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Proposta pedagdgica e autonomia da escola* Expositor: José Mario Pires Azanha™* lag “Um homem demonstra sua racionalidade, néo pela adesdo a idéias firas, procedimentos esteriotipados ou conceitos imutaveis, ‘mas pela maneira e nas ocasides em que muda essas idéias, procedimentos ¢ conceitos.” (S. Toulmin) Em primeiro lugar gostaria de agradecer a oportunidade de falar a um audité- rio tao qualificado. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Dr. Fabio Luiz Ai- dar, Diretor Regional do SENAI, ao Dr. Felicio Castellano, Superintendente do SESI e ao professor Carlos Roberto Jamil Cury, membro do Conselho Nacional de Educagio, onde preside a Camara de Educagao Basica. Queria também fazer uma referéncia a0 professor Cordao, Presidente do Conselho Estadual da Educacéio. 0 meu tema é “A Proposta Pedagégica € a Autonomia da Escola”. Claro que j4 andei escrevendo algu- mas coisas sobre essa questio € de certo modo, em alguns pontos, eu retomo essas idéias j4 expendidas em outras circunstdncias. De certo modo nao vou me estender tanto sobre a Lei em si, mas sobre pontos em que essa questo, da autonomia pedagé- gica ¢ da autonomia da escola e da proposta pedagégica, colocam para nés professo- res, diretores e educadores de um modo geral. E claro que, por ser um homem da es- cola piiblica desde muito tempo carrego, sempre que trato de questdes educacionais, esse vezo de alguém formado na escola piblica e que sempre trabalhou na escola pi- blica. Embora os senhores sejam na maioria vinculados & rede do SESI ¢ do SENAI, grande parte dos senhores seguramente tem as suas ligacdes, ou teve as suas ligacdes com a escola publica. E depois, ha ainda uma justificagdo. Eu tive a honra, o privilé- gio de trabalhar durante algum tempo com o Dr. Carlos Pasquale que foi Diretor Re- gional do SENAL. Antes disso ele foi Diretor Geral do Instituto Nacional de Estudos Pedagégicos, o INEP, Durante a sua passagem nesse Instituto, em dois projetos que 0 +A LDB utiliza as expressoes proposta pedagégica e projeto pedagdgico como sindnimas. Assim também fem procedido 0 Conselho Estadwal de Educagéio de SAo Paulo em documentos oficiais. Posto isso, man- feve-se esse entendimento neste trabalho, ainda que na linguagem corrente haja situagdes nas quais a equivaléncia entre as expressdes seria discutivel. * Consetheiro ¢ ex-Presidente do Conselho Estadual de Educagdo de Séo Paulo € Professor da Universidade de Sao Paulo. 32 INEP desenvolveu, eu tive essa honra de trabalhar com ele, ele que tinha um eleva~ do espirito publico, sempre dizia que educagio é uma fungio publica, de modo que, meSmo quando a educacdo € ministrada por entidades privadas, ou outras entidades, como o SESI, 0 SENAI e 0 SENAC que nao sao, em rigor, privadas, ela tem sempre significado publico, seja quem for que a ministre. A palestra esta dividida em varios t6picos. No primeiro procura-se fazer um rapido exame da questao da autonomia an- tes da LDB. Notas preliminares 1 - Em 1932, foi dado a piiblico um documento que se tornou famoso e ficou conhecido como “Manifesto dos Pioneiros da Educaco Nova”. £ um texto longo di- tigido ao povo e ao governo, que contém nao apenas uma discussto de alguns aspec- tos da educacdo em geral, mas que também pretende estabelecer um roteiro para a “reconstrugio educacional do Brasil”. 0 redator foi Fernando de Azevedo, mas os sig- natarios foram, além do autor, mais vinte e cinco homens e mulheres de alta expres- sdo na vida nacional, dentre os quais, vale destacar, os grandes educadores Anisio Teixeira, Sampaio Doria, Lourenso Filho ¢ Almeida Junior. Esse documento teve uma continuada repercusstio na educagao brasileira em geral ¢ na educagao paulista em particular, durante pelo menos trinta anos. Se percor- rermos suas dezenas de paginas ainda ser possivel encontrar algumas andlises que nao perderam valor e, até mesmo, a indicacdo de algumas solugdes interessantes de problemas educacionais que permanecem até hoje. Contudo, outros eram os tempos € outra a mentalidade. No longo documento a palavra “autonomia” aparece duas ou trés vezes e apenas para indicar a conveniéncia de que, além das verbas orgamentari- as, fosse constituido um fundo especial destinado exclusivamente a atender empreen- dimentos educacionais que assim ficariam a salvo de injungdes estranhas & questio educacional. 2~ Em 1933, 0 mesmo Fernando de Azevedo redigiu um outro documento, o “Codigo da Educagdo do Estado de Séo Paulo” (Decreto n® 5.884, de 21 de abril de 1933) que reorganizava todo o sistema de ensino do Estado. Na sua abrangéncia in- cluia desde a organizagio administrativa pedagdgica das escolas rurais isoladas até 1 Na verdade, esse € 0 subtitulo do documento “A Reconstrugdo Educacional no Brasil”, publicado em 1932 pela Companhia Editora Nacional. Este pardgrafo ¢ os quatro seguintes jd figuraram no artigo “Autonomia da escola, um reerame”, de nossa autoria. a das escolas de formacio do professor primario e do professor secundario. Além dis- so, 0 Cédigo também dispés sobre a organizagao administrativa e técnica do antigo Departamento da Educagdo, tnico orgio a cuidar das questées educacionais no Esta~ do na €poca. Contudo, nos seus quase mil artigos (992), 0 Codigo, em uma unica vez, disse que 0 professor deveria ter “autonomia didatica dentro das normas técnicas ge- rais indicadas pela pedagogia contemporanea” (art. 239). Sobre a autonomia da pré- pria escola nenhuma referencia. 