe se ficar sentado aqui neste frio,
inferno! — praguejei, segurando-o pelos ombros. O garoto ergueu os olhos,
a preocupação estampada em suas íris era palpável. — Me conta, o que está
acontecendo? — Ele respirou fundo, endireitou a postura e se embrulhou na
coberta antes de começar a falar.
— Mamãe tem Pluviofobia — disse simples, como se a palavra
viesse junto com uma explicação do google.
— Traduz. — Estreitei os olhos para o pequeno gênio.
— Ela tem fobia de chuva e as crises são... difíceis.
Fobia de chuva?
Abri mais os olhos e encarei a madeira da porta fechada. Meus
pensamentos começaram a reunir detalhes como um quebra-cabeças. Não
houve uma única vez que saí com Petrova que ela não tenha consultado a
meteorologia.
Então era por causa daquela fobia?
— E você sempre fica assim, na porta? — As palavras saíram em
um sussurro. Estava confuso até os ossos e uma nova pontada surgiu em
meu peito quando ele confirmou com um aceno.
— Ela não gosta de ser vista assim, então eu finjo que não sei e fico
aqui. — Ele baixou os olhos para o chão. — Não posso entrar lá porque ela
ficaria triste se eu a visse agora, mas consigo aguentar qualquer noite
chuvosa para não deixar ela passar por isso sozinha.
Respirei fundo com a sensação de estar engolindo um amontoado de
lâminas.
— Você é muito corajoso — falei devagar, enquanto assimilava toda
aquela loucura. — O que está fazendo... sua mãe ficaria orgulhosa. Está
cuidando dela e isso é admirável, ainda mais para uma criança.
— Ela é tudo que eu tenho de valor, além do Passarinho. Meu corpo
não cresce tão rápido quanto a minha mente evolui, mas um dia serei um
adulto forte e mamãe vai poder se sentir fraca de vez em quando. — E
bocejou, deixando-me mais uma vez em choque pela sua pouca idade perto
do mar de conhecimentos que o garoto possuía. — Então, senhor, se me
permite... — Ele ergueu a revistinha, prestes a se jogar no chão de novo.
— Escuta garoto — segurei seu braço —, quero que vá dormir um
pouco, precisa descansar para que seu joelho melhore logo se quiser treinar,
lembra?
— O senhor teoricamente tem razão. — Ele estreitou os olhos,
confuso.
— Eu sempre tenho razão.
— É uma afirmativa ousada. — A sombra de um sorriso permeou
seus lábios e revirei os olhos.
— Vai dormir um pouco, eu vou entrar para ver como ela está, não
se preocupe — pedi, inquieto com a tristeza estampada no rosto do
moleque.
— Não faça isso, senhor Snake. Sua vida correrá um grave risco! Já
disse, mamãe odeia que a vejam assim.
— Deixa que eu me viro com a ira da raposa. Já estou acostumado.
— Poderia até rir se não estivesse tão atormentado.
— Se é isso que deseja, estarei na segurança do meu quarto caso
precise de ajuda. — Ele se embolou nas cobertas.
— E você me ajudaria com o quê, mini Einstein?
— Posso ligar para a emergência. Talvez o senhor precise depois de
entrar lá. Ah, e se ela perguntar, o senhor trate de cruzar os dedos e dizer
que eu não tive nada a ver com isso, ouviu? — Dei risada e o vi desaparecer
dentro do quarto sendo seguido por Passarinho.
Realmente parecia com medo da reação da mãe, o que me deixou
atento.
Abri a porta tentando imaginar todo tipo de cenário, mas nenhum
deles me preparou para a respiração aflita e dolorosa de Petrova, ruindo
pela noite como se não conseguisse sustentá-la sozinha. Sondei o quarto e
em menos de um instante eu a encontrei. Estava encolhida sobre a cama,
escondida no quarto escuro enquanto a chuva açoitava as janelas.
— Petrova... — chamei baixinho, escutando os pequenos gemidos
de dor que pareciam entrar fundo em minha pele.
— N-não... não! — ela gemeu e foi o bastante para me fazer
atravessar o quarto correndo. — NÃO! — Brequei os passos quando ela
gritou, tremendo da cabeça aos pés. Os cabelos longos estavam grudados
nos ombros, ela estava paralisada, tapando os ouvidos com ambas as mãos,
sem conseguir abrir os olhos.
— Petrova? — Ignorei seu pedido e me sentei na cama de solteiro.
Ela ergueu o rosto, parecendo me ver pela primeira vez. Os olhos verdes
estavam avermelhados, assim como suas bochechas. Não precisei observá-
la por mais de um segundo para saber que estava perdida em algum
tormento.
Mas que porra estava acontecendo com ela?
— Sai daqui! — sussurrou, fraca.
— Não vou a lugar nenhum. — Segurei seu braço, tentando
diminuir a pressão que ela fazia contra os próprios ouvidos, mas assim que
sentiu minha mão na sua pele ela começou a gritar e a se debater.
— NÃO! ME SOLTA! SAI... SAIIII! — Ela me deu um soco que
pegou na lateral do meu rosto, mas segurei seus braços antes que me
atingisse de novo.
Suas unhas passaram na base do meu pescoço, mas não me
importei. Ela parecia imersa em uma crise de pânico, algo que por sinal eu
conhecia muito bem. Costumava ter crises assim quando era pequeno, e por
algum tempo depois que fui adotado. Sabia que precisava acalmá-la antes
que ela se machucasse.
— SAI DAQUI! — Ela tentou me chutar quando segurei seus
braços e nem sequer pensei.
— Não! — rugi de volta, prendendo-a em um abraço, assim como
meu pai fazia comigo. — Não vou a lugar algum, está ouvindo?
— Me solta. Me solta! — Sua respiração ficou mais rápida, intensa,
uma puta crise de ansiedade e cada novo tremor que ela dava era como se
estivessem arrancando minhas tatuagens, uma a uma. Ela mal conseguia
respirar e ver aquilo era desesperador e porra... ela estava sofrendo,
sofrendo muito.
Por isso ela não queria que Colin visse. Eu mesmo não me sentia
capaz de voltar a respirar.
— Não vou soltar, pequena. Não vou te soltar. Você está segura. Na
casa do cara mais detestável de Chicago, se lembra? Nada vai te acontecer,
eu prometo. — Ela soluçou e a força que fazia para me empurrar começou a
diminuir, mas não por completo.
Ela ainda queria me afastar, mas não tinha forças para isso.
— Não... Voc-ê... Porrrr favorrr, me deixe — ela pediu, mas seus
dedos trêmulos enlaçaram as beiradas do meu terno, como se estivesse se
agarrando a algo para manter a racionalidade.
— Não vou sair do seu lado. Não há nada no mundo capaz de me
fazer soltá-la nesse momento, raposinha — sussurrei rente ao seu ouvido e
só então notei a oscilação em minha voz. Mesmo que não quisesse admitir,
estava apavorado pra caralho, sem a mínima ideia do que fazer.
Vê-la sentindo toda aquela dor, presa sabe-se lá onde, estava me
deixando louco.
— Não pode ficar aqui— sussurrou, fraca.
— Você tem duas opções. Tentar me expulsar daqui, ou respirar
devagar. O que é mais fácil? — Ela estremeceu em meus braços e me
peguei aconchegando-a até que seu corpo estivesse encaixado no meu sobre
a cama de solteiro. — Isso, respire devagar... boa garota — orientei quando
a vi se esforçar e então mais um trovão cortou o ar e refletiu por trás das
cortinas.
— AAAAAAAAAAAAAAAAA! — ela gritou e enfiou a cabeça
em meu pescoço.
Arranquei meus sapatos e meu blazer com pressa, temendo que ela
aproveitasse a chance para socar minha cara de novo, e puxei as cobertas
sobre nós dois, cortando todo acesso à luz de uma vez por todas. Passei o
braço por sua cintura e trouxe Petrova para meu peito. Soltei o ar quando
ela se encolheu nos meus braços e a abracei, desesperado, louco para cessar
sua dor de alguma forma.
Estava completamente perdido, sem saber o que fazer ou dizer.
Notei que ela tremia muito e a aflição mal permitia que ela respirasse
direito, então me lembrei do que Colin tinha dito: Petrova não se permitia
ser fraca e naquele momento ela estava lutando contra a própria dor, o que
parecia prestes a dilacerá-la.
— Calma, pequena, eu estou aqui. Está ouvindo? Não vou a lugar
nenhum, não vou deixá-la sozinha. — Ela enlaçou os dedos na minha
camisa e fungou. Colei minha boca perto do seu ouvido, torcendo para que
ela conseguisse me ouvir de alguma forma. — Está tudo bem querer chorar,
se lembra? Até o mais forte dos homens chorou e você com toda certeza
não fica atrás dele — falei, sem saber se estava mesmo pronto para vê-la
chorar. — Vou protegê-la do que tanto te apavora, só respire, sim? Respire
devagar. Respire por Colin. Respire por mim — implorei, desesperado a
cada vez que ela puxava o ar com dificuldade.
Foram horas até que ela conseguisse de fato respirar devagar, algo
que só aconteceu mesmo quando os trovões pararam e ela acabou
dormindo, bem ali, em meus braços.
Caralho, e agora? Como é que eu ia sair daquela cama minúscula,
com Petrova bamba em meus braços? E se voltasse a chover?
Soltei o ar exasperado e jurei a mim mesmo que ficaria ali por mais
alguns minutos antes de voltar ao meu quarto. Não podia dormir com
aquela mulher, nunca tinha feito aquilo na vida e não começaria agora,
ainda mais com Petrova.
Desci os olhos para ela, que dormia apoiada em meu peito com uma
ruga entre as sobrancelhas. A boca carnuda formava um biquinho gracioso
e agradeci mentalmente por vê-la calma mais uma vez.
— O que foi isso, raposinha? — sussurrei. — Quando foi que seus
pesadelos se tornaram piores que os meus?
Não queria admitir, mas ainda estava assustado, em pânico para
falar a verdade. Fazia muito tempo que não me sentia tão incapaz do que no
momento em que a vi se debater de tanto medo.
— Vai ficar tudo bem — garanti, ainda olhando para ela, incapaz de
me mover, incapaz de me afastar.
Não hoje. Não enquanto ainda estivesse chovendo.
Acordei na manhã seguinte com Petrova em meus braços e meu
corpo todo doendo por ter ficado a madrugada inteira espremido com ela
em uma cama minúscula.
Caralho, era como querer colocar os Estados Unidos dentro de
Chicago. Que inferno!
Levantei devagar e estalei o pescoço, puto da vida. Foi a primeira
vez que dormi com uma mulher e nem mesmo transei com ela.
— Que ótimo... — reclamei, sozinho, enquanto tentava disfarçar
todo o misto de preocupação que ameaçava me enlouquecer.
Ajeitei Petrova nas cobertas e abri uma gretinha da cortina só para
conferir que o sol estava nascendo lá fora. Aproximei-me da cama e sondei
seu rosto, agora bem mais relaxado que antes. Os cabelos ruivos estavam
espalhados pelo travesseiro e pelas cobertas. O nariz empinadinho quase me
fez sorrir, ela parecia um anjo. Aquele tipo de beleza que te faz prender o ar
por um instante na primeira vez que se vê, que incomoda, que provoca. Ela
era diferente, quase mágica, e estava sofrendo tão profundamente que não
havia como lembrar daquela cena sem sentir um aperto no peito.
Desde quando ela passava por aquela fobia? Sempre ficava sozinha
daquele jeito?
A ideia me deixou doente e saí cambaleando daquele quarto como
se minhas forças tivessem sido drenadas pela tempestade. Tomei um banho
rápido e saí daquela casa, em direção ao escritório do meu pai.
Precisava pensar em qualquer coisa, menos na noite de ontem. Uma
das mais dolorosas que tive em anos.
Não vou deixá-la cair
Você nunca vai estar sozinha
Vou te abraçar até a dor passar
Never gonna Be Alone – Nickelback
Snake
Fui o primeiro a chegar na sala de reunião presidencial da Holder
Security, a empresa do meu pai. Emma, a secretária executiva que ficava
responsável por todas as reuniões que aconteciam na sede, já tinha entrado
na sala umas cinco vezes me perguntando se eu queria um pouco de tudo:
água, café, bolinhos... Ela só desistiu quando eu pedi que me trouxesse uma
garrafa fechada de uísque puro e um Cohiba Behike, um dos charutos
favoritos do meu pai, e que ele só fumava quando estava prestes a dar um
tiro em um dos filhos.
Acabei me apegando na mesma tradição que meu pai. Fazia muitos
anos que abandonei o hábito contínuo de fumar, mas havia situações que
exigiam um bom charuto, como quando Dipa morreu. A noite passada
também era uma delas. Desde que saí do quarto de Petrova sentia que havia
algo de errado consumindo cada uma das minhas células. Sua voz trêmula
ressoando em minha mente, o pavor estampado nos olhos verdes tão puros,
o pânico e a tristeza... todo aquele conjunto dos infernos não parava de
rodar na minha cabeça.
Afrouxei a gravata e tentei respirar, mas meu terno, que por sinal era
um Fioravanti feito por encomenda, parecia prestes a me sufocar. Tecido
caro idiota, raposa maldita!
Endireitei a postura quando a porta se abriu e vi meu pai passar por
ela, com sua postura impecável e rígida, os olhos tão cinzas quantos seus
cabelos e tão astutos que parecia onisciente, capaz de saber tudo o que se
passava na minha mente conturbada.
Por um breve momento voltei ao último dia em que me senti
perdido na vida, quando Reid me deu uma família. Lembrava-me do quanto
fui resistente, do quanto me neguei a aceitar sua ajuda, afinal, me aproximar
dele era o mesmo que me preparar para perdê-lo. Aquele era meu maior
medo, minha sentença, os motivos das minhas crises de pânico. Não sabia
lidar com o abandono, por isso não deixava ninguém se aproximar de mim
e demorou muito tempo até que eu percebesse que eu não era descartável
para Reid. Que ele nunca me abandonaria, mas um dia eu percebi e foi
quando me dei conta de que eu precisava dele mais do que o próprio ar.
Meu pai era meu mundo, assim como meus irmãos, e desejei poder
contar a ele o que tinha acontecido na noite passada, como um adolescente
medroso, ansiei por pedir um conselho, afinal, nem mesmo sabia como
encararia Petrova dali em diante sem me sentir daquele jeito bizarro, como
se meus órgãos resolvessem dançar salsa, os malditos. Me sentia nauseado,
agitado, irritado.
Mas como diria a ele? Como explicaria aquela avalanche de
sentimentos que eu não reconhecia? Meu pai sequer fazia ideia do que
estava acontecendo.
— Chegou cedo, filho! — Ele se aproximou de mim e me
cumprimentou com um abraço forte e rápido. — Que cara é essa?
Aconteceu algo com a empresa? — ele questionou com um vinco entre as
sobrancelhas e se sentou na cadeira que ficava no centro da mesa comprida
de mogno. — Se for um dos policiais enchendo a paciência dos seus
homens novamente me avise. Sabe que tenho contato direto com o delegado
da cidade.
— Não é nada disso. Eles pararam as abordagens depois do
escândalo da última vez.
Não era novidade que a maioria dos meus contratados era algum
tipo de ex-detento, o que não dizia nada sobre o verdadeiro caráter de cada
um deles, afinal, o crime às vezes era imposto a uma realidade inevitável e
eu me coloquei no lugar de dar uma segunda chance a quem eu considerava
merecedor, no entanto, os policiais da cidade não ficavam satisfeitos
quando encontravam alguns deles trajados de guarda-costas de um império
poderoso como a Holder. Mas se havia algo pelo que eu lutava, era pelo
respeito dos meus e nunca admiti que fossem maltratados. A sociedade
tinha o péssimo hábito de carimbar alguém que errou e marcá-los para
sempre e eu não me importava de usar parte da minha fortuna para comprar
qualquer segunda chance que eles precisassem e garantir que fossem
tratados com justiça, já que não deviam mais nada à sociedade.
— Os negócios estão em alta. Mal consigo suprir a quantidade de
entrada de novos VIP.
— Então o que está o afligindo? Você pode ser especialista
comportamental, mas eu sou seu pai. Sei quando tem algo fora do lugar.
Não pretende explodir nada, nem ninguém, certo?
— Não, pai. De onde tirou essa ideia? — Dei risada, ciente de que
ele não estava muito longe da verdade.
Eu queria mesmo explodir algumas pessoas e a lista parecia crescer
a cada minuto. Começando pelo chefe da Petrova.
A porta se abriu novamente antes que eu pudesse acalmá-lo e meus
irmãos passaram por ela, ambos usando os clássicos ternos de corte reto,
completamente pretos.
— Bom dia, Holders! — Fantasma cumprimentou.
— Bom dia para quem? — Lobo retrucou, mal-humorado.
— Jasmin te deu uma panelada, foi? — Fantasma provocou,
relembrando o fatídico dia em que conhecemos nossa cunhada e ela
simplesmente nos espancou com uma frigideira.
— A cunhada sabe mesmo manusear instrumentos a seu favor.
Doeu? — aticei, adorando o tom avermelhado que surgiu no rosto de
Christopher.
— Não é nada disso, seus idiotas. Aquela... — Ele respirou fundo,
provavelmente pensando em uns trinta xingamentos antes de prosseguir. —
Jasmin está nadando na TPM. — Um silvo baixo ecoou pela boca do
Fantasma, nosso caçula, que por sinal, parecia saber bem como era.
— Estrela também. Parece que de tão amigas, o ciclo menstrual
delas funciona junto. Imagino que seja uma semana agradável para os
demônios que andam sobre a terra. Estou prestes a enlouquecer. —
Fantasma passou a mão pelos olhos e torci os lábios, odiando o fato de estar
sendo arremessado em uma conversa sobre a porra da menstruação das
minhas cunhadas.
— Jasmin, além de fatalmente irritada, também fica mais ciumenta
do que o normal, então quando ela viu que tinha uma gaveta trancada no
meu escritório, surtou. Pensei que fosse me matar quando eu disse que não
daria a chave a ela — gargalhei, imaginando a mulher que era minúscula,
ameaçando Lobo de morte.
— Filho, por que você não deixou a moça ver o que tinha na gaveta?
Não está escondendo nada dela, certo? — meu pai inquiriu com aquele tom
que beirava a repreensão.
— Pai... — Lobo inclinou o corpo para frente. — Não tenha dó da
Jasmin, é um erro fatal. Aquela mulher é mais rápida do que o senhor pode
imaginar. Ela roubou a chave da merda da gaveta e a abriu. Depois,
encontrou um anel, na verdade o quarto anel que comprei para pedi-la em
casamento.
— Caralho, até que enfim ela aceitou seu pedido? — quis saber.
Meu irmão já tentou pedir aquela mulher em casamento umas boas dez
vezes, mas ela nunca aceitou. Talvez agora ele tivesse tido mais sorte.
— É claro que não. — Ele soltou o ar e trocamos alguns olhares
silenciosos. — O problema é que ela está mais sensível esses dias e passou
a noite chorando por causa daquela droga de anel. Não sei o que fazer, ela
não me diz o que a deixou assim. Nem mesmo sei o motivo pelo qual ela
sempre foge de mim quando falo sobre nos casarmos, mas de qualquer
forma, vou terminar a reunião e ir para casa.
— Por quê? — Inclinei-me na mesa, curioso até os ossos.
— Ora, porque sim! — Foi a resposta desaforada do meu irmão.
— Tem que haver um motivo! — Bati na mesa, irritado e ignorei o
olhar estranho que os três me lançaram. — Por que você largaria todos os
seus compromissos para voltar correndo para casa só por que ela está
chorando? — Queria entender aquilo desesperadamente. Queria saber se ele
também estava sufocado com a hipótese de que ela estivesse sentindo
algum tipo de dor. — Por que diabos você não consegue se concentrar em
nada? Por que parece que tem um pedaço solto dentro do peito? Que doença
é essa?
— Estamos mesmo falando de mim agora? — Lobo estreitou os
olhos bicolores em minha direção.
— É claro que estamos, porra! — Bufei e só então notei que estava
com os dedos trêmulos.
Que inferno!
— Cedric, tem certeza de que está tudo bem? — meu pai me
chamou pelo nome e me virei para ele, ofegante.
— Está sim. Com certeza está. Tem que estar!
— Isso é por causa da agente da CIA? — Fantasma se inclinou
sobre a mesa.
— A Petrova? Estão trabalhando juntos de novo? — Meu pai quis
saber, em um misto de curiosidade e preocupação.
— Pai, está preparado para a fofoca do século? — Lobo provocou e
também se inclinou sobre a mesa de mogno.
— Não ouse... — rosnei, mas meus irmãos se entreolharam de um
jeito que eu conhecia muito bem.
— Petrova e o filho dela estão morando temporariamente na casa do
Snake, pai. — Fantasma me entregou.
— E o cachorro também — Lobo completou, feliz da vida.
Traidores de uma figa!
— Eu vou matar vocês dois.
— Que história é essa? — Meu pai abriu a boca, perplexo. — Tem
uma mulher e uma criança na sua casa?
— Posso explicar. E vocês dois... acho melhor esperarem pela
retaliação, porque ela virá! — Estreitei os olhos para os dois safados que eu
chamava de irmãos.
Expliquei brevemente para meu pai as circunstâncias que levaram
Petrova até minha casa e ele escutou todo o relato com uma calma forçada.
Podia ver pelas sobrancelhas levemente erguidas que estava preocupado.
— Então ela só está se escondendo lá com o filho até resolver tudo?
— ele quis saber.
— Sim.
— E depois?
— Depois disso... ela vai embora. — Dei de ombros e por algum
motivo, desviei os olhos por um momento, antes de voltar a encará-lo.
— Entendi. — Meu pai torceu os lábios. — Tome cuidado, filho.
Não quero que se machuque — ele alertou e percebi que aquele não era um
aviso comum.
Meu pai sabia como eu reagia a despedidas e devia estar pensando
que Petrova era importante ao ponto de causar um buraco em meu peito,
mas ele estava errado.
Ela não era.
— Snake, sabe por que me sinto desesperado aqui, enquanto minha
mulher sofre em casa? — Lobo bateu os dedos na mesa. — Sabe por que
sou capaz de abandonar qualquer coisa para voltar correndo para ela?
— Por que é maluco?
— Porque eu a amo. É por isso que me sinto assim. — Revirei os
olhos. Não podia ser amor, aquela porra não existia para mim. Abri a boca,
prestes a contestá-lo, mas a conversa foi interrompida quando Emma bateu
na porta e abriu uma brecha:
— Senhor Holder, eles chegaram! — avisou ao meu pai.
— Certo, peça que entrem, por favor. Vamos falar sobre isso depois.
Quero detalhes. — Ele apontou para mim. — Agora vamos começar a
reunião.
Emma chamou os homens, que também eram nossos amigos
pessoais, e logo outros três guarda-costas entraram na sala, em fileira.
O primeiro deles era Ray, um homem de poucas palavras, era muito
alto e sério e tinha uma mira excepcional. Eu mesmo já o tinha visto no
treinamento e sabia que ele tinha potencial.
O segundo deles, era Lyon. Diferente do primeiro, ele vivia
opinando em tudo e implicando com Lobo. Os dois pareciam duas crianças
quando estavam juntos e poderia garantir que não era só a ele que Lyon
costumava provocar. O homem não tinha medo da morte e suas habilidades
eram tão excelentes quanto Ray, no entanto, Lyon também era rápido, o que
contava a seu favor.
E o terceiro e com toda certeza o mais barulhento dos três, era o
Shaw. O rapaz era o mais novo do trio, mas compensava em habilidades
singulares. Era veloz, forte, astuto, tinha um discernimento assertivo e uma
ótima percepção do perigo. Além de que o garoto era dono de um coração
de ouro acompanhado de uma fé inabalável. Era também o mais próximo da
nossa família, quase um Holder, para ser sincero. E eu deveria admitir que
estava louco para ver como ele saíra com o teste.
Shaw vinha treinando mais do que qualquer um que eu conhecia,
com exceção de mim e dos meus irmãos. Gostava dele, apesar de ser
barulhento como uma arara. Conheci o rapaz quando ele ainda era guarda-
costas da Jasmin, ele parecia um frango magrelo e depenado, mas agora ele
tinha mudado como da água para o vinho. Os ombros largos estampavam os
músculos embaixo do terno que já parecia pequeno para ele, mas se havia
algo que não mudava, eram os olhos escuros como seus cabelos,
completamente puros, sinceros e levemente medrosos.
— Olá, senhores! — Shaw cumprimentou e ocupou um lugar à
mesa ao lado dos demais.
— É bom vê-los aqui — meu pai se virou para os guarda-costas,
animado, organizando três pastas marrons sobre a mesa. — Vocês
demonstraram vontade e capacidade para participar do teste para guarda-
costas classe A. E devo parabenizá-los, afinal, acompanho vocês de perto e
vi a evolução que tiveram até chegar aqui. No entanto, devem entender que
com o cargo vem também mais responsabilidades. Vocês passam a ser
referências da nossa organização.
O presidente Holder, popularmente conhecido como meu pai,
continuou seu discurso explicando as complicações da Classe A, enquanto
os três pareciam prestes a cair da cadeira de tão eufóricos.
— Vocês deverão pegar instruções com o guarda-costas responsável
pelo teste de vocês e então, começarão o treinamento oficial que acontecerá
aqui na sede. No final, vocês terão um exame de conclusão, que será
coordenado e aplicado pelo guarda-costas que ficará responsável por vocês.
— Ele apontou para as três pastas. — O orientador foi selecionado
conforme suas habilidades e dificuldades. Ray... — Ele puxou uma pasta.
— Sim, senhor!
— Você será orientado e testado pelo Fantasma. — Meu irmão
caçula olhou para Ray e deu um sorriso amigável que eu sabia que não
combinava com o grau de dificuldade que aquele NERD silencioso
propunha em seus testes de classe A.
— Shaw... — O garoto arregalou os olhos, ansioso.
— Você fica com o Snake.
— Misericórdia! — ele gritou de repente, o rosto subitamente
perdendo a cor.
— Shaw! — Ray chamou sua atenção e tanto eu, quanto meus
irmãos, seguramos uma risada.
— É-é uma honra, senhor! — Ele abriu um sorriso amarelo. —
Darei o meu melhor para continuar respirando... quer dizer, para conseguir
me classificar para Classe A.
— Certo, quero ver do que você é capaz.
— Correr, senhor, eu sou bom em correr — disse com o semblante
preocupado enquanto meu pai indicava Lyon para treinar com Lobo, o que
provavelmente daria início a uma guerra.
— Devem se reunir na próxima semana com os respectivos
orientadores para saber qual será o tema do teste individual. — Meu pai
finalizou a reunião e nos despedimos.
— Você vai conseguir passar, Shaw. Confie em mim — disse ao
jovem quando ele já estava prestes a sair.
— Eu confio senhor, com a minha vida eu diria. — Ele meneou um
aceno, se despediu e quase correu porta afora.
— Snake, não apavore o rapaz — meu pai pediu quando eu me
levantei, pronto para ir embora e evitar qualquer conversa desnecessária
sobre Petrova. — Ele vai ser seu pupilo, o resultado dele é sua
responsabilidade.
— O senhor deveria confiar em mim. Que dia um dos meus
reprovou na prova de Classe A?
— Eles tinham amor à vida demais para correr o risco de
reprovarem — Lobo provocou, apoiando o braço no meu ombro.
— Todos eles eram capazes, seu idiota. — Dei um solavanco nele.
— O que ainda está fazendo aqui? Não quer aproveitar que estou de
saída para ver minha mulher e fazer o mesmo? — Quase engasguei.
— Eu não tenho uma mulher para ir paparicar porque ela não
consegue parar de chorar. Que Deus me livre! — Demorei a me dar conta
de que estava em pé aos berros.
— Olha... essa raiva toda aí só pode significar que...
— Cala a porra da boca! — vociferei antes que meu caçula
completasse a frase.
— Snake, meu filho, tem certeza de que não quer nos dizer nada? —
Meu pai cruzou os braços e quando me dei conta, tinha três pares de olhos
Holder vidrados em mim como se esperassem, sei lá, a porra de um
milagre.
— Não tem caralho nenhum acontecendo...
— Cedric!
— Foi mal, pai — corrigi, ciente que meu pai detestava a
quantidade exorbitante de palavrões que eu estava acostumado a dizer. —
Só... estou cansado. Não tem sido fácil com toda essa confusão da agente
Petrova. — Tentei soar o mais profissional possível e como uma ajuda
vinda do céu, recebi uma mensagem no telefone e abri mais os olhos
quando o nome do Vance piscou na tela. — Tenho que ir, mas... já que estão
tão preocupados com o combo de mulheres na TPM, por que não juntamos
as três? Podemos prender Estrela e Jasmin na mesma casa com a Petrova.
As mulheres costumam saber como lidar com essa coisa de menstruação. —
Meus irmãos se entreolharam.
— Até que não é uma má ideia — Lobo concordou, esperançoso. —
Mas vamos ter que salvar aquele menino de alguma forma.
— Colin pode vir conosco — Fantasma sugeriu e aquela ideia
começou a ficar mais interessante. Petrova talvez se sentisse melhor na
companhia daquelas duas doidas que eu chamava de cunhadas.
— Certo. O garoto precisa mesmo assistir a uns jogos de beisebol,
quem sabe treinar um pouco.
— Ele joga? O filho dela? — Meu pai quis saber.
— Não, mas pasme, pai: Snake se ofereceu para ensiná-lo. —
Revirei os olhos para Fantasma.
— Contem comigo neste encontro. — Meu pai sorriu e dei as costas
para eles, indo em direção a porta.
— Olha que sem vergonha, fugindo no meio do caos! — Fantasma
disse.
— Espero uma ligação com mais informações, ouviu? — Meu pai
ordenou.
— Certo. Até mais...
Não tinha chegado ao elevador quando me dei conta de que esqueci
a pasta do Shaw sobre a mesa. Voltei à sala presidencial e abri a porta no
momento em que meu pai e meus dois irmãos amontoavam notas de cem
sobre a mesa.
— O que estão fazendo? — Estreitei os olhos para os três que me
encararam com um semblante assustado, como se tivessem sido pegos em
flagrante. — Não acredito! Estão apostando sobre Petrova e eu? — Abri a
boca, chocado e indignado.
— Fui coagido! — Reid Holder ergueu as mãos como em rendição.
— Pai! — meus irmãos disseram em uníssono.
— Vocês são inacreditáveis! — rosnei e entrei a passos duros,
peguei a pasta e saí de lá batendo o pé.
Bando de idiotas!
Meu celular tocou quando já estava saindo do prédio, com dois
guarda-costas posicionados atrás de mim, um em cada lateral.
— Vance Voguel! — atendi a ligação, ciente de que ele era
desesperado demais para ser capaz de esperar que eu retornasse sua
mensagem.
— Ssssssssnake! — Dei risada ao ouvir sua imitação patética do
sibilar de uma cobra. — Fiquei sabendo que precisava falar comigo. Sinto
pela ausência, amigo. Estava cobrando algumas pendências.
— De sangue?
— Sim. As minhas preferidas, mas demoraram mais que o previsto.
Vance era o juiz mais temido do submundo. Apesar de ser meu
amigo, ele era cruel quando se tratava de cobrar a lei do crime, mais do que
Jack e Stelvio seriam um dia. Talvez por aquele motivo era ele quem
comandava a cidade abaixo do Parada. Sua voz fria e controlada causava
medo em homens fracos e comuns.
— Como sabe, fui provocado recentemente e está me dando mais
trabalho do que gostaria de admitir encontrar o sujeitinho que ousou me
desafiar.
— Era exatamente sobre o que eu queria falar. Essa linha é segura?
— questionei quando entrei dentro do meu carro, dispensando os dois
guarda-costas e conferi se não havia ninguém suspeito perambulando pelo
estacionamento da Holder Security.
— Sim, pode falar. O que descobriu?
— Estive com Jack e Stelvio... — comecei a explicar toda a situação
para Vance, que se mostrava mais indignado a cada palavra que eu dizia.
— Que desgraça! — praguejou. — Temos que pegar esse rato das
ruas e descobrir que substância é essa e quem está patrocinando a porra
toda. Não podemos perder tempo, nomes pequenos levam a nomes grandes.
— Ele parou para respirar.
— A agente da CIA está sob minha proteção. Em breve ela nos dará
mais informações importantes.
— Ela é confiável? Não quer que eu a interrogue? — A
possibilidade de que Petrova sequer entrasse na sala de interrogação de
Vance me deixou apavorado.
Meu amigo não fazia ideia de quem Winnie Petrova era, muito
menos do que ela significava para mim. Do contrário, jamais faria tal
suposição, mas eu precisava que ele soubesse. Precisava que ele descobrisse
o quão longe eu era capaz de ir para protegê-la.
— Ela é minha, Vance — disse de súbito, ciente do que aquela
informação significava. — E nunca vai pisar na sua sala de interrogatório.
— Nossa! Caralho! — ele gargalhou. — Eu vivi para ouvir você
dizer isso? — O maldito continuou rindo.
O crime naquela cidade funcionava como uma empresa. Organizado
e cheio de regras. Uma delas e talvez a mais importante era a que se
respeitava a família do seu oponente. Ainda mais quando existia um tipo de
contrato frio que impedia os maiores nomes da cidade de se enfrentarem.
Ninguém era maluco o suficiente para machucar a mulher ou os filhos de
um dos chefes e comigo não era diferente. Dizer que Petrova era minha,
garantia a ela todo tipo de segurança no crime.
— Cala a boca — rosnei para o idiota.
— Certo, certo. Sinto muito, eu não fazia ideia. Se ela é sua, terá
nossa proteção, mas devo ressaltar que seu gosto mudou bastante. Uma
agente da CIA? Porra, Snake! — Ele riu e xinguei mais alguns palavrões
como resposta antes que Vance voltasse a falar. — Diga-me, acha mesmo
que ela vai conseguir derrubar esse filho da puta?
— A base da investigação vem dela. É uma agente muito capaz,
tenho certeza de que ela vai encontrá-lo e depois disso, é com a gente. —
Evitei revelar qualquer detalhe sobre o pen drive que Petrova estava
decodificando e deixei Vance pensando que ela estava rastreando seu antigo
chefe, o que também era verdade.
— Snake... está de quatro pela agente? — Ele questionou e riu.
— Não fode, Vance!
— Sei.
Mas que inferno, por que caralhos todo mundo decidiu me infernizar
hoje?
— Nos falamos depois.
— Snake! — Já estava prestes a desligar quando Vance me chamou
mais uma vez. — Vou assinar um contrato no cassino entre nomes
importantes, mas tão confiáveis quanto um tubarão faminto.
— Quer cobertura?
— Sim. Cobertura pesada.
— Considere feito — confirmei, ciente de que Vance não aceitava
uma equipe sem me ter como cabeça da operação. — Farei sua proteção.
Me envie todos os detalhes, vou me preparar. E não se esqueça, peça a seus
homens para ficarem de olho em quem aparecer procurando por ela.
— Com prazer. Vamos achar o desgraçado.
O filho da puta do chefe da Petrova não imaginava o que o
aguardava e só de pensar na possibilidade de colocar as mãos no
desgraçado que destruiu a vida dela eu me sentia elétrico, afoito, louco. Eu
ia esfolá-lo vivo e só depois conseguiria certo alívio.
Nunca disse que queria ser o mocinho da porra da minha história.
Liguei o carro e dirigi até a saída do estacionamento. Assim que
passei pela catraca de segurança, fui recebido por um céu nublado e muito
escuro.
Será que ia chover?
— Mas que porra fodida do caralho! — praguejei, puto da vida, sem
fazer a mínima ideia do que fazer com aquele pulsar latente no meu peito.
Que inferno, aquilo era culpa dela!
Já estava sendo difícil ignorar a existência daquela mulher debaixo
do mesmo teto que eu, mas agora... cada célula do meu corpo parecia
desorientada.
Fechei os olhos por um instante, ainda parado na saída do
estacionamento e tentei obrigar meu cérebro a funcionar. Eu não precisava
ir para casa. Não queria ter que revê-la, muito menos lidar com as
lembranças da noite passada.
Eu não queria aquela preocupação e muito menos precisava dela. Na
verdade, uma noite de bebedeira unida a um sexo casual e forte iriam
colocar minha mente no lugar, tinha certeza. Então, em vez de ir para casa,
fui ao único lugar que poderia me fazer esquecer tudo aquilo.
— Estou com pena do seu copo. Temo que ele não vá resistir a tanta
fúria. — Jack se aproximou de mim na área VIP da sua boate e apontou
para o copo que eu segurava com demasiada força. Eu me sentia raivoso,
puto da vida, enquanto virava mais uma dose dupla de uísque puro. — O
que está havendo, caro amigo?
— Não é nada — rosnei. — Só quero beber em paz. Vai se juntar a
mim ou não?
