título original
Zachary Ying and the Dragon Emperor
preparação
Ana Beatriz Omuro
revisão
Victor Almeida
leitura sensível
Diana Passy
arte de capa
© 2022 by Velinxi
design de capa
Karyn Lee © 2022 by Simon & Schuster, Inc.
geração de e-book
Pablo Silva | Intrínseca
e-isbn
978-65-5560-825-0
1a edição
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
@editoraintrinseca
intrinsecaeditora
Sumário
[Avançar para o início do texto]
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
Agradecimentos
Sobre ê autore
Para minha família, que a princípio não acreditou nessa coisa de
ser escritore, nem mesmo depois do meu primeiro livro publicado,
mas que finalmente acreditou com este aqui.
1
Como conseguir superpoderes lendo a Wikipédia
Zack havia aprendido a não abrir o almoço que a mãe preparava para ele na
frente dos amigos. Também não o comia mais. Amava a comida da
mãe, mas seus amigos sempre torciam o nariz, como se os molhos e
temperos pungentes os atingissem feito uma onda. É claro que a
“comida esquisita” da única criança asiática da escola era motivo para
estardalhaço. Argh, como ele odiava aquele estereótipo.
— Por que você se importa com o que os outros dizem? — Sua
mãe ficara perplexa quando Zack implorou que ela lhe fizesse
sanduíches. — Minha comida é bem mais gostosa do que algumas
fatias de carne enfiadas entre dois pães!
Era verdade, mas ela não entendia o problema. Zack finalmente
pertencia a um grupo depois de entrar numa escola nova para o
ensino fundamental II, deixando para trás seus poucos amigos do
fundamental I. Não queria correr o risco de ser excluído de novo.
Mesmo assim, não importava quantas vezes dissesse à mãe que não
precisava preparar refeições chinesas para ele, ela nunca escutava.
Afinal, “de onde você vai conseguir todos os nutrientes necessários?”.
E, quando ele voltava para casa com a comida intocada, mesmo com
a desculpa de que estava praticando jejum para o Ramadã, o lado
cientista da mãe era ativado, e ela desatava em mais uma bronca
sobre a quantidade de proteínas e vegetais que um menino de doze
anos precisava ingerir todos os dias.
Era mais fácil fingir que havia comido a refeição.
Ignorando a pontada de culpa no coração, Zack disparou pelo
corredor vazio com a lancheira escondida debaixo do braço, como se
estivesse transportando algo ilegal. Parou diante de uma fileira de
latas de lixo coloridas e abriu a lancheira. O cheiro de vagens
refogadas e fatias de carne deliciosamente amontoadas sobre o arroz
explodiu pelo ar. Ele ficou com água na boca, e não conseguiu deixar
de comer alguns pedaços de carne cheios de molho com os palitinhos
guardados na lateral da lancheira, mas deu um passo para trás
quando lembrou que o cheiro poderia grudar no cabelo e nas roupas.
Além disso, não seria legal se alguém o visse comendo perto das
lixeiras. A última coisa que queria era dar outro motivo para ser
chamado de esquisito.
Ele levantou a tampa da composteira.
— Uau, garoto! Vai mesmo desperdiçar toda essa comida?
Zack tomou um susto. A voz veio de tão perto que parecia estar
dentro de sua cabeça. Era grave e um pouco rouca, como a de um
professor, mas, quando o garoto olhou ao redor, não havia ninguém
por perto.
Ele apoiou a lancheira sobre a tampa da lata de lixo de papel e
checou o celular. Nenhuma notificação repentina ou aplicativo que
havia aberto sozinho, nem nada do tipo. Pegou no bolso o outro
eletrônico que poderia ter emitido o som — seus óculos de realidade
aumentada da XY Tecnologias. Colocou-os sobre os olhos. A interface
transparente cobria todo o seu campo de visão, como uma única lente
longa. Atalhos neon para coisas como horário, temperatura e previsão
do tempo surgiram no canto. Mas ele também não havia recebido
nenhuma notificação ali.
— Ei! Você joga Reinomítico nisso aí?
Zack deu um pulo. Dessa vez, era sem dúvida uma pessoa falando.
Porém, em vez de uma voz grave e meio rouca, era outro garoto.
Outro garoto asiático, que atravessava o corredor com um sorriso
tímido. O chão polido reluzia como um caminho de luz sob seus pés.
Zack não conseguiu disfarçar o espanto. Aquela região da cidade
era tão branca que ele havia sido o único aluno asiático durante todo
o sexto ano. Zack se perguntou se o menino só estava na escola para
os cursos durante as férias de verão ou se ficaria para o início do
próximo ano letivo, no outono.
— Quem é que não joga Reinomítico? — disse Zack, se
recompondo e engrossando a voz.
Ele sempre fazia isso quando falava com alguém novo, para não
passar a primeira impressão de que tinha aparência e voz de menina.
Nem o cabelo curto nem as roupas largas ajudavam quando se era
tão magricela. Ainda assim, Zack sorriu um pouco. Amava fazer
amigos através de Reinomítico. E já não era sem tempo. O jogo — e
os óculos da XY Tecnologias — havia viralizado fazia uns três anos,
bem na época em que ele e a mãe tiveram que deixar Nova York
porque ela não conseguia mais pagar as contas ali, então não pôde
comprar os óculos inteligentes para ele. Reinomítico até tinha uma
versão para celular, mas os controles eram desengonçados, então
ninguém queria jogar com um garoto que usava apenas o celular. Foi
só depois que a mãe o surpreendeu com um par daqueles óculos
inteligentes em seu aniversário do ano anterior que Zack finalmente
conseguiu jogar de verdade, fazer amigos através do jogo e até
ganhar um dinheirinho com vendas no mercado secundário — era
assim que conseguia comprar o almoço da cantina todos os dias, em
vez de comer o que a mãe havia preparado.
— Eu até estou no time da escola — acrescentou Zack. — Por isso
estou aqui. Para me livrar de algumas matérias no verão e ter mais
tempo para me preparar para os torneios no outono.
— Que legal! Vamos nos adicionar? — sugeriu o menino, abrindo
o aplicativo de Reinomítico no celular.
Seu sotaque era parecido com o da mãe de Zack, o que significava
que ele também devia ser da China continental e ter mandarim como
língua materna.
A animação de Zack se transformou em cautela, como sempre
acontecia quando conhecia outra criança da China. Havia a chance de
que assuntos políticos se intrometessem entre os dois, considerando
que a mãe de Zack teve que fugir do governo chinês quando ele era
apenas um bebê. A maioria dos ocidentais achava que todos os
chineses tinham as mesmas experiências e as mesmas crenças, mas
isso estava longe de ser verdade. Zack se frustrava com a língua
inglesa por rotular todos eles como “chineses”, enquanto em
mandarim existia uma clara diferença entre huárén, alguém de
ascendência chinesa, e dàlùrén, alguém da China continental. Os
huárén migravam ao redor do mundo havia séculos, talvez milênios.
Lá em Nova York, as amigas chinesas de sua mãe eram em sua
maioria de Taiwan, Malásia, Singapura e outros países do sudeste
asiático — aquelas que eram huárén, mas não dàlùrén, se mostravam
mais propensas a serem tão contra o governo da China continental
quanto ela.
Não é que Zack tivesse que evitar todas as pessoas que vinham do
continente. Afinal, sua mãe tinha amigos de lá também. Mas primeiro
ele tinha que descobrir se o menino era fanático pelo governo chinês
— da mesma maneira que algumas crianças dos Estados Unidos
acreditavam que o governo americano era bondoso e todo-poderoso
sem questionar nada. Porém, era uma pergunta constrangedora para
se fazer de imediato, então Zack apenas lhe lançou um sorriso que
torceu para parecer natural e abriu o próprio perfil de Reinomítico nos
óculos inteligentes, que estavam conectados ao aplicativo de celular.
— Então você é o Zachary Ying, né? — O menino levantou o QR
Code de adicionar amigos em sua tela de celular. — Meu nome é
Simon Li.
— Como é que você sabe o meu nome?
Zack franziu o cenho enquanto apontava um dedo embaixo do
código, o que fez seus óculos o escanearem. Um fino quadrado neon
apareceu ao redor do código e piscou, e então o perfil de Simon
surgiu no campo de visão de Zack. Ele pressionou o botão flutuante
da solicitação de amizade.
— Um professor me contou! — explicou o menino.
Zack piscou. Não sabia como se sentir em relação a isso. Conseguia
adivinhar o que havia acontecido: Simon devia ter entrado na escola
de verão para cursar algumas matérias e um professor devia ter lhe
dito para procurar Zack, como se os dois tivessem que fazer amizade
automaticamente só porque eram chineses. Era outro lembrete
mordaz de que, quando as pessoas olhavam para Zack, “chinês” era
tudo que viam. Ha-ha, é claro que os dois garotos asiáticos ficaram
amigos, ele já conseguia imaginar os colegas dizendo.
Uma exaustão familiar pesou sobre os ombros de Zack. Estava
cansado de ser discriminado por causa de sua aparência. Isso havia
piorado depois da mudança para o Maine. Lá em Nova York, as
pessoas eram tão diversas que ele raramente chamava atenção, mas
ali era como se andasse com uma placa enorme de estrangeiro. Ele
não entendia. Era tão americano quanto qualquer outro aluno em sua
turma. Não sabia nem falar mandarim, exceto por algumas frases
básicas. Por que as pessoas não conseguiam ver além de seu rosto?
— Então, seu sobrenome é o mesmo Ying do Primeiro Imperador?
— perguntou Simon, virando o celular de volta para si.
Sua franja grossa precisava muito de um corte; estava tão longa
que quase escondia seus olhos.
— O primeiro o quê?
Zack tirou os óculos inteligentes e alisou o próprio cabelo. A mãe
sempre reclamava que estava muito bagunçado.
— O Primeiro Imperador da China. Todo mundo chama ele pelo
título, Qin Shi Huang, mas o nome verdadeiro dele era Ying Zheng.
Seu Ying é o mesmo Ying dele? Quer dizer, tem alguns sobrenomes
diferentes que são lidos como Ying, mas o dele é muito raro. Porque,
sabe, a maioria dos filhos dele foi morta quando a dinastia caiu. Mas
se o seu Ying é o Ying dele, você deve ser de uma linhagem que
sobreviveu!
— Do que você está falando?
O sobrenome de Zack não parecia mais uma palavra de verdade,
de tanto ser repetido.
Bom, nunca havia parecido uma palavra de verdade. Zack não
fazia ideia se significava alguma coisa. Além do mais, ele odiava seu
sobrenome. Fora zombado a vida toda pela forma como fazia seu
nome parecer um verbo em inglês. Zachary-ing. Definições incluíam
“ser a primeira pessoa a ficar sem fôlego na aula de educação física”,
“um menino agir como uma menina” e, é claro, “trazer comida
esquisita para a escola”.
— Você não sabe quem é o Primeiro Imperador da China? —
Simon recuou. — Uau, o que rola nas escolas americanas? Ele, tipo,
inventou a China! É um feito e tanto, até em termos de história
mundial! Em 221 a.C., ele conquistou os Sete Reinos Combatentes e
se declarou…
Meu Deus. Aquilo estava indo longe demais. Ha-ha, é claro que os
dois garotos chineses estão sendo nerds sobre a história da China
Antiga, Zack imaginou os colegas falando de novo.
— Escuta, hã… — Ele interrompeu Simon. — Falando em história,
eu na verdade tenho essa aula agora. E disse para o professor que só
iria ao banheiro rapidinho. A gente se vê por aí, tá bom?
— Ah. Tá bom. — Simon tirou a franja dos olhos, que refletiram o
brilho da tela do celular. — Mas você deveria pesquisar sobre o
Primeiro Imperador da China. Ele é bem legal. Vou te mandar um
link!
— Pode ser. Obrigado.
Zack apanhou a lancheira de cima da lata de lixo de papel.
— Espera, você ia jogar essa comida fora? — perguntou Simon,
apontando.
— O quê? — Zack soltou um riso nervoso. Ele deu um tapa na
composteira para fechá-la. — É claro que não. Eu estava jogando
fora… outra coisa.
— Garoto, você se importa demais com o que os outros pensam.
Zack deu um pulo e olhou ao redor. Suor frio começou a escorrer
por baixo de sua camisa e seus jeans. Aquela voz definitivamente não
vinha do celular ou dos óculos inteligentes.
— O que foi? — perguntou Simon, seu olhar se tornando
estranhamente penetrante.
— Hã. Nada, não. Só…Tchau.
Zack se afastou.
Quando passou pelo banheiro, considerou por um momento
mandar o almoço descarga abaixo, mas não tinha coragem de fazer
isso com a comida da mãe. Pelo menos a compostagem se tornava
algo valioso. Era o que ele dizia a si mesmo.
Talvez fosse só a voz de sua consciência.
Mas desde quando consciências falavam tão alto?
Quando Zack retornou à aula de história, ele se sentou com os
amigos para continuarem o projeto sobre Alexandre, o Grande.
— Bem-vindo de volta. Se divertiu? — zombou Aiden do outro
lado da pequena mesa redonda, girando a caneta do tablet com um
sorriso preguiçoso.
Aiden era o capitão do time de Reinomítico, e o coração de Zack
tinha uma tendência constrangedora de bater mais rápido perto dele.
Além de o garoto ser absurdamente alto, seu cabelo loiro curto estava
sempre impecavelmente arrumado.
— Na verdade, um novo aluno chinês veio falar comigo —
murmurou Zack, desviando a atenção dos olhos azul-claros de Aiden.
— Vocês sabem alguma coisa sobre ele?
— Por que está perguntando para a gente? Você que é chinês
também — disse Trevor, outro integrante do time de Reinomítico.
Ele tinha cabelo castanho desgrenhado e usava o mesmo moletom
desgastado o ano inteiro. Ou talvez fossem dois moletons que ele
alternava. As teorias variavam.
— Isso não significa que eu conheço ele! — reclamou Zack. — Por
isso estou perguntando!
Trevor ergueu as mãos, na defensiva.
— Desculpa. Não me processa.
Zack reprimiu um suspiro, não querendo parecer sensível a ponto
de se ofender com um único comentário. Depois de checar para ter
certeza de que a sra. Fairweather estava ocupada ajudando outro
grupo, ele mexeu no celular debaixo da mesa. Simon já havia lhe
mandado uma mensagem no Reinomítico e um link para um artigo
sobre o Primeiro Imperador da China.
— Aquele cara é meio intenso. Ele falou um monte de coisas sobre
um imperador e me fez adicionar ele no Reino… Uau.
— O quê? — perguntou Trevor, espiando o celular de Zack, que
estava aberto no perfil de Simon no jogo.
A tela exibia as seis criaturas míticas virtuais favoritas da coleção
de Simon, visíveis apenas para amigos. Todas elas estavam no nível
máximo e eram extremamente raras.
O queixo de Trevor também caiu.
— Aquilo ali é uma hidra nível dez exaltada?! — exclamou ele,
atraindo olhares de uma mesa vizinha. — E um dragão chinês
exaltado nível dez?
Zack lançou um olhar nervoso em direção à sra. Fairweather,
pronto para esconder o celular no bolso. Felizmente, ela parecia não
ter ouvido.
— Isso é sério? — Aiden apanhou o telefone de Zack. — Cara,
estou precisando de uma versão exaltada desse dragão! Quanto ele
vale agora?
Trevor fez uma rápida pesquisa no próprio celular, então levantou
o rosto com uma expressão impactada.
— Mais ou menos dois mil dólares no Trocas Reinomítico.
— É impossível esse menino ter pegado todas as criaturas sozinho.
— Os olhos arregalados de Aiden refletiam o brilho do celular de
Zack. — A família dele deve ser muito rica!
— Bom, dã, ele é um aluno de intercâmbio. — Trevor deu de
ombros de uma maneira derrotada. — Eles são todos ricos.
— Zack não é rico — argumentou Aiden. — A mãe dele trabalha
na Target.
As orelhas de Zack queimaram, mas ele tentou manter um tom
indiferente.
— Eu não sou um aluno de intercâmbio. E minha mãe também
trabalha na Universidade do Maine.
— Bom, minha irmã disse que esses asiáticos podres de ricos estão
por toda a UCLA, vestindo Supreme e dirigindo BMWs e Porsches. —
Trevor bufou. — A Universidade da Califórnia, Los Angeles, está mais
para Universidade com Caucasianos Lotada de Asiáticos.
Aiden gargalhou até se engasgar.
— Você não pode falar esse tipo de coisa.
— A gente é amigo do Zack! Temos passe livre, certo? — disse
Trevor, com um sorriso largo, cutucando Zack com o cotovelo.
— Hã…
Zack não sabia como responder àquilo. Apenas se esticou para
pegar o celular de volta.
— Cara, você precisa virar amigo desse menino. — Aiden balançou
o celular, impedindo Zack de pegá-lo. — Você tem que conseguir esse
dragão emprestado para mim.
Zack recolheu a mão do modo mais casual possível para não
parecer desesperado pelo celular. Se Aiden percebesse, ia zoar com
ele, ficando com o aparelho por mais tempo.
— Ugh, seu fracote. Esses garotos não são amigos de verdade.
Zack arregalou os olhos. Que voz era aquela? Como estava falando
dentro de sua cabeça?
— Zack? — Aiden chegou mais perto. — Você me ouviu?
— Hã… — Zack hesitou.
Toda vez que Aiden pedia algo emprestado, ele nunca cumpria a
parte de devolver o objeto. Alguns meses antes, ao andar perto de um
lago com Reinomítico aberto nos óculos inteligentes, Zack havia
capturado um boto nível cinco super-raro, um golfinho metamorfo de
um mito da América do Sul. No dia seguinte, Aiden o pegou
“emprestado”. Ainda estava com ele.
— Até parece — respondeu Zack, por fim. — Ele nunca vai me
deixar pegar emprestada uma criatura de dois mil dólares.
— Se os pais dele deixam alguém de doze anos… ele tem a nossa
idade?… ter isso, é óbvio que dinheiro não é nada para a família
dele. Além do mais, não é como se fosse possível perdê-lo.
— Você já tem um dragão chinês nível dez, Aiden. Ele faz a mesma
coisa.
Em Reinomítico, as criaturas exaltadas só tinham uma aparência
diferente, com um design mais elaborado. Sua probabilidade era de
uma em dez milhões.
— Mas não é exaltado. Olha, eu vou usar minhas criaturas de Água
nas próximas regionais. Se você não conseguir esse aí para mim, o
dragão chinês vai ser a minha única criatura normal.
— Ninguém espera que você tenha um exaltado — implorou Zack.
Diferente dos dragões ocidentais, dragões chineses controlam a
água, não o fogo, e eram de longe a criatura de Água mais poderosa
em Reinomítico. Logo, eram raríssimos.
— Mas imagina a cara dos outros competidores se eu aparecer
com um! Ia consolidar nossa reputação para sempre. — Aiden
encarou a alma de Zack com seus olhos azuis marcantes, fazendo a
pele do garoto ficar desconfortavelmente quente. — Vamos lá, cara.
Pense na equipe.
Zack mordeu os lábios. Aiden não parecia disposto a ceder, e Zack
não queria que o capitão ficasse ressentido com ele. Não podia perder
os amigos e voltar a ser o menino esquisito que come sozinho na hora
do almoço.
— Tá bom. Vou falar com ele.
Um sorriso deslumbrante se espalhou pelo rosto de Aiden. Ele
apontou para Trevor com o queixo, então cutucou Zack com o ombro.
— Vamos com você. Para dar apoio moral. — Ele colocou o celular
de volta na frente de Zack. — Diz para ele encontrar a gente depois
da escola.
— Hã. Tá bom.
Quando Aiden disse “a gente”, Zack não sabia que o capitão queria
dizer eles dois, Trevor e três outros meninos do time matriculados no
curso de verão.
— Zack! — Simon riu de nervoso às sombras de Zack e seus cinco
colegas de time. Estavam nos fundos da escola, perto do gramado e
da pista de corrida. — Você leu o link que eu mandei?
— Ainda não. Desculpa — respondeu Zack, coçando a cabeça.
Não gostava daquela cena, com eles cercando Simon, mas dizer
algo do tipo “Relaxa, não estamos aqui para te bater!” provavelmente
só pioraria a situação.
— Então, Simon… — Aiden colocou os óculos inteligentes. —
Zack me disse que você tem um dragão chinês exaltado nível dez.
Ele deu passos largos em direção à pista de corrida enquanto
falava, e todos o seguiram, equipando-se com os próprios óculos
inteligentes. Jogadores de Reinomítico nunca perdiam tempo ficando
parados ao ar livre. Estavam sempre em movimento, capturando as
criaturas virtuais e os itens do jogo que surgiam em todo lugar.
— Eu… eu não disse isso para ele. Não intencionalmente. — Zack
ajustou os óculos para esconder o olhar culpado que dirigia a Simon.
— Eu só mostrei o seu perfil para eles. Por ser tão impressionante.
— Sim, é mesmo muito impressionante. — Aiden olhou de soslaio
para Simon. — Escuta, eu não sei como o circuito de torneios
funciona na China, mas por aqui nós temos uma regional daqui a
duas semanas. Vou usar minhas criaturas de Água. Seria muito legal
se você me emprestasse o seu dragão.
— Ah, hã…
Simon agarrou as alças da mochila.
— Qual é. Você estaria me fazendo um enorme favor — insistiu
Aiden.
— Hã… — Simon parou de andar, raspando os sapatos na pista
vermelha pavimentada. — Esse dragão é bem importante para mim.
Não sei se eu me sentiria confortável emprestando ele.
Aiden também se deteve, girando em direção a Simon com as
mãos no bolso dos jeans.
— Relaxa, a gente devolve assim que acabar.
Simon olhou o grupo de relance. Ele era mais alto que Zack, mas
mais baixo que seus cinco colegas de time, então parecia que o
estavam encurralando. Bem quando Simon estava prestes a gaguejar
mais alguma coisa, ele fechou os olhos com força, como se atingido
de repente por uma onda de dor. Um vento forte soprou,
despenteando o cabelo de todos e riscando uma gota de chuva ao
longo dos óculos inteligentes de Zack. Ele se encolheu com o susto,
mas o material das lentes era resistente à água e a gota escorreu, sem
deixar nenhuma marca.
Quando Simon abriu os olhos de novo, havia algo completamente
diferente nele.
— Eu não vou te dar o meu dragão! — esbravejou o garoto com
uma força impressionante.
Ele levantou o queixo e endireitou a coluna. Sob a franja
volumosa, seu olhar se tornou afiado como o gume de uma faca.
Aiden se arrepiou. Zack trocou olhares desnorteados com os
outros, aliviado ao perceber que não era o único que havia notado a
mudança de Simon. Quando o vento soprou o cabelo dele para longe
dos olhos, Simon lhe pareceu estranhamente familiar, mas Zack não
conseguia se lembrar de onde.
Aiden se recuperou primeiro e disse:
— Por quê? Você por acaso vai participar das regionais com o seu
dragão?
— Não importa — respondeu Simon. — Você não vai ficar com o
dragão, e ponto-final.
Zack sentiu calafrios nos ombros. Ele estava admirado com a
audácia de Simon, com a confiança que invocava apesar de estar
cercado por seis meninos. De onde aquilo viera? Cada vez mais gotas
de chuva despencavam do céu, atingindo os óculos inteligentes de
Simon, mas ele sequer piscava.
O rosto de Aiden se contorceu numa carranca, então ele relaxou a
expressão e se inclinou para baixo de leve.
— Você vai continuar por aqui depois das férias? Não quer entrar
no nosso time?
Zack nunca havia ouvido aquele som na vida real, mas Simon
soltou um riso abafado muito próximo ao dos vilões nos filmes.
— Time? Reinomítico nem é jogado em equipe. Vocês se chamam
de time porque juntam seus recursos e conhecimentos. Eu tenho mais
de ambos do que todos vocês juntos. Por que eu me rebaixaria?
— Uau! — Aiden cambaleou para trás. — Não pensei que você
fosse um babaca arrogante.
Simon riu outra vez.
— É só um jogo bobo. Não leve isso tão a sério.
Raios relampejaram pelo terreno da escola, cintilando nos olhos de
Simon. Aiden cerrou os punhos, e o pânico tomou conta do peito de
Zack.
Ele se jogou na frente de Simon ao mesmo tempo que Aiden
tentou empurrá-lo. A palma de Aiden esmurrou a clavícula de Zack,
lançando-o contra Simon, que cambaleou para trás, segurando Zack
pelos ombros.
— Para com isso, cara! — disse Zack para Aiden, surpreendendo a
si mesmo com a firmeza de sua voz. Ele se encolheu de medo por
instinto, mas alguns murmúrios de concordância dos outros membros
do time lhe deram coragem para continuar. — Se ele não quer
emprestar o dragão, não precisa. Isso está indo longe demais. Você
está sujando a imagem do time.
— Não, você está sujando a imagem do time. — Uma intensidade
selvagem surgiu nos olhos de Aiden. — Desde o começo. Eu nunca
quis você na equipe!
Antes que Zack pudesse processar aquele choque, trovões rugiram
à distância. Aiden apanhou Zack pelo braço.
— Me dá o dragão! — Aiden gritou para Simon, sacudindo Zack.
Seu aperto era tão doloroso que Zack gemeu, temendo que seus ossos
se quebrassem. — Transfere o dragão para a minha conta agora, ou
eu vou machucar ele!
Variações de “Ei, cara!” explodiram dos membros do time. Trevor
fez menção de segurar o cotovelo de Aiden.
— Fica fora disso! — gritou Aiden, estapeando Trevor com o braço
livre.
O garoto foi lançado para fora da pista e aterrissou no gramado
interno com um baque e um grito de dor.
Zack estava tão chocado que não conseguia respirar. Os gritos de
três colegas de time o alcançaram de longe, como se estivessem
separados por um túnel. Eles correram para ajudar Trevor, lançando
olhares horrorizados por cima do ombro. Outro relampejo
empalideceu seus rostos. Agora, chovia tanto que as pontas do cabelo
de Zack grudavam em seu rosto. Ele não entendia o que estava
acontecendo. Por mais babaca que Aiden pudesse ser, ele nunca faria
isso.
Aquele não era Aiden.
— Você tem dez segundos! — gritou Aiden para Simon, apertando
o braço de Zack com os dedos.
Um grito esganiçado escapou da garganta dele.
Simon não disse nada. Só encarou Zack atentamente, como se
esperasse algo acontecer.
— O dragão! Agora! — exigiu Aiden.
— Zack… — começou Simon, morbidamente calmo. — Em 221
a.C., o Primeiro Imperador da China uniu os Sete Reinos
Combatentes e fundou a dinastia Qin, a primeira dinastia imperial
da…
Aiden torceu o braço de Zack, fazendo-o gritar.
Como Simon conseguia divagar sobre a história da China naquele
momento?
— O que você…?
Zack se engasgou no meio da pergunta ao reparar no rosto de
Aiden. Os olhos dele estavam brilhando num tom de verde
fluorescente, e uma legenda de Reinomítico pairava ao lado de seu
rosto.
TAOTIE (TA-OU-TIÉ)
Tipo: Escuridão
Origem: China
Uma criatura malevolente e gananciosa com corpo de bode,
presas de tigre, mãos de ser humano e olhos debaixo das
axilas. Come qualquer coisa que encontra, mesmo que isso
cause morte por empanturramento.
possessão demoníaca
possessão espiritual
primeiro imperador da china
Aconchegado na cama, Zack parou nos resultados de busca do
último termo. Havia várias notícias recentes sobre um terremoto
perto do mausoléu grandioso e cheio de mercúrio do imperador.
Apavorado demais para continuar, Zack fechou a página sem clicar
em nada. Afinal de contas, ele tinha perdido o controle do próprio
corpo ao ouvir as informações tagareladas por Simon e por causa do
link que o menino enviara.
As buscas sobre possessões também não foram úteis. Todos os
resultados eram sobre psiquiatras tentando desmenti-las ou histórias
de possessões cristãs. Zack tinha certeza de que seu caso não se
encaixava. Não, ele havia sido possuído pelo… Primeiro Imperador
da China?
Ele queria rir da ideia. Era ridícula. Esse tipo de coisa só existia nos
filmes.
Mas Zack não podia negar o que havia acontecido na pista de
corrida. Durante a tempestade. A tempestade que seu corpo tinha
controlado.
Então, conte-me: o que você deseja com mais ardor?
Eu quero ser mais forte.
Teria ele feito um pacto com o Imperador sem querer? Um desejo
que se realizou da pior maneira possível, como se tivesse sido
concedido por uma pata de macaco? Zack havia lido um conto sobre
isso na aula de literatura no ano anterior. Mas como algo assim podia
acontecer na vida real?
Zack navegou sem rumo pelo celular, assistindo a vídeos de
pessoas fazendo coisas idiotas e contando histórias idiotas, rindo de
vez em quando feito um robô, sem se sentir melhor de verdade. Foi
só quando o novo vídeo promocional da XY Tecnologias apareceu que
ele realmente prestou atenção. Era um teaser da mais nova geração
de óculos inteligentes, X6, a ser lançada ainda naquele ano. Mas não
foram as novas funções e as incríveis especificações técnicas que
arremataram a mente de Zack, e sim a pessoa que as apresentava
com uma relaxante batida futurística ao fundo: Xuan Jihong, também
conhecido como Jason Xuan, o fundador da XY Tecnologias.
Ele era tudo que Zack queria se tornar. Ao vê-lo falar sobre telas
com pixels revolucionários e baterias sem precedentes, com sua
aparência de astro do cinema, seu terno fino e um relógio caro e
cintilante, Zack se sentiu ainda pior por não estar fazendo nada além
de se encolher na cama. Jason também havia perdido o pai quando
era bebê e, por ter crescido na China rural, enfrentara dificuldades
muito maiores que Zack. Mas ele estudou com tanto afinco e ganhou
tantas competições de programação na adolescência que recebeu uma
bolsa de estudos integral para o MIT, o Instituto de Tecnologia de
Massachusetts. Lá, ele concretizou a ideia dos óculos inteligentes,
depois fundou a XY Tecnologias para criar ferramentas e jogos para o
aparelho. Aos vinte quatro anos, virou milionário. Dez anos depois,
era um bilionário na liderança do ramo da tecnologia e dos jogos, tão
prolífico que havia sido fundamental para convencer o governo
chinês a abandonar algumas de suas restrições mais severas sobre
videogames.
Em todas as entrevistas a que Zack havia assistido, Jason dava
créditos à mãe por ter dedicado a vida a cuidar dele e por ensiná-lo
tanto disciplina quanto inovação. Assim como a mãe de Zack, que
havia sido engenheira bioquímica na China, mas precisava trabalhar
em lojas nos Estados Unidos para criá-lo sozinha. Ainda assim,
durante muito tempo, ela conseguiu evitar que Zack sentisse que
passavam dificuldades. Ele tinha sido muito mais feliz quando era
menor e não percebia que a mãe estava mentindo nas noites em que
fazia o jantar para ele, mas não comia nada porque “já havia
jantado”. Também era mais fácil interagir com as outras crianças,
porque elas não notavam ou não se importavam com o fato de que as
roupas e os sapatos de Zack nunca eram novos, ou de que ele assistia
a documentários de graça no YouTube em vez das séries mais
recentes da Netflix, ou de que ele e a mãe nunca viajavam nas férias
nem comiam em restaurantes chiques. Quando a mãe tinha tempo
livre e o dia estava ensolarado, ela embalava alguma comida e levava
Zack para um piquenique no Central Park, e isso bastava para ele.
Uma onda de vergonha atravessou Zack quando ele se lembrou de
como havia implorado por óculos inteligentes antes de seu nono
aniversário, e de como a mãe tinha se desmanchado em lágrimas na
véspera, dizendo o quanto lamentava não ter conseguido comprá-los
porque precisava do dinheiro para pagar o aluguel e que nem sabia se
conseguiriam arcar com os custos de continuar morando em Nova
York. Foi a noite em que Zack percebeu que não podia mais ser como
as outras crianças, que precisava tirar apenas nota dez, evitar
problemas e nunca aumentar as preocupações da mãe.
Era por isso que ele não contava a ela sobre suas dificuldades para
fazer amigos cada vez que se mudavam, primeiro de Nova York para
o Maine, quando ele estava no terceiro ano, e então para um bairro
diferente depois de ele ter se formado no fundamental I. Não queria
que ela se arrependesse de nenhuma decisão tomada para tornar a
própria vida mais fácil. Ela tinha conseguido um trabalho de meio
período no laboratório da Universidade do Maine, o primeiro passo
para retomar sua carreira científica, e eles passavam bem menos
dificuldades desde então. Embora o apartamento de subsolo fosse
apertado, era mais espaçoso do que o apartamento em Nova York e
mais silencioso do que a casa anterior no Maine.
No quarto ano, depois de escutar a história de Jason Xuan em um
documentário de YouTube, Zack havia aprendido a programar. Ele
andava fazendo jogos cada vez mais complexos, embora ainda não
tivesse coragem para colocá-los na internet. Não ousava sonhar com
uma ascensão igual à de Jason, mas queria ao menos estudar no MIT
também e ganhar dinheiro suficiente para dar à mãe a vida que ela
merecia. Sem apartamentos minúsculos em bairros perigosos, nem
apartamentos de subsolo, nem trabalhar em lojas onde os clientes
gritavam com ela por coisas sobre as quais ela não tinha controle.
Zack estava tão imerso em seus sonhos para o futuro que o
barulho da porta da frente quase arrancou a alma de seu corpo. Ele
se escondeu debaixo das cobertas. Nem havia notado quando a luz
chuvosa do dia se esvaiu da janela.
— Zack? — chamou a mãe.
— Sim? — respondeu o garoto, correndo para acender a luz.
Mas era tarde demais. Ela devia ter notado a escuridão assim que
entrou no apartamento, daí a preocupação. Ela bateu à porta do
quarto.
— Está se sentindo bem?
— Sim, só estava tirando uma soneca!
— Ficou acordado até tarde jogando videogame de novo?
— Não! Eu… eu só fiquei muito cansado hoje. Nós estudamos
muita… história.
Até horas antes, Zack nunca havia entendido por que os
personagens de histórias em quadrinhos com superpoderes os
escondiam. Agora sabia o porquê. Ele entendia. Ele se identificava.
Como poderia começar a explicar o que havia acontecido sem parecer
maluco?
— Ah, tudo bem.
Ouviu os passos da mãe se afastando da porta.
Aquela desculpa o livrou de suspeitas por um tempo, mas, depois
de alguns minutos com panelas e frigideiras tinindo na cozinha, o
barulho do óleo chiando e os ruídos de Zack andando de um lado
para outro no quarto, sua mãe o chamou para jantar.
Jason Xuan não se esconderia no próprio quarto.
Zack respirou fundo, soltou o ar e se vestiu. Fingir estar cansado
demais para comer só deixaria a mãe mais preocupada. As dores que
se intensificavam a cada movimento fizeram Zack se lembrar dos
hematomas no braço e no pescoço, então ele vestiu um suéter de gola
alta. Felizmente, o frio da tempestade fez a roupa parecer menos
suspeita. Golas altas sempre eram apropriadas no Maine.
Assim que saiu do quarto, Zack fechou a porta do cômodo. O
apartamento era tão pequeno que o cheiro de comida impregnava
tudo. Ele não podia correr o risco de deixar a porta aberta durante o
jantar. Até a mãe tinha que tirar o uniforme da Target sempre que
cozinhava depois de um turno na loja.
A mesa de jantar ficava bem na entrada do apartamento. Fitando a
mochila como se estivesse amaldiçoada — e talvez seus óculos
inteligentes estivessem mesmo —, Zack se sentou diante de sua tigela
de arroz na única cadeira livre. Ele sempre se perguntava por que a
mãe colocava exatamente três cadeiras à mesa. Suspeitava que a
terceira devia ser para o pai, que havia sido executado na China
quando Zack ainda era bebê por “atos de terrorismo”, sendo que na
verdade fora apenas um protesto contra a opressão de muçulmanos
uigures e outras minorias. Mas Zack nunca havia pedido confirmação
de sua teoria. Por mais obstinada que a mãe fosse, seu pai era o único
assunto sobre o qual não conseguia falar sem se desfazer em
lágrimas.
Para o jantar, ela havia preparado ovos mexidos com tomate, peixe
selado na frigideira com bastante molho de soja e sopa de alga com
pingos de ovo. A lancheira de Zack estava aberta na mesa, ao lado
dos pratos, de forma incriminadora.
— Ying Ziyang. — A mãe apontou para a lancheira. — Você não
comeu seu almoço de novo.
Zack se endireitou ao ouvir seu nome chinês. A mãe só o usava
quando ele estava muito encrencado. Distraído pela situação com
Simon, ele havia se esquecido de pedir para ir ao banheiro outra vez
durante a aula e jogar o lanche na composteira.
— Desculpa, mãe, não estava com vontade. Comi o almoço da
cantina.
— Comeu o quê?
— Uma… salada verde.
Zack não tinha como mentir sobre as opções limitadas. Já que ele
devia comer apenas carne halal, preparada de acordo com as
tradições islâmicas, sempre pegava a opção de comida vegana da
cantina.
A mãe arqueou as sobrancelhas.
— Quantos nutrientes tem numa salada verde? Você precisa comer
mais do que isso. Você é um menino em fase de crescimento.
— Eu sei, mãe. Só não senti muita fome hoje.
— Tem certeza de que não está doente? Está com frio?
Ela olhou para a gola alta de Zack, suavizando o tom, então
colocou uma das mãos sobre a testa do garoto e a outra sobre a
própria, checando se ele estava com febre.
— Estou bem. — Zack se afastou, sentindo desconforto ao mentir.
Ele não estava bem. Nem perto disso. Queria poder contar a
verdade, mas a mãe nunca acreditaria naquilo sem provas. Ela
pensaria que o filho só estava assistindo a muito anime de novo.
Discretamente, ele moveu a mão para perto da sopa e desejou que ela
respingasse sobre a beirada da tigela ou algo assim. Nada aconteceu.
Após uma breve pausa para lhe lançar seu melhor olhar
penetrante, a mãe perguntou:
— Você tirou uma nota ruim?
— Não! Claro que não!
— Então o que houve?
— Não é nada. Sério. Eu…
A mochila de Zack, com o zíper aberto, chamou sua atenção. Lá
dentro, seus óculos inteligentes piscaram como um sinal de alerta.
Ele agarrou a mochila com um movimento brusco.
— Quase esqueci que tenho um monte de dever de casa para fazer
hoje à noite!
Ele forçou uma risada quando a mãe olhou para o objeto. Zack
arrastou a mochila mais para perto e tirou seu pequeno laptop lá de
dentro. A mãe não se incomodava com ele fazer o dever de casa
durante a refeição; seu quarto era pequeno demais para ter uma
escrivaninha, então a mesa de jantar era a única superfície na qual
podia usar o laptop. Com sorte, isso a faria deixar aquela conversa de
lado.
Bem quando ele posicionou o laptop ao lado da tigela de arroz e
abriu um arquivo aleatório para ler, uma batida firme soou na porta.
Zack e a mãe trocaram um olhar rápido, então ela correu para o
quarto para colocar seu hijab enquanto ele atendia a porta.
Ao girar e puxar a maçaneta, uma rajada fria de ar noturno se
infiltrou no apartamento, cheirando a terra molhada e concreto. Zack
se deparou com o proprietário, sr. Lansbury, e seu filho Nathan. Ele
era só um ano mais velho que Zack, mas era muito maior e sempre
tinha um olhar maldoso, então Zack fazia de tudo para manter
distância do garoto.
— A-algum problema, sr. Lansbury? — perguntou Zack, engolindo
em seco.
Uma visita do proprietário nunca era coisa boa. E por que ele viera
com Nathan?
— Sim — respondeu o sr. Lansbury. — Lamento, mas não podemos
mais deixar vocês morarem aqui.
Zack sentiu um frio na barriga.
— O quê? Por quê?
— Porque você é um recipiente que deve ser destruído.
Uma força quente acertou Zack em cheio, fazendo ele tropeçar e
cair para trás, aterrissando em cima da mão. Uma explosão de dor
tomou seu braço e seu quadril.
— Zack! — gritou a mãe, saindo do quarto com o hijab escarlate
preso ao redor da cabeça.
Assim que ela o alcançou, outra onda quente deformou o ar. Ela
gritou ao atingir o chão, sentindo espasmos anormais nos membros,
como se estivessem sendo puxados por algo invisível. Na porta,
Nathan fazia gestos de puxar. De alguma forma, sem encostar nela, o
garoto estava arrastando a mãe de Zack pelo piso.
— Mãe! — gritou Zack, se agarrando aos calcanhares dela, mas a
força era poderosa demais.
Ventos quentes atingiram seu rosto do nada. Os dois estavam
sendo atacados por algo que ele não podia enxergar. Se ao menos
conseguisse ver o que era…
Sua mochila tremia sem parar na cadeira, a madeira conduzindo
as vibrações. Zack jurou estar ouvindo uma voz abafada vindo lá de
dentro. Em meio aos gritos da mãe, ele mal conseguiu distinguir o
que a voz dizia:
— Garoto! Coloque os óculos!
A mãe ainda se contorcia sob a força invisível. Zack não tinha nada
a perder, então se lançou sobre a mochila, encontrou os óculos
inteligentes que vibravam e piscavam e os colocou no rosto.
A vibração e o piscar das luzes cessaram.
— Finalmente! — exclamou a voz rouca. Era nítida e real e estava
fora da cabeça de Zack pela primeira vez, saindo dos alto-falantes de
condução óssea nas hastes dos óculos inteligentes. — Você dificultou
muito a minha vida, garoto!
Quando Zack olhou de volta para a mãe, um ruído de espanto
escapou de sua boca. Conseguia ver faixas vermelhas brilhantes e
nebulosas amarradas ao redor dos braços e pernas dela. As faixas
levavam a Nathan, que as puxava. Carretéis rodopiavam e flutuavam
ao redor dos braços e torso do garoto, como uma espécie de névoa
neon. Seus olhos estavam completamente vermelhos, um tom
radiante e demoníaco, enquanto os do sr. Lansbury eram de um verde
incandescente. Barras de energia pairavam perto de suas cabeças.
Mas não era como em Reinomítico. No jogo, as barras de energia
resetavam depois de cada batalha. No entanto, a barra de Zack,
visível na parte inferior direita da lente, não estava cheia. Tinha
menos da metade, a mesma quantidade que havia sobrado depois da
batalha com Aiden.
— Eles estão possuídos por espíritos demoníacos! — A voz, que
talvez fosse do Primeiro Imperador da China, se intensificou nos alto-
falantes de condução óssea, pressionando o crânio de Zack. — Vou
lhe emprestar meu poder. Use a sopa!
Zack estendeu a mão em direção à tigela. Dessa vez, quando
desejou que a sopa se movesse, ela se moveu. O líquido se estendeu e
se enroscou como uma minhoca enorme e lisa.
Sua barra de energia caiu ainda mais, e um frio incômodo tomou
seu corpo a partir dos óculos inteligentes, mas Zack não tinha tempo
para pensar nisso. Apenas fez o movimento de arremessar a sopa em
Nathan.
Um pouco do líquido ricocheteou no rosto de Nathan, mas a maior
parte se espatifou sobre a mesa e o chão. Nathan deu um passo para
trás, mas não largou as faixas brilhantes.
Então, olhando bem nos olhos de Zack, o sr. Lansbury se agachou e
ergueu a mão sobre o rosto de sua mãe. Fiapos de luz verde
formaram uma imagem nebulosa em cima de sua palma, uma
imagem que se parecia com uma minúscula torre asiática — um
pagode. Uma espiral de respiração luminosa emergiu da boca da mãe
de Zack, que ainda gritava, e deslizou para dentro do pequeno
pagode.
Em seguida, a mãe parou de se debater, seus olhos se turvando na
luz fraca do apartamento.
— Não! — gritou Zack com todo o ar em seus pulmões.
Ele arremessou a tigela vazia no sr. Lansbury, mas Nathan a repeliu
com um movimento casual.
Zack precisou se esquivar do objeto, que se estilhaçou na parede às
suas costas.
Ele tentou controlar as poças de sopa no chão, mas era uma
quantidade patética de líquido, e o garoto mal conseguiu fazê-las se
erguerem um pouco.
— Me dê mais poder! — implorou ele à voz em seus óculos
inteligentes.
— Arranje mais água! — gritou ela de volta.
Zack cambaleou em direção à pia da cozinha. Se ele ligasse a
torneira, poderia…
Mas as faixas de Nathan se enroscaram em suas pernas e Zack caiu
sobre os cotovelos. O impacto doeu tanto que seu corpo inteiro ficou
duro e um grito escapou de sua garganta, mas aquela dor não era
nada comparada ao medo que martelava em seu peito.
Nathan o arrastou para mais perto de si. O sr. Lansbury inclinou o
pagode verde em sua direção.
Quando o terror de Zack atingiu o ápice, alguém gritou algo que
ele não entendeu. Era uma voz de menino, mas carregada da
confiança de um homem.
Nathan e o sr. Lansbury sofreram espasmos, como se tivessem sido
atingidos pelas costas. Suas bocas soltaram fumaça vermelha e verde,
respectivamente. Seus corpos cambalearam e depois se espatifaram
no chão, um de cada lado da mãe de Zack, revelando a figura na
escuridão diante da porta.
Era Simon, segurando um longo arco que parecia ser feito da
mesma névoa neon que as faixas de Nathan. Por trás dos óculos
inteligentes, seus olhos brilhavam em um tom de vermelho intenso.
3
Como nerds de videogame podem ser derrotados de lavada
com táticas militares da China Antiga
TANG TAIZONG
“Imperador Taizong de Tang”
Nome verdadeiro: Li Shimin
Viveu entre: 598-649 d.C.
Cofundador da dinastia Tang, considerada a era de ouro da
China Antiga. Idiota prepotente que se achava um imperador
muuuito melhor do que todos os outros.
SIMON LI / LI SHUDA
Hospedeiro de Tang Taizong. Menino de doze anos de
Xianxim, China.
Zack nunca imaginou que estaria chateado durante sua primeira viagem de
avião na primeira classe.
Ele não estava apenas na área de assentos de luxo; estava numa
cabine privada com duas camas de solteiro e um banheiro exclusivo.
Havia se sentado em uma das camas, apoiado em uma pilha de
travesseiros macios, enquanto Simon ocupava a outra, comentando
sobre o documentário a respeito da história da China que passava na
grande tela acima do pé das camas. Na cabine escura, a luz atingia o
rosto de Simon como se estivessem em uma sala de cinema. Zack
deveria prestar bastante atenção, mas não conseguia. Ele até tentava,
mas era impossível.
Na noite anterior, na delegacia, ele havia contado aos prantos a
história do assalto inventada por Não-Simon — ou Tang Taizong,
como tinha que se acostumar a chamá-lo, assim como Qin Shi Huang
para o Primeiro Imperador. Na metade da história, Zack começou a
chorar tanto que mal conseguia respirar. A polícia então desistiu de
lhe perguntar por que um bando de ladrões assaltaria um
apartamento de subsolo qualquer ou de pedir mais detalhes sobre a
aparência deles, além de “usavam máscaras de ski”.
— Uau, você é um ótimo ator! — comentara Simon pouco depois.
Zack não havia atuado.
A mãe tinha sido levada às pressas ao hospital, onde os médicos
declararam que ela estava em coma, embora, é claro, não soubessem
explicar por quê. Justo quando Zack estava prestes a negar que tinha
outros parentes vivos, um pequeno comando em seus óculos
inteligentes — que ele havia mantido no rosto com a desculpa de que
era uma recomendação médica — lhe disse para responder: “Sim,
senhor. Uma tia na China, chamada Yaling Sha.”
A mãe não tinha uma irmã, mas Zack seguiu a deixa. A mensagem
viera com um número de telefone, que ele passou para a polícia. Não
sabia que tipo de conversa havia acontecido por telefone, mas uma
hora depois estava com uma passagem comprada para Xangai. A
polícia o levou de volta ao apartamento para arrumar as malas,
depois lhe deu uma carona até o aeroporto de Portland, passando
pelas imponentes florestas do Maine. Zack suspeitava que houvera
alguma mágica envolvida para eles terem agido tão rápido. Ou talvez
só não quisessem lidar com um órfão durante a noite.
Não, ele se repreendeu. Não sou órfão.
— Ainda não entendi como isso vai ajudar a recuperar o espírito
da minha mãe — disse Zack, exausto do caos em sua mente,
interrompendo um comentário de Simon.
Simon pausou o documentário pressionando duas vezes o ar em
frente aos óculos inteligentes, que havia conectado à tela por
bluetooth. Ele parecia ter algo para dizer, mas não conseguia
encontrar as palavras certas. O garoto realmente não era o Shuda Li
calmo e sereno dos livestreams de campeonato, o que tornava estar
perto dele um pouco menos surreal. Se Shuda fosse “real”, por assim
dizer, Zack não sabia se teria conseguido conhecê-lo sem desmaiar.
Ainda corava às vezes ao se lembrar das fotos promocionais de Shuda
que salvara no celular durante o campeonato. Zack as havia deletado
às pressas durante a carona para o aeroporto.
— Você precisa de uma conexão mais forte com a magia lendária
de Qin Shi Huang para se dar bem nessa missão — respondeu Simon,
desviando o rosto para a luz da tela, parecendo ligeiramente culpado.
Zack mal conseguia ouvi-lo por cima do rugido dos motores do avião.
— O que significa criar uma conexão mais forte com a consciência
cultural dele.
Um sentimento de frustração brotou em Zack.
— Que porcaria é essa?
Simon se endireitou na cama, os olhos reluzindo por trás dos
óculos inteligentes.
— Então, cada cultura possui personagens memoráveis que todo
mundo conhece. Para os americanos, por exemplo, são o Batman e o
George Washington. Para nós na China, são Qin Shi Huang e Tang
Taizong. Todos nós sabemos quem eles são e as coisas lendárias que
fizeram. O fato de estarem na mente de tantas pessoas, geração após
geração, torna seus espíritos poderosos. Mas eles não estão na sua
mente. É por isso que Qin Shi Huang não conseguiu se conectar
direito com você.
— Precisamente — concordou Qin Shi Huang, emergindo no visor
dos óculos de Zack com uma nuvem de polígonos cintilantes,
flutuando sobre as camas. — Esse seu aparelho para os olhos tinha
mais conexão comigo do que você, por conta das informações sobre
mim disponíveis na internet. Foi um milagre eu ter descoberto que o
sistema era complexo o suficiente para hospedar meu espírito antes
que eu caísse de volta ao submundo. — Ele ergueu o olhar, pensativo.
— Na verdade, estou bem impressionado com o que encontrei por
aqui.
Zack, mais uma vez, teve que tirar um momento para processar
que coisas daquele tipo agora faziam parte de sua vida.
— Então por que você não escolheu outra pessoa para possuir? —
acusou Zack.
O garoto apostava que a mãe e ele não teriam sido atacados se Qin
Shi Huang tivesse feito uma escolha diferente.
— Porque você é aquele no qual encarnei um pedaço de meu
espírito e, portanto, a única âncora que eu poderia usar para me alçar
de volta ao reino mortal. — Qin Shi Huang cruzou os braços, fazendo
suas mangas largas se encontrarem como cortinas pretas na frente do
peito. — Se você morresse e eu tivesse que começar do zero, levaria
pelo menos mais doze anos para um novo hospedeiro se tornar
minimamente útil. Não tenho tempo para isso.
— Desculpa aí então! — exclamou Zack impulsivamente. —
Desculpa por não ser chinês o suficiente para isso, sendo que
ninguém me contou que eu precisava saber tanto sobre cultura
chinesa até ontem!
Sua voz rouca falhou. Não sabia direito com quem estava mais
bravo, com eles ou consigo mesmo. As paredes do avião tremeram
atrás de seus travesseiros por causa da turbulência.
— Calma, garoto — disse Qin Shi Huang. — A questão é sua
conexão pessoal comigo, não você ser chinês o suficiente. Isso nem é
algo que pode ser mensurado. Reivindicar sua origem chinesa faz de
você chinês. Saber a meu respeito é apenas uma pequena parte da
vasta cultura chinesa, que é diferente ao redor do mundo, em cada
local onde há pessoas chinesas. Por que você acha que eu falo inglês
como os estadunidenses? É por causa de sino-americanos como você
e sua mãe, que com certeza me consideram apenas uma lenda.
— Mas ela nunca me contou sobre você.
A expressão de Qin Shi Huang oscilou.
— Não posso fazer nada se algumas pessoas não têm apreço pela
história! Mas, se ela cresceu na China, com certeza já ouviu falar de
mim. Uma pena que a maneira como ela escolheu protegê-lo foi
priorizar sua assimilação à cultura americana. Não concordo com
essa prática, mas não há como mudar o passado. Acredite, eu
também não queria realizar esta missão com um tempo tão limitado.
Era para o Simon se transferir para sua escola no próximo ano letivo
e ir lhe apresentando o conhecimento necessário aos poucos.
Deveríamos ter tido muitos anos juntos antes de embarcar nesta
missão. Mas um terremoto recente mudou tudo. Ele afrouxou
bastante o portal para o submundo sobre o qual construí meu
mausoléu. Agora temos meros catorze dias para reforçar o tampão do
portal que eu fiz.
Aquilo não parecia nada bom.
— E o que de pior pode acontecer? — perguntou Zack,
endireitando a postura.
— Bem, para começar, o demônio que está com o espírito de sua
mãe se tornaria poderoso o suficiente para consumi-lo. Nada de céu,
inferno, submundo ou reencarnação para ela. Sua mãe apenas
sumiria.
Zack se sentiu sem chão, como se o avião tivesse despencado
centenas de metros.
— E os espíritos do submundo chinês vão se espalhar pelo mundo
mortal — acrescentou Simon, com uma expressão assustada.
Porém, a mente de Zack continuou travada no terror de que o
espírito de sua mãe pudesse ser consumido, sendo que aparentemente
o pós-vida era algo garantido.
— Como impedimos isso? — perguntou Zack em um só fôlego. A
ansiedade percorria sua barriga como um bando de formigas. —
Como reforçamos esse tampão?
As palavras pareciam absurdas saindo de sua boca, mas, se aquela
era a única maneira de salvar a mãe, ele precisava saber.
— Antes de nos aprofundarmos neste assunto, mostre-me uma
coisa. — Qin Shi Huang apontou para o copo d’água que estava na
bandeja fixada à parede ao lado da cama de Zack. — Tente controlar
aquela água. Levante-a o mais alto que conseguir.
Um frio infiltrou o corpo de Zack a partir dos óculos inteligentes,
como se alguém tivesse jogado água gelada em seu rosto. Hesitando
por ainda não acreditar que conseguia dobrar água, o garoto
levantou a mão na frente do copo e desejou que o líquido se
erguesse.
Ele se ergueu, mas não muito.
— Mais alto! — ordenou Qin Shi Huang.
Zack soltou um chiado por entre os dentes. Forçou a água mais
alto até que sua visão ficou salpicada de manchas e teve que parar. O
líquido despencou de volta para o copo com um pequeno respingo.
— Foi o que suspeitei — resmungou Qin Shi Huang. — Comigo
meramente possuindo este aparelho, você não consegue canalizar o
suficiente de minha magia para lutar. E com certeza não consegue
usá-la tão bem quanto eu.
Zack sentiu o rosto arder de vergonha.
— Será que podemos refazer o pacto de possessão?
— O pacto? Ah, sim! Minha promessa de torná-lo mais forte em
troca de usá-lo como meu hospedeiro. Não era um pacto mágico. Foi
apenas uma promessa de honra, que continuo a cumprir de bom
grado. É evidente que você precisa disso.
Zack não conseguia sequer argumentar. Se fosse mais forte, se
fosse menos fracote, não teria fugido e se encolhido na cama e dado
aos demônios abertura para atacarem.
— Mas a resposta é não — continuou Qin Shi Huang. — Lamento,
mas estou permanentemente conectado a este aparelho da maneira
como deveria estar permanentemente conectado a você. Entretanto,
podemos melhorar nossa conexão espiritual ao aprimorar seu
conhecimento sobre mim.
O imperador gesticulou para a tela.
— Esse documentário lhe deu uma boa noção sobre minha lenda?
O filme estava pausado na encenação de um ator interpretando ele
e erguendo uma espada reluzente no que parecia ser um aposento
palaciano sombrio, iluminado por uma lareira. O ator era barbudo e
fortão, e parecia bem mais velho do que o Qin Shi Huang visto por
Zack.
— Hã… — Zack se esforçou para reunir os fragmentos de
informação que haviam penetrado seus pensamentos turbulentos. —
Então, você era um príncipe que nasceu em um período com um
monte de guerras. Quando tinha apenas treze anos, você se tornou
o… rei de Qin?
Qin Shi Huang bufou.
— Deixe-me explicar em termos mais simples. Cerca de três mil
anos atrás, havia mais de uma centena de reinos na região que depois
se tornaria a China. Três dinastias lendárias reivindicavam soberania
sobre todos eles, mas eram meros testas de ferro. Depois que pararam
de respeitar as dinastias, os reinos entraram em uma competição de
eliminação, como esses reality shows americanos. Eles foram se
abocanhando aos poucos durante os trezentos anos do Período das
Primaveras e Outonos, até restarem apenas os sete melhores, também
conhecidos como os Sete Reinos Combatentes. A rodada final durou
mais dois séculos até eu derrotar todos eles em uma campanha veloz
de dez anos. Sim, eu ganhei o American Idol da China Antiga. — Qin
Shi Huang franziu o cenho. — China Antiga Idol? Que seja.
Era um monte de informações, mas a única coisa que Zack
conseguiu perguntar foi:
— Como você conhece o American Idol?
— Sino-americanos, lembra? Não há nada que impeça a cultura
chinesa e a americana de se misturarem. Na época do auge do
American Idol, George Washington fez alguns de nós assistirmos com
ele. — Qin Shi Huang balançou a cabeça. — A qualidade do
programa decaiu profundamente após a saída do Simon Cowell.
— Quem eram “alguns de nós”?
— Eu, Alex…
— Alex?
— Um conquistador da Europa. Macedônia, eu acho.
— Alexandre, o Grande? Você é amigo de Alexandre, o Grande?
— Você conhece esse cara, mas não me conhece? — acusou Qin
Shi Huang.
— Ele… ele é Alexandre, o Grande! Eu estava fazendo uma
apresentação sobre ele para a aula de história!
— E eu sou Qin Shi Huang, o Primeiro Imperador da China! Ao
contrário de Alex, atingi meu objetivo de conquistar todo o território
até o oceano Pacífico! Mas ele é um cara decente. Eu o ensinei a jogar
mahjong. Ram, Genghis, ele e eu nos reunimos para algumas partidas
de década em década.
Os nomes foram decifrados pela mente de Zack.
— Você joga mahjong com Alexandre, o Grande, Ramsés II e Genghis
Khan?
— Como você conhece todos eles menos eu? Também sou um
conquistador de primeira! — disparou Qin Shi Huang, levando os
dedos às têmporas, logo abaixo do chapéu. Ele fechou os olhos com
força, e seu temperamento se abrandou. — Ah, não é culpa sua.
Zhèxiē báirén zhēnshì de. Que absurdo que as crianças na China sejam
bombardeadas com lendas e histórias ocidentais, enquanto as
crianças no Ocidente não aprendem nada além dos europeus típicos,
dos ocasionais egípcios e quem sabe Genghis Khan.
— Talvez você não seja tão de primeira quanto pensa —
resmungou Zack.
— Escute aqui! — Qin Shi Huang apontou o dedo para o garoto.
— Sou o único conquistador em toda a história a ter eliminado todos
os possíveis inimigos, e meu sistema de governo persistiu por mais de
dois mil anos. Reinei sobre todo o mundo que eu conhecia! Esgotei os
territórios que poderia conquistar! O único motivo de eu ser deixado
de lado nessa lista de conquistadores é porque meu império ainda é
um país unificado! Por acaso os outros podem dizer o mesmo?
— Por que você está se esquecendo de contar que a sua dinastia se
desfez em apenas quinze anos? — gracejou Simon de repente.
Não… Com aquele tom confiante, sorriso relaxado e inglês fluente,
não era Simon. Tang Taizong havia assumido o controle. Zack se
perguntou o que acontecia com Simon quando ele fazia aquilo, se sua
mente se retraía e perdia todo o controle sobre o corpo, tornando-se
um espectador da própria existência, como havia acontecido
brevemente com Zack. O garoto estremeceu. Estava dividido entre
sentir alívio porque aquilo não aconteceria com ele de novo e culpa,
porque, se não tivesse expulsado Qin Shi Huang, os demônios
provavelmente não teriam levado a alma de sua mãe.
Qin Shi Huang voltou sua carranca para Tang Taizong.
— Por que você não conta a ele que escolheu seu filho mais fraco
como herdeiro porque acreditava que ele era bondoso e gentil e não
mataria os próprios irmãos como você fez com os seus, sem perceber
que ele teria um caso com uma de suas concubinas enquanto você
sofria em seu leito de morte, e depois aquela concubina acabaria
usurpando sua dinastia e se tornando a única imperatriz mulher de
nossa história? Por que não conta essa história, hein?
O sorriso de Tang Taizong diminuiu.
— Nada disso foi culpa minha!
— Não me desafie, Taizong. — Qin Shi Huang levantou a palma
da mão e virou o rosto. — Tenho oitocentos anos a mais do que você.
Assisti à sua vida inteira. Sei de mais podres sobre você do que você
jamais saberá sobre mim.
— Que seja. Pelo menos eu criei a era de ouro da China. A era mais
diversa e tolerante que já existiu. Ou seja:
#DinastiaTangMelhorDinastia.
Tang Taizong fez o gesto de hashtag com os dedos.
— Usando hash…? — Qin Shi Huang fez uma careta. — Você está
no reino mortal há tempo demais.
Tang Taizong abriu um sorriso.
— Desculpe, estou preso no corpo de uma criança de doze anos.
Revirando os olhos, Qin Shi Huang se voltou para Zack, que sentia
o próprio cérebro derretendo com aquela conversa.
— Mas é verdade. Governei a China só por doze anos, e minha
dinastia desmoronou três anos depois de eu partir para o além. Não
foi uma grande surpresa. Eu havia feito muitos inimigos, tanto
mortais quanto sobrenaturais. Embora tampar o portal para o
submundo seja uma conquista que você não vai encontrar nos livros
de história. Tentei ao máximo apagar a existência do portal dos
registros oficiais. Quanto menos as pessoas acreditarem nele, menos
poder ele tem. Foi daí que surgiu minha péssima reputação de
queimar livros.
— Até parece. — Tang Taizong bufou. — Como se você não tivesse
queimado certos livros só para ter controle sobre súditos recém-
conquistados.
— Eu guardei cópias na biblioteca imperial! Foi Xiang Yu que as
destruiu quando incendiou meu palácio.
— Ah, claro. Jogue a culpa em Xiang Yu.
— Ele incendiou mes…
— Então, como sua magia funciona? — perguntou Zack, trazendo-
os de volta ao assunto principal. — Por que consegue controlar a
água? E… o tempo? Ou é supervelocidade, tipo o Flash?
Zack se lembrou dos muitos relâmpagos caindo dos céus.
— O Flash? — Qin Shi Huang pareceu confuso. — Ah, certo! Você
e seus deuses americanos…
— Não… hã, o Flash é um super-herói, não um deus.
— Dá no mesmo. Super-heróis são mitos americanos. Não foram
difundidos por tempo o suficiente para tomarem forma espiritual,
mas, se durarem mais alguns séculos, suponho que acabarei jogando
mahjong com Bruce Wayne e George Washington na mesma mesa
etérea.
— O quê? — Zack atingiu um novo patamar de incredulidade. —
Mas super-heróis não são venerados como se fossem de verdade.
— Não? Então o que é a Comic-Con, hein?
Zack não tinha uma boa resposta, então arquivou aquela
informação na pasta de Coisas Sobre O Mundo Para Parar de
Questionar Dali Em Diante.
— Tá bom, mas você também tinha esses poderes durante sua
vida? — perguntou o garoto.
Zack teria prestado bem mais atenção no documentário se ele
mostrasse Qin Shi Huang controlando água, invocando raios e
desacelerando o tempo.
— Não, eu fui uma pessoa normal durante minha vida mortal.
Contei com a cooperação de meus ancestrais no submundo para
tampar o portal. Mas depois que transcendi meu corpo físico…
— Ele morreu tomando pílulas de mercúrio porque achou que o
tornariam imortal — revelou Tang Taizong.
— Você também! — gritou Qin Shi Huang, sem olhar para Tang.
— Supostamente! As fontes discordam!
— Você sabe o que fez! Então, como eu estava dizendo… —
continuou Qin Shi Huang, arregalando os olhos para Zack. —
Quando morri, meu espírito adentrou a consciência cultural chinesa
como uma lenda. Conforme as histórias e crenças sobre mim se
tornavam mais mirabolantes com o passar de décadas, séculos e
milênios, ganhei habilidades espantosas. Entretanto, a magia lendária
é instável. Às vezes, é possível controlá-la, como quando criei minha
magia de desaceleração do tempo a partir das várias tentativas de
assassinato lendárias contra mim. Outras vezes, porém, você fica à
mercê dela. Eu conseguia levantar e cindir a terra com um chicote,
porque uma lenda dizia que eu construí a Grande Muralha dessa
maneira. Agora, essa lenda caiu no esquecimento, e sou mais
associado a habilidades de dragão, como controlar água e invocar
tempestades. Isso se deve em parte a um videogame popular
chamado Glória das Lendas, que me retratou assim.
Zack ficou chocado.
— Você pode ganhar poderes de um videogame?
— É claro — garantiu Qin Shi Huang. — O jogo encorajou uma
nova geração inteira a me imaginar tendo habilidades de dragão,
contribuindo assim para minha lenda.
— O jogo é tão popular assim? Eu nunca ouvi falar dele.
— É sério? — intrometeu-se Tang Taizong. — Glória das Lendas
está sempre entre os jogos mais vendidos no mercado chinês. Mas, ao
contrário de Reinomítico, não incluiu elementos ocidentais para o
lançamento internacional, então fracassou no exterior. Tsc. Acho que
história chinesa não é interessante para ocidentais.
— Claro. Reinomítico. — Zack se aprumou. — Como ele funciona?
O jogo é… real?
Qin Shi Huang respondeu:
— Não. Quer dizer, nem toda criatura nele é um espírito de
verdade. Porém, a exposição em larga escala das lendas dos espíritos
de verdade que estão soltos pelo mundo certamente os tornou mais
poderosos.
— Então como é que a visão dos meus óculos se parece com uma
batalha de Reinomítico quando lutamos contra espíritos?
— Ah, eu simplesmente me apropriei do design de interface. Devo
admitir, ele é bem conveniente e intuitivo. Sem contar que é muito
mais fácil transmitir informações subconscientemente para você do
que gritar comandos a cada segundo.
— Ah.
Zack não sabia se estava decepcionado. Teria sido legal se seu
videogame favorito fosse de verdade.
E por falar em decepções, ele sabia que já havia passado da hora
de fazer outra pergunta que o devorava por dentro, por mais que não
quisesse ouvir uma resposta negativa.
— E Jason Xuan? Você disse que ele também era… um
hospedeiro? Ele não é do mal, é?
Tang Taizong agarrou seus lençóis.
— Jason Xuan foi o hospedeiro escolhido pelo Imperador Amarelo,
o ancestral lendário do povo chinês. Depois de suspeitarmos da XY
Tecnologias, entramos no campeonato de Reinomítico para investigar
e descobrimos isso.
— Como se o nome da empresa não deixasse óbvio. — Qin Shi
Huang revirou os olhos. — Claramente significa Xuanyuan, um dos
nomes do Imperador Amarelo. Acreditamos que ele instruiu Jason
Xuan a criar a XY Tecnologias, e então enviou sonhos para as pessoas
a fim de influenciá-las a comprar os produtos e jogos da marca.
— O quê?! — exclamou Zack, levantando a mão de súbito para
arrancar os óculos inteligentes.
— Não! — Qin Shi Huang se jogou sobre o garoto enquanto sua
imagem virtual falhou sobre a cama. — Você tem que continuar com
o aparelho para se manter conectado a mim. É seguro. Eu já chequei
todos os aspectos da programação e desabilitei qualquer coisa que
permitisse que a XY Tecnologias nos rastreasse.
Zack afastou os dedos dos óculos inteligentes, mas continuou
apavorado.
— Mas, hã, por que o Imperador Amarelo iria querer que as
pessoas jogassem videogame?
Qin Shi Huang flutuou acima da cama outra vez, forçando Zack a
inclinar a cabeça para encará-lo.
— Jogos podem mudar sutilmente o modo como as pessoas
enxergam o mundo, especialmente jogos de realidade aumentada,
que conseguem misturar o faz de conta com a realidade. Veja
Reinomítico, por exemplo. Ao influenciar pessoas a caçar criaturas
míticas em realidade aumentada, ele essencialmente torna as
criaturas “reais” para os usuários, e assim os espíritos dessas criaturas
também se fortalecem. O suficiente para que, juntos, possam destruir
o tampão do portal se não o reforçarmos dentro de catorze dias.
— Por que exatamente catorze dias? — Zack inclinou a cabeça,
intrigado com as menções ao número.
— É quando começa o sétimo mês lunar — respondeu Tang
Taizong. — Na cultura chinesa tradicional, é o Mês dos Fantasmas.
Normalmente, apenas os espíritos mais lendários como nós
conseguem se esgueirar para o reino mortal, mas durante o Mês dos
Fantasmas acredita-se que todos os espíritos têm essa habilidade. O
fluxo intenso de espíritos escapando do submundo de uma só vez
pode romper o tampão do portal por completo. Então eles
tumultuariam a China, possuindo pessoas e poluindo suas mentes. O
caos poderia levar a China à guerra, o que seria desastroso com as
armas modernas de vocês.
Zack engoliu com dificuldade, sentindo a garganta ressecar. Aquilo
parecia tão absurdo que o garoto não conseguia acreditar que
estavam exigindo que ele fizesse algo a respeito. Era sempre o último
a ser escolhido para os times na aula de educação física!
— De fato — concordou Qin Shi Huang. — E como os espíritos das
criaturas serão gratos ao Imperador Amarelo por sua nova força… e
como lendas ressaltam sua fama de domador de feras… ele acha que
será capaz de controlá-las e usá-las como um exército pessoal. Ele é
arrogante demais.
É o sujo falando do mal-lavado, hein?, teria dito Zack se fosse mais
corajoso.
— Mas para que ele precisa de um exército? Se ele é o ancestral do
povo chinês, por que nos destruiria?
— Porque ele acredita que seus filhos se desviaram do caminho
correto, é claro, e precisam ser disciplinados. Não dá para negar que
os seres humanos modernos fizeram um trabalho péssimo e
decepcionante como cuidadores do planeta. O problema para o
Imperador Amarelo é que seu espírito vasto e antigo está espalhado
entre os reinos mortal e espiritual, já que as pessoas acreditam que
ele é, ao mesmo tempo, um ancestral divino e um mortal falecido.
Mesmo quando o Imperador Amarelo é adaptado para jogos de
videogame, como Jason Xuan tentou fazer diversas vezes, ele nunca é
popular. Um ancestral todo-poderoso é entediante se comparado a
lendas mais exuberantes, como a minha. E quando os jogos tentam
lhe dar mais personalidade, as pessoas rejeitam esse tipo de
representação. Somente com o portal entre os reinos fluindo
livremente ele conseguirá uma existência concreta, ao que tudo
indica com Jason Xuan como hospedeiro.
— Ele já não está possuindo Jason?
— Não, no momento ele consegue apenas influenciar, não possuir.
É a diferença entre eu falar com você versus dominar seu corpo. Ele
consegue sussurrar para as pessoas em seus sonhos, quando suas
mentes estão mais próximas do reino espiritual, mas não consegue
acompanhá-las de volta para o mundo real.
O coração de Zack apertou. Primeiro Shuda Li, agora Jason Xuan.
Ele não conseguia acreditar que dois de seus ídolos eram grandes
impostores sobrenaturais.
— Então temos que derrubar a XY Tecnologias?
— Não — respondeu Qin Shi Huang. — Não há motivo nem tempo
para isso. Mesmo que a empresa fosse à falência amanhã, as
memórias das pessoas sobre as criaturas não desapareceriam. Nossa
única opção é reforçar o tampão do portal. Estou ajustando meu
plano original. Só faça tudo o que eu disser, e teremos chance de
vencer, apesar dos inúmeros contratempos.
Zack não estava gostando nada daquilo, mas o espírito da mãe
estava em risco. Ele estremeceu com a memória de sua aparência sem
vida, ligada a todos aqueles aparelhos no hospital. Era fácil imaginar
a tampa de um caixão deslizando sobre seu rosto pálido.
Zack sentiu o medo se contorcer em seu âmago. Não podia perdê-
la. Não podia. Ela era sua família. Para onde iria se ela partisse?
Adoção?
Não.
Ele não conseguia imaginar esse futuro. Não queria imaginá-lo. Se
precisava ter sucesso naquela missão para trazê-la de volta, então era
isso que ele faria.
Faria qualquer coisa.
5
Como ficar rico e famoso alugando seu corpo para um
imperador morto
Zack não sabia onde estava. Parecia uma enorme câmara palaciana. A única
iluminação vinha de labaredas e se refletia em dezenas de grossos
pilares de bronze adornados com dragões, que se alçavam escuridão
acima.
Uma voz flutuou por seus ouvidos, fraca como uma brisa:
— Minha criança…
Assustado, Zack olhou em volta. Um frio metálico pairava no ar,
infiltrando-se em seus músculos e ossos. O garoto se arrepiou.
— Ele… está… mentindo…
Zack de repente teve o instinto de olhar para cima e avistou um
elaborado trono de bronze sobre uma plataforma mais à frente,
oculto nas sombras. Lá, encontrava-se sentada uma figura usando um
chapéu com uma cortina de contas familiar. Por algum motivo, o
terror atingiu Zack feito um raio.
— Ele… mãe…
A voz dizia algo importante, algo que Zack sabia que precisava
ouvir, mas as palavras ficavam abafadas nos momentos cruciais.
Observando os arredores, o garoto percebeu que estava em uma
longa plataforma de metal acima de uma poça de água escura, onde
algo branco se movia. Quando a coisa subiu à superfície, duas órbitas
pretas vazias o encararam.
Era uma caveira, emoldurada por um hijab vermelho.
Calafrios tomaram o corpo de Zack.
— Ele é um tirano, e sempre será! — A voz estava repleta de
angústia. — Não caia em suas mentiras, minha criança… Ele…
— Zack! Acorde!
Assustado, o garoto abriu os olhos. Simon estava ao lado dele,
sacudindo seu ombro.
— Vamos lá, estamos aterrissando. — A voz de Simon parecia vir
debaixo d’água. — Temos que colocar os cintos de segurança.
Zack apertou o próprio nariz e tentou suavizar a pressão nos
ouvidos. Os motores do avião voltaram a uivar com força total. Ele
estava coberto de suor frio.
— Você teve um pesadelo? — perguntou Simon, observando a
testa encharcada de Zack.
O garoto se afastou abruptamente de Simon, as bochechas
esquentando, e esfregou a testa com o braço. Ele devia ter tido um
pesadelo aterrorizante, mas, ao tentar se lembrar do sonho, sua
mente deu branco.
— Hã… Não me lembro.
— Ah. Se você se lembrar, avise. Qin Shi Huang deve ter fornecido
alguma proteção contra as tentativas do Imperador Amarelo de
influenciar você através de sonhos, mas nunca se sabe. Espíritos
chineses se comunicam através de sonhos com frequência. Isso se
chama tuōmèng.
— Tuōmèng — repetiu Zack em um murmúrio, as sílabas estranhas
em sua boca.
Aquela deveria ter sido sua língua materna, mas não era. A mãe
nunca falava mandarim com ele porque não queria que Zack tivesse
sotaque ao se comunicar em inglês. E ele não aprendeu sozinho
porque nunca sentiu vontade.
Agora estava prestes a aterrissar em um país que era estrangeiro
para ele. Não entenderia nada da língua ou dos costumes. Um país
que havia matado seu pai e forçado sua mãe a fugir com ele para
outro continente.
Depois que Simon e ele apertaram os cintos nos enormes assentos
de couro ao lado das camas, Zack passou a aterrissagem inteira com
os olhos fechados. O medo de acabar como o pai crescia dentro dele,
mas pensar em um demônio dilacerando o espírito da mãe era bem
pior.
Por ela. Ele aguentaria aquilo por ela.
Assim que botou os pés para fora do avião e na ponte de
desembarque que parecia um túnel, Zack sentiu um calor infiltrar
cada centímetro de seu corpo. Ele respirou fundo. Tendo passado os
últimos três anos no Maine, não estava mais acostumado com um
clima quente como aquele. Sua camiseta e suas calças ficaram
praticamente encharcadas depois da curta caminhada pela ponte.
Felizmente, o aeroporto tinha ar-condicionado. Os pisos brilhantes
refletiam as centenas de luzes do teto. Uma voz feminina suave fazia
anúncios em diversos idiomas. Como Zack e Simon eram menores de
idade desacompanhados, seguranças os ajudaram a pegar as malas e
os escoltaram na imigração chinesa. Zack não fazia ideia de como seu
visto estava sendo processado, mas achou melhor não levantar
suspeitas fazendo perguntas. Ele rezou para que ninguém descobrisse
que era filho de um dissidente que fora executado. Sua mãe havia
mudado legalmente o nome de Zack de Ying Ziyang para Zachary
Ying quando se mudaram para os Estados Unidos — talvez isso fosse
o suficiente? Era como se ele tivesse uma identidade secreta, mas que
não tinha nada a ver com os superpoderes que mal conseguia usar.
Enquanto os adultos se entendiam, Zack ficou boquiaberto diante
de tudo no aeroporto. A última vez que havia visto tanta gente num
só lugar fora durante o Ano-Novo em Nova York com a mãe, quando
os dois foram assistir à queda da bola na Times Square. (O que
acabou sendo muito decepcionante e frio. Zack tinha lembranças
melhores de beber chocolate quente e dividir um cobertor com a mãe,
rindo depois de finalmente terem conseguido chegar em casa do
evento, atravessando lamaçais e neve.) A multidão de turistas
conversava alto e carregava malas em grupos grandes, como se
desconhecessem o conceito de espaço pessoal.
Além disso, a maioria das pessoas no aeroporto se parecia com
Zack. Pela primeira vez em três anos, ninguém observava cada
movimento que o garoto fazia ou o encarava. Zack se sentiu tão…
normal.
Mas era uma ilusão. Ele não conseguia entender a língua que
falavam. Não conhecia as lendas e a história deles. Era um impostor.
Uma fraude.
Filho de um terrorista, imaginou os funcionários do aeroporto
sussurrando antes de o arrastarem para um “campo de reeducação”,
que o governo da China insistiria não passar de propaganda
ocidental.
Mas também não era como se Zack estivesse seguro nos Estados
Unidos. No ano anterior, ele havia se cadastrado em um site chamado
“Me Pergunte Qualquer Coisa”. A primeira pergunta anônima que
recebeu foi: Como se sente sendo filho de terrorista?
Ele ficou paralisado na cadeira por vários minutos, pensando que o
governo chinês o havia encontrado, até perceber que a pergunta
devia ter sido enviada por alguém que o vira chegando na escola com
a mãe, e que estavam se referindo a ela.
— Você tá bem? — perguntou Simon de repente, reparando em
Zack enquanto os dois esperavam diante do balcão de mármore de
uma funcionária da imigração.
— Eu…
Zack respirava em arfadas curtas. Não conseguia ar suficiente para
responder.
— Ei, vai ficar tudo bem. — Simon sorriu. — Você está em casa.
Estou mesmo? Um tremor abalou o coração de Zack. Será que
algum dia encontraria um lugar ao qual pertencesse de verdade,
mesmo sendo tão diferente de um americano típico, de um chinês
típico, e até de um muçulmano típico?
Quando a funcionária da imigração finalmente devolveu os
passaportes dos dois, falou algo em mandarim com um olhar
sombrio.
— O quê? O que foi? — perguntou Zack para Simon em um
sussurro frenético, agarrando a alça da mala.
Simon se virou para ele com uma expressão apreensiva, fechando
o passaporte como se fosse um livro.
— A filha dela é uma grande fã minha.
Zack soltou uma risada de puro alívio.
— Parabéns?
— Só fico aliviado por ela não ter pedido uma selfie ou algo assim
— resmungou Simon enquanto eles arrastavam as malas. — Eu
definitivamente não estou com cara de Shuda Li neste momento.
Zack estava viajando com uma celebridade. Aquele era um tipo
diferente de esquisitice, e bem mais fácil de lidar.
— Ah, um aviso — continuou Simon. — Nosso time tem um
terceiro membro. Ela veio nos buscar. É a hospedeira da, hã, própria
Wu Zetian. Então tome cuidado.
— Quem é essa? — perguntou Zack, sentindo o estômago revirar
de novo com o receio de estar em um planeta alienígena. — Simon,
eu não conheço esses nomes que você solta.
— Ah! Desculpe. Sabe a concubina da qual Qin Shi Huang estava
reclamando? A que era casada com Tang Taizong, mas ficou com o
filho dele quando o marido estava no leito de morte e depois usurpou
tudo até se tornar a única imperatriz na história da China? É ela.
— Ah. Uau.
— Está tudo bem, não fique tão assustado. A hospedeira dela tem
a nossa idade, porque os imperadores encarnaram um pedaço de seu
espírito ao mesmo tempo doze anos atrás. Ela se chama Wu Mingzhu,
ou Melissa Wu.
— Ela fala inglês?
— Sim, muito bem. Nós dois frequentamos uma escola
internacional em Xangai.
Zack deixou escapar um pequeno suspiro de alívio. Apesar do
sotaque perceptível, Simon não tinha nenhuma dificuldade para
entender Zack, então com sorte aconteceria o mesmo com ela.
O portão de desembarque surgiu à frente, cercado por várias
pessoas atrás de barreiras de contenção de metal. Só que, em vez de
segurarem cartazes com nomes, como nos filmes, havia letras e
caracteres virtuais acima de suas cabeças. A maior parte dos nomes
estava em chinês, mas havia outras línguas também, visíveis no
Campo de Realidade Aumentada Comum ao qual os óculos
inteligentes conseguiam se conectar. Outra coisa que Zack tinha
notado era que quase todo mundo usava óculos inteligentes, não
apenas os jovens, como nos Estados Unidos. E faziam usos muito
mais práticos deles. Tanto que ele raramente via celulares. Pessoas
em todas as direções falavam no microfone que era possível baixar da
haste esquerda dos óculos inteligentes e arrastavam janelas virtuais
diante de si, que apareciam na visão de Zack como caixas
transparentes desfocadas. Ele devia ter se conectado
automaticamente a uma rede Wi-Fi para ser capaz de vê-las — ou
talvez Qin Shi Huang tivesse feito isso por ele.
Provavelmente graças a mais uma intromissão de Qin Shi Huang,
os cartazes virtuais se apagaram até restar apenas um em magenta
vibrante que dizia Zack & Simon. No instante em que Zack avistou a
menina de rabo de cavalo debaixo das letras, soube que devia ser
dela que Simon havia falado. Estava vestida de maneira muito adulta
para alguém da idade deles. Usava um vestido branco chique,
sandálias plataforma combinando, enormes óculos de sol cor-de-rosa
no formato de olho de gato, brincos de argola e várias pulseiras
intricadas, tudo de prata, além de carregar no ombro uma bolsa
enorme que parecia cara.
Ela deu um gritinho quando os viu. Assim que os dois passaram
pelos portões e pelas barreiras de contenção, a garota andou a passos
largos até eles, com os braços abertos e o rabo de cavalo balançando.
Suas sandálias plataforma a deixavam consideravelmente mais alta
que Zack e Simon.
— E aí, otários?
Seu perfume os alcançou antes dela. Zack tinha que admitir que
era bem cheiroso, uma combinação de baunilha e frutas vermelhas.
Uma legenda de Reinomítico apareceu ao lado da menina.
WU ZETIAN
“Imperatriz Wu”
Nome verdadeiro: Wu Zhao (ou então foi ela que inventou)
Viveu entre: 624-705 d.C.
A única mulher a se tornar imperatriz na história da China.
Usurpou a dinastia Tang para fundar a dinastia Zhou, que
durou quinze anos, até devolver o trono ao filho. NÃO
ARRUME CONFUSÃO COM ELA EM HIPÓTESE ALGUMA.
— Por acaso você sabe alguma coisa sobre Shang Yang? — perguntou
Simon a Zack no caminho para o museu.
Os dois estavam sentados no banco de trás enquanto Yaling dirigia.
Melissa havia tomado o lugar do carona sem que ninguém se
opusesse. Avançando ao lado de múltiplas pistas de carros, eles
passaram sob várias estradas elevadas de concreto que se contorciam
e se enroscavam, iluminadas por baixo com um tom de azul sinistro
de ficção científica. Xangai era muito mais entusiasta dos LEDs do
que Nova York.
— Pode presumir que eu não sei nada sobre nada da próxima vez,
Simon — respondeu Zack, abrindo um sorriso fraco.
— Certo. Bom, para obter poder desse artefato, você precisa
entender sua importância. Então acho que tenho que falar um pouco
sobre ele.
Simon pressionou duas vezes o ar à frente dos óculos inteligentes
para abrir uma nova janela, depois ergueu as mãos na posição de
digitar. Um teclado virtual apareceu sob seus dedos. Ele digitou algo
na barra de pesquisa.
— Shang Yang foi o cara que tornou o reino de Qin tão poderoso
que, apenas cem anos depois, Qin Shi Huang conseguiu conquistar
toda a China. Ele fez isso basicamente transformando o país em um…
como se chamam aqueles jogos on-line enormes mesmo? Tipo World
of Warcraft? Desculpa, esqueci o nome.
— MMOs? Jogos multiplayer massivos on-line? — sugeriu Zack,
descansando o cotovelo na janela do carro.
Faixas de luz urbana corriam do lado de fora, quase no ritmo do
hip-hop em mandarim que tocava no rádio.
— Sim, ele basicamente transformou o reino de Qin em um jogo
desses!
— Qual é a das comparações com videogame?
— Ei, nós somos uma nação gamer com orgulho! — exclamou
Simon, rolando pelos resultados da busca que pairavam à sua frente.
— Qin tinha ranks e tudo. Vinte deles. Para upar, era preciso entregar
a cabeça de inimigos derrotados em batalha. Quanto mais alto
alguém estava no rank, mais terras e servos recebia.
— Sério?
— Sim. Supostamente, os exércitos inimigos viam os soldados qin
avançando contra eles com cabeças decepadas penduradas nos cintos.
Eles se tornaram uma máquina de guerra imparável em poucas
décadas, tudo graças às reformas de Shang Yang.
Com dois dedos, Simon moveu uma imagem virtual em direção a
Zack. Era um meio busto, uma estátua de pedra branca de um
homem com aparência severa em uma pose taciturna.
— É ele? Parece malvado.
— Ele era. Bom, ele era rígido. Suas leis eram tão intensas que o
reino de Qin foi basicamente o primeiro Estado policial do mundo. Se
alguém soubesse que o vizinho cometeu um crime, mas não o
denunciasse, seria punido junto com ele. Shang Yang inclusive
morreu por causa das próprias leis. Quando o antigo rei que gostava
dele faleceu e um novo rei que não gostava dele assumiu o trono,
Shang Yang tentou fugir de Qin, mas nenhuma hospedaria o deixou
ficar anonimamente, porque havia uma lei instituída pelo próprio
Shang Yang que dizia que todo estabelecimento precisava checar os
documentos de identificação dos viajantes, então ele logo foi
capturado e executado. Ele é o motivo pelo qual os chineses associam
“Qin” a “rigidez e crueldade”. Curiosidade: a Nação do Fogo em
Avatar foi parcialmente inspirada neles.
Zack ficou boquiaberto.
— Você está me dizendo que eu sou conectado espiritualmente ao
Senhor do Fogo Ozai da vida real?
— Tipo isso. Quer dizer, se Ozai tivesse realmente conquistado
tudo. E fosse um dobrador de água. E… bem, não fosse um genocida.
— Ahhhh, cara.
Zack se afundou no assento. O cinto de segurança apertava sua
barriga. De repente, seus óculos inteligentes pareciam tão pesados
quanto um tijolo sobre seu nariz.
— Mas, enfim, havia uma razão para a rigidez dele. Antes de
Shang Yang aparecer, o reino de Qin estava definhando ao oeste da
China porque nobres preguiçosos tinham todo o poder e a riqueza,
então os plebeus não viam motivo para trabalhar duro. Shang Yang
mudou tudo ao seguir uma filosofia chamada “legalismo”, que
considerava que a lei era a coisa mais importante, não a linhagem de
sangue ou a origem. Então ele pode ter sido rígido, mas foi rígido
com todo mundo de forma igualitária. Ele destruiu os privilégios dos
nobres ricos de maneira que, não importava a condição em que você
tinha nascido, poderia ter uma vida boa se ajudasse a tornar o reino
de Qin mais forte. Qin se tornou a terra das oportunidades. Plebeus
de outros países ficaram superintrigados por motivos óbvios, e Qin os
atraiu propondo vários benefícios.
— Isso é meio parecido com os Estados Unidos — comentou Zack,
olhando para o busto de Shang Yang de uma nova perspectiva.
— Os Estados Unidos em teoria — rebateu Simon, levantando uma
sobrancelha. Retalhos de neon giravam sobre seu rosto, vindos de
placas chamativas na frente de lojas e prédios. — Eu diria que os
imigrantes da época tiveram uma chance maior de conquistar o
Sonho Qin do que as pessoas hoje em dia têm de conquistar o Sonho
Americano.
Zack queria refutar aquilo, mas não conseguiu. Não quando sua
mãe altamente qualificada vinha trabalhando quase sempre no varejo
fazia uma década.
— E tem mais — continuou Simon. — Ao contrário do restante do
mundo, os Estados Unidos ainda não usam o sistema métrico! Isso é
tão diferente do que o reino de Qin defendia. Parte do legalismo é
que um Estado só pode ser forte quando tem padrões claros para
tudo, então Shang Yang padronizou todos os sistemas de medida no
reino de Qin. Qin Shi Huang mais tarde implementou os mesmos
padrões por toda a China.
Simon consultou o que parecia ser uma imagem de análise
acadêmica do recipiente medidor. Linhas de texto em chinês antigo
nas laterais e na parte de baixo do artefato estavam ampliadas com
destaque.
Duas traduções apareceram para Zack, explicando que os textos
registravam os feitos de Shang Yang e Qin Shi Huang,
respectivamente. Um sentimento nostálgico o atingiu de repente,
fazendo seu coração acelerar. Talvez a parte do espírito de Qin Shi
Huang dentro dele estivesse reverberando com o texto.
Simon continuou:
— Qin Shi Huang costuma receber todo o crédito por unificar a
China, mas ele sabia que não teria conseguido fazer isso sem o
trabalho de Shang Yang cem anos antes. Ele era tão fã de Shang Yang
e do legalismo que padronizou todas as moedas da China, além da
largura das estradas para que carruagens não tivessem problemas, e a
escrita chinesa para que a comunicação ficasse mais fácil. Esses
sistemas padronizados provavelmente são o motivo de a China
sempre ter se reunificado, não importando quantas vezes tenha se
despedaçado em guerras civis. A gente ouve falar dos impérios
construídos por Alexandre, o Grande, Genghis Khan e Napoleão, mas
onde eles estão hoje em dia? A China é o único que restou. E é tudo
graças ao que este recipiente representa.
Simon parecia ter muito orgulho daquilo, mas Zack se sentiu um
pouco inquieto com aquele papo de “padronização”. Sempre que um
império ou país promovia que todos fossem iguais ou fizessem as
mesmas coisas, havia inevitavelmente aqueles que sofriam por não
conseguir deixar de ser diferentes. E a China de Qin Shi Huang não
parecia tolerar a diferença.
Com seu histórico de ser diferente, se Zack tivesse nascido naquela
época, será que Qin Shi Huang teria permitido que ele vivesse?
Zack considerou perguntar isso em voz alta, mas acabou engolindo
as palavras. Não era a hora de começar uma discussão.
— Uau — comentou sobre a imagem do recipiente de aparência
comum de Shang Yang. Conhecer sua história realmente fazia uma
grande diferença na forma como ele enxergava o artefato. — Cara,
como você sabe tanta história?
Simon deu de ombros.
— A maioria dos chineses sabe. História é muito importante para
nós. Essas foram, tipo, as minhas histórias de ninar.
— Suas histórias de ninar eram sobre legalistas malvados e
pessoas que decepavam a cabeça dos inimigos para upar de rank?
— Ué, as suas não eram? — perguntou Simon, com um olhar
confuso.
Zack ficou sem resposta até Simon rir e dizer:
— Tá bom, Melissa e eu provavelmente sabemos muito mais
histórias do que crianças chinesas comuns. Tivemos que estudar
bastante para tornar nossa magia mais forte. Além disso, eu sou de
uma família de acadêmicos. Minha mãe é professora de história e
meu pai é arqueólogo.
— Uau. Eles não ficariam animados de conhecer os espíritos dos
imperadores de verdade?
— Ficariam. — O olhar de Simon se perdeu para além do para-
brisa. Mais LEDs delineavam os arranha-céus distantes na névoa à
frente. — Ah, cara, como ficariam. Mas eu não posso quebrar minha
promessa de manter Tang Taizong em segredo.
— O que aconteceria se você a quebrasse? Você fez algum tipo de
pacto mágico? Ele… machucaria você?
Zack hesitou ao perguntar, receoso de que Tang Taizong pudesse
aparecer de repente e atacá-lo, mas Simon tinha dito que os
imperadores não costumavam observar tudo através dos olhos dos
hospedeiros. Para manter seus sinais espirituais o mais baixo possível,
eles hibernavam como laptops fechados, despertando apenas quando
Simon e Melissa chamavam por eles em sua mente. Então eles
emergiam superficialmente para oferecer conselhos como uma voz
interior ou tomavam o controle por completo caso Simon e Melissa
não conseguissem lidar com a situação.
— Não, não há um pacto mágico, e não estou fazendo isso por
medo de ser punido. Eu realmente devo uma para ele. — Simon
abaixou a cabeça, brincando com os polegares. — Meu irmão mais
novo tem paralisia cerebral. Minha família passou por dificuldades
durante anos para dar conta das despesas médicas, até que Tang
Taizong me arranjou um monte de oportunidades com sua astúcia. O
mínimo que eu posso fazer para retribuir é cumprir esta missão de
maneira perfeita.
Zack assentiu. Não era de se espantar que Simon não tivesse
dificuldade em prosseguir com aquela loucura de enfrentar demônios
e roubar museus. Ele também estava fazendo aquilo pela família.
Zack apontou a cabeça em direção a Melissa e sussurrou:
— E ela? Está mesmo arriscando a vida só para se tornar uma
estrela pop?
— Mel? — Simon pareceu confuso, depois sorriu e bufou. —
Tenho certeza de que ela arriscaria a própria vida só por diversão,
mesmo que não houvesse um prêmio no final.
Melissa se virou bruscamente, fazendo o cinto de segurança
repuxar seus ombros.
— Eu consigo ouvir vocês dois, sabia?
Então algo colidiu com a lateral do carro.
Todos gritaram. O impacto fez Zack sufocar com o cinto de
segurança. Yaling desviou o carro, com os pneus guinchando. Buzinas
soaram atrás deles.
Uma pessoa vestida toda de couro, apesar da noite quente de
verão, seguia ao lado deles em uma moto. Seus olhos emitiam um
brilho branco através do visor escuro do capacete.
— Ah, não! Aquele homem está possuído por Jing Ke! — exclamou
a voz de Qin Shi Huang nos óculos inteligentes de Zack.
Uma legenda apareceu:
JING KE
Viveu entre: ?-227 a.C.
Assassino imortalizado em lenda porque tentou matar Qin Shi
Huang, embora tenha falhado. Fingiu ser um emissário do
reino de Yan e alegou que queria mostrar mapas estratégicos
para Qin Shi Huang em rendição. Na verdade, escondeu uma
adaga banhada em veneno no mapa e sacou-a enquanto Qin
Shi Huang estava distraído com os detalhes geográficos.
Perseguiu-o ao redor de um pilar do palácio até Qin Shi
Huang empunhar sua espada longa e retaliar. Não imagine
isso como uma cena de Tom e Jerry.
Eles dispararam por becos estreitos e ruas vazias e escuras, onde a maioria
das vitrines estava fechada com grades de metal e apenas algumas
lojas continuavam iluminadas e abertas, derramando faixas de luz
sobre o asfalto. Ocasionalmente, cruzaram com vendedores
ambulantes de comida ou pessoas sentadas em bancos na calçada,
abanando-se com leques trançados gigantes. O vento uivante
carregava todo tipo de cheiro, frituras deliciosas em um segundo e
esgoto no seguinte.
Felizmente, chegaram ao Museu de Xangai antes da velocidade e
do vento partirem Zack ao meio. Eles subiram uma rampa ao lado da
escadaria principal e pararam diante das portas de vidro. As pernas
de Zack estavam moles feito macarrão quando ele desceu da
bicicleta. Todas as células em seu corpo tremiam com energia
sobressalente, como se ele fosse o Flash logo após sair da Força de
Aceleração. Sua bunda latejava por conta da força com que havia se
agarrado ao assento.
Situado em frente a uma enorme praça, o museu tinha a aparência
de uma panela com uma alça no topo. Na verdade, vendo melhor, o
telhado tinha várias alças, cada uma na direção de um ponto cardeal.
Se gigantes existissem — e Zack estava começando a suspeitar que
existiam mesmo —, provavelmente conseguiriam erguer o prédio e
sair andando.
— C-como vamos passar pelos sistemas de segurança? — Os
dentes de Zack batiam como se ele tivesse tocado um fio
desencapado.
— Nós não vamos — respondeu Melissa, jogando o cabelo por
cima dos ombros. Ele havia caído do coque apertado que ela fizera
antes da corrida e inflado para o dobro do volume original, como se
ela estivesse pronta para posar na capa de uma revista. — Mas Wu
Zetian pode invocar alguém para nos ajudar. Cubram minha
retaguarda.
Ela posicionou as mãos como se estivesse rezando e murmurou Wu
Zetian. Aquela parecia ser uma pitada de drama opcional, porque
Simon não fazia nada parecido quando chamava Tang Taizong para
se apossar de seu corpo.
A legenda virtual de Wu Zetian apareceu quando os olhos de
Melissa se abriram. Ela ergueu uma das mãos e painéis coloridos
surgiram diante dela, curiosamente parecidos com as cartas que
representavam o catálogo de criaturas em Reinomítico — porém, em
vez de criaturas míticas, cada carta tinha uma pintura em aquarela de
uma pessoa com trajes chineses antigos. Zack não sabia se os painéis
eram espirituais ou virtuais. De qualquer forma, ele não seria capaz
de vê-los sem os óculos inteligentes. Com um gesto de Wu Zetian, as
cartas se moveram em um borrão. Ela pressionou para pausar em
uma específica, então abriu os dedos na frente dela.
— Pelo comando de seu imperador… — Os olhos de Wu Zetian
emitiram uma luz branca. — Erga-se, Di Renjie, detetive lendário!
Uma rajada de vento soprou na frente dela, agitando sua jaqueta
folgada e seu cabelo comprido. Zack protegeu os olhos da poeira que
infiltrou seus óculos, mas soltou o ar quando uma rede de linhas
brancas se iluminou ao longo do corpo de Wu Zetian. As linhas
brilhavam vividamente em seu rosto, pescoço e mãos, e sutilmente
sob suas roupas, especialmente as leggings pretas.
— O que está acontecendo com ela? — Zack ergueu a voz por
cima do uivo do vento.
Ele se lembrava vagamente de uma rede similar cobrindo sua pele
durante a batalha contra Aiden, a diferença era que suas linhas eram
pretas.
— Os meridianos de qi dela estão se iluminando! — explicou
Simon, protegendo os próprios óculos inteligentes também.
— Meridianos?
— A rede que carrega o qi por nossos corpos! É nisso que a
medicina tradicional chinesa, como a acupuntura, se baseia. Significa
que ela está conduzindo seu qi com muita, muita força. Os
imperadores conseguem invocar subordinados de suas dinastias,
desde que eles também sejam lendários, mas alimentar essa magia
requer muito qi.
O vento foi substituído por descargas de luz branca, que se
juntaram para formar um antigo oficial chinês. Ele usava um chapéu
redondo e volumoso com duas abas pendendo na altura pescoço. A
parte inferior de sua túnica com cinto ondulava acima das botas. Uma
legenda apareceu ao seu lado.
DI RENJIE
“Juiz/detetive Di”
Viveu entre: 630-700 d.C.
Famoso chanceler que serviu sob as ordens de Wu Zetian.
Conseguiu permanecer moralmente correto na corte
aterrorizada pela polícia secreta da imperatriz. Era uma das
únicas pessoas que podia confrontá-la. É protagonista em
histórias de detetive chinesas, basicamente o Sherlock
Holmes da China.
CHENG YAOJIN
Viveu entre: 589-665 d.C.
Guerreiro que contribuiu muito para a fundação da dinastia
Tang e para o golpe em que Tang Taizong obteve o trono.
Serviu sob as ordens dos três primeiros imperadores Tang.
Famoso no folclore por surgir inesperadamente para
solucionar alguma situação ou atrapalhar o que quer que
esteja acontecendo. Símbolo do ditado popular “E então
Cheng Yaojin apareceu de repente no meio das coisas”,
usado para descrever interrupções repentinas nos planos.
Pode ser considerado o Leeroy Jenkins da China Antiga.
GAO JIANLI
Viveu entre: ?-? a.C.
Músico amigo de Jing Ke, que havia se despedido dele ao
partir para a tentativa de assassinato com uma famosa música
de luto no rio Yi. Tentou se infiltrar no palácio de Qin e
completar a missão após a morte de Jing Ke. Teve sua
identidade revelada antes que pudesse tentar. Entretanto, já
que tocava o pipa tão bem, Qin Shi Huang permitiu que
vivesse como músico da corte sob a condição de que fosse
cegado. Tentou matar Qin Shi Huang mesmo assim, enchendo
seu pipa com chumbo e usando-o para golpear a cabeça do
imperador, mas errou a mira. Provavelmente porque estava
cego.
Zack não dormiu bem. Sonhou com várias coisas terríveis. Espadas
colidindo, campos queimando, pessoas gritando e fugindo. Ele
aconchegado num aposento de palácio tenebroso de madeira escura e
bronze frio, com lamparinas estalando nos cantos de sua visão. A mãe
aos berros enquanto era dilacerada, pedaço a pedaço.
Ficou mais do que aliviado quando Simon o acordou de manhã e
os pesadelos deram lugar à realidade, embora a realidade também
fosse bem estressante.
Mesmo assim, ao rolar para fora da cama, Zack não conseguiu se
livrar da sensação de que havia se esquecido de alguma coisa
importante no meio da confusão da guerra e do sofrimento.
Alguém… havia lhe contado um segredo?
Ele tentou se lembrar enquanto se arrumava e enfiava seus poucos
pertences dentro de uma mochila que Simon havia lhe dado, feita de
um material grosso à prova d’água, mas não teve sorte. Então apenas
saiu do quarto com a mochila.
— Ei! — chamou Simon, fazendo um sinal para que Zack se
aproximasse do sofá na elegante sala de estar. Ele gesticulou para o
que pareciam óculos de ski gigantes na mesa de centro. — Você vai
precisar disso para a próxima etapa da missão. Deixe por cima das
outras coisas para ter acesso fácil.
Assim que pegou os óculos, com o elástico de borracha preta
pendendo das mãos, Zack reconheceu o aparelho de mergulho da XY
Tecnologias, feito para que o usuário pudesse enxergar nitidamente
debaixo d’água enquanto usava óculos inteligentes.
— Hã… A gente vai nadar ou algo do tipo?
— Mmm. — Simon balançou a cabeça. — Em algum momento. Eu
espero.
— Como assim? Para onde vamos hoje?
— Para uma cidade ao norte, Qinhuangdao. Que significa
literalmente “ilha do imperador Qin”. Foi o lugar de onde Qin Shi
Huang enviou uma frota de navios para o Pacífico em busca de
Penglai.
— Penglai?
Simon pareceu surpreso. Claramente aquilo era mais uma coisa
que todas as pessoas chinesas sabiam exceto Zack.
— Certo, hã… É uma famosa ilha mítica onde sábios taoístas
cultivam pílulas mágicas que concedem imortalidade. Nós vamos
para lá e, se tudo der certo, conseguir algumas dessas pílulas. Porque,
caso contrário, não teremos a menor chance de sobreviver à viagem
para onde precisamos ir de verdade, que é o Palácio do Dragão do
Mar do Leste.
Justo quando Zack pensou estar se acostumando com essa coisa de
missão sobrenatural, Simon tinha que trazer à tona ilhas míticas,
pílulas de imortalidade e palácios de dragão.
Zack apenas o encarou, inexpressivo, para que ele continuasse a
explicação. Simon ativou o modo professor de história.
— Então, a coisa mais importante que precisamos encontrar é o
Selo Relíquia do Reino. É o único artefato poderoso o suficiente para
reforçar o tampão do portal. Era um carimbo imperial que Qin Shi
Huang esculpiu a partir do Héshìbì, um pedaço de jade lendário. Por
mais de mil anos, o selo foi o símbolo da autoridade suprema sobre a
China e passou pelas mãos de centenas de imperadores, incluindo Wu
Zetian e Tang Taizong. Isso faz com que esteja conectado à magia de
todos eles, então seria inimaginavelmente poderoso nas mãos de um
imperador lendário. Foi perdido durante uma guerra há mais ou
menos setecentos anos, mas os imperadores têm informações
privilegiadas e confiáveis de que foi parar no oceano Pacífico, onde o
Rei Dragão do Mar do Leste o guardou em sua câmara de tesouros.
Então vamos fazer um mergulho profundo para roubá-lo.
Zack decidiu apenas aceitar o fato de que aparentemente existia
um Rei Dragão que governava uma parte do Pacífico.
— E nós temos que ser… imortais para isso?
— Dã — respondeu Melissa, escancarando a porta de seu quarto.
— Nenhum de nossos imperadores tem magia capaz de nos manter
vivos no fundo do oceano. Tenho certeza de que nem dá para ir tão
fundo assim de submarino.
Zack ficou boquiaberto ao ver o cabelo bagunçado e o rosto não
lavado de Melissa. Não pensava que ela fosse capaz de parecer tão
casual. As intricadas pulseiras de prata em seus braços eram o único
indício de que ela era a mesma garota que ele havia conhecido no dia
anterior. Melissa se arrastou para a cozinha usando uma camiseta
larga, calças de pijama e pantufas de coelho.
— Ugh. Tá cedo demais para isso.
Ela abriu a geladeira e pegou uma garrafa de vidro de iogurte.
— Mel — repreendeu Simon. — Já são nove da manhã.
— Já… — retrucou ela, indignada com ele, depois balançou a
cabeça. — É por isso que o nosso casamento não deu certo.
— Casamento? — A voz de Zack saiu aguda demais.
— Ignore ela — balbuciou Simon, sacudindo as mãos. — Às vezes
ela gosta de fingir que nós somos Tang Taizong e Wu Zetian de
verdade.
— É por isso que você não conseguiu a guarda das crianças —
disparou Melissa na lata, enquanto enfiava um canudo fino na tampa
de alumínio do iogurte.
— Tang Taizong e Wu Zetian nem tiveram filhos juntos!
Zack soltou uma risada constrangida, mas sentiu seu coração
afundar quando notou a cor se espalhando pelas bochechas de
Simon.
Será que Simon gostava de Melissa? Zack não ficaria surpreso.
Melissa era muito bonita, mesmo sem maquiagem e com o cabelo
feito um ninho de galinha. E ela era destemida. E confiante. E uma
garota.
Garotos gostam de garotas. Era assim que a maioria das pessoas
funcionava.
Enquanto Melissa voltava para seu quarto, Zack pigarreou e
perguntou:
— Então, como essas pílulas de imortalidade funcionam? A gente
não vai viver para sempre de verdade, vai?
— Não, não. — Simon balançou a cabeça. — É imortalidade no
sentido de “não morrer por motivos mortais”. Os imperadores
planejam pedir pílulas com efeito de um dia e, durante esse dia, não
vamos precisar respirar nem ser afetados pelo frio ou pela pressão da
água. Mas se um dos soldados do Rei Dragão nos apunhalar com uma
lança espiritual, ainda podemos nos machucar ou morrer, então
vamos precisar tomar cuidado. Ainda bem que a XY Tecnologias tem
esse aparelho de mergulho, então você vai continuar tendo acesso a
Qin Shi Huang.
— Ah, aposto que eles se arrependeriam de fazer esse produto se
descobrissem que estamos usando isso para nossa missão. — Zack
guardou os óculos de ski na mochila, lembrando-se de que Jason
Xuan fundou a empresa para fortalecer os espíritos para que
pudessem arrombar o portal. — Espera, a XY Tecnologias não vai vir
atrás da gente, vai?
— Ah, com certeza Jason Xuan está vigiando todos os nossos
passos — respondeu Simon. — Mas ele não pode fazer muita coisa
em relação a nós. Não é como se toda a empresa soubesse ou fosse
acreditar que ele está conectado ao Imperador Amarelo, ainda mais
porque ele não pode usar magia para provar isso. Ele só ia parecer
esquisito e birrento, indo atrás de um bando de crianças. Ele nem
conseguiu me impedir de ganhar a competição, lembra? Então só
vamos ter que lidar o Imperador Amarelo influenciando mais
espíritos para nos atacar. Aí nós encaramos eles quando surgirem.
— Ótimo — resmungou Zack.
Uma parte dele ainda estava triste de ter Jason Xuan como
inimigo, mas pelo menos ele não teria que lutar diretamente contra o
ex-ídolo.
Depois que Melissa reapareceu como uma estrela pop outra vez, com
o cabelo preso no rabo de cavalo que era sua marca registrada e
todas as imperfeições da pele camufladas, ela bateu à porta do quarto
de Yaling para chamá-la, e depois o grupo saiu para tomar café da
manhã. Zack se sentiu instintivamente ansioso, já que ele e a mãe
nunca tinham dinheiro para comer fora, mas Simon o assegurou de
que não precisava se preocupar com isso. Zack ficou tocado ao
descobrir que Simon havia escolhido um restaurante halal. Eles
atravessaram uma ruela para chegar lá. O tráfego se movia devagar
em meio ao ar quente e abafado. Carros se espremiam pelo meio das
vias estreitas, enquanto bicicletas e motos desviavam de pedestres
nas laterais, tocando as campainhas e buzinas. Os chineses
certamente não eram tímidos com as buzinas. Suor se acumulava
debaixo das alças da mochila, então Zack tinha que usá-la sobre um
ombro só, como se quisesse parecer descolado. Ele viu, ouviu e sentiu
cheiro de muitas coisas pela primeira vez, incluindo o canto de
cigarras de verdade. Uma vendedora ambulante tinha os insetos em
pilhas de pequenas jaulas trançadas. Os preços flutuavam no Campo
Comum de Realidade Aumentada. Quando a vendedora percebeu
Zack encarando, ela o chamou e acenou para que se aproximasse. O
garoto seguiu em frente, constrangido.
A cada passo que dava, ele imaginava os pais andando pelo mesmo
lugar anos e anos antes. Teriam as imagens, os sons e os cheiros
inspirado amor ou ódio? Zack não tinha a expectativa de gostar de
muita coisa na China, mas, quando passaram por uma ambulante que
derramava massa sobre uma grelha escaldante atrás do vidro
gorduroso de seu carrinho, ele sentiu o estômago roncar com a
certeza de que o que quer que aquilo fosse, seria delicioso. E a
atmosfera geral da rua era… inegavelmente caótica, mas havia algo
de reconfortante no movimento, como se fosse uma prova de quão
vibrante a vida podia ser.
Assim que chegaram ao restaurante, que tinha uma placa com a
palavra “halal” em árabe escrita em letras verdes
surpreendentemente grandes, eles se sentaram ao redor de uma mesa
de linóleo pegajosa. Um ar-condicionado gorduroso soprava sem
parar acima deles, e uma fita balançava na saída de ar. Duas outras
mesas estavam ocupadas, uma por uma avó que alimentava a neta e
a outra por um casal jovem com roupas estilosas, rindo enquanto
arrumavam a comida para tirar fotos dela.
Simon sorriu ao passar para os outros uma série de menus
laminados que ficavam enfiados entre as paredes encardidas e
diversos potes de molhos sobre a mesa.
— Na Ásia, se você quer comida boa, não vai aos restaurantes
chiques de cinco estrelas, e sim a lugares minúsculos como este ou
então come na rua.
Ele traduziu o cardápio para Zack, e depois Yaling foi até o balcão
para fazer os pedidos. Claramente se tratava de um restaurante de
família, e Zack ficou espantado ao ver como eles eram visivelmente
muçulmanos. O pai, vestindo um chapéu taqiyah branco, puxava e
esticava macarrão por trás do painel de vidro. A mãe, de hijab, servia
um caldo transparente em tigelas largas. O filho adolescente anotava
o pedido de Yaling.
Zack sabia que o grau de opressão que os muçulmanos
enfrentavam na China variava muito de acordo com a região, sendo
muito pior no oeste do que ali no extremo leste, mas ele havia
crescido com a imagem mental de que o governo chinês aprisionava
todo muçulmano que avistava. Aquilo claramente não era verdade.
Ele não conseguiu deixar de imaginar sua família tocando um
pequeno negócio como aquele, num universo alternativo em que seu
pai nunca havia se manifestado contra o governo. Ao contrário do
que acontecia na maioria dos outros países, sua mãe teria tido a
liberdade de se tornar uma imam — ou āhōng, como se dizia em
mandarim. Muçulmanos hui eram os únicos a manter a tradição de
mesquitas lideradas por mulheres. A mãe de Zack, uma feminista
muçulmana que seguia uma visão mais liberal do Corão, se gabava
disso com frequência. Se a família de Zack tivesse simplesmente
ficado no leste do país sem criar confusão, poderiam ter vivido em
paz.
Zack sabia que nunca era errado usar a própria voz contra a
tirania. Alguém tinha que falar nesses momentos. Mas, às vezes, ele
se perguntava por que tinha que ter sido sua família.
Por que tinham sido eles a assumir o risco e perder tudo?
— Zack? — chamou Simon, tocando seu ombro.
— Hã? — fez Zack, voltando a prestar atenção.
— Tudo bem?
— Ah. Só estava pensando na minha mãe — respondeu Zack,
jogando uma meia mentira.
Desejar que seus pais tivessem se calado diante da opressão era
algo egoísta demais para admitir em voz alta.
Simon e Melissa ficaram tensos. De repente, pareciam se sentir
muito culpados, o que fez Zack se sentir culpado por tornar o clima
constrangedor de novo.
Felizmente, Yaling começou a trazer os pedidos deles bem naquele
momento, pratos envoltos em plástico com kebabs encharcados de
tempero e quatro tigelas de macarrão Lanzhou com carne, o prato
típico do povo hui. A mãe de Zack fazia aquele macarrão o tempo
todo. E assim como quando ela o fazia, o caldo que banhava o monte
de fios finos de macarrão era transparente, mas cheio de sabor e
fragrância. Foi o primeiro gostinho de casa naquele país que
supostamente era a terra natal de Zack, embora a mãe usasse fatias
mais grossas de carne e em maior quantidade. Agora ele estava
pensando nela de verdade, e fingiu se concentrar em sugar o
macarrão para esconder as lágrimas que brotavam nos olhos.
Mantendo o hábito de não se juntar à conversa das crianças, Yaling
colocou os fones de ouvido e ficou escutando música em um volume
preocupante. Enquanto isso, Simon traçou as intricadas gravuras
azuis em sua tigela de macarrão e se lançou em uma história sobre
como o pigmento azul-cobalto havia sido levado para a China por
comerciantes islâmicos, e como o visual azul e branco icônico da
porcelana chinesa fora, na verdade, criado para o mercado do
Oriente Médio antes de se popularizar na China. Melissa se
intrometeu com explicações sobre como o comércio entre Oriente e
Ocidente havia prosperado durante a dinastia Yuan, quando os
mongóis se apossaram de tudo e basicamente forçaram todo mundo a
se misturar.
— Seus ancestrais hui provavelmente vieram para a China naquela
época, Zack. — Ela levantou uma sobrancelha bem delineada. — Ou
talvez antes… Um monte de comerciantes veio durante a dinastia
Tang também. Curiosidade: a primeira mesquita da China foi
construída durante o reinado do segundo marido de Wu Zetian.
— Você tem que enfiar Wu Zetian em qualquer assunto? —
questionou Simon, batendo os palitinhos de brincadeira perto do
rosto de Melissa.
Ela retaliou com um leve empurrão.
— Ei! Que culpa eu tenho se ela esteve envolvida em tantas coisas
importantes?
Zack sorriu, mas um vazio inesperado se abriu em seu estômago.
Fazer piadas uns com os outros era uma parte natural das amizades,
então ele ria quando os amigos zoavam ele, mas até então não havia
percebido como era esquisito o fato de que nunca se sentia
confortável para fazer piada com eles. Sempre tinha medo de magoá-
los ou perdê-los. Nunca era de igual para igual, como Simon e
Melissa. Ambos eram honestos um com o outro, ao invés de
aguentarem alfinetadas para manter o outro por perto.
Melissa se virou para Zack e continuou:
— Enfim, eu acho o máximo que você mantém suas tradições.
Precisamos mostrar para o mundo que ser chinês não é só ser han. Eu
sou miao, aliás.
Ela mostrou uma foto para Zack no celular. Era Melissa de pé num
vilarejo rural, vestindo uma túnica colorida bordada e uma saia
plissada, assim como um deslumbrante chapéu prateado tão
elaborado quanto um lustre.
— Uau — disse Zack sem pensar.
Nunca havia visto um chapéu tão impressionante.
— Nós do povo miao nos orgulhamos do nosso trabalho com
prata. — Melissa mostrou as pulseiras, que tinham desenhos de flores
e borboletas gravados no metal. — Nós também dançamos e
cantamos muito bem. Parte do motivo de eu querer ser uma estrela
pop é para levar nossa música e dança tradicional para os palcos do
mundo todo, sabia? Nos meus termos, com meu olhar, sem deixar o
governo decidir que eu devo fazer ou como devo agir. Não podemos
deixar esse tipo de coisa morrer.
— Pois é, não podemos — concordou Zack.
Ele abriu um sorriso largo, sentindo uma leveza o inflar como
hélio. Melissa era a primeira pessoa da sua idade que ele conhecia
que também era de uma minoria chinesa. Ou pelo menos a primeira a
lhe contar que não era han. Finalmente, alguém que entendia ele, que
entendia como era possível ser chinês sem ser o típico chinês han,
que tinha algumas tradições em comum com os han, mas diferia em
outras de maneiras únicas e significativas.
Zack nunca havia se sentido tão conectado com suas raízes
muçulmanas quanto ali, sentado naquele restaurante minúsculo
enquanto comia macarrão Lanzhou em uma tigela de porcelana com
desenhos azuis. Geralmente, ele guardava suas raízes para si mesmo,
nunca as mencionava ou conversava sobre elas. Era mais uma coisa
que o tornava diferente, diferente até de outros muçulmanos que via
na mídia ou conhecia na vida real. Ele não se encaixava na ideia que
a maioria das pessoas tinha de um muçulmano. Mas é claro que, com
mais de um bilhão de muçulmanos no mundo, era natural que
existissem grandes diferenças. No segundo ano, quando uma
professora lhe perguntara se participaria do Ramadã, ele nem soube
do que ela estava falando, porque a mãe chamava o período de
Zhāiyuè — “o mês do jejum” em mandarim.
Sua identidade sempre era difícil de explicar para as pessoas, mas
Simon e Melissa o entendiam sem que precisasse elaborar. Era como
se ele tivesse passado a vida inteira como uma folha solitária, até
enfim encontrar a árvore de onde havia vindo. Aquilo o deixou à
vontade para enfim perguntar a respeito de algo potencialmente
sensível que vinha pairando no fundo de sua mente.
— Então, gente… — Zack se inclinou sobre a mesa. — Desculpa se
for uma pergunta estranha, mas, se o submundo chinês existe, assim
como os deuses chineses, então isso significa que as outras religiões
são…?
Simon e Melissa trocaram um olhar alarmado, e então pareceram
mergulhar em uma reflexão profunda.
— Hmm… — Simon tamborilou na mesa. — Eu não diria que isso
refuta outras religiões? Tipo, mesmo que você considere só os mitos
chineses, não há nada neles que obrigue a negar todo o resto. Tem
elementos do taoísmo, do budismo, do hinduísmo e outros deuses
locais de vários lugares. Nada impede que tudo exista ao mesmo
tempo.
— Rei Yanluo, o atual governante do submundo, era originalmente
o deus hindu rei Yama — acrescentou Melissa.
— Como isso funciona? — Zack inclinou a cabeça. — Os deuses
criaram tudo ou eles são só… a imaginação humana que ganhou
vida?
Simon mordeu o lábio, então disse:
— Bom, pessoalmente, eu acredito que os deuses são forças reais
no universo, mas é a crença humana que os organiza em formas que
fazem sentido para nós. Então, os deuses são como a água e nossas
mentes são copos de diferentes formatos. — Ele cutucou o copo
d’água ao lado da tigela de macarrão, então de repente levantou as
mãos em sinal de defesa. — Mas não temos certeza de nada. Nem os
imperadores têm.
— Sim, porque essas coisas espirituais funcionam de maneiras
estranhas — explicou Melissa. — Os espíritos se mantêm inteiros e
fortes por causa das lendas, mas as lendas podem se confundir. Existe
um boato bem popular de que Wu Zetian matou a filha ainda neném
para incriminar a imperatriz anterior e tomar seu lugar. Eu não
acredito que ela tenha matado a filha… inclusive, isso só apareceu
nos livros de história bem depois que ela morreu… No entanto,
quando perguntei a ela sobre o assunto, Wu Zetian disse que
sinceramente não sabia. Ela tem memórias fantasmas de ter feito isso,
mas são uma mistura de cenas de diferentes programas de TV. Sério,
ela nem se lembra da própria aparência. Ela se vê como uma mistura
de atrizes. Mas com certeza era lindíssima.
Melissa abanou os dedos ao lado do rosto. Ela realmente ia fundo
demais nas histórias de Wu Zetian às vezes.
— Mas as ações dos espíritos também podem influenciar a história
humana — disse Simon. — Tipo, Tang Taizong diz que o rei Yanluo
na verdade invadiu o submundo chinês e derrotou Houtu, o
governante anterior que era nativo da China. Não há uma lenda
explícita sobre isso, mas esse acontecimento realmente fez Houtu
desaparecer aos poucos da crença popular, e só depois o povo chinês
começou a contar histórias sobre o rei Yanluo. E foi assim que seu
poder se consolidou.
Zack refletiu sobre aquilo.
— Então os espíritos podem ser afetados pelas histórias que os
humanos inventam, mas também podem influenciar as histórias que
os humanos contam?
— Exatamente. — Simon assentiu. — É uma via de mão dupla. E
nem sempre fica claro o que veio primeiro.
— Espera, então o que aconteceu quando eu derrotei Jing Ke e
Gao Jianli? O que aconteceu com os espíritos deles?
— Eles se dispersaram. As lendas deles são fortes, então vão se
formar novamente, mas só com o que permanece em suas lendas.
Não terão memória daquilo que não chegou à consciência cultural.
Então nem se lembrarão que nos atacaram.
— Jing Ke provavelmente vai renascer no submundo em breve —
acrescentou Melissa. — Ele é muito famoso. Gao Jianli é menos
popular, então deve levar mais tempo, mas ele não é tão obscuro a
ponto de desaparecer para sempre. Com sorte, não vão mandá-los
atrás de nós outra vez antes de terminarmos a missão.
— Argh. — Zack esfregou as têmporas. — Isso é coisa demais.
— Eu sei, cara. — Simon deu tapinhas em suas costas. — Nós
desistimos de tentar entender o que é real faz um bom tempo. Então,
acredite no que quiser! Pode ser que seja verdade, ou que se torne
verdade.
— Mas eu quero falar uma coisa — interveio Melissa,
inesperadamente séria e contida. — Você não está errado por
acreditar no que acredita, e o que o governo está fazendo com
muçulmanos é algo que Wu Zetian e Tang Taizong não teriam
apoiado de jeito nenhum. Sob o governo deles, a dinastia Tang foi um
dos impérios mais diversos e tolerantes do mundo, e eles se
orgulhavam disso. Celebravam todas as raças e religiões. Wu Zetian
tem literalmente sessenta e uma estátuas em seu mausoléu para
homenagear embaixadores estrangeiros. Elas ainda estão lá. O que
está acontecendo agora… — ela olhou pelas janelas de vidro do
restaurante —… não é a cultura chinesa.
Novas lágrimas brotaram nos olhos de Zack. Ele engoliu o nó na
garganta, tentando ao máximo parecer descontraído.
— E quanto a Qin Shi Huang?
— Ele sabia quem seus pais eram. Ainda assim, escolheu você. O
que acha?
Algo estremeceu bem no âmago de Zack.
Deixe-me contar uma história, garoto. Uma história sobre como você
e eu não somos tão diferentes assim.
— Ele provavelmente não teve opção. — Zack riu, fingindo coçar
os olhos para secá-los. Mas sorriu para Melissa. Estava tão aliviado
por ela não estar mais zangada com ele depois do assalto bem-
sucedido ao museu. — Mas obrigado.
Ela deu de ombros, sorrindo de volta.
— Só estou dizendo a verdade.
11
Como seu ancestral pode ser um pássaro
Eram duas horas de avião de Xangai até Qinhuangdao, da China central até
o norte. Zack passou a maior parte do voo olhando pela janela,
observando as cidades e paisagens que passavam debaixo das nuvens,
tentando imaginar como seriam no nível do solo.
Assim que pousaram, eles tiveram algumas horas para matar antes
de embarcar no cruzeiro em que passariam a noite. Aparentemente,
aquela região tinha muitos espíritos e eles estariam expostos a graves
perigos durante a viagem marítima se alugassem um barco por conta
própria. Em um navio cheio de pessoas, porém, os espíritos teriam
mais dificuldade para detectá-los. Então o grupo “só” precisava
roubar um bote salva-vidas e deslanchar no ponto mais distante na
rota do cruzeiro.
O fato de que Zack só resistira àquela ideia por mais ou menos
dois segundos dizia muito sobre o estado em que sua vida se
encontrava.
Eles usaram o tempo pré-cruzeiro para visitar um bando de
atrações históricas a fim de fortalecer suas conexões com a magia
lendária. Isso incluiu a Cabeça do Dragão, onde a ponta leste da
Grande Muralha encontrava o mar em uma praia lotada de turistas.
Os óculos inteligentes de Zack forneceram uma breve história sobre o
local. De certa distância, parecia mesmo uma versão pixelizada de um
dragão chinês, com os chifres formados por uma torre de vigia
quadrada. Não era a Grande Muralha original de Qin Shi Huang, mas
uma construída há quinhentos anos, durante a dinastia Ming.
Quando Zack se espremeu entre a multidão de turistas em cima dela
— era alta temporada —, as laterais de tijolos se revelaram mais altas
do que ele. Era legal olhar para o mar na extremidade mais distante
através de uma fenda feita para arqueiros e se imaginar como um
soldado responsável por defender a muralha, mas ele só conseguiu
fazer isso por alguns segundos. Tanta gente se apertava atrás dele que
Zack se sentiu mal de monopolizar o lugar por mais tempo.
A praia em si era mais relaxante. Os quatro caminharam ao longo
da faixa de areia enquanto o sol se punha a oeste, lançando sombras
no vaivém das ondas do oceano. Para o alívio de Zack, estava bem
mais fresco do que em Xangai. Gaivotas grasnavam e batiam as asas
no céu que se avermelhava com nuvens chamuscadas pelo
crepúsculo. Houve uma comoção quando um grupo de mulheres de
meia-idade começou a cavar em busca de mariscos. Melissa se juntou
a elas, animada, e Simon foi tentar impedi-la porque “deve ser contra
as regras da praia!”, enquanto Yaling tirava selfies flexionando os
bíceps diante do pôr do sol. Zack vagou sozinho em direção à linha
oscilante da maré. Pôs o pé calçado na água espumosa quando ela se
aproximou, mas imediatamente o retirou. Estava gélida. Uma pena.
Algo no oceano o chamava para mergulhar, como se cada onda
tivesse uma atração magnética. Zack sempre havia se sentido assim,
mesmo antes de obter poderes aquáticos. Embora, nos Estados
Unidos, o oceano fosse o Atlântico. Ele visualizou o globo terrestre
em sua mente. Estava quase no lado oposto da Terra. Recordou-se da
vez que a mãe e ele foram à praia, e um homem passou ao seu lado
enquanto Zack cavava na areia e zombou que ele devia estar
tentando “cavar um buraco de volta para a China”. Zack não se
lembrava do rosto do homem, apenas da onda de vergonha que
sentiu e do quão rápido aquilo o fez parar de cavar.
Engraçado que ele havia acabado na China, de qualquer forma.
— Este foi o limite do mundo durante muito tempo, sabia? —
disse Qin Shi Huang de repente, aparecendo virtualmente ao lado de
Zack. — Seu precioso Alexandre sonhou em chegar aqui para vê-lo
por conta própria. Eu também sonhei com isso. Nosso povo, da Casa
de Ying, já foi o povo do Mar do Leste. Nós surgimos destes litorais.
Nossa ancestral era a Senhora Xiu, bisneta do Imperador Amarelo,
que deu à luz a nossa linhagem depois de engolir o ovo de um
pássaro preto.
Qin Shi Huang levantou a mão diante de si. Polígonos virtuais
cintilaram acima da palma de sua mão, produzindo um pássaro preto
que parecia ser feito de fumaça.
Zack abriu a boca para questionar como uma senhora poderia ter
engravidado de um pássaro, mas então decidiu que já havia escutado
histórias de origem mais esquisitas nos mitos. Eles nunca pareciam
dispostos a falar sobre como os bebês eram feitos de verdade.
— O bisneto da Senhora Xiu, Boyi, tornou-se o ministro da
Pecuária do mítico rei Shun. Nosso povo tem a tradição de ser bom
com animais, particularmente cavalos e pássaros. Não só isso, mas
Boyi ajudou o famoso Yu, o Grande, a enfrentar o Grande Dilúvio da
China ao cavar canais e criar sistemas de irrigação.
O pássaro preto se transformou em uma figura sombria cavando
com uma pá. Então a pá se transformou em uma bandeira tremulante
que a figura ergueu acima da cabeça.
— Por suas façanhas, o rei Shun concedeu a Boyi uma bandeira
preta e o sobrenome Ying, que significa “vencer”.
A figura rodopiou e assumiu a forma daquele ideograma, escrito
em chinês da dinastia Qin, que Zack conseguia entender desde que
tocara o medidor de Shang Yang. Calafrios percorreram seus braços.
Aquele era o tipo de história que ele desejava que tivessem lhe
contado quando era criança. Sua mãe tinha mais interesse no futuro
do que no passado, mas será que seu pai teria sido diferente? Se os
dois o tivessem criado juntos, Zack conheceria e entenderia mais
sobre suas raízes? A existência da magia lendária provava que havia
poder em transmitir histórias, em ser lembrado. Zack se perguntou
quantas gerações de ancestrais estariam zelando por ele. Teriam
ficado orgulhosos quando carregou sua linhagem para o litoral de um
oceano completamente diferente? Estariam se lamentando sobre
como ele não fazia ideia de quem eram até o momento? Zack espiou
a invocação na mão de Qin Shi Huang, fingindo que era o pai quem
lhe contava aquela lenda.
— Como o trono era herdado por aptidão naquela época, Yu, o
Grande, tornou-se o novo rei, e Boyi deveria ter sido seu sucessor.
Entretanto, o filho de Yu derrotou Boyi e assumiu o trono, criando
assim a primeira dinastia da China, Xia, e iniciando a tradição de
passar o trono pela linhagem de sangue. Roubaram de nosso povo a
chance de governar, mas nós perseveramos. Mais tarde, tornamo-nos
nobres da segunda dinastia, Shang.
As partes do complicado ideograma de Ying se transformaram
numa fileira de pessoas sombrias vestindo túnicas pesadas e chapéus
altos, curvando-se com as mãos unidas na frente do corpo.
— Mas nossa sorte teve um revés quando a dinastia Zhou
derrubou os Shang. Os Zhou nos exilaram para as matas mais
distantes a oeste durante toda a sua dinastia, a mais longa na história
da China.
A fileira de pessoas virou de lado, tornando-se plebeus corcundas
que arrastavam pilhas pesadas de pertences nas costas.
— Oitocentos anos. Levou quase oitocentos anos para que
víssemos este oceano de novo.
As pessoas se uniram com um rodopio, transformando-se em um
pássaro preto que grasnou silenciosamente para as ondas que
quebravam.
Qin Shi Huang levantou o queixo.
— Ainda me lembro da primeira vez que o vi, como se fosse
ontem.
Um vento de cheiro salgado se agitou pelo cabelo de Zack,
causando-lhe um arrepio. O garoto se perguntou como seria
conseguir algo assim. Conquistar todo o mundo conhecido. Saber que
não havia mais inimigos.
Bom, exceto a morte.
— É verdade que você enviou um feiticeiro da corte e três mil
meninas e meninos para encontrar o Elixir da Imortalidade? —
perguntou Zack.
Era o que um guia turístico dissera no local chamado literalmente
de Lugar De Onde Qin Shi Huang Enviou Sua Frota Em Busca Da
Imortalidade, embora fosse apenas uma armadilha para turistas com
um bando de edifícios modernos.
— Não enviei crianças de verdade naqueles navios, e nem de longe
tantas assim. Mas foi, de fato, uma grande equipe de busca. — Qin
Shi Huang riu com uma suavidade surpreendente, as pálpebras
abaixando. — E é verdade que nunca mais voltaram. Xu Fu, o
feiticeiro, acreditava que alguém como eu nunca deveria ter acesso à
imortalidade. Azar o dele. Conquistei a imortalidade mesmo assim.
Só não da maneira que nenhum de nós esperava.
Ele olhou para as mãos virtuais, depois para o horizonte, aguçando
o olhar.
— Enquanto a China existir, eu jamais serei esquecido.
Por alguns instantes, Zack parou de respirar. Uma maré de
surrealidade o atingiu, como se seus sentidos estivessem sendo
carregados por uma onda.
O que Zack entendia sobre Qin Shi Huang até então era que ele
era um fundador esquisito. Definitivamente havia sido uma pessoa
impressionante com muitos feitos impressionantes, e todos lhe davam
crédito por ter criado a China que conheciam, por mais que
concordassem que ele era, para citar Tang Taizong, “o pior”. Era
como se Qin Shi Huang tivesse despedaçado o mundo de forma tão
absoluta que as pessoas não tiveram escolha senão aceitar a nova
realidade. Zack estava diante do vilão mais bem-sucedido da história.
— Então esta é a sua verdadeira motivação egoísta para salvar a
China? — retrucou Zack. — Para que continue sendo uma lenda
imortal?
— É um bônus.
Qin Shi Huang encarou a vastidão das ondas tingidas de laranja.
Sua túnica preta se agitava com o vento do oceano.
Espera aí…
Qin Shi Huang era virtual. O vento não deveria afetá-lo.
— Você… você está fazendo a sua túnica se mexer de propósito?
Qin Shi Huang fechou a cara, lançando um olhar enfezado para
Zack.
— Você tem que arruinar meu momento?
— Você consegue ver o oceano se os meus óculos não estiverem
apontados para ele? — Zack alternou o foco entre as ondas e Qin Shi
Huang. — Como isso funciona? Porque você é só uma projeção,
certo?
— Vou preservar esse mistério digital — respondeu Qin Shi Huang.
LI BAI
“O Sábio da Poesia”
Viveu entre: 701-762 d.C.
O poeta mais distinto da história chinesa. Viajou por toda a
China durante o auge da dinastia Tang, deixando milhares de
poemas que poderiam “fazer fantasmas e deuses chorarem”
(conforme testemunho do também poeta Du Fu). Famoso por
estar quase sempre bêbado e amar a lua um pouco demais.
JIAOREN
O equivalente chinês das sereias. Podem ser encontradas
tecendo seda de dragão à prova d’água em noites tranquilas,
se a lua e as estrelas estiverem à vista e o mar, calmo. Suas
lágrimas podem se transformar em pérolas. Sua gordura
pode queimar em lamparinas por milhares de anos, e foi mais
celebremente usada por Qin Shi Huang para iluminar seu
mausoléu.
QU YUAN
“O Poeta Patriota”
Viveu entre: 339-278 a.C.
O poeta mais famoso dos Reinos Combatentes. É renomado
pelo amor patriota à sua terra natal, Chu. Atirou-se no rio
Miluo quando o exército de Qin avançou sobre a capital de
Chu e tomou metade de suas terras. Diz a lenda que os
aldeões nas proximidades correram em barcos-dragão para
tentar encontrar seu corpo. Quando não conseguiram,
jogaram zòngzi no rio para impedir que peixes o comessem.
Essa é uma possível origem do Festival do Barco-Dragão, que
acontece todos os anos no quinto dia do quinto mês lunar.
Zack acordou com uma voz baixa cantando perto de seu ouvido,
gentil como uma canção de ninar.
— Há árvores fúsū nas montanhas; há flores de lótus na lagoa…
Fusu?
Aquela informação era importante. Zack tinha que se lembrar
daquilo, perguntar sobre aquilo. Era…
Sua linha de raciocínio perdeu o rumo quando seus olhos se
abriram, revelando um teto inclinado de pedra branca cintilante
grosseiramente esculpida. Ele estava em uma caverna. O cheiro
salgado do mar fez cócegas em seu nariz. Zack se viu em uma cama
branca com lençóis brancos tão finos que pareciam terem sido tecidos
a partir de nuvens. Mas a sensação não era boa, porque havia
dormido com as roupas que usara o dia inteiro, a mochila e o colete
salva-vidas. Suas costas, arqueadas de maneira anormal, ardiam com
o desconforto. E pior: seus óculos inteligentes e os de mergulho
também não haviam sido retirados. Ao virar o pescoço, Zack
estremeceu com a maneira como os aparelhos apertavam sua cabeça
e seu rosto.
— Há pinheiros na montanha; há lírios na lagoa…
Para a surpresa de Zack, era Qin Shi Huang quem estava cantando.
Se bem que isso deveria ter sido óbvio, já que a voz vinha dos alto-
falantes dos óculos inteligentes. Só que era mais suave do que Zack
jamais a havia escutado antes. A forma virtual de Qin Shi Huang
estava sentada de pernas cruzadas na frente de uma série de grades,
encarando a luz brilhante do lado de fora.
Espera aí, grades?
Eles estavam em uma cela?
Zack se sentou de um salto na cama, então estremeceu por causa
de uma dor aguda que se espalhou pelo corpo.
A canção de Qin Shi Huang foi interrompida. Ele se virou para
Zack, e a parte de baixo de sua forma virtual avançou, borrada como
fumaça, sobre o chão branco cintilante da caverna.
— Finalmente, você acordou!
— Onde estamos? — perguntou Zack, com a voz fraca e rouca.
Seu crânio parecia estar cheio de água do mar. Ele apalpou os
óculos de mergulho para retirá-los do rosto. Um círculo em volta de
sua cabeça latejou com alívio instantâneo, embora ele tenha soltado
um ruído de horror ao tocar as marcas deixadas em sua testa e
bochechas.
— Fomos arrastados pelo mar até Penglai. Os imortais ficaram bem
irritados quando nos encontraram, mas os demais os convenceram a
deixar você se recuperar antes de decidir o que fazer conosco. Você
não estava em condições de ser mandado embora. Usar a magia da
ilha causou danos severos aos seus meridianos. Você passou três dias
inconsciente.
— Três… — Zack se levantou de novo, mas gemeu de dor e caiu
para trás na cama. — Isso significa que nós só temos mais nove dias?
— Pois é. Teremos que apressar o restante de nosso plano.
Zack sentiu terror ao pensar que o demônio havia chegado ainda
mais perto de consumir sua mãe enquanto ele estava desmaiado.
— O que a gente faz agora? Onde estão Simon e Melissa?
— Não sei ao certo para onde os imortais os levaram, e não pude
perguntar com você inconsciente, embora tenha havido discussões
sobre nos submeter a um julgamento com os Oito Imortais, os líderes
não oficiais de Penglai. Se tivermos sorte, poderemos aproveitar para
requisitar as pílulas de imortalidade.
— Quando o julgamento vai acontecer?
Zack grunhiu devido às inúmeras dores no corpo. Com muito
esforço, ele se desvencilhou da mochila e do colete salva-vidas e os
jogou ao lado da cama. Torcia para que Simon e Melissa estivessem
bem. Pelo menos nenhum deles havia se afogado.
— Assim que nossos carcereiros vierem lhe dar remédio de novo e
perceberem que você está acordado. Eles têm vindo diariamente,
quando o sol chega aqui.
Qin Shi Huang cutucou um lugar no piso da caverna.
O chão inteiro estava coberto de sombras, então Zack não tinha
ideia de quanto tempo isso ia levar. Ansioso, o garoto desabou de
novo, a cabeça caindo com um baque no travesseiro. Ele parecia estar
recheado com arroz, o que o fez perceber que sentia muita fome. Seu
estômago estava vazio.
Uma nova onda de dor latejante tomou seu corpo. Ele não
conseguia acreditar nas coisas pelas quais tinha passado. No que
tinha feito, controlado o oceano daquele jeito.
— Eu deveria estar preocupado com o fato de que usar magia de
luz vai me fazer queimar? — perguntou Zack, voltando o rosto para
Qin Shi Huang. — Tipo um demônio sendo queimado por água
benta?
Qin Shi Huang fez um som de reprovação.
— Tsc. Você ainda está pensando em termos de preto ou branco,
bem ou mal. Distinções tão claras assim não existem na vida real. A
magia o queimou apenas porque a ilha de Penglai é famosa por
repelir minhas tentativas de encontrá-la. Agora enfim estou aqui. —
Ele olhou para além das grades outra vez. — Depois de dois mil anos.
Zack tentou com dificuldade enxergar do lado de fora da cela. Um
mar prateado cintilava lá embaixo, estendendo-se quase até o
horizonte, onde havia uma transição abrupta para um mar preto sob
nuvens pesadas e escuras.
— Eles nos ajudariam mesmo tendo um histórico desses com você?
— perguntou o garoto.
— Isso depende do quão convincente você for durante o
julgamento.
— Eu? — perguntou Zack, travando.
— Sim. — Qin Shi Huang assentiu. — Você deverá se passar por
mim e falar em meu lugar. Posso canalizar minha magia para que não
tenha problemas de comunicação.
— M-mas… mas por quê?
— Porque eles acreditam que meu espírito está vinculado de forma
irreversível ao seu, o de um garoto inocente, e essa a única razão pela
qual estão dispostos a nos escutar. Se descobrissem que meu espírito
está vinculado a um mero aparelho, apenas o lançariam no fundo do
oceano para se livrar de mim de uma vez por todas.
— Mas eu não posso… eu não posso ser você! Ninguém vai
acreditar! — exclamou Zack, com lágrimas escorrendo, intensificadas
pelas dores. Ele socou a cama. — Eu… não consigo. Não quero mais
fazer isso. Quero ir para casa.
— Quer ir para casa para quê? — esbravejou Qin Shi Huang. —
Ver sua mãe morrer daqui a nove dias?
O queixo de Zack caiu. Novas lágrimas embaçaram sua visão.
Qin Shi Huang suspirou e suavizou o tom.
— Garoto, você se subestima. O simples fato de ter rejeitado
minha tentativa de me conectar a você prova que possui uma força de
vontade inata comparável à minha. Além disso, você superou todos
os obstáculos que surgiram em seu caminho. Por que parar agora?
— Eu só… não aguento… mais…
Zack apertou os olhos, fungando. Sua garganta apertava, e seu
lábio inferior tremeu ao soluçar.
— Escute, durante minhas guerras de unificação, houve vários
momentos em que também duvidei de mim. Como quando tentei
conquistar Chu pela primeira vez. Era o maior dos Reinos
Combatentes, e o que me deu mais trabalho. Todos os espíritos
naqueles barcos-dragão eram de Chu. Eles nunca deixaram de me
odiar pelo que eu fiz.
Zack fechou os olhos que ardiam, irritados, fingindo outra vez que
era o pai lhe contando uma história de ninar. Que o risco de se tornar
órfão não estava aumentando a cada instante.
— Quando me voltei para eles, já havia derrotado ou enfraquecido
os cinco outros reinos. Eu achava que poderia facilmente dominar o
mundo todo. Então enviei um jovem general para conquistar Chu
com apenas vinte mil soldados. Mas subestimei a disposição do povo
de Chu de defender sua terra natal e a conexão que as pessoas têm
com suas raízes. Veja bem, Qin e Chu eram como dois amantes.
Tínhamos uma tradição de casamentos entre os reinos. Minha
invasão foi sabotada por um tio meu com sangue Chu, que criou uma
resistência secreta. Minhas tropas foram emboscadas por trás, com o
corte de suas linhas de suprimentos, e aniquiladas.
A voz rouca de Qin Shi Huang prosseguiu nos alto-falantes dos
óculos de Zack:
— Foi a primeira batalha que perdi em minha vida, e isso quase
me destruiu, porque mostrou aos outros seis reinos que eu não era a
ameaça invencível que havia pretendido ser. No dia em que soube da
derrota, rezei a noite toda para nossos ancestrais. Eu me perguntei se
tinha ido longe demais, tentando devorar o reino que era como uma
esposa para Qin. Eu me perguntei se deveria desistir para diminuir o
prejuízo. Mas, apesar de todo o terror e da dúvida, acima de qualquer
outra coisa, eu sabia que, se desistisse, sempre imaginaria o que teria
acontecido se eu tivesse persistido. Então não me permiti hesitar.
Assumi o risco. Embora estivesse tão aterrorizado que não conseguia
comer nem dormir, pedi desculpas pessoalmente a um velho general
que eu havia prejudicado e lhe dei sessenta mil soldados,
praticamente todos que restavam em Qin. Apostei tudo que tinha na
oportunidade de acabar com os Reinos Combatentes de uma vez por
todas. Durante o cerco de um ano que foi necessário para que o velho
general desgastasse os exércitos de Chu, tive paciência e confiei nele.
Eu me arrisquei, em vez de me sabotar ao pensar demais. E ele
ganhou. Nós ganhamos. E essa é a história de como eu superei meus
medos e conquistei a China.
Hã.
Zack fez uma careta. Abriu os olhos e viu Qin Shi Huang
estendendo os braços como se tivesse acabado de contar uma fábula
tocante sobre a importância do trabalho em equipe.
Ah, Deus. Se o pai de Zack estivesse vivo para lhe contar histórias,
ele torcia para que não fossem como aquela.
Mas ao menos Qin Shi Huang estava tentando, refletiu o garoto.
Como um pai supervilão motivando o filho de um jeito meio
esquisito.
— Hã… — começou Zack entre as últimas fungadas. — Obrigado,
mas acho que todos os seus problemas poderiam ter sido evitados se
você não tivesse… saído conquistando tudo por aí.
— Será? — questionou Qin Shi Huang, levantando uma
sobrancelha e apontando um dedo para Zack.
O garoto olhou de um lado para o outro.
— Sim?
Qin Shi Huang riu como se Zack estivesse de brincadeira, o que
não era o caso.
— Ah, você me diverte às vezes, garoto. A lição é que até lendas
como eu ficam com medo e se sentem sobrecarregadas de ansiedade.
Medo é um sentimento normal, que não pode ser evitado. Mas você
tem o poder de decidir se vai deixar o medo lhe deter. Certos riscos
precisarão ser assumidos na vida. Você os ouvirá lhe chamando, mas
também inúmeras vozes dizendo que você não é bom o suficiente,
que seu objetivo não possível ou que você não é capaz de atingi-lo. E
quer saber de uma coisa? — Os olhos de Qin Shi Huang
semicerraram. — A história não se lembra daqueles que obedecem
tais vozes.
— Mas eu não quero me tornar uma figura histórica famosa. Eu só
quero… só quero minha mãe de volta. Só quero que as coisas fiquem
normais de novo.
— E houve momentos após me tornar um rei adolescente atacado
por todos os lados em que eu preferiria ter continuado a ser um
plebeu nas ruas de Zhao. Mas o universo não concede desejos vãos,
garoto. Sua vida mudou para sempre. Você pode permitir que esta
jornada lhe esmague ou deixar que ela o transforme em alguém mais
forte, como você mesmo desejou. O julgamento acontecerá, quer
goste ou não. E você deveria se preparar, porque precisa começar a se
passar por mim assim que nossos carcereiros chegarem.
— Por quê? — questionou Zack, agarrando os lençóis de seda. —
Não posso fingir que você está hibernando dentro de mim?
— Não. Porque eu provavelmente teria uma reação violenta
quando descobrisse que o carcereiro imortal que vem cuidando de
meu corpo inconsciente faz três dias é Xu Fu, o homem que enviei
atrás de Penglai. O feiticeiro que me traiu.
Seguindo o conselho de Qin Shi Huang, Zack fingiu estar dormindo
assim que ouviram ventos fortes soprando montanha abaixo. Imortais
podiam voar nas nuvens, pelo que tinham lhe explicado.
Então veio o som do portão da cela se abrindo com um rangido e,
em seguida, passos a adentraram. Zack ainda estremecia de medo,
mas entre definhar ali sem fazer nada e se esforçar para escapar o
mais rápido possível para salvar a mãe e a China inteira, a escolha
era óbvia.
— Você tem certeza de que quer continuar a curá-lo? — perguntou
uma voz masculina rouca.
— O hospedeiro não fez nada de errado — respondeu uma voz
afetada, levemente exausta. — Não podemos condenar um menino
mortal inocente por causa dos atos perversos dele.
— Que vergonha.
Os passos se arrastaram em direção a Zack. Um líquido se mexia
dentro de algum tipo de vaso. Assim que alguém tentasse tocá-lo,
Zack deveria agarrar dramaticamente o pulso da pessoa e sentar-se
devagar.
Bem quando ele abriu um olho para checar o timing, uma coisa
dura foi enfiada entre seus lábios.
— Mmm!
O garoto se levantou com um movimento brusco, e um líquido
amargo que formigava se derramou por sua boca, mandíbula e
pescoço.
Ooops.
Lá se foi o plano de acordar com todo o drama de um conquistador
de primeira.
Posso tentar de novo?, Zack resistiu à vontade de perguntar. Não
devia falar com Qin Shi Huang, e o imperador apenas o enviaria dicas
por mensagem. Tossindo, Zack olhou para os dois imortais, que
brilhavam na luz escassa da caverna. Um deles era um homem
corcunda com roupas maltrapilhas e cabelo desgrenhado que se
apoiava em uma muleta de metal. Ele havia enfiado uma cabaça na
boca de Zack, parecida com um amendoim liso e gigante com uma
rolha de madeira no topo. O outro imortal vestia uma túnica elegante
e tinha uma aparência mais erudita. Passado um instante, legendas
apareceram ao lado deles.
LI DA MULETA DE FERRO
Um dos Oito Imortais, um grupo de taoístas imortais icônicos
dos mitos chineses. Já foi um herói bonitão capaz de fazer
projeção astral de seu espírito, mas certa vez seu espírito não
voltou a tempo e um idiota qualquer queimou seu corpo.
Teve que ocupar o corpo de um pobre deficiente que havia
morrido de fome fazia pouco tempo. Jura que não guarda
ressentimentos quanto a isso. Carrega um talismã especial:
uma cabaça cheia de remédios de cura.
XU FU
Viveu entre: 255 a.C.-?
Médico imperial da dinastia Qin e feiticeiro da corte que Qin
Shi Huang NÃO DEVERIA ter contratado. Zarpou duas vezes
com uma frota enorme em busca de Penglai. Disse ter sido
bloqueado por uma baleia gigante na primeira tentativa, e
nunca voltou da segunda. Há boatos de que se assentou no
Japão com a frota.
LÜ DONGBIN
Sábio e poeta da dinastia Tang que ascendeu como imortal
depois de passar por dez provações para testar sua harmonia
com o mundo natural. É considerado o líder dos Oito
Imortais. Seu talismã é uma espada capaz de eliminar o mal.
Parece ser todo certinho, mas na verdade é um cafajeste.
Não deixe ele chegar perto de Wu Zetian.
Zack sempre desejara ir a um parque aquático. Porém, como a mãe não podia
ir por conta da modéstia islâmica e nenhum amigo o havia convidado
para esse tipo de passeio, ele nunca tivera a oportunidade.
Ele não queria mais ir a um parque aquático. Não depois disso.
Nunca mais.
Era como se estivesse escorregando pelo toboágua mais íngreme
do mundo. O ar escapou de seus pulmões, que ansiavam por
oxigênio, mas só recebiam água fria. O nariz ardia enquanto a água
invadia suas narinas. Com as mãos algemadas, não conseguia se
proteger. Seu corpo recebia novas dores e machucados, como se fosse
uma lata caindo por um duto de lixo.
Pelo menos a escuridão permitia que ele visse os óculos
inteligentes se sacudindo um pouco adiante, como um peixe-
pescador. Ele tentou apanhá-los várias vezes até finalmente conseguir.
A magia retornou para seu corpo, aliviando um pouco a pressão no
peito. Porém, no instante em que tentou controlar a água, uma dor
pulsante atravessou seus meridianos, como o rasgar de uma ferida.
Zack permaneceu à mercê da torrente até que ela o cuspiu no oceano.
A água em sua boca ficou salgada, e a escuridão se converteu em
um tom azul-escuro. Seu corpo machucado não colidia mais com
paredes, mas uma corrente continuava a puxá-lo. Fracamente, ele
avistou uma fenda de escuridão que se alargava no ambiente azul.
Seria uma fossa? Aquele era o Ponto de Retorno ao Nada? O que faria
com ele? Zack segurou os óculos inteligentes sobre os olhos na
esperança de receber alguma orientação de Qin Shi Huang, mas sua
visão estava tão embaçada que não conseguia distinguir nada na
interface.
Zack estava tão cansado. Tudo doía tanto. Talvez fosse melhor
ele…
Uma mão o agarrou e girou pelo ombro. Uma luz dourada reluzia
diante de seu rosto, e então foi enfiada em sua boca. Era uma esfera
pequena e sólida, que bateu em seus dentes, incomodando Zack, mas
emitia um calor tão prazeroso e vibrante que ele confiou nela e a
engoliu.
O calor desceu por sua garganta e aqueceu seu corpo como um
gole do caldo de carne da mãe durante o inverno rigoroso do Maine.
A esfera derreteu sua dor e sua fome e aguçou seus sentidos. Zack
não sentia mais que precisava respirar.
O rosto de Tang Taizong — bom, o de Simon — entrou em foco,
mas estava com uma expressão de pânico. Ele gesticulou
urgentemente para que Zack se aproximasse, então apontou para trás
do garoto.
O Ponto de Retorno, o Guixu, os sugava para cada vez mais perto,
como um buraco negro submerso.
Zack cerrou os punhos. As algemas já não queimavam sua pele.
Com um movimento brusco dos cotovelos, ele as partiu ao meio,
libertando os braços. Ficou espantado, mas o sentimento foi logo
substituído por preocupação quando a atração do Guixu se tornou
mais forte, quase arrancando suas sandálias.
Zack passou um braço ao redor de Tang Taizong e bateu as pernas
com vigor, desejando que o mar os impulsionasse para cima. A água
clareava conforme a superfície do oceano se tornava visível, salpicada
pela luz do sol. Zack estendeu o braço para tocá-la, e a luz refletiu
sobre seu braço como veios de mármore. A superfície chegava cada
vez mais perto, até que ele emergiu com uma forte tosse, expelindo
água.
Girando a mão, Zack se livrou de toda a água que enchia seus
pulmões e se agarrava à sua cabeça. Então balançou o cabelo
magicamente seco.
— Garoto! — exclamou Tang Taizong em meio ao próprio ataque
de tosse, agarrando-se aos ombros de Zack. — Você é um gênio!
Ele sacudia o garoto, com os olhos arregalados de euforia.
— Você os forçou a ceder! Não tiveram escolha, precisaram me
mandar com uma pílula de imortalidade, ou teriam sido responsáveis
por condenar uma criança à morte! Incrível! Maravilhoso!
Absolutamente fantástico!
— Eles fizeram isso mesmo? — perguntou Zack, boquiaberto. —
Então agora eu sou imortal?
— Sim, por um dia! Preciso admitir, garoto: estou muito
impressionado com sua bravura. O Guixu poderia ter feito picadinho
de seu corpo e de seu espírito!
Zack arregalou os olhos.
— É sério?
Tang Taizong curvou os cantos da boca para baixo numa expressão
séria. Ele pressionou os lábios por um momento antes de responder:
— Talvez tenha sido melhor que você não soubesse.
O túnel devia ter uma magia que transcendia o espaço físico, porque,
embora Zack tivesse dado um mergulho bem demorado, isso não
explicava a distância tão grande que os separava das três ilhas
imortais. Segurando Tang Taizong, Zack nadou de volta até elas com
a ajuda da propulsão da água do mar, como se ele fosse uma sereia
ciborgue. As montanhas pareciam se expandir no horizonte conforme
os dois chegavam mais perto.
Uma multidão de imortais montados em nuvens estava reunida na
encosta da montanha para onde Zack se dirigia. Não havia uma praia
nem nada parecido, então Tang Taizong e ele acabaram tendo que
escalar algumas pedras. Zack os secou com um aceno da mão.
Lü Dongbin e o restante dos Oito Imortais desceram em nuvens,
parecendo tensos e ansiosos. A Senhora He segurava Wu Zetian —
como refém? Zack esperava que não.
Ele estava prestes a fazer uma reverência de agradecimento
desajeitada quando Xu Fu se aproximou em sua visão periférica. Zack
perdeu a vontade de parecer fraco.
— Obrigado a todos por me darem esta oportunidade — falou ele,
impassível. — Prometo que não usarei esta magia para o mal.
Lü Dongbin soltou o ar pelo nariz.
— Está bem.
— Vocês ainda pretendem nos acompanhar em nossa missão? —
perguntou Tang Taizong.
Lü Dongbin trocou olhares significativos com seus pares antes de
responder:
— Nós distrairemos o exército do Rei Dragão instigando um
tumulto sobrenatural no mar. Apenas isso.
Qin Shi Huang: Ah.
Qin Shi Huang: Eles não querem correr o risco de serem
enganados por mim quando estiverem longe das ilhas e
enfraquecidos ao máximo.
Zack ficou cheio de indignação. É claro que os imortais tinham
bons motivos para temer Qin Shi Huang, mas aquela cautela extrema
estava ficando cansativa. Ao se lembrar de como os imortais o haviam
tratado — trancafiando-o em uma caverna por cinco dias, deixando-o
passar fome, algemando-o com uma madeira que o queimava,
arremessando seus óculos inteligentes em um abismo de perdição
apesar de suas súplicas —, Zack ficou tão irritado que jogou os braços
para cima, canalizando sua magia com força máxima. Seus
meridianos irradiaram luz dourada com o poder da pílula em seu
estômago. Um enorme tsunami surgiu atrás dele. O vento salgado e
úmido balançou os cabelos de Zack.
Os Oito se puseram atrás de seus talismãs como se pegassem em
armas. Os imortais comuns gritaram, escondendo-se em suas nuvens.
Zack abriu um sorriso amargurado, especialmente para Xu Fu,
então fechou os punhos com um estalo. O tsunami despencou no
oceano com uma espuma parecida com refrigerante efervescente.
— Brincadeirinha! — disse Zack, levantando a palma das mãos. —
Ainda não sou do mal!
Os imortais resmungaram entre si.
Tang Taizong conteve uma risada com dificuldade.
— Garoto, por que você fez aquilo?
— Porque eu podia — murmurou Zack.
Não!
Os olhos de Zack se abriram de repente. Tang Taizong apontava
seu arco e flecha para ele, os olhos iluminados com um brilho
vermelho. O calor de sua magia atingia o rosto de Zack.
— Ahh!
O garoto se levantou da cama de um salto, apoiando-se na
cabeceira.
— Entregue-o — grunhiu Tang Taizong. — É meu.
Quando Zack se retesou, sentiu um objeto rígido dentro do punho.
O selo ainda estava em sua mão.
— Hã, podemos conversar sobre isso? — sugeriu Zack, com a voz
rouca pela falta de uso, erguendo a mão livre num gesto de rendição.
Ele devia ter ficado um bom tempo desmaiado.
Ah, não. Quantos dias eles ainda tinham?
Tang Taizong puxou a corda do arco, e a flecha espiritual brilhou
ainda mais.
— Eu ordeno que largue o arco! — gritou Zack com urgência.
O selo brilhou dentro de seu punho, a luz dourada se derramando
por entre os dedos.
Os olhos de Tang Taizong mudaram de vermelho para dourado.
Ele se lançou para trás como se tivesse sido atingido por algo
invisível, e o arco se esvaiu em uma névoa vermelha.
— Ei! — gritou Melissa, entrando correndo pela porta do pequeno
quarto e levando as mãos à cabeça. — Ah, não. Tang Taizong, você
tentou matar o Zack de novo? Eu fui ao banheiro por cinco minutos!
— De novo? — chiou Zack.
Tang Taizong massageou as têmporas.
— Perdão, garoto. Essa coisa é… bem difícil de resistir. — Ele
alternou um olhar culpado entre Zack e Melissa. — É melhor eu ir
embora.
Tang Taizong tomou um longo fôlego que cessou de repente.
Simon acordou com um piscar de olhos. Ele olhou para as próprias
mãos, depois para Melissa, que estava furiosa no vão da porta, e
então para Zack, encolhido contra a cabeceira.
— Ah, cara. Tang Taizong tomou conta da minha consciência e
tentou matar o Zack de novo?
— Quantas vezes você…? — As palavras de Zack saíram mais
agudas do que ele gostaria. — Deixa pra lá. O que foi que aconteceu?
Por favor, por favor, por favor, me digam que não perdemos o prazo!
Ele tateou a roupa de banho ainda no corpo. Estava coberta de
terra. Hematomas enormes marcavam seus braços.
— Está tudo bem, ainda temos quatro dias — informou Simon,
para o alívio tremendo de Zack.
— E, cara, você perdeu muito drama depois de desmaiar —
comentou Melissa. — Quando a invocação da Grande Muralha
desapareceu, nós basicamente caímos numa pilha de terra no meio
do nada. Porque, sabe, a maior parte da muralha já foi destruída há
muito tempo. Ela não é toda completinha como aparece nos folhetos
para turistas. Não quisemos causar confusão e chamar autoridades
para fazer um resgate profissional, então tivemos que andar.
— Vocês dois andaram até aqui? — indagou Zack, espanando
grandes pedaços de terra para fora do cabelo.
Dor e fome aumentavam dentro dele conforme a adrenalina
diminuía. Pelo menos não havia dormido com os óculos inteligentes.
Eles estavam na mesa de cabeceira ao lado da cama. Devia ser o
poder do selo que o permitia ver coisas espirituais naquele momento.
— Não, só até o vilarejo mais próximo que aparecia no mapa dos
nossos celulares — explicou Melissa.
— Mas tivemos que carregar você enquanto impedíamos os
imperadores de roubar o selo — acrescentou Simon, encarando o
chão do quarto com olhos arregalados. — Então, hã… Desculpa por
toda a sujeira. E pelos hematomas. Deixamos você cair algumas
vezes.
— Mais do que algumas — murmurou Melissa.
— É por isso que estou todo dolorido?
Zack esfregou os machucados na parte de trás da cabeça. Ele
inspirou fundo ao sentir uma pontada de dor no braço por causa do
movimento.
— É, sentimos muito mesmo — disse Simon, sem jeito, coçando o
cotovelo.
Melissa colocou as mãos nos quadris.
— Para alguém do seu tamanho, você é bem pesado. Felizmente,
nós encontramos um grupo de mochileiros quando o sol estava
ficando bem quente e desagradável. Usei minha magia de charme
para fazê-los carregarem seu corpo pelo resto da trilha sem fazerem
perguntas. Depois, borrifamos o caldo de Meng Po neles e chamamos
uma carona.
— Isso é… — Zack abandonou a frase e decidiu não pensar muito
naquilo. — Então, onde estamos agora?
— Num lugar que alugamos em Yulin — respondeu Simon,
levantando o dedo ao entrar no modo professor de história. — É uma
antiga cidade fronteiriça entre as Planícies Centrais, onde o povo han
vivia de agricultura, e as Terras do Norte, onde povos nômades como
os mongóis viviam de caça e coleta.
O termo “Terras do Norte” atiçou algo nas profundezas da mente
de Zack — algo que ele não deveria ter esquecido —, mas então
Melissa deu passos largos até a janela ao lado da cama e abriu as
cortinas.
Zack se retraiu com a luz, então piscou até conseguir encarar a
vista de prédios encardidos ao longo de uma rua cheia de carros
andando devagar, motos buzinando e pedestres usando máscaras.
Havia árvores enfileiradas na calçada, mas uma neblina pior do que a
de Xangai pairava no ar.
— Por que aqui é tão empoeirado? — perguntou o garoto,
protegendo os olhos.
— Estamos praticamente no deserto — respondeu Simon. — No
planalto de Loess. É todo de terra amarela. Restauraram bastante a
vegetação recentemente, mas não tem muito o que fazer a respeito
da poeira.
— Estávamos esperando você acordar para podermos ir de avião
para Xian — contou Melissa. — Pensamos em chamar Yaling para vir
nos buscar, mas é uma viagem de, tipo, sete horas. Achamos que não
daria para enfrentar os imperadores por tanto tempo presos dentro
de um carro. Seria melhor sentarmos bem longe um do outro durante
um voo. E não dava para embarcar num avião com você inconsciente.
— Vocês poderiam ter me colocado numa cadeira de rodas e
fingido que eu estava doente — comentou Zack, irritado por eles
terem perdido tempo só por esse motivo.
Melissa inclinou a cabeça.
— Isso teria funcionado?
— Sei lá — retrucou Zack, esfregando os braços com cuidado. —
Eu li isso num livro chamado Not Even Bones. Foi assim que a mãe da
protagonista transportou um menino que ela sequestrou.
— Bom… Você está acordado agora. Consegue se mexer? Quero
reservar nossas passagens o mais rápido possível.
— Sim, com certeza.
Zack botou os pés para fora da cama, deixando terra cair no chão.
Por um momento de tontura, sua cabeça balançou.
— Ah, cara. Estou morrendo de fome.
— Vamos fazer algo para comer enquanto você toma banho —
disse Melissa, pegando o celular. — Mas leva o selo com você! Não
tira os olhos dele. Os imperadores não precisam de mais tentação.
Eles disseram que o selo ficou bem mais poderoso do que qualquer
um esperava, e isso mexeu com a cabeça deles. Não sabemos o que
pode acontecer se um imperador pegá-lo.
— É tão ruim assim? — perguntou Zack, afrouxando os dedos ao
redor do selo para examiná-lo.
Cinco dragões esculpidos se entrelaçavam no topo de uma base
quadrada de jade. Um canto lascado havia sido preenchido com ouro.
Uma dor branda e as marcas vermelhas na palma da mão informaram
que Zack não havia soltado o selo desde que o pegara.
— Não consigo nem ir ao banheiro em paz! Sabe como dormimos
na noite passada? — reclamou Melissa, gesticulando bruscamente
entre Simon e ela. — Na mesma cama, com os braços amarrados
juntos, para que nenhum de nós pudesse ser possuído e escapar sem
o outro perceber!
Simon abaixou a cabeça. Suas bochechas ganharam um tom de
vermelho quase fluorescente.
— Cada um tinha que vigiar o imperador do outro.
— Justiça seja feita, Wu Zetian só perdeu o controle, tipo, quatro
vezes.
— Cinco!
— Aquela vez não conta porque eu mesma a convenci a desistir na
minha mente. — Melissa mostrou a língua para Simon, então se
dirigiu a Zack novamente: — Ela devolveu o trono para o filho aos
oitenta e dois anos e anunciou que queria ser enterrada como
imperatriz… ou seja, como esposa do falecido imperador… em vez de
como imperador… ou seja, como governante legítima… então é mais
fácil para ela resistir à tentação. Diferente de Tang Taizong, que
matou vários irmãos e sobrinhos para assumir o trono.
Zack grunhiu.
— Não acredito que eu achei que ele era o bonzinho.
— Sério? — questionou Melissa, engasgando-se. — Tang Taizong,
bonzinho? Aqueles olhos vermelhos não te deram uma pista?
— É, aliás, estou sentindo ele tentar assumir o controle de novo —
avisou Simon, segurando a barriga, como se estivesse prestes a
vomitar. — Vamos sair deste quarto.
— Certo! — exclamou Melissa, empurrando Simon porta afora. —
Já reservei as nossas passagens. O voo é daqui três horas e meia! —
avisou por cima do ombro, antes de fechar a porta do quarto com
força.
Bufando, Zack foi tomar banho.
Zack estava tão sujo que a água do chuveiro levou vários minutos
para ficar clara. Ele se ensaboou e passou xampu até o cabelo reluzir.
Depois que saiu do banho, tirou a muda de roupas de dentro da
mochila.
Seu celular saiu junto com elas.
Estava sem bateria. É claro, fazia mais de uma semana. Ele o
colocou na tomada para carregar um pouco antes do voo. Para
manter o selo consigo e dificultar uma tentativa de roubo dos
imperadores, Zack escolheu uma camisa preta com um bolso no
peito. Ele guardou o selo ali dentro e a vestiu do avesso.
Simon havia feito macarrão com um molho agridoce e pepinos
cortados. Zack aceitou uma tigela com o rosto vermelho. Quando
embarcou naquela jornada de avião pela primeira vez, não esperava
gostar de Simon Li, o garoto normal, bem mais do que de Shuda Li, o
campeão mundial prodígio. Shuda era descolado, tão descolado que
Zack nunca teria tido coragem de falar com ele, mas Simon era
gentil, confiável e de verdade. Zack se surpreendeu ao descobrir que
gostava bem mais de ficar perto de alguém assim. Jurou que, quando
voltasse para os Estados Unidos, sairia do time de Reinomítico e faria
amizade com quem quisesse, sem se importar com o que as outras
pessoas pensariam.
Já que Zack não podia ficar perto de Simon e Melissa, ele comeu
em seu quarto, sentado na cama. Os imperadores pilantras e
supervilões que deviam ser membros de sua equipe agora estavam
constantemente lutando contra a vontade de matá-lo. Legal. Muito
legal.
Depois de se empanturrar de macarrão, Zack não conseguiu deixar
de ligar o celular. Isso atrapalhava o carregamento, mas ele tinha que
checar se o corpo da mãe ainda estava bem no hospital.
O garoto descobriu como redirecionar o endereço de IP com o
aplicativo de VPN de Simon, então mandou uma mensagem para
Jess, a amiga da mãe. Mas era madrugada no Maine, então ele não
esperava ter uma resposta.
Em vez disso, Zack foi checar as novidades no Reddit. Porém,
assim que abriu a aba de busca, uma curiosidade diferente o atingiu.
Ele espiou os óculos inteligentes na mesa de cabeceira, certificou-se
de que o bluetooth do celular estava desligado e então digitou Nezha.
Por que Simon e Melissa haviam agido de forma tão estranha ao
falar sobre a criança que atacou o Rei Dragão?
Quando os resultados apareceram, as imagens no topo da tela
eram uma mistura de adolescente sem camisa com cabelo de Super
Saiyajin e uma criança com o cabelo preso em dois coques, vestindo
uma regata chinesa tradicional e calças largas. Ambos tinham rodas
flamejantes sob os pés descalços e uma faixa vermelha flutuando
acima da cabeça e ao redor dos braços.
Um mal-estar rastejou pelo interior de Zack. Sua mãe havia sido
presa e arrastada com faixas iguaizinhas. Será que era algo comum
na mitologia chinesa?
Ele clicou em um artigo sobre Nezha. O ponto principal era que
Nezha era uma deidade protetora taoísta, que havia evoluído de
mitos hindus e persas. Ele tinha um monte de títulos, como “O
Terceiro Príncipe do Lótus”, era um personagem importante em um
monte de livros clássicos e empunhava um monte de armas com tema
de fogo, como uma lança com a ponta em chamas e as rodas
flamejantes sob os pés. Ele parecia tão poderoso que chegava a ser
ridículo.
Mas o que chamou a atenção de Zack foi uma imagem do pai de
Nezha, o Rei Celestial Li, Portador do Pagode. Ele era retratado como
um homem de capa e armadura que segurava um pequeno pagode
em uma das mãos.
Igual ao que havia sido usado para sugar o espírito da mãe de
Zack.
O sangue deixou as pontas dos seus dedos. Com um leve tremor,
Zack clicou no artigo sobre o pai de Nezha. Enquanto lia, uma
informação o atingiu como um soco no estômago:
O Rei Celestial Li carrega um pagode capaz de capturar espíritos. Ele
é baseado no famoso general da dinastia Tang, Li Jing, que serviu sob o
imperador Tang Taizong.
19
Como conseguir o que quiser a qualquer custo
— Então, Zack, o que você sabe sobre Fusu, o filho mais velho de Qin Shi
Huang? — perguntou Jason, balançando um copo quadrado com
uma bebida marrom.
Tiffany os conduzia num carro sofisticado. Os assentos na parte de
trás do veículo ficavam de frente uns para os outros, como numa
limusine, e eram iluminados por faixas de luz azul. Tecnicamente,
talvez fosse uma, embora não parecesse tão comprida quanto uma
limusine típica vista de fora. Além disso, havia um cooler embutido
com todo tipo de bebida.
— Fusu? — repetiu Zack, franzindo o cenho.
O nome era muito familiar, mas ele não conseguia identificá-lo.
— Isso. Ele era o herdeiro legítimo de Qin Shi Huang. Um príncipe
gentil e gracioso que todos queriam ver assumir o trono depois de
Qin Shi Huang. Mas ele foi banido para as Terras do Norte por se
manifestar contra a campanha de Qin Shi Huang para enterrar os
sábios confucianos vivos e queimar livros de história dos seis reinos
que havia conquistado.
Os sonhos voltaram à mente de Zack. O garoto estalou os dedos
quando finalmente fizeram sentido.
— E aí… e aí mandaram ele tirar a própria vida por traição!
— Sim, mas o que Fusu não sabia era que a ordem era falsa. Na
verdade, Qin Shi Huang havia morrido subitamente durante uma
expedição pelo país. Seus confidentes mais próximos encobriram a
morte e expediram uma ordem em nome do imperador sentenciando
Fusu ao suicídio, para que pudessem colocar o filho mais novo e
ingênuo de Qin Shi Huang no trono. Esse era Huhai, que acabou se
revelando ainda pior do que o pai. A dinastia Qin desmoronou em
três anos. Se bem que, para falar a verdade, ela estava na corda
bamba desde o início. Mas, se Fusu tivesse se tornado o segundo
imperador, talvez a dinastia tivesse durado mais tempo. É um dos
grandes “e se…” da história chinesa. Veja bem, Fusu não estava
impotente quando a ordem de suicídio chegou. Ele estava
posicionado bem aqui com o grande general Meng Tian e trezentos
mil soldados qin de elite.
— Espera aí. Posicionado aqui? — questionou Zack, encostando na
janela.
Postes de luz fraca passavam como estrelas cadentes.
— Isso mesmo. Aqui são as Terras do Norte. E, há mais de dois mil
anos, Fusu poderia ter se rebelado contra a ordem. Poderia ter
marchado os trezentos mil soldados para a capital, Xianyang, e
exigido explicações, coisa que o general Meng Tian o incentivou a
fazer. Fusu apenas desistiu e tirou a própria vida. É interessante
especular sobre o motivo. Há uma pista nas entrelinhas dos registros
históricos: quando as primeiras rebeliões anti-Qin estouraram nas
terras do antigo reino de Chu, as pessoas se levantaram em nome do
grande general de Chu, Xiang Yan, e também… de Fusu. Mas por que
uma rebelião chu clamaria por justiça para um príncipe qin?
Zack bebericava uma garrafa de Bīngfēng, um refrigerante laranja
que, segundo Jason, era a bebida mais icônica da província de
Xianxim.
— Chu foi o reino com que Qin Shi Huang mais teve problemas,
certo? O que ele precisou atacar duas vezes porque o tio criou uma
rebelião secreta?
— Exatamente. E o fato de que o povo de Chu estimava tanto Fusu
sugere que sua mãe deve ter sido uma princesa chu. Não sobraram
registros disso, mas as pessoas da época se lembrariam de um
casamento extravagante. Na China antiga, casamentos eram tão
importantes que um homem não era considerado completo até que se
casasse. Solteiros eram motivo de piada. Entretanto, por alguma
razão, Qin Shi Huang entrou para a história como um homem
solteiro. Ele foi o único imperador digno de nota a ser enterrado sem
uma imperatriz. Até mesmo Wu Zetian abdicou do título de
imperador em seu leito de morte para que pudesse ser enterrada com
o marido. Ainda assim, Qin Shi Huang escolheu ficar sozinho por
toda a eternidade — comentou Jason, balançando a cabeça. —
Completamente só num mausoléu maior do que todo o Vale dos Reis
no Egito.
Zack mordeu o lábio.
— Bem-feito para ele.
— E tem mais. Uma curiosidade sobre o nome de Fusu: ele foi
tirado do Shījīng, o Livro das canções, uma coletânea de músicas
populares de toda a China na época. Para ser mais específico, o nome
foi tirado de uma música de amor provocativa. Basicamente, Qin Shi
Huang nomeou seu primogênito de Romeu.
Zack quase se engasgou com o refrigerante.
— Fala sério!
— Estou falando — insistiu Jason, gesticulando com o copo. —
Existe uma fofoca histórica e obscura sobre como Qin Shi Huang
adorava escutar canções de amor. Ele devia ter sido um romântico
quando jovem. Escute só o poema de onde saiu o nome de Fusu: “Há
árvores fúsū na montanha; há flores de lótus na lagoa. Por que não
encontrei um rapaz belo como Zidu, e sim um arrogante como você?”
Zack se lembrou em um flash da caverna em Penglai, deixando o
queixo cair. Era exatamente aquela música que Qin Shi Huang estava
cantando quando ele acordou.
Jason fez um gesto incrédulo.
— Dá para imaginar uma jovem donzela cantando isso para ele,
não é? Porém, não há registros sobre ela. Não há registros sobre
mulher alguma no harém de Qin Shi Huang. Tudo indica que foram
apagadas sistematicamente. Tenho a impressão de que a rainha
perdida de Qin ficou do lado de Chu, sua terra natal, e contribuiu
para a rebelião que destruiu o primeiro exército invasor de Qin Shi
Huang.
Zack inclinou a cabeça, incrédulo.
— Qin Shi Huang chegou a me falar que atacar Chu era como
brigar com uma esposa!
— Talvez essa fala tenha sido mais literal do que você imagina. Se
as coisas entre ele e essa rainha perdida realmente acabaram tão mal,
isso explicaria muitos aspectos da relação dele com Fusu. Como o
fato de ele nunca ter nomeado Fusu como o príncipe herdeiro oficial,
o que plantou a semente para o desastre sucessório. E o fato de Fusu
estar disposto a aceitar que o pai havia ordenado que tirasse a
própria vida. Mas, se Fusu recebesse uma segunda chance, aposto
que ele não seria mais tão obediente a ponto de imprudência.
Jason encarou Zack intensamente. Uma sensação desconfortável
tomou conta do garoto.
— Como assim, uma segunda chance?
— Você tem a capacidade de hospedar Fusu, Zack. Afinal, ele é
metade Qin Shi Huang. E, por causa da forte associação com Qin Shi
Huang, a parte do espírito de Fusu que ficou em seu corpo após a
morte, o pò, permanece em seu túmulo. É para lá que estamos indo
agora mesmo.
— V-vo-você quer que eu deixe Fusu me possuir?
— Ele é nosso melhor guia para navegar pelo mausoléu de Qin Shi
Huang. Além disso, sua magia ficaria ainda mais forte.
— Por que precisamos ir até o mausoléu de Qin Shi Huang? Achei
que estivéssemos tentando impedir os planos dele.
O olhar de Jason se tornou sombrio, refletindo um pouco da luz
azul do carro.
— E estamos. Fazendo o oposto. Ele quer selar o portal. Nós vamos
abri-lo por completo.
— Não podemos só esperar o início do Mês dos Fantasmas?
— Talvez o fluxo de espíritos só abra o portal parcialmente. Se
enfraquecermos ainda mais o tampão com o poder do Selo Relíquia,
vamos garantir que seja escancarado de uma vez por todas.
Zack esfregou a garrafa de refrigerante, distraído.
— Isso é seguro?
— Não fará a menor diferença, só permitirá que espíritos comuns
finalmente consigam atravessar o portal. Como o seu pai. Como o
meu — disse Jason, inclinando-se para a frente com os antebraços
cruzados sobre os joelhos. — Também perdi meu pai quando era
muito novo.
— Eu sei — murmurou Zack, duas palavras que não passavam
nem perto de expressar o quanto aquele fato havia tornado Jason
importante para ele.
Jason assentiu, então continuou:
— Espíritos lendários conseguem atravessar o portal desde que o
tampão esteja levemente enfraquecido, mas as pessoas comuns? Elas
não têm chance, a não ser que lhes dermos uma. Essa é a única
maneira de vermos nossos pais outra vez.
Zack apertou a garrafa contra o peito.
— Mas parece… extremo.
— Só porque você não está acostumado a tomar decisões com
grande impacto no mundo. Acredite, também fiquei morrendo de
medo quando minha empresa começou a decolar. De repente, eu era
responsável por muitas pessoas, e cada escolha que fizesse podia
afetar muitas outras. Então me apeguei à crença de que eu estava
destinado a mudar o mundo. Devo muito de meu sucesso ao
Imperador Amarelo, mas acredito que ele me escolheu por uma
razão. E Qin Shi Huang deve ter visto algo especial em você também.
Nós podemos encarar isso. Nós nascemos para isso.
Zack relaxou as mãos. Pensando no pai, ele endireitou a postura e
respondeu:
— Tá bom.
Sendo sincere, não faço a menor ideia de como eu fiz este livro acontecer.
Mesmo quando estava a três capítulos do final, terminá-lo parecia
impossível. Esta história pode ser irada, mas foi escrita durante um
período muito tenso da minha vida. Eu tinha acabado de me formar
na faculdade quando a pandemia de Covid-19 começou a se alastrar
pelo mundo. Eu já tinha o contrato de publicação de Viúva de Ferro,
mas minha família ainda não acreditava em minha aspiração de ser
escritore, porque demorou vários anos até eu conseguir fechar meu
primeiro contrato. Eles me perguntavam: “Você já ganhou na loteria
uma vez, quais são as chances de ganhar de novo?” Queriam saber
qual era o meu plano de verdade para os próximos cinco anos.
Achavam que era infantil ficar absorvide em ficção e em meu “hobby”
de escrever em vez de correr atrás de uma carreira convencional,
como uma pessoa adulta de verdade. Tive muitas brigas feias com
meus pais, mas não conseguia me mudar da casa deles por causa da
pandemia devastadora lá fora. Durante esses meses, dediquei tudo de
mim a Zachary Ying — minha obsessão com história chinesa,
conceitos de ficção científica e aventuras ao estilo de anime shonen
unidas em um livro doidão. Eu não conseguia nem descrever a trama
para minha família sem parecer ridícule. Milagrosamente, a aposta
valeu a pena. O livro foi vendido num leilão. Minha carreira
inesperada no YouTube decolou mais ou menos na mesma época, e
agora minha família conta vantagem sobre meus feitos esquisitos nos
encontros com seus amigos asiáticos. Então, obrigade à minha família
por finalmente acreditar em mim.
No entanto, não posso culpar meus pais de todo por não terem
acreditado em mim desde o começo. Afinal, quantos autores asiáticos
jovens são exemplos de sucesso publicamente? É difícil para pais
imigrantes aceitarem uma aposta dessas quando não veem pessoas
parecidas conosco ganhando. Porém, à medida que mais de nós
entrarmos no ramo literário com histórias assumidamente inspiradas
por nossa própria cultura, acredito que a atitude dos mais velhos vai
mudar também. Um salve para os autores que me inspiraram: Joan
He, Kat Cho, Elizabeth Lim, Julie C. Dao, Chloe Gong e muitos
outros.
Felizmente, eu não estive nem um pouco sozinhe nesta jornada.
Minha gratidão profunda vai para Rebecca Schaeffer, que me
convenceu a me aventurar na literatura infantojuvenil durante uma
viagem de Skytrain e que, anos depois, lidou com os meses que passei
choramingando enquanto escrevia este livro. E, é claro, ele não teria
saído do papel sem minha agente brilhante e atenciosa, Rachel
Brooks, que compartilhou do meu entusiasmo assim que lhe
apresentei a premissa pela primeira vez. Ela conseguiu um lar muito
amoroso para o livro na Simon & Schuster/Margaret K. McElderry
Books. Faltam palavras para elogiar minha editora, Sarah McCabe,
que entendeu exatamente o que eu pretendia com este livro e me
desafiou a elevá-lo a outro patamar. Deixo agradecimentos especiais
para todo o time da McElderry Books: Justin Chanda, Karen Wojtyla,
Anne Zafian, Bridget Madsen e Elizabeth Blake-Linn na parte
editorial e de publicação; Lauren Hoffman, Caitlin Sweeny, Alissa
Nigro, Lisa Quach, Savannah Breckenridge, Anna Jarzab, Yasleen
Trinidad, Saleena Nival, Nadia Almahdi, Jennifez Juimenez e Nicole
Russo na parte de marketing e publicidade; Christina Pecorale e sua
equipe de vendas; Michelle Leo e sua equipe
educacional/bibliotecária; e, é claro, Karyn Lee pelo design de capa e
Velinxi pela arte de capa que NÃO CANSO de admirar. Sério, eu tinha
um documento cheio de ideias para a capa, e Karyn e Velinxi deram
vida a TUDO que eu queria, desde o dragão de água e a cidade
palaciana submarina até Zack e o imperador em poses de ação com
as roupas certas na frente.
Obrigade também aos leitores beta deste livro: Rebecca Schaeffer,
Francesca Tacchi, Marco Malvagio, Tina Chan, Carly Heath e Kate
Foster. O apoio e os desafios de vocês me fizeram insistir neste livro
até chegar na versão final!
Aos novos amigos do fandom de Ultraman — Emcee, Taya, Cubee,
Tri, Klenda, Gun, Tori, Mike Dent, Ori e tantos outros —, por me
darem um lar estável na internet em meio ao caos absoluto que é
minha vida de influencer/autore.
À minha assistente, Trisha Martem, por me ajudar a administrar
esse caos.
Por fim, agradeço a Kazuki Takahashi, que sem saber me
influenciou muito como pessoa ao criar Yu-Gi-Oh!, e a LittleKuriboh,
pela lenda inesquecível que é Yu-Gi-Oh!: The Abridged Series.
Sobre ê autore
XIRAN JAY ZHAO se tornou autore best-seller do New York Times com
a série Viúva de Ferro. Elu é imigrante de primeira geração do povo
hui, saindo de uma pequena cidade da China para Vancouver, no
Canadá. Cresceu sob a influência da internet e inexplicavelmente
decidiu deixar seu diploma de bioquímica acumulando poeira para
escrever livros e criar conteúdo educacional. Siga @XiranJayZhao no
Twitter para ver memes, no Instagram para cosplays e looks incríveis,
no TikTok para vídeos curtos e divertidos e no YouTube para vídeos
longos sobre história e cultura chinesas. Zachary Ying e o Imperador
Dragão é seu primeiro livro infantojuvenil.