3 - Em tempos mais recentes, as Leis de Diretrizes e Bases da Educagado Naci- onal (Lei n® 4024/61 e Lei n* 5.692/71), embora sem usarem a palavra “autonomia”, fixaram a norma de que cada estabelecimento, ptiblico ou particular, deveria organi- - zar-se por meio de regimento proprio. Na Lei n® 4.024 essa norma estava no art. 43 que foi revogado pela Lei n? 5.692/71 mas que manteve no seu corpo a norma do re- gimento proprio. Neste rapido esbogo pode-se perceber que, desde o “Manifesto dos Pioneiros da Educagéo Nova" até a Lei n® 5.692/71, 0 uso da palavra “autonomia” foi escasso nos documentos educacionais e, em nenhum momento, teve um significado que fosse mobilizador do magistério ¢ indicative de uma direg4o na solugao de problemas edu- cacionais. Até mesmo a norma do regimento proprio de cada escola que a Lei n* 5.692/71 manteve no paragrafo tinico do seu Art. 2° foi, na pratica, cancelada nos ar- tigos 70 e 81, nos quais se permitiu a adogao de regimento tnico pelas administragdes de sistemas de ensino. E esse cancelamento efetivamente ocorreu no Estado de Sao Paulo, tanto no nivel do municipio como no do Estado, onde foram instituidos regi- mentos comuns para as respectivas redes escolares. Ainda em Sio Paulo, em 1.983, um texto oficial da Secretaria Estadual de Educagao? focalizou, pela primeira vez, a questo da autonomia de maneira direta e com muita énfase. Nesse documento, que foi sobretudo uma convocacao do magistério para uma ampla discussao de alguns problemas educacionais, a questio da autonomia apareceu também entrelagada com a do regimento préprio, mas nao se confundindo com ele. Alias, este € um ponto muito importante que, quando € perdido de vista, dé ao pro- blema da autonomia uma solugio simplista que esvazia de interesse educativo a pré- pria exigéncia de autonomia. A partir de entao, o problema da autonomia tem apare- cido cada vez com mais freqiiéncia nos documentos oficiais sem, contudo, significati- 2 Documento preliminar para a Reorientagao das Atividades da Secretaria, Secretaria de Estado da Educacdo, So Paulo, 1983. Nossa autoria. 34 vas conseqiiéncias praticas. Como se pode ver, 0 tema da autonomia desde 0 Manifesto dos Pioneiros, sempre mereceu escassa atengaio e quando havia alguma, ela néo ultrapassava o nivel de uma reivindicacio de maior liberdade regimental. No maximo, reivindicava-se maior liberdade dos professores com relacao ao diretor e da escola com relagao a ou- tras instancias administrativas. Mas, afinal de contas, liberdade para qué? Esta, que é a questo essencial, nao tem sido suficientemente examinada nem respondida. No en- tanto, so a resposta clara a essa questéo poderd situd-la nos seus devidos termos, ja que a autonomia da escola apenas ganha importancia se significar autonomia da ta~ refa educativa. Se assim nao for, o assunto se reduz a uma mera questo regimental E claro que regimentos escolares s4o importantes para a organizagao e disciplina de otinas escolares, mas nao podemos confundir autonomia da escola com a existéncia de um regimento proprio. Alids, regimento escolar € apenas uma condigao adminis- trativa para as tarefas essenciais da escola, entendidas como a elaboragao e a execu- cdo de um projeto pedagdgico. E um projeto, como disse Castoriadis, é a “intengéio de transformagao do real guiada por uma representacao do sentido dessa transformagao € levando em conta as condigdes dessa realidade”. ‘A questo da autonomia na nova LDB Com relacdo a esse tema, a Lei n® 9.394/96 representa um extraordindrio pro- gresso, j4 que pela primeira vez autonomia escolar € projeto pedagdgico aparecem vinculados num texto legal. O Art. 12 (inciso I} estabelece como incumbéncia primor- dial da escola a elaboracdo e execugdo de sua proposta pedagégica, e os artigos 13 (inciso I) e 14 (incisos I € Il) estabelecem que essa propost ou projeto é uma tarefa coletiva, na qual devem colaborar professores, outros profissionais da educagao € as comunidades escolar € local. Além dessas referéncias explicitas sobre a necessidade que cada escola elabo- re € execute o seu préprio projeto pedagégico, a nova Lei retomou no Art. 3* (inciso Il), como principio de toda educagao nacional, a exigéncia de “pluralismo de idéias de concepgées pedagégicas” que, embora ja figure na Constituigao Federal (Art. 205, inciso Ill), nem sempre é lembrado € obedecido. A relevancia desse principio esta jus- tamente no fato de que ele € a traduco no nivel escolar do proprio fundamento da convivéncia democritica que & a aceitagio das diferengas. Porque o simples fato de 35 que cada escola, no exercicio de sua autonomia, elabore e execute o seu proprio pro- jeto escolar nao elimina 0 risco de supresstio das divergéncias ¢ nem mesmo a pos bilidade de que existam praticas escolares continuamente frustradoras de uma autén- tica educagio para a democracia. Na verdade, a autonomia escolar desligada dos pres- supostos éticos da tarefa educativa podera até favorecer a emergéncia ¢ o reforgo de sentimentos € atitudes contrarios & convivéncia democratic, ‘A autonomia da escola numa sociedade que se pretenda democratica é, sobre- tudo, a possibilidade de ter uma compreensao propria das metas da tarefa