— Não tente me enganar. Eu conheço esse olhar. É o mesmo que
sempre faz antes de jogar uma das minhas mesas em algum cliente que te
irritou. Estou tentando prever a quebradeira, então vamos, diga logo, foi sua
mulher quem te deixou assim, assustadoramente irritado?
— Que CARALHOS vocês... — Bati o copo na mesa, fechei os
olhos e respirei fundo. — Ela não é minha mulher, Jack — vociferei e o
sem vergonha deu risada.
— Então por que a reclamou como sua? — ele inquiriu, em um
misto de irritação e graça. — Achei que nunca veria Cedric Holder espalhar
uma notícia dessas por aí.
— Como sabe disso? — Abri mais os olhos.
— Que ousado traiçoeiro. Não vai nem pedir desculpas por não ter
contado primeiro ao seu melhor amigo antes de revelar isso ao encrenqueiro
do Vance? — Ele apontou o dedo para mim.
— O quê...
— Ele me ligou para contar a novidade.
— Vocês se falaram?
— Não tenho muitos motivos para conversar com Vance e Stelvio a
não ser que seja por sua causa, então sim, ele me ligou em choque alguns
minutos atrás. Consegue imaginar a minha cara de paisagem? — Ele ajeitou
os óculos e me fuzilou com os olhos.
— Disse aquilo a ele para garantir que Vance não atirasse na cabeça
dela na primeira oportunidade. Petrova não é minha mulher. Ela é a porra da
pedra no meu sapato, a mais insuportável de toda a face ridícula dessa terra.
Ela é uma bagunceira, atrevida, barulhenta e insuportavelmente inteligente.
— Soltei de uma única vez. — Ela é problema, Jack. Um que eu quero bem
longe de mim.
— Se a odeia tanto, por que não a coloca para fora? Por que se
preocupa com ela?
— Não posso fazer isso. Prometi protegê-la e minha palavra é tudo
pelo que mais prezo. — A bartender se aproximou com mais uma dose que
virei imediatamente.
— Tem razão, não há meios de se quebrar uma promessa como essa.
— Ele suspirou dramaticamente. — Está bem, vou te salvar.
— O que quer dizer com isso? Por acaso eu sou a porra de uma
princesa presa na puta que te pariu? — Ele riu e eu bufei.
— Traga Petrova e todos os seus adendos para minha casa. — Ele
balançou a mão, como se a oferta fizesse sentido.
— Quê? — Jack empurrou os óculos com a ponta dos dedos, ajeitou
a arma escondida sob o paletó preto e se inclinou.
— Vou ajudá-lo a cumprir sua promessa. Traga a bagunceira até
mim. Ela ficará sob minha proteção enquanto resolvemos toda a situação.
Desta forma, você cumpre sua promessa e eu me livro do safado que está
tentando nos atacar.
— Sem chance, porra. Ela não ia durar dois dias aqui. Sou muito
mais tolerante do que você e mesmo assim, não faço ideia do motivo pelo
qual eu ainda não atirei naquela arruaceira. — Torci os lábios e passei a
mão pelo rosto, rodando o piercing em minha língua.
— Tem minha palavra de que ela não vai se machucar. Pedirei a
Lamar que a traga imediatamente... — Jack se virou, prestes a chamar seu
braço direito e me peguei puxando meu amigo pela lapela do paletó por
cima da mesa.
— Jack, ela não vai sair da minha casa — rosnei, possesso de raiva
e arregalei os olhos quando Jack começou a rir.
— Eu sabia! — Meu amigo gargalhou. — Tinha certeza de que ia
surtar se eu sugerisse trazer aquela coiote laranja para minha casa. Não a
quero aqui, pode ter certeza. A danada quebrou meu braço, lembra? — Ele
revirou os olhos. — Mas agora não pode negar. Você gosta daquela garota.
E se quer saber, não acredito que inventei tal humilhação para descobrir o
que você sente. Mas por um milagre desses, até que valeu a pena.
— Só pode estar louco se pensa isso de mim. — Levantei-me na
hora em que a bartender retornou com mais uma dose de uísque e um
pequeno pedaço de papel.
Peguei o bilhete sobre os olhos atentos de Jack. O recado escrito em
uma letra delicada dizia muito em poucas palavras.
“Sala azul?”
Ergui os olhos e encontrei uma loira curvilínea recostada na divisa
da área VIP, estava acompanhada de quatro amigas e pelo visto conhecia
muito bem como funcionava a boate de Jack.
— Hoje eu vim aqui para beber com um velho amigo e comer
alguma gostosa no setor azul, então, se me dá licença... — Ergui o papel e o
balancei diante do rosto confuso de Jack. Levei dois dedos até a testa e
meneei um aceno antes de dar as costas a ele.
— Pode enganar a si mesmo, Batman, mas não a mim — ele disse
às minhas costas e continuei caminhando em direção à loira, que foi para a
pista de dança.
Cheguei ao centro da boate e não perdi tempo. Não podia parar, não
queria pensar em mais nada, a não ser na loira gostosa pra caralho que eu
estava pressionando contra a parede dos fundos da pequena pista de dança.
Obriguei minha mente a focar no agora, na boca dela na minha, nos
gemidos indecentes que ela deixava escapar enquanto eu passeava com
meus dedos pelo seu corpo por cima do vestido. Tentei me concentrar, mas
ficava mais difícil a cada segundo. Porque aquela boca era macia, mas não
atrevida como a dela. Eu não encontraria uma tatuagem ridícula do idiota
do Harry Potter escondida naquele corpo. Ela não ia me odiar enquanto eu a
fazia gozar. Era por isso que eu tinha que fodê-la, porque ela não era a
Petrova. Nunca seria.
Levei a garota para o setor azul, que se resumia a um corredor longo
e cheio de salas da mesma cor, onde apenas clientes VIP tinham acesso,
com pequenos setores repletos de luzes neon, onde acontecia um pouco de
tudo. De reuniões perigosas, a sexo casual e indecente.
Entrei em uma dessas salas, que tinha um cheiro característico de
cigarro e bebidas e fechei a porta. O ambiente era pequeno, sem camas.
Havia apenas um sofá largo e muito almofadado, que pegava de canto a
canto no cômodo. Empurrei a loira, que por sinal eu não lembrava o nome,
até o sofá e a virei de costas para mim.
— Ai, gostoso! — ela gemeu quando pressionei meu corpo contra o
dela por trás. Com uma mão agarrei um dos seios muito grandes e
siliconados, enquanto com a outra mão subia o vestido amarelo e curto.
Provocando-a até senti-la tremer. — Não acredito que vou transar com
você! — Ela deu uma risadinha histérica que me irritou.
— Cala a boca! — ordenei, puxando a base dos cabelos em sua
nuca, o que a deixou ainda mais agitada e eufórica.
— Sim, manda que eu obedeço. — Ela fechou os olhos e ronronou,
se esfregando em mim.
Iria fodê-la até que minha mente estivesse vazia. Até esquecer quem
eu era e o que estava fazendo ali. Até...
Uma gota bateu no basculante que servia de janela para o cômodo.
Ignorei o som e voltei minha atenção para a garota que estava roçando a
bunda no meu pau.
Que se foda, pensei.
Petrova sabia se virar. Estava fazendo isso antes de me conhecer e
eu não ia permitir que aquela preocupação ridícula atrapalhasse minha foda.
Mais uma gota... e outra...
— Que porra!
— O quê? — A loira quis saber, mas não parou de rebolar, tentando
me provocar.
Trinquei o maxilar quando me dei conta de que minha atenção não
estava ali. Meu pau sequer deu sinal de vida. O desgraçado não queria estar
ali, tanto quanto eu.
Um estrondo alto ribombou no céu e lentamente o trovão foi
ganhando forma e volume, rasgando o horizonte, seguido de uma torrente
de água que desabou com tudo. Podia ouvir a força da chuva batendo contra
o basculante, causando um som que seria assustador para qualquer um que
tivesse medo dela.
Engoli em seco e me afastei da jovem, sem acreditar que estava
mesmo fazendo aquilo.
— Por que parou? Fiz alguma coisa errada? — Ela me encarou com
os olhos confusos. Eram verdes, mas não o tom de verde que eu gostaria de
ver naquele momento. Não eram traiçoeiros como um lago profundo, ou
atrevidos e quentes como o próprio fogo.
— Você não fez nada de errado. — Peguei seu casaco que tinha
acabado de retirar e a entreguei. — Beba o quanto quiser com suas amigas
por minha conta hoje. Aproveite a festa. — Dei as costas para uma garota
confusa e saí de lá correndo.
Sim. Eu estava correndo por causa daquela diaba, como se meu
coração estivesse prestes a sair do corpo. Era mais forte que eu.
Precisava protegê-la!
Só mais uma noite. Só mais uma tempestade.
Olhe para as estrelas
Veja como elas brilham por você
Yellow - Coldplay
Petrova
A chuva me paralisava. O barulho das gotas batendo no vidro me
fazia querer gritar e nem mesmo poderia tomar um calmante forte, que
talvez me apagasse pelo resto da madrugada, já que a hipótese de estar
grávida me impedia. Só me restava ficar encolhida no canto do quarto,
enquanto minha cabeça parecia prestes a explodir, junto com meu coração.
A tempestade começou a cerca de meia hora, trinta minutos que
carregavam o peso de uma eternidade e começava a ganhar formas mais
assustadoras. Tapei os ouvidos, como se aquilo fosse aliviar a dor em meu
peito e me sobressaltei quando alguém tentou abrir a porta do quarto.
— Petrova, abra! — Prendi o ar. A voz grossa e imperiosa de Snake
surgiu abafada pela madeira e balancei a cabeça, negando secretamente o
pedido.
Ainda podia sentir seu cheiro nos lençóis da minha cama. Ainda
sentia a força do seu abraço, da sua voz rouca, do seu cuidado e de todo o
pavor que transpassou seu rosto quando me viu na noite anterior. Estava
confusa, queria aquele abraço mais que tudo, mas como suportaria ver
aquele olhar de dor destinado a mim mais uma vez? Eu sempre fui forte,
mas agora... eu estava reduzida a uma versão triste de mim mesma. Não
queria que ele me visse assim.
— AAAAAAAAAAAA! —Um trovão cortou o ar e gritei, sem
controle, soluçando. Saltei na cama quando o som de madeira se partindo
ecoou pelo quarto logo em seguida.
— Petrova! — ele chamou e o tom desesperado fez uma pontada
atravessar meu coração.
Ergui os olhos em direção à porta. Snake, que era tão grande que
resvalava os dois ombros nos batentes, segurava uma maçaneta solta na
mão. Encolhi-me em um misto de surpresa e choque quando me dei conta
de que ele tinha arrombado a porta do quarto.
Nada poderia pará-lo. Ele atravessou o cômodo em duas passadas e
meus lábios tremeram quando o vi arrancar o blazer do terno e o arremessar
em algum canto do quarto. Snake me envolveu em um abraço apertado,
cheio de preocupação e cuidado.
— Não quero que me veja assim. E-eu... não consigo controlar. Não
consigo... — solucei, fazendo de tudo para não desabar de vez.
— Eu não me importo, porra. — Ele me apertou contra seu peito, o
cheiro de uísque e perfume me envolveram de um jeito familiar que só ele
era capaz de causar. — Por mil infernos, eu prefiro estar aqui do que deixá-
la sozinha. Não importa o que seja isso, não importa o que aconteça, está
ouvindo? — Fechei os olhos e tentei respirar devagar.
A sensação de estar me afogando me deixava em pânico. Era
desesperador, quanto mais chovia, mais eu puxava o ar e menos oxigênio
circulava por meus pulmões. Comecei a resfolegar e antes que me desse
conta, já estava com os dedos embolados na camisa social que ele usava.
Fechei os olhos com força. Cada trovão parecia entrar por minha
pele, se espalhando pela corrente sanguínea enquanto eu me perdia em
medo.
Senti o braço de Snake passando por minhas pernas e ele
subitamente me ergueu no ar.
— O-o que... não! Não, por favor... eu não consigo... — implorei
para que me deixasse ali, na escuridão daquele quarto enquanto tentava
empurrá-lo, o que não adiantou de nada, já que todas as minhas forças
pareciam ter sido drenadas junto com o ar em meus pulmões.
— Confie em mim, pequena, só mais uma vez — ele sussurrou
perto do meu ouvido e afundei o rosto em seu pescoço, escondendo-me do
quer que existisse lá fora.
Voltei a abrir os olhos quando ouvi o som de uma porta se fechando
atrás de nós e me dei conta de que Snake tinha me levado até seu quarto.
Fechei os olhos novamente no instante em que percebi que as cortinas
estavam abertas.
— Meu quarto é o cômodo mais silencioso desta casa. — Ele me
colocou sobre sua cama com cuidado e segurei a manga da sua blusa
quando percebi que ele estava prestes a se afastar, começando a não me
importar com o que ele fosse pensar de mim, a segurança em seus braços
parecia a única coisa capaz de me ajudar a respirar. — Não vou a lugar
algum. Eu prometo — disse e se afastou apenas o bastante para fechar as
cortinas, mas eu ainda podia sentir cada gota batendo forte em meu peito.
Mais um relâmpago cortou o ar, e apesar do som ter surgido mais
baixo que o normal, fui tomada por um tremor incontrolável, como se
estivesse bem no meio daquela tempestade e mais uma vez comecei a
sufocar. Era pior que a noite anterior, e todas as noites antes dela. Como se
minha pele fosse feita de açúcar, prestes a derreter com cada nova trovoada.
Era devastador. Estava desmoronando de pavor, tremendo sem controle até
que Snake me envolveu em um abraço forte e puxou a coberta, escondendo-
se comigo debaixo delas.
— Você não está sozinha. — Ele me apertou contra o peito rijo,
sussurrando em meus cabelos. — O que quer que seja isso, vou enfrentá-lo
com você.
— Não há o que fazer — resfoleguei, tentando puxar o ar com
força. — Ninguém pode me ajudar. — Enfiei a cabeça na curva do seu
pescoço e senti seus dedos descerem pelas laterais dos meus braços, em
uma carícia constante.
— Sabe o quanto eu gosto de um desafio. — Ele soprou devagar. —
Não há nada que eu não possa fazer para ajudá-la. Só me diga como,
qualquer coisa e eu farei.
— Eu não sei explicarrr, só parrrece que estou prestes a morrer —
confessei com a voz embargada e embolei o sotaque, sentindo os olhos
arderem como nunca.
— Uma vez li que “Dor é dor, não importa como você queira
chamá-la.” — Ele me apertou um pouco mais e quase suspirei de alívio
quando me dei conta de que o som da chuva parecia cada vez mais
distante.
— Quem disse isso? — quis saber depois de um tempo, respirando
devagar.
— O Itachi...
— Itachi? — Ergui o rosto embaixo das cobertas.
— Sim, é um personagem do Naruto. Um dos protagonistas, na
minha opinião. — Mordi os lábios e acabei dando risada. — Não ouse rir
dessa obra de arte. — Mais um trovão cortou o céu, daquela vez mais forte,
mais alto, infinitamente mais tenebroso.
— Dói! — gritei e me encolhi em seus braços. — Dói muito! —
Solucei, chegando ao meu limite. Todo meu corpo balançava sem parar.
— Pode chorar, pequena. Chore!
— Não posso — funguei. — Não sei se vou conseguir parar.
— Eu sei que vai.
— C-como pode ter essa certeza? — quis saber, assustada.
— Porque estarei aqui para trazê-la de volta à realidade. — Prendi o
ar por um momento.
Fazia anos que não chorava e tentar ser forte o tempo todo era
cansativo e triste. Minha alma estava em pedaços e quando Cedric me
abraçou, fechando os braços ao meu redor, eu soube que estava segura para
me sentir fraca por um momento.
Mais um soluço subiu por minha garganta, daquela vez mais forte,
violento, angustiante e junto com ele as lágrimas começaram a descer por
meu rosto. Gritei. O som alto e gutural se parecia com um grunhido de dor e
desespero.
Eu odiava tudo aquilo. Meu passado, minha família, tudo o que me
levou até ali, tudo o que me transformou naquela versão triste e solitária de
mim mesma.
Eu só queria viver uma vida normal. Ter medo de coisas reais, como
os assassinos com quais eu lidava no trabalho, mas em vez daquilo, eu era
facilmente aterrorizada por gotas que caíam do céu. Qual tinha sido meu
pecado para tamanho sofrimento?
Comecei a chorar copiosamente, sufocada com todo aquele
desespero em meu peito, enquanto o mundo parecia desabar de vez ao meu
redor. Chorei pelo meu passado, pelo meu presente e até mesmo pelo futuro
incerto e solitário. Chorei nos braços de um homem que sempre foi frio e
distante, mas que naquele momento parecia disposto a tudo para sanar
minha dor, enquanto sussurrava palavras de conforto e me permitia desabar
em seus braços.
— Chore, pequena, pode chorar. — Ele afagou minhas costas e
acariciou meus cabelos, como se eu fosse uma criança que precisava de
colo. Encolhi-me em seus braços e tapei o rosto com ambas as mãos.
— Não precisa se esconder para sentir essa dor. Todos temos medo
de alguma coisa, isso não pode te paralisar. — Ele soprou, envolvendo-me
em seus braços um pouco mais, como se fosse capaz de me proteger de toda
aquele tormento e só então me dei conta de que suas mãos também estavam
trêmulas.
Snake não era dado a contatos íntimos, muito menos a ver a dor de
outra pessoa. Ele se mantinha afastado de tudo que pudesse gerar uma
fagulha de sentimentos, e por aquele motivo eu não entendia o porquê de
ele estar ali, me amparando.
Não fazia ideia, mas me sentia grata por ter encontrado um porto
seguro para me apoiar, ao menos momentaneamente.
— G-gostaria de ser mais como você — confessei, soluçando baixo.
— É fácil para alguém que não tem medo de nada dizerrr isso. —
Comprimi os lábios, sentindo certa aflição estalar em meus ossos.
— Está enganada, pequena. Eu também tenho medo. — A frase
soou estranha vindo dele, sequer fazia sentido. Ergui a cabeça entre seus
braços e o encarei no escuro.
— Um homem como você teria medo de quê? — funguei,
desconfiada e demorei a me dar conta de que estava respirando melhor,
mesmo embaixo das cobertas.
— Perder as pessoas que eu amo. É meu maior medo, minha
fraqueza. Não sei dizer adeus — ele confessou de repente. — Nunca
consegui aceitar a perda, desde quando era muito novo e perdi meu pai
biológico, não... na verdade, aprendi que não sei dizer adeus bem antes
disso.
— Você... — Parei, sem saber como perguntá-lo sobre seu passado.
— O que quer saber? — Ele acariciou meu rosto com a ponta dos
dedos. As falanges roçaram os malares devagar, como se esquadrinhasse
minha face na escuridão. — Estou disposto a responder tudo o que quiser,
contanto que continue a respirar. — Sua mão desceu por meu pescoço,
passando pelo braço até resvalar em minha cintura. Ele ergueu a beiradinha
da blusa e roçou os dedos no pequeno pedaço de pele exposto da minha
barriga. Parecia uma carícia quase inconsciente, como se brincasse com
minha pele e soltei o ar devagar, antes de conseguir voltar a falar.
— Conheceu seu pai biológico? — Minha voz surgiu surpresa.
— Sim. Diferente dos meus irmãos que foram abandonados à
própria sorte, eu tive um pai que me amava — sussurrou. Sua voz grave
perdendo a força conforme ele se lembrava de algo que parecia ainda causar
dor. — Ele... bem...
— Não precisa falar...
— Tudo bem, eu quero. Só não sei por onde começar, não conto
essa história desde que era jovem. E não é nada bonita, como tudo em meu
passado. — Ele acariciou minha cintura, brincando com os dedos como se
quisesse buscar um ponto de distração para o que quer que estivesse
sentindo. — Antes de me tornar um Holder eu era um Siegel.
— Cedrrric Siegel? — Testei o sobrenome e pisquei, aturdida
quando senti seus lábios resvalarem minha testa em um beijo ameno e
rápido.
— Adoro quando fala meu nome — disse de súbito e senti uma
pequena queimação que começou no rosto e foi se espalhando pelo corpo.
— N-não combina muito com você, Holder parece ter sido feito sob
medida.
— Holder foi a minha salvação. Meu sobrenome, no entanto, não
era tão conhecido quanto o apelido da minha primeira família. Meu pai era
um grande nome do crime, antes de eu nascer. Um gângster que controlava
uma parte da cidade. A família Machine.
— Tá brincando! — Coloquei-me sobre os cotovelos e a coberta
acabou escorregando pelas nossas cabeças, revelando a silhueta grande de
Snake deitado ao meu lado. — Meu Deus, agora tudo faz sentido! — Puxei
o ar, surpresa pela revelação. — Esse seu jeito, é de nascença!
— Será que devo amordaçá-la? — ele rosnou e balancei as mãos
agitadas, tudo ao meu redor desapareceu por um momento enquanto meu
cérebro assimilava todas as informações.
— Eu já ouvi falar sobre os Machine — sibilei e ele se inclinou na
escuridão até o rosto estar bem próximo do meu.
— E o que pensa que sabe sobre nós? — Ele soprou, bem pertinho.
— A f-família Machine era quase uma lenda. Tanto no crime, por
inspirarem novos gângsters com uma linha de raciocínio muito similar a de
uma empresa de grandes negócios, quanto na CIA e no FBI, por
conseguirem driblar o sistema policial por tantos anos. Grandes nomes do
tráfico de armas ilegais vieram dos Machine. Mas... — Parei, de repente,
chegando a uma conclusão terrível.
— Mas o quê, pequena? Continue... — Ele ergueu a mão e acariciou
a lateral do meu rosto.
— A família inteira foi dizimada muitos anos atrás e seu poder de
importação passou para a mão do sucessor, que aparentemente comanda o
submundo de Chicago atualmente. Um homem sem rosto, conhecido
como...
— Parada — Snake completou e engoli em seco, confusa, sem saber
como Snake tinha sobrevivido.
— O que aconteceu com sua família?
— Meu pai se casou muito jovem, com uma mulher que pertencia a
uma família de sócios. Era quase um negócio que resultou no meu
nascimento, mas aquela mulher nunca me tratou como filho.
— O que quer dizer com isso? Sua mãe te rejeitou? — Arregalei os
olhos, sem conseguir conceber aquela informação. Que tipo de mãe
abandonava o próprio filho?
— Acho que ela nunca quis ser mãe, mas as regras da família
exigiam um herdeiro. Então ela acabou suportando minha presença, até não
aguentar mais e fugir sem olhar para trás. — Havia uma nota de tristeza
sutil em sua voz, uma que por sinal ele escondia muito bem.
— Quantos anos você tinha quando ela partiu?
— Sete. — Enrosquei os dedos em sua camisa, como se o toque
pudesse de alguma forma confortá-lo. Meu Deus, ele era mais novo que
Colin quando a mãe o deixou. — Um dia ela disse ao meu pai que não me
amava, ouvi tudo atrás da porta, mas não imaginei que ela partiria. Pensei
que no fundo, ela só estava confusa. Que mãe não amava o filho? Acho que
meu pai pensou o mesmo.
— Ah, Snake, sinto muito. — Aconcheguei-me em seus braços.
— Não sinta, princesa. Ela fugiu naquela noite, mas as pessoas que
me amavam continuaram ao meu lado. Aquela... mulher se tornou uma
lembrança ruim do que ficou para trás. Só isso. — Imediatamente me
lembrei de quando Snake estava bêbado e comentou algo sobre “Elas
sempre irem embora”.
Estava falando da sua mãe? Meu coração doeu com a hipótese. Ele
foi abandonado por uma das pessoas que mais amava.
— Fui criado por meu pai e meu padrinho, que era seu braço direito.
Não havia muito espaço para infância na minha rotina, afinal, eu era o
herdeiro de uma família perigosa e respeitada — continuou, devagar, como
se cada palavra pesasse um pouco mais. — Aprendi as regras do crime, uma
a uma, enquanto preenchia as lembranças da minha mãe. Comecei a odiá-la
um tempo depois e ficou mais fácil suportar — confessou e meus olhos
arderam. Levei a mão ao seu peito e notei que sua respiração estava
descompassada.
Ele ainda sentia.
Ainda doía lembrar dela e eu só conseguia me perguntar: Como a
maldita pôde? Como ela simplesmente virou as costas para uma criança,
para o seu filho, e foi embora?
— Não tive muito tempo livre depois disso para sofrer pela partida
dela. Eu tinha um dever, uma missão e uma família para aprender a
administrar, então me dediquei desde cedo a aprender tudo que podia.
Acabei entendendo qual era o meu caminho e como encontrar o atalho pelo
labirinto do crime e a desviar das armadilhas. Sempre admirei o motivo
pelo qual éramos leais aos nossos e depois de muito ensinamento, havia
apenas uma coisa que eu ainda não tinha entendido.
— O quê? — Soprei na curva do seu pescoço e ele me puxou para
seu peito, enquanto eu apreciava secretamente seu corpo rijo colado ao
meu.
— O que era vingança e por que o castigo para a traição era tão
violento no mundo do crime. Mas não demorou para que eu descobrisse. —
Ele trincou o maxilar por um momento. — Quando tinha 10 anos meu pai
caiu em uma emboscada feita pelo seu consiglieri, Estevan. Aquele...
desgraçado vivia conosco. Estava presente em todos os momentos
importantes que vivíamos, comia junto conosco, ele era parte da nossa
família, mas não estava satisfeito com seu cargo e decidiu trair meu pai.
Abri a boca, em choque. Sem saber o que falar. Fiquei tensa, como
se qualquer movimento pudesse quebrar a aura de confiança que se
estabelecia a cada nova palavra que Snake dizia.
Ele estava se abrindo comigo e aquilo encheu meu peito de uma
alegria temporária, que logo foi substituída pela mais profunda tristeza ao
notar o quanto ele se esforçava para não tremer.
— Ele começou emboscando meu padrinho Anson na estrada,
quando ele ia organizar o recebimento de uma carga, eliminando o sub-
chefe, antes de prender meu pai e matá-lo bem diante dos meus olhos.—
Engoli em seco, e abri a boca, em choque, sentindo o corpo de Snake se
retesar a cada nova palavra que dizia.
— Ai que merda! Que maldito de merda. Filho da puta! — xinguei e
ele deu uma risada rouca. — Você... Por Deus, Snake! Como consegue rir
me contando uma coisa absurda dessas? — Minha voz embargou e ele me
puxou para seus braços.
— Vê-la xingar é tão surpreendente quanto imaginar o Papa
fumando maconha. Destoa do que você é, mas combina com quem eu sou.
— Ele acariciou meu rosto.
— Você... teve que ver seu pai ser assassinado. Não consigo
imaginar o que isso tirou de você.
— Uma parte da minha alma morreu naquele dia, junto com meu
pai. A única parte que se importava com o mundo e o que pensam de mim
nele.— Snake soltou o ar devagar, sua respiração se encontrava com a
minha. — Meu medidor de moral é defeituoso, Petrova. Os valores que
aprendi são diferentes dos costumes da sociedade. As regras que eu sigo
nem sempre respeitam a lei que você tanto admira. É no que acredito...
— Olho por olho. — Levei a mão até seu peito, onde aquela frase
estava tatuada e acariciei o lugar por cima do tecido e ele meneou um aceno
concordando.
— Meu passado tem dor, honra e uma sucessão de leis quebradas.
Nunca contei nada disso para ninguém além do meu pai e dos meus irmãos.
Então... não sei como devo agir diante de você, não sei como contar minha
história sem te decepcionar. — Fechei os olhos e encostei minha testa em
seu peito.
Não conseguia imaginar a dor que ele sofreu quando ainda era uma
criança. Ao ver a mãe lhe dar as costas e o pai ser assassinado. Ele perdeu
tudo, mas de alguma forma sobreviveu e eu não estava nem um pouco
disposta a julgar o que quer que ele tenha passado. Snake merecia mais do
que aquilo. Ele merecia mais de mim.
— E o que aconteceu depois? Esse homem... te machucou? — Senti
meu coração bater no pescoço enquanto aguardava a resposta.
— Depois de me fazer assistir o assassinato do meu pai, ele me
levou até o centro da nossa casa e me marcou.
— Ai meu Deus! — choraminguei, tentando controlar o desespero
que acelerou meu coração. — O-o que...
— Ele tatuou a marca da sua gangue nas minhas costas e me
manteve preso por quase um ano.
— Tatuaram uma criança? — Pisquei e ergui o rosto rápido,
tentando expulsar as lágrimas, mas era inevitável. Não consegui ignorar a
dor que dilacerou meu peito em dois.
— Na hora pensei que fosse morrer de dor, mas não chorei. Não
daria a ele o gostinho de me ver titubear. Meu pai me ensinou que a
fraqueza do inimigo era a nossa força, não podia ceder e aquela tatuagem
foi o início de tudo. Eles me trancaram e passei a viver como um animal,
cercado pelos homens do desgraçado que estava morando na mansão do
meu pai. Usando nossas coisas, dominando nossos empregados, matando
nossos homens. — Levei a mão à boca e segurei um soluço quando percebi
que os dedos de Cedric estavam balançando, trêmulos. — Por um tempo
pensei que não fosse conseguir sair de lá, mas quando comecei a colocar em
prática tudo que meu pai me ensinou, percebi que tinha uma chance e a
agarrei com todas as minhas forças.
— O que fez?
— Eu me vinguei — sua voz soou cortante. — Matei o filho de
Estevan, que era uns oito anos mais velho que eu e era o responsável por
me manter em cárcere. Consegui fugir depois disso e me escondi nas ruas
de Chicago que, graças ao trabalho do meu pai biológico, eu conhecia
muito bem. — Abri os olhos para a escuridão, em choque. — Perdi mais
um pedaço da minha alma naquele dia. Não restou muito depois disso.
Snake matou pela primeira vez quando ainda era uma criança.
Meu Deus!
Meu Deus do céu... ele era só um garoto!
Um que perdeu tudo, um garoto que só aprendeu a ser uma versão
pior de si mesma, e naquele momento, o homem que aquela criança se
tornou estava tremendo e eu só queria abraçá-lo.
Você é a luz, você é a noite
Você é a cor do meu sangue
Você é a cura, você é a dor
Você é a única coisa que quero tocar
Love me like You Do – Ellie Goulding
Snake
O inferno.
Era o destino de homens como eu.
Ainda me lembrava de cada lição que meu pai biológico me ensinou
antes que aquele desgraçado cortasse sua garganta no meio do nosso Hall de
entrada. Logan Siegel era conhecido como BOSS, um homem nobre e justo,
apesar do trabalho fora dos rastros da lei, e ele me ensinou quais lutas travar
e quais deveria desistir.
Meu pai me ensinou o valor da honra, e a cobrança da justiça e da
vingança. Não me orgulhava do que fiz ao filho de Estevan. Tinha matado o
maldito com uma pancada na cabeça. Uma não... várias. Ainda me
lembrava da cena cheia de sangue, de ter vomitado logo em seguida e
passado muitos dias acordado, perdido no meu próprio pesadelo. E agora
ela sabia. Do segredo que guardava a sete chaves, da morte que me marcou
e me transformou em algo diferente, algo ruim.
— Nunca disse que minha vida era um conto de fadas, princesa. Na
verdade, se parecia com um longo filme de terror. Sinto tê-la chocado.
— Eu trabalho para a CIA, se lembra? Não há muito que possa me
chocar. — Ela ergueu a mão pequena e a pousou devagar sobre o meu rosto.
Podia ver sua silhueta na escuridão e apesar de sentir cada um dos meus
músculos tensos, estava feliz por vê-la respirar novamente, alheia as
pequenas gotas de chuva que ainda caíam do lado de fora. — O que
aconteceu depois?
— Promete que não vai sair correndo por aquela porta quando eu
contar? — Temi que ela fosse se afastar depois de saber a verdade, mas
diferente daquilo, Petrova me abraçou, cercando-me com seus braços
delicados e desejei poder morar naquele abraço.
— Não vou a lugar algum. Eu prometo. — Respirei fundo e
continuei.
— Fui treinado para ser um herdeiro da máfia, e isso me ajudou a
sobreviver nas ruas. Eu sabia me virar, mas também tinha a certeza de que
os homens de Estevan acabariam me encontrando se continuasse em
Chicago. Eu tirei a vida do filho dele, o homem não ia parar enquanto não
me encontrasse, no entanto, cerca de três semanas depois da minha fuga
uma notícia se espalhou pelos becos e chegou até mim. Uma nova gangue
tinha surgido e o chefe deles, um homem muito poderoso, massacrou toda
aquela família. Não sei se foi uma vingança, ou uma tomada de poder, mas
me senti aliviado pela primeira vez desde a morte do meu pai.
— Nunca achei que admiraria um bandido, mas esse dia chegou —
disse baixo, colérica. Sabia que estava sendo muito para ela, mas uma vez
que comecei a falar, não conseguia parar, como se me expor diante de
Petrova fosse me trazer algum tipo de paz.
Secretamente desejava que ela me visse, como realmente era. Queria
que ela soubesse que eu poderia facilmente machucá-la, mas que jamais
faria algo do tipo. Eu já fui um monstro, sim, mas matei aquela versão de
mim mesmo há anos e precisava que ela soubesse disso.
— Esse homem, ele assumiu o legado de sua família?
— Sim, e fez um ótimo trabalho. Hoje ele é conhecido como
“Parada”. — Ela puxou o ar, surpresa. — Parada é quem manda no
submundo de Chicago e até os piores têm medo dele. Eu, no entanto, não o
temo. Na verdade, sou grato. Apesar de nunca o ter visto pessoalmente, o
que ele fez com Estevan e como fez, foi digno da vingança que meu pai
merecia.
Parada tinha esquartejado toda a família de Estevan, sem
misericórdia, sem sobreviventes. Era um ato brutal até mesmo no meio do
crime, o que me dizia que Estevan de alguma forma também tinha entrado
no caminho de Parada e pagou por isso.
— Não restou ninguém da família Siegel depois disso, então nunca
voltei àquela casa, e achei perigoso para uma criança usar um sobrenome
tão poderoso antes de conseguir ao menos uma arma para me defender.
— Então v-você viveu sozinho nas ruas depois disso? — Petrova
tentou segurar o choro, mas logo senti uma lágrima solitária pingar em meu
pescoço em silêncio doloroso.
Ergui a mão, mesmo sem enxergar na escuridão e capturei outra
gota com as pontas dos dedos, acariciando os malares delicados do rosto
daquele pequeno anjo.
— Quer dizer... como uma criança sobreviveria? Você tinha tudo e
de repente...
— Não tinha nada — completei devagar e depositei um beijo terno
no alto da sua cabeça. Ela soluçou e me abraçou com força. — Foi difícil.
Me envolvi em muita confusão depois daquilo. Era como se não houvesse
limites para o que eu era capaz de fazer para sobreviver. Nada parecia mau
o bastante diante da morte do meu pai — confessei, ignorando o
arrependimento latente. — Tentei me manter nas sombras, mas era uma
criança sozinha nas ruas, e mesmo com tanta confusão na ficha, acabei indo
parar em um orfanato, em vez de atrás das grades. Uma das freiras do lugar
gostou de mim, por algum motivo desconhecido. — Ri, amargo,
lembrando-me da mulher que tinha feições amorosas. — Ela me deu uma
pulseirinha de plástico, era algo sem valor algum, mas significou muito para
mim. Estava tudo bem até um garoto roubá-la enquanto eu estava
dormindo. — Passei a mão pelos olhos, lembrando da cena como se fosse
ontem. Mais uma na minha lista de arrependimentos.
— O que você fez?
— Meu temperamento era terrivelmente calmo, até ser provocado e
quando vi que ele estava usando minha pulseira, uma que tinha procurado
por toda a manhã, fiquei cego de ódio. Espanquei o garoto até desmaiá-lo
— confessei em um sussurro. — Eu... comecei a bater e não consegui parar.
Fui expulso daquele orfanato e levado para outro, onde mais acidentes
como esse aconteciam. Comecei a ter uma fama. As pessoas tinham medo
de mim, dos alunos às freiras. Como se eu fosse o próprio diabo.
— Mas você não era. Nunca foi!
— Não se engane, raposinha. Havia homens maiores que eu, que
temiam me dar as costas. Com 14 anos decidi fugir e fui para as ruas de
novo, onde acabei... abrindo espaço entre as gangues.
Naquela época, eu me sentia confuso, perdido, sozinho. Só conhecia
uma linguagem, e tratei de me especializar nela para sobreviver.
— Eu era bem agressivo, calculista e não tinha medo do que estava
por vir. Na verdade, acho que além de ser grande e forte, eu não tinha mais
nada a perder. As pessoas tinham medo de mim, era exatamente o que eu
queria delas. Você não ataca o que teme, você foge.
Contei, lembrando cada uma das noites em que passei acordado,
planejando como faria para sobreviver no dia seguinte. Independentemente
de quem tivesse que se machucar no caminho.
