Você está na página 1de 8
Otranstorno do eee Teo) eee etree na infancia. Mas cada Sean eee ot Roe ea Pe tcicomcr! Peat eteatirs tem Prorat Cones id Pee eee ice 4% obem-estar. 4 - Lae oe rer) eae seen eee Sear Pee nse eee er) J rate aay 8 Sacer: DESDE PEQUENO, o designer Salem Gi- ovate suspeitava que era diferente das ‘utras criangas, Na escola, passava mais tempo como espectador dos colegas do que participando das brincadeiras. Sua diversio era observar insetosecolecionar besourtos mortos ~ascarcacas, guardadas ‘mum potinho de margarina,fizeram com que a diretora do colégio chamasse sua ‘mie para uma conversa: ela disse que 0 hobby assustava o resto da turma ‘Aos 5 anos, Salem jé frequentava ses- sdes de psicoterapia. Fiz varios testes que mediam minhas competéncias e habilidades, mas nenhum resultado chamou atengio da psicéloga’,relembra ‘Mesmo assim, as dividas persistiram ~ eas dificuldades no convivio social -avam ainda mais nitidas. “Para mim, no é facil fazer e manter novas ami- zades, Se as conversas nao sio diretas, 6 dificil entender. Custei a perceber metéforas e sarcasmo” Hi dois anos, uma crise de depress uma suspeita de TDAH (Transtorno do Deficit de Atengao com Hiperatvi dade) levaram Salem a procurar psiquia- tras, até chegar a um diagndstico mais preciso. Apds uma bateria de consultas equestionzrios, a resposta veio: aos 31 anos, descobriu que ¢ autista Nao foi exatamente uma surprese. Por me identificar com as descrig6es sobre autismo, eu até considerei esse diagnds- tico ainda na adolescéncia, conta. "Mas desencanei final, depois de tantos anos, alguém com certeza jé teria detectado” 52 suren ourueno 2022 Essa histéria nao ¢ um caso isolado. Na verdade, ilustra um fenémeno re- cente: adultos descobrindo tardiamente que possuem alguma forma de autismo ~ condigao cujos diagnésticos costumam acontecer, em média, os 3 anos deidade. Quem sio essas pessoas? Em geral, adultos que, na infancia, nao tiveram aacesso a profissionais de satide que en- tendessem da questio. So também pais deecriangasautistas que, ao acompanhar de perto 0 caso dos fills, percebem se- ‘melhangas no prdprio comportamento.e vo atrds de respostas. Ou ainda aqueles diagnosticados com outros distirbios rmentais (ansiedade, depressio, TDAH) ‘ojos tratamentos nunca deram resultado. Mas, afinal, como o diagndstico ¢ feito? Para termos uma boa resposta, © primeiro passo é entender como funciona o cérebro autista - € 0 que caracteriza essa condigio. zr Papo-cabega Nao hi rede de comunicagio mais com- plexa que o cérebro humano: s30 100 bilhdes de neurénios,e cada uma dessas células esta ligada a pelo menos outras 10 mil. Elas se comunicam por meio das sinapses ~ pequenas fendas entre os neurdnios por onde os neurotransmis- sores trafegam. Estima-se que trilho delas existam dentro da nossa cabera. ‘Aiesté a chave para comegar a en- tender o cérebro, seja o autista, seja © nao-autista. Embora nao haja uma causa tinica para a condigio, a cigncia sabe que as alteracées esto ligadas, so- bretudo, a estrutura de comunicacio entre os neurénios. Um estudo da Universidade de Co- lumbia apontou que autistas parecem terum niimero maior de sinapses. Mas isso nao significa que a comunicagio seja mais efetiva, Durante a infancia, o [Ambientes com ‘mult estimutos sensorial, como festas, podem ser esconfortivels para autistas. ‘éebro podal conexdes entre neurGnios para que suas dreas possam desenvolver fungdes especificas — e nao se atrapa- Them com oexcesso de estimulos. Essa ‘otimizagao parece nao acontecer plena- ‘mente no oérebro autista - e pode estar por trds de algumas de suas caracteristi- ‘2s, como ahipersensibilidade sensorial Asalteragdes se concentram no cé tex cerebral, a regiao mais externa do rg, E uma fina camada de quatro rilimetros, que funciona como 0 nosso “cérebro social” ~ ele lida com as emo- ges, linguagem e a percepeao. E por isso que autistas apresentam déficits de comunicagao, como as dificuldades em estabelecer uma conversa, manter contato visual, compreenderlinguagem nao verbal e outras sutilezas, ‘Outro elemento-chave do autismo é © comportamento. Fazem parte dessa seara de caracteristicas a aversdo a mu- dangas na rotina, sensibilidade