educativa numa democracia. Sem essa possibilidade, nao ha como falar em ‘a do professor e em ética da escola, e sem isso, a autonomia deixa de ser uma condigao de liberdade e pode até ser facilitadora da opressdo. Sem liberdade de escolha, professores e escolas sao simples executores de ordens e ficam despojados de uma responsabilidade ética pelo trabalho educativo. Nesse caso, professores e escolas seriam meros prestadores de servico de ensino, de quem se pode exigir ¢ obter eficiéncia mas que nao respondem eticamente pelos resultados de suas atividades. Como se vé, o tema da autonomia esco- lar é extremamente complexo ja que, em seu nome, é possivel também criar condigdes para a edificago de um ambiente autoritario ¢ opressivo resguardado por um regimen- to proprio. F claro que essa possibilidade é maior em estabelecimentos isolados do que naqueles que integram uma rede, pois neste caso, mesmo quando ha regimentos pro- prios, sempre ha um minimo de diretrizes e de normas externas de acompanhamento, garantidoras de que a autonomia nao favoreca o isolamento eventualmente indesejavel do ponto de vista dos valores mais amplos de uma sociedade democratica. E a partir desse quadro, em que se mesclam possibilidades negativas e positi- vas, que pretendemos adiantar algumas consideragdes sobre a questéo da autonomia no que diz respeito ao projeto pedagdgico. 0 projeto pedagdgico na escola publica A questo da autonomia escolar e de seu desdobramento num projeto peda- gégico é, como um problema, tipico da escola publica que, a nao ser em rarissimas excecées, integra uma rede de escolas e, por isso, esté sempre sujeita a interferéncias de drgaos extemos responsiveis pela organizagio, administragdo e controle da rede escolar. Essa situago nao é, em si mesma, negativa, mas freqiientemente acaba sen- do, porque érgaos centrais, com maior ou menor amplitude, tendem a desconhecer a 36 peculiaridade de distintas situagdes escolares e decidem e orientam como se todas as unidades fossem idénticas ou muito semelhantes. A conseqiiéncia mais dbvia e inde- sejavel de tentativas de homogeneizagao daquilo que ¢ substantivamente heterogéneo € 0 fato de que as escolas ficam ou sentem-se desoneradas da responsabilidade pelo éxito do seu proprio trabalho, ja que ele ¢ continuamente objeto de interferéncias ex- ternas, pois ainda que essas interferéncias sejam bem intencionadas nao levam em conta que a instituigao “escola publica” é uma diversidade, e nao é uma unidade. E ai que reside um grave problema da escola publica e € para resolvé-lo que se reivindica a autonomia do estabelecimento na elaboragao e execugaio do projeto escolar proprio. Hoje, a propria Lei reconhece o problema ¢ indica a solugao genérica, mas na sua implementacao o problema pode reviver e até se agravar pelo risco de que 6rgaos da administragdo entendam que convém estabelecer normas, prazos e especifi- cagdes para que as escolas cumpram uma nova exigéncia legal: a do projeto pedagé- fico. Se isso acontecer — ¢ o risco sempre existe — aquilo que poderia ser um cami- nho para a melhoria do ensino piblico transforma-se em mais uma inutil exigéncia burocratica de papelada a ser preenchida 0 projeto pedagdgico da escola ¢ apenas uma oportunidade para que algumas coisas acontegam, e dentre elas o seguinte: tomada de consciéncia dos principais pro- blemas da escola, das possibilidades de solugdo e definig&o das responsabilidades co- letivas ¢ pessoais para eliminar ou atenuar as falhas detectadas. Nada mais, porém isso é muito e muito dificil. 1 - Nao obstante a insistente ¢ cansativa retérica sobre a necessidade do tra- balho participative e a imposicéo de orgaos escolares que retnem professores, pais € alunos, nao ha, geralmente, a tradicdio de um esforco coletivo para discutir, analisar e buscar solugdes no ambito da escolas. Cada vez ha mais reunides e cada vez elas sao menos produtivas. Sem querer simplificar o problema, temos a conviccao de que uma das variaveis mais relevantes para compreender as raz6es das dificuldades de um tra- balho escolar coletivo na nossa tradicao, esté na prépria formacao do professor, espe- cialmente, tal como ¢ feita nos cursos de licenciatura, desde a sua criagdo. Esses cursos foram organizados a partir de uma concepgio do trabalho do- cente, como se este consistisse simplesmente em ensinar alguma coisa para alguém. Para realizar com éxito essa tarefa, o futuro professor — um meio especialista em al- guma disciplina ~ aprende algumas nocdes de didatica geral e especial, de psicologia da aprendizagem e de legislacdo. A parte pratica da formacio 6, supostamente, com- pletada por estagios junto a um professor da disciplina em questéo. No fundo, essa 37 formacdo pressupde que o professor sera um preceptor que devera ensinar algo a al- guém numa relaco individualizada. Nao se trata de fazer uma caricatura, mas de propor uma hipotese, a de que nossos cursos de licenciatura ainda nao conseguiram focalizar a relagao educativa no ambiente em que ela realmente ocorre, isto é, na sala de aula que, por sua vez, integra-se numa escola. 