— Fui recrutado por uma gangue quando saí do reformatório.
Fazíamos de tudo um pouco e me entreguei aquilo, sem nenhuma
perspectiva de um dia sair daquela vida. Até que eles planejaram um grande
assalto a um banco na divisa da cidade. — Comecei a falar mais devagar,
temendo que Petrova se afastasse de mim a qualquer momento.
Havia uma marca que só a morte poderia deixar. Uma sombra, que
parecia capaz de cobrir parte da nossa visão e era assim que me sentia
quando aceitei participar daquele assalto. Minha alma estava marcada para
sempre, mas a dela, não.
Petrova era tão diferente de mim. Tão pura, doce e inocente. Não
fazia ideia do que estava pensando sobre mim naquele momento, mas a
hipótese que pudesse se afastar me fez segurar sua mão entre as minhas,
desesperado para encontrar conforto ali, na sua presença, no seu corpo
pequeno colado ao meu.
— Não há nada em você que possa me afastar. Nosso passado não
define quem somos no futuro. — Soltei o ar, inseguro.
— Mas é a sombra do que somos capazes de fazer. Sou perigoso,
Petrova, e você pode querer fugir disso a qualquer momento.
— Não vou a lugar nenhum, independente do que tenha acontecido
em seu passado. Nunca vou quebrar uma promessa a você, então me diga...
o que fez naquela noite? — Respirei fundo e engoli em seco, encantado
pela sua determinação em ficar ao meu lado, mesmo que não fosse uma
direção muito bonita.
Escolhi as palavras com cuidado e prossegui:
— Fomos realizar o assalto a um caixa 24 horas, todos armados.
Não era para ter ninguém no local, mas nos surpreendemos com um vigia.
O chefe da gangue o rendeu e como ele tinha visto o rosto dele, mandou
que eu o matasse, já que era meu primeiro trabalho grande ao lado deles.
Tinha que provar meu valor.
— Você... — A pergunta morreu em seus lábios e pude sentir o
medo da resposta infiltrada em sua voz, fazendo-a estremecer em meus
braços.
— Eu o levei para uma área isolada, enquanto eles tentavam
explodir o caixa. Cheguei a erguer a arma, mas... matar um homem inocente
e desarmado?
— Não foi o que seu pai te ensinou — ela concluiu e meneei um
aceno.
— Eu não seria capaz de algo tão cruel. Não me via como um
assassino, apesar de saber que era um. — Soltei o ar ao ser atingido por
uma pressão leve, porém insistente que despontou no meio do meu peito ao
recordar toda aquela história. Não gostava de lembrar que um dia também
estive vulnerável. — Eu não conseguia controlar a fúria que sentia do
mundo à minha volta, mas minha conduta não me permitia descontar em
inocentes. Não podia fazer aquilo, então dei alguns tiros no chão de terra e
deixei que ele fugisse.
— Ai, meu Deus, eles descobriram?
— Não, eram uns idiotas. — Revirei os olhos. — Nem mesmo
foram conferir, mas no fim das contas, eles não passavam de assassinos
traidores e acabei descobrindo que eles só precisavam de um bode
expiatório para matar quem quer que aparecesse no caminho e levar a culpa.
E só fui descobrir isso quando eles pararam perto de um beco e me
obrigaram a descer, desarmado. Foi uma briga boa... — conclui, sem querer
relatar os detalhes da surra que levei.
Ela não precisava saber que aqueles imbecis foram embora depois
de pensar que eu estava morto.
Parei de falar e obriguei minha mente a se lembrar que aquela
lembrança era incapaz de me causar algum tipo de dor. No entanto, a
fisgada em meu peito parecia prestes a me sufocar.
— Está mentindo para mim — disse com a voz trêmula. — O que
aconteceu? Eles te bateram?
— Bastante, eu diria. — Dei risada e ela desferiu um soquinho em
meu peito.
— Idiota! — resmungou.
— Machuquei três dos homens deles na confusão, mas acabei com
algumas costelas quebradas... — disse sério. — Além do punho esquerdo.
Esperei um longo tempo para conseguir ao menos me mover sem gritar.
Nem mesmo suportava ficar de pé, mas tinha um contato de emergência que
poderia me ajudar, só precisava roubar um celular para falar com ele.
— Era mais fácil você pedir emprestado.
— Você emprestaria o seu telefone para um adolescente de 15 anos,
todo sujo de sangue no meio da madrugada? Não... — respondi, antes que
ela tivesse a oportunidade de dizer qualquer coisa. — Você chamaria a
polícia ou uma ambulância. E eu não podia arriscar nenhum dos dois, além
de que poderia vender o celular depois.
— Que empreendedor... — ela vociferou.
— Não estou dizendo que me orgulho, mas era assim que pensava
na época. — Pisquei, envergonhado. — Estava zonzo e fraco, não
conseguiria sair na mão com ninguém, então acabei furtando um aparelho
telefônico de um ricaço em um posto de gasolina e fugi, mas não fui muito
longe. Poucos metros depois, acabei caindo em um beco, prestes a sufocar
de dor. Em poucos segundos não consegui me mexer, meus membros
começaram a pesar de tanta dor. Desmaiei por um momento e quando
acordei, pensei que fosse morrer sozinho naquele lugar escuro e sujo.
— Você não morreu. Não morreu, é isso que importa — ela disse,
tentando disfarçar o pânico na própria voz.
— Não morri porque um homem me encontrou. Estava um breu e o
frio parecia disposto a congelar nossa carne, mas ele me encontrou. Na
verdade... — Dei uma risada colérica ao me lembrar da sombra elegante,
esgueirando-se na escuridão do beco sujo. — Ele rastreou o celular que eu
furtei pouco antes.
— Era o ricaço? — Ela quase se sentou, eufórica e distraída e
balancei a cabeça, confirmando.
Naquela noite eu estava com tanto medo de morrer que tudo que
senti quando o homem se aproximou de mim foi pânico. Eu tremia dos pés
à cabeça, desesperado e quase chorei quando ele tentou me tocar. Era como
se a morte estivesse tentando me agarrar, mas ele não desistiu. Ele nunca
desistiu de mim.
— Lembro de recuar quando ele apareceu, estava tonto de tanta dor
e sabia que também havia muito sangue espalhado pelo lugar, mas o
estranho não recuou, mesmo quando o ameacei. Ele me ignorou, me levou
para o hospital e ficou comigo enquanto os médicos descobriam quantos
ossos eu tinha quebrado e acabaram encontrando uma pequena hemorragia
interna.
— Meu Deus! — Ela soluçou e se encolheu em meus braços.
— Não chore, princesa. Não por mim — pedi, inquieto.
— Como não? Você sentiu tanta dor, por tantos anos... deve ter sido
tão solitário.
— Não depois daquele dia. Porque o homem que me salvou decidiu
que eu era louco o bastante para ele desejar me chamar de filho. Eu roubei o
celular de um magnata da segurança privada e Reid Holder me adotou.
— Você roubou o seu pai? Foi assim que se conheceram?
— Por incrível que pareça, sim. Ele se tornou meu mundo e não
desistiu de mim, nem mesmo quando fugi depois de ter me recuperado, em
busca de vingança — contei. — Queria acabar com a raça daqueles
traidores dos infernos, então os rastreei e percebi que estavam organizando
uma armadilha para um cara magrelo, que usava um par de óculos que não
botava medo em ninguém. Ele foi cercado quando estava sozinho e não
pensei duas vezes antes de ajudá-lo.
— É quem estou pensando?
— O herdeiro dos Kane? Sim. Jack Kane era idêntico a um louva-
deus. Pernudo e cheio de si, e precisava de ajuda. Já eu, queria dar uma
surra naqueles idiotas e foi exatamente o que eu fiz até os homens do meu
pai e do pai de Jack nos encontrarem. Nos tornamos bons amigos desde
então e foi quando comecei o hábito das tatuagens — expliquei, lembrando-
me de cada uma delas. — Primeiro tatuei uma caveira nas costas, para
sumir de vez com a marca que Estevan fez na minha pele. Ela significava a
morte e o renascimento.
Quando fugi não tinha dinheiro para cobrir a tatuagem que ele tinha
feito em minhas costas e me sentia tão deplorável quando me lembrava dela
que decidi tomar medidas mais drásticas e arranhei as costas em uma
parede de chapisco até machucar a pele, assim eu me livrava da marca até
poder tatuar algo por cima.
— Quando conheci meu pai percebi que era hora de recomeçar e
cobri de vez o meu passado com muita tinta e algumas doses de uísque
puro. Desde então, eu me tatuo sempre que acontece algo bom, ou marcante
em minha vida. Toda vez que supero um obstáculo ou um inimigo. — Dei
de ombros. — Essa é a minha vida. Só me resta valorizar o que tenho e
sobreviver a tudo o que já perdi.
— Por isso não permite que se aproximem de você?
— É mais fácil assim. — Acariciei seu rosto. — Não dói se eu não
me importar.
— Mas vai doer de qualquer jeito. Não há maneira de esquecer um
machucado. É por isso que sofro toda vez que chove, porque nunca me
esqueci. — Ela fungou baixinho. — Sinto muito pelo que aconteceu com
você.
— E o que houve com você, pequena? — Ela prendeu o ar por um
instante e depois o soltou, como se pensasse na resposta.
— É que... — Ela devaneou e de repente começou a tremer em
meus braços. — Começou quando eu tinha cerca de nove anos — ela
contou entre arfadas, sem o controle das emoções.
O choro surgiu baixo, contido, mas logo se tornou mais alto,
doloroso e me deixou em choque por um momento. Detestava ver uma
mulher chorar porque não fazia ideia do que fazer em relação a isso, mas o
que senti ao ver Petrova soluçando em meus braços, colocando toda dor
para fora daquele jeito foi diferente. Era uma agonia lancinante, que entrava
por meus poros e ia direto para o peito, onde meu coração batia
desconsolado por sentir em meus ossos a dor dela.
A única certeza que tinha era a de que faria tudo para trazê-la de
volta à realidade. Segurei sua mão com a minha e a levei até meu peito.
— Respire junto comigo, pequena. Um segundo de cada vez. —
Orientei e ela estremeceu com o esforço que fazia para continuar puxando o
ar. — Devagar — pedi baixinho entre os seus cabelos que cheiravam a
sabonete, doçura e tristeza.
Passei longos minutos focando minha atenção na sua própria
respiração. No movimento do seu peito subindo e descendo. Do calor dos
seus dedos trêmulos buscando apoio nos meus.
Petrova começou a se acalmar, apesar de ainda estar se afogando em
medo e foi então que eu percebi o que aconteceu: Ela estava sendo cobrada.
E o preço por ser forte o tempo todo não era barato.
— Minha mãe era uma russa que vivia clandestinamente aqui, nos
Estados Unidos. Ela conheceu meu pai e foi amor à primeira vista. Ele era
um homem bom, trabalhador e herdeiro. Tinha muitas terras, gados e
posses. Mas seu maior bem era o amor que tinha por minha mãe. Ela queria
se casar, ele... queria ter filhos, então ela engravidou e eles se casaram.
Minha mãe insistiu que morassem um tempo fora, na Rússia. De acordo
com ela, eu precisava conhecer nossas tradições e ele aceitou. Vivi por
cinco anos lá. Não tínhamos muitos amigos, meu pai não conhecia
ninguém, mas minha mãe sim. Ela tinha um amigo estranho, com quem
sempre se encontrava quando meu pai não estava por perto — ela disparou
e fiquei parado, encantado por conhecer a história daquela mulher tão
fascinante. Sempre quis saber como ela tinha crescido, mas não imaginava
que estaria à beira de ter um infarto quando ela terminasse a história. —
Meu pai começou a ter maus súbitos depois de um tempo. Ele ficou
irreconhecível, e acabou convencendo minha mãe a voltarmos para a
América. Não adiantou muito, ele morreu alguns meses depois. A causa era
desconhecida.
— Sinto muito, pequena.
— Ele era um homem bom. Me tratava com amor. Por isso fiquei
muito triste quando minha mãe se casou novamente, pouco tempo depois
que ele se foi. Com o amigo esquisito da Rússia. Eles tinham um caso.
— Que filhos da puta. Descaralhados dos infernos! — praguejei
diante da traição dos dois.
— Daí para lá minha vida mudou completamente. Parei de ser a
filha de alguém e me tornei um peso. Aquele homem vendeu tudo que meu
pai tinha e gastou todo o dinheiro com drogas e bebidas, junto com minha
mãe. Acabamos vivendo em uma fazenda isolada e maltratada pelo tempo e
ele começou a me castigar sempre que achava que deveria.
— O que quer dizer com “castigar”? — Apertei a mão de Petrova
com as minhas, preocupado até os ossos com a resposta.
— Ele me espancava com frequência. Principalmente depois do
jantar, quando ele perguntava a minha mãe como eu tinha me comportado e
qualquer mínimo deslize era motivo para levar uma surra de um
desconhecido maldito. — Podia sentir a dor em suas palavras e de alguma
forma, aquele sentimento se transformava no mais puro ódio em meu peito.
— Chovia muito onde morávamos... — Ela fungou e respirou fundo. — T-
tinha uma cabana velha, na encosta da colina... ele me prendia lá toda vez
que me batia, passei várias noites naquele lugar frio e escuro. Era como
estar no inferno e quando chovia, podia ouvir cada gota, cada trovão, como
se eu estivesse bem no meio do céu, apenas esperando para ser atingida. Eu
sentia tanto medo que às vezes vomitava. E no dia seguinte, minha mãe agia
como se nada tivesse acontecido, não importava o quanto ele me marcasse.
Eu aguentei as surras e a tortura do castigo na casinha por muito tempo,
mas as coisas ficaram piores e eu acabei reagindo quando ele... tentou me
agarrar quando fiz 13 anos.
— Ele... — rosnei e trinquei o maxilar, sentindo cada uma das
minhas células pular de ódio.
— Minha mãe não acreditou em mim. Deixou que ele me prendesse
na casinha mais uma vez, depois de me espancar. E de madrugada, ele foi
até lá. Estava chovendo muito, os trovões rugiam por toda parte, clareando
a noite de um jeito sinistro. Ele entrou na casinha e me atacou. Eu revidei
e... acabei enfiando uma faca em sua barriga. Depois disso fugi na
tempestade, foi a única vez que consegui enfrentá-la.
— Por favor, Petrova, me diga que ele está morto, sim? Me diga que
ele está a sete palmos do chão, para que eu não tenha que me levantar daqui
agora para caçá-lo pelo mundo. Um desgraçado desses não pode respirar o
mesmo ar que você. — Segurei seu rosto com ambas as mãos. Parecia
prestes a sufocar, cego pela fúria.
— Não tive notícias deles por muitos anos até entrar para a CIA.
Decidi abrir uma investigação para saber o que aconteceu com meu pai.
Reabri a perícia e descobri que ele foi assassinado. Minha mãe envenenou
meu pai por anos, um pouco de cada vez, para não parecer suspeita. Quem
fornecia o veneno era meu padrasto. Tudo não passava de um golpe bem
planejado. Entreguei o caso nas mãos da polícia com todas as provas. Não
queria ter que lidar com aqueles dois, só então fiquei sabendo que meu
padrasto desenvolveu uma sepse, uma infecção no sangue devido a facada,
ou melhor... devido a não ter procurado ajuda quando foi esfaqueado, o que
resultou na amputação das suas duas pernas, mas não impediu que ele e
minha mãe tramassem mais assassinatos similares.
— O que quer dizer com isso? Eles continuaram matando?
— Eles tentaram. Minha mãe começou a trabalhar na casa de idosas,
e envenenava todas elas. Encontraram várias pistas na casa deles e os
levaram para a prisão. Onde eu estava esperando por eles. — Assumiu com
a voz embargada. — Foi a última vez que os encarei. Queria que olhassem
em meus olhos, que soubessem que fui eu quem os colocou ali. Fui eu que...
— Ela puxou o ar, como se só agora se desse conta e terminei a frase por
ela:
— Foi você que vingou a morte do seu pai.
— Sim. — Ela soluçou. — Mas ainda me sinto presa naquela
casinha. Toda vez que chove, cada relâmpago é capaz de me prender lá de
novo. — Abracei-a, confortando-a como podia. Louco para saber em qual
cadeia o filho da puta do padrasto dela tinha ido parar, mas me contive em
continuar acalmando-a. Petrova precisava de mim. — Minha vida é
limitada a ter medo. A pesquisar todo santo dia a porcaria da previsão do
tempo. Trabalho de casa, quando chove, não tenho coragem nem de abrir as
cortinas. Vivo em uma prisão que varia com o tempo.
— Mas que merda! — disse apavorado, confuso. Não conseguia
entender que porra de mundo era aquele, onde anjos como ela sofriam
tanto. — Vou te tirar desse tormento, não importa o que tenho que fazer.
Deve existir uma saída e eu vou encontrá-la para você. — Aproximei meu
rosto do dela, ciente de que seu toque me hipnotizava e sentir suas mãos
pequenas em meu peito me traziam um misto de calma, excitação e certa
raiva. Afinal, já não conseguia me controlar.
— Acho que vai acabar perdendo seu tempo. Já tentei de tudo. A
terapia não funcionou porque não consegui ir adiante. Não sei como
enfrentar meu medo.
— Vou descobrir um jeito, eu garanto.
— Faria isso por mim? Mesmo que não dê em nada?
— Eu moveria o inferno por você, pequena. — Resvalei o nariz na
lateral do seu rosto, apreciando seu cheiro puro de rosas no fim do verão,
enquanto ignorava o incêndio que começava em meu peito e parecia se
espalhar por cada fibra do corpo. — Sou capaz de tudo para tirar sua dor,
posso fazer qualquer coisa. Como sabe, não tenho muitas restrições morais.
— Ela deu uma risada baixinha. A silhueta do rosto tomando contornos
delicados, contornos que ansiei por tocar intimamente. — Ao menos não há
moral o suficiente para ficar tão próximo de você sem desejar beijá-la —
confessei, sedento, inclinando-me devagar em direção a sua boca.
Tinha parado de chover, constatei quando me dei conta de que o
único som que ecoava em meus tímpanos eram as batidas aceleradas do
meu coração.
— Porrrr que não me beija? — Ela arranhou o sotaque. A respiração
subitamente se tornando mais agitada à medida que me encarava na
escuridão. Meu pau pulsou duro, estava ficando louco de desejo, o que me
deixava intrigado, para dizer o mínimo.
Nunca me senti tão intensamente atraído por uma mulher como me
sentia por ela. Ergui a mão e acariciei o rosto macio, absorvendo a pele
quente. Tracei um caminho, contornando seus lábios devagar, como se
pudesse desenhá-los em minha mente perturbada. Ela reagiu e se encolheu
um pouco, fechando as coxas quase sem perceber, enquanto respirava mais
devagar.
Caralho, ela era sempre tão nítida diante de mim. Uma versão única,
minha.
Podia perceber seus sentimentos através da sua respiração. E saber
que eu era o único capaz de senti-la assim me deixava fascinado. A forma
como se escondia do mundo atrás de uma força que intimidava era
praticamente impenetrável, mas a pequena confiava em mim.
Inclinei-me, acendi o abajur e desci os olhos para ela. Petrova estava
com as maçãs do rosto muito vermelhas, assim como a pontinha do seu
nariz. Os fios laranja e desordenados se espalhavam pelo travesseiro de
forma graciosa. As esmeraldas em seus olhos brilhavam, enquanto me
sondava em silêncio e não precisava ser um analista comportamental para
ler o que eles diziam. Desci os olhos por seu pescoço até pousar sobre os
seios redondos embaixo de uma camiseta fina que deixava bem-marcado os
biquinhos durinhos, implorando por atenção. Ela mordiscou os lábios
carnudos e desenhados e encarou minha boca e então percebi que estava
fodido.
Ela era poderosa, atrevida, gostosa e pelo inferno, me tinha nas
mãos.
Toquei seu maxilar e mantive seu olhar preso ao meu. Precisava ver
sua verdade porque sabia que era um caminho sem volta.
— Tem que saber o que está escolhendo. Olhe para mim, olhe em
meus olhos e me diga que é isso que quer.
— A afirmativa de uma constante é...
— Sim ou não — vociferei e interrompi a resposta Nerd que
provavelmente me deixaria confuso. As pontas dos meus dedos pareciam
em chamas, louco para entrar nela de alguma forma.
— Sim, é o que quero. — Ela ficou ainda mais vermelha.
— Eu vou corrompê-la, porra — rosnei baixo e deslizei o nariz pela
sua bochecha, inspirando o aroma floral delicado como quem tocava algo
precioso e proibido. — Minha essência é predatória, pequena. Vou trocar
todos os seus sonhos inocentes por algo pervertido. — Soltei o ar,
exasperado. A raiva por não ser o que ela merecia começou a se misturar ao
desejo e se tornou uma coisa só. Eu só sabia sentir, em todos os cantos da
porra do meu corpo. Uma necessidade absurda de que ela me aceitasse, de
que meu passado fodido não importasse, que ela quisesse ficar. — Vou te
marcar e não pretendo parar, princesa. Eu sou assim. É o que quer?
Diga que não...
Negue! Desejei com todas as minhas forças, porque sabia que dali
em diante, Petrova seria minha.
— Não tenho medo de você, Cedric. Não tenho medo do seu
passado... — Soltei o ar devagar, encarando-a. — Cansei de fingir. Eu quero
você... quero agora, quero o tempo todo. Não importa se você quiser fingir
que nunca aconteceu — ela sussurrou, corada e piscou devagar quando
deslizei os dedos pelo seu pescoço fino, contornando a clavícula e
descendo, até circular o mamilo redondo e marcado por cima da blusa
apertadinha. O toque leve e despretensioso a fez arfar baixinho.
— Não quero fingir. Só quero sentir cada pedacinho seu. —
Inclinei-me, captando a ponta do mamilo com os dentes, ainda por cima do
tecido. Ela ofegou e estremeceu, fechando os olhos, perdida na carícia lenta.
Subi os lábios por seu pescoço e parei diante da boca desenhada.
Quase sorri para o semblante fofo e inocente que ela sustentava, mas
o torpor do que pretendia fazer com ela me deixou quente, inquieto.
Deslizei o polegar pela boca carnuda e rosnei, rouco quando ela chupou
meu dedo afoita, com vontade.
— Caralho, raposa...
Beijei-a, possesso. Ela abriu a boca, entregando-se com um
gemidinho fraco. Penetrei seus lábios com a língua em uma mistura de
delírio e prazer. Seu gosto doce se espalhou pelo meu paladar e ela emitiu
um chiado fraco e trêmulo quando deslizei os dedos por cima de sua blusa,
beliscando os mamilos sensíveis e entumecidos.
Era inexplicável a sensação quente que descia por meu peito e se
espalhava pelo meu corpo apenas por tocá-la. Como se de alguma forma eu
me sentisse mais completo, enquanto mergulhava em sua boca, tomando
tudo que ela era, tudo que temia, tudo que a inquietava. Todos os seus
medos, todos os seus sonhos, nas pontas dos meus dedos.
— Posso apostar que está molhada. — Desci os dedos pela lateral
do seu corpo e abri suas pernas.
— Idiota! Ahhhhh... — ela xingou e gemeu quando afastei o short e
deslizei dois dedos pela extensão inchada da sua boceta.
— Gostosa do caralho! — rosnei contra sua boca, abrindo suas
camadas. Mergulhei um dedo dentro dela e gemi rouco. — Você é tão
quente, minha raposinha. Tão deliciosa... — Espalhei sua umidade e
comecei a acariciar o clitóris durinho, devagar. Ela se contorceu em meus
braços, choramingando baixinho. — Não sou bom o bastante para não fodê-
la hoje. Então se tiver alguma dúvida, precisa me dizer agora. Não sou a
porra de um príncipe, pequena, vou devorar cada pedacinho de você.
— Príncipes são tediosos e narcisistas, se quer saber — disse entre
pequenas arfadas, estremecendo a cada novo toque e foi o bastante para me
deixar louco, possessivo. Cada som que aquela boquinha atrevida fazia era
para mim. Só pra mim.
Mordisquei seu maxilar, tentando me controlar para não rasgar a
roupa dela, então tirei a blusa e a arremessei em um canto do quarto,
deixando os seios rosados e inchados expostos. Ela corou quando encarei
cada um deles com desejo.
— Linda... Você é como um presente para um condenado. — Soprei
perto do seu pescoço e mergulhei na curva suave dos seus seios, chupando e
mordendo a carne.
Nunca seria bom o bastante para ela. Nunca seria merecedor de
tocá-la daquela forma. Ainda assim eu a possuiria, esquecendo-me de quem
eu era. Suguei o mamilo rosado com um pouco mais de pressão, meu corpo
queimando com os sons que ela deixava escapar.
Voltei a beijá-la com força, enquanto suas mãos pequenas
dedilhavam minha camisa, puxando os botões de um jeito desajeitado que
quase me fez rir.
— Essa droga de camisa não abre? — ela praguejou, irritada e
corada. Abri um sorriso de lado, pressionando seu corpo com o meu e a
ajudei, desabotoando a blusa que logo foi arremessada em algum canto do
quarto.
Petrova abriu mais os lábios e desceu os olhos pelo meu peito
tatuado. Ergueu a mão devagar, curiosa e tocou os piercings que eu tinha
nos mamilos, descendo pelos gomos dos músculos, arranhando a pele
devagar com a ponta das unhas.
Rosnei, tonto de prazer, desci sobre ela e possuí sua boca,
pressionando seu corpo pequeno contra a cama. Mordi seu maxilar e voltei
a lamber cada pedacinho de pele.
— Aaaaaaaa! Meu Deus... — Ela choramingou quando resvalei a
língua em um dos mamilos durinho, dedilhando sua boceta devagar,
subindo e descendo pelo clitóris inchado. Petrova se contorcia a cada toque,
a cada investida. Mal sabia como reagir. Sua pouca experiência me
fascinava, ficava mais duro a cada instante em que a surpreendia. — O-o
que vai fazer... Minha nossa! Ai, minha nossa! — Ela se remexeu quando
desci os dentes por sua barriga, castigando a pele até chegar ao meio das
suas pernas.
— Vai gozar na minha boca, raposinha. — Ela estremeceu em meus
braços, reagindo a cada palavra safada que eu dizia e arranquei seu short
curto junto com a calcinha, deixando-a completamente nua em cima da
minha cama.
Ergui o corpo por um momento, desafivelei o cinto devagar,
enquanto observava sua boceta pulsando, brilhando úmida, esperando
qualquer contato. Retirei o cinto e desabotoei a calça.
Petrova acompanhava o movimento com os olhos e eu só sabia
olhar para ela, com o rosto corado, destacando as sardas espalhadas pelas
bochechas, pescoço e seios, os cabelos laranjas bagunçados, enquanto ela
mordia os lábios grossos e provocantes.
Linda, delicada, minha.
— Você é perfeita — soprei depois de tirar a roupa, descendo os
olhos para os seios inchados, a cintura curvilínea e a boceta inchada,
implorando por atenção.
— E você é... grrrande. — Ela encarou minha ereção e abriu os
lábios. — Um grrrande gostoso. — Petrova deu uma risadinha e tentou
cobrir o rosto. Segurei ambas as suas mãos.
— Não vai fugir, princesa. Quero que veja tudo. Quero que se
lembre...
E que nunca me esqueça. Quis completar, mas em vez disso,
inclinei-me até sua barriga e a beijei ali, lambendo seu umbigo, desci
devagar, sem pressa, mordendo e chupando tudo pelo caminho. Queria
marcá-la.
Abri os lábios da sua boceta com a ponta da língua, resvalando o
piercing em toda sua extensão inchada. Ela gemeu como uma gatinha e
introduzi a língua na bocetinha quente e apertada, ela se comprimiu,
tentando me puxar para dentro. Subi de novo e comecei a sugar toda a sua
extensão, chupando a carne molhada da sua boceta. Penetrei-a com a
língua, seu calor se espalhou por minha boca. Suguei e mordi seu clitóris
devagar, apreciando os sons que ela deixava escapar.
— Aiiiiii, meu Deus! — A pequena enfiou os dedos em meus
cabelos, estava quase gozando.
Alcancei uma camisinha no bolso da minha calça e a coloquei.
Pressionei a glande contra sua boceta, subindo e descendo devagar.
Petrova arfou, em expectativa e a prendi entre meus braços, tonto de tanto
desejo.
— No fim das contas... é você quem está fodendo comigo, princesa.
— Ela abriu mais os olhos, a sombra da dúvida permeando seu olhar.
Ela não fazia ideia... nem mesmo imaginava o que fazia comigo.
Petrova fodia minha mente, meu coração, minha vida e ficava cada vez
mais difícil fingir que não gostava daquilo.
Inclinei-me até beijar sua boca com a minha, sua respiração
entrecortada parecia capaz de balançar todas as células do meu corpo.
Ela era pequena perto de mim, precisava me lembrar disso, não
podia correr o risco de machucá-la, mas quando comecei a deslizar para
dentro dela, sentindo sua boceta se abrir devagar, enquanto ela gemia em
minha boca, tudo pareceu se encaixar.
— Puta que pariu, que delícia! — rosnei em sua boca, entrando
fundo e devagar, abrindo-a ao extremo até que se acostumasse e como era
apertada, caralho. Podia sentir meu pau latejar dentro dela, louco para fodê-
la com força.
Beijei sua boca e rastejei os dentes pelo lábio inferior. Então ergui o
rosto e olhei dentro dos olhos dela, começando a estocar. Primeiro devagar,
indo fundo, mas quanto mais eu entrava, mais difícil ficava controlar.
— Ah, pequena... — Estoquei, afundando os dedos em sua carne.
Ela gemeu alto, os braços se agarrando aos meus ombros trêmulos.
Estoquei duro e ela gritou, abrindo-se um pouco mais e não consegui me
controlar, comecei a entrar mais rijo e quando me dei conta estava
estocando com força. Os gritos dela se encontravam com meus rosnados e
se misturavam ao som da minha pelve batendo com força contra ela, que
escorria, quente, gostosa pra caralho. Sua boceta me apertou com força e
suas unhas cravaram em minhas costas.
— Aiiiiii... Snake! — ela choramingou e começou a gozar,
estremecendo em meus braços, as bochechas assumindo um tom ocre
gracioso enquanto ela mordia os lábios de olhos fechados.
Puta que pariu, eu estava sedento. Louco pelos sons que ela fazia,
pelo desejo insano que não conseguia esconder. Meti mais forte, abrindo-a
ao extremo. Molhei um dedo e deslizei a mão por sua bunda redonda,
abrindo-a um pouco mais e pressionei o pontinho delicioso, enfiando um
dedo ali. Ela se assustou, mas o prazer forte que a atingiu fez com que ela
se soltasse de vez. Minha gatinha começou a gritar, ronronando, revirando
os olhos e escorrendo, quente pra caralho.
— Porra, Petrova! — rugi alto quando ela me apertou com força,
prestes a gozar de novo. Não resisti e fechei a mão ao redor do seu pescoço.
Ela arregalou um pouco os olhos e abriu a boca. Beijei-a com ardor, suguei
sua língua e encostei a boca em seu ouvido: — Eu nunca a machucaria...
confia em mim? — Quis saber e apertei seu pescoço com mais força.
— S-sim. Faça o que quiser. Eu sou sua!
A frase pareceu abrir um buraco quente bem no meio do meu peito.
Um frenesi subiu por minhas costas e se alojou na base do pescoço,
dominando cada parte sã da minha racionalidade.
— Porra, sim! Você é minha. Só minha... — Abri um sorriso de
lado, sem o mínimo controle das minhas emoções.
Mordi sua boca devagar, puxando os lábios. Sentindo a pele
delicada do seu pescoço sobre a palma da minha mão e comecei a apertar,
metendo com mais força, enquanto chupava e mordia cada canto sensível
dos seios, até deixá-la ainda mais marcada e não conseguia explicar o
prazer absoluto que sentia em ver as marcas vermelhas se formando nas
laterais dos seios sensíveis.
— Não vou aguentar — ela choramingou, rouca, ofegante, e enfiou
os dedos nos lençóis, sendo tomada por mais um orgasmo.
Era tão preciosa, minha pequena. Vê-la tremer entregue daquele
jeito me deixou doente de desejo. Comecei a comê-la devagar, tentando
guardar cada pedaço em minha memória. Cada gemido, cada arfada, cada
beijo.
— Caralho... — praguejei e beijei-a com força quando meu pau
inchou, prestes a gozar e explodi dentro dela em jatos fortes, grunhindo
contra sua boca.
Petrova me abraçou com as pernas, abrindo-se ainda mais para mim
e estoquei mais algumas vezes depois de gozar, apreciando o calor da sua
boceta inchada e apertada, e dos sons que ela deixava escapar.
Deitei-a em meus braços, incapaz de soltá-la.
— A machuquei de alguma forma? Está doendo? — questionei
depois de um tempo, sondando as marcas vermelhas em sua pele clara.
— Eu estou bem. Muito bem, na verdade — disse entre arfadas e a
aconcheguei em meus braços.
Ela mal conseguia olhar em meus olhos e constatar aquela inocência
deliciosa me fez sorrir e me sentir o desgraçado mais sortudo e sem
vergonha da face da terra, porque eu estava feliz pela pouca experiência de
Petrova. Significava que nenhum outro fez com ela o que eu fiz, ou o que
ainda iria fazer.
Eu a marquei.
— O que é isso? — Desci os dedos pela lateral do seu corpo e a
girei na cama até que ficasse de costas para mim. A bunda empinada
parecia um convite ao pecado, assim como a minúscula tatuagem de
coelhinho da Playboy que estampava a curva da sua bunda.
— Foi minha segunda tatuagem depois da do Pomo de Ouro... —
Ela apontou para a pequena bolinha com asas, na lateral do seu dorso. —
Eu estava me sentindo rebelde na época e o que poderia ser mais ousado do
que esse coelho? — Ela riu.
— Não consigo pensar em nada mais sexy. — Dei risada e ela
emitiu um gritinho quando depositei uma mordida seguida de um beijo bem
em cima do coelho rebelde. — E o que significa essa coisa de Pomo de
ouro?
— O Pomo de Ouro é uma bola de Quadribol, que o Harry Potter,
como Apanhador, está responsável por apanhar durante os jogos. Ela fica
voando durante o jogo, e Harry sempre tem que dar o seu melhor para pegá-
la. É um prêmio, que significa que ele conseguiu vencer os obstáculos, que
não são poucos.
— Você também mereceu esse prêmio. — Deitei ao seu lado e a
girei até que estivesse de costas para mim, enfiando o nariz na curva
delicada do seu pescoço.
Ela empinou a bunda e imediatamente meu pau latejou e percebi que
não conseguiria parar, não com ela, não agora. Envolvi seus seios e lambi a
base do seu pescoço, desesperado por mais. Coloquei outra camisinha e
puxei sua perna, abrindo-a um pouco mais. Espalmei sua boceta e comecei
a acariciá-la devagar.
— Me desculpe... — pedi, sentindo o centro do seu corpo molhar
meus dedos e coloquei a cabeça do meu pau na sua vagina pulsando.
— Pelo que está se desculpando?
Por saber que ela merecia mais. Muito mais do que eu tinha para
dar. Porque tinha algo em mim em pedaços e ela era digna de alguém
inteiro. Mas aquilo não importava. Não enquanto sua pele estivesse tocando
a minha e seus gemidos fossem destinados a mim. Naquela noite era tudo o
que importava.
Ela chiou e suspirou baixinho quando comecei a penetrá-la e fui
devagar, permitindo que ela se acostumasse ao meu pau, entrando mais
fundo a cada segundo.
— Cedric... não para, assim... aiiiiiiii!
Me permiti fechar os olhos, perdido nos gemidos altos que ela dava,
sentindo o aroma do nosso sexo impregnando cada canto daquele quarto. O
suor da sua pele na minha, os gemidinhos aflitos e entregue. Chegamos ao
ápice de um prazer devastador juntos. Como se nada mais tivesse
importância, a não ser pela fagulha de realidade que me lembrava o quão
longe de poder fazê-la feliz eu estava.
Naquele momento eu me odiei por ser incapaz de soltá-la. Não
passava de um desgraçado egoísta, mas não consegui evitar a súbita
sensação de estar completo quando ela dormiu em meus braços.
Descabelada e vermelha, uma visão perfeita e da qual eu nunca iria
esquecer.
Mas que inferno. Uma hora ou outra ela iria embora, eu sempre
soube daquilo. Então por que agora a ideia me deixava apavorado? Uma
sensação estranha e latente se apossava de mim toda vez que pensava no dia
em que ela pegaria toda a sua bagunça e partiria dali para sempre.
Era como se aquela pequena mulher encrenqueira tivesse se
apossado de toda a felicidade do mundo e se ela partisse, não me restariam
muitos motivos para sorrir.