a esti mulos sensoriais e interesses restritos muitos autistas desenvolvem hiperfoco em determinados assuntos ou objetos. Como os besouros de Salem Gikovate. Hoje, a ciéncia sabe que as alteragies do cérebro autista nao se restringem a0 cOrtex — ha registros, por exemplo, de mudangas no cerebelo, regiao respon- savel pelas nossas atividades motoras Data tendéncia, nos casos mais graves, amovimentos repetitivos (as chamadas estereotipias, que podem ser motoras ou da fala. Nao sé: as dreas onde ha diferencas no mimero de sinapses variam de pessoa para pessoa. E por isso que o autismo é uma condicao heterogénea ~ as caracte- risticas podem se manifestar de diversas formas (e intensidades). E nao € preciso ‘ter todas elas para receber o diagnéstic. O espectro autista A diversidade entre os casos fez.com que, partir dos anos 1990, a ideia da exis- ‘ncia de um “espectroautist’ ganhasse forca. A psiquiatra inglesa Lorna Wing, foia primeiraa defender que nio deveria existir uma régua tinica que reduzisse diferentes manifestacdes de autismoa Pessoas com TEA tem dificuldade em ‘compreender gestor ‘outros aspectos da Uinguagem corporal uum diagndstico fixo. Ou seja, que ha- via diversos graus de intensidade para a condigao. Mas foi sé em 2013 que a nomenclatura mudou oficialmente para Transtorno do Espectro Autista (TEA) ~ ano em que a Associacio Americana de Psiquiatria publicou a quinta edigdo do Manual de Diagnéstico e Estaistico de Transtornos Mentais (DSM-5), maior referéncia da area, Desde entio, varios outros distrbios passarama ficar sob o guarda-chuva do TEA. E 0 caso da sindrome de Asper- ger, nome que no é mais usado (e nao 86 pela reclassificagao do DSM-5: em 2018, historiadores descobriram que —> ‘ourvaKo 2022 suPKn 53 © psiquiatra austriaco Hans Asperger identificava criangas com deficiéncia para serem estudadas ~ e mortas ~ ee eee pelos nazistas). ree eae eet re oer ag (Rtas Gassificars0 itis plo DSM eee tree eter tae Giz respeito 2o suporte necessério. SA0 trés niveis: no primeiro, esto pessoas do espectro autista que precisam de ‘pouco ou nenhum apoio no dia a dia; ‘no nivel 2, ajuda intermediria; jé no nivel 3 estao aqueles que demandam cuidado constante. ‘A maior parte dos adultos que rece- bem o diagnéstico de autismo integra nivel a, cujas caracteristicas ligadas a0 TEA sé serio percebidas de fato por profissionais bem treinados. "Normal- mente, é alguém que nao percebe os ‘momentos adequados de falar, que ‘nao compreende as pistas sociais que © outro oferece numa conversa [ges- ts, expressGes frases de duplo sentido’, explica a neurocientista Fabiele Russo. “Infelizmente, € quem as pessoas vao ‘eal tachar de ‘chato.” pees ‘Mas isso nao impede que autismos poser de niveis maiores também passem despercebidos. ” Obsessao por rotina Carol Souza teve uma infancia sem amigos em Itararé, cidade de 50 mil habitantes do interior de Sao Paulo. Com dificuldades para se comunicar, foi alfabetizada em casa, pela mae, ¢ ‘quase nao frequentou a escola. ‘As coisas melhoraram quando ela co- tativae Alternativa(CAA)~um conjun- to de ferramentas que ajuda quem tem dificuldade em se expressar oralmente: aplicativos para tablets, pranchas im- ppressas, imagens associadas a palavras. ‘Mas os problemas nao desaparece- sicemmuneanyy 2, carla ‘am, Carol tem crises com mudancas. priisanpeprsecie perry de rotina,além de ser bastante sensivel a sons altos e determinados cheiros ¢ alimentos. "Na faculdade, eu sofria se ‘mudassem a posicao das carteiras. Ou © colocassem enfeites na lousa sem me avisar’ lembra. rs O diagnéstico de TEA nivel 2 56 vveio aos 23 anos, quando crises de an- siedade a fizeram voltar para terapia ~ até entio, Carol havia sido erronea- ‘mente diagnosticada com transtorno ‘obsessivo-compulsive (TOC). "Quando ‘era pequena, nao tinhamos condiges SS 154 suren ovrusn0 2022 14 uma lacuna, de extudos sobreautismo em adultos eidosos. Consequentemen- te, faltam instru- rmentos precisos paradetectara condigio nessa faved vida. financeiras de buscar médicos em ou- ta cidade. Por aqui [a pequena Itararé], nao havia neuropediatras ou outros profissionais especializados” ‘Apés seis tentativas, Carol se for- ‘mou em pedagogia. Hoje, ela mantém a pigina Autistando, no Instagram, em. que compartilha suas experiéncias e informagGes sobre autismo.