Você está na página 1de 297

Copyright do texto © 2022 by Xi Ran Zhao

título original
Zachary Ying and the Dragon Emperor

preparação
Ana Beatriz Omuro

revisão
Victor Almeida

leitura sensível
Diana Passy

arte de capa
© 2022 by Velinxi

design de capa
Karyn Lee © 2022 by Simon & Schuster, Inc.

geração de e-book
Pablo Silva | Intrínseca

e-isbn
978-65-5560-825-0

Edição digital: 2023

1a edição

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
intrinseca.com.br

@intrinseca

editoraintrinseca

@intrinseca

@editoraintrinseca

intrinsecaeditora
Sumário
[Avançar para o início do texto]

Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória

Capítulo 1: Como conseguir superpoderes lendo a Wikipédia


Capítulo 2: Como não ganhar uma batalha usando sopa
Capítulo 3: Como nerds de videogame podem ser derrotados de lavada
com táticas militares da China Antiga
Capítulo 4: Como a criação da China foi igualzinha ao American Idol
Capítulo 5: Como ficar rico e famoso alugando seu corpo para um
imperador morto
Capítulo 6: Como perder amigos e alienar pessoas
Capítulo 7: Como o reino de Qin unificou a China se tornando um
MMO
Capítulo 8: Como a versão chinesa do Sherlock Holmes e do Leeroy
Jenkins podem ajudar num assalto a museu
Capítulo 9: Como lidar com o fato de ser o escudeiro de um supervilão
Capítulo 10: Como uma folha consegue voltar para a árvore
Capítulo 11: Como seu ancestral pode ser um pássaro
Capítulo 12: Como poetas lendários saem no soco
Capítulo 13: Como usar a técnica de Bom Menino, Mau Imperador por
conta própria
Capítulo 14: Como enganar a Liga da Justiça da China Antiga
Capítulo 15: Como fazer a maré virar. Literalmente.
Capítulo 16: Como é ter uma batalha fácil para variar
Capítulo 17: Como acabar com imortais se tornando o Darth Vader
subaquático
Capítulo 18: Como a Grande Muralha pode ser usada como pista de
corrida
Capítulo 19: Como conseguir o que quiser a qualquer custo
Capítulo 20: Como lidar com poder absoluto
Capítulo 21: Como ser um líder de gangue benevolente
Capítulo 22: Como despertar o Romeu da dinastia Qin
Capítulo 23: Como se meter nos problemas de família dos outros
Capítulo 24: Como nasce um novo imperador
Capítulo 25: Como tudo é um saco e nada está resolvido

Agradecimentos
Sobre ê autore
Para minha família, que a princípio não acreditou nessa coisa de
ser escritore, nem mesmo depois do meu primeiro livro publicado,
mas que finalmente acreditou com este aqui.
1
Como conseguir superpoderes lendo a Wikipédia

Zack havia aprendido a não abrir o almoço que a mãe preparava para ele na
frente dos amigos. Também não o comia mais. Amava a comida da
mãe, mas seus amigos sempre torciam o nariz, como se os molhos e
temperos pungentes os atingissem feito uma onda. É claro que a
“comida esquisita” da única criança asiática da escola era motivo para
estardalhaço. Argh, como ele odiava aquele estereótipo.
— Por que você se importa com o que os outros dizem? — Sua
mãe ficara perplexa quando Zack implorou que ela lhe fizesse
sanduíches. — Minha comida é bem mais gostosa do que algumas
fatias de carne enfiadas entre dois pães!
Era verdade, mas ela não entendia o problema. Zack finalmente
pertencia a um grupo depois de entrar numa escola nova para o
ensino fundamental II, deixando para trás seus poucos amigos do
fundamental I. Não queria correr o risco de ser excluído de novo.
Mesmo assim, não importava quantas vezes dissesse à mãe que não
precisava preparar refeições chinesas para ele, ela nunca escutava.
Afinal, “de onde você vai conseguir todos os nutrientes necessários?”.
E, quando ele voltava para casa com a comida intocada, mesmo com
a desculpa de que estava praticando jejum para o Ramadã, o lado
cientista da mãe era ativado, e ela desatava em mais uma bronca
sobre a quantidade de proteínas e vegetais que um menino de doze
anos precisava ingerir todos os dias.
Era mais fácil fingir que havia comido a refeição.
Ignorando a pontada de culpa no coração, Zack disparou pelo
corredor vazio com a lancheira escondida debaixo do braço, como se
estivesse transportando algo ilegal. Parou diante de uma fileira de
latas de lixo coloridas e abriu a lancheira. O cheiro de vagens
refogadas e fatias de carne deliciosamente amontoadas sobre o arroz
explodiu pelo ar. Ele ficou com água na boca, e não conseguiu deixar
de comer alguns pedaços de carne cheios de molho com os palitinhos
guardados na lateral da lancheira, mas deu um passo para trás
quando lembrou que o cheiro poderia grudar no cabelo e nas roupas.
Além disso, não seria legal se alguém o visse comendo perto das
lixeiras. A última coisa que queria era dar outro motivo para ser
chamado de esquisito.
Ele levantou a tampa da composteira.
— Uau, garoto! Vai mesmo desperdiçar toda essa comida?
Zack tomou um susto. A voz veio de tão perto que parecia estar
dentro de sua cabeça. Era grave e um pouco rouca, como a de um
professor, mas, quando o garoto olhou ao redor, não havia ninguém
por perto.
Ele apoiou a lancheira sobre a tampa da lata de lixo de papel e
checou o celular. Nenhuma notificação repentina ou aplicativo que
havia aberto sozinho, nem nada do tipo. Pegou no bolso o outro
eletrônico que poderia ter emitido o som — seus óculos de realidade
aumentada da XY Tecnologias. Colocou-os sobre os olhos. A interface
transparente cobria todo o seu campo de visão, como uma única lente
longa. Atalhos neon para coisas como horário, temperatura e previsão
do tempo surgiram no canto. Mas ele também não havia recebido
nenhuma notificação ali.
— Ei! Você joga Reinomítico nisso aí?
Zack deu um pulo. Dessa vez, era sem dúvida uma pessoa falando.
Porém, em vez de uma voz grave e meio rouca, era outro garoto.
Outro garoto asiático, que atravessava o corredor com um sorriso
tímido. O chão polido reluzia como um caminho de luz sob seus pés.
Zack não conseguiu disfarçar o espanto. Aquela região da cidade
era tão branca que ele havia sido o único aluno asiático durante todo
o sexto ano. Zack se perguntou se o menino só estava na escola para
os cursos durante as férias de verão ou se ficaria para o início do
próximo ano letivo, no outono.
— Quem é que não joga Reinomítico? — disse Zack, se
recompondo e engrossando a voz.
Ele sempre fazia isso quando falava com alguém novo, para não
passar a primeira impressão de que tinha aparência e voz de menina.
Nem o cabelo curto nem as roupas largas ajudavam quando se era
tão magricela. Ainda assim, Zack sorriu um pouco. Amava fazer
amigos através de Reinomítico. E já não era sem tempo. O jogo — e
os óculos da XY Tecnologias — havia viralizado fazia uns três anos,
bem na época em que ele e a mãe tiveram que deixar Nova York
porque ela não conseguia mais pagar as contas ali, então não pôde
comprar os óculos inteligentes para ele. Reinomítico até tinha uma
versão para celular, mas os controles eram desengonçados, então
ninguém queria jogar com um garoto que usava apenas o celular. Foi
só depois que a mãe o surpreendeu com um par daqueles óculos
inteligentes em seu aniversário do ano anterior que Zack finalmente
conseguiu jogar de verdade, fazer amigos através do jogo e até
ganhar um dinheirinho com vendas no mercado secundário — era
assim que conseguia comprar o almoço da cantina todos os dias, em
vez de comer o que a mãe havia preparado.
— Eu até estou no time da escola — acrescentou Zack. — Por isso
estou aqui. Para me livrar de algumas matérias no verão e ter mais
tempo para me preparar para os torneios no outono.
— Que legal! Vamos nos adicionar? — sugeriu o menino, abrindo
o aplicativo de Reinomítico no celular.
Seu sotaque era parecido com o da mãe de Zack, o que significava
que ele também devia ser da China continental e ter mandarim como
língua materna.
A animação de Zack se transformou em cautela, como sempre
acontecia quando conhecia outra criança da China. Havia a chance de
que assuntos políticos se intrometessem entre os dois, considerando
que a mãe de Zack teve que fugir do governo chinês quando ele era
apenas um bebê. A maioria dos ocidentais achava que todos os
chineses tinham as mesmas experiências e as mesmas crenças, mas
isso estava longe de ser verdade. Zack se frustrava com a língua
inglesa por rotular todos eles como “chineses”, enquanto em
mandarim existia uma clara diferença entre huárén, alguém de
ascendência chinesa, e dàlùrén, alguém da China continental. Os
huárén migravam ao redor do mundo havia séculos, talvez milênios.
Lá em Nova York, as amigas chinesas de sua mãe eram em sua
maioria de Taiwan, Malásia, Singapura e outros países do sudeste
asiático — aquelas que eram huárén, mas não dàlùrén, se mostravam
mais propensas a serem tão contra o governo da China continental
quanto ela.
Não é que Zack tivesse que evitar todas as pessoas que vinham do
continente. Afinal, sua mãe tinha amigos de lá também. Mas primeiro
ele tinha que descobrir se o menino era fanático pelo governo chinês
— da mesma maneira que algumas crianças dos Estados Unidos
acreditavam que o governo americano era bondoso e todo-poderoso
sem questionar nada. Porém, era uma pergunta constrangedora para
se fazer de imediato, então Zack apenas lhe lançou um sorriso que
torceu para parecer natural e abriu o próprio perfil de Reinomítico nos
óculos inteligentes, que estavam conectados ao aplicativo de celular.
— Então você é o Zachary Ying, né? — O menino levantou o QR
Code de adicionar amigos em sua tela de celular. — Meu nome é
Simon Li.
— Como é que você sabe o meu nome?
Zack franziu o cenho enquanto apontava um dedo embaixo do
código, o que fez seus óculos o escanearem. Um fino quadrado neon
apareceu ao redor do código e piscou, e então o perfil de Simon
surgiu no campo de visão de Zack. Ele pressionou o botão flutuante
da solicitação de amizade.
— Um professor me contou! — explicou o menino.
Zack piscou. Não sabia como se sentir em relação a isso. Conseguia
adivinhar o que havia acontecido: Simon devia ter entrado na escola
de verão para cursar algumas matérias e um professor devia ter lhe
dito para procurar Zack, como se os dois tivessem que fazer amizade
automaticamente só porque eram chineses. Era outro lembrete
mordaz de que, quando as pessoas olhavam para Zack, “chinês” era
tudo que viam. Ha-ha, é claro que os dois garotos asiáticos ficaram
amigos, ele já conseguia imaginar os colegas dizendo.
Uma exaustão familiar pesou sobre os ombros de Zack. Estava
cansado de ser discriminado por causa de sua aparência. Isso havia
piorado depois da mudança para o Maine. Lá em Nova York, as
pessoas eram tão diversas que ele raramente chamava atenção, mas
ali era como se andasse com uma placa enorme de estrangeiro. Ele
não entendia. Era tão americano quanto qualquer outro aluno em sua
turma. Não sabia nem falar mandarim, exceto por algumas frases
básicas. Por que as pessoas não conseguiam ver além de seu rosto?
— Então, seu sobrenome é o mesmo Ying do Primeiro Imperador?
— perguntou Simon, virando o celular de volta para si.
Sua franja grossa precisava muito de um corte; estava tão longa
que quase escondia seus olhos.
— O primeiro o quê?
Zack tirou os óculos inteligentes e alisou o próprio cabelo. A mãe
sempre reclamava que estava muito bagunçado.
— O Primeiro Imperador da China. Todo mundo chama ele pelo
título, Qin Shi Huang, mas o nome verdadeiro dele era Ying Zheng.
Seu Ying é o mesmo Ying dele? Quer dizer, tem alguns sobrenomes
diferentes que são lidos como Ying, mas o dele é muito raro. Porque,
sabe, a maioria dos filhos dele foi morta quando a dinastia caiu. Mas
se o seu Ying é o Ying dele, você deve ser de uma linhagem que
sobreviveu!
— Do que você está falando?
O sobrenome de Zack não parecia mais uma palavra de verdade,
de tanto ser repetido.
Bom, nunca havia parecido uma palavra de verdade. Zack não
fazia ideia se significava alguma coisa. Além do mais, ele odiava seu
sobrenome. Fora zombado a vida toda pela forma como fazia seu
nome parecer um verbo em inglês. Zachary-ing. Definições incluíam
“ser a primeira pessoa a ficar sem fôlego na aula de educação física”,
“um menino agir como uma menina” e, é claro, “trazer comida
esquisita para a escola”.
— Você não sabe quem é o Primeiro Imperador da China? —
Simon recuou. — Uau, o que rola nas escolas americanas? Ele, tipo,
inventou a China! É um feito e tanto, até em termos de história
mundial! Em 221 a.C., ele conquistou os Sete Reinos Combatentes e
se declarou…
Meu Deus. Aquilo estava indo longe demais. Ha-ha, é claro que os
dois garotos chineses estão sendo nerds sobre a história da China
Antiga, Zack imaginou os colegas falando de novo.
— Escuta, hã… — Ele interrompeu Simon. — Falando em história,
eu na verdade tenho essa aula agora. E disse para o professor que só
iria ao banheiro rapidinho. A gente se vê por aí, tá bom?
— Ah. Tá bom. — Simon tirou a franja dos olhos, que refletiram o
brilho da tela do celular. — Mas você deveria pesquisar sobre o
Primeiro Imperador da China. Ele é bem legal. Vou te mandar um
link!
— Pode ser. Obrigado.
Zack apanhou a lancheira de cima da lata de lixo de papel.
— Espera, você ia jogar essa comida fora? — perguntou Simon,
apontando.
— O quê? — Zack soltou um riso nervoso. Ele deu um tapa na
composteira para fechá-la. — É claro que não. Eu estava jogando
fora… outra coisa.
— Garoto, você se importa demais com o que os outros pensam.
Zack deu um pulo e olhou ao redor. Suor frio começou a escorrer
por baixo de sua camisa e seus jeans. Aquela voz definitivamente não
vinha do celular ou dos óculos inteligentes.
— O que foi? — perguntou Simon, seu olhar se tornando
estranhamente penetrante.
— Hã. Nada, não. Só…Tchau.
Zack se afastou.
Quando passou pelo banheiro, considerou por um momento
mandar o almoço descarga abaixo, mas não tinha coragem de fazer
isso com a comida da mãe. Pelo menos a compostagem se tornava
algo valioso. Era o que ele dizia a si mesmo.
Talvez fosse só a voz de sua consciência.
Mas desde quando consciências falavam tão alto?
Quando Zack retornou à aula de história, ele se sentou com os
amigos para continuarem o projeto sobre Alexandre, o Grande.
— Bem-vindo de volta. Se divertiu? — zombou Aiden do outro
lado da pequena mesa redonda, girando a caneta do tablet com um
sorriso preguiçoso.
Aiden era o capitão do time de Reinomítico, e o coração de Zack
tinha uma tendência constrangedora de bater mais rápido perto dele.
Além de o garoto ser absurdamente alto, seu cabelo loiro curto estava
sempre impecavelmente arrumado.
— Na verdade, um novo aluno chinês veio falar comigo —
murmurou Zack, desviando a atenção dos olhos azul-claros de Aiden.
— Vocês sabem alguma coisa sobre ele?
— Por que está perguntando para a gente? Você que é chinês
também — disse Trevor, outro integrante do time de Reinomítico.
Ele tinha cabelo castanho desgrenhado e usava o mesmo moletom
desgastado o ano inteiro. Ou talvez fossem dois moletons que ele
alternava. As teorias variavam.
— Isso não significa que eu conheço ele! — reclamou Zack. — Por
isso estou perguntando!
Trevor ergueu as mãos, na defensiva.
— Desculpa. Não me processa.
Zack reprimiu um suspiro, não querendo parecer sensível a ponto
de se ofender com um único comentário. Depois de checar para ter
certeza de que a sra. Fairweather estava ocupada ajudando outro
grupo, ele mexeu no celular debaixo da mesa. Simon já havia lhe
mandado uma mensagem no Reinomítico e um link para um artigo
sobre o Primeiro Imperador da China.
— Aquele cara é meio intenso. Ele falou um monte de coisas sobre
um imperador e me fez adicionar ele no Reino… Uau.
— O quê? — perguntou Trevor, espiando o celular de Zack, que
estava aberto no perfil de Simon no jogo.
A tela exibia as seis criaturas míticas virtuais favoritas da coleção
de Simon, visíveis apenas para amigos. Todas elas estavam no nível
máximo e eram extremamente raras.
O queixo de Trevor também caiu.
— Aquilo ali é uma hidra nível dez exaltada?! — exclamou ele,
atraindo olhares de uma mesa vizinha. — E um dragão chinês
exaltado nível dez?
Zack lançou um olhar nervoso em direção à sra. Fairweather,
pronto para esconder o celular no bolso. Felizmente, ela parecia não
ter ouvido.
— Isso é sério? — Aiden apanhou o telefone de Zack. — Cara,
estou precisando de uma versão exaltada desse dragão! Quanto ele
vale agora?
Trevor fez uma rápida pesquisa no próprio celular, então levantou
o rosto com uma expressão impactada.
— Mais ou menos dois mil dólares no Trocas Reinomítico.
— É impossível esse menino ter pegado todas as criaturas sozinho.
— Os olhos arregalados de Aiden refletiam o brilho do celular de
Zack. — A família dele deve ser muito rica!
— Bom, dã, ele é um aluno de intercâmbio. — Trevor deu de
ombros de uma maneira derrotada. — Eles são todos ricos.
— Zack não é rico — argumentou Aiden. — A mãe dele trabalha
na Target.
As orelhas de Zack queimaram, mas ele tentou manter um tom
indiferente.
— Eu não sou um aluno de intercâmbio. E minha mãe também
trabalha na Universidade do Maine.
— Bom, minha irmã disse que esses asiáticos podres de ricos estão
por toda a UCLA, vestindo Supreme e dirigindo BMWs e Porsches. —
Trevor bufou. — A Universidade da Califórnia, Los Angeles, está mais
para Universidade com Caucasianos Lotada de Asiáticos.
Aiden gargalhou até se engasgar.
— Você não pode falar esse tipo de coisa.
— A gente é amigo do Zack! Temos passe livre, certo? — disse
Trevor, com um sorriso largo, cutucando Zack com o cotovelo.
— Hã…
Zack não sabia como responder àquilo. Apenas se esticou para
pegar o celular de volta.
— Cara, você precisa virar amigo desse menino. — Aiden balançou
o celular, impedindo Zack de pegá-lo. — Você tem que conseguir esse
dragão emprestado para mim.
Zack recolheu a mão do modo mais casual possível para não
parecer desesperado pelo celular. Se Aiden percebesse, ia zoar com
ele, ficando com o aparelho por mais tempo.
— Ugh, seu fracote. Esses garotos não são amigos de verdade.
Zack arregalou os olhos. Que voz era aquela? Como estava falando
dentro de sua cabeça?
— Zack? — Aiden chegou mais perto. — Você me ouviu?
— Hã… — Zack hesitou.
Toda vez que Aiden pedia algo emprestado, ele nunca cumpria a
parte de devolver o objeto. Alguns meses antes, ao andar perto de um
lago com Reinomítico aberto nos óculos inteligentes, Zack havia
capturado um boto nível cinco super-raro, um golfinho metamorfo de
um mito da América do Sul. No dia seguinte, Aiden o pegou
“emprestado”. Ainda estava com ele.
— Até parece — respondeu Zack, por fim. — Ele nunca vai me
deixar pegar emprestada uma criatura de dois mil dólares.
— Se os pais dele deixam alguém de doze anos… ele tem a nossa
idade?… ter isso, é óbvio que dinheiro não é nada para a família
dele. Além do mais, não é como se fosse possível perdê-lo.
— Você já tem um dragão chinês nível dez, Aiden. Ele faz a mesma
coisa.
Em Reinomítico, as criaturas exaltadas só tinham uma aparência
diferente, com um design mais elaborado. Sua probabilidade era de
uma em dez milhões.
— Mas não é exaltado. Olha, eu vou usar minhas criaturas de Água
nas próximas regionais. Se você não conseguir esse aí para mim, o
dragão chinês vai ser a minha única criatura normal.
— Ninguém espera que você tenha um exaltado — implorou Zack.
Diferente dos dragões ocidentais, dragões chineses controlam a
água, não o fogo, e eram de longe a criatura de Água mais poderosa
em Reinomítico. Logo, eram raríssimos.
— Mas imagina a cara dos outros competidores se eu aparecer
com um! Ia consolidar nossa reputação para sempre. — Aiden
encarou a alma de Zack com seus olhos azuis marcantes, fazendo a
pele do garoto ficar desconfortavelmente quente. — Vamos lá, cara.
Pense na equipe.
Zack mordeu os lábios. Aiden não parecia disposto a ceder, e Zack
não queria que o capitão ficasse ressentido com ele. Não podia perder
os amigos e voltar a ser o menino esquisito que come sozinho na hora
do almoço.
— Tá bom. Vou falar com ele.
Um sorriso deslumbrante se espalhou pelo rosto de Aiden. Ele
apontou para Trevor com o queixo, então cutucou Zack com o ombro.
— Vamos com você. Para dar apoio moral. — Ele colocou o celular
de volta na frente de Zack. — Diz para ele encontrar a gente depois
da escola.
— Hã. Tá bom.

Quando Aiden disse “a gente”, Zack não sabia que o capitão queria
dizer eles dois, Trevor e três outros meninos do time matriculados no
curso de verão.
— Zack! — Simon riu de nervoso às sombras de Zack e seus cinco
colegas de time. Estavam nos fundos da escola, perto do gramado e
da pista de corrida. — Você leu o link que eu mandei?
— Ainda não. Desculpa — respondeu Zack, coçando a cabeça.
Não gostava daquela cena, com eles cercando Simon, mas dizer
algo do tipo “Relaxa, não estamos aqui para te bater!” provavelmente
só pioraria a situação.
— Então, Simon… — Aiden colocou os óculos inteligentes. —
Zack me disse que você tem um dragão chinês exaltado nível dez.
Ele deu passos largos em direção à pista de corrida enquanto
falava, e todos o seguiram, equipando-se com os próprios óculos
inteligentes. Jogadores de Reinomítico nunca perdiam tempo ficando
parados ao ar livre. Estavam sempre em movimento, capturando as
criaturas virtuais e os itens do jogo que surgiam em todo lugar.
— Eu… eu não disse isso para ele. Não intencionalmente. — Zack
ajustou os óculos para esconder o olhar culpado que dirigia a Simon.
— Eu só mostrei o seu perfil para eles. Por ser tão impressionante.
— Sim, é mesmo muito impressionante. — Aiden olhou de soslaio
para Simon. — Escuta, eu não sei como o circuito de torneios
funciona na China, mas por aqui nós temos uma regional daqui a
duas semanas. Vou usar minhas criaturas de Água. Seria muito legal
se você me emprestasse o seu dragão.
— Ah, hã…
Simon agarrou as alças da mochila.
— Qual é. Você estaria me fazendo um enorme favor — insistiu
Aiden.
— Hã… — Simon parou de andar, raspando os sapatos na pista
vermelha pavimentada. — Esse dragão é bem importante para mim.
Não sei se eu me sentiria confortável emprestando ele.
Aiden também se deteve, girando em direção a Simon com as
mãos no bolso dos jeans.
— Relaxa, a gente devolve assim que acabar.
Simon olhou o grupo de relance. Ele era mais alto que Zack, mas
mais baixo que seus cinco colegas de time, então parecia que o
estavam encurralando. Bem quando Simon estava prestes a gaguejar
mais alguma coisa, ele fechou os olhos com força, como se atingido
de repente por uma onda de dor. Um vento forte soprou,
despenteando o cabelo de todos e riscando uma gota de chuva ao
longo dos óculos inteligentes de Zack. Ele se encolheu com o susto,
mas o material das lentes era resistente à água e a gota escorreu, sem
deixar nenhuma marca.
Quando Simon abriu os olhos de novo, havia algo completamente
diferente nele.
— Eu não vou te dar o meu dragão! — esbravejou o garoto com
uma força impressionante.
Ele levantou o queixo e endireitou a coluna. Sob a franja
volumosa, seu olhar se tornou afiado como o gume de uma faca.
Aiden se arrepiou. Zack trocou olhares desnorteados com os
outros, aliviado ao perceber que não era o único que havia notado a
mudança de Simon. Quando o vento soprou o cabelo dele para longe
dos olhos, Simon lhe pareceu estranhamente familiar, mas Zack não
conseguia se lembrar de onde.
Aiden se recuperou primeiro e disse:
— Por quê? Você por acaso vai participar das regionais com o seu
dragão?
— Não importa — respondeu Simon. — Você não vai ficar com o
dragão, e ponto-final.
Zack sentiu calafrios nos ombros. Ele estava admirado com a
audácia de Simon, com a confiança que invocava apesar de estar
cercado por seis meninos. De onde aquilo viera? Cada vez mais gotas
de chuva despencavam do céu, atingindo os óculos inteligentes de
Simon, mas ele sequer piscava.
O rosto de Aiden se contorceu numa carranca, então ele relaxou a
expressão e se inclinou para baixo de leve.
— Você vai continuar por aqui depois das férias? Não quer entrar
no nosso time?
Zack nunca havia ouvido aquele som na vida real, mas Simon
soltou um riso abafado muito próximo ao dos vilões nos filmes.
— Time? Reinomítico nem é jogado em equipe. Vocês se chamam
de time porque juntam seus recursos e conhecimentos. Eu tenho mais
de ambos do que todos vocês juntos. Por que eu me rebaixaria?
— Uau! — Aiden cambaleou para trás. — Não pensei que você
fosse um babaca arrogante.
Simon riu outra vez.
— É só um jogo bobo. Não leve isso tão a sério.
Raios relampejaram pelo terreno da escola, cintilando nos olhos de
Simon. Aiden cerrou os punhos, e o pânico tomou conta do peito de
Zack.
Ele se jogou na frente de Simon ao mesmo tempo que Aiden
tentou empurrá-lo. A palma de Aiden esmurrou a clavícula de Zack,
lançando-o contra Simon, que cambaleou para trás, segurando Zack
pelos ombros.
— Para com isso, cara! — disse Zack para Aiden, surpreendendo a
si mesmo com a firmeza de sua voz. Ele se encolheu de medo por
instinto, mas alguns murmúrios de concordância dos outros membros
do time lhe deram coragem para continuar. — Se ele não quer
emprestar o dragão, não precisa. Isso está indo longe demais. Você
está sujando a imagem do time.
— Não, você está sujando a imagem do time. — Uma intensidade
selvagem surgiu nos olhos de Aiden. — Desde o começo. Eu nunca
quis você na equipe!
Antes que Zack pudesse processar aquele choque, trovões rugiram
à distância. Aiden apanhou Zack pelo braço.
— Me dá o dragão! — Aiden gritou para Simon, sacudindo Zack.
Seu aperto era tão doloroso que Zack gemeu, temendo que seus ossos
se quebrassem. — Transfere o dragão para a minha conta agora, ou
eu vou machucar ele!
Variações de “Ei, cara!” explodiram dos membros do time. Trevor
fez menção de segurar o cotovelo de Aiden.
— Fica fora disso! — gritou Aiden, estapeando Trevor com o braço
livre.
O garoto foi lançado para fora da pista e aterrissou no gramado
interno com um baque e um grito de dor.
Zack estava tão chocado que não conseguia respirar. Os gritos de
três colegas de time o alcançaram de longe, como se estivessem
separados por um túnel. Eles correram para ajudar Trevor, lançando
olhares horrorizados por cima do ombro. Outro relampejo
empalideceu seus rostos. Agora, chovia tanto que as pontas do cabelo
de Zack grudavam em seu rosto. Ele não entendia o que estava
acontecendo. Por mais babaca que Aiden pudesse ser, ele nunca faria
isso.
Aquele não era Aiden.
— Você tem dez segundos! — gritou Aiden para Simon, apertando
o braço de Zack com os dedos.
Um grito esganiçado escapou da garganta dele.
Simon não disse nada. Só encarou Zack atentamente, como se
esperasse algo acontecer.
— O dragão! Agora! — exigiu Aiden.
— Zack… — começou Simon, morbidamente calmo. — Em 221
a.C., o Primeiro Imperador da China uniu os Sete Reinos
Combatentes e fundou a dinastia Qin, a primeira dinastia imperial
da…
Aiden torceu o braço de Zack, fazendo-o gritar.
Como Simon conseguia divagar sobre a história da China naquele
momento?
— O que você…?
Zack se engasgou no meio da pergunta ao reparar no rosto de
Aiden. Os olhos dele estavam brilhando num tom de verde
fluorescente, e uma legenda de Reinomítico pairava ao lado de seu
rosto.

TAOTIE (TA-OU-TIÉ)
Tipo: Escuridão
Origem: China
Uma criatura malevolente e gananciosa com corpo de bode,
presas de tigre, mãos de ser humano e olhos debaixo das
axilas. Come qualquer coisa que encontra, mesmo que isso
cause morte por empanturramento.

Por mais que Zack movesse a cabeça, o círculo indicador da


legenda continuava rodeando o rosto salpicado de chuva de Aiden.
Além disso, havia uma barra de energia acima do texto. E a barra de
energia do próprio Zack aparecia no canto inferior direito de seu
campo de visão. Igualzinho à interface de batalha de Reinomítico.
Simon continuou sua torrente de palavras:
— A dinastia Qin instalou o sistema de governo que seria usado
pelos dois mil anos seguintes. O Primeiro Imperador construiu a
Grande Muralha, o Exército de Terracota e…
Com um uivo quase animalesco, Aiden parou de apertar o braço de
Zack e agarrou seu pescoço, erguendo o garoto no ar. Zack gritou de
novo, tentando chutar inutilmente as pernas de Aiden. Onde estavam
os outros membros do time? Ficaram parados no gramado,
boquiabertos, encarando a briga? Zack tentou se desvencilhar do
aperto de Aiden, mas sua força era patética se comparada à dele.
Sempre havia sido.
Se ao menos Zack fosse mais forte…
Simon deixou escapar um suspiro exasperado.
— Zack, clica no link que eu mandei! — gritou ele por cima dos
guinchos do garoto, pegando seu celular.
Uma nova mensagem brotou nos óculos inteligentes de Zack.

Simon Li: LEIA.

Ofegante, Zack pressionou duas vezes no ar o local onde a


notificação transparente apareceu. Ela deu lugar a seu histórico de
chat com Simon. Zack alinhou os dedos com o link e pressionou de
novo. Um site se abriu na interface de seus óculos.
Qin Shi Huang, nascido Ying Zheng, foi o primeiro imperador da
China unificada. Ele nasceu em 259 a.C.…
Enquanto percorria o sumário com os olhos, algo aconteceu. Os
sentidos de Zack se recolheram para dentro do corpo, como se
mergulhassem em água. Aiden e toda a situação caótica
desapareceram na escuridão. Uma figura sombria vestindo uma
pesada túnica preta apareceu na mente de Zack.
— Finalmente! Seja meu hospedeiro mortal, garoto, e farei tudo em
meu poder para realizar seu maior desejo! — anunciou a figura na
mesma voz grave e rouca que Zack havia ouvido antes. — Então,
conte-me: o que você deseja com mais ardor?
Aiden podia ter sumido de sua consciência, mas o coração de Zack
ainda se debatia de pânico.
— Eu quero ser mais forte — respondeu ele de imediato. — Me
faça mais forte!
A figura explodiu em risadas ecoantes, então investiu contra Zack
como um vento uivante.
— É isso que eu gosto de ouvir!
Antes que Zack pudesse gritar, a realidade voltou aos seus
sentidos. Mas tudo estava menos intenso, mais opaco. Aiden ainda o
segurava pelo pescoço, mas os braços de Zack pendiam inertes nas
laterais do corpo. Ele não conseguia movê-los.
Zack ouviu um rosnado rasgar sua garganta, mesmo não tendo
tido intenção nenhuma de fazer aquele som. Palavras que pareciam
vagamente chinesas, embora não fosse um dialeto que Zack
reconhecesse, escapuliram de sua boca. Em meio à sua profunda
confusão, ele notou que sua barra de energia estava se esvaziando.
Então tudo desacelerou.
Literalmente.
Em detalhes vívidos, Zack viu os vincos da expressão de Aiden se
aprofundarem, o chicotear de sua língua e as gotas de cuspe voando
para fora de sua boca.
Como que controlados por outra pessoa, os braços de Zack se
ergueram em velocidade normal e arrancaram os dedos de Aiden de
seu pescoço. Quando ele caiu no chão, a água da chuva espirrou sob
as solas de seus sapatos em câmera lenta, como coroas de água. Zack
tentou se virar e correr, mas seu corpo ainda não obedecia. Deu
vários passos para trás, afastando-se de Aiden, e então o fluxo do
tempo voltou ao normal, como um trem sendo ligado outra vez.
Aiden pareceu desorientado por um segundo, tateando o ar onde
Zack estivera antes. Então rosnou e avançou em sua direção.
Os braços de Zack giraram e empurraram o ar para baixo.
No mesmo instante, caiu uma tempestade.
Um aguaceiro atingiu a pista como um milhão de pequenas balas,
onda após onda após onda, tão barulhenta que ele mal conseguia
ouvir os urros de Aiden, e tão forte que ele mal conseguia ver os
colegas de time surtando no gramado. Todos os outros ficaram
ensopados em questão de segundos, mas Zack continuou seco. A
chuva desviava dele como uma aura fantasmagórica. Ele sentiu os
punhos se cerrarem e se curvarem para cima, como que levantando
dois halteres pesados. A água no chão rodopiou na vertical, formando
um redemoinho ao seu redor.
A mente de Zack se esvaziou, exceto por uma coisa: Diferente dos
dragões ocidentais, dragões chineses controlam a água, não o fogo.
Para seu horror, uma sequência de linhas pretas surgiu em seus
braços. Pareciam veias, porém mais retas e angulares. Apesar de não
estar molhado, o frio se infiltrou em seus ossos. Sua quantidade de
energia caía constantemente. Suas mãos se retraíram com um esforço
imenso, que ele sentiu apenas fracamente, então fizeram o
movimento de arremessar uma bola de beisebol.
O espumoso redemoinho de água ao seu redor jorrou como um
jato em direção a Aiden, atingindo seu peito e o fazendo cambalear e
tropeçar.
O corpo de Zack deu um passo calmo para a frente. Descargas
elétricas irradiavam ao seu redor, cada uma acompanhada de um
estalar de trovões que sacudia a terra, chamuscando crateras na pista.
O ar praticamente zumbia, carregado com o cheiro de borracha
queimada. Cada um de seus fios de cabelo estava arrepiado.
Que porcaria é essa?
Tudo que Zack queria era gritar, sair correndo e se esconder, mas
seu corpo se recusava a obedecer. Seus dedos traçados de preto se
abriram, e a tempestade se acumulou sob suas palmas em duas
esferas de água.
Suas mãos chocaram as esferas uma na outra, combinando-as, e a
arremessaram adiante. A esfera única envolveu a cabeça de Aiden,
aprisionando-a. A água rodopiava ao seu redor como uma bola de
vidro líquido. Debatendo-se, Aiden tropeçou sobre os próprios pés e
caiu. Ele rolou na pista molhada e sobre o gramado, mas a esfera de
água não saía de sua cabeça. Sua barra de energia caía rapidamente.
Um novo terror se apossou de Zack.
Pare!, ele tentou gritar, mas não conseguia. Suas mãos tracejadas
de preto se estenderam diante do corpo como garras, movendo-se em
círculos que coincidiam com o movimento das esferas de água. Aiden
agarrou a própria garganta, mergulhando as mãos na água, mas foi
inútil. Sua barra de energia caiu para o último quarto.
Zack tinha um pressentimento terrível sobre o que aconteceria se a
barra chegasse a zero.
Pare! Pare com isso! Ele lutou para ter controle sobre o próprio
corpo.
— Sai fora, garoto! — As palavras soaram tanto de sua boca
quanto em sua mente.
Era a mesma voz que o vinha perseguindo o dia inteiro.
Então, Zack teve certeza de que estava sendo possuído. A voz
estava usando seu corpo para matar Aiden.
Seja meu hospedeiro mortal, dissera ela.
Meu Deus, o que ele tinha feito?
Zack havia cometido um erro grave. Não era isso que ele queria!
Pare! Pare! Pare! Ele gritou mentalmente, várias e várias vezes.
Suas mãos e as esferas de água vacilaram um pouco.
— Garoto, cale a boca! — esbravejou a voz.
Zack se recusou. Pare! Pare! Pare! Pare!
— Não, você vai…
Pare! Pare…
— Pare! — A palavra finalmente se libertou de sua boca.
Zack viu sua respiração sair como uma névoa preta antes de o
mundo entrar em foco outra vez. Ele recuperou os sentidos. A esfera
de água desabou, deixando Aiden arfando. Sua barra de energia se
estabilizou, quase esgotada.
As pernas de Zack cederam. Seus joelhos atingiram a pista
molhada, e os jeans até então secos se encharcaram
instantaneamente. A tempestade pesou sobre seu cabelo e ensopou
seu corpo como um chuveiro. As linhas pretas desapareceram de sua
pele, assim como o frio de gelar os ossos.
Mensagens apareceram em seus óculos inteligentes, sem o nome
do remetente.
: NÃO.
: O QUE VOCÊ FEZ?
A chuva se amansou para uma garoa. Uma fumaça verde-escura
ondulou para fora da boca de Aiden, tomando uma forma
monstruosa por um instante antes de se desfazer no ar. Sua barra de
energia sumiu.
A respiração de Zack vinha em arfadas aceleradas. Ele se apoiou
na pista, a visão girando, náusea contorcendo sua barriga.
Outra mensagem chegou. Dessa vez, tinha um nome.
Qin Shi Huang: VOCÊ NÃO FAZ IDEIA DO QUE FEZ, GAROTO.
2
Como não ganhar uma batalha usando sopa

Zack correu para casa.


Pensou ter ouvido Simon chamando por ele, mas não olhou para
trás. Não queria ficar ali nem mais um segundo.
Seus tênis deslizavam e chapinhavam nas calçadas molhadas. Ele
ajustou as alças da mochila para que parasse de bater em seu quadril.
Casas de subúrbio passavam por ele. Dessa vez, Zack não estendeu a
caminhada para coletar o maior número possível de itens de
Reinomítico antes do anoitecer, quando eles paravam de surgir. Não se
importava mais com nada disso.
Quando as mensagens estranhas não pararam de chegar, ele
deletou o aplicativo de Reinomítico do celular e dos óculos
inteligentes. Considerou jogar os óculos fora de uma vez, mas, ao
pensar no tempo que a mãe havia passado economizando para
comprá-lo, não conseguiu. Em vez disso, enfiou-o dentro da mochila.
Zack chegou à porta lateral do apartamento de subsolo onde
morava com a mãe. Suas mãos tremiam tanto que precisou de várias
tentativas até acertar a senha da fechadura digital. Assim que entrou,
largou a mochila numa cadeira perto da mesa da cozinha, como se
fosse uma bomba prestes a explodir, depois correu para o quarto e
bateu a porta com força.
Afundou no carpete, recostado na cama. Um lúgubre feixe de luz
atravessou a janela estreita com vista para o térreo. Durante uma
pequena eternidade, Zack ficou sentado com o rosto nas mãos
trêmulas, respirando com dificuldade. Seus dentes tremiam e suas
roupas ensopadas grudavam no corpo, como se estivessem
congeladas. Ele se contorceu para tirá-las, mas a umidade fria
continuou tão desconfortável que precisou tomar um banho quente.
No momento em que ligou o chuveiro, a imagem da água
esguichando o paralisou. A memória de si mesmo juntando a chuva
em esferas de água enquanto avançava entre relâmpagos
incandescentes voltou à sua mente. Um formigamento percorreu seu
couro cabeludo. Ele encarou a água enquanto ela se aquecia, então
entrou no box e moveu as mãos cautelosamente.
Nada aconteceu. Nada dentro dele se agitou em resposta à água
que surrava seu corpo, exceto uma dor aguda quando ela ficou
quente demais. Chiando, ele diminuiu a temperatura. Não sentia
nada que indicasse que podia… controlar a água.
Teria sido apenas um sonho? Uma alucinação?
Simon e seus colegas de time poderiam lhe contar. Talvez alguns
deles até tivessem gravado vídeos no celular.
Mas quem controlou a água não tinha sido Zack. Ele não havia
tentado afogar Aiden.
Meu Deus, e se os colegas achassem que foi ele? E se o
denunciassem como um assassino com superpoderes?
Zack saiu às pressas do chuveiro, agarrou uma toalha e correu de
volta para o quarto a fim de pegar o celular dentro das calças úmidas.
Seus pés molhados ensoparam ainda mais o carpete.
Nenhum post novo dos colegas de time. Nenhuma multidão virtual
inundando suas notificações. Zack soltou um suspiro aliviado e se
sentou na cama enquanto se secava com a toalha.
Mas então ficou tenso novamente, porque seus colegas de equipe
estavam quietos demais.
O que teria acontecido depois que ele foi embora? Será que Trevor
estava bem? E Aiden? Por que não havia ficado na escola para se
certificar?
Zack se repreendeu por ter fugido sem ter desvendado nada.
Porém, ao abrir o aplicativo de mensagens, seus polegares ficaram
parados, inúteis. Ele não conseguia reunir coragem para escrever
para nenhum dos colegas.
Fracote, pensou Zack, enrolando-se sob as cobertas.

possessão demoníaca
possessão espiritual
primeiro imperador da china
Aconchegado na cama, Zack parou nos resultados de busca do
último termo. Havia várias notícias recentes sobre um terremoto
perto do mausoléu grandioso e cheio de mercúrio do imperador.
Apavorado demais para continuar, Zack fechou a página sem clicar
em nada. Afinal de contas, ele tinha perdido o controle do próprio
corpo ao ouvir as informações tagareladas por Simon e por causa do
link que o menino enviara.
As buscas sobre possessões também não foram úteis. Todos os
resultados eram sobre psiquiatras tentando desmenti-las ou histórias
de possessões cristãs. Zack tinha certeza de que seu caso não se
encaixava. Não, ele havia sido possuído pelo… Primeiro Imperador
da China?
Ele queria rir da ideia. Era ridícula. Esse tipo de coisa só existia nos
filmes.
Mas Zack não podia negar o que havia acontecido na pista de
corrida. Durante a tempestade. A tempestade que seu corpo tinha
controlado.
Então, conte-me: o que você deseja com mais ardor?
Eu quero ser mais forte.
Teria ele feito um pacto com o Imperador sem querer? Um desejo
que se realizou da pior maneira possível, como se tivesse sido
concedido por uma pata de macaco? Zack havia lido um conto sobre
isso na aula de literatura no ano anterior. Mas como algo assim podia
acontecer na vida real?
Zack navegou sem rumo pelo celular, assistindo a vídeos de
pessoas fazendo coisas idiotas e contando histórias idiotas, rindo de
vez em quando feito um robô, sem se sentir melhor de verdade. Foi
só quando o novo vídeo promocional da XY Tecnologias apareceu que
ele realmente prestou atenção. Era um teaser da mais nova geração
de óculos inteligentes, X6, a ser lançada ainda naquele ano. Mas não
foram as novas funções e as incríveis especificações técnicas que
arremataram a mente de Zack, e sim a pessoa que as apresentava
com uma relaxante batida futurística ao fundo: Xuan Jihong, também
conhecido como Jason Xuan, o fundador da XY Tecnologias.
Ele era tudo que Zack queria se tornar. Ao vê-lo falar sobre telas
com pixels revolucionários e baterias sem precedentes, com sua
aparência de astro do cinema, seu terno fino e um relógio caro e
cintilante, Zack se sentiu ainda pior por não estar fazendo nada além
de se encolher na cama. Jason também havia perdido o pai quando
era bebê e, por ter crescido na China rural, enfrentara dificuldades
muito maiores que Zack. Mas ele estudou com tanto afinco e ganhou
tantas competições de programação na adolescência que recebeu uma
bolsa de estudos integral para o MIT, o Instituto de Tecnologia de
Massachusetts. Lá, ele concretizou a ideia dos óculos inteligentes,
depois fundou a XY Tecnologias para criar ferramentas e jogos para o
aparelho. Aos vinte quatro anos, virou milionário. Dez anos depois,
era um bilionário na liderança do ramo da tecnologia e dos jogos, tão
prolífico que havia sido fundamental para convencer o governo
chinês a abandonar algumas de suas restrições mais severas sobre
videogames.
Em todas as entrevistas a que Zack havia assistido, Jason dava
créditos à mãe por ter dedicado a vida a cuidar dele e por ensiná-lo
tanto disciplina quanto inovação. Assim como a mãe de Zack, que
havia sido engenheira bioquímica na China, mas precisava trabalhar
em lojas nos Estados Unidos para criá-lo sozinha. Ainda assim,
durante muito tempo, ela conseguiu evitar que Zack sentisse que
passavam dificuldades. Ele tinha sido muito mais feliz quando era
menor e não percebia que a mãe estava mentindo nas noites em que
fazia o jantar para ele, mas não comia nada porque “já havia
jantado”. Também era mais fácil interagir com as outras crianças,
porque elas não notavam ou não se importavam com o fato de que as
roupas e os sapatos de Zack nunca eram novos, ou de que ele assistia
a documentários de graça no YouTube em vez das séries mais
recentes da Netflix, ou de que ele e a mãe nunca viajavam nas férias
nem comiam em restaurantes chiques. Quando a mãe tinha tempo
livre e o dia estava ensolarado, ela embalava alguma comida e levava
Zack para um piquenique no Central Park, e isso bastava para ele.
Uma onda de vergonha atravessou Zack quando ele se lembrou de
como havia implorado por óculos inteligentes antes de seu nono
aniversário, e de como a mãe tinha se desmanchado em lágrimas na
véspera, dizendo o quanto lamentava não ter conseguido comprá-los
porque precisava do dinheiro para pagar o aluguel e que nem sabia se
conseguiriam arcar com os custos de continuar morando em Nova
York. Foi a noite em que Zack percebeu que não podia mais ser como
as outras crianças, que precisava tirar apenas nota dez, evitar
problemas e nunca aumentar as preocupações da mãe.
Era por isso que ele não contava a ela sobre suas dificuldades para
fazer amigos cada vez que se mudavam, primeiro de Nova York para
o Maine, quando ele estava no terceiro ano, e então para um bairro
diferente depois de ele ter se formado no fundamental I. Não queria
que ela se arrependesse de nenhuma decisão tomada para tornar a
própria vida mais fácil. Ela tinha conseguido um trabalho de meio
período no laboratório da Universidade do Maine, o primeiro passo
para retomar sua carreira científica, e eles passavam bem menos
dificuldades desde então. Embora o apartamento de subsolo fosse
apertado, era mais espaçoso do que o apartamento em Nova York e
mais silencioso do que a casa anterior no Maine.
No quarto ano, depois de escutar a história de Jason Xuan em um
documentário de YouTube, Zack havia aprendido a programar. Ele
andava fazendo jogos cada vez mais complexos, embora ainda não
tivesse coragem para colocá-los na internet. Não ousava sonhar com
uma ascensão igual à de Jason, mas queria ao menos estudar no MIT
também e ganhar dinheiro suficiente para dar à mãe a vida que ela
merecia. Sem apartamentos minúsculos em bairros perigosos, nem
apartamentos de subsolo, nem trabalhar em lojas onde os clientes
gritavam com ela por coisas sobre as quais ela não tinha controle.
Zack estava tão imerso em seus sonhos para o futuro que o
barulho da porta da frente quase arrancou a alma de seu corpo. Ele
se escondeu debaixo das cobertas. Nem havia notado quando a luz
chuvosa do dia se esvaiu da janela.
— Zack? — chamou a mãe.
— Sim? — respondeu o garoto, correndo para acender a luz.
Mas era tarde demais. Ela devia ter notado a escuridão assim que
entrou no apartamento, daí a preocupação. Ela bateu à porta do
quarto.
— Está se sentindo bem?
— Sim, só estava tirando uma soneca!
— Ficou acordado até tarde jogando videogame de novo?
— Não! Eu… eu só fiquei muito cansado hoje. Nós estudamos
muita… história.
Até horas antes, Zack nunca havia entendido por que os
personagens de histórias em quadrinhos com superpoderes os
escondiam. Agora sabia o porquê. Ele entendia. Ele se identificava.
Como poderia começar a explicar o que havia acontecido sem parecer
maluco?
— Ah, tudo bem.
Ouviu os passos da mãe se afastando da porta.
Aquela desculpa o livrou de suspeitas por um tempo, mas, depois
de alguns minutos com panelas e frigideiras tinindo na cozinha, o
barulho do óleo chiando e os ruídos de Zack andando de um lado
para outro no quarto, sua mãe o chamou para jantar.
Jason Xuan não se esconderia no próprio quarto.
Zack respirou fundo, soltou o ar e se vestiu. Fingir estar cansado
demais para comer só deixaria a mãe mais preocupada. As dores que
se intensificavam a cada movimento fizeram Zack se lembrar dos
hematomas no braço e no pescoço, então ele vestiu um suéter de gola
alta. Felizmente, o frio da tempestade fez a roupa parecer menos
suspeita. Golas altas sempre eram apropriadas no Maine.
Assim que saiu do quarto, Zack fechou a porta do cômodo. O
apartamento era tão pequeno que o cheiro de comida impregnava
tudo. Ele não podia correr o risco de deixar a porta aberta durante o
jantar. Até a mãe tinha que tirar o uniforme da Target sempre que
cozinhava depois de um turno na loja.
A mesa de jantar ficava bem na entrada do apartamento. Fitando a
mochila como se estivesse amaldiçoada — e talvez seus óculos
inteligentes estivessem mesmo —, Zack se sentou diante de sua tigela
de arroz na única cadeira livre. Ele sempre se perguntava por que a
mãe colocava exatamente três cadeiras à mesa. Suspeitava que a
terceira devia ser para o pai, que havia sido executado na China
quando Zack ainda era bebê por “atos de terrorismo”, sendo que na
verdade fora apenas um protesto contra a opressão de muçulmanos
uigures e outras minorias. Mas Zack nunca havia pedido confirmação
de sua teoria. Por mais obstinada que a mãe fosse, seu pai era o único
assunto sobre o qual não conseguia falar sem se desfazer em
lágrimas.
Para o jantar, ela havia preparado ovos mexidos com tomate, peixe
selado na frigideira com bastante molho de soja e sopa de alga com
pingos de ovo. A lancheira de Zack estava aberta na mesa, ao lado
dos pratos, de forma incriminadora.
— Ying Ziyang. — A mãe apontou para a lancheira. — Você não
comeu seu almoço de novo.
Zack se endireitou ao ouvir seu nome chinês. A mãe só o usava
quando ele estava muito encrencado. Distraído pela situação com
Simon, ele havia se esquecido de pedir para ir ao banheiro outra vez
durante a aula e jogar o lanche na composteira.
— Desculpa, mãe, não estava com vontade. Comi o almoço da
cantina.
— Comeu o quê?
— Uma… salada verde.
Zack não tinha como mentir sobre as opções limitadas. Já que ele
devia comer apenas carne halal, preparada de acordo com as
tradições islâmicas, sempre pegava a opção de comida vegana da
cantina.
A mãe arqueou as sobrancelhas.
— Quantos nutrientes tem numa salada verde? Você precisa comer
mais do que isso. Você é um menino em fase de crescimento.
— Eu sei, mãe. Só não senti muita fome hoje.
— Tem certeza de que não está doente? Está com frio?
Ela olhou para a gola alta de Zack, suavizando o tom, então
colocou uma das mãos sobre a testa do garoto e a outra sobre a
própria, checando se ele estava com febre.
— Estou bem. — Zack se afastou, sentindo desconforto ao mentir.
Ele não estava bem. Nem perto disso. Queria poder contar a
verdade, mas a mãe nunca acreditaria naquilo sem provas. Ela
pensaria que o filho só estava assistindo a muito anime de novo.
Discretamente, ele moveu a mão para perto da sopa e desejou que ela
respingasse sobre a beirada da tigela ou algo assim. Nada aconteceu.
Após uma breve pausa para lhe lançar seu melhor olhar
penetrante, a mãe perguntou:
— Você tirou uma nota ruim?
— Não! Claro que não!
— Então o que houve?
— Não é nada. Sério. Eu…
A mochila de Zack, com o zíper aberto, chamou sua atenção. Lá
dentro, seus óculos inteligentes piscaram como um sinal de alerta.
Ele agarrou a mochila com um movimento brusco.
— Quase esqueci que tenho um monte de dever de casa para fazer
hoje à noite!
Ele forçou uma risada quando a mãe olhou para o objeto. Zack
arrastou a mochila mais para perto e tirou seu pequeno laptop lá de
dentro. A mãe não se incomodava com ele fazer o dever de casa
durante a refeição; seu quarto era pequeno demais para ter uma
escrivaninha, então a mesa de jantar era a única superfície na qual
podia usar o laptop. Com sorte, isso a faria deixar aquela conversa de
lado.
Bem quando ele posicionou o laptop ao lado da tigela de arroz e
abriu um arquivo aleatório para ler, uma batida firme soou na porta.
Zack e a mãe trocaram um olhar rápido, então ela correu para o
quarto para colocar seu hijab enquanto ele atendia a porta.
Ao girar e puxar a maçaneta, uma rajada fria de ar noturno se
infiltrou no apartamento, cheirando a terra molhada e concreto. Zack
se deparou com o proprietário, sr. Lansbury, e seu filho Nathan. Ele
era só um ano mais velho que Zack, mas era muito maior e sempre
tinha um olhar maldoso, então Zack fazia de tudo para manter
distância do garoto.
— A-algum problema, sr. Lansbury? — perguntou Zack, engolindo
em seco.
Uma visita do proprietário nunca era coisa boa. E por que ele viera
com Nathan?
— Sim — respondeu o sr. Lansbury. — Lamento, mas não podemos
mais deixar vocês morarem aqui.
Zack sentiu um frio na barriga.
— O quê? Por quê?
— Porque você é um recipiente que deve ser destruído.
Uma força quente acertou Zack em cheio, fazendo ele tropeçar e
cair para trás, aterrissando em cima da mão. Uma explosão de dor
tomou seu braço e seu quadril.
— Zack! — gritou a mãe, saindo do quarto com o hijab escarlate
preso ao redor da cabeça.
Assim que ela o alcançou, outra onda quente deformou o ar. Ela
gritou ao atingir o chão, sentindo espasmos anormais nos membros,
como se estivessem sendo puxados por algo invisível. Na porta,
Nathan fazia gestos de puxar. De alguma forma, sem encostar nela, o
garoto estava arrastando a mãe de Zack pelo piso.
— Mãe! — gritou Zack, se agarrando aos calcanhares dela, mas a
força era poderosa demais.
Ventos quentes atingiram seu rosto do nada. Os dois estavam
sendo atacados por algo que ele não podia enxergar. Se ao menos
conseguisse ver o que era…
Sua mochila tremia sem parar na cadeira, a madeira conduzindo
as vibrações. Zack jurou estar ouvindo uma voz abafada vindo lá de
dentro. Em meio aos gritos da mãe, ele mal conseguiu distinguir o
que a voz dizia:
— Garoto! Coloque os óculos!
A mãe ainda se contorcia sob a força invisível. Zack não tinha nada
a perder, então se lançou sobre a mochila, encontrou os óculos
inteligentes que vibravam e piscavam e os colocou no rosto.
A vibração e o piscar das luzes cessaram.
— Finalmente! — exclamou a voz rouca. Era nítida e real e estava
fora da cabeça de Zack pela primeira vez, saindo dos alto-falantes de
condução óssea nas hastes dos óculos inteligentes. — Você dificultou
muito a minha vida, garoto!
Quando Zack olhou de volta para a mãe, um ruído de espanto
escapou de sua boca. Conseguia ver faixas vermelhas brilhantes e
nebulosas amarradas ao redor dos braços e pernas dela. As faixas
levavam a Nathan, que as puxava. Carretéis rodopiavam e flutuavam
ao redor dos braços e torso do garoto, como uma espécie de névoa
neon. Seus olhos estavam completamente vermelhos, um tom
radiante e demoníaco, enquanto os do sr. Lansbury eram de um verde
incandescente. Barras de energia pairavam perto de suas cabeças.
Mas não era como em Reinomítico. No jogo, as barras de energia
resetavam depois de cada batalha. No entanto, a barra de Zack,
visível na parte inferior direita da lente, não estava cheia. Tinha
menos da metade, a mesma quantidade que havia sobrado depois da
batalha com Aiden.
— Eles estão possuídos por espíritos demoníacos! — A voz, que
talvez fosse do Primeiro Imperador da China, se intensificou nos alto-
falantes de condução óssea, pressionando o crânio de Zack. — Vou
lhe emprestar meu poder. Use a sopa!
Zack estendeu a mão em direção à tigela. Dessa vez, quando
desejou que a sopa se movesse, ela se moveu. O líquido se estendeu e
se enroscou como uma minhoca enorme e lisa.
Sua barra de energia caiu ainda mais, e um frio incômodo tomou
seu corpo a partir dos óculos inteligentes, mas Zack não tinha tempo
para pensar nisso. Apenas fez o movimento de arremessar a sopa em
Nathan.
Um pouco do líquido ricocheteou no rosto de Nathan, mas a maior
parte se espatifou sobre a mesa e o chão. Nathan deu um passo para
trás, mas não largou as faixas brilhantes.
Então, olhando bem nos olhos de Zack, o sr. Lansbury se agachou e
ergueu a mão sobre o rosto de sua mãe. Fiapos de luz verde
formaram uma imagem nebulosa em cima de sua palma, uma
imagem que se parecia com uma minúscula torre asiática — um
pagode. Uma espiral de respiração luminosa emergiu da boca da mãe
de Zack, que ainda gritava, e deslizou para dentro do pequeno
pagode.
Em seguida, a mãe parou de se debater, seus olhos se turvando na
luz fraca do apartamento.
— Não! — gritou Zack com todo o ar em seus pulmões.
Ele arremessou a tigela vazia no sr. Lansbury, mas Nathan a repeliu
com um movimento casual.
Zack precisou se esquivar do objeto, que se estilhaçou na parede às
suas costas.
Ele tentou controlar as poças de sopa no chão, mas era uma
quantidade patética de líquido, e o garoto mal conseguiu fazê-las se
erguerem um pouco.
— Me dê mais poder! — implorou ele à voz em seus óculos
inteligentes.
— Arranje mais água! — gritou ela de volta.
Zack cambaleou em direção à pia da cozinha. Se ele ligasse a
torneira, poderia…
Mas as faixas de Nathan se enroscaram em suas pernas e Zack caiu
sobre os cotovelos. O impacto doeu tanto que seu corpo inteiro ficou
duro e um grito escapou de sua garganta, mas aquela dor não era
nada comparada ao medo que martelava em seu peito.
Nathan o arrastou para mais perto de si. O sr. Lansbury inclinou o
pagode verde em sua direção.
Quando o terror de Zack atingiu o ápice, alguém gritou algo que
ele não entendeu. Era uma voz de menino, mas carregada da
confiança de um homem.
Nathan e o sr. Lansbury sofreram espasmos, como se tivessem sido
atingidos pelas costas. Suas bocas soltaram fumaça vermelha e verde,
respectivamente. Seus corpos cambalearam e depois se espatifaram
no chão, um de cada lado da mãe de Zack, revelando a figura na
escuridão diante da porta.
Era Simon, segurando um longo arco que parecia ser feito da
mesma névoa neon que as faixas de Nathan. Por trás dos óculos
inteligentes, seus olhos brilhavam em um tom de vermelho intenso.
3
Como nerds de videogame podem ser derrotados de lavada
com táticas militares da China Antiga

Flechas luminosas transparentes se projetavam das costas de Nathan e do


sr. Lansbury. Após um momento, elas desapareceram em uma nuvem
de vapor vermelho, assim como as faixas em volta das pernas de
Zack. O garoto se levantou, desajeitado, e agarrou o prato de ovos
mexidos com tomate, prestes a lançá-lo como um frisbee.
Simon ergueu as mãos para se defender. Seus olhos perderam o
brilho vermelho, e seu arco se dissolveu como fumaça apagada pelo
vento.
— Calma aí! Eu estou do seu lado!
— Do meu lado? — Zack ofegava. — Qual é o meu lado? O que
está acontecendo? Mãe!
Zack largou o prato, fazendo pedaços gordurosos de ovo caírem
sobre a mesa, e se abaixou ao lado da mãe. Empurrou o corpo
desmaiado de Nathan para o lado e checou a respiração dela,
colocando um dedo sob seu nariz. Para seu imenso alívio, ela ainda
respirava.
— Mãe, acorda. — Zack a sacudiu gentilmente. O rosto dela
permaneceu impassível e sombrio, emoldurado pelo hijab vermelho.
— Acorda, por favor.
— Não adianta. Os demônios capturaram o espírito dela.
Simon entrou no apartamento e fechou a porta, cortando o vento
gelado e estridente. Seu peito arfava profundamente. Uma legenda
como as de Reinomítico pairava ao seu lado, assim como sua barra de
energia em menos de um quarto. Mas a informação na legenda não
era nada parecida com a de uma criatura de Reinomítico.

TANG TAIZONG
“Imperador Taizong de Tang”
Nome verdadeiro: Li Shimin
Viveu entre: 598-649 d.C.
Cofundador da dinastia Tang, considerada a era de ouro da
China Antiga. Idiota prepotente que se achava um imperador
muuuito melhor do que todos os outros.

Zack franziu o cenho para a legenda bizarra, depois para Simon.


— Capturaram o espírito dela? Como assim?
Simon se apoiou em um joelho ao lado dos corpos inconscientes.
— Ele prendeu o espírito da sua mãe ao próprio espírito e escapou.
Para recuperá-lo, você terá que se juntar à nossa missão.
— Quem… o que é você?
Simon hesitou antes de explicar:
— Sei que vai ser difícil de acreditar nisso, mas sou o espírito de
um antigo imperador chinês conhecido como Tang Taizong.
Ele tocou no próprio peito. Zack não sabia se Simon estava tirando
onda com ele, mas o garoto soava mesmo como um adulto, apesar da
voz juvenil. Além disso, de repente estava falando inglês de forma tão
americana quanto Zack. Teria Simon fingido ter sotaque antes?
— Estou usando este menino, Simon Li, como meu hospedeiro
mortal para interagir com o mundo material. Isso é possível porque
ele é um de meus descendentes, assim como você é descendente de
Qin Shi Huang, o Primeiro Imperador da China.
— Eu sou o quê?
— Exatamente o que ele acabou de explicar — resmungou a voz
nos óculos inteligentes de Zack. — Você é meu descendente de
octogésima oitava geração.
Com uma série de polígonos tomando forma, como se fosse uma
renderização, um jovem surgiu ao lado de Simon — ou Não-Simon,
aparentemente.
— Uau. Funcionou mesmo.
O jovem encarou as próprias mãos virtuais. Embora sua boca se
movesse quando falava, sua voz ainda vibrava a partir dos alto-
falantes dos óculos inteligentes, posicionados atrás das orelhas de
Zack. Ele parecia um personagem saído de um dos dramas palacianos
chineses que as amigas de sua mãe assistiam quando Zack ia para o
apartamento de uma delas depois da escola, esperando a mãe sair do
trabalho. O jovem vestia uma túnica preta pesada e um chapéu igual
a um capelo de formatura universitária, mas com cortinas de contas
nas partes da frente e de trás, que lançavam sombras sobre seu rosto.
Ele tinha as olheiras mais profundas que Zack já havia visto, como se
não dormisse há milhares de anos. Mesmo assim, seu olhar era
aguçado e ameaçador, como se tivesse deixado de dormir para tramar
um assassinato em massa. Uma legenda de Reinomítico também
pairava ao seu lado.

QIN SHI HUANG


“O Primeiro Imperador da China”
Nome verdadeiro: Ying Zheng
Viveu entre: 259-210 a.C.
Glorioso unificador da China. Construiu a Grande Muralha,
encomendou o Exército de Terracota, padronizou os sistemas
de escrita e medida e inventou o título de imperador
“Huangdi” que vocês perdedores usaram pelos 2133 anos
seguintes. Também selou secretamente o maior portal entre o
mundo mortal e o espiritual, para que espíritos malignos não
pudessem mais vagar pela terra e causar conflitos. ELE NÃO
SABIA QUE MERCÚRIO ERA TÓXICO, ENTÃO PAREM DE
PERGUNTÁ-LO SOBRE ISSO.

Zack ficou boquiaberto.