Mas e se eu a pedisse para ficar? Ela ficaria?
Desci os dedos por seu rosto, incapaz de dormir de qualquer forma.
Havia tanto a ser feito, ela precisava de mim. Aquele tormento em dias de
chuva tinha que acabar de alguma forma, eu não suportaria vê-la sofrer por
mais uma noite sequer.
Alcancei meu telefone, sem soltá-la e disquei o número de Jack.
— Posso saber por qual motivo estou sendo despertado no meio da
madrugada?
— É uma urgência — sussurrei para que ela não ouvisse.
— Eu espero que haja alguém para ser morto. Sabe que odeio ser
acordado. Preciso descontar minha raiva... — Ele bocejou, puto e acabei
rindo.
— Preciso do seu primo, o terapeuta.
— Simon? — Quis saber, parecendo confuso. — Olha, meu amigo,
tem minha admiração por desejar tratar todos os problemas da sua vida, mas
não dava para esperar amanhecer para começar a fazer terapia, porra?
— Não é para mim, preciso de orientação de como lidar com uma
situação, e não conheço nenhum profissional que vá querer me ajudar sem
fazer muitas perguntas, além de alguém da família Kane. — Soltei o ar,
exasperado. — Preciso de ajuda, Jack. — Olhei para Petrova, dormindo
tranquila, um dos braços pendia leve sobre meu peito, enquanto sua
respiração cadenciada resvalava em meu pescoço. Era um pequeno anjo...
um que estava caminhando pelo inferno. — Vai me ajudar?
— O que eu não faço por você, seu insuportável degenerado? Vou
acordar Simon, ele está passando uns dias aqui na mansão Kane.
Agradeci e passei o resto da madrugada sussurrando, enquanto
conversava com o terapeuta Kane, o único dos primos de Jack que decidiu
seguir uma vida longe dos negócios da família.
Desliguei com a mente fervilhando, depois de entender um pouco do
que ela passava e de todo o caminho que teria que trilhar. Simon garantiu
que poderia me orientar a auxiliá-la no tratamento, que era basicamente a
dessensibilização do trauma, e eu já sabia que seria difícil, mas não estava
disposto a desistir.
Nem fodendo ela passaria por mais uma noite de pânico daquele
jeito.
— Vou tirá-la desse pesadelo, meu anjo. — Dedilhei seu rosto com
cuidado para não acordá-la e a manhã surgiu enquanto eu pesquisava a
meteorologia do tempo, como um lunático.
Abri mais os olhos, assustado quando me dei conta de que era capaz
de fazer qualquer coisa para que ela não sofresse.
É como se eu estivesse despertando
Todas as regras que eu tinha você está quebrando
Halo - Beyoncé
Petrova
Jurei que estava pronta para conhecer o passado de Snake e que
nada seria capaz de me abalar depois de tudo que já vi, mas quando acordei
na manhã seguinte, escondida embaixo das cobertas, sozinha em seu quarto
enorme, a primeira coisa que pensei foi na criança que um dia ele foi. Eles o
destruíram e mesmo assim ele precisou ser forte e encontrar um jeito de
continuar.
Agora tudo fazia sentido. Snake não deixava as pessoas se
aproximarem porque ele não sabia dizer adeus. Ele foi abandonado pela
primeira mulher que amou e tudo que restou depois disso lhe foi tirado. A
dor do que aquilo significava parecia prestes a me rasgar no meio.
Fechei os olhos sob o lençol macio e tão escuro quanto as tatuagens
espalhadas pelo corpo dele, incapaz de não inspirar com força, enchendo
meu pulmão do seu perfume que era tingido por notas de madeira, uísque e
charuto.
Éramos diferentes, sim, como água e vinho, mas aquela
singularidade diminuiu na noite passada, quando me dei conta de que sua
alma era tão marcada quanto a minha.
Todo o abismo entre nós desapareceu quando ele pintou cada
pedacinho de pele no meu corpo com sua boca, quando chamava meu nome
rouco enquanto me possuía, tomando minha alma entre os dedos com
aquele olhar malicioso que me deixava inquieta, fascinada.
Meu Deus, eu estava perdida. Seu passado era sombrio, assim como
o homem que ele se tornou e não havia nem uma parte dele pela qual eu não
estivesse apaixonada.
— Que porcaria, Petrova! — praguejei e comecei a bater as pernas
sobre a cama, como uma criança fazendo pirraça. Só podia mesmo estar
ficando louca.
Mal acreditava que meu coração bobo estava quase parando dentro
do peito, ansiosa pelo momento que iria revê-lo em algum canto da casa,
ainda que ele me ignorasse, ainda que fingisse que nada daquilo aconteceu.
Não importava, eu só queria vê-lo mais um pouco.
Fiquei alguns minutos ali, ponderando minhas opções, mas não
podia fugir da realidade para sempre, então tomei coragem e ergui o lençol,
piscando até me acostumar com o breu do quarto e...
— AAAAAAAAAAAAAAAAAA! QUE MERDA, SNAKE! —
gritei quando vi uma figura larga e imponente na beirada da cama, sabe-se
Deus fazendo o quê.
— Não quis interromper o que quer que estivesse acontecendo aí
embaixo. Parecia importante. — Ele riu, descarado.
Ah, meu Deus! Ele viu a pirraça que eu fiz.
ELE VIU TUDO!
Meu coração subiu para a garganta e dei um salto na cama.
Imediatamente fiquei tonta por ter levantado rápido demais e embolei os
pés nos lençóis. Minha visão foi tomada por incontáveis pontinhos pretos e
as pontas dos dedos começaram a formigar.
— Mas que diabos... — Senti os braços rijos de Cedric enlaçarem
minha cintura antes que eu me estabacasse em algum canto do quarto. —
Quer quebrar o pescoço, raposa? — Ele me soltou na cama com cuidado. —
Que mulher mais doida!
— Ah, eu sou a doida? Quem é que fica sentado que nem uma
múmia do além na beirada da cama desse jeito? Você quase me matou do
coração. Eu podia ter atirado em você! — Estreitei os olhos quando ele
acendeu a luz do abajur e me encarou, as íris azuis profundas pareciam
capazes de ler minha mente.
— Não queria acordá-la. E posso garantir que valeu a pena esperar,
você é uma visão selvagem e tanto, Raposinha. Toda descabelada e
vermelha. — Ele desceu os olhos, sondando a roupa que eu usava, que
naquele momento não passava de uma camiseta que mal comportava meus
seios e uma calcinha, e abriu um sorrisinho de lado, indecente de tão lindo.
— Gostosa pra caralho, apesar de ter umas manias esquisitas...
Meu ventre se contraiu de desejo e meu rosto queimou de vergonha.
O que me deixou brava e confusa.
— Quer saber... eu vou atirar em você! — Virei-me para a
escrivaninha, onde eu sabia que ele guardava uma arma.
— Tranquila como um animal silvestre, graças a Deus — zombou,
agarrando minha cintura. — Onde é que eu fui me meter. — Ele deu risada
e me puxou, até que estivesse com o corpo colado ao dele.
— Ora, seu... — Debati-me contra seus braços, mas ele manteve o
aperto firme e me puxou para seu colo. Passei as pernas ao redor da sua
cintura, encaixando-me sobre o corpo másculo e de repente, ele estava perto
demais. A ponto de bagunçar meus pensamentos. — Pensei que não estaria
aqui quando eu acordasse. — Prendi a respiração quando ele tocou meu
rosto.
— Onde mais eu estaria? — A mão tatuada era grossa, firme,
marcante, mas ainda assim me tocava com delicadeza.
Soltei o ar e fechei os olhos, perdida naquela breve carícia. Seus
dedos desceram por meu pescoço e ele acariciou a curva elevada dos meus
seios, onde uma grande marca roxa estampava a pele clara. Ele estreitou os
olhos azuis, como se sentisse algum tipo de dor.
— Eu não sei fazer isso, Petrova — disse, subitamente chateado.
— Do que está falando?
— Eu não sei o que fazer com você — confessou sem me encarar.
— Sempre fui só eu. Depois vieram meu pai e meus irmãos, mas nunca...
— Ele respirou fundo, como se buscasse as palavras certas. — Nunca
houve uma mulher que me deixasse louco de raiva, ao mesmo tempo em
que quase me matava de tesão. Você me deixa confuso. — Mordi os lábios,
segurando um sorriso enquanto a emoção batia fundo em meu peito ao vê-
lo ali, todo embaraçado e perdido. — Nunca desejei ninguém com tanto
desespero, mas quando se trata de você, pequena... — Ele acariciou meu
rosto. Os olhos sinceros me fizeram engolir com dificuldade. — Porra, eu
mal consigo manter as mãos longe de você. — Ele deslizou os dedos pelo
meu pescoço até alcançar a lateral do meu seio e ofeguei, perdida naquelas
palavras. — Até a porra do meu pau pensa o mesmo e se recusa a desejar
outra mulher.
— Snake! — Bati a mão no ombro do safado em um misto de
euforia e surpresa.
— É a mais absoluta verdade! No entanto, basta pensar em você
para que ele fique duro pra caralho. — Snake pousou uma das mãos em
meus quadris e me puxou contra a ereção dura e crescente embaixo de
mim.
— Seu romantismo me choca! — Não aguentei, estava tão nervosa
que comecei a gargalhar e ele estreitou os olhos.
— Está vendo? Eu sou um fracasso! — Vociferou. — Tentei fazer
um café da manhã para você, mas tenho a total certeza de que deve estar
horrível, não ficou dessa cor na porra do tutorial. — Ele se inclinou, irritado
e tirou a tampa de uma travessa de prata que estava sobre a mesa lateral da
cama, revelando uma taça de suco, bacons fritos, ou melhor, torrados, e
alguns ovos mexidos que curiosamente estavam tingidos de vermelho. —
Não ouse dar risada — ele ameaçou, chateado, encarando-me de perto e
mordi a língua na tentativa de obedecê-lo. — Não fazia ideia de como agir
depois de ontem. Se deveria ficar com você na cama, ou me levantar. Se
escolhia sucos e bacon, ou café e um pedaço de bolo. Para ser sincero, nem
sequer sabia se estaria com fome ou não. Acordá-la com um café na cama
me pareceu estranho, imagino que as pessoas queiram escovar os dentes
antes de comer, mas li no google...
— Você fez o quê? — Levei a mão à boca e Snake deu de ombros.
Pela primeira vez na história, ele se parecia mais com um ser
humano, preocupado, encarando-me com um vinco entre as sobrancelhas
grossas, do que com uma máquina de músculos, certeza e raiva. Suspirei.
Meu coração em chamas batia acelerado.
— Eu só não sei como agir. É a primeira vez que chego nessa fase
do jogo... quer dizer, como disse, nunca acordei ao lado de alguém —
repetiu, inseguro.
Deslizei a mão por sua camiseta cinza escura, sentindo os músculos
ondulando por baixo do tecido, enquanto seus dedos continuaram traçando
minha pele, tocando tudo até alcançar a curva alta dos seios, onde a pele
estampava uma grande marca roxa. Uma marca que ele causou.
— Nunca precisou do Google para me fazer perder o rumo do certo
e do errado, Snake — disse trêmula pelo toque, que estava cada vez mais
perto dos mamilos sensíveis.
— Nunca tive alguém como você, Petrova. Isso me deixa perdido.
— Ele me encarou, as pupilas dilatadas pela pouca luz deixavam os olhos
azuis mais profundos. — Você é meu desafio mais difícil.
— Eu sou uma agente da lei. Você nunca gostou de regras. Somos
completamente diferentes. Tínhamos que ficar bem longe um do outro, mas
eu não consigo ignorar essa... coisa, batendo em meu peito. — Peguei sua
mão e a pousei ali, sobre as batidas frenéticas do meu coração, pouco me
importando em expor o que sentia.
Esquecendo-me que escondia dele muito mais do que Snake poderia
imaginar, e que talvez aquele breve momento de entrega fosse se tornar um
abismo entre nós caso eu estivesse mesmo grávida, mas estava cansada de
fingir que poderia esquecê-lo. De fingir que não o desejava com cada célula
do meu corpo.
Deslizei uma das mãos pelas tatuagens à mostra em seu pescoço.
Elas o deixavam ainda mais atraente e perigoso e eu amava aquela
combinação que era tão característica dele. Ofeguei baixinho quando ele
roçou a boca firme na minha.
— Talvez esse seja o meu castigo. Não consigo me afastar de você,
mesmo sabendo que deveria. Essa é sua última chance de fazer isso por nós
dois. — Ele desceu os dedos e resvalou o polegar sobre o mamilo durinho.
Arfei, inquieta. — Um de nós tem que ser o racional e sabemos que isso
não cabe a mim. Então, me mande parar, Petrova, ou não vou permitir que
se afaste de mim novamente. — Ele acariciou com mais força, comprimiu o
biquinho rijo e o torceu, os olhos prestes a devorar minha alma. Tão lindo,
forte, intenso... Um arrepio subiu por minhas costas e todo meu corpo
reagiu.
— Não há nada racional no que sinto por você, Cedrrric... Nunca
vou mandá-lo parar.
Ele tomou minha boca com força e começou a me beijar. A ponta da
sua língua penetrou meus lábios devagar, mas logo o beijo se tornou mais
possessivo, assim como sua própria essência, consumindo tudo pelo
caminho.
Ofeguei, assustada quando um barulho alto cortou o ar e me encolhi
em seus braços.
— O que foi isso?
— É a equipe que contratei para instalar um isolamento nas paredes
e janelas. Mandei vedarem a casa para que não fizesse tanto estrondo
quando chovesse, não vamos escutar uma gota sequer — ele explicou com
naturalidade. — Colin está em segurança, correndo no terraço sob a
vigilância de Sullivan e James, sem contar no maluco de quatro patas.
Enquanto você está sob minha supervisão. Tem vários dos meus homens
espalhados pela casa, vigiando os contratados, que também foram
revistados, para evitar qualquer espião disfarçado. — Abri a boca, em
choque e o encarei.
— Você mandou vedar a sua casa?
O celular de Snake começou a tocar.
— Pedi que me ligassem se tivesse algum imprevisto, não queria
ninguém se aproximando da porta do quarto onde você estava dormindo. —
Ele ergueu a mão, pedindo que eu esperasse.
Fiquei observando o homem conversar sobre madeiras, instalações
de acústicos e vedações com os olhos arregalados. Snake tinha tido todo
aquele trabalho por mim?
Levei a mão à base do pescoço, tentando conter a ardência que subia
pela minha garganta. Ninguém nunca fez nada para me manter segura,
ninguém nunca se importou comigo além de Snake. Aquele homem que
muitos julgavam pelo seu caráter controverso me protegeu desde o primeiro
dia que me viu e agora estava reformando sua mansão só para camuflar o
som de algo que me apavorava.
Mesmo sem saber por quanto tempo eu ficaria.
— Obrigada — disse com a voz embargada, contendo o choro que
subiu por minha garganta assim que ele desligou o telefone.
— Não me agradeça, vai pagar por esse favor.
— Como? — Ergui as sobrancelhas, sem entender e estreitei os
olhos. Sabia que estava bom demais para ser verdade.
— Em troca, quero que me permita ajudá-la contra sua fobia. Andei
me atualizando sobre o assunto, e sei de uma coisa que pode te ajudar. Vou
descobrir uma forma de te libertar, pequena. Só preciso que me permita,
apesar de que eu não aceitaria um “não” como resposta de qualquer forma.
— Ele abriu um sorriso, todo cheio de si e respirei devagar.
— Snake, não acho que seja uma boa ideia. Você viu como são as
crises — disse, insegura, meus olhos arderam e marejaram. — São
horríveis, e não sou um fardo seu, não tem que...
— Mas eu vou — ele me interrompeu, baixinho. — E não aceito ser
contrariado.
— Faz anos que tento superar isso, nem mesmo a terapia funcionou.
Desisti faz muito tempo. Não há o que fazer — desabafei.
— Não acredita nisso, tanto quanto eu. — Ele cercou meu rosto com
a mão e me fez encará-lo, enquanto acariciava minhas bochechas. — Eu
vou ajudá-la, só confie em mim — disse sério.
— Eu confio — funguei, e estreitei os olhos, fingindo desconfiança
na tentativa de expulsar as lágrimas que transformaram Snake em um
borrão estiloso.
— Fico feliz em ouvir isso, agora, troque de roupa, vamos sair —
disse simples e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.
— Tem outras duas pessoas que precisam de ajuda, talvez com um pouco de
urgência e eu já olhei a previsão do tempo, não vai chover nos próximos
dias.
— Quem precisa de ajuda?
— Estrela e Jasmin.
— O que aconteceu com elas? — Arregalei os olhos, preocupada.
— Não é nada grave, eu acho. — Ele segurou minha mão com a sua.
O toque era simples, mas parecia tão importante que fez meu coração bater
um pouco mais acelerado. — Elas estão passando por um momento difícil.
Talvez você possa se encontrar com elas e sei lá, dizer qualquer coisa
motivacional, tipo a vida é bela, não se joguem na frente de um carro...
— Você é um ótimo atirador quando se trata de dar conselhos.
Minha nossa! — Abri a boca, perplexa com a total falta de noção daquele
homem e acabei rindo.
— Talvez você as entenda melhor, além de ser uma agente da CIA.
Uma muito estabanada, é verdade, mas ainda assim tem mais experiência
que elas.
— Ei!
— Só estou dizendo que deve ter algo a dizer que possa confortá-
las. Podem se encontrar, só as mulheres e uns trezentos guarda-costas para
aguentar a loucura que vai ser essa reunião. — Revirei os olhos. — Eu e
meus irmãos vamos cuidar de Colin. Posso aproveitar para ensiná-lo a
jogar. — Mordi os lábios, contendo a alegria que senti com a pequena
possibilidade de sair de casa, ao menos um pouco, e ficar distante de toda a
loucura que estava sendo a missão de abrir o pen drive.
— Vai ser bem legal passar uma tarde com as meninas. Gosto muito
das duas.
— Que ótimo, então vamos antes que eu não seja mais capaz de
ignorar a vontade de fodê-la nessa cama. — Ele se inclinou, tirando-me do
seu colo com cuidado e mordi os lábios, sentindo as maçãs do meu rosto
queimarem. Snake soltava todo tipo de safadeza com a maior naturalidade
do mundo. — Saímos em vinte minutos — ele avisou e se inclinou, dando-
me um beijo lento e profundo.
— Minhas roupas estão no meu quarto. Como vou sair daqui de
calcinha? Está cheio de gente aí fora...
— Acha mesmo que vou permitir que alguém te veja assim? Nem
morto, pequena. — Ele abriu a porta e gritou: — Vocês, para fora,
AGORA!
Levei a mão até o pescoço e sorri, me sentindo boba, incapaz de
ignorar aquele quentinho no peito que o olhar dele causava. Não havia
como negar o quanto estava entregue a Cedric Holder.
Cheguei na mansão do irmão caçula dos Holder, o Fantasma, com a
sensação de que estava pisando em uma granada prestes a explodir.
Tudo parecia calmo. Calmo demais.
— Quero que me ligue imediatamente se tiver algum problema ou
se alguma das minhas cunhadas começar a morder! — Snake me avisou,
enquanto James e Sullivan saíram de uma das oito SUVs pretas que nos
conduziram até ali e pararam ao meu lado.
— Por que sinto que estou sendo arremessada em algum problema?
— O safado abriu um sorriso torto.
— Vai dar tudo certo, não se preocupe. James e Sullivan vão cuidar
de vocês junto com a equipe interna. Estarei na mansão do meu pai, com
Colin e meus irmãos. Não há lugar mais seguro.
— Vai ser legal, mamãe! — Colin colocou a cabeça para fora da
janela do carro do Snake e ergueu os polegares, me incentivando. Ele estava
radiante, vestindo a blusa do Chicago Cubs e o boné do time, assim como o
Malvadão parado diante de mim.
Pareciam prestes a ir assistir a um jogo de beisebol e um nó se
formou em minha garganta ao notar o quanto meu filho estava feliz com a
possibilidade de viver aquela tarde.
— Sim, querido, vai ser incrível! — Apoiei e o vi desaparecer
dentro do carro. Snake olhou sobre o ombro e voltou a me encarar,
descendo os olhos devagar até minha boca.
— Reforçamos toda a segurança do lugar, mas não me sinto
confortável te deixando sozinha aqui. — Ele ergueu a mão e tocou a base
do meu pescoço. Respirar ficou subitamente mais difícil.
Escolhi uma das blusas que Snake tinha comprado para mim, com
uma gola um pouco mais fechada e que seria perfeita para cobrir as marcas
que ele deixou na curva dos meus seios. Marcas que iam demorar para
desaparecer e eu não fazia ideia de como esquecê-las mesmo depois disso.
— Está armada?
— Sim — balancei a bolsa preta pequena que trazia comigo.
— Isso me tranquiliza. Se acontecer algo, não pense duas vezes.
Atire, está ouvindo?
— Está dizendo para uma agente da CIA treinada o que ela deve
fazer, Presidente Holder? — provoquei.
— Estou pedindo que a minha agente da CIA não permita que seu
coração mole a faça titubear. — Abri um sorriso, sem conseguir disfarçar o
encanto que sentia toda vez que ele dizia algo do tipo.
Snake não era o tipo de homem que se declarava, e eu acreditava
fielmente que ele nunca nem tinha feito algo do tipo, mas quando o via
dizer que, de alguma forma, eu pertencia a ele, sabia que era seu jeito de
expressar o que estava sentindo.
— Não se preocupe tanto, vai ser divertido. Já estou quase
resolvendo a situação do pen drive. Em breve vamos nos livrar de todo esse
perigo. — Dei de ombros, como se a informação não fosse nada demais.
— O que quer dizer com isso? — Ele se aproximou um pouco mais.
— Sombra me ligou pouco antes de sairmos. Vamos nos encontrar
daqui a três dias.
— Por que não me disse que aquele esquisito te ligou?
— Ele não é esquisito. — Revirei os olhos e Snake bufou, irritado.
— Vou pegar o equipamento que ele gentilmente vai me ceder e vamos
implementá-lo na boate de Jack. Vou rastrear o sistema que Duncan está
usando para monitorar os nomes do crime de Chicago e então... ele vai estar
perdido de vez.
— Certo — ele disse depois de torcer os lábios. — Saiba que não
pretendo sair do seu lado nem por um instante. — Abri a boca para
discordar, mas Snake foi mais rápido: — Posso algemá-la a mim se ousar
me contestar.
— Você é tão primitivo!
— E você é uma teimosa irremediável. Quando vai entender que
não vou permitir que se machuque? Trato todos que não são da minha
confiança como possíveis traidores. No meu ramo, só confiamos na arma
em nossa cintura e com esse sujeito não vai ser diferente.
— Não acho que Sombra me trairia, mas ele pode ser seguido,
então... tudo bem, você tem razão.
— Pode repetir isso?
— Nunca! — revirei os olhos e bati o cotovelo nele, que deu risada.
— Você vai cuidar bem dele, certo? — Olhei na direção do carro em que
Colin estava, apreensiva.
— Com a minha vida. Não se preocupe, pequena... — Ele acariciou
a lateral do meu rosto, a intensidade do toque me fez abrir os lábios, sem
saber o que dizer, ou até mesmo o que esperar, mas de repente todo o clima
se esvaiu quando alguém desceu pelas escadas gritando:
— Misericórdiaaaaaaaa! — Shaw, um dos guarda-costas e amigo
pessoal da família Holder desceu correndo os degraus tão rápido quanto um
tiro. Notei que ele também estava a caráter, vestindo o mesmo uniforme de
beisebol que Snake.
— O que aconteceu, Shaw? — Snake inquiriu alto e cercou minha
cintura com a mão, quase sem se dar conta, puxando-me para perto dele.
— O Fantasma, ele... destruiu o pôster autografado da senhorita
Jasmin sem querer.
— Não me diga que era...
— Crepúsculo, sim! É o apocalipse, salve-se quem puder! Bom dia,
senhorita Petrova! — O jovem passou que nem um raio do meu lado e se
jogou dentro de um SUV muito largo e imponente, ligando o motor em
seguida, bem no instante que mais dois Holders passaram correndo pelas
escadas.
— Corre, caralho! — Lobo gritou, tão apavorado que eu podia jurar
que estava sendo perseguido por abelhas.
— Foi sem querer, eu juro! — Fantasma veio logo atrás e quase
tropeçou no último degrau.
— Boa sorte, pequena! Cuidem dela. — Snake simplesmente
apontou para James e Sullivan que encaravam toda a cena como se
estivessem cercados por um bando de malucos. Depois correu para o carro e
deu partida, esperando só os irmãos se jogarem dentro do veículo do Shaw
e todo o comboio de Holders passou pelos portões às pressas.
— Eu vou matar ele. Vou matar todos eles! — Quando ergui os
olhos para a escada, vi Jasmin, a herdeira Cahill, usando um conjunto de
moletom rosa, muito delicado e fofo, e que não combinava em nada com o
taco de beisebol que ela estava segurando. — Seus covardes! — ela
praguejou, apontando o taco para todos os lados e começou a chorar.
— Como eles tiveram coragem? — Estrela, esposa do provável
assassino de autógrafos, tocou o ombro da amiga e mordeu os lábios,
tentando segurar o que me parecia ser uma crise de risos. — Petrova! — Ela
arregalou os olhos quando me viu.
— Petrova! — Jasmin gritou e as duas desceram a escada correndo.
— Me empresta sua arma? — A loira chorou e me deu um abraço apertado.
— Meu Deus, temos uma crise — sussurrei, lembrando da Glock
em minha bolsa, uma que por sinal eu manteria muito longe da loira à
minha frente. — Que tal resolvermos a situação sem envolver seu réu
primário? Se o gastar agora, não poderá ameaçar ninguém para proteger o
Shaw nos testes para guarda-costas Classe A — relembrei-a e ela me
encarou, os olhos muito grandes e azuis estavam vermelhos de tanto chorar,
assim como a ponta do seu nariz.
— É verdade — fungou.
— Ao menos alguém entre nós parece estar em posse do controle
dos hormônios. — Estrela suspirou ruidosamente.
— O que estamos enfrentando aqui hoje? — Quis saber.
— Uma catástrofe. — Jasmin esfregou o nariz.
— Estamos mais sensíveis do que o normal. — Estrela afagou o
ombro da amiga.
— Menstruadas, morrendo de cólica, tristeza e raiva. — Jasmin foi
mais cirúrgica. — Aqueles safados disseram que íamos nos reunir aqui hoje
para assistir a saga “Crepúsculo”, nós três, enquanto eles jogam na casa do
sogro. Seria a nossa tarde das mulheres. Achei a ideia sensacional e trouxe
meu pôster autografado para mostrar a vocês. Não imaginei que planejavam
um assassinato. Aqueles...
— Fantasma assustou Jasmin sem querer enquanto tomávamos café
e ela me mostrava o pôster. Com a confusão, ele acabou derrubando a
xícara dela bem em cima do autógrafo. — Estrela suspirou.
— Essa “Saga Crepúsculo” deve ser muito boa. — Tentei ganhar
tempo enquanto pensava no que fazer a respeito.
— Tá vendo, Estrela? Ela nunca viu a “Saga Crepúsculo”. Aposto
que ela ia adorar ver a pequena assinatura depois de se apaixonar por
Edward. — A loira voltou a chorar copiosamente. — Nunca vou conseguir
outro autógrafo.
— Zion é meu marido e eu o amo muito, mas ele é terrivelmente
silencioso e vez ou outra causa estragos sem precedentes. Sinto muito,
querida.
— Temos que nos vingar. — Jasmin empinou o nariz fino. — Cadê
aquele carro ridículo do Fantasma...
— Escuta só, acho que posso ajudar de um jeito menos criminal —
interrompi a fúria de Jasmin e segurei o taco que ela ainda apertava com
força. Estrela soprou um “Obrigada” em silêncio.
— C-como? — Jasmin gaguejou.
— Sei como podemos restaurar seu autógrafo.
— Há uma forma? — Estrela quis saber, esperançosa.
— Preciso de um notebook.
— Eu tenho um. — Estrela ergueu a mão, prestativa.
— Ótimo, e um celular com uma câmera boa.
— É todo seu. — Jasmin sacou o celular e me entregou. — O que
pretende fazer?
— Vou utilizar uma técnica que costumava usar na CIA para recriar
cenas de crime e também na configuração de retratos falados. Posso
escanear o autógrafo e mapeá-lo, completando as partes destruídas com a
própria assinatura. E depois é só imprimir. Garanto que vai ficar novinho
em folha. Ainda vai ser seu autógrafo.
— Ai meu Deus, então nem tudo está perdido! — Jasmin abriu mais
os olhos. A tristeza cedendo lugar para uma alegria contagiante. —
Obrigada, Petrova, vai salvar minha vida, mais uma vez. — Abri um sorriso
quando Jasmin me abraçou com força.
— Então vamos começar a nossa tarde — avisei e elas trocaram um
sorriso, animadas.
— O senhor Snake disse que as senhoritas precisavam relaxar... —
Sullivan parou ao nosso lado. — Sou especialista em fazer brigadeiro de
maconha, é uma receita da minha vó, gostariam de experimentar?
— Brigadeiro de... — Jasmin arregalou os olhos e Estrela tapou a
boca com a mão, enquanto eu me engasguei com minha própria saliva e
comecei a tossir.
— Não será necessário, Sullivan, mas... obrigada por oferecer seus
dotes culinários — disse, entre arquejos.
— Ele é meio esquisito, igual seu namorado. — Jasmin sussurrou
para mim e meu rosto queimou quando ela sugeriu que Snake e eu fôssemos
namorados.
— Ele não é meu namorado — afirmei, categórica.
— É mesmo? — Estrela abriu um sorrisinho de lado, como se
desacreditasse do que eu dizia.
— Ei, estou falando a verdade! — Acabei sorrindo para a morena,
que sustentava uma expressão divertida no rosto.
— Snake... bem, ele não é muito de se importar com as pessoas ao
seu redor — Estrela disse baixo, para que só Jasmin e eu pudéssemos ouvir.
— Mas quando o vejo ao seu lado penso estar presenciando um milagre. O
homem mal consegue prestar atenção em outra coisa.
— N-não é nada disso... é só...
— Complicado? — Jasmin emendou e abriu um sorriso no rosto
vermelho. — Há como não ser quando se trata dele?
— E você não tem que se explicar, estamos felizes por estar aqui. Só
isso. — Estrela segurou minha mão. — Agora podemos começar a falar mal
dos três, ou ainda é muito cedo? — Rimos juntas.
— Acho que aquele seu conjunto extra de bichinhos vai caber
certinho na Petrova, Estrela... — Jasmin passou um dos braços finos ao
redor dos meus ombros. — É uma oncinha que vai ficar linda em você.
— Uma o quê? — Abri mais os olhos.
— Vai por mim, roupas de bichinho são um caminho sem volta,
você vai gostar. — Estrela me cercou pela direita.
— Ah, então o roupão de raposa... foram vocês duas que
escolheram?
— Raposa? — Jasmin e Estrela se entreolharam. — Não — a loira
respondeu. — Somos responsáveis pela família de Pandas. Enviamos três:
um para você, um para seu filho e outro para o cunhado, mas acho que ele
queimou antes de entrar com ela em casa.
— Tínhamos que ao menos tentar. — Estrela deu de ombros e então
percebi que Snake tinha escolhido por conta própria os roupões de raposa.
Assim como costumava chamar Colin e eu.
Abri um sorriso ao me lembrar dele e percebi que andava sorrindo
mais nos últimos dias do que fiz em toda a vida.
— Agora, se não se importam, tem uma cena de crime nos
aguardando. — Jasmin guiou o caminho e a segui, com os dois guarda-
costas bem atrás de nós.
— Brigadeiro de maconha, Sullivan? Que porra você estava
pensando? — Ouvi James chamar a atenção de rapaz e quase dei risada.
Naquele breve momento todos os meus problemas desapareceram.
Não precisava pensar no Pen Drive, nem na possibilidade de estar grávida,
muito menos no que aconteceria quando Snake descobrisse.
Ali eu seria apenas amiga das duas mulheres mais incríveis que já
conheci. A tarde ia mesmo ser interessante.
Eu abaixei minha guarda
E então você puxou o tapete
Someone You Loved – Lewis Capaldi
Snake
— Qual é o seu problema, Fantasma? Quer matar a todos nós? Sabe
o quanto a cunhada é fascinada naquela porcaria de vampiro — questionei
no ponto de acesso que tinha colocado no ouvido, assim como meus irmãos,
no momento em que saímos da casa de Fantasma.
— Ela se assustou e me deu uma cotovelada no estômago. UMA
COTOVELADA! O café foi um acidente resultante da confusão — ele
respondeu, aflito.
— Um puta acidente do caralho, você quer dizer! — Lobo retrucou
nervoso e podia garantir que os dois estavam se encarando no carro do
Shaw.
Alguns dos meus homens se dividiam em veículos à nossa frente,
enquanto mais deles vinham atrás, mantendo o meu carro no meio, à frente
do SUV onde meus irmãos estavam. Nossa saída naquela tarde era para ser
um passeio tranquilo, mas não podíamos ignorar os perigos que cercavam
Petrova e Colin, então reforcei a segurança.
— Acho bom aproveitar a tarde de hoje, pode ser sua última — eu
disse no comunicador e nós três acabamos rindo. Olhei pelo retrovisor,
encarando Colin que mantinha os olhos pregados na estrada com afinco,
com um pequeno sorriso aberto, o que me dizia que estava gostando.
— Está empolgado, garoto? — quis saber, já que meu próprio corpo
parecia elétrico de tanta euforia.
— Mal consigo raciocinar direito, senhor — ele me encarou pelo
retrovisor. Os olhos verdes eram idênticos aos da mãe, como tudo nele.
— Vai adorar a casa do meu pai. Lá tem um puta campo... quer
dizer, um campo enorme, além de um labirinto bem ao lado da casa.
— Uau, um labirinto? O senhor pode me mostrar, senhor Snake?
— Vou mostrar o que quiser.
— Vai ser um dia espetacular, mal posso esperar! — Não consegui
conter um sorriso com a súbita empolgação do pequeno Einstein.
Chegamos à mansão Holder, que se perdia de vista em incontáveis
hectares de cerca viva, escondida no topo de um bairro nobre de Chicago.
Paramos nos portões e fomos recepcionados pela primeira equipe de
seguranças. Ali era cheio delas.
Passamos em comboio pela entrada e seguimos por uma campina
verdejante, cercada de arbustos até avistar a entrada da mansão, que reluzia
imponente no fim de um longo corredor de árvores.
— Minha nossa, sinto que estou dentro de um filme. O senhor
cresceu nessa casa? — Colin se empoleirou no banco, tentando absorver
toda a aura de poder que a mansão Holder exalava.
— Quase. Fui adotado pelo meu pai quando tinha 15 anos — Ele se
virou para mim, mas não parecia surpreso. — Você já sabia.
— Sim, senhor, mas não deixa de ser fascinante do mesmo jeito. —
Ele se inclinou em minha direção, os olhos brilhantes. — Posso fazer uma
pergunta, senhor?
— Contanto que não envolva algum mistério do universo, sim, pode
— brinquei e o vi sorrir, mas o breve sorriso se esvaiu e ele torceu as mãos
umas nas outras, inquieto.
— Como é?
— Como é o quê?
— Ter um pai? — Prendi a respiração por um instante, como se
visse um trem desgovernado vindo em minha direção.
Contive a vontade de levar a mão ao peito, na tentativa de amenizar
a pontada de dor súbita que parecia me revirar de dentro para fora. Colin me
encarava em expectativa, os olhinhos curiosos brilhavam e senti uma
vontade forte de poder abraçá-lo. Nenhuma criança deveria crescer com
aquela dúvida.
Tossi, tentando obrigar minha mente a funcionar.
— Alguns pais são incríveis, outros nem tanto, infelizmente. — Foi
tudo o que consegui dizer, tentando conter a raiva que subiu por meu
pescoço ao me lembrar do desgraçado do pai dele, que o rejeitou antes
mesmo que Colin pudesse nascer.
Maldito filho da puta, tomara que queime na porra do inferno!
— Às vezes a vida te prepara um pai diferente, que não tem o
mesmo sangue que você. E pode ser bem... legal?
— É uma pergunta, senhor?
— N-não. É uma afirmativa — gaguejei, perplexo com a força que
meu coração batia no peito e abri a porta em um rompante, agradecendo a
Deus por meus irmãos estarem se aproximando de nós.
Não sabia o que dizer a Colin e aquela sensação era no mínimo
singular. Como se eu buscasse no fundo da minha mente as palavras certas
para o que estava sentindo e encontrasse uma algazarra sem sentido.
— E aí, Colin, pronto para rebater? — Lobo cumprimentou o garoto
assim que abri a porta para que ele descesse.