“O diagnds- tico ajudou minha familia a entender meus comportamentos.” Carol faz parte de uma minoria entre 0s autistas. Isso porque a condigao & ‘mais comum na populagao masculina: ‘hd uma mulher para cada trés homens (@ cigneia ainda nao concluiu se essa diferenga tem explicagao genética ou se 0s métodos de diagnéstico atuais simplesmente so melhores em detectar © TEA nos meninos). A ONU estima que 1% do mundo seja autista; sio 80 milhdes de pessoas. No nosso pais, vale dizer, nao ha dados oficiais sobre o mimero de au- tistas ~ pela estimativa geral da ONU, seriam 2 milhdes de pessoas. Mas logo virdo dados mais precisos: por deter- minagao de uma lei de 2019, 0 Censo ‘Demognifico deste ano vai perguntar sobre autismo. Quanto antes, melhor O TEA é um transtorno do neuro- desenvolvimento. TDAH, deficiéncias intelectuais e transtornos de comuni- cago (como os de linguagem e da fala) também recebem essa classificaco. So condigSes que aparecem no inicio da vida, antes mesmo da escola, ¢€ possivel ter mais de um deles ao mesmo tempo. “Existem triagens para deteccao pre- coce de transtornos de neurodesenvol- vimento’, diz Ana Marcia Guimaraes Alves, da Sociedade Brasileira de Pedia- ia, A recomendacio é que toda crianca seja submetida a essas avaliag6es, prin cipalmente para o TEA, entre 05 18 ¢ —> ‘ourvano 2022 SUPER 55 0s 24 meses de idade. Um dos métodos mais utilizados para rastrear suspeitas de autismo é a escala M-CHAT, um questionério de 23 perguntas sobre o comportamento das criangas e como elas interagem com as pessoas ao redor delas. Esti disponivel na internet, mas, claro: o mais seguro é responder durante uma consulta médica, O diagnéstico precoce ¢ importante porque, quanto mais cedo se descobre o TEA, mais o acompanhamento pode ser efetivo, As criancas tém alta neuro- plasticidade ~a maneira como o sistema nervoso consegue se adaptar quando passamos por novas experiéncias. Por conta disso, a capacidade de aprendiza- gem delas € absurda. Isso também vale Paras criangas autistas,naturalmente. E ajuda na hora das intervengGes terapéu- ticas (falaremos mais sobre elas adiante). problema é que faltam pediatras 6 sus treinados em transtornas do desenvol- vimento. "A demanda é grande, e as oportunidades de qualificacao ainda so escassas’, aponta Alves. Se a falta de uma triagem eficaz na infancia pode estar por tris de um diagnéstico tardio, anos de problemas de socializagéo e comportamentos res- tritos costumam levar adultos autistas adesenvolver outras condicSes (lepres- sio, ansiedade). E isso tira 0 foco do diagnéstico principal Outro aspecto que dificulta a desco- berta € 0 masking ~ a camuflagem so- cial. Nao raro, autistas observam outras pessoas e passam a imité-las, em uma tentativa de se adaptar &“normalidade’ Nessa, suprimem os préprios interes- es, disfarcam comportamentos eaté se colocam em situagoes desconfortaveis ~ com consequéncias negativas para a propria sate. Estudos jé mostraram que o masking um fenémeno mais recorrente em mu- Theres. E 0 caso da jomalista Selma Sue- i Silva, que s6 descobriu seu autismo 408 53 anos. Por muito tempo, Selma acreditou que a tinica maneira de se relacionar com 0s outros era por meio de um contato social intenso, como a maioria das pessoas a sua volta fazia ~ mas isso frequentemente a desgastava, A descoberta de Selma veio por influéncia de sua filha, Sophia Men- donga, que desde os 11 anos sabe que é autista, “Quando virei adulta, mew psicdlogo apontou que ela apresentava as mesmas caracteristicas que eu’, diz Sophia, que passou a insistir para que ‘amie procurasse o diagnéstico. Foi um processo doloroso. A psicé- Joga de Selma comparou sua persona- lidade com uma boneca russa: varias camadas criadas a0 longo dos anos pa- ra se adequar ao convivio social ~ e se proteger. "No comeco, minha mae ficou bastante ansiosa por achar que toda a sua vida havia sido uma farsa. Mas,com © tempo, ela melhoroua relago com a familia, os amigos e, mais importante, consigo mesma’, lembra Sophia, que também é jomalista. Desde 2015, as duas mantém o portal O Mundo Autista, uma das principais referéncias no assunto. O diagnéstico - © 0 que fazer com ele Em 2001, 0 psicélogo Simon Baron- Cohen e seus colegas do Centro de Estudos sobre Autismo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, desen- volveram o Autism-Spectrum Quotient (AQ) ~"Quociente do Espectro Autista um teste para detectar sintomas de TEA Uri ics ius PVE eee roemataerrecseetee iy Poe 60 Poorer r peal sony bets problemas emocionais. Com ela, eee at red Sete ren ee ees See epee et rae cere ree reer a eerie eee ae eters Peaster Creer ee Poa cet a ea parrot pater ironies ‘que ou um hiperfoco tio Intenso Pree er eee oceans especificamente em adultos. © AQ abrange cinco aspectos: habili- dades sociais, de comunicagao, atengao aos detalhes, tolerdncia a mudanca e imaginacao. Sao 50 afirmagoes, que 0 paciente deve responder com uma es ala que vai de ‘concordo totalmente” a ‘discordo totalmente’. Alguns exemplos: prefiro fazer coisas com outros do que sozinho", “gosto de bater papo” e “ougo sons que a maioria das pessoas ndo ouve’. Desde a sua criacao, 0 AQ é uma das ferramentas mais utilizadas em casos suspeitos de autismo em adultos. Ele estd disponivel na internet, inclusive ‘em portugués. Mas € preciso cautela Pesquisas recentes sugerem que o teste precisa ser revisto e atualizado. “Otteste de Cambridge ajuda rastrear possiveis casos, mas é insuficiente para fechar o diagnéstico’, pontua Alexan: dre Valverde, psiquiatra e que também descobriu ser autista tardiamente, aos ‘42. nos, Pior é que nao hé muitas ou tras opgdes. “Hé uma lacuna de estudos sobre autismo em adultos e,consequen- temente, existem poucos instrumentos que medem a condigdo nessa faixa etic’ diz Mayck Hartwig, doutorando em psi- cologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde pesquisa o TEA. ( que fazer, entio? O padrai ai é aavaliagio neuropsicolégica, uma bateria de testes das fungdes cognitivas: atengdo, meméria, percepcao visual (e auditiva),linguagem, teste de QI. Além disso, hd entrevistas com o paciente ¢ seus familiares para entender como foi sua infancia. Nesse processo, varios profissionais podem ajudar (psicélogos, fonoaudidlogos, terapeutas ocupacio- nais.... Mas quem bate o martelo do Taudo € o psiquiatra Eo diagnéstico 636 0 comego. “Dali em diante ¢ preciso aliarterapia, apoio familiar e fazer mudangas no ambiente de trabalho, se necessario’, ressalta a artista Patricia llus, que descobriu'o autismo depois dos 40 anos. Dé para procurar esse suporte via SUS ou por convénios particulares: des de julho, por determinagao da Agéncia Nacional de Saiide Suplementar (ANS), 9s planos de satide precisam oferecer ampla cobertura de tratamentos para pacientes com TEA e outros transtor- nos de desenvolvimento, “Também ¢ importante que a pessoa reconheca 0s seus direitos’, reforga Patricia. A partir de 2012, as leis para individuos com deficiéncia também passaram a abranger autistas Terapias (veja mais no quadro ao la- do) podem ajudar a evitar crises, que costiumam ser causadas por sobrecargas sociais, emocionais ou sensorias. Hé, por exemplo, o meltdown — um descontrole por vezes agressivo, 0 shutdown - uma crise interna,em que o autista se isola, e quadros de estresse crénico, com esgo- tamentofisico e mental no longo prazo. Elas também auxiliam a tratar as co- morbidades que se desenvolvem com tempo. “A descoberta do autismo me trouxe calma’, diz Alexandre. ‘Com 0 suporte médico, consegui diminuir os remédios que tomava para ansiedade Conversar com outros autistas ajuda principalmente quem néo tem acesso facil aos tratamentos. Patricia e Mayck fazem parte da Adultos no Espectro, um projeto que comegou para disseminar in- formagoes sobre autismo na fase adulta, ‘mas que hoje, a pedido dos seguidores, ‘mantém grupos de apoio para que as. pessoas compartilhem suas experiéncias. Descobrir-se autista, enfim, é um proceso de autoconhecimento: arduo, mas, coma orientacao adequada, pode ser libertador—e acolhedor. "Muitos autistas podem passar a vida toda se sentindo ‘excluidos' diz Carol. "Com o diagnsstico, acabam se entendendo e encontrando pessoas que passaram pelas mesmas coisas. Isso dé sentido a vida” @ ourueno 2022 suPER 57

Você também pode gostar