0 chamado “processo ensino/apren- dizagem” por exemplo, é uma abstracao. O professor individual que ensina ¢ o aluno individual que aprende sao ficgdes. Seres tao imaginarios como aqueles a que se refe- rem expressdes como “homo oeconomicus” ou “aluno médio” ou “sujeito epistémico” e outras semelhantes. Nao se trata de por em diivida a necessidade tedrica e pratica de expressoes estatisticas ou abstratas, mas da utilidade que elas possam ter para orientar praticas de ensino muito pouco conhecidas que ocorrem em situagdes escolares muito diferen- tes. Por exemplo, é muito freqiiente ouvir-se que houve uma deterioracao da escola pliblica a partir de sua maciga expansio nos ultimos trinta anos. Essa alegacéio apa- rentemente banal e simples, tem contudo uma pressuposicao altamente discutivel e provavelmente falsa. Trata-se da idéia de que havia uma instituig&o social chamada “escola publica” que cumpria a contento certas fungées sociais e que, agora, essa mes- ma institui¢do esta malogrando com relacdo a essas mesmas fungdes. Em resumo: pressupée-se que as entidades, “escola publica de trinta anos atrds” e “escola publi de hoje” sejam a mesma instituiga0, que antes cumpria bem suas fungdes e agora nao. Foucault aconselhava a desconfiar das continuidades histéricas. Seguindo esse conselho, poderiamos perguntar: de que critérios dispomos para afirmar a identi- dade funcional entre a escola de ontem ¢ a escola de hoje? Nenhum, a nao ser que in- conscientemente comparemos uma institui¢do social com um organismo que, com 0 tempo, envelhece ou degenera. De um vegetal ou um animal, podemos dizer que com © tempo eles envelhecem ou degeneram e que esse proces 0 pode ser acelerado ou re- tardado por condig6es internas ou externas. Mas instituigdes sociais nao sao organi mos, ¢ é muito discutivel considerd-las metaforicamente, como tais. Sem nenhuma diivida, a instituicdo escolar de ontem é diferente da instituigao escolar de hoje, mu- dou a clientela, mudaram os professores, mudaram praticas escolares etc, Mudaram também valores, condigées sociais, politicas, econdmicas etc. Quando ignoramos esse quadro amplo de mudangas ¢ afirmamos que, a escola se deteriorou e que a causa foi a expanstio de matriculas, estamos apenas fazendo um lance retérico que ndo avanca nem um pouco a compreensio das mudangas ocorridas. Na escola de ontem, o professor ¢ seus poucos alunos tinham a mesma extra- 38 ¢4o social e partilhavam valores e maneiras de viver. Cabia ai, talvez, entender, até certo ponto, a funcao docente & semelhanga de uma preceptoria. Alis, numa perspec- tiva histérica, pode-se dizer que o preceptorado foi a atividade fundadora da docéncia escolar tal como ela se consolidou. Na antiga Grécia, os sofistas foram na verdade os primeiros professores, no sentido em que até hoje entendemos a profissao’. Eles nao eram investigadores da verdade, mas antes “homens de oficio, cujo éxito comercial comprovava o valor intrinseco € a eficdcia social” de seu ensino. Mediante um paga- mento, por vezes elevado, eles ensinavam grupos de jovens numa relago de “precep- torado coletivo”, conforme a expresso de Marrou. Essa relacdo pedagégica preceptorial desde sua origem foi uma relagao edu- cativa de elite, refluindo a cada expansio da escola onde a relagao era outra. Ao lon- go dos séculos, cada vez mais, a presenca do preceptor foi sendo distintiva de casas reais, nobreza, grande burguesia € outros afortunados. J4 no fim do século passado, H. Durand dizia que o preceptorado é “um assunto mais vasto do que parece, ele diz respeito inteiramente ao problema da escolha entre a educago particular e a educa- do publica”, isto é, entre educagao de elite e educago popular. Hoje, a prépria instituigo da preceptoria desapareceu como instituigéo edu- c iva, mas nao sem deixar vestigios na pedagogia, nas teorias da aprendizagem ¢ na propria concepgio do professor. De qualquer modo, seria ocioso comparar em termos de eficiéncia, praticas preceptoriais com praticas escolares. Tratam-se de elementos proprios de relagdes pedagégicas que tiveram origem em situagdes sociais distintas nas quais prevaleciam concepgdes de educacao diferentes’. No entanto, até hoje a concepgao do professor, principalmente do licenciado, ¢ tributaria dos ideais educati- vos associados a figura e ao papel do preceptor. . Por isso, talvez, é que continuamos a insistir numa formagao docente precep- torial na qual além do dominio da disciplina a ensinar, prevalece uma visio psicolé- gica do educando. Mesmo os elementos didaticos que se associam a essa formacao sdo condicionados por essa visio. Contudo, sabemos que nisso reside, talvez, uma di- ficuldade séria para que esse professor, supostamente preparado para um trabalho de ensino individualizado, compreenda que a tarefa educativa da escola tem desafios que 3 Sécrates, Platdo, Aristételes ¢ seus epigonos tiveram discipulos ¢ ndo propriamente alunos. A Academia ¢ 0 Liceu cram antes “confrarias filosdficas” do que escola. Cf. Marrou, H.I. Histoire de V'édu- cation dans l'Antiquieté, Editions du Seuil, 2.* edigdo, 1948, Paris, p.496. 4 Idem, ibidem, p85. 5 Durand, H. “Precepteur” - in Nouveau Dicionnaire de Pédagogie, (org) Buisson, F., Librairie Hachette, 1914, Paris, p. 1676. 6 Marrou, op. cit, p. 63 ¢ p. 204. 