— Espero que sim, senhor. Prometo que aprenderei rápido. — Ele
puxou o seu taco de beisebol do banco e quando ficou de frente para nós,
percebi que seu boné estava torto. Levei a mão até a aba e ajeitei em sua
cabeça. — Obrigado, senhor.
— Lembre-se de se divertir acima de tudo hoje, certo? — avisei,
tentando lembrá-lo de que ele era só uma criança.
— Combinado! — Ele abriu um sorriso eufórico, mas logo seus
olhos passaram por mim e ele olhou para o horizonte preocupado. — Quem
é ele? — Olhei sobre o ombro e vi Shaw caminhando em nossa direção.
Os ombros largos estavam eretos e me dei conta de que ele nunca
perdia a postura de guarda-costas, mesmo girando uma bola de beisebol na
mão enluvada. Colin se encolheu atrás de mim. Ele tinha medo de
estranhos.
— Aquele é o Shaw, ele é um grande amigo da nossa família —
Lobo explicou, percebendo o mesmo que eu.
— Ele é uma pessoa incrível. Não precisa ter medo, Shaw é...
— Abençoado? — Fantasma sugeriu, completando minha frase, e
dei de ombros. — Tenho certeza de que aquele garoto tem uma ligação
direta com Deus.
— Ele não é mais um garoto, Zion — corrigi, sentindo certo orgulho
do homem que Shaw se tornou.
— Não mesmo — Lobo completou com um sorriso quando ele se
aproximou, exalando a mesma admiração que eu.
— Eu confiaria minha própria vida nele — disse para Colin,
tentando amenizar seu receio.
— Então eu também confiarei! — Ele ergueu o queixo e deu um
passo, parando ao meu lado, certo de sua decisão e abri um sorriso,
encantado com a confiança que ele depositava em mim.
Quando me virei, meus dois irmãos me encaravam com um
semblante confuso.
— O que foi?
— Não é nada — Lobo respondeu rápido e Fantasma se virou para
Shaw:
— Não quero saber, você é do meu time, Shaw! — disse quando o
rapaz se aproximou.
— Ah, não mesmo, o Shaw é do meu time! — Lobo reclamou, já
decidindo que ele e Fantasma não jogariam no mesmo time e revirei os
olhos.
Era sempre assim quando se tratava de Shaw. Ele era um ótimo
jogador, seu time geralmente marcava mais pontos e havia também o boato
de que ele era tocado por Deus, o que dificultava e muito a vida de quem
quer que jogasse contra ele.
— Me sinto honrado, senhores — O rapaz brincou e se virou para
Colin que o encarava com desconfiança, mesmo que tenha se obrigado a
entrar no campo de visão de Shaw. — Mas fiquei sabendo que hoje é um
dia especial e teremos mais um jogador. Você é o...
— Colin, senhor. Colin Petrova. É-é... um prazer? — Colin olhou
para mim, parecendo confuso com seu próprio cumprimento e meneei um
aceno, apoiando-o.
— Eu sou Mark Shaw, mas todos me chamam de Shaw... e o prazer
é todo meu. — Shaw se ajoelhou, ficando da altura de Colin e estendeu a
mão para o garoto que demorou alguns instantes antes de aceitar o
cumprimento. — Vamos nos divertir e não se preocupe, os Holder são
barulhentos, mas são inofensivos... às vezes! — ele sussurrou, baixinho e o
que disse arrancou um sorriso de Colin.
— Isto é uma inverdade! — Fantasma reclamou e Lobo deu um
cutucão nele.
— Se você não tivesse começado uma terceira guerra mundial com
minha mulher, eu até poderia concordar, mas faz ideia do escândalo que
ainda nos aguarda, seu idiota silencioso do caralho? — Os dois começaram
a discutir e a se provocar, como crianças birrentas que eram.
— O senhor tem razão, eles são mesmo muito agitados. — O
pequeno deu risada e me dei conta de que Shaw o tinha conquistado com
poucas palavras.
— Já está na hora de irmos. Nosso pai está esperando — avisei,
pegando meu equipamento.
— Colin... — Fantasma se aproximou do garoto e pousou a mão no
seu ombro, inclinando-se até que pudesse olhar em seus olhos. — Que bom
que veio.
O garoto sorriu alegre e caminhamos lado a lado. Passamos pela
entrada da mansão e encarei a fonte que ficava próxima de uma das escadas
que levavam à entrada da casa. Era um monumento de pedra elegante, em
um formato angelical e que jorrava uma água cristalina.
— Lembra quando te joguei ali dentro, Lobo? — quis saber.
Fantasma gargalhou, provavelmente recordando da cena, já que foi ele
quem ajudou nosso irmão do meio a sair da fonte.
— Você me pegou desprevenido. — Lobo bufou.
— E você sumiu com um dos bonequinhos da coleção dele só
porque Snake não te deixou brincar. Quanto rancor no coração. — Meu
caçula gargalhou.
— O senhor Lobo fez mesmo isso? — Colin quis saber.
— Sim, esse sem-vergonha sequestrou a sangue frio uma das
miniaturas de kyuubi que eu tinha do Naruto.
— Em minha defesa, eu estava com raiva. Na verdade, eu vivia com
raiva naquela época.
— E eu só queria ajudá-lo, resfriando um pouco o seu humor. —
Dei um cutucão com o ombro em meu irmão do meio.
— Idiota! — Ele revirou os olhos e entramos pela mansão nos
provocando, enquanto as lembranças da juventude que tivemos saltavam
através das paredes da mansão Holder.
Ficamos longos minutos contando pequenas traquinagens que
fazíamos quando éramos mais jovens e nos distraímos com as histórias. Até
que passos firmes chamaram nossa atenção.
— Que animação contagiante! — Meu pai surgiu de um dos
corredores da mansão. Estava usando sua blusa de time, assim como nós e
estampava um sorriso enorme no rosto.
— Olá, pai... — o cumprimentei, assim como Shaw e meus irmãos.
E então ele baixou os olhos e sorriu. Só então me dei conta de que Colin
estava escondido atrás das minhas pernas.
— Ora, o que temos aqui? — Meu pai se aproximou, sua atenção
totalmente focada em Colin.
Um incômodo latente pressionou a base do meu pescoço. Não sabia
o que ele ia falar, ou como agiria, mas de repente, descobrir o que ele
pensava se tornou muito importante. Eu queria que ele gostasse do garoto.
— Esse é o Colin. — Tossi, meio perdido nas palavras. — Ele é
filho da Petrova. — Meu pai sondou o garoto e me peguei prendendo o ar.
O que será que ele estava pensando?
— Oi, senhor. — O garoto se inclinou, criando coragem para
encarar meu pai.
— Olá, pequeno Colin, é um prazer enfim conhecê-lo. Sou o Reid e
quero que se sinta em casa aqui.
— O-o prazer é todo meu. — Colin endireitou a postura, assumindo
o jeitinho Nerd e intelectual que tanto passei a admirar.
— Está pronto para aprender a jogar beisebol conosco?
— Sim, senhor. Mas devo admitir que mesmo estudando tanto sobre
o assunto, ainda me sinto a frase mais famosa da história da filosofia. “Só
sei que nada sei.” — Meu pai gargalhou, divertindo-se, e meus irmãos
encararam Colin com os olhos mais abertos, fascinados.
— Ele é um pequeno gênio, pai. Tem só 10 anos e às vezes sabe
coisas das quais nunca ouvi falar. Ele é... — Parei, quando percebi que meu
pai me observava com um sorriso estranho, meio de lado. — Ele é um
garoto legal.
— Posso ver só de olhar para ele, filho. — Meu pai pousou a mão
em meu ombro e me encarou por um momento. — Estou feliz que tenha
trazido ele hoje. — Dei de ombros e segurei um sorriso. — Então vamos
começar. Todos para o campo! — Reid Holder disse empolgado.
Experimentei a tarde mais incrível que vivi nos últimos anos.
Colin era, com toda certeza, um prodígio do beisebol. Nos
dividimos e improvisamos dois times, sendo Colin, Lobo e eu, contra Shaw
e Fantasma, e meu pai ocupou o lugar de juiz. Na verdade, fizemos apenas
uma situação hipotética, para simular um jogo de verdade em que Colin
entendesse as posições.
Arrumamos um capacete protetor para o garoto e o colocamos
primeiro na posição de batedor. Eu e meu pai traçamos um plano de treino
que tornasse mais fácil o aprendizado de Colin e estimamos que ele ficaria
um pouco em cada uma das posições do jogo.
Começamos o treino e não precisei explicar as regras duas vezes. O
garoto, além de já ter estudado as técnicas do jogo, tinha uma memória
brilhante e quanto mais ele errava nas tacadas, mais se aprimorava e
mostrava domínio nas próximas jogadas. No entanto, ainda não tinha
acertado uma bola em cheio com o seu taco.
— Certo, vamos lá, Colin. Você consegue, garoto! — disse,
animado da minha base, enquanto via Fantasma prestes a arremessar mais
uma bola para ele. Shaw estava como apanhador e também vibrava atrás de
Colin.
— Preparem-se! — Meu pai guiou, erguendo o cronômetro.
— Um instante, senhor Holder! — Colin pediu, e todos nós paramos
imediatamente, observando o garoto que estreitou os olhos para Fantasma e
o encarou por um longo minuto.
— O que está fazendo, campeão? — Lobo quis saber.
— Calculando, senhor. — Colin se remexeu, posicionou o corpo e o
taco. — Estou pronto!
— É isso aí — Shaw disse animado e meu pai gritou, liberando a
tacada.
Fantasma arremessou a bola em um nível de dificuldade
intermediário para a idade de Colin. Estava esperando que ele errasse a
tacada, como fez nas primeiras vezes, ou até mesmo que resvalasse o taco
na bola de alguma forma, era assim que começávamos. Errando.
Absolutamente nada me preparou para ver Colin acertar um ponto
preciso na bola, girando o pequeno corpo e a arremessando para o outro
lado do campo.
— Puta que pariu! — sussurrei, perplexo. — CORRE, COLIN! —
gritei, eufórico quando vi o garoto disparar pelas bases, Fantasma tentava
alcançá-lo, como tínhamos combinado caso ele acertasse a bola, para
simular as investidas do oponente, já que não tínhamos um time completo
ali no momento, e se tinha algo que o pequeno fazia bem era correr.
— Vai garoto! — Meu pai gargalhou, animado como nunca.
Colin tinha que correr pelas quatro bases do campo para ganhar um
ponto antes que Fantasma chegasse na última base.
Peguei-me gritando, junto com meu pai, Lobo e Shaw, enquanto
observávamos Fantasma suar para alcançar um garotinho que era
infinitamente mais leve que ele, e sabia muito bem o que estava fazendo
usando seu peso a seu favor.
— MEU DEUS, ELE VAI CONSEGUIR! — Shaw gritou e se
pendurou no meu ombro agitado.
— Vai! Vaiiiii, Colin! — gritei a plenos pulmões e um sorriso
enorme brotou em meu rosto quando vi o menino se jogar de peito na
última base, poucos instantes antes de Fantasma. — AEEEEEE, PORRA!
ELE CONSEGUIU! — gritei e fui correndo até ele.
— Eu consegui, o senhor viu? Fiz o ponto, senhor Snake! — Colin
voltou correndo e saltitando em minha direção, cheio de terra da cabeça aos
pés.
Toda a felicidade que o cercava me deixou afoito, elétrico. Estava
tomado pelo mais puro e bobo orgulho que transpassava meu peito.
— Você é foda, garoto! — Ele jogou o pequeno corpo contra o meu
e os bracinhos finos cercaram minha cintura.
Olhei para a cena por um momento, ele parecia uma formiguinha
agarrado a um elefante. Sorri e balancei a cabeça, prestes a morrer de
orgulho antes de fechar meus braços ao redor dele, em um abraço cheio de
poeira.
Certa estranheza me sondou, mas parecia o certo. Não estava
acostumado a me sentir tão bem abraçando uma criança.
— Se ele continuar assim... — Fantasma nos alcançou, respirando
entre arfadas. — Vai acabar entrando para um time. — Meu irmão bateu a
mão em meu ombro e me afastei do abraço do garoto para que ele pudesse
receber os cumprimentos da minha família.
Fiquei no canto, enquanto Colin contava para todos eles a forma
como se concentrou em medir a força e distância que enfrentava quando
Fantasma arremessava. Meu pai, assim como todos os outros, o encaram
com visível fascínio e eu bem sabia que era aquela a sensação que ele
causava em mim todos os dias.
— Colin é um garoto especial — meu pai disse, parando ao meu
lado enquanto meus irmãos planejavam novas jogadas para Colin, e Shaw
se dedicava a ensiná-lo uma dancinha da vitória de sua autoria, que de
acordo com ele, era fundamental para ingressar no beisebol. Dei risada,
observando o garoto tentar imitar os passos de Shaw, jogando os dois
braços para a frente, embalados em alguma melodia esquisita.
— É, sim. Ele é bem... — Comprimi os lábios, sem saber como
terminar aquela frase.
— Diferente? — Meu pai completou e de repente, a palavra fazia
todo sentido.
— Exatamente. Como soube em tão pouco tempo?
— Porque você também era. Muito diferente de tudo que eu
conhecia. Tenho um olho bom sobre isso. — Ele deu um tapa em meu
ombro e acabei chutando uma pedrinha na terra.
— O senhor decidiu colocar em prática toda a resiliência do mundo
quando escolheu me adotar.
Diferente dos meus irmãos, quando meu pai me adotou eu já era
adolescente e fui um grande problema na vida dele por quase dois anos.
Rebelde, agressivo, incontrolável, fugitivo. 24 meses que carregavam todo
o meu arrependimento. Demorei a me dar conta de que Reid Holder era
meu porto seguro, meu lugar de paz e proteção. E de que sim, ele me amava
como um filho do seu próprio sangue.
Meu pai era meu mundo. Meu tudo e eu ansiava dia após dia dar a
ele um único motivo que fosse para se orgulhar de mim.
— Sabe que sinto muito por todo trabalho que dei ao senhor, não
sabe? — disse, subitamente desesperado para que ele se lembrasse.
— Que graça teria se não me fizesse quebrar a cabeça para entendê-
lo, meu filho? — Ele abriu um sorriso no rosto compenetrado. — Você
sempre foi o que mais se esforçou para manter uma distância segura de
qualquer tipo de sentimento que pudesse lhe machucar e eu sempre soube o
motivo. Pessoas machucadas são como animais feridos, elas atacam porque
têm medo. Você me ensinou muito sobre a vida, Cedric.
— Nunca se arrependeu por ter me adotado? — Havia uma
insegurança ridícula no meu tom de voz, mas a ignorei e olhei para longe,
onde Colin se divertia com meus irmãos e Shaw.
— Arrependimento nunca foi uma opção. Não se abandona um
filho. — Ele me encarou. Os olhos cinza diziam tudo sobre meu passado e
talvez até meu futuro e uma pergunta surgiu em minha mente.
— Quando o senhor percebeu que era meu pai? Quer dizer, quando
sentiu que poderia me chamar de filho?
— No minuto em que coloquei os olhos em você — respondeu,
amoroso. — Não é assim que nascem os filhos? De repente? Não precisei
de dias, semanas ou meses, Cedric. Eu simplesmente senti que era você.
Não gosto de lembrar de como você estava quando te encontrei, mas a
verdade é que quando te vi caído naquele beco eu não fazia ideia do que
fazer, até olhar em seus olhos e ver que você não passava de um garoto
perdido. Foi ali que eu me dei conta de que seria capaz de qualquer coisa
para protegê-lo. Ter um filho é isso. Num instante tudo muda e você mal se
dá conta, até perceber que o ama. — Estreitei os olhos, o coração batendo
forte no peito enquanto eu encarava a pequena raposinha mirim correndo de
um lado para o outro no campo.
Meu pai tinha razão...
— Acontece muito rápido — sussurrei, demorando a me dar conta
do que tinha dito em voz alta.
— Tem algo que queira me contar, filho? — Meu pai abriu um
sorriso esperançoso no rosto.
— Bem, eu... — Pensei em mudar de assunto ou inventar uma
desculpa, mas graças ao bom Deus, meu telefone começou a tocar. — Um
minuto, pai, pode ser urgente — disse quando vi o nome de Jack piscar na
tela.
— Snake, me encontre na boate. Agora — Jack disse rápido, sucinto
e engoli com dificuldade, prevendo o pior.
— O que aconteceu?
— Encontramos o esconderijo de Dipa Pietro. Tem uma pasta de
documentos que você precisa ver. São da Petrova. — A voz fria de Jack me
deixou preocupado.
— Estou a caminho. — Desliguei e me virei para meu pai. —
Surgiu um imprevisto, tenho que ir. Sinto muito.
— Algo com que eu deva me preocupar?
— Não. É só trabalho. — Escondi a verdade. — Vou deixar Colin
em casa no caminho e depois...
— Nem pensar! — Meu pai ralhou comigo. — O garoto mal chegou
e você já quer levá-lo embora? Ainda nem o ensinei as técnicas de
arremesso, não mesmo! — Ele estreitou os olhos, indignado e percebi pela
sua postura que não aceitaria qualquer outra opção.
— Mas, pai...
— Olhe para ele. — Meu pai agarrou meus ombros e me virou na
direção de Colin, que se mantinha focado nas orientações de Fantasma com
um visível fascínio. — Colin está se divertindo. Seus irmãos podem levá-lo
mais tarde.
— Está bem — concordei e revirei os olhos. — Não é como se eu
fosse conseguir sair daqui com ele agora, não é mesmo?
Despedi-me de todos com a mesma desculpa que dei ao meu pai e
pedi que meus irmãos levassem Colin para a casa de Fantasma, eu passaria
lá assim que saísse de Jack e buscaria Colin e Petrova.
***
Saí da mansão Holder sendo escoltado por dois carros além do meu.
Uma exigência do meu pai, e segui direto para a boate onde Jack me
aguardava.
Entrei no lugar, que mesmo antes do sol se pôr, já começava a ficar
cheio e atravessei a boate. Vi Jack de longe na área VIP, andando de um
lado para o outro em seu terno branco de grife. Os cabelos bagunçados
eram sinal de problema. Alguma coisa tinha acontecido, alguma coisa que
envolvia Petrova.
— Jack! — chamei-o e vi meu amigo arregalar os olhos assim que
me aproximei.
— Meu Deus, homem, estava rolando na terra? — Ele passou os
olhos pela minha roupa toda suja de poeira.
— Vim o mais rápido que pude, queria que eu tomasse um banho
depois do que me disse ao telefone? O que houve?
— Encontramos o esconderijo de onde Dipa Pietro nos vigiava.
Meus homens revistaram o local atrás de alguma pista que pudesse nos
ajudar, mas a única coisa de valor encontrada foi uma pasta de documentos.
— Abri mais os olhos.
— Onde estão? Quero vê-los. Deve haver algum motivo para aquele
imbecil estar em posse dos documentos dela e eu vou descobrir o porquê,
mesmo que ele já esteja queimando no inferno — vociferei, tomado por
uma fúria assassina ao imaginar alguém como Dipa vasculhando a vida dela
de novo.
— Não são só documentos, Snake. — Jack me alertou e algo em seu
tom me deixou inquieto.
— O que está me escondendo, Jack? — Meu amigo olhou para seu
primo Lamar e meneou um aceno, confirmando algo. Logo o homem
entregou uma pasta amarela em suas mãos.
— Parece que Dipa estava montando um dossiê sobre ela. Aqui tem
um pouco de tudo. Vários relatórios onde ele conta em detalhes todas as
vezes que se encontrou com ela. O maldito descreveu tudo o que acontecia,
e como ela sempre dava um jeito de fugir dele. Também tem várias fotos de
Petrova, algumas do filho dela... — Meu estômago se revirou e senti o
gosto da bile subindo por minha garganta. — No entanto... — Ele suspirou.
— Há algo mais importante. No meio disso tudo eu encontrei alguns
exames laboratoriais. De acordo com os relatórios daquele psicopata, na
última vez que ele a abordou, Petrova conseguiu fugir, mas deixou uma
pasta de exames para trás na fuga. Estes exames. — Ele abriu a pasta e me
entregou duas folhas.
— Exames? — Olhei para o papel. O primeiro exame se chamava:
— BETA HCG? Que porra é essa? — Pisquei, confuso. — Já escutei esse
nome antes, mas não me lembro do que significa.
— Eu também não me lembrava, meu amigo, até conferir a resposta
e eu não sei bem como te dizer isso, mas... é um exame de gravidez com
resultado positivo. Ela mudou o sobrenome Petrova, mas manteve o
primeiro nome. Fora que o idiota verificou o DNA dela no sistema do
laboratório. Petrova está grávida — Jack sussurrou a última parte.
— O quê? — Dei risada e encarei meu amigo. — De que inferno
você está falando? Petrova? Grávida? — Balancei a cabeça. Será que ele
tinha usado alguma droga?
Foi do que tentei me convencer, mas para meu desespero, observei
cada palavra que ele dizia e tudo que Jack exalava era sinceridade. Meu
amigo ergueu os óculos com a ponta dos dedos e me encarou com um
sorriso nervoso e condescendente.
— Veja por si só, meu amigo. — Ele apontou para o exame em
minhas mãos. Olhei de novo para o papel e só então me dei conta de que
minhas mãos estavam tremendo.
Comecei a ler e a primeira frase já me obrigou a cambalear até a
mesa mais próxima e me sentar, ou melhor, cair em uma cadeira:
Winnie Simons – 26 anos
HCG, Beta quantitativo
Resultado: Positivo
— Traga logo a porra de um uísque... — Jack disse para alguém e se
sentou ao meu lado. Eu me sentia em choque, incapaz de sequer me mover.
— Há uma interpretação no exame para saber quando foi que ela
engravidou. — Olhei para meu amigo, sentindo-me completamente perdido.
— É meu. — Soltei o ar com força, quase sem pensar direito. Uma
dor estranha transpassou meu estômago, como se alguém enfiasse uma faca
bem ali. — Se ela está grávida... é de um filho meu.
— Como pode ter certeza, Snake? Eu sei que gosta dela, mas
precisa ao menos considerar a ideia de conferir o período...
— Dois meses e quinze dias — sussurrei.
— Céus, é exatamente isso! — Ele suspirou, apontando para algum
detalhe no exame e encarei um ponto fixo no meio da mesa diante de nós,
onde a pasta jazia aberta. — Você vai ser pai. Ehhhhhh! — Ele tentou
comemorar. — Sinto muito avisá-lo desta forma inapropriada.
Eu vou ser pai.
Pai...
Pai?
Ah, porra, PAI!
Como que eu ia me tornar o pai de alguém?
— Puta que pariu, Petrova! — Por que não me contou?
Soltei o ar, puxando-o com força em uma tentativa inútil de não
surtar.
— Como tinha tanta certeza de que era seu? Não sabia a quantidade
de semanas...
— Eu só conheço ela. Soube que era meu no instante em que li o
resultado.
Petrova costumava ser transparente diante de mim. Podia jurar que a
conhecia o bastante a ponto de dizer que ela não conseguia esconder nada
de mim e apesar de aquele papel estar dizendo exatamente o contrário, tinha
certeza de que eu fui o único a tocá-la daquela forma depois daquele filho
da puta da CIA. Foi para mim que ela se entregou quase três meses atrás, e
fui eu quem não resistiu a vontade de senti-la sem camisinha.
— Você está pálido. Por que não vem para meu escritório? Você
pode se jogar no sofá para curtir seu estado catatônico, enquanto eu encho a
cara e tento acreditar que isso está mesmo acontecendo. Vamos...
— Não. Eu só... preciso de alguns minutos.
Olhei para a pasta, ainda em choque e toquei em algumas fotos dela
frequentando lugares públicos. No mercado, na farmácia, tudo sempre
muito camuflada. Peguei um dos relatórios onde o assassino de aluguel
contava que tentou esfaqueá-la, atirar nela e por fim, enforcá-la, mas
Petrova tinha conseguido escapar em todas as vezes.
Minha garota esperta, pensei com um nó doloroso se formando em
meu peito.
Dipa estava seguindo-a em todos os cantos por dois meses.
A porra de dois longos meses!
Ela passou aquele tempo todo fugindo grávida? Sozinha, com uma
criança indefesa e um cão barulhento. Subitamente olhar para as fotos me
deixou enjoado.
Por que ela não me contou?
Continuei analisando a pasta em um silêncio fúnebre e os minutos se
transformaram em horas e só parei quando a noite caiu, levantando-me
subitamente. Jack, que se mantinha trabalhando em seu notebook à minha
frente, provavelmente para me vigiar, subiu os olhos até me encarar por trás
das lentes dos seus óculos.
— Preciso ir buscá-los na casa do meu irmão. — Minha voz surgiu
robótica.
— O que pretende fazer?
— Ainda não sei. Minha cabeça está rodando — fui sincero.
— Posso levá-lo até lá. Não quero que bata o carro e morra. Mesmo
bravo, não se esqueça de que aquela coiote vai precisar de você.
Engoli em seco e pisquei devagar, tentando não desabar de vez.
— Pode guardá-la em um lugar seguro para mim? — pedi,
apontando para a pasta.
— É claro. — Jack meneou um aceno concordando, dispensei sua
carona e saí dali desorientado.
Preguei os olhos na estrada, não conseguia focar meus pensamentos
em uma coisa só, então tentei não pensar em nada. O que funcionou, até o
momento em que estacionei o carro na frente da casa do Fantasma.
Meus irmãos, minhas cunhadas e até Shaw, todos eles desceram as
escadas para se despedir de Colin e Petrova, que sorria, animada. Não quis
sair do veículo e me obriguei a acenar em despedida para cada um deles. Já
estava no meu limite e não conseguia mais controlar os pensamentos que
rodavam em minha cabeça sem parar.
— Suas roupas e as de Colin devem somar aproximadamente três
quilos de areia. — Saltei no banco do carro, assustado quando ouvi a voz de
Petrova.
— Eu te assustei?
— N-não, eu só estava distraído. — Não consegui encará-la por
muito tempo. — É melhor irmos.
Colin entrou no carro e sua voz animada preencheu o silêncio,
contando tudo o que tinha acontecido depois que fui embora da casa do meu
pai. Podia sentir a felicidade exalar por sua voz e percebi que nunca fiquei
tão confuso quanto estava naquele momento.
Vez ou outra eu sentia os olhos de Petrova em cima de mim, mas o
que mais me assustou foi me lembrar de como eles eram mesmo sem olhar
para ela. Verdes, não de um tom comum, os dela eram mais vivos, como
olhar para uma floresta na primavera, alguns pontinhos pretos salpicavam o
tom intenso e se misturavam, como um encaixe que exalava esperança e
bondade. E eu não podia olhar para eles, já me sentia fraco perto dela.
Entrei no estacionamento da minha casa e as portas foram
bloqueadas, garantindo nossa segurança.
— Vou me apressar para tomar um banho e ler um pouco antes de
dormir — Colin disse sério, já na entrada de casa. — Boa noite, mamãe. —
Deu um abraço em Petrova. — Boa noite, senhor Snake. Hoje foi um dia
esplendoroso, o senhor... — Ele parou, encarando o chão com timidez. — O
senhor é demais — o pequeno Einstein disse por fim, antes de me dar um
abraço meio de lado. Fiquei paralisado, desnorteado pela quantidade de
sentimentos diferentes que pareciam brotar em cada canto do meu corpo.
— Até mais, garoto — disse baixo, sem reação e ele correu para
dentro de casa.
— Colin tem razão, o dia foi incrível. Jasmin e Estrela são as
melhores pessoas do universo... — Petrova começou a contar como tinha
sido sua tarde, parada diante da porta.
Eu mal conseguia respirar, observando-a. A touquinha de onça com
manchas rosa se movia conforme ela prosseguia gesticulando, contando
alguma história. Um acessório que por sinal, ela não estava usando quando
saiu de casa, mas que a deixou ainda mais fofa e delicada.
Aquele rostinho lindo conseguiu me enganar.
Meu Deus, Petrova, por quê? Por que me escondeu isso?
— E aí ele perguntou se queríamos brigadeiro de maconha. Dá pra
acreditar? — Ela gargalhou, mas então me encarou e seu sorriso doce
desapareceu. — Snake? — Um vinco se formou no meio das suas
sobrancelhas e ela abriu mais os olhos, o que me dizia que estava
preocupada.
Sempre soube ler Petrova com precisão. Ela nunca conseguiu mentir
para mim, não até agora.
— Você está bem? — Minha voz surgiu rouca, fraca, enquanto eu
dava tudo de mim para disfarçar o choque que parecia percorrer cada canto
do meu corpo. — Está... se sentindo bem? — repeti a pergunta, meio
confuso, enquanto obrigava meu cérebro a raciocinar.
Não sabia por que estava perguntando aquilo, quando na verdade
queria agarrá-la pelos ombros e questionar o motivo pelo qual ela escondeu
que estava grávida de um filho meu. Mas, no fim das contas, o que mais
importava mesmo era saber como ela estava.
— Estou ótima, mas suspeito que você tenha contraído uma virose.
Está me encarando como se estivesse prestes a desmaiar. O que você... —
Ela tentou tocar em meu peito e instintivamente deu um passo para trás.
— Não! — Ergui a mão, impedindo seu toque e ela recuou,
surpresa. Estava me sentindo perdido, zonzo. Meu coração batia tão rápido
que pensei realmente estar prestes a ter um colapso.
— O que houve, Snake? — ela perguntou em um sussurro sentido
que partiu meu coração ao meio.
Comprimi os olhos com força, tinha que sair dali para não magoá-la
dizendo alguma idiotice. Ela não merecia aquilo, mesmo que tivesse
escondido tudo de mim. Não podia permitir que qualquer uma das minhas
palavras a machucasse.
Tinha que dar o fora dali, rápido.
— Tenho que resolver algumas coisas. Aumentarei o reforço da
segurança e... nos vemos depois. — As palavras cortaram minha boca e me
vi incapaz de erguer os olhos e encará-la.
Dei as costas e fui em direção ao carro.
Cada passo para longe dela parecia matar uma parte de mim. Engoli
em seco, meu estômago revirando. Apoiei a mão no carro e balancei a
cabeça de um lado para o outro, sentindo-me estranhamente fraco.
Entrei no veículo e acelerei para longe dali sem olhar para trás.
Liguei para minha equipe de guarda-costas Classe A e aumentei a
segurança na casa, enquanto dirigia para o bar do Jack. Meu amigo me
acompanhou durante parte daquela noite e se manteve em silêncio enquanto
eu bebia uma quantidade exorbitante de álcool.
Bebi por horas, desejando anestesiar um pouco dos sentimentos
mais estranhos e dolorosos que já senti, mas tudo que consegui foi mais dor
e a sensação de estar caindo em um abismo.
— Vou pedir que preparem um quarto para você na mansão Kane. É
melhor descansar para pensar no que fazer. Exagerou por hoje, meu amigo,
faz tempo que não o vejo beber tanto assim. — Ele tentou tirar o copo da
minha mão, mas terminei de virar o drink antes de entregá-lo.
— Agradeço a hospitalidade, Jack, mas preciso falar com meu
irmão. — Levantei-me, ainda em posse da coordenação do meu corpo, mas
a bebida estava só esperando um movimento brusco para se manifestar em
forma de vertigem e tontura. Cambaleei para o lado.
— Snake, mas que... — Senti Jack me apoiando com uma das mãos
para que eu retomasse o equilíbrio.
— Lobo... me leve para a casa do Lobo.
— Snake? O que está fazendo aqui? — Lobo abriu a porta e surgiu
diante de mim parecendo um borrão assustado. — Aconteceu alguma coisa?
Escorei meu corpo no batente da porta, mal conseguia ficar de pé,
mas algo em meu peito estava prestes a explodir e a certeza de que, o que
quer que fosse, me consumiria até a alma, me deixou apavorado. Sentia que
estava vivendo uma realidade paralela. Tinha que falar com meu irmão e
tentar encontrar um pouco de sanidade.
Era isso que sempre fazíamos quando tínhamos algum problema.
Nós confiávamos na família e eu estava perdido. Pela primeira vez em
muitos anos, eu precisava da ajuda dos meus irmãos.
Necessitava colocar aquilo tudo para fora de alguma forma.
— Eltáfilh...
— Que língua é essa? — Minha cunhada Jasmin riu atrás do meu
irmão e me encarou ligeiramente preocupada.
— A do álcool. Também sou fluente nela. — Lobo deu risada, veio
até mim e passou um braço em minha cintura, ajudando-me a entrar sem
cair e quebrar o pescoço no caminho. — O que aconteceu para que bebesse
tanto, irmão? — Sentei no sofá e enfiei a cabeça entre as mãos.
— Eu vou... — Tentei dizer.
— Vai para onde? — Lobo incentivou e subitamente o agarrei pelo
colarinho. Abri mais os olhos, desnorteado, louco, abalado. — Snake, é
melhor falar alguma coisa, estou ficando preocupado.
— Eu vou ser pai. — O sacodi.
— O quê? — Os dois gritaram em uníssono.
— Eu vou ser pai, porra! — esbravejei e enfiei as mãos nos cabelos,
caindo no sofá.
— Deus, por que eu? — Escutei meu irmão soltar o ar. — Vocês
ainda vão me matar do coração, seus merdas.
— Minha nossa, estou tremendo... o que ele... minha nossa! — A
voz delicada de Jasmin foi a última coisa que ouvi antes de cair em um sono
revolto.
Fiquei perdido em sonhos pelo que me pareceu uma eternidade.
Saindo de um, só para entrar em outro. Imagens confusas, distorcidas, sem
nitidez, era tudo que eu via até que uma fresta de luz me trouxe de volta à
realidade.
— Temos que chamar um médico. — Ouvi uma voz feminina dizer
preocupada.
— N-não. — Tentei falar, mas minha garganta estava seca.
— Ai, meu Deus, ELE ACORDOU! — Jasmin bradou para a porta
enquanto Estrela se aproximava com os olhos arregalados no quarto que era
iluminado apenas por um abajur pequeno.
Pisquei algumas vezes e logo percebi que de alguma forma, tinha
chegado no quarto de hóspedes na casa do meu irmão. Tentei me virar sobre
a cama, mas cada parte do meu corpo doía para o inferno.
Lobo e Fantasma entraram pela porta com pressa e percebi o
semblante preocupado de ambos.
— Ele está vivo! — Fantasma comemorou.
— Você nos assustou, seu idiota! — Lobo praguejou, se
aproximando. Podia ver em seu rosto o quanto estava aliviado.
— Como está se sentindo? — Estrela quis saber, pegando minha
mão com as suas. — Você queimou de febre a noite toda, estávamos quase
chamando um médico.
— Vou melhorar — disse, rouco. — Só preciso descansar um pouco.
— Devemos avisar a alguém que você está... descansando aqui? —
Estrela se inclinou em minha direção.
Ela estava falando de Petrova e balancei a cabeça, negando.
— Certo, vamos te dar um tempo e alguns analgésicos, mas tem que
comer algo, está abatido e a febre acabou de ceder, não podemos arriscar
que ela volte. — Jasmin parou ao lado de Estrela e desejei ter forças para
agradecer, mas diferente daquilo, eu só consegui menear um aceno,
concordando, já que minha cabeça estava prestes a explodir.
— Não vamos a lugar nenhum, irmão. Tome o tempo que precisar
— Lobo disse e os quatro saíram do cômodo depois de me obrigar a engolir
alguns comprimidos.
Fechei os olhos e me permiti mergulhar de novo na escuridão. Não
queria me levantar e ter que encarar a realidade.
Eu nunca quis ser pai. Sempre deixei claro que não me dou bem
com crianças. Elas são pequenas, agitadas e quebradiças. E tem um coração
tão frágil quanto sua estrutura óssea. Eu soube daquilo quando ainda era
uma delas e tive meu próprio coração destruído.
Eu não queria um bebê. Não fazia ideia do que fazer com um.
Como eu ia ensiná-lo a ser alguém do bem, quando eu mesmo não
me sentia capaz de fazer parte da turma dos mocinhos? Como não o
decepcionaria de alguma forma? Como o protegeria do mundo e até mesmo
de mim? Do meu passado conturbado? Eu não estava pronto, e nem sabia se
um dia estaria, mas nada daquilo importava.
Petrova estava grávida.
Minha Petrova!
Era um choque do caralho e eu estava apavorado, mas além de toda
a surpresa e preocupação, a sensação de ter sido traído por ela parecia me
corroer de dentro para fora.
Petrova não me contou sobre a gravidez e tinha planejado sumir da
minha vida logo depois que abrisse o Pen drive. O que aquilo significava?
Nós transamos, nós dormimos juntos, mas ela nunca disse que ia ficar
quando tudo terminasse.
Será que ela ia mesmo embora sem me contar nada?
Levei a mão ao peito, tentando conter a dor incessante que se
espalhava por ali e novamente me senti doente, fraco, inseguro.
A febre voltou.
Dois dias depois
— Ela escondeu que estava grávida. Descobri por acaso —
confessei no meio da sala de Lobo, com quatro pares de olhos pregados em
cada palavra que eu dizia.