Ele levantou e abaixou os óculos inteligentes na frente dos olhos.
O homem e a legenda só apareciam através da lente de seus óculos.
Não-Simon lançou um olhar intrigado para o recém-chegado,
ajustando os próprios óculos inteligentes.
— Ah, então é possível usar a tecnologia de Realidade Aumentada
para aparecer sem drenar a energia de seu hospedeiro? É um
benefício inesperado desta catástrofe, pelo menos.
— Pois é. — O jovem, que aparentemente era o Primeiro
Imperador da China, continuou a inspecionar o próprio corpo,
girando sem sair do lugar. — Jason Xuan pode ser uma pedra no
sapato, mas suas invenções são uma maravilha.
O que isso tem a ver com Jason Xuan? Zack queria perguntar, mas
não conseguia falar nada enquanto sua mente tentava processar a
cena.
Não-Simon soltou uma risadinha, alheio ao conflito interno de
Zack, e perguntou para o homem:
— Você não é uns dois mil anos velho demais para assumir sua
forma adolescente?
— É menos intimidador para o garoto do que aparecer como um
adulto — respondeu o Primeiro Imperador, colocando as mãos nos
quadris, as mangas esvoaçantes encobrindo seus dedos. — Ele
claramente ainda precisa ser convencido a me aceitar.
— Duvido que alguém se deixe ser convencido a aceitar você.
— Mas não consigo acreditar que ele… que ele me expulsou! Se eu
não tivesse me conectado a esses óculos, nossos planos teriam ido por
água abaixo!
— Eles ainda podem dar errado. — Não-Simon se pôs de pé com
uma expressão séria. — Parece que você não consegue canalizar
muito poder nele por meio do aparelho, consegue?
Os dois estavam fazendo aquela Coisa de Adulto de falar sobre
Zack como se ele não pudesse ouvir, mesmo enquanto o encaravam.
Zack alternava olhares rápidos entre ambos. Não conseguia acreditar.
Seres sobrenaturais — fantasmas — realmente existiam, e ali estavam
dois deles.
Se sua mãe não estivesse inconsciente ao seu lado, Zack não teria
acreditado.
O garoto enfim desembuchou, interrompendo a picuinha dos
imperadores:
— Por que você não chegou aqui mais rápido?
Na verdade, ele queria berrar, mas todos os gritos de antes haviam
arruinado sua voz.
Perplexo, Não-Simon levou um segundo para se explicar:
— Eu teria chegado antes se você tivesse respondido minhas
mensagens!
— Passamos horas tentando chamar sua atenção — acrescentou o
Primeiro Imperador.
— Eu… — começou o garoto.
Zack pressionou os dedos nas têmporas, deixando a cabeça pender
para a frente. Ele não devia ter fugido da escola mesmo. Devia ter
ficado com Não-Simon e tentado entender a situação. Por que tinha
que ser tão covarde?
— Escuta, garoto. É isto que acontece quando você nos ignora. —
O Primeiro Imperador apontou para a mãe de Zack. — Há forças
além de seu entendimento em ação. Se quiser recuperar o espírito de
sua mãe, precisa fazer exatamente o que mandarmos. Caso contrário,
o espírito dela se dissolverá, e você a perderá para sempre.
Horror se apoderou do coração de Zack, como uma garra gélida.
— O q-que eu tenho que fazer? — perguntou, segurando a mão da
mãe. Estava tão fria.
Zack mal aguentava olhar para aquele rosto sem um sorriso, uma
testa franzida ou uma sobrancelha arqueada como de costume. Ela
parecia… vazia. Zack precisava manter a mão sobre suas costelas
para ter certeza de que seu coração continuava batendo. Ele não
conseguia sentir incredulidade; só queria a mãe de volta.
— Você tem que vir conosco até a China — respondeu Não-Simon.
— É lá que está o maior problema.
— Até a China? Por quê? O demônio não está bem aqui? —
questionou Zack, gesticulando para o sr. Lansbury.
A sopa derramada tinha sido absorvida por sua camisa polo,
deixando uma mancha escura e molhada em sua lateral.
— O demônio já partiu faz tempo — disse Não-Simon. — É difícil
de explicar. Mas, falando nisso…
Ele tirou um borrifador de vidro da mochila, girou a tampa do
spray e então borrifou o rosto de Nathan e do sr. Lansbury.
— O que é isso? — Zack estava confuso.
— Caldo de Meng Po diluído — respondeu Não-Simon, agitando o
frasco.
— Caldo de quê?
— Você nunca ouviu falar de caldo de Meng Po? O caldo que todos
os espíritos devem tomar antes de reencarnar para esquecerem suas
vidas passadas?
— Não?
Não-Simon levantou as sobrancelhas.
— Sua mãe não tem o hábito de contar mitos chineses, né?
— Não, ela gosta mais de ficção científica.
Zack apertou a mão da mãe com mais força, pensando nas séries
antigas que os dois assistiam no computador enquanto jantavam,
como Star Trek e Ultraman.
— Bom, esta é uma versão diluída do caldo de Meng Po. Nesta
concentração, um borrifo só faz a pessoa se esquecer da última hora.
Esses dois não devem ter nenhuma memória de terem sido possuídos
ao acordar. Fiz a mesma coisa com seus colegas. Agora, eles só estão
confusos sobre como foram parar no gramado de repente, ensopados.
Não há como explicar o dano feito na pista pelos relâmpagos, mas
podemos deixá-los chegar às próprias conclusões. Por sinal, aquele
menino que foi possuído está bem.
— Certo.
Zack sabia que deveria se sentir aliviado, mas estava
sobrecarregado demais para pensar em Aiden. Só queria avançar no
tempo para o momento em que a mãe acordava e a primeira
pergunta que saía de sua boca era se ele já havia terminado o dever
de casa, e aí tudo estaria normal de novo.
— Mas que história é essa de ir para a China? Não posso ir pra lá.
Mataram meu pai por protestar contra o governo!
Não-Simon trocou um olhar longo e constrangedor com o Primeiro
Imperador antes de dizer:
— Entendo o seu medo, mas podemos protegê-lo. Temos muitos
recursos na China.
— Então por que não protegeram meu pai?
— Não tínhamos recursos naquela época! — esbravejou o Primeiro
Imperador. — Levou um tempo para recuperarmos nossa influência
no mundo mortal.
— Zachary — interveio Não-Simon num tom muito mais gentil
que o Imperador —, o que fizeram com seu pai foi horrível e
imperdoável, mas você precisa se lembrar de que o governo chinês
não representa o nosso povo. O governo age de acordo com os
próprios interesses, sobre os quais os cidadãos comuns não têm
nenhum controle. E a maioria dos cidadãos nunca pensaria em
machucar você.
— Então vocês querem derrubar o governo chinês? — perguntou
Zack, abaixando a voz instintivamente.
— Bom… não. Nós não interferimos nos assuntos mortais. Só nos
espirituais.
— E esse é o ponto — disse o Primeiro Imperador. — Ao longo da
história, a influência dos espíritos trouxe apenas caos para o mundo.
Eles possuem pessoas comuns e amplificam seus desejos mais
sombrios, como aquele garoto Aiden e sua ganância. Por isso que,
dois mil e duzentos anos atrás, eu…
De repente, uma sirene ecoou pela noite, cada vez mais perto.
Não-Simon abriu a porta do apartamento para espiar os arredores,
deixando entrar uma corrente de ar sibilante e o som ainda mais alto
da sirene, então fechou-a e voltou a encarar Zack.
— Vamos explicar o resto mais tarde. Seus vizinhos devem ter
chamado a polícia, então você precisa amarrar a sua história sobre o
que aconteceu. Diga que foi um assalto à mão armada. Sua mãe foi
atacada. Eu… quer dizer, o Simon… estava aqui jogando Reinomítico
com você. Sua mãe gritou para que não saíssemos do quarto, então
nós dois nos escondemos. Ouvimos o proprietário e o filho chegarem
para ajudar, mas eles também foram nocauteados.
— Eu… eu tenho que explicar isso para a polícia?
— Não precisa ser coerente. Só finja que está confuso e assustado
quando fizerem qualquer pergunta detalhada. Nós cuidaremos do
resto.
Não-Simon fechou os olhos. Um espasmo passou por seu rosto, e
seu cabelo se mexeu com um vento súbito. A legenda flutuante ao
seu lado mudou.

SIMON LI / LI SHUDA
Hospedeiro de Tang Taizong. Menino de doze anos de
Xianxim, China.

Na mesma hora, Zack percebeu por que o nome de Simon parecia


tão familiar.
— Espera, Li Shuda? — Zack ficou de pé num salto. — Shuda Li, o
campeão mundial de Reinomítico?
Os olhos de Simon tremeram e se abriram, e de repente ele se
mexia e falava como um garoto desajeitado de novo. O sotaque
também voltou.
— Ah, sim. Sou eu mesmo. É o meu nome chinês. Olha só.
Ele tirou a franja dos olhos e fez uma expressão séria. Seu rosto
automaticamente coincidiu com os pôsteres que Zack havia visto de
Shuda Li, com o cabelo cheio de gel, parecendo pronto para derrotar
qualquer um com suas criaturas virtuais.
— Você… você… você é o cara que derrotou centenas de milhares
de adultos — gaguejou Zack. — Você ganhou cinco milhões de dólares.
Simon largou a franja e baixou a cabeça, parecendo especialmente
culpado com as sirenes da polícia se aproximando.
— Não sou eu. Quer dizer, não fui eu que ganhei todas aquelas
batalhas. Eu gosto do jogo, mas não estou nem perto do nível de um
campeão mundial. Era Tang Taizong quem batalhava. Ele foi um
estrategista genial que ajudou o pai a reunificar a China quando tinha
só vinte anos. Então, hã, para ele foi moleza ganhar de lavada de uns
nerds.
Zack se abaixou ao lado da mãe novamente, sentindo a cabeça
latejar ao tentar se dividir entre surtar por causa dela e compreender
o menino à sua frente.
— Espera. O sequestro teve a ver com isso?
Zack tinha visto o drama se desenrolar ao vivo. Foi uma das coisas
mais empolgantes na história da internet: Shuda Li havia sido
eliminado das finais por não comparecer a tempo, mas então
apareceu num livestream com provas de que havia sido sequestrado e
mal tinha acabado de escapar. Toda a arena do evento e milhões de
espectadores on-line surtaram, exigindo que a XY Tecnologias adiasse
as finais até que Shuda pudesse comparecer. Zack fez spam no chat
com a hashtag #DeixemShudaJogar.
— Sim, aquilo foi Jason Xuan tentando me impedir de vencer. Ele
percebeu que eu era o hospedeiro de um imperador. Na verdade,
Jason é o motivo de eu ter entrado no campeonato. Quer dizer, além
do dinheiro. Nós realmente precisávamos de dinheiro. Mas fomos lá
principalmente para investigar a XY Tecnologias. É uma longa
história. Mas pense em mim só como Simon Li, não Shuda Li, está
bem? — implorou Simon.
— Jason Xuan sabe sobre… sobre…?
Zack gesticulou alucinadamente para Simon, sem saber como
descrever aquela situação.
— Ele sabe muito bem — intrometeu-se o Primeiro Imperador. —
Jason é o hospedeiro da origem de todos os nossos problemas. Vamos
explicar tudo mais tarde. Agora, você tem que se concentrar! A
polícia está chegando!
Um músculo tremeu debaixo do olho de Zack. Ele não conseguia
fazer nada além de segurar a mão da mãe e rezar para que ela
acordasse e fizesse pouco caso da situação, como sempre fazia em
seus dias de trabalho mais difíceis. Ou então rezar para que tudo
aquilo fosse só um pesadelo, e para ele acordar a qualquer momento.
Nada disso aconteceu. Havia apenas o peso da mão dela,
assustadoramente fria e real. Sem cozinhar pratos deliciosos ou
explicar fenômenos científicos para ele ou implicar com seu cabelo
bagunçado.
Ah, ele não teria a menor dificuldade em parecer confuso e
assustado para a polícia.
4
Como a criação da China foi igualzinha ao American Idol

Zack nunca imaginou que estaria chateado durante sua primeira viagem de
avião na primeira classe.
Ele não estava apenas na área de assentos de luxo; estava numa
cabine privada com duas camas de solteiro e um banheiro exclusivo.
Havia se sentado em uma das camas, apoiado em uma pilha de
travesseiros macios, enquanto Simon ocupava a outra, comentando
sobre o documentário a respeito da história da China que passava na
grande tela acima do pé das camas. Na cabine escura, a luz atingia o
rosto de Simon como se estivessem em uma sala de cinema. Zack
deveria prestar bastante atenção, mas não conseguia. Ele até tentava,
mas era impossível.
Na noite anterior, na delegacia, ele havia contado aos prantos a
história do assalto inventada por Não-Simon — ou Tang Taizong,
como tinha que se acostumar a chamá-lo, assim como Qin Shi Huang
para o Primeiro Imperador. Na metade da história, Zack começou a
chorar tanto que mal conseguia respirar. A polícia então desistiu de
lhe perguntar por que um bando de ladrões assaltaria um
apartamento de subsolo qualquer ou de pedir mais detalhes sobre a
aparência deles, além de “usavam máscaras de ski”.
— Uau, você é um ótimo ator! — comentara Simon pouco depois.
Zack não havia atuado.
A mãe tinha sido levada às pressas ao hospital, onde os médicos
declararam que ela estava em coma, embora, é claro, não soubessem
explicar por quê. Justo quando Zack estava prestes a negar que tinha
outros parentes vivos, um pequeno comando em seus óculos
inteligentes — que ele havia mantido no rosto com a desculpa de que
era uma recomendação médica — lhe disse para responder: “Sim,
senhor. Uma tia na China, chamada Yaling Sha.”
A mãe não tinha uma irmã, mas Zack seguiu a deixa. A mensagem
viera com um número de telefone, que ele passou para a polícia. Não
sabia que tipo de conversa havia acontecido por telefone, mas uma
hora depois estava com uma passagem comprada para Xangai. A
polícia o levou de volta ao apartamento para arrumar as malas,
depois lhe deu uma carona até o aeroporto de Portland, passando
pelas imponentes florestas do Maine. Zack suspeitava que houvera
alguma mágica envolvida para eles terem agido tão rápido. Ou talvez
só não quisessem lidar com um órfão durante a noite.
Não, ele se repreendeu. Não sou órfão.
— Ainda não entendi como isso vai ajudar a recuperar o espírito
da minha mãe — disse Zack, exausto do caos em sua mente,
interrompendo um comentário de Simon.
Simon pausou o documentário pressionando duas vezes o ar em
frente aos óculos inteligentes, que havia conectado à tela por
bluetooth. Ele parecia ter algo para dizer, mas não conseguia
encontrar as palavras certas. O garoto realmente não era o Shuda Li
calmo e sereno dos livestreams de campeonato, o que tornava estar
perto dele um pouco menos surreal. Se Shuda fosse “real”, por assim
dizer, Zack não sabia se teria conseguido conhecê-lo sem desmaiar.
Ainda corava às vezes ao se lembrar das fotos promocionais de Shuda
que salvara no celular durante o campeonato. Zack as havia deletado
às pressas durante a carona para o aeroporto.
— Você precisa de uma conexão mais forte com a magia lendária
de Qin Shi Huang para se dar bem nessa missão — respondeu Simon,
desviando o rosto para a luz da tela, parecendo ligeiramente culpado.
Zack mal conseguia ouvi-lo por cima do rugido dos motores do avião.
— O que significa criar uma conexão mais forte com a consciência
cultural dele.
Um sentimento de frustração brotou em Zack.
— Que porcaria é essa?
Simon se endireitou na cama, os olhos reluzindo por trás dos
óculos inteligentes.
— Então, cada cultura possui personagens memoráveis que todo
mundo conhece. Para os americanos, por exemplo, são o Batman e o
George Washington. Para nós na China, são Qin Shi Huang e Tang
Taizong. Todos nós sabemos quem eles são e as coisas lendárias que
fizeram. O fato de estarem na mente de tantas pessoas, geração após
geração, torna seus espíritos poderosos. Mas eles não estão na sua
mente. É por isso que Qin Shi Huang não conseguiu se conectar
direito com você.
— Precisamente — concordou Qin Shi Huang, emergindo no visor
dos óculos de Zack com uma nuvem de polígonos cintilantes,
flutuando sobre as camas. — Esse seu aparelho para os olhos tinha
mais conexão comigo do que você, por conta das informações sobre
mim disponíveis na internet. Foi um milagre eu ter descoberto que o
sistema era complexo o suficiente para hospedar meu espírito antes
que eu caísse de volta ao submundo. — Ele ergueu o olhar, pensativo.
— Na verdade, estou bem impressionado com o que encontrei por
aqui.
Zack, mais uma vez, teve que tirar um momento para processar
que coisas daquele tipo agora faziam parte de sua vida.
— Então por que você não escolheu outra pessoa para possuir? —
acusou Zack.
O garoto apostava que a mãe e ele não teriam sido atacados se Qin
Shi Huang tivesse feito uma escolha diferente.
— Porque você é aquele no qual encarnei um pedaço de meu
espírito e, portanto, a única âncora que eu poderia usar para me alçar
de volta ao reino mortal. — Qin Shi Huang cruzou os braços, fazendo
suas mangas largas se encontrarem como cortinas pretas na frente do
peito. — Se você morresse e eu tivesse que começar do zero, levaria
pelo menos mais doze anos para um novo hospedeiro se tornar
minimamente útil. Não tenho tempo para isso.
— Desculpa aí então! — exclamou Zack impulsivamente. —
Desculpa por não ser chinês o suficiente para isso, sendo que
ninguém me contou que eu precisava saber tanto sobre cultura
chinesa até ontem!
Sua voz rouca falhou. Não sabia direito com quem estava mais
bravo, com eles ou consigo mesmo. As paredes do avião tremeram
atrás de seus travesseiros por causa da turbulência.
— Calma, garoto — disse Qin Shi Huang. — A questão é sua
conexão pessoal comigo, não você ser chinês o suficiente. Isso nem é
algo que pode ser mensurado. Reivindicar sua origem chinesa faz de
você chinês. Saber a meu respeito é apenas uma pequena parte da
vasta cultura chinesa, que é diferente ao redor do mundo, em cada
local onde há pessoas chinesas. Por que você acha que eu falo inglês
como os estadunidenses? É por causa de sino-americanos como você
e sua mãe, que com certeza me consideram apenas uma lenda.
— Mas ela nunca me contou sobre você.
A expressão de Qin Shi Huang oscilou.
— Não posso fazer nada se algumas pessoas não têm apreço pela
história! Mas, se ela cresceu na China, com certeza já ouviu falar de
mim. Uma pena que a maneira como ela escolheu protegê-lo foi
priorizar sua assimilação à cultura americana. Não concordo com
essa prática, mas não há como mudar o passado. Acredite, eu
também não queria realizar esta missão com um tempo tão limitado.
Era para o Simon se transferir para sua escola no próximo ano letivo
e ir lhe apresentando o conhecimento necessário aos poucos.
Deveríamos ter tido muitos anos juntos antes de embarcar nesta
missão. Mas um terremoto recente mudou tudo. Ele afrouxou
bastante o portal para o submundo sobre o qual construí meu
mausoléu. Agora temos meros catorze dias para reforçar o tampão do
portal que eu fiz.
Aquilo não parecia nada bom.
— E o que de pior pode acontecer? — perguntou Zack,
endireitando a postura.
— Bem, para começar, o demônio que está com o espírito de sua
mãe se tornaria poderoso o suficiente para consumi-lo. Nada de céu,
inferno, submundo ou reencarnação para ela. Sua mãe apenas
sumiria.
Zack se sentiu sem chão, como se o avião tivesse despencado
centenas de metros.
— E os espíritos do submundo chinês vão se espalhar pelo mundo
mortal — acrescentou Simon, com uma expressão assustada.
Porém, a mente de Zack continuou travada no terror de que o
espírito de sua mãe pudesse ser consumido, sendo que aparentemente
o pós-vida era algo garantido.
— Como impedimos isso? — perguntou Zack em um só fôlego. A
ansiedade percorria sua barriga como um bando de formigas. —
Como reforçamos esse tampão?
As palavras pareciam absurdas saindo de sua boca, mas, se aquela
era a única maneira de salvar a mãe, ele precisava saber.
— Antes de nos aprofundarmos neste assunto, mostre-me uma
coisa. — Qin Shi Huang apontou para o copo d’água que estava na
bandeja fixada à parede ao lado da cama de Zack. — Tente controlar
aquela água. Levante-a o mais alto que conseguir.
Um frio infiltrou o corpo de Zack a partir dos óculos inteligentes,
como se alguém tivesse jogado água gelada em seu rosto. Hesitando
por ainda não acreditar que conseguia dobrar água, o garoto
levantou a mão na frente do copo e desejou que o líquido se
erguesse.
Ele se ergueu, mas não muito.
— Mais alto! — ordenou Qin Shi Huang.
Zack soltou um chiado por entre os dentes. Forçou a água mais
alto até que sua visão ficou salpicada de manchas e teve que parar. O
líquido despencou de volta para o copo com um pequeno respingo.
— Foi o que suspeitei — resmungou Qin Shi Huang. — Comigo
meramente possuindo este aparelho, você não consegue canalizar o
suficiente de minha magia para lutar. E com certeza não consegue
usá-la tão bem quanto eu.
Zack sentiu o rosto arder de vergonha.
— Será que podemos refazer o pacto de possessão?
— O pacto? Ah, sim! Minha promessa de torná-lo mais forte em
troca de usá-lo como meu hospedeiro. Não era um pacto mágico. Foi
apenas uma promessa de honra, que continuo a cumprir de bom
grado. É evidente que você precisa disso.
Zack não conseguia sequer argumentar. Se fosse mais forte, se
fosse menos fracote, não teria fugido e se encolhido na cama e dado
aos demônios abertura para atacarem.
— Mas a resposta é não — continuou Qin Shi Huang. — Lamento,
mas estou permanentemente conectado a este aparelho da maneira
como deveria estar permanentemente conectado a você. Entretanto,
podemos melhorar nossa conexão espiritual ao aprimorar seu
conhecimento sobre mim.
O imperador gesticulou para a tela.
— Esse documentário lhe deu uma boa noção sobre minha lenda?
O filme estava pausado na encenação de um ator interpretando ele
e erguendo uma espada reluzente no que parecia ser um aposento
palaciano sombrio, iluminado por uma lareira. O ator era barbudo e
fortão, e parecia bem mais velho do que o Qin Shi Huang visto por
Zack.
— Hã… — Zack se esforçou para reunir os fragmentos de
informação que haviam penetrado seus pensamentos turbulentos. —
Então, você era um príncipe que nasceu em um período com um
monte de guerras. Quando tinha apenas treze anos, você se tornou
o… rei de Qin?
Qin Shi Huang bufou.
— Deixe-me explicar em termos mais simples. Cerca de três mil
anos atrás, havia mais de uma centena de reinos na região que depois
se tornaria a China. Três dinastias lendárias reivindicavam soberania
sobre todos eles, mas eram meros testas de ferro. Depois que pararam
de respeitar as dinastias, os reinos entraram em uma competição de
eliminação, como esses reality shows americanos. Eles foram se
abocanhando aos poucos durante os trezentos anos do Período das
Primaveras e Outonos, até restarem apenas os sete melhores, também
conhecidos como os Sete Reinos Combatentes. A rodada final durou
mais dois séculos até eu derrotar todos eles em uma campanha veloz
de dez anos. Sim, eu ganhei o American Idol da China Antiga. — Qin
Shi Huang franziu o cenho. — China Antiga Idol? Que seja.
Era um monte de informações, mas a única coisa que Zack
conseguiu perguntar foi:
— Como você conhece o American Idol?
— Sino-americanos, lembra? Não há nada que impeça a cultura
chinesa e a americana de se misturarem. Na época do auge do
American Idol, George Washington fez alguns de nós assistirmos com
ele. — Qin Shi Huang balançou a cabeça. — A qualidade do
programa decaiu profundamente após a saída do Simon Cowell.
— Quem eram “alguns de nós”?
— Eu, Alex…
— Alex?
— Um conquistador da Europa. Macedônia, eu acho.
— Alexandre, o Grande? Você é amigo de Alexandre, o Grande?
— Você conhece esse cara, mas não me conhece? — acusou Qin
Shi Huang.
— Ele… ele é Alexandre, o Grande! Eu estava fazendo uma
apresentação sobre ele para a aula de história!
— E eu sou Qin Shi Huang, o Primeiro Imperador da China! Ao
contrário de Alex, atingi meu objetivo de conquistar todo o território
até o oceano Pacífico! Mas ele é um cara decente. Eu o ensinei a jogar
mahjong. Ram, Genghis, ele e eu nos reunimos para algumas partidas
de década em década.
Os nomes foram decifrados pela mente de Zack.
— Você joga mahjong com Alexandre, o Grande, Ramsés II e Genghis
Khan?
— Como você conhece todos eles menos eu? Também sou um
conquistador de primeira! — disparou Qin Shi Huang, levando os
dedos às têmporas, logo abaixo do chapéu. Ele fechou os olhos com
força, e seu temperamento se abrandou. — Ah, não é culpa sua.
Zhèxiē báirén zhēnshì de. Que absurdo que as crianças na China sejam
bombardeadas com lendas e histórias ocidentais, enquanto as
crianças no Ocidente não aprendem nada além dos europeus típicos,
dos ocasionais egípcios e quem sabe Genghis Khan.
— Talvez você não seja tão de primeira quanto pensa —
resmungou Zack.
— Escute aqui! — Qin Shi Huang apontou o dedo para o garoto.
— Sou o único conquistador em toda a história a ter eliminado todos
os possíveis inimigos, e meu sistema de governo persistiu por mais de
dois mil anos. Reinei sobre todo o mundo que eu conhecia! Esgotei os
territórios que poderia conquistar! O único motivo de eu ser deixado
de lado nessa lista de conquistadores é porque meu império ainda é
um país unificado! Por acaso os outros podem dizer o mesmo?
— Por que você está se esquecendo de contar que a sua dinastia se
desfez em apenas quinze anos? — gracejou Simon de repente.
Não… Com aquele tom confiante, sorriso relaxado e inglês fluente,
não era Simon. Tang Taizong havia assumido o controle. Zack se
perguntou o que acontecia com Simon quando ele fazia aquilo, se sua
mente se retraía e perdia todo o controle sobre o corpo, tornando-se
um espectador da própria existência, como havia acontecido
brevemente com Zack. O garoto estremeceu. Estava dividido entre
sentir alívio porque aquilo não aconteceria com ele de novo e culpa,
porque, se não tivesse expulsado Qin Shi Huang, os demônios
provavelmente não teriam levado a alma de sua mãe.
Qin Shi Huang voltou sua carranca para Tang Taizong.
— Por que você não conta a ele que escolheu seu filho mais fraco
como herdeiro porque acreditava que ele era bondoso e gentil e não
mataria os próprios irmãos como você fez com os seus, sem perceber
que ele teria um caso com uma de suas concubinas enquanto você
sofria em seu leito de morte, e depois aquela concubina acabaria
usurpando sua dinastia e se tornando a única imperatriz mulher de
nossa história? Por que não conta essa história, hein?
O sorriso de Tang Taizong diminuiu.
— Nada disso foi culpa minha!
— Não me desafie, Taizong. — Qin Shi Huang levantou a palma
da mão e virou o rosto. — Tenho oitocentos anos a mais do que você.
Assisti à sua vida inteira. Sei de mais podres sobre você do que você
jamais saberá sobre mim.
— Que seja. Pelo menos eu criei a era de ouro da China. A era mais
diversa e tolerante que já existiu. Ou seja:
#DinastiaTangMelhorDinastia.
Tang Taizong fez o gesto de hashtag com os dedos.
— Usando hash…? — Qin Shi Huang fez uma careta. — Você está
no reino mortal há tempo demais.
Tang Taizong abriu um sorriso.
— Desculpe, estou preso no corpo de uma criança de doze anos.
Revirando os olhos, Qin Shi Huang se voltou para Zack, que sentia
o próprio cérebro derretendo com aquela conversa.
— Mas é verdade. Governei a China só por doze anos, e minha
dinastia desmoronou três anos depois de eu partir para o além. Não
foi uma grande surpresa. Eu havia feito muitos inimigos, tanto
mortais quanto sobrenaturais. Embora tampar o portal para o
submundo seja uma conquista que você não vai encontrar nos livros
de história. Tentei ao máximo apagar a existência do portal dos
registros oficiais. Quanto menos as pessoas acreditarem nele, menos
poder ele tem. Foi daí que surgiu minha péssima reputação de
queimar livros.
— Até parece. — Tang Taizong bufou. — Como se você não tivesse
queimado certos livros só para ter controle sobre súditos recém-
conquistados.
— Eu guardei cópias na biblioteca imperial! Foi Xiang Yu que as
destruiu quando incendiou meu palácio.
— Ah, claro. Jogue a culpa em Xiang Yu.
— Ele incendiou mes…
— Então, como sua magia funciona? — perguntou Zack, trazendo-
os de volta ao assunto principal. — Por que consegue controlar a
água? E… o tempo? Ou é supervelocidade, tipo o Flash?
Zack se lembrou dos muitos relâmpagos caindo dos céus.
— O Flash? — Qin Shi Huang pareceu confuso. — Ah, certo! Você
e seus deuses americanos…
— Não… hã, o Flash é um super-herói, não um deus.
— Dá no mesmo. Super-heróis são mitos americanos. Não foram
difundidos por tempo o suficiente para tomarem forma espiritual,
mas, se durarem mais alguns séculos, suponho que acabarei jogando
mahjong com Bruce Wayne e George Washington na mesma mesa
etérea.
— O quê? — Zack atingiu um novo patamar de incredulidade. —
Mas super-heróis não são venerados como se fossem de verdade.
— Não? Então o que é a Comic-Con, hein?
Zack não tinha uma boa resposta, então arquivou aquela
informação na pasta de Coisas Sobre O Mundo Para Parar de
Questionar Dali Em Diante.
— Tá bom, mas você também tinha esses poderes durante sua
vida? — perguntou o garoto.
Zack teria prestado bem mais atenção no documentário se ele
mostrasse Qin Shi Huang controlando água, invocando raios e
desacelerando o tempo.
— Não, eu fui uma pessoa normal durante minha vida mortal.
Contei com a cooperação de meus ancestrais no submundo para
tampar o portal. Mas depois que transcendi meu corpo físico…
— Ele morreu tomando pílulas de mercúrio porque achou que o
tornariam imortal — revelou Tang Taizong.
— Você também! — gritou Qin Shi Huang, sem olhar para Tang.
— Supostamente! As fontes discordam!
— Você sabe o que fez! Então, como eu estava dizendo… —
continuou Qin Shi Huang, arregalando os olhos para Zack. —
Quando morri, meu espírito adentrou a consciência cultural chinesa
como uma lenda. Conforme as histórias e crenças sobre mim se
tornavam mais mirabolantes com o passar de décadas, séculos e
milênios, ganhei habilidades espantosas. Entretanto, a magia lendária
é instável. Às vezes, é possível controlá-la, como quando criei minha
magia de desaceleração do tempo a partir das várias tentativas de
assassinato lendárias contra mim. Outras vezes, porém, você fica à
mercê dela. Eu conseguia levantar e cindir a terra com um chicote,
porque uma lenda dizia que eu construí a Grande Muralha dessa
maneira. Agora, essa lenda caiu no esquecimento, e sou mais
associado a habilidades de dragão, como controlar água e invocar
tempestades. Isso se deve em parte a um videogame popular
chamado Glória das Lendas, que me retratou assim.
Zack ficou chocado.
— Você pode ganhar poderes de um videogame?
— É claro — garantiu Qin Shi Huang. — O jogo encorajou uma
nova geração inteira a me imaginar tendo habilidades de dragão,
contribuindo assim para minha lenda.
— O jogo é tão popular assim? Eu nunca ouvi falar dele.
— É sério? — intrometeu-se Tang Taizong. — Glória das Lendas
está sempre entre os jogos mais vendidos no mercado chinês. Mas, ao
contrário de Reinomítico, não incluiu elementos ocidentais para o
lançamento internacional, então fracassou no exterior. Tsc. Acho que
história chinesa não é interessante para ocidentais.
— Claro. Reinomítico. — Zack se aprumou. — Como ele funciona?
O jogo é… real?
Qin Shi Huang respondeu:
— Não. Quer dizer, nem toda criatura nele é um espírito de
verdade. Porém, a exposição em larga escala das lendas dos espíritos
de verdade que estão soltos pelo mundo certamente os tornou mais
poderosos.
— Então como é que a visão dos meus óculos se parece com uma
batalha de Reinomítico quando lutamos contra espíritos?
— Ah, eu simplesmente me apropriei do design de interface. Devo
admitir, ele é bem conveniente e intuitivo. Sem contar que é muito
mais fácil transmitir informações subconscientemente para você do
que gritar comandos a cada segundo.
— Ah.
Zack não sabia se estava decepcionado. Teria sido legal se seu
videogame favorito fosse de verdade.
E por falar em decepções, ele sabia que já havia passado da hora
de fazer outra pergunta que o devorava por dentro, por mais que não
quisesse ouvir uma resposta negativa.
— E Jason Xuan? Você disse que ele também era… um
hospedeiro? Ele não é do mal, é?
Tang Taizong agarrou seus lençóis.
— Jason Xuan foi o hospedeiro escolhido pelo Imperador Amarelo,
o ancestral lendário do povo chinês. Depois de suspeitarmos da XY
Tecnologias, entramos no campeonato de Reinomítico para investigar
e descobrimos isso.
— Como se o nome da empresa não deixasse óbvio. — Qin Shi
Huang revirou os olhos. — Claramente significa Xuanyuan, um dos
nomes do Imperador Amarelo. Acreditamos que ele instruiu Jason
Xuan a criar a XY Tecnologias, e então enviou sonhos para as pessoas
a fim de influenciá-las a comprar os produtos e jogos da marca.
— O quê?! — exclamou Zack, levantando a mão de súbito para
arrancar os óculos inteligentes.
— Não! — Qin Shi Huang se jogou sobre o garoto enquanto sua
imagem virtual falhou sobre a cama. — Você tem que continuar com
o aparelho para se manter conectado a mim. É seguro. Eu já chequei
todos os aspectos da programação e desabilitei qualquer coisa que
permitisse que a XY Tecnologias nos rastreasse.
Zack afastou os dedos dos óculos inteligentes, mas continuou
apavorado.
— Mas, hã, por que o Imperador Amarelo iria querer que as
pessoas jogassem videogame?
Qin Shi Huang flutuou acima da cama outra vez, forçando Zack a
inclinar a cabeça para encará-lo.
— Jogos podem mudar sutilmente o modo como as pessoas
enxergam o mundo, especialmente jogos de realidade aumentada,
que conseguem misturar o faz de conta com a realidade. Veja
Reinomítico, por exemplo. Ao influenciar pessoas a caçar criaturas
míticas em realidade aumentada, ele essencialmente torna as
criaturas “reais” para os usuários, e assim os espíritos dessas criaturas
também se fortalecem. O suficiente para que, juntos, possam destruir
o tampão do portal se não o reforçarmos dentro de catorze dias.
— Por que exatamente catorze dias? — Zack inclinou a cabeça,
intrigado com as menções ao número.
— É quando começa o sétimo mês lunar — respondeu Tang
Taizong. — Na cultura chinesa tradicional, é o Mês dos Fantasmas.
Normalmente, apenas os espíritos mais lendários como nós
conseguem se esgueirar para o reino mortal, mas durante o Mês dos
Fantasmas acredita-se que todos os espíritos têm essa habilidade. O
fluxo intenso de espíritos escapando do submundo de uma só vez
pode romper o tampão do portal por completo. Então eles
tumultuariam a China, possuindo pessoas e poluindo suas mentes. O
caos poderia levar a China à guerra, o que seria desastroso com as
armas modernas de vocês.
Zack engoliu com dificuldade, sentindo a garganta ressecar. Aquilo
parecia tão absurdo que o garoto não conseguia acreditar que
estavam exigindo que ele fizesse algo a respeito. Era sempre o último
a ser escolhido para os times na aula de educação física!
— De fato — concordou Qin Shi Huang. — E como os espíritos das
criaturas serão gratos ao Imperador Amarelo por sua nova força… e
como lendas ressaltam sua fama de domador de feras… ele acha que
será capaz de controlá-las e usá-las como um exército pessoal. Ele é
arrogante demais.
É o sujo falando do mal-lavado, hein?, teria dito Zack se fosse mais
corajoso.
— Mas para que ele precisa de um exército? Se ele é o ancestral do
povo chinês, por que nos destruiria?
— Porque ele acredita que seus filhos se desviaram do caminho
correto, é claro, e precisam ser disciplinados. Não dá para negar que
os seres humanos modernos fizeram um trabalho péssimo e
decepcionante como cuidadores do planeta. O problema para o
Imperador Amarelo é que seu espírito vasto e antigo está espalhado
entre os reinos mortal e espiritual, já que as pessoas acreditam que
ele é, ao mesmo tempo, um ancestral divino e um mortal falecido.
Mesmo quando o Imperador Amarelo é adaptado para jogos de
videogame, como Jason Xuan tentou fazer diversas vezes, ele nunca é
popular. Um ancestral todo-poderoso é entediante se comparado a
lendas mais exuberantes, como a minha. E quando os jogos tentam
lhe dar mais personalidade, as pessoas rejeitam esse tipo de
representação. Somente com o portal entre os reinos fluindo
livremente ele conseguirá uma existência concreta, ao que tudo
indica com Jason Xuan como hospedeiro.
— Ele já não está possuindo Jason?
— Não, no momento ele consegue apenas influenciar, não possuir.
É a diferença entre eu falar com você versus dominar seu corpo. Ele
consegue sussurrar para as pessoas em seus sonhos, quando suas
mentes estão mais próximas do reino espiritual, mas não consegue
acompanhá-las de volta para o mundo real.
O coração de Zack apertou. Primeiro Shuda Li, agora Jason Xuan.
Ele não conseguia acreditar que dois de seus ídolos eram grandes
impostores sobrenaturais.
— Então temos que derrubar a XY Tecnologias?
— Não — respondeu Qin Shi Huang. — Não há motivo nem tempo
para isso. Mesmo que a empresa fosse à falência amanhã, as
memórias das pessoas sobre as criaturas não desapareceriam. Nossa
única opção é reforçar o tampão do portal. Estou ajustando meu
plano original. Só faça tudo o que eu disser, e teremos chance de
vencer, apesar dos inúmeros contratempos.
Zack não estava gostando nada daquilo, mas o espírito da mãe
estava em risco. Ele estremeceu com a memória de sua aparência sem
vida, ligada a todos aqueles aparelhos no hospital. Era fácil imaginar
a tampa de um caixão deslizando sobre seu rosto pálido.
Zack sentiu o medo se contorcer em seu âmago. Não podia perdê-
la. Não podia. Ela era sua família. Para onde iria se ela partisse?
Adoção?
Não.
Ele não conseguia imaginar esse futuro. Não queria imaginá-lo. Se
precisava ter sucesso naquela missão para trazê-la de volta, então era
isso que ele faria.
Faria qualquer coisa.
5
Como ficar rico e famoso alugando seu corpo para um
imperador morto

Zack não sabia onde estava. Parecia uma enorme câmara palaciana. A única
iluminação vinha de labaredas e se refletia em dezenas de grossos
pilares de bronze adornados com dragões, que se alçavam escuridão
acima.
Uma voz flutuou por seus ouvidos, fraca como uma brisa:
— Minha criança…
Assustado, Zack olhou em volta. Um frio metálico pairava no ar,
infiltrando-se em seus músculos e ossos. O garoto se arrepiou.
— Ele… está… mentindo…
Zack de repente teve o instinto de olhar para cima e avistou um
elaborado trono de bronze sobre uma plataforma mais à frente,
oculto nas sombras. Lá, encontrava-se sentada uma figura usando um
chapéu com uma cortina de contas familiar. Por algum motivo, o
terror atingiu Zack feito um raio.
— Ele… mãe…
A voz dizia algo importante, algo que Zack sabia que precisava
ouvir, mas as palavras ficavam abafadas nos momentos cruciais.
Observando os arredores, o garoto percebeu que estava em uma
longa plataforma de metal acima de uma poça de água escura, onde
algo branco se movia. Quando a coisa subiu à superfície, duas órbitas
pretas vazias o encararam.
Era uma caveira, emoldurada por um hijab vermelho.
Calafrios tomaram o corpo de Zack.
— Ele é um tirano, e sempre será! — A voz estava repleta de
angústia. — Não caia em suas mentiras, minha criança… Ele…

— Zack! Acorde!
Assustado, o garoto abriu os olhos. Simon estava ao lado dele,
sacudindo seu ombro.
— Vamos lá, estamos aterrissando. — A voz de Simon parecia vir
debaixo d’água. — Temos que colocar os cintos de segurança.
Zack apertou o próprio nariz e tentou suavizar a pressão nos
ouvidos. Os motores do avião voltaram a uivar com força total. Ele
estava coberto de suor frio.
— Você teve um pesadelo? — perguntou Simon, observando a
testa encharcada de Zack.
O garoto se afastou abruptamente de Simon, as bochechas
esquentando, e esfregou a testa com o braço. Ele devia ter tido um
pesadelo aterrorizante, mas, ao tentar se lembrar do sonho, sua
mente deu branco.
— Hã… Não me lembro.
— Ah. Se você se lembrar, avise. Qin Shi Huang deve ter fornecido
alguma proteção contra as tentativas do Imperador Amarelo de
influenciar você através de sonhos, mas nunca se sabe. Espíritos
chineses se comunicam através de sonhos com frequência. Isso se
chama tuōmèng.
— Tuōmèng — repetiu Zack em um murmúrio, as sílabas estranhas
em sua boca.
Aquela deveria ter sido sua língua materna, mas não era. A mãe
nunca falava mandarim com ele porque não queria que Zack tivesse
sotaque ao se comunicar em inglês. E ele não aprendeu sozinho
porque nunca sentiu vontade.
Agora estava prestes a aterrissar em um país que era estrangeiro
para ele. Não entenderia nada da língua ou dos costumes. Um país
que havia matado seu pai e forçado sua mãe a fugir com ele para
outro continente.
Depois que Simon e ele apertaram os cintos nos enormes assentos
de couro ao lado das camas, Zack passou a aterrissagem inteira com
os olhos fechados. O medo de acabar como o pai crescia dentro dele,
mas pensar em um demônio dilacerando o espírito da mãe era bem
pior.
Por ela. Ele aguentaria aquilo por ela.
Assim que botou os pés para fora do avião e na ponte de
desembarque que parecia um túnel, Zack sentiu um calor infiltrar
cada centímetro de seu corpo. Ele respirou fundo. Tendo passado os
últimos três anos no Maine, não estava mais acostumado com um
clima quente como aquele. Sua camiseta e suas calças ficaram
praticamente encharcadas depois da curta caminhada pela ponte.
Felizmente, o aeroporto tinha ar-condicionado. Os pisos brilhantes
refletiam as centenas de luzes do teto. Uma voz feminina suave fazia
anúncios em diversos idiomas. Como Zack e Simon eram menores de
idade desacompanhados, seguranças os ajudaram a pegar as malas e
os escoltaram na imigração chinesa. Zack não fazia ideia de como seu
visto estava sendo processado, mas achou melhor não levantar
suspeitas fazendo perguntas. Ele rezou para que ninguém descobrisse
que era filho de um dissidente que fora executado. Sua mãe havia
mudado legalmente o nome de Zack de Ying Ziyang para Zachary
Ying quando se mudaram para os Estados Unidos — talvez isso fosse
o suficiente? Era como se ele tivesse uma identidade secreta, mas que
não tinha nada a ver com os superpoderes que mal conseguia usar.
Enquanto os adultos se entendiam, Zack ficou boquiaberto diante
de tudo no aeroporto. A última vez que havia visto tanta gente num
só lugar fora durante o Ano-Novo em Nova York com a mãe, quando
os dois foram assistir à queda da bola na Times Square. (O que
acabou sendo muito decepcionante e frio. Zack tinha lembranças
melhores de beber chocolate quente e dividir um cobertor com a mãe,
rindo depois de finalmente terem conseguido chegar em casa do
evento, atravessando lamaçais e neve.) A multidão de turistas
conversava alto e carregava malas em grupos grandes, como se
desconhecessem o conceito de espaço pessoal.
Além disso, a maioria das pessoas no aeroporto se parecia com
Zack. Pela primeira vez em três anos, ninguém observava cada
movimento que o garoto fazia ou o encarava. Zack se sentiu tão…
normal.
Mas era uma ilusão. Ele não conseguia entender a língua que
falavam. Não conhecia as lendas e a história deles. Era um impostor.
Uma fraude.
Filho de um terrorista, imaginou os funcionários do aeroporto
sussurrando antes de o arrastarem para um “campo de reeducação”,
que o governo da China insistiria não passar de propaganda
ocidental.
Mas também não era como se Zack estivesse seguro nos Estados
Unidos. No ano anterior, ele havia se cadastrado em um site chamado
“Me Pergunte Qualquer Coisa”. A primeira pergunta anônima que
recebeu foi: Como se sente sendo filho de terrorista?
Ele ficou paralisado na cadeira por vários minutos, pensando que o
governo chinês o havia encontrado, até perceber que a pergunta
devia ter sido enviada por alguém que o vira chegando na escola com
a mãe, e que estavam se referindo a ela.
— Você tá bem? — perguntou Simon de repente, reparando em
Zack enquanto os dois esperavam diante do balcão de mármore de
uma funcionária da imigração.
— Eu…
Zack respirava em arfadas curtas. Não conseguia ar suficiente para
responder.
— Ei, vai ficar tudo bem. — Simon sorriu. — Você está em casa.
Estou mesmo? Um tremor abalou o coração de Zack. Será que
algum dia encontraria um lugar ao qual pertencesse de verdade,
mesmo sendo tão diferente de um americano típico, de um chinês
típico, e até de um muçulmano típico?
Quando a funcionária da imigração finalmente devolveu os
passaportes dos dois, falou algo em mandarim com um olhar
sombrio.
— O quê? O que foi? — perguntou Zack para Simon em um
sussurro frenético, agarrando a alça da mala.
Simon se virou para ele com uma expressão apreensiva, fechando
o passaporte como se fosse um livro.
— A filha dela é uma grande fã minha.
Zack soltou uma risada de puro alívio.
— Parabéns?
— Só fico aliviado por ela não ter pedido uma selfie ou algo assim
— resmungou Simon enquanto eles arrastavam as malas. — Eu
definitivamente não estou com cara de Shuda Li neste momento.
Zack estava viajando com uma celebridade. Aquele era um tipo
diferente de esquisitice, e bem mais fácil de lidar.
— Ah, um aviso — continuou Simon. — Nosso time tem um
terceiro membro. Ela veio nos buscar. É a hospedeira da, hã, própria
Wu Zetian. Então tome cuidado.
— Quem é essa? — perguntou Zack, sentindo o estômago revirar
de novo com o receio de estar em um planeta alienígena. — Simon,
eu não conheço esses nomes que você solta.
— Ah! Desculpe. Sabe a concubina da qual Qin Shi Huang estava
reclamando? A que era casada com Tang Taizong, mas ficou com o
filho dele quando o marido estava no leito de morte e depois usurpou
tudo até se tornar a única imperatriz na história da China? É ela.
— Ah. Uau.
— Está tudo bem, não fique tão assustado. A hospedeira dela tem
a nossa idade, porque os imperadores encarnaram um pedaço de seu
espírito ao mesmo tempo doze anos atrás. Ela se chama Wu Mingzhu,
ou Melissa Wu.
— Ela fala inglês?
— Sim, muito bem. Nós dois frequentamos uma escola
internacional em Xangai.
Zack deixou escapar um pequeno suspiro de alívio. Apesar do
sotaque perceptível, Simon não tinha nenhuma dificuldade para
entender Zack, então com sorte aconteceria o mesmo com ela.
O portão de desembarque surgiu à frente, cercado por várias
pessoas atrás de barreiras de contenção de metal. Só que, em vez de
segurarem cartazes com nomes, como nos filmes, havia letras e
caracteres virtuais acima de suas cabeças. A maior parte dos nomes
estava em chinês, mas havia outras línguas também, visíveis no
Campo de Realidade Aumentada Comum ao qual os óculos
inteligentes conseguiam se conectar. Outra coisa que Zack tinha
notado era que quase todo mundo usava óculos inteligentes, não
apenas os jovens, como nos Estados Unidos. E faziam usos muito
mais práticos deles. Tanto que ele raramente via celulares. Pessoas
em todas as direções falavam no microfone que era possível baixar da
haste esquerda dos óculos inteligentes e arrastavam janelas virtuais
diante de si, que apareciam na visão de Zack como caixas
transparentes desfocadas. Ele devia ter se conectado
automaticamente a uma rede Wi-Fi para ser capaz de vê-las — ou
talvez Qin Shi Huang tivesse feito isso por ele.
Provavelmente graças a mais uma intromissão de Qin Shi Huang,
os cartazes virtuais se apagaram até restar apenas um em magenta
vibrante que dizia Zack & Simon. No instante em que Zack avistou a
menina de rabo de cavalo debaixo das letras, soube que devia ser
dela que Simon havia falado. Estava vestida de maneira muito adulta
para alguém da idade deles. Usava um vestido branco chique,
sandálias plataforma combinando, enormes óculos de sol cor-de-rosa
no formato de olho de gato, brincos de argola e várias pulseiras
intricadas, tudo de prata, além de carregar no ombro uma bolsa
enorme que parecia cara.
Ela deu um gritinho quando os viu. Assim que os dois passaram
pelos portões e pelas barreiras de contenção, a garota andou a passos
largos até eles, com os braços abertos e o rabo de cavalo balançando.
Suas sandálias plataforma a deixavam consideravelmente mais alta
que Zack e Simon.
— E aí, otários?
Seu perfume os alcançou antes dela. Zack tinha que admitir que
era bem cheiroso, uma combinação de baunilha e frutas vermelhas.
Uma legenda de Reinomítico apareceu ao lado da menina.

WU ZETIAN
“Imperatriz Wu”
Nome verdadeiro: Wu Zhao (ou então foi ela que inventou)
Viveu entre: 624-705 d.C.
A única mulher a se tornar imperatriz na história da China.
Usurpou a dinastia Tang para fundar a dinastia Zhou, que
durou quinze anos, até devolver o trono ao filho. NÃO
ARRUME CONFUSÃO COM ELA EM HIPÓTESE ALGUMA.

— Niáng-niang! — balbuciou Simon. — Tem certeza de que é uma


boa ideia aparecer em público assim?
Niáng-niang: minha senhora. A tradução apareceu na parte de
baixo do visor de Zack.
Ele se perguntava a mesma coisa. No avião, os imperadores
haviam dito que, depois da aterrissagem, só emergiriam quando fosse
necessário ou no apartamento protegido por amuletos que usavam
como base, senão seus sinais espirituais poderiam atrair inimigos.
— Relaxa, aqui tem gente recém-chegada demais para
conseguirem me detectar. Eu não podia desperdiçar a oportunidade
de conhecer o hospedeiro de Qin Shi Huang pessoalmente. — Com
um sorriso entusiasmado, Wu Zetian abaixou os óculos de sol e deu
uma olhada em Zack por cima da armação. — Ah, ele é mesmo um
garoto deslumbrante.
Zack ficou de queixo caído quando viu os olhos dela. Eram tão
bonitos. Tão, tão bonitos. Ele normalmente não sentia nada perto de
garotas, mas sua barriga tremeu como se borboletas estivessem
alçando voo lá dentro.
Então ela recolocou os óculos e a sensação sumiu, deixando-o
desorientado.
— Viu só? Ele não é imune à minha magia de charme. Eu avisei a
Taizong que seria melhor se eu fosse buscá-lo, aí aquele fiasco nunca
teria acontecido.
Aquela interação havia deixado Zack tão sem fôlego que ele
demorou um pouco para perceber que uma mulher mal-encarada
com parte da cabeça raspada havia aparecido atrás de Wu Zetian. Ela
vestia um colete jeans e estava de braços cruzados. Eram os maiores
bíceps que ele já havia visto. Zack teve a sensação de que ela mesma
havia arrancado as mangas da jaqueta. Talvez com os dentes.
Ele deu um passo para o lado de Simon.
— Hã…
— Ah, é. — Wu Zetian gesticulou por cima do ombro para a
mulher. — Esta é Yaling, nossa mercenária. Foi ela quem fingiu ser
sua tia no telefone e resolveu toda a papelada.
— M-mercenária?
— Sim, ela é ótima! Faz o trabalho bem-feito e nenhuma pergunta
intrometida. Recebeu avaliações de cinco estrelas de um monte de
líderes de gangue e chefões do crime locais — explicou Wu Zetian,
levantando os dois polegares.
O olhar de Zack saltou entre as pessoas que passavam ao redor
enquanto ela falava isso, temeroso de que alguém chamasse a polícia.
Mas Wu Zetian estava no corpo de uma menina de doze anos e
falando em inglês, então ninguém parecia prestar a menor atenção
nela.
— Mas… mas por que você precisa de uma mercenária?
Ela franziu as sobrancelhas definidas a lápis. Apenas metade era
visível por cima dos óculos de sol.
— E como a gente ia conseguir fazer qualquer coisa sem ela? Não
dá para resolver tudo estando em corpos de criança, mesmo com
meus poderes de charme.
— Ela sabe sobre os elementos sobrenaturais? — sussurrou Zack,
olhando cautelosamente para Yaling.
— Tenho quase certeza de que ela acha que somos um bando de
crianças ricas desocupadas — sussurrou de volta Wu Zetian com um
sorriso travesso, se inclinando para perto de Zack. — Nós apagamos a
memória dela quando Yaling vê algo que realmente não tem
explicação científica. Mesmo se deixarmos passar um incidente,
ninguém acreditaria se ela tentasse dar com a língua nos dentes.
Coisa que ela não faria. É por isso que ela vale cada centavo.
Zack estremeceu. Aquilo devia quebrar pelo menos uns dez
códigos morais. No que ele estava se metendo?
— Agora, vamos lá! — Wu Zetian deu meia-volta sobre as
sandálias plataforma. — Vai ser tão divertido!
Diferentemente do contraste entre a timidez desajeitada de Simon e a
confiança presunçosa de Tang Taizong, a verdadeira Melissa Wu agia
exatamente como Wu Zetian. Sério. Zack não via diferença em seu
comportamento. A única distinção na aparência era que Melissa não
usava óculos de sol para manter sua magia de charme sob controle,
embora se gabasse de ainda ter um pouquinho, já que havia nascido
com uma parte do espírito de Wu Zetian. Para Zack, ela parecia
aquelas meninas populares que sempre andavam com um bando de
amigas e enchiam os comentários das selfies umas das outras de
emojis de coração. Era o tipo de menina com quem ele adorava
brincar no fundamental I, antes de começar a se preocupar com o que
as outras crianças pensariam sobre ele estar naquele grupo sendo um
menino.
— Eu já tenho muitos fãs por causa dos meus vídeos de
maquiagem e penteados, mas, depois que cumprirmos esta missão,
Wu Zetian disse que vai me ajudar a virar uma das maiores estrelas
pop da China. — Melissa sorriu, falando com Zack e Simon por cima
do encosto de seu assento no metrô de Xangai.
Yaling estava ao seu lado, assistindo a um drama palaciano no
celular, estrelado por damas finas que choravam usando túnicas e
penteados elaborados. O metrô roncava e chacoalhava cidade
adentro. Pelas janelas, só dava para ver concreto e luzes subterrâneas
borradas.
— Esse foi o meu desejo — finalizou a garota. — Qual foi o seu?
— Ah, hã…
Zack de repente sentiu vergonha de admitir que tinha sido “ficar
mais forte”. Ele se agarrou à mala como se sua vida dependesse disso.
O local estava mais lotado do que qualquer metrô de Nova York em
que já estivera. Simon e ele precisavam equilibrar as malas no espaço
minúsculo para as pernas em frente a seus assentos. O voo deles
havia aterrissado durante a hora do rush, que aparentemente era tão
ruim em Xangai que até sofrer no metrô a caminho do apartamento
que usariam de base seria mais rápido do que ir de carro. As pessoas
em pé no corredor se inclinavam sobre eles como árvores enquanto
mexiam nos celulares. Aquele parecia ser o único lugar em que todo
mundo concordava que a gesticulação necessária para usar os óculos
inteligentes seria um incômodo.
— Você não recebeu um desejo em troca de se tornar um
hospedeiro? — perguntou Melissa, cruzando os braços por cima do
encosto de seu assento e se sentando de joelho. Mesmo sua voz
aguda e aérea era quase inaudível em meio aos anúncios do metrô e
as pessoas praticamente gritando nos celulares. — O meu foi sair do
meu vilarejo e me tornar bonita e famosa. O do Simon foi ficar rico.
— Para dar dinheiro para minha família — esclareceu Simon,
levantando um dedo. — O suficiente para pagar todas as nossas
dívidas e nunca mais termos que nos preocupar com os gastos
médicos do meu irmãozinho.
— Bom, eles não vão ter que se preocupar. Não com todo o… —
Melissa observou o metrô cheio de gente, então se inclinou mais para
perto e sussurrou teatralmente: — … dinheiro de Reinomítico.
— Sim, mas eles só querem comprar apartamentos e guardar o
resto no banco. — Simon inflou as bochechas. — Ainda ficam bravos
comigo toda vez que eu gasto dinheiro.
— Por exemplo, numa cabine particular de primeira classe num
voo dos Estados Unidos para a China?
— Z-Zack e os imperadores precisavam conversar!
— Claro, claro — fez Melissa, bagunçando os cabelos de Simon.
— Ei! — Ele se afastou.
— O quê? Tá com medo de eu fazer você parecer descolado
demais e expor a sua identidade secreta? Meu deus, temos um
campeão de videogame aqui, galera! — Ela fingiu gritar, então se
voltou radiante para Zack. — Mas, sério, qual foi o seu desejo?
Melissa fez uma moldura com os dedos e encarou Zack através
dela.
— Você também poderia ser um ídolo pop chinês, sabia? Você tem
o rosto certo para isso.
— Tenho? — Zack enrubesceu.
— Ninguém nunca te contou que você é um garoto muito bonito?
— Um garoto ser bonito não é uma coisa boa — respondeu ele,
abaixando a cabeça.
Preferia mil vezes ter um rosto mais definido e angular, como o de
Simon.
Melissa desdenhou, abaixando as mãos.
— Quem disse isso? Os americanos? Esqueça eles e essa obsessão
por caras durões! Na Ásia, garotos bonitos são tudo! Juro, vou
colocar um lip tint em você e vai ficar incrível!
Simon sorriu com aquele comentário, e o vermelho no rosto de
Zack se intensificou, esquentando até suas orelhas. Ele segurou a
mala com mais força.
— Hã, valeu, mas acho que meu único desejo vai ser recuperar o
espírito da minha mãe. Isso é tudo que quero agora.
Os sorrisos de Simon e Melissa sumiram.
— Mas ter muito dinheiro seria legal — murmurou Zack pelo
canto da boca.
Não queria deixá-los mal por estar todo tristonho.
Melissa bufou.
— Tenho certeza de que Qin Shi Huang consegue providenciar
isso.
— Então, os seus pais sabem sobre…? — perguntou Zack, olhando
para Simon e ela.
— Não. — Simon suspirou. — Essa foi uma condição para que os
imperadores concedessem nossos desejos. Eles disseram que nossas
famílias iriam apenas se preocupar demais e atrapalhar a missão se
soubessem da verdade.
— Eles nem moram em Xangai — acrescentou Melissa, seus
ombros caindo um pouco. — A única maneira de continuarem a salvo
é mantendo distância. Nossos inimigos não conseguem localizar o
espírito dos nossos parentes se não estivermos perto deles. Minha
família ainda está lá no meu vilarejo nas montanhas em Hunan. Que
é uma província, caso você não saiba. A do Simon está em Xianxim.
Eles acham que ganhamos bolsas de estudo para um internato aqui
em Xangai. Na verdade, a gente meio que conseguiu mesmo. Só que
Tang Taizong nos deu… uma ajuda considerável… com as nossas
candidaturas.
— E, durante o verão, eles acham que estamos gravando uma
competição de TV que não nos deixa ter acesso a celulares —
sussurrou Simon. — Assim, não precisamos mentir sobre onde
estamos toda noite.
— Eles não vão ficar na expectativa de assistir à competição daqui
um tempo? — perguntou Zack.
Melissa deu de ombros.
— Vamos dizer que o programa foi censurado. Acontece o tempo
todo.
— Certo — murmurou Zack. — O governo tirânico.
— Ei, shhh! — chiou ela, observando os outros passageiros. — Não
fale esse tipo de coisa em público!
Uma faixa de luz mais brilhante cruzou as janelas, e uma súbita
comoção se espalhou pelo metrô. As vozes se ergueram. Os
passageiros se pressionaram contra as janelas, olhando para fora com
expressões preocupadas.
Zack cobriu a boca com as mãos.
Não. Sem chance. Será que aquele único comentário tinha acabado
de metê-lo em apuros?
— O que está acontecendo? — questionou Simon, ajeitando a
postura.
— Foi o que eu disse? — perguntou Zack, com a voz esganiçada.
— Não, nós não paramos na última estação. — Melissa franziu o
cenho, encarando a janela, então virou o rosto com um brilho agitado
no olhar. — Tem um espírito inimigo a bordo.
6
Como perder amigos e alienar pessoas

— O-o que a gente faz? — gaguejou Zack, olhando de um lado para o


outro.
— Conferimos se é isso mesmo. Vamos!
Melissa saltou do assento e foi se espremendo pelo metrô cheio de
passageiros curiosos aos murmúrios.
Simon respirou fundo para se acalmar, então se esgueirou para
fora do próprio assento. Ele pediu a Yaling que ficasse de olho nas
malas e estendeu a mão para Zack.
Zack a pegou, sentindo o coração pular graças a um traço de
Shuda Li na expressão tensa de Simon. O garoto ainda não se sentia
preparado para batalhar depois do desastre da última vez, mas
confiava em Simon. Ele devia saber o que fazer depois de ter
encarado aquele campeonato enquanto era sabotado por Jason Xuan,
certo?
Os dois seguiram Melissa aos tropeços. Infelizmente, estavam na
altura perfeita para levar cotoveladas da maioria dos adultos.
Receberam vários golpes no rosto até chegarem à porta da cabine de
controle na parte da frente do veículo. O metrô era conduzido de
forma automática, então não havia ninguém lá dentro. Mas o
equipamento que podia ser avistado através da pequena janela emitia
um brilho vermelho horripilante.
— Ah, o sistema está mesmo possuído! — exclamou Melissa em
voz baixa, parecendo animada demais com a ideia de lutar contra um
demônio no meio de um metrô lotado e fora de controle. Ainda mais
levando em consideração o medo que sentira do governo um minuto
antes.
Ela colocou os dedos nas têmporas e fechou os olhos por alguns
instantes, então falou:
— Wu Zetian disse que deve ser um demônio enviado por
influência do Imperador Amarelo e acha que conseguiremos derrotá-
lo sozinhos.
— Mas vamos precisar de espaço para lutar — comentou Simon.
Ele fez uma careta para as pessoas que se apertavam contra os
três, tentando olhar para dentro da cabine de controle também.
— Deixa comigo — respondeu Melissa. — Cubram os olhos!
— Obedeça a ela — ordenou Qin Shi Huang através dos óculos
inteligentes de Zack. — É sério!
Zack imediatamente pressionou as mãos sobre o visor dos óculos
inteligentes.
— Rì yuè dāng kōng! — sussurrou Melissa.
A tradução Como o sol e a lua no céu! apareceu em uma legenda, as
letras digitais surgindo contra as palmas das mãos de Zack.
Um clarão ofuscante surgiu por trás de seus dedos. Passageiros
gritaram. Mais cotovelos o acertaram.
— Shì gè zhàdàn! — gritou Simon.
É uma bomba!
Os gritos se tornaram mais agudos e apavorados, tomando o vagão
do metrô. A pressão das pessoas ao redor de Zack desapareceu.
Passos debandaram para longe.
Ele deixou as mãos caírem a tempo de ver Simon acendendo uma
pequena tábua de madeira com um isqueiro. Então a jogou em
direção aos passageiros, que tropeçavam e se amontoavam para fugir.
— Caramba! — exclamou Zack.
— Tá tudo bem, eu consigo controlar o fogo por causa da
representação de Tang Taizong em Glória das Lendas.
Simon abriu as mãos, como se invocasse um feitiço. A madeira
queimou bem mais devagar que o normal, embora soltasse bastante
fumaça. A barra de energia de Simon — ou barra de qi, como os
imperadores insistiam em chamá-la — apareceu. Ela havia voltado a
ficar quase cheia durante o voo, mas agora diminuía aos poucos. Os
imperadores haviam explicado que qi era o termo chinês para a força
vital que movia todas as coisas. Se a barra de qi de alguém atingisse o
zero, o corpo ficaria fraco demais para se segurar ao espírito, e a
pessoa morreria.
— É só uma cortina de fumaça para impedir que voltem —
explicou Simon. — Mas isso significa que vocês dois vão ter que
cuidar da batalha!
— Como? — gritou Zack, tossindo quando a fumaça invadiu seus
pulmões.
— Eu já disse: deixa comigo! — insistiu Melissa, então continuou a
falar em alguma variação de chinês antigo: — Qiè néng zhì zhī, ránxū
sānwù, yī tiěbiān!
Eu, a concubina, posso domá-lo se tiver três itens. Primeiro, um
chicote de ferro!
O qi de Melissa despencou, então continuou diminuindo. Rastros
de luz branca nebulosa fluíram por suas mãos, juntando-se até formar
um chicote brilhante e desfocado, que ela agarrou com firmeza.
— O que está acontecendo? — perguntou Zack, abaixando o
microfone dos óculos inteligentes enquanto tossia mais um pouco. —
Isso foi um feitiço? Ou um encantamento? É um encantamento bem
estranho!
— Podemos acessar a nossa magia mais poderosa quando
invocamos nossas lendas mais famosas — explicou Qin Shi Huang. —
A luz ofuscante de Wu Zetian vem do nome que ela inventou para si
mesma ao se declarar imperatriz. Era um novo caractere lido como
“zhào”, que significa “como o sol e a lua no céu”. Sua arma vem da
vez que ela afirmou que conseguia domar um corcel indomável de
Tang Taizong. Ela disse isso de uma maneira que inspirava admiração
quando tinha apenas catorze anos, então todos se lembram dessa
história.
No momento em que Qin Shi Huang explicou o contexto, o chicote
espiritual na mão de Melissa entrou em foco na visão de Zack,
parecendo ser feito de vidro brilhante, em vez de um borrão vago.
Melissa açoitou a porta da cabine de controle com o chicote. A porta
estremeceu, mas não se partiu.
— Se não vai obedecer ao ser golpeada com um chicote, então
esmagarei sua cabeça com um martelo de ferro! — entoou ela em
chinês antigo, usando bem menos sílabas do que apareceram na
legenda de Zack.
O qi dela caiu outra fração, e seu chicote se transformou em um
martelo espiritual.
— As palavras exatas de Wu Zetian naquela época — disse Qin Shi
Huang. — A citação é tão famosa que, quando ela ou seus
hospedeiros a recitam, conseguem acessar as três formas de sua
arma.
Melissa franziu as sobrancelhas em concentração. Seu qi se exauria
mais rápido conforme o brilho de seu martelo aumentava, indo de
transparente para opaco. Ela o esmurrou na porta. A pequena janela
de vidro se estilhaçou em um milhão de fragmentos cintilantes, e a
parte de metal foi amassada como papel.
— É, entendi o que você quis dizer com inspirar admiração! —
exclamou Zack, e sua voz subiu uma oitava. — Mas e você? E a
gente? Temos uma arma que é nossa marca registrada?
— Sim, mas existe uma condição bem chata para ela ser invocada.
A garota dá conta dessa batalha! Ela foi treinada para usar a magia
de Wu Zetian.
Melissa arrancou a porta destruída das dobradiças.
— Revele-se, demônio!
Um grito de dor irrompeu pelo vagão bamboleante:
— Por favor, não!
Zack congelou. Era a voz de sua mãe.
— Ajuda… me ajude… — implorou ela de dentro do painel de
controle brilhante.
Zack avançou para lá.
— Mãe…!
O martelo espiritual de Melissa voltou a ficar transparente. Ela o
girou para pegar impulso e acertou o painel de metal em cheio. A
arma atravessou o painel como uma ilusão, sem infligir nenhum
dano, mas a mãe de Zack soltou um gritou angustiado. A luz
vermelha tremeluziu.
— Não! — gritou Zack, agarrando Melissa pela cintura.
Eles colidiram contra a parede da cabine e rolaram pelo chão em
um emaranhado de braços e pernas. Melissa gritou algo para ele, mas
Zack só conseguia focar no choro dilacerante da mãe.
Uma mensagem enorme, em laranja vibrante, irrompeu em sua
visão.
Qin Shi Huang: ESSA NÃO É A SUA MÃE, É UM WANGLIANG,
UM DEMÔNIO TRAIÇOEIRO QUE CONSEGUE IMITAR VOZES.
Zack tirou os óculos inteligentes do rosto e os atirou para o lado.
Estavam bloqueando sua visão. Sua mente parecia estar nadando em
águas turvas, e a única coisa em que conseguia pensar era na mãe. A
luz vermelha se expandiu de forma convidativa. Zack se engalfinhou
contra Melissa para impedi-la de machucar sua mãe outra vez. Vozes
iam e vinham de seus ouvidos, como o som de um rádio quebrado.
— … Não o machuque!
— Então como eu vou…?
Por mais que Melissa se debatesse, Zack continuava agarrado a
suas pernas. Um urro frustrado escapou da garganta dela, seguido
por outro.
— Rì yuè dāng kōng!
O clarão mais brilhante que Zack já havia visto atingiu seu rosto
em cheio.
Ganindo, ele largou Melissa para apertar os olhos que ardiam. As
roupas da garota farfalharam quando ela se levantou, então se
afastou dele com passos firmes das solas grossas. Um universo de
manchas e faíscas estourava dentro das pálpebras de Zack. Levou
vários segundos até que ele conseguisse suportar a dor de abrir os
olhos. Mesmo assim, ainda não conseguia ver nada além de
pontinhos dourados. Lágrimas escorriam por seu rosto. A mãe soltou
gritos de dor, lacerando seu coração, mas ele não podia fazer nada.
Quando sua visão enfim começou a retornar, ele viu Melissa
acertando repetidamente o painel de controle com o martelo
transparente. O martelo atravessava o metal, mas pulsava contra a
luz vermelha até que ela saiu do painel, transformando-se na forma
fantasmagórica de uma criaturinha monstruosa com pele preta, olhos
vermelhos, orelhas enormes e braços muito longos que terminavam
em garras afiadas. Com um lamento ecoante, ele se dissipou.
A névoa na mente de Zack também.
Aquela coisa não era sua mãe. Como ele havia pensado que sim?
Sua mãe estava em um hospital no Maine!
Melissa se virou, rasgando-o com o olhar. Seus olhos brilhavam em
um tom de branco frio e ardente.
Opa.
Zack recuou até a parede. Ela marchou em sua direção e se
agachou.
— Você sabe qual é a última parte da citação de Wu Zetian sobre
domar o corcel? — perguntou Melissa, erguendo o martelo espiritual
sobre o rosto de Zack. Ar frio evaporava da arma como se fosse um
bloco de gelo. — Se eu esmagar sua cabeça com um martelo e ele
ainda insistir em não cooperar, então cortarei sua garganta com uma
adaga.
O martelo se transformou em uma adaga afiada, com o gume
brilhando.
— Então me diga: você merece manchar minha adaga?
— Ei, Mel, já chega — intrometeu-se Simon, puxando Melissa para
trás pelos ombros.
— Você não viu o que aconteceu?! — reclamou ela, se
desvencilhando de Simon. — O espírito dele nem é forte o suficiente
para ter imunidade contra demônios básicos! Se isso não for
consertado, situações assim vão continuar acontecendo! Como vamos
conseguir fazer qualquer coisa sem nos preocuparmos com isso?
Simon manteve a voz suave.
— Eu sei, eu sei, mas puni-lo não vai ajudar. Além disso, temos
preocupações maiores…
Ele gesticulou para o restante do vagão de metrô.
O fogo e a fumaça haviam se esvaído. Os outros passageiros, tão
chocados que pareciam catatônicos, se aglomeravam o mais longe
possível dos três, como se tivessem sido empurrados na direção
contrária.
Melissa grunhiu, largando o martelo, que se evaporou. Ela enfiou a
mão dentro da mochila de Simon com tanta força que ele se dobrou
para a frente e pegou um frasco de spray.
— Certo. Vamos apagar algumas memórias.
Ela marchou entre os assentos vazios erguendo o frasco. Os
passageiros gritaram e se apertaram ainda mais uns contra os outros.
Simon pegou os óculos inteligentes largados por Zack. A voz
furiosa de Qin Shi Huang estalava nos alto-falantes. Zack abraçou os
próprios joelhos com força.
Simon olhou para o garoto de maneira compreensiva, então
colocou os óculos inteligentes dentro da própria mochila.
— Acho que é melhor deixar ele esfriar a cabeça. Vai, hã… vai ficar
tudo bem. — Ele apoiou a mão no chão ao lado de Zack, mas não
encostou nele. — Vamos resolver isso.
Será?, Zack não conseguiu deixar de se perguntar.
Simon se afastou a passos largos até Melissa. Zack continuou no
chão, sentindo o coração bater rápido, como o de um pequeno animal
enjaulado.
7
Como o reino de Qin unificou a China se tornando um
MMO

— Então… — começou a forma virtual de Qin Shi Huang, que flutuava na


elegante sala de estar do apartamento de Simon e Melissa. —
Precisamos urgentemente fortalecer sua conexão espiritual comigo.
Aconchegado num sofá de madeira vermelha com almofadas bege,
Zack passou a mão pelo cabelo e espiou pelas janelas que iam do
chão ao teto. Uma vista de tirar o fôlego de Xangai cintilava além do
vidro, com milhares de luzes neon que apenas uma grande cidade de
nível global poderia ter. Uma névoa translúcida — ou talvez fosse
apenas poluição — pairava sobre a cidade, embaçando as luzes e
encobrindo o topo dos arranha-céus mais altos. As ruas brilhavam
feito túneis laranja em meio a uma selva de prédios. O rio Huangpu
— seu nome aparecia nos óculos inteligentes — cruzava a cidade
como uma serpente gorda, refletindo as luzes em poças neon.
Então aquela era a China. Xangai. A cidade mais populosa do país
mais populoso do mundo. Zack não sabia o que esperar, mas ela era
ao mesmo tempo tão parecida e tão diferente de Nova York que o
deixou desorientado, como se tivesse ido parar em uma dimensão
alternativa. Se ele se lembrava direito das poucas histórias que a mãe
contava sobre o pai, os dois haviam cursado a faculdade e se
conhecido em Xangai. Zack se perguntou como seria ver a cidade
através dos olhos deles. Se o pai se arrependera de ter arriscado toda
aquela luz e glamour para defender os oprimidos. Se a mãe se
arrependera de ter precisado deixar Xangai para sempre. Será que
tinham olhado para aquele prédio alguma vez, sem saber que um dia
o filho deles estaria ali, atrapalhando uma missão sobrenatural para
salvar a China? Sentiriam orgulho dele por tentar ou ficariam
zangados por ele estar correndo tanto perigo?
Melissa estava sentada em outro sofá, abraçando os joelhos, sem
olhar para Zack. Ele não havia percebido o quanto atrapalhara a
batalha até recolocar os óculos inteligentes e ver que restava apenas
um terço do qi da garota. Zack havia se desculpado com ela várias
vezes no caminho para o apartamento, mas Melissa se recusava a
falar com ele. Seu rosto estava tomado por sombras retangulares
graças ao lustre da sala de estar, repleto de placas de madeira de
pessegueiro com caracteres chineses que supostamente afastavam os
demônios.
Mas nem todos, Simon havia avisado.
E o espírito de Zack era tão fraco que ele ficaria à mercê de
qualquer demônio que conseguisse entrar.
Ele se encolheu ainda mais no sofá. Por mais que tivessem sido
falsos, os lamentos agoniados da mãe o assombravam. E se a missão
inteira falhasse por causa dele? Será que o espírito da mãe estava
sofrendo nas garras daquele demônio? Zack tinha medo demais da
resposta para perguntar.
— Me mostrem mais documentários — pediu ele, com a cabeça
baixa. Talvez, se tivesse prestado mais atenção àquele no avião, sua
conexão com a mágica de Qin Shi Huang estivesse mais forte durante
a batalha. — Vou assistir a todos.
— Isso não vai ser o suficiente — respondeu Qin Shi Huang,
esfregando o queixo virtual, pensativo. — No momento, a coisa mais
eficiente que poderia fazer seria tocar em um artefato que foi
importante para mim durante minha vida. Na crença tradicional
chinesa, o espírito… ou alma, não importa o nome… é dividido em
muitas partes, classificadas como hún ou como pò. Hún são as partes
leves e etéreas, que ascendem para fora do corpo depois que a pessoa
falece. Pò são as partes pesadas e corpóreas, que ficam no reino
mortal, porque têm que estar conectadas a algo. Na realidade, a cada
momento que passa, cada mortal perde um pouco de seu pò. Quanto
mais valor se atribui a algo, mais de seu espírito permanece naquilo.
Como você nasceu com uma parte de meu espírito, se entrar em
contato com um artefato que eu apreciava, poderá absorver a parte
de meu pò que ficou nele.
— Tipo o Exército de Terracota?
Zack pensou no famoso exército de argila em tamanho real de Qin
Shi Huang. Mesmo quando não sabia nada sobre o Primeiro
Imperador, ele sabia sobre os soldados.
Qin Shi Huang bufou.
— Isso não foi importante para mim de verdade. A única razão
pela qual todo mundo fica tão impressionado é porque ainda não
escavaram o resto de meu mausoléu.
— É verdade — acrescentou Simon do outro lado do sofá. Zack
tentou não pensar muito no porquê de ele estar sentado tão longe. —
Nos livros de história, não há menção ao Exército de Terracota. Todas
as descrições do mausoléu falavam sobre o mapa celeste feito de joias
cintilantes no teto da câmara fúnebre, sobre as lamparinas de fogo
perpétuo cheias de óleo de sereia e sobre a réplica da China com
montanhas feitas de bronze e rios de mercúrio. Muito mercúrio.
— Então a gente vai para lá? — perguntou Zack.
— O plano é ir para lá, no final das contas — falou Qin Shi Huang.
— No entanto, há um item aqui em Xangai que eu apreciava muito: o
recipiente medidor de Shang Yang.
O imperador ergueu a mão, como se oferecesse algo, e uma onda
de polígonos conjurou um dispositivo virtual giratório acima de sua
palma. Parecia uma pá de arroz retangular feita de um metal muito
manchado.
— Isto representava a medida padrão de uma unidade de peso no
reino de Qin, e, depois de minhas conquistas, em toda a China.
Atualmente, está em exibição no museu de Xangai.
— Então a gente vai até o museu pedir para me deixarem tocar
nele? — sugeriu Zack, levantando as sobrancelhas.
Estava esperançoso, embora um sentimento ruim borbulhasse
dentro dele.
— É claro que não — interveio Melissa, finalmente. — É um
artefato de valor inestimável. Para termos alguma chance de tocar
nele, teríamos que entrar escondidos. Dã. — Ela se levantou num
salto. — Vamos lá.
— Agora? — questionou Zack, recuando contra o sofá.
— É claro. Essas proteções não são infalíveis. — Melissa apontou
para o lustre com as placas de madeira de pessegueiro. — Como
vamos dormir sabendo que o Imperador Amarelo pode influenciar
outro espírito traiçoeiro a vir e fazer você nos matar ou algo assim?
— Mas você não deveria ficar aqui e descansar?
— Me poupe. — Ela marchou em direção à porta e abriu um
armário, revelando fileiras de casacos, jaquetas e ponchos estilosos
acima de várias prateleiras de sapatos. — Como se eu fosse perder
um assalto a um museu!