39 ultrapassam os limites de ensino e aprendizagem de disciplinas. Voltando ao ponto de partida, a escola piiblica é uma instituiga0 social muito especifica com uma tarefa de ensino eminentemente social que, por isso mesmo, exigi- ria um esforgo coletivo para enfrentar com éxito as suas dificuldades porque essas difi- culdades so antes institucionais que de cada professor. Mas, de fato, o que se tem, é um conjunto de professores preparados bem ou mal, para um desempenho individuali- zado € que, por isso, resistem & idéia de que os préprios objetivos escolares sio sécio- culturais € que até mesmo 0 éxito no ensino de uma disciplina isolada, deve ser aferido em termos da fungao social da escola. Esse impasse foi claramente sintetizado por Gus- dorf quando disse que o professor de latim precisa compreender que antes de ser proz fessor de latim cle precisa ser professor, isto ¢, ele € membro de uma comunidade esco- lar com objetivos ¢ um aleance social que vao além do ensino de qualquer disciplina 2 - Tentamos mostrar que, em geral, a formagao do licenciado, que se faz a partir da idéia de que o bom professor é aquele capaz de ensinar bem a disciplina de sua escolha. Como vimos, isso porém nao basta. Nao é raro encontrar-se um bom cor- po de professores numa escola ruim., Contudo, para melhorar as escolas consideradas tuins a Administragao Publica, em todos os niveis, tem investido substancialmente no aperfeigoamento do pessoal docente. a) E claro que essas iniciativas sao interessantes porque traduzem uma preocu- pacdo com o aperfeigoamento do magistério ¢ com a melhoria da qualidade do ensino. Contudo, ha pontos que merecem alguns reparos. Tentaremos fazer esses reparos pela proposicao de algumas perguntas. Ser que 0 aperfeigoamento do pessoal docente, em exercicio, deve ser feito pela freqiiéncia a cursos? Na verdade, a resposta a essa ques- tio exige uma qualificagao prévia. Se os objetivos desses cursos forem a modificacdo da propria pratica docente, a resposta mais adequada sera, provavelmente, nao. Por al- gumas razées. A eventual melhoria das pratic: docentes exigiria um adequado conhe- cimento dessas proprias praticas € das condigdes em que elas ocorrem, E este conheci- mento raramente ¢ disponivel para os especialistas que ministram os cursos, simples- mente porque o assunto nao tem sido objeto de suficientes pesquisas sistematicas ¢ continuadas. Como melhorar praticas que sio em grande parte desconhecidas? E claro que, em alguns casos, 0 longo tirocinio do especialista, que ministra 0 curso podera permitir suprir precariamente um inexistente conhecimento sistematico, Mas, uma po- litica de aperfeigoamento de pessoal ndo pode depender de tais eventualidades’. 7 Este pardgrafo jd figurou no artigo “Comentarios sobre a formacao do professor em Sao Paulo”, de nossa autoria. 40 b) Outra pergunta, outro reparo. 0 que hé de comum entre os professores de uma mesma disciplina, mas de diferentes escolas, que so reunidos em dezenas ou centenas para serem aperfeicoados? 0 simples fato de que lecionam a mesma discipli- na, nao significa que tenham as mesmas dificuldades e que enfrentem os mesmos problemas. Na verdade, os esforgos de aperfeigoamento do magistério usualmente re- petem e eventualmente agra yam os equivocos jé presentes na formagio académica, ignorando que a entidade que deve ser visada é a escola € nao o professor isolado. Voltemos brevemente a esse ponto. 0 professor que ensina numa escola é um profissi- onal sui generis. Diferentemente de outras situagées profissionais 0 exercicio da pro- fissdo de ensinar sé é possivel no quadro institucional da escola. 0 fato eventual de que se ensine particularmente fora da escola nao € relevante para caracterizar 0 pro- fessor. Qualquer especialista numa disciplina poderia fazer isso. No caso do médico ou do advogado, por exemplo, a situagao é diferente. Esses profissionais podem exercer a sua profissao tanto particularmente como num quadro institucional, e essas diferentes perspectivas profissionais sao levadas em conta na respectiva formacao. E possivel que um professor isolado se aperfeigoe no conhecimento de sua disciplina mas n&o enquanto professor de uma dada escola. Neste tiltimo caso, 0 aper- feigoamento do professor precisa ocorrer no quadro institucional em que ele trabalha, Ja que as dificuldades do seu trabalho de ensino apenas eventualmente so metodolé- gicas ou didéticas. Nao fosse assim, no se compreenderia que o bom professor numa escola seja mau numa outra e vice-versa. No entanto, isso é freqiiente. Enfim, a melhoria do ensino é sempre uma questdo institucional ¢ uma institui- do social como € a escola, é mais do que a simples reuniao de professores, diretor e ou- tros profissionais. A escola, ou melhor, o mundo escolar é uma entidade coletiva, situa~ da num certo contexto, com priticas, convicgdes, saberes que se entrelacam numa his- toria propria em permanente mudanga. Esse mundo € um conjunto de vinculos sociais frutos da aceitacéio ou da rejei¢do a uma multiplicidade de valores pessoais e sociais. A idéia de um projeto pedagégico, visando a melhoria desse mundo com rela~ do as suas praticas especificas, sera uma ficgdo burocratica se nao for fruto da cons- ciéncia e do esforgo da coletividade escolar. Por isso, € ela, a escola, que precisa ser assistida e orientada sistematicamente e seus membros temporarios, os professores nao devem ser aperfeigoados abstratamente para o ensino da sua disciplina, mas para a tarefa coletiva do projeto escolar. a Consideragdes finais Berger ¢ Luckmann disseram, no livro A contrugdo social da realidade, que a integragao interna de uma instituicao