Passei os últimos dois dias queimando de febre. Meus irmãos
acabaram chamando um médico, mas aparentemente os sintomas eram
causados pelo meu emocional.
Um emocional de merda, se quer saber. Mal conseguia abrir os
olhos e quando me dei conta, dois dias tinham se passado. Ela estava
sozinha há 48 horas.
O medo do que viria à seguir me assustava, sim, mas a ideia de ser
pai parecia mais real agora, ainda assim, vez ou outra eu me perguntava se
não tinha despencado em uma realidade paralela.
— Eu vou ser pai — repeti no automático, sentindo a frase entrar
em meus ossos.
— Ainda estou chocado. — Lobo passou as mãos pelos cabelos. —
Mas de uma forma boa. — Ele tentou soar mais animado.
— Snake, você tem que ouvir o que Petrova tem a dizer. Deve haver
uma boa explicação para que ela não tenha te contado. — Jasmin se sentou
ao meu lado, encarando-me com seus grandes olhos azuis.
— Mas não a confronte, por favor. Ela deve estar apavorada. —
Estrela me cercou do outro lado, ambas me encaravam em um misto de
surpresa e preocupação.
— Vocês estão do lado de quem? — Estreitei os olhos para as duas.
— Não acho que ela tenha feito isso por mal. Nenhuma mãe quer
passar pela gravidez sozinha, Snake. Ela com certeza está precisando de
você. — As palavras de Estrela me cortaram de dentro para fora e
imediatamente me lembrei do genitor de Colin, que a abandonou bem no
início da gravidez.
Eu quase morri. Foi o que ela me disse sobre aquela época e um
aperto doloroso despontou em meu peito.
— Quando engravidamos ficamos mais sensíveis. Uma hora você
quer chorar, na outra, vê beleza em absolutamente qualquer coisa, aí seu
corpo começa a mudar e você tem que se adaptar. Às vezes quer comer de
tudo, em outras não quer comer nada, sente mais sono...
— Você praticamente não me deixava dormir. Eu emagreci de tanto
fazer sex... Ai! — Fantasma ganhou um beliscão da esposa. — O que foi? É
uma das melhores partes, coração! — Ele sorriu de lado para Estrela que
revirou os olhos.
— Cada mulher vive esse período de um jeito. Não é fácil.
— Acha que ela está passando por algo do tipo? Quer dizer... acha
que está sentindo algum tipo de dor? — quis saber, a preocupação latente
me fazia balançar as pernas, inquieto. — Já a vi vomitar uma vez, e em
outras ocasiões ela ficava tonta, ou pálida demais, mas nem pelo inferno
podia imaginar que ela estava...
— Grávida? — Estrela abriu um pequeno sorriso.
— Estou apavorado, Estrela. — Encarei minha amiga, como se ela
fosse capaz de arremessar um bote salva-vidas para o mar de desespero em
que eu estava me afogando.
— Não há o que temer, Snake. — Ela sorriu, gentil e segurou minha
mão. — Essa pequena vida vai vir ao mundo e mudar tudo o que você
conhece para melhor. É seu filho. Você vai se sair bem.
— Meu Deus, um mini - Snake... — Jasmin deu um gritinho,
tentando segurar a empolgação.
— Ou uma Petrovinha. — Estrela suspirou e eu comecei a me sentir
um pouco mais tonto, como se meu cérebro nadasse à procura de alguma
certeza de que eu saberia lidar com aquilo. De que conseguiria cuidar deles.
De todos eles. — O nascimento é a coisa mais linda, mas o processo nem
tanto, cunhado. São muitos sintomas, físicos e emocionais. Mas tenho
certeza de que obrigá-la a te contar não vai ajudar em nada. Volte para casa,
mostre o que sente por ela e espere alguns dias. Dê a ela a oportunidade de
te contar.
— E de se explicar. — Jasmin prosseguiu. — Petrova precisa
confiar em você. Não pode abandoná-la agora.
— Eu não vou — disse rápido, quase gritando. — Nem por um
segundo isso foi uma opção.
— Ela precisa saber disso. — Jasmin sorriu, afetuosa. As duas
saíram da sala logo em seguida, deixando-me a sós com meus dois irmãos e
Fantasma se aproximou.
— Você gosta dela, irmão? Da Petrova? — Ele quis saber e por
algum motivo a base do meu pescoço pareceu pegar fogo e desviei os olhos
para o chão.
— Nunca tive sentimentos tão fortes por uma mulher, e não sei se
gosto disso — resmunguei. — É como viver em um inferno, agora mesmo
estou bravo com ela por ter escondido uma coisa tão importante quanto uma
gravidez, mas mal posso esperar para colocar os olhos nela e ter certeza de
que está bem. — Fiquei de pé. — Que merda, eu nunca tive alguém como
ela, porra. Eu mal sei o que fazer.
— Você vai encontrar um caminho, irmão. E não está sozinho, nós
já passamos por isso e estaremos com você. — Lobo deu um tapa em meu
braço.
— Não tenha dúvidas do que sente, Cedric. Você nunca olhou para
ninguém como olha para Petrova. — Fantasma prosseguiu. — Vi como fica
inquieto com ela por perto.
— E irritado também, apesar de isso ser uma característica pontual
do seu humor ranzinza — Lobo zombou e estreitei os olhos para ele em
uma ameaça silenciosa.
— E está tudo bem ficar assustado, irmão. Quando descobri que
Hope estava a caminho eu fiquei com um puta medo de não ser um bom
pai. — Encarei meu irmão, tentando não transparecer o quanto estava louco
para saber como agir dali em diante.
— Como? Como descobriu o que tinha que fazer? — inquiri, ciente
de que meu irmão se tornou um pai fantástico.
— É natural. As coisas começam a mudar no instante em que
descobrimos a gravidez. Depois, um amor inexplicável começa a dobrar
dentro do nosso peito conforme a barriga cresce, e por fim... — Ele olhou
para a porta por onde Estrela tinha passado alguns minutos antes e quando
me encarou novamente pude ver em seus olhos que Fantasma faria tudo por
aquela mulher. Engoli em seco quando me dei conta de que sentia o mesmo
em relação à Petrova. — Quando você menos perceber, estará dando o seu
melhor por aquela pequena versão de vocês dois, e vai dar tudo certo.
Confie em seus instintos.
— Você vai ser pai, porra! — Lobo gritou e me puxou para um
abraço.
— Parabéns, meu irmão! Vou beber por nós dois, já que está
proibido de ingerir qualquer tanto de álcool até seu fígado se regenerar.
— Quem disse isso? — quis saber.
— Eu. — Dei risada quando Fantasma me abraçou. Ainda me sentia
abalado, mas a necessidade urgente de ver Petrova me manteve de pé.
— Obrigado. — Pisquei, aéreo e vi Sullivan passar pela porta. Ele
tinha trazido meu carro da boate de Jack.
— Boa noite, senhores — o rapaz cumprimentou e não consegui
esperar para perguntar.
— Como ela está? — quis saber. Tinha pedido a Sullivan para
cuidar de Petrova enquanto eu estivesse fora, mas o rapaz não sabia de nada
além de que precisava ficar de olho nela.
— A senhorita Petrova está bem — disse, sucinto e então abriu mais
os olhos e voltou a falar. — Ah, hoje no final da tarde soube por James que
ela passou mal. Mas parece que terminou tudo bem, ninguém se aproximou
da casa, nem nada e...
Que porra, ela tinha passado mal e eu não estava lá para ajudá-la.
Mais uma vez...
Passei correndo ao lado de Sullivan sem terminar de ouvir o que o
rapaz tinha a dizer.
— O que vai fazer agora? — Lobo gritou às minhas costas.
— Vou voltar para casa. — E dar motivos para ela confiar em mim.
Parei por um breve momento e olhei sobre o ombro.
— Não comentem nada com nosso pai por enquanto, eu mesmo vou
conversar com ele. — Os dois concordaram e saí de lá às pressas.
Petrova estava grávida de um filho meu, e nada além daquilo
importava.
Eu sinto sua falta quando não consigo dormir
Ou logo depois do café
Ou quando eu não consigo comer
Gnash – I hate u, i love u
Petrova
As horas passavam mais devagar desde que ele se foi. A aflição por
vezes quase me afogou. Sentia-me inquieta e ligeiramente mais enjoada
depois daquela noite estranha e confusa. Já tinha vomitado duas vezes e
meu apetite desapareceu por completo. Raiva e apreensão, era tudo que eu
conseguia sentir, além de uma saudade infernal.
Só tinha se passado dois dias, mas por que eu sentia que já estava
enfrentando uma eternidade?
Não fazia ideia do motivo pelo qual ele não voltou para casa, mas a
mágoa que crescia em meu peito parecia carregar o peso de uma tonelada.
Alguma coisa tinha acontecido e ele não quis me falar, diferente daquilo,
Snake me afastou.
Passei as últimas 48 horas dividida entre inventar um motivo
convincente para explicar a ausência de Snake para Colin, que perguntava
sobre o homem cerca de três vezes por dia, e tentar não desmoronar.
Ainda me lembrava do olhar que ele me lançou no estacionamento
da última vez que nos vimos. Parecia distante, decepcionado. A última
hipótese me deixava particularmente desesperada.
Eu não tinha feito nada. Absolutamente nada, o único motivo que
tinha para guardar segredos de Snake era sobre a possibilidade de estar
grávida, mas ninguém sabia daquilo. Então tinha que ser outra coisa, algo
mais. Ou talvez ele só tenha enjoado de mim e estava passando aquelas
noites com algumas das modelos com as quais costumava se divertir.
Contive um soluço com a dor que aquela possibilidade despontava
por todo meu corpo e me encolhi no sofá, onde tentava desesperadamente
encontrar um pouco de concentração para trabalhar. Colin já estava
dormindo, e talvez, só talvez, eu pudesse me permitir chorar um pouco.
Fechei os olhos, sentindo a náusea me dominar. Ela aumentava toda vez que
pensava nele.
E eu pensava muito naquele maldito. Quase todos os minutos do dia.
Era um inferno e eu só queria chorar, mas o medo de não conseguir me
controlar depois de me entregar a aflição que estava sentindo me impediu.
E se ele não voltasse nunca mais? E se...
A recordação de toda a dor que senti quando o pai de Colin me
abandonou voltou com tudo. Naquela época eu não sabia o que era amor.
Eu imaginava que sabia e doeu tanto que ainda sentia as marcas em minha
alma, mas com Snake era diferente. Não havia nada que se comparasse ao
meu coração batendo forte só de olhar para ele. A lembrança dos seus
traços ainda estava viva em minha mente e eu só queria que ele voltasse.
Que voltasse para mim.
Por favor, não esteja com outra. Não me abandone!
Quis gritar, mas parecia tão patético, tão ridículo que me senti
pequena diante de um mar de sentimentos e tristeza.
Tentei ligar para ele no primeiro dia, mas o celular só dava
desligado. Fiquei preocupada, mas acabei recebendo um recado de Sullivan,
avisando que Snake estava trabalhando fora. O rapaz ficava pairando em
cima de mim o dia inteiro, vigiando cada um dos meus passos e eu já o
conhecia o bastante para saber que ele estava mentindo, só não entendia o
porquê.
— Que se foda. Não precisamos de você. — Funguei, olhando para
o computador. Incontáveis linhas subiam e desciam, sondando um gráfico
criptografado do sistema do Pen Drive.
Tinha certeza de que, depois que pegasse o roteador com Sombra,
conseguiria abrir o pen drive na metade do tempo, que por sinal se mostrou
bem maior do que eu esperava. Mas nem aquele avanço considerável era
capaz de me fazer sentir um pouco de alegria.
— Onde diabos você foi? — reclamei baixinho e joguei o notebook
de lado, sentindo certa raiva e decepção esquentarem a base do meu
pescoço.
Snake era como um furacão, não dava para controlar ou esperar que
uma vida caseira, com uma mulher, uma criança e um cachorro o
encantassem de alguma forma. Ele se cansou de nós, sim.
De Colin, Passarinho e de mim.
Tatuado dos infernos. Arfei, tentando não imaginar sua boca firme
colada na de outra mulher. Tentando afastar a imagem que se formava em
minha mente, dele tocando alguém como me tocava e do quanto eu sentia
que o coração de Snake não pertencia a ninguém. Nunca pertenceria. Eu
sempre soube daquilo, mas por um breve momento, eu esqueci.
Recostei-me no sofá, desejando ser capaz de esquecê-lo, por alguns
minutos que fosse, e acabei pegando no sono ali mesmo.
Snake só não desapareceu dos meus sonhos.
Snake
Cheguei na mansão apressado e dispensei a equipe que ficava no
túnel de entrada da casa quando eu estava fora. A euforia se misturando a
várias emoções estranhas, mas que se foda, nada do que eu sentia
importava, eu precisava vê-la.
Entrei correndo e meu estômago revirou de ansiedade no instante
que passei pela porta de entrada e vi uma mecha dos cabelos laranjas
descendo pelo encosto do sofá. Ela estava bem ali, dormindo na sala, a
poucos metros de mim, mas eu bem sabia que havia um mar de segredos
entre nós.
Puxei a gola da blusa que tinha pegado emprestado com Lobo,
sentindo um pouco de falta de ar, como se de repente o tecido começasse a
me esganar. Dei um passo, depois outro, ainda sem saber como me portaria
diante dela. Minha mente em desordem nadava contra o medo que parecia
cada vez mais se fechar ao redor dos meus músculos.
Eu ia ser pai!
Dei um passo em sua direção, depois outro. Estava confuso e a
decepção que sentia aumentava toda vez que me lembrava que Petrova
estava grávida e não quis me contar, mesmo passando o diabo nas mãos
daqueles malditos da CIA, ela simplesmente não se importou.
Pensei que não conseguiria voltar a olhar a encará-la, no entanto,
toda dor que senti naqueles últimos dias desapareceu no instante em que
coloquei os olhos em Petrova.
Seu corpo pequeno estava esticado no sofá, fios de cabelos laranja
iam para todos os lados, enquanto o notebook permanecia aberto ao seu
lado, junto com algumas folhas de papel, o moletom velho do Harry Potter
jazia sobre o encosto do móvel, tão esparramado quanto a dona. Soltei o ar,
devagar. Ela era tão pequena, delicada e bagunceira. E eu adorava cada
pedacinho daquela mulher.
Torci os lábios.
— Que inferno! — sussurrei.
Acreditei que seria capaz de odiá-la, mas na verdade tudo o que eu
mais queria agora era poder abraçá-la.
Inclinei-me até tirar os óculos que descansavam tortos no rosto fino
e desci os olhos pela regata azul que ela usava. Parecia justa demais para
comportar seus seios cheios, o que fez o tecido subir e deixou parte da
barriga à mostra.
Ergui a mão e senti minhas pernas fraquejarem quando estava
prestes a tocar sua barriga.
Um filho... meu Deus!
O meu filho. Nosso filho!
Caí de joelhos diante dela, incapaz de me mover, enquanto
observava sua respiração cadenciada. Minha garganta começou a arder.
Dedilhei seu rosto, louco para tocá-la de alguma forma e me dei conta do
quanto aquela pequena encrenqueira significava para mim.
Ela era meu ponto fraco. A dona da minha vontade e a única capaz
de me fazer sentir vivo. De alguma forma, ela quebrou o gelo que ergui ao
redor do meu coração. Petrova me encantou e eu estava literalmente de
joelhos por ela.
Passei os braços por suas pernas e a ergui em meu colo com cuidado
para que não acordasse, enfiei o nariz em seus cabelos e abri um sorriso
quando o aroma floral preencheu meus sentidos. Ela tinha cheiro de
felicidade.
Carreguei a pequena até meu quarto e a deitei sobre a cama devagar.
Ela se remexeu e virou de barriga para cima. Sentei-me ao seu lado e fiquei
longos minutos só observando a delicadeza dos seus traços. A respiração
cadenciada, que fazia seu peito subir e descer e quando me dei conta, estava
encarando sua barriga mais uma vez, com uma obsessão crescente em meu
peito.
— Cedrrric? — ela chamou rouca, embolando o sotaque, meio
perdida, piscando os olhos verdes devagar que se expandiam mais à medida
que ela me notava parado diante dela. Meu coração acelerou e toda a raiva
que senti por ela não ter me contado sobre a gravidez foi para o inferno
quando vi a insegurança que transpassou seu olhar.
— Sim, pequena, sou eu! — Tentei tocar seu rosto, então ela abriu
os olhos de repente e fugiu do meu toque, se arrastando pelo colchão.
— V-você... quando chegou? Onde você estava? — Ela começou a
disparar perguntas. Seus olhos marejaram e o sangue do meu corpo pareceu
descer para os pés quando me deparei com seu olhar desolado.
— Petrova...
— Quer saber, não diga nada! — Ela me interrompeu, erguendo um
dedo sem se dar conta de que a blusa subiu e quando ela se sentou, sua
barriga ficou um pouco mais aparente, mostrando uma protuberância
redondinha que não havia notado antes, e que me deixou tonto.
Puta que pariu. Um filho!
Apoiei-me na beirada da cama, tentando me controlar para não
desmaiar bem ali, na frente dela.
— Não quero ouvir nada do que tem a dizer. — Ela tentou descer da
cama, mas agarrei seu braço e a puxei para meu colo, usando o pouco de
força que ainda me restava.
— Me escute, princesa. Eu posso explicar...
— NÃO! — ela gritou, debatendo-se contra mim. Segurei-a pelos
ombros e algo em meu peito pareceu morrer quando notei que ela estava
tremendo, enquanto segurava as lágrimas com afinco. — Você não me deve
nenhuma satisfação, Snake. M-mas... não pode me dizer tudo o que disse,
não pode me fazer sentir especial e depois ir embora, passar a noite com
quem quer que seja. — Arregalei os olhos quando me dei conta do que ela
estava pensando.
— Eu não estava com outra mulher, Petrova. De onde tirou isso?
— Você não me disse uma palavra sequer, só... me deixou aqui sem
saber o que fiz de errado. — Ela soluçou e a abracei, mesmo contra a sua
vontade.
Eu gostava quando Petrova brigava comigo. Era tão excitante
quanto encarar a morte em uma briga de bar. Era apaixonado no jeito que
ela odiava gostar de mim. Quando me empurrava, me xingava ou até
mesmo me batia, mas o que vi em seus olhos estava longe daquilo. Petrova
estava magoada comigo e eu me sentia um merda toda vez que a encarava.
— Me desculpe, meu anjo. Por favor, me desculpe por ter fugido
daquele jeito. Eu precisava entender algumas coisas sobre mim, sobre...
nós. Então fui para a casa do Lobo e passei esse tempo lá. Foi só isso. Só
eu, sendo um cuzão covarde. — Tentei acalmá-la. — Me perdoe por deixá-
la daquela forma. — Abracei-a com força, o corpo pequeno tremia entre
meus braços e tudo que desejei foi mantê-la ali, cercada por tudo que eu
tinha. Por tudo que eu era: A porra de um demônio em redenção, mas que
se foda.
Não havia mentira que me fizesse soltá-la naquele momento. Tudo
que importava era que Petrova me perdoasse e que a decepção em seus
olhos desaparecesse.
— Você me pediu para ficar e simplesmente sumiu. — Ela chorou e
enfiou o rosto no meu ombro. — Foi você quem não ficou. Pensei que não
voltaria nunca mais. Que...
— A abandonaria? — Ela fungou e puxou o ar com força, ergueu o
rosto e me encarou. Os olhos verdes estavam mais vazios, profundos e
levemente vermelhos, mas o que dilacerou minha alma foi ver a dor, mágoa
e tristeza que eles estampavam. Tudo por minha causa. Foi ali que vi o
quanto tinha errado. — Ah, minha menina, me perdoe.
Ela estava com medo, medo de mim, medo do que eu faria se
descobrisse seu segredo. Medo de que eu simplesmente fosse deixá-la
sozinha mais uma vez e constatar aquilo me rasgou ao meio.
— Como pôde pensar que eu não voltaria? — Cerquei seu rosto
com uma das mãos. — Mal consigo imaginar o que eu faria se você
decidisse ir embora depois de abrir aquele pen drive dos infernos. — Ela
piscou e abriu mais os olhos verdes. — Não consigo cogitar a ideia de vê-la
passando por aquela porta, indo para longe de mim e saber que essa
possibilidade existe me deixou apavorado porque se você se for, não vai me
restar um pingo de felicidade. — Aproximei minha boca da dela até sentir
sua respiração cadenciada tocar meu rosto. — Avisei que não sabia fazer
isso, princesa, mas juro que vou aprender. Nunca vou abandoná-la.
— Promete? — soprou, chorosa e capturei sua boca com a minha,
beijando-a devagar, meu peito parecia prestes a explodir e eu não sabia se
era de felicidade, desespero ou uma mistura agridoce dos dois. — I-
independente de qualquer coisa? V-vai me avisar se um dia quiser desistir...
— Não há nada que me faça desistir de você. Absolutamente nada.
— Fui sincero e notei o momento em que ela segurou a respiração, me
observando de um jeito diferente. Parecia em dúvida.
Me conte, amor. Por favor, me conte.
Quis implorar, mas fiquei em silêncio, como disse que faria, e ela
não contou. Então eu a abracei e a mantive em meus braços até que se
acalmasse.
— Você é um idiota! — Ela fungou, apertando-me em um abraço.
— Esse idiota não parou de pensar em você. — Nem mesmo quando
estava queimando de febre.
— Sentimos sua falta.
— Todos os três? Até o maluco peludo?
— Sim, até Passarinho. Ele ficava gritando para a porta de entrada
que nem um lunático. Tenho certeza de que é resultado da convivência com
você. — Ela deu uma risada meio fanha e se aconchegou em meu peito.
Tudo que não fazia sentido de repente começou a se encaixar.
Petrova ia me dar um filho. Porra... eu ia mesmo ser pai e a ideia
parecia cada vez mais absurda e fascinante. Soltei o ar contra seu pescoço,
sentindo certa eletricidade apavorante transpassar meu corpo.
— Você comeu direito enquanto estive fora?
— Não tive muito apetite — disse distraída, encolhida em meu colo.
Ela respirou fundo e relaxou em meus braços.
— Está sentindo algum desconforto? Dor? Quer comer algo
específico? Me diga o que deseja, qualquer coisa e eu farei. Posso trazer a
mãe de Jack, ela faz um cozido que cura qualquer ressaca... Ah porra, você
não está de ressaca. — Ergui as sobrancelhas, confuso.
Não sabia como ajudá-la sem que ela me contasse a verdade.
— O que aconteceu com você? Está bonzinho demais... — Ela riu e
bocejou.
— Me diga o que deseja, pequena. Por favor, me diga qualquer
coisa.
— Só quero dormir um pouco. Estou exausta e amanhã tenho que
encontrar o Sombra — ela disse baixinho, subitamente sonolenta demais.
Torci os lábios. Aquele esquisito era um problema. O homem
representava um perigo que eu desconhecia e não estava inclinado a deixar
Petrova, grávida, exposta a qualquer situação de risco.
— Sabe que não vou permitir que...
— Shhhh! — Ela pinçou minha boca com a ponta dos dedos e abriu
um sorriso lento, já com os olhos fechados. — Amanhã vou me encontrar
com ele e pode ir junto, contanto que me abrace a noite toda. — Não
consegui conter um sorriso quando ela engatinhou para o meio da cama e
tombou sobre o colchão. Tirei a roupa e me deitei ao seu lado, puxando-a
para meus braços. — Mal consigo manter os olhos abertos agora que você
chegou... — Bocejou, nitidamente mais calma e prometi a mim mesmo que
morreria antes de deixá-la sozinha novamente.
— Boa noite, minha princesa. — Soprei em seus cabelos.
Abracei seu corpo pequeno, mantendo-a perto de mim. Não
consegui pregar os olhos direito, pensando em tudo que estávamos nos
tornando e vez ou outra, no silêncio da madrugada eu descia a mão por sua
barriga, até pousá-la sobre seu ventre. Fiquei ali, paralisado por um
momento, com a sensação de estar tocando em algum milagre, ainda sem
conseguir acreditar que ali dentro tinha um bebê.
Metade dela, metade de mim.
Ultimamente tenho perdido o sono
Sonhando com as coisas que poderíamos ser
Counting Stars – One Republic
Petrova
Acordei sozinha na cama espaçosa depois de ter experimentado uma
noite de sono profundo e sem sonhos.
Não tinha dormido direito nas duas noites em que ele ficou fora,
uma inquietação despontava bem no início das minhas costas e se espalhava
pelo corpo toda vez que tentava imaginar o motivo pelo qual ele tinha ido
embora. Demorei a perceber que estava apavorada, com medo de Snake de
alguma forma fazer o mesmo que Matt e simplesmente não voltar. E agora
que sabia a verdade, estava me sentindo um pouco tola.
Eu me esqueci que Cedric não podia ser comparado com aquele lixo
de homem. Ele era diferente, sim. O oposto de tudo o que eu conheci,
apesar de muito mais perigoso. Nosso relacionamento não tinha nome, nem
tempo definido, mas quando me deitei em seus braços na noite anterior,
tudo se encaixou e a calma que senti diminuiu o enjoo, a insegurança e o
medo do amanhã. Ele era meu jeito errado de dar certo.
Empurrei as cobertas e estreitei os olhos quando um burburinho
ecoou do corredor pela fresta da porta que estava aberta. Levantei-me e a
abri, espiando o lado de fora do quarto com certo receio.
— Não sei para que isto serve, mas deve ser útil. — Snake
conversava com alguém.
— Isso é um espremedor de frutas manual. É muito útil, senhor
Holder. — Estreitei os olhos quando ouvi uma voz feminina.
— Também dá para furar o olho de alguém, então é dois em um. —
Sullivan deu risada.
— Esperamos não precisar utilizar de uma atitude tão drástica. —
Colin riu, parecia se divertir e passei a mão pela camiseta que usava,
ajustando o short para que não ficasse curto demais e fui até a cozinha,
curiosa.
Arregalei os olhos assim que parei no batente da porta. Sullivan
estava esvaziando algumas sacolas, enquanto Colin o ajudava. Snake
rodopiava de um lado para o outro, abrindo e fechando armários como se
procurasse alguma coisa. E havia uma mulher pequena, os cabelos
castanhos estavam presos em um coque e ela sorria de um jeito gentil e
paciente enquanto o ajudava.
— Bom dia, senhorita Petrova!
— Ai, minha nossa! — Levei a mão ao peito, assustada e olhei para
trás, dando de cara com James parado ao lado de outro guarda-costas,
ambos carregavam sacolas cheias do que pensei serem compras.
— B-bom dia. — Saltei para o lado, dando espaço para que eles
passassem.
— Ei, mamãe... bom dia! — Colin veio correndo até mim e se jogou
em meus braços. Apertei seu corpo pequeno contra meu e me ergui.
— O que está acontecendo aqui? — Levantei os olhos e dei de cara
com Snake, encarando-me de um jeito incomum.
Os olhos azuis brilhavam mais à luz do dia e varreram meu corpo
devagar. Engoli em seco com a sensação de estar sendo despida na frente de
todas aquelas pessoas.
— É ela — ele disse para a mulher em um tom baixo. — Petrova. —
Ele deu ênfase a cada letra do meu nome, apresentando-me à mulher. —
Petrova, essa é Judith. Ela trabalha com Jasmin e vai passar alguns dias por
aqui nos ajudando — ele disse e atravessou a cozinha até parar ao meu
lado.
Colin estava de olho em nós dois e talvez por aquele motivo Snake
não me tocou, mas de alguma forma sua aura parecia ter me envolvido em
um abraço quente e apertado, todas as minhas células estavam cientes da
presença dele tão perto.
— Bom dia, senhorita. É um prazer conhecê-la.
— É-é... bom dia, Judith. O prazer é todo meu, obrigada, eu... já
volto... — Abri um sorriso forçado, agarrei Snake pelo braço e o puxei para
o corredor. — O que diabos está acontecendo aqui? — O homem, que
estava lindo em uma regata larga azul marinho e uma calça preta toda
desfiada, me encurralou contra a parede de vidro no final do corredor, sem
se preocupar se seríamos vistos ou não. Só então me dei conta de que ele
sustentava uma expressão cansada, abatida, como se não dormisse direito a
dias.
— Trouxe uma das funcionárias de confiança da minha cunhada
para nos ajudar. Ela é uma excelente cozinheira e está acostumada a
trabalhar com as pessoas excêntricas da nossa família. Como não consegui
roubá-la totalmente da Jasmin, Judith virá dia sim, dia não. — Ele soprou,
baixo.
— Você não precisava ter contratado alguém para me ajudar. Eu já
disse que dou conta!
— Acha que eu não sei que você e sua raposinha mirim comeram
miojo quando eu estava fora?
— Como você sabe que... — Estreitei os olhos quando me lembrei.
— Sullivan! Ele estava nos vigiando para você? — Soltei o ar, chocada.
— Sim, e eu não acredito que vocês levaram aquela coisa
pigmentada para cima do meu sofá, que por sinal já foi vítima de agressão
nesta casa. — Acabei rindo.
— É um exagero, Snake. Comemos miojo apenas uma vez, e porque
gostamos.
— Que porra de vitamina tem em um miojo? — questionou, sério,
seu corpo ainda pressionando o meu. Abri a boca, mas não encontrei muitas
respostas a meu favor.
— Eu só... estava com vontade. — Algo em seu olhar se suavizou.
— Sei que não deve estar sendo fácil, pequena. — Ele desceu os
olhos para minha boca e o encarei, hipnotizada pela imagem dos seus
braços tatuados me cercando. — Quer dizer... cuidar de Colin e trabalhar
naquele dispositivo enquanto caçam sua cabeça. Só quero ter certeza de que
tenha tudo o que desejar. — Ele aproximou a boca da minha. — Deixei que
fizesse as coisas do seu jeito, agora eu vou fazer do meu.
— O que isso significa? — questionei, em um sussurro e ele ergueu
o dedo, resvalando a lateral do meu rosto em uma carícia lenta. — O que
pretende fazer? — Snake se inclinou, colando a boca bem perto da minha e
sussurrou:
— Vou cuidar do que é meu. E raposa, você é minha. Não se
esqueça disso. E é melhor pensarmos em uma forma de contar ao garoto
sobre nós, não vou manter minhas mãos longe de você por muito mais
tempo. — Seus olhos encontraram os meus de forma possessiva, antes de
me dar as costas e me deixar ali, tremendo, confusa e um pouco mais
apaixonada.
Passei o restante do dia me preparando para o encontro com Sombra
tanto quanto para ir até a boate do amigo de Snake logo em seguida. Sabia
que lá não era o melhor lugar do mundo, com uma incontável gama de
criminosos de variados ramos, mas não havia um homem sequer que não
temesse o dono do lugar.
Jack Kane era conhecido por sua falta de paciência e sua assinatura
inconfundível: Arrancar as mãos dos seus inimigos.
O sujeito era uma graça.
Revirei os olhos, questionando mentalmente o nível de amizade de
caráter controverso que Snake era capaz de arrumar, enquanto configurava
meu celular e o preparava para receber as definições do roteador de
Sombra.
Ainda não tinha me recuperado do retorno de Snake, tanto quanto da
atenção exacerbada que o homem dirigiu a mim durante o dia todo.
Era como se seus olhos estivessem sempre observando tudo que eu
fazia e só consegui alguns minutos longe da sua atenção quando me
tranquei no quarto do pânico que usava como escritório. No entanto, não
consegui impedi-lo de obrigar Judith a bater na porta do lugar de duas em
duas horas com um copo de suco natural nas mãos. Os sabores me
surpreendiam cada vez mais. Já tinha tomado um suco de morango, um de
cenoura e um que jurava ser couve ou algo parecido e o último, era uma
mistura de tudo aquilo.
Será que ele achava que eu estava desidratada? Talvez a culpa fosse
da minha aparência apática de tanto cansaço. Às vezes eu me sentia mais
laranja, e em outras, só o bagaço.
Dei risada e me levantei, enquanto estudava um componente do
dispositivo. Já tinha mapeado grande parte do sistema de Duncan, e
conforme abria o arquivo, ele se autodestruía, o que significava que metade
dos arquivos jazia aberto em meu computador, e metade ainda estava preso
dentro do Pen Drive. Tudo que tinha descoberto me levava a crer que
Duncan estabeleceu uma sequência de testes. Aparentemente, a droga que
ele usava não estava finalizada, e seu principal defeito era matar os
usuários. O que não o impediu de continuar tentando.
Caminhei pela sala, de um lado para o outro, inquieta. Estava ciente
de que quando abrisse aquele arquivo, tinha que imediatamente reportar
tudo à CIA, com a ajuda de Sombra. Íamos derrubar todos os nomes que
trabalhavam com meu ex-chefe e ele iria se arrepender do dia que tentou
enganar a todos nós, inclusive a mim, que sempre o tive como um pai.
Duncan era uma das minhas maiores decepções. Tudo que sempre
desejei desde que ele me recrutou para a CIA foi dar orgulho ao homem
que, até então, tinha aberto as portas de uma nova vida para mim.
Mas no fim das contas, eu era só um trunfo que ele tinha bem
guardado em sua equipe, e me descartou assim que me tornei um problema,
já que tinha descoberto tudo que ele estava planejando pelas costas da CIA.
Maldito mentiroso dos infernos.
Bufei e continuei minha peregrinação, andando de um lado para o
outro. Estava focada no trabalho, até que meus olhos recaíram sobre a porta
escura que ficava escondida dentro do quarto do pânico.
A sala de armas do Snake.
Passei os dentes pelos lábios, curiosa até os ossos para saber o que
tinha lá dentro. Snake me proibiu de entrar lá, o que só aumentava minha
vontade de fazê-lo.
— Ele não vai morrer se eu der uma olhadinha, vai? — disse para
mim mesma, tentando me convencer de que não estava cometendo um
crime.
Fui até as câmeras de segurança e descobri que a porta do escritório
do Malvadão estava fechada, o que significava que ele estava trabalhando e
não veria nada do que acontecia ali embaixo.
Abri um sorriso, sentindo as maçãs do rosto esquentarem, excitada
pela chance de irritá-lo mais um pouco. Encarei o sistema de proteção da
porta de aço. Era tecnologia de última ponta e poderia jurar que consistia
em várias camadas de proteção, mesmo sem ter invadido nada ainda.
— Dificultou minha vida, Malvadão, mas não é como se eu não
conseguisse entrar. — Peguei um cabo de conexão e meu celular e me
aproximei da porta.
Gastei cerca de dez tentativas e quase uma hora para poder
conseguir abrir aquela coisa, mas no fim, um clique alto ecoou pelo ar e
acabei sorrindo quando a porta se abriu.
Ele ia ficar puto quando soubesse que invadi a sala que, de acordo
com ele, era de segurança máxima.
— Humpf, segurança máxima... sei! — Revirei os olhos e puxei a
porta, entrando no desconhecido. Na escuridão favorita de Snake.
Um breu sinistro serpenteava pelo ar e a sala tinha um cheiro
característico de pólvora que me deixou receosa e animada. Liguei a
lanterna do celular e estreitei os olhos quando me dei conta de que estava
em um pequeno corredor. Podia sentir um silêncio tenebroso arrepiando
minha pele enquanto caminhava, andando devagar até que saí do corredor e
entrei em uma sala muito larga, comprida e luxuosa. Estilo vitoriano, em
tons escuros que combinavam com a aura sombria do lugar.
O teto era cheio de recortes de pedra pura, que deixavam o ambiente
mais frio e havia um grande sofá de couro, vintage, posicionado entre
outras duas poltronas, bem à frente de uma pequena ilha, lotada de garrafas
de uísque fechadas. Rodopiei pelo lugar e suspirei, frustrada. Estava tudo
escuro e a única coisa que encontrei foi uma fileira crescente de facas, em
variados tamanhos pregada em uma das paredes.
Onde estavam os fuzis especiais e as bazucas? Snake tinha cara de
ter uma daquelas. Passei as mãos pelas paredes e senti o aço frio por trás da
fachada de século XIX que aquele ambiente sustentava. Tinha algo por trás
daquelas paredes, poderia jurar.
— Ah, minha nossa! — Abri mais a boca quando vi um baú de ferro
bem no meio da sala. Ele estava cuidadosamente disfarçado de mesa, mas
não me enganava.
Corri até o objeto, que devia ter pelo menos um metro de
comprimento.
O que será que ele guardou ali dentro?
— Qual feitiço devo recitar para que vocês apareçam? — Rodopiei
pela sala. — Lumus Maxima? Alohomora? — brinquei e ri, sozinha,
relembrando alguns dos feitiços do meu bruxo favorito: Harry Potter. —
MEU DEUS! — gritei, em pânico quando uma sombra surgiu atrás de mim
e me lancei sobre a parede de facas, puxando a primeira que consegui
alcançar antes que pudesse sequer raciocinar direito.