— Por acaso você sabe alguma coisa sobre Shang Yang? — perguntou
Simon a Zack no caminho para o museu.
Os dois estavam sentados no banco de trás enquanto Yaling dirigia.
Melissa havia tomado o lugar do carona sem que ninguém se
opusesse. Avançando ao lado de múltiplas pistas de carros, eles
passaram sob várias estradas elevadas de concreto que se contorciam
e se enroscavam, iluminadas por baixo com um tom de azul sinistro
de ficção científica. Xangai era muito mais entusiasta dos LEDs do
que Nova York.
— Pode presumir que eu não sei nada sobre nada da próxima vez,
Simon — respondeu Zack, abrindo um sorriso fraco.
— Certo. Bom, para obter poder desse artefato, você precisa
entender sua importância. Então acho que tenho que falar um pouco
sobre ele.
Simon pressionou duas vezes o ar à frente dos óculos inteligentes
para abrir uma nova janela, depois ergueu as mãos na posição de
digitar. Um teclado virtual apareceu sob seus dedos. Ele digitou algo
na barra de pesquisa.
— Shang Yang foi o cara que tornou o reino de Qin tão poderoso
que, apenas cem anos depois, Qin Shi Huang conseguiu conquistar
toda a China. Ele fez isso basicamente transformando o país em um…
como se chamam aqueles jogos on-line enormes mesmo? Tipo World
of Warcraft? Desculpa, esqueci o nome.
— MMOs? Jogos multiplayer massivos on-line? — sugeriu Zack,
descansando o cotovelo na janela do carro.
Faixas de luz urbana corriam do lado de fora, quase no ritmo do
hip-hop em mandarim que tocava no rádio.
— Sim, ele basicamente transformou o reino de Qin em um jogo
desses!
— Qual é a das comparações com videogame?
— Ei, nós somos uma nação gamer com orgulho! — exclamou
Simon, rolando pelos resultados da busca que pairavam à sua frente.
— Qin tinha ranks e tudo. Vinte deles. Para upar, era preciso entregar
a cabeça de inimigos derrotados em batalha. Quanto mais alto
alguém estava no rank, mais terras e servos recebia.
— Sério?
— Sim. Supostamente, os exércitos inimigos viam os soldados qin
avançando contra eles com cabeças decepadas penduradas nos cintos.
Eles se tornaram uma máquina de guerra imparável em poucas
décadas, tudo graças às reformas de Shang Yang.
Com dois dedos, Simon moveu uma imagem virtual em direção a
Zack. Era um meio busto, uma estátua de pedra branca de um
homem com aparência severa em uma pose taciturna.
— É ele? Parece malvado.
— Ele era. Bom, ele era rígido. Suas leis eram tão intensas que o
reino de Qin foi basicamente o primeiro Estado policial do mundo. Se
alguém soubesse que o vizinho cometeu um crime, mas não o
denunciasse, seria punido junto com ele. Shang Yang inclusive
morreu por causa das próprias leis. Quando o antigo rei que gostava
dele faleceu e um novo rei que não gostava dele assumiu o trono,
Shang Yang tentou fugir de Qin, mas nenhuma hospedaria o deixou
ficar anonimamente, porque havia uma lei instituída pelo próprio
Shang Yang que dizia que todo estabelecimento precisava checar os
documentos de identificação dos viajantes, então ele logo foi
capturado e executado. Ele é o motivo pelo qual os chineses associam
“Qin” a “rigidez e crueldade”. Curiosidade: a Nação do Fogo em
Avatar foi parcialmente inspirada neles.
Zack ficou boquiaberto.
— Você está me dizendo que eu sou conectado espiritualmente ao
Senhor do Fogo Ozai da vida real?
— Tipo isso. Quer dizer, se Ozai tivesse realmente conquistado
tudo. E fosse um dobrador de água. E… bem, não fosse um genocida.
— Ahhhh, cara.
Zack se afundou no assento. O cinto de segurança apertava sua
barriga. De repente, seus óculos inteligentes pareciam tão pesados
quanto um tijolo sobre seu nariz.
— Mas, enfim, havia uma razão para a rigidez dele. Antes de
Shang Yang aparecer, o reino de Qin estava definhando ao oeste da
China porque nobres preguiçosos tinham todo o poder e a riqueza,
então os plebeus não viam motivo para trabalhar duro. Shang Yang
mudou tudo ao seguir uma filosofia chamada “legalismo”, que
considerava que a lei era a coisa mais importante, não a linhagem de
sangue ou a origem. Então ele pode ter sido rígido, mas foi rígido
com todo mundo de forma igualitária. Ele destruiu os privilégios dos
nobres ricos de maneira que, não importava a condição em que você
tinha nascido, poderia ter uma vida boa se ajudasse a tornar o reino
de Qin mais forte. Qin se tornou a terra das oportunidades. Plebeus
de outros países ficaram superintrigados por motivos óbvios, e Qin os
atraiu propondo vários benefícios.
— Isso é meio parecido com os Estados Unidos — comentou Zack,
olhando para o busto de Shang Yang de uma nova perspectiva.
— Os Estados Unidos em teoria — rebateu Simon, levantando uma
sobrancelha. Retalhos de neon giravam sobre seu rosto, vindos de
placas chamativas na frente de lojas e prédios. — Eu diria que os
imigrantes da época tiveram uma chance maior de conquistar o
Sonho Qin do que as pessoas hoje em dia têm de conquistar o Sonho
Americano.
Zack queria refutar aquilo, mas não conseguiu. Não quando sua
mãe altamente qualificada vinha trabalhando quase sempre no varejo
fazia uma década.
— E tem mais — continuou Simon. — Ao contrário do restante do
mundo, os Estados Unidos ainda não usam o sistema métrico! Isso é
tão diferente do que o reino de Qin defendia. Parte do legalismo é
que um Estado só pode ser forte quando tem padrões claros para
tudo, então Shang Yang padronizou todos os sistemas de medida no
reino de Qin. Qin Shi Huang mais tarde implementou os mesmos
padrões por toda a China.
Simon consultou o que parecia ser uma imagem de análise
acadêmica do recipiente medidor. Linhas de texto em chinês antigo
nas laterais e na parte de baixo do artefato estavam ampliadas com
destaque.
Duas traduções apareceram para Zack, explicando que os textos
registravam os feitos de Shang Yang e Qin Shi Huang,
respectivamente. Um sentimento nostálgico o atingiu de repente,
fazendo seu coração acelerar. Talvez a parte do espírito de Qin Shi
Huang dentro dele estivesse reverberando com o texto.
Simon continuou:
— Qin Shi Huang costuma receber todo o crédito por unificar a
China, mas ele sabia que não teria conseguido fazer isso sem o
trabalho de Shang Yang cem anos antes. Ele era tão fã de Shang Yang
e do legalismo que padronizou todas as moedas da China, além da
largura das estradas para que carruagens não tivessem problemas, e a
escrita chinesa para que a comunicação ficasse mais fácil. Esses
sistemas padronizados provavelmente são o motivo de a China
sempre ter se reunificado, não importando quantas vezes tenha se
despedaçado em guerras civis. A gente ouve falar dos impérios
construídos por Alexandre, o Grande, Genghis Khan e Napoleão, mas
onde eles estão hoje em dia? A China é o único que restou. E é tudo
graças ao que este recipiente representa.
Simon parecia ter muito orgulho daquilo, mas Zack se sentiu um
pouco inquieto com aquele papo de “padronização”. Sempre que um
império ou país promovia que todos fossem iguais ou fizessem as
mesmas coisas, havia inevitavelmente aqueles que sofriam por não
conseguir deixar de ser diferentes. E a China de Qin Shi Huang não
parecia tolerar a diferença.
Com seu histórico de ser diferente, se Zack tivesse nascido naquela
época, será que Qin Shi Huang teria permitido que ele vivesse?
Zack considerou perguntar isso em voz alta, mas acabou engolindo
as palavras. Não era a hora de começar uma discussão.
— Uau — comentou sobre a imagem do recipiente de aparência
comum de Shang Yang. Conhecer sua história realmente fazia uma
grande diferença na forma como ele enxergava o artefato. — Cara,
como você sabe tanta história?
Simon deu de ombros.
— A maioria dos chineses sabe. História é muito importante para
nós. Essas foram, tipo, as minhas histórias de ninar.
— Suas histórias de ninar eram sobre legalistas malvados e
pessoas que decepavam a cabeça dos inimigos para upar de rank?
— Ué, as suas não eram? — perguntou Simon, com um olhar
confuso.
Zack ficou sem resposta até Simon rir e dizer:
— Tá bom, Melissa e eu provavelmente sabemos muito mais
histórias do que crianças chinesas comuns. Tivemos que estudar
bastante para tornar nossa magia mais forte. Além disso, eu sou de
uma família de acadêmicos. Minha mãe é professora de história e
meu pai é arqueólogo.
— Uau. Eles não ficariam animados de conhecer os espíritos dos
imperadores de verdade?
— Ficariam. — O olhar de Simon se perdeu para além do para-
brisa. Mais LEDs delineavam os arranha-céus distantes na névoa à
frente. — Ah, cara, como ficariam. Mas eu não posso quebrar minha
promessa de manter Tang Taizong em segredo.
— O que aconteceria se você a quebrasse? Você fez algum tipo de
pacto mágico? Ele… machucaria você?
Zack hesitou ao perguntar, receoso de que Tang Taizong pudesse
aparecer de repente e atacá-lo, mas Simon tinha dito que os
imperadores não costumavam observar tudo através dos olhos dos
hospedeiros. Para manter seus sinais espirituais o mais baixo possível,
eles hibernavam como laptops fechados, despertando apenas quando
Simon e Melissa chamavam por eles em sua mente. Então eles
emergiam superficialmente para oferecer conselhos como uma voz
interior ou tomavam o controle por completo caso Simon e Melissa
não conseguissem lidar com a situação.
— Não, não há um pacto mágico, e não estou fazendo isso por
medo de ser punido. Eu realmente devo uma para ele. — Simon
abaixou a cabeça, brincando com os polegares. — Meu irmão mais
novo tem paralisia cerebral. Minha família passou por dificuldades
durante anos para dar conta das despesas médicas, até que Tang
Taizong me arranjou um monte de oportunidades com sua astúcia. O
mínimo que eu posso fazer para retribuir é cumprir esta missão de
maneira perfeita.
Zack assentiu. Não era de se espantar que Simon não tivesse
dificuldade em prosseguir com aquela loucura de enfrentar demônios
e roubar museus. Ele também estava fazendo aquilo pela família.
Zack apontou a cabeça em direção a Melissa e sussurrou:
— E ela? Está mesmo arriscando a vida só para se tornar uma
estrela pop?
— Mel? — Simon pareceu confuso, depois sorriu e bufou. —
Tenho certeza de que ela arriscaria a própria vida só por diversão,
mesmo que não houvesse um prêmio no final.
Melissa se virou bruscamente, fazendo o cinto de segurança
repuxar seus ombros.
— Eu consigo ouvir vocês dois, sabia?
Então algo colidiu com a lateral do carro.
Todos gritaram. O impacto fez Zack sufocar com o cinto de
segurança. Yaling desviou o carro, com os pneus guinchando. Buzinas
soaram atrás deles.
Uma pessoa vestida toda de couro, apesar da noite quente de
verão, seguia ao lado deles em uma moto. Seus olhos emitiam um
brilho branco através do visor escuro do capacete.
— Ah, não! Aquele homem está possuído por Jing Ke! — exclamou
a voz de Qin Shi Huang nos óculos inteligentes de Zack.
Uma legenda apareceu:
JING KE
Viveu entre: ?-227 a.C.
Assassino imortalizado em lenda porque tentou matar Qin Shi
Huang, embora tenha falhado. Fingiu ser um emissário do
reino de Yan e alegou que queria mostrar mapas estratégicos
para Qin Shi Huang em rendição. Na verdade, escondeu uma
adaga banhada em veneno no mapa e sacou-a enquanto Qin
Shi Huang estava distraído com os detalhes geográficos.
Perseguiu-o ao redor de um pilar do palácio até Qin Shi
Huang empunhar sua espada longa e retaliar. Não imagine
isso como uma cena de Tom e Jerry.

— O Imperador Amarelo sabe exatamente quem mandar para me


irritar! — reclamou Qin Shi Huang.
O homem possuído por Jing Ke acelerou a moto. Ele se afastou,
então se reaproximou e se lançou contra o carro novamente,
estilhaçando a janela ao lado de Zack. Cacos de vidro caíram sobre
ele. O garoto gritou, protegendo a cabeça.
Yaling sentou o pé no acelerador. Com um vruuuum, o carro seguiu
mais depressa. Zack sentiu o vento quente e áspero atingir seu rosto,
carregando o cheiro de gasolina.
Eles avançaram em rota de colisão direta com o carro da frente.
— Não, não, não! — gritou Zack.
Yaling girou o volante, desviando do carro por pouco e passando
para a pista seguinte com os pneus cantando. Uma sinfonia de
buzinas soou noite adentro. Simon gritava junto com Zack, e então
parou de repente.
— Xuánwŭmén zhī biàn! — disse ele, com dificuldade.
Golpe no Portão Xuanwu! apareceu na legenda.
Uma porção de seu qi caiu. Com um zumbido, o arco espiritual
ressurgiu em suas mãos, formado por faixas de luz vermelha como
chamas.
— Este arco é de quando Tang Taizong atirou nos irmãos durante
seu infame golpe pelo trono — explicou Qin Shi Huang rapidamente,
fazendo com que o arco se tornasse mais nítido para Zack, a textura
nebulosa ficando mais parecida com metal derretido. — Suas flechas
espirituais são poderosas, mas infligem uma parte da dor que causam
em quem as atira.
Simon soltou o cinto de segurança com dedos trêmulos, então
inclinou-se sobre Zack para mirar uma flecha pela janela. O vento
soprou seu cabelo para trás, deixando-o mais parecido do que nunca
com Shuda Li. Enquanto ele puxava a corda do arco radiante, seu
cotovelo apertava o peito de Zack, fazendo-o ofegar.
— Desculpa! — berrou Simon, mas não abrandou os movimentos.
Zack sentia o calor do arco espiritual em seu rosto. Ele tinha
dificuldade para vislumbrar o que estava acontecendo do lado de
fora. Jing Ke surgiu no retrovisor, ziguezagueando em meio a carros
que buzinavam e guinchavam.
Assim que Simon atirou uma flecha, Yaling teve que desviar para
outra pista. Simon tombou contra o encosto do banco do motorista.
— Isso não vai funcionar! — Simon se reequilibrou enquanto fazia
careta por causa da dor de retorno da flecha. — Nós não vamos
conseguir despistá-lo no trânsito de Xangai!
— Estamos quase no museu — disse Melissa. — Podemos chegar
lá a pé. Yaling, encosta o carro!
Com outro desvio de fazer os pneus cantarem, passando por uma
fresta entre os carros, Yaling obedeceu. Simon e Melissa abriram as
portas em sincronia, então saltaram para a calçada larga com uma
agilidade que sugeria que eles já haviam feito esse tipo de coisa
antes. Zack seguiu os dois aos tropeços pelo cimento polido, que
reluzia com a luz das placas neon nas vitrines das lojas. Pedestres
assustados recuaram e gritaram de aflição, seus rostos banhados em
luz elétrica.
Jing Ke também se dirigiu para a calçada, cortando na frente de
motoristas furiosos. Ele ergueu uma mão em formato de garra.
Adagas espirituais brancas dispararam da palma de sua mão como
uma chuva de meteoros.
Zack gritou ao ser atingido no ombro. A adaga não rasgou a pele
nem tirou sangue, mas a dor explodiu por seu corpo a partir do local
atingido, e sua barra de qi caiu uma fração.
As adagas continuaram vindo como lasers brancos. Ele fez uma
anotação mental para perguntar mais tarde se as cores de qi tinham
significados, porque não havia notado um padrão até o momento.
Nada que indicasse amigo ou inimigo.
Com um grunhido, Simon jogou Zack para trás de si e atirou uma
flecha espiritual vermelha em Jing Ke. O coração do garoto titubeou
ao ser protegido daquela maneira. A flecha zumbiu numa trajetória
perfeita, mas desviou no último segundo, como se tivesse sido
repelida por uma força magnética.
— Aiyah — chiou Simon por entre os dentes. — Tang Taizong
disse que as flechas não podem machucá-lo!
O arco se dissipou nas mãos de Simon, e ele puxou Zack para
saírem correndo pela calçada. Pedestres aterrorizados desviaram do
caminho deles aos tropeços.
— Sério? — perguntou Zack, cambaleando em meio a
propagandas virtuais que dançavam e se moviam no Campo Comum
de Realidade Aumentada dos óculos inteligentes. — Por que não?
Achei que Jing Ke fosse um assassino fracassado!
— Sim, mas a história é tão popular que ele se tornou muito mais
poderoso depois da morte. Parte da lenda da tentativa de assassinato
é que, na época, as austeras leis do reino de Qin contra se mover pela
sala do trono sem permissão impediram os oficiais de ajudarem Qin
Shi Huang. Isso significa que você é o único que pode derrotar Jing
Ke!
Enquanto ele explicava isso, Melissa ficou para trás e ativou seu
poder de granada de luz. Embora não tivesse sido atingido por sua
força total, Zack se retraiu quando a granada se refletiu nos prédios
próximos, como se fosse um raio. Gritos irromperam ao redor deles.
As pessoas à frente, que haviam se virado boquiabertas para a
comoção, levaram as mãos aos olhos em agonia. Carros arrancavam e
davam marcha a ré, atingindo uns aos outros. As adagas espirituais
que rasgavam o ar cessaram.
Jing Ke havia batido em outro carro.
— Aquilo não vai detê-lo por muito tempo! — alertou Melissa
enquanto os alcançava.
— Nesse caso… — Simon olhou para Zack enquanto disparava
para longe da multidão temporariamente cega. — Wáng fù jiàn!
Empunhe sua espada, meu rei!
— Empunhe sua espada, meu rei! — gritou Melissa também. —
Empunhe sua espada, meu rei!
Qin Shi Huang se pronunciou:
— Quando Jing Ke estava me perseguindo ao redor do pilar, a
princípio não consegui tirar minha espada da bainha porque ela foi
feita em um tamanho mais cerimonial do que funcional. Tive que ser
lembrado por meus oficiais de puxá-la por trás das costas. Esta é a
condição irritante para invocá-la: preciso que outros a clamem.
Consegue imaginar a situação? Não conseguir empunhar sua espada
enquanto é perseguido por um assassino!
— Não é exatamente isso que está acontecendo com a gente? —
berrou Zack.
— Então vocês devem estar bem inspirados!
— Empunhe sua espada, meu rei! — entoaram Simon e Melissa sem
parar enquanto os três chispavam através de auras neon e
propagandas virtuais com mascotes dançantes e pessoas bonitas
segurando produtos.
Zack sentiu uma lâmina fria surgir às suas costas. Ele olhou por
cima do ombro e viu uma espada espiritual longa e preta.
Porém, quando tentou pegá-la, seus dedos a atravessaram, como se
tivesse agarrado fumaça.
— Kào! — exclamou Qin Shi Huang. Nenhuma tradução apareceu,
mas parecia ser uma palavra ruim. — Você não consegue nem
canalizar magia suficiente para sustentar a invocação da espada!
— Hã, desculpa?
— Nós temos que chegar ao museu, rápido!
Simon avançou em direção a uma estação de bicicletas para
aluguel. Com os óculos inteligentes, escaneou o QR Code de três
bicicletas de uma só vez. Pontinhos de luz verde piscaram ao lado dos
códigos. Os cadeados nas rodas se abriram.
— Subam, mas não coloquem os pés no pedal! — instruiu Simon.
Zack subiu na que estava mais próxima a ele. Copiando Simon, o
garoto apoiou os pés no quadro da bicicleta, dobrando os joelhos em
direção ao peito.
— Zhāo líng liù jùn! — exclamou Simon assim que Melissa montou
na terceira bicicleta.
Os Seis Corcéis do Mausoléu de Zhao!
Um relincho fantasmagórico soprou pelas orelhas de Zack. Cavalos
espirituais vermelhos apareceram sobre as bicicletas, depois
pareceram absorvê-las dentro de si.
— Jià! — disse Simon.
Ele se inclinou para trás, fazendo a parte da frente da bicicleta se
erguer do chão.
— Opa!
Zack agarrou os guidões com mais força assim que as bicicletas
desembestaram da estação por conta própria e dispararam pela
calçada.

OS SEIS CORCÉIS DO MAUSOLÉU DE ZHAO


Os seis cavalos de guerra mais estimados de Tang Taizong.
Foram imortalizados em esculturas de pedra em seu
mausoléu. Mas ele só consegue invocar no máximo quatro
hoje em dia, porque duas esculturas foram quebradas,
roubadas por contrabandistas americanos e levadas para o
Museu Penn no início do século XX. (DEVOLVA-AS, ESTADOS
UNIDOS).

O ar quente noturno atingia o rosto de Zack em cheio. Iam tão


rápido que ele não conseguia mais ver por onde estavam passando,
apenas placas brilhantes e rostos chocados. Os pedais giravam até
virar borrões. Zack mantinha os pés longe deles, desesperado. Nunca
havia estado em uma moto, mas tinha certeza de que aquela era a
sensação de andar em uma.
Faixas de luz vermelha conectavam as três bicicletas. Quando
Simon virou sua bicicleta para uma rua lateral, as de Zack e Melissa a
seguiram automaticamente. O som de galopadas fantasmas ecoava na
mente de Zack, que apertava os guidões como se fossem sua única
âncora à realidade.
Àquela altura, eram mesmo.
8
Como a versão chinesa do Sherlock Holmes e do Leeroy
Jenkins podem ajudar num assalto a museu

Eles dispararam por becos estreitos e ruas vazias e escuras, onde a maioria
das vitrines estava fechada com grades de metal e apenas algumas
lojas continuavam iluminadas e abertas, derramando faixas de luz
sobre o asfalto. Ocasionalmente, cruzaram com vendedores
ambulantes de comida ou pessoas sentadas em bancos na calçada,
abanando-se com leques trançados gigantes. O vento uivante
carregava todo tipo de cheiro, frituras deliciosas em um segundo e
esgoto no seguinte.
Felizmente, chegaram ao Museu de Xangai antes da velocidade e
do vento partirem Zack ao meio. Eles subiram uma rampa ao lado da
escadaria principal e pararam diante das portas de vidro. As pernas
de Zack estavam moles feito macarrão quando ele desceu da
bicicleta. Todas as células em seu corpo tremiam com energia
sobressalente, como se ele fosse o Flash logo após sair da Força de
Aceleração. Sua bunda latejava por conta da força com que havia se
agarrado ao assento.
Situado em frente a uma enorme praça, o museu tinha a aparência
de uma panela com uma alça no topo. Na verdade, vendo melhor, o
telhado tinha várias alças, cada uma na direção de um ponto cardeal.
Se gigantes existissem — e Zack estava começando a suspeitar que
existiam mesmo —, provavelmente conseguiriam erguer o prédio e
sair andando.
— C-como vamos passar pelos sistemas de segurança? — Os
dentes de Zack batiam como se ele tivesse tocado um fio
desencapado.
— Nós não vamos — respondeu Melissa, jogando o cabelo por
cima dos ombros. Ele havia caído do coque apertado que ela fizera
antes da corrida e inflado para o dobro do volume original, como se
ela estivesse pronta para posar na capa de uma revista. — Mas Wu
Zetian pode invocar alguém para nos ajudar. Cubram minha
retaguarda.
Ela posicionou as mãos como se estivesse rezando e murmurou Wu
Zetian. Aquela parecia ser uma pitada de drama opcional, porque
Simon não fazia nada parecido quando chamava Tang Taizong para
se apossar de seu corpo.
A legenda virtual de Wu Zetian apareceu quando os olhos de
Melissa se abriram. Ela ergueu uma das mãos e painéis coloridos
surgiram diante dela, curiosamente parecidos com as cartas que
representavam o catálogo de criaturas em Reinomítico — porém, em
vez de criaturas míticas, cada carta tinha uma pintura em aquarela de
uma pessoa com trajes chineses antigos. Zack não sabia se os painéis
eram espirituais ou virtuais. De qualquer forma, ele não seria capaz
de vê-los sem os óculos inteligentes. Com um gesto de Wu Zetian, as
cartas se moveram em um borrão. Ela pressionou para pausar em
uma específica, então abriu os dedos na frente dela.
— Pelo comando de seu imperador… — Os olhos de Wu Zetian
emitiram uma luz branca. — Erga-se, Di Renjie, detetive lendário!
Uma rajada de vento soprou na frente dela, agitando sua jaqueta
folgada e seu cabelo comprido. Zack protegeu os olhos da poeira que
infiltrou seus óculos, mas soltou o ar quando uma rede de linhas
brancas se iluminou ao longo do corpo de Wu Zetian. As linhas
brilhavam vividamente em seu rosto, pescoço e mãos, e sutilmente
sob suas roupas, especialmente as leggings pretas.
— O que está acontecendo com ela? — Zack ergueu a voz por
cima do uivo do vento.
Ele se lembrava vagamente de uma rede similar cobrindo sua pele
durante a batalha contra Aiden, a diferença era que suas linhas eram
pretas.
— Os meridianos de qi dela estão se iluminando! — explicou
Simon, protegendo os próprios óculos inteligentes também.
— Meridianos?
— A rede que carrega o qi por nossos corpos! É nisso que a
medicina tradicional chinesa, como a acupuntura, se baseia. Significa
que ela está conduzindo seu qi com muita, muita força. Os
imperadores conseguem invocar subordinados de suas dinastias,
desde que eles também sejam lendários, mas alimentar essa magia
requer muito qi.
O vento foi substituído por descargas de luz branca, que se
juntaram para formar um antigo oficial chinês. Ele usava um chapéu
redondo e volumoso com duas abas pendendo na altura pescoço. A
parte inferior de sua túnica com cinto ondulava acima das botas. Uma
legenda apareceu ao seu lado.

DI RENJIE
“Juiz/detetive Di”
Viveu entre: 630-700 d.C.
Famoso chanceler que serviu sob as ordens de Wu Zetian.
Conseguiu permanecer moralmente correto na corte
aterrorizada pela polícia secreta da imperatriz. Era uma das
únicas pessoas que podia confrontá-la. É protagonista em
histórias de detetive chinesas, basicamente o Sherlock
Holmes da China.

Di Renjie abriu seus olhos etéreos. O vento se dissipou, restando


apenas um vago fio de luz conectando seu peito ao de Wu Zetian.
Com a graciosidade de uma nuvem, ele caiu de joelhos diante dela e
se prostrou com as mãos retas no chão.
— Que meu imperador viva por dez mil anos, dez mil anos, dez
mil anos e mais dez mil anos.
Wu Zetian esboçou o primeiro sorriso genuíno e não presunçoso
que Zack havia testemunhado. Mas seus olhos e meridianos ainda
reluziam, e seu qi já baixo diminuía constantemente.
— Há quanto tempo, chanceler Di. Vamos direto ao ponto: dê um
jeito no sistema de segurança deste museu para nós, está bem? Tenho
certeza de que você consegue decifrá-lo.
— Como Vossa Majestade desejar.
Di Renjie sentou-se sobre os joelhos e assentiu, então se
transformou em uma espiral de luz branca e se embrenhou no museu
ao lado das portas de vidro. Wu Zetian grunhiu, oscilando sobre os
próprios pés. O vínculo brilhante permaneceu entre ela e a parede.
Enquanto Zack esperava ansiosamente para ver o que aconteceria,
o ronco de uma moto se fez ouvir ao longe.
— Ah…
Zack se virou na direção do som, arregalando os olhos. Jing Ke os
havia encontrado, afinal.
— Renjie, anda logo! — gritou Wu Zetian, estapeando a parede.
Nada aconteceu.
O ronco soou mais alto e mais perto, ecoando pela praça. Zack
girou, em pânico, e se aproximou para testar as portas de vidro.
— Espera! — Simon o segurou pelo cotovelo. — Confie em Di
Renjie.
— Mas…
Feixes de luz irradiaram dentro do museu, então as portas de vidro
se abriram, deslizando sozinhas.
Zack, Simon e Wu Zetian dispararam lá para dentro.
O átrio parecia mais a recepção de um hotel chique do que um
museu, atravessando os quatro andares do prédio. A lua cheia se
assomava sobre uma enorme claraboia no teto, que parecia a metade
de uma bola de futebol transparente.
— Eu tenho que ficar aqui. Vocês dois vão em frente — avisou Wu
Zetian, recostando-se ao lado das portas e espiando a praça.
O fio branco luminoso em seu peito permanecia conectado à
parede. Ela franziu o cenho com o esforço que fazia.
— Jing Ke não vai pegar você? — gritou Zack por cima do ombro.
— Não sou eu quem ele quer. Além disso, ele não ousaria nos
enfrentar em um museu.
— Sério? Não mesmo?
— Claro, ele tem noção! — respondeu Simon, correndo na frente
de Zack. — Todos os artefatos aqui são parte inestimável de nosso
patrimônio cultural.
— Ainda assim, vocês têm que se apressar! — gritou Wu Zetian,
respirando em fôlegos curtos. O brilho de seus meridianos oscilava.
— Eu não consigo sustentar Renjie por muito tempo. Se eu falhar, os
alarmes vão tocar imediatamente!
Enquanto Zack seguia Simon pelo átrio, Qin Shi Huang abriu uma
série de janelas nos óculos inteligentes de Zack e selecionou o tour
aumentado do museu. Rótulos pulsantes como jardim de esculturas da
china antiga, galeria de selos chineses e hall de exibição nº2 flutuavam na
visão de Zack pelos quatro andares do prédio.
Uma Galeria de Arte das Minorias Étnicas da China no andar de
cima fez com que ele parasse. O ressentimento amargou dentro do
garoto. Era engraçado como aquele lugar fingia ter orgulho das
“minorias étnicas”, como a que ele e sua família pertenciam,
enquanto o governo encarcerava, “reeducava” e executava vários
deles na vida real caso ousassem se pronunciar.
Muitos americanos não sabiam disso, mas a população da China
não era homogênea. Havia pelo menos cinquenta e seis grupos
étnicos. O maior e mais dominante, han, era o que a maioria das
pessoas imaginava quando ouvia a palavra “chinês”. Mas a família de
Zack não pertencia a esse grupo. Eles eram hui, um povo minoritário
de herança islâmica, descendentes de comerciantes da Rota da Seda.
O governo havia se tornado cada vez menos tolerante com os
muçulmanos ao longo dos anos, e o pai de Zack tinha sido preso e
executado por protestar.
Acalmando-se para não perder a mãe também, Zack acompanhou
Simon até a Galeria do Bronze da China Antiga, no primeiro andar.
As luzes da sala cheia de vidros de proteção se acenderam quando
eles entraram correndo, oferecendo uma iluminação fraca e sombria.
Calafrios subiram pelos braços de Zack. O instinto de ser respeitoso o
esmagou, como se seus ancestrais estivessem vendo tudo e julgando
através dos vasos de bronze escuros e manchados.
Seus óculos inteligentes selecionavam cada artefato com um
círculo giratório lento e exibiam um rótulo com o nome e a era do
objeto. Zack sentiu o estômago revirar ao ver quão antigos alguns
deles eram. Ele passou por uma ânfora tão intrincada que parecia que
uma criatura mítica real havia sido transformada em bronze através
de um passe de mágica, mas o vaso era da dinastia shang tardia
(séculos xiii-xi a.c.), ou seja, de mais de três mil anos antes. Mais de
três mil anos, e havia sobrevivido para que ele pudesse vê-lo com os
próprios olhos.
Simon derrapou até parar diante de uma proteção de vidro
embutida na parede que exibia vários pequenos artefatos de bronze.
Zack se sentiu atraído e soube que o recipiente de Shang Yang estava
ali. Era um artefato muito simples quando comparado às adagas e aos
dardos para balestras com os quais estava exposto, mas seus óculos
inteligentes identificaram o recipiente com um segundo círculo
dourado e pulsante, marcando-o como um dos tesouros mais
preciosos do museu.
— Ai, meu Deus. — Zack suspirou. — Lá está ele.
— Né?
Simon checou o vidro que o separava deles.
— Nós vamos quebrar o mostruário? — perguntou Zack, fitando o
recipiente e sentindo um aperto no coração.
— Não, é melhor não mexermos nos outros artefatos nem
deixarmos provas de que estivemos aqui.
Após um longo piscar de olhos, a legenda virtual de Simon mudou
para a de Tang Taizong.
— Tenho meu próprio subordinado lendário para invocar — disse
Tang Taizong.
Em comparação ao tom acanhado de Simon, a arrogância
repentina em sua voz desorientou Zack.
Tang Taizong fez com que as cartas de seu catálogo aparecessem.
Ele as percorreu até se decidir por um cavaleiro de armadura com
uma barba enorme e desgrenhada.
— Pelo comando de seu imperador… — Seus olhos
resplandeceram em vermelho. — Erga-se, Cheng Yaojin, impetuoso
guerreiro lendário!
O vento aumentou do nada, agitando seu cabelo. Os meridianos de
Tang Taizong se incandesceram como rios de lava sob sua pele. Ele
pressionou a mão no vidro. Com labaredas de luz, o cavaleiro tomou
forma parcialmente dentro do mostruário. Sua legenda surgiu junto
com ele.

CHENG YAOJIN
Viveu entre: 589-665 d.C.
Guerreiro que contribuiu muito para a fundação da dinastia
Tang e para o golpe em que Tang Taizong obteve o trono.
Serviu sob as ordens dos três primeiros imperadores Tang.
Famoso no folclore por surgir inesperadamente para
solucionar alguma situação ou atrapalhar o que quer que
esteja acontecendo. Símbolo do ditado popular “E então
Cheng Yaojin apareceu de repente no meio das coisas”,
usado para descrever interrupções repentinas nos planos.
Pode ser considerado o Leeroy Jenkins da China Antiga.

Zack se perguntou quem era Leeroy Jenkins, então se lembrou do


meme muito, muito antigo sobre um cara que arruinou um plano de
raid meticuloso em World of Warcraft ao se lançar na batalha
gritando o próprio nome. Estaria Qin Shi Huang vendo memes na
internet enquanto estava preso nos óculos inteligentes?
— E aí, chefe! — cumprimentou Cheng Yaojin.
O guerreiro olhou ao redor do mostruário, tendo apenas a cabeça e
um braço. O resto de seu corpo estava borrado como uma névoa
vermelha, conectado através do vidro ao peito de Tang Taizong.
— Ah, cara, isso aqui tá apertado.
— Escute, Yaojin, nós precisamos do recipiente medidor de Shang
Yang. Aquela coisa de segurar — explicou Tang Taizong devagar,
apontando para o artefato. Zack teve a impressão de que Cheng
Yaojin não era tão esperto quanto Di Renjie. — Só pegue o recipiente
e pule para fora daí com seu poder de teletransporte.
— Mas é claro, chefe! É este aqui, né? — respondeu Cheng Yaojin.
Ele tateou em busca do recipiente medidor.
— Tome muito cuidado!
— Deixa comigo, deixa comigo! — Sua mão espiritual se fechou ao
redor do grosso cabo do recipiente. Seus dedos se tornaram mais
opacos. — Bànlù shāchūgè Cheng Yaojin!
E então Cheng Yaojin apareceu de repente no meio das coisas!
Ele sumiu, depois reapareceu do lado de fora do mostruário, sua
forma mais completa. Zack deu um passo vacilante para trás.
— Aqui, chefe.
Cheng Yaojin lhe ofereceu o recipiente. O cheiro de ferrugem
flutuou até o nariz de Zack.
— Pegue-o! — ordenou Qin Shi Huang em seu ouvido.
Após um breve momento de hesitação em tocar em algo tão
precioso, Zack pegou o recipiente com as mãos.
Um frio anormal infiltrou seu corpo através dos dedos. Ele soltou o
ar, trêmulo. Seus joelhos vacilaram e cederam. Imagens apareceram
atrás de seus olhos. Era o ponto de vista em primeira pessoa de mãos
pálidas examinando o recipiente, traçando a inscrição na lateral.
Havia a luz bruxuleante de uma lamparina refletida na parte de baixo
do objeto, que ainda não tinha nada escrito.
Do nada, lágrimas quentes escorreram dos olhos de Zack,
arremessando-o de volta à realidade. Ele se viu no chão do museu,
abraçando o recipiente contra o peito. Assustado, tocou as bochechas
úmidas.
— A-acho que acabei de ver uma de suas memórias — disse o
garoto, incrédulo.
— Excelente. — Qin Shi Huang bufou. — Isso significa que
funcionou.
— Vossas Majestades — anunciou Di Renjie através dos alto-
falantes do museu —, Sua Majestade está ficando gravemente sem qi!
— Yaojin! — chamou Tang Taizong.
— Sim, sim, colocar de volta no lugar. Deixa comigo, chefe.
Cheng Yaojin fez menção de pegar o recipiente das mãos de Zack.
O garoto sentiu relutância em entregá-lo, mas sabia que o lugar do
artefato era no interior do mostruário protetor.
Assim que o entregou, Cheng Yaojin invocou novamente sua lenda.
Ele se teletransportou para dentro da vitrine e posicionou o recipiente
exatamente como estava antes. Então abriu um sorriso largo e fez um
joinha com sua única mão.
Tang Taizong o libertou. Assim que Cheng Yaojin se dissipou,
Taizong cambaleou com um enorme suspiro de alívio. Seus
meridianos vermelhos se apagaram. Ele se recompôs em um segundo,
afiando o olhar.
— Certo, vamos lá!
Os dois correram de volta até a entrada. Ao lado das portas, Wu
Zetian se apoiava na parede, angustiada, com os meridianos
piscando. Suor brilhava em sua testa. Sua barra de qi estava próxima
do zero.
— Boa sorte, Vossas Majestades — desejou Di Renjie através dos
alto-falantes no teto.
Então, as portas se abriram.
No momento em que saíram correndo do prédio, Wu Zetian o
libertou. Quando seus meridianos se apagaram, ela desabou, quase
caindo no chão. Tang Taizong a segurou no último segundo,
apoiando-a.
As luzes do museu se apagaram, revelando Jing Ke no pé da
escadaria que conduzia à praça. Ele parecia ter esperado lá o tempo
todo.
Tang Taizong voltou a atenção para Zack.
— Empunhe sua…
Uma onda de choque rasgou o ar, estilhaçando as portas de vidro
atrás deles. Luzes de alarme vermelhas começaram a piscar no
museu. Um portão parecido com uma jaula despencou sobre a
entrada.
— Ah, não! — berrou Zack, mas não conseguia se ouvir.
Não conseguia nem ouvir os imperadores, apesar de seus lábios
estarem definitivamente dizendo Empunhe sua espada, meu rei! Não
estava funcionando. Nenhuma espada apareceu às suas costas. A
única coisa que conseguia ouvir era a voz triste de um rapaz
cantando ao som de um instrumento lento. Para o espanto de Zack,
ele sabia que a música estava em chinês antigo e conseguiu entendê-
la sem legendas.
— Ó, como o vento sopra sobre o gelado rio Yi. Ó, como os heróis
corajosos vão para de onde jamais retornarão.
Prestando mais atenção, Zack viu que havia alguém de pé atrás de
Jing Ke, com as costas contra as dele, o braço se movendo sobre um
instrumento brilhante. Ondas de som visíveis pulsavam de onde os
dois estavam, impedindo Zack de escutar qualquer outra coisa.
Qin Shi Huang: AH, GAO JIANLI NÃO.

GAO JIANLI
Viveu entre: ?-? a.C.
Músico amigo de Jing Ke, que havia se despedido dele ao
partir para a tentativa de assassinato com uma famosa música
de luto no rio Yi. Tentou se infiltrar no palácio de Qin e
completar a missão após a morte de Jing Ke. Teve sua
identidade revelada antes que pudesse tentar. Entretanto, já
que tocava o pipa tão bem, Qin Shi Huang permitiu que
vivesse como músico da corte sob a condição de que fosse
cegado. Tentou matar Qin Shi Huang mesmo assim, enchendo
seu pipa com chumbo e usando-o para golpear a cabeça do
imperador, mas errou a mira. Provavelmente porque estava
cego.

Jing Ke ergueu os braços. Adagas espirituais brancas saíram das


palmas de suas mãos, ainda mais agressivas do que antes. Zack
ziguezagueou para desviar delas, mas muitas o atingiram,
consumindo sua barra de qi. Ele tropeçou e se dobrou de dor, a boca
escancarada em um grito silencioso. O novo portão de segurança o
impedia de correr para dentro do museu, deixando-o exposto. Ele
correu até o pilar um pouco mais adiante, um dos dois que
sustentavam um dossel de vidro e concreto sobre a entrada. Jing Ke e
Gao Jianli deram um passo para o lado, encontrando outro ângulo
para atingi-lo. Zack correu em torno do pilar para escapar das
adagas, sentindo um estranho déjà-vu, embora Jing Ke
definitivamente não fosse cometer o mesmo erro de subir as escadas
para fazer uma perseguição, como havia feito mais de dois mil anos
antes.
Tang Taizong invocou seu arco espiritual e tentou atirar em Jing Ke
e Gao Jianli, mas suas flechas desviaram como antes. Wu Zetian
disparou escada abaixo, com o chicote espiritual brilhando na mão.
No entanto, quanto mais avançava, mais resistentes eram as ondas
sonoras.
Mostrando os dentes cerrados, Tang Taizong dissolveu o arco e
pegou um isqueiro e um pedaço de madeira em sua bolsa carteiro.
Ele colocou fogo na madeira, e o brilho laranja da chama dançou
sobre seu rosto. Junto com seus olhos vermelhos, a luz fazia com que
ele parecesse um demônio. Tang Taizong arremessou a madeira
através das grades de segurança do museu e abriu as mãos como um
mágico. A chama ardeu com mais força.
Os sprinklers contra incêndio esguicharam água do teto,
encharcando o chão com poças espumosas. Zack torcia para que
todos os mostruários lá dentro fossem à prova d’água. Deviam ser,
certo?
Tang Taizong gesticulou alucinadamente para Zack, e o garoto
sabia o que o imperador queria que ele fizesse. Suportando a dor dos
golpes das adagas espirituais, Zack acenou os braços para o museu,
desejando que a água viesse em sua direção. Ela veio, transbordando
através do portão. Uma força opositora e extenuante pulsou dentro
dele, fria como neve derretida, mas o entusiasmo a sufocou. Fingindo
que era um dobrador de água — quer dizer, ele era um dobrador de
água! —, Zack lançou a água escada abaixo com uma investida dos
braços. Não havia o suficiente para nocautear ou enxotar os
assassinos, mas ela os pegou desprevenidos. O ataque das adagas
espirituais se dispersou. O canto de Gao Jianli perdeu a sincronia com
o tocar do pipa, e as ondas de som enfraqueceram. Tanto Zack quanto
Wu Zetian aproveitaram a oportunidade para atacá-los. Girando a
mão, Zack arremessou a água contra as pernas dos assassinos várias
vezes, como a maré batendo em duas rochas na orla.
Qin Shi Huang: FECHE OS OLHOS.
Zack obedeceu. Wu Zetian usou seu flash cegante.
Quando já era seguro abrir os olhos de novo, os assassinos
pareciam mais perturbados do que nunca. As adagas espirituais
voavam de forma ainda mais errática. Zack conseguiu ver que Gao
Jianli tocava um pipa espiritual verde com uma palheta espiritual.
Qin Shi Huang: AQUELA INVOCAÇÃO VAI SE DESINTEGRAR
NO MOMENTO EM QUE ELE O SOLTAR.
Qin Shi Huang: AFROUXE OS DEDOS DELE COM A ÁGUA.
Zack girou a mão para o alto e a abriu, desejando que a água se
impulsionasse para cima e fizesse o mesmo com o punho de Gao
Jianli. Então ele a fez subir ainda mais e se projetar para dentro das
narinas de Gao Jianli.
A melodia parou. O canto cessou com um grito de dor. Outros sons
voltaram a inundar os ouvidos de Zack, similares a quando ele havia
desentupido os ouvidos depois da viagem de avião. Alarmes
retumbavam no museu. Sirenes de polícia uivavam cada vez mais
perto. Porém, acima de tudo isso…
— Empunhe sua espada, meu rei! — gritaram Wu Zetian e Tang
Taizong em sincronia.
A mesma sensação da lâmina fria de antes pressionou as costas de
Zack. Só que, desta vez, quando tentou pegá-la, sua mão se fechou
em volta de um cabo sólido.
Jing Ke o localizou no mesmo instante. Quando ele disparou uma
torrente concentrada de adagas em Zack, o garoto puxou a espada
por cima do ombro.
A espada derrubou as adagas. Era fria como gelo, preta como a
noite e tão longa quanto o braço de Zack. Ele se arrepiou com o
poder que irradiava dela.
— Esta é uma invocação espiritual da espada Tai’e, a espada
ancestral de Qin — explicou Qin Shi Huang, sua voz contendo uma
reverência da qual Zack não imaginava que ele fosse capaz. — Ela
passou pelas mãos de todos os reis de Qin. Nossos ancestrais.
Zack se arrepiou novamente. Era surreal ser lembrado de que Qin
Shi Huang não era apenas o começo de sua linhagem, mas parte dela.
Que ambos pertenciam a algo maior. Zack podia jurar que conseguia
ouvir centenas de vozes sussurrando de dentro da espada.
Então Qin Shi Huang se sobrepôs a todas elas, ordenando que o
garoto repetisse uma frase em chinês. Sem precisar de legenda, Zack
a entendeu como “o rei de Qin corre ao redor do pilar”. Era uma frase
estranha para se gritar, considerando que ele não estava mais
correndo em volta do pilar, mas havia aprendido a não questionar
essas coisas. Quando Zack a repetiu, o chinês fluiu dele como água.
Como mágica.
Outra onda de frio o percorreu, mais gélida do que nunca. Seu qi
caiu uma quantidade enorme. Seus meridianos ficaram pretos,
visíveis em seus braços descobertos. O frio se acumulou sobretudo em
seus olhos, e Zack suspeitou que eles também haviam ficado
completamente pretos. O ar quente noturno cintilava e ondulava. As
adagas que se aproximavam foram perdendo velocidade. Os alarmes
e as sirenes ficaram tão graves quanto os urros de monstros.
O próprio tempo havia desacelerado.
Assim como havia acontecido durante a luta com Aiden.
— Corra, Zack, corra! — urgiu Qin Shi Huang.
Desviando da rota das adagas espirituais que se aproximavam
lentamente, Zack desembestou pelos últimos degraus da escadaria.
Mais memórias fantasmas percorreram sua mente. Memórias de ser
perseguido em volta de um pilar de bronze, desejando que o tempo
desacelerasse enquanto a adaga original de Jing Ke reluzia em sua
visão vacilante. Um medo que não era seu o invadiu como uma
injeção de veneno.
Um medo misturado com raiva.
Como ousa tentar me deter?, pensou Zack.
Com um giro brusco do cotovelo, ele enfiou a espada fundo no
peito de Jing Ke.
Em toda a sua vida, Zack nunca havia apunhalado alguém. O
choque daquele ato arrancou sua mente do estupor de fúria. Terror
tomou seu lugar, terror de que ele tivesse matado alguém de verdade.
O tempo voltou ao normal em um solavanco. Os alarmes e as
sirenes retornaram a seus chiados estridentes originais. Jing Ke e Gao
Jianli convulsionaram juntos na lâmina espiritual, grunhindo. A
espada era tão longa que havia atingido ambos. Para o imenso alívio
de Zack, nenhum sangue foi derramado. Ele não havia causado
ferimentos físicos. Os imperadores tinham explicado que era possível
derrotar um espírito de duas maneiras: com uma arma espiritual ou
levando o corpo do hospedeiro à beira da morte, de forma que o
espírito fosse obrigado a escapar de dentro dele, como o que Qin Shi
Huang havia tentado fazer com Aiden usando a tempestade.
Zack gostava muuuuito mais da primeira opção.
De repente, Jing Ke agarrou o pulso do garoto. Seu aperto era tão
frio quanto a morte. Por trás do visor de seu capacete, o brilho branco
de seus olhos oscilou como lâmpadas prestes a queimar.
— Pare… de ajudar… esse… tirano. — Jing Ke fez esforço para
falar aquelas palavras em chinês antigo sob o som das sirenes.
Suas unhas se enterraram no braço de Zack.
Mais um dilúvio de memórias bombardeou sua mente, mas elas
eram bem diferentes das de antes. Eram memórias de pessoas
gritando enquanto soldados invadiam seus vilarejos. Homens sendo
arrastados em correntes para trabalhar em projetos de construção
gigantescos. Oficiais da corte sendo enterrados vivos em valas.
Pergaminhos de escrita sendo queimados aos montes.
Antes que Zack pudesse reagir, as luzes no capacete de Jing Ke se
apagaram. Gao Jianli e ele — na verdade, as pessoas comuns
possuídas por eles — penderam contra a espada. A mão de Zack se
afastou do cabo espiritual. A arma se dissolveu, fazendo com que a
dupla despencasse no chão em um monte embolado.
Zack os encarou, ofegante. Os alarmes e as sirenes uivavam ainda
mais alto, comprimindo seu crânio com a intensidade.
— Bom trabalho, garoto — disse Tang Taizong, saltando escada
abaixo.
Ele borrifou o rosto da dupla com o caldo de Meng Po, levantando
o visor do capacete do antigo Jing Ke para borrifá-lo.
— Vamos dar o fora daqui.
— Espera, a gente vai deixá-los aqui? — perguntou Zack, se
virando enquanto Tang Taizong disparava escada acima de novo.
O imperador olhou para a dupla inconsciente, depois para Zack.
— Não podemos levá-los conosco.
— Mas a polícia não vai pensar que foram eles que invadiram o
museu?
— Faça-me o favor — interveio Wu Zetian, soando exausta. Ela se
juntou a Tang Taizong no topo da escadaria. — Eles provavelmente
fizeram questão de possuir pessoas desprezíveis. Criminosos. Gente
que pertence à prisão de qualquer maneira.
Ela soltou um riso abafado e acrescentou:
— Heróis e suas regras. Tão previsíveis.
— Não é? — concordou Tang Taizong, rindo.
Zack ficou rígido, as sirenes ecoando em seus ouvidos. Ele já havia
tido vários momentos de Hã, como assim? com os imperadores e tinha
fortes suspeitas de que eles não eram pessoas boas, mas aquilo…
Era o tipo de conversa que só supervilões teriam.
9
Como lidar com o fato de ser o escudeiro de um supervilão

Zack estava deitado na cama, encarando o teto. Eram três da manhã, e


mesmo assim Xangai continuava reluzente do outro lado das janelas.
Eles tinham voltado para o apartamento de metrô. Yaling se
envolvera na investigação policial sobre a perseguição de moto e a
série de acidentes de carro. Felizmente, ninguém havia ficado
gravemente ferido. A polícia dispensou Yaling depois de terem
prendido os dois homens possuídos por Jing Ke e Gao Jianli e
conectado suas motos aos incidentes. A “tentativa de assalto a
museu” estava em todos os canais de notícias chineses.
Wu Zetian havia acertado: os homens eram ex-criminosos com
históricos abomináveis. Ninguém acreditaria no papo deles de que
“não se lembravam de nada”.
O time de Zack havia oficialmente se safado de um assalto a
museu, e agora ele tinha poderes mais fortes e mais resistência contra
demônios de nível baixo. Ainda assim, Zack não conseguia encontrar
motivos para comemorar. Ele não parava de repassar na mente as
imagens horríveis de Jing Ke, bem como suas palavras, que se
repetiam como uma música chiclete irritante sobre um tema muito
desagradável.
Pare… de ajudar… esse… tirano.
Yaling também teve a memória apagada e, por mais que ela
parecesse não se importar antes ou depois de ter o caldo de Meng Po
borrifado no rosto, Zack não conseguia deixar de considerar aquilo
mais uma ação perturbadora e questionável dos imperadores.
Ele tateou a mesa de cabeceira à procura do celular e tentou
pesquisar “qin shi huang tirano”. Quando a página não carregou, ele
se lembrou que sites ocidentais como o Google não funcionavam na
China. Era a Grande Muralha de Firewall da China, como Simon a
chamara quando Zack percebeu pela primeira vez que não conseguia
abrir o aplicativo de mensagens para falar com Jess, a amiga de sua
mãe que havia prometido lhe mandar notícias sobre a condição dela.
Aparentemente, a internet chinesa era como uma dimensão paralela,
com um conjunto diferente de sites populares. Baidu em vez de
Google, Weibo em vez de Twitter e assim por diante. Simon teve que
instalar um aplicativo de VPN no celular de Zack para que ele
pudesse redirecionar seu endereço de IP e falar com Jess. É claro,
Zack não havia recebido informações de verdade sobre a mãe além
de “ela ainda está dormindo, querido”.
Um novo balão de mensagem surgiu na tela de Zack, cobrindo a
barra de pesquisa da busca fracassada.
Qin Shi Huang: Curioso a meu respeito?
Um espasmo sacudiu as mãos de Zack. Ele derrubou o celular em
cima do nariz.
— Ai!
Zack apertou o nariz dolorido por alguns segundos, os olhos
lacrimejando, antes de se atrapalhar para desativar a conexão entre o
bluetooth do celular e os óculos inteligentes.
Isso não impediu Qin Shi Huang de falar através dos óculos
inteligentes, que estavam apoiados na mesa de cabeceira.
— Se quer saber mais sobre mim, estou bem aqui, sabia?
Zack encarou os óculos por muito tempo, então os colocou. Não ia
conseguir dormir, de qualquer maneira. Seu relógio biológico estava
totalmente desconfigurado.
Qin Shi Huang apareceu em sua forma virtual.
— Então?
— Jing Ke chamou você de… tirano — disse Zack, hesitante.
— Muitas pessoas me chamam assim. Algumas inclusive me
incluem na lista de piores tiranos da história. Se você checar a página
da Wikipédia para “tirano”, vai ver que ela me inclui como um
exemplo. E é verdade que muito do que fiz pode ser considerado
tirânico por vocês, pessoas modernas. Mas foi tudo em nome de
alcançar meus objetivos. Eu tinha um propósito claro, e trabalhei a
vida inteira para atingi-lo. Não fui um desses tiranos idiotas que
desperdiça o poder com impulsos autodestrutivos. Como… ah, Nero,
para citar um exemplo eurocêntrico. Às vezes, sou chamado de Nero
da China porque nós dois tivemos problemas com nossas mães.
Guardo ressentimento disso. Eu fui bem mais produtivo do que ele.
Zack sentia que aquele discurso deveria ter vindo com a hashtag
#NemTodoTirano. Ele engoliu em seco.
— Mas você matou muitas pessoas inocentes, não matou?
Qin Shi Huang revirou os olhos por baixo do chapéu com cortinas
de contas.
— Fui um conquistador. É claro que matei. Você acha que existe
algum conquistador na história… ou mesmo um governante de um
grande país… que não tem sangue de inocentes nas mãos? O que
você tem a dizer sobre as multidões de persas inocentes mortos por
seu precioso Alexandre, o Grande? E sobre as pessoas negras e
indígenas inocentes que sofreram sob o governo de George
Washington? Se me lembro bem, quase todos os fundadores dos
Estados Unidos escravizaram pessoas, apesar de se dizerem
defensores da liberdade para todos. Pelo menos eu nunca contei uma
mentira tão descarada.
— Então o que está tentando fazer de verdade? Aqui, no mundo
moderno?
— Precisamos reforçar o tampão do portal espiritual antes do Mês
dos Fantasmas, lembra? — Qin Shi Huang piscou, sem expressão. —
Pensei tê-lo informado disso.
Zack estava começando a duvidar de que aquele era o verdadeiro
plano deles. Suor se acumulava em seu couro cabeludo.
— Mas você acabou de admitir ser um tirano. Vocês… vocês agem
como supervilões! Vocês têm uma mercenária! Então como podem
estar tramando algo bom?
— Quantas vezes eu preciso dizer… — Qin Shi Huang contorceu o
rosto de irritação. — Você acha que só porque eu não me acovardo ou
hesito quando o assunto é conseguir o que eu quero, isso
automaticamente é ruim para o mundo? Essa visão oito ou oitenta
das coisas vai trazer muitos problemas para você quando for mais
velho, garoto.
Zack torceu as cobertas com as mãos.
— Mas a única coisa que você quer fazer é reforçar o tampão do
portal? E depois?
— Depois, eu o ajudarei a conquistar seu maior desejo para honrar
seu esforço nesta missão, é claro. Torná-lo mais forte. Como prometi.
Zack sentiu o rosto esquentar de vergonha.
— E-esse não é o meu maior desejo! Você me pegou num péssimo
momento. O que eu mais quero é que minha mãe esteja sã e salva, e
que ela não precise trabalhar tanto.
Qin Shi Huang deu de ombros.
— Está bem. Também posso garantir isso com facilidade.
Entretanto, devo dizer que… — ele lançou um olhar para Zack que
desagradou o garoto —… instintos não mentem. Você possui uma
ambição por força e poder aí dentro, assim como eu quando tinha sua
idade. Consigo vê-la.
— Nós não somos parecidos em nada!
— Ah, é? Deixe-me contar uma história, garoto. Uma história
sobre como você e eu não somos tão diferentes assim.
Qin Shi Huang fechou os olhos. Com uma onda de polígonos, sua
silhueta se transformou em um menino ainda mais jovem do que
Zack, de cabelo bagunçado e encardido e roupas rasgadas de plebeu.
Mas ele abriu os mesmos olhos pretos e intensos, com as olheiras
profundas e sombrias de “não durmo há mil anos”. Quando Qin Shi
Huang falou novamente, sua voz era a de uma criança.
— Veja bem, o que a maior parte dos resumos de minha vida deixa
de lado é que sou conhecido como Qin Shi Huang, mas não cresci
como um garoto qin. Na verdade, nasci na capital do reino de Zhao, o
maior inimigo do reino de Qin naquela época. Uma grande guerra
havia estourado entre Qin e Zhao alguns anos antes de eu nascer. Ela
terminou com o reino de Qin enterrando vivos quatrocentos mil
soldados zhao e depois sitiando a capital do reino inimigo. Meu pai,
um príncipe qin inferior que servia como refém político naquela
cidade, fugiu enquanto minha mãe estava grávida de mim, deixando-
nos para trás. Então, nasci como prisioneiro em uma cidade inimiga
sitiada por meu próprio bisavô, depois de ele ter matado quase todos
os homens de lá.
— Uau, é igualzinho à minha vida — resmungou Zack.
— Deixe-me terminar — protestou Qin Shi Huang. — Durante os
meus primeiros nove anos, fui odiado impiedosamente por causa da
minha ligação com um reino e com um pai que eu nunca havia visto.
Que havia abandonado a mim e a minha mãe.
Ele agarrou a gola rasgada e manchada de suas roupas
esfarrapadas. Cortes e hematomas apareceram em seu rosto de
criança.
— Só por um milagre conseguimos escapar com vida e chegar ao
palácio de Qin. Bom, se você considerar dinheiro um milagre. Um
mercador muito rico havia tramado para tornar meu pai o novo rei de
Qin. Da noite para o dia, minha mãe se tornou rainha e eu me tornei
o príncipe herdeiro de um reino sobre o qual não sabia nada. Não
cresci cercado pelo povo qin, e não era como se os zhao tivessem me
deixado aprender qualquer coisa sobre o reino de Qin.
A figura de Qin Shi Huang se transformou novamente, desta vez
que nem a Cinderela. Os cortes e hematomas em seu rosto
desapareceram. Seu longo cabelo se desembaraçou e se prendeu num
penteado arrumado. Suas roupas esfarrapadas se transformaram
numa túnica de seda preta. Mas seus olhos permaneceram os
mesmos, assombrados e cheios de ódio, chocantes numa pessoa tão
jovem.
— Então eu era um paradoxo ambulante — continuou ele. — Não
pertencia a lugar nenhum. Em Zhao, todos me odiavam por ser qin.
Em Qin, mesmo em meio a toda a riqueza do palácio, as pessoas
sussurravam sobre mim. Eu não falava como eles. Não conseguia ler
sua escrita. E não era nem de longe tão educado e carismático quanto
meu meio-irmão mais novo, filho de meu pai com uma princesa
legítima de outro reino. Diferente de minha mãe, que era uma mera
dançarina. Talvez eu tivesse sido deposto em favor do meu irmão,
mas…
Sua figura se alterou para um garoto por volta da idade de Zack.
Sua túnica preta se tornou ainda mais elegante, ganhando camadas e
bordados de dragões dourados. O chapéu alto com a cortina de
contas apareceu sobre sua cabeça.
— Apenas três anos depois, nosso pai faleceu de repente. Aos treze
anos, eu me tornei o novo rei de Qin. A tradição chinesa conta a
idade a partir de um ano, então biologicamente eu tinha doze anos
quando assumi o trono. A mesma idade que você. Consegue imaginar
isso?
Zack teve dificuldade para imaginar. Governar um país inteiro com
sua idade? Ele não conseguiria.
— Então lá estava eu, aos doze anos, governando um reino usando
a língua de um estrangeiro. — Qin Shi Huang levantou os braços.
Suas mangas eram tão largas que quase tocavam o chão. — Se você
acha que virar rei me deixou a salvo, está muito enganado. Eu me
tornei a pessoa mais intensamente observada dos Reinos
Combatentes. Qin era de longe o reino mais poderoso da época,
então todos os seis reinos inimigos me queriam morto. Uma boa
parcela do povo qin também queria isso, assim como minhas dezenas
de tios. Meu pai tinha mais de vinte irmãos. Então, com todo mundo
tentando me matar ou me controlar, tive que me manter alerta
durante cada segundo de minha vida. Eu dormia com uma adaga
debaixo do travesseiro. Eu me assustava com cada sombra, com
qualquer comida que parecesse estranha. Afugentei a invasão de uma
coalizão dos outros seis reinos. Reprimi uma rebelião incitada por
meu irmão e minha avó. Subjuguei um golpe de Estado do amante de
minha mãe, o qual ela mesma patrocinou porque sentia tanto medo
de mim que pensava que seria melhor se eu estivesse morto. Por fim,
derrotei o chanceler mercador que havia me colocado no trono como
seu fantoche, e assumi o controle absoluto do reino de Qin.
Qin Shi Huang pausou para recuperar o fôlego virtual.
— Então eu fiz vinte e dois anos.
Zack ficou boquiaberto. Depois de alguns segundos de silêncio, ele
gaguejou:
— T-tá bom, e cadê a parte em que somos parecidos?
— Sério? Você não percebeu? — Qin Shi Huang voltou para sua
forma original de adolescente. Sua voz engrossou outra vez. —
Fomos criados por nossas mães e isolados pela conexão com um país
que nem sequer conhecemos. Estamos sempre presos entre dois
mundos.
— Isso é um baita exagero!
— É mesmo? Isso me permite entendê-lo. Você se apega demais à
moralidade por desespero de que os outros gostem de você. Acha que
as pessoas vão parar de tratá-lo como um intruso se for um bom
menino que faz tudo que elas quiserem. Essa é a sua maior fraqueza.
Se quer ter algum poder de verdade sobre a própria vida, precisa
parar de se importar tanto com o que os outros pensam.
— E-eu… eu… — Zack não conseguia fazer com que palavras
apropriadas saíssem de sua boca.
Qin Shi Huang flutuou mais para perto.
— Escute, garoto, você sempre será diferente. Aceite isso. Aceite
isso agora mesmo. Por mais que tente se encaixar, as pessoas ao seu
redor nunca o verão como um deles. Porque você não é. Você tem sua
própria origem, sua própria herança cultural, sua própria história.
Nunca vai conseguir conquistar respeito genuíno fingindo ser outra
pessoa. No fundo, você sabe disso, porque está faminto pelo poder de
se defender por conta própria e não precisar mais fingir.
— Isso… Não era disso que eu estava falando! — Zack finalmente
encontrou uma linha de raciocínio coerente. — Não estou
preocupado com o que os outros vão pensar de mim. Estou
preocupado que você seja um supervilão tirânico que acha que não
tem problema fazer coisas terríveis só porque tem uma história de
vida trágica! E eu não faço ideia de no que você está me metendo de
verdade!
— Eu estou metendo você na missão de impedir que a China se
despedace em outro período de Reinos Combatentes, ou pior —
respondeu Qin Shi Huang. — A loucura pela qual passei em minha
vida me fez perceber que as guerras tinham que cessar. Havia tantos
espíritos selvagens à solta bagunçando as cabeças das pessoas que
todo mundo estava brigando entre si e estabelecendo divisões de nós
contra eles pelos menores motivos. Por fim, decidi que à única
maneira de minha vida fazer sentido seria se eu apagasse esses
limites. Sem fronteiras. Sem reinos individuais para guerrear uns com
os outros. Eu não ficaria mais dividido entre Qin e Zhao se
governasse ambos. E Han. E Chu. E todo o resto. Sei que você e sua
mente moderna não concordarão com minha lógica, mas isso não
muda o que eu fiz, e o fato de que a China nasceu disso. Agora devo
defender a China, minha maior criação. Pense em mim como um pai
protegendo o filho. Será que minhas motivações fazem sentido
agora?
— Ai, meu Deus. — Zack fez uma careta. — Você é tipo um
daqueles vilões dos quadrinhos que discursam sobre destruir o
mundo para poder reconstruí-lo à sua imagem.
— Isso é exatamente o que eu fiz. — Qin Shi Huang ergueu uma
sobrancelha. — E mais ninguém na história fez isso tão bem quanto
eu.
— Você devia ser mais humilde!
— Garoto. — Qin Shi Huang bufou. — Eu não tenho nada de
humilde.
Zack grunhiu, massageando as bochechas por baixo dos óculos
inteligentes.
— Certo — prosseguiu Qin Shi Huang. — Eu contei minha história
de vida e minhas motivações. Francamente, não me importo se as
aprova, e não vejo sentido em você ter dificuldade para entendê-las.
Nos ajudar é a única maneira de recuperar o espírito de sua mãe.
Então, durma um pouco. Você precisará de seu qi totalmente
carregado para lidar com o que virá.
Qin Shi Huang desapareceu com um estalar de dedos, que Zack
tinha certeza de que era totalmente desnecessário.
Soltando um suspiro profundo, Zack voltou a se afundar no
travesseiro. Ele pegou o celular e rolou por algumas fotos com a mãe,
tiradas durante piqueniques e as raras viagens que faziam para fora
da cidade. Mas olhar para o sorriso brilhante dela só o fez pensar que
não estava mais lá. Que o corpo dela estava a meio mundo de
distância, uma casca vazia sustentada por um monte de aparelhos de
hospital zumbindo.
E que, em doze dias, o demônio que estava com o espírito dela se
tornaria forte o suficiente para despedaçá-lo e consumi-lo.
Temor palpitou em seu peito. Zack imaginou a mãe presa nas
garras do demônio, assustada e confusa, sem ver nada a não ser
escuridão por toda parte e sentindo as garras a apertarem com mais
força dia após dia.
Lágrimas arderam nos olhos do garoto e molharam o travesseiro.
Ele cerrou os punhos.
Certo. Se cooperar com um tirano era o preço para trazer a mãe de
volta, então era exatamente isso o que Zack faria.
10
Como uma folha consegue voltar para a árvore