social depende em grande parte do “conheci- mento primario” que os seus membros tém a respeito da propria instituigdo. Por “co- nhecimento primario” eles se referem as praticas, num sentido amplo, que se tradu- zem nas rotinas, nos saberes, nas crengas € nos valores que impregnam as relagdes sociais e definem papéis ¢ expectativas no quadro institucional’ Essas idéias so importantes para o que nos interessa neste trabalho, porque o projeto pedagégico ¢, no fundo, um esforgo de integragéo da escola num propésito educative comum, a partir da identificagdo das praticas vigentes na situagao instituci- onal. Nao apenas as praticas estritamente de ensino, mas também todas aquelas que permeiam a convivéncia escolar ¢ comunitaria. E de todo esse universo de “praticas discursivas” e “nao discursivas” que € preciso tomar consciéncia para compatibil las com os valores de uma educagao democratica. Num projeto pedagégico tudo é relevante na teia das relacdes escolares, por- que todas elas sio potencialmente educativas ou deseducativas. Ensinar bem, por exemplo, no é apenas ensinar eficientemente uma disciplina, mas é também o éxito em integrar esse ensino aos ideais educativos da escola. Enfim, o importante é a moti- vagao € 0 empenho comum numa reflexao institucionalmente abrangente e o firme propésito de alterar praticas nos sentidos indicados por essa reflexao. Para isso, nao ha formulas prontas e convém nao esperar auxilio de uma inexistente “ciéncia dos projetos” ou de roteiros burocratizados. Elaborar 0 projeto pedagdgico ¢ um exercicio de autonomia. 8 Berger, P. € Luckmann, T. - A construgdo social da realidade, trad. de F. de Souza Fernandes, Vozes, Petropolis, 5* edigio, 1983, p. 77 e passim. 2 Debate perguntas dirigidas a José Mario Pires Azanha Pergunta de Maria José, do SESI P Um Regimento Escolar Comum a um sistema, apenas em pontos genéricos, ainda assim, comprometeria 0 projeto educacional da unidade escolar? R Nao, eu acho que um regimento escolar é uma pega fundamental numa es- cola, tanto no caso desse regimento ser um regimento proprio como no caso de ser um regimento comum a uma rede, devendo apenas ser um esforco de disciplina de ro- tinas.escolares. 0 mais, no regimento, a sua dimensio pedagdgica, deve ser fruto de projetos especificos, trabalhos especificos e de um globalizado projeto da propria es- cola. Agora, 0 ideal é que um regimento nao desca a minticias ¢ nao seja um elemen- to de embaraco, mas um elemento facilitador. . Pergunta de Aniete Ribeiro Avila, do SESI: P Pressupde-se que “as escolas piiblicas de trinta anos atris ¢ as de hoje sao as mesmas, s6 que as de hoje deixaram de cumprir seus objetivos". 0 senhor acredita que as escolas tornaram-se desinteressantes € desinteressadas tanto para os alunos quanto para os professores? Ha falta de uma politica educacional séria? R Eu acho que a escola de trinta anos atrés € a escola de hoje sao escolas di- ferentes, so instituigdes diferentes. Quando eu fiz a referéncia a essa diferenca foi exatamente no sentido de que nds temos o vezo de dar as nossas opinides a partir de uma impressdo que temos. Entdo todos nés que freqiientamos escolas em outros mo- mentos, em outros tempos, de modo geral, costumamos dizei ‘ah, antigamente a es- cola publica realmente era uma escola diferente, de alto nivel, hoje é uma escola dete- riorada, etc”. Nao, nés temos escolas diferentes, quer dizer, a escola de trinta, quaren- ta anos atrds era, na verdade, uma escola publica privatizada porque ela servia a uma elite, a uma elite econémica, a uma elite social. A entrada na escola publica antes de 1967 € 1968, principalmente a entrada de um aluno no gindsio da escola ptiblica, era uma proeza extremamente dificil, mais dificil que o proprio vestibular para as univer- sidades. Entdo aquela escola publica permitia até, entre alunos e professores, uma re- lagdo preceptorial. Essa escola publica desapareceu. Hoje nds temos uma escola piibli- ca com uma outra clientela, com outro corpo docente, com outras tarefas. Ha excelen- tes escolas ptiblicas e escolas piiblicas ruins, Mas, € bom frizar que temos excelentes B escolas publicas, isto é, instituigées em que professores e diretores, ¢ a propria comu- nidade, conseguem pensar a tarefa da escola como uma tarefa comum, a ser enfrenta~ da por um esforgo coletivo. E possivel construir uma escola boa, uma escola que real- mente realize as suas fungées. Ainda ha pouco tempo, eu ouvi uma palestra de uma professora da Faculdade de Educacao, que hd quinze anos vem estudando a questao da violéncia, na escola. E ela fez uma referéncia que € interessante. Ela falou na Co- hab Tiradentes que se situa no extremo da zona leste, Essa Cohab tem 60.000 habi- tantes. Dentro dela hé oito escolas e algumas dessas escolas tém sido, continuamente, objeto de depredagdes. Num dos casos houve até o incéndio da prépria escola. Mas ha duas escolas que nao tém nem muros. Elas tém jardim! Entdo, vejam bem, nés dize- mos: “nao, 0 problema da violéncia na escola é um problema geral, é um problema de seguranca geral, é um problema social, como as condicdes de desemprego etc. etc’ Alids, € muito comum que nés desqualifiquemos os problemas especificos da escola, remetendo a uma situago geral. E ha duas escolas dentre as oito dessa Cohab que nunca foram depredadas. Blas nao tém nem grades, elas