Uma figura alta e corpulenta cresceu pra cima de mim e meus pés
congelaram assim que me deparei com o frio inquietante de seus olhos
azuis.
— Snake! — arfei, dando um passo para trás, depois outro, até me
ver cercada no vão entre as paredes maciças.
— O que pensa que está fazendo? — Sua voz baixa serpenteava
pelo cômodo escuro. — Achei que tivesse deixado claro que estava
proibida de entrar aqui. — O perigo em sua voz me deixou fraca. Seus
olhos intensos pareciam capazes de me tocar e tive que me recostar contra a
parede gelada para suportar o pulsar quente entre minhas pernas.
— Queria descobrir quais armas você guarda aqui, apesar de
provavelmente estar arriscando minha patente como agente da lei, já que
muitas delas podem ser ilegais ou sei lá, consideradas um ato de terrorismo.
Mas quem se importa? — Apontei para a caixa metálica disposta no centro
do corredor, como a amostra de algo raro, o que de fato devia ser. — Só
estava currriosa.
— Diga a verdade! — Ele rosnou, pressionando-me ainda mais
contra a parede.
Seu rosto felino estava a centímetros do meu, sua respiração
ofegante tocava meu nariz e me fazia desejar ficar na ponta dos pés, só para
senti-la resvalando em minha boca.
Snake era como o calor que invadia a noite, inquietante, inevitável.
— Eu não menti — vociferei, tentando empurrá-lo para longe,
abalada, mas ele foi mais rápido e segurou minhas duas mãos, encarando-
me de perto. A sua presença estava prestes a me engolir, seus braços
cobriam todo o meu corpo e eu me vi ali, refém entre os músculos dele,
apaixonada demais para ao menos respirar.
— Ah, mentiu sim, mas sabe de uma coisa? — Ele se inclinou até
resvalar a boca no lóbulo em minha orelha. — Não pode me enganar. — O
homem passou o braço por minha cintura e me puxou para o centro do
corredor.
Snake me rodou nos braços até me ter cativa de costas para ele.
Podia sentir sua respiração oscilante fazer seu peito rijo subir e descer
contra minhas costas. Ele estava bravo e eu, fraca, sentindo o formato do
seu corpo ondulando contra mim.
— Você entrou aqui porque não quer ser certinha o tempo todo,
agente Petrova. Muito menos se esconder atrás de uma mesa. — Ele soprou
contra meus ouvidos e só então me dei conta de que havia um espelho bem
em frente a nós dois.
A pouca luz me permitia apenas ver o contorno do corpo de Snake,
cobrindo o meu totalmente, os ombros largos, a postura impecável e rígida.
Ele era delicioso demais.
Engoli em seco e comprimi as pernas, observando-o como se
qualquer movimento fosse capaz de quebrar aquele encanto extremamente
assustador e delicioso.
Snake pegou a faca em minha mão. Senti seu sorriso contra minha
pele quando deslizou o metal frio por meu pescoço, descendo devagar até a
curva dos seios, brincando com a lâmina afiada, enquanto eu mal conseguia
respirar. Desespero e excitação subiram queimando por meu ventre.
— Quer ver a escuridão que eu escondo e não está nem um pouco
preocupada com as consequências que vai enfrentar depois disso. — Ele
abriu um sorriso contra minha pele que me fez estremecer e soltou a faca
em uma mesa ao lado. — Você invadiu a minha sala de armas, Raposinha.
Foi longe demais.
— F-foi tão ruim assim? — gaguejei, tonta quando senti sua mão
espalmar a lateral da minha barriga e subir com firmeza até quase tocar os
seios.
— Ah, não... foi brilhante. Mas sem mim, não conseguiria ver a
verdade por trás dessas paredes. — Ele ergueu o braço e apontou para seu
relógio, onde um alerta piscava em vermelho:
SALA DE ARMAS INICIADA!
— Ah, que droga! Você recebe um aviso quando a porta é aberta. —
Por isso ele chegou ali tão rápido.
— Nada do que acontece nesta casa passa despercebido por mim,
princesa. Já devia saber disso — ele sussurrou, rente ao meu ouvido e
fechei os olhos por um momento, apreciando o timbre de voz grosso. —
Jade, ative a sala de armas. — Snake se inclinou apenas o suficiente para
posicionar a mão no leitor digital que ficava ao lado da mesa de ferro no
centro do lugar e logo a sala começou a se transformar.
— Bem-vindo, senhor Holder! — Jade, a inteligência artificial que
permitia alguns acessos na casa avisou com uma voz alegre, com uma
pequena nota de melancolia ao fundo e tudo começou a se mover.
Encarei em choque, observando as paredes saltarem e se moverem,
revelando mostruários cheios de armas, de vários calibres e tamanhos,
expostas nas paredes de aço. Um tipo de luz azul surgiu atrás de todos os
painéis, decorando o lugar. Ergui os olhos e encarei a imagem no espelho,
que agora estava claro o suficiente para que eu visse a visão sexy e
poderosa que nós dois formávamos juntos.
— Era isso que você queria quando entrou aqui: sentir o poder que
essa sala exala. — Ele soprou. Um arrepio subiu por minhas pernas e
estremeci quando ele me guiou à frente até estar diante de uma das paredes.
— Sei que quer tocá-las. Vá em frente, agente Petrova.
Fiz como ele pediu, sentindo seu olhar pregado em minhas costas a
cada passo que dava.
Snake tinha razão, podia sentir em meus ossos a energia que aquele
lugar transpassava. Agora, sob as luzes azuis, tinha a impressão de estar
caminhando em um subsolo sagrado, perigoso.
— Uma Holland & Holland... — sussurrei, encarando uma
espingarda calibre 28 Royal Deluxe, gravada com rolo de folha Classic
Acanthus e as gravuras no cabo eram banhadas a ouro. Havia uma parede
só de espingardas raras como aquela. — Oh, minha nossa, é um Smith
Calibre 44? — Apontei para uma outra seção, onde algumas pistolas
estavam cuidadosamente dispostas em uma redoma de vidro.
— Sim, e é uma arma padrão do...
— Exército dos Estados Unidos. — Estreitei os olhos para o safado
que não deveria estar em posse daquela arma, sem conseguir conter um
sorrisinho, louca para tocar nela.
— Nem tudo por aqui é legal, mas você, como poço da inteligência
que é, já sabia disso.
— Há algo relacionado a você seja completamente legal e dentro da
lei?
— Só você. — Ele riu e mordi os lábios, feliz com a resposta e um
pouco mais aliviada, na esperança de que ele tivesse esquecido da vontade
de arrancar minha cabeça por ter invadido sua sala secreta.
— Fuzis! — Quase saltei no lugar assim que vi uma parede cheia
deles.
— Acho que você tem um estilo preferido. — Ele brincou, parando
logo atrás de mim. — Devo admitir que nutro certo fascínio por eles
também.
— Tem quantos ao todo? — Olhei para a primeira parte da parede,
que tinha mais uma sequência de três partes só de fuzis.
— Tenho 12. É um número baixo, se considerar que coleciono fuzis
de vários países. Selecionei apenas os que chamaram minha atenção. Os
três primeiros são meus favoritos. — Ele ergueu o dedo, mostrando os três
fuzis de destaque.
— O AK-47, clássico da Kalashnikov. — Apontei para o primeiro e
único que eu reconhecia de imediato. — Tem um desempenho
extraordinário, e os outros dois?
— O segundo é o CEAM, modelo francês, do ano de 1950. —
Pisquei, encarando a arma preta de longo alcance. — O terceiro, é um FN
F2000, da Bélgica. — Aquele último era mais corpulento, lembrava uma
arma futurísticas superdesenvolvida. — Tenho fuzil do México, Alemanha,
Japão, Brasil, Israel, Rússia...
— Eles são incríveis. — Aproximei-me da parede.
— Gosto de me sentar bem ali e olhar para eles enquanto bebo. Faço
isso quando preciso pensar. — Ele apontou para o sofá de couro marrom.
Rodopiei na sala, encantada com a variedade de facas, armas, óculos
de visão noturna, coletes e...
— Granadas! — Gargalhei quando vi algumas delas pregadas na
parede. — O que mais pode ter neste lugar? Ah, ali... — Apontei para a
caixa quadrada no meio da sala, que tinha chamado minha atenção logo
quando cheguei. — O que tem ali? — Ele balançou a cabeça em negativa e
um sorriso lento e perigoso ergueu o canto dos seus lábios.
— Não é assim que as coisas funcionam por aqui, Raposa. — Ele
caminhou em minha direção, seus olhos carregavam um azul predatório que
me fez engolir em seco.
Ele avançou, eu recuei, até chocar as costas contra uma das paredes,
bem no vão entre dois quadros de armas que eram cercados por duas barras
de ferro, uma de cada lado.
— Você entrou em um lugar proibido. Me desobedeceu, como
sempre. — Ele sorriu, os dentes extremamente brancos acentuavam
perfeição ao semblante frio e charmoso. — Você faz o que ninguém tem
coragem com uma facilidade assustadora.
— E você gosta. Que eu o desafie. — Engoli em seco quando seus
olhos desceram para minha boca.
— Ah, eu adoro. Principalmente porque posso fazê-la pagar por
isso... e não se engane, pequena. Você vai sofrer as consequências por ter
entrado aqui hoje — ele sussurrou e soltei o ar devagar, mordendo os lábios,
agitada.
— Não vou vender minha alma para você! — disse, relutante, sem
imaginar o que passava naquela cabecinha de moral distorcida.
— Por acaso eu virei o diabo para cobrar almas?
— Algum dia deixou de ser? — Seu sorriso se alargou.
— Gosto do jeito que é atrevida. Deixa tudo mais... divertido.
Click...
— O que você... Snake! — Abri a boca em choque quando me dei
conta de que o safado algemou uma das minhas mãos a uma das vigas de
ferro e antes que eu pudesse sequer raciocinar, ele agarrou meu outro pulso
livre e o prendeu do lado direito com mais uma algema que ele
aparentemente tinha tirado das profundezas do inferno. — O-o que vai
fazer? — Remexi-me, inquieta, presa em uma posição de cruz, com os
braços levemente esticados para cima.
— Vou fazê-la pagar por ter entrado aqui e você vai gostar de cada
segundo disso.
Snake
A raposa ardilosa me surpreendeu, mais uma vez.
Fui tolo quando pensei que ela não conseguiria invadir aquela sala, e
Petrova fez questão de me lembrar que eu não deveria subestimá-la. Mas
agora a pequena safada da tecnologia estava contida à minha mercê e não
havia visão mais excitante do que seu corpo pequeno, preso entre as minhas
armas.
Respirei mais devagar, tentando conter o tesão enlouquecedor que
varria todo o meu corpo e dei as costas. Fui até a parede de facas e puxei
uma de combate, antiga, mas muito afiada.
— Snake? — ela chamou, os olhos grandes brilhavam em um misto
de curiosidade, medo e excitação.
— O que está fazendo? — Ela entreabriu os lábios, as bochechas
corando quando me aproximei com a faca. Petrova se remexeu, fazendo o
som das algemas ressoarem contra o ferro e meu pau pulsou, duro pra
caralho só de imaginar o que eu faria com ela. — O que pretende fazer com
essa faca?
Inclinei-me até ela, sem de fato tocá-la e sussurrei contra seu
ouvido, assumindo o idioma russo dali em diante.
— Esta sala rouba algo de valioso de todos que entram nela. —
Pousei uma das mãos bem ao lado do seu rosto.
— O-o... — Ela tossiu, estremecendo da cabeça aos pés quando
ouviu seu idioma favorito. — O que ela rouba? — respondeu em russo e
parte das minhas estruturas começaram a ceder. Era um pecado ver aquela
boca carnuda entonar palavras tão sexys.
— Seu controle. Ela rouba tudo que te impede de ser quem você é.
— Arrastei os lábios pelo seu pescoço e ela ofegou baixinho, fechando os
olhos. — Aqui dentro você pode falar como quiser, agir como quiser e ser a
porra de um fora da lei, se assim desejar. Todos os segredos ficam aqui. —
Ergui a faca e a vi prender a respiração quando desci o metal frio até gola
da camisa branca que ela usava.
— Snake! — ela ofegou e arregalou os olhos, em choque, quando
comecei a descer a faca pelo tecido, abrindo toda a extensão da sua camisa
e expondo um sutiã cor de gelo que parecia prestes a ceder com os seios
fartos, loucos para saltar.
Deslizei a faca por sua pele devagar, Petrova mal respirava,
provavelmente temendo que eu a machucasse de alguma forma. Mal sabia
que eu morreria antes que aquilo acontecesse. Abri um sorriso de lado e
retaliei seu sutiã, que caiu ao lado da camisa no chão. Os seios penderam
para frente, cheios e arredondados e contive um sorriso ao ver os mamilos
durinhos e rosados.
— Minha nossa, o que você...
— Shhhh... Vou rasgar cada peça de roupa no seu corpo e você vai
ficar quietinha enquanto isso — vociferei, encarando-a de perto.
Vi o fogo da raiva crepitar fundo em seus olhos, ela não gostava de
receber ordens, mas o desejo que a consumia deixava evidente que me
obedeceria. Rasguei as duas laterais da sua calça legging junto com a
calcinha rosa minúscula que ela usava sem nenhum arrependimento. Puxei
o tecido e os joguei no amontoado no chão.
Dei um passo para trás, louco para vê-la melhor.
— Ah, porra! — grunhi e pousei a mão com a faca sobre a boca,
paralisado diante a visão que ela era, algemada e toda aberta para mim.
Os seios perfeitos se moviam conforme ela se remexia inquieta. Os
mamilos estavam intumescidos e ela respirava com dificuldade, enquanto se
esforçava para manter as pernas fechadas. O olhar ingênuo no rosto corado
não combinava em nada com os sinais lascivos que seu corpo me enviava.
Abri um sorriso, vendo o quanto ela já estava excitada sem que eu ao menos
a tivesse tocado.
— Chega a ser absurdo — disse rouco.
— Você me manter presa aqui, completamente nua? — Coloquei a
faca de lado e a cerquei com meu corpo sem de fato tocá-la, chegando perto
o bastante para sentir sua respiração.
— É absurdo que seja assim tão linda e tão... inocente. — Petrova
ergueu os olhos brilhantes para mim.
Subi os dedos pela barriga devagar, até tocar a carne do seio e a vi
pestanejar.
— Não sou inocente — ofegou, baixinho. A braveza estampada em
sua voz doce.
Belisquei o mamilo devagar, observando-a fechar os olhos e morder
os lábios inchados, já perdendo o completo controle das suas próprias
ações. Mergulhei a boca em seu pescoço e desci até quase tocar o brotinho
duro. Bati a língua ali apenas uma vez, o que foi suficiente para arrancar um
suspiro sôfrego dela.
— Cedric! — chamou aflita, balançando as algemas, louca para que
eu a chupasse ali.
Subi a mão por sua coxa e gemi, rouco, afundando meus dedos em
sua boceta encharcada.
— Ai, meu Deus! — Ela gemeu, afetada e comecei a deslizar os
dedos por toda a extensão da sua vulva inchada, espalhando seu próprio
líquido ali.
Inclinei-me, mergulhando a boca nos seios redondos, chupando a
carne com vontade até chegar nos mamilos durinhos. Fechei o lábio ao
redor de um deles e comecei a sugar com força, mamando com vontade,
enquanto deslizava um dedo para dentro dela, que rebolava contra minha
mão, ansiosa. Desci por sua pele, chupando, mordendo e sugando tudo pelo
caminho até me ajoelhar diante dela.
— Cedric... — ela chamou, ofegante, mas não respondi.
Passei a mão por sua cintura e depositei um beijo em seu umbigo,
demorando-me um pouco mais na região. Passei os dentes por ali,
acariciando a pele com cuidado. Era macia, delicada e tão... minha.
Dei-me conta de que estava admirando a barriguinha que começava
a se formar. Resvalei meu nariz contra a pele, sentindo meu coração
acelerar e desci um pouco mais, pairando sobre a bocetinha inchada.
Segurei seus tornozelos e abri mais suas pernas. Caralho dos
infernos, eu estava tremendo. Por algum motivo, tocá-la parecia cada vez
mais sagrado e eu já não conseguia me controlar. Precisava senti-la para me
acalmar de alguma forma.
Inclinei-me e deslizei o nariz por sua perna, inspirando seu aroma
delicado. Beijei seu ventre mais uma vez e desci a língua, trilhando um
caminho até as camadas fechadinhas da sua boceta. Comecei a abri-las em
uma carícia vagarosa, sugando toda a sua extensão com a língua e os
dentes.
Porra, ela tinha um gosto delicioso.
— Abra os olhos, pequena — soprei contra o centro do seu corpo e
Petrova miou baixinho, totalmente fora do controle de suas ações. — Quero
que veja como você é gostosa. — Ela me obedeceu e os abriu.
Quando ergui o rosto para observá-la seus olhos faiscavam, olhando
a cena em um misto de fascínio e depravação. Gostosa do caralho!
Voltei a chupá-la com mais força, sugando o clitóris durinho,
torturando-a com os dentes e a língua.
— Ah, merda! — ela praguejou, baixinho e começou a empurrar o
quadril contra minha língua.
Petrova gemia, arquejando, entregue, de um jeito que me deixava
louco. Como se toda a sua alma chamasse por mim, completamente perdida
no prazer que eu lhe apresentava. Mergulhei dois dedos dentro do calor do
seu corpo. Ela se abriu mais e comecei a comê-la com a boca e com os
dedos, rápido, aflito. Petrova rebolava contra meu rosto, gemendo e
gritando. Os peitos fartos balançavam logo acima de mim, ela estava quase
gozando, então parei de chupá-la e imediatamente a ouvi reclamar através
de sussurros ininteligíveis.
— Que boceta maravilhosa! — rosnei contra a carne inchada,
enquanto a raposinha estremecia. Enfiei a ponta da língua dentro da sua
boceta quente e ela gemeu tão alto, puxando-me para o centro do seu corpo
com tanta força que não consegui mais resistir.
Que se foda!
Pretendia torturá-la um pouco mais, mas Petrova não facilitava
minha vida nem naquilo. Ela conseguia me desestabilizar de um jeito tão
primitivo que se não entrasse nela naquele instante, era capaz de explodir
dentro das calças.
Subi os dedos por sua carne e tomei sua boca com vontade,
beijando-a com toda a confusão de sentimentos que aquela mulher
despertava em meu peito aflito, perdido em tanto prazer. Tirei o cinto,
enquanto ela observava cada movimento que eu fazia. Abri o zíper e desci a
calça até colocar todo o meu pau para fora.
— Me solte, eu quero tocar em você, quero...
— Não! — interrompi, enlaçando uma de suas pernas.
Enfiei a mão entre elas e belisquei o clitóris inchado devagar até
deixá-la ofegante. Parei por um momento e ela rosnou, indignada.
— Pare de me torturar. Só... me... — ela gaguejou, tentando
encontrar alguma palavra que descrevesse o que sentia.
— Só o quê? — Segurei meu pau, que babava e pulsava de tanto
tesão com uma das mãos, enquanto mantinha sua perna suspensa com a
outra. Resvalei a glande na entrada da sua boceta e contive um rosnado ao
sentir seu líquido se espalhar pela cabeça do meu pênis. — Diga, pequena,
o que você quer? — Empurrei alguns centímetros, até que meu piercing
sumisse dentro dela e grunhi, rouco. Sua boceta se fechou ao meu redor,
quente, apertada, sugando-me na tentativa de me puxar para ela.
— Por favor, Snake... — implorou, quase fechando os olhos.
— Diga. O que você quer? — Mordi seu maxilar, pressionando-a
um pouco mais. Louco para ouvi-la dizer aquelas palavras em russo.
— Quero senti-lo dentro de mim. Por favor, me fode, Snake!
— Porra, Petrova! — rugi e entrei fundo, de uma vez só e ela gritou
alto, jogando a cabeça para trás. E caralho, como era bom senti-la assim,
cru, puro. Puxando-me para dentro, enquanto me apertava com força. —
Você é tão quente, minha gostosa.
Ela passou a outra perna por minha cintura e a agarrei, sustentando
seu peso. Pressionei suas costas contra a parede e arremeti com mais força.
Tentei ir devagar, com menos pressão, mas eu só sabia foder com força, e o
parco controle que consegui se esvaiu assim que sua boceta começou a
pulsar, mamando meu pau de um jeito que só ela fazia. Comecei a me
afundar cada vez mais, nos seus gemidos altos e entregues, nos olhos
fechados, no cheiro adocicado, nos fios ruivos que pareciam estar em todos
os lugares.
A verdade era que Petrova me fez perder o controle e eu me sentia
mais livre assim, adorando tudo que vinha dela.
— Snake, ai, meu Deus! — gritou, cravando os dentes em minha
boca quando a beijei, segundos antes de estremecer em meus braços,
apertando meu pau com toda a sua extensão. Não consegui ir devagar.
Comecei a estocar cada vez mais forte, tomado por um desejo insano. —
Ah. Minha nossa! Cedric, ahhhhhhh! — Ela começou a gozar e estoquei
fundo, consumindo sua boca com a minha.
— Caralho, Petrova!
Puta que pariu, que delícia! Meu pau inchou e saí de dentro dela,
jorrando com força em sua barriga.
Estava louco para gozar dentro dela de novo. A sensação de ver a
minha porra escorrendo por suas pernas me deixava louco, possessivo, mas
sabia que se fizesse aquilo, ela poderia suspeitar de algo, já que a primeira e
última vez que permiti que acontecesse foi quando ela engravidou.
Desci os olhos para a pequena, que mantinha as pernas entrelaçadas
em minha cintura. Petrova estava toda vermelha, ofegante, os olhos ainda
perdidos em uma chama de prazer. Segurei-a firme e pressionei seu corpo
contra a parede mais uma vez, erguendo as mãos enquanto tirava cada uma
das algemas. Ela tombou em meu peito, arfando, e os pequenos braços se
fecharam ao redor do meu pescoço.
Coloquei-a com cuidado sobre uma das mesinhas, o corpo bambo se
apoiava no meu, cansada, suada, toda gozada e porra, não havia visão mais
fascinante. Aquela sala nunca mais seria a mesma depois daquela invasão,
nada se mantinha igual quando Petrova se aproximava. Ela era como uma
criatura mística, encantadora.
Peguei sua camisa, que jazia em frangalhos no canto da sala e a usei
para limpar a barriga de Petrova. Depois, peguei minha própria camiseta e
vesti nela. Segurei sua mão na minha e beijei a pele sensível do seu pulso,
que estava levemente vermelho e marcado pelo atrito das algemas.
— Você está bem? — quis saber, depositando um beijo casto em sua
boca inchada e me demorei mais um pouco, deslizando o nariz pelos
contornos da sua bochecha vermelhinha.
— Sim. — Ela piscou devagar e abriu um sorriso lento, o rosto
corado deixava ainda mais em evidência os pontinhos de sarda espalhados
pela face delicada. — Por que me pergunta isso toda hora?
— Porque é a única pergunta que importa. — Beijei-a novamente,
sem dar tempo para que pensasse direito sobre o assunto.
— Eu nunca tinha sido algemada. Geralmente sou eu quem faço
isso. — Ela deu uma risadinha. — Você é um homem muito imprevisível.
— Sua respiração entrecortada tocou meu rosto, deixando-me excitado
novamente.
— E você é uma gostosa do caralho! — disse, perplexo com a
dificuldade que sentia em afastar meu corpo do dela. Minha cabeça rodando
através de todos os desejos que eu ainda queria realizar com ela.
Peguei uma mecha ruiva rebelde do seu cabelo, a afastei, colocando-
a atrás da sua orelha e sorri ao olhar para ela. Petrova conseguia ficar mais
linda a cada instante, usando minha blusa que mais parecia um vestido nela,
com as maçãs do rosto coradas pelo sexo que fizemos, os lábios rosados
entreabertos e os cabelos desorganizados.
Ela era um anjo, tinha certeza. Um anjo que eu corrompi.
— E você... — Ela desceu os olhos por meu peito nu, perdida por
um momento na tatuagem de cobra que circundava meu braço e se
espalhava por metade do peito. — ... ainda não me disse o que tem ali. —
Ela apontou para a caixa metálica no meio da sala, desviando os olhos dos
meus. Estava envergonhada.
Petrova era uma nerd, gostosa e safada, mas com uma pitada de
timidez fofa.
— Certo, minha gostosa, é você quem manda. Quer ver o que tem
aqui? — Toquei a caixa, ativando sua leitura digital. O sistema foi ativado e
ela abriu em duas partes, liberando uma das armas mais foda que mantinha
guardada ali.
— Não. Nãoooooooo! — Ela pulou da mesa e foi correndo até a
arma. — Não acredito! — Levou a mão a boca e deu um saltinho, eufórica.
Sua empolgação me deixou animado. — AAAAAAAAAA, eu preciso
tocar. Preciso! — Ela balançou os dedinhos em direção a arma.
— Você sabe que arma é essa? — questionei, cuidadoso. Afinal, se
tratava de uma arma considerada absolutamente letal. Não queria que ela
me matasse sem querer.
— Tá brincando comigo? Como é que eu não ia conhecer um Sniper
Rytec? O monstro de um AS50, Snake? — Ela balançou as mãos em
direção ao Sniper e pulou no mesmo lugar, depois o encarou de perto, como
se estudasse um vírus em um microscópio. — É um rifle anti material com
desenvolvimento britânico. — Ela analisou cada detalhe da arma, do cabo à
ponta. — Calibre 12,7mm, quase 2 mil metros de alcance.
— Mil e oitocentos, para ser exato.
— Sim. SIM! — Ela mal podia respirar e vê-la ofegar por causa de
uma arma me deixou novamente duro e precisei me controlar para não
agarrá-la mais uma vez. — O que mais o fascina? Quando olha para ele...
quer dizer, é seu favorito, caso contrário, não estaria bem aqui, no centro de
tudo. E eu entendo todos os motivos, mas queria muito saber se os seus
combinam com os meus.
— Gosta dela tanto assim?
— É minha arma favorita. — Abri um sorriso, enfeitiçado por cada
palavra que ela dizia e respondi:
— A possibilidade de usar munições explosivas...
— Ou incendiárias. — Ela completou e nos encaramos por um
momento. Podia sentir as palavras que não foram ditas, pairando sobre nós.
Por mais que eu ignorasse, havia uma pergunta em meu subconsciente que
não queria se calar: Como duas almas tão diferentes combinavam tão bem?
— Gosto do Sniper Rytec porque a chance de errar com um desses é muito
pequena. Seu impacto é forte, exala poder. — Acabei sorrindo, meu coração
batendo forte.
Era fácil encontrar pessoas apaixonadas por armas no meu ramo,
mas poucas delas tinham tanto conhecimento ou amor, quanto eu via brilhar
nos olhos de Petrova.
Abri a proteção de vidro e peguei a arma do mostruário, sustentando
seu peso de pouco mais de 14 quilos. Guiei a pequena Raposa, até que ela
ficasse de frente para o espelho. Então, pousei a peça em suas mãos.
Ela entreabriu os lábios, encaixando a arma entre os braços. Apertei
a mão contra a dela, obrigando-a a segurar o cabo da arma. Petrova respirou
fundo, sustentando um sorriso radiante.
Encarei a imagem de nós dois no reflexo do espelho. Uma visão
poderosa que remexeu com tudo dentro de mim. Ela estremeceu quando
beijei a curva do seu pescoço. Seus olhos encontraram os meus e temi que
ela fosse capaz de ler meus pensamentos.
Era tolice, sim, mas para ser sincero, eu estava com medo.
Medo de que ela visse o prazer que eu experimentava naquele
momento. Do quanto me sentia entregue a ela a cada dia, porque de alguma
forma, eu tinha dado poder a Petrova, poder sobre mim. Sobre tudo que sou
e tudo que consigo controlar. Eu estava exposto, uma situação que sempre
foi perigosa para um homem como eu. E no fim das contas, Petrova sequer
confiava em mim o bastante para me dizer a verdade e aquilo começava a
doer, doer pra caralho, mas que se foda.
Contanto que ela continuasse bem aqui, debaixo da minha proteção,
eu poderia esperar. Não ia desistir, não agora que sabia que estava
encarando a minha outra metade, bem ali, no reflexo daquele espelho.
Ela empunhou a arma, ajeitando-a para vê-la melhor no espelho e
me encarou, sussurrando em um misto de choque e diversão:
— Você está sempre preparado para a guerra.
— Eu sou a guerra, Petrova. É diferente.
Você me faz querer agir como uma garota
Pintar minhas unhas e usar salto-alto
Sim, você me deixa tão nervosa
Que não consigo segurar sua mão
Heart Attack – Demi Lovato
Petrova
Ainda sentia os dedos dele em mim quando a noite caiu e comecei a
me preparar para o encontro com Sombra. Sentei-me na cadeira em frente
ao espelho do quarto que eu estava dormindo, enquanto Jasmin espalhava
todos os seus kits de maquiagens pela cama.
Tinha pedido sua ajuda para conseguir me disfarçar no meio das
pessoas que frequentavam as boates de Jack. Eu sabia me maquiar, o básico
e necessário, mas Jasmin, pelo que conversamos, era uma especialista e tê-
la aqui me dava um pouco de esperança de me parecer menos com uma
agente da lei, e mais com uma...
— Com quem tenho que me parecer para me disfarçar no meio de
uma boate que é basicamente ocupada por homens que eu gostaria de
prender?
— Talvez mais com a Alerquina do que com a sereia Ariel? —
Jasmin brincou, dando risada. — Não se preocupe, quando eu terminar,
você vai se parecer com a dona de um cartel de drogas, daquelas bem
chiques que a gente vê de vez em quando nos noticiários.
— Animador. — Demos risada.
— Onde está você... — ela disse para uma das caixas de
maquiagens. — Aqui! A milagrosa. — Encarei a base e arregalei mais os
olhos.
— Estou tão mal assim? — Ri, nervosa e a loira se aproximou.
Jasmin era tão delicada que parecia planar pelo chão, como aquelas
bonequinhas que ficavam dentro de uma caixinha de música.
— Essa base aqui não é para o rosto, querida. É para cobrir isso
aqui... — Ela apontou para um ponto no decote da minha blusa, bem no
meio do vale entre os seios, onde Snake tinha deixado a porcaria de um
hematoma.
Não conseguiria definir em palavras o nível de calor que se espalhou
por meu rosto.
— É... isso... — gaguejei toda sem graça.
— Petrova, não é como se eu não morasse com um Holder também.
— Ela tocou meu ombro, tentando me tranquilizar. — Estrela sofre o
mesmo. Eles não sabem o que significa “Não deixar marcas”. — Ela
revirou os olhos, divertida e pela primeira vez, me senti à vontade para falar
abertamente de Snake.
— Minha nossa, ele simplesmente não sabe se controlar! — Meus
pulsos ainda estavam marcados por pequenos arranhões causados pela
experiência mais louca que já tive na vida. Uma que gostaria de repetir.
— Christopher é exatamente igual. Já quis arrancar aqueles cabelos
impecáveis quando ele me deixou com um hematoma enorme bem aqui...
— Ela tocou a lateral do pescoço. — Um dia antes de uma apresentação aos
sócios da empresa do meu pai. Pensei que fosse ter uma síncope quando vi
meu pescoço no dia seguinte. É bem irritante quando não se tem a base
certa. Não se preocupe, vamos cobrir tudinho.
— É muito ruim gostar um pouco de vê-las? As marcas... — Encarei
Jasmin através do espelho e temi por um momento que ela pudesse me
julgar, mas diferente daquilo, a loira sorriu.
— Eu gosto bastante. Seria um problema se fosse ao contrário. —
Ela piscou para mim.
Sorri, tê-la ao meu lado me deixava menos nervosa.
Depois do nosso encontro na sala de armas, Snake estava
estranhamente pairando sobre mim por todos os cômodos da casa, sempre
com uma preocupação latente espreitando seus olhos. Ele estava inquieto, e
tinha quase certeza de que era pelo encontro que aconteceria naquele dia.
Jasmin espirrou alguma coisa no ar sobre o amontoado de
maquiagens e imediatamente o cheiro floral chegou até mim e crispei o
nariz. Respirando devagar, mais uma vez me sentindo enjoada. Aquela
situação já estava ficando ridiculamente fora de controle.
Os sintomas não deixavam dúvidas. Eu tinha que entrar no site do
laboratório e talvez até mesmo repetir o exame. Precisava me munir de
coragem e enfrentar aquela situação. Soltei o ar, lentamente, recuperando-
me da náusea repentina com uma certeza latente em meu coração. Qualquer
que fosse o resultado, Snake merecia saber.
Estava decidida, depois da noite de hoje, eu descobriria o resultado e
se fosse positivo, contaria a ele.
Meu coração bateu na boca com a hipótese.
Não, podia esperar um pouco mais. Estava quase abrindo o pen
drive, tinha que garantir que poderia ficar em segurança caso ele nos
expulsasse dali depois de saber o resultado.
Fechei os olhos e balancei a cabeça, estremecendo. Não, Snake
nunca faria isso. A certeza subitamente se impregnou em meu peito e
percebi que na verdade, quem estava adiando o resultado era eu. Havia um
medo desesperador congelando meus membros.
E se desse positivo? O que eu faria? O que aconteceria comigo?
Todo o pequeno mundo estável que eu construí com muita luta
estava mudando de uma hora para outra. Mais uma vez eu me encontrava
parada em uma encruzilhada, prestes a trilhar um novo caminho do zero e
ainda sem saber se estaria ou não sozinha de novo.
Tinha completa certeza de que Snake jamais me mandaria embora,
mas será que uma gravidez inesperada poderia afastá-lo de mim? Será que
me tornaria uma estranha?
— Vou transformá-la em uma Barbie Dark e quando eu terminar,
você vai estar pronta para impor moral a qualquer bandido que encontrar
por lá. — Jasmin veio saltitando pelo quarto, enquanto balançava seu rabo
de cavalo muito loiro.
— Se tratando da boate de Jack, deve haver muitos. — Afastei
aqueles pensamentos e me concentrei em Jasmin.
— Os amigos de Snake são, de fato, bem peculiares. O que me
conforta é que eles são muito leais uns aos outros, você não corre perigo
algum estando protegida pelo nome dele. — Ela começou a pentear meus
cabelos. — Snake também é muito leal — disse, de repente e nos
encaramos através do reflexo. — Quer dizer... ele é metido, desprovido de
paciência...
— Irritante... — completei e acabamos rindo juntas.
— Mas uma de suas características que mais me orgulha é a que ele
nunca abandona quem está ao seu lado. — Pisquei devagar, pensativa.
Jasmin parecia ter lido minha mente.
— Ele é confiável — eu disse por fim, e ela concordou.
— Sim, querida. Ele é, e vamos surpreendê-lo essa noite, porque eu
desconheço uma beleza exótica tão linda quanto a sua e eu vou realçá-la
com toda a sorte de sombra que tivermos à nossa disposição, agora... afaste-
se do espelho, vamos começar. — Ela virou a cadeira até que eu ficasse de
costas para o objeto.
— Caramba. Petrova! — Ela tapou a boca com a mão quando
terminou a maquiagem.
— Eu quero ver!
— NÃO! — ela gritou, agarrando-me pelos ombros. — Não se vê
uma obra de arte dessas incompleta, vamos, vista... — Ela me entregou um
vestido preto e um par de sandálias douradas de saltos baixos, porém
elegantes, graças ao bom Deus.
Peguei as duas peças e fui me vestir.
Snake
— Reforce a segurança do lugar, Jack. Não permita que ninguém
além dos seguranças entre na boate armado hoje — comecei a orientar,
mesmo ciente de que era proibido sacar armas em qualquer uma das boates
do meu amigo, uma regra pessoal dele, mas que não impedia que qualquer
um entrasse armado no lugar. — Enviei mais algumas equipes, chegarão em
minutos.
— Por que não me pediu para fechar logo de uma vez? Vai assustar
meus clientes com esse monte de guarda-costas circulando por aqui. Devo
lembrá-lo de que sua adorável companhia é quem representa um perigo
astronômico para todos nós?
— Sinto muito, foi o único jeito que consegui ter alguma calma com
esse plano maluco.
— Que seja, estou precisando de um pouco de tumulto para animar
minha noite de qualquer forma. Que venha a Coiote! — Ele suspirou,
ruidosamente e segurei um sorriso.
Agradeci e desliguei no instante em que Colin entrou correndo pela
sala.
— Ela está pronta! — anunciou, eufórico e parou ao meu lado.
Podia ouvir os saltos batendo contra o piso a cada passo que ela
dava em direção a mim. O toc toc se aproximou e me peguei prendendo a
respiração, sem me dar conta do quanto estava louco para vê-la.
Fiquei surpreso quando Jasmin apareceu na minha casa com seu
amontoado de maquiagens a pedido da Petrova. Estava feliz pelas duas se
darem tão bem, e até esperava que minha cunhada fizesse um bom trabalho,
já que ela parecia uma especialista, mas nem no quinto dos infernos eu
poderia prever a visão estarrecedora que surgiu diante de mim.
Ah, merda! Bastou olhar para ela para que todo o meu autocontrole
fosse para o inferno.
Petrova estava deslumbrante em um vestido preto justo, que descia
pelo busto em corpete de couro e se abria em uma fenda generosa, de um
tecido leve e elegante, que deixava parte das coxas grossas à mostra. Subi
os olhos pela cintura desenhada e engoli em seco quando vi os seios fartos,
levemente saltados pelo decote, escondidos em parte por algumas mechas
que desciam por seus cabelos em ondas ocres delicadas.
Contive um palavrão quando me dei conta de que mal tinha olhado
para ela e já estava duro pra caralho.
Petrova deu um passo em minha direção, os olhos verdes escondiam
certa insegurança por baixo da maquiagem escura. Ela entreabriu os lábios
tingidos de um vermelho tão poderoso quanto cada detalhe em seu corpo.
Puta que pariu, ela estava linda pra um caralho!
— Mamãe, você está maravilhosa! — Colin foi o primeiro a dizer,
enquanto eu a encarava, paralisado.
— Obrigada, querido. — Ela abriu um sorriso carinhoso para o
filhotinho de raposa, enquanto Jasmin me fuzilava com os olhos azuis e
gesticulava alguma coisa em silêncio, bem atrás de Petrova.
— ... um merda! — Pensei ter visto minha cunhada sibilar com a
fúria de um pinscher enquanto me encarava.
Um merda? Pisquei, confuso. Não fazia muito sentido.
— Sei que vocês estão com pressa, então vamos deixá-los fazer seja
lá qual confusão desejarem, Colin vai me mostrar a coleção de mangás que
ele está lendo... então, boa noite. — Jasmin se despediu e abraçou Petrova,
que a agradeceu e foi se despedir do filho, enquanto minha cunhada veio até
mim.
— O gato comeu sua língua, Snake? — Ela rosnou baixinho quando
me abraçou.
— Era isso que tentou dizer? Porque eu só entendi alguma coisa
com merda. Ai! — Ela me deu um beliscão sem me soltar do abraço. —
Diga alguma coisa para ela, não seja um merda se não quiser que eu
arranque suas bolas. Foi isso que eu quis dizer. — Contive um sorriso e
olhei para Petrova por um instante, que brilhava como uma verdadeira
princesa ao lado do filho.
— Nenhum elogio vai ser o suficiente, Jasmin — admiti e vi minha
cunhada se afastar apenas para me encarar com um sorrisinho no rosto. —
O que foi?
— Continue. Você está no caminho certo. E proteja essa mulher a
todo custo, OK? — Revirei os olhos. Era óbvio que faria aquilo.
— Jasmin? — Petrova chamou, já se aproximando.
— E que Deus te abençoe e te guarde por esse caminho
tempestuoso... — Jasmin começou a bater em meus ombros, disfarçando
nossa conversa e quase gargalhei da cena hilária, bem ciente de que minha
cunhada aproveitou a situação para me dar uns tapas.
Aquela mulher era doida, o tipo de mente variada que se encaixava
perfeitamente na minha família e a verdade era que eu gostava dela pra
caralho.
Esperei enquanto Petrova agradecia a Jasmin e me despedi de Colin,
vendo-os desaparecer juntos no corredor.
— Temos que ir. Não podemos nos atrasar, ele só tem alguns
minutos livre para nos encontrar, então... — Petrova começou a dizer
quando ficamos sozinhos, inquieta e não resisti, aproximei-me em duas
passadas assim que me vi sozinho com ela, passei a mão por sua cintura e a
puxei para mim, beijando sua boca com vontade.
— Snake, meu batom...
— Que se foda, eu preciso beijá-la, princesa. — Mordisquei o lábio
inferior e voltei a sugá-lo, penetrando a língua devagar enquanto brincava
com meu piercing em sua boca. Seu cheiro doce entrou por meus poros,
deixando-me ainda mais louco de tesão, fascínio e medo. — Como vou
conseguir manter minhas mãos longe de você, quando pareço estar diante
de um sonho? Eu não quero soltá-la.
— Então não me solte — ela cochichou e desci a mão por suas
costas, espalmando a bunda redonda. — Me segure a noite toda, eu não me
importo.
— Você é uma visão e tanto, pequena. Vamos entrar em uma cova
de leões. Espero que não se importe se eu precisar esfolar alguns
desgraçados antes do sol nascer. — Ela bateu a mão em meu ombro e
empinou o nariz, desdenhando de mim.
— Está armada? — quis saber, sem soltá-la e respirei mais aliviado
quando ela esticou a perna e mostrou o coldre escondido ao redor da sua
coxa. Apenas os homens de Jack e os meus estariam armados naquela noite,
além dela.
— Precisamos ir — ela disse e eu a encarei, inseguro pra caralho.
— Tem mesmo certeza de que quer fazer isso? Podemos dar um
jeito sem colocá-la em ação, isso pode ser perigoso. — Tentei convencê-la
usando parte da preocupação que me fez passar a noite acordado.
Ela estava sendo procurada, o que já era motivo o bastante para me
deixar alucinado de preocupação, mas agora que eu sabia da gravidez,
também estava ciente de que Petrova não era a única com quem eu devia
me preocupar.
— Não temos outra opção. Vamos conseguir, é só uma noite. —
Passei o braço ao redor da sua cintura e a puxei para um abraço.
Era só uma noite que podia me custar tudo.
— Tem um colete com o seu nome te aguardando dentro do carro,
qualquer atividade suspeita, vou enfiá-lo em você — vociferei sério, mas
ela achou graça e abriu um sorriso delicado. O batom permanecia intacto.
— Certo, Malvadão. — Ela se inclinou até pegar um sobretudo
preto que jazia sobre o sofá e o vestiu. — Eu uso o colete se tivermos
alguma suspeita, não antes disso.
Saímos da minha mansão em dez carros. James e Sullivan
conduziam o SUV que estava com Petrova e deveria admitir que, daquela
vez, estava mais temeroso do que antes por todos os fatores que tinha contra
mim. No meu ramo, a única certeza de sucesso era conhecer o território
inimigo, e aquele Sombra era uma incógnita para mim.
Petrova estava sentada ao meu lado, simplesmente deslumbrante e
distraída demais para notar que eu mal conseguia tirar os olhos dela.
— Espero que esse seu amigo não tenha um gosto tão deplorável
quanto o seu quando se trata de escolher lugares para um encontro —
reclamei, quando pegamos uma das saídas que davam acesso a uma das
principais boates de Jack.
— Ele não é tão legal assim, mas devo admitir que Sombra é sempre
bem criativo. — Ela abriu um sorriso. — Vamos nos encontrar em um
parque de diversões, perto da boate do Jack. Concordei com o lugar depois
que vi o quão prático pode ser.
— Um parque de diversões? Está maluca se pensa que vou permitir
que entre em um lugar como esse cheio de... gente — cuspi as palavras,
irritado.
— A maioria das pessoas por lá são crianças e um monte de pais
cansados e preocupados. Não representam nenhum perigo. — Arregalei os
olhos, descrente. Não era possível que ela não via a corja de coisas
provavelmente fatais que poderiam ser usadas contra ela naquele lugar.
— Já vi um homem matar o outro com a porra de um espeto de
churrasco. UM ESPETO, Petrova! Você não vai expor esse pescocinho fino
e atrevido no meio de um monte de ferros, espetos e...
— Bichinhos de pelúcia? — Ela brincou e tocou meu braço com a
mão. Imediatamente a cobri com a minha, desesperado por tocá-la.
— Não seja teimosa, escute-me, nem que seja uma única e maldita
vez.
— Então é isso que você faz na sua profissão? Prevê tudo que pode
dar errado e tenta impedir? — quis saber, inclinando-se em minha direção e
meneei um aceno concordando. — Deve ser extremamente cansativo.
— Não quando se trata de você. — Sustentei seu olhar, enquanto
suas bochechas coravam um pouco mais.
— Pedirei que Sombra me encontre no estacionamento do parque.
— Ela cedeu e senti a pressão em meu peito diminuir.
— Obrigado. — Ergui a mão e acariciei seu rosto, mais uma vez
constando o quanto aquela pequena raposa revirava tudo dentro de mim.
Chegamos no local de encontro e mapeei o estacionamento,
fechando uma ala com nossos carros, enquanto mantinha livre uma rota de
fuga caso ela se fizesse necessário. Petrova estava recostada em uma mureta
do lado oposto à entrada do estacionamento quando uma figura entrou no
lugar. O sobretudo preto era similar ao que Petrova usava, porém maior, de
um tamanho que comportasse a altura do homem, que era esguio e elegante.
Os cabelos de lado estavam impecavelmente alinhados e eu o odiei no
instante em que notei o sorriso que Petrova abriu quando o viu.
Foi como engolir uma bola de fogo.
— Abordem — pedi pelo meu ponto de comunicação e meus
homens logo o cercaram, como leões que encurralavam uma presa.
— É uma recepção muito... interessante. — Ele me encarou quando
me aproximei.
— Não vai se aproximar dela armado — avisei e ele endireitou a
postura. Os olhos escuros passaram por mim e se fixaram em um ponto as
minhas costas. Ele estava olhando para ela.
Fechei a mão em punho, controlando um tremor repentino. Mas que
porra! Novamente me sentia estranho, com algo queimando dentro do peito
só de ver como o desgraçado a encarava.
— Nunca representaria perigo para Petrova, mas se isso o deixa
mais aliviado... — Ele sacou uma Glock preta da cintura.
— A da perna também — James disse, sem muita paciência e certo
orgulho me preencheu quando Sombra hesitou, surpreso por um deles ter
notado a arma escondida.
— Então é você quem está protegendo a agente Petrova? — Ele se
aproximou depois de entregar as armas.
Percebi que éramos quase da mesma altura, e ele também parecia
possuir a mesma falta de medo da morte que eu, já que estava me encarando
como uma cobra, prestes a dar o bote. Não gostava dele. Nem um pouco.
— Sim, Petrova é minha protegida. Então é melhor se lembrar de
três coisas quando se aproximar dela: eu não conheço você, eu não confio
em você e eu nunca erro a porra de um tiro. Entendeu? — Ele abriu um
sorriso estranho e meneou um aceno.
Sombra passou do meu lado quando me afastei, andando confiante
até uma Petrova sorridente.
Que porra!
A noite mal começou e eu já estava prestes a esganar alguém.
— Winnie Petrova, como é bom revê-la — ele cumprimentou,
abrindo um sorriso. Ela olhou em minha direção por um breve momento
antes de começar a conversar com ele. Podia ouvir o que diziam e percebi
que eram amigos próximos, o que me deixou um pouco mais irritado com o
sujeito.
Meus homens estavam tensos e eu também, de olho em cada
palavra, cada sorriso, mas estava sendo bem difícil vê-lo tocar seu ombro
despretensiosamente vez ou outra. Eu queria mandar o autocontrole para o
inferno e arrancar aquela mão cheia de dedos, mas me contive até vê-lo
entregar um objeto preto nas mãos dela.
Petrova abriu mais os olhos, encantada. Podia ver como ela mexia
com ele, comigo, e com todos que colocavam os olhos nela por um instante
que fosse. Aquela mulher era como um ímã, capaz de atrair a atenção do
mundo.
Respirei fundo, tentando não degolá-lo. Jurei para mim mesmo que
me manteria quieto, como um homem civilizado que era.
E eu tentei manter aquela promessa, juro que tentei, mas não
consegui.
Petrova
Podia sentir os olhos de Snake me queimando mesmo sem olhar
para ele, enquanto Sombra gesticulava, explicando os acessos do roteador.
Os ombros largos do meu amigo mal se moviam conforme falava,
mantendo a postura sempre ereta, pronta para tudo e eu bem sabia que,
apesar de Snake ter tirado ao menos duas armas dele, Sombra não estava
totalmente à mercê do destino. Aquele era um dos seus principais traços, o
homem vivia preparado para absolutamente qualquer coisa e era lindo, sim.
Uma beleza exuberante, intensa, ainda assim, Sombra jamais poderia ser
comparado a Snake.
Olhei por um breve momento na direção de Snake. O homem nos
observava com seu olhar felino, selvagem, e aquele sim, era capaz de me
revirar de dentro para fora.
— Agradeço a ajuda, Sombra. — Balancei o roteador preto em uma
mão, sinalizando para ele. O objeto era pequeno e leve, e poderia facilmente
ser escondido em algum canto da boate de Jack, quando chegássemos lá,
que ainda assim mapearia todo o quarteirão. — Isso vai nos ajudar a tirar o
Duncan da CIA em breve, confie em mim.
— E quando foi que eu não confiei? — Ele abriu um sorriso
charmoso. — Estou contando com isso. Basta me avisar quando estiver em
posse das provas. Vai ser de um prazer imenso destronar aquele
desgraçado.
— Certo, conte com isso.
— Estou curioso. Se me permite perguntar, quem é o homem que
está me fuzilando com os olhos bem aqui atrás? — Ele me encarou, dando
mais um passo em minha direção.
— É o Snake. — Tentei conter um sorriso, ele estava mesmo
fuzilando Sombra com os olhos. Será que estava com ciúmes? — Não se
preocupe, ele aparenta ser um pouco raivoso, mas faz parte dos mocinhos.
Ainda que não se dê conta disso — sussurrei a última parte.
— E vocês são... — Ele se inclinou em minha direção, e pisquei, um
pouco confusa.
Não tínhamos um nome para o que quer que estivesse acontecendo
entre nós e não me sentia muito confortável em contar que Snake era o cara
com quem eu transava, pelo qual estava apaixonada e muito provavelmente
grávida...
Sim, era uma relação bem confusa.
— Ele é... um amigo. — Foi tudo que consegui pensar naquele
momento e Snake, que estava perto o bastante para escutar a conversa,
estreitou os olhos e me observou em um silêncio inquietante.
— Tem certeza de que está segura com esse amigo?
— Não há com o que se preocupar. — Abri um sorriso ameno.
— Por que não vem passar um tempo comigo na ilha da minha
família? É seguro e tem bastante ar puro. Sabe que posso protegê-la como
ninguém, Petrova. — Abri a boca para negar o convite mais uma vez, no
entanto, fui surpreendida quando um Snake furioso surgiu do meu lado, os
olhos azuis pareciam queimar de raiva.
— Ela não precisa da porra da sua proteção — rosnou, colocando-se
ao meu lado, encarando Sombra, que empinou o nariz.
— O que sabe sobre ela para achar que consegue protegê-la? —
Sombra estreitou os olhos. — Você não faz ideia do que Duncan é capaz,
não há lugar seguro para ela fora da rede de proteção da CIA. Ele vai
machucá-la, é só questão de tempo.
— Esse desgraçado não vai se aproximar dela.
— Por causa dos seus homens? — ele desdenhou e vi os olhos de
Snake se diminuírem um pouco mais.
— Por causa de mim. — Snake se aproximou dele, devagar como
um predador e eles se encararam até quase tocarem os narizes, envoltos em
uma energia pesada, carregada de raiva e ego masculino. — Se me
conhecesse, agente, não teria dúvida alguma, mas pode me encarar e tentar
a sorte. Por que não verifica do que sou capaz se acha que consegue lidar
com isso?
— Vai atirar em um homem desarmado?
— Não é bem o meu estilo, mas esmagar sua faringe é uma opção
muito mais justa, ao meu ver — Snake disse, tranquilo de um jeito
preocupante e Sombra hesitou por um momento. — A diferença da
proteção da CIA e da minha é que estou disposto a tudo, absolutamente
tudo para protegê-la, e vai descobrir que diferente de vocês, que se
intitulam homens da lei, estou pouco me fodendo para as regras que terei
que quebrar para mantê-la segura. Petrova é minha prioridade.
— Pelo amor de Deus, dá pra vocês dois abaixarem os bicos, ou vão
começar uma briga de galos no meio desse estacionamento? Não temos
tempo para isso — reclamei, me enfiando no meio dos dois.
— Espero que seja capaz de cumprir sua palavra. — Sombra olhou
dentro dos olhos de Snake por mais um instante e se virou para Petrova. —
Sabe que pode me ligar quando quiser. Estarei na região pelos próximos
dias. Não hesite em me pedir ajuda se precisar e espero ter sido útil.
— E foi. Obrigada, Sombra. — Lancei um olhar duro para Snake,
que revirou os olhos, e dei um abraço rápido em Sombra.
— Por que agiu como se fosse uma criança? — questionei, assim
que Sombra se afastou.
— Aquele idiota insiste em tentar te levar para longe de mim. — Ele
bufou e encarou o parque de diversões que ficava na lateral do
estacionamento.
— Pensei que queria se ver livre de todos nós. Tanto eu... quanto...
— Parei de falar bruscamente, quando uma onda de náusea paralisou meus
membros.
Ah, meu Deus, não.
Não agora. Não hoje!
Tentei conter a súbita vontade de vomitar e puxei o ar com força.
Apoiei-me na mureta, imediatamente sendo amparada pela mão firme de
Snake.
— Você está pálida, Petrova! — ele disse alarmado e cercou meu
rosto com ambas as mãos.
— Está tudo bem. — Respirei devagar, não queria preocupá-lo. —
Eu só fiquei...
— Enjoada? — ele completou e por algum motivo meu coração
acelerou.
E se ele tivesse notado os sintomas? Eu não podia negar, a cada dia
que passava eu tinha mais certeza e menos dúvida do motivo pelo qual
estava atrasada, enjoada e extremamente sensível. Ainda que só conseguisse
negar.
— S-sim. Como sabia? — Encarei-o, confusa.
— Você também ficou pálida quando vomitou aquele dia. Vamos
para casa, abordamos a boate depois.
— Não! Estou bem, Snake. — Reuni todas as minhas forças e
agarrei o braço dele.
— Não, não está! — ele vociferou, bravo e me encarou bem de
perto. — Você está gelada, Petrova.
— Eu só preciso de um minuto. Só um... por favor. Custamos a
chegar até aqui, não me peça para voltar agora, tudo depende disso. — Toda
a minha liberdade estava atrelada ao sucesso daquela missão e ele sabia
daquilo tanto quanto eu.
Snake bufou, irritado e passou as mãos pelos cabelos,
desarrumando-os. Engoli em seco, mais uma vez apaixonada pela visão que
ele era, vestindo uma calça social preta, uma blusa sem botões da mesma
cor, com apenas uma corrente prata grossa pendendo sobre a gola, e um
paletó completando o look sombrio que combinava com a aura que ele
transmitia, realçando as tatuagens espalhadas por sua pele.
Suspirei, inconformada.
Como tudo nele combinava perfeitamente daquele jeito? Snake era o
Bad Boy mais gostoso que já vi.
— O que me diz? — insisti.
— Você é uma raposa teimosa e irritante, sabia? — Olhei para ele e
me aconcheguei em seu peito, puxando-o para um abraço quando notei que
ele concordou em continuarmos com o plano.
Snake não demorou a cercar minha cintura com um dos braços e
enfiou o rosto na curva do meu pescoço, inspirando fundo.
— Por que não consegue confiar em mim? — sussurrou, o tom de
voz triste me pegou de surpresa.
— Eu confio! — Afastei-me do abraço para olhá-lo nos olhos. —
Que tipo de pergunta é essa, é óbvio que eu confio em você.
— Claro que sim. — Ele estreitou os lábios e o desapontamento em
seus olhos era tão forte que me fez estremecer.
— O que está acontecendo, Cedric? — Snake estava mais instável
do que de costume e eu sentia que havia alguma equação inacabada bem
diante dos meus olhos. Estava perdendo alguma coisa.
Ele desviou os olhos por um instante e quando voltou a me encarar,
parecia diferente. Como se tivesse varrido todo tipo de problema para
debaixo do tapete.
— Só estou preocupado. Então, por favor, tome cuidado, Petrova.
Eu preciso que fique bem e segura.
— Vou ficar.
Eu prometi, sem saber se conseguiria cumprir.
Snake permaneceu em silêncio durante todo o caminho, vez ou outra
sentia seus olhos sobre mim, como se me analisasse em busca de algo.
Chegamos na boate do Jack alguns minutos depois. Abri a porta do
carro, prestes a descer, quando Snake segurou a maçaneta e a fechou
novamente.
— Espera. — Ele segurou meu braço e me encarou, apreensivo. —
Quero que ouça com atenção. Lá dentro vai estar lotado, Jack está passando
por uma época bem agitada. Quero que fique ao meu lado, caminhe com
atenção e em hipótese alguma se aproxime demais de ninguém. — Ele
começou a criar uma lista enorme de precauções, orientando a entrada na
boate de forma segura.
— Entendi, é o lance de grudar no seu pé e tudo mais. — Revirei os
olhos, provocando-o. — Não se preocupe, eu vou me misturar no meio dos
manos! — Joguei os braços para frente como se estivesse dançando algum
Hip Hop.
— Dos manos? Mas que porra... — Mordi os lábios segurando a
gargalhada que subiu por minha garganta quando vi o semblante apavorado
que tomou o rosto do Snake. — Ah, que se foda. Sullivan, me dá o colete!
— Ele se virou para o rapaz que estava sentado no banco da frente e o
entregou um colete preto.
— Eu não vou usar isso! — Apontei para o objeto em suas mãos.
— Vai sim. Você não vai sair por aí sem nenhuma proteção
adicional. — Ele rosnou, respirando com dificuldade. Estreitei os olhos,
analisando-o com cuidado.
As pupilas dilatadas, mãos inquietas, respiração instável. Snake
parecia estar à beira de uma crise de ansiedade.
— Cedric, não preciso de colete, nós já temos a sua equipe e os
homens de Jack. Além disso, você está aqui comigo. O que pode acontecer?
Vai dar tudo certo. — Segurei sua mão. — Caso não se lembre, eu sou boa
em disfarces. Ou quase...
— Um quase muito variante! — ele praguejou alguns palavrões e
passou a mão no rosto, soltando o ar em jatos. — Tudo bem, nós entramos
se você prometer que vai se manter longe de problemas.
— Eu prometo. — Cravei os dentes nos lábios quando ele me
encarou de perto, sondando meu rosto. — Sem problemas, sem confusão.
— Certo, então vamos começar.
A boate estava abarrotada de gente, mas era impressionante como
cada turma tinha encontrado o seu lugar, de forma que não se misturavam.
O lugar era bem-organizado e ambientado. Sua fachada consumia quase um
quarteirão e todas as entradas eram vigiadas. Parei em frente ao
monumento.
— Foi aqui que nos conhecemos — sussurrei quando Snake colou o
corpo ao meu lado. — Já faz mais de dois anos.
— Parece que foi ontem que você quase quebrou meu nariz. — Dei
risada e Snake enlaçou minha cintura com possessão. — Não saia de perto
de mim, nem por um segundo que seja — ele repetiu e eu concordei.
Entramos na boate com uma equipe de seguranças atrás de nós, que
se disfarçavam entre as pessoas ao redor, mas eu sabia que tinha um número
muito maior que aquele infiltrado na boate para nos manter em segurança.
Podia sentir o olhar das pessoas queimando minhas costas conforme
adentrávamos o lugar. Snake era um monumento, lindo, com aquele olhar
arredio e bravo, sem medo de encarar qualquer pessoa. Ele chamava
atenção, e naquele momento não havia uma mulher sequer que não
estivesse olhando para ele de alguma forma.
— Vejam só se não é um dia admiravelmente especial. — Jack Kane
surgiu do meio da boate como um leão caminhando em seu território. Podia
sentir a aura de poder que ele emanava conforme abria espaço até nós. As
pessoas o observavam com o mesmo medo e respeito com o qual
encaravam Snake. — Seja bem-vinda à minha boate, Petrova. Espero que
nosso encontro não resulte em nenhuma fratura. Não quero quebrar o braço,
de novo! — Ele quase rosnou no final da frase.
— Então não me assuste perto de uma escada se não pretende sair
rolando por ela. — Abri um sorriso para o homem elegante.
— Que coisinha mais atrevida... — Ele crispou o nariz.
— Jack — Snake chamou e a risada que deu não camuflou o tom de
aviso. — Vamos manter a paz, só por hoje.
— Unidos por um mal maior, não é mesmo? — O gângster revirou
os olhos e passou as mãos pelo terno marrom muito chique.
— Jack, eu realmente sinto muito por ter quebrado seu braço
daquela vez. Eu só me assustei e não pensei direito. — Dei de ombros,
estava sendo sincera.
— Realmente não era uma ideia genial quebrar o braço do dono da
região, ainda mais sendo uma policial infiltrada — ele sussurrou e
estremeci com a hipótese do que poderia ter acontecido naquele dia. —
Mas, você tinha bons contatos te defendendo. — Ele olhou para Snake e o
fuzilou com os olhos. Quase ri da implicância dos dois.
Jack era o melhor amigo de Snake, e eu até gostava dele, quando me
esquecia das suas particularidades criminais.
— Obrigada por colaborar, prometo que não causarei nenhum
problema, mas preciso conhecer cada canto da sua boate à procura do sinal.
Existe um ponto perfeito aqui dentro em algum lugar, um que vai me
possibilitar instalar o roteador e rastrear qualquer pessoa dentro de um raio
de ação.
— Tudo em prol de descobrir quem é o corajoso que está invadindo
minha boate para nos investigar. Fique à vontade. Snake vai te mostrar tudo,
ele conhece todos os cantos deste lugar. Estarei logo atrás de vocês com
Lamar. — Percebi que Snake meneou um aceno, em agradecimento e me
dei conta de que talvez Jack estava se juntando a nós pessoalmente para
aumentar a minha segurança.
Agradeci mais uma vez e enfiei a mão por baixo do meu sobretudo.
Snake me abraçou, ajudando-me a camuflar o roteador do Sombra e o ativei
no celular, mapeando a boate.
— Pronto, criei um mapa no celular, vai me ajudar a encontrar o
melhor ponto da boate para implementar o roteador.
Olhei para o alto, onde um jogo de luzes recaía sobre o lugar
deixando todo o breu da noite salpicado de cores vibrantes.
A boate de Jack era muito conhecida e popular, atraía todo tipo de
gente acostumada à penumbra Dark que aquelas paredes emanavam, mas
nenhum deles se destacava como Snake, que parecia pertencer àquele lugar,
como se suas origens tivessem nascido bem ali.
O homem caminhava devagar atrás de mim, vez ou outra
cumprimentando alguém, e percebi que as pessoas evitavam se aproximar
de nós. Olhei sobre o ombro e vi que seus olhos de gato varriam todos os
movimentos ao nosso redor, impedindo que qualquer pessoa se
aproximasse. Jack e Lamar, seu braço direito, criaram um triângulo atrás
dele, de modo que abríamos caminho conforme caminhávamos.
— Vamos entrar no setor VIP, o caminho vai se estreitar e
provavelmente passaremos ao lado de outras pessoas, fique atrás de mim —
Snake avisou quando passamos por um corredor escuro, iluminado por
algumas luzes Neon.
O lugar era cheio de portas, a maioria estava fechada, mas ficava
difícil diagnosticar qualquer coisa porque o fluxo de pessoas aumentou de
uma só vez. Homens e mulheres começaram a vir ao nosso encontro.
Foquei minha atenção na tela do celular, seguindo cegamente o GPS, afinal,
se não me concentrasse, poderíamos acabar ficando ali a noite toda.
Não demorou muito até surgir um ponto de conexão viável e quanto
mais nos aproximávamos do lugar, melhor o sinal ficava. Abri um sorriso,
tão feliz por estar me aproximando do ponto de ação que mal me dei conta
de que tinha feito uma pequena curva.
— Oras... — Ergui a cabeça quando o fluxo de pessoas passando
pelo corredor simplesmente parou e arregalei os olhos. De alguma forma eu
me distraí com o mapa e entrei em um dos cômodos daquele corredor
estranho. Sem Snake. Sem Jack. Sem ninguém. — Ah, meu Deus!
As pessoas ainda passavam do lado de fora, distraídas demais
naquela escuridão para me notar ali e o sinal piscava cada vez mais forte. O
ponto ficava em algum canto daquela sala esquisita.
Tudo bem, só precisaria de um ou dois minutos para localizar o
ponto preciso e marcá-lo no mapa. Depois poderia encontrar Snake com
calma e retornar àquele lugar sem ter que revirar a boate de cabeça para
baixo de novo. Encostei a porta e comecei a vasculhar o cômodo.
Dei alguns passos pelo local, que não tinha nada mais além de um
sofá de couro de canto a canto. Um que por sinal, parecia estar entre o
ponto final e eu. Crispei os lábios, ciente de que teria que passar por cima
dele para rastrear o sinal com precisão. Subi no sofá, tentando não imaginar
as coisas que já aconteceram ali e me empoleirei bem atrás dele. Apoiei
meu corpo na pilastra e estiquei o braço até ficar na beiradinha do sofá.
— AAAAAA! — gritei animada quando o sinal do roteador fez a
leitura completa dos sinais que transitavam a boate no instante que foi
ativado.
Era ali.
Mal consegui pensar direito sobre aquela pequena vitória quando a
porta do cômodo abriu em um rompante.
— Entre, rápido! — Dois homens e uma mulher passaram por ela e
eu me encolhi ainda mais atrás da pilastra, já colocando a mão sobre a
arma, pronta para reagir quando um deles, o maior, que era coberto por
piercings e tatuagens e se assemelhava a um parente distante do bicho
papão agarrou a mulher pela cintura, o outro sujeito chegou por trás e eles
começaram a se beijar. Um a boca, o outro o pescoço, enquanto agarrava os
seios da moça que parecia cada vez mais animada.
Puta que pariu! Afastei a mão da arma e quase enfartei quando os
dois começaram a arrancar as blusas e se jogaram no sofá com a moça, sem
se dar conta da minha presença bem ali, pairando sobre eles.
Meu Deus do céu e agora?
Devia ficar em silêncio e presenciar o sexo alheio como uma
pervertida, ou saía daqui e arriscava trocar tiro com dois mafiosos?
Nem mesmo tive tempo de escolher, o pequeno e até então indefeso
salto que eu usava escorregou na beirada do sofá.
— Ai, merda! — gritei e rolei pelo encosto, passei por cima dos três
até aterrissar de bunda no chão.
Desejei fingir um desmaio, tamanha vergonha, mas as coisas saíram
de controle assim que o grandão colocou os olhos em mim.
— Mas que porra é essa? — O mais baixinho dos dois me encarou
como se estivesse diante de um fantasma.
— Isso não estava combinado, não era para ter ninguém além de
nós! — A moça esbravejou e se levantou rápido, tapando o rosto com as
mãos para que eu não a visse. Parecia esconder algo, talvez fosse casada,
vai saber.
Mal pisquei e ela saiu correndo em direção a porta no instante em
que um dos seus companheiros se levantou puto da vida.
— Caralho, quem é você? Estava nos espionando, sua desgraçada?
— Levantei-me em um salto quando vi o homem vindo para cima de mim
como um rinoceronte. Me virei para fugir atrás da moça, mas ele agarrou
meu braço e conseguiu me puxar, senti um tapa ardido no rosto no instante
em que me virei na direção dele. — Vai aprender que não se deve espionar
um homem como eu, sua filha da puta.
Ergui os olhos para ele e levei a mão ao rosto. Queimando de ódio.
Havia poucas coisas que me tiravam do sério, bater no meu rosto era uma
delas.
Snake
Levar Petrova à boate de Jack era uma ideia que não me deixava
confortável. Sabia que podia confiar nos homens que trabalhavam para meu
amigo, mas eram tantas variantes dentro de um lugar cheio e escuro como
aquele que estava receoso, temendo que algo desse errado.
Soltei o ar em uma rajada, apoiando a mão na arma em minha
cintura, enquanto tentava me acalmar. Ficaria tudo bem se a mantivesse sob
meus olhos.
Olhei para trás, para conferir como Petrova estava e senti minha
alma sair do corpo quando vi apenas um vão muito escuro entre Jack e eu,
que vinha um pouco atrás de nós.
— Cadê ela, porra? — inquiri, o tom de voz alto revelava o pânico
em que me encontrava.
— Estava bem na sua frente. Não me diga que a perdeu de vista? —
Jack se aproximou com Lamar em sua cola.
— Eu pedi que ela ficasse atrás de mim e na sua frente, caralho. —
Passei as mãos nos cabelos.
— Vamos achá-la. Lamar, mande fechar todas as saídas, ninguém
entra, ninguém sai até encontrarmos a Coiote — ele ordenou, enquanto eu
fazia o mesmo no meu ponto de comunicação, espalhando meus guarda-
costas pela boate.
— Sim, senhor — Lamar respondeu e desapareceu no corredor
escuro.
— Ela não deve ter ido muito longe. — Jack olhou ao redor.
— Petrova! PETROVA! — Comecei a chamá-la, tentando ignorar a
dor pungente que se fixava em minha garganta e começava a me sufocar.
Desviei das pessoas pelo caminho, a cabeça rodando, uma série de
coisas absurdas começaram a preencher minha mente e foi quando me dei
conta de que jamais me perdoaria se ela se machucasse. Agarrei meu amigo
pelas abas do paletó que ele usava.
— Jack, temos que encontrá-la, nem que eu tenha que quebrar cada
parede desse lugar.
— Vamos achá-la sem necessitar de tamanha destruição. — Meu
amigo apoiou a mão em meu ombro. — Ninguém vai sair daqui até que
encontremos sua mulher, Snake. — Meneei um aceno, concordando e Jack,
que possuía uma chave mestra do lugar, começou a abrir as portas do
corredor, desculpando-se vez ou outra pela invasão, enquanto eu me
encarregava de conferir as portas abertas, quando de repente, uma das
portas se escancarou com um baque tão forte que partiu a madeira no
caminho.
— Caralho! — Jack gritou e olhei para a cena por um segundo,
tentando acreditar no que meus olhos viam.
Petrova estava montada nas costas de um homem, as pernas
transpassavam a cintura do cara e ela o tinha bem preso em um mata-leão,
enquanto ele tentava se libertar, o rosto vermelho também estava sujo de
sangue e ele parecia prestes a apagar, enquanto minha mulher se mantinha
irredutível, como um puma agarrado à presa, mas nada daquilo importou.
Quando eu o vi jogá-la contra a parede, na tentativa de se livrar do mata-
leão, todo o meu corpo começou a formigar e fiquei cego de fúria.
— Que droga, vou ter que enterrar um corpo hoje! — Ouvi Jack
murmurar, antes de avançar contra aquele filho de uma puta, desgraçado,
cão vira-lata do inferno.
Agarrei a traqueia do maldito e apertei, metendo uma joelhada no
seu estômago. Ele perdeu as forças por um breve momento, onde agarrei
Petrova pela cintura e a puxei das costas dele.
— Seu babaca! — ela gritou, esperneando na tentativa de alcançar o
sujeito. Segurei seus ombros e varri seu rosto com os olhos. Petrova estava
agitada, suada e descabelada, mas foi a marca vermelha em seu rosto que
tomou minha mente e fez meu sangue esquentar.
— Você bateu nela! — rosnei, baixo e me virei para o sujeito que
resfolegava, mas logo aprumou a postura e me encarou.
— Eu bati nela? Olha o que essa vagabunda fez! — Ele apontou
para dentro do quarto, onde outro homem, igualmente sem camisa jazia
apagado no chão com metade do rosto sangrando.
— Foi você quem começou. Quer bater, então é melhor saber
apanhar! — Petrova retrucou, pulando, nervosa ao extremo.
— Vou ensinar a vadia a não se meter onde não foi chamada, e não
vai ser você que vai me impedir.
— Ih, certeza de que esse sujeito é novo aqui — alguém cochichou
e outra pessoa completou em um suspiro:
— Coitado, tão novo...
— Essa puta do caralho! — O maldito avançou na direção de
Petrova e eu esperei, com um sorriso começando a erguer meus lábios.
Tombei minha cabeça de lado. Ia ser divertido vê-lo sangrar.
Empurrei Petrova para Jack, que a agarrou pelos ombros e me voltei para o
maldito.
Ele tocou nela.
Desviei do primeiro soco que ele jogou para cima de mim.
Bateu nela.
Esquivei de mais um e quando tentou me acertar de novo, segurei
seu pulso e o puxei para perto de mim, subitamente. Ele arregalou os olhos
quando o encarei de perto.
— Você bateu na minha mulher grávida — disse calmo, baixo e abri
um sorriso quando vi seus olhos se arregalando. — Eu. Vou. Te. Matar. E é
bem compreensível, não é mesmo? — Trinquei os dentes.
Meti uma cabeçada no meio da cara do desgraçado e emendei um
chute no seu estômago. Ele tonteou e urrou levando a mão ao nariz, mas
não parei. Não podia, ele tinha que pagar.
Apenas pare de chorar
Vai ficar tudo bem