Zack não dormiu bem. Sonhou com várias coisas terríveis. Espadas
colidindo, campos queimando, pessoas gritando e fugindo. Ele
aconchegado num aposento de palácio tenebroso de madeira escura e
bronze frio, com lamparinas estalando nos cantos de sua visão. A mãe
aos berros enquanto era dilacerada, pedaço a pedaço.
Ficou mais do que aliviado quando Simon o acordou de manhã e
os pesadelos deram lugar à realidade, embora a realidade também
fosse bem estressante.
Mesmo assim, ao rolar para fora da cama, Zack não conseguiu se
livrar da sensação de que havia se esquecido de alguma coisa
importante no meio da confusão da guerra e do sofrimento.
Alguém… havia lhe contado um segredo?
Ele tentou se lembrar enquanto se arrumava e enfiava seus poucos
pertences dentro de uma mochila que Simon havia lhe dado, feita de
um material grosso à prova d’água, mas não teve sorte. Então apenas
saiu do quarto com a mochila.
— Ei! — chamou Simon, fazendo um sinal para que Zack se
aproximasse do sofá na elegante sala de estar. Ele gesticulou para o
que pareciam óculos de ski gigantes na mesa de centro. — Você vai
precisar disso para a próxima etapa da missão. Deixe por cima das
outras coisas para ter acesso fácil.
Assim que pegou os óculos, com o elástico de borracha preta
pendendo das mãos, Zack reconheceu o aparelho de mergulho da XY
Tecnologias, feito para que o usuário pudesse enxergar nitidamente
debaixo d’água enquanto usava óculos inteligentes.
— Hã… A gente vai nadar ou algo do tipo?
— Mmm. — Simon balançou a cabeça. — Em algum momento. Eu
espero.
— Como assim? Para onde vamos hoje?
— Para uma cidade ao norte, Qinhuangdao. Que significa
literalmente “ilha do imperador Qin”. Foi o lugar de onde Qin Shi
Huang enviou uma frota de navios para o Pacífico em busca de
Penglai.
— Penglai?
Simon pareceu surpreso. Claramente aquilo era mais uma coisa
que todas as pessoas chinesas sabiam exceto Zack.
— Certo, hã… É uma famosa ilha mítica onde sábios taoístas
cultivam pílulas mágicas que concedem imortalidade. Nós vamos
para lá e, se tudo der certo, conseguir algumas dessas pílulas. Porque,
caso contrário, não teremos a menor chance de sobreviver à viagem
para onde precisamos ir de verdade, que é o Palácio do Dragão do
Mar do Leste.
Justo quando Zack pensou estar se acostumando com essa coisa de
missão sobrenatural, Simon tinha que trazer à tona ilhas míticas,
pílulas de imortalidade e palácios de dragão.
Zack apenas o encarou, inexpressivo, para que ele continuasse a
explicação. Simon ativou o modo professor de história.
— Então, a coisa mais importante que precisamos encontrar é o
Selo Relíquia do Reino. É o único artefato poderoso o suficiente para
reforçar o tampão do portal. Era um carimbo imperial que Qin Shi
Huang esculpiu a partir do Héshìbì, um pedaço de jade lendário. Por
mais de mil anos, o selo foi o símbolo da autoridade suprema sobre a
China e passou pelas mãos de centenas de imperadores, incluindo Wu
Zetian e Tang Taizong. Isso faz com que esteja conectado à magia de
todos eles, então seria inimaginavelmente poderoso nas mãos de um
imperador lendário. Foi perdido durante uma guerra há mais ou
menos setecentos anos, mas os imperadores têm informações
privilegiadas e confiáveis de que foi parar no oceano Pacífico, onde o
Rei Dragão do Mar do Leste o guardou em sua câmara de tesouros.
Então vamos fazer um mergulho profundo para roubá-lo.
Zack decidiu apenas aceitar o fato de que aparentemente existia
um Rei Dragão que governava uma parte do Pacífico.
— E nós temos que ser… imortais para isso?
— Dã — respondeu Melissa, escancarando a porta de seu quarto.
— Nenhum de nossos imperadores tem magia capaz de nos manter
vivos no fundo do oceano. Tenho certeza de que nem dá para ir tão
fundo assim de submarino.
Zack ficou boquiaberto ao ver o cabelo bagunçado e o rosto não
lavado de Melissa. Não pensava que ela fosse capaz de parecer tão
casual. As intricadas pulseiras de prata em seus braços eram o único
indício de que ela era a mesma garota que ele havia conhecido no dia
anterior. Melissa se arrastou para a cozinha usando uma camiseta
larga, calças de pijama e pantufas de coelho.
— Ugh. Tá cedo demais para isso.
Ela abriu a geladeira e pegou uma garrafa de vidro de iogurte.
— Mel — repreendeu Simon. — Já são nove da manhã.
— Já… — retrucou ela, indignada com ele, depois balançou a
cabeça. — É por isso que o nosso casamento não deu certo.
— Casamento? — A voz de Zack saiu aguda demais.
— Ignore ela — balbuciou Simon, sacudindo as mãos. — Às vezes
ela gosta de fingir que nós somos Tang Taizong e Wu Zetian de
verdade.
— É por isso que você não conseguiu a guarda das crianças —
disparou Melissa na lata, enquanto enfiava um canudo fino na tampa
de alumínio do iogurte.
— Tang Taizong e Wu Zetian nem tiveram filhos juntos!
Zack soltou uma risada constrangida, mas sentiu seu coração
afundar quando notou a cor se espalhando pelas bochechas de
Simon.
Será que Simon gostava de Melissa? Zack não ficaria surpreso.
Melissa era muito bonita, mesmo sem maquiagem e com o cabelo
feito um ninho de galinha. E ela era destemida. E confiante. E uma
garota.
Garotos gostam de garotas. Era assim que a maioria das pessoas
funcionava.
Enquanto Melissa voltava para seu quarto, Zack pigarreou e
perguntou:
— Então, como essas pílulas de imortalidade funcionam? A gente
não vai viver para sempre de verdade, vai?
— Não, não. — Simon balançou a cabeça. — É imortalidade no
sentido de “não morrer por motivos mortais”. Os imperadores
planejam pedir pílulas com efeito de um dia e, durante esse dia, não
vamos precisar respirar nem ser afetados pelo frio ou pela pressão da
água. Mas se um dos soldados do Rei Dragão nos apunhalar com uma
lança espiritual, ainda podemos nos machucar ou morrer, então
vamos precisar tomar cuidado. Ainda bem que a XY Tecnologias tem
esse aparelho de mergulho, então você vai continuar tendo acesso a
Qin Shi Huang.
— Ah, aposto que eles se arrependeriam de fazer esse produto se
descobrissem que estamos usando isso para nossa missão. — Zack
guardou os óculos de ski na mochila, lembrando-se de que Jason
Xuan fundou a empresa para fortalecer os espíritos para que
pudessem arrombar o portal. — Espera, a XY Tecnologias não vai vir
atrás da gente, vai?
— Ah, com certeza Jason Xuan está vigiando todos os nossos
passos — respondeu Simon. — Mas ele não pode fazer muita coisa
em relação a nós. Não é como se toda a empresa soubesse ou fosse
acreditar que ele está conectado ao Imperador Amarelo, ainda mais
porque ele não pode usar magia para provar isso. Ele só ia parecer
esquisito e birrento, indo atrás de um bando de crianças. Ele nem
conseguiu me impedir de ganhar a competição, lembra? Então só
vamos ter que lidar o Imperador Amarelo influenciando mais
espíritos para nos atacar. Aí nós encaramos eles quando surgirem.
— Ótimo — resmungou Zack.
Uma parte dele ainda estava triste de ter Jason Xuan como
inimigo, mas pelo menos ele não teria que lutar diretamente contra o
ex-ídolo.
Depois que Melissa reapareceu como uma estrela pop outra vez, com
o cabelo preso no rabo de cavalo que era sua marca registrada e
todas as imperfeições da pele camufladas, ela bateu à porta do quarto
de Yaling para chamá-la, e depois o grupo saiu para tomar café da
manhã. Zack se sentiu instintivamente ansioso, já que ele e a mãe
nunca tinham dinheiro para comer fora, mas Simon o assegurou de
que não precisava se preocupar com isso. Zack ficou tocado ao
descobrir que Simon havia escolhido um restaurante halal. Eles
atravessaram uma ruela para chegar lá. O tráfego se movia devagar
em meio ao ar quente e abafado. Carros se espremiam pelo meio das
vias estreitas, enquanto bicicletas e motos desviavam de pedestres
nas laterais, tocando as campainhas e buzinas. Os chineses
certamente não eram tímidos com as buzinas. Suor se acumulava
debaixo das alças da mochila, então Zack tinha que usá-la sobre um
ombro só, como se quisesse parecer descolado. Ele viu, ouviu e sentiu
cheiro de muitas coisas pela primeira vez, incluindo o canto de
cigarras de verdade. Uma vendedora ambulante tinha os insetos em
pilhas de pequenas jaulas trançadas. Os preços flutuavam no Campo
Comum de Realidade Aumentada. Quando a vendedora percebeu
Zack encarando, ela o chamou e acenou para que se aproximasse. O
garoto seguiu em frente, constrangido.
A cada passo que dava, ele imaginava os pais andando pelo mesmo
lugar anos e anos antes. Teriam as imagens, os sons e os cheiros
inspirado amor ou ódio? Zack não tinha a expectativa de gostar de
muita coisa na China, mas, quando passaram por uma ambulante que
derramava massa sobre uma grelha escaldante atrás do vidro
gorduroso de seu carrinho, ele sentiu o estômago roncar com a
certeza de que o que quer que aquilo fosse, seria delicioso. E a
atmosfera geral da rua era… inegavelmente caótica, mas havia algo
de reconfortante no movimento, como se fosse uma prova de quão
vibrante a vida podia ser.
Assim que chegaram ao restaurante, que tinha uma placa com a
palavra “halal” em árabe escrita em letras verdes
surpreendentemente grandes, eles se sentaram ao redor de uma mesa
de linóleo pegajosa. Um ar-condicionado gorduroso soprava sem
parar acima deles, e uma fita balançava na saída de ar. Duas outras
mesas estavam ocupadas, uma por uma avó que alimentava a neta e
a outra por um casal jovem com roupas estilosas, rindo enquanto
arrumavam a comida para tirar fotos dela.
Simon sorriu ao passar para os outros uma série de menus
laminados que ficavam enfiados entre as paredes encardidas e
diversos potes de molhos sobre a mesa.
— Na Ásia, se você quer comida boa, não vai aos restaurantes
chiques de cinco estrelas, e sim a lugares minúsculos como este ou
então come na rua.
Ele traduziu o cardápio para Zack, e depois Yaling foi até o balcão
para fazer os pedidos. Claramente se tratava de um restaurante de
família, e Zack ficou espantado ao ver como eles eram visivelmente
muçulmanos. O pai, vestindo um chapéu taqiyah branco, puxava e
esticava macarrão por trás do painel de vidro. A mãe, de hijab, servia
um caldo transparente em tigelas largas. O filho adolescente anotava
o pedido de Yaling.
Zack sabia que o grau de opressão que os muçulmanos
enfrentavam na China variava muito de acordo com a região, sendo
muito pior no oeste do que ali no extremo leste, mas ele havia
crescido com a imagem mental de que o governo chinês aprisionava
todo muçulmano que avistava. Aquilo claramente não era verdade.
Ele não conseguiu deixar de imaginar sua família tocando um
pequeno negócio como aquele, num universo alternativo em que seu
pai nunca havia se manifestado contra o governo. Ao contrário do
que acontecia na maioria dos outros países, sua mãe teria tido a
liberdade de se tornar uma imam — ou āhōng, como se dizia em
mandarim. Muçulmanos hui eram os únicos a manter a tradição de
mesquitas lideradas por mulheres. A mãe de Zack, uma feminista
muçulmana que seguia uma visão mais liberal do Corão, se gabava
disso com frequência. Se a família de Zack tivesse simplesmente
ficado no leste do país sem criar confusão, poderiam ter vivido em
paz.
Zack sabia que nunca era errado usar a própria voz contra a
tirania. Alguém tinha que falar nesses momentos. Mas, às vezes, ele
se perguntava por que tinha que ter sido sua família.
Por que tinham sido eles a assumir o risco e perder tudo?
— Zack? — chamou Simon, tocando seu ombro.
— Hã? — fez Zack, voltando a prestar atenção.
— Tudo bem?
— Ah. Só estava pensando na minha mãe — respondeu Zack,
jogando uma meia mentira.
Desejar que seus pais tivessem se calado diante da opressão era
algo egoísta demais para admitir em voz alta.
Simon e Melissa ficaram tensos. De repente, pareciam se sentir
muito culpados, o que fez Zack se sentir culpado por tornar o clima
constrangedor de novo.
Felizmente, Yaling começou a trazer os pedidos deles bem naquele
momento, pratos envoltos em plástico com kebabs encharcados de
tempero e quatro tigelas de macarrão Lanzhou com carne, o prato
típico do povo hui. A mãe de Zack fazia aquele macarrão o tempo
todo. E assim como quando ela o fazia, o caldo que banhava o monte
de fios finos de macarrão era transparente, mas cheio de sabor e
fragrância. Foi o primeiro gostinho de casa naquele país que
supostamente era a terra natal de Zack, embora a mãe usasse fatias
mais grossas de carne e em maior quantidade. Agora ele estava
pensando nela de verdade, e fingiu se concentrar em sugar o
macarrão para esconder as lágrimas que brotavam nos olhos.
Mantendo o hábito de não se juntar à conversa das crianças, Yaling
colocou os fones de ouvido e ficou escutando música em um volume
preocupante. Enquanto isso, Simon traçou as intricadas gravuras
azuis em sua tigela de macarrão e se lançou em uma história sobre
como o pigmento azul-cobalto havia sido levado para a China por
comerciantes islâmicos, e como o visual azul e branco icônico da
porcelana chinesa fora, na verdade, criado para o mercado do
Oriente Médio antes de se popularizar na China. Melissa se
intrometeu com explicações sobre como o comércio entre Oriente e
Ocidente havia prosperado durante a dinastia Yuan, quando os
mongóis se apossaram de tudo e basicamente forçaram todo mundo a
se misturar.
— Seus ancestrais hui provavelmente vieram para a China naquela
época, Zack. — Ela levantou uma sobrancelha bem delineada. — Ou
talvez antes… Um monte de comerciantes veio durante a dinastia
Tang também. Curiosidade: a primeira mesquita da China foi
construída durante o reinado do segundo marido de Wu Zetian.
— Você tem que enfiar Wu Zetian em qualquer assunto? —
questionou Simon, batendo os palitinhos de brincadeira perto do
rosto de Melissa.
Ela retaliou com um leve empurrão.
— Ei! Que culpa eu tenho se ela esteve envolvida em tantas coisas
importantes?
Zack sorriu, mas um vazio inesperado se abriu em seu estômago.
Fazer piadas uns com os outros era uma parte natural das amizades,
então ele ria quando os amigos zoavam ele, mas até então não havia
percebido como era esquisito o fato de que nunca se sentia
confortável para fazer piada com eles. Sempre tinha medo de magoá-
los ou perdê-los. Nunca era de igual para igual, como Simon e
Melissa. Ambos eram honestos um com o outro, ao invés de
aguentarem alfinetadas para manter o outro por perto.
Melissa se virou para Zack e continuou:
— Enfim, eu acho o máximo que você mantém suas tradições.
Precisamos mostrar para o mundo que ser chinês não é só ser han. Eu
sou miao, aliás.
Ela mostrou uma foto para Zack no celular. Era Melissa de pé num
vilarejo rural, vestindo uma túnica colorida bordada e uma saia
plissada, assim como um deslumbrante chapéu prateado tão
elaborado quanto um lustre.
— Uau — disse Zack sem pensar.
Nunca havia visto um chapéu tão impressionante.
— Nós do povo miao nos orgulhamos do nosso trabalho com
prata. — Melissa mostrou as pulseiras, que tinham desenhos de flores
e borboletas gravados no metal. — Nós também dançamos e
cantamos muito bem. Parte do motivo de eu querer ser uma estrela
pop é para levar nossa música e dança tradicional para os palcos do
mundo todo, sabia? Nos meus termos, com meu olhar, sem deixar o
governo decidir que eu devo fazer ou como devo agir. Não podemos
deixar esse tipo de coisa morrer.
— Pois é, não podemos — concordou Zack.
Ele abriu um sorriso largo, sentindo uma leveza o inflar como
hélio. Melissa era a primeira pessoa da sua idade que ele conhecia
que também era de uma minoria chinesa. Ou pelo menos a primeira a
lhe contar que não era han. Finalmente, alguém que entendia ele, que
entendia como era possível ser chinês sem ser o típico chinês han,
que tinha algumas tradições em comum com os han, mas diferia em
outras de maneiras únicas e significativas.
Zack nunca havia se sentido tão conectado com suas raízes
muçulmanas quanto ali, sentado naquele restaurante minúsculo
enquanto comia macarrão Lanzhou em uma tigela de porcelana com
desenhos azuis. Geralmente, ele guardava suas raízes para si mesmo,
nunca as mencionava ou conversava sobre elas. Era mais uma coisa
que o tornava diferente, diferente até de outros muçulmanos que via
na mídia ou conhecia na vida real. Ele não se encaixava na ideia que
a maioria das pessoas tinha de um muçulmano. Mas é claro que, com
mais de um bilhão de muçulmanos no mundo, era natural que
existissem grandes diferenças. No segundo ano, quando uma
professora lhe perguntara se participaria do Ramadã, ele nem soube
do que ela estava falando, porque a mãe chamava o período de
Zhāiyuè — “o mês do jejum” em mandarim.
Sua identidade sempre era difícil de explicar para as pessoas, mas
Simon e Melissa o entendiam sem que precisasse elaborar. Era como
se ele tivesse passado a vida inteira como uma folha solitária, até
enfim encontrar a árvore de onde havia vindo. Aquilo o deixou à
vontade para enfim perguntar a respeito de algo potencialmente
sensível que vinha pairando no fundo de sua mente.
— Então, gente… — Zack se inclinou sobre a mesa. — Desculpa se
for uma pergunta estranha, mas, se o submundo chinês existe, assim
como os deuses chineses, então isso significa que as outras religiões
são…?
Simon e Melissa trocaram um olhar alarmado, e então pareceram
mergulhar em uma reflexão profunda.
— Hmm… — Simon tamborilou na mesa. — Eu não diria que isso
refuta outras religiões? Tipo, mesmo que você considere só os mitos
chineses, não há nada neles que obrigue a negar todo o resto. Tem
elementos do taoísmo, do budismo, do hinduísmo e outros deuses
locais de vários lugares. Nada impede que tudo exista ao mesmo
tempo.
— Rei Yanluo, o atual governante do submundo, era originalmente
o deus hindu rei Yama — acrescentou Melissa.
— Como isso funciona? — Zack inclinou a cabeça. — Os deuses
criaram tudo ou eles são só… a imaginação humana que ganhou
vida?
Simon mordeu o lábio, então disse:
— Bom, pessoalmente, eu acredito que os deuses são forças reais
no universo, mas é a crença humana que os organiza em formas que
fazem sentido para nós. Então, os deuses são como a água e nossas
mentes são copos de diferentes formatos. — Ele cutucou o copo
d’água ao lado da tigela de macarrão, então de repente levantou as
mãos em sinal de defesa. — Mas não temos certeza de nada. Nem os
imperadores têm.
— Sim, porque essas coisas espirituais funcionam de maneiras
estranhas — explicou Melissa. — Os espíritos se mantêm inteiros e
fortes por causa das lendas, mas as lendas podem se confundir. Existe
um boato bem popular de que Wu Zetian matou a filha ainda neném
para incriminar a imperatriz anterior e tomar seu lugar. Eu não
acredito que ela tenha matado a filha… inclusive, isso só apareceu
nos livros de história bem depois que ela morreu… No entanto,
quando perguntei a ela sobre o assunto, Wu Zetian disse que
sinceramente não sabia. Ela tem memórias fantasmas de ter feito isso,
mas são uma mistura de cenas de diferentes programas de TV. Sério,
ela nem se lembra da própria aparência. Ela se vê como uma mistura
de atrizes. Mas com certeza era lindíssima.
Melissa abanou os dedos ao lado do rosto. Ela realmente ia fundo
demais nas histórias de Wu Zetian às vezes.
— Mas as ações dos espíritos também podem influenciar a história
humana — disse Simon. — Tipo, Tang Taizong diz que o rei Yanluo
na verdade invadiu o submundo chinês e derrotou Houtu, o
governante anterior que era nativo da China. Não há uma lenda
explícita sobre isso, mas esse acontecimento realmente fez Houtu
desaparecer aos poucos da crença popular, e só depois o povo chinês
começou a contar histórias sobre o rei Yanluo. E foi assim que seu
poder se consolidou.
Zack refletiu sobre aquilo.
— Então os espíritos podem ser afetados pelas histórias que os
humanos inventam, mas também podem influenciar as histórias que
os humanos contam?
— Exatamente. — Simon assentiu. — É uma via de mão dupla. E
nem sempre fica claro o que veio primeiro.
— Espera, então o que aconteceu quando eu derrotei Jing Ke e
Gao Jianli? O que aconteceu com os espíritos deles?
— Eles se dispersaram. As lendas deles são fortes, então vão se
formar novamente, mas só com o que permanece em suas lendas.
Não terão memória daquilo que não chegou à consciência cultural.
Então nem se lembrarão que nos atacaram.
— Jing Ke provavelmente vai renascer no submundo em breve —
acrescentou Melissa. — Ele é muito famoso. Gao Jianli é menos
popular, então deve levar mais tempo, mas ele não é tão obscuro a
ponto de desaparecer para sempre. Com sorte, não vão mandá-los
atrás de nós outra vez antes de terminarmos a missão.
— Argh. — Zack esfregou as têmporas. — Isso é coisa demais.
— Eu sei, cara. — Simon deu tapinhas em suas costas. — Nós
desistimos de tentar entender o que é real faz um bom tempo. Então,
acredite no que quiser! Pode ser que seja verdade, ou que se torne
verdade.
— Mas eu quero falar uma coisa — interveio Melissa,
inesperadamente séria e contida. — Você não está errado por
acreditar no que acredita, e o que o governo está fazendo com
muçulmanos é algo que Wu Zetian e Tang Taizong não teriam
apoiado de jeito nenhum. Sob o governo deles, a dinastia Tang foi um
dos impérios mais diversos e tolerantes do mundo, e eles se
orgulhavam disso. Celebravam todas as raças e religiões. Wu Zetian
tem literalmente sessenta e uma estátuas em seu mausoléu para
homenagear embaixadores estrangeiros. Elas ainda estão lá. O que
está acontecendo agora… — ela olhou pelas janelas de vidro do
restaurante —… não é a cultura chinesa.
Novas lágrimas brotaram nos olhos de Zack. Ele engoliu o nó na
garganta, tentando ao máximo parecer descontraído.
— E quanto a Qin Shi Huang?
— Ele sabia quem seus pais eram. Ainda assim, escolheu você. O
que acha?
Algo estremeceu bem no âmago de Zack.
Deixe-me contar uma história, garoto. Uma história sobre como você
e eu não somos tão diferentes assim.
— Ele provavelmente não teve opção. — Zack riu, fingindo coçar
os olhos para secá-los. Mas sorriu para Melissa. Estava tão aliviado
por ela não estar mais zangada com ele depois do assalto bem-
sucedido ao museu. — Mas obrigado.
Ela deu de ombros, sorrindo de volta.
— Só estou dizendo a verdade.
11
Como seu ancestral pode ser um pássaro

Eram duas horas de avião de Xangai até Qinhuangdao, da China central até
o norte. Zack passou a maior parte do voo olhando pela janela,
observando as cidades e paisagens que passavam debaixo das nuvens,
tentando imaginar como seriam no nível do solo.
Assim que pousaram, eles tiveram algumas horas para matar antes
de embarcar no cruzeiro em que passariam a noite. Aparentemente,
aquela região tinha muitos espíritos e eles estariam expostos a graves
perigos durante a viagem marítima se alugassem um barco por conta
própria. Em um navio cheio de pessoas, porém, os espíritos teriam
mais dificuldade para detectá-los. Então o grupo “só” precisava
roubar um bote salva-vidas e deslanchar no ponto mais distante na
rota do cruzeiro.
O fato de que Zack só resistira àquela ideia por mais ou menos
dois segundos dizia muito sobre o estado em que sua vida se
encontrava.
Eles usaram o tempo pré-cruzeiro para visitar um bando de
atrações históricas a fim de fortalecer suas conexões com a magia
lendária. Isso incluiu a Cabeça do Dragão, onde a ponta leste da
Grande Muralha encontrava o mar em uma praia lotada de turistas.
Os óculos inteligentes de Zack forneceram uma breve história sobre o
local. De certa distância, parecia mesmo uma versão pixelizada de um
dragão chinês, com os chifres formados por uma torre de vigia
quadrada. Não era a Grande Muralha original de Qin Shi Huang, mas
uma construída há quinhentos anos, durante a dinastia Ming.
Quando Zack se espremeu entre a multidão de turistas em cima dela
— era alta temporada —, as laterais de tijolos se revelaram mais altas
do que ele. Era legal olhar para o mar na extremidade mais distante
através de uma fenda feita para arqueiros e se imaginar como um
soldado responsável por defender a muralha, mas ele só conseguiu
fazer isso por alguns segundos. Tanta gente se apertava atrás dele que
Zack se sentiu mal de monopolizar o lugar por mais tempo.
A praia em si era mais relaxante. Os quatro caminharam ao longo
da faixa de areia enquanto o sol se punha a oeste, lançando sombras
no vaivém das ondas do oceano. Para o alívio de Zack, estava bem
mais fresco do que em Xangai. Gaivotas grasnavam e batiam as asas
no céu que se avermelhava com nuvens chamuscadas pelo
crepúsculo. Houve uma comoção quando um grupo de mulheres de
meia-idade começou a cavar em busca de mariscos. Melissa se juntou
a elas, animada, e Simon foi tentar impedi-la porque “deve ser contra
as regras da praia!”, enquanto Yaling tirava selfies flexionando os
bíceps diante do pôr do sol. Zack vagou sozinho em direção à linha
oscilante da maré. Pôs o pé calçado na água espumosa quando ela se
aproximou, mas imediatamente o retirou. Estava gélida. Uma pena.
Algo no oceano o chamava para mergulhar, como se cada onda
tivesse uma atração magnética. Zack sempre havia se sentido assim,
mesmo antes de obter poderes aquáticos. Embora, nos Estados
Unidos, o oceano fosse o Atlântico. Ele visualizou o globo terrestre
em sua mente. Estava quase no lado oposto da Terra. Recordou-se da
vez que a mãe e ele foram à praia, e um homem passou ao seu lado
enquanto Zack cavava na areia e zombou que ele devia estar
tentando “cavar um buraco de volta para a China”. Zack não se
lembrava do rosto do homem, apenas da onda de vergonha que
sentiu e do quão rápido aquilo o fez parar de cavar.
Engraçado que ele havia acabado na China, de qualquer forma.
— Este foi o limite do mundo durante muito tempo, sabia? —
disse Qin Shi Huang de repente, aparecendo virtualmente ao lado de
Zack. — Seu precioso Alexandre sonhou em chegar aqui para vê-lo
por conta própria. Eu também sonhei com isso. Nosso povo, da Casa
de Ying, já foi o povo do Mar do Leste. Nós surgimos destes litorais.
Nossa ancestral era a Senhora Xiu, bisneta do Imperador Amarelo,
que deu à luz a nossa linhagem depois de engolir o ovo de um
pássaro preto.
Qin Shi Huang levantou a mão diante de si. Polígonos virtuais
cintilaram acima da palma de sua mão, produzindo um pássaro preto
que parecia ser feito de fumaça.
Zack abriu a boca para questionar como uma senhora poderia ter
engravidado de um pássaro, mas então decidiu que já havia escutado
histórias de origem mais esquisitas nos mitos. Eles nunca pareciam
dispostos a falar sobre como os bebês eram feitos de verdade.
— O bisneto da Senhora Xiu, Boyi, tornou-se o ministro da
Pecuária do mítico rei Shun. Nosso povo tem a tradição de ser bom
com animais, particularmente cavalos e pássaros. Não só isso, mas
Boyi ajudou o famoso Yu, o Grande, a enfrentar o Grande Dilúvio da
China ao cavar canais e criar sistemas de irrigação.
O pássaro preto se transformou em uma figura sombria cavando
com uma pá. Então a pá se transformou em uma bandeira tremulante
que a figura ergueu acima da cabeça.
— Por suas façanhas, o rei Shun concedeu a Boyi uma bandeira
preta e o sobrenome Ying, que significa “vencer”.
A figura rodopiou e assumiu a forma daquele ideograma, escrito
em chinês da dinastia Qin, que Zack conseguia entender desde que
tocara o medidor de Shang Yang. Calafrios percorreram seus braços.
Aquele era o tipo de história que ele desejava que tivessem lhe
contado quando era criança. Sua mãe tinha mais interesse no futuro
do que no passado, mas será que seu pai teria sido diferente? Se os
dois o tivessem criado juntos, Zack conheceria e entenderia mais
sobre suas raízes? A existência da magia lendária provava que havia
poder em transmitir histórias, em ser lembrado. Zack se perguntou
quantas gerações de ancestrais estariam zelando por ele. Teriam
ficado orgulhosos quando carregou sua linhagem para o litoral de um
oceano completamente diferente? Estariam se lamentando sobre
como ele não fazia ideia de quem eram até o momento? Zack espiou
a invocação na mão de Qin Shi Huang, fingindo que era o pai quem
lhe contava aquela lenda.
— Como o trono era herdado por aptidão naquela época, Yu, o
Grande, tornou-se o novo rei, e Boyi deveria ter sido seu sucessor.
Entretanto, o filho de Yu derrotou Boyi e assumiu o trono, criando
assim a primeira dinastia da China, Xia, e iniciando a tradição de
passar o trono pela linhagem de sangue. Roubaram de nosso povo a
chance de governar, mas nós perseveramos. Mais tarde, tornamo-nos
nobres da segunda dinastia, Shang.
As partes do complicado ideograma de Ying se transformaram
numa fileira de pessoas sombrias vestindo túnicas pesadas e chapéus
altos, curvando-se com as mãos unidas na frente do corpo.
— Mas nossa sorte teve um revés quando a dinastia Zhou
derrubou os Shang. Os Zhou nos exilaram para as matas mais
distantes a oeste durante toda a sua dinastia, a mais longa na história
da China.
A fileira de pessoas virou de lado, tornando-se plebeus corcundas
que arrastavam pilhas pesadas de pertences nas costas.
— Oitocentos anos. Levou quase oitocentos anos para que
víssemos este oceano de novo.
As pessoas se uniram com um rodopio, transformando-se em um
pássaro preto que grasnou silenciosamente para as ondas que
quebravam.
Qin Shi Huang levantou o queixo.
— Ainda me lembro da primeira vez que o vi, como se fosse
ontem.
Um vento de cheiro salgado se agitou pelo cabelo de Zack,
causando-lhe um arrepio. O garoto se perguntou como seria
conseguir algo assim. Conquistar todo o mundo conhecido. Saber que
não havia mais inimigos.
Bom, exceto a morte.
— É verdade que você enviou um feiticeiro da corte e três mil
meninas e meninos para encontrar o Elixir da Imortalidade? —
perguntou Zack.
Era o que um guia turístico dissera no local chamado literalmente
de Lugar De Onde Qin Shi Huang Enviou Sua Frota Em Busca Da
Imortalidade, embora fosse apenas uma armadilha para turistas com
um bando de edifícios modernos.
— Não enviei crianças de verdade naqueles navios, e nem de longe
tantas assim. Mas foi, de fato, uma grande equipe de busca. — Qin
Shi Huang riu com uma suavidade surpreendente, as pálpebras
abaixando. — E é verdade que nunca mais voltaram. Xu Fu, o
feiticeiro, acreditava que alguém como eu nunca deveria ter acesso à
imortalidade. Azar o dele. Conquistei a imortalidade mesmo assim.
Só não da maneira que nenhum de nós esperava.
Ele olhou para as mãos virtuais, depois para o horizonte, aguçando
o olhar.
— Enquanto a China existir, eu jamais serei esquecido.
Por alguns instantes, Zack parou de respirar. Uma maré de
surrealidade o atingiu, como se seus sentidos estivessem sendo
carregados por uma onda.
O que Zack entendia sobre Qin Shi Huang até então era que ele
era um fundador esquisito. Definitivamente havia sido uma pessoa
impressionante com muitos feitos impressionantes, e todos lhe davam
crédito por ter criado a China que conheciam, por mais que
concordassem que ele era, para citar Tang Taizong, “o pior”. Era
como se Qin Shi Huang tivesse despedaçado o mundo de forma tão
absoluta que as pessoas não tiveram escolha senão aceitar a nova
realidade. Zack estava diante do vilão mais bem-sucedido da história.
— Então esta é a sua verdadeira motivação egoísta para salvar a
China? — retrucou Zack. — Para que continue sendo uma lenda
imortal?
— É um bônus.
Qin Shi Huang encarou a vastidão das ondas tingidas de laranja.
Sua túnica preta se agitava com o vento do oceano.
Espera aí…
Qin Shi Huang era virtual. O vento não deveria afetá-lo.
— Você… você está fazendo a sua túnica se mexer de propósito?
Qin Shi Huang fechou a cara, lançando um olhar enfezado para
Zack.
— Você tem que arruinar meu momento?
— Você consegue ver o oceano se os meus óculos não estiverem
apontados para ele? — Zack alternou o foco entre as ondas e Qin Shi
Huang. — Como isso funciona? Porque você é só uma projeção,
certo?
— Vou preservar esse mistério digital — respondeu Qin Shi Huang.

Depois de embarcarem no cruzeiro e se empanturrarem com o buffet


— Zack comeu muitos bolinhos de legumes e macarrões gelados —,
Yaling foi para um evento só para adultos enquanto Zack, Simon e
Melissa passeavam sem rumo pelo navio. A maioria dos passageiros
era formada por casais que riam e socializavam com bebidas nas
mãos. Zack não sabia se os três teriam recebido permissão para
embarcar se não fosse pela magia de charme de Melissa.
Simon definitivamente havia levado a pior no quesito
superpoderes. Magia de fogo que não o deixava produzir fogo por
conta própria não era muito prática na vida real, a não ser que ele
quisesse machucar alguém. Por outro lado, ele seria bem útil em um
churrasco.
— Então, como é essa ilha mítica? — perguntou Zack, observando
o mar iluminado pela lua.
Os três tinham ido parar no deque superior. Como o vento era
muito estridente, havia bem menos gente ali em cima do que na proa
mais iluminada abaixo. Luzes de discoteca saíam das janelas e portas
de vidro de uma sala de karaokê atrás deles, acompanhadas de
alguém cantando fora de tom por cima de uma melodia alta de R&B.
— Os imperadores não sabem direito. Também nunca estiveram lá
— respondeu Simon, observando o mar através de um par de
binóculos.
O navio repartia a água, que ondulava como um lençol preto e
sedoso, dilacerado por um milhão de pequenos cortes de luar. Um
apito soava ao longe, grave e longo.
— Nunca estiveram lá? — Zack levantou a voz acima do karaokê
horrível e do grasnado incessante das gaivotas ao vento.
Aquela área tinha mesmo muitas gaivotas.
— Os imortais naquela ilha não costumam gostar de imperadores
— explicou Melissa, fechando a jaqueta por causa do frio. — Eles são
taoístas. A parada deles é que a vida não deve ser levada a sério e a
gente tem que seguir o fluxo do universo sem se importar muito,
porque não se importar é o único caminho para ser livre. É isso que
tao significa, “o caminho”.
— Só que não é assim que os imperadores agem. — Simon
abaixou os binóculos. — Ainda mais imperadores teimosos dispostos
a fazer de tudo para tentar assumir o controle do universo. Então,
naturalmente, os imortais escondem a ilha e seus segredos deles.
Muitos dos grandes imperadores tentaram encontrar Penglai e
fracassam.
Zack encarou Simon e Melissa, boquiaberto.
— Então, não existe garantia de que vamos encontrá-la?
— Bom, desta vez é diferente — argumentou Melissa, se apoiando
no corrimão do deque. Seu rabo de cavalo se agitava ao vento. — Os
imperadores estão fazendo isso para salvar a China, não porque
querem viver para sempre de maneira egoísta. É por isso que só vão
pedir um dia de imortalidade para nós. E eles têm uma pessoa
infiltrada que vai ser nosso GPS espiritual.
— Li Bai. — Simon se animou enquanto guardava os binóculos de
volta na mochila à prova d’água. — O maior poeta da história da
China.
— Você já ouviu os poemas dele? — perguntou Melissa, como se
quisesse saber se Zack já havia ouvido falar de certa banda.
— Não?
— Ugh, toda criança na China conhece os poemas dele! Chuáng
qián míng yuè guāng…
Para o fascínio de Zack, Simon começou a recitar com ela. Uma
tradução apareceu nas legendas.

O luar se derrama frente a minha cama


Como geada sobre o chão
Levanto a cabeça para admirar o luar
Abaixo a cabeça e anseio por meu lar

Os dois terminaram com uma risada.


— Cara, esse é da hora! — exclamou Melissa, fazendo um toca
aqui com Simon.
Simon voltou o sorriso largo para Zack.
— Pois é. Enfim, Li Bai era um grande fã do taoísmo, então o
espírito dele acabou indo parar em Penglai depois que ele morreu.
Diz a lenda que Li Bai se afogou ao tentar abraçar o reflexo da lua em
um rio enquanto estava bêbado em um barco.
— Mas se ele é taoísta e taoístas não gostam de imperadores, por
que nos ajudaria? — perguntou Zack.
— Porque ele viveu durante a era de ouro da China, mas viu o país
se desfazer em guerra em poucos anos. Ele não quer que algo assim
aconteça outra vez. E ele é da dinastia Tang, então Tang Taizong
poderá invocá-lo quando estivermos no bote salva-vidas.
— Bote salva-vidas? — perguntou de repente uma voz de mulher
atrás deles. — Eu não brincaria com um desses, crianças.
Eles pularam de susto. Tinham se acostumado a não serem
compreendidos quando conversavam em inglês.
Melissa reagiu mais rápido, apontando para os óculos inteligentes
e dizendo:
— Estávamos falando de um videogame, tia.
— Sério? Que tipo de videogame? A tia pode ver?
A mulher estendeu a mão em direção aos óculos inteligentes de
Zack.
— Afastem-se! — gritou de repente Qin Shi Huang pelos alto-
falantes. — Ela está possuída pela Senhora Meng Jiang!
Uma legenda apareceu. Zack a leu enquanto desviava da mulher.

SENHORA MENG JIANG


Viveu entre: ?-? a.C.
Protagonista de um dos Quatro Grandes Contos Populares da
China. O marido foi recrutado para construir uma muralha de
defesa, mas morreu durante o trabalho. Ela descobriu isso
quando foi lhe entregar roupas de inverno, então chorou
tanto que parte da muralha desmoronou, revelando os ossos
dele. A história se originou como um conto de Qi, um dos
Sete Reinos Combatentes, mas agora está associada a Qin
Shi Huang e à Grande Muralha devido a dois mil anos de
DIFAMAÇÃO IMPIEDOSA.

— Você nunca me terá como concubina, seu tirano vil e perverso!


A expressão da mulher se distorceu de fúria quando ela tentou
agarrar Zack outra vez. Seus olhos brilhavam em um tom de
vermelho. O garoto correu em direção à porta de vidro da sala de
karaokê.
— Eu juro, nunca vi essa mulher em toda a minha vida! Ela é
completamente fictícia! — insistiu Qin Shi Huang em meio ao som de
Simon e Melissa invocando suas armas espirituais.
Assim que as ergueram, a Senhora Meng Jiang gritou.
Ondas de som vigorosas atingiram Zack, ondulando como água no
ar, parecido com os poderes musicais de Gao Jianli. Entretanto, em
vez de impedi-lo de ouvir outros sons, a voz dela fez com seu corpo
perdesse toda a força. Zack tropeçou e cambaleou pelo deque até cair
sobre a mochila, repleta de roupas e carregadores. O frio
característico do poder de Qin Shi Huang abandonou seus membros.
A porta do karaokê estava a um palmo de distância, mas a mão de
Zack jazia sem vida na luz oscilante que se projetava através da
entrada, recusando-se a obedecê-lo. Sua cabeça pendeu para o lado,
bem a tempo de ver as armas de Simon e Melissa desaparecerem.
Eles pararam, confusos.
Então a porta se abriu, despejando uma torrente alta de música de
karaokê no deque. As pessoas botaram a cabeça para fora da sala,
murmurando entre si. A que estava com o microfone parou de cantar.
Um tripulante empurrou todos eles e correu até a Senhora Meng
Jiang, que ainda gritava, para questioná-la em mandarim moderno,
que Zack ainda não conseguia entender. O tripulante ergueu as mãos
como se estivesse se aproximando de um animal raivoso. Uma
tripulante se agachou ao lado de Zack, sacudindo seu ombro
enquanto também falava mandarim de maneira preocupada. A única
resposta que ele conseguiu dar foi um longo arquejo.
Os gritos da Senhora Meng Jiang cessaram. Ela tossiu roucamente.
— Crianças, vocês precisam se libertar desses tiranos! — exclamou
a mulher em chinês antigo, então Zack entendeu. — Eles estão
enganando vocês! Estão atrás do Selo Relíquia para que possam
ressuscitar o Exército de Terracota de Qin Shi Huang e dominar o
mundo novamente!
Memórias ressurgiram na mente de Zack. Um aposento de palácio
frio e escuro. Uma plataforma comprida sobre uma poça de sangue e
ossos. Uma voz angustiada, chamando por ele.
Não caia em suas mentiras, minha criança…
Se Zack já não estivesse paralisado pela magia da Senhora Meng
Jiang, teria ficado paralisado com aquilo. Tinha apenas uma vaga
consciência de estar sendo cutucado e sacudido pela tripulante.
Quando a Senhora Meng Jiang voltou a gritar, mais tripulantes deram
a volta ao redor de Zack para se aproximar dela. A mulher devia
parecer muito descontrolada para pessoas normais. O primeiro
tripulante mantinha as mãos erguidas enquanto tentava acalmá-la.
De olho nos reforços que se aproximavam, a Senhora Meng Jiang
agarrou o pulso do tripulante. Um segundo depois, os olhos dela se
reviraram e a mulher desmaiou.
Então o tripulante se virou para os espectadores e berrou com
ondas de som que se projetavam como se ele estivesse entoando um
grito de guerra. Seus colegas, que antes se apressavam, frearam
bruscamente. Os olhos dele emitiam um brilho amarelo — Simon
havia explicado para Zack que as cores dependiam do tipo de qi no
corpo do hospedeiro. Existia um sistema de elementos formado por
madeira, fogo, terra, metal e água, mas aparentemente ele não
precisava saber sobre isso.
Todos os espectadores soltaram berros aterrorizados, atropelando-
se para voltar à sala de karaokê. Para o imenso mérito da tripulante
que estava ao lado de Zack, ela tentou carregá-lo, erguendo-o por
baixo dos braços como se fosse um gato.
— Zack, nossa magia está sendo enfraquecida, e não conseguimos
chamar os imperadores! Precisamos ir até os botes salva-vidas! —
gritou Simon em meio à multidão histérica, enquanto Melissa e ele
corriam ao redor do hospedeiro da Senhora Meng Jiang em direção
ao garoto. — Zack?
— Parece que ele não consegue se mexer! — avisou Melissa, sua
respiração se acelerando de pavor.
Ela se agachou para arrastar Zack pelas pernas, e a tripulante
protestou quando ele foi tirado de suas mãos.
Melissa agarrou o rosto da mulher para encará-la nos olhos e
exigiu algo em mandarim. Ela acenou com o braço em direção às
escadas de metal que levavam aos deques abaixo.
Com um olhar atordoado, a mulher levantou Zack nos braços de
forma desajeitada, como se ele fosse uma noiva. Em seguida, ela se
dirigiu à escada.
— Ah, graças a Deus, ainda tenho magia o suficiente para lançar
charme! — comemorou Melissa, a respiração ofegante, correndo à
frente da mulher.
A tripulação ainda estava tentando lidar com o colega possuído
que não parava de gritar. Quando sua voz começou a falhar, ele
agarrou o braço de outro tripulante. Como se transmitisse um vírus, o
homem despencou no chão enquanto o novo hospedeiro uivou uma
onda de magia em direção ao grupo de Zack. Simon teve que ajudar
a tripulante a não deixar Zack cair enquanto desciam a escada em
espiral às pressas. Zack não era pesado, mas a mulher era pequena.
— Por que… não consigo… me mexer…? — perguntou Zack, com
a voz arrastada.
— Se eu tivesse que adivinhar… — berrou Simon por sobre os
uivos —… a magia lendária da Senhora Meng Jiang enfraquece
imperadores. Como ela é mais associada a Qin Shi Huang, está
atingindo você com mais força!
— Mas ela parece não ter nenhum ataque de dano real —
comentou Melissa, espiando por cima do ombro.
Os gritos da Senhora Meng Jiang ainda eram audíveis, mas ela não
tentava persegui-los escada abaixo.
Zack fez a pergunta seguinte com um nó na barriga:
— Os imperadores… estão mesmo tentando… dominar o
mundo… de novo?
— Ah, não ouça o que ela diz — respondeu Simon. — Lendas
como a dela são formadas a partir do ódio contra os imperadores,
então é claro que ela acredita que eles têm as piores intenções.
— Além disso — acrescentou Melissa —, se eles realmente
estivessem tentando governar de novo, não estariam trabalhando em
equipe. A China não pode ter três imperadores de uma só vez.
Aquelas explicações fizeram Zack se sentir um pouquinho melhor.
Não o suficiente para afastar por completo o nó em sua barriga, mas
se sentia melhor. Ele sempre podia contar com o egoísmo dos
imperadores.
No deque logo abaixo, curiosos saíam dos salões em bandos,
olhando com perplexidade escada acima, na direção dos gritos. Eles
se amontoaram ao redor do grupo de Zack, jorrando perguntas.
— Como nos livramos dessas pessoas? — gritou Melissa. — É
gente demais para eu fazer magia de charme!
— Diga a eles que tem um assassino à solta, e que estamos
levando Zack para a enfermaria! — sugeriu Simon.
— Aí eles com certeza vão querer sair do navio! Não podemos
deixar que corram para os botes salva-vidas. Eu vou só…
Melissa puxou a mochila para a frente do corpo e sacou o frasco de
caldo de Meng Po. Imitando os uivos da Senhora Meng Jiang, ela
borrifou a multidão como se atirasse balas.
As pessoas reagiram com um nível de desnorteamento que só era
possível quando se perdia as memórias da última hora. Não tinham a
menor ideia de como foram parar ali de repente. O pânico infectou a
multidão, que fugiu de Melissa em bando, seus passos trovejando
pelo deque.
— Roubou a estratégia da Senhora Meng Jiang de fazer as pessoas
surtarem — comentou Simon. — Maneiro!
— De nada.
Melissa se virou para pegar o frasco de spray de Simon da mochila
dele também.
A tripulante que carregava Zack despertou de sua confusão e falou
algo abruptamente. Melissa soltou o que parecia ser um xingamento
baixinho em mandarim, então olhou nos olhos da tripulante para
enfeitiçá-la de novo.
Funcionou. A mulher carregou Zack até o lance de escadas
seguinte com a ajuda de Simon.
— Este é o deque com os botes salva-vidas! — anunciou ele.
Havia menos gente ali. Retomando seu grito de guerra, Melissa
disparou pelo comprido deque de passeio, empunhando os dois
frascos de caldo como se fosse a Lara Croft com seu par de pistolas.
Ela borrifou em todas as pessoas ao redor, fazendo-as cambalear e
girar como se estivessem bêbadas.
Os botes salva-vidas estavam suspensos acima do deque. Assim
que chegaram debaixo do bote mais próximo, Melissa usou sua magia
de charme na tripulante para que ela entregasse Zack a Simon e
operasse o bote salva-vidas. Simon segurou Zack como se ele fosse
um daqueles travesseiros enormes com personagens de anime
estampados.
Melissa continuou borrifando em todos que se aproximavam
enquanto a tripulante girava a manivela do cordame do bote salva-
vidas para que ele descesse em dois guindastes de metal. Simon
arrastou Zack para dentro do bote. Melissa entrou de em seguida e
arrancou um punhado de pregos de metal grossos dos guindastes do
bote. Eles claramente haviam pesquisado de antemão como aqueles
mecanismos funcionavam.
O bote começou a arriar em direção ao mar através de grossos
arames. Antes que saísse de seu alcance, Melissa se ergueu e borrifou
a tripulante no rosto. A mulher cambaleou e saiu de vista.
Zack estava molenga no assento laranja neon, com os pensamentos
acelerados.
— E… a… Yaling? — conseguiu perguntar.
— Ela não ia vir com a gente até Penglai mesmo.
Simon se acomodou no assento do piloto do bote salva-vidas,
estudando os painéis e interruptores em torno do leme, como se
tentasse decifrar uma espaçonave alienígena.
O novo hospedeiro da Senhora Meng Jiang se debruçou sobre a
beira do deque, uivando noite adentro. As gaivotas, com seus
grasnados incessantes, se amontoaram no céu logo acima.
Melissa esticou a cabeça, alarmada, e perguntou:
— Ela tem poderes sobre os animais?
— Acho que não. — Simon franziu a testa. — A lenda dela não
envolve nada disso.
— Então…
Os pássaros se agruparam em uma revoada pálida e mergulharam
na direção do bote suspenso.
Simon e Melissa gritaram e pegaram os coletes salva-vidas de
debaixo dos assentos para se defenderem. Algumas gaivotas miraram
a cabeça de Zack, que não conseguia mover os braços para protegê-
la, então apenas soltou um berro ofegante quando picadas de dor
explodiram por seu couro cabelo graças à tempestade de penas, bicos
e garras. Melissa enxotou os pássaros usando um terceiro colete para
cobrir o rosto dele.
— Por favor, por favor, por favor! — entoou ela. — Voltem,
imperadores!
Depois de alguns segundos de caos, em que as gaivotas
continuaram atacando o colete salva-vidas sobre o rosto de Zack e
Melissa teve que ficar cobrindo-o novamente, luzes vermelhas e
brancas iluminaram a visão periférica de Zack.
— Finalmente! — urrou Wu Zetian. Àquela altura, Zack conseguia
identificar a diferença sutil entre o tom da imperatriz e o de Melissa.
— Cubram os olhos!
Zack apertou os olhos o máximo que conseguiu. Mesmo por baixo
do colete salva-vidas, um pouco de luz atingiu suas pálpebras quando
Wu Zetian disparou seu poder de granada de luz.
As gaivotas grasnaram ainda mais alto, batendo as asas
histericamente. Suas bicadas se amenizaram um pouco, mas não
pararam. A luz branca do chicote espiritual de Wu Zetian e a luz
vermelha das flechas de Tang Taizong se intensificaram enquanto os
dois tentavam afugentá-las.
O bote finalmente atingiu a água. Os arames se retraíram com um
som deslizante e então houve um zumbido estrondoso. Tang Taizong
devia ter ligado o motor.
Wu Zetian agarrou o pulso de Zack.
— São gaivotas demais, precisamos da sua magia de água para
irmos mais rápido! Já consegue se mexer?
— Não — resmungou Zack.
Ela soltou um grunhido frustrado, então enfiou os braços debaixo
do corpo dele e o lançou sobre a lateral do barco.
O choque da água fria foi tão intenso que Zack sentiu que havia
sido arremessado para dentro de uma fogueira. Seus sentidos, sua
mente e sua realidade foram paralisados. Seu corpo inteiro se agitou
com um grito que saiu como uma enxurrada de bolhas mudas. O
gosto de sal invadiu seu nariz e sua boca.
Com os membros inúteis e rígidos, ele afundou como uma pedra. A
água fazia pressão contra seus tímpanos, como um baixo grave vindo
de uma caixa de som. Somente uma luz azul muito fraca se infiltrava
pela superfície turbulenta do mar, bloqueada pelas sombras do bote
salva-vidas e do cruzeiro. A distância entre os dois se alargava
rapidamente. Vagamente, Zack viu uma chuva de respingos quando
as gaivotas tentaram mergulhar atrás dele, mas elas logo se
debateram para sair da água.
É assim que eu vou morrer?, pensou ele.
A pior parte era saber que, para onde quer que seu espírito fosse,
sua mãe não estaria lá para recebê-lo com um abraço. Em doze dias,
ela nem existiria mais, enquanto todas as outras pessoas podiam, ao
fim da vida, reunir-se com suas mães.
Ele seria o único menino sem mãe no além.
Não.
Não, não, não!
Zack não podia deixar aquilo acontecer.
Ele tomou consciência de que seus óculos inteligentes haviam sido
arrancados de seu rosto com o impacto e giravam acima dele em um
borrão. Graças a Jason Xuan, eram à prova d’água. Zack rezou para
ter força suficiente para alcançá-los.
Seus dedos se moveram num espasmo. Os óculos inteligentes se
acenderam com uma luz fantasmagórica. Esperança se apoderou
dele. Invocando toda a sua força, Zack bateu as pernas e se esticou
para cima. Era como chapinhar por concreto, mas ele não podia
falhar.
Não podia deixar que aquele fosse o fim.
Zack girou um braço e o levantou, os dedos enfrentando as
correntes de água. Sua mão se fechou ao redor dos óculos
inteligentes.
O rosto de Qin Shi Huang apareceu em sua mente. Seus olhos se
abriram em um clarão, mais intensos do que nunca.
Magia fria atravessou o corpo de Zack, mas não era nada
comparada ao oceano que o congelava até os ossos. Ele colocou os
óculos inteligentes. A água girou ao seu redor, borbulhando e
ganhando velocidade. Girando sem parar, formou um redemoinho
que o empurrou em direção à superfície.
No momento em que Zack irrompeu no ar, o maior fôlego que ele
já havia tomado preencheu seus pulmões. O ar esgarçou seu peito até
o limite.
Então ele soltou um grito como o urro de um dragão. O som se
sobrepôs ao grasnado das gaivotas e ao ruído da água que rodopiava
com a força de um furacão. Ventos uivantes estalavam ao longo da
água, úmidos como durante uma tempestade. Meridianos de qi preto
marcavam seus braços, e ele sabia que seus olhos também haviam
ficado completamente pretos. Devia estar com uma aparência
aterrorizante.
Ótimo.
A água que encharcava suas roupas se dissipou com um tremor,
deixando-o seco no olho do furacão. Zack sentia uma conexão com o
oceano inteiro, como se o mar estivesse pronto para obedecer às suas
ordens.
Nosso povo, da Casa de Ying, já foi o povo do Mar do Leste. Nós
surgimos destes litorais.
Wu Zetian e Tang Taizong o encaravam boquiabertos no bote
salva-vidas, esquecendo-se de bloquear o ataque das gaivotas.
— Você me jogou no mar! — rugiu Zack para Wu Zetian, enquanto
o redemoinho continuava a rodopiar em volta de suas pernas.
Ela recuperou o foco, agitando o chicote espiritual contra as
gaivotas outra vez.
— Tinha um bando maior de gaivotas vindo, garoto! Elas teriam
dilacerado você!
— Não é hora de ficarem se bicando! Precisamos fugir! —
interveio Tang Taizong.
Ele atirou três flechas espirituais uma atrás da outra, atingindo três
pássaros diferentes, que despencaram no mar. Então se retraiu pela
dor do recuo com que as flechas o puniam.
Zack percebeu abruptamente que os corpos de Simon e Melissa
estavam cobertos de arranhões e marcas de bicadas que sangravam.
Suas roupas estavam rasgadas. O coração dele amoleceu, assim como
a água da tempestade que controlava. Ele se impulsionou e pousou
no bote, balançando a embarcação. Os imperadores soltaram
gritinhos quando respingos salgados os atingiram e, em seguida, Zack
varreu o excesso de água com um movimento de abrir cortinas.
O cruzeiro havia seguido viagem adiante, deixando uma espumosa
trilha em formato de V na água escura. Zack não queria chamar
atenção indo atrás dele. A última coisa de que precisava era aparecer
em um vídeo viral. Encarando a popa, desejou que o próprio mar
levasse o bote para longe em uma diagonal, jogando as mãos para
trás e para a frente várias vezes. Levou alguns segundos para pegar o
jeito, mas então o bote deu uma guinada para a frente com um jato
veloz de água. O vento noturno corria por seu cabelo. Zack manteve
uma das mãos aberta na frente do corpo enquanto repetia o gesto de
pedalar com a outra.
Eles logo avançavam rápido demais para que as gaivotas os
alcançassem. Tang Taizong e Wu Zetian desabaram em seus assentos
na frente de Zack, grunhindo.
— Ugh… — Qin Shi Huang apareceu ao lado deles, apertando a
cabeça virtual. — Eu juro que Meng Jiang fica mais forte a cada
século que passa. Como ela consegue controlar pássaros agora?
— Não é ela quem os está controlando — explicou Tang Taizong.
— Não consegue sentir? Eles estão possuídos pelos espíritos dos
trabalhadores que morreram construindo a Grande Muralha.
Qin Shi Huang ergueu o rosto, como se tentasse ouvir algo, então
sua expressão se fechou.
— Ah, não. É o enredo de A Múmia: Tumba do Imperador Dragão,
mas com gaivotas em vez de cadáveres ressuscitados!
— Você assistiu mesmo a esse filme? — perguntou Wu Zetian,
olhando feio para ele.
— Assisti a todos os filmes sobre mim — disse Qin Shi Huang,
jogando uma mão para cima, como se falasse o óbvio.
Tang Taizong revirou os olhos para Wu Zetian.
— Típico.
— Típico — concordou ela, fazendo o mesmo.
Qin Shi Huang ergueu a palma das mãos para os outros dois
imperadores.
— Falem comigo quando vocês tiverem grandes produções de
Hollywood inspiradas em suas vidas.
— Você não perdeu naquele filme? — comentou Wu Zetian na
mesma hora.
— Fui interpretado pelo Jet Li. Valeu a pena.
— Enfim, não quero falar com você! — Wu Zetian se virou,
abraçando a si mesma. — Você é o único responsável pelo ataque
daqueles espíritos! Taizong e eu não fomos tiranos, e não nos
envolvemos com a Grande Muralha. O povo foi feliz sob meu reinado.
Eu trabalhei duro para garantir isso: nem o historiador mais machista
pode negar esse fato!
— Pelo menos eles não podem nos perseguir aqui. — Tang Taizong
encarou as águas que tinham percorrido. — Os espíritos não devem
ser capazes de se afastar muito da Grande Muralha.
— Hã… — pronunciou-se Zack. — Para qual direção nós
deveríamos estar seguindo?
Seus braços estavam começando a doer, então ele se sentou e
tentou manter a velocidade fazendo movimentos menores.
— Certo. — Tang Taizong escolheu uma carta em seu catálogo de
subordinados. — Pelo comando de seu imperador… Erga-se, poeta
lendário, Li Bai!
O vento soprou mais forte, e uma luz se derramou do peito de
Tang Taizong. Em floreios caprichosos, parecendo aquarela vermelha,
um homem rodopiou para fora de seu corpo. O poeta vestia uma
túnica esvoaçante com muitas dobras e saiu afagando a longa barba.
Uma espada pendia de um cinto frouxo ao redor de sua cintura.

LI BAI
“O Sábio da Poesia”
Viveu entre: 701-762 d.C.
O poeta mais distinto da história chinesa. Viajou por toda a
China durante o auge da dinastia Tang, deixando milhares de
poemas que poderiam “fazer fantasmas e deuses chorarem”
(conforme testemunho do também poeta Du Fu). Famoso por
estar quase sempre bêbado e amar a lua um pouco demais.

— Vossas Majestades — cumprimentou Li Bai de maneira


arrastada.
O poeta levou o punho a uma palma aberta em um tipo de
saudação chinesa tradicional.
— É hora de nos mostrar o caminho, Xiānsheng — disse Tang
Taizong, com um aceno de cabeça agradecido.
Xiānsheng: título respeitoso equivalente a “senhor”, explicaram os
óculos de Zack.
— Por… — Li Bai girou o dedo antes de apontar firmemente. —
Por ali.
Zack tinha certo receio de que Li Bai estivesse dando direções
enquanto estava espiritualmente bêbado, mas o garoto não tinha
escolha a não ser ajustar a trajetória do bote. Ilha mística, lá iam eles.
Se os deuses quisessem.
12
Como poetas lendários saem no soco

Zack não sabia há quanto tempo estava navegando, mas aperfeiçoou o


movimento de impulsionar o bote com pequenos acenos da mão. Ele
tentou controlar o bote apenas com a mente, mas isso o deixou tonto
muito rápido.
Sua barra de qi se aproximava do fim. Quando atingiu o último
terço, ele foi perguntar a Li Bai qual distância ainda teriam que
percorrer.
Mas então algo cintilante apareceu no horizonte, como se a água
tivesse luz própria.
Os imperadores se atentaram com um movimento brusco.
— É aquilo ali? — perguntou Zack, procurando por uma ilha.
— Não, mas devemos estar perto — respondeu Qin Shi Huang,
seus olhos se animando de uma maneira quase maníaca. — Esta área
possui tanta magia lendária que alguns espíritos conseguem agrupar
seu qi na atmosfera e tomar forma sem um hospedeiro mortal.
— O que significa que teremos que lutar para chegar lá —
acrescentou Wu Zetian, abrindo o zíper da mochila de Zack. Ela
pegou os óculos de mergulho e os ajustou sobre os óculos inteligentes
dele. — Você não pode se dar ao luxo de perder este aparelho.
Aquilo era verdade, então Zack engoliu a reclamação sobre como
os óculos de mergulho eram pesados e desconfortáveis. Wu Zetian
também tirou a mochila das costas dele e afivelou um colete salva-
vidas em Zack antes de colocá-la de volta no lugar, “só para garantir”.
O colete não servia perfeitamente, mas a mochila tinha uma alça na
cintura que se afivelava na parte da frente, então ficava firme ao
redor do corpo. Ele se sentia igual a uma tartaruga. Wu Zetian fez o
mesmo consigo mesma e com Tang Taizong.
A distância entre o bote e a coisa cintilante se encurtou
rapidamente. Nuvens pretas pairavam sobre ele, escondendo a lua e
as estrelas, dando a impressão de que o mar e o céu haviam trocado
de lugar. Ao se aproximarem, ficou evidente que o brilho não vinha
da água, e sim de uma procissão de criaturas dentro do oceano.
Não, não eram meras criaturas. Pareciam humanoides, como se
fossem…
— Aquilo são sereias?
Zack inconscientemente diminuiu a velocidade do bote ao se
aproximar delas. As sereias se viraram para encará-lo. Seus cabelos
fluíam como tinta na água, e seus rostos incandescentes eram
distorcidos pelas ondas. Porém, em vez de uma única cauda coberta
de escamas, elas tinham dois membros macios cobertos de pelos
curtos e iridescentes.

JIAOREN
O equivalente chinês das sereias. Podem ser encontradas
tecendo seda de dragão à prova d’água em noites tranquilas,
se a lua e as estrelas estiverem à vista e o mar, calmo. Suas
lágrimas podem se transformar em pérolas. Sua gordura
pode queimar em lamparinas por milhares de anos, e foi mais
celebremente usada por Qin Shi Huang para iluminar seu
mausoléu.

Um sentimento horrível tomou conta de Zack. Quando ele notou a


fúria no olhar delas, era tarde demais.
— Hã, você fez lâmpadas com elas? — acusou Zack, virando-se
para Qin Shi Huang.
— Só acelere! — Qin Shi Huang acenou os braços. — Vai, vai, vai!
Zack voltou a acelerar o bote para a velocidade máxima. Porém, no
momento em que passou sobre as sereias, elas ergueram os braços
luminosos para fora da água. Seus dedos agarraram, arranharam e
seguraram as laterais do bote, sacudindo-o. Zack conteve um grito.
Wu Zetian invocou o chicote espiritual e açoitou as mãos das
sereias. Tang Taizong também tentou empurrá-las para longe, mas o
esforço de sustentar Li Bai o impedia de fazer muita coisa.
— Xiānsheng, você pode ajudar? — pediu ele, com os meridianos
vermelhos fervendo sob a pele.
— Eu hei de tentar, Vossa Majestade! — respondeu Li Bai.
O poeta esmurrou os dedos de uma sereia que escalava o bote.
— Com sua espada! — gritou Tang Taizong, apontando para a
bainha na cintura de Li Bai.
— Ah!
Li Bai pareceu surpreso ao ver a espada ali. Ele a puxou com um
lampejo vermelho, o que teria sido bem legal se ele não tivesse
cambaleado para a frente.
— Por favor, não me diga que se esqueceu de ter sido um dos
maiores espadachins de nossa dinastia! — implorou Tang Taizong,
com pânico na voz.
— Mil perdões, Vossa Majestade. — Bêbado, Li Bai golpeava as
sereias. — Penglai não é um lugar de conflito. Não empunho uma
arma há mais de mil anos.
Wu Zetian encarava Qin Shi Huang com raiva enquanto brandia o
chicote. Seu rabo de cavalo voava por cima do ombro, roçando no
colete salva-vidas neon e brilhante.
— Por que raios você queria boa iluminação em sua tumba? É uma
tumba!
— Sim, sua prioridade não deveria ter sido impedir que ladrões de
túmulos a encontrassem? — comentou Tang Taizong, oscilando da
esquerda para a direita para compensar o balanço do bote.
Qin Shi Huang jogou as mãos para o alto.
— Tudo bem, eu admito, as lâmpadas de sereia foram pura
vaidade! Uma decisão terrível e desnecessária, agora que parei para
refletir!
— Metade de suas decisões em vida foram terríveis e
desnecessárias! — repreendeu Wu Zetian, o rosto iluminado de baixo
pelo brilho iridescente das sereias.
— Eu sei, e essa não é nem de longe a pior coisa que já fiz! Não sei
por que estamos sendo punidos por isso!
— Ugh, só cale a boca!
Sua testa reluzia de suor enquanto Wu Zetian atacava as sereias no
que parecia uma versão de filme de terror do jogo acerte-a-toupeira.
Elas se amontoavam e se contorciam ao redor do bote como
sardinhas gigantes, e estavam agrupadas tão densamente que Zack
sentia calafrios. Cada vez que uma se despedaçava em pó espiritual
sob os golpes de chicote de Wu Zetian, outra tomava seu lugar.
— Garoto, afunde-as! — ordenou Qin Shi Huang.
— Hã…
Zack estendeu os braços e os retraiu em seguida, desejando que a
água cobrisse as sereias. O mar as empurrou para baixo, mas o bote
também foi atingido, despencando entre duas ondas que se
ergueram. Todos gritaram quando a água jorrou sobre as laterais do
bote. Zack se apressou em retirá-la, mas isso permitiu que as sereias
voltassem, emergindo das profundezas como uma centena de
cometas.
— Deixa pra lá! — gritou Qin Shi Huang. — Esqueça isso!
— Xiānsheng, você já consegue transferir a fonte de seu qi para as
ilhas? — perguntou Tang Taizong.
— Quase, Vossa Majestade! — respondeu Li Bai, entre golpes e
investidas da espada desajeitados. Ele fechou os olhos. — Consigo
senti-la… estamos quase lá… pronto!
Tal qual um CGI completamente renderizado, sua forma passou do
vermelho espiritual para uma imagem muito realista, embora ainda
brilhasse como as sereias. Tang Taizong soltou um enorme suspiro de
alívio, e seus meridianos com aparência de lava se apagaram. Mas
sua expressão logo voltou a ficar tensa. Ele invocou o arco e atirou
em várias sereias consecutivamente.
Bem naquele momento, outra onda de luz se aproximou de um dos
lados.
— Mais sereias? — perguntou Zack, a voz aguda.
— Não… — Wu Zetian semicerrou os olhos enquanto se atracava
com uma sereia que havia conseguido escalar a lateral do bote,
lançando-a de volta no mar. — São… são barcos-dragão!
Enquanto ela dizia aquilo, Zack percebeu que as novas aparições
brilhantes estavam sobre a água, não debaixo dela. Uma frota de
barcos radiantes com cabeças de dragão na proa acelerava na direção
deles, com compridas fileiras de espíritos remando. Bandeiras
tremulavam sobre as embarcações.
— Mais rápido, mais rápido! — Qin Shi Huang se virou para Zack.
— Se são barcos-dragão, então Qu Yuan deve estar na liderança!

QU YUAN
“O Poeta Patriota”
Viveu entre: 339-278 a.C.
O poeta mais famoso dos Reinos Combatentes. É renomado
pelo amor patriota à sua terra natal, Chu. Atirou-se no rio
Miluo quando o exército de Qin avançou sobre a capital de
Chu e tomou metade de suas terras. Diz a lenda que os
aldeões nas proximidades correram em barcos-dragão para
tentar encontrar seu corpo. Quando não conseguiram,
jogaram zòngzi no rio para impedir que peixes o comessem.
Essa é uma possível origem do Festival do Barco-Dragão, que
acontece todos os anos no quinto dia do quinto mês lunar.

— Ah, aquele festival!


Zack o reconhecia. Sempre que a data se aproximava, a mãe
comprava ou fazia zòngzi, pirâmides de arroz cozidas dentro de
folhas aromáticas compridas. Ela também o levara para a corrida
anual de barco-dragão em Nova York algumas vezes. Era um grande
festival, e seu possível criador era um dos haters de Qin Shi Huang?
— Quantos inimigos famosos você tem? — gritou Zack enquanto a
frota os perseguia em diagonal.
— Esse aí não é culpa minha, na verdade! Ele viveu durante a
época de meu bisavô!
— Só que você destruiu seu amado reino de Chu de uma vez por
todas, então ele deve estar mais bravo com você do que com seu
bisavô! — retrucou Wu Zetian.
— Lamento que tenhamos acabado em lados opostos — comentou
Li Bai. Ele tinha uma expressão excêntrica nos olhos, apesar de estar
apunhalando sereia após sereia. — Eu admiro sua poesia e me
identifico bastante com o sentimento de ter os próprios talentos
sufocados por intrigas políticas.
— Ele escreveu alguns poemas, pulou num rio e conseguiu o
próprio feriado — zombou Qin Shi Huang. — Eu criei este país. Cadê
o meu feriado?
— Você teria um se não fosse um megalomaníaco que aterrorizou
cada pessoa que conheceu e fez lamparinas com sereias inocentes! —
bradou Tang Taizong.
Então seus olhos vermelhos ardentes se voltaram para Zack,
fazendo o garoto se encolher. Por mais que fosse calmo normalmente,
Tang Taizong era muito assustador quando estava bravo.
— Você sabe o que as pessoas fizeram quando ele morreu? Seus
confidentes mais próximos imediatamente descumpriram seu último
testamento ao encobrir sua morte e falsificar uma ordem de execução
para seu filho mais velho, para que pudessem tornar o filho mais
novo um imperador fantoche! Então levaram seu corpo para a capital
ao lado de um barril de peixes para mascarar o cheiro podre!
Qin Shi Huang soltou um ruído ofendido.
— Você precisava mencionar isso justo agora? Justo agora?
— Desculpe, mas estou mais do que um pouco irritado com você!
— Pois é, por que todos os seus inimigos têm que ser tão lendários
e famosos? — reclamou Wu Zetian.
— Meng Jiang é fictícia! — insistiu Qin Shi Huang. — Qu Yuan
nem viveu na minha época!
— Mas as lendas deles não seriam tão poderosas se você não
tivesse sido tão… — Tang Taizong olhou para Zack. — Tão idiota!
— Será que vocês poderiam focar em resolver isso aqui? —
gaguejou Qin Shi Huang. — Eles estão se aproximando!
O caractere chinês nas bandeiras tremulantes da frota enfim se
revelou ser Chu. Wu Zetian e Tang Taizong prepararam suas armas.
Identificado por sua legenda, Qu Yuan estava de pé na dianteira do
barco no centro da frota, com o olhar penetrante, a túnica se
agitando ao vento. Era meio parecido com Li Bai, mas sua túnica
tinha uma gola cruzada em vez de redonda e seu coque era menos
bagunçado e enfeitado por um chapéu alto, como se fosse uma
antena comprida.
— O mundo está imundo, e eu sou o único puro! — enunciou Qu
Yuan em chinês antigo, a voz atravessando o estrondo das ondas. —
Todos estão bêbados, e eu sou o único sóbrio!
Antes que Zack pudesse perguntar se aquele poema era tão
exageradamente dramático quanto lhe pareceu, uma crise de tontura
o atingiu, tão intensa que ele caiu e perdeu o controle da água do
mar. O bote salva-vidas parou de andar com um borbulho.
— Não! — gritou Wu Zetian.
Ela também cambaleou, mas se jogou sobre o assento do piloto
para religar o motor normal do barco.
— Garoto, controle-se! — ordenou Qin Shi Huang, flutuando para
perto de Zack.
— Desculpa, eu…
Zack sentiu o estômago se revirar como as ondas agitadas. Ele
cobriu a boca com a mão. Era assim que devia ser estar bêbado. Se já
não tivesse que evitar álcool porque não era halal, a sensação teria
bastado para fazer Zack evitá-lo pelo resto da vida.
Com os pés oscilando, Tang Taizong mirou em Qu Yuan. A flecha
vermelha atravessou seu peito, mas Qu Yuan continuou recitando seu
poema dramático sem pestanejar.
Com Wu Zetian ocupada na proa, as sereias rastejavam para
dentro do barco e seu peso o fazia afundar cada vez mais. Li Bai as
enfrentava com a espada. Parecia ser o único que não era afetado
pela tontura. Rindo, ele recitou o que deveria ser a própria poesia,
embora fosse tão diferente do chinês da dinastia Qin que Zack
precisou de legendas.
Um banquete com comida e música boa não é tão satisfatório. Desejo
apenas continuar bêbado e nunca ficar sóbrio!
A náusea de Zack passou.
— É isso aí! — exclamou Tang Taizong, firmando os pés e atirando
as flechas com maior precisão. — Continue. Seus poemas nos deixam
bêbados de um jeito bom, ao invés de um jeito ruim!
Bizarramente, Zack se perguntou se o feitiço ia contra as tradições
islâmicas, se era haram. Ele ainda não entendia qual era a graça
daquela sensação de bebedeira, mas a melhora lhe deu foco para
comandar o mar novamente. Ele agitou o barco para cima e para
baixo para fazer as sereias caírem de volta no mar, então retomou a
velocidade máxima.
Pena que era tarde demais.
A frota os estava alcançando. Zack tentou lançar uma onda
enorme para afogá-los, mas os barcos avançaram direto pela parede
de água enquanto o bote salva-vidas acabou perdendo velocidade.
Era muito injusto que as leis da física fossem diferentes para
espíritos.
Sem parar de recitar seus poemas, Qu Yuan retirou um objeto das
largas mangas e o jogou no bote salva-vidas como se fosse uma bola
de beisebol. O item brilhante sobrevoou o mar e atingiu o bote com
um baque, amassando-o. Então quicou para perto das sandálias de
Zack, parecendo uma trouxinha triangular envolta por folhas
compridas.
Tang Taizong soltou o ar, ofendido.
— Ele está jogando zòngzi em nós!
— Que grosseria! — criticou Wu Zetian, deixando o leme para
açoitar as sereias outra vez.
Outro zòngzi atingiu o bote como um meteorito, formando uma
cratera.
— E eles causam muito dano! — Tang Taizong parecia prestes a
perder a cabeça. — Se ele destruir o bote, é o nosso fim! Zetian, você
tem que orar para Mazu!
Wu Zetian interrompeu os açoites, indignada.
— O quê?
— Você sabe, a deusa do mar!
— Eu sei quem ela é! Estou é horrorizada que tenha sugerido que
eu ore para ela!
— Você é a única imperatriz em nossa história, qualquer deusa
estaria disposta a atender suas orações! Nós dois estamos sendo
atacados injustamente. Nunca fomos tiranos!
— Você acha que ela me ouviria só porque sou mulher?
— Você não é uma mulher qualquer!
Houve um instante de silêncio na batalha de poesia.
Wu Zetian encarou Tang Taizong, chocada. Então balançou a
cabeça.
— Nós nos tornamos lendas por nosso próprio mérito, não vamos
nos curvar para ninguém. Vamos passar por isso usando nossa própria
força!
Encabulado, Tang Taizong olhou para Zack.
— Garoto, consegue fazer com que avancemos mais rápido?
— Estou tentando! — rebateu Zack. — Você acha que não estou
tentando?
— Você precisa de um empurrãozinho em seu poder.
Tang Taizong franziu o cenho, pensativo, enquanto atirava flechas
instintivamente. Então sua atenção se voltou para Li Bai.
— Xiānsheng, teste uma coisa para mim! Encoste no garoto e recite
aquele poema que você escreveu sobre Qin Shi Huang!
— Qual deles? — perguntou Li Bai, interrompendo seu recital, mas
ainda manejando a espada.
— Você sabe, aquele que todo mundo cita! “O rei de Qin devasta
os seis reinos!”
— Ah! Certo. — Li Bai cambaleou para trás de Zack e colocou a
mão em suas costas. — O rei de Qin devasta os seis reinos; como seu
olhar de tigre é vigoroso! Um golpe de sua espada parte as nuvens;
todos os senhores e nobres vêm para o oeste para se curvar!
Um calor atravessou o corpo de Zack. Ele ofegou. Sua barra de qi
subiu, saindo do nível crítico, mas o refil era branco em vez de preto.
— Está funcionando! — exclamou Tang Taizong, mas suas palavras
saíram arrastadas conforme a magia do poema de Qu Yuan voltava a
fazer efeito. — Não pare!
Li Bai continuou recitando:
— Sua determinação é como que concedida pelos céus; sua
ambição governa todos os heróis e talentos! Ele providenciou armas
do mundo todo para produzir seus Gigantes de Bronze; ele abriu a
Passagem de Hangu para o leste. Sobre o monte Kuaiji esculpiu seus
feitos; sobre o Pavilhão de Langya contemplou o mar.
Zack não conseguia acreditar nas legendas que lia. Estava tão
acostumado a todos odiarem Qin Shi Huang que ficou chocado por Li
Bai ter escrito um poema épico sobre ele. Os meridianos pretos de
Zack ficaram cada vez mais pálidos, e o fluxo da magia em seu corpo
se tornou quente de uma maneira quase desconfortável.
— Setecentos mil trabalhadores ele convocou, para tornar o monte
Li um apropriado mausoléu. Muito tempo ele esperou pelo Elixir da
Imortalidade; tão perdido estava que seu coração sucumbiu à
melancolia.
Deixa pra lá. Agora sim.
— Com uma balestra ele atirou nas criaturas do oceano, as baleias
tão grandes quanto montanhas. Suas cabeças como os Cinco Picos
Sábios, seus espiráculos cuspindo nuvens e trovões. Com suas
barbatanas tão largas quanto o céu, como poderia ele ver Penglai?
Zack berrou quando a magia se tornou escaldante.
— Para! — gritou o garoto. — Para com isso! Tá doendo! Tem algo
errado!
— Não, é assim mesmo que tem que ser — interveio Qin Shi
Huang, que também estremecia. — Não dá para falar sobre mim sem
mencionar as partes ruins. Elas são tão vitais para minha lenda
quanto as conquistas.
— Estou falando da magia! Está me queimando!
— Não me surpreende. Você tem um pedaço de meu espírito,
então é fundamentalmente incompatível com o qi carregado por
magia taoísta.
— O quê? Então como você pôde…?
As palavras de Zack se deformaram em um grito quando a dor se
tornou aguda demais para suportar.
— Xu Fu escapou com as garotas de Qin; quando será que o barco
voltará? Veja como, sob as três fontes do monte Li, um caixão de ouro
sepulta apenas um corpo frio.
A barra de qi de Zack atingiu o nível máximo. Seus meridianos se
tornaram completamente brancos, queimando como prata derretida
em suas veias.
Seu grito pareceu ecoar por todo o oceano tumultuoso. Raios se
formaram nas nuvens pretas, iluminando as ondas que se elevavam.
Sua consciência sobre o mar se expandiu e se aguçou. Era como se
Zack pudesse sentir cada molécula de água.
Mas o preço daquele poder era alto. Extremamente alto. Zack só
queria que aquela magia saísse de seu corpo. Soltando gritinhos como
se estivesse sendo queimado vivo, ele avançou para a popa do bote
salva-vidas, encarando a frota de Chu diretamente.
Qu Yuan apontou para ele.
— Não vai se safar dessa, ti…
— Tirano? É só isso que sabe dizer? — urrou Zack, erguendo os
braços como se levantasse dois pedregulhos enormes. Dessa vez, as
ondas que se ergueram sob seu comando eram de um branco
incandescente. — Melhor do que ser um fracassado que só é
lembrado por pena!
Duas tsunamis se avolumaram de cada lado da frota. Os espíritos
nos barcos olharam em volta, apavorados.
Zack bateu a palma das mãos. Trovões ecoaram entre o mar e o
céu. As ondas radiantes engoliram a frota. Gritos fantasmas cessaram
sob o rugido da água, que empurrou o bote salva-vidas para a frente.
O impulso também empurrou as sereias, mas suas mãos se
desvencilharam do bote. Mais um lampejo de raios se refletiu em seus
olhos arregalados e aterrorizados.
Zack sentia dor demais para se importar.
— Parem de se meter em nosso caminho, ou vou fazer lamparinas
com todas vocês!
Um trovão abalou o ar novamente. Amedrontadas, as sereias
olharam para Zack uma última vez antes de dispararem para as
profundezas do mar até sua incandescência desaparecer.
Assim que as ondas se tornaram escuras como breu e Zack pensou
que poderia enfim se livrar da magia ardente, algo atingiu a parte de
baixo do bote salva-vidas.
Todos se viraram em direção ao som. O baque soou de novo, desta
vez arrebentando o casco do bote. Um zòngzi pulou para fora do
buraco. Outro atingiu sua borda, tornando o dano ainda maior. Então
o rosto brilhante de Qu Yuan se enfiou pelo buraco.
— Glória ao reino de Chu — anunciou ele, com os olhos
arregalados.
Então seu rosto submergiu e sua risada ecoou. A água entrava pelo
buraco, alagando o bote. Zack movimentou as mãos para baixo a fim
de expulsá-la, mas era como se estivesse tentando conter o oceano
inteiro.
Wu Zetian jogou um colete salva-vidas sobressalente em cima do
buraco e o pressionou para baixo.
— Garoto, não pare!
— E-eu…
Estrelas pipocaram nos olhos de Zack por conta do esforço. Seu
corpo ardia de forma agonizante.
— Você está indo bem! — Tang Taizong ajudou a pressionar o
colete salva-vidas. — Não pare! Nós vamos conseguir chegar lá!
Raios relampejaram de novo. As ondas se levantaram com uma
ferocidade renovada — e não foi pela vontade de Zack. Uma luz
enorme foi crescendo na água perto do bote, que se erguia com a
altura de uma colina.
— O quê…? — perguntou Tang Taizong, olhando para o lado.
Uma baleia espiritual gigante emergiu. Suas barbatanas brilhantes
se estenderam em direção às nuvens pretas, quase bloqueando o céu.
A água do mar se derramou como uma forte chuva.
Wu Zetian se sentou sobre os joelhos, abrindo os braços para os
céus.
— Ó, Mazu, deusa do mar. Por favor, escutai a súplica de sua
humilde serva! Conceda-nos passagem segura para Peng…
A baleia mergulhou de volta no mar. Uma onda enorme quebrou
em todas as direções. Zack correu para se proteger dela, mas perdeu
o controle do bote salva-vidas no processo.
Os outros gritaram quando a parede de água despencou sobre eles.
Zack perdeu o equilíbrio. A água, fria como gelo, atingiu seu corpo e
o puxou para baixo, embora estivesse usando o colete salva-vidas.
— Resista! — berrou Qin Shi Huang através dos óculos
inteligentes. — Resista, garoto, resista!
Mas era coisa demais. Tudo aquilo. Era demais. Zack não
aguentava mais.
Então ele se deixou levar, e a escuridão o envolveu.
13
Como usar a técnica de Bom Menino, Mau Imperador por
conta própria

Zack estava no aposento de palácio frio e escuro outra vez, de pé na


plataforma comprida sobre a poça.
— Veja quem ele é de verdade, minha criança… — sussurrou uma
voz familiar e fantasmagórica perto de sua orelha. — Não se esqueça
outra vez… lembre-se disso… por favor, lembre-se disso…
Zack observou a figura envolta por sombras no trono de bronze à
frente, tremendo com um medo súbito. Mas sua boca se abriu por
conta própria, e palavras que não eram suas saíram com dificuldade
— Pai. Todas as terras sob os céus só foram pacificadas
recentemente, e o povo das fronteiras distantes ainda tem que se
render por completo. Os sábios desejam apenas estudar e seguir os
ensinamentos de Confúcio, mas Vossa Majestade os pune com leis
severas. Temo que o império possa ser abalado por causa disso.
— Insolência! — gritou o vulto no trono, sua voz grave ressoando
pelo aposento. — Como se atreve a me dizer como governar meu
império? Eu hei de mandá-lo para as Terras do Norte!
Zack sentiu o próprio corpo cair de joelhos na plataforma.
— Pai, estou apenas tentando zelar pelo…
O vulto se pôs de pé. A cortina de contas de seu chapéu
chacoalhou. Com um passo ecoante após o outro, ele desceu do
estrado e atravessou a plataforma até chegar tão perto que o próprio
ar gélido sentia medo. Seu olhar escuro e penetrante por detrás do
chapéu de contas parecia o de um animal enjaulado.
— Você me decepciona, Fusu — sibilou ele, com a voz tão sombria
quanto fumaça.

Zack acordou com uma voz baixa cantando perto de seu ouvido,
gentil como uma canção de ninar.
— Há árvores fúsū nas montanhas; há flores de lótus na lagoa…
Fusu?
Aquela informação era importante. Zack tinha que se lembrar
daquilo, perguntar sobre aquilo. Era…
Sua linha de raciocínio perdeu o rumo quando seus olhos se
abriram, revelando um teto inclinado de pedra branca cintilante
grosseiramente esculpida. Ele estava em uma caverna. O cheiro
salgado do mar fez cócegas em seu nariz. Zack se viu em uma cama
branca com lençóis brancos tão finos que pareciam terem sido tecidos
a partir de nuvens. Mas a sensação não era boa, porque havia
dormido com as roupas que usara o dia inteiro, a mochila e o colete
salva-vidas. Suas costas, arqueadas de maneira anormal, ardiam com
o desconforto. E pior: seus óculos inteligentes e os de mergulho
também não haviam sido retirados. Ao virar o pescoço, Zack
estremeceu com a maneira como os aparelhos apertavam sua cabeça
e seu rosto.
— Há pinheiros na montanha; há lírios na lagoa…
Para a surpresa de Zack, era Qin Shi Huang quem estava cantando.
Se bem que isso deveria ter sido óbvio, já que a voz vinha dos alto-
falantes dos óculos inteligentes. Só que era mais suave do que Zack
jamais a havia escutado antes. A forma virtual de Qin Shi Huang
estava sentada de pernas cruzadas na frente de uma série de grades,
encarando a luz brilhante do lado de fora.
Espera aí, grades?
Eles estavam em uma cela?
Zack se sentou de um salto na cama, então estremeceu por causa
de uma dor aguda que se espalhou pelo corpo.
A canção de Qin Shi Huang foi interrompida. Ele se virou para
Zack, e a parte de baixo de sua forma virtual avançou, borrada como
fumaça, sobre o chão branco cintilante da caverna.
— Finalmente, você acordou!
— Onde estamos? — perguntou Zack, com a voz fraca e rouca.
Seu crânio parecia estar cheio de água do mar. Ele apalpou os
óculos de mergulho para retirá-los do rosto. Um círculo em volta de
sua cabeça latejou com alívio instantâneo, embora ele tenha soltado
um ruído de horror ao tocar as marcas deixadas em sua testa e
bochechas.
— Fomos arrastados pelo mar até Penglai. Os imortais ficaram bem
irritados quando nos encontraram, mas os demais os convenceram a
deixar você se recuperar antes de decidir o que fazer conosco. Você
não estava em condições de ser mandado embora. Usar a magia da
ilha causou danos severos aos seus meridianos. Você passou três dias
inconsciente.
— Três… — Zack se levantou de novo, mas gemeu de dor e caiu
para trás na cama. — Isso significa que nós só temos mais nove dias?
— Pois é. Teremos que apressar o restante de nosso plano.
Zack sentiu terror ao pensar que o demônio havia chegado ainda
mais perto de consumir sua mãe enquanto ele estava desmaiado.
— O que a gente faz agora? Onde estão Simon e Melissa?
— Não sei ao certo para onde os imortais os levaram, e não pude
perguntar com você inconsciente, embora tenha havido discussões
sobre nos submeter a um julgamento com os Oito Imortais, os líderes
não oficiais de Penglai. Se tivermos sorte, poderemos aproveitar para
requisitar as pílulas de imortalidade.
— Quando o julgamento vai acontecer?
Zack grunhiu devido às inúmeras dores no corpo. Com muito
esforço, ele se desvencilhou da mochila e do colete salva-vidas e os
jogou ao lado da cama. Torcia para que Simon e Melissa estivessem
bem. Pelo menos nenhum deles havia se afogado.
— Assim que nossos carcereiros vierem lhe dar remédio de novo e
perceberem que você está acordado. Eles têm vindo diariamente,
quando o sol chega aqui.
Qin Shi Huang cutucou um lugar no piso da caverna.
O chão inteiro estava coberto de sombras, então Zack não tinha
ideia de quanto tempo isso ia levar. Ansioso, o garoto desabou de
novo, a cabeça caindo com um baque no travesseiro. Ele parecia estar
recheado com arroz, o que o fez perceber que sentia muita fome. Seu
estômago estava vazio.
Uma nova onda de dor latejante tomou seu corpo. Ele não
conseguia acreditar nas coisas pelas quais tinha passado. No que
tinha feito, controlado o oceano daquele jeito.
— Eu deveria estar preocupado com o fato de que usar magia de
luz vai me fazer queimar? — perguntou Zack, voltando o rosto para
Qin Shi Huang. — Tipo um demônio sendo queimado por água
benta?
Qin Shi Huang fez um som de reprovação.
— Tsc. Você ainda está pensando em termos de preto ou branco,
bem ou mal. Distinções tão claras assim não existem na vida real. A
magia o queimou apenas porque a ilha de Penglai é famosa por
repelir minhas tentativas de encontrá-la. Agora enfim estou aqui. —
Ele olhou para além das grades outra vez. — Depois de dois mil anos.
Zack tentou com dificuldade enxergar do lado de fora da cela. Um
mar prateado cintilava lá embaixo, estendendo-se quase até o
horizonte, onde havia uma transição abrupta para um mar preto sob
nuvens pesadas e escuras.
— Eles nos ajudariam mesmo tendo um histórico desses com você?
— perguntou o garoto.
— Isso depende do quão convincente você for durante o
julgamento.
— Eu? — perguntou Zack, travando.
— Sim. — Qin Shi Huang assentiu. — Você deverá se passar por
mim e falar em meu lugar. Posso canalizar minha magia para que não
tenha problemas de comunicação.
— M-mas… mas por quê?
— Porque eles acreditam que meu espírito está vinculado de forma
irreversível ao seu, o de um garoto inocente, e essa a única razão pela
qual estão dispostos a nos escutar. Se descobrissem que meu espírito
está vinculado a um mero aparelho, apenas o lançariam no fundo do
oceano para se livrar de mim de uma vez por todas.
— Mas eu não posso… eu não posso ser você! Ninguém vai
acreditar! — exclamou Zack, com lágrimas escorrendo, intensificadas
pelas dores. Ele socou a cama. — Eu… não consigo. Não quero mais
fazer isso. Quero ir para casa.
— Quer ir para casa para quê? — esbravejou Qin Shi Huang. —
Ver sua mãe morrer daqui a nove dias?
O queixo de Zack caiu. Novas lágrimas embaçaram sua visão.
Qin Shi Huang suspirou e suavizou o tom.
— Garoto, você se subestima. O simples fato de ter rejeitado
minha tentativa de me conectar a você prova que possui uma força de
vontade inata comparável à minha. Além disso, você superou todos
os obstáculos que surgiram em seu caminho. Por que parar agora?
— Eu só… não aguento… mais…
Zack apertou os olhos, fungando. Sua garganta apertava, e seu
lábio inferior tremeu ao soluçar.
— Escute, durante minhas guerras de unificação, houve vários
momentos em que também duvidei de mim. Como quando tentei
conquistar Chu pela primeira vez. Era o maior dos Reinos
Combatentes, e o que me deu mais trabalho. Todos os espíritos
naqueles barcos-dragão eram de Chu. Eles nunca deixaram de me
odiar pelo que eu fiz.
Zack fechou os olhos que ardiam, irritados, fingindo outra vez que
era o pai lhe contando uma história de ninar. Que o risco de se tornar
órfão não estava aumentando a cada instante.
— Quando me voltei para eles, já havia derrotado ou enfraquecido
os cinco outros reinos. Eu achava que poderia facilmente dominar o
mundo todo. Então enviei um jovem general para conquistar Chu
com apenas vinte mil soldados. Mas subestimei a disposição do povo
de Chu de defender sua terra natal e a conexão que as pessoas têm
com suas raízes. Veja bem, Qin e Chu eram como dois amantes.
Tínhamos uma tradição de casamentos entre os reinos. Minha
invasão foi sabotada por um tio meu com sangue Chu, que criou uma
resistência secreta. Minhas tropas foram emboscadas por trás, com o
corte de suas linhas de suprimentos, e aniquiladas.
A voz rouca de Qin Shi Huang prosseguiu nos alto-falantes dos
óculos de Zack:
— Foi a primeira batalha que perdi em minha vida, e isso quase
me destruiu, porque mostrou aos outros seis reinos que eu não era a
ameaça invencível que havia pretendido ser. No dia em que soube da
derrota, rezei a noite toda para nossos ancestrais. Eu me perguntei se
tinha ido longe demais, tentando devorar o reino que era como uma
esposa para Qin. Eu me perguntei se deveria desistir para diminuir o
prejuízo. Mas, apesar de todo o terror e da dúvida, acima de qualquer
outra coisa, eu sabia que, se desistisse, sempre imaginaria o que teria
acontecido se eu tivesse persistido. Então não me permiti hesitar.
Assumi o risco. Embora estivesse tão aterrorizado que não conseguia
comer nem dormir, pedi desculpas pessoalmente a um velho general
que eu havia prejudicado e lhe dei sessenta mil soldados,
praticamente todos que restavam em Qin. Apostei tudo que tinha na
oportunidade de acabar com os Reinos Combatentes de uma vez por
todas. Durante o cerco de um ano que foi necessário para que o velho
general desgastasse os exércitos de Chu, tive paciência e confiei nele.
Eu me arrisquei, em vez de me sabotar ao pensar demais. E ele
ganhou. Nós ganhamos. E essa é a história de como eu superei meus
medos e conquistei a China.
Hã.
Zack fez uma careta. Abriu os olhos e viu Qin Shi Huang
estendendo os braços como se tivesse acabado de contar uma fábula
tocante sobre a importância do trabalho em equipe.
Ah, Deus. Se o pai de Zack estivesse vivo para lhe contar histórias,
ele torcia para que não fossem como aquela.
Mas ao menos Qin Shi Huang estava tentando, refletiu o garoto.
Como um pai supervilão motivando o filho de um jeito meio
esquisito.
— Hã… — começou Zack entre as últimas fungadas. — Obrigado,
mas acho que todos os seus problemas poderiam ter sido evitados se
você não tivesse… saído conquistando tudo por aí.
— Será? — questionou Qin Shi Huang, levantando uma
sobrancelha e apontando um dedo para Zack.
O garoto olhou de um lado para o outro.
— Sim?
Qin Shi Huang riu como se Zack estivesse de brincadeira, o que
não era o caso.
— Ah, você me diverte às vezes, garoto. A lição é que até lendas
como eu ficam com medo e se sentem sobrecarregadas de ansiedade.
Medo é um sentimento normal, que não pode ser evitado. Mas você
tem o poder de decidir se vai deixar o medo lhe deter. Certos riscos
precisarão ser assumidos na vida. Você os ouvirá lhe chamando, mas
também inúmeras vozes dizendo que você não é bom o suficiente,
que seu objetivo não possível ou que você não é capaz de atingi-lo. E
quer saber de uma coisa? — Os olhos de Qin Shi Huang
semicerraram. — A história não se lembra daqueles que obedecem
tais vozes.
— Mas eu não quero me tornar uma figura histórica famosa. Eu só
quero… só quero minha mãe de volta. Só quero que as coisas fiquem
normais de novo.
— E houve momentos após me tornar um rei adolescente atacado
por todos os lados em que eu preferiria ter continuado a ser um
plebeu nas ruas de Zhao. Mas o universo não concede desejos vãos,
garoto. Sua vida mudou para sempre. Você pode permitir que esta
jornada lhe esmague ou deixar que ela o transforme em alguém mais
forte, como você mesmo desejou. O julgamento acontecerá, quer
goste ou não. E você deveria se preparar, porque precisa começar a se
passar por mim assim que nossos carcereiros chegarem.
— Por quê? — questionou Zack, agarrando os lençóis de seda. —
Não posso fingir que você está hibernando dentro de mim?
— Não. Porque eu provavelmente teria uma reação violenta
quando descobrisse que o carcereiro imortal que vem cuidando de
meu corpo inconsciente faz três dias é Xu Fu, o homem que enviei
atrás de Penglai. O feiticeiro que me traiu.
Seguindo o conselho de Qin Shi Huang, Zack fingiu estar dormindo
assim que ouviram ventos fortes soprando montanha abaixo. Imortais
podiam voar nas nuvens, pelo que tinham lhe explicado.
Então veio o som do portão da cela se abrindo com um rangido e,
em seguida, passos a adentraram. Zack ainda estremecia de medo,
mas entre definhar ali sem fazer nada e se esforçar para escapar o
mais rápido possível para salvar a mãe e a China inteira, a escolha
era óbvia.
— Você tem certeza de que quer continuar a curá-lo? — perguntou
uma voz masculina rouca.
— O hospedeiro não fez nada de errado — respondeu uma voz
afetada, levemente exausta. — Não podemos condenar um menino
mortal inocente por causa dos atos perversos dele.
— Que vergonha.
Os passos se arrastaram em direção a Zack. Um líquido se mexia
dentro de algum tipo de vaso. Assim que alguém tentasse tocá-lo,
Zack deveria agarrar dramaticamente o pulso da pessoa e sentar-se
devagar.
Bem quando ele abriu um olho para checar o timing, uma coisa
dura foi enfiada entre seus lábios.
— Mmm!
O garoto se levantou com um movimento brusco, e um líquido
amargo que formigava se derramou por sua boca, mandíbula e
pescoço.
Ooops.
Lá se foi o plano de acordar com todo o drama de um conquistador
de primeira.
Posso tentar de novo?, Zack resistiu à vontade de perguntar. Não
devia falar com Qin Shi Huang, e o imperador apenas o enviaria dicas
por mensagem. Tossindo, Zack olhou para os dois imortais, que
brilhavam na luz escassa da caverna. Um deles era um homem
corcunda com roupas maltrapilhas e cabelo desgrenhado que se
apoiava em uma muleta de metal. Ele havia enfiado uma cabaça na
boca de Zack, parecida com um amendoim liso e gigante com uma
rolha de madeira no topo. O outro imortal vestia uma túnica elegante
e tinha uma aparência mais erudita. Passado um instante, legendas
apareceram ao lado deles.

LI DA MULETA DE FERRO
Um dos Oito Imortais, um grupo de taoístas imortais icônicos
dos mitos chineses. Já foi um herói bonitão capaz de fazer
projeção astral de seu espírito, mas certa vez seu espírito não
voltou a tempo e um idiota qualquer queimou seu corpo.
Teve que ocupar o corpo de um pobre deficiente que havia
morrido de fome fazia pouco tempo. Jura que não guarda
ressentimentos quanto a isso. Carrega um talismã especial:
uma cabaça cheia de remédios de cura.

XU FU
Viveu entre: 255 a.C.-?
Médico imperial da dinastia Qin e feiticeiro da corte que Qin
Shi Huang NÃO DEVERIA ter contratado. Zarpou duas vezes
com uma frota enorme em busca de Penglai. Disse ter sido
bloqueado por uma baleia gigante na primeira tentativa, e
nunca voltou da segunda. Há boatos de que se assentou no
Japão com a frota.

Dobrando o pescoço, Xu Fu examinou Zack da cabeça aos pés.


— Veja só, Sua Majestade Imperial finalmente acordou.
E Zack soube que não podia mais adiar sua atuação.
— Xu Fu! — rugiu ele, com toda a fúria que imaginava que um
tirano teria ao reencontrar o vigarista que havia lhe dado um calote.
Qin Shi Huang provavelmente tivera aquela reação uns dias antes
quando viu Xu Fu na ilha pela primeira vez, mas teve que ficar
enfezado em silêncio.
— Faz muito, muito tempo que não nos vemos, Vossa Majestade —
disse Xu Fu com sua voz educada e um sorriso sinistramente
encantador. — Fico contente que tenha conseguido chegar a Penglai,
no fim das contas. Não é maravilhoso?
Qin Shi Huang: PERGUNTE A XU FU COMO ELE VEIO PARAR
NESTA ILHA
Qin Shi Huang: DIZIAM QUE ELE TINHA ASSENTADO NO
JAPÃO!!
— O que você está fazendo aqui? — acusou Zack com sua melhor
entonação de vilão tirânico.
Graças a um pequeno fluxo de magia gelada de Qin Shi Huang, as
palavras jorravam de sua boca no dialeto específico que os imortais
falavam. As sílabas pareciam estranhas em sua língua. Zack torcia
para que não tivesse um sotaque.
Qin Shi Huang: Tá, isso foi um pouco demais, ajeita esse tom.
Qin Shi Huang: Eu não sou TÃO melodramático assim.
— Meu espírito veio para cá depois de transcender seu recipiente
mortal, é claro — explicou Xu Fu, juntando as mãos às costas e
acenando de leve com a cabeça. — Talvez porque eu seja muito
associado com a lenda de Penglai.
— Entendi — retrucou Zack. Preocupado por não ter sido
arrogante o suficiente, ele acrescentou: — De nada. Foi sua relação
comigo que permitiu que sua lenda sobrevivesse durante tanto
tempo.
Xu Fu balançou a cabeça com um sorriso.
— Vossa Majestade não mudou nada.
Zack quase soltou um suspiro de alívio.
— Mas espero que não guarde ressentimento de mim, depois de
tanto tempo — prosseguiu Xu Fu.
Qin Shi Huang: Só passe direto ao assunto do julgamento.
Li da Muleta de Ferro semicerrou os olhos e, antes que Zack
pudesse abrir a boca, perguntou:
— Ei, que coisa é essa sobre os seus olhos?
Zack tencionou todos os músculos do rosto para conter uma
expressão de pânico.
— É um aparelho que este menino usa para auxiliar sua visão —
respondeu ele, da forma mais casual possível. — Corpos mortais são
tão fracos hoje em dia. Passam tempo demais encarando telas
minúsculas.
Então Zack se virou para Xu Fu, furioso.
— Agora, leve-me ao seu líder, e tudo será perdoado. É uma
emergência. A China corre perigo de ser tomada por espíritos, e só
tenho nove dias para impedir que isso aconteça.
Xu Fu inclinou a cabeça em direção a Li da Muleta de Ferro.
— Doutor, Sua Majestade está em condições de deixar a prisão?
Li da Muleta de Ferro deu um passo para trás com a ajuda da
muleta de metal, então fez um gesto para que Zack se aproximasse.
— Tente andar.
Zack deu tudo de si para sair da cama.
Qin Shi Huang: EI, NÃO DEIXE QUE MANDEM EM VOCÊ.
Tarde demais. Zack deu um passo em falso, e então se sentiu tão
fraco de fome e dor que desabou no chão ao lado da mochila.
Um sorriso convencido surgiu no rosto de Xu Fu.
— Ora, ora. Nunca pensei que veria isso. O grande Qin Shi Huang
de joelhos à minha frente.
Apesar de não ter feito parte do drama original, uma labareda de
fúria se acendeu em Zack. Ele lançou um olhar ameaçador genuíno
para Xu Fu.
A expressão presunçosa do homem vacilou.
Foi aí que Zack percebeu que irritá-lo quando precisava da ajuda
dos imortais não era uma boa ideia, então redirecionou seu olhar de
desgosto para o próprio corpo.
— Este recipiente mortal é um verdadeiro incômodo.
— Bem, Vossa Majestade se queimou para valer tentando usar
nossa magia — comentou Li da Muleta de Ferro, erguendo a cabaça
para Zack. — Beba isto.
Qin Shi Huang: Levante-se.
Qin Shi Huang: Não beba de joelhos.
A cabeça de Zack girava com todas as nuances que precisava
equilibrar. Esforçando-se para não fazer uma careta de dor, ele se pôs
de pé. Apanhou a cabaça com um gesto firme e tomou um gole. O
remédio era tão amargo que fez seu corpo se contrair, e formigava
como os grãos de pimenta que sua mãe às vezes usava para cozinhar,
mas Zack engoliu tudo de uma só vez para não parecer fraco. Vendo
pelo lado bom, aquilo instantaneamente o fez se sentir menos
faminto.
— Muito bem, estaremos de volta amanhã — anunciou Li da
Muleta de Ferro, pegando a cabaça de volta.
Zack ficou tenso.
— Espere, não temos tempo para…
— Vossa Majestade — interrompeu Xu Fu, mostrando a palma da
mão. — Não podemos levá-lo a lugar algum se sequer consegue
andar.
Os dois se encaminharam para a saída da caverna. Em pânico,
Zack ia tentar chamá-los, porém novas mensagens bombardearam
sua visão.
Qin Shi Huang: Nem esquente a cabeça.
Qin Shi Huang: Devo admitir, eles têm razão.
Qin Shi Huang: Se seu corpo mal consegue ficar de pé, não está
em condições de encarar um julgamento.
— Vamos conseguir terminar a missão em apenas oito dias? —
sussurrou Zack com urgência enquanto o portão da cela se fechava
atrás dos imortais.
— Só temos que roubar o Selo Relíquia do Palácio do Dragão, e
então podemos ir diretamente para meu mausoléu em Xian —
respondeu Qin Shi Huang em alto e bom som. — Oito dias devem ser
o suficiente.
Serão mesmo?
Zack afundou na cama, tomado pelo estresse, mas incapaz de fazer
qualquer coisa. Ele queria correr atrás dos imortais, mas sentia que
sequer conseguiria chegar às grades da cela, a menos que rastejasse.
E Qin Shi Huang nunca faria tal coisa, então isso estragaria seu
disfarce.
Onde quer que Simon e Melissa se encontrassem, Zack torcia para
que estivessem em condições melhores do que ele.

No dia seguinte, Zack pôde ser ele mesmo durante a visita de Xu Fu e


Li da Muleta de Ferro. Qin Shi Huang pensou que seria bom lembrá-
los de que a vida de um “menininho inocente” estava em jogo.
Zack ficou aliviado. Sentia-se mal por não ter agradecido aos
imortais por o terem curado, embora o tivessem confinado numa cela
dentro de uma caverna. Sua mãe definitivamente lhe daria uma
bronca por não agradecer. Ele queria despertar a compaixão dos
imortais contando sobre a contagem regressiva até que o espírito de
sua mãe fosse dilacerado, mas Qin Shi Huang lhe dissera para não
mencionar aquilo. Demônios não teriam sequestrado o espírito dela
se Qin Shi Huang houvesse possuído Zack direito — um lembrete que
o fez sentir uma nova pontada de culpa e arrependimento.
No entanto, os imortais estavam bem mais dispostos a falar com
Zack. Ele percebeu que estava usando a técnica de Bom Garoto, Mau
Imperador quando Li da Muleta de Ferro o informou prontamente
que Simon e Melissa estavam bem, hospedados em um palácio no
topo da montanha. O alívio inundou Zack. Havia passado a maior
parte da noite acordado, morto de preocupação por causa deles.
— Desculpe por manter você aqui, parceiro — disse Li da Muleta
de Ferro depois que Zack terminou de tomar o remédio do dia. —
Nunca se sabe quando aquele tirano dentro de você vai vir à tona e
fazer algo terrível. Esta ilha deveria ser o único lugar que ele não
poderia corromper.
— Tudo bem. — Zack passou a cabaça de volta para ele, sentando-
se na cama. — Eu entendo, de verdade.
— Como é ser possuído por ele? Dá medo? — perguntou Li da
Muleta de Ferro, arregalando os olhos sob as sobrancelhas
absurdamente compridas. — Espera, ele pode ouvir tudo que você
diz, não é? Deixa pra lá.
— Ah, não esquenta. Ele precisa de mim, então não pode me
machucar. Só enfrentamos um monte de batalhas assustadoras.
— Mas ele pode machucar sua família — comentou Xu Fu,
franzindo a testa. — Ele já a ameaçou?
— Ele não precisou ameaçar ninguém. Estou aqui porque quero
salvar a China, só isso. E temos menos de oito dias para cumprir a
missão — concluiu Zack, deixando mais um lembrete escapar
casualmente.
— Bom, espere só até você se recusar a fazer ou a dar algo que ele
queira — retrucou Xu Fu, com um tom e um olhar sombrios. — Aí,
sim, você verá quem ele realmente é. Caso ainda não esteja óbvio.
Zack não tinha como discordar, mas precisava refutar aquilo para
que os imortais amenizassem suas atitudes.
— Sabe, ele pode ter motivações egoístas, mas realmente só está
tentando impedir que a China seja tomada por espíritos malignos
quando o Mês dos Fantasmas chegar. Porque, se a China desaparecer,
ele não será lembrado por mais dois mil anos, e nem vocês.
Ao ouvir isso, Xu Fu e Li da Muleta de Ferro trocaram um olhar
demorado.
— Ainda assim, garoto, eu não confiaria nele — resmungou Xu Fu.
— Mas escutaremos sua defesa amanhã — disse Li da Muleta de
Ferro, checando o pulso de Zack com as mãos grossas e enfiando a
muleta na dobra do cotovelo. — Você já deve conseguir se mover até
lá. Falarei com os outros imortais para prepararmos um julgamento.
Zack suspirou aliviado. Não gostou do fato de o julgamento não
poder ser realizado naquele mesmo dia, deixando-os com apenas sete
restantes para cumprir a missão, mas pelo menos eles estavam
avançando.
Então o garoto engoliu em seco, porque precisaria entregar uma
performance digna de um Oscar como Qin Shi Huang na frente de
oito juízes lendários, senão todo o plano iria por água abaixo…
Junto com o mundo que ele conhecia.
14
Como enganar a Liga da Justiça da China Antiga

Quando chegou a hora do julgamento no dia seguinte, deixar a cela na


caverna teve um preço: Zack precisou usar algemas de madeira.
— Foi mal, parceiro — disse Li da Muleta de Ferro, apertando as
algemas ao redor dos pulsos de Zack com a ajuda de Xu Fu. Parecia
que eles tinham prendido seus braços em uma tábua de madeira que
emitia um brilho fraco. — Não podemos arriscar.
Zack grunhiu conforme a madeira luminosa ardia em sua pele e
tentou não comparar aquela dor com a de uma cruz queimando um
demônio em filmes de terror.
Vestindo uma muda de roupas e com a mochila nos ombros, ele
deixou Xu Fu carregá-lo para fora da caverna. Seus pensamentos
eram um caos embaralhado de ansiedade, mas se desembaraçaram e
se afrouxaram de admiração quando Xu Fu planou montanha acima
em uma nuvem. Os dosséis fofos dos pinheiros passavam debaixo
deles. O oceano prateado se chocava com as rochas abaixo, e a
espuma se curvava como pétalas de lírios. Zack sentiu uma mistura
de medo primitivo e entusiasmo maravilhado por estar tão alto, o que
causou frio em sua barriga vazia. Li da Muleta de Ferro explicou que
a ilha de Penglai na verdade era uma montanha no mar, com duas
ilhas companheiras menos conhecidas nas proximidades, Fanghu e
Yingzhou.
Havia edifícios espalhados pelo pico de Penglai. Suas paredes
brancas reluziam como a lua, e seus telhados curvados para cima em
estilo chinês refletiam um brilho dourado como a luz do sol. Imortais
em vestes antigas voavam entre as construções usando nuvens. Suas
risadas eram carregadas pelo vento.
Zack se perguntou onde ficava o palácio em que Simon e Melissa
estavam, e descobriu que toda aquela área era considerada o palácio,
porque palácios chineses eram mais parecidos com cidades do que
com um único edifício extravagante. Com orgulho, Li da Muleta de
Ferro explicou para Zack que as ilhas não tinham um governante
oficial. Todos eram livres para fazer o que quisessem. Nos raros casos
de reclamações, os Oito Imortais estabeleciam um julgamento onde
todos os residentes tinham voz para decidir a solução. Era
basicamente uma democracia, embora aquela palavra não existisse
no dialeto deles. Quando Zack tentou dizê-la, sua boca ficou aberta
como se tivesse perdido a linha de raciocínio.
Conforme voavam sobre os edifícios reluzentes, cada vez mais
imortais se juntavam a eles. Suas nuvens convergiram em torno de
um pavilhão no meio de um lago. Carpas radiantes nadavam nas
águas claras, e flores de lótus flutuavam na superfície.
— Zack! — chamou uma voz familiar.
Simon e Melissa estavam no pavilhão, balançando os braços e
pulando sem parar. O coração de Zack saltou como se estivesse dando
uma cambalhota olímpica. Havia sentido tanta saudade deles.
— Ei! Como vocês est…?
Zack percebeu que as mãos dos dois não estavam algemadas. Isso
já era esperado, mas ainda o incomodou um pouco. Enquanto os
outros imortais se espalhavam sobre o lago em suas nuvens, Xu Fu e
Li da Muleta de Ferro o depositaram em um símbolo de yin-yang
entalhado na base de pedra do pavilhão.
— Tudo ótimo! — respondeu Melissa. — Esse lugar não é incrível?
Os copos nunca se esvaziam e a comida nunca acaba!
— Comida? — repetiu Zack.
O garoto pensava que imortais não tinham comida mortal, porque
não haviam lhe trazido nada além de remédio por cinco dias.
Qin Shi Huang: É óbvio que, como você é o meu hospedeiro,
eles não o alimentaram para manter seu corpo fraco.
Zack cambaleou, incrédulo, com o estômago roncando.
O entusiasmo de Simon virou preocupação.
— Para onde eles levaram você? Não nos contaram — disse Simon,
encarando os pulsos algemados de Zack. — E por que está usando
isso?
— Eles… eles me trancaram numa caverna por cinco dias.
Simon e Melissa congelaram por um momento, então explodiram
em reações bem diferentes. Simon jurou para Zack que eles
pensavam que os imortais o tivessem levado a outro edifício do
palácio, enquanto Melissa berrou com Li da Muleta de Ferro como
uma senhora asiática berraria com alguém tentando furtar algo de
seu bolso.
— Precauções precisam ser tomadas contra o tirano! — exclamou
Xu Fu, levantando a voz para que todos pudessem ouvi-lo.
— Afirmativo! — veio um coro de concordância dos outros
imortais.
— Abaixo o tirano! — gritou alguém.
— Exile-o! — sugeriu outro.
Mais membros se juntaram, e logo toda a plateia sobre o lago
entoava:
— Exile-o! Exile-o! Exile-o! Exile-o!
Wu Zetian emergiu de Melissa e gritou:
— Ei! Que tal se vocês, idiotas desmiolados, escutassem o que
temos a dizer primeiro?
Tang Taizong também tomou controle de Simon.
— Sim, nós imploramos! Isso é de grande importância!
— Está bem! — retumbou uma voz ao longe.
Zack procurou sua origem e avisou um homem deslizando
casualmente pelo lago. Tinha um coque e uma barba bem-arrumados
e as mãos, obscurecidas pelas mangas largas de sua túnica cinza,
estavam apoiadas nos quadris. A água crepitava e se partia atrás dele.
— Todos merecem a chance de se defender. Vamos ouvir o que
esses imperadores têm a dizer!
Quando ele se aproximou, Zack viu que o homem voava sobre uma
longa espada flutuante. Sua legenda apareceu na mesma hora.

LÜ DONGBIN
Sábio e poeta da dinastia Tang que ascendeu como imortal
depois de passar por dez provações para testar sua harmonia
com o mundo natural. É considerado o líder dos Oito
Imortais. Seu talismã é uma espada capaz de eliminar o mal.
Parece ser todo certinho, mas na verdade é um cafajeste.
Não deixe ele chegar perto de Wu Zetian.

Lü Dongbin se apresentou ao pousar no pavilhão, e sua espada


voou da água para sua mão, lançando gotas ao redor.
— Agora, deem as boas-vindas aos meus companheiros…!
Sons de respingo vieram de várias direções do lago. Imortais
avançaram em cima de todo tipo de coisa. Havia uma mulher
navegando em uma flor de lótus gigante, um velho cavalgando ao
contrário em uma mula branca, uma criança flutuando num cesto de
flores, um homem barrigudo sem camisa surfando em um leque
enorme e muito mais. A comoção fez o lago se agitar como um
redemoinho, recebendo aplausos da plateia em suas nuvens.
Era “Os Oito Imortais Atravessam O Mar; Cada Um Apresenta Seu
Talento Místico”. Qin Shi Huang havia inteirado Zack da lenda
enquanto faziam a contagem regressiva das horas na caverna. Os
Oito Imortais representavam todo tipo de pessoa — jovem e velha,
homem e mulher, rica e pobre, nobre e humilde — e como podiam
viver em harmonia sob o taoísmo. Eles eram basicamente a Liga da
Justiça da China Antiga, lutando contra injustiças mortais e espíritos
malignos. Certa vez, foram convidados para um banquete fora de
Penglai. Quando tiveram que cruzar o Mar do Leste, um deles sugeriu
que, em vez de voar em nuvens, eles o atravessassem usando seus
talismãs únicos, só por diversão. Aquela cena era um espetáculo tão
fascinante que artistas chineses amavam desenhá-la em tudo. Mas a
diversão dos Oito Imortais perturbou o Rei Dragão do Leste, que
enviou legiões de seus soldados-camarões e generais-caranguejos
para enfrentá-los e sequestrar Lan Caihe, a criança imortal.
Indignados, os imortais retaliaram com seus poderes, chegando a
matar dois dos príncipes do Rei Dragão. Ele chamou seus três irmãos
como reforços, mas eles estavam par a par com os imortais. Foi
necessária a intervenção de Guanyin, a deusa da misericórdia, para
apartar a briga.
Só que Ao Guang, o Rei Dragão do Leste, era quem tinha o Selo
Relíquia. Os imperadores contavam em parte com a antiga
implicância dos Oito Imortais com o rei para conseguir a ajuda deles.
Um por um, eles saltaram de suas embarcações para o pavilhão e
encolheram os talismãs, que voaram para suas mãos. A mula branca
do velho se encolheu a ponto de ele poder guardá-la dentro da
túnica. Li da Muleta de Ferro se afastou de Zack para se juntar a eles,
enquanto Xu Fu flutuou para longe em uma nuvem. Os Oito se
espalharam até formarem um semicírculo ao redor de Zack e dos
imperadores.
— Agora, que comece o julgamento! — anunciou Lü Dongbin,
encarando Zack de queixo erguido. — Por que não se manifesta, Qin
Shi Huang?
O coração de Zack parou por um segundo. Por que os imortais não
presumiram que ele havia se transformado no imperador quando
Simon e Melissa o fizeram? Será que era a maneira como ele se
portava? Será que tinha parecido surpreso ou impressionado demais
pelos Oito?
Qin Shi Huang: Anda logo, garoto.
Qin Shi Huang: ENCARNE-ME.
Respirando fundo e fechando os olhos, Zack fez questão de abaixar
a cabeça. Ele apertou os punhos, então se endireitou enquanto abria
os olhos como um vampiro ao despertar. Qin Shi Huang canalizou um
pulso maior de magia para dentro dele, fazendo com que seu cabelo
ficasse arrepiado por um instante.
Os imortais enrijeceram. Alguns engoliram em seco. O lago ficou
em silêncio, exceto pela brisa que agitava os salgueiros e o gotejar de
água em algum lugar.
Zack quase riu de como aquilo era absurdo. Eles realmente não
faziam ideia de que ele era um impostor.
— Precisam ficar paranoicos nessa magnitude? — perguntou ele
de maneira preguiçosa, erguendo os pulsos algemados. — Juro que
não tenho más intenções.
— Não acreditamos em você! — gritou alguém.
Zack quase pulou, mas se conteve a tempo. Apenas arqueou uma
sobrancelha naquela direção como se fosse um verdadeiro vilão.
— Vejo que não tenho muitos fãs por aqui. Uma pena.
Wu Zetian grunhiu. Ela abriu os braços e se virou para falar com
toda a plateia nas nuvens.
— Escutem, o tampão colocado no portal espiritual por Qin Shi
Huang foi afrouxado de maneira crítica, e precisamos roubar o Selo
Relíquia de Ao Guang para fechá-lo de novo! Não estaríamos aqui se
não fosse urgente. Nem estaríamos trabalhando de bom grado com
ele!
Wu Zetian apontou para Zack.
— O mundo mudou mais do que vocês podem imaginar —
acrescentou Tang Taizong. — Os mortais criaram armas capazes de
matar milhões de pessoas num instante. Se espíritos malignos
perambularem pelo mundo mortal causando caos de novo, as
consequências podem ser catastróficas.
— Não estamos pedindo suas pílulas de imortalidade preciosas e
perfeitamente calibradas — esbravejou Wu Zetian. — Bastariam
produtos imperfeitos, que permitam que nossos hospedeiros
sobrevivam à viagem até o Palácio do Dragão por um dia.
— Mas… dar uma de nossas criações para ele… — começou Lü
Dongbin, semicerrando os olhos para Zack. Os outros imortais
fizeram o mesmo. — Isso o permitiria acessar a magia taoísta sem
restrições. Isso também teria consequência inimagináveis.
Tang Taizong suspirou.
— Prometemos exterminá-lo se ele tentar alguma coisa.
— Vocês não seriam poderosos o suficiente! Mesmo sentindo uma
dor extrema, com os próprios meridianos queimando, apenas
canalizar a magia de Li Bai permitiu que ele navegasse até aqui, o
único lugar que supostamente estaria seguro contra ele!
— Na verdade, é mais provável que Mazu, a deusa do mar, tenha
nos salvado — admitiu Wu Zetian pelo canto da boca.
Zack não disse nada porque, quanto menos dissesse, melhor, mas
estava meio aliviado pela confirmação de que sua dor tinha mesmo
sido “extrema”. Ele desejou que os imperadores o tivessem avisado
com antecedência sobre aquilo.
A Senhora He, a única mulher entre os Oito Imortais, se
pronunciou.
— Qin Shi Huang, você está estranhamente quieto. Não tem nada
a dizer?
Zack demorou um segundo para perceber que ela estava se
referindo a ele.
Todos o encaravam.
Recebendo algumas dicas do verdadeiro Qin Shi Huang, Zack
tomou fôlego e começou a falar:
— Parece que vocês já formaram suas opiniões sobre mim há
muito tempo. E eu não me importo com o que pensam. Entretanto,
preciso fazer uma pergunta: vocês se importam com a China?
Deixariam ela sucumbir ao caos só porque têm medo de mim?
Escolheriam a segurança de sua ilha em vez do futuro de bilhões de
pessoas?
Os imortais sussurraram entre si.
— Dê-nos um tempo para discutir a questão — pediu Lü Dongbin,
agitando a manga larga e se virando de costas.
Ele e o restante dos Oito atiraram seus talismãs na água outra vez,
que se transformaram em objetos em que podiam montar, e saíram
do pavilhão.
— Lan Caihe, você não quer se vingar de Ao Guang por tê-lo
sequestrado? — gritou Wu Zetian enquanto eles se afastavam.
Os imortais comuns flutuaram atrás deles em suas nuvens.
A criança entre os Oito olhou para Wu Zetian por cima do ombro.
— Nós, imortais, não acreditamos em vingança. Não somos como
vocês.
— Ah, que ótimo — murmurou Tang Taizong para Wu Zetian.
Ela bufou.
— Só estão falando por falar. Eu me recuso a acreditar que eles são
tão puros quanto fingem ser.
— Eles são imortais taoístas.
— Mas suas lendas foram corrompidas por reinterpretações
mortais — argumentou Wu Zetian, sorrindo e levantando o queixo.
— De que outra forma você explicaria o jeito cafajeste de Lü Dongbin
ou o pavio curto de Li da Muleta de Ferro? Ídolos perfeitos não
rendem histórias interessantes.
Tang Taizong grunhiu.
— Vamos torcer para que esteja certa.

Após se posicionarem na metade do lago, os Oito conversaram com


os outros imortais pelo que pareceram horas. Zack e os imperadores
se cansaram de ficar parados em pé no mesmo lugar e se apoiaram
nos pilares do pavilhão, depois enfim se sentarem no chão, desistindo
de observar os imortais. Os imperadores retornaram para dentro de
Simon e Melissa, escolhendo hibernar durante a espera.
Sem Wi-Fi, não havia muito o que fazer exceto aprimorar o
conhecimento de Zack sobre lendas chinesas. Simon começou a lhe
contar sobre as outras vezes em que Ao Guang, o Rei Dragão, levou
uma surra. Ele parecia ser infame por isso.
— A surra mais famosa foi de Sun Wukong, o Rei Macaco. Você
sabe quem ele é em Reinomítico, né?
— Ah, sim — respondeu Zack. — Eu peguei uns eventos especiais
com ele. Ele destruiu o céu ou algo assim? E aí partiu para a Índia em
uma jornada com um monge para arranjar escrituras budistas? E ele
pode fazer upgrade em criaturas de Fogo.
— Certo, essa última parte é só do jogo — concordou Simon,
rindo. — Mas, basicamente, Sun Wukong nasceu de uma pedra
mística, era superpoderoso e causava problemas por onde passava. O
Palácio do Dragão do Mar do Leste foi um de seus primeiros
incidentes. Ele foi até lá procurar uma arma e ganhou de lavada do
Rei Dragão e de todos os seus soldados, e depois dos três irmãos de
Ao Guang quando eles vieram ajudar. Wukong forçou todos eles a
entregarem seus melhores tesouros antes de partir para causar
destruição na corte do céu e no submundo. Boa parte de sua história
vem de um livro de quinhentos anos chamado Jornada para o oeste,
embora seja um compilado de lendas populares.
— Ele é um ícone — comentou Melissa, balançando a cabeça com
uma expressão entretida. — Juro que fazem um programa ou filme
novo sobre ele todo dia.
— Sim, infinitas versões. — Simon abanou a mão. — Até Dragon
Ball Z começou como uma adaptação de Jornada para o oeste. Goku é
só a maneira japonesa de dizer Wukong.
Zack ergueu as sobrancelhas.
— É por isso que o Goku tinha aquela cauda de macaco?
— É! Posso mandar uma lista das melhores adaptações para você
assistir quando voltar para os Estados Unidos.
Zack assentiu, mas sentiu sem chão de repente, como se um tapete
tivesse sido puxado sob seus pés. É claro que ele queria ir para casa
— mal podia esperar para ter a mãe de volta —, mas não havia
considerado que isso significaria dizer adeus a Simon e Melissa.
Muito em breve, e provavelmente para sempre. Pensar nisso doeu
mais do que o esperado.
— Enfim, aquela não foi a primeira vez que o Rei Dragão levou a
pior — continuou Simon. — A primeira foi há muito, muito tempo,
durante a dinastia Shang, tipo três mil anos atrás. Havia uma
pequena cidade militar na extremidade do Mar do Leste. A esposa do
comandante de lá teve uma gravidez esquisita que durou mais de três
anos. Quando ela finalmente deu à luz, acabou sendo…
Os óculos inteligentes de Zack emitiram um sinal de luz, fazendo
ele se encolher.
— Ai!
O garoto levou institivamente as mãos aos olhos, mas elas foram
detidas pelas algemas toscas. Ele piscou até os pontinhos em sua
visão sumirem.
— Qin Shi Huang? — sussurrou ele baixinho, sentindo um
desconforto no estômago.
Não houve resposta.
— Tudo bem, já chega de histórias! — Tang Taizong tomou o
controle de Simon, ficando de pé num salto. — Vamos nos aprontar
para ouvir o veredito.
— Eles já terminaram? — perguntou Zack, perplexo.
Os imortais ainda pareciam estar tendo uma discussão acalorada.
— Já está mais do que na hora! — reclamou Wu Zetian, tomando
o controle de Melissa. Ela curvou as mãos ao redor da boca e gritou:
— Ei! Quanto tempo vocês ainda vão demorar?
Lü Dongbin olhou por cima de uma dúzia de imortais que falavam
com ele ao mesmo tempo. Ele suspirou, a barba bem-feita se
movendo. Poucos momentos depois, disse algo que fez com que
várias cabeças assentissem. Então ele deslizou de volta para o
pavilhão em sua espada.
Tang Taizong ajudou Zack a se levantar do chão. O garoto
tropeçou mesmo assim, por causa de um ataque de nervos.
Zack havia se saído bem, certo? Os imortais não negariam o
pedido dele e dos imperadores. Eles tinham motivações
perfeitamente legítimas e altruístas.
— Nós chegamos a um acordo — disse Lü Dongbin.
Ele e o resto dos Oito desceram de suas embarcações e formaram o
semicírculo outra vez.
— Estamos dispostos a conceder a Tang Taizong e Wu Zetian
pílulas para proporcionar a seus hospedeiros um dia de imortalidade.
Porém, após um longo debate, decidimos em grupo que não podemos
assumir o risco de fazer o mesmo por Qin Shi Huang.
— O quê?! — disseram abruptamente Zack e os imperadores.
— Entretanto, permanecemos solidários a sua causa! — falou Lü
Dongbin por cima da reclamação deles. — Dessa forma, nós, os Oito
Imortais, estamos dispostos a substituir Qin Shi Huang no assalto ao
Palácio do Dragão. Isso deve compensar sua ausência.
— Não! — gritou Zack, cambaleando para a frente.
Ele pensou que se sentiria aliviado ao ser dispensado da batalha,
mas, naquele instante, só conseguia pensar em como seria terrível
esperar para saber o resultado. E se não vencessem? E se tudo desse
errado porque ele não estava lá? Afinal, era ele quem tinha os
poderes de água.
— Não, vocês não entendem. Eu não posso ficar de fora. Eu preciso
salvar minha mãe!
As palavras seguintes de Lü Dongbin ficaram presas em sua
garganta. Ele semicerrou os olhos para Zack, desconfiado. O restante
dos Oito fez expressões similares.
Qin Shi Huang: GAROTO.
Qin Shi Huang: NÃO!!!
— Sua mãe? — perguntou o velho entre os Oito, inclinando-se
para a frente.
— Você odeia sua mãe! — exclamou um homem barrigudo com o
cabelo arrumado em dois coques idênticos, usando um colete que
expunha seu torso.
Lü Dongbin fechou a cara.
— No dia de sua cerimônia de maioridade, sua mãe deu o selo de
comando dela para que o amante convocasse um exército contra
você. A rebelião se alastrou pela capital. Você quase não conseguiu
sufocá-la. Depois, você matou pessoalmente os dois filhos que ela
tinha com o amante, seus próprios meios-irmãos, além de bani-la do
palácio.
— E você cozinhou vinte e sete oficiais vivos por ousarem sugerir
trazê-la de volta! — berrou Xu Fu ao lado.
— Meu Deus, é sério? — sussurrou Zack, fazendo uma careta.
Qin Shi Huang: EU ERA MUITO EMOTIVO, TÁ BEM?
Qin Shi Huang: ELA ERA TUDO QUE EU TINHA DURANTE OS
MEUS PRIMEIROS NOVE ANOS DE VIDA, E AINDA ASSIM
TENTOU ME MATAR.
Qin Shi Huang: Embora o vigésimo oitavo oficial tenha
conseguido me convencer de que o equilíbrio de poder em meu
palácio seria quebrado se eu a mantivesse exilada.
Qin Shi Huang: MAS ESSA NÃO É A QUESTÃO.
Qin Shi Huang: DIGA A ELES QUE VOCÊ NÃO SOU EU.
— Ah, não, nada disso. Eu não sou Qin Shi Huang. — Zack tentou
desconversar com uma risada. — Eu sou o garoto hospedeiro!
Desculpa, eu voltei ao controle porque… fiquei muito emocionado.
Lü Dongbin o estudou da cabeça aos pés calçados.
Então ele sacou sua espada e a girou na direção de Zack.
Soltando um gritinho, Zack ergueu as mãos algemadas para se
defender. A dor em seus meridianos se intensificou com magia fria. A
lâmina parou logo acima de seu ombro, criando uma brisa que fez
cócegas em seu pescoço.
Quando ele ousou olhar para cima, uma esfera de água estava
rodopiando à sua frente. No momento em que percebeu isso, ela se
espatifou no chão. Zack devia tê-la tirado do lago impulsivamente.
Lü Dongbin deu mais um passo para perto, seus olhos se
escurecendo, sem afastar a espada do pescoço de Zack.
— Você diz que não é ele, mas está usando seu poder com essa
intensidade? O que isso significa?
Zack abriu e fechou a boca. Então decidiu improvisar.
— Bom, agora eu sou Qin Shi Huang. Como ousa erguer sua
lâmina contra meu hospedeiro, um garoto inocente?
Lü Dongbin pressionou o dorso da espada contra o pescoço de
Zack, que mordeu o lábio por causa da ardência.
— Minha espada eliminadora do mal o machucaria muito mais se
você realmente fosse o tirano.
Lü Dongbin pressionou com mais força.
Zack empurrou a lâmina com as algemas.
— Talvez eu não seja tão mal quanto você pensa — disse ele
entredentes.
Embora aquele negócio de cozinhar os oficiais estivesse fazendo
Zack reconsiderar sua opinião sobre Qin Shi Huang. Não que ele
tivesse uma opinião muito boa, para começo de conversa.
— Não… — Lü Dongbin balançou a cabeça devagar. — Você está
mentindo. Você é…
Houve uma respiração audível, então Li da Muleta de Ferro
exclamou:
— O aparelho sobre os olhos dele!
A compreensão atravessou o rosto de Lü Dongbin. Quando ele
moveu a espada para os óculos inteligentes de Zack, ela faiscou como
um detonador ativado. A interface travou. Zack cambaleou para trás
com um grito de horror.
— É verdade! — gritou Lü Dongbin, apontando com a espada. —
O tirano está possuindo o aparelho, em vez do garoto!
— Isso significa que deve ter errado a possessão! — disse Li da
Muleta de Ferro, mancando mais para perto. — Ele pode ser
eliminado junto com o aparelho!
— Não! — Zack fez força contra as algemas, apesar de a madeira
cauterizar sua pele. — Não. Quer dizer, é verdade, ele não se
conectou a mim. Mas isso é uma coisa boa! Significa que ele não
pode me forçar a fazer nada. Tenho total controle, então ele não vai
usar a magia de vocês para o mal! Por favor, só quero salvar minha
mãe! O espírito dela foi capturado por demônios!
— Que tipo de demônios? — questionou Lü Dongbin. — Nunca
ouvi falar de demônios com habilidade de capturar espíritos. E olha
que venci muitos demônios em meu tempo.
— E-eu não sei. Mas Tang Taizong estava lá. — Zack se virou para
ele. — Você viu…?
— Era um tipo que vocês não conhecem, porque ficam definhando
nesta ilha! — esbravejou Tang Taizong. — Como já dissemos, muita
coisa mudou no mundo.
— Basta! — interveio Xu Fu, aproximou-se em sua nuvem. — Eles
claramente estão enganando o garoto. Atire o aparelho no Guixu para
que o tirano nunca mais assombre o mundo novamente!
— Isso, isso! — entoaram os outros imortais.
— O que é o Guixu? — perguntou Zack, olhando em pânico entre
os imperadores.
Era o nome de um lugar, então ele não conseguia entender.
— O Ponto de Retorno ao Nada — explicou Wu Zetian com pressa.
— O abismo mítico onde a água do oceano se esvai para manter o
equilíbrio conforme os rios desaguam. Fica próximo do fundo destas
ilhas.
Qin Shi Huang: CORRA!
Zack tentou, mas Lü Dongbin arrancou os óculos inteligentes de
seu rosto. O imortal barrigudo com os coques idênticos agitou seu
talismã, um leque enorme. Uma rajada de vento arremessou Zack e
os imperadores para trás. Lü Dongbin se afastou do símbolo de yin-
yang no piso e balançou a espada seguindo um padrão. Pedras
retumbaram e tremeram, então o símbolo se abriu em espiral,
revelando um abismo escuro.
Lü Dongbin deixou os óculos inteligentes caírem no buraco.
— Não! — gritou Zack.
Ele não hesitou. Não pensou. Não se importou que suas mãos
estivessem algemadas.
Apenas correu e se jogou atrás dos óculos.
Os gritos chocados dos imperadores e dos imortais ecoaram em
seus ouvidos quando ele despencou na escuridão, e então mergulhou
num vórtex de água preta.
15
Como fazer a maré virar. Literalmente.

Zack sempre desejara ir a um parque aquático. Porém, como a mãe não podia
ir por conta da modéstia islâmica e nenhum amigo o havia convidado
para esse tipo de passeio, ele nunca tivera a oportunidade.
Ele não queria mais ir a um parque aquático. Não depois disso.
Nunca mais.
Era como se estivesse escorregando pelo toboágua mais íngreme
do mundo. O ar escapou de seus pulmões, que ansiavam por
oxigênio, mas só recebiam água fria. O nariz ardia enquanto a água
invadia suas narinas. Com as mãos algemadas, não conseguia se
proteger. Seu corpo recebia novas dores e machucados, como se fosse
uma lata caindo por um duto de lixo.
Pelo menos a escuridão permitia que ele visse os óculos
inteligentes se sacudindo um pouco adiante, como um peixe-
pescador. Ele tentou apanhá-los várias vezes até finalmente conseguir.
A magia retornou para seu corpo, aliviando um pouco a pressão no
peito. Porém, no instante em que tentou controlar a água, uma dor
pulsante atravessou seus meridianos, como o rasgar de uma ferida.
Zack permaneceu à mercê da torrente até que ela o cuspiu no oceano.
A água em sua boca ficou salgada, e a escuridão se converteu em
um tom azul-escuro. Seu corpo machucado não colidia mais com
paredes, mas uma corrente continuava a puxá-lo. Fracamente, ele
avistou uma fenda de escuridão que se alargava no ambiente azul.
Seria uma fossa? Aquele era o Ponto de Retorno ao Nada? O que faria
com ele? Zack segurou os óculos inteligentes sobre os olhos na
esperança de receber alguma orientação de Qin Shi Huang, mas sua
visão estava tão embaçada que não conseguia distinguir nada na
interface.
Zack estava tão cansado. Tudo doía tanto. Talvez fosse melhor
ele…
Uma mão o agarrou e girou pelo ombro. Uma luz dourada reluzia
diante de seu rosto, e então foi enfiada em sua boca. Era uma esfera
pequena e sólida, que bateu em seus dentes, incomodando Zack, mas
emitia um calor tão prazeroso e vibrante que ele confiou nela e a
engoliu.
O calor desceu por sua garganta e aqueceu seu corpo como um
gole do caldo de carne da mãe durante o inverno rigoroso do Maine.
A esfera derreteu sua dor e sua fome e aguçou seus sentidos. Zack
não sentia mais que precisava respirar.
O rosto de Tang Taizong — bom, o de Simon — entrou em foco,
mas estava com uma expressão de pânico. Ele gesticulou
urgentemente para que Zack se aproximasse, então apontou para trás
do garoto.
O Ponto de Retorno, o Guixu, os sugava para cada vez mais perto,
como um buraco negro submerso.
Zack cerrou os punhos. As algemas já não queimavam sua pele.
Com um movimento brusco dos cotovelos, ele as partiu ao meio,
libertando os braços. Ficou espantado, mas o sentimento foi logo
substituído por preocupação quando a atração do Guixu se tornou
mais forte, quase arrancando suas sandálias.
Zack passou um braço ao redor de Tang Taizong e bateu as pernas
com vigor, desejando que o mar os impulsionasse para cima. A água
clareava conforme a superfície do oceano se tornava visível, salpicada
pela luz do sol. Zack estendeu o braço para tocá-la, e a luz refletiu
sobre seu braço como veios de mármore. A superfície chegava cada
vez mais perto, até que ele emergiu com uma forte tosse, expelindo
água.
Girando a mão, Zack se livrou de toda a água que enchia seus
pulmões e se agarrava à sua cabeça. Então balançou o cabelo
magicamente seco.
— Garoto! — exclamou Tang Taizong em meio ao próprio ataque
de tosse, agarrando-se aos ombros de Zack. — Você é um gênio!
Ele sacudia o garoto, com os olhos arregalados de euforia.
— Você os forçou a ceder! Não tiveram escolha, precisaram me
mandar com uma pílula de imortalidade, ou teriam sido responsáveis
por condenar uma criança à morte! Incrível! Maravilhoso!
Absolutamente fantástico!
— Eles fizeram isso mesmo? — perguntou Zack, boquiaberto. —
Então agora eu sou imortal?
— Sim, por um dia! Preciso admitir, garoto: estou muito
impressionado com sua bravura. O Guixu poderia ter feito picadinho
de seu corpo e de seu espírito!
Zack arregalou os olhos.
— É sério?
Tang Taizong curvou os cantos da boca para baixo numa expressão
séria. Ele pressionou os lábios por um momento antes de responder:
— Talvez tenha sido melhor que você não soubesse.

O túnel devia ter uma magia que transcendia o espaço físico, porque,
embora Zack tivesse dado um mergulho bem demorado, isso não
explicava a distância tão grande que os separava das três ilhas
imortais. Segurando Tang Taizong, Zack nadou de volta até elas com
a ajuda da propulsão da água do mar, como se ele fosse uma sereia
ciborgue. As montanhas pareciam se expandir no horizonte conforme
os dois chegavam mais perto.
Uma multidão de imortais montados em nuvens estava reunida na
encosta da montanha para onde Zack se dirigia. Não havia uma praia
nem nada parecido, então Tang Taizong e ele acabaram tendo que
escalar algumas pedras. Zack os secou com um aceno da mão.
Lü Dongbin e o restante dos Oito Imortais desceram em nuvens,
parecendo tensos e ansiosos. A Senhora He segurava Wu Zetian —
como refém? Zack esperava que não.
Ele estava prestes a fazer uma reverência de agradecimento
desajeitada quando Xu Fu se aproximou em sua visão periférica. Zack
perdeu a vontade de parecer fraco.
— Obrigado a todos por me darem esta oportunidade — falou ele,
impassível. — Prometo que não usarei esta magia para o mal.
Lü Dongbin soltou o ar pelo nariz.
— Está bem.
— Vocês ainda pretendem nos acompanhar em nossa missão? —
perguntou Tang Taizong.
Lü Dongbin trocou olhares significativos com seus pares antes de
responder:
— Nós distrairemos o exército do Rei Dragão instigando um
tumulto sobrenatural no mar. Apenas isso.
Qin Shi Huang: Ah.
Qin Shi Huang: Eles não querem correr o risco de serem
enganados por mim quando estiverem longe das ilhas e
enfraquecidos ao máximo.
Zack ficou cheio de indignação. É claro que os imortais tinham
bons motivos para temer Qin Shi Huang, mas aquela cautela extrema
estava ficando cansativa. Ao se lembrar de como os imortais o haviam
tratado — trancafiando-o em uma caverna por cinco dias, deixando-o
passar fome, algemando-o com uma madeira que o queimava,
arremessando seus óculos inteligentes em um abismo de perdição
apesar de suas súplicas —, Zack ficou tão irritado que jogou os braços
para cima, canalizando sua magia com força máxima. Seus
meridianos irradiaram luz dourada com o poder da pílula em seu
estômago. Um enorme tsunami surgiu atrás dele. O vento salgado e
úmido balançou os cabelos de Zack.
Os Oito se puseram atrás de seus talismãs como se pegassem em
armas. Os imortais comuns gritaram, escondendo-se em suas nuvens.
Zack abriu um sorriso amargurado, especialmente para Xu Fu,
então fechou os punhos com um estalo. O tsunami despencou no
oceano com uma espuma parecida com refrigerante efervescente.
— Brincadeirinha! — disse Zack, levantando a palma das mãos. —
Ainda não sou do mal!
Os imortais resmungaram entre si.
Tang Taizong conteve uma risada com dificuldade.
— Garoto, por que você fez aquilo?
— Porque eu podia — murmurou Zack.

Como chegar ao Palácio do Dragão exigiu uma recapitulação por


parte de Li Bai, que havia ficado de fora do julgamento por causa de
sua conspiração. Em seus poemas, ele se comparava com frequência a
um kūnpéng, uma criatura mitológica que podia assumir a forma de
uma baleia e a de um pássaro enorme. Zack o conhecia de
Reinomítico. Blake, um de seus colegas de time, havia apanhado um
perto de uma cachoeira durante as férias. A criatura podia alternar
entre as classificações de Água e Vento.
Era surreal a diferença entre a vida de Zack de antes e a atual.
Pensando bem, ele percebeu que seus colegas de time não eram
seus amigos de verdade. Especialmente Aiden. Zack mal conseguia
acreditar que costumava viver na palma da mão dele, pisando em
ovos só para ser aceito no grupo. Qual tinha sido o sentido daquilo?
Não era como se o tivessem aceitado de verdade. Todas as suas
preocupações na escola pareciam risíveis quando comparadas às
coisas com que ele tinha que lidar no momento.
Simon dissera que havia apagado as memórias dos colegas sobre o
incidente de possessão, mas Zack queria voltar no tempo, mostrar
seus poderes na frente de Aiden e então ir embora, sabendo que
ninguém acreditaria quando Aiden gritasse sobre o que tinha visto.
Talvez fosse birra, mas Zack não se importava.
Zack, os imperadores e Li Bai pegaram carona nos talismãs dos
Oito Imortais até o local onde o mar prateado tranquilo encontrava o
mar preto sombrio, que parecia ser uma barreira mágica para
proteger as ilhas. De pé na flor de lótus da Senhora He, Wu Zetian e
Tang Taizong pressionaram uma mão nas costas de Li Bai. Com o
acesso à magia das ilhas concedido ao engolir as pílulas, eles
ajudaram a dar vida ao poema.
— Um dia, o grande pássaro péng se levantará com o vento, noventa
mil léguas acima como um tornado — recitaram os três juntos. — E
mesmo se o vento descansar, uma batida de suas asas basta para secar o
oceano!
Os meridianos dos imperadores se iluminaram em um tom
dourado, e a forma espiritual de Li Bai reluziu com mais intensidade.
Ele soltou o ar, os olhos cintilando na cor branca. O trio entoou os
versos repetidas vezes. Justo quando Zack começou a se perguntar
qual era o propósito daquilo, o mar preto se agitou com uma
ferocidade imensa. Um brilho azul avançou por baixo das ondas.
Com um jato d’água que teria arremessado todos para fora dos
talismãs se Zack não tivesse mantido as ondas sob controle, uma
baleia azul se lançou para fora do mar preto. Linhas brancas
deslumbrantes marcavam seu corpo colossal.
— Espera, essa é a baleia que virou nosso bote salva-vidas?! —
exclamou Zack, ofendido.
— Não é uma baleia — sussurrou Li Bai. — É o kūnpéng.
Ele estava certo. Nenhuma baleia tinha nadadeiras tão compridas e
vastas. Quando o kūnpéng as bateu, penas azuis apareceram onde sua
pele secava. Uma umidade salgada rodopiou pelo ar como névoa, e
então se derramou como chuva. Flutuando sobre a superfície agitada
do mar, o kūnpéng se inclinou na direção de Li Bai. O poeta encostou
a mão e a testa no enorme focinho da criatura. Recitando seu poema
mais uma vez, a forma de Li Bai se despedaçou em faixas de luz
branca e se fundiu às linhas brilhantes no corpo do kūnpéng. A
criatura abriu sua boca gigante, emitindo um som parecido com uma
música que ecoou através do mar.
— Esta é a nossa entrada — anunciou Tang Taizong.
— Vamos pegar carona ali dentro? — perguntou Zack. — Tipo o
Pinóquio?
— Não há um submarino mágico secreto melhor que esse —
retrucou Wu Zetian.
— De fato — concordou Tang Taizong, dando tapinhas nas costas
de Zack. — Está pronto para assaltar o tesouro de um Rei Dragão,
garoto?
— Não — murmurou Zack. — Mas desde quando isso importa?
16
Como é ter uma batalha fácil para variar

Zack, Simon e Melissa pegaram carona na boca luminosa do kūnpéng,


sentados em sua língua macia. Um cheiro forte de sal permanecia no
ar úmido. Felizmente, não era tão ruim. Zack supôs que criaturas
míticas não precisavam comer, então não havia pedaços presos de
comida em decomposição em sua boca.
— Ei, então… — começou Melissa, olhando para Zack com a
cabeça abaixada. A luz azul os pintava como se estivessem numa
partida de laser tag. — Desculpa se tratei você como se fosse um peso
morto irritante para o time. Na verdade, você até que é durão.
Zack se retraiu.
— Você me achava um peso morto irritante?
— Não acho mais! É só que você não sabia nada no começo e
ficava atrapalhando as coisas, aí nós tivemos que fazer o desvio para
ir atrás do recipiente de Shang Yang… mas você com certeza não é
mais um peso morto. — Melissa balançou os braços. — Longe disso.
— Sim, obrigado por nos livrar daquelas gaivotas e sereias e
pessoas de Chu raivosas — agradeceu Simon. Ele coçou a cabeça, as
pálpebras estremecendo. — Pareceu muito intenso. Eu assisti a tudo
de dentro da minha mente e consegui ouvir você gritando. Eu me
senti péssimo. Então, sério, obrigado.
Zack ficou vermelho, olhando para baixo.
— Não foi nada. Quer dizer, na verdade, doeu muito… tipo,
muito… e nos custou vários dias, mas o importante é que estamos
aqui agora — disse ele, gesticulando para a boca do kūnpéng. — Só
que ainda não sei direito o que está acontecendo na metade do
tempo. Eu só vou na onda. Falando nisso, vocês nunca terminaram de
contar aquela segunda história. Como é que a esposa do comandante
da fortaleza passou três anos grávida?
— Hã… — fizeram Simon e Melissa, se entreolhando.
Será que Zack havia se confundido?
— A segunda história do Rei Dragão? — insistiu ele.
— Ah, sei — concordou Simon, mas parecia distraído.
— Você quer mesmo ouvir essa história? — perguntou Melissa. —
É, tipo, bem longa e confusa.
Simon inclinou a cabeça, acrescentando:
— É, e sabe do que mais? Nem é tão importante assim.
Zack franziu a testa.
— Você sempre acha que aprender história é importante.
— É só que… eu me sinto mal de te entediar com isso o tempo
todo.
— Me entediar? Simon, eu não acho suas histórias entediantes.
Quem você acha que eu sou?
Uma dor aguda atingiu o coração de Zack. Ele havia mudado de
escola o suficiente para saber que era difícil manter amizades depois
de se afastarem, mas aquela aventura era especial de verdade. Zack
não sabia se, sem querer, havia passado a impressão de que estava
doido para se livrar de Simon e Melissa, mas isso estava longe de ser
verdade. Mesmo depois de voltar para os Estados Unidos, Zack queria
manter contato e ouvir mais das histórias de Simon.
— Conta — insistiu ele. — Por favor.
— Certo, hã… — começou Simon. — A esposa do comandante da
fortaleza acabou dando à luz uma criança superpoderosa que já
nasceu sabendo andar e falar. O menino era tão poderoso que,
quando tinha sete anos, bastava ele tomar um banho no Mar do Leste
para agitar as ondas. O Rei Dragão se assustou e enviou um batedor
para investigar o que estava acontecendo. Ao ver a criança, o batedor
lhe deu um sermão. O menino ficou tão irritado que matou o batedor
e, quando o filho do Rei Dragão veio como reforço, matou-o também.
A criança até rasgou os tendões do Príncipe Dragão. O Rei Dragão
obviamente ficou furioso com o que Nezha fez…
— A criança — corrigiu Melissa, alarmada, arregalando os olhos.
— O que a criança fez.
— Ah, isso, a criança! — Simon estapeou a própria testa. — Você
não precisa se lembrar do nome dele. É meio esquisito.
— Nezha? — repetiu Zack. — É um nome tranquilo. Consigo
lembrar. Nê-zha.
— Não precisa mesmo! — exclamou Melissa, abrindo um sorriso
excessivamente radiante.
Uma mistura amarga de irritação e tristeza se agitou dentro de
Zack, como as correntes do oceano lá fora.
— Escuta, galera, vocês não precisam simplificar as histórias para
mim. Eu não sou tão devagar assim. Estou acompanhando bem até
agora. O Rei Dragão ficou furioso com Nezha por matar seu filho. E
aí?
— E aííííí… ele foi denunciar… Nezha… para o Imperador do Céu
— prosseguiu Simon, parecendo nervoso por algum motivo. — Mas
Nezha o alcançou nos portões do Palácio do Céu e o surrou tanto que
o Rei Dragão precisou fugir como uma cobrinha, em vez de um
dragão.
— Espera, então esse Nezha é um espírito de verdade, certo? —
Zack olhou ao redor, embora não conseguisse ver nada além do
kūnpéng. — É por isso que vocês estão tão estranhos? Estão com
medo de que ele apareça? Porque ele parece bem malvado.
— É… isso! — concordou Melissa, soltando um suspiro enorme e
balançando a cabeça. — Nunca dá para saber quem vai nos atacar,
sabe?
— Então por que não falaram logo?
Simon desatou a rir, embora o som fosse estranhamente tenso e
desajeitado.
— A Melissa admitir que está com medo? Fala sério!
Zack segurou a própria risada. Simon também devia estar bem
assustado.
— Tá bom, vocês não precisam chamar ele pelo nome. Só digam
“a criança”.
— Certo. — Simon fez um gesto apaziguador com as mãos. —
Então, o Imperador do Céu ficou sabendo do que a criança fez e
condenou toda a cidade onde ela havia nascido. Como não queria
deixar a família e os vizinhos sofrerem, a criança tirou a própria vida
para se redimir pelos seus atos. Tempos depois, um sábio taoísta lhe
deu um novo corpo imortal feito de flor de lótus, mas já é outra
história.
— E não é importante — acrescentou Melissa.
— Isso. Não é importante. O Rei Dragão não aparece nela.
Zack afagou os lábios.
— Então uma criança raivosa que nasceu com poder demais matou
um batedor e um príncipe, deu uma surra no Rei Dragão e depois se
matou para que outras pessoas não fossem punidas por sua causa. Tá
bom. Não foi tão difícil assim de entender.
— Bom, deixamos muitos detalhes de fora — disse Simon.
— Que também não são importantes! — insistiu Melissa.
— Não tem nada que poderia nos ajudar a derrotar o Rei Dragão?
— perguntou Zack. — Ele não tem uma fraqueza especial nessas
lendas ou algo assim?
— Ah, basta a gente usar nossos poderes até ele implorar por
piedade — garantiu Melissa.
— Deve ser tranquilo — falou Simon. — Nas lendas, o Rei Dragão
sempre leva uma surra.
Melissa juntou as mãos, abrindo um sorriso largo.
— É, tá no papo.
— Ótimo — disse Zack, suspirando de alívio.
Já estava na hora de terem uma batalha fácil.

Quanto mais se afastavam das ilhas, menos o kūnpéng brilhava.


Quando a criatura desacelerou até parar, Zack mal conseguia
enxergar os rostos de Simon e Melissa. Os três se despiram até
ficarem somente com os trajes de banho em estilo olímpico que
haviam trazido de Xangai e vestido por baixo das roupas antes de
saírem de Penglai. As pílulas de imortalidade impediriam que
congelassem até a morte ou precisassem de oxigênio. Na teoria.
— A gente tem certeza de que as pílulas ainda vão funcionar aqui?
— perguntou Zack.
Ele observou as próprias mãos depois de guardar as roupas
normais na mochila. Seus dedos não passavam de silhuetas na luz
fraca. Simon havia mencionado que as pílulas, como o kūnpéng,
dependiam da magia de Penglai.
Simon pôs um dedo na têmpora para se concentrar, então disse:
— Tang Taizong está me falando que a magia das ilhas tem mesmo
uma área de cobertura menor do que o esperado, mas deve dar
conta. No pior dos casos, as pílulas só vão perder o efeito mais
rápido. Mas temos muita margem de segurança. Não é possível que a
gente demore tanto para pegar o selo.
— Ainda mais com os Oito Imortais distraindo a maior parte do
exército do Rei Dragão — acrescentou Melissa, que também parecia
mergulhada em pensamentos ao recolocar a mochila. Provavelmente
estava falando com Wu Zetian em sua cabeça. — Não precisamos
mais nos esconder. Podemos nadar direto para a câmara do tesouro e
roubar o selo. Mas Wu Zetian disse que ela e Tang Taizong devem
ficar hibernando para que seus sinais espirituais não atraiam todos os
soldados que ficaram para trás no palácio. Pronto? — perguntou ela
para Simon.
Simon olhou para Zack, apertando as alças da própria mochila
para que ficassem justas no corpo, e respondeu:
— Ah, cara. Acho que eu também vou ter que sofrer um pouco
pelo bem da magia.
Já que nem as pílulas, nem a magia dos imperadores lhes davam a
habilidade de falar debaixo d’água, Simon e Melissa invocaram suas
armas naquele instante. Ambas emitiram um brilho dourado. Simon
fez uma careta para o arco e suas flechas com recuo. Melissa fez o
upgrade de seu chicote espiritual para o martelo espiritual.
Infelizmente, era impossível sustentar o encantamento para chamar
espada de Zack, então ele só afivelou os óculos de mergulho e se
preparou para usar sua magia de água.
— Lembrem-se de manter os lábios fechados para não engolir um
golão de sal! — avisou Simon, colocando a mão livre no céu da boca
do kūnpéng.
A boca da criatura se abriu, deixando água escorrer para dentro.
Zack tentou contê-la instintivamente, ou ao menos manter uma bolha
de ar ao redor deles, mas era tão impossível quanto a vez que ele
tentou impedir o bote salva-vidas de afundar. Os três ficaram
submersos em milissegundos. Para a surpresa de Zack, aquilo
realmente não afetou seu corpo. Não sentia frio, e nenhuma vontade
de respirar se apossou de seus pulmões.
Mas o espetáculo no meio das águas escuras tirou seu fôlego. Era
outra cidade-palácio, só que os edifícios em estilo chinês pareciam ser
feitos de cristal azul radiante.
Depois de se despedirem de Li Bai e do kūnpéng — que
planejavam se juntar aos Oito Imortais na volta para terra firme, pois
era mais seguro do que arriscar uma perseguição debaixo d’água —,
Zack, Simon e Melissa nadaram em direção à cidade. O garoto
empurrava a água ao redor para que o peso das mochilas não os
atrasasse. À medida que se aproximavam, mais detalhes fascinavam
Zack. Havia padrões complexos entalhados em toda a superfície dos
edifícios de cristal, como murais de corais, crustáceos, peixes e outras
criaturas marinhas, tão belos quando esculturas de gelo. Holofotes se
projetavam da cidade, seus longos feixes de luz azul se espalhando
nas profundezas. Foi só quando uma enxurrada de sal atacou sua
língua que Zack percebeu que havia aberto a boca. Ele cuspiu tanto
do gosto quanto possível e se forçou a ficar mais atento. Estavam
entrando em território inimigo, afinal de contas.
Justo quando Zack se perguntou se Simon e Melissa tinham
alguma ideia de onde o selo estava, ele o sentiu. Era um poder
inimaginável, concentrado num único ponto dentro de um edifício
específico perto do centro do extenso complexo do palácio. Eles
realmente poderiam apenas nadar lá para dentro.
Se não fosse pelos soldados.
É claro que o Rei Dragão não deixaria seu palácio totalmente
desprotegido. Os primeiros soldados avançaram assim que o brilho da
cidade revelou Zack e seus amigos. Ele havia ouvido falar de
“soldados-camarões e generais-caranguejos” no exército do Rei
Dragão, e enfim entendia o porquê. Eles literalmente pareciam
camarões, lagostas e caranguejos gigantes, embora estivessem
trajados com azul brilhante e fossem humanoides o suficiente para
segurar armas que pareciam pistolas a laser estilo ficção científica.
Feixes de luz espirituais saíam das pistolas, bem na direção do trio.
Zack sentiu como se tivesse ido parar em um filme do Aquaman.
Quase estranhou que as armas não fizessem pei pei pei ao disparar.
Simon atirou várias flechas espirituais rápidas. Cada soldado
atingido era paralisado e se estilhaçava em partículas azuis como
poeira estelar, mas Simon também estremecia com a dor do recuo. Os
soldados que ele não acertou, Melissa esmagou até virar glitter com
seu martelo espiritual. Como Zack não podia exterminar ninguém
sem uma arma espiritual, ele focou em impulsionar a equipe em
direção ao alvo.
Simon e Melissa o defendiam das linhas de soldados enquanto os
três aceleravam sobre o complexo do palácio. Por mais intensa que
fosse a batalha, estava bizarramente quieto; não se ouvia nada além
do movimento das águas.
As portas duplas de cada edifício eram embutidas nos tetos e
telhados inclinados. Zack levou sua equipe para baixo até o edifício
certo em meio a um vórtex de bolhas. Com vários golpes de martelo,
Melissa esmurrou as portas até elas cederem.
A entrada se abria para uma câmara de tesouro deslumbrante,
maior do que um ginásio, e cheia de objetos lustrosos de bronze,
enfeites com joias e porcelana estampada, tudo distorcido por
correntes de água cintilantes. Linhas pálidas, como os reflexos de
água numa caverna, ondulavam nas paredes de cristal da câmara.
E, no meio daquilo tudo, dentro de uma redoma de vidro, num
pedestal de pérolas, estava ele: o Selo Relíquia do Reino. O artefato
mais importante da história da China, entalhado por Qin Shi Huang e
repassado de imperador a imperador ao longo das dinastias.
Ansiedade corria pelas veias de Zack. O selo não era maior do que
a palma de sua mão, e ainda assim ele conseguia sentir que, no
instante que o tocasse, se tornaria imbatível. A batalha estaria ganha.
Ele avançou para baixo.
Pouco antes de seus dedos encostarem na caixa de vidro, a água se
apertou em volta do corpo até Zack não conseguir mais se mexer.
Qin Shi Huang: O que você está fazendo?
Qin Shi Huang: Liberte-se!
Zack não conseguia. Por mais que gritasse mentalmente, a água
não obedecia seus comandos. Em vez disso, ela o forçou para cima e
trouxe Simon e Melissa para baixo até ficarem ao lado dele. Uma
força invisível torceu as mãos dos dois até elas se abrirem. Suas
armas espirituais se dissolveram como doce.
— Mortais arrogantes! — zumbiu uma voz áspera, escoando no
crânio de Zack, não muito diferente de como os alto-falantes dos
óculos inteligentes conduziam o som. — Vocês realmente acharam
que eu deixaria meu lar ser devastado de novo?
Uma figura flutuou para dentro da sala dos tesouros, vinda de um
corredor de cristal em frente à câmara. Seu corpo, do tamanho de um
ser humano, estava envolto em uma túnica verde elegante, mas tinha
a cabeça de um dragão chinês, com pele azul, chifres e um focinho
comprido com bigodes. Um chapéu igual ao de Qin Shi Huang
repousava entre seus chifres.
— Não fiz nada durante o último milênio além de cultivar meu
poder sobre meu reino!
Devia ser o Rei Dragão falando, mas seu focinho/boca não se
mexia. O som da voz vinha da própria água.
— Obtive controle absoluto de cada molécula de água que cerca
meu lar. Consigo sentir tudo, até o menor krill à deriva. Mas vocês
não perceberam isso, não é? Não, vocês três…
O Rei Dragão nadou para a frente deles.
— Os grandes e ilustres Wu Zetian, Tang Taizong e Qin Shi
Huang… — o rei olhou cada um deles nos olhos —… foram
arrogantes a ponto de achar que poderiam invadir o coração de meu
palácio, onde meu poder está no ápice. Bem, agora jamais hão de
escapar de meu controle. Vocês hão de servir como belos troféus,
serão avisos eficazes para todos que ousarem cogitar invadir meu lar
no futuro.
Por mais que estivesse imune ao frio, um medo gélido tomou conta
de Zack. O medo de que o Rei Dragão estivesse certo. O poder do
Selo Relíquia o chamava, centímetros atrás de Zack, mas o garoto não
conseguia canalizá-lo. Não conseguia fazer nada. O aperto da água ao
seu redor era firme como concreto. Ele só conseguia mover os olhos,
secos por baixo dos óculos de mergulho.
A água o fez girar junto com Simon e Melissa, para que
encarassem o selo.
O Rei Dragão deslizou para trás da redoma, apoiando uma mão
azul sobre ela. Sua pele era dura como couro e suas unhas, longas
como garras.
— Dói, não é? Chegar tão perto do que planejaram, sangraram e
mataram para obter durante suas vidas mortais, e ainda assim ser
incapazes de alcançá-lo?
Zack rezou para que o Rei Dragão acidentalmente esmagasse a
redoma com a mão, mas é claro que isso não aconteceu. A frustração
se avolumou nele, como lava sem um vulcão para poder entrar em
erupção.
Zack queria tanto o selo que teria quebrado o próprio braço com o
maior prazer para tê-lo em mãos, mas nada funcionava. Estava preso
no próprio corpo. E temia que realmente não houvesse saída. Os três
ficariam aprisionados no fundo do mar até as pílulas de imortalidade
perderem efeito, e então…
Lágrimas brotaram em seus olhos. Zack lançou um olhar
suplicante para o Rei Dragão, implorando silenciosamente para que
os deixasse ir embora.
A expressão do Rei Dragão mudou. Ele observou Zack com mais
atenção, seu focinho comprido quase tocando o queixo do garoto.
— Você… não é Qin Shi Huang! Não pode ser. Nunca ouvi falar de
Qin Shi Huang demonstrando medo dessa maneira.
O Rei Dragão se afastou e lançou um olhar acusatório para os três,
embora Tang Taizong e Wu Zetian houvessem tomado controle dos
corpos de Simon e Melissa, como indicado pelas legendas virtuais.
Seus olhares ferviam de ódio.
Zack desejou que também pudesse se retrair para dentro do
próprio corpo e deixar que um imperador lendário encarasse a
realidade em seu lugar quando as coisas ficassem difíceis demais.
Mas não podia. Ele estava completamente sozinho. Sem ter para onde
fugir.
Qin Shi Huang: Não entre em pânico.
Qin Shi Huang: Tem que haver uma saída.
Qin Shi Huang: Sempre há.
Ou… Zack não estava completamente sozinho, refletiu. Mais do
que nunca, ele rezou para que Qin Shi Huang desferisse as manobras
de conquistador de primeira das quais ele tanto se gabava.
Tire a gente dessa!, o garoto quis gritar.
O Rei Dragão deslizou ao redor da redoma até o corredor de onde
havia saído, com a túnica verde balançando. A água carregou Zack e
os imperadores atrás dele como se fossem três estátuas.
Pavor pulsou mais forte dentro de Zack. O que estava
acontecendo? Para onde seriam levados? Era algo bom ou ruim o Rei
Dragão ter percebido que Zack era um impostor?
A água apertava Zack com tanta força que ele não conseguia nem
tremer de medo. No final do corredor, o Rei Dragão passou por uma
espécie de membrana que distorceu e nublou sua silhueta.
Quando Zack e os imperadores foram puxados para dentro da
membrana, a sensação agradável e seca de ar atingiu seu rosto, mas o
restante de seu corpo foi impedido de atravessar para o outro lado.
Wu Zetian se recompôs primeiro, começando a entoar:
— Como o sol e a lua…
Seu encantamento foi interrompido por um gorgolejo quando uma
faixa de água envolveu sua boca como uma mordaça.
O Rei Dragão subiu numa plataforma e se sentou num trono
elaborado, que era feito do mesmo cristal azul brilhante que todo o
palácio. Quando o rei falou, usando a boca desta vez, sua voz
retumbou pela sala do trono, que era do tamanho de uma catedral.
— Se vocês, garotos, tentarem algo parecido, também serão
silenciados. De uma vez por todas.
Dois soldados com cabeça de lagosta montavam guarda ao lado do
trono. Pilares de cristal esculpido, espalhados pelo ambiente azul
pouco iluminado, subiam em direção ao teto alto de água pura e
tremeluzente, que projetava uma luz fluida azul e branca.
— Você… — ofegou Tang Taizong. — Não era para você ser tão
poderoso assim! Não há registro ou lenda sobre isso!
— É mesmo? Acho que os mortais simplesmente não estão a par
das novidades. Eu deveria agradecê-los por preservar meu elemento
surpresa. Mas, se eles não estavam cientes do meu poder antes, isto
certamente os alertará. Talvez haja alguém neste exato momento se
sentindo inspirado a tecer uma fábula sobre como o Rei Dragão do
Leste derrotou três dos imperadores mais ilustres da história chinesa.
— Não sobrará ninguém para contar lendas sobre você se não nos
der o Selo Relíquia! — retrucou Tang Taizong. — O tampão do portal
espiritual está se afrouxando, e os espíritos que saírem de lá podem…
— Lançar o caos sobre o mundo mortal e possivelmente causar a
extinção de toda a humanidade. Sim, eu sei disso. Por mim, tudo
bem.
Tang Taizong recuou a cabeça contra a parede de água que os
prendia.
— Tudo bem?
A expressão do Rei Dragão se tornou sombria na luz azul e aguada
da sala do trono.
— Pense em como os mortais têm despejado lixo no oceano,
poluído suas águas, pescado espécies marinhas e provocado uma
extinção em massa. Eu os deixaria lutar entre si até se aniquilarem
com o maior prazer.
— Mas a sua lenda morreria. Assim como você!
O Rei Dragão permaneceu em silêncio por um instante, então
disse:
— Se isso for restaurar a paz e a vida ao oceano, é um sacrifício
que estou disposto a fazer.
— Você não pode estar falando sé…
Com um aceno da mão, o Rei Dragão amordaçou Tang Taizong
com outra faixa de água.
— Não darei mais ouvidos a nada disso — anunciou, voltando sua
atenção para Zack. — Agora, menino, importa-se de explicar sua
situação?
Qin Shi Huang: Garoto, você é a nossa última esperança.
Qin Shi Huang: DÊ UM JEITO DE CONSEGUIR A PIEDADE
DELE.
Você está de brincadeira com a minha cara?, Zack quase gritou de
volta.
Qin Shi Huang não tinha nenhuma sugestão? Tudo dependia de
Zack?
— Claro, senhor Lorde Rei Dragão. Vossa Majestade. E-eu vim aqui
porque Qin Shi Huang não me possuiu direito — gaguejou Zack,
temendo que qualquer palavra pudesse ser a última. — E, por causa
disso, não consegui impedir que demônios roubassem o espírito da
minha mãe. Então, preciso do Selo Relíquia para salvá-la.
O Rei Dragão explodiu em gargalhadas ruidosas. O som ecoou nas
paredes de cristal brilhante até parecer que um exército inteiro estava
rindo de Zack.
— Ah, isso é fabuloso! Qin Shi Huang fracassando em conseguir o
que queria por causa de um menininho. Mas essa tentativa barata de
ganhar minha piedade não vai funcionar. Adeus — disse o Rei
Dragão, erguendo a mão em forma de garra.
— O que você faria se pudesse usar o Selo Relíquia? — perguntou
Zack sem pensar.
O Rei Dragão abaixou um pouco a mão.
— Como é?
— Você consegue sentir a energia do selo, certo? Caso contrário,
não teria guardado ele. Mas me explicaram que, sem o espírito de um
imperador lendário para usar seu poder, é só uma pedra bonita. Isso
não deixa você louco? Se essa restrição não existisse, o que você
faria?
— Por que quer saber? — esbravejou o Rei Dragão, mas já estava
com a mão completamente abaixada.
— Nós somos imperadores lendários — continuou Zack, ofegante
de desespero. — Então poderíamos usar o selo para fazer algo por
você. Algo que, caso contrário, você não conseguiria fazer. Quer dizer,
desde que não seja nada tão extremo quanto matar todos os seres
humanos.
Qin Shi Huang: Ah, essa é uma boa tática!
Qin Shi Huang: Continue!
O Rei Dragão esmurrou o braço largo do trono.
— É claro que não desejo matar todos os seres humanos! Eu só
não os impediria de massacrar uns aos outros. Mas está mesmo
sugerindo um acordo comigo? Por que eu confiaria em uma
negociação com você?
— Porque eu não sou Qin Shi Huang! Ele não consegue me
controlar. Caso contrário, teria se apossado de mim para berrar com
você agora mesmo. O motivo de ele não ter conseguido se conectar a
mim foi porque eu não fui criado com uma conexão espiritual forte às
lendas chinesas. Eu não sei a sua história de cor. Então, desde que
queira algo razoável, eu não tenho motivo para te enganar.
As pupilas em fenda do Rei Dragão se fecharam. Ele apoiou as
garras no colo.
— A única coisa que sempre quis foi proteger meu lar e garantir
que ele nunca seria invadido ou corrompido de novo. Você não
poderia permanecer aqui embaixo como um soldado de meu exército,
então que tipo de ajuda poderia me oferecer?
— Poderíamos ajudar de outras maneiras! Vamos nos tornar
ambientalistas! E fazer manifestações contra o SeaWorld! Aliás… por
que as pessoas continuam te atacando? Não sei direito quem você é,
na verdade. Por acaso você é algum tipo de tirano cruel do mar que
aterroriza os litorais?
— É claro que não! Pelo menos, não nos últimos três mil anos!
Desde que aquela ameaça chamada Nezha matou meu filho e quase
destruiu meu palácio, só tenho cuidado da minha própria vida. Ainda
assim, tipinhos como vocês continuam invadindo meu palácio e
causando destruição em minhas águas, sem a menor consideração
pelo bem-estar de meus cidadãos!
Zack franziu o cenho, confuso.
— Você teria nos emprestado o Selo Relíquia se tivéssemos pedido
com educação?
— Se tivessem me tratado com respeito, talvez!
Zack virou a cabeça tanto quanto conseguia para encarar
duramente os imperadores.
— Nenhum de vocês pensou em pedir o selo para ele?
Wu Zetian e Tang Taizong desviaram o olhar, culpados.
— Mas é claro que não — interveio o Rei Dragão, amargurado. —
Destruir meu palácio já é praticamente uma tradição cultural. Agora
mesmo, os Oito Imortais estão tentando destruí-lo pela segunda vez.
Mas isso acaba agora! — Ele aguçou o olhar. — Assim que a notícia
de que eu derrotei vocês três se espalhar.
— E se… e se derrotássemos os Oito Imortais em seu nome? —
sugeriu Zack, sentindo o coração bater mais forte no peito confinado.
— Se você não os derrotou ainda, então vocês devem ser páreos um
para o outro, certo? Você ficaria mais fraco se saísse para enfrentá-
los, mas nós não ficaríamos. Podemos lutar com eles. Conseguir
vingança para você.
— Faça-me o favor! Não pense que não percebi que eles estão de
complô com vocês três! Vocês devem ter tomado as pílulas deles para
seus corpos mortais sobreviverem aqui embaixo.
— Mas podemos traí-los.
Na visão periférica de Zack, os olhos de Tang Taizong se
arregalaram.
Qin Shi Huang: GAROTO, O QUE VOCÊ…?
Qin Shi Huang: Deixa pra lá.
Qin Shi Huang: Deixa pra lá, isso pode funcionar.
— Vocês não fariam isso — rebateu o Rei Dragão, embora seu tom
pendesse para o lado da incerteza.
— Por que não? — perguntou Zack, soltando uma risada quase
maníaca. Ele não tinha nada a perder. — Acho que não tem nada de
inerentemente bom neles ou de inerentemente ruim em você. Na
verdade, eles não me trataram muito bem e, para ser sincero, isso me
irritou um pouco. Eles só me deram a pílula por culpa. É uma longa
história.
O Rei Dragão se reclinou em seu trono, franzindo o cenho e
tamborilando no braço do móvel.
— Vamos — insistiu Zack. — Eu sou o hospedeiro de Qin Shi
Huang. Você acha mesmo que eu não trairia os imortais com o maior
prazer? Eles até esperam que eu faça algo assim. Por isso não vieram
aqui para baixo com a gente. Ter três imperadores lutando uma
batalha épica em seu nome contra os Oito Imortais não seria uma
lenda bem mais emocionante do que você nos trancafiar no palácio
usando água? Para serem lembradas, as lendas precisam ser
emocionantes!
O Rei Dragão permaneceu em silêncio por um bom tempo antes de
dizer:
— Depois. Exterminem os Oito Imortais como parte de meu
exército, e eu lhes concederei o Selo Relíquia depois.
17
Como acabar com imortais se tornando o Darth Vader
subaquático

Zack e os imperadores partiram em direção à superfície montados em


pequenos tubarões com armaduras azuis radiantes. Eles pareciam
mesmo fazer parte de um filme do Aquaman. Era um novo extremo
na Lista de Coisas Que Zack Nunca Pensou Que Faria, Mas Estava
Fazendo Mesmo Assim.
Para manter algum controle sobre os três imperadores após terem
deixado o palácio, o Rei Dragão também havia conjurado armaduras
sobre eles. Eram feitas do cristal azul que ele podia comandar à
vontade. Os elmos, que possuíam apenas duas fendas afiadas como
abertura para os olhos, projetavam-se para cima como cabeças de
lagostas, fazendo eles se misturarem ao restante dos soldados que
nadavam pelas águas escuras. A forma como as armaduras se
curvavam sobre suas mochilas fazia com que os três se parecessem
ainda mais com crustáceos. Rastros de bolhas se alastravam atrás do
exército, refletindo a luz das armaduras. Eles não podiam falar, mas
Wu Zetian e Tang Taizong lançaram para Zack vários olhares de
Espero que saiba o que está fazendo por trás dos elmos.
Na verdade, Zack não sabia o que estava fazendo. Sua cabeça era
uma bagunça enorme, ecoando seu pulso acelerado. Mas ele não via
escolha a não ser seguir em frente.
Não levou muito tempo para ele entender por que um ataque dos
Oito Imortais na superfície provocaria uma resposta imediata do
exército do Rei Dragão. As águas estavam revoltas como numa
tempestade. Zack tinha que se agarrar com força às rédeas de seu
tubarão com uma das mãos enquanto estabilizava as correntezas com
a outra. Voltar a usar seus poderes aquáticos era como conseguir
respirar outra vez depois de ter sido esmagado entre duas paredes.
Feixes de luz brilharam acima, disparados das pistolas dos
soldados. Os imortais revidavam com seus talismãs, que eram
claramente visíveis em meio à massa de armaduras azuis. Com a água
tão escura, a cena parecia uma batalha espacial, só que sem os
barulhos. Embora, segundo o professor de ciências de Zack, não
devesse haver som durante uma batalha no espaço.
Qin Shi Huang: Primeiro, derrote o líder deles, Lü Dongbin, e
aquele que empunha o leque, Zhongli Quan.
Qin Shi Huang: Eles são os mais poderosos.
Um espasmo percorreu os nervos de Zack. Ele havia agido feito
doido ao sugerir trair os Oito, mas ter que exterminá-los fez Zack
pensar duas vezes. Era verdade que eles ressurgiriam em algum
momento, mas perderiam todas as memórias que não tivessem sido
preservadas pela cultura chinesa. Seria certo Zack fazer aquilo só
para conseguir o que queria?
Por outro lado, se os Oito tivessem lutado junto com a equipe de
Zack no Palácio do Dragão, talvez as coisas tivessem sido diferentes.
Uma legenda nos óculos inteligentes alertou Zack sobre a presença
de Zhongli Quan, o imortal barrigudo e sem camisa com o cabelo
arrumado em dois coques idênticos. Conforme agitava seu enorme
leque, todo animado, soldados eram empurrados para longe dele.
Qin Shi Huang: Imobilize-o com a água para que Tang Taizong
possa exterminá-lo com uma flecha.
Ah, não. Isso vai mesmo acontecer.
Fugir dali passou pela mente de Zack. O Rei Dragão havia
ameaçado trazê-los de volta se “saíssem um pouquinho da linha”,
mas Zack tinha certeza de que estava longe o bastante do palácio
para conseguir fugir caso se esforçasse.
Porém, aí ele não teria mais esperança de conseguir o Selo
Relíquia — e, portanto, de salvar a mãe e toda a China em sete dias.
Zack cutucou Tang Taizong com o cotovelo e apontou para Zhongli
Quan. Tang Taizong assentiu, preparando o arco. O Rei Dragão havia
deixado que Wu Zetian e ele invocassem suas armas de novo na sala
do trono (em seguida, amarrou seus braços com água, é claro). Pelo
menos Zack só tinha que ser um cúmplice, e não o responsável por
atirar.
Desculpa, sr. Zhongli, pensou Zack, então pôs a mão em forma de
garra como se fosse Darth Vader usando a Força.
Zhongli Quan paralisou no meio de uma lufada do leque. Seus
olhos se arregalaram. Graças aos rápidos movimentos de Tang
Taizong na visão periférica de Zack, uma flecha espiritual se alojou
no peito nu de Zhongli Quan. Depois outra. E mais outra, até que ele
se despedaçou em partículas cintilantes.
A batalha inteira pareceu parar e se voltar na direção da nuvem
que era como uma nébula. Vários imortais deixaram escapar gritos
silenciosos, suas bocas formando o nome de Zhongli Quan. Um peso
gelado se apoderou do peito de Zack.
Ele não conseguia deixar de sentir que havia cometido um erro
grave.
Qin Shi Huang: RÁPIDO, ACERTE LÜ DONGBIN ANTES QUE
ELE VEJA VOCÊ.
Qin Shi Huang: AGORA.
Outra legenda destacou Lü Dongbin numa aglomeração de
soldados próxima, erguendo a espada exterminadora do mal
enquanto procurava o agressor de Zhongli Quan. Embora a mão de
Zack tremesse, fora de seu controle, ele também o conteve igual ao
Darth Vader. Tang Taizong rapidamente preparou o arco outra vez.
As flechas o atingiram, mas Lü Dongbin estava longe demais para
que o poder de Zack funcionasse com força total. Ele se libertou e
avistou Zack e os imperadores. Gritando sem som, apontou a espada
para eles antes de uma última flecha transformá-lo em glitter
espiritual.
Todos estavam olhando para Zack e os imperadores. A expressão
de Li da Muleta de Ferro se contorceu de raiva, provocando uma
pontada de medo e culpa no coração de Zack. Li da Muleta de Ferro
avançou na direção dele, mas a Senhora He o apanhou pelo ombro e
apontou para cima.
Qin Shi Huang: Ela vai dizer para eles baterem em retirada para a
superfície a fim de escaparem de nossos poderes aquáticos.
Qin Shi Huang: DETENHA-OS.
Wu Zetian já estava investindo contra os imortais em seu tubarão.
Zack puxou as rédeas do próprio animal para que fizesse o mesmo,
então estendeu a mão para arrastar os inimigos para baixo.
Resistindo ao seu poder, os imortais nadaram ao redor da Senhora
He. Ela ergueu braços num gesto ágil. Sua flor de lótus ficou enorme
e se fechou ao redor de todos eles com um floreio, então disparou
para cima como um torpedo.
A superfície do oceano os alcançou muito mais rápido do que o
esperado, agitando-se com trechos pálidos e riscos de luar. A viagem
de Penglai até ali tinha levado tanto tempo que a noite havia caído.
A flor de lótus da Senhora He irrompeu do oceano, provocando
marolas espumosas nas ondas na superfície.
Qin Shi Huang: Tome cuidado.
Qin Shi Huang: Eles são bem mais poderosos do que você
imagina.
Qin Shi Huang: Não estavam levando a batalha a sério antes,
mas agora estão.
Contendo a ansiedade diante da possibilidade de estar
mergulhando de cabeça em direção à própria ruína, Zack deixou seu
tubarão disparar, seguindo o de Wu Zetian.
No instante em que sua cabeça saiu da água, gritos raivosos
bombardearam seus ouvidos, a maioria variações de “Como ousa?”.
Porém, entre os imortais ralhando na flor de lótus, havia um de
costas. A criança Lan Caihe, que jogava punhados de flores luminosas
para fora de seu cesto. Em vez de cair no mar, as pétalas flutuavam
para longe na imensidão da noite.
Qin Shi Huang: AH, NÃO!
Qin Shi Huang: LAN CAIHE CHAMOU REFORÇOS.
Qin Shi Huang: ACABE COM ISSO ANTES QUE ELES CHEGUEM
AQUI.
Bem quando Zack lançou uma maré sobre eles, os imortais
dispararam seus poderes. Um deles, de vestes elegantes, estalou um
par de castanholas compridas, e a maré se partiu ao redor da flor de
lótus. Com movimentos persuasivos por trás das pétalas, a Senhora
He expeliu um perfume desnorteante que fez a cabeça de Zack girar.
Um velho começou a cantar enquanto estapeava a parte de baixo de
um tambor comprido e esguio. As ondas sonoras se espalharam sobre
o oceano como ventos tempestuosos, empurrando Zack e os
imperadores para trás em seus tubarões. Não bastasse isso, um
imortal de túnica folgada começou a tocar uma flauta.
Como se tivessem sentido cheiro de sangue, os tubarões de Zack e
dos imperadores enlouqueceram, se debatendo e os arremessando de
suas costas. Quando Zack caiu de lado na água, as mandíbulas
enormes de seu tubarão se abriram. Gritando por dentro, ele o
empurrou para longe com um jato de água.
Os outros tubarões faziam o mesmo com os imperadores. Zack
teve que manter o foco em forçar os tubarões para as profundezas,
em vez de continuar resistindo aos ataques dos imortais. Ele mal
conseguia acompanhar quem estava fazendo o quê no confronto, só
sabia que era como estar num vórtex de náusea e agonia. Os imortais
tinham uma clara vantagem quando estavam acima da água, então
Zack tentou afundá-los. Porém, o homem elegante com as
castanholas partia cada onda que ele levantava.
Qin Shi Huang: USE MEU PODER DE DESACELERAÇÃO DO
TEMPO.
Zack estava prestes a usá-lo quando notou névoas de luz dourada
saindo de seu corpo e dos imperadores, sendo sugadas para dentro da
cabaça de Li da Muleta de Ferro. As barras de qi deles oscilaram.
Zack não prestava atenção às barras de qi desde que as pílulas de
imortalidade as transformaram em barras sólidas e douradas, mas
agora o qi deles estava caindo. Diminuindo. Desaparecendo.
Eles estavam perdendo a imortalidade.
De repente, Zack se lembrou de Qin Shi Huang contando sobre ter
que escolher entre desistir e pedir perdão ou apostar tudo numa
vitória total durante a conquista de Chu. Zack nunca imaginou que
algum dia se identificaria com uma história assim, mas naquele
momento ele conseguia. A magia de desaceleração do tempo
consumia muito qi. Ele poderia acabar se o garoto a ativasse.
Socorro, Zack quase gritou no meio do caos, mas quem ia querer
ajudá-lo depois do que havia feito?
Bom… Havia uma pessoa-dragão cujo maior interesse era que eles
vencessem aquela batalha.
— Vossa Majestade! — gritou Zack para baixo, usando todo o seu
poder para manter a água turbulenta fora da boca. — Não sei se
consegue me ouvir, mas nós irritamos os imortais para valer, e parece
que eles são mais fortes do que conseguimos aguentar! E eles têm
reforços a caminho! E nossa imortalidade está perdendo o efeito! Se
não nos der o selo, vamos perder a batalha e sua reputação vai ser
arruinada de novo!
Não houve resposta.
Qin Shi Huang: GAROTO, APENAS LUTE.
Como?
Eram seis imortais munidos de raiva contra os três, que logo
teriam que se preocupar com a possibilidade de se afogarem na água
gélida. Wu Zetian lançou uma granada de luz e Tang Taizong
continuava atirando flechas, mas os imortais trabalhavam em perfeita
harmonia, defendendo a si mesmos e interceptando cada ataque. O qi
imortal de Zack caiu para as últimas linhas.
Ele estava ficando mais sonolento. Devia ser um efeito da
fragrância de lótus da Senhora He.
— Pessoal, tenho certeza de que, assim que a imortalidade acabar,
a gente vai desmaiar por causa desse cheiro! — avisou ele.
Mas os imperadores estavam ocupados demais testando outros
encantamentos para ouvi-lo.
Não havia mais tempo a perder.
Zack puxou uma correnteza para arrastar eles três até o fundo do
mar. Os imperadores se agitaram e se debateram, mas Zack relaxou.
Ele fechou os olhos, deixando-se levar. Talvez a única maneira de
ganhar a batalha era admitir que não havia a menor possibilidade de
aquilo acontecer.
A não ser que tivessem ajuda.
Sua vez, Rei Dragão.
Zack afundou se sentindo quase em paz com a última porção de
sua imortalidade. O peso da armadura e da mochila o puxavam para
baixo como uma âncora.
Então ele sentiu um poder gigantesco irrompendo das profundezas
do oceano.
Uma caixa azul luminosa surgiu ao seu lado. Zack se apressou para
abri-la. O selo estava lá dentro. Ele o apanhou.
Uma onda de choque irradiou de dentro de Zack, rasgando o
oceano. Inúmeras imagens passaram diante de seus olhos. O lendário
jade Héshìbì sendo oferecido a Qin Shi Huang por um rei que
suplicava no chão. O ministro mais confiável de Qin Shi Huang
escrevendo a inscrição para torná-lo o selo imperial oficial da China.
Qin Shi Huang usando aquele selo repetidas vezes para emitir
decretos que definiriam a China pelos dois mil anos seguintes.
E não apenas Qin Shi Huang. As imagens aceleraram, mostrando
as vidas das centenas de pessoas que haviam empunhado o selo
depois dele. Zack viu o selo ser oferecido pelos últimos governantes
de dinastias, ou apanhado por senhores da guerra vitoriosos. Uma
imperatriz viúva o atirou no chão num ataque de raiva, lascando seu
canto, enquanto um usurpador cercava seus aposentos e exigia que
ela se entregasse depois de terem destituído o menino imperador. O
usurpador restaurou o canto com ouro antes de ser destronado
também. O selo passou de mão sangrenta em mão sangrenta,
ganhando mais inscrições conforme fundadores de novas dinastias
tentavam justificar seus mandatos, tornando-se mais poderoso
conforme mais pessoas lutavam e matavam por ele enquanto símbolo
de poder absoluto. Incluindo Tang Taizong. As visões de Zack
vacilaram quando ele sentiu aquela presença familiar, depois bem
rapidamente a de Wu Zetian, e todas as emoções que ela sentiu ao
fazer o que nenhuma mulher havia feito: governado como imperatriz
legítima. Mas as imagens passaram tão velozes quanto estrelas
cadentes, e o selo enfrentou mais guerras e carnificinas até que,
finalmente, um menino jovem demais para saber o que significava ser
um imperador segurou o selo enquanto despencava em direção ao
mar.
As visões se estilhaçaram. Zack tomou um fôlego enorme, como se
uma força profana tivesse parado de pressionar sua cabeça dentro de
uma banheira. A realidade atingiu seus sentidos novamente. Ele se
viu literalmente fora d’água — Zack pairava sobre o oceano num
ciclone enorme e furioso. A água espumosa do mar chicoteava e
uivava ao redor dele. Seus meridianos brilhavam em um tom de
dourado tão cintilante que os raios de luz escapavam dentre as partes
de sua armadura. Depois de tanto tempo canalizando magia taoísta
esquisita, era como se Zack tivesse acordado de um sono profundo e
atormentado por pesadelos. Aquilo era algo nascido da própria lenda
de Qin Shi Huang, uma magia feita para ele de verdade. Enquanto
ela fluía através de Zack e em direção ao mundo, seus braços se
abriram. O oceano se distorceu e se afundou ao redor dele como uma
cratera de meteoro. Nuvens de tempestade se amontoaram no céu.
Zack sentia uma vaga conexão com tempestades desde que Qin Shi
Huang havia entrado em sua vida, mas aquela era a primeira a estar
totalmente sob seu controle. Conforme a manejava, descargas
elétricas despencavam ao redor dele, acompanhadas por trovões
retumbantes. Zack deveria estar rindo feito um maníaco, mas a
tempestade era tão barulhenta que ele não conseguia se ouvir. Ele
retirou o elmo. Seu cabelo balançava loucamente ao ser chicoteado
pelos ventos úmidos.
Na fronteira de seu ciclone de água, a lótus dos imortais se sacudia
como um pequeno navio em ondas gigantes e agitadas. Desesperados,
eles usavam os talismãs para resistirem à própria ruína.
Com um movimento do braço, Zack fez um dragão de água com
detalhes dourados se projetar para fora do ciclone e o circular como
uma serpente poderosa. A criatura rugiu para os imortais, um som de
tremer o mundo que percorreu as ondas e soprou seus cabelos e
roupas. Eles se encolheram, erguendo os braços para se defenderem.
Alguns olharam por cima do ombro. À distância, uma revoada
luminosa de seus semelhantes vinha ao resgate montados em nuvens.
Extermine-os!, gritaram centenas de vozes na cabeça de Zack,
sendo a de Qin Shi Huang a mais alta. Conquiste suas terras!
Conquiste os mares! Conquiste tudo!
Um mal-estar atingiu Zack como os raios que desabavam ao redor
dele.
Não, não foi para isso que viemos aqui, relembrou ao caos dentro
de sua mente. Conseguimos o selo. Já podemos partir.
Mas as vozes se intensificaram. Um impulso irresistível de vencer,
conquistar e governar o dilacerou por dentro. Zack precisou de cada
pedacinho de sua força de vontade para resistir àquilo. Flutuando do
outro lado do ciclone, Tang Taizong e Wu Zetian o encaravam com os
olhos irradiando luz vermelha e branca, respectivamente, por trás dos
elmos, e Zack soube que os dois eram parte das vozes. O dragão de
água voou mais rápido ao redor dele, e seus rugidos ecoaram entre o
mar e o céu, parecendo incitá-lo também. Raios desabavam com
tanta frequência que a noite se tornou tão clara quanto o dia. Fúria e
sede de sangue borbulhavam dentro do corpo de Zack, quase o
partindo ao meio. Ele gritou, agarrando a cabeça.
— Fujam! — berrou ele para os imortais. — Fujam, a menos que
queiram morrer!
Eles apenas tentaram atacá-lo novamente com os talismãs.
Zack soltou outro grito pelo esforço de reprimir o poder destrutivo
que queria explodir para fora de si. Não sabia se conseguiria detê-lo
caso escapasse. Não queria que a batalha se transformasse num
massacre.
Ele não era um tirano.
Ele não era Qin Shi Huang.
— Eu… disse… não! — A voz de Zack ecoou de forma anormal
pelo mar.
As vozes foram expulsas de sua cabeça. Wu Zetian e Tang Taizong
recuaram com um solavanco, e seus olhos se apagaram. A floresta de
raios elétricos desapareceu. O último dos trovões retumbou.
Mas o impulso de Zack não morreu. Todas as células de seu corpo
ainda zumbiam com poder que precisava ser direcionado para algum
lugar. E ele decidiu onde usá-lo: no mausoléu de Qin Shi Huang, para
reforçar o tampão do portal e salvar sua mãe.
Com outro giro do braço, Zack ordenou que o dragão de água
voasse bem debaixo dele. O garoto caiu em cima de sua cabeça, entre
os chifres molhados, e então o lançou como um túnel de água em
direção aos imperadores.
— O que está fazendo? — gritaram quando Zack os agarrou.
Ele os afundou pela metade para dentro do dragão, firmando-os
atrás de si.
— O que realmente importa! — exclamou Zack, atirando a mão
para a frente com os dedos esticados.
Conseguia sentir a terra onde as lendas do selo haviam nascido. O
dragão avançou naquela direção, voando para longe dos imortais.
— Não! — gritou Qin Shi Huang através dos óculos inteligentes.
— Você não pode fugir desta batalha!
— Posso, sim! Se desperdiçássemos magia para ganhar uma
batalha que não precisamos lutar, seria mesmo uma vitória?
Estaríamos deixando o selo nos controlar, em vez de controlá-lo!
Nossa prioridade é o tampão do portal!
— A Casa de Ying não foge da guerra!
— Quem disse? — rosnou Zack, sentindo o vento nebuloso bater
em seu rosto por entre os chifres do dragão. — Foi você quem me
ensinou a não me importar com o que os outros pensam, e sou eu
quem está com o Selo Relíquia! Então, adivinha? Eu dito as regras!
18
Como a Grande Muralha pode ser usada como pista de
corrida

A batalha se tornou uma perseguição. O dragão de água de Zack planava e


ondulava pela superfície do oceano, com os imortais em nuvens bem
na sua cola. Claramente não perdoariam o que Zack e os imperadores
haviam feito com Lü Dongbin e Zhongli Quan. Os imperadores
continuavam gritando para Zack dar meia-volta e lutar, mas ele os
ignorou, focando na magia lendária que o chamava em terra firme —
mais especificamente na lenda que cobria o norte da China,
materializada pelo próprio selo em sua mão.
A Grande Muralha.
Zack apertou o selo com mais força. Mapas antigos atravessaram
sua mente. Precisavam ir para o mausoléu de Qin Shi Huang, perto
do monte Li na cidade de Xian. Era possível chegar perto dali
parando no meio da Grande Muralha nas proximidades de Yulin, uma
antiga cidade que servia de guarnição contra os povos nômades do
norte.
Conforme ele persistia em seu objetivo, a distância entre seu
dragão e os imortais se alargava. A armadura concedida pelo Rei
Dragão enfraqueceu e se dissolveu em água ao atingir o limite do
poder do Palácio do Dragão. Pouco depois, eles começaram a passar
por barcos pesqueiros e transatlânticos. Zack torceu para que
ninguém estivesse filmando. Erguendo a mão, ele invocou nuvens de
tempestade para bloquear a lua e as estrelas, de modo que, mesmo se
alguém ligasse uma câmera, a gravação ficaria escura demais para
produzir provas.
Finalmente, o litoral surgiu à vista. Era o lugar exato que eles
haviam visitado antes daquela viagem marítima doida: a Cabeça do
Dragão, onde a Grande Muralha encontrava o mar. Parecia que outro
dragão estava curvando a cabeça, esperando por Zack. Seu nome
chinês, usado para invocar sua lenda, surgiu na mente do garoto
através de um aglomerado de sussurros.
— Wànlĭ chángchéng! — chamou Zack.
A Longa Muralha de Dez Mil Léguas.
Uma luz dourada iluminou a Cabeça do Dragão pelos rejuntes de
seus tijolos. Dois locais brilharam mais forte, parecendo olhos
afiados.
A imagem de uma carruagem de guerra da dinastia Qin
relampejou na mente de Zack, puxada por quatro cavalos com um
cocheiro de pé atrás deles. Quando seu dragão saiu do oceano,
derramou a maior parte da água que formava seu corpo e se
transformou em algo parecido com a carruagem, exceto que era Zack
quem a conduzia numa única invocação de água no formato de moto.
Wu Zetian e Tang Taizong foram parar dentro da carruagem.
Todos eles se chocaram contra a Cabeça do Dragão. Zack
estremeceu instintivamente, mas se inclinou sobre a motoágua e teve
fé no poder que pulsava do selo em sua mão. Em vez de sofrerem
danos, mais uma porção da Grande Muralha se iluminou adiante. O
brilho dourado atravessava a noite como uma pista de corrida
futurista. Zack sabia que aquilo não estava danificando a verdadeira
muralha. Eles estavam correndo sobre sua forma espiritual, a
manifestação de sua lenda. A motoágua e carruagem costuravam
entre torres de guarda radiantes, acelerando cada vez mais. A
paisagem zunia tão rápido que virou um borrão. Havia apenas o
vento noturno assobiando nos ouvidos de Zack e o caminho dourado
da Grande Muralha embaixo deles.
Um mar de luzes neon apareceu à distância e correu ao lado deles,
como a paisagem da janela de um metrô sacolejante. Eles deviam
estar passando pela zona urbana de Qinhuangdao. As luzes atingiram
vários picos de brilho, então se dissiparam.
Houve um momento específico em que Zack percebeu que já não
estavam mais nos limites da cidade. Os prédios passando a toda
velocidade deram lugar às silhuetas robustas de montanhas e
florestas. As estrelas ficaram visíveis no céu. O sangue pulsava nas
veias de Zack, cheio de energia inquieta. Uma leveza subiu por seu
corpo, como se o mundo e ele estivessem se tornando um só. Parecia
que estavam se deslocando pelo cosmos no caminho dourado do
zodíaco.
Mas nem tudo era encanto e fascínio. Zack começou a ver e ouvir
coisas. Os espíritos dos que haviam morrido construindo a Grande
Muralha gemiam com o vento, lembrando-o do custo sangrento e
terrível de cada maravilha antiga. Formas de mãos sujas tentavam
agarrar suas pernas, fazendo sua motoágua respingar.
— Me desculpem — soluçou Zack, tantas vezes que sua voz ficou
fraca demais para emitir qualquer som.
Ele não tinha ideia de por quanto tempo correram pela muralha,
mas estava no limite do cansaço quando sentiu que o destino se
aproximava.
Quase lá, disse a si mesmo. Aguenta firme.
Um mapa reapareceu em sua mente. O ponto de sua carruagem se
aproximava aos poucos de Yulin.
Quase… quase…
Seu corpo doía como se tivesse passado tempo demais sem ar. Mas
Zack pensou na dor e no pesar dos trabalhadores. O mínimo que
podia fazer era dar algum sentido a seus sacrifícios.
Quase…
Assim que o ponto no mapa chegou a Yulin, Zack deixou que suas
invocações de água se desfizessem. Um suspiro saiu dele, como se o
próprio espírito estivesse escapando. Sua consciência despencou
também.
— Você está tão perto, minha criança… tão perto… por favor, não se
esqueça disso outra vez…
Zack se viu numa tenda militar iluminada por uma lâmpada,
ajoelhado no chão empoeirado. Um general com armadura de couro
se ajoelhava ao seu lado. Diante deles, um mensageiro imperial
escoltado por soldados desenrolou um pergaminho de seda e leu um
decreto em voz alta.
— Pelo comando de Sua Majestade, príncipe Fusu e general Meng
Tian… vocês devem tirar a própria vida por seus atos de traição!
A cabeça do general se levantou bruscamente.
— O quê? Que traição? Nós temos defendido as Terras do Norte
com máxima lealdade!
— Não adianta, general Meng. — As palavras cansadas deixaram a
boca de Zack. — O pai deu seu veredito.
Embora o garoto gritasse por dentro contra aquilo, sentiu a própria
mão desembainhar a espada em sua cintura.
— Não! Fusu, deve ser um mal-entendido! Sua Majestade nunca
lhe ordenaria que tirasse a própria vida!
O corpo que Zack habitava ergueu a espada com as duas mãos,
direcionando a ponta para o próprio peito.
— Por que não? Lembra-se do que ele fez com minha mãe?

Não!
Os olhos de Zack se abriram de repente. Tang Taizong apontava
seu arco e flecha para ele, os olhos iluminados com um brilho
vermelho. O calor de sua magia atingia o rosto de Zack.
— Ahh!
O garoto se levantou da cama de um salto, apoiando-se na
cabeceira.
— Entregue-o — grunhiu Tang Taizong. — É meu.
Quando Zack se retesou, sentiu um objeto rígido dentro do punho.
O selo ainda estava em sua mão.
— Hã, podemos conversar sobre isso? — sugeriu Zack, com a voz
rouca pela falta de uso, erguendo a mão livre num gesto de rendição.
Ele devia ter ficado um bom tempo desmaiado.
Ah, não. Quantos dias eles ainda tinham?
Tang Taizong puxou a corda do arco, e a flecha espiritual brilhou
ainda mais.
— Eu ordeno que largue o arco! — gritou Zack com urgência.
O selo brilhou dentro de seu punho, a luz dourada se derramando
por entre os dedos.
Os olhos de Tang Taizong mudaram de vermelho para dourado.
Ele se lançou para trás como se tivesse sido atingido por algo
invisível, e o arco se esvaiu em uma névoa vermelha.
— Ei! — gritou Melissa, entrando correndo pela porta do pequeno
quarto e levando as mãos à cabeça. — Ah, não. Tang Taizong, você
tentou matar o Zack de novo? Eu fui ao banheiro por cinco minutos!
— De novo? — chiou Zack.
Tang Taizong massageou as têmporas.
— Perdão, garoto. Essa coisa é… bem difícil de resistir. — Ele
alternou um olhar culpado entre Zack e Melissa. — É melhor eu ir
embora.
Tang Taizong tomou um longo fôlego que cessou de repente.
Simon acordou com um piscar de olhos. Ele olhou para as próprias
mãos, depois para Melissa, que estava furiosa no vão da porta, e
então para Zack, encolhido contra a cabeceira.
— Ah, cara. Tang Taizong tomou conta da minha consciência e
tentou matar o Zack de novo?
— Quantas vezes você…? — As palavras de Zack saíram mais
agudas do que ele gostaria. — Deixa pra lá. O que foi que aconteceu?
Por favor, por favor, por favor, me digam que não perdemos o prazo!
Ele tateou a roupa de banho ainda no corpo. Estava coberta de
terra. Hematomas enormes marcavam seus braços.
— Está tudo bem, ainda temos quatro dias — informou Simon,
para o alívio tremendo de Zack.
— E, cara, você perdeu muito drama depois de desmaiar —
comentou Melissa. — Quando a invocação da Grande Muralha
desapareceu, nós basicamente caímos numa pilha de terra no meio
do nada. Porque, sabe, a maior parte da muralha já foi destruída há
muito tempo. Ela não é toda completinha como aparece nos folhetos
para turistas. Não quisemos causar confusão e chamar autoridades
para fazer um resgate profissional, então tivemos que andar.
— Vocês dois andaram até aqui? — indagou Zack, espanando
grandes pedaços de terra para fora do cabelo.
Dor e fome aumentavam dentro dele conforme a adrenalina
diminuía. Pelo menos não havia dormido com os óculos inteligentes.
Eles estavam na mesa de cabeceira ao lado da cama. Devia ser o
poder do selo que o permitia ver coisas espirituais naquele momento.
— Não, só até o vilarejo mais próximo que aparecia no mapa dos
nossos celulares — explicou Melissa.
— Mas tivemos que carregar você enquanto impedíamos os
imperadores de roubar o selo — acrescentou Simon, encarando o
chão do quarto com olhos arregalados. — Então, hã… Desculpa por
toda a sujeira. E pelos hematomas. Deixamos você cair algumas
vezes.
— Mais do que algumas — murmurou Melissa.
— É por isso que estou todo dolorido?
Zack esfregou os machucados na parte de trás da cabeça. Ele
inspirou fundo ao sentir uma pontada de dor no braço por causa do
movimento.
— É, sentimos muito mesmo — disse Simon, sem jeito, coçando o
cotovelo.
Melissa colocou as mãos nos quadris.
— Para alguém do seu tamanho, você é bem pesado. Felizmente,
nós encontramos um grupo de mochileiros quando o sol estava
ficando bem quente e desagradável. Usei minha magia de charme
para fazê-los carregarem seu corpo pelo resto da trilha sem fazerem
perguntas. Depois, borrifamos o caldo de Meng Po neles e chamamos
uma carona.
— Isso é… — Zack abandonou a frase e decidiu não pensar muito
naquilo. — Então, onde estamos agora?
— Num lugar que alugamos em Yulin — respondeu Simon,
levantando o dedo ao entrar no modo professor de história. — É uma
antiga cidade fronteiriça entre as Planícies Centrais, onde o povo han
vivia de agricultura, e as Terras do Norte, onde povos nômades como
os mongóis viviam de caça e coleta.
O termo “Terras do Norte” atiçou algo nas profundezas da mente
de Zack — algo que ele não deveria ter esquecido —, mas então
Melissa deu passos largos até a janela ao lado da cama e abriu as
cortinas.
Zack se retraiu com a luz, então piscou até conseguir encarar a
vista de prédios encardidos ao longo de uma rua cheia de carros
andando devagar, motos buzinando e pedestres usando máscaras.
Havia árvores enfileiradas na calçada, mas uma neblina pior do que a
de Xangai pairava no ar.
— Por que aqui é tão empoeirado? — perguntou o garoto,
protegendo os olhos.
— Estamos praticamente no deserto — respondeu Simon. — No
planalto de Loess. É todo de terra amarela. Restauraram bastante a
vegetação recentemente, mas não tem muito o que fazer a respeito
da poeira.
— Estávamos esperando você acordar para podermos ir de avião
para Xian — contou Melissa. — Pensamos em chamar Yaling para vir
nos buscar, mas é uma viagem de, tipo, sete horas. Achamos que não
daria para enfrentar os imperadores por tanto tempo presos dentro
de um carro. Seria melhor sentarmos bem longe um do outro durante
um voo. E não dava para embarcar num avião com você inconsciente.
— Vocês poderiam ter me colocado numa cadeira de rodas e
fingido que eu estava doente — comentou Zack, irritado por eles
terem perdido tempo só por esse motivo.
Melissa inclinou a cabeça.
— Isso teria funcionado?
— Sei lá — retrucou Zack, esfregando os braços com cuidado. —
Eu li isso num livro chamado Not Even Bones. Foi assim que a mãe da
protagonista transportou um menino que ela sequestrou.
— Bom… Você está acordado agora. Consegue se mexer? Quero
reservar nossas passagens o mais rápido possível.
— Sim, com certeza.
Zack botou os pés para fora da cama, deixando terra cair no chão.
Por um momento de tontura, sua cabeça balançou.
— Ah, cara. Estou morrendo de fome.
— Vamos fazer algo para comer enquanto você toma banho —
disse Melissa, pegando o celular. — Mas leva o selo com você! Não
tira os olhos dele. Os imperadores não precisam de mais tentação.
Eles disseram que o selo ficou bem mais poderoso do que qualquer
um esperava, e isso mexeu com a cabeça deles. Não sabemos o que
pode acontecer se um imperador pegá-lo.
— É tão ruim assim? — perguntou Zack, afrouxando os dedos ao
redor do selo para examiná-lo.
Cinco dragões esculpidos se entrelaçavam no topo de uma base
quadrada de jade. Um canto lascado havia sido preenchido com ouro.
Uma dor branda e as marcas vermelhas na palma da mão informaram
que Zack não havia soltado o selo desde que o pegara.
— Não consigo nem ir ao banheiro em paz! Sabe como dormimos
na noite passada? — reclamou Melissa, gesticulando bruscamente
entre Simon e ela. — Na mesma cama, com os braços amarrados
juntos, para que nenhum de nós pudesse ser possuído e escapar sem
o outro perceber!
Simon abaixou a cabeça. Suas bochechas ganharam um tom de
vermelho quase fluorescente.
— Cada um tinha que vigiar o imperador do outro.
— Justiça seja feita, Wu Zetian só perdeu o controle, tipo, quatro
vezes.
— Cinco!
— Aquela vez não conta porque eu mesma a convenci a desistir na
minha mente. — Melissa mostrou a língua para Simon, então se
dirigiu a Zack novamente: — Ela devolveu o trono para o filho aos
oitenta e dois anos e anunciou que queria ser enterrada como
imperatriz… ou seja, como esposa do falecido imperador… em vez de
como imperador… ou seja, como governante legítima… então é mais
fácil para ela resistir à tentação. Diferente de Tang Taizong, que
matou vários irmãos e sobrinhos para assumir o trono.
Zack grunhiu.
— Não acredito que eu achei que ele era o bonzinho.
— Sério? — questionou Melissa, engasgando-se. — Tang Taizong,
bonzinho? Aqueles olhos vermelhos não te deram uma pista?
— É, aliás, estou sentindo ele tentar assumir o controle de novo —
avisou Simon, segurando a barriga, como se estivesse prestes a
vomitar. — Vamos sair deste quarto.
— Certo! — exclamou Melissa, empurrando Simon porta afora. —
Já reservei as nossas passagens. O voo é daqui três horas e meia! —
avisou por cima do ombro, antes de fechar a porta do quarto com
força.
Bufando, Zack foi tomar banho.

Zack estava tão sujo que a água do chuveiro levou vários minutos
para ficar clara. Ele se ensaboou e passou xampu até o cabelo reluzir.
Depois que saiu do banho, tirou a muda de roupas de dentro da
mochila.
Seu celular saiu junto com elas.
Estava sem bateria. É claro, fazia mais de uma semana. Ele o
colocou na tomada para carregar um pouco antes do voo. Para
manter o selo consigo e dificultar uma tentativa de roubo dos
imperadores, Zack escolheu uma camisa preta com um bolso no
peito. Ele guardou o selo ali dentro e a vestiu do avesso.
Simon havia feito macarrão com um molho agridoce e pepinos
cortados. Zack aceitou uma tigela com o rosto vermelho. Quando
embarcou naquela jornada de avião pela primeira vez, não esperava
gostar de Simon Li, o garoto normal, bem mais do que de Shuda Li, o
campeão mundial prodígio. Shuda era descolado, tão descolado que
Zack nunca teria tido coragem de falar com ele, mas Simon era
gentil, confiável e de verdade. Zack se surpreendeu ao descobrir que
gostava bem mais de ficar perto de alguém assim. Jurou que, quando
voltasse para os Estados Unidos, sairia do time de Reinomítico e faria
amizade com quem quisesse, sem se importar com o que as outras
pessoas pensariam.
Já que Zack não podia ficar perto de Simon e Melissa, ele comeu
em seu quarto, sentado na cama. Os imperadores pilantras e
supervilões que deviam ser membros de sua equipe agora estavam
constantemente lutando contra a vontade de matá-lo. Legal. Muito
legal.
Depois de se empanturrar de macarrão, Zack não conseguiu deixar
de ligar o celular. Isso atrapalhava o carregamento, mas ele tinha que
checar se o corpo da mãe ainda estava bem no hospital.
O garoto descobriu como redirecionar o endereço de IP com o
aplicativo de VPN de Simon, então mandou uma mensagem para
Jess, a amiga da mãe. Mas era madrugada no Maine, então ele não
esperava ter uma resposta.
Em vez disso, Zack foi checar as novidades no Reddit. Porém,
assim que abriu a aba de busca, uma curiosidade diferente o atingiu.
Ele espiou os óculos inteligentes na mesa de cabeceira, certificou-se
de que o bluetooth do celular estava desligado e então digitou Nezha.
Por que Simon e Melissa haviam agido de forma tão estranha ao
falar sobre a criança que atacou o Rei Dragão?
Quando os resultados apareceram, as imagens no topo da tela
eram uma mistura de adolescente sem camisa com cabelo de Super
Saiyajin e uma criança com o cabelo preso em dois coques, vestindo
uma regata chinesa tradicional e calças largas. Ambos tinham rodas
flamejantes sob os pés descalços e uma faixa vermelha flutuando
acima da cabeça e ao redor dos braços.
Um mal-estar rastejou pelo interior de Zack. Sua mãe havia sido
presa e arrastada com faixas iguaizinhas. Será que era algo comum
na mitologia chinesa?
Ele clicou em um artigo sobre Nezha. O ponto principal era que
Nezha era uma deidade protetora taoísta, que havia evoluído de
mitos hindus e persas. Ele tinha um monte de títulos, como “O
Terceiro Príncipe do Lótus”, era um personagem importante em um
monte de livros clássicos e empunhava um monte de armas com tema
de fogo, como uma lança com a ponta em chamas e as rodas
flamejantes sob os pés. Ele parecia tão poderoso que chegava a ser
ridículo.
Mas o que chamou a atenção de Zack foi uma imagem do pai de
Nezha, o Rei Celestial Li, Portador do Pagode. Ele era retratado como
um homem de capa e armadura que segurava um pequeno pagode
em uma das mãos.
Igual ao que havia sido usado para sugar o espírito da mãe de
Zack.
O sangue deixou as pontas dos seus dedos. Com um leve tremor,
Zack clicou no artigo sobre o pai de Nezha. Enquanto lia, uma
informação o atingiu como um soco no estômago:
O Rei Celestial Li carrega um pagode capaz de capturar espíritos. Ele
é baseado no famoso general da dinastia Tang, Li Jing, que serviu sob o
imperador Tang Taizong.
19
Como conseguir o que quiser a qualquer custo

Todos os sentidos de Zack se concentraram num único ponto trêmulo em


sua mente, deixando o corpo mole. O garoto encarou a parede,
inexpressivo.
Nunca ouvi falar de demônios com habilidade de capturar espíritos.
As palavras de Lü Dongbin ecoaram pela mente vazia de Zack, como
os sussurros perturbadores de um fantasma.
É claro que não.
É claro que não.
É claro que não.
Todas as memórias de Simon, Melissa e os imperadores agindo de
forma estranha a respeito da situação da mãe dele o dilaceraram.
Todas as vezes em que Simon e Melissa foram muito legais com Zack
de repente, como se se sentissem culpados… Todas as vezes em que
haviam se atrapalhado ao falar sobre Nezha…
Eles sabiam. O tempo todo, eles sabiam.
Zack se levantou de um salto, marchou em direção à porta e a
abriu com violência. A maçaneta chacoalhou em sua mão.
Simon e Melissa estavam sentados à mesa da cozinha, mexendo
nos celulares. Os dois ergueram a cabeça num sobressalto ao vê-lo.
— Zack? — chamou Simon, franzindo o cenho. — Você deveria
ficar no…
— Quem sequestrou o espírito da minha mãe de verdade? —
esbravejou Zack, sentindo a mandíbula e o pescoço tremerem de
tensão.
Ele tremia dos pés à cabeça, como se o próprio espírito zumbisse
fora de controle. A luz do sol se esvaiu. O vento uivou, arremessando
um aguaceiro repentino na janela da cozinha.
Simon se levantou da cadeira devagar, erguendo as mãos.
— Hã… Desculpa, eu…
— Eu ordeno que me conte quem sequestrou o espírito da minha
mãe!
O selo esquentou perto do coração atordoado de Zack. Os olhos de
Simon brilharam, dourados, e as palavras jorraram de sua boca:
— Li Jing. Tang Taizong fez Nezha e ele possuírem seu locador e o
filho dele.
Simon cobriu a boca e arregalou os olhos, horrorizado.
Zack estremeceu ao respirar. O cômodo girava. Ele fechou os olhos
com força. Era doloroso demais olhar para o rosto de Simon naquele
momento.
— Vocês… — começou ele, se engasgando. Mal conseguia respirar
direito. — Vocês planejaram aquele ataque.
— Zack… — começou Simon, mas não tinha mais nada para dizer.
Mais nenhuma mentira para contar.
Zack abriu os olhos. Raios relampejaram lá fora. Gritos alarmados
vieram da rua. O vento lamuriante carregou um chiado e o cheiro de
madeira queimando.
— Basta, garoto! — gritou Tang Taizong, emergindo de Simon. —
Sim, nós planejamos o ataque, o que significa que o espírito de sua
mãe não corre perigo de ser consumido!
Zack foi tomado ao mesmo tempo de alívio pela segurança da mãe
e fúria pela audácia daquela mentira. Como ousaram colocá-lo sob
tanto estresse e ansiedade?
— Eu ordeno que devolva o espírito dela! — gritou, enquanto
trovões explodiram no céu. — Agora!
Os olhos de Tang Taizong emitiram um brilho dourado, mas ele
apenas estremeceu, como se suportasse uma onda de dor. Suas mãos
se esticaram e se fecharam ao lado do corpo.
— Desculpe, mas não há tempo suficiente antes do Mês dos
Fantasmas. Eu teria que voltar para os Estados Unidos e invocar Li
Jing perto dela. Mas prometo que farei isso assim que selarmos o
portal. Sua mãe não está em perigo, mas a China está! A China
inteira!
— Você tem quatro dias! É tempo mais do que suficiente para
pegar o próximo voo! Eu ordeno que pegue o próximo voo para o
Maine!
Os olhos de Tang Taizong brilharam de novo. Ele se curvou para a
frente.
— Eu… não posso…
Zack sentiu culpa ao ver seu corpo — o corpo de Simon — sendo
atormentado, mas então se lembrou de que Tang Taizong não
precisava suportar aquela dor. Bastava fazer o que Zack queria!
Quando os joelhos de Tang Taizong cederam, Melissa se apressou
para segurá-lo. Ela lançou um olhar mordaz para Zack, e ele soube
que Wu Zetian havia assumido o controle.
— Acalme-se, garoto! — disse Wu Zetian, rearranjando as feições
no que devia ser uma tentativa de usar sua magia de charme. Mas
aquilo já não funcionava em Zack. Ele havia se tornado forte demais.
Ela desistiu com um suspiro profundo. — Garoto, ficaria muito em
cima da hora se ele fosse. Vamos precisar do poder dele no mausoléu
caso um grande ataque aconteça!
— Eu tenho bastante poder agora! — retrucou Zack, jogando as
mãos para o alto.
Outro relâmpago despencou do lado de fora, acompanhado por
uma trovoada.
— Mas não terá depois que selar o portal! Fazer isso consumirá
todo o poder do selo, e os espíritos que tiverem escapado não vão ser
sugados de volta para o submundo. Você vai precisar de nós dois para
enfrentar o que vier depois. Só termine a missão, e devolveremos sua
mãe. Esse sempre foi o plano!
Zack balançou a cabeça. Um músculo tremeu perto de seu nariz.
— Não. Quem sabe o que pode acontecer durante a missão?
Tragam a minha mãe de volta primeiro! Tang Taizong, eu ordeno que
pegue um avião até o Maine neste instante e devolver o espírito dela!
Tang Taizong ofegou de dor. Wu Zetian teve que usar os dois
braços para mantê-lo de pé. Os olhos dele brilhavam ora vermelhos,
ora dourados, como se fosse uma máquina entrando em curto-
circuito.
Sem piscar, Zack se aproximou devagarinho. Sua sombra se
assomou sobre Tang Taizong.
— Desobedecer às minhas ordens machuca, não é? Vou continuar
dando ordens. Eu não vou parar. Eu…
Zack percebeu Wu Zetian encarando a silhueta do selo no bolso
invisível de sua camisa e ergueu a mão para ela.
— Eu ordeno que fique parada!
Os olhos dela cintilaram. Wu Zetian enrijeceu, embora tenha
conseguido resmungar:
— Seu… pequeno… imbecil…
Conforme a tempestade apertava do lado de fora, açoitando a
janela da cozinha, lampejos que não eram raios surgiram atrás de
Zack. Ele olhou de relance por cima do ombro.
Eram os malditos óculos inteligentes no quarto. Era Qin Shi
Huang.
Zack marchou até lá e os colocou.
— Pare de puni-los — resmungou Qin Shi Huang, aparecendo ao
lado da cama. — Foi ideia minha.
Zack se virou para encará-lo.
— Por quê? Por que você fez isso?
Qin Shi Huang permaneceu em silêncio por vários segundos, então
assumiu uma expressão extremamente carrancuda.
— Porque eu sabia que não havia outro jeito de tirá-lo dos Estados
Unidos. Era óbvio que você não ia cooperar sem um incentivo, sem
um envolvimento pessoal na missão.
Zack sentiu o estômago revirar e bile queimar sua garganta.
— Você… você… você colocou a minha mãe na geladeira?
— Na geladeira? — perguntou Tang Taizong com a voz rouca,
entrando no quarto com Wu Zetian.
— É um termo usado em análise de mídia — explicou ela
rapidamente. — Quando uma personagem feminina é morta só para
motivar um personagem masculino.
Tang Taizong a encarou.
— O que foi? — questionou ela. — Você acha que não estou a par
dos debates feministas?
— Relaxe, sua mãe não está morta — interveio Qin Shi Huang,
fazendo um gesto para que Zack se acalmasse. — O espírito dela está
a salvo dentro da torre de Li Jing.
— A questão não é essa! — exclamou Zack, lágrimas tremulando
em seus olhos. — Você mentiu para mim! Todos vocês mentiram para
mim! Só para me fazer vir nesta… nesta…
— Sim! Sim, nós mentimos! — Qin Shi Huang levantou a voz. — E
por um bom motivo! Quantas vezes você teria desistido se não tivesse
uma motivação para persistir? Desculpe se eu não quis deixar a China
entrar em colapso por causa de um menininho fracote que odeia tudo
sobre si mesmo!
Trovões retumbaram como se fossem pedregulhos rolando entre o
céu e a terra. Zack recuou até se encostar na janela do quarto. As
palavras ardiam como uma série de tapas em seu rosto.
Qin Shi Huang apontou para Zack, encarando-o com olhos pretos e
frios.
— As condições continuam as mesmas. Sele o portal e terá sua
preciosa mãe de volta. Não há mais nada que possa fazer.
Zack não sabia, de verdade, por que estava tão chocado.
Literalmente todo mundo havia avisado para não confiar em Qin Shi
Huang, um tirano tão lendário por ser tirânico que os três haviam
sido atacados sem parar por seus inimigos durante aquela jornada.
Sim, o Imperador Amarelo tinha enviado alguns espíritos, mas todos
eles tinham ressentimentos legítimos contra Qin Shi Huang.
Como Zack pôde ouvi-lo cantar e contar histórias e imaginá-lo
como seu pai?
Como pôde continuar seguindo as ordens dele?
— Não… — disse Zack baixinho. — Eu posso fazer isso.
O garoto girou e escancarou a janela.
E então lançou os óculos inteligentes para fora como um frisbee.
Tang Taizong e Wu Zetian soltaram gritos e avançaram sobre ele.
— Eu os comando a se curvarem e manterem as bocas fechadas!
— ordenou Zack, se virando de volta para o interior do cômodo.
Os dois tropeçaram e caíram de joelhos diante dele, gritando de
frustração por entre os dentes.
Zack correu desviando deles, a respiração encurtando. Sentia o
pulso latejar até as pontas dos dedos.
— Novas condições: eu não vou fazer nada que vocês mandarem a
menos que minha mãe acorde.
— Não… há… tempo! — disse Tang Taizong com esforço.
— Eu não me importo — rebateu Zack, guardando o celular e o
carregador dentro da bolsa e se afastando. — Deem um jeito, porque
vocês não podem me forçar a fazer nada. Tenho certeza de que
saberão como me encontrar.
Então saiu correndo porta afora, deixando-a bater com força.
20
Como lidar com poder absoluto

Zack tropeçou pelas ruas de Yulin, afundando as sandálias em poças d’água.


A chuva caía de forma implacável, açoitando o chão. Pedestres
corriam por toda parte para se abrigar. Vendedores ambulantes se
apressavam para desmontar seus carrinhos.
Zack não tinha ideia de para onde estava indo, só sabia que
precisava chegar o mais longe possível. Nada parecia real. Sua mente
demorava vários segundos para processar o que acontecia ao redor.
Ele sequer pensou em usar seus poderes para se manter seco. Mal
conseguia sentir a chuva, de qualquer forma.
Devia parecer tão perdido quanto se sentia, porque uma mulher
idosa parou e se agachou para falar com ele. Raios iluminaram o
rosto enrugado de preocupação dela. Mas Zack não conseguia
entender o que ela dizia. Ele tinha o artefato de poder absoluto sobre
a China no bolso da camisa, e ainda assim não conseguia entendê-la.
Então lá estava eu, aos doze anos, governando um reino usando a
língua de um estrangeiro, intrometeu-se uma lembrança da história de
vida dramática de Qin Shi Huang.
Zack cambaleou para trás.
— Eu ordeno que me deixe sozinho e continue andando para onde
estava indo — sussurrou para a idosa, sentindo um nó na garganta.
Os olhos dela reluziram com luz dourada. Ela fez exatamente o
que ele mandou.
Zack a observou se afastar até sumir de vista.

Zack se sentia nu sem os óculos inteligentes. Não conseguia entender


nada. Porém, ele enfim avistou a reconfortante placa verde de um
restaurante halal. Era engraçado: ele conseguia ler a placa em árabe,
mas não o letreiro em chinês ao lado. O macarrão de Simon não o
havia enchido tanto assim, então Zack magicamente extraiu a água
da chuva do corpo e entrou no estabelecimento.
O restaurante só tinha quatro mesas, e o espaço entre elas mal era
largo o suficiente para uma pessoa chegar ao caixa. Mas Zack logo
percebeu que a comida de lá era incrível. Embora estivesse chovendo
forte daquele jeito, havia várias pessoas fazendo fila. Zack salivou
com o cheiro de kebabs de carneiro temperado assando no fogo ao
fundo. Um exaustor industrial sugava a fumaça densa. Sob o ronco
do aparelho, havia o tan-tan-tan de um chef cortando alguma coisa
— então Zack notou que a faca do chef estava acorrentada ao balcão
de metal.
O sangue de Zack gelou. Certo. Estava no oeste da China, onde as
restrições aos muçulmanos eram piores, tanto que um chef não podia
nem tirar a faca da cozinha. Mas não era como se Zack pudesse
comer em outro lugar, então ficou na fila e apanhou o celular na
mochila. Em Xangai, Simon havia transferido cinco mil yuans
chineses para a carteira virtual de Zack e lhe ensinado a fazer
pagamentos escaneando QR Codes. Aparentemente, era assim que
todo mundo pagava pelas coisas na China. Dinheiro vivo estava quase
obsoleto.
No momento em que ligou o celular, o aparelho foi bombardeado
por mensagens de Simon e Melissa. Mal conseguindo conter outra
torrente de emoções, Zack mordeu o lábio e deletou o contato de
ambos de todos os aplicativos.
A caixa do restaurante era uma menina com aparência bem mais
centro-asiática do que tipicamente leste-asiática, embora não usasse
um hijab. Zack se perguntou se era uma escolha pessoal ou se ela não
tinha permissão legal para fazer aquilo. Era um pensamento mórbido.
Quando chegou perto dela, ele tentou canalizar sua magia de falar
chinês.
— Com licença, poderia me dar dez daqueles kebabs?
Ela lhe lançou um olhar confuso.
Nada bom. O dialeto de Zack devia ser antiguíssimo — soava
muito diferente do chinês que as outras pessoas falavam. Parecia
cantonês, na verdade. Seu poder de dar ordens, no entanto, parecia
não ter barreira linguística, já que havia funcionado na mulher idosa.
Zack se sentiu mal por fazer aquilo, mas não teve escolha a não ser
dizer:
— Eu ordeno que me dê dez daqueles kebabs.
Os olhos da caixa pulsaram com uma luz dourada. Ela se virou
como um robô e apanhou dois punhados de kebab da grelha.
Zack suspirou. Será que aquela era a única maneira de se
comunicar com outros chineses? Mandando neles?
A menina lhe entregou os kebabs em um prato de papel. Zack o
pegou com uma das mãos enquanto mexia no aplicativo de carteira
virtual com a outra. Abriu a opção de transferência bancária, digitou
o número que havia calculado usando a foto do cardápio acima da
cabeça dela e então escaneou o QR Code no balcão para pagar.
Claramente aquilo levou mais tempo do que o esperado, porque
um homem de terno atrás dele pigarreou bem alto e começou a bater
o sapato social no chão engordurado.
Zack quase saiu da frente do homem, mas, ao se virar, a irritação
espantou a culpa. E daí que ele tinha demorado um pouco mais?
Zack o encarou nos olhos e disse:
— Eu ordeno que volte para o fim da fila.
O rosto do homem se contorceu, mas ele seguiu as ordens,
marchando rigidamente. A próxima pessoa da fila tirou os olhos do
celular, perplexa, mas deu de ombros e foi fazer seu pedido. Com um
sorriso fraco, Zack seguiu o homem até a saída enquanto arrancava
um pedação de kebab com os dentes. Era tão reconfortante quanto
ele queria: suculento, macio e temperado no ponto certo.
Porém, assim que o homem chegou ao final da fila, ele se virou e
marchou até a frente do caixa, gritando com a mulher que havia
tomado seu lugar. A cliente se espantou, depois começou a gritar de
volta, apontando para o fim da fila. O homem grunhiu, lançou um
olhar perturbado para Zack e então continuou a discutir.
Ah, não.
Zack não precisava entender as palavras para saber que estavam
brigando sobre o lugar na fila. Enquanto isso, a caixa tentava acalmá-
los.
Zack correu de volta para a frente do restaurante.
— Eu ordeno que vá embora! — disse para o homem.
O argumento seguinte do cliente se esvaiu em sua boca. Ele
arrastou os pés para fora das portas de vidro como um zumbi.
Todos no restaurante soltaram um suspiro de alívio.
Até que, logo após desaparecer de vista, o homem voltou
esbravejando ainda mais alto.
— Eu ordeno que vá para onde quer que você trabalhe e nunca
mais volte aqui! — balbuciou Zack.
O homem deu meia-volta em direção à chuva outra vez.
Por vários segundos, as pessoas encararam a porta, murmurando
entre si. Só quando ficou claro que ele não voltaria é que relaxaram e
retomaram o que estavam fazendo.
Meu Deus, pensou Zack. Eu sou tipo o Lelouch de Code Geass.
Ele se deu um firme lembrete de dar ordens com muito, muito
cuidado e nunca fazer uma piada de mau gosto e fora de hora sobre
obrigar alguém a massacrar uma população inteira.
Zack terminou de devorar o primeiro kebab e partiu para o
segundo. Ele saiu do restaurante, mas parou sob o toldo em frente.
Não podia comer kebabs naquela chuva. Fazendo uma careta de
concentração para o céu, desejou que a tempestade acalmasse.
— Zack!
A voz aguda de Melissa atravessou seus pensamentos. Ele quase
cuspiu um pedaço de carneiro, o que teria sido um desperdício
trágico e terrível.
Simon e ela correram pela rua em direção a Zack, com as roupas e
os cabelos ensopados de chuva.
Zack fugiu deles enquanto se recusava a deixar a chuva atingir
seus kebabs. As gotas desviadas formaram algo parecido com um
escudo d’água, como na vez que ele acidentalmente havia colocado
uma colher de ponta-cabeça debaixo da torneira.
Depois do súbito pânico inicial, ele continuou a correr por uma
razão diferente: para lidar com aquilo onde não houvesse ninguém
para fazer perguntas.
Zack dobrou a esquina e entrou num beco. O cheiro pungente de
esgoto e lixo molhado o atingiu.
— Zack, por favor! — gritou Simon, derrapando beco adentro com
Melissa. Ele se curvou e apertou as pernas, recuperando o fôlego e
afastando a franja molhada dos olhos. — Por favor, vem com a gente?
Nós sentimos muito, muito mesmo por ter mentido. Acredite em
mim, estamos muito, muito, muito envergonhados.
— Então, por que fizeram isso? — demandou Zack, sacudindo o
espeto de kebab vazio como uma espada, os olhos ardendo com
lágrimas raivosas. — Vocês podiam ter me contado a verdade em
qualquer momento! Estavam com medo do quê? De que os
imperadores não dessem fama e dinheiro para vocês?
Simon hesitou. Seu lábio inferior tremia.
— Nós ficamos com medo de você não vir conosco para selar o
portal.
Zack soltou um ruído indignado.
— Vocês achavam que eu era tão egoísta assim? Ninguém sequer
me explicou a missão antes de sequestrar minha mãe!
— E-eu sei lá! — Simon pressionou a parte inferior da palma das
mãos na cabeça. — Não conhecíamos você!
— E depois que nos conhecemos, isso só ia levar, tipo, duas
semanas! — acrescentou Melissa, pisoteando uma poça suja, embora
sua voz estivesse à beira de um soluço. — De que adiantaria contar a
verdade se isso faria você agir… bom, assim?
Zack não conseguia acreditar nas palavras que saíram da boca
dela.
— Eu teria parado de me preocupar! Simon teria tido mais tempo
para trazer minha mãe de volta!
— Zack, por favor, estamos tão perto do fim — implorou Simon. —
Vamos selar o portal primeiro, e depois podemos viajar juntos para
fazer a sua mãe voltar ao normal. Por favor?
Alguma coisa dentro de Zack vacilou, mas ele balançou a cabeça
bruscamente.
— Não! “Tão perto do fim”? Como podemos ter certeza disso?
Como podemos saber que os imperadores não estão mentindo sobre
outras coisas, sobre a missão inteira? E se alguma coisa acontecer
com Tang Taizong durante a batalha? Minha mãe vem primeiro,
depois o portal!
Melissa apontou para o céu.
— A tempestade que você invocou está impedindo todos os voos,
gênio!
Zack olhou para cima com uma pitada de culpa, mas se endireitou
antes de voltar a encarar o chão.
— Vou fazer a tempestade parar. Nem deve dar trabalho.
— Zack! Por favor! — gritou Simon.
Uma fissura se abriu no coração de Zack ao ver Simon chorando
para valer na chuva, com o cabelo e as roupas grudados ao corpo,
mas ele se controlou. Como Simon sequer saberia se selar o portal era
mesmo a decisão certa? Aquela missão tinha sido planejada por Qin
Shi Huang, que Zack sabia ser o pior.
— Não — rosnou Zack. — Eu ordeno que fiquem parados e calem
a boca. Pelos próximos dez minutos — acrescentou, porque parecia
que, quanto mais específicos eram os comandos, mais difícil era
resistir a eles.
Simon e Melissa ficaram tensos de horror quando seus olhos
cintilaram.
Zack caminhou devagar até eles. Uma sensação desagradável e
enjoativa pulsava por seu corpo.
— Minha mãe vem primeiro. Ponto final. Parem de vir atrás de
mim, e parem de tentar me fazer mudar de ideia. — Ele os encarou,
um depois do outro. — Posso dar ordens piores. Não me obriguem a
isso.
Então ele saiu correndo, deixando-os no beco chuvoso.

Para a surpresa de Zack, era bem mais difícil mandar uma


tempestade embora do que fazê-la cair. Ela parecia estar ligada a suas
emoções, o que teria sido bem legal… se não precisasse que a
tempestade desaparecesse para que Simon pudesse viajar de avião.
Ele vagou a tarde inteira para se acalmar. O aguaceiro deu lugar a
um chuvisco. Zack topou com um parque de diversões e usou ordens
para chegar até a roda-gigante, onde Simon e Melissa não
conseguiriam alcançá-lo. Ordenou ao atendente que o deixasse ficar
ali enquanto o parque estivesse aberto.
Aconchegando-se sozinho na fria cabine da roda-gigante, Zack
encostou a cabeça no vidro. A chuva tamborilava ao seu redor. O
cheiro de plástico molhado permeava o ar. Ele não conseguia dormir,
então procurou a lembrança mais calorosa que tinha da mãe. Os
piqueniques no Central Park. Os dois construindo um forte de
cobertores e travesseiros e apoiando o laptop dela numa cadeira para
assistir a filmes de terror. Eles fazendo macarrão e pasteizinhos.
Lágrimas brotaram em seus olhos irritados e escorreram pelas
bochechas de Zack. Ele fungou. O que não faria para provar a comida
dela outra vez… Mal podia acreditar que tinha jogado fora as
refeições que ela havia preparado para ele. Onde estava com a
cabeça?
Se… quando… ele tivesse a mãe de volta, jamais faria aquilo de
novo.
Quando o atendente finalmente abriu a cabine de Zack e avisou
que o parque estava fechando, a noite já havia caído. Apenas uma
gota de chuva ocasional despencava do céu.
O estômago de Zack roncou de novo. Ele desejou ter anotado a
localização do restaurante halal, mas conseguiu encontrar outro
pesquisando no celular.
O caminho para o restaurante o levou até uma rua que parecia
perigosa. Um bando de motoqueiros com jaquetas de couro estava
fumando por ali. Música vinha de uma boate ao lado deles. Placas
neon deslumbrantes oscilavam e refletiam nas poças sob seus pés.
Ops. Aquela devia ser a parte ruim da cidade. Em nome da comida,
Zack apertou o passo.
Os motoqueiros o encararam, então sorriram uns para os outros.
Um sentimento ruim assentou no estômago de Zack.
Eles o cercaram, bloqueando seu caminho e dizendo coisas que
Zack não entendia. Um homem com uma barba malfeita inclinou-se
para perto de seu rosto, falando num tom zombeteiramente gentil. O
cheiro de álcool saía de sua boca. Zack franziu o nariz e se afastou.
Os motoqueiros apertaram o círculo ao seu redor. Alguns riram.
Zack teve a impressão de que o estavam provocando, tentando
assustá-lo. O homem da barba malfeita apagou o cigarro perto do
nariz dele.
Zack recuou, estremecendo de medo, mas então relaxou.
Por que sentir medo? Ele tinha o poder de fazê-los obedecer a
qualquer ordem.
— Eu ordeno que parem de fumar! — anunciou Zack, levantando
uma sobrancelha. — Para sempre. É ruim para a saúde.
Os olhos dos motoqueiros brilharam. Seus rostos assumiram
expressões perplexas. Então, em sincronia, eles deixaram cair os
cigarros. Alguns pareciam prestes a chorar enquanto apalpavam os
bolsos atrás de mais maços e os jogavam nas poças banhadas de luz
neon.
Zack fez um som ofendido.
— Ei, não jo… Quer dizer, ordeno que não joguem mais lixo no
chão! Nunca mais!
Eles apanharam os maços ensopados, parecendo confusos sobre o
que fazer em seguida.
Zack inclinou a cabeça. Parando para pensar, ele bem que
precisava de um lugar para dormir aquela noite, assim como de
pessoas para cuidarem dele e garantir que Simon e Melissa não
conseguissem se aproximar de fininho.
Lentamente, ele percorreu o rosto dos motoqueiros com o olhar.
— Eu ordeno a todos vocês que me obedeçam como seu novo
líder!
Os olhos deles piscaram outra vez. Com ruídos e respingos
coletivos, os motoqueiros caíram de joelhos ao redor de Zack e
pressionaram a testa no chão molhado.
No meio do círculo, Zack tomou um fôlego longo e profundo,
depois soltou o ar. A música abafada da boate pulsava como um
coração em volta dele.
Era engraçado como ele havia realizado seu desejo original, no fim
das contas. Zack era forte e poderoso. E, tinha que admitir, era uma
sensação boa. Gostava de ter a habilidade de obrigar as pessoas a
fazerem o que ele quisesse. A vida ficava tão mais fácil. Dava para ver
a graça.
Mas, fora poder, Zack não tinha mais nada.
21
Como ser um líder de gangue benevolente

— Aqui está sua comida, Chefão Ying! — anunciou Lawrence, o único


membro da gangue de motoqueiros que falava inglês, entrando a
passos largos na sala dos fundos da boate com as mãos cheias de
sacolas de papel manchadas de gordura.
Música e luzes rodopiantes jorraram pelo vão da porta, e então
foram abafadas de novo quando outro gângster a fechou.
— Ah, obrigado!
Zack se levantou do sofá de couro para pegar as sacolas,
estampadas com símbolos halal verdes. Ele distribuiu a comida sobre
a mesa de centro à sua frente e passou palitinhos para as duas
garotas bonitas ao seu lado. Elas pegaram caixas de macarrão e
deram risadinhas. Aparentemente, o trabalho delas era sentar ali e
elogiar tudo o que o antigo líder da gangue fazia. Recebiam salário e
tudo. Zack não curtia aquilo — deixava-o muito constrangido, para
falar a verdade —, mas não queria que elas perdessem o emprego,
então as deixou ficar.
— Lawrence, o que é isto? — perguntou Zack, pegando algo de
uma sacola de papel fina.
Parecia uma massa doce, mas era recheado com uma carne picada
com molho.
— Ròu jiāmó de cordeiro! Basicamente, hambúrguer chinês. É
muito popular no noroeste — explicou Lawrence, balançando a
cabeça com entusiasmo. Fios de cabelo soltos se agitaram em seu
moicano cheio de gel.
Zack mordeu um pedaço. Tinha gosto de sanduíche suculento, só
que o pão era crocante e se esfarelava.
— Hmm! É muito bom. Eu sabia que podia confiar em você,
Lawrence.
Um sorriso enorme se abriu nos lábios pintados de preto de
Lawrence, mas seu estômago roncou. O motoqueiro apertou a barriga
com um olhar horrorizado.
— Lawrence! — exclamou Zack. — Você não comprou nada para
você comer?
Lawrence não olhou Zack nos olhos.
— O antigo chefe… não teria aprovado algo assim…
— Ahh.
O garoto olhou para a porta de relance. O antigo líder da gangue
estava do lado de fora com a ordem de proteger Zack sem
reclamações ou ressentimentos.
— Bom, eu sou seu novo chefe agora, e estou dizendo para você se
servir! — anunciou Zack, empurrando a caixa de comida em direção
a Lawrence.
— Sério, chefe?
— Sério. Você teve o trabalho de ir até lá.
— Obrigado, Chefão Ying! Obrigado!
Lawrence se sentou em uma cadeira de dobrar, pegou um par de
palitinhos e atacou uma caixa de arroz frito.
Quando aquela comida maravilhosa estava na metade, uma batida
soou à porta. Lawrence repousou os palitinhos para atender. Ele teve
que gritar por cima da música retumbante para conversar com os
gângsteres do lado de fora.
Então Lawrence fechou a porta.
— Chefe, tem gente aqui para te ver — disse ele, com a expressão
confusa.
Zack se retesou.
— São uma menina e um menino da minha idade?
— Não, é uma mulher. Disse que é da XY Tecnologias.
Os palitinhos de Zack escorregaram de seus dedos e caíram na
mesa de centro.
— Ela… ela perguntou por mim especificamente ou pelo antigo
líder da gangue?
— Você, chefe — respondeu Lawrence, piscando sem expressão. —
Ying Ziyang.
O coração de Zack parou. Simon tinha razão: Jason Xuan os
estivera observando. Não havia outra forma de a XY Tecnologias
saber seu nome chinês, que não aparecia em nenhum de seus
documentos oficiais fazia dez anos.
A XY Tecnologias havia pesquisado a fundo sobre Zack. Jason Xuan
sabia o que ele era.
O primeiro instinto do garoto foi fugir dali, mas por quê? Zack era
poderoso o suficiente para lidar com o que quer que tentassem fazer
com ele. Além disso, tinha curiosidade de saber o que queriam.
Zack se levantou do sofá.
— Deixe ela entrar.
Lawrence começou a virar a maçaneta, mas então olhou para trás
e perguntou:
— Chefe, quem é você?
— Eu sou… — Zack hesitou, sentindo uma onda de exaustão
atravessá-lo. Ele suspirou. — Eu sou só uma criança que foi arrastada
para uma confusão muito, muito grande.
Lawrence assentiu, mas parecia não saber direito com o que estava
concordando. Ele abriu uma fresta da porta para passar a mensagem
de Zack.
Mais ou menos um minuto depois, uma mulher com um terno
preto fino entrou na sala a passos largos. Ela usava o cabelo num
coque apertado e maquiagem pesada e esfumada ao redor dos olhos,
um estilo que Zack não via com frequência desde que aterrissara na
China. A mulher era acompanhada por um guarda-costas alto que
insistia em usar óculos escuros apesar de estar numa boate. Zack o
deixou entrar também, depois que os gângsteres o apalparam e
confirmaram que não estava armado. Por fim, o garoto pediu para
que Lawrence e as duas garotas do sofá se retirassem. Elas saíram
pela porta acenando para Zack.
— Que companhias adoráveis, sr. Ying — comentou a mulher
depois que a porta se fechou atrás das garotas.
Ela falava inglês com um leve sotaque britânico.
— Não é o que parece! — exclamou Zack, jogando as mãos para o
alto. — Elas já tinham este trabalho quando cheguei aqui. E-eu nem
gosto de garotas! — confessou ele, então ficou vermelho feito lava ao
perceber o que havia deixado escapar.
A mulher abriu um sorriso.
— Tudo bem.
Zack pigarreou, acalmando-se. Não era hora de entrar em crise.
— Enfim… — retomou ele, encarando os olhos da mulher. — Eu
ordeno que me diga o que quer comigo de verdade.
— Quero que nos ajude a impedir os planos de Qin Shi Huang —
desembuchou ela, em um único fôlego. Então a mulher tocou os
próprios lábios, assustada. — Minha nossa. Quanto poder.
— Então… — disse Zack, colocando as mãos no quadril. — Vocês
sabem.
Era muito estranho discutir aquela loucura com um adulto pela
primeira vez. Parecia tornar tudo muito mais real.
— Sim — confirmou ela, então se aproximou com o guarda-costas
para estender a mão sobre a mesa de centro. — Meu nome é Tiffany
Lei. Sou assistente pessoal do sr. Xuan.
— O sr. Xuan? — perguntou Zack, boquiaberto, enquanto apertava
a mão dela, sem jeito.
Ele tinha certeza de que nunca havia apertado a mão de alguém
antes.
— Sim… — falou o guarda-costas de repente, tirando os óculos
escuros. — Eu, Jason Xuan.
O queixo de Zack caiu.
— É um prazer enfim conhecê-lo, sr. Ying Ziyang.
Jason Xuan… o homem que Zack queria ser, a razão de ter
aprendido a programar… ofereceu a mão para o garoto. Seu cabelo
estava arrumado em um estilo nada parecido com o normal, mas o
rosto, bonito, com maçãs do rosto altas, definitivamente coincidia.
Meu Deus, ele faz igual ao Simon, foi o único pensamento coerente
do garoto.
— É Zachary Ying. Zack — respondeu ele, tendo bom senso
suficiente para apertar a mão de Jason.
— Bom, Zack, perdão por enganá-lo. Eu não queria que os
paparazzi soubessem que estive aqui. Receberíamos muita atenção
indesejada. Será que posso…? — indagou, gesticulando para a
cadeira dobrável.
— Sim, sim, é claro! — Zack assentiu, um pouco entusiasmado
demais, então apontou outra cadeira para Tiffany. — Você pode se
sentar naquela.
Depois de todos terem se acomodado em torno da mesa, Zack
olhou para a comida. Sua mãe o repreenderia por não oferecer nada
a seus convidados.
— Vocês querem ròu jiāmó? — perguntou, cutucando uma
embalagem intocada.
— Nós comemos antes de vir — respondeu Jason, acenando de
maneira graciosa. — Verdade seja dita, Zack, venho acompanhando
você já faz algum tempo.
Zack respirou fundo, lentamente, várias vezes. Tentou fazer com
que seus únicos dois neurônios que ainda funcionavam parassem de
gritar sobre como Jason Xuan — o Jason Xuan! — estava sentado
bem ali. Jason era seu inimigo.
Ou… será que era mesmo?
— Você sabe que eu abandonei os imperadores porque eles
mentiram para mim? — perguntou Zack, abrindo mão de qualquer
fingimento.
— Foi por isso que vim vê-lo. Porque finalmente podemos
conversar sem a interferência deles.
— Então, você também sabe que os imperadores sequestraram o
espírito da minha mãe de propósito?
— Sequestraram? — repetiu Jason, fazendo uma careta. — Não
sabia desse detalhe específico. Parece terrível. Sinto muito, de
verdade. Não sou onisciente, sabe? Mas já esperava que o verdadeiro
caráter dos imperadores se revelasse, cedo ou tarde.
— Ele se revelou mesmo — murmurou Zack.
— O que eles contaram sobre mim?
— Que você foi o hospedeiro escolhido pelo Imperador Amarelo.
Que ele ajudou a construir sua empresa influenciando as pessoas
através de seus sonhos. Porque ele quer romper o portal espiritual e
reunir um exército sobrenatural para controlar a humanidade outra
vez.
Jason bufou com um sorrisinho, abaixando os olhos por um
instante.
— Essa última parte é um mal-entendido, mas o resto é verdade.
Embora, é claro, apenas a Tiffany e alguns dos meus confidentes mais
próximos saibam da minha… condição. É difícil contar isso para as
pessoas sem acharem que enlouqueci, infelizmente. Mas, falando em
minha empresa, preciso dizer por que vim atrás de você, Zack. Sabe,
videogames e aparelhos de realidade aumentada são apenas uma
parte dela. Também trabalhamos com informação e vigilância —
explicou Jason, e sua expressão ficou bem mais solene. — Dez anos
atrás, ajudamos a polícia chinesa a capturar um grupo que
consideravam ser extremistas perigosos. Nós rastreamos e
bloqueamos seus métodos de comunicação. Durante a prisão, nossos
filtros identificaram um vídeo de um dos suspeitos. Um suspeito
chamado Ying Qiaosong.
Zack arregalou os olhos. Ele parou de respirar.
Pai.
A cadeira de Jason rangeu quando ele se inclinou para a frente.
Sua voz baixou para um murmúrio.
— Peço mil perdões pela participação de minha empresa nisso.
Fomos convencidos de que eram indivíduos perigosos de verdade.
Mas há uma coisa que posso mostrar. Tecnicamente, revelar isso é
ilegal, mas acredito que você merece a oportunidade de vê-lo.
Jason sacou o celular do bolso interno do terno, então entregou o
aparelho para Zack com um vídeo tocando.
Era o pai de Zack, falando com urgência enquanto batidas duras
retumbavam ao fundo. A filmagem, feita por conta própria, tremia
enquanto ele corria de quarto em quarto. O microfone estalou.
Zack pegou o celular de Jason, a atenção fixa na tela, sua
respiração tão ofegante quanto a do pai. Seu pai de verdade, nada
parecido com Qin Shi Huang. Zack não conseguia acreditar no que
via. Todas as imagens dispersas e versões imaginárias de como o pai
agia, como era a voz dele, como falava, se tornaram reais e concretas
diante de seus olhos.
Ziyang, Zack o ouviu dizer várias vezes. Sentiu um aperto no
coração. A mensagem era para ele.
Mas o garoto não conseguia entendê-la. A voz do pai oscilava e
falhava de desespero. Ainda assim, suas palavras não conseguiam ser
traduzidas pela mente de Zack.
Um barulho alto soou ao fundo do vídeo. O pai de Zack gritou, e a
filmagem tremeu muito. O vídeo acabou abruptamente, com pouco
menos de um minuto.
A música da boate retumbou através das paredes no silêncio que se
seguiu. Zack fungou e arquejou, soluços saindo de sua garganta.
Lágrimas caíram na tela do celular.
Zack encarou Jason com olhos inchados.
— E-eu não consigo entender ele. Essas são as últimas palavras do
meu pai, e eu não consigo entender ele.
— Assista de novo — instruiu Jason suavemente.
Zack tocou na tela para reproduzir o vídeo.
Jason traduziu a mensagem.
— Seu pai queria que soubesse que ele fez tudo isso para que sua
geração não tivesse que viver com medo e em silêncio, como a
geração dele. Ele queria lutar por um mundo onde você pudesse
sentir orgulho de si mesmo, sem ter medo de acreditar no que
quisesse. Ele desejava vê-lo de novo, mas, se não pudesse, desejava
que o perdoasse.
Zack pressionou os olhos com os nós dos dedos. Chorava tanto que
não soltava nenhum som. O peso do Selo Relíquia no bolso da camisa
perfurava ainda mais seu coração.
O que ele estava fazendo? O que tinha dado em Zack para sair
usando magia para controlar as pessoas — o mesmo tipo de
crueldade que seu pai havia sacrificado a vida para combater?
Jason se sentou ao lado de Zack no sofá, dando tapinhas em suas
costas.
— Há uma boa notícia. Se você nos ajudar, talvez possa vê-lo outra
vez.
Os soluços de Zack cessaram.
— Hã? Ele está vivo?
— Não, mas a morte nem sempre corta o contato com os entes
queridos de maneira definitiva. — Os olhos de Jason reluziam sob as
luzes fracas da sala. — Quando o portal estava completamente
aberto, todos os nossos ancestrais eram capazes de falar conosco em
sonhos. Agora, só os espíritos mais fortes conseguem fazer isso. Qin
Shi Huang cortou a conexão entre os dois reinos que deveriam estar
conectados. É por isso que os espíritos têm resistido às tentativas
tirânicas dele de mantê-los afastados.
Zack secou os olhos.
— Ele me disse que isso traria guerra e caos.
— Qin Shi Huang só está projetando o próprio medo e a própria
mentalidade distorcida em milhões de espíritos inocentes. Se o portal
estivesse completamente aberto, todo mundo que foi prejudicado por
ele poderia atacar em massa e dilacerar seu espírito.
— É claro — resmungou Zack.
Como se já não estivessem tentando.
— Mas a grande maioria dos espíritos ia querer apenas se conectar
com entes queridos. Com sua ajuda, com o poder que você detém,
podemos devolver aos espíritos a habilidade de fazer isso. Venha
conosco, e explicarei os detalhes.
Zack olhou para a última imagem do pai no vídeo, depois para
Jason. Ele decidiu usar o poder de comando do selo uma última vez.
— Eu ordeno que me diga se está falando a verdade.
— Estou — disse Jason, sem tensão no rosto, os olhos dourados
brilhando.
Zack ficou de pé.
— Então vamos lá.
22
Como despertar o Romeu da dinastia Qin

— Então, Zack, o que você sabe sobre Fusu, o filho mais velho de Qin Shi
Huang? — perguntou Jason, balançando um copo quadrado com
uma bebida marrom.
Tiffany os conduzia num carro sofisticado. Os assentos na parte de
trás do veículo ficavam de frente uns para os outros, como numa
limusine, e eram iluminados por faixas de luz azul. Tecnicamente,
talvez fosse uma, embora não parecesse tão comprida quanto uma
limusine típica vista de fora. Além disso, havia um cooler embutido
com todo tipo de bebida.
— Fusu? — repetiu Zack, franzindo o cenho.
O nome era muito familiar, mas ele não conseguia identificá-lo.
— Isso. Ele era o herdeiro legítimo de Qin Shi Huang. Um príncipe
gentil e gracioso que todos queriam ver assumir o trono depois de
Qin Shi Huang. Mas ele foi banido para as Terras do Norte por se
manifestar contra a campanha de Qin Shi Huang para enterrar os
sábios confucianos vivos e queimar livros de história dos seis reinos
que havia conquistado.
Os sonhos voltaram à mente de Zack. O garoto estalou os dedos
quando finalmente fizeram sentido.
— E aí… e aí mandaram ele tirar a própria vida por traição!
— Sim, mas o que Fusu não sabia era que a ordem era falsa. Na
verdade, Qin Shi Huang havia morrido subitamente durante uma
expedição pelo país. Seus confidentes mais próximos encobriram a
morte e expediram uma ordem em nome do imperador sentenciando
Fusu ao suicídio, para que pudessem colocar o filho mais novo e
ingênuo de Qin Shi Huang no trono. Esse era Huhai, que acabou se
revelando ainda pior do que o pai. A dinastia Qin desmoronou em
três anos. Se bem que, para falar a verdade, ela estava na corda
bamba desde o início. Mas, se Fusu tivesse se tornado o segundo
imperador, talvez a dinastia tivesse durado mais tempo. É um dos
grandes “e se…” da história chinesa. Veja bem, Fusu não estava
impotente quando a ordem de suicídio chegou. Ele estava
posicionado bem aqui com o grande general Meng Tian e trezentos
mil soldados qin de elite.
— Espera aí. Posicionado aqui? — questionou Zack, encostando na
janela.
Postes de luz fraca passavam como estrelas cadentes.
— Isso mesmo. Aqui são as Terras do Norte. E, há mais de dois mil
anos, Fusu poderia ter se rebelado contra a ordem. Poderia ter
marchado os trezentos mil soldados para a capital, Xianyang, e
exigido explicações, coisa que o general Meng Tian o incentivou a
fazer. Fusu apenas desistiu e tirou a própria vida. É interessante
especular sobre o motivo. Há uma pista nas entrelinhas dos registros
históricos: quando as primeiras rebeliões anti-Qin estouraram nas
terras do antigo reino de Chu, as pessoas se levantaram em nome do
grande general de Chu, Xiang Yan, e também… de Fusu. Mas por que
uma rebelião chu clamaria por justiça para um príncipe qin?
Zack bebericava uma garrafa de Bīngfēng, um refrigerante laranja
que, segundo Jason, era a bebida mais icônica da província de
Xianxim.
— Chu foi o reino com que Qin Shi Huang mais teve problemas,
certo? O que ele precisou atacar duas vezes porque o tio criou uma
rebelião secreta?
— Exatamente. E o fato de que o povo de Chu estimava tanto Fusu
sugere que sua mãe deve ter sido uma princesa chu. Não sobraram
registros disso, mas as pessoas da época se lembrariam de um
casamento extravagante. Na China antiga, casamentos eram tão
importantes que um homem não era considerado completo até que se
casasse. Solteiros eram motivo de piada. Entretanto, por alguma
razão, Qin Shi Huang entrou para a história como um homem
solteiro. Ele foi o único imperador digno de nota a ser enterrado sem
uma imperatriz. Até mesmo Wu Zetian abdicou do título de
imperador em seu leito de morte para que pudesse ser enterrada com
o marido. Ainda assim, Qin Shi Huang escolheu ficar sozinho por
toda a eternidade — comentou Jason, balançando a cabeça. —
Completamente só num mausoléu maior do que todo o Vale dos Reis
no Egito.
Zack mordeu o lábio.
— Bem-feito para ele.
— E tem mais. Uma curiosidade sobre o nome de Fusu: ele foi
tirado do Shījīng, o Livro das canções, uma coletânea de músicas
populares de toda a China na época. Para ser mais específico, o nome
foi tirado de uma música de amor provocativa. Basicamente, Qin Shi
Huang nomeou seu primogênito de Romeu.
Zack quase se engasgou com o refrigerante.
— Fala sério!
— Estou falando — insistiu Jason, gesticulando com o copo. —
Existe uma fofoca histórica e obscura sobre como Qin Shi Huang
adorava escutar canções de amor. Ele devia ter sido um romântico
quando jovem. Escute só o poema de onde saiu o nome de Fusu: “Há
árvores fúsū na montanha; há flores de lótus na lagoa. Por que não
encontrei um rapaz belo como Zidu, e sim um arrogante como você?”
Zack se lembrou em um flash da caverna em Penglai, deixando o
queixo cair. Era exatamente aquela música que Qin Shi Huang estava
cantando quando ele acordou.
Jason fez um gesto incrédulo.
— Dá para imaginar uma jovem donzela cantando isso para ele,
não é? Porém, não há registros sobre ela. Não há registros sobre
mulher alguma no harém de Qin Shi Huang. Tudo indica que foram
apagadas sistematicamente. Tenho a impressão de que a rainha
perdida de Qin ficou do lado de Chu, sua terra natal, e contribuiu
para a rebelião que destruiu o primeiro exército invasor de Qin Shi
Huang.
Zack inclinou a cabeça, incrédulo.
— Qin Shi Huang chegou a me falar que atacar Chu era como
brigar com uma esposa!
— Talvez essa fala tenha sido mais literal do que você imagina. Se
as coisas entre ele e essa rainha perdida realmente acabaram tão mal,
isso explicaria muitos aspectos da relação dele com Fusu. Como o
fato de ele nunca ter nomeado Fusu como o príncipe herdeiro oficial,
o que plantou a semente para o desastre sucessório. E o fato de Fusu
estar disposto a aceitar que o pai havia ordenado que tirasse a
própria vida. Mas, se Fusu recebesse uma segunda chance, aposto
que ele não seria mais tão obediente a ponto de imprudência.
Jason encarou Zack intensamente. Uma sensação desconfortável
tomou conta do garoto.
— Como assim, uma segunda chance?
— Você tem a capacidade de hospedar Fusu, Zack. Afinal, ele é
metade Qin Shi Huang. E, por causa da forte associação com Qin Shi
Huang, a parte do espírito de Fusu que ficou em seu corpo após a
morte, o pò, permanece em seu túmulo. É para lá que estamos indo
agora mesmo.
— V-vo-você quer que eu deixe Fusu me possuir?
— Ele é nosso melhor guia para navegar pelo mausoléu de Qin Shi
Huang. Além disso, sua magia ficaria ainda mais forte.
— Por que precisamos ir até o mausoléu de Qin Shi Huang? Achei
que estivéssemos tentando impedir os planos dele.
O olhar de Jason se tornou sombrio, refletindo um pouco da luz
azul do carro.
— E estamos. Fazendo o oposto. Ele quer selar o portal. Nós vamos
abri-lo por completo.
— Não podemos só esperar o início do Mês dos Fantasmas?
— Talvez o fluxo de espíritos só abra o portal parcialmente. Se
enfraquecermos ainda mais o tampão com o poder do Selo Relíquia,
vamos garantir que seja escancarado de uma vez por todas.
Zack esfregou a garrafa de refrigerante, distraído.
— Isso é seguro?
— Não fará a menor diferença, só permitirá que espíritos comuns
finalmente consigam atravessar o portal. Como o seu pai. Como o
meu — disse Jason, inclinando-se para a frente com os antebraços
cruzados sobre os joelhos. — Também perdi meu pai quando era
muito novo.
— Eu sei — murmurou Zack, duas palavras que não passavam
nem perto de expressar o quanto aquele fato havia tornado Jason
importante para ele.
Jason assentiu, então continuou:
— Espíritos lendários conseguem atravessar o portal desde que o
tampão esteja levemente enfraquecido, mas as pessoas comuns? Elas
não têm chance, a não ser que lhes dermos uma. Essa é a única
maneira de vermos nossos pais outra vez.
Zack apertou a garrafa contra o peito.
— Mas parece… extremo.
— Só porque você não está acostumado a tomar decisões com
grande impacto no mundo. Acredite, também fiquei morrendo de
medo quando minha empresa começou a decolar. De repente, eu era
responsável por muitas pessoas, e cada escolha que fizesse podia
afetar muitas outras. Então me apeguei à crença de que eu estava
destinado a mudar o mundo. Devo muito de meu sucesso ao
Imperador Amarelo, mas acredito que ele me escolheu por uma
razão. E Qin Shi Huang deve ter visto algo especial em você também.
Nós podemos encarar isso. Nós nascemos para isso.
Zack relaxou as mãos. Pensando no pai, ele endireitou a postura e
respondeu:
— Tá bom.

O túmulo de Fusu ficava em uma pequena montanha no meio de uma


cidade rural poeirenta. Quando chegaram ao topo, Zack e Jason se
depararam com uma lápide alta, que era claramente um acréscimo
moderno, coberta por um telhado curvado em estilo chinês. Havia um
monte redondo de terra empilhado atrás da lápide, cercado por uma
barreira baixa de concreto. Zack se arrepiou devido ao vento
persistente, esfregando os braços.
— Aqui, pegue isto — instruiu Jason, passando-lhe uma espada
envolta em plástico que Tiffany havia tirado do carro. — Esta é a
espada que Fusu usou para tirar a própria vida. Foi encontrada
sozinha, num terreno baldio, em meio a vários túmulos dos filhos de
Qin Shi Huang. Meus subordinados a adquiriram da equipe
arqueológica mais cedo. Ela deve ajudar você a se conectar com ele.
Zack engoliu em seco.
Com cuidado, ele pegou a espada antiga.
— Como eu faço isso?
— Basta se deitar no monte de terra do túmulo e esperar —
explicou Jason, dando tapinhas em seu ombro. — Não tenha medo.
Ele é seu ancestral, afinal de contas.
Qin Shi Huang também, refletiu Zack.
— Certo — disse o garoto, respirando fundo e devagar para se
acalmar. — Certo.
Com passos arrastados, Zack cruzou a pequena barreira de
concreto e escalou o monte de terra. Jason e Tiffany o observavam,
próximos à lápide.
Não custa nada tentar.
Zack se deitou na terra fria. Foi desconfortável a princípio, com
pedrinhas minúsculas se encrustando em suas costas, mas algo na
mudança de perspectiva tornou tudo menos horripilante. Um céu
repleto de estrelas cintilava lá em cima. O vento suspirava pela
imensidão da noite, estranhamente pacífico em vez de sinistro. Zack
segurou a espada como um cavaleiro com uma das mãos e colocou a
outra na terra. Logo sua tremedeira nervosa se dissipou em calmaria.
Minha criança…, sussurrou uma voz em sua mente.
Um sopro escapou dos lábios de Zack.
— Fusu?
Uma luz fraca surgiu sob a mão de Zack, e dedos espectrais
deslizaram entre os dele.
De repente, como se tivesse sido puxado por trás, sua consciência
mergulhou em uma escuridão sibilante, girando várias vezes através
do nada infinito.
O grito de Zack parecia atrasado em sua percepção, como se viesse
de longe.
Então, também de forma abrupta, Zack se viu em terra firme,
numa câmara iluminada com chamas azuis. Um homem belo com
vestes fantasmas estava de pé à sua frente.
— É você! — ofegou Zack. — Era você que estava me chamado
esse tempo todo.
— Sou eu — respondeu Fusu, com a voz gentil ecoando de todas
as direções e os olhos brilhando de alegria. — Sinto muito não ter
conseguido enviar mensagens mais claras. As defesas dele eram fortes
demais. Mas você enfim se libertou. E veio ao meu encontro.
— Você também é meu ancestral? — perguntou Zack, chegando
mais perto e olhando para Fusu com assombro.
— Sim. Eles não se livraram de todos os meus filhos no massacre
— respondeu Fusu, erguendo a mão em direção ao garoto. — Agora,
vamos acabar com a tirania de meu pai juntos.
Zack se arrepiou.
Ele encostou a mão pequena na de Fusu, que tinha o dobro do
tamanho da sua.
Mas Fusu ergueu as finas sobrancelhas.
— Você está hesitante a respeito da missão.
Zack recolheu a mão.
— Eu… bom… libertar tantos espíritos de uma vez só… Hã, eu
quero ver meu pai de novo, mas isso parece…
Uma mudança drástica ocorreu na aparência de Fusu. Sua pele se
enrugou e se tornou cinza-azulada, como a de um cadáver. Seus olhos
afundaram para dentro das órbitas. Do nada, uma espada surgiu,
alojada em seu peito. Uma mancha vermelho-escura brotou em sua
túnica. Zack se afastou, sentindo calafrios pelo corpo inteiro.
Fusu balançou a cabeça, avançando sobre ele.
— Se há uma lição que aprendi com minha vida e minha morte, é
que fraqueza leva apenas ao fracasso.
Fusu arrancou a espada do próprio corpo e a enfiou no peito de
Zack.
23
Como se meter nos problemas de família dos outros

Zack abriu os olhos no jardim de um antigo palácio. Tudo parecia um pouco


surreal e se mexia meio devagar demais. Ao longe, fileiras de eunucos
com chapéus altos e criadas com cabelos arrumados em coques
andavam de um lado para o outro através de passagens cobertas, mas
seus movimentos deixavam rastros pelo ar.
— Meu príncipe, o que está procurando? — perguntou uma voz
feminina atrás dele, doce e gentil.
— Minha mamãe — respondeu Zack automaticamente,
desesperado. — Para onde ela foi?
— Ah… — A voz da mulher ficou sombria e trêmula. — Meu
príncipe, receio que o rei tenha…
Ela tocou seu ombro. Zack olhou para trás.
O rosto da mulher era apenas pele lisa.
Ele gritou, mas nenhum som saiu. Zack se desvencilhou da mão
dela e correu na direção oposta. Mas não importava o quanto
tentasse, só conseguia se mexer em câmera lenta. O mundo oscilava
ao seu redor. Vozes silenciosas surgiam e sumiam em seus ouvidos.
—… a rainha traiu Qin…
—… você viu o rosto de Sua Majestade quando os soldados a
arrastaram para fora…
—… a coisa mais assustadora que já vi…
—… ele faria qualquer coisa para vencer…
—… qualquer coisa…
—… o que ele fará com o príncipe mais velho?
—… nenhuma ordem ainda…
Uma dor aguda reverberou pela cabeça de Zack, que se agachou,
apertando-a. Imagens do mundo real tremeluziram por sua mente.
Ele de volta ao carro sofisticado, falando com Jason, andando pelo
saguão reluzente de um hotel caro, entrando em um avião durante o
dia.
— Ah, não — disse Zack, hiperventilando. — Fusu, o que você está
fazendo com o meu corpo?
— Meu príncipe! — chamou a mulher sem rosto. — Cadê você,
meu príncipe? Volte aqui!
Não. Ele tinha que escapar de onde quer que estivesse.
Zack se esforçou ao máximo para correr pela passagem coberta,
atravessando pilares pintados de vermelho.
— Meu príncipe, você não pode ir por aí!
Ele continuou a correr, mas o tempo se movia como lama. Mais
eunucos e criadas vieram atrás dele, todos com rostos lisos. O som de
sua própria respiração se demorava entre seus ouvidos.
A passagem dava voltas e contornava estruturas com telhados
curvados até terminar na frente de um edifício imenso. Suas portas
duplas eram muito mais altas do que Zack; o garoto tinha que esticar
o pescoço para enxergar o topo delas. Quando os gritos o alcançaram,
ele levantou a barra da túnica e saltou sobre o limiar alto de madeira
que havia na parte de baixo do portal.
Disparando pelas sombras, Zack passou por pilares de bronze
gigantescos envoltos por dragões. À sua frente, uma plataforma
estreita se estendia sobre um longo espelho d’água. Fogo reluzia na
superfície escura graças a centenas — talvez milhares — de
lamparinas que tremeluziam pela câmara, pendendo de
extravagantes árvores de bronze. Uma fumaça branca fantasmagórica
saía das chamas e se mesclava ao cheiro de incenso no ar frio.
No final da plataforma, sobre um estrado com um trono de bronze,
estava um homem de túnica preta que, mesmo de costas, era
obviamente Qin Shi Huang. Sua espada — a espada Tai’e, relíquia
dos reis de Qin — pendia de sua cintura.
Indo contra seu bom senso, Zack avançou sobre a plataforma de
pedra, com desenhos de peixes serpenteantes entalhados na
superfície. Água escura reluzia em seus olhos e escamas. Quando
Zack estava quase alcançando o estrado, Qin Shi Huang se virou,
fazendo as contas de seu chapéu balançarem.
Ele tinha um rosto. Era o único rosto que Zack havia visto naquele
lugar. Por trás das contas, seus olhos aguçados refletiam o fogo,
iluminados como olhos de tigre. Uma barba cheia envolvia seu
queixo.
O garoto paralisou com um medo que nunca havia sentido. Então
aquela era a verdadeira forma de Qin Shi Huang — ao menos, no
auge da vida. Zack sentiu alívio por Qin Shi Huang ter aparecido, na
maioria das vezes, como um adolescente para ele.
Zack se ouviu dizer, com um arrepio:
— Pai.
— Fusu… — respondeu Qin Shi Huang. Sua voz deslizou para fora
do corpo como fumaça e ecoou como um mau agouro.
Zack tremia tanto que parecia prestes a se despedaçar.
Então mais imagens invadiram sua mente. Era ele — não, era Fusu
em seu corpo, tendo dificuldade para compreender um computador.
Fusu tentando usar um lápis, depois desistindo e usando um pincel
tradicional para fazer marcações em imagens de satélite impressas.
Fusu falando e gesticulando para um grupo de pessoas vestidas como
se fossem os Caça-fantasmas, com capacetes de minerador, prontas
para invadir um túmulo. Jason e Tiffany estavam entre elas.
— Pare com isso… — reclamou Zack, levando a palma da mão à
testa e se encolhendo. — Este corpo é meu! Meu!
— Nada é seu — respondeu o Qin Shi Huang imaginário. — É
tudo meu.
Imaginário. Era isso mesmo. Aquele lugar, onde quer que fosse,
não era real. Um lugar de verdade teria mais rostos além da fuça
assustadora de Qin Shi Huang.
Então, por que Zack estava com medo de fazer o que tinha que
fazer?
— Não… — disse Zack. Ele se endireitou, olhando para a espada
Tai’e na cintura de Qin Shi Huang. — Não, ela não é sua.
O garoto disparou estrado acima, arrancou a espada da bainha do
imperador com um ruído metálico e então a enfiou bem no coração
de Qin Shi Huang, usando as duas mãos.
A espada adentrou só um pouquinho antes de Qin Shi Huang
agarrar o cabo, mantendo-a no lugar. Sangue preto escorreu e pingou
de suas mãos. Cada gota chiava ao atingir o estrado.
O terror se apoderou de Zack outra vez. Quando cometeu o erro
de olhar para cima, a expressão furiosa de Qin Shi Huang o paralisou,
ardendo em sua mente.
Ele não podia ser derrotado. Aquele era o homem que havia
conquistado a China inteira, o mundo todo que conhecia naquela
época.
Mas Zack tinha que derrotá-lo, ou ficaria preso ali para sempre. O
garoto tinha certeza disso.
Precisava vencer.
Com um grito cada vez mais alto, Zack firmou os pés no chão e
empurrou a espada para cima. Ela afundou lentamente entre as mãos
e costelas de Qin Shi Huang. Mais sangue preto escorreu.
— Isto é pela minha mãe! — berrou Zack. A voz não era sua, mas
as palavras eram apropriadas.
A espada atravessou o corpo de Qin Shi Huang por completo. Tudo
se desfez num redemoinho.

Quando Zack recobrou um nível de consciência mais elevado, estava


de volta à vida real, atravessando um túnel escuro. Ou melhor, na
verdade Fusu caminhava pelo túnel. A luz de seu capacete de
minerador varria o cenário adiante. Vários passos ecoavam ao seu
redor, acompanhados de outros cones de luz. Porém, por mais que
Zack tentasse, não conseguia controlar o próprio corpo.
— Fusu! — gritou o garoto, embora não tivesse a menor ideia de
como estava emitindo som. Não parecia ter uma boca nem nada do
tipo.
— Ah. Você acordou — veio a voz de Fusu, também desencarnada.
— Devolva meu corpo! — gritou Zack.
Ele sentia como se estivesse preso em uma armadilha, exceto que a
armadilha era seu próprio corpo.
— Lamento, mas não posso fazer isso. Não posso deixá-lo arruinar
a missão.
— Eu…
Zack hesitou. Será que podia mesmo prometer não arruinar os
planos deles? Qual era a coisa certa a se fazer?
— Eu ia mesmo poder ver meu pai de novo? — perguntou o
garoto, num tom mais brando.
— Você vai vê-lo. E receio que também verei o meu em breve. O
Mês dos Fantasmas está quase começando.
Quando Zack estava prestes a bombardeá-lo com mais perguntas,
Fusu o calou.
Outras vozes, distantes e frágeis, falaram em sua mente.
…balestras… cuidado…
— Parem — anunciou Fusu em voz alta, abrindo os braços. —
Outra armadilha de pressão.
A equipe de invasão ao túmulo parou e se agachou. Fusu usou um
bastão para pressionar o chão diante deles. O piso cedeu um pouco
com o barulho de pedra raspando em pedra, então o zumbido
alarmante de dardos de balestra soou sobre suas cabeças. Os dardos
atingiram as paredes com ruídos secos.
— Uau — disse Zack. — Quem acabou de nos avisar sobre isso?
— Os espíritos dos engenheiros que foram mortos neste mausoléu,
para que certos segredos jamais saíssem daqui — respondeu Fusu na
mente de Zack. — Consigo ouvi-los. Eles estão nos protegendo.
Querem que nossa missão tenha sucesso.
Zack ficou em silêncio. Será que aquela missão podia ser errada se
o homem que estava indo contra ela era Qin Shi Huang, um tirano
infame e cruel?
— Impressionante — comentou Jason, apanhando um dardo e se
pondo de pé. Ele o girou diante da luz de seu capacete. — Bronze
puro banhado em cromo. Em mais de dois mil anos, não enferrujou.
É uma pena esta tecnologia ter se perdido com o fim da sua dinastia,
então o crédito foi para os alemães que a descobriram de novo na
década de 1920.
— Não era minha dinastia! — esbravejou Fusu. — Era a de meu
pai.
Por medo de distrair Fusu, Zack não disse mais nada enquanto
seguiam adiante. Ver a equipe se esquivar e decifrar armadilhas era
como assistir a um filme de terror em primeira pessoa. Nem parecia
um videogame, já que ele não tinha poder de escolha. Levou muito
tempo para Zack conseguir atenuar o horror de não ter controle sobre
o próprio corpo. Ele não sabia como Simon e Melissa aguentavam
aquilo com frequência.
Ironicamente, os sussurros das vozes fantasmagóricas impediam
Zack de atingir um nível ainda mais alto de desespero. Era como ser
avisado de todos os jump scares poucos segundos antes de
acontecerem.
A equipe de invasão se deparou com buracos de espinhos
escondidos, que cruzaram ao cobri-los com tábuas. Placas de pressão
que soltavam pó venenoso, que evitaram com máscaras respiratórias.
Mais balestras automáticas. Muitas, muitas balestras. A cada poucos
passos, alguém acendia um bastão fluorescente e o jogava no chão
para que pudessem encontrar o caminho de volta até a saída. Sempre
que se deparavam com uma porta selada, um expert em explosivos
armava uma explosão enquanto todos ficavam a uma distância
segura.
Os túneis se prolongavam tanto que até as armadilhas mortais e
explosões começaram a ficar monótonas, mas a ansiedade de Zack
não diminuiu. Ele não tinha medo de que a equipe se machucasse.
Tinha medo do que aconteceria quando chegassem ao seu destino.
Os espíritos ficaram muito animados quando eles se aproximaram.
— Vocês chegaram! Vocês chegaram! Vocês chegaram! — vibraram,
como se estivessem num show.
— A câmara fúnebre principal fica aqui atrás — anunciou Fusu em
voz alta.
As luzes nos capacetes da equipe convergiam em uma parede que
parecia ser um corredor sem saída.
— Finalmente — comentou Jason, admirando-a de maneira
intensa.
Então ele se virou para o Cara das Explosões e disse algo em
mandarim enquanto apontava para a parede.
Aquela era a deixa para que o restante da equipe se afastasse e
protegesse os ouvidos e olhos. O Cara das Explosões pressionou a
orelha na parede e a cutucou com uma série de instrumentos, depois
colocou vários explosivos na parte de baixo. Ele se juntou à equipe a
uma distância segura, de onde não conseguiam ver a parede, e
pressionou o gatilho.
Bum! As bombas detonaram, soando como trovões. Zack
chacoalhou mesmo com os sentidos amortecidos por não ter controle
sobre o corpo. Destroços despencaram do teto.
Quando tremor passou, uma luz permaneceu no final do túnel.
Uma luz trêmula e flamejante. O grupo soltou murmúrios de
preocupação, embora não houvesse som ou sinal de um incêndio fora
de controle.
Havia, entretanto, ecos estranhos de aparatos mecânicos rangendo
e se revirando.
Zack teria esperado um dos adultos checar o local primeiro, mas
Fusu guiou o corpo em direção à luz.
A vista através do buraco da explosão fez os pensamentos de Zack
entrarem em curto-circuito por meio minuto. Dentro de uma caverna
imensa, feito uma montanha oca, tão grande que ele não conseguia
ver o fim, montanhas de bronze se elevavam muito mais altas do que
ele, esculpidas com textura de picos nevados e florestas. Rios de prata
serpenteavam entre elas.
Não, não era prata. Mercúrio.
Ai, meu Deus. Aqueles eram literalmente rios de mercúrio.
Exatamente como Simon havia mencionado.
Fusu entrou num dos rios, e o mercúrio cobriu até seus joelhos.
— Não, não, não, isso é tóxico! — gritou Zack mentalmente, a voz
aguda.
— Não tema — retrucou Fusu, arrastando-se pelo rio prateado. Os
barulhos mecânicos ficaram mais altos; devia ser o mecanismo que
mantinha o mercúrio fluindo. — Esta câmara fúnebre é regulada por
magia lendária para permanecer igual a como era quando foi
construída há dois mil anos. O mercúrio não se infiltrará em seu
corpo.
Tiffany e o resto da equipe permaneceram próximos ao buraco da
explosão.
Jason entrou no rio atrás de Fusu, rindo, se molhando e
comentando:
— Ah, nós estaríamos mortinhos se este lugar obedecesse qualquer
princípio científico.
Zack observou os arredores tanto quanto era possível enquanto
Fusu movia a cabeça.
Estrelas feitas de pedras preciosas cintilantes decoravam o teto
preto. A iluminação ambiente, fraca e bruxuleante, era emitida por
árvores de bronze cheias de lamparinas de óleo, exatamente como as
do mundo das memórias de Fusu (ou o que quer que aquele lugar
fosse).
— O óleo de sereia — suspirou Zack. — Queimou mesmo por
milhares de anos.
— Uma decoração extremamente desnecessária — murmurou
Fusu mentalmente.
— É mesmo. Nós fomos perseguidos por um bando de sereias
furiosas por causa disso.
— Meu pai nunca tomou uma atitude considerando o bem-estar de
ninguém a não ser o próprio.
— É verdade. A mais pura verdade.
Zack estava começando a se sentir melhor a respeito daquela
situação. Desde que Fusu nunca mais monopolizasse seu corpo, talvez
tudo desse certo.
Depois de passar pelas montanhas, o rio os conduziu até um
exército gigantesco de estátuas de soldados e de carruagens puxadas
a cavalo, posicionadas sobre vastas planícies de bronze entremeadas
por mais rios de mercúrio. Os soldados eram esculpidos como o
Exército de Terracota, só que pintados com várias cores em vez de ter
o tom uniforme de argila. Eles protegiam uma plataforma elevada.
Em cima, havia um enorme caixão ornamentado, cercado por árvores
de bronze com lamparinas de óleo de sereia.
— Lá está ele — comentou Fusu em voz alta, saindo do rio. — O
corpo de meu pai.
Como Fusu havia prometido, nenhuma gota tóxica se prendeu às
calças dele — quer dizer, de Zack.
— Onde fica o portal? — perguntou Jason, surgindo ao seu lado
de repente.
— Debaixo dele, é claro. Consegue ver aqueles brilhos ali? São os
espíritos que escaparam mais cedo.
Zack os avistou assim que foram mencionados por Fusu: uma
ondulação constante ao redor da base do caixão, parecida com calor
de verão.
— Ah — comentou Jason. — Quer dizer que ele usou o próprio
caixão como peso de papel para o portal do submundo, hein? Típico.
— Típico — concordou Fusu, balançando a cabeça.
— Bom, muito bem. Vamos…
Fusu puxou Jason para o lado. Uma flecha espiritual vermelha
passou zunindo por eles e abriu um buraco na estátua de um
guerreiro.
— Os lacaios de meu pai — alertou Fusu, virando-se para trás. —
Eles estão aqui.
24
Como nasce um novo imperador

— Não somos lacaios dele! — gritou Melissa, escondida entre as


montanhas de cobre.
— Pensei que meus subordinados iam mantê-los trancafiados até
acabarmos com isso — reclamou Jason, puxando o celular de dentro
do macacão de seu uniforme de invasão a túmulo. — Ah, sem sinal.
— Você sequestrou Simon e Melissa?! — exclamou Zack, antes de
lembrar que só Fusu conseguia ouvi-lo. — Ele sequestrou Simon e
Melissa?
— Eles claramente escaparam — respondeu Fusu em voz alta. —
Os imperadores devem ter ficado adormecidos enquanto seus
hospedeiros nos seguiam até aqui para que não pudéssemos detectá-
los.
Simon e Melissa haviam passado por todo aquele percurso de
obstáculos e armadilhas mortais por vontade própria? É claro que a
equipe de Fusu havia desarmado a maioria das armadilhas, mas
ainda assim… o que os fazia confiar tanto nos imperadores? Não
podia ser só dinheiro e fama.
— Não os machuque — pediu Zack. — Eles estão com o espírito da
minha mã…
Sem esperar que o garoto terminasse a frase, Fusu gritou:
— Tang Taizong e Wu Zetian, ordeno que larguem suas armas e
venham me enfrentar!
Ouviu-se o som de alguém deslizando pelo bronze escorregadio e
aterrissando com um baque. Então os dois mergulharam no rio de
mercúrio e começaram a se arrastar em direção a Fusu, com
movimentos desajeitados, como se fossem fantoches.
Zack xingou mentalmente. Ele vinha torcendo para que Fusu não
soubesse usar o selo.
Mas… por quê? Zack não queria que Fusu tivesse sucesso?
— Percebo hesitação em você de novo, minha criança — disse
Fusu mentalmente. — Por que está tão descontente?
Sim, qual era o problema? Simon e Melissa eram os inimigos. Não
eram seus amigos. Eles mentiram para Zack.
Talvez o fato de os dois parecerem crianças como ele o estivesse
confundindo. Zack entendeu como os imortais se sentiram ao
acreditar que Qin Shi Huang estava preso em seu corpo.
Enquanto avançava desajeitadamente através do rio, Tang Taizong
fez o gesto de segurar um arco outra vez.
— Golpe no Portão de Xuanwu…
— Eu ordeno que fiquem em silêncio!
— Hmmm! — continuaram tentando os imperadores mesmo
assim.
— Que patético — comentou Jason, balançando a cabeça. — Dois
dos maiores imperadores da China, fazendo papel de idiota porque se
recusam a aceitar que perderam a batalha.
Todas as lamparinas da câmara tremeluziram. Uma nuvem preta
deslizou para fora da mochila de Tang Taizong, enquanto outra se
ergueu do caixão de Qin Shi Huang. Elas se entrelaçaram sobre a
mochila, que devia conter os óculos inteligentes de Zack, e se
agruparam na forma de…
— Pai — disse Fusu, com tanta emoção que aquilo atingiu Zack
como a onda de choque de uma explosão.
— Fusu — falou Qin Shi Huang, com uma leve hesitação. Sua
forma avançava devagar, acompanhando os passos pesados dos
outros dois imperadores. — Fusu, não faça isso. Você não sabe no que
pode estar metendo a China. Não faz ideia do que são guerra e caos
de verdade. Eu garanti que não soubesse!
— Não finja que derrotou os Reinos Combatentes por minha causa,
em vez de por sua própria glória e vaidade! — retrucou Fusu,
gesticulando para a extravagante câmara fúnebre.
Qin Shi Huang parecia seriamente arrependido de suas escolhas de
decoração.
— É verdade. Sou, sim, um megalomaníaco vaidoso e tirânico!
Mas um que se importa profundamente com a China. Posso ser ambos
ao mesmo tempo! Não há nada que impeça as duas coisas de serem
verdade. Mas você tem que parar com isso! Quanto mais o portal se
afrouxa, mais poderosos os espíritos se tornam, inclusive os deuses!
— alertou Qin Shi Huang, apontando para Jason. — O Imperador
Amarelo está usando você para se tornar mais forte!
— E daí? — rebateu Fusu, friamente. — Pelo que tenho visto, a
humanidade se beneficiaria do direcionamento dos deuses. O
Imperador Amarelo foi um governante bem melhor do que você.
— Isso não é verdade! Ele só escondeu melhor a própria tirania!
Você não ouviu falar das lendas que foram redescobertas a respeito
do que o Imperador Amarelo fez após derrotar Chiyou, o deus da
guerra? Que ele usou a pele esticada de Chiyou para produzir alvos
de arquearia, inflou seus órgãos feito balões para poder chutá-los e
cozinhou sua carne com molho para alimentar à força qualquer um
que desafiasse a autoridade do imperador?
Espera aí, como assim?
Zack não sabia de nada daquilo. Ninguém havia lhe contado.
Qin Shi Huang tinha razão sobre uma coisa: não havia bem contra
mal, heróis contra vilões. Cada um naquela câmara fúnebre era
horrível de maneiras diferentes.
Mas, então… o que fazer a respeito daquela missão?
— Os deuses são perigosos — continuou Qin Shi Huang. Uma
borda preta fervia ao redor de seu espírito, parecendo fogo escuro. —
Espíritos trapaceiros são perigosos. Demônios são perigosos. Você não
tem ideia das consequências de afrouxar esse portal!
— Consequências?! — gritou Fusu, sua voz reverberando pela
câmara fúnebre. — Como ousa falar em consequências? Você nunca
se preocupou com as consequências ao longo de sua vida inteira! De
sua existência inteira! Se tivesse apenas me nomeado como príncipe
herdeiro ou deixado minha mãe se tornar a primeira imperatriz,
como ela deveria ter sido, ou tornado qualquer mulher sua
imperatriz, a dinastia Qin não teria desmoronado assim que você
morreu! Todos os meus irmãos e irmãs… todos os seus filhos… não
teriam sido mortos. Mutilados. Apagados. Mas não. Você não
conseguia conceber a ideia de dividir seu poder com outras pessoas.
Você tinha certeza de que iria encontrar o segredo para a
imortalidade e reinar para sempre!
— Fusu… — disse Qin Shi Huang com esforço, no tom mais frágil
que Zack já havia escutado dele. — Eu sinto muito, muito mesmo,
por todos os danos que causei a você.
— Não lamenta, não! — retrucou Fusu. Lágrimas escorriam de
seus olhos compartilhados com Zack. — Você é Qin Shi Huang,
unificador dos Sete Reinos Combatentes, o próprio Imperador
Dragão! Você nunca sentiu muito por nada!
— Você tem que entender que nossa dinastia estava condenada
desde o início — explicou Qin Shi Huang gentilmente. — O que fiz
foi destruir os antigos costumes, os antigos poderes, e conduzir a
China a uma nova era. Mas o reino de Qin também era um poder
antigo. O último que restou. Esse foi o motivo para termos durado
apenas quinze anos a mais do que os outros Reinos Combatentes. O
que nós representávamos impedia o progresso do novo mundo.
— Continue tentando acreditar disso. Continue tentando encontrar
justificativas para suas falhas. Se enxerga, pai. Qual é o último verso
daquele poema de Li Bai sobre você? “Veja como, sob as três fontes
do monte Li, um caixão de ouro sepulta apenas um corpo frio”. Você
perdeu naquela época e agora perdeu de novo. Perdeu porque só
pensa em si mesmo. É sempre você, você, você. Sua missão, seu país,
como conseguir o que você quer. Bom, você não vai conseguir o que
quer hoje. E não há mais nada que possa fazer para me impedir.
Tang Taizong e Wu Zetian saíram do rio aos tropeços, parando
diante de Fusu.
— Eu ordeno que se curvem e continuem dessa maneira em
silêncio! — exclamou Fusu, com um gesto amplo do braço.
Os dois caíram de joelhos com os rostos distorcidos de horror,
então foram forçados a se prostrar.
— Não, levantem-se! — gritou Qin Shi Huang para os
imperadores, desesperado.
Mas os dois continuaram de joelhos, e Qin Shi Huang continuou
preso acima da mochila de Tang Taizong.
Zack não conseguia decidir o que fazer. Se bem que talvez ele não
precisasse decidir. Estava preso dentro da própria mente; o que quer
que acontecesse ali não seria culpa dele.
— Finalmente — resmungou Jason. — O drama familiar já
acabou? Porque os espíritos já devem estar prontos para sair a
qualquer momento.
— Sim. Vamos em frente.
Fusu colocou uma das mãos sobre o selo, dentro do bolso
escondido da camisa de Zack, e estendeu a outra em direção ao piso
embaixo do caixão de Qin Shi Huang.
Jason agarrou o ombro de Zack e entoou:
— Ó, Imperador Amarelo, ancestral do povo chinês, dê a seus
humildes servos a força necessária para enfraquecer o bloqueio do
portal natural entre o mundo dos mortais e o dos espíritos!
— Não! Pare! — urrou Qin Shi Huang.
Um calor imenso atravessou o corpo de Zack, iluminando seus
meridianos com uma luz dourada cintilante. Sob o caixão de Qin Shi
Huang, as cores do arco-íris se ergueram como uma aurora. Espíritos
saíram, brilhando com mais intensidade.
Os batimentos do coração de Zack ficaram em suspenso,
antecipando a chegada do espírito do pai.
— Pare! — exclamou Qin Shi Huang de novo, com a voz falhando.
— Pare, por favor!
A consciência de Zack oscilou.
Nunca ouvi falar de Qin Shi Huang demonstrando medo dessa
maneira.
Ah, se o Rei Dragão o visse naquele momento.
— Garoto. Zachary! — berrou Qin Shi Huang de repente. — Sei
que está aí, e peço desculpas sinceras por ter usado sua mãe como
um peão! Mas só fiz isso porque fiquei com receio de não conseguir
salvar a China quando percebi que não teria controle sobre você. Eu
fiz isso pela China, não por mim mesmo! Você tem que acreditar em
mim!
— Não o deixe manipular sua mente — retrucou Fusu dentro da
cabeça de Zack. — Ele só está morrendo de medo dos espíritos das
pessoas que maltratou buscarem vingança.
Mas quem realmente estava manipulando a mente de Zack?
— Fusu, o Imperador Amarelo vai mesmo assumir o controle? —
perguntou o garoto.
— Não do jeito tirânico que você pensa. Assim que o Imperador
Amarelo conseguir incorporar em seu hospedeiro mortal, ele usará
seu poder e seus recursos apenas para melhorar a China. A disputa é
entre Qin Shi Huang, um tirano lendário, e o Imperador Amarelo,
nosso reverenciado ancestral. Por que está hesitando?
— Zachary, eu sei o quanto odeia ser controlado! — gritou Qin Shi
Huang. — Você quer viver em um mundo repleto de entidades mais
poderosas do que consegue imaginar? Em um mundo com dez mil
eus competindo pelo domínio sobre os mais fracos? Você superou
todas as minhas expectativas. Não só obteve o Selo Relíquia, como se
recusou a deixar que o forçasse a causar destruição! Não deixe que
tudo isso seja em vão! Você me expulsou; você consegue expulsá-lo!
Ele é só metade de mim!
— Basta! — esbravejou Fusu.
O brilho da luz arco-íris se intensificou. A torrente de espíritos
saindo do portal ficou mais forte, provocando um vento que soprou
no rosto de Zack e arrepiou seu cabelo.
— Você perdeu, pai! Aceite de uma vez! Não há nada que possa
fazer para virar essa situação a seu favor!
— E se… e se eu abdicasse de minha existência? — sugeriu Qin
Shi Huang, recuperando a firmeza na voz.
— Hmm? — grunhiram os outros imperadores, alarmados,
olhando para ele.
Qin Shi Huang os ignorou.
— Sei que você acha que eu não mereço existir. Posso desaparecer.
Abdicarei de minha existência se parar de enfraquecer o tampão do
portal, Fusu! Deixe-me provar que temo apenas pelo futuro da China,
não a vingança de todos que já prejudiquei!
— Você nunca…
— Nunca faria isso? — vociferou Qin Shi Huang. — Como sou o
conquistador dos Reinos Combatentes, todo cidadão é meu súdito e,
portanto, posso invocar qualquer um deles. Incluindo…
Uma sequência veloz de cartas espirituais apareceu diante de Qin
Shi Huang. Ele passou por elas até encontrar uma específica.
— Pelo comando de seu imperador, erga-se, Jing Ke, assassino
lendário!
Uma espiral de qi preto brotou do peito de Qin Shi Huang, subindo
até se agrupar na forma sombria de Jing Ke empunhando uma adaga.
— Hmmm… não! — disse Wu Zetian, com esforço. — Não… faça
isso!
— Esta… versão sua… nunca mais existirá! — implorou Tang
Taizong.
Qin Shi Huang respirou fundo, abrindo um sorriso impulsivo.
— O medo da morte foi o único inimigo que não pude derrotar em
vida. Hoje é o dia em que o derrotarei — anunciou ele, abrindo os
braços e expondo o peito para Jing Ke. — Termine o que começou
tantos milhares de anos atrás.
Sem hesitar, Jing Ke enfiou a adaga em Qin Shi Huang, que
cambaleou no lugar, agarrando o ombro do assassino. Os olhos de
Qin Shi Huang se arregalaram e tremeram.
— Não! — gritaram Tang Taizong e Wu Zetian.
Jason soltou uma risada chocada. Uma onda intensa de emoção
atravessou Fusu, tão complexa que Zack não conseguia entender
direito o que ele estava sentindo, apenas que era muito intenso. O
próprio Zack assistiu, atordoado, à forma de Qin Shi Huang se
desfazer em fumaça preta. O imperador tentou conter um grito a
princípio, mas então o som rasgou sua garganta, com tamanho
sofrimento que até a parte de seu espírito dentro de Zack ressoou
com uma dor flamejante.
— A China… — exalou Qin Shi Huang com suas últimas energias.
— Salve a China.
Como tinta se dissolvendo em água, Jing Ke e ele se dispersaram e
desapareceram. Uma força invisível nocauteou Tang Taizong e Wu
Zetian, além de lançar Fusu e Jason para os lados.
Zack sentiu a dor de perder parte do corpo, e isso o fez perceber
que não era um truque. Não era manipulação. Qin Shi Huang
realmente havia partido. Ele tinha mesmo se aniquilado.
Qin Shi Huang acabou de aniquilar o próprio espírito.
Com o choque se transformando em horror e depois em revelação,
Zack se aproveitou do lapso atordoado na consciência de Fusu e lutou
para recuperar o controle do próprio corpo.
— O que você está fazendo?! — gritou Fusu em sua mente,
agarrando a cabeça, tentando resistir.
Um grunhido prolongado escapou de sua boca de verdade.
— Fusu? — chamou Jason atrás dele, segurando-o pelos ombros.
— Permaneça no controle!
— Se Qin Shi Huang deixou de existir para fechar o portal, então
sua motivação não pode ser egoísta! — exclamou Zack. — Deve ser
mesmo importante!
— Você não quer ver seu pai?
— Eu o verei — respondeu Zack, percebendo que era verdade. —
Algum dia. Sei que ele vai esperar por mim. Ele também se sacrificou
pela China. Pela China que acreditava ser possível. Ele não ia querer
que eu a arruinasse sendo impaciente!
Os ventos espirituais sopraram mais fortes e mais barulhentos,
acertando seu rosto. O garoto podia jurar que aquilo estava lhe
dando forças. Com uma explosão culminante de energia, Zack
expulsou o espírito de Fusu de seu corpo, que saiu por sua boca na
forma de um brilho distorcido.
— Não, não, não! — gritou Jason, largando seus ombros.
A mente de Zack se uniu completamente com seus sentidos outra
vez. Foi como acordar de um sonho. Ele quase havia se esquecido de
como era sentir tudo de maneira tão nítida. O cheiro metálico e
sulforoso no ar, os ruídos mecânicos dos rios, o zunido do vento
espiritual, a textura de suas roupas…
O calor ardente do selo em seu peito.
Enquanto corria para longe de Jason, Zack apalpou debaixo da
camisa e agarrou o selo. Para seu choque, descobriu que ele estava
muito menor do que antes, se dissolvendo em uma névoa mágica
dourada. Zack desejou que o poder restante do selo desfizesse o que
Fusu havia feito.
Fique mais grosso, ordenou ele ao tampão do portal. As auroras de
arco-íris se encolheram, como o fogo da boca de um fogão sendo
diminuído.
— Garoto insolente! — vociferou Jason, que claramente não era
mais ele mesmo.
O Imperador Amarelo devia ter assumido o controle.
Seus olhos e meridianos irradiavam um brilho amarelo, e sua voz
ecoava multiplicada por mil pela câmara fúnebre, estilhaçando as
estátuas de soldados mais próximas.
— O Livro de Bái Zé! — entoou o Imperador Amarelo.
Um livro espiritual se conjurou diante dele a partir de fios de luz
amarela, com as páginas virando rapidamente. O imperador abriu os
braços com muito esforço. Invocações amarelas de criaturas míticas
monstruosas surgiram em meio aos ventos espirituais, conectadas ao
livro por linhas finas. Era como um catálogo inteiro de Reinomítico
ganhando vida.
— Exterminem-no! — gritou o Imperador Amarelo, apontando
para Zack.
O exército espiritual voou em direção ao garoto.
Em meio ao pânico crescente, Zack soube o que invocar:
— O rei de Qin corre ao redor do pilar!
O tempo desacelerou. Zack correu para longe do exército que se
aproximava e deu um empurrão em Jason — não, no Imperador
Amarelo —, que havia congelado no meio de um grito. O corpo do
Imperador Amarelo se inclinou para trás, deixando marcas no ar, e as
pontas de seus sapatos se ergueram do chão. Ele levaria um grande
tombo quando o tempo voltasse ao normal. O livro espiritual pairava
no lugar, e uma de suas centenas de fios brilhantes se esticou para se
manter conectada ao peito do Imperador Amarelo. Zack esperou por
uma explicação sobre o Livro de Bái Zé, então lembrou que Qin Shi
Huang havia partido. Mordendo os lábios, Zack tentou empurrar o
livro para longe, mas sua mão o atravessou.
Ele queria fazer mais, mas não conseguia invocar uma arma
espiritual sozinho. O garoto se contentou em abrir o zíper do
macacão do Imperador Amarelo e torcê-lo ao redor de seus membros
o máximo possível para que ele ficasse enrolado também. O belo
rosto de Jason Xuan, que Zack costumava admirar tanto, estava
paralisado em uma expressão cômica. Então Zack percebeu que a
própria existência de Jason era cômica. Tudo que havia conquistado
fora graças à influência mágica do Imperador Amarelo, não a seu
talento, e agora ele não passava de um hospedeiro sem controle sobre
o próprio corpo.
Zack entrelaçou os braços nos de Wu Zetian e Tang Taizong,
pensando em carregá-los para longe. Mas uma sensação de fracasso o
consumia. Eles haviam chegado tarde demais. O Imperador Amarelo
tinha se apossado de Jason. Eles nunca conseguiriam sair dali antes
que o exército espiritual os alcançasse. Zack não podia sustentar o
tempo desacelerado para sempre.
Na verdade, ele estava desperdiçando o que restava do selo com
aquilo. A relíquia continuava se dissolvendo em névoa dourada. Zack
estava usando o final de sua preciosa mágica para paralisar o tempo,
quando deveria usá-la para reforçar o tampão do portal.
Desesperado, o garoto voltou sua atenção para as legiões de
estátuas de soldado espalhadas por toda a câmara fúnebre, e então
pousou os olhos no caixão de Qin Shi Huang. Ele pensou em como o
Primeiro Imperador havia usado as partes pesadas de pò restantes de
seu espírito ali dentro para sustentar sua invocação.
Zack teve uma ideia ousada.
Ele carregou Wu Zetian e Tang Taizong em direção ao exército, o
que não foi nada fácil com eles presos no tempo desacelerado. Seus
corpos deixavam um rastro de imagens residuais. Os músculos de
Zack logo começaram a arder com o esforço. Ele devia ter levado as
aulas de educação física a sério. Não que seu professor alguma vez
tivesse ensinado como arrastar duas crianças possuídas por
imperadores através do tempo desacelerado. Mas Zack seguiu em
frente apesar da dor, como havia feito durante toda aquela jornada, e
continuou a arrastá-los, afastando espíritos para o lado a fim de
chegar até o estrado do caixão.
— Eu anulo todas as ordens anteriores dadas a vocês dois — disse
Zack, ofegante, enquanto os endireitava ao lado do caixão.
Não tinha certeza se sua ordem os permitiria falar e se mover
livremente outra vez, mas contava com isso. O martelo de Wu Zetian
era a única coisa que ele conseguia pensar que seria capaz de
despedaçar o enorme caixão.
Zack ergueu o selo cada vez menor, o coração doendo com a culpa
que sentia por não ter sido imune e ter se deixado corromper por ele.
O garoto tinha dado tantos sermões moralistas para Qin Shi Huang,
mas, no fim das contas, também caíra na armadilha do poder e do
controle. A tristeza podia levar as pessoas a fazer coisas terríveis.
Me desculpe por quase ter perdido o rumo, pai.
Ninguém deveria ter tanto poder. Era melhor que o selo sumisse.
Zack desejou que o selo simultaneamente desacelerasse o tempo e
consertasse o tampão do portal, até a relíquia se desintegrar nos
últimos pontinhos dourados brilhantes.
Então o tempo voltou a passar normalmente. O exército de
criaturas espirituais avançou, sem perceber que Zack agora estava
atrás dele. As criaturas no meio do caminho causaram vários
contratempos. O Imperador Amarelo berrou ao atingir o chão,
enroscado em seu macacão. Wu Zetian e Tang Taizong soltaram sons
de surpresa ao perceberem sua nova localização.
— Wu Zetian, invoque seu martelo e despedace este caixão! —
urgiu Zack.
Para o mérito dela, Wu Zetian entendeu a situação no mesmo
instante, invocando encantamentos até o martelo espiritual branco se
formar em sua mão. Com várias marteladas por cima da cabeça, ela
arrebentou as diversas camadas do caixão até um enorme buraco
surgir.
A luz trêmula das lamparinas de óleo de sereia iluminou os ossos
reais de dois mil e duzentos anos de Qin Shi Huang. Eles vestiam
uma túnica preta e vermelha impecável, cuja seda era escorregadia e
brilhante, como se tivesse sido costurada no dia anterior. Era
estranho que sua carne tivesse apodrecido até desparecer enquanto o
restante parecia congelado no tempo. Então Zack se lembrou da
história de que os traidores, no leito de morte de Qin Shi Huang,
haviam mantido seu falecimento em segredo enquanto tramavam
uma conspiração, deixando que seu corpo apodrecesse na carruagem,
a ponto de terem que transportá-lo com um monte de peixes em
conserva para mascarar o cheiro. O imperador não devia ser nada
além de uma pilha de ossos quando os traidores finalmente o
enterraram.
Zack não conseguia decidir se lamentava por ele. Mas também não
conseguia negar o que estava diante de seus olhos — os ossos de uma
lenda.
Com a mão tremendo tanto que mal conseguia movê-la, Zack a
enfiou pelo buraco no caixão e agarrou o crânio de Qin Shi Huang.
Então foi atropelado por magia. Uma tempestade de poder o
lançou através das memórias de uma vida inteira. Cada história que
Qin Shi Huang havia contado sobre si mesmo e cada história que
outras pessoas proferiram sobre ele, mais vívidas do que nunca.
Memórias de ser um príncipe perdido abandonado em um reino
inimigo, de lutar por poder em uma corte cruel que o via como um
estrangeiro, de conquistar todo o mundo que conhecia para que o
conceito de países estrangeiros deixasse de existir.
Quando a tempestade de memórias finalmente desacelerou, Zack
se viu num aposento escuro, iluminado por lamparinas esparsas.
Deitado na cama, estava um Qin Shi Huang velho — na verdade,
nem era tão velho. De meia-idade, com a maior parte do cabelo ainda
preto. Ele tossiu, deixando sangue escorrer pelos lábios. Ainda assim,
continuou tentando ler a pilha de pergaminhos de bambu ao lado da
cama.
Então, diferente de todas as memórias anteriores, ele olhou com
atenção para Zack, como se pudesse de fato enxergá-lo.
Zack olhou por cima do ombro, mas não havia mais ninguém ali.
— A China sobrevive? — perguntou Qin Shi Huang, a voz tão
baixa que parecia um trovão distante.
— Sobrevive — respondeu Zack, entre respirações profundas e
incrédulas. — Vai sobreviver.
A boca ensanguentada de Qin Shi Huang se curvou num sorriso
malicioso.
— Então deixe que falem o que quiserem.
Seus olhos se fecharam. O pergaminho de bambu escorregou de
suas mãos, caindo no chão frio de pedra com tamanho impacto que
lançou Zack de volta à realidade.
O garoto encarava as órbitas oculares vazias de Qin Shi Huang;
havia tirado seu crânio do caixão. Wu Zetian e Tang Taizong estavam
gritando com ele enquanto usavam suas armas para derrubar
criaturas. Seu exército havia mudado de curso e os cercado. O
Imperador Amarelo, na parte de baixo do estrado, gritava ordens.
Mas Zack olhou para o mar de estátuas de soldado espalhados pela
câmara fúnebre e soube exatamente como sair daquela situação. Qual
lenda invocar.
Ele ergueu o crânio de Qin Shi Huang sobre a cabeça e gritou:
— O Primeiro Imperador unifica a China!
Sua voz ecoou de forma sobrenatural pela câmara fúnebre
cavernosa. Então, todas as lamparinas de sereia se apagaram de uma
só vez.
Passados vários instantes, elas se reacenderam com sinistras
chamas azuis e brancas. Uma magia gelada que Zack não sentia havia
muito tempo envolveu seus ossos como cordas de gelo, atingindo-o
com tanta intensidade que ele desabou e se agachou. Seus
meridianos ficaram totalmente pretos, e ele sabia que os olhos
haviam escurecido também. Sua respiração se tornou tão gélida
quanto o ar no inverno. O crânio de Qin Shi Huang desmoronou em
qi preto fumegante, então se envolveu ao redor dos braços e do corpo
de Zack, alargando-se às suas costas como asas por um breve
momento — as asas do pássaro ancestral de ambos. Zack ofegou em
busca de ar. Seus ombros subiam e desciam, e suas mãos enrijeceram
como garras. A aurora arco-íris do portal escureceu e então estourou
como uma onda de choque através da câmara fúnebre e do exército
de estátuas. Os olhos pintados dos soldados ficaram pretos, como se
tivessem sido infectados por tinta. O som fantasmagórico de marcha e
um coro de canto baixo assombrou o ar frio do mausoléu. Todos,
inclusive as criaturas, olharam ao redor com espanto.
Os soldados de argila ganharam vida com rangidos e guinchos,
brandindo suas armas.
Arqueiros dobraram um joelho e começaram a atirar dardos de
balestras nas criaturas. Soldados de infantaria giraram suas espadas
longas e adagas-machado. Carruagens se puseram em movimento,
transportando mais arqueiros, que derrubavam qualquer criatura que
chegasse perto demais de Zack e dos imperadores. O som de guerra
preencheu a câmara colossal.
Soltando um suspiro longo, frio e intenso, Zack se endireitou,
erguendo os braços. Seu sangue e suas veias também ficaram pretos,
parecendo galhos de árvore apodrecidos entre as linhas angulares de
seus meridianos. Qi preto o cercava como uma aura de morte. Com
passos pesados, ele desceu do estrado, encarando os olhos brilhantes
do Imperador Amarelo.
Terror cruzou o rosto iluminado por meridianos do Imperador
Amarelo.
— Empunhe sua espada, meu rei! — entoou Wu Zetian atrás de
Zack, correndo estrado abaixo.
— Empunhe sua espada, meu rei! — juntou-se Tang Taizong.
A espada Tai’e surgiu na forma de uma lâmina de frio bem denso
às costas de Zack. Ele a puxou, girando-a sobre o ombro. A espada
atravessou o ar causando uma distorção visível.
Com um rosnado e um aceno de mão, o Imperador Amarelo
invocou uma formação de criaturas para protegê-lo. Então se virou e
desatou a correr.
Zack tentou persegui-lo, mas não conseguia se mover tão rápido. O
corpo estava exaurido por sustentar o exército de soldados
ressuscitados. A espada Tai’e se dissipou quando os imperadores
pararam de entoar o chamado.
Como se entendesse do que ele precisava, uma carruagem avançou
em direção ao garoto com um tinido metálico. O cocheiro, os seis
cavalos e a própria carruagem eram feitos de milhares de peças
complexas de bronze.
— Suba, Ziyang! — chamou uma voz que era tão suave quanto o
vento.
O garoto recuou.
— Pai?
A boca do cocheiro não se mexeu, mas, ao parar na frente de Zack
e dos imperadores, ele virou a cabeça de bronze para encará-lo com
seus olhos pretos.
Zack se sentiu tão atordoado que simplesmente continuou parado
onde estava.
— Vai, garoto! — exclamou Tang Taizong, arrastando-o para
dentro da carruagem.
Wu Zetian lhe deu um empurrão nos ombros.
— P-pai, é você? — perguntou Zack, agarrando a beirada da
carruagem de bronze.
Não houve resposta. Será que ele tinha imaginado aquela voz?
O cocheiro apenas chicoteou as rédeas de bronze. Os seis cavalos
avançaram com um sobressalto, perseguindo o Imperador Amarelo,
que havia montado em uma criatura alada. Eles galoparam através da
zona de guerra e dos rios de mercúrio que davam para além das
montanhas de bronze. Vento com cheiro de metal os atingia com
força.
No buraco de explosão que servira de entrada, eles passaram pelos
corpos dos outros invasores de túmulo.
— Não se preocupe, eles estão só desmaiados! — garantiu Tang
Taizong.
— Nossos hospedeiros os nocautearam com o mesmo gás usado
para sequestrá-los! — acrescentou Wu Zetian.
Naquele momento, Zack não se importava. Ele estava focado no
brilho radiante da criatura do Imperador Amarelo, que planava no
túnel adiante.
Por mais que a carruagem acelerasse, eles não conseguiam
alcançá-lo. Voar era uma vantagem enorme e, quanto mais se
afastavam da câmara fúnebre, mais fraca a magia de Zack se tornava.
Sua consciência oscilou. Com certeza ele ia desmaiar de novo.
Era bom Simon, Melissa e os imperadores garantirem que não
fosse cercado e morto pelas criaturas míticas. Do contrário, ele
mesmo atravessaria o portal do submundo para assombrá-los pelo
resto da vida.
Logo a prioridade deixou de ser de alcançar o Imperador Amarelo
e virou apenas escapar do mausoléu inteiro. Zack duvidava que seria
capaz de encarar mais uma batalha. O túnel era impossivelmente
longo. Lágrimas quentes e pontinhos brilhantes preencheram sua
visão devido ao esforço que fazia para manter a carruagem viva,
especialmente o cocheiro. Zack queria falar com ele. Tinha tantas
perguntas. Mas já não restavam forças sequer para mover os lábios.
Assim que um indício de luz do sol os banhou, estava tudo
acabado. Zack desabou. Sua mente foi tomada por uma escuridão
profunda e pesada.
Está tudo bem, Ziyang, disse uma voz que podia ter passado ou não
por seus ouvidos. Estou orgulhoso de você.
25
Como tudo é um saco e nada está resolvido

Quando Zack abriu os olhos em um quarto que não reconhecia, Simon e


Melissa se aproximaram dele com pressa, mas não disseram nada.
Pareciam estar sem palavras.
Mas é claro. Como podiam sequer começar a lidar com tudo que
havia acontecido?
Um milhão de perguntas se agitaram na mente de Zack, mas sua
garganta estava tão seca que ele só conseguiu soltar a mais curta:
— Quanto tempo?
— Quatro dias — responderam os dois em sincronia.
— Ah — fez Zack, protegendo os olhos da luz do sol que jorrava
pela janela. — É um novo recorde.
— Bem, você ressuscitou um exército de mortos — comentou
Melissa, fazendo careta e erguendo uma sobrancelha. — Você é muito
durão, de verdade.
— E você não tem mais o selo, então demorou para se recuperar
— acrescentou Simon, com um olhar compreensivo.
— Hm.
Alívio atingiu Zack como ondas na praia de Qinhuangdao. Era a
sensação de estar livre de uma tentação horrível.
Zack quase perguntou se eles tinham ouvido o cocheiro falar
alguma coisa durante a fuga, mas decidiu que era melhor deixar pra
lá. Não importava. Ele só precisava acreditar em si mesmo.
Obrigado pela ajuda, pai.
Quando Simon lhe passou um copo d’água extremamente
necessário, Zack se remexeu e se sentou na cama para beber.
— Ainda estamos em Xian, aliás — comentou Melissa, trazendo
um segundo copo. — E sentimos muito ter que perturbar você com
isso, mas precisamos checar se você ainda tem sua magia de água.
Franzindo o cenho ao ouvir o tom urgente de Melissa, Zack
sacudiu a mão sobre o copo. A água pulou para fora e cruzou o ar até
chegar do lado oposto do quarto, obedecendo a vontade do garoto.
Simon e Melissa suspiraram de alívio.
— Você conseguiu absorver todo o pò de Qin Shi Huang do corpo
dele — disse Simon, acompanhando o movimento da água com o
olhar. — Graças a Deus. Você está tão poderoso quanto ele teria sido
se tivesse te possuído direito.
Um sentimento de desconforto brotou no interior de Zack.
— O tampão do portal não foi o suficiente? Nós… falhamos?
— Não, mas os imperadores acham que isso talvez mude —
explicou Simon.
Melissa franziu mais o cenho.
— O fluxo de espíritos durante o Mês dos Fantasmas não vem todo
de uma vez. Ele aumenta devagar até o Festival Zhongyuan, no meio
do mês. Isso é daqui a onze dias. O portal ainda pode ser rompido.
Os lábios de Zack se crisparam. Ele bateu o copo na mesa de
cabeceira.
— Sério? Então o que vamos fazer? O Selo Relíquia não existe
mais!
Simon e Melissa se entreolharam, então Simon tirou os óculos
inteligentes de Zack de dentro do bolso e o ofereceu ao garoto.
— Ele deixou uma coisa para você.
Zack sentiu uma dor aguda no peito ao se lembrar de Qin Shi
Huang.
— Isso já era meu desde o começo! — reclamou.
— Não, quer dizer… só os coloque.
Zack pegou os óculos inteligentes e os colocou no rosto. Algo no
interior do garoto tremeu quando não sentiu magia nenhuma.
Ainda assim, Qin Shi Huang apareceu em sua visão.
Zack recuou em direção à cabeceira da cama, até que a invocação
falou:
— Olá, Zachary. Não entre em pânico. Eu não estou vivo. Sou um
programa de inteligência artificial criado por Qin Shi Huang para lhe
oferecer orientações complementares ao longo de sua jornada, que
receio ainda não ter acabado.
— Nós chamamos ele de Qin Ai — contou Melissa, meio
constrangida. Simon e ela também estavam usando seus óculos
inteligentes. — É um trocadilho com AI, a sigla de Inteligência
Artificial, e também com “amorzinho” em mandarim, que é qīn ài.
A pronúncia do segundo qin era um pouco diferente.
— Minha programação indica que eu deveria ficar profundamente
ofendido com esse apelido — disse Qin Ai. Seu tom continuava
monótono. — Mas, devido ao fato de que não sinto emoções, eu não
me importo.
Zack levou os dedos às têmporas. Sua cabeça parecia prestes a
explodir.
— Ele… ele… ele fez uma AI? O imperador tirânico de dois mil
anos fez uma AI?
Simon inclinou a cabeça.
— Você ainda fica surpreso com essas coisas?
— Certo, tá legal! — Zack jogou as mãos para cima. — Qin Ai, o
que temos que fazer agora? — perguntou ele, como se estivesse
falando com a Siri.
— Antes de exterminar a si próprio, a última crença de meu
criador era de que a situação só poderia ser remediada caso um novo
tampão fosse feito para o portal. O tampão original foi feito com
pedras de cinco cores, o mesmo material que a deusa da criação,
Nüwa, usou para remendar um buraco no céu — explicou Qin Ai,
balançando a manga larga de sua túnica. Polígonos formaram um
mapa virtual da China ao lado dele, com marcadores reluzentes. —
Você deverá se aventurar pela China e reunir mais pedras de cinco
cores para criar um novo tampão nos próximos onze dias.
Zack encarou o mapa, sentindo um espasmo muscular sob seu
olho.
— Ótimo. Outra missão cronometrada.
— Além disso, preciso alertá-lo de que meu criador pode se tornar
seu inimigo. O espírito dele irá se formar outra vez, e em breve, mas
ele não será mais o mesmo. Ele só se lembrará do que foi preservado
na consciência cultural, o que significa que não terá memória do que
seu espírito lendário fez, nenhuma recordação do portal, já que ele
não entrou para a história, e nenhuma lembrança de você. Mas ele
será capaz de sentir que você nasceu com uma parte leve de seu hún
espiritual, e vai querer absorvê-lo. Matando você.
O sangue de Zack gelou.
— Por favor, me diga que é brincadeira.
A expressão de Qin Ai não mudou.
— Sou uma inteligência artificial. Eu não faço brincadeiras.
Zack arrancou os óculos inteligentes, deixando-os cair nas
cobertas, e afundou na cama com o rosto nas mãos.
—… Zack? — chamou Simon, tocando seu braço.
— Só um minuto — respondeu Zack, a voz abafada pelas mãos.
— Cara, ainda não consigo acreditar que Qin Shi Huang realmente
fez aquilo — falou Melissa. — Que abriu mão de tudo que ele era.
— Nenhum de nós consegue acreditar — respondeu Simon, em
uma voz mais baixa. — O que significa que o novo Qin Shi Huang
não vai ser alguém capaz de fazer isso. Tang Taizong está bem
mexido com o que aconteceu. “Mais de dois mil anos de
desenvolvimento emocional indo por água abaixo”, nas palavras dele.
Qin Shi Huang voltará tão malvado quanto todo mundo pensa que
ele é.
— Tá bom, já entendi! — rosnou Zack, deixando as mãos caírem
do rosto.
Simon e Melissa se encolheram.
Zack se encheu de culpa. O que estava se tornando?
Você pode permitir que esta jornada lhe esmague ou deixar que ela o
transforme em alguém mais forte, Qin Shi Huang lhe dissera certa vez.
Mas aquela não era a transformação que Zack desejava. Sim, ele
tinha desejado ser mais forte, mas se recusava a obter isso se
tornando um babaca odiado por todo mundo e fadado a morrer
sozinho.
Não. Ele não era Qin Shi Huang. Nem Jason Xuan ou Shuda Li.
Zack havia passado tempo demais admirando ídolos, tentando deixar
de ser ele mesmo, mas todos os seus ídolos haviam se revelado farsas
com complicações bem maiores nos bastidores do que suas imagens
gloriosas sugeriam. Zack estava farto de seguir os outros. Ele era Ying
Ziyang. Zachary Ying. E, a partir de agora, trilharia o próprio
caminho.
— Desculpa — disse Zack, abaixando a cabeça e levando os
punhos fechados à testa. — Vamos lidar com ele da mesma forma que
lidamos com tudo. Encarar os problemas quando surgirem. Porém,
tem uma coisa mais importante… — Zack olhou para Simon,
tentando não soar muito malvado. — Você já devolveu o espírito da
minha mãe?
Simon abriu e fechou a boca, então falou:
— Zack, nós sentimos muito, muito, muito mesmo por tudo que
aconteceu com ela. Sério.
— Foi errado termos enganado você daquele jeito — acrescentou
Melissa, remexendo as mãos.
Zack empurrou goela abaixo a irritação por Simon claramente
ainda não ter viajado até o Maine. Sua cabeça latejava. Memórias de
suas ações enquanto possuía o selo o acertaram como tapas. Não
sabia direito quanto daquilo tinha sido culpa do selo e quanto fora
culpa sua mesmo.
Ele não era inocente. Simon e Melissa haviam errado com ele, mas
Zack havia errado com eles também.
O garoto passou uma das mãos sobre o rosto.
— Só devolva o espírito dela o mais rápido possível, e estaremos
quites.
— Hã… — começou Simon, mordendo o lábio.
Zack se retesou, alerta de novo.
— O que foi?
— Certo, hã, Zack, por favor, não fique zangado com a gente.
— Ah, ele vai ficar zangado com certeza — interveio Melissa,
desviando os olhos arregalados, mas então os forçou a voltar para
Zack. — Mas nós prometemos não guardar mais segredos.
— Nada de segredos — concordou Simon, assentindo com a
solenidade de quem estava prestes a ir para guerra.
— O que foi? — repetiu Zack, arrancando as cobertas e
tropeçando para fora da cama.
— Então… — Simon engoliu em seco, chegando para trás. — Nós
recebemos uma mensagem de Yaling. O hospital entrou em contato
com ela. Disseram que sua mãe se recuperou e recebeu alta.
— Mas… — começou Zack, antes de Simon interrompê-lo.
— Mas Tang Taizong invocou Li Jing, que disse que o espírito dela
continua em sua torre.
O coração de Zack batia cada vez mais rápido.
— Então… quem… o que… está usando o corpo da minha mãe?
— Esse é o problema, Zack — falou Simon, balançando a cabeça
com um olhar assombrado. — Eu sinto muito. Não temos a menor
ideia.
Agradecimentos

Sendo sincere, não faço a menor ideia de como eu fiz este livro acontecer.
Mesmo quando estava a três capítulos do final, terminá-lo parecia
impossível. Esta história pode ser irada, mas foi escrita durante um
período muito tenso da minha vida. Eu tinha acabado de me formar
na faculdade quando a pandemia de Covid-19 começou a se alastrar
pelo mundo. Eu já tinha o contrato de publicação de Viúva de Ferro,
mas minha família ainda não acreditava em minha aspiração de ser
escritore, porque demorou vários anos até eu conseguir fechar meu
primeiro contrato. Eles me perguntavam: “Você já ganhou na loteria
uma vez, quais são as chances de ganhar de novo?” Queriam saber
qual era o meu plano de verdade para os próximos cinco anos.
Achavam que era infantil ficar absorvide em ficção e em meu “hobby”
de escrever em vez de correr atrás de uma carreira convencional,
como uma pessoa adulta de verdade. Tive muitas brigas feias com
meus pais, mas não conseguia me mudar da casa deles por causa da
pandemia devastadora lá fora. Durante esses meses, dediquei tudo de
mim a Zachary Ying — minha obsessão com história chinesa,
conceitos de ficção científica e aventuras ao estilo de anime shonen
unidas em um livro doidão. Eu não conseguia nem descrever a trama
para minha família sem parecer ridícule. Milagrosamente, a aposta
valeu a pena. O livro foi vendido num leilão. Minha carreira
inesperada no YouTube decolou mais ou menos na mesma época, e
agora minha família conta vantagem sobre meus feitos esquisitos nos
encontros com seus amigos asiáticos. Então, obrigade à minha família
por finalmente acreditar em mim.
No entanto, não posso culpar meus pais de todo por não terem
acreditado em mim desde o começo. Afinal, quantos autores asiáticos
jovens são exemplos de sucesso publicamente? É difícil para pais
imigrantes aceitarem uma aposta dessas quando não veem pessoas
parecidas conosco ganhando. Porém, à medida que mais de nós
entrarmos no ramo literário com histórias assumidamente inspiradas
por nossa própria cultura, acredito que a atitude dos mais velhos vai
mudar também. Um salve para os autores que me inspiraram: Joan
He, Kat Cho, Elizabeth Lim, Julie C. Dao, Chloe Gong e muitos
outros.
Felizmente, eu não estive nem um pouco sozinhe nesta jornada.
Minha gratidão profunda vai para Rebecca Schaeffer, que me
convenceu a me aventurar na literatura infantojuvenil durante uma
viagem de Skytrain e que, anos depois, lidou com os meses que passei
choramingando enquanto escrevia este livro. E, é claro, ele não teria
saído do papel sem minha agente brilhante e atenciosa, Rachel
Brooks, que compartilhou do meu entusiasmo assim que lhe
apresentei a premissa pela primeira vez. Ela conseguiu um lar muito
amoroso para o livro na Simon & Schuster/Margaret K. McElderry
Books. Faltam palavras para elogiar minha editora, Sarah McCabe,
que entendeu exatamente o que eu pretendia com este livro e me
desafiou a elevá-lo a outro patamar. Deixo agradecimentos especiais
para todo o time da McElderry Books: Justin Chanda, Karen Wojtyla,
Anne Zafian, Bridget Madsen e Elizabeth Blake-Linn na parte
editorial e de publicação; Lauren Hoffman, Caitlin Sweeny, Alissa
Nigro, Lisa Quach, Savannah Breckenridge, Anna Jarzab, Yasleen
Trinidad, Saleena Nival, Nadia Almahdi, Jennifez Juimenez e Nicole
Russo na parte de marketing e publicidade; Christina Pecorale e sua
equipe de vendas; Michelle Leo e sua equipe
educacional/bibliotecária; e, é claro, Karyn Lee pelo design de capa e
Velinxi pela arte de capa que NÃO CANSO de admirar. Sério, eu tinha
um documento cheio de ideias para a capa, e Karyn e Velinxi deram
vida a TUDO que eu queria, desde o dragão de água e a cidade
palaciana submarina até Zack e o imperador em poses de ação com
as roupas certas na frente.
Obrigade também aos leitores beta deste livro: Rebecca Schaeffer,
Francesca Tacchi, Marco Malvagio, Tina Chan, Carly Heath e Kate
Foster. O apoio e os desafios de vocês me fizeram insistir neste livro
até chegar na versão final!
Aos novos amigos do fandom de Ultraman — Emcee, Taya, Cubee,
Tri, Klenda, Gun, Tori, Mike Dent, Ori e tantos outros —, por me
darem um lar estável na internet em meio ao caos absoluto que é
minha vida de influencer/autore.
À minha assistente, Trisha Martem, por me ajudar a administrar
esse caos.
Por fim, agradeço a Kazuki Takahashi, que sem saber me
influenciou muito como pessoa ao criar Yu-Gi-Oh!, e a LittleKuriboh,
pela lenda inesquecível que é Yu-Gi-Oh!: The Abridged Series.
Sobre ê autore

XIRAN JAY ZHAO se tornou autore best-seller do New York Times com
a série Viúva de Ferro. Elu é imigrante de primeira geração do povo
hui, saindo de uma pequena cidade da China para Vancouver, no
Canadá. Cresceu sob a influência da internet e inexplicavelmente
decidiu deixar seu diploma de bioquímica acumulando poeira para
escrever livros e criar conteúdo educacional. Siga @XiranJayZhao no
Twitter para ver memes, no Instagram para cosplays e looks incríveis,
no TikTok para vídeos curtos e divertidos e no YouTube para vídeos
longos sobre história e cultura chinesas. Zachary Ying e o Imperador
Dragão é seu primeiro livro infantojuvenil.

Você também pode gostar