tém jardins, e tudo corre mui- to bem. F essas duas escolas, ndo por acaso, s2o duas escolas que realmente tém um projeto pedagdgico feito pelo grupo de professores e pelo grupo da comunidade. Eles tentam melhorar o nivel do ensino da escola a partir desse esforgo conjunto. Quando se fala em projeto pedagdgico é costume pensar-se que daqui ha pouco nés teremos uma nova ciéncia, a ciéncia dos projetos. Isso nao existe. A idéia do projeto é de que a propria escola seja capaz de dar um balango nos seus problemas, nas suas dificulda- des e saber de que forma ela pode se organizar ou requerer ajuda externa para vencer esses problemas. Pergunta de Margarida, Orientadora Técnica do SESI: P Diante do trabalho sistematico e individualista dos professores que compo- em 0 corpo docente da instituico, durante tanto tempo, como poderiamos propor um caminho para o trabalho coletivo e a quebra desta sistematizacio? R A propria Lei, conforme os senhores viram naquela breve introdugao que fiz, faz uma referencia explicita a questéo da autonomia, além da vinculacéo dessa autonomia como condigao de um projeto pedagégico ou proposta pedagégica. Eu es~ tou usando as duas expressdes como sindnimas e acho que a propria Lei cria uma condigéo que nés precisamos agora aproveitar. Este € o ponto, isto é, aproveitar, uma eventual reformulacdo das préprias condigdes de formagao do professor, principal- mente do licenciado e das condigdes de aperfeicoamento do professor. E claro que é “4 possivel melhorar. A administragao publica, desde o nivel federal até o nivel estadual € municipal, tem gasto anualmente centenas de milhdes de reais em projetos de aper- feigoamento. Mas esses projetos de aperfeigoamento, como eu disse, tendem a eterni- zar 0 trabalho individual do professor. 0 aperfeigoamento do professor é pensado como se nés devéssemos dar a esse professor, eventualmente, uma melhoria de co- nhecimento na sua propria area. Em segundo lugar, novas técnicas, novas idéias, no~ vas didaticas. Quer dizer, pensa-se que esse professor € um individuo que trabalha isoladamente, e nao é, Se nés reunfssemos cer professores de matematica de diferen- tes escolas, esses professores, provavelmente, teriam muito poucos problemas em co- mum no seu trabalho. Ensinar numa escola € diferente de ensinar um individuo numa relagdo pessoal, numa relacdo individual, Esse quadro escolar, esse quadro institucio~ nal é fundamental que seja considerado tanto na formagéo quanto no processo de aperfeigoamento. A Faculdade de Educac&o, ha alguns anos atrés, desenvolveu duran- te dois anos um projeto em colaboracao com a CENP, que consistiu no seguinte: pro- fessores da faculdade iam até a escola e, junto com o conjunto dos professores, discu- tiam os problemas da escola. A idéia era de que a propria escola, enquanto uma uni- dade escolar, pudesse ser assistida no seu conjunto. Eventualmente, talvez haja a ne- cessidade de um curso ou de outro, ou para um grupo ou outro, mas, na verdade, a escola tem que ser assistida nessa tarefa. Nés nao temos, até historicamente pelas condigées da nossa formasao, a tradig4o do trabalho coletivo. Falamos muito em tra- balho coletivo, em trabalho participativo, trabalho em equipe, mas nao faz parte da nossa tradigao. De um modo geral, nés detestamos reuniées, por qué? Porque a reuni- 4o tornou-se um tipo de procedimento quase sempre improdutivo, porque nao esta- mos habituados a isso. Ora, o professor ¢ formado dentro de uma idéia que descarta esse trabalho coletivo. Ele é formado como um individuo e, eventualmente, seria um excelente preceptor em pequenas escolas onde o professor conhece todos os alunos e a familia dos alunos. E possivel que o professor desenvolva esse preceptorado, mas num outro quadro, que ndo € mais o mesmo. E se nds continuarmos a tirar esses pro- fessores das suas escolas € a leva-los para assistir cursos, que poderdo ser excelentes, poderdo representar um aperfeicoamento pessoal, no entanto, sera que isso vai resul- tar numa melhoria da escola? Nao. 0 professor isolado é uma entidade abstrata, a tunica entidade concreta ¢ a escola, ela tem enderego, ela tem paredes, ela existe. E se as escolas sao diferentes, de onde eu parto para mudar a pratica desses professores? Eu nao sei, e quem disser que sabe nao est falando sério. A escola € a entidade que tem uma historia, que tem uma cultura prépria, que tem vinculos sociais que sao dife- 5 rentes ¢, tanto tem, que é a escola, ainda, com todos os seus defeitos, com todas as suas mazelas, que consegue criar condicdes para que os novos professores, as vezes, esquecam um pouco daquele saber tedrico que aprenderam nas faculdades e entrem naquele saber escolar que foi desenvolvido batendo a cabega lutando com as situa~ ses concretas do ensino Questao de José Aloisio Frediani, do Centro Educacional 242, de Vinhedo Como melhorar a formacao dos professores se as instituigdes que os for- mam impdem resisténcias as mudangas? R Nao € que as instituigdes impdem resisténcias. Acho que a mudanga sem- pre encontra resisténcias. Entdo, € preciso repensar a formagio do professor, disso nao haa menor diivida. Nés estamos formando o professor segundo as mesmas concepgd- es de ha trinta, quarenta, cingiienta anos atras. As mudangas que tém aparecido sio irrelevantes. E sempre aquela idéia de que é o bacharel ou o quase bacharel nesta area ou naquela area, um especialista aqui ou ali, ao qual se ensina um pouco de psicolo- gia, um pouco de didatica, alguma coisa de legislacao e, depois, a pratica de ensino. A propria idéia de prética de ensino é uma idéia que nos oferece um desafio. 0 que € pratica de ensino? O que significa exigir pratica de ensino do licenciando? Ele vai para a escola e fica na escola dez, vinte, trinta, cem horas, € isto? Como € que esta pratica se desenvolve? Como é que é este estagio dele na escola? E problema de soltar © professor, o aluno numa escola? E isto, a pratica? A Lei, inclusive, faz um aumento significativo do niimero de horas da pratica de ensino, mas é preciso que se repense 0 proprio conceito de pratica de ensino. 0 que € essa pratica de ensino? Por que quando um médico faz residéncia médica nés somos capazes de saber o que ele estd apren- dendo 14? Aquele trabalho ¢ acompanhado. Quando um advogado faz um estagio no forum, ou no escritdrio, nds temos condigao de saber que tarefas séo colocadas e como se desenvolve esse aprendizado. Bom, neste quadro, serd que nds nao poderia~ mos pensar a pratica de ensino, néo mais em termos de tarefas individuais? Por que nao pensar a pratica de ensino, em termos de tarefas coletivas, junto a uma determi- nada escola? Por que, ao invés de mandar dois, trés ou quatro professores isolada- mente, cada um para um lado, para fazer o tal estagio, fessores que, com um responsdvel da propria faculdade, passem a acompanhar o tra- balho de uma escola para o esforco de elaboragao de uma proposta pedagégica? Acho que esse é 0 esforco que, realmente, é desafiante em termos da nova Lei. Entao, ve- reunimos grupos de pro- jam, o problema nao é apenas de reformar um curso de licenciatura, tirando uma dis- 46 ciplina e colocando outra. E de nds repensarmos certos ingredientes desse préprio curso, Pergunta de Daniel Kroder Hammoud, Consultor da UNESCO/ME P Os dirigentes educacionais que se situam na escala intermediaria da hierar- quia educacional (diretores, supervisores, orientadores) nao se constituiriam na ins- tancia privilegiada para operar a mudanga de valores proposta pela nova LDB no in- terior da escola? R Eu acho, indiscutivelmente, principalmente o diretor e 0 supervisor, ele- mentos-chave, essenciais em qualquer processo de alteragao, de reformulacao, de mu- danga, de praticas e de padrées. A propésito dessa pergunta, vejam como nos tltimos anos, de trinta anos pra cd, tarefas que eram tipicamente do prdprio professor, foram se desdobrando e dando origem as habilitagdes. Temos hoje o coordenador pedagégi- co, 0 coordenador de area, o orientador educacional, etc., ou seja, uma série de habili- tages de profissionais da educacdo que representa, no fundo, uma consciéncia, ainda que muito pouco clara, de que o professor nao est4 mais dando conta de tarefas de que ele dava conta antigamente. Nao estou querendo discutir 0 assunto em termos das préprias profissdes que se constituiram e se consolidaram, mas é claro que a tare- fa educativa envolve uma multiplicidade de aspectos que nao sao s6 apenas os do en- sino. Quer dizer, todos nés somos capazes de lembrar de professores que eram para nés uma referéncia, no apenas em termos de ensinar isto ou aquilo, mas em termos até morais, de influéncia, de possibilidade de nos aconselhar numa certa situagao. En- to, a tarefa do professor, cada vez mais, esta ficando limitada & aplicagio de uma certa metodologia. Estamos despojando o professor daquele sentido educativo amplo que o seu prdprio trabalho tinha, e que era possivel numa situag4o que mudou. 0 pro- blema nao € de lamentar — “que pena, que saudade daquela escola” — no, o proble- ma nao € este, o problema é que a escola que nds temos, nds temos que mudé-la e, essa escola, é uma escola que mudou num sentido visivel. Ela mudou porque ampliou a sua capacidade de atendimento. E nés ndo vamos construir nenhuma cidadania, ne- nhuma democracia, se no houver escola para todos. Pergunta de Mirian, do SESI: P De que forma a capacitagdo ou “reciclagem” dos professores pode ser feita de forma a impedir o carter abstrato ¢ os rangos da formacao académica tecnocrata? R Bom, cu tenho a impressio que, de certo modo, ja respondi esta questo. a Acho que € 0 esforgo sistematico, tomar como entidade a escola e tentar reunir pro- fessores em toro dessa entidade. Nés temos que fazer um esforgo no conhecimento da escola. Isso nao significa que € para ensinar mais sociologia. Se a conseqiiéncia do que eu estou falando fosse isso, eu me arrependeria amargamente. 0 problema € 0 se- guinte: nds temos que pensar que a entidade a ser melhorada € a escola. Nés temos que reformular nossa propria concep¢ao de pratica de ensino, reformular a nossa pré- pria concepcao do papel do professor. Nao podemos pensar no bom professor como sendo aquele capaz de ensinar bem a sua disciplina, nao! E preciso ser mais do que isso. E aquilo que Gusdorf falava: antes de professor de matematica ou de latim ele é professor. Se ele ndo conseguir entender isto, ele ¢ um especialista em latim, é um es- pecialista em matematica e em nada mais. Acho que é sé isso [ESP_ CIESP. SESI SENAI IRS O que Muda na Educacao Brasileira com a Nova Lei de Diretrizes e Bases? Promogao - FIESP, SESIISP